janeiro de 2016 www.revistapesquisa.fapesp.br
São Paulo monta rede de 32 laboratórios para estudar o vírus Zika Inpe desenvolve primeiro satélite de alta complexidade no país O desafio de gerar uma economia de baixo carbono após o Acordo de Paris Primeiras análises caracterizam sedimentos que o rio Doce despejou no mar Por que a mobilidade de pesquisadores do Brasil é pequena
n.239
Físico Paulo Artaxo explica como a floresta controla o clima na Amazônia
as
estrelas da
inovação Startups conquistam espaço ao criar soluções para grandes empresas e governos
venda proibida
exemplar de assinante
Pesquisa FAPESP janeiro de 2016
n.239
Pesquisa Brasil Toda sexta-feira, das 13h às 14h, você tem um encontro marcado com a ciência na Rádio USP FM
Pesquisa Brasil traz notícias e entrevistas sobre ciência, tecnologia, meio ambiente e humanidades. Os temas são selecionados entre as reportagens da revista Pesquisa FAPESP
A cada programa, três pesquisadores falam sobre o desenvolvimento de seus trabalhos recentes
Sintonize em
– e ajudam a escolher a
São Paulo 93,7 mHz
programação musical
Você também pode baixar e ouvir o programa da semana fotos eduardo cesar e léo ramos
e os anteriores na página de Pesquisa FAPESP na internet (www.revistapesquisa.fapesp.br)
Ribeirão Preto 107,9 mHz
fotolab
Química em flor Vale a pena olhar de perto os depósitos que surgem durante o processo de fermentação do vinho. Os cristais que se formam pela presença do tartarato ácido de potássio, uma substância que existe nas uvas, podem se parecer com um leito de rosas. A imagem faz parte do projeto em licenciatura do químico Luis Brudna Holzle, que usa o impacto visual para ensino e divulgação de sua disciplina na internet. “Eu procuro na química imagens que possam chamar explicações e tento colocar alguma beleza nas fotos”, conta. O resultado está nos sites emsintese.com.br e imagens.tabelaperiodica.org, mantidos pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa), no Rio Grande do Sul. Desde o início do projeto, em 2008, esses sites já foram visualizados por mais de 3 milhões de pessoas.
Se você tiver uma imagem relacionada à sua pesquisa, envie para imagempesquisa@fapesp.br, com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.
Imagem enviada por Luis Brudna Holzle, do campus de Bagé da Unipampa
PESQUISA FAPESP 239 | 3
janeiro 239
58 54 CAPA 16 Startups ganham reconhecimento e consolidam colaboração com setor público e grandes empresas
23 Spin-offs são
uma forma de o conhecimento acadêmico chegar à sociedade, criar renda e empregos
ENTREVISTA 26 Paulo Artaxo Físico comenta o acordo na COP-21 e destaca a importância da Amazônia para o clima global
POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA 32 COP-21 Acordo em Paris sobre mudanças climáticas prevê compromisso global para limitar aumento da temperatura e mira uma economia de baixo carbono 36 Recursos humanos Mobilidade de pesquisadores brasileiros é baixa ao longo da carreira, indica estudo
66
40 Desenvolvimento Livros discutem as estratégias para enfrentar a desindustrialização da economia brasileira
68 Astronomia Pesquisadores tentam compreender as reações que ocorrem no interior de estrelas como o Sol
TECNOLOGIA
45 Seminário Evento discute caminhos para superar desafios em áreas como saúde, energia e ambiente
CIÊNCIA 46 Saúde Cerca de 30 laboratórios de São Paulo se unem para investigar o vírus Zika que ameaça o Brasil com uma epidemia de microcefalia
58 Ambiente Argila fina e alto teor de metais no material liberado pelo rompimento das barragens em Minas Gerais podem alterar dinâmica ecológica e de sedimentos da foz do rio Doce
52 Neurologia Adequações em abordagem clássica na teoria da dor levam a novas explicações sobre fenômenos conhecidos
60 Evolução História evolutiva de vegetação na área serrana da região Sul ressalta importância de ecossistema não florestal
54 Biofísica Modelo explica como tumores cancerígenos mobilizam os vasos sanguíneos que os alimentam
64 Ecologia Região da desembocadura do rio Amazonas, entre o Pará e o Amapá, abriga a ocorrência mais ao norte de corais no litoral do Brasil
capa daniel bueno (ilustração), léo ramos (foto)
70 Engenharia aeroespacial Satélite desenvolvido no país vai monitorar recursos naturais e ajudar no combate ao desmatamento 74 Engenharia eletrônica Avanços tecnológicos ampliam as possibilidades do uso de aeronaves não tripuladas na agricultura 78 Pesquisa empresarial Para conquistar espaço no mercado, Alibra desenvolve novos ingredientes para a indústria alimentícia
HUMANIDADES 82 Economia Além dos benefícios ambientais, o aumento da produção de etanol ajudou a melhorar os indicadores sociais no campo
87 Língua Pesquisadores discutem questões teóricas da filologia para construir subsídios e embasar os estudos clássicos seçÕes 3 Fotolab 5 Cartas 6 On-line 7 Carta do editor 8 Dados e projetos 9 Boas práticas 10 Estratégias 12 Tecnociência 91 Memória 93 Arte 95 Resenhas 97 Carreiras 99 Classificados
16
cartas
CONTATOS Site No endereço eletrônico www. revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP, na íntegra, em português, inglês e espanhol. Também estão disponíveis edições internacionais da revista em inglês, francês e espanhol Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação pelo e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727 – 10º andar, CEP 05415-012, São Paulo, SP Assinaturas, renovação e mudança de endereço Envie um e-mail para assinaturaspesquisa@fapesp.br ou ligue para (11) 3087-4237, de segunda a sexta, das 9h às 19h
cartas@fapesp.br
Assinatura da revista
Agradeço o privilégio de ter recebido esta competente e interessante revista por todos estes anos, gratuitamente. Um dia de novembro, quando cheguei em casa, pensei que estava na hora de pagar por ela. Qual não foi a minha alegria pela sincronicidade da ideia: meu exemplar havia chegado contendo uma carta com a mesma sugestão. Leio a revista integralmente e tenho aprendido como o mundo fica cada vez mais fascinante à medida que o conhecemos um pouco mais. Sou professora aposentada da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp), mas continuo trabalhando como psiquiatra de crianças na prefeitura de Hortolândia. Sempre considerei que deveria devolver parte do que aprendi para a população, de várias formas – diagnosticando, tratando e, mais do que isso, mostrando que cada criança pode pensar por si, descobrir o grande mundo ao seu redor. Lidia Straus FCM/Unicamp Campinas, SP
Para anunciar Contate Júlio César Ferreira na Mídia Office, pelo e-mail julinho@midiaoffice.com.br, ou ligue para (11) 99222-4497 Classificados Ligue para (11) 3087-4212 ou escreva para publicidade@fapesp.br
História
Os europeus trouxeram na mala o inferno, mas os índios estabeleceram um telefone sem fio entre deuses e Satanás (sobre a reportagem “Cristianismo negociado”, edição 237). A tese quebra a imagem do colonizado pacificado e subalterno. Fascinante!
Edições anteriores
Mara Lúcia Cristan
Preço atual de capa
Via Facebook
clair@fapesp.br
Boas práticas
(11) 3087-4212 ou envie e-mail para
Há a obrigatoriedade de publicações em revistas científicas especializadas, numa cultura de quanto mais, melhor (sobre a nota “Registros inventados”, na seção Boas práticas, edição 237). Daí tudo pode acontecer. Nesse caso, a “brincadeira” atingiu sabe-se lá quantos pacientes na esperança de se livrar da dor.
mpiliadis@fapesp.br
Riva Liberman
Licenciamento de conteúdo Para adquirir os direitos de reprodução de textos e imagens de Pesquisa FAPESP ligue para
A reportagem no site de Pesquisa FAPESP “Extinção de animais pode agravar efeito das mudanças climáticas” é importante para repassarmos aos nossos alunos. Essas notícias deveriam ser de conhecimento de toda a população e passar na TV. Todos nós sofremos com desmatamento, caça ilegal de animais e destruição de hábitats. Margareth Martins Cordeiro Via Facebook
Vídeos
Para quem gosta de estudar evolução, o vídeo “Parceiros inseparáveis” é uma aula fantástica, que mostra que o trabalho solitário de pesquisa (como se fosse uma célula) pode se transformar em um tecido, quando compartilhado. Gilberto Emilio Nogueira Via Facebook
Muito legal o vídeo “Por que a terra treme no Brasil”. Remeteu-me à primeira metade da década de 1970, quando o nosso grupo de geotécnica do IPT estava desenvolvendo acelerômetros e fui aprender sismologia no IAG-USP sob orientação do professor Jesus Antonio Berrocal Gomez. Tenho muita saudade daqueles tempos e de um time formado por gente competente e interessada. Moacyr Sampaio Xavier Filho Via Facebook
Um bom exemplo de trabalho sério para amenizar o mar de descasos com o dinheiro público (sobre o vídeo “Por que a terra treme no Brasil”). Regis Wellaysen Dias
acrescido do custo de postagem. Peça pelo e-mail
Do site
Via Facebook
Via Facebook
Muito bom para quem quer saber o que um geofísico faz (sobre o vídeo “Por que a terra treme no Brasil”). Paola Cossetin Via Facebook
Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar – CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.
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on-line
Galeria de imagens
w w w . r e v i s ta p e s q u i s a . f a p e s p. b r
100 mil fãs no Facebook Número de pessoas que curtiram a página de Pesquisa FAPESP em 2015
100.000 98.593 95.604 87.376
89.621
89.618
82.157 77.150
61.881
63.363 64.066 64.066
Jan. Fev. Mar. Abr. Mai. jun. jul. Ago. Set. Out. Nov. Dez.
Exclusivo no site x A extinção de animais que se alimentam sobretudo de frutos, como antas, cutias e muriquis, pode reduzir o potencial das florestas tropicais para combater alterações climáticas. Isso porque a perda dessa fauna capaz de dispersar sementes de frutos grandes mudaria a composição das florestas, eliminando as árvores capazes de absorver mais dióxido de carbono (CO2) da atmosfera. A relação foi observada por um grupo de pesquisadores coordenado pelo biólogo brasileiro Mauro Galetti e sua orientanda de doutorado, Carolina Bello, ambos do Departamento de Ecologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro, interior de São Paulo. x As regiões Sudeste e Nordeste do Brasil perderam juntas cerca de 105 trilhões de litros d’água por ano entre 2012 e 2015. A estimativa é do hidrologista brasileiro Augusto Getirana, atualmente no Goddard Space Flight Center da Nasa, nos Estados Unidos. Em um estudo publicado no Journal of Hydrometeorology, ele analisou variações do armazenamento total de água no Brasil, das águas superficiais às subterrâneas, entre 2002 e 2015. Usou para isso um conjunto de dados obtidos por dois satélites da Nasa. 6 | janeiro DE 2016
Rádio O biólogo Marcos Buckeridge fala sobre o código que regula a formação da parede celular das plantas
Vídeos do mês Assista ao vídeo:
Assista ao vídeo:
Confira no registro fotográfico de Rafael Oliveira, Patrick Meir e Paulo Brando o colapso de árvores com o ressecamento da floresta na Amazônia
youtube.com/user/PesquisaFAPESP
Associação simbiótica entre protozoário e bactéria ajuda a entender a origem de organelas celulares
Fluxos migratórios no Brasil mudaram ao longo dos séculos
carta do editor fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo José Goldemberg Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior Carmino Antonio de Souza, Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, João Fernando Gomes de Oliveira, joão grandino rodas, José Goldemberg, Maria José Soares Mendes Giannini, Marilza Vieira Cunha Rudge, José de Souza Martins, Pedro Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski, Suely Vilela Sampaio
Startups sob os holofotes
Conselho Técnico-Administrativo José Arana Varela Diretor-presidente Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico Joaquim J. de Camargo Engler Diretor Administrativo
issn 1519-8774
Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Anamaria Aranha Camargo, Carlos Eduardo Negrão, Fabio Kon, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Joaquim J. de Camargo Engler, José Arana Varela, José Goldemberg, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Lucio Angnes, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner Caradori do Amaral, Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos diretora de redação Alexandra Ozorio de Almeida editor-chefe Neldson Marcolin Editores Fabrício Marques (Política), Márcio Ferrari (Humanidades), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência); Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores especiais); Bruno de Pierro (Editor-assistente) revisão Daniel Bonomo, Margô Negro arte Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos (Editora de infografia), Alvaro Felippe Jr., Júlia Cherem Rodrigues e Maria Cecilia Felli (Assistentes) fotógrafos Eduardo Cesar, Léo Ramos Mídias eletrônicas Fabrício Marques (Coordenador) Internet Pesquisa FAPESP online Maria Guimarães (Editora) Rodrigo de Oliveira Andrade (Repórter) Renata Oliveira do Prado (Mídias sociais) Rádio Pesquisa Brasil Biancamaria Binazzi (Produtora) Colaboradores Alexandre Affonso, Daniel Bueno, Eduardo Massad, Evanildo da Silveira, Fabio Otubo, Gilberto Stam, Guilherme Simões Gomes Júnior, Igor Zolnerkevic, Jayne Oliveira, Maurício Puls, Pedro Handam, Valter Rodrigues, Yuri Vasconcelos É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização Para falar com a redação (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br Para anunciar Midia Office - Júlio César Ferreira (11) 99222-4497 julinho@midiaoffice.com.br Classificados: (11) 3087-4212 publicidade@fapesp.br Para assinar (11) 3087-4237 assinaturaspesquisa@fapesp.br Tiragem 38.200 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo
A
reportagem que estampa a capa desta edição foi uma escolha natural. Em 2015, a emergência das startups tornou-se mais visível com eventos numerosos ocorrendo durante todo o ano em diversas partes do Brasil. O fenômeno dessas pequenas empresas nascentes, quase sempre de base tecnológica, não é novo no país. A diferença é que, agora, se multiplicam os programas de incentivo criados por governos ou grandes companhias dirigidos às startups, assim como torneios em que empreendedores apresentam ideias de produtos inovadores para convencer uma plateia de investidores a colocar dinheiro no novo negócio. Uma das razões da atenção provocada pelas pequenas empresas inovadoras é a descoberta de governos estaduais e federal, além de grupos privados, de que elas podem proporcionar soluções criativas para problemas de órgãos públicos e empresariais. A maioria das startups trabalha com tecnologia da informação e softwares que têm aplicações quase imediatas, capazes, por exemplo, de facilitar a gestão e o acesso a dados de interesse da população. Em muitos casos, é mais rápido, eficaz e econômico se associar ou financiar uma empresa que já tem uma resposta para determinado gargalo do que começar do zero. A geração de conhecimento, que boa parte das vezes começa na academia, é constante. Especialmente quando se sabe que as chances de sucesso desses novos empreendimentos tecnológicos crescem quando associados a universidades, centros de pesquisa e a companhias maiores com os quais possam interagir. O movimento de valorização das startups está retratado a partir da página 16. Em 2015 houve um tema menos óbvio e mais comentado do que o reconhe-
cimento dos benefícios que as pequenas empresas podem ter na economia: o vírus Zika e seus danos sobre a saúde humana (página 46). Transmitido pelo mosquito Aedes aegypti, o vírus é suspeito de ser o causador do surto de microcefalia que começou pela região Nordeste e ameaça o restante do país. Esse agente infeccioso também vem sendo associado ao aumento dos casos da síndrome de Guillain-Barré, doença inflamatória que afeta o sistema nervoso. Em São Paulo está sendo feito um extraordinário esforço para conhecer mais o vírus. Até a última semana de dezembro 32 laboratórios, com centenas de pesquisadores envolvidos, haviam se organizado em uma rede para estudar o Zika. O objetivo é compreender como o vírus age e qual a real relação com a microcefalia, além de procurar uma forma eficiente de combate aos seus efeitos. A urgência é justificada: as chuvas vieram com intensidade neste começo de verão no Sudeste, o que pode facilitar a proliferação do Aedes numa região habitada por 82 milhões de pessoas. Depois dos atentados terroristas de novembro, o final do ano trouxe uma boa notícia de Paris, onde ocorreu a 21ª Conferência do Clima. Representantes de 195 países se comprometeram a adotar medidas para combater as mudanças climáticas em um acordo histórico. Vale a pena conhecer os detalhes dessa história (página 32) e ler também a entrevista com o físico Paulo Artaxo, um pesquisador especialista em aerossóis – partículas em suspensão na atmosfera – que conhece como poucos a importância da Amazônia para o clima do planeta. Boa leitura. Neldson Marcolin | editor-chefe PESQUISA FAPESP 239 | 7
Dados e projetos Temáticos e Jovens Pesquisadores recentes Projetos contratados em novembro e dezembro de 2015 temáticos Preparo profundo do solo em faixas e calagem na cana-de-açúcar: qualidade do solo, emissão de gases de efeito estufa, parâmetros fisiológicos e produtividade Pesquisador responsável: Carlos Alexandre Costa Crusciol Instituição: FCA Botucatu/Unesp Processo: 2014/20593-9 Vigência: 01/09/2015 a 31/08/2020
Construção da intersetorialidade no campo saúde e trabalho: perspectiva dos profissionais inseridos na rede de serviços do município de São Paulo Pesquisadora responsável: Selma Lancman Instituição: FM/USP Processo: 2014/25985-2 Vigência: 01/02/2016 a 31/01/2021
O timo humano: desenvolvimento e doenças Pesquisadora responsável: Magda Maria Sales Carneiro Sampaio Instituição: FM/USP Processo: 2014/50489-9 Vigência: 01/11/2015 a 31/10/2019 Busca de proteínas de superfície nas sequências do genoma da Leptospira interrogans: caracterização funcional e imunológica para o entendimento de mecanismos envolvidos na patogênese de bactéria Pesquisadora responsável: Ana Lucia Tabet Oller do Nascimento Instituição: Instituto Butantan/SSSP Processo: 2014/50981-0 Vigência: 01/11/2015 a 31/10/2019 Dinâmica estocástica: aspectos analíticos, geométricos e aplicações
Pesquisador responsável: Paulo Regis Caron Ruffino Instituição: IMECC/Unicamp Processo: 2015/07278-0 Vigência: 01/02/2016 a 31/01/2020 JOVENS PESQUISADORES Papel das miosinas na trans-infecção do HIV-1 por células dendríticas e na replicação do HIV-1 em macrófagos Pesquisadora responsável: Bruna Cunha de Alencar Bargieri Instituição: ICB/USP Processo: 2014/23225-0 Vigência: 01/02/2016 a 31/01/2020
Estudo do papel do sistema endocanabinoide nos efeitos comportamentais e plásticos dos fármacos antidepressivos Pesquisadora responsável: Alline Cristina de Campos
Instituição: FMRP/USP Processo: 2015/05551-0 Vigência: 01/12/2015 a 30/11/2019
Nanocel – Desenvolvimento de preparos enzimáticos para o preparo de nanoceluloses por um processo bioídrido Pesquisador responsável: Valdeir Arantes Instituição: EE Lorena/USP Processo: 2015/02862-5 Vigência: 01/12/2015 a 30/11/2019 Atividade de proteínas fosfatases de dupla especificidade (DUSPs) no controle da ativação de MAP quinases: impacto na reprogramação metabólica do adenocarcinoma ductal pancreático Pesquisadora responsável: Vanessa da Silva Silveira Instituição: FMRP/USP Processo: 2015/10694-5 Vigência: 01/10/2015 a 30/09/2019
Pedidos de financiamento por áreas do conhecimento Ciências da saúde e ciências biológicas lideram em número de propostas apresentadas e concedidas pela FAPESP nos últimos anos Solicitações analisadas
6.000
Ciências da Saúde 5.000
Ciências Biológicas
4.000
Ciências Exatas e da Terra Ciências Agrárias Ciências Humanas Engenharias
3.000 2.000
Ciências Sociais Aplicadas Linguística, Letras e Artes Interdisciplinar
1.000 0 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015
30%
porcentagem das solicitações analisadas, segundo a área do conhecimento
25%
Ciências da Saúde
20%
Ciências Biológicas
15%
Ciências Exatas e da Terra Ciências Agrárias Ciências Humanas Engenharias
10%
Ciências Sociais Aplicadas Linguística, Letras e Artes Interdisciplinar
5%
0 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015
8 | janeiro DE 2016
Fonte FAPESP
Boas práticas
Ilustração daniel bueno
Fraudes escamoteadas Pesquisadores que falsificam dados em artigos científicos costumam adotar padrões de escrita para tentar mascarar pistas de má conduta. Essa é a principal conclusão de um estudo realizado por Jeff Hancock e David Markowitz, professores do Departamento de Comunicação da Universidade Stanford, nos Estados Unidos. No trabalho publicado em novembro no Journal of Language and Social Psychology, eles mostram que há distinções no estilo de escrita em artigos fraudulentos e não fraudulentos. Os autores analisaram 253 papers publicados em vários periódicos na área de biomedicina que foram retratados entre 1973 e 2013. Com a utilização de técnicas de linguística computacional, os documentos foram comparados com artigos que não foram alvo de retratação, publicados nas mesmas revistas e no mesmo período, abrangendo assuntos parecidos. Os resultados mostram que os artigos retratados apresentam um nível elevado do que eles chamam de “ofuscamento linguístico”. “Cientistas que falsificam dados têm consciência de que estão cometendo má conduta e não querem ser pegos. Uma estratégia para contornar isso é tentar ofuscar a fraude por meio de palavras ou expressões no texto”, explicou Markowitz ao site da Universidade Stanford. Esse fenômeno já havia sido observado em relatórios financeiros. “Quisemos verificar se o mesmo ocorre em artigos científicos.” Observou-se, por exemplo, que os artigos fraudulentos apresentam
um número maior de jargões técnicos: em média, cerca de 60 termos especializados a mais do que em artigos não fraudulentos. Uma explicação possível é que essas palavras, incomuns na comunicação do cotidiano, ajudam a simular o lastro científico do artigo. Também ocorre uma incidência menor de termos que expressam emoções ou juízo de valor, como “sucesso” ou “melhorar”, nos papers retratados. De acordo com os autores da pesquisa, utilizar menos palavras que soem positivas, como afirmar que os resultados obtidos são “satisfatórios”, serve para não chamar a atenção do leitor em relação aos dados falsificados no artigo. “Nosso trabalho é uma contribuição dentro de um esforço de pesquisa que busca compreender como a linguagem pode revelar dinâmicas sociais e
psicológicas, como a fraude”, explica Markowitz. No entanto, ele ressalta a necessidade de mais estudos sobre o assunto para que essa abordagem possa ser utilizada para detectar fraudes.
Sob nova direção O Escritório de Integridade de Pesquisa dos Estados Unidos (ORI, na sigla em inglês) tem uma nova diretora. Kathy Partin, neurocientista da Universidade Estadual do Colorado (CSU), foi designada para o cargo em novembro e vai comandar o órgão responsável pela investigação de fraudes em pesquisas financiadas pelo governo. Ela substitui David Wright, que deixou o posto em março de 2014 após publicar uma carta em que criticou a “burocracia disfuncional” de órgãos federais como o Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS).
“Foi o pior trabalho que já tive”, escreveu Wright. Para o especialista em ética na ciência Nicholas Steneck, da Universidade de Michigan, Kathy Partin tem formação e capacidade para dirigir o ORI. “Está na hora de rever o que foi feito nos últimos anos e verificar se nossas políticas em integridade científica precisam ser atualizadas”, disse Steneck à revista Science. Partin adquiriu experiência ao dirigir o escritório de integridade científica da CSU, que oferece treinamento a alunos e professores e investiga casos de má conduta. PESQUISA FAPESP 239 | 9
Estratégias Mudança de endereço na Antártida O British Antarctic Survey,
foi projetada para ser
Adam Bradley, líder da
Além de laboratórios e
centro de operações e
transportável e essa
estação. A expectativa é
radares, a Halley conta
pesquisas do Reino
será a primeira vez que
de que a mudança seja
com alojamentos, áreas
Unido na Antártida,
a estrutura “caminhará”
concluída entre 2016 e
de lazer e relaxamento,
iniciou os preparativos
sobre o gelo. Seus oito
2017. Em funcionamento
escritórios e refeitórios.
para transferir de lugar a
módulos conectados são
desde 2012, a estação é
Durante o inverno,
estação científica Halley
montados sobre pernas
dedicada a pesquisas nas
costuma abrigar cerca
VI, ameaçada por
hidráulicas equipadas
áreas de meteorologia,
de 16 pessoas. Entre
uma rachadura de
com esquis de 150
química e ciências da
dezembro e março, o
7 quilômetros (km)
metros. “Vamos separar
atmosfera. Nela, são
número sobe para mais
na plataforma de gelo
os módulos e todos eles
realizadas, por exemplo,
de 70 pessoas, entre
onde está instalada, nas
serão rebocados para
medições da qualidade
pesquisadores,
proximidades do mar
um novo local”, disse à
do ar e da quantidade de
engenheiros, técnicos e
de Weddel. A estação
revista New Scientist
ozônio na atmosfera.
médicos.
Os módulos da estação Halley VI: pernas hidráulicas que podem deslizar no gelo
1
O articulador da Rio-92
Vencedores do Prêmio FCW
O canadense Maurice
reuniram-se para discutir
Strong, primeiro diretor
soluções para desafios
executivo do Programa
relacionados a temas
A Fundação Conrado
das Nações Unidas
como clima, água e
Wessel (FCW) anunciou
para o Meio Ambiente
poluição. Seus resultados
os vencedores do
(Pnuma) e pioneiro
se tornaram referência
Prêmio FCW Ciência,
na formulação de
para as conferências da
Cultura e Medicina 2015.
políticas para promover
ONU sobre o clima
Os escolhidos, que
o desenvolvimento
(COPs) que ocorreram
sustentável, morreu no
nas últimas duas
dia 27 de novembro aos
décadas – a mais recente
86 anos de idade. Strong
delas, em Paris, teve
foi o principal organizador
início dois dias após a
da Conferência das
morte de Strong.
Nações Unidas sobre o
Empresário que
Meio Ambiente e
enriqueceu no setor de
estimulando governos
pela Escola Paulista
Desenvolvimento,
óleo e gás, foi um dos
de países desenvolvidos
de Medicina em 1970,
realizada no Rio de
primeiros representantes
a assumir a
com doutorado em
Janeiro em junho de 1992,
da indústria a chamar
responsabilidade pela
Oftalmologia pela
a Rio-92. Na ocasião,
a atenção para as
degradação provocada
Universidade Federal de
delegações de 175 países
mudanças climáticas,
pela industrialização.
Minas Gerais (UFMG),
10 | janeiro DE 2016
2
receberão R$ 300 mil Maurice Strong: primeiro diretor executivo do programa da ONU para o meio ambiente
cada um em 2016, foram o oftalmologista Rubens Belfort Mattos Junior (Medicina) e a escritora Lygia Fagundes Telles (Cultura). Graduado
Rubens Belfort é
3
professor titular da
Em São Paulo e no Japão
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
A FAPESP e a Japan
Cada proposta deve
e presidente da
Society for the
ter um coordenador do
Academia Brasileira
Promotion of Science
lado japonês e outro
de Oftalmologia e do
(JSPS) lançaram uma
do estado de São Paulo.
Instituto Paulista de
chamada de propostas
O paulista deve ocupar
Ensino e Pesquisa em
para apoiar a realização
posição de tempo
Oftalmologia. Na década
de workshops conjuntos
integral ou equivalente
de 1990, promoveu
em qualquer área do
como pesquisador em
conhecimento que
uma instituição de
catarata e de diabetes
incentivem a
ensino superior e/ou de
ocular e participou
colaboração entre
pesquisa no estado e
da criação do primeiro
pesquisadores do Japão
deve satisfazer os
centro de oncologia
e do estado de São
critérios de elegibilidade
Paulo. Dois workshops
do Auxílio à Pesquisa –
serão selecionados, com
Projeto Temático.
duração de três dias.
O coordenador no Japão
Um deles será realizado
deve ocupar posição
no Japão e o outro em
de tempo integral ou
São Paulo. FAPESP
equivalente como
4
fotos 1 British Antarctic Survey 2 IISD 3 divulgação 4 eduardo cesar 5 Charlotte Raymond Photography
mutirões de cirurgias de
ocular na Amazônia,
A escritora Lygia Fagundes Telles e o pesquisador Rubens Belfort Junior: escolhidos
que começou a funcionar em 2014 em Manaus. Atualmente, Belfort desenvolve um programa para fornecer óculos gratuitos para idosos e
de Direito do largo
e JSPS contribuirão,
pesquisador em uma
crianças. É membro da
de São Francisco
cada uma, com o
universidade ou
Academia Brasileira
da Universidade de
equivalente a US$ 80 mil
instituição que seja
de Ciências, da
São Paulo (USP), é
por evento. A iniciativa
elegível a receber
Associação Nacional de
autora de dezenas de
busca, entre outros
Grants-in-Aid for
Medicina e da Academia
livros de contos, além
objetivos, encorajar
Scientific Research
Ophthalmologica
de romances como
jovens pesquisadores a
(Kakenhi). As propostas
Universalis e integrante
Ciranda de pedra (1954),
compartilhar
podem ser submetidas
do International Council
As meninas (1973)
conhecimentos e
até 18 de março. A
of Ophthalmology.
e As horas nuas (1989).
experiências e estimular
chamada está disponível,
Considerada uma das
Lygia teve suas obras
a construção de redes
em inglês, em fapesp.br/
mais importantes
publicadas em diversos
de colaboração.
call/jsps/2016.
escritoras brasileiras, a
países, entre eles
paulista Lygia Fagundes
França, Estados Unidos,
Telles é membro da
Alemanha e Itália.
Academia Brasileira de
Alguns de seus textos
Letras desde 1985.
foram adaptados para
Formada pela Faculdade
TV, teatro e cinema.
Pesquisa de uma vacina contra o HIV nos Estados Unidos: prioridades revistas
Menos recursos para a Aids Os Institutos Nacionais de Saúde (NIH),
drome. A garantia de 10% foi combinada
principal organização de fomento à pes-
entre os NIH e o Congresso norte-ame-
quisa médica dos Estados Unidos, anun-
ricano há cerca de 25 anos, numa época
ciaram que deixarão de alocar 10% de
em que o diagnóstico da Aids era quase
Isso porque o número de mortes caiu tão
seu orçamento científico – o equivalente
um sinônimo de sentença de morte – a
fortemente que não havia mais justifica-
a US$ 3 bilhões em 2015 – a estudos so-
sobrevida média mal passava de um ano.
tiva para a prioridade. “A mudança é
bre a Aids, interrompendo uma estraté-
A pressão de grupos especialmente afe-
necessária, embora difícil e dolorosa”,
gia criada no início dos anos 1990 para
tados pela doença na primeira fase da
disse o virologista Ian Lipkin, da Univer-
deter a epidemia da doença. A agência
epidemia, com destaque para os militan-
sidade Columbia, à revista Science. Se-
também vai reorientar seus investimen-
tes gays, foi fundamental para garantir
gundo o Conselho Consultivo dos NIH, à
tos, dando ênfase menor para a ciência
os recursos. O surgimento de terapias
medida que os projetos em vigor se en-
básica e privilegiando a busca de uma
que ampliaram muito a sobrevida dos
cerrarem, parte dos recursos será realo-
vacina e de novas terapias contra a sín-
pacientes colocou a estratégia em xeque.
cada na pesquisa de outras doenças.
5
PESQUISA FAPESP 239 | 11
Tecnociência 1
30 sacas por hectare (ha) em Rondônia e no Acre. A média nacional é de 22 sacas/ha. Natural da Etiópia, na África, o arábica é considerado o mais saboroso e é cultivado em regiões de altitudes mais elevadas. No Brasil, os principais estados produtores são Minas Gerais e São Paulo. Na região Norte, muitas famílias vivem da cafeicultura plantando
Bactérias na Guanabara Vastas quantidades de
de 2015). Em
bactérias do gênero
microrganismos das
Vibrio, causadoras da
águas da baía também
cólera, foram identificadas
foram encontrados genes
em 2011 na baía da
Café arábica na Amazônia
Baía onde se realizarão provas olímpicas tem alto grau de contaminação
o café robusta (Coffea canephora), mas a demanda pelo arábica é crescente. Desde
Uma variedade de café
2005, os pesquisadores
arábica (Coffea arabica)
trabalham no
de resistência a
adaptada ao calor
melhoramento genético
Guanabara, no Rio de
antibióticos. Os autores
e a baixas altitudes
tradicional do C. arabica,
Janeiro, e consideradas
do estudo observaram
apresentou bons
avaliando e selecionando
um dos motivos da
que a degradação da baía
resultados na primeira
genótipos favoráveis ao
mortalidade de peixes ali
começou na década de
colheita em plantios
cultivo a baixas altitudes
verificada três anos
1930 com o processo de
realizados na Amazônia.
e temperaturas mais
depois, para a qual devem
industrialização e
Desenvolvida por
elevadas, como na
ter contribuído as toxinas
alertam que o plano de
pesquisadores da
Amazônia. “Minimizamos
liberadas por algas em
despoluição, fortalecido
Embrapa Rondônia, do
os efeitos da alta
proliferação nas águas
pela realização dos Jogos
Instituto Agronômico de
temperatura e
poluídas. Segunda maior
Olímpicos neste ano,
Campinas (IAC), em
alcançamos uma melhor
da costa do Brasil, com
poderia restaurar a
São Paulo, e da Empresa
produtividade”, diz o
uma área de 384
qualidade da água para
de Pesquisa Agropecuária
agrônomo Alexsandro
quilômetros quadrados e
níveis próximos a 80%
de Minas Gerais (Epamig),
Teixeira, da Embrapa
cercada por uma área
de pureza, desde que
a nova variedade
Rondônia, coordenador
urbana com 16 milhões de
todo o esgoto residencial
produziu acima de
do projeto.
habitantes, a baía da
e industrial hoje
Guanabara é um caldeirão
despejado ali seja
de microrganismos
tratado. Hoje, a qualidade
causadores de doenças
da água só não é pior
provenientes de esgoto
porque correntes
doméstico, resíduos
marinhas entram na baía
hospitalares e dejetos
e diluem a poluição.
industriais não tratados
A entrada estreita da
de 16 municípios, de
baía, as marés e o regime
acordo com levantamento
de ventos impedem uma
de pesquisadores de
ação mais intensa da
universidades e centros
água do mar. Como
de pesquisa do Rio de
resultado, a renovação
Janeiro, de Brasília e da
de metade do volume
Holanda (Frontiers in
da água da baía demora
Microbiology, novembro
em média 11 dias.
12 | janeiro DE 2016
2
No Acre e em Rondônia, variedade arábica é plantada com sucesso
Asteroide eliminou organismos marinhos Foi uma tragédia monumental. O aste-
que o impacto do asteroide, após abrir
trato nos oceanos e favorecer a multi-
roide de estimados 10 quilômetros (km)
uma cratera de 180 km de diâmetro e
plicação de algas, que teria reduzido os
de diâmetro que caiu na península do
20 km de profundidade, liberou uma
níveis de oxigênio da água e produzido
México há 66 milhões de anos, além de
quantidade imensa de partículas incan-
toxinas letais para invertebrados, peixes,
matar os dinossauros, pode ter favore-
descentes de rochas que, além de quei-
plantas e outros habitantes do mar. Essa
cido uma intensa proliferação de algas
mar plantas e animais, liberaram óxido
hipótese, segundo os pesquisadores,
que teria contribuído para uma extinção
de nitrogênio. Simulações computacio-
explicaria a extinção de lagartos gigan-
em massa de organismos marinhos (Jour-
nais indicaram que essas substâncias
tes aquáticos conhecidos como plesios-
nal of Geophysical Research, dezembro
poderiam formar nuvens e cair na forma
sauros. Estima-se que 75% das formas
de 2015). Pesquisadores da Universida-
de chuva ácida. Por sua vez, a chuva
de vida tenham desaparecido após o
de Purdue, Estados Unidos, concluíram
ácida poderia aumentar os níveis de ni-
impacto do asteroide.
fotos 1 léo ramos 2 embrapa 3 e 4 Wikimedia Commons
Ordem nas ruas de Londres Em um livro clássico
geometrias que se
do humor britânico,
repetem em diferentes
How to be an alien, de
escalas), com vários
1946, o imigrante
pontos de articulação,
húngaro George Mikes
para se apresentar como
sugeria aos moradores
um espaço com um
de Londres construir as
padrão mais retilíneo e
ruas em formato de S ou
homogêneo (Physical
W, jamais em linha reta,
Review E, dezembro de
para manter a
2015). Os autores
harmonia da cidade.
argumentam que a
Exageros à parte,
Londres atual poderia
a capital inglesa,
ser descrita como um
principalmente sua
monofractal, um padrão
região mais antiga, é
mais simples que o
desnorteante. Um grupo
anterior. As ruas em S ou
de pesquisadores do
W ficaram mais distantes
University College
da realidade.
Desenho de plesiossauro, lagarto marinho extinto há 66 milhões de anos
3
Mestiço encorpado Testes feitos na Embrapa
Piauí, com base no
Pecuária Sudeste, em
fenômeno da heterose,
São Carlos, indicaram
por meio do qual os
ser macia e saborosa
animais resultantes de
a carne de uma nova
hibridização apresentam
London, depois de
variedade bovina
melhor desempenho do
examinar nove mapas
resultante do
que a média dos pais. A
digitalizados da cidade
cruzamento entre touros
nova variedade poderia ir
feitos entre 1786 e 2010,
da raça brasileira de
para o abate com apenas
concluiu que, à medida
origem europeia
dois anos, mais cedo que
que a capital crescia,
curraleiro pé-duro
a nelore, e produzir 20
a rede de ruas
(Bos taurus taurus) e
quilogramas (kg) de
progressivamente
vacas nelore (Bos taurus
carne macia, quatro a
preenchia os espaços
indicus), de origem
mais que a nelore, por
disponíveis no cinturão
indiana. O novo animal,
100 kg de músculo na
verde, implementado em
a ser apresentado aos
carcaça, de acordo com
meados dos anos 1950
produtores nos próximos
comunicado da Embrapa.
para abastecer os
meses, é resultado de
Para este ano estão
londrinos com alimentos
seis anos de trabalho em
previstos também os
produzidos localmente e
melhoramento genético
primeiros cruzamentos
conter a mancha urbana.
coordenado por Geraldo
entre touros do mestiço
Desse modo, o desenho
Magela Côrtes Carvalho,
recém-desenvolvido
das ruas deixou o
da Embrapa, em
e vacas de raças
padrão multifractal que
colaboração com
brasileiras, como a
persistira durante
especialistas da
caracu e a crioula
Universidade Federal do
lageana.
séculos (fractais são
Mapa de Londres em 1806: ruas com padrão multifractal
4
PESQUISA FAPESP 239 | 13
500 µm
1
Flora diminuta do passado
Frutos e sementes do Cretáceo vistos com tomografias de raios X
As populações pré-
um dos principais sítios
-colombianas da
da região amazônica,
Amazônia, além de se
onde já haviam sido
alimentar de milho,
encontrados urnas
inhame e mandioca,
funerárias, vasos,
como levantamentos
utensílios de comida
recentes já haviam
e um esqueleto inteiro de
indicado, eram
um índio, enterrado entre
consumidoras habituais
os séculos VIII e XII.
de peixes – incluindo
Os peixes representaram
pirarucus com mais de
76% do número de
100 quilogramas, hoje
espécies identificadas,
raros na região – e
sendo o mais comum o
tartarugas de grande
pirarucu, seguidos pelos
porte (Journal of
répteis, com 20%,
Archaeological Science:
principalmente as
Reports, novembro de
tartarugas do gênero
2015). Pesquisadores da
Podocnemis (tracajá e
Universidade de São
tartaruga-da-amazônia),
Paulo, da Universidade
e cobras encorpadas
As primeiras plantas com
125 milhões e 110 milhões
flores – as angiospermas
de anos atrás onde estão
– surgiram no planeta
hoje Portugal e a América
entre 130 milhões e
do Norte. Entre as quase
Federal do Oeste do
como a sucuri-verde;
100 milhões de anos atrás
250 sementes de que
Pará e do Museu Natural
mamíferos, anfíbios e
e devem mesmo ter sido
foram feitas imagens,
de História Natural de
aves eram raros. Esse
muito pequenas. Fósseis
todas tinham menos
Paris chegaram a essa
levantamento elucida as
encontrados nas últimas
de 2,5 milímetros de
conclusão após
formas de sobrevivência
décadas já indicavam que
comprimento e cerca
examinarem os ossos
dos moradores da
as plantas com flores
de 50 mantinham um
de 9.474 animais
Amazônia antes da
que começaram a brotar
embrião minúsculo,
consumidos pelos
chegada dos europeus.
na Terra naquela época,
parcial ou totalmente
moradores do sítio
Até agora foram
o início do Cretáceo,
preservado e
arqueológico Hatahara,
encontrados mais de
tinham porte herbáceo
acompanhado de tecido
no município de
100 sítios na região
ou, no máximo, de
de armazenamento de
Iranduba, a 25
amazônica, formados
arbusto, viviam pouco
nutrientes (Nature,
quilômetros de Manaus,
entre os anos
e estavam entre as
24 de dezembro).
na confluência dos rios
300 a.C. e 1500 d.C,
primeiras espécies
Nesses casos, as
Negro e Amazonas,
com populações
a colonizar espaços
sementes estavam em
entre os anos 750 e
provavelmente
degradados.
dormência: não haviam
1230 d.C. Hatahara é
numerosas.
Indícios obtidos por
germinado. Segundo os
pesquisadores da Suécia,
pesquisadores, o tamanho
da Suíça, da Dinamarca
das sementes analisadas
e dos Estados Unidos
nesse e em outros
confirmam a ideia
trabalhos é compatível
de que as primeiras
com o esperado com
angiospermas tinham
base no registro fóssil e
essas características.
na relação que se observa
Usando microtomografia
hoje entre o tamanho de
de raios X, a
plantas pequenas e suas
paleobotânica
sementes. O tamanho
Else Marie Friis e
diminuto dos embriões
colaboradores analisaram
e o fato de estarem
a estrutura interna de
dormentes assegurariam
sementes fossilizadas
que as sementes dessas
de 75 grupos de
angiospermas ancestrais
angiospermas
poderiam sobreviver
pertencentes a 11 floras
até encontrar condições
que existiram entre
de germinar.
14 | janeiro DE 2016
Pirarucu e pescador em desenho de Franz Keller do final do século XIX
2
fotos 1 else marie friis 2 Franz Keller, The Amazon and Madeira Rivers: Sketches and Descriptions from the Note-book of an Explorer 3 Universidade de Linköping 4 júlio chaul
Uma dieta rica em peixes
Combate à inflamação
Papel elétrico acumula energia
Bastam cinco bactérias Coxiella burnetii para
Pesquisadores do Laboratório de Eletrô-
causar uma pneumonia
nica Orgânica da Universidade de Linkö-
chamada febre Q em
ping, na Suécia, desenvolveram uma folha
seres humanos saudáveis,
de papel que armazena tanta energia
que pode levar a danos ao
quanto os supercapacitores disponíveis
coração e ao fígado. Um
no mercado, que são dispositivos que
estudo conduzido pelo
acumulam e liberam energia de forma
biólogo Dario Simões
quase instantânea. Também serviria para
Zamboni, da Faculdade de
uso em baterias e células a combustível, equipamentos que utilizam hidrogênio para produzir eletricidade. O material
3
Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de
Fino e flexível, novo material poderá ser usado em baterias e supercapacitores
São Paulo, mostrou que
assemelha-se a um pedaço de papel, fino
por trás da eficiência
e flexível, com cerca de 15 centímetros
foi batizado, é feito à base de materiais
desses microrganismos
de diâmetro e poucos milímetros de es-
simples e baratos, além de dispensar
está a capacidade de
pessura. Foi obtido a partir da quebra de
o uso de produtos químicos perigosos
inibir a reação
fibras de celulose em microfibras com 20
ou metais pesados. O material pode ser
imunológica que elimina
nanômetros de diâmetro. Em laboratório,
recarregado centenas de vezes e cada
células infectadas (Nature
os pesquisadores as inseriram em uma
carga leva apenas alguns segundos. O
Communications, 21 de
solução com água e adicionaram um
estudo foi publicado na revista Advanced
dezembro). Mais
polímero eletricamente carregado para
Science, de 2 de dezembro. Futuramente,
especificamente, impede
revesti-las. Essas microfibras, revestidas
esse material poderá contribuir para a
a ativação de enzimas
com o polímero, misturaram-se formando
expansão das energias renováveis ao
caspases dentro de um
um emaranhado de fios, resultando em
compor equipamentos que armazenam
conjunto de proteínas
um condutor de eletricidade chamado
energia para suprir deficiências nas fon-
chamado inflamassoma,
eletrólito. Ao contrário das baterias e
tes eólica e solar, em dias sem vento ou
que leva à liberação de
supercapacitores, o papel elétrico, como
com nuvens espessas.
uma série de substâncias que induzem um processo inflamatório. Por trás disso está uma proteína
Um guia das formigas brasileiras
que os pesquisadores identificaram na
Pelo menos 111 gêneros e
gêneros de formigas do
Rosa da Silva, do Museu
C. burnetii e batizaram
cerca de 1.500 espécies
Brasil, escrito por sete
Paraense Emílio Goeldi.
como IcaA (abreviação
de formigas ocorrem
pesquisadores. Segundo
“A adoção dessa
de inibição da ativação
no Brasil. Esses números
a publicação, por ora
categoria é adequada
de caspase, em inglês).
colocam o país
disponível apenas em
para estudos que
De acordo com Zamboni,
como campeão da
uma versão gratuita
buscam identificar
biodiversidade em
on-line, o Brasil abriga
como as qualidades
termos de gênero de
31% dos gêneros
comuns a grupos
formigas e no segundo
conhecidos de formigas
filogeneticamente
lugar no quesito
no mundo. “Os gêneros
próximos de espécies
quantidade de espécies.
reúnem, na maioria dos
se diversificaram e se
Obter informações sobre
casos, conjuntos de
estabeleceram ao longo
a enorme variedade de
espécies que atuam de
da história evolutiva
formas que esses insetos
forma semelhante na
das linhagens.” O guia,
podem apresentar no
natureza, sem prejuízo
que traz informações
território nacional ficou
das especificidades”,
básicas sobre a biologia,
mais fácil para o público
escrevem, no prefácio
a ecologia e evolução
leigo: o Instituto
da obra, Carlos Roberto
e imagens de todos
Nacional de Pesquisas
F. Brandão, do
os gêneros, pode ser
da Amazônia (Inpa), de
Museu de Zoologia
baixado em formato
Manaus, lançou no mês
da Universidade de
pdf no endereço
passado o Guia para os
São Paulo, e Rogério
http://bit.ly/1To7wPe.
a IcaA e proteínas ainda Brasil abriga 31% dos gêneros de formigas no mundo
desconhecidas podem servir para tratar processos inflamatórios, incluindo a sepse.
4
PESQUISA FAPESP 239 | 15
BRPhotonics
Padtec
BRPhotonics
Vitrine da inovação paulista: dispositivos tecnológicos criados por startups
capa
o sangue novo da
Omnisys
inovação Texto
Carlos Fioravanti Fotos
Léo Ramos
Startups ganham reconhecimento e consolidam colaboração com setor público e grandes empresas
Q CI&T
uase festiva, com a participação de muitos jovens empresários trajando paletó sobre camiseta e calça jeans, uma cerimônia no Palácio dos Bandeirantes, a sede do governo do estado de São Paulo, marcou um dos mais recentes e efusivos atos de reconhecimento do potencial criativo e econômico de empresas nascentes com produtos inovadores, as chamadas startups. Nesse dia, 17 de novembro, foram anunciadas as 15 empresas selecionadas entre mais 300 inscritas na primeira edição do projeto Pitch Gov SP que desenvolveram produtos – em geral, programas de computador – capazes de facilitar a gestão pública e o acesso dos cidadãos a informações médicas ou escolares geridas por órgãos públicos. O reconhecimento e o crescimento das startups no Brasil indicam que uma nova realidade no campo da criação de tecnologia está se formando no país, muitos anos depois de numerosas pequenas empresas criativas do Vale do Silício, na Califórnia, Estados Unidos, terem mostrado que podem ser muito lucrativas e até mesmo competir com as grandes companhias. Uma das selecionadas no Pitch Gov, a Dev Tecnologia, empresa de São Paulo escolhida também em um programa de PESQUISA FAPESP 239 | 17
Tapetinho com um sensor acoplado a um chip (abaixo) e o leitor de código de barras (página ao lado): inovações da InfoPrice que atraíram as redes de supermercados
economia criativa promovido pela multinacional Samsung, desenvolveu um software que reduz o consumo de água e energia elétrica. Outra finalista, a Aime, é uma parceria entre a organização não governamental Viva Rio, do Rio de Janeiro, com a Singularity University, da Califórnia, e oferece um programa com recursos de inteligência artificial para a previsão das prováveis áreas de ocorrência de dengue e outras doenças como cólera e tuberculose com três meses de antecedência e 88% de acerto, de acordo com testes realizados na Malásia. A AppProva, de Belo Horizonte, e a ClassApp, de Limeira, interior paulista, também selecionadas, criaram aplicativos que devem facilitar o trabalho de professores e estudantes e a comunicação entre eles e os pais dos alunos. As 15 empresas escolhidas vão agora testar seus produtos em instituições públicas e em março devem apresentar publicamente os primeiros resultados da colaboração. Na etapa seguinte, o governo deverá examinar as possibilidades de incorporação ou compra dos projetos bem-sucedidos. “O valor do Pitch Gov é estratégico, não financeiro”, disse Guilherme Junqueira, gerente executivo da Associação Brasileira de Startups (ABStartups), que participou da elaboração do programa promovido pelo governo paulista, a partir de uma experiência similar com grandes empresas, o Pitch Corp, iniciada em 2013 em Belo Horizonte. Ele disse já ter sido procurado por representantes do governo de quatro estados que desejam implantar programas similares à versão realizada em São Paulo. “Tenho certeza de que o Pitch Gov vai fortalecer as startups do nosso estado”, afirmou o governador paulista Geraldo Alckmin ao apresentar as empresas.
1
Duas semanas antes, 10 startups, também em São Paulo, apresentavam seus produtos a potenciais investidores em um encontro promovido pelo programa Start-Up Brasil, iniciativa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Em dois anos, segundo Felipe Lemos Sereno, um dos coordenadores do programa, o ministério investiu R$ 27 milhões nas primeiras 94 das 183 empresas selecionadas, que, por sua vez, conseguiram captar R$ 57 milhões de investidores privados. Ainda em novembro, o governo do Amazonas anunciou um programa de incentivo à formação e crescimento de empresas de base tecnológica, e a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) apresentou as empresas selecionadas na 7ª edição do programa Acelera Startup, iniciado em 2011, que já resultou em investimentos de R$ 5 milhões nas 350 empresas selecionadas que, por meio de ações desse tipo, ganham a oportunidade de expor o que fazem. Logo depois, no dia 9 de dezembro, a FAPESP anunciou os 46 projetos aprovados na terceira chamada de 2015 de propostas do Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe). “Em 2015 o Pipe completou 18 anos de existência em pleno processo de expansão a regiões distintas do estado de São Paulo. Essa descentralização, fruto das parcerias firmadas com a indústria e também de um amadurecimento da cadeia envolvida no processo de inovação, evidencia o potencial paulista na área”, disse o diretor científico Carlos Henrique de Brito Cruz ao anunciar as empresas selecionadas, entre as quais 11 eram nascentes e ainda estavam em fase de constituição formal. O Pipe foi um programa pioneiro criado pela FAPESP em 1997 para apoiar a pesquisa em ciência e tecnologia, o desenvolvimento empresarial e aumentar a competitividade das pequenas e médias empresas. Desde então foram financiados 1.461 projetos, dos quais cerca de 25% provinham de empresas nascentes, com desembolso total aproximado de R$ 180 milhões. A página www.fapesp.br/pipe reúne informações sobre o programa e links para reportagens sobre as empresas publicadas em Pesquisa FAPESP e na Agência FAPESP. DESAFIOS E RECOMPENSAS
Como um exército de reserva finalmente requisitado para entrar em ação, as startups estão sendo convidadas com maior frequência para resolver problemas de governos e de grandes empresas. Um bom exemplo é a I.System, de Campinas, premiada em novembro de 2015 pela Câmara de Comércio e Indústria Brasil-Alemanha de São Paulo, que decolou efetivamente quando, em 2010, resolveu a instabilidade no enchimento das garrafas com refrigerante da Coca-Cola. “Soubemos desse problema e apresentamos uma solução”, disse Igor Santiago, um dos fundado18 | janeiro DE 2016
Hoje a inovação provém em geral das startups, mais criativas e ágeis que as grandes empresas
res da empresa que desenvolveu um software de controle industrial para redução do consumo de água e energia e aumento de produtividade. “Nossa proposta sempre foi ambiciosa: gerar sistemas de controle industrial melhores que os das empresas multinacionais. Um dos primeiros desafios foi mostrar que éramos capazes de fazer.” Em outra frente de pesquisa, com apoio do Pipe, Santiago e os sócios – outros dois engenheiros da computação e um matemático formados na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – desenvolveram os chamados sistemas embarcados para otimização de eletrodomésticos e outros equipamentos. Desde 2013, a empresa, atualmente com 25 funcionários, recebe investimentos do fundo paulista Pitanga, que apoia empresas inovadoras com alto potencial de crescimento (ver Pesquisa FAPESP nº 220). Nos últimos anos Pesquisa FAPESP tem acompanhado as inovações, os avanços e as dificuldades de startups paulistas, como a própria I.Systems e a BrPhotonics, criada em 2014 na Fundação Centro de Pesquisas e Desenvolvimen-
to em Telecomunicações (CPqD), que vai produzir equipamentos para comunicações ópticas de alta velocidade. Algumas empresas de base tecnológica hoje consolidadas passaram pela fase de startup. É o caso da Padtec, uma das maiores fabricantes de equipamento para transmissões via fibra óptica do país, egressa do CPqD, e da Ci&T, constituída por três recém-formados em engenharia da computação da Unicamp em 1995 e hoje uma empresa brasileira internacional que trabalha com software corporativo e tem 1.400 funcionários; todas estão em Campinas. A Omnisys, de São Bernardo do Campo, nasceu com três engenheiros em 1997 para produção e desenvolvimento de sistemas aeronáuticos e meteorológicos, incluindo radares. Apoiada pelo Pipe e vendida em 2006 para a francesa Thales, continuou a desenvolver projetos de pesquisa no país. Algumas startups se voltam para o campo, como a Promip, de Engenheiro Coelho, na Região Metropolitana de Campinas, que também recebeu apoio do Pipe e produz abelhas nativas para polinização e três espécies de ácaros predadores que combatem pragas de hortaliças e frutas. “No século XXI, a inovação provém principalmente das startups por serem capazes de desenvolver novos produtos com prazos e custos menores e equipes mais motivadas do que as das grandes empresas”, disse Fabio Kon, professor do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME-USP) e coordenador adjunto de pesquisa para inovação da Diretoria Científica da FAPESP. “Algumas das primeiras entre as 20 maiores empresas do mundo atualmente, como Google e Facebook, já foram starPESQUISA FAPESP 239 | 19
favorável à ousadia, ao risco
investidores de 25 startups
e à inovação. Kon observou que a
EMPRESÁRIOS EMPOLGADOS
de Tel Aviv, Haifa e Jerusalém, em
valorização do individualismo
Israel, de agosto a dezembro de
e o incentivo ao risco favorecem
2013, Fabio Kon verificou
a criação de empresas de
que Israel forma um ambiente
base tecnológica, enquanto,
relativamente maduro de suporte
inversamente, o apego à
a futuros empreendedores. Há
hierarquia, à tradição, à vergonha
centros de excelência em ciência
de falhar, como no Japão, e a
da computação, engenharia,
perspectiva de emprego fixo
química, física e biotecnologia –
em grandes empresas, como
no Technion, no Instituto
na Alemanha, barram o
Weizmann de Ciência e nas
empreendedorismo. A seu ver,
universidades de Jerusalém
atualmente o Brasil está no
e de Tel Aviv, entre outros – e
meio-termo entre os países
centros de pesquisa de empresas
de alto incentivo ao
multinacionais, como IBM,
empreendedorismo e os de
Microsoft, Google, HP e Intel,
pouco incentivo, já que
na região de Haifa e Tel Aviv,
colecionar fracassos empresariais
que favorecem o
é geralmente visto como
desenvolvimento de novos
sinal de inabilidade, não de
produtos em startups. Outra
empreendedorismo. Muitos
fonte de formação de
empreendedores relataram que
empreendedores são os
seus negócios anteriores
institutos das Forças Armadas.
fracassaram porque gastaram
Em Israel, todos os homens e
dinheiro demais em tecnologia e
mulheres passam pelo serviço
muito em marketing ou gastaram
militar, muitas vezes
pouco nos testes de mercado de
aproveitando o tempo para
seus produtos. “O equilíbrio entre
reforçar o conhecimento sobre
desenvolvimento de produto e
computação e outras tecnologias
marketing é crucial para o sucesso
“Fui excelente em ser um péssimo aluno. Nunca gostei de fazer o tradicional”, contou Paulo Garcia, referindo-se aos tempos em que cursava mecatrônica na Escola Politécnica da USP, antes de se unir aos colegas Marcus Roggero e Leonardo Monteiro e criar um dispositivo eletrônico para ler códigos de barras em terminais de preços de lojas e mercados. Os primeiros protótipos não funcionaram, mas eles insistiram, participaram dos programas Startup Farm e Start-Up Brasil e em outubro de 2013 criaram a InfoPrice, com o reforço de uma sócia, Juliana Glasser. Finalmente, eles desenvolveram uma versão bem-sucedida do equipamento que ganhou o nome de Smart Price: um simulador de código de barras, acoplado a um celular, que interage com a máquina verificadora de preços em supermercados e registra o preço de milhares de produtos em poucos minutos, permitindo a varejistas reverem com rapidez suas estratégias de venda e a fabricantes, os planos de produção e distribuição de seus produtos. Em 2015, já com grandes clientes e 46 funcionários, a Infoprice recebeu investimentos de mais de R$ 2 milhões por meio do fundo Arpex Capital e da transferência do controle acionário para a B2W Digital, a mesma empresa proprietária da Americanas. com e da Submarino. Em um congresso sobre supermercados realizado em 2015 em São Paulo, a equipe da empresa apresentou o protótipo do segundo produto da empresa, o Gondola No Break, já apelidado de tapetinho, para diretores de redes de varejo. Trata-se de uma prancha de acrílico com sensores e chips que será colocada nas prateleiras dos mercados e avisará via wi-fi aos repositores de estoque quando faltar algum produto, de modo que o consumidor sempre encontre o que deseja. Garcia teve a ideia ao conhecer os sensores do frigobar dos hotéis de Las Vegas, Estados Unidos, ativados automaticamente quando falta alguma bebida. A previsão é de que o tapetinho comece a ser produzido e vendido até meados de 2016. Junqueira, da ABStartup, que reúne cerca de 4 mil empresas nascentes em todo o país – “incluindo 26 no Acre”, lembra ele –, observou essa animação no primeiro Pitch Corp, realizado no final de 2013 em Belo Horizonte, quando a rapaziada inquieta e criativa das startups apre-
A experiência de Israel Proximidade com universidades e grandes empresas e incentivo à ousadia e ao risco favorecem as startups Depois de fazer 35 entrevistas
Há também uma cultura
e depois indo para a universidade
de uma startup”, observou
motivados para abrir seus
Kon em um relatório técnico
próprios negócios.
sobre o trabalho em Israel.
Technion, de Haifa, Israel: foco em ciências exatas e apoio a novas empresas inovadoras 20 | janeiro DE 2016
Technion Israel Institute of Technology
com os fundadores, diretores e
tups há menos de 15 anos.” As grandes corporações agora não apenas colaboram ou disputam espaços com as pequenas empresas, mas também as compram, quando oferecem inovações com grande potencial de mercado, como ocorreu com a Waze, empresa israelense que desenvolveu um aplicativo de trânsito e foi comprada em 2013 pela Google por quase US$ 1,3 bilhão.
Talento à mão: estudantes e ex-estudantes universitários se reúnem em São Paulo para mostrar o que fazem (acima) ou para tocar suas próprias empresas em escritórios compartilhados (abaixo)
sentou seus produtos para executivos de grandes empresas. Segundo ele, de cada 10 startups que apresentaram seus produtos para grandes empresas, quatro fecharam negócios. AMBIENTE FAVORÁVEL
As startups estão avançando porque hoje é relativamente simples criar uma empresa de software, fazer um programa ou um aplicativo para celulares, lançá-lo e atrair milhares de usuários em poucas semanas. “Há 20 anos, o custo para fazer novos programas era de milhões de dólares, hoje é de poucos milhares”, disse Kon. Além disso, nos últimos anos amadureceu um ambiente que favorece a conexão entre elas e empresas e órgãos do governo interessados em seus produtos, com fontes públicas ou privadas de financiamentos, e com órgãos que as apoiam no planejamento dos negócios como o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). De acordo com um levantamento noticiado em agosto no jornal Valor Econômico, o fundo internacional Fundacity havia registrado investimentos de R$ 170 milhões em 191 startups, feitos por 45 investidores no primeiro semestre de 2015 no Brasil. Os especialistas preveem que a crise econômica
atual possa prejudicar o fluxo de investimentos para as empresas nascentes. Em contrapartida, observou Kon, “tem havido um crescimento no investimento em tecnologia da informação e software nos últimos anos como forma de melhorar a produtividade das empresas, o que tem sido muito bom para as startups de software”. Para Junqueira, um dos desafios dos próximos anos será motivar jovens a apostarem nas próprias ideias e criarem seus negócios sem medo de errar. Entre as empresas nascentes, as histórias de fracassos são comuns, mas vistas como sinal de maturidade. “Poucos estudantes consideram o empreendedorismo como alternativa de trabalho após a graduação”, observou Kon. Para mudar a situação, ele e outros professores, alunos e ex-alunos do IME-USP criaram o IMEmpreende, um grupo de empreendedorismo já com 1.221 participantes, quase metade de fora da USP, que se reúne pelo menos uma vez por mês. “Ainda não somos lucrativos e existe o risco de não dar certo, mas acredito muito no projeto”, disse Daniel Cukier em uma das apresentações do último encontro de 2015 do IMEmpreendente, realizado na sede da Google em São Paulo. Cukier divide seu tempo entre a pesquisa de doutorado no IME e sua startup, a Playax. Criada em 2014, a empresa monitora 5 mil rádios, 60 canais de TV e mil sites para identificar automaticamente o número de vezes e os lugares em que cerca de 700 mil músicas são tocadas, de modo a facilitar a gestão de direitos autorais e o planejamento de shows de acordo com o interesse do público. Também em 2014, seu colega Julian Monteiro, depois de terminar o doutorado em computação na França, participou da criação da Scipopulis, que hoje oferece dois produtos: um aplicativo para os usuários verem a que hora deve chegar o ônibus que estão esperando, já com 5 mil down-
PESQUISA FAPESP 239 | 21
loads, e um painel de monitoramento do transporte público, que está ajudando órgãos públicos a acompanhar o fluxo de ônibus e a planejar ajustes na rede viária na cidade de São Paulo. “Trabalhamos com dados abertos fornecidos pela prefeitura de São Paulo”, disse Monteiro, expressando as transformações do mundo das startups ocorridas nos últimos anos. Em 1999, quando foi criado o Buscapé, um site de comparação de preços hoje visto como exemplo bem-sucedido de startup no Brasil, as bases de dados eram escassas e o apoio a empresas nascentes era ínfimo. No anúncio das 15 empresas selecionadas para trabalhar com o governo paulista, Romero Rodrigues, um dos fundadores da empresa, contou que ele e seus sócios ligavam para os comerciantes, que lhes respondiam que não davam preços de seus produtos por telefone. Passo a passo, o Buscapé cresceu e hoje tem 11 milhões de produtos cadastrados. Em setembro de 2015 Rodrigues deixou a presidência da empresa – comprada em 2009 por U$ 342 milhões pelo grupo de mídia sul-africano Naspers – para se associar a um fundo de investimento em startups. olhar para o mundo
De acordo com um estudo da Fundação Dom Cabral, de Belo Horizonte, fundamentado em entrevistas com diretores de 130 startups brasileiras em operação e 91 já extintas, pelo menos 25% das pequenas empresas inovadoras morrem em menos de um ano, m etade em menos de cinco anos e 75% fecham antes de chegar aos 13 anos, principalmente por falta de financiamento. Com base em uma viagem de estudos a Israel, Fabio Kon concluiu que as chance de sobrevivência das empresas nascentes são maiores quando, além de terem um bom projeto e uma boa equipe de trabalho, estão ligadas a universidades, centros de pesquisa e a companhias maiores com os quais possam interagir, estejam imersas em um ambiente social de valorização da audácia e da criatividade e tenham acesso a financiamentos e a uma estrutura legal e tributária favorável ao desenvolvimento de novos empreendimentos tecnológicos (ver box na página 20). As conexões formam o que Kon chamou de ecossistema das startups, que ajuda a pensar também as forças e limitações da realidade brasileira. “Precisamos de mais startups globais. Temos de pensar no mundo, não apenas no mercado nacional”, ele comentou, referindo-se ao fato de empresas nacionais serem menos ambiciosas do que as que conheceu em outros países. A trajetória de 10 anos da Easy Taxi mostra que é possível ir além das fronteiras nacionais. O aplicativo dessa empresa criada pelo mineiro Tallis Gomes, após fracassos sucessivos, é hoje usado por cerca de 17 milhões de usuários em 420 cidades de 30 países, com 400 mil motoristas profissionais cadastrados. n 22 | janeiro DE 2016
Projetos 1. Empreendedorismo em ciência da computação e o ecossistema de startups (nº 2013/06146-7) Modalidade Bolsa no exterior – Regular; Pesquisador responsável Fabio Kon (IME-USP); Investimento R$ 31.811,14. 2. Aplicação da plataforma hourus para automação industrial e de equipamentos (nº 2010/51286-3); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Igor Bittencourt Santiago (I.Systems); Investimento R$ 95.888,22 e US$ 1.210,71. 3. Uma aplicação móvel para obtenção de informações atualizadas de transporte público a partir do conhecimento coletivo (nº 2013/508121); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Roberto Speicys Cardoso (Scipopulis); Investimento R$ 47.152,87 e US$ 990,00. 4. Rastreadores de olhar-eye-trackers (nº 2014/50398-3); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Camilo Rodegheri Mendes dos Santos (Dev Tecnologia); Investimento R$ 511.705,48 e US$ 12.465,00. 5. Laser de cavidade externa em fotônica em silício com faixa de sintonia ultralarga para aplicações em sistemas DWDM (nº 2014/217316); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Wilson de Carvalho Júnior (BrPhotonics); Investimento R$ 144.037,27 e US$ 282.901,75. 6. Transmissor banda S para integrar sistema de radar meteorológico Doppler (2002/07909-0); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Jean Claude Lamarche (Omnisys); Investimento R$ 109.311,96. 7. Produção massal de colônias de abelhas sem ferrão e uso comercial para a polinização agrícola (nº 2012/51112-0); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Cristiano Menezes (Promip); Investimento R$ 627.224,03 e US$ 3.913,46. 8. Plataforma de identificação automática de músicas e gestão de direitos autorais (nº 2014/50380-7); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Juliano de Moraes Polimeno (Playax); Investimento R$ 34.660,95 e US$ 16.290,00.
Artigos científicos PAMPLONA, J. B. e YANIKIAN, V. P. M. O sistema federal de financiamento à inovação no Brasil. Pesquisa e Debate. v. 26, n. 1, p. 35-72, 2015. KON, F. et al. A panorama of the Israeli software startup ecosystem. Technical report. Social Science Research Network. mar. 2014.
Condomínio de empresas em São Paulo abriga dezenas de jovens empreendedores: conectar-se com outros e expor seus planos é uma tarefa rotineira
capa
Empresa gerada na universidade Spin-offs são uma forma de o conhecimento acadêmico chegar à sociedade, criar renda e empregos |
A
spin-outs, as spin-offs acadêmicas iniciam suas atividades por meio do incentivo de um professor, com uma conversa entre alunos no laboratório, por meio do licenciamento de uma nova tecnologia ou em virtude do espírito empreendedor de um ou mais alunos. Sabe-se de modo empírico que o número de spin-offs vem aumentando nos últimos anos. Para a formação desses empreendimentos não existe uma receita única como mostraram dois estudos apresentados em um seminário organizado no Núcleo de Política e Gestão Tecnológica da Universidade de São Paulo (PGT-USP). “Existem diversas maneiras de levar o conhecimento gerado na universidade para empresas, organizações
technomar
s empresas nascentes originadas nas universidades e nos institutos de pesquisa são chamadas de spin-offs acadêmicas, o que as diferenciam daquelas nascidas no mundo corporativo, principalmente em grandes empresas. Elas são uma categoria de startups, empresas igualmente iniciantes, em grande parte com perfil tecnológico mas não necessariamente originadas na universidade. O surgimento das spin-offs a partir do convívio e do conhecimento gerado dentro das instituições de ensino e pesquisa é um fenômeno recente no Brasil que começou a se concretizar no final dos anos 1990 na mesma linha do que já acontecia nos países mais desenvolvidos. Chamadas também de
Marcos de Oliveira
Simulador de manobras para treinar comandantes e práticos de navios desenvolvido pela Technomar, Petrobras e USP PESQUISA FAPESP 239 | 23
não governamentais (ONGs) ou outra forma que chegue à sociedade”, diz o professor Guilherme Ary Plonski, coordenador do PGT. “Pode ser por meio de um aluno de graduação que vai trabalhar em uma empresa ou ONG, um empreendedor que leva o seu conhecimento para a formação de um novo empreendimento e até o licenciamento de tecnologia, eventualmente na forma de patentes.” Os dois estudos se complementam e mostram por meio de exemplos de empresas de sucesso como nascem e evoluem algumas spin-offs que tiveram sua origem na USP, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen). “Uma spin-off sai da universidade com conhecimento de algo novo e transforma isso em produtos e processos inovadores. É uma forma de transferência de conhecimento para a sociedade”, diz Claudia Pavani, doutora no PGT, que fez a tese sobre o tema. Nela, a pesquisadora, que foi orientada pelo professor Moacir de Miranda Oliveira Júnior, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP, mostra oito spin-offs da área de engenharia e os fatores que as influenciaram no nascimento. “As empresas são formadas conforme aquilo que elas conquistam como investidores, parcerias e investimentos como o Pipe [Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas da FAPESP]”, diz Claudia.
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Sócio do mercado
Uma das empresas estudadas por Claudia foi a Technomar, de São Paulo, formada em 2002 por dois ex-alunos de mestrado e doutorado do Laboratório Tanque de Prova Numérico (TPN), da Escola Politécnica da USP. “O professor Kazuo Nishimoto, coordenador do TPN, sempre teve a visão de que deveríamos fazer uma empresa, levar o conhecimento para a indústria”, diz o engenheiro naval Fabiano Rampazzo, um dos sócios. No início, a empresa serviu para que os dois prestassem serviços técnicos, mas entre 2010 e 2013, com a entrada de mais dois sócios, um deles vindo do mercado financeiro, a empresa aumentou seu leque de serviços e passou a ser gerida de forma mais profissional. “Aumentamos o número de projetos tentando não depender exclusivamente, como estávamos fazendo, da área de óleo e gás”, diz Fabiano. Eles acrescentaram a possibilidade de fazer simuladores de manobras para treinar comandantes e práticos de navios. “Participamos do desenvolvimento de um simulador com a USP e a Petrobras, inclusive com uma patente em conjunto. No momento, estamos desenvolvendo um estabilizador de movimento para pequenos barcos de passeio, com o objetivo de evitar o enjoo de passageiros com o balanço da embarcação.” Outra empresa estudada por Claudia foi a PAM Membranas, do Rio de Janeiro. Especializada em 24 | janeiro DE 2016
As áreas que mais ganham spin-offs são as de tecnologia da informação e computação
membranas poliméricas para filtração de água e tratamento de efluentes, a empresa nasceu do Laboratório de Processos de Separação por Membranas da Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da UFRJ. Os sócios-fundadores foram três professores: Ronaldo Nóbrega, Cristiano Borges e Claudio Habert. Inicialmente instalada na incubadora da própria Coppe, em três anos eles se mudaram para o Parque Tecnológico da UFRJ, onde produzem membranas na forma de fibras ocas para micro e ultrafiltração e atuam na purificação de água e tratamento de efluentes. “Depois incorporamos um ex-doutorando do laboratório como sócio para ser o gerente da empresa, o Roberto Bentes”, diz Cristiano. Ao longo dos anos já passaram pela empresa cerca de 12 ex-alunos do laboratório da UFRJ. A PAM, desde a sua criação, tem um contrato de transferência de tecnologia com a universidade.
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fotos 1 Eduardo cesar 2 pam membranas
Feixe de fibras da empresa PAM forma membranas para filtrar água (acima). Uso de laser para cortes em metal pela empresa LaserTools (ao lado)
O outro estudo sobre empresas que nasceram na universidade foi realizado por Paula Salomão Martins, durante seu mestrado na Escola Politécnica da USP, orientada por Ary Plonski. Ela pesquisou spin-offs nas áreas de física e química em São Paulo ligadas à USP. “As áreas que mais têm empresas spin-offs são as de engenharias, de tecnologia da informação e de computação. Nos cursos de física e química, os alunos são pouco estimulados para iniciativas empreendedoras”, conta Paula. “Encontrei três casos no Cietec [Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia, instalado na cidade universitária em São Paulo].” Uma das empresas analisadas por Paula foi a LaserTools, que faz cortes e moldagens industriais a laser. Ela se originou em 1998 na Divisão de Óptica do Ipen, ficou incubada no Cietec e hoje tem sede própria, tendo à frente o físico Spero Morato (ver Pesquisa FAPESP nºs 50 e 110). “Ela foi importante porque surgiu antes da Lei da Inovação, de 2004, que favoreceu o nascimento dessas empresas e a participação de pesquisadores como sócios”, diz Paula. Uma questão problemática para as spin-offs é o fato de as pequenas empresas terem que cumprir os mesmos requisitos legais que as grandes companhias. Um exemplo está em uma empresa estudada por Paula, a Chem4u, formada pelo casal Leila Keiko Jansen e José Ulisses Jansen, engenheiros químicos que trabalharam em grandes companhias do setor e em 2007 resolveram formar uma empresa a partir do tema que Ulisses tinha trabalhado no doutorado, no Ipen, relacionado a um processo de síntese de vernizes por ultravioleta e calor. “Após um período no Cietec iniciamos também o desenvolvimento de materiais nanoestruturados em que o foco passou a ser um nanoaditivo com propriedades microbicidas para inserção em materiais poliméricos”, diz
Leila. “Tivemos problemas em relação às licenças ambientais, que são as mesmas para grandes, médias e pequenas empresas, o que se torna uma barreira pesada para empresas iniciantes com estruturas mínimas”, conta ela. As duas pesquisadoras que estudaram as spin-offs registraram que um fator predominante para se ter nas universidades e institutos de pesquisa é um ambiente propício para o surgimento de novos empreendedores. “Se não existe cultura de empreendedorismo, o conhecimento não gera renda para a sociedade e para o país”, diz Claudia. A Universidade Estadual de Campinas (Uni camp) é a instituição que há mais tempo incentiva atividades empreendedoras. “A Unicamp nasceu perto de empresas principalmente na engenharia, com parcerias. Essa visão de empreendedorismo vem de longo tempo com vários reitores”, diz Milton Mori, diretor executivo da Agência de Inovação da Unicamp. A grande vitrine da agência são as chamadas empresas filhas da Unicamp, que formam a Unicamp Ventures. No final de 2015 eram 286 empresas cadastradas e ativas no mercado. Dessas, 52,3% dos sócios são ou foram alunos da graduação, 18,66% da pós-graduação, 3,08% docentes e 25,96% tinham algum tipo de vínculo, como, por exemplo, licenciamento de patentes e participação na incubadora de empresas da universidade. A área de tecnologia da informação compreende 45,5% do total de empresas. Em dezembro de 2015, as filhas da Unicamp empregavam 19,2 mil pessoas e o faturamento atingiu cerca de R$ 3 bilhões. A grande maioria das empresas (93,6%) está instalada no estado de São Paulo, 63,21% delas em Campinas. Outra recente iniciativa da Agência de Inovação da Unicamp é a Inova Ventures Participações (IVP), uma empresa que investe em startups de Campinas. “São 49 fundadores, entre empresários, muitos das empresas filhas, que atuam como anjos de investimento, mas dentro de um grupo”, diz Bruno Rondani, presidente da IVP. “Investimos de R$ 100 mil a R$ 400 mil na fase inicial da empresa após um processo de escolha.” Desde 2011 até agora foram cinco as empresas escolhidas para investimento, não necessariamente de alunos ou ex-alunos da Unicamp. n Projetos 1. Sema – Sistema estabilizador multiativo para embarcações de pequeno e médio porte (nº 2012/50482-9); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Carlos Hakio Fucatu (Technomar); Investimento R$ 287.063,93. 2. Aplicações de lasers no processamento de materiais (nº 1998/07319-0); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Spero Penha Morato (LaserTools); Investimento R$ 59.722,00 e US$ 151.872,00. 3. Pesquisa sobre a viabilidade da adição de nanocargas em vernizes, resinas e esmaltes eletroisolantes (nº 2008/51829-7); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável José Ulisses Jansen (Chem4u); Investimento R$ 87.036,00.
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entrevista Paulo Artaxo
Física a serviço do planeta Pesquisador comenta o acordo na COP-21 e destaca a importância da Amazônia para o clima global
Marcos Pivetta | retrato Léo Ramos
O
gosto por questões práticas e problemas de importância social levou o paulistano Paulo Artaxo a seguir uma trilha pouco usual entre seus colegas professores do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP). Depois de um rápido flerte com a física nuclear durante o mestrado no fim dos anos 1970, ele direcionou seus esforços para uma área então relativamente nova, que apenas começava a ser reconhecida: o estudo dos problemas ambientais causados pelos aerossóis, finas partículas em suspensão na atmosfera, em cidades como São Paulo e sobretudo na Amazônia. Com o passar do tempo, as pesquisas do físico se tornaram referência internacional sobre o papel dessas partículas na formação da chuva e no controle dos níveis de radiação solar sobre a grande floresta tropical. “Os aerossóis são a chave dos efeitos climáticos do homem ao lado dos gases de efeito estufa”, afirma Artaxo, um dos coordenadores do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG). A ascensão do tema das mudanças climáticas à condição de uma das questões científicas mais importantes do século XXI colocou o trabalho de Artaxo na ordem do dia. Entre os cerca de 2 mil cientistas que deram contribuições relevantes para o quarto relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), que recebeu o Nobel da Paz em 2007 ao lado do ex-vice-presidente americano Al 26 | janeiro DE 2016
Gore, foram destacados 12 brasileiros – Artaxo foi um deles. Mais recentemente, o professor titular do IF-USP passou a figurar com frequência na lista dos pesquisadores mais influentes do globo, o 1% da elite científica cujos papers são os mais citados e de maior impacto de acordo com levantamento da empresa Thomson Reuters. Nesta entrevista, Artaxo comenta os resultados do acordo fechado na conferência do clima COP-21 em Paris, em dezembro (ver também reportagem sobre o acordo na pág. 32), e fala de sua carreira e de suas pesquisas. Qual é a sua avaliação geral sobre o acordo da COP-21? Foi, sem dúvida, um excelente início de uma nova era em nossa sociedade global. Pela primeira vez na história, após 21 anos de COP, a maioria dos 195 países que respondem por 90% das emissões de gases de efeito estufa assumiu metas claras de redução de emissões. Uma das diretrizes é substituir combustíveis fósseis por energias renováveis. Entretanto, o desafio que temos pela frente é enorme. As mudanças climáticas já estão em curso e será necessário um esforço de adaptação ao novo clima, sobretudo nos países em desenvolvimento. Precisaremos também de um forte esforço científico para entender os processos de mudança nos vários ecossistemas e desenvolver estratégias de minimização dos impactos ambientais. Nossos sistemas de produção e de uso de energia, e os níveis de consumo, terão que ser revisados para patamares sustentáveis.
idade 62 anos especialidade Física aplicada a problemas ambientais formação Graduação, mestrado e doutorado no Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP). Quatro pós-doutorados (universidades da Antuérpia, Lund, Harvard e na Nasa) instituição IF-USP produção científica 586 artigos científicos e mais de 26 mil citações
Mesmo se forem totalmente cumpridas, as metas de redução de emissões espontaneamente assumidas pelos países na COP-21, as chamadas INDCs, são insuficientes para garantir que a temperatura global suba entre 1,5 e 2 graus Celsius (ºC) até 2100, objetivo a ser buscado pelos signatários do acordo. O que fazer diante desse quadro? A temperatura do planeta já aumentou 1ºC em relação à época pré-industrial. Se os compromissos de redução nas emissões assumidos em Paris forem respeitados, o planeta, ainda assim, deve aquecer cerca de 3ºC ao longo deste século. Isso provocará uma profunda e rápida alteração no funcionamento dos ecossistemas e terá impactos socioeconômicos significativos. O conjunto dos compromissos das INDCs prevê um corte de 40% nas emissões globais. Mas precisaremos de uma redução global de 70% a 90% nas emissões, se quisermos realmente limitar o aumento da temperatura a 2ºC até o fim deste século. Ou seja, teremos de cortar as emissões de modo mais intenso e mais rápido. Entretanto, precisamos de um sistema de governança em nível global para acompanhar a implementação das INDCs em cada país. Também temos de realizar revisões periódicas – hoje as revisões estão previstas para ocorrer a cada cinco anos – até que nosso planeta consiga estabilizar as concentrações atmosféricas de dióxido de carbono (CO2) e reduzi-las a níveis aceitáveis. Não será uma tarefa fácil. A necessária redução das emissões levará várias décadas para ser implementada. Afinal, existem questões econômicas, sociais e políticas ainda a serem resolvidas.
se comprometendo a reduzir 27% de suas emissões. O Brasil, por exemplo, apenas para fazer uma comparação, está se comprometendo a reduzir em 42% as suas emissões até 2030. A proposta americana é muito tímida. Tem de haver equidade entre os países, tanto nas emissões quanto no padrão de consumo dos recursos naturais globais. Todos terão de fazer um esforço maior do que o prometido até o momento, inclusive o Brasil, que deverá reduzir ainda mais o desmatamento da Amazônia e investir fortemente no aproveitamento de energia solar e eólica, abundantes particularmente no Nordeste. E o caso da China, que hoje é a maior emissora de gases de efeito estufa? A China tem uma industrialização relati-
Sim. Hoje temos uma economia global, mas não um sistema de governança e de contabilidade global das emissões de gases de efeito estufa. Só globalizamos a economia e nenhum outro aspecto sociopolítico. A China em sua INDC, por exemplo, não se comprometeu a reduzir suas emissões. O compromisso é de aumentar a sua eficiência de emissões de CO2 por unidade de crescimento do PIB. Ou seja, suas emissões vão continuar a crescer, porém mais lentamente do que o ritmo da economia. Na prática, países em desenvolvimento, como Índia e China, vão continuar aumentando suas emissões para atender à demanda legítima de sua população por mais bens de consumo – as populações dos países desenvolvidos já usufruem desses bens. A Índia ainda está muito mais atrasada nesse processo de desenvolvimento do que a China. A hora em que cada um dos mais de 2 bilhões de chineses e indianos quiser ter um carro na sua garagem, uma casa com forno de micro-ondas, televisão e outros bens simplesmente não haverá recursos naturais para sustentar esse nível de consumo. Mas, apesar de crucial, a questão da equidade sequer esteve em cima das mesas de discussão da COP-21. Temos de entender que a COP-21 é apenas o início de um processo necessário.
Pela primeira vez na história, a maioria dos países assumiu metas claras de redução das emissões
As metas brasileiras propostas são tímidas ou ambiciosas? O problema que temos de resolver é global e depende de cortes nas emissões de todos os países, especialmente os desenvolvidos. A soma das emissões da China e dos Estados Unidos é responsável por mais de 50% das emissões globais. O que esses dois países fizerem será estratégico para todo o planeta. Em relação aos números de 2005, os Estados Unidos estão 28 | janeiro DE 2016
vamente recente, e a maior parte dos seus produtos é exportada para outros países. Então, uma parcela de sua emissão não é propriamente da China porque os bens de consumo produzidos lá são vendidos nos Estados Unidos, Europa e resto do mundo. As fábricas americanas e europeias montaram unidades na China para fazer produtos para seus mercados. Na prática, são os países desenvolvidos que consomem esses produtos, mas a emissão é contabilizada como da China, algo não propriamente correto. Temos que desenvolver mecanismos para contabilizar de modo justo e correto as emissões. Mas esse raciocínio vale para qualquer economia exportadora, certo?
Zerar o desmatamento ilegal no Brasil é factível? O Brasil teve a maior história de sucesso entre todos os países na redução de emissão de gases de efeito estufa. Reduziu, por meio de políticas públicas, o desmatamento de 27 mil quilômetros quadrados [km2], em 2005, para cerca de 5 mil km2 em 2014. Ou seja, diminuiu drasticamente suas emissões. Todavia, zerar o desmatamento será muito difícil, pois requer novos instrumentos, uma nova legislação e incentivos econômicos. Essa é uma tarefa absolutamente essencial para o Brasil realizar, pois é interesse nosso manter o bioma Amazônia para as gerações futuras. A floresta amazônica em pé, como um ecossistema, tem um valor incalculável. A pior coisa que podemos fazer é transformá-la em dióxido de carbono por meio de queimadas.
Vamos mudar de assunto. Por que você decidiu ser cientista? Desde os 12 ou 13 anos, percebi que tinha muita habilidade para ciências exatas, matemática, física e química. Além disso, lia muito e tinha uma tremenda curiosidade de entender como funcionava nosso planeta. Também tive a sorte de ter bons professores de física no ensino médio – o que hoje é uma raridade. Esses fatores, juntos, me motivaram a seguir a carreira de cientista.
arquivo pessoal
Por que física? Queria entender os processos da natureza, desde questões de mecânica até coisas mais amplas, como o funcionamento do Universo como um todo. Lia muito sobre física desde criança. Daí até virar cientista foi um passo simples. Fiz graduação na USP e mestrado em física nuclear, sob orientação do professor Iuda Goldman. Em seguida, decidi fazer algo mais aplicável e de interesse social mais direto. Passei a fazer pesquisa na área ambiental. Primeiro, trabalhei com processos associados à poluição urbana do ar. Na década de 1980, São Paulo tinha problemas sérios de poluição do ar que ainda não eram reconhecidos pela sociedade. Depois, comecei a trabalhar com a compreensão de processos que regulam o funcionamento do ecossistema amazônico de modo interdisciplinar.
Aerossóis atmosféricos são partículas muito pequenas, sólidas ou líquidas, em suspensão na atmosfera, o que as torna invisíveis a olho nu. Em uma cidade como São Paulo, as pessoas respiram cerca de 30 mil dessas partículas por centímetro cúbico de ar. Os aerossóis, que fazem parte da poluição atmosférica, se depositam no pulmão e podem causar doenças cardiorrespiratórias e outros problemas de saúde. Na Amazônia, as partículas de aerossóis são muito importantes para o funcionamento básico do ecossistema. Uma nuvem não se forma só com vapor-d’água. Ela precisa do vapor e de uma partícula que seja higroscópica, isto é, que tenha afinidade com a água – o aerossol. O vapor se deposita sobre essa partícula e forma uma gotícula da nuvem. Essa nuvem evolui e eventualmente chove. Entender esses processos físico-químicos é um desafio importante da ciência do clima. Esse processo de formação e desenvolvimento de nuvens também vale para as cidades? Sim, é um mecanismo universal. Em São Paulo, os aerossóis vêm da chaminé de uma indústria, do cano de descarga dos automóveis, entre outras fontes. Nos motores a diesel de ônibus e caminhões, aquela fumaça preta é composta de partículas em concentrações muito altas. Os aerossóis têm duas propriedades importantes no clima. Primeiro, interceptam e refletem a radiação solar, afetando o balanço de radiação, alterando a quantidade de luz do Sol que chega ao solo.
Segundo, são absolutamente fundamentais para a formação das nuvens. Sem nuvens, não há chuva. Sem chuva, não há agricultura. Na verdade, os aerossóis são a chave dos efeitos climáticos do homem ao lado dos gases de efeito estufa. O curioso é que, na Amazônia, a vida biológica da floresta controla a concentração dessas partículas na atmosfera e determina o clima da região. Essa foi uma das descobertas de nosso trabalho. Como assim? Na Amazônia, percebemos que as plantas eram as principais responsáveis pelo fornecimento dos aerossóis que controlam a formação das nuvens e o balanço de radiação sobre a floresta. Elas emitem compostos orgânicos voláteis, como os gases terpenos e isopreno, que se convertem em partículas de aerossóis. Também fragmentos de folhas, grãos de pólen, bactérias, fungos, além das cinzas das queimadas, estão na constituição dessas partículas. Ou seja, a própria vegetação controla o clima sobre a floresta. Regula as chuvas e o balanço de radiação por meio da emissão de aerossóis. A floresta também processa o vapor-d’água, que é o segundo ingrediente importante das nuvens. Entender esses processos biológicos, físicos e químicos é fascinante.
Você trabalha com aerossóis desde o doutorado? Sim, com o efeito dos aerossóis no clima, Naquela época, não era uma escolha e em particular na Amazônia. Na década óbvia estudar física do clima. Por que de 1980, isso era uma novidade total. Tive optou pela área? a sorte de ter como colaborador no meu Estava em um instituto de física muito doutorado o professor Paul Crutzen, tradicional em áreas como física prêmio Nobel de Química [em 1995]. nuclear, física de partículas e do Participei do primeiro grande expeestado sólido. Todo mundo olhava rimento que houve na Amazônia em meio torto para pesquisas aplicadas 1979 chamado Brushfire, coordenae para meu trabalho. Perguntavam do pelo professor Crutzen, que ino que eu queria fazer misturando vestigava o efeito das queimadas no física com questões ambientais. Feclima da região. Ele tinha uma ideia, lizmente, fiz a escolha certa. Mais ainda não bem estabelecida naquela tarde mostramos que a física tem época, de que as emissões na Amazômuito a contribuir para o entendinia poderiam afetar o clima global. mento dos processos associados à A questão realmente me fascinou poluição do ar e às mudanças clie me estimulou a tentar entender máticas globais. De patinho feio do como funciona a integração de proinstituto, meu grupo de pesquisas cessos biológicos, físicos e químicos acabou se tornando uma referência que controlam o funcionamento da na USP e também no exterior. Amazônia como um todo. Conforme resultados inovadores foram sendo Você é um especialista no estudo produzidos, novas questões impordos aerossóis. O que são essas partantes apareciam. tículas? Em torre na Amazônia: floresta como diferencial de pesquisa PESQUISA FAPESP 239 | 29
Em 2011, Artaxo recebe título de doutor honoris causa na Universidade de Estocolmo: parcerias fora do país
Por que se interessou em estudar especificamente os aerossóis? Na década de 1970, pesquisas em poluição eram quase exclusivamente na componente gasosa, como a fotoquímica do ozônio e seus efeitos nas plantas e na saúde das pessoas. Na comunidade científica, ninguém falava de aerossóis atmosféricos. Mas percebi que havia uma ciência muito importante por trás dessas partículas e me dediquei a desvendar esse papel. O que o levou a fazer quatro pós-doutorados no exterior? No início da minha carreira, percebi que em áreas associadas ao meio ambiente e às mudanças climáticas globais não faz sentido trabalhar isolado. Parceiros internacionais fortes são absolutamente necessários e estratégicos. Então, três meses depois de terminar o doutorado, já como professor contratado pela USP, fui para a Universidade da Antuérpia, onde fiquei dois anos trabalhando. Aprendi muito lá. Depois, fiquei mais dois anos nas universidades de Lund e de Estocolmo, na Suécia. Em seguida, percebi que tinha de aprender técnicas de sensoriamento remoto e a usar medidas ambientais de satélites. Fui então trabalhar na Nasa, entre 1993 e 1994. Mais recentemente, em 2008, trabalhei na Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e colaborei com bons pesquisadores que estudam o balanço de carbono e aerossóis. Mantenho fortes parcerias internacionais há mais de 25 anos. 30 | janeiro DE 2016
Qual é a influência do clima da Amazônia no clima do resto do país e do globo? A floresta é um gigantesco processador de vapor-d’água. A floresta transforma a água por meio de mecanismos biológicos de uma maneira muito intensa e importante para a manutenção do clima regional e global. Do ponto de vista regional, de 60% a 70% do vapor-d’água que atinge a parte central da América do Sul se origina no oceano Atlântico tropical e é transportado e processado pela Amazônia. Esse transporte de vapor influencia a chuva na região sul da América do Sul. Do ponto de vista global, a Amazônia, por estar em uma região tropical, participa de fortes processos de convecção. Ou seja, massas de ar ascendentes retiram o vapor-d’água da superfície e o levam para altas altitudes, onde ele é eficientemente transportado para as regiões temperadas do nosso planeta. Então, a Amazônia e o oceano Pacífico são as duas principais fontes de umidade do clima global. Além de ser um importante gás de efeito estufa, o vapor-d’água é essencial para a formação de nuvens, controlando o balanço de radiação e a ocorrência de precipitações. É possível associar a seca recente em São Paulo ao desmatamento da Amazônia? Não como fator exclusivo. E as razões são simples. Em média, cerca de 30% do vapor-d’água que chega à cidade de São Paulo vem das frentes frias do sul do país. Outros 30% vêm do oceano Atlântico Sul, através da brisa marítima. Afinal, São
Há certeza de que eventos extremos, como grandes secas ou chuvas, estão ligados às mudanças climáticas? Estatisticamente o aumento na frequência de eventos climáticos extremos está ligado às mudanças climáticas. A razão é simples. Quando se injeta mais energia no sistema climático, o que está ocorrendo agora com o aumento da concentração de gases de efeito estufa, essa energia tem de ser dissipada de alguma maneira. A atmosfera acumula muito mais calor hoje do que há 200 anos. Isso faz com que aumente a frequência de eventos extremos, em nível regional ou global. Também observamos mudanças de pequena escala, como na questão da chuva na cidade de São Paulo. Na década de 1950, São Paulo era a cidade da garoa. Hoje é das grandes tempestades. Agora, quando chove, chove forte e causa prejuízos socioeconômicos. Mas a questão permanece: isso é devido às mudanças climáticas ou não? Ainda não temos uma resposta direta e conclusiva. Provavelmente, no entanto, a resposta virá quando tivermos acumulado informações mais sólidas e de longo prazo. No caso da Amazônia, as secas de 2005 e 2010 não podem ser univocamente as-
arquivo pessoal
Paulo está próximo do litoral. Aproximadamente 40% da umidade da cidade vem da região Norte. Até agora, o Brasil desmatou cerca de 19% da área original da Amazônia. Ou seja, se só 40% do vapor-d’água aqui na região Sudeste vem da Amazônia, e se foi afetado, no máximo, 20% do vapor d’água processado pela floresta, poderia ser atribuída ao desmatamento da Amazônia uma redução de 7% ou 8% da umidade em São Paulo, na pior das hipóteses. Os processos não são lineares, mas essa conta muito simples mostra que é impossível, do ponto de vista climatológico, atribuir a seca em São Paulo diretamente ao desmatamento da Amazônia. De acordo com as últimas análises, a situação em São Paulo se deveu à manutenção de massas de ar muito secas sobre a região Sudeste de uma maneira anômala, um fenômeno ainda não completamente entendido pelos meteorologistas. Evidentemente, o despreparo para enfrentar situações de clima anômalo e a falta de planejamento de médio e longo prazo também contribuíram para a crise de falta de água na região.
sociadas às mudanças climáticas globais. Podemos falar com confiança que essas secas foram as maiores dos últimos 100 anos e ocorreram em um intervalo de tempo muito curto – provavelmente causadas pelas mudanças climáticas que estamos promovendo. Como é fazer pesquisa com colegas de diferentes formações? Fazer pesquisa interdisciplinar é mais difícil do que em uma única disciplina. Estamos aprendendo algo o tempo todo. Se, por exemplo, tenho de entender o efeito da radiação no ecossistema amazônico, tenho de estudar a fotossíntese, como o estômato de uma folha se abre para receber o CO2 atmosférico e como o fluxo de radiação afeta esse processo. O importante é entender que, na natureza, os processos ocorrem simultaneamente e as coisas não são divididas em física, química e biologia, como a universidade faz. Entendi cedo na minha carreira a questão interdisciplinar, tanto que meu primeiro pós-doutorado foi no Departamento de Química da Universidade da Antuérpia. Nas minhas pesquisas, tenho de olhar o planeta de modo interdisciplinar em todas as suas escalas.
número que poucos cientistas mesmo do exterior atingiram. Até desse ponto de vista dei muita sorte. Isso mostra o dinamismo da ciência brasileira. O Brasil é um dos parceiros mais importantes da ciência hoje em nível mundial, não só na área ambiental. Com a crise econômica atual, não está muito claro como vamos manter essa liderança nos próximos anos, mas temos de achar uma saída. As pesquisas que fizemos na Amazônia foram extremamente importantes para os resultados do IPCC. Alguns processos das nuvens só ocorrem em ambientes muito limpos como a Amazônia e foram descobertos em medidas feitas por grandes experimentos naquela região. Não há como estudar processos naturais em atmosferas limpas nos Estados Unidos, Europa ou Ásia, onde
A Amazônia e o oceano Pacífico são as duas principais fontes de umidade do clima global
Por que você se tornou um dos pesquisadores brasileiros mais citados no mundo? Jamais pensei que minha carreira científica teria essa repercussão. Coordeno muitos projetos, publico muito, oriento muitos alunos. A comunidade científica dialoga por meio das publicações e conferências. Segui esse modelo de ter fortes parcerias internacionais e não tenho um único trabalho científico sem a colaboração de pesquisadores estrangeiros. Isso dá visibilidade internacional, mas a importância dos trabalhos, em especial os na Amazônia, também estimula as citações. A Amazônia é um ecossistema onde as pesquisas são recentes e cheias de novidades importantes. Outra questão é que praticamente todos os artigos que publiquei são interdisciplinares. Sou citado por públicos diferentes, de mais de uma área temática. Tenho 11 papers na Science e na Nature,
a poluição do ar tomou conta. É preciso aproveitar as vantagens estratégicas que o país tem no campo científico. O que você está pesquisando hoje? Estou tocando vários projetos, o principal deles é o programa Green Ocean Amazon (GOAmazon). Estudamos o impacto que um centro urbano como Manaus, com 2 milhões de habitantes, tem nas propriedades atmosféricas de seu entorno. Queremos saber como a poluição gerada por Manaus interage com as emissões naturais da floresta. Manaus é um caso único no mundo, uma situação que só existe na Amazônia. Não há outra cidade grande e isolada por 1.500 quilômetros de floresta em todas as direções. Daí vem a questão:
como os gases e aerossóis produzidos pelos automóveis de Manaus interagem com os aerossóis da floresta e quais são os efeitos causados por esse tipo de poluição no ecossistema? Esse é o tema central do experimento GOAmazon, que mobiliza mais de 250 cientistas do Brasil, Estados Unidos e Europa. O GOAmazon já produziu novos dados? O impacto da poluição de Manaus no funcionamento do ecossistema amazônico é muito grande. As emissões de óxidos de nitrogênio, provenientes de processos de combustão na cidade, como o funcionamento das termelétricas que alimentam Manaus e os automóveis, interagem com os compostos orgânicos voláteis que as plantas emitem e produzem ozônio. Encontramos concentrações de ozônio saindo de Manaus semelhantes às da cidade de São Paulo, acima de 40 partes por bilhão, limite em que o ozônio começa a ser tóxico para as plantas. As concentrações naturais de ozônio na Amazônia são de 8 a 10 partes por bilhão no meio do dia. Quando se deparam com altas concentrações, os estômatos não se abrem e, assim, evitam danos a seus tecidos. Ao fazer isso, a planta faz menos fotossíntese, fixa menos carbono e tem forte decréscimo na taxa de crescimento. Esse é um efeito direto da poluição urbana no ciclo do carbono da floresta amazônica. Esse efeito aparece centenas de quilômetros vento abaixo de Manaus. Esses dados são importantes para o país. A Amazônia absorve aproximadamente meia tonelada de carbono por hectare por ano. Como a área da floresta é enorme, isso tem um impacto muito grande no ciclo global de carbono. Se a Amazônia perde uma porcentagem dessa capacidade de armazenar carbono, o efeito estufa se agrava. Precisamos entender os fatores que influenciam o ciclo do carbono na Amazônia. No GOAmazon também observamos fortes alterações nas propriedades das nuvens influenciadas pela pluma de poluição de Manaus, quando comparadas com nuvens “limpas”. Isso afeta o ciclo hidrológico de modo intenso. n PESQUISA FAPESP 239 | 31
política c&T COP-21 y
O começo da transição Acordo em Paris sobre mudanças climáticas prevê compromisso global para limitar aumento da temperatura e mira uma economia de baixo carbono Fabrício Marques
N
a manhã de sábado, dia 12 de dezembro, representantes de 195 nações reunidos na 21ª Conferência do Clima (COP-21) aprovaram na capital da França um acordo histórico em que se comprometem a adotar medidas para combater as mudanças climáticas. O Acordo de Paris estabelece um esforço internacional para assegurar que o aumento da temperatura global não supere os 2 graus Celsius (°C), em comparação aos níveis pré-industriais, com a ambição de que fique abaixo do 1,5°C, patamar capaz de reduzir os riscos e impactos das mudanças climáticas. Também prevê que os países ricos destinarão US$ 100 bilhões por ano em ajuda aos países pobres. Se tiver êxito, na segunda metade deste século o planeta terá reduzido o uso de combustíveis fósseis e as emissões remanescentes serão compensadas pela absorção de CO2 por reflorestamento e por técnicas capazes de capturar o gás da atmosfera e armazená-lo. “O Acordo de Paris é um triunfo 32 z janeiro DE 2016
para as pessoas, para o meio ambiente e para o multilateralismo. É um seguro de saúde para o planeta”, afirmou o secretário-geral da Organização das Nações Unidas, Ban Ki-moon, comemorando o pioneirismo de um pacto climático que envolve grande número de países. Os países se obrigam a apresentar metas, que estão sujeitas a revisões periódicas, e a comunicar o que estão fazendo para atingi-las. Serão cobrados pela opinião pública e pelas entidades ambientalistas se não cumprirem o que prometeram, mas, caso isso aconteça, não sofrerão penalidades. As obrigações geradas pelo acordo estão relacionadas a esse processo de comunicação e revisão, não à execução das metas. Nesse sentido, o Acordo de Paris produz uma vinculação mais fraca do que o Protocolo de Kyoto, que determinava patamares legalmente obrigatórios de cortes de emissões de gases estufa. O formato do Acordo de Paris resultou do aprendizado com o fracasso de Kyoto, que, assinado em 1997, jamais foi ratificado pelo Con-
fotos arnaud bouissou – medde / sg cop21
gresso dos Estados Unidos e não conseguiu evitar que a China, a despeito da pressão internacional, utilizasse crescentemente o carvão como matriz energética até se tornar o principal país emissor de gases de efeito estufa do planeta. Em Paris, os países levaram metas quantitativas voluntárias e unilaterais de redução de emissões até 2025 ou 2030, as “pretendidas contribuições nacionalmente determinadas” (que ganharam a sigla INDCs). “Cada país teve de se colocar e apresentar seus compromissos”, diz Gilberto Câmara, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e membro da coordenação do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais, que esteve em Paris durante a conferência. As metas voluntárias têm menos força do que protocolos vinculantes, mas os INDCs foram construídos sobre bases realistas. No caso do Brasil, basearam-se na redução do ritmo de desmatamento na Amazônia observado nos últimos
anos e na recomposição das florestas prevista no Código Florestal. O Brasil espera que em 2030 possa zerar as emissões decorrentes de desmatamento. Estados Unidos e China, por sua vez, já haviam assinado um acordo em 2014 que prevê o corte de emissões. “O que houve foi um amadurecimento das políticas internas dos países em relação ao aquecimento global”, escreveu o físico José Goldemberg, presidente da FAPESP, em artigo no jornal O Estado de S.Paulo. “Os que achavam que o campo de batalha seriam as conferências do clima, nas quais se reúnem os chefes de Estado e as decisões são tomadas, perceberam que a verdadeira batalha deveria ser travada dentro de cada país, onde políticas internas eram decididas e adotadas.”
A comemoração do acordo na capital francesa, no dia 12 de dezembro: objetivos ousados no primeiro pacto climático celebrado desde o Protocolo de Kyoto
pESQUISA FAPESP 239 z 33
Em lugar de decisões multilaterais “de cima para baixo”, observou Goldemberg, foram adotadas políticas unilaterais “de baixo para cima”. “O governo da China percebeu que o uso ilimitado de carvão, como base de seu desenvolvimento econômico, deteriorou seriamente a qualidade do ar nas grandes cidades chinesas. Por essas razões decidiu que até 2030 – ou mesmo antes disso – o uso de carvão não aumentará mais e começará a declinar. E o Brasil, num esforço interno que envolveu o governo, o movimento ambientalista e as grandes empresas, reduziu consideravelmente o desmatamento da Amazônia.”
queda dos governos conservadores no Canadá e na Austrália ajudou o mundo desenvolvido a agir de modo mais consistente”. Somados, os INDCs apresentados em Paris são insuficientes para deter o aumento da temperatura a menos de 2,7°C. Ainda assim, os países aceitaram se mobilizar para que o aumento não ultrapasse o 1,5°C, o que exigirá esforços que vão muito além dos previstos no acordo, além do monitoramento e a revisão das metas periodicamente. O Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) fará um estudo nos próximos dois anos para identificar o impacto do aumento de temperatura de 1,5°C e o corte papel dos Estados Unidos foi fundamental de emissões para atingir essa meta. “Na prática, para evitar a repetição em Paris do fracasso nós já passamos de 1,5°C e seria necessário que, da Conferência de Copenhague, em 2010, milagrosamente, zerássemos as emissões amanhã convocada para estabelecer um tratado pós-Kyoto, para conseguir nos aproximar desse objetivo”, diz mas que terminou sem acordo. “Há cinco anos, o o climatologista Carlos Nobre, ex-coordenador presidente Barack Obama estava ainda em seu pri- científico do Programa FAPESP de Pesquisa someiro mandato e não tinha a noção de urgência que bre Mudanças Climáticas Globais. “Estabelecer tem hoje”, afirma Gilberto Câmara. “Nos últimos 1,5°C como limite é perceber os riscos represenanos, Obama fez acordos bilaterais com a China, tados por superar essa margem e criar um esforço o Brasil e a Índia. Também obteve uma vitória na coletivo global para reduzir esses riscos”, afirma Suprema Corte, que decidiu que o dióxido de car- o pesquisador, que atualmente é presidente da bono é poluente e, portanto, está sob a alçada da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de agência ambiental do país, sem a necessidade de Nível Superior (Capes). O Brasil participou das negociações de mopassar pelo crivo do Congresso.” Câmara aponta outras duas mudanças no tabuleiro geopolítico: “A do ativo. A ministra do meio ambiente, Isabela Teixeira, e o ex-ministro das Relações Exteriores Luiz Alberto Figueire“A China percebeu que o uso ilimitado do Machado, diplomata com grande experiência do carvão deteriorou a qualidade do em negociações sobre o clima, foram convidados ar nas cidades”, diz José Goldemberg pelo presidente da COP- -21 a arregimentar apoios. No início da conferência, o Brasil perfilou-se na Coalizão de Alta Ambição da conferência, iniciativa proposta pelas Ilhas Marshall, uma das pequenas nações insulares do oceano Pacífico ameaçadas pelo aumento do nível dos oceanos, O que prevê o texto aprovado na COP-21 que atraiu mais de 100 países, incluindo os Estados Unidos e a União Europeia. “O Brasil se descolou dos demais Brics, com quem não tem Engajamento internacional para conter o aumento da temperatura afinidade na questão climática, e abriu mão de global “bem abaixo” de 2ºC em relação aos tempos pré-industriais, ser porta-voz dos países pobres, diferentemenprocurando alcançar a meta de 1,5ºC. te de sua postura em outras conferências. Com isso, pôde se integrar ao grupo de alta ambição, Para atingir esse objetivo, as contribuições voluntárias de cada país que brigava para ter o melhor acordo possível serão revisadas a cada cinco anos. A primeira revisão está em Paris”, diz Gilberto Câmara. programada para 2018. “Com o mundo se comprometendo a se descarbonizar, o Brasil terá de rever a ideia de que Nações desenvolvidas se comprometem a desembolsar pelo menos a exploração de petróleo da camada pré-sal irá US$ 100 bilhões por ano a partir de 2020, quando o acordo entra em redimir a economia brasileira. Não é possível vigor, para investir em projetos de redução de emissões em países estar na coalizão de altas ambições e, ao mesem desenvolvimento. mo tempo, cogitar vender 6 milhões de barris
O
O acordo de Paris
34 z janeiro DE 2016
Gilberto Câmara (com microfone) e a ministra Isabela Teixeira (dir.), em Paris: Brasil perfilou-se com a Coalizão de Alta Ambição
bilhões que os países desenvolvidos destinarão para ajudar os mais pobres a enfrentar as mudanças climáticas”, diz. “Não é “Brasil terá ainda possível avaliar ao certo a oportunidade a velocidade com que iremos caminhar para uma economia de atrair de baixo carbono.” José Goldemberg observa investimentos que, nos países industrializados, sobretudo na Europa, o uso para recompor mais eficiente de energia é o áreas caminho mais promissor para reduzir as emissões, uma vez desmatadas”, que a energia que consomem, derivada de combustíveis fósafirma Gilberto seis, é muito elevada. “Nos países em desenvolvimento, onde Câmara o consumo per capita é baixo, é as quais são as chaninevitável que ele cresça, mas ces de obter um corte o que cabe fazer é que esse de emissões radical nos próximos anos? Na avaliação de Carlos Nobre, há crescimento incorpore as tecnologias mais efitecnologia disponível para fazer a transição a uma cientes e, principalmente, o uso das energias reeconomia de baixo carbono nos próximos anos. nováveis”, afirmou ele, que era ministro do Meio “O desafio é gigantesco, mas não é impossível, Ambiente durante a Conferência Rio-92. O acordo de Paris também foi marcado pela vaporque energias limpas, tais como a eólica e a solar, estão se tornando cada vez mais competiti- lorização do conhecimento científico. “Em 2010, vas”, afirma. “Não parece provável, por exemplo, a Conferência de Copenhague refletiu apenas que eliminemos as termelétricas no curto e no parcialmente os resultados do quarto relatório médio prazo, mas há uma tentativa de evitar que do IPCC, lançado três anos antes, ao estabeleo efluente da geração térmica chegue à atmos- cer certo limite de referência para o aumento de fera.” Ele admite, contudo, que os entraves não temperatura, de cerca de 2°C”, diz Carlos Nobre. se limitam a eventuais gargalos tecnológicos e à “Já os negociadores de Paris levaram em conta os necessidade de grandes investimentos. “A energia resultados do quinto relatório, de 2013, segundo o fóssil é responsável por 20% do PIB mundial e qual 2°C apresentam muitos riscos.” Para Nobre, consome, só em subsídios, US$ 700 bilhões por um dos resultados mais significativos da COPano. Isso é sete vezes mais do que os US$ 100 -21 é que a conferência acompanhou a ciência. n
de petróleo por dia”, afirma o pesquisador. Ao mesmo tempo, observa Câmara, o Brasil terá a oportunidade de atrair investimentos para recompor áreas desmatadas e ajudar no aumento da absorção do carbono da atmosfera. “A recomposição de áreas devastadas ilegalmente, prevista pelo novo Código Florestal, mostra que podemos nos organizar para receber fluxos de investimento e nos tornarmos um sumidouro de carbono. E temos grande potencial para expandir a produção de energias renováveis no país.”
foto arnaud bouissou – medde / sg cop21 ilustração flaticon
M
pESQUISA FAPESP 239 z 35
Recursos Humanos y
Circulação limitada Mobilidade de pesquisadores brasileiros é baixa ao longo da carreira, indica estudo
Bruno de Pierro
> 10.000 km
5.000-10.000 km
0,07%
E
studo realizado por um grupo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mostra que pesquisadores brasileiros tendem a trabalhar e a fazer carreira em regiões muito próximas às instituições em que cursaram a graduação, sugerindo uma baixa mobilidade dentro do país. Os autores, do Departamento de Ciência da Computação da UFMG, analisaram a distribuição geográfica de aproximadamente 6 mil pesquisadores vinculados a 101 Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs), redes de colaboração científica criadas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pelas fundações estaduais de amparo à pesquisa. Observou-se que apenas 20% dos pesquisadores trabalham a mais de 500 quilômetros (km) de distância da instituição onde começaram a trajetória acadêmica. A maioria fixou-se em empregos a menos 36 z janeiro DE 2016
2.000-5.000 km
1.000-2.000 km
2,9% de 100 km da universidade em que iniciaram a carreira. O fenômeno também foi percebido entre os pesquisadores que realizaram pós-doutorado no exterior: 81% retornaram ao Brasil e se estabeleceram nas regiões de origem. O artigo, publicado em outubro na revista Plos One, confirma um padrão de carreira segundo o qual a maioria dos pesquisadores faz doutorado no país e só nos estágios de pós-doutorado estreita colaborações com grupos externos. “As trajetórias observadas em nosso estudo mostram a tendência do brasileiro de permanecer na mesma instituição ou região ao longo de toda a carreira”, observou Clodoveu Augusto Davis Junior, um dos autores do trabalho, cujo autor principal é seu aluno de mestrado Caio Alves. O estudo é parte de um esforço dos pesquisadores da UFMG em utilizar dados da Plataforma Lattes, que reúne 4 milhões de currículos acadêmicos, para estu-
7,8%
500-1.000 km
Trajetórias mapeadas Distância entre as instituições onde pesquisadores de 101 INCTs cursaram a graduação e onde atualmente trabalham. De 6 mil pesquisadores, quase metade fez carreira na mesma instituição ou região onde se graduou
m
200-500 km
100-200 km
10-100 km
> 10 km
44,8% 8,4% 4,7%
ilustraçãO all-silhouettes.com
13,9% 9,5% 6,9% pESQUISA FAPESP 239 z 37
dar fenômenos e tendências da ciência brasileira (ver Pesquisa FAPESP nº 233). Por meio de técnicas de geoinformática, as informações extraídas dos currículos transformaram-se em mapas que revelam percursos de carreira dos pesquisadores.
“O brasileiro tende a permanecer na mesma instituição ou região ao longo da carreira”, diz Clodoveu Junior
O
caso do paranaense Fabio Ribeiro de Camargo ilustra essa situação. Graduado em engenharia civil pela Universidade Federal do Paraná em 1985, ele deixou o país em 2009 para fazer doutorado em engenharia mecânica na Universidade de Leeds, no Reino Unido. Ao longo de mais de cinco anos em que ficou fora do Brasil, Camargo colaborou com grupos de pesquisa de outros países e passou curtas temporadas na Austrália, Japão e África do Sul. “A mobilidade permitiu com que eu me envolvesse com várias linhas de pesquisa e abriu oportunidades para que meu trabalho se tornasse conhecido lá fora”, conta Camargo. Em 2014, ele passou férias no Brasil com a família. Durante a visita, foi convidado pela prefeitura de Curitiba para assumir o cargo de diretor de iluminação pública. O desafio era modernizar a gestão da iluminação da cidade, por meio do conceito de smart city, redes inteligentes que integram fontes de energia e dados de multisserviços, a fim de automatizar sistemas urbanos e evitar desperdícios. “Aceitei a proposta por se tratar de um novo desafio para minha carreira”, diz Camargo. O estudo da UFMG revela que apenas 32% dos pesquisadores ligados a INCTs realizaram algum tipo de estudo avança-
do, como o pós-doutorado, em estados diferentes dos de sua origem ou fora do Brasil. O comportamento, porém, varia de acordo com a região. Por exemplo, São Paulo e os demais estados do Sudeste, analisados separadamente no artigo, são localidades onde a maioria dos pesquisadores é oriunda da própria região. Já Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sul apresentam um padrão migratório temporário. Isso significa que uma fração expressiva de pesquisadores deixa essas regiões para fazer graduação, mestrado ou doutorado em outros lugares e, depois, retorna para trabalhar. O artigo também indica que o contingente de brasileiros que se fixam no
Formação de doutores Porcentagem de títulos obtidos no Brasil e no exterior por pesquisadores ligados a 101 INCTs em cada área do conhecimento n Exterior n Brasil
18
25
31
29
30
18
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25
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75
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70
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78
75
Agricultura
Energia
Engenharia & TI
Meio ambiente
Exatas
Saúde e medicina
Humanidades
Nanotecnologia
exterior é pequeno. Tais características contrastam com o cenário global. Um estudo publicado em 2010 por Linda Ana Carine Van Bouwel, da Universidade de Leuven, na Bélgica, mostra que metade dos estudantes europeus que foram para os Estados Unidos fazer doutorado em economia entre 1950 e 2006 acabou arrumando emprego naquele país. Do restante, a maior parte foi trabalhar em outros países da Europa e apenas uma minoria voltou para os países de origem. A baixa mobilidade de pesquisadores no Brasil é explicada por peculiaridades do sistema universitário. “O estudo da UFMG confirma o esperado”, diz o sociólogo Simon Schwartzman, pesquisador do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade. “Nas universidades públicas brasileiras, é difícil os pesquisadores mudarem de instituição, tendo em vista as regras de contratação do serviço público”, explica. Nesse modelo, o pesquisador é contratado como servidor público, o que favorece a fixação numa instituição muito cedo. No caso das universidades federais e em algumas estaduais, o ingresso de um novo docente ocorre obrigatoriamente no nível de professor auxiliar, independentemente da titulação, e a progressão entre um nível e outro da carreira pode exigir o intervalo de 24 meses. Isso desestimula pesquisadores com carreira consolidada a trocar de instituição. “Se uma universidade deseja criar um centro de estudos sobre a China, por exemplo, não vai procurar algum especialista consagrado nessa área, como acontece em instituições dos Estados Unidos e da Europa. O costume aqui no Brasil é buscar algum interessado entre os professores em início de carreira e formá-lo no assunto”, explica Elizabeth Balbachevsky, professora da Universidade de São Paulo (USP). No caso do sistema universitário norte-americano, a mobilidade é maior, em parte porque as instituições negociam condições específicas de contratos, quando estão interessadas em atrair determinado profissional. Edgar Zanotto, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), ressalta que, nos Estados Unidos, é comum que pesquisadores recebam ofertas de trabalho, já que o sistema segue a lógica de mercado. “Ter os profissionais mais qualificados implica oferecer bons
Concentração regional
900
Distribuição do número de programas de doutorado pelo país por área do conhecimento
800
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n São Paulo n Sudeste (exceto São Paulo) n Sul n Nordeste n Centro n Norte
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Agricultura
Energia
Engenharia & TI
salários”, diz Zanotto, que é professor da UFSCar há 39 anos. Segundo ele, nas universidades brasileiras os salários são similares. “Todos os professores de uma mesma categoria recebem aproximadamente o mesmo valor.” O pesquisador reconhece que se enquadra no perfil apresentado pelo estudo da UFMG: durante a década de 1970, fez graduação em engenharia de materiais na UFSCar, onde foi contratado em 1976 como professor auxiliar. Entre 1979 e 1982 morou na Inglaterra, onde fez o doutorado na Universidade de Sheffield, e logo depois retornou à UFSCar como professor adjunto. Mesmo assim, buscou internacionalizar a carreira por meio de colaborações com grupos do exterior e passando períodos como professor visitante em instituições da Itália e dos Estados Unidos. Zanotto explica que a principal razão para permanecer por mais de três décadas numa mesma instituição foram os laboratórios de materiais vítreos que montou. Segundo ele, é natural que nas áreas de ciências exatas e biológicas, em que há a necessidade de equipamentos e infraestrutura laboratorial, o pesquisador procure estabelecer vínculo institucional. “Levei anos para montar essa estrutura. Juntos, os laboratórios têm 900 metros quadrados e abrigam equipamentos sofisticados. Não
Meio ambiente
Exatas
Saúde e medicina
posso levá-los comigo caso decida mudar de instituição”, observa. Para o físico Ronaldo Mota, reitor da Universidade Estácio de Sá, do Rio, e especialista em política científica e educacional, a ideia de que o pesquisador precisa ter um laboratório próprio e, para isso, tenha que se fixar em um local, está mudando no país. “Hoje em dia existem cada vez mais as chamadas facilities, laboratórios compartilhados que garantem acesso a equipamentos modernos para múltiplos usuários”, afirma Mota.
A
circulação de pesquisadores pode contribuir para oxigenar a produção científica dentro das instituições. Simon Schwartzman alerta que a baixa mobilidade pode favorecer a endogenia na universidade, quando professores dão preferência para contratar seus ex-alunos. “Isso não é saudável, porque não traz outras perspectivas e visões de mundo para dentro de um departamento”, diz. Uma maneira eficaz de as instituições se renovarem e inovarem é trazer pessoas de outros lugares. “A mobilidade ajuda a diversificar as culturas e as maneiras de pensar criticamente”, afirma. Uma saída encontrada por muitos pesquisadores para superar os limites da mobilidade é estabelecer redes de colaboração com pesquisadores de outras instituições.
Humanidades
Nanotecnologia
O número de colaborações tem avançado no Brasil. Um estudo publicado em 2014 revela que, entre 2008 e 2010, ocorreu quase 1 milhão de colaborações científicas entre pesquisadores brasileiros, em contraste com as cerca de 63 mil observadas entre 1990 e 1992 (ver Pesquisa FAPESP nº 218). “Quando precisamos de um pesquisador qualificado, criamos uma rede de colaboração”, relata Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, coordenador do INCT de Observatório das Metrópoles. Hoje, a equipe coordenada por ele envolve pessoas de Belém, Goiânia e Brasília, entre outros, sem que, para isso, fosse necessário contratá-las. Já as interações entre brasileiros e estrangeiros são menos numerosas. Em tese de doutorado defendida em 2010, Samile Vanz, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mostrou que os artigos de pesquisadores brasileiros escritos em parceria com estrangeiros estacionaram na casa dos 30% e vêm crescendo, em números absolutos, num ritmo menor do que as colaborações internas. “Hoje, os pesquisadores daqui interagem mais com grupos internacionais do que no passado. Mas ainda é pouco, quando comparamos com outros países da América Latina, como Chile e México”, avalia Ronaldo Mota. n pESQUISA FAPESP 239 z 39
Desenvolvimento y
Um norte para a indústria Livros discutem as estratégias para enfrentar a desindustrialização da economia brasileira
A
competitividade à indústria, é preciso garantir maior abertura da economia e adotar políticas de incentivo que beneficiem todos os segmentos, tais como a simplificação de regras tributárias e taxas de câmbio competitivas, e não apenas setores selecionados. O livro é resultado de dois seminários organizados pelo Instituto de Estudos de Política Econômica/ Casa das Garças, dirigida por Bacha, no Rio de Janeiro, em abril e junho de 2012. Já a obra Indústria e desenvolvimento produtivo no Brasil, lançada em 2015, reúne artigos com uma visão menos cética e mais diversa sobre a utilidade de políticas de estímulo à atividade industrial, ainda que os autores estejam longe de chegar a um consenso sobre suas características. O livro foi organizado por Nelson Marconi e Maurício Canedo Pinheiro, professores da Fundação Getulio Vargas, Laura Carvalho, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (USP), e Nelson Barbosa, o atual ministro da Fazenda. Por fim, a obra Indústria, crescimento léo ramos
indústria de transformação, aquela que converte matérias-primas em produtos, era responsável em meados da década de 1980 por um quarto do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. Em 2004, essa participação caiu para 17,9% e, em 2014, chegou a 10,9%, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). As raízes desse fenômeno – a desindustrialização que assombra várias economias além da brasileira – e as políticas capazes de revertê-lo vêm sendo objeto de intenso debate acadêmico no país. Três livros lançados recentemente mostram, de forma complementar, os argumentos e os dissensos na mesa de discussão. Lançado em 2013, a obra O futuro da indústria no Brasil – Desindustrialização em debate, organizada pelos economistas Edmar Bacha e Monica Baumgarten de Bolle, é crítica em relação aos rumos da política industrial adotada no Brasil no passado recente. Na análise de seus 17 capítulos, é recorrente a ideia de que, para dar mais
40 z janeiro DE 2016
e desenvolvimento, organizada por Flávio Vilela Vieira, reúne os resultados de um projeto de pesquisa que envolveu professores do Instituto de Economia da Universidade Federal de Uberlândia sobre a relação entre o setor industrial e o desenvolvimento econômico.
S
e há um denominador comum nos três volumes, é a ideia de que a perda acentuada de fôlego da indústria é prejudicial para o país, pelo potencial que o setor tem de produzir inovações, de obter ganhos de produtividade e de gerar riqueza. Mas alguns economistas esgrimem argumentos que contestam ideias arraigadas, como a de que a importância do setor de serviços seja um fator de fragilidade para o desenvolvimento econômico ou mesmo que o aumento das exportações de commodities, em detrimento de manufaturados, represente um sinal de regressão ao passado. Em um dos capítulos de O futuro da indústria no Brasil, Sergio Lazzarini, Marcos Jank e Carlos Inoue sustentam que o boom de commodities de que o país se beneficiou na década passada é uma “bênção”, e não uma maldição, como defendem algumas correntes. Em 2001, commodities agrícolas, combustíveis, minerais e metais respondiam por menos da metade da pauta exportadora brasileira – 10 anos depois, esse quinhão subiu para 70%. Os autores demonstram que algumas commodities brasileiras têm valor adicionado comparável ou até superior ao de produtos industrializados, pois vêm obtendo ganhos de produtividade garantidos por inovações e seus preços internacionais estão num patamar mais elevado do que décadas atrás. “Se o produto é resultado de competências construídas localmente e está inserido numa cadeia de produção global, é irrelevante se é uma commodity ou não. A soja, por exemplo, está inserida numa cadeia. Precisa de fertilizante, de máquinas e de pesquisa. Essas coisas têm de ser desenvolvidas. Você pode exportar soja in natura e ter toda uma cadeia produtiva dando sustentação a isso”,
afirma Sérgio Lazzarini, que é professor de Organização e Estratégia do Insper – Instituto de Ensino e Pesquisa. “Há muito mais espaço para estimular mais pesquisa tecnológica atrelada às cadeias de commodities, em vez de dirigir crédito e incentivos tributários para outras cadeias com menor potencial competitivo”, sustentam os autores, que propõem o uso de receitas públicas, como os royalties da exploração de petróleo, para investir em fundos que permitam diversificar a economia – e não deixem o país refém da oscilação de preços de um grupo restrito de commodities. O trio de autores sugere que só é desejável investir em indústrias de beneficiamento de commodities se esse processo adicionar valor e produtividade ao produto final, o que nem sempre acontece. Autor de um capítulo intitulado “Padrões de política industrial: A velha, a nova e a brasileira”, o economista Mansueto de Almeida critica as políticas de incentivos setoriais adotadas pelo governo brasileiro na última década. Segundo ele, elas se baseiam no modelo adotado pela Coreia do Sul nos anos 1960 e 1970. “Com o agravante de que, em vez de promover uma diversificação produtiva, concede crédito subsidiado para empresas grandes que atuam em setores nos quais o Brasil já possui claras vantagens competitivas, como alimentos, petróleo e mineração”, diz. Na sua avaliação, investir em setores escolhidos fazia sentido num tempo em que as cadeias produtivas eram nacionais. “Não são mais. Cada parte do processo está em um país ou numa parte do mundo”, afirma. Ele defende uma política de desenvolvimento produtivo que torne a economia como um todo mais funcional, melhorando a infraestrutura, simplificando regras burocráticas e reduzindo a carga tributária de maneira horizontal. Em paralelo, o papel do governo deve ser o de fomentar uma política agressiva de apoio à inovação que, segundo diz, é muito menos onerosa do que as políticas setoriais. Para Mariano Laplane, professor do Instituto de Economia da Universidade
pESQUISA FAPESP 239 z 41
Evolução da exportação e da importação de produtos industriais de diferentes setores de intensidade tecnológica – US$ milhões FOB
setores de alta e média-alta intensidade Importação Exportação Saldo
200 mil 150 mil 100 mil 50 mil 0 -50 mil -100mil -150 mil 200 mil
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setores de baixa e média-baixa intensidade
120 mil 100 mil 80 mil 60 mil 40 mil 20 mil 0 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 fonte secex / mdic
Estadual de Campinas (Unicamp), há exageros na crítica ao estímulo concedido pelo governo a grandes empresas brasileiras. Ele afirma que é importante para o país que conglomerados nacionais expandam seus negócios no exterior e se tornem globais. “Há ganhos de interesse público quando uma indústria é estimulada a se globalizar e se tornar mais inovadora. Esse é um tipo de política industrial contemporânea que muitos países, como China e Coreia do Sul, estão fazendo”, afirma Laplane. “Vivíamos num mundo dicotômico, em que, de um lado, havia quem defendesse que era preciso fechar a economia e substituir importações e, de outro, quem achasse que qualquer tipo de política industrial era um crime. Nós superamos e conseguimos fazer uma política industrial sofisticada, que não é nem a dos anos 42 z janeiro DE 2016
1950 nem o laissez-faire dos anos 1990”, diz o pesquisador, que é presidente do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), instituição ligada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação.
L
aplane aponta o que considera um vício no debate sobre estratégias de reindustrialização. “Há uma confusão entre política industrial e políticas contra a crise. Política industrial diz respeito a estimular a inovação e tornar as empresas mais competitivas. Tem a ver com mudanças na estrutura industrial, em favor do aumento da inovação, do dinamismo e da produtividade. Não se confunde com políticas de combate à recessão, como desoneração da folha de pagamentos ou o aumento de impostos sobre a importação de veículos”, afirma. “Nós avançamos na sofisticação dos instrumentos da política
de inovação e melhorou o marco legal. Estamos dando os primeiros passos nesse sentido. Boa parte das nossas empresas, nacionais ou estrangeiras, acordou para esse tema há pouco tempo”, afirma. Para avançar mais rápido, é necessário investir mais recursos em pesquisa e desenvolvimento (P&D), nas empresas, nas universidades e nos institutos de pesquisa. “Parte desse esforço tem de ser feita por recursos públicos e o dinheiro agora está faltando. É imprescindível ganhar o apoio da opinião pública para que a inovação seja vista como prioridade”, afirma Laplane, que escreveu um capítulo sobre inovação e competitividade em Indústria e desenvolvimento produtivo no Brasil. Laplane e os demais autores do livro participaram de um seminário, realizado em São Paulo em maio de 2014 pelo Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) e a Escola de Economia de São Paulo, ambos da Fundação Getulio Vargas (FGV), e foram convidados a escrever sobre os temas que apresentaram. “O objetivo do seminário era levantar a discussão para produzir o livro, mas nem todos os convidados tiveram disponibilidade de escrever capítulos. Com isso, houve uma concentração um pouco maior de autores mais simpáticos às políticas industriais”, diz Maurício Canedo Pinheiro, pesquisador do Ibre, que organizou o livro da FGV e também contribuiu com um capítulo para a obra da Casa das Garças. “São dois livros que conversam entre si e são úteis para a compreensão e o debate sobre o tema.” Um dos desdobramentos do seminário da FGV foi a criação de um grupo de estudos sobre reindustrialização no âmbito da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq). Um novo seminário deve acontecer neste ano, provavelmente em parceria com a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), e gerar um novo livro, voltado para a proposição de políticas. No trabalho que escreveu para o livro da FGV, Pinheiro abordou a política industrial brasileira recente para o setor de petróleo e gás. Constatou que a determinação de que serviços e compras fossem feitos de empresas brasileiras, a chamada regra de conteúdo local, não foi capaz de garantir a inserção dessas companhias nacionais em cadeias internacionais de fornecedores. “Política industrial baseada em algum tipo de
painel de diego rivera reprodução de Thomas Hawk Livros reprodução léo ramos
Trajetória do comércio exterior
A perda de fôlego do setor industrial Em porcentagem, a participação da indústria de transformação no PIB brasileiro 17,9 16,7 15,1
16,6 15
14,4
13,9 11,8
2000
2001
2001
2003
2004
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10,6
2015
fonte IBGE. estimativas (em tracejado) e elaboração decomtec / fiesp
proteção só funciona se tiver data para acabar, se servir para expor as empresas à competição”, diz. “As empresas do segmento de petróleo e gás que produzem no Brasil competem com empresas de outros lugares que compram os insumos onde quiser. Como competir com elas?” Na avaliação de Pinheiro, só faz sentido beneficiar setores se eles têm chance de desenvolver competitividade num prazo razoável. “E certamente não são setores intensivos em mão de obra, porque há muitos países com mão de obra intensiva muito barata, a não ser que a gente aceite trabalhar segundo as regras deles, com salários baixíssimos”, afirma. Outro organizador da obra, o professor da Escola de Economia de São Paulo da
FGV Nelson Marconi, sustenta que é um desperdício de recursos desenhar uma política industrial sem alinhar primeiro alguns indicadores macroeconômicos. “É preciso ter uma taxa de câmbio que dê competitividade às empresas, e garantir taxas de lucro que sejam suficientes para estimular os empresários a investir”, afirma. “Também é preciso que o salário médio da indústria cresça de acordo com o aumento da produtividade e que as tarifas públicas estejam alinhadas, para não provocar nenhuma perda de receita inesperada para as empresas”, diz. Um pré-requisito para política industrial, segundo o economista, é estabelecer e cobrar metas para que as empresas beneficiadas se tornem mais competitivas,
tais como volume de exportação, capacitação dos funcionários e investimento em P&D. “É fundamental que o investimento dê retorno para o país.”
E
le é cauteloso com a ideia de privilegiar setores. “Talvez renda resultados melhores se tivermos uma política de estímulo à inovação e à P&D ao alcance de todos os segmentos”, afirma. Mas, se for para escolher algum setor, explica, deve-se levar em conta duas características: que ele gere inovação e que a inovação possa ser utilizada por outros setores, fomentando o que ele chama de “encadeamentos produtivos relevantes”. Marconi cita o setor da saúde como um alvo possível. “A população brasileira
O futuro da indústria no Brasil: Desindustrialização em debate Edmar Bacha e Monica Baumgarten de Bolle (orgs.) Civilização Brasileira 420 páginas | R$ 55,00 Indústria, crescimento e desenvolvimento Flávio Vilela Vieira (org.) Alínea 282 páginas | R$ 58,00 Indústria e desenvolvimento produtivo no Brasil Nelson Barbosa, Nelson Marconi, Mauricio Canêdo Pinheiro e Laura Carvalho (orgs.) Elsevier / FGV 678 páginas | R$ 89,90
reprodução Thomas Hawk / flickr
está envelhecendo e um programa de inovação orientado para a área da saúde pode nos ajudar inclusive a desenvolver setores no entorno em que ficamos para trás, como a indústria eletrônica, além da indústria de máquinas e equipamentos e de vários serviços.” Gerar emprego também deve ser uma meta, mas a relação não precisa ser direta. “Não é trivial gerar inovação e emprego ao mesmo tempo, porque muitas vezes a inovação leva à perda de postos de trabalho. Mas é razoável beneficiar segmentos que gerem novas ocupações em seu entorno, em especial no setor de serviços”, diz Marconi. Um exemplo, ele observa, é o da indústria têxtil, cujo crescimento tem vocação para gerar empregos em serviços ligados à moda, ao design, à logística e ao marketing, entre outros. “É preciso incorporar inovações ao processo produtivo que diferenciam seu produto. Não dá para pensar em uma política para competir diretamente com o Vietnã ou a Etiópia, porque o custo da mão de obra é muito baixo nesses países”, afirma. Comparações com as estratégias da China, que cresceu a taxas de 10% ao ano por mais de duas décadas, e a da Coreia do Sul, que desenvolveu uma indústria de tecnologia a partir dos anos 1970 com apoio do Estado, também são recorrentes na discussão sobre a capacidade de o Brasil se reindustrializar. No caso da China, algumas lições podem ser assi44 z janeiro DE 2016
“Temos uma estrutura industrial complexa e é sobre ela que devemos avançar”, diz Laplane
miladas, observa Flávio Vilela Vieira, coordenador de Indústria, crescimento e desenvolvimento. “Destaca-se a importância de políticas que possam estimular o nível de competitividade do setor exportador, a manutenção de um setor industrial dinâmico e competitivo, a relevância de se ter altas taxas de investimento na economia, e políticas de caráter estrutural que consigam atingir uma melhora no ambiente institucional”, escreveu Freire, que alerta, porém, para o fato de tanto a China quanto a Índia terem ainda um baixo nível de desenvolvimento econômico, medido pelo nível de renda per capita. “Isso permite a essas
Detalhe de mural do artista mexicano Diego Rivera no Instituto de Artes de Detroit
economias, com a adoção das políticas e reformas necessárias, atingirem taxas de crescimento econômico elevadas, o que não pode ser alcançado na mesma magnitude por outras economias que já passaram, previamente, por um processo de desenvolvimento econômico e elevação de seus níveis de renda per capita.”
J
á no caso da Coreia do Sul, a articu lação entre políticas industrial e científica ajudou setores privilegiados da indústria a alcançar um elevado grau de intensidade tecnológica. “O Estado demonstrou grande competência em sua atuação sobre a atividade econômica, servindo-se de mecanismos de incentivo e de disciplina do capital privado”, escreveu Thais Guimarães Alves, professora da Universidade Federal de Uberlândia. Experiências internacionais são referências importantes, mas, como observa Mariano Laplane, da Unicamp, sempre têm limitações. “As estratégias da Coreia do Sul ou de Israel podem ser inspiradoras, mas foram executadas em condições muito diferentes das nossas. Temos uma estrutura sofisticada e complexa. E é sobre ela que devemos avançar”, afirma. n Fabrício Marques
seminário y
vimento da Embrapa. Perez Outro painel abordou o papel da ciênressaltou a importância da in- cia para a superação de desafios relacioteração entre universidades e nados a meio ambiente e qualidade de empresas. “É por meio da ino- vida. O bioquímico britânico Andrew vação que empresas buscam Simpson, radicado no Brasil, falou dos parcerias com universidades avanços da farmacêutica brasileira Orye instituições de pesquisa di- gen em pesquisas com vacinas para comversas. Esse tipo de colabo- bater o câncer. “Temos parceria com o ração é necessário para que Instituto Ludwig e com grupos de pestodos cumpram sua função quisa na Alemanha. Agora, buscamos social de gerar conhecimento parcerias com hospitais do Brasil para novo”, disse. Já Martin Neto iniciar os testes clínicos”, disse Simpson. destacou o papel do agrone- No campo da genética, Pamela Ronald, gócio nesse contexto. “Trata- pesquisadora da Universidade da Cali-se de um setor estratégico e fórnia em Davis, Estados Unidos, descrecompetitivo, para o qual são veu alguns projetos que resultaram em Evento discute caminhos para necessárias inovações no sen- benefícios para a produção de alimentos. superar desafios em áreas como tido de automatizá-lo, dimi- Ela colaborou em estudos que chegaram nuindo custos e aumentando a uma variedade de arroz transgênico saúde, energia e ambiente a produtividade”, observou. resistente a inundações, com produtiConvidado para moderar vidade três vezes maior que o usual. “O esse painel, Carlos Henrique consenso científico diz que esses alide Brito Cruz, diretor cien- mentos são seguros. Algumas sementes esquisadores e representantes tífico da FAPESP, observou que é cada modificadas conseguem reduzir muito o de instituições públicas e empre- vez mais comum cientistas que atuam uso de pesticidas no campo”, explicou. Já o economista Henrique Pacini, sas participaram no auditório do dentro de empresas realizarem pesquiCentro Britânico Brasileiro, em sa de grande impacto. Segundo ele, esse representante da Conferência das NaSão Paulo, de uma maratona de painéis cenário se tornou mais comum no país ções Unidas para o Comércio e Desensobre o papel da ciência para enfrentar nas últimas duas décadas e a mudança volvimento (Unctad), ressaltou a imdesafios em áreas como saúde, energia não diminuiu o papel da universidade. portância da ciência na área de enere meio ambiente. Realizado no dia 2 “Há lugares diferentes na sociedade em gias renováveis. “O grande desafio desse de dezembro, o seminário Caminhos que se promovem avanços também em setor é ampliar o acesso à energia moda Ciência e Desenvolvimento discu- benefício da população. Continuam exis- derna. Uma estratégia é expandir o uso tiu o potencial de aplicação do conhe- tindo muitos cientistas nas universidades do etanol. Para isso, é necessário que cimento científico. “Em momentos de realizando grandes descobertas. Ao mes- os países adotem políticas de incencrise de confiança generalizada como mo tempo, são organizadas atividades de tivo à produção de biocombustíveis”, o que vivemos, é importante voltarmos pesquisa na iniciativa privada”, ressaltou. afirmou. n Bruno de Pierro as atenções para a ciência em busca de soluções”, disse Adriana Brondani, diretora do Conselho de Informações sobre Biotecnologia, umas das entidades que apoiaram o evento. Organizado pela consultoria Elabora BioSolutions, o seminário também teve apoio da FAPESP, da revista Pesquisa FAPESP e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), entre outros. O primeiro painel discutiu conhecimento científico e desenvolvimento e contou com a participação de José Fernando Perez, presidente da Recepta Biopharma, empresa de biotecnologia voltada para compostos com potencial de combater o câncer, e Ladislau Martin Neto, diretor de Pesquisa e Desenvol- Seminário discutiu em São Paulo o potencial de aplicação do conhecimento científico em áreas estratégicas
soluções da ciência
eduardo cesar
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pESQUISA FAPESP 239 z 45
ciência saúde y
Zika
o vírus que pegou o país de surpresa Ricardo Zorzetto 46 z janeiro DE 2016
Cerca de 30 laboratórios de São Paulo se unem para investigar o agente infeccioso que ameaça o Brasil com uma epidemia de microcefalia
fotos 1 James Gathany / cdc 2 Fred Murphy e Sylvia Whitfield / cdc
V
estida como uma cirurgiã, a pesquisadora Stella Melo trabalhava em total silêncio em um laboratório de biossegurança da Universidade de São Paulo (USP) na tarde da sexta-feira 11 de dezembro. No interior de uma cabine na qual só circula ar filtrado, ela semeava células de rim de macaco em garrafas plásticas contendo um líquido rosado nutritivo. Embora usasse máscara, evitava falar para não correr o risco de contaminar o material. Dias mais tarde aquelas células serviriam para reproduzir o vírus Zika, um agente infeccioso que por décadas foi considerado inofensivo e agora assusta o Brasil e o mundo porque, suspeita-se, está associado ao nascimento de bebês com o cérebro menor que o normal, um problema sem cura conhecido como microcefalia congênita. Na quinta-feira seguinte, dia 17, a virologista Danielle Leal de Oliveira usou parte das células preparadas por Stella para iniciar a cultura de Zika e anunciou em um e-mail: “Inoculei os vírus hoje. Estamos de dedos cruzados para ver se eles crescem”. Danielle e Stella integram a equipe do virologista Edison Durigon no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP e trabalhavam duro para replicar as amostras de Zika recebidas do Instituto Evandro Chagas, no Pará. O objetivo era multiplicar o vírus e compartilhar com grupos do Brasil e do exterior que planejavam estudá-lo. Interessados não faltavam. Desde que o Zika ganhou importância mundial em novembro com os casos de microcefalia, o virologista Paolo Zanotto, colega de Durigon e seu vizinho de sala na USP, não pensa em outra coisa a não ser conter o vírus. Especialista em evolução dos flavivírus, o grupo a que pertence o Zika, Zanotto sabe que é grande o risco de o vírus se espalhar pelo país – em especial pelo estado de São Paulo, onde se encontra disseminada a população urbana de seu transmissor, o mosquito Aedes aegypti. Ele sabe também que só há chance de conter o Zika com um esforço coordenado de pesquisadores, poder público e população.
Por essa razão, ainda em novembro, Zanotto iniciou a mobilização de virologistas, epidemiologistas, médicos e entomologistas de São Paulo e do exterior para estudar tudo o que for possível sobre o Zika. No final de dezembro, 32 grupos paulistas (quase 300 pesquisadores) já haviam aceitado integrar essa rede de investigação do vírus – que recebeu o nome informal de Rede Zika – e vários aguardavam amostras de vírus do laboratório de Durigon para iniciar as pesquisas. Essa pronta reação foi possível porque, no passado, a FAPESP apoiou a criação de laboratórios de virologia em todo o estado de São Paulo que mantiveram forte interação entre si. Muitos deles detêm projetos temáticos ou auxílios regulares financiados pela Fundação e, para reativar o trabalho coletivo do grupo, a FAPESP concedeu pequenos aditivos aos projetos já existentes. Esses aditivos somarão cerca de R$ 550 mil e permitirão complementar o trabalho que já está sendo realizado. Jean Pierre Peron é neuroimunologista e, entre outras coisas, estuda em seu laboratório na USP inflamações no cérebro provocadas pelo sistema de defesa do próprio corpo. Ele é um dos que aderiram à Rede Zika e está com sua equipe preparada para começar ao menos dois experimentos. Em um deles, Peron planeja injetar o vírus diretamente no cérebro de camundongos, com dois objetivos. O primeiro é deixá-lo se multiplicar e gerar mais amostras para suas pesquisas e a de outros grupos. O segundo, e mais importante, é verificar se o próprio vírus lesa o cérebro ou se os danos decorrem de um ataque exacerbado do sistema de defesa contra o Zika. Imagens do cérebro de bebês que nasceram com microcefalia e são filhos de mães possivelmente infectadas por Zika na gravidez em geral mostram pequenos círculos brancos bem próximos uns dos outros, como as contas de um colar. Segundo neurologistas, são sinais de calcificação, uma espécie de cicatriz que se forma em áreas lesadas do cérebro e ocorrem também em bebês cujas mães tiveram infecção por citomegalovírus ou toxoplasmose na gestação. No caso do Zika, não se sabe se essas calcificações são provocadas pelo vírus ou são uma lesão secundária, resultado de um superataque das células de defesa ao invasor.
Uma dupla de risco: o mosquito Aedes aegypti e cópias de vírus (pontos escuros) da família Flaviviridae, a mesma do Zika
pESQUISA FAPESP 239 z 47
O caminho para as Américas O vírus Zika possivelmente já havia migrado em dois momentos distintos para o oeste da África e uma vez para a Ásia antes de ser identificado em 1947 em um macaco sentinela em uma floresta de Uganda
Burkina Faso Senegal
1935 Data estimada a da 1 migração para a África Ocidental
1945 Data estimada de migração para a Ásia
Paquistão
Camboja
Nigéria
Ilha Yap (Micronésia) Malásia
Serra Leoa
Costa do Marfim
Gabão
1940 Data estimada da 2a migração para a África Ocidental
Uganda Vírus identificado na floresta de Zika
Filipinas
Indonésia
Primeira introdução Segunda introdução Terceira introdução
Nova Caledônia
Ano do primeiro registro no país
Também não se sabe ainda como o vírus chega ao cérebro, como foi observado em um bebê do Ceará que nasceu com microcefalia e morreu minutos após o parto. Foi a partir de amostras de vários tecidos dessa criança que o virologista Pedro Vasconcelos e sua equipe conseguiram isolar no Evandro Chagas, centro nacional de referência em virologia, as amostras de Zika enviadas para São Paulo. A suspeita principal é de que o vírus – assim como outros dos quase 60 da família Flaviviridae, a mesma do vírus da dengue e da febre amarela – se desenvolva melhor em células do sistema nervoso.
U
m segundo experimento planejado por Peron pode ajudar a confirmar a preferência do Zika por células do tecido cerebral e a traçar o caminho percorrido pelo vírus até o sistema nervoso central. Ele e sua equipe estão prontos para inocular o vírus em camundongos fêmeas prenhes e acompanhar o que ocorre com os fetos. “Isso vai permitir verificar se o vírus chega até o cérebro dos fetos e se causa lesão, morte ou microcefalia”, disse Peron em uma visita ao laboratório de Durigon na tarde em que Stella preparava as células para multiplicar o Zika. O trabalho de Peron com os roedores deve ser complementado pelos experimentos da bióloga
48 z janeiro DE 2016
Patrícia Beltrão Braga com células humanas. “A primeira coisa que precisamos saber é se, de fato, o vírus infecta células humanas do sistema nervoso e qual tipo de morte celular ele provoca”, diz Patrícia. Com base nas informações que circulam entre os pesquisadores e na extrapolação do que se conhece sobre outros flavivírus, o Zika deve invadir as células do tecido cerebral, mas ainda não se sabe quais nem como. Essa informação pode no futuro orientar os médicos sobre qual terapia adotar para tentar conter o vírus ou os danos que ele pode causar – por ora, no entanto, ainda não há medicamento seguro para combater o Zika. Patrícia deve analisar os efeitos do vírus sobre células humanas usando uma tecnologia inovadora. Ela vai usar células-tronco adultas extraídas do dente de leite de crianças e reprogramá-las quimicamente para se transformarem em células mais versáteis, capazes de originar diferentes tecidos. Cultivadas em uma matriz tridimensional, essas células, ao receberem os estímulos químicos certos, originam os diferentes tipos de células do sistema nervoso central e se organizam em camadas, como se fossem cérebros microscópicos – alguns têm o tamanho da cabeça de um alfinete. Patrícia planeja infectar os minicérebros com o Zika e acompanhar as alterações que surgirem.
México
Guatemala
Polinésia Francesa
ilustraçãO pedro handam
Ilha de Páscoa (Chile)
Uma das ferramentas necessárias para isso seria um teste de laboratório confiável para identificar infecções antigas por Zika e saber por onde o vírus já passou e quando. A forma atual de fazer esse rastreamento é por meio de exames sorológicos, que detectam anticorpos contra o vírus no sangue. Esse tipo de teste permite saber se uma infecção é antiga ou recente, mas não funciona bem no caso do Zika. É que os anticorpos contra ele são semelhantes aos gerados contra os vírus da dengue, que ocorre em quase todo o país. O modo alternativo de averiguar a infecção, Ilhas Cabo Verde já disponível em quase 20 laboratórios da rede pública de saúde, é um teste que usa a técnica da reação em cadeia da polimeSuriname rase (PCR). Ele amplifica uma Colômbia região do material genético do Pesquisadores vírus, mas é mais complexo e exige pessoal treinado e equiplanejam pamentos caros. Além disso, só permite detectar o Zika rastrear as ele quando a infecção está ativa e infecções por a pessoa apresenta os sintomas. Brasil Como boa parte dos laboraParaguai tórios da Rede Zika já dispõe Zika em tempo Chile de equipamentos para realireal e auxiliar o zar PCR – muitos são antigos da Rede de Diversidacombate ao membros de Genética de Vírus (VGDN), Aedes aegypti equipada com financiamento da FAPESP –, Zanotto planeja aproveitar essa capacidade instalada para auxiliar no monito“Minha ideia é avaliar se o vírus ramento do Zika no estado de prejudica o crescimento das células, a produção de proteínas e a formação de si- São Paulo. A ideia é que esses laboratórios realizem napses, que são as conexões entre os neurônios”, o diagnóstico molecular de pessoas suspeitas de diz. “Acredito que os minicérebros devem permitir estarem infectadas. Assim, seria possível acompatermos uma resposta rápida para algumas ques- nhar quase em tempo real o avanço das infecções tões”, conta a pesquisadora, que participou da pri- e auxiliar os serviços de vigilância epidemiológica meira reunião da Rede Zika no início de dezembro. a combater os focos de infecção ativos. Até aquele momento o Ministério da Saúde havia Há motivos de sobra para a urgência. O verão registrado a presença do vírus em 18 estados, prin- já começou e com ele o período de chuvas no cipalmente no Nordeste, onde foram identificados Sudeste, onde vivem 82 milhões de pessoas ou os primeiros casos. E o vírus podia avançar mais. quatro de cada 10 brasileiros. O receio de viroloUma das dificuldades de planejar ações eficien- gistas, epidemiologistas e especialistas em saúde tes para conter o vírus é que ainda não se conhece pública é de que o Zika encontre um terreno férseu padrão de circulação na população brasileira til para prosperar. O vírus é inoculado nos seres – nem em outras populações. Ninguém sabe com humanos pela picada da fêmea do Aedes aegypti, precisão quantas pessoas já foram infectadas no um mosquito escuro de pernas listradas de branpaís nem quantos casos novos surgem por mês. co que costuma se alimentar de sangue durante o Também não há dados sobre a taxa de infecção dos dia. Além de sangue, o mosquito só precisa de um mosquitos e a sua eficiência em transmitir o vírus pouco de água parada para gerar sua prole. E já faz pela picada. “Com essas informações, poderíamos alguns anos vem se tornando resistente a inseticicalcular a capacidade de a infecção se espalhar”, das (ver Pesquisa FAPESP nº 147). conta o epidemiologista Eduardo Massad, da FaOutro motivo de preocupação é que o Aedes, culdade de Medicina da USP, que aderiu à rede. transmissor também dos vírus da dengue, da febre Um modo de começar a conhecer essas variá- amarela e da febre chikungunya, já se espalhou pelo veis é registrar os casos de infecção em tempo real, Sudeste. A evidência mais contundente da presenpara ver como evoluem no tempo e no espaço. ça do mosquito são os casos de dengue de 2015. pESQUISA FAPESP 239 z 49
A
inda não se conhece o tamanho do problema. Em meados de dezembro o Ministério da Saúde publicou um documento no qual faz uma projeção, ainda com grande nível de incerteza, sobre o número de infectados pelo vírus no país. Entre 443 mil e 1,3 milhão de brasileiros já podem ter tido Zika, doença que se confunde com a dengue, mas em 80% dos casos não gera sinal aparente ou causa, no máximo, um mal-estar passageiro (ver quadro abaixo). Os autores do documento chegaram a esses números tomando por base estimativas da literatura médica internacional e os casos suspeitos de dengue não confirmados por exames de laboratório. O médico e virologista Maurício Lacerda Nogueira, professor da Faculdade de Medicina de Rio Preto, é um dos que suspeitam de que parte dos casos identificados como dengue, na realidade, seja de Zika. Há quase uma década ele acompanha os surtos de dengue em São José do Rio Preto e em abril e maio de 2015 identificou algo atípico: casos da síndrome de Guillain-Barré, doença inflamatória que degenera os nervos, em pessoas com sintomas de dengue. “Olhando retrospectivamente, pode ter sido o Zika”, contou. Em breve ele deve testar para o vírus cerca de 300 amostras de sangue do início de 2015 classificadas como dengue – Zanotto planeja fazer o mesmo com outras 1,2 mil da capital. Caso o vírus esteja no estado há mais tempo e seja, de fato, o causador da microcefalia, novos ca-
Variações sutis Alguns sinais clínicos ajudam a distinguir a infecção causada pelo Zika de dengue e chikungunya Sintomas
Dengue
Zika
Chikungunya
Febre
Superior a 38ºC por 4 a 7 dias
Ausente ou até 38ºC por 1 a 2 dias
Superior a 38ºC por 2 a 3 dias
Manchas vermelhas na pele (exantema)
Surgem a partir do quarto dia em 30% a 50% dos casos
Surgem no primeiro ou segundo dia em mais de 90% dos casos
Surgem entre o segundo e o quinto dia em 50% dos casos
Dor nos músculos
Muito frequente
Frequente
Pouco frequente
Dor nas articulações
Pouco frequente e leve
Frequente e de leve a moderada
Muito frequente e de moderada a intensa
Inchaço nas articulações
Raro
Frequente e leve
Frequente e de moderado a intenso
Conjuntivite
Rara
Ocorre em 50% a 90% dos casos
Ocorre em 30% dos casos
Cefaleia
Muito frequente e muito intensa
Frequente e de intensidade moderada
Frequente e de intensidade moderada
Coceira
Leve
Moderada a intensa
Leve
Hipertrofia dos gânglios
Leve
Intensa
Moderada
Tendência a sangramento
Moderada
Ausente
Leve
Acometimento neurológico
Raro
Mais frequente do que em degue e chikungunya
Raro (ocorre principalmente em recém-nascidos)
50 z janeiro DE 2016
Fonte Carlos Brito/UFPE – in Protocolo de vigilância e resposta à ocorrência de microcefalia relacionada à infecção pelo vírus Zika, 2015
No ano passado o Ministério da Saúde identificou 1,6 milhão de casos suspeitos da infecção no país, dos quais 990 mil ou 61% ocorreram no Sudeste (718 mil no estado de São Paulo). É possível, sugerem alguns pesquisadores, que boa parte desses mosquitos já esteja contaminada com o Zika. Já faz algum tempo se sabe que o Zika circula, ainda que timidamente, pelo Sudeste brasileiro. Os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo haviam registrado até o fim de novembro uns poucos casos contraídos em seu próprio território e confirmados por exames moleculares. Mas não havia uma contabilidade oficial – e precisa. O primeiro caso em São Paulo foi detectado em 19 de maio, quando o Instituto Adolfo Lutz, um dos laboratórios de referência para a detecção de vírus no país, confirmou a presença do Zika no sangue de um homem de 52 anos morador de Sumaré, na região de Campinas. Outro caso foi registrado em São José do Rio Preto, no noroeste do estado, e mais dois em Ribeirão Preto, no norte. “É possível que o Zika esteja circulando há alguns meses no estado, mas não de maneira disseminada”, disse o infectologista Marcos Boulos, chefe da Coordenadoria de Controle de Doenças da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. “Caso contrário, já teríamos a confirmação de problemas neurológicos”, contou na tarde de 14 de dezembro, antes de o secretário David Uip anunciar que seis bebês com microcefalia estavam sob investigação para infecção por Zika.
Stella Melo analisa ao microscópio cultura de células na USP. Acima, células de rim de macaco infectadas com vírus Zika
sos podem aparecer em breve. “O pico de circulação da dengue em São Paulo e, portanto, de circulação do Aedes ocorreu entre abril e maio e quem era gestante na época está para ter bebê”, lembra Nogueira. Ele e seu grupo devem monitorar 2,2 mil pessoas por cinco anos para verificar a porcentagem de casos assintomáticos de Zika e o risco de microcefalia nos bebês de gestantes infectadas pelo vírus. A suspeita da conexão do Zika com a microcefalia, algo inédito no mundo, surgiu em outubro. Um mês antes a neurologista pediátrica Vanessa Van Der Linden começou a identificar um aumento incomum nos casos de microcefalia no Hospital Barão de Lucena, onde trabalha no Recife, e notificou a Secretaria de Estado da Saúde de Pernambuco. Em seguida o pesquisador Carlos Brito, da Universidade Federal de Pernambuco, sugeriu que o Zika poderia estar por trás dos casos e o problema foi comunicado ao ministério, que notificou a Organização Mundial da Saúde.
fotos léo ramos ilustraçãO pedro handam
A
s evidências mais fortes só vieram no fim de novembro, quando Vasconcelos isolou o vírus do bebê do Ceará e a Fiocruz do Rio confirmou a presença do Zika no líquido amniótico de duas gestantes da Paraíba cujos fetos tinham microcefalia. Até 15 de dezembro, o ministério havia confirmado 134 casos associados à infecção por Zika – em Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Sergipe – e descartado 102. Outros 2.165 continuavam sob investigação. Vários especialistas consultados pela reportagem afirmam que o Zika é o principal suspeito de causar a microcefalia. Além da conexão temporal entre os dois problemas, o vírus parece estar se
adaptando a infectar os seres humanos. Em estudo feito com pesquisadores do Instituto Pasteur no Senegal, o biomédico Caio de Melo Freire, da Universidade Federal de São Carlos, demonstrou que a linhagem em circulação no Brasil veio da África via Ásia (ver mapa nas páginas 48 e 49). No caminho, o vírus se humanizou: alguns de seus genes registram a receita para fazer proteínas de modo mais semelhante aos genes humanos. Mesmo assim, alguns pesquisadores dizem que são necessários mais dados para fechar a questão. “Não sabemos, por exemplo, se a vulnerabilidade do feto se restringe ao primeiro trimestre ou se também é mais tardia e leva a outros problemas”, lembra o neurologista Fernando Kok, da USP. “A relação de causalidade é plausível e os sinais são fortes”, diz o infectologista Celso Granato, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Mas precisamos ter casos mais bem estudados, porque podem haver outros cofatores que ainda não conhecemos.” “Se me perguntassem se Zika causa microcefalia, eu diria que não sei”, contou o epidemiologista Eduardo Massad no início de dezembro. Para ele, havia muitas perguntas sem reposta. “Agora, se a causalidade for comprovada”, completou, “o Zika pode se tornar o Godzilla das infecções”. n
Artigos científicos e outros documentos FAYE, O. et al. Molecular evolution of Zika virus during its emergence in the 20th century. PLoS Neglected Diseases. 9 jan. 2014. FREIRE, C.C.M. et al. Spread of the pandemic Zika virus lineage is associated with NS1 codon usage adaptation in humans. Biorxiv.org. ZANLUCA, C. et al. First report of autochthonous transmission of Zika virus in Brazil. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. 11 jun. 2015. CAMPOS, G. S.; BANDEIRA, A. C.; SARDI, S. I. Zika virus outbreak, Bahia, Brazil. Emerging Infectious Diseases. out. 2015. Protocolo de vigilância e resposta à ocorrência de microcefalia relacionada à infecção pelo vírus Zika – http://bit.ly/1REOZ2w.
pESQUISA FAPESP 239 z 51
NEUROLOGIA y
Ajustes na teoria da
dor dor dor dor Adequações em abordagem clássica levam a novas explicações sobre fenômenos como a dor-fantasma Carlos Fioravanti
52 z janeiro DE 2016
A
dor em membro-fantasma, que poderia ocorrer em partes do corpo que não existem mais, não é uma fantasia das pessoas que perderam um braço ou uma perna. Pode ser real. Uma das hipóteses adotadas para explicá-la sugere que as fibras nervosas próximas aos membros removidos voltariam a crescer e gerar estímulos espontâneos, interpretados como dor. Outra possibilidade, que emerge agora, é que, depois do rompimento das fibras nervosas que transmitem os estímulos à medula espinhal, os neurônios da medula teriam se tornado tão sensíveis que enviariam para o cérebro sinais de dor mesmo na ausência de estímulos reais. Francisco Javier Ropero Peláez, professor da Universidade Federal do ABC, em Santo André, cogita essa segunda explicação para a dor do membro-fantasma com base em sua proposta de ajustes em uma teoria clássica sobre as bases fisiológicas da dor, apresentada há 50 anos. Sua abordagem oferece novas explicações também para um distúrbio neurológico conhecido como disestesia, em que um toque pode ser entendido como um estímulo capaz de gerar a sensação de dor intensa, como ocorre nos casos de fibromialgia, com dores musculares generalizadas e crônicas. Em um artigo publicado na Science em 1965, o psicólogo Ronald Melzak, da Universidade McGill,
Canadá, e o neurocientista inglês Patrick Wall, então no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, Estados Unidos, conciliaram abordagens anteriores, detalhando um caminho que já havia sido cogitado pelo filósofo francês René Descartes em 1664, e apresentaram a chamada teoria do portão da dor. Hoje comum em livros de neurologia, essa abordagem explica como os neurônios processam os diferentes estímulos que serão percebidos pelo cérebro como dolorosos ou não dolorosos. De acordo com essa proposta, há dois tipos de estímulos: o primeiro provém dos neurônios nociceptivos, que inervam a pele, os músculos, os ossos e as vísceras, formam fibras nervosas com diâmetro estreito e registram estímulos aversivos como o calor do fogo ou a dor causada por um corte com uma faca (ver Pesquisa FAPESP nº 155); o segundo tipo de estímulo se origina nos terminais de fibras nervosas de diâmetro largo, que registram estímulos mecânicos como toque, pressão ou vibração. Os dois tipos de fibras conduzem o estímulo até dois tipos de neurônios da medula espinhal, localizada no interior da coluna vertebral, que agem como portão da dor, bloqueando ou liberando os estímulos. Se receber estímulos dos dois tipos de fibras, o primeiro neurônio, chamado interneurônio, vai inibir a passagem do estímulo para o segundo neurônio, que envia o sinal para o cérebro. O interneurônio só vai liberar o sinal para o segundo neurônio se o estímulo vier da fibra nociceptiva. Essa teoria explica por que se consegue usar os aparelhos elétricos de depilação, que puxam os pelos ao cortá-los, gerando um estímulo mecânico, sem sentir dor, porque os aparelhos, ao mesmo tempo, massageiam a pele, cancelando a eventual sensação de dor. hipóteses
Lorne Mendell, da Stony Brook University, Estados Unidos, comentou em 2014 que o modelo apresentado na Science “não está correto em todos os detalhes”. Um ano antes, dois pesquisadores do Canadá relataram simplificações excessivas e falhas na apresentação da arquitetura neural da coluna espinhal e na localização e a interação das fibras nervosas. Para Peláez, o que mais incomodava era a indicação de que a fibra nociceptiva poderia inibir um neurônio e estimular outro. Não poderia haver inibição, ele
Diferenças Diferenças Diferenças Diferenças básicas básicas básicas básicas Teoria de 1965
1
Estímulos nociceptivos provocam efeitos opostos, inibindo um neurônio e ativando outro
2
A intensidade dos estímulos não varia ao entrar nos neurônios
3
A sensibilidade dos neurônios não se altera
4
Existe apenas um ponto de equilíbrio (estabilidade) de rede de neurônios Proposta atual
1
Os estímulos nociceptivos podem apenas ativar os neurônios
2
A intensidade do estímulo pode se modificar ao chegar ao neurônio
3
A sensibilidade dos neurônios pode variar
4
Existem vários pontos de equilíbrio (estabilidade) de rede de neurônios
Fonte Francisco J. R. Peláez/UFABC
pensou, porque as substâncias responsáveis pela transmissão ou inibição dos estímulos nervosos, identificadas depois da publicação do artigo na Science, não podem gerar efeitos opostos nos terminais de um mesmo neurônio. A indicação de um provável equívoco e as evidências da capacidade de adaptação dos neurônios motivaram Peláez e a farmacologista Shirley Taniguchi, professora da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein, a elaborarem um modelo neurocomputacional no qual a sensibilidade dos neurônios e a força das conexões entre eles podem variar, de acordo com os estímulos recebidos, como detalhado na revista Neural Plasticity de novembro de 2015. Em 1996, pesquisadores da Universidade de Bath, Inglaterra, ao proporem um modelo matemático para explicar alguns fenômenos ligados à dor, já tinham observado a variação da sensibilidade dos neurônios, que podem reagir de modo não proporcional a estímulos de intensidades diferentes. A produção de dor gerada a partir de estímulos táteis, verificada em alguns
dos tipos de disestesia, segundo Peláez, poderia ser uma consequência do fato de as fibras nervosas responsáveis pela condução dos estímulos mecânicos perderem a camada de revestimento e, em consequência, processarem os sinais em velocidade menor, como as fibras dos estímulos aversivos, confundindo os neurônios da medula sobre a origem do estímulo. “Há várias outras hipóteses para explicar a hipersensibilidade à dor”, disse o farmacologista Thiago Cunha, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP). Segundo ele, há indicações de que o interneurônio poderia perder o poder seletivo – ou até mesmo morrer – e deixar os estímulos passarem mais facilmente rumo ao cérebro. Outra possibilidade é que haveria uma redução dos níveis ou da atividade do neurotransmissor Gaba, que inibe os estímulos nervosos, ou os receptores celulares específicos para o Gaba começariam a funcionar de modo inverso, estimulando, em vez de inibir, os outros neurônios. Encerrada a etapa de elaboração e publicação das propostas de ajustes da teoria do portão da dor, Peláez começou a debater sua abordagem com pesquisadores da área biomédica, a enfrentar as reações de estranhamento diante de uma abordagem matemática de fenômenos biológicos e a mostrar como esse trabalho poderia ser útil. Segundo Shirley, coautora do artigo na Neural Plasticity, a nova abordagem explica a ação de medicamentos como a gabapentina, que congela a sensibilidade dos neurônios. De acordo com essa proposta, segundo seus autores, a dor-fantasma poderia ser controlada com a aplicação de gabapentina logo após a amputação do membro, antes de os neurônios da medula se tornarem hipersensíveis e dispararem sinais de dor mesmo sem estímulos reais. n
Artigos científicos MELZACK, R. e WALL, P. D. Pain mechanisms: a new theory. Science. v. 150, n. 3699, p. 971-9. 1965. MOAYEDI, M. e DAVIS, K. D. Theories of pain: from specificity to gate control. Journal of Neurophysiology. v. 109, n. 1, 5-12. 2013. PELÁEZ, F. J. R. e TANIGUCHI, S. The Gate Theory of pain revisited: Modeling different pain conditions with a parsimonious neurocomputational model. Neural Plasticity. v. 752807, p. 1. 2015. MENDELL, L. M. Constructing and deconstructing the gate theory of pain. Pain. v. 155, n. 2, p. 210-6. 2014.
pESQUISA FAPESP 239 z 53
Rede emaranhada: imagem de microscopia de vasos sanguĂneos de um tumor de intestino
54  z  janeiro DE 2016
biofísica y
A fome do Modelo explica como tumores mobilizam os vasos sanguíneos que os alimentam Igor Zolnerkevic
foto CLOUDS HILL IMAGING LTD / SCIENCE PHOTO LIBRARY
U
ma equipe internacional de biofísicos liderada pelo brasileiro José Onuchic, da Universidade Rice, Estados Unidos, desenvolveu um modelo matemático que explica em detalhe como as células da parede dos vasos sanguíneos respondem à necessidade de nutrientes de um tumor em crescimento. Caso as previsões do modelo sejam confirmadas, suas equações matemáticas podem ajudar os pesquisadores a buscarem compostos mais efetivos, que impeçam a formação dos vasos sanguíneos que alimentam o tumor sem interferir nos do restante do corpo. As células tumorais, assim como as demais células do organismo, precisam do oxigênio e dos nutrientes carregados pelo sangue para sobreviver e se multiplicar. Quando as células de um tecido sadio necessitam de sangue extra, elas secretam substâncias químicas que estimulam o desenvolvimento de novos
vasos. A principal dessas substâncias é o fator de crescimento endotelial vascular, mais conhecido pela sigla em inglês VEGF. Ao chegar à parede do vaso sanguíneo mais próximo, as moléculas de VEGF estimulam novos vasos a brotarem do existente e crescerem em direção às células que emitiram o sinal. Tumores em crescimento fazem algo semelhante. A diferença está na quantidade de VEGF que produzem. Se o sinal emitido pelos tecidos normais representa, digamos, um pedido feito com gentileza, o das células cancerosas é um grito de urgência. Esse sinal mais intenso ordena às células de vasos próximos que se multipliquem rapidamente rumo ao tumor. No lugar de uma rede harmônica de vasos sanguíneos, com estrutura ordenada e de crescimento lento, na qual vasos pequenos brotam de vasos maiores, forma-se uma rede de numerosos vasos raquíticos, que crescem às pressas para alimentar as células cancerígenas.
“Como as células do câncer crescem muito rápido, elas necessitam de muito oxigênio e emitem um sinal de VEGF que promove a formação caótica de vasos”, explica o biofísico brasileiro Marcelo Boareto, primeiro autor do artigo descrevendo o modelo, publicado em julho de 2015 na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS). Atualmente em um estágio de pós-doutorado no Instituto Federal Suíço de Tecnologia (ETH), Boareto desenvolveu o modelo de crescimento dos vasos sanguíneos em parceria com Mohit Kumar Jolly, da Universidade Rice. No modelo, Boareto aplicou as conclusões de seu doutorado, feito sob a orientação de Onuchic e Eshel Ben-Jacob, biofísico da Rice e também da Universidade de Tel Aviv, em Israel. “Esse tipo de pesquisa mostra que atualmente os avanços em ciência médica requerem muitas vezes a integração da teoria com a realização de experimentos”, afirma Onuchic. pESQUISA FAPESP 239 z 55
Linguagem de sinais Composto químico liberado por células em proliferação coordena a formação de vasos sanguíneos
3
2
1
Tecido sadio Células em proliferação
stalk
sinais VEGF
tip
stalk
O equilíbrio entre indução e inibição lateral (abaixo) gera células tip e stalk Células tip e células stalk formam vasos robustos e pouco ramificados
Tecido tumoral
tip/stalk
Células em proliferação necessitam de nutrientes e oxigênio e secretam o VEGF, proteína que estimula a formação de novos vasos sanguíneos
stalk
stalk
O excesso de VEGF causa um desequilíbrio e leva à formação de células tip/stalk com características híbridas Células tip/stalk geram vasos raquíticos e pouco eficientes
Fonte Marcelo Boareto/eth
conversa de célula Inibição lateral
Morto em junho de 2015, Ben-Jacob foi pioneiro na criação de modelos matemáticos para tentar entender como as células – formando uma colônia de bactérias, um tecido sadio ou um tumor – se comunicam umas com as outras por meio de sinais químicos. Seus modelos, feitos em parceria com o biofísico Herbert Levine, também da Rice, explicam por que células quase idênticas geneticamente podem se comportar de maneira muito diferente, dependendo dos sinais que recebem de suas vizinhas. Essa conversa química entre células é importante, por exemplo, durante o desenvolvimento de um embrião. “Para formar um organismo multicelular a partir de um aglomerado de células idênticas, as células precisam se multiplicar e se diferenciar”, explica Boareto. “Curiosamente, a maioria das transformações ocorridas nas células durante o desenvolvimento embrionário é coordenada por uns poucos sistemas de sinalização.” Um deles é o sistema notch, essencial ao desenvolvimento e à manutenção de 56 z janeiro DE 2016
Delta
Notch
Nos tecidos ricos em proteína delta, a inibição lateral leva as células a se intercalarem como em um tabuleiro Indução lateral
Jagged Notch
Já tecidos ricos em jagged, por indução lateral, geram células vizinhas semelhantes entre si
diversos tecidos do corpo humano, entre eles, o vascular. O sistema funciona da seguinte maneira: as células da parede dos vasos possuem em sua membrana uma proteína chamada notch (entalhe, em português). Parte dessa proteína fica fora da célula e pode se conectar a duas proteínas: a delta e a jagged (denteado). INTERCALADAS OU AGRUPADAS
Em um artigo publicado em fevereiro do ano passado, Boareto, Jolly, Ben-Jacob e Onuchic explicaram pela primeira vez, por meio de um sistema de equações matemáticas, como o sistema notch atua na diferenciação celular de um tecido qualquer. Em experimentos feitos nos últimos anos, outros pesquisadores já haviam demonstrado que nos tecidos ricos em proteína delta as células, em consequência de um sinal chamado inibição lateral, se dispõem como em tabuleiro de xadrez: células com proteínas delta em sua superfície se intercalam com células contendo proteínas notch. Já nos tecidos com abundância de jag-
Os compostos antiangiogênese disponíveis hoje podem debilitar ainda mais a saúde de quem tem câncer
ged prevalece uma forma de sinalização chamada indução lateral, que deixa as células vizinhas muito parecidas, apresentando em sua superfície tanto as proteínas jagged quanto as notch. Nos tecidos sadios, a necessidade de suprimento é sinalizada pela proteína VEGF, que aciona tanto a inibição como a indução lateral. Em equilíbrio, essas duas formas de sinalização permitem a formação de vasos sanguíneos robustos. A inibição lateral leva ao surgimento das células tip (extremidade), que guiam o crescimento dos vasos, enquanto a indução lateral origina as células stalk (haste), formadoras da parede do vaso. “A célula tip é capaz de se locomover em direção à fonte de VEGF e lidera a formação de um novo vaso, já as células stalk, imóveis, multiplicam-se e formam a parede do novo vaso”, explica Boareto.
ilustraçãO fabio otubo
VASOS RAQUÍTICOS
Quando decidiram testar o modelo, Boareto e seus colaboradores imaginavam que o crescimento acelerado dos vasos sanguíneos fosse consequência da produção excessiva da proteína delta, que favoreceria o surgimento de um número elevado de células tip. Mas experimentos realizados em 2007 e 2009 indicavam uma contradição. Ao desativar o gene responsável pela produção da proteína delta, passou a ocorrer o crescimento de muitos vasos sanguíneos, bem próximos uns dos outros, como acontece na vizinhança de um tumor. “Os resultados experimentais nos deixaram surpresos”, conta Boareto. Diferentemente do que se pensava, o sinal de VEGF emitido pelos tumores, combinado com sinais como os da infla-
mação, parece suprimir a produção da proteína delta e aumentar a síntese de jagged, fazendo as células formadoras da parede dos vasos proliferarem. Jolly e Boareto analisaram com cuidado as equações de seu modelo até entenderem como conciliar o que sabiam sobre o sistema de sinalização notch com os resultados das experiências usando vasos sanguíneos. A solução que encontraram foi assumir que os vasos raquíticos que alimentam os tumores não são como os vasos normais, constituídos de uma célula tip, seguida por várias stalk. Os pesquisadores sugerem que esses vasos devem ser feitos de células híbridas, com propriedades intermediárias entre as tip e as stalk: não tão móveis quanto as primeiras, nem tão capazes de se multiplicar quanto as últimas (ver infográfico ao lado). “Nossa hipótese é que o excesso de jagged produz células híbridas, que formam muitos vasos finos, pouco maduros e pouco eficientes”, diz Boareto. “O câncer parece se aproveitar de mecanismos já existentes, necessários para a sobrevivência das células sadias, adaptando-os às suas necessidades”, conta Onuchic. Para testar essa hipótese e validar o modelo, Boareto explica que serão necessárias experiências que monitorem como as células de um vaso sanguíneo com excesso de jagged respondem à sinalização de VEGF. “É uma previsão fácil de ser testada”, afirma. “Estamos conversando com grupos experimentais.” A hipótese a ser confirmada pode levar a uma nova maneira de controlar a formação de vasos sanguíneos ao redor de tumores. Os compostos antiangiogênese disponíveis hoje bloqueiam a proliferação de vasos sanguíneos ao obstruir
o funcionamento das proteínas notch. O problema é que, assim, esses medicamentos impedem a formação de vasos sanguíneos próximo ao tumor e também no restante do corpo, o que pode debilitar ainda mais a saúde de quem tem câncer. O modelo de Boareto e seus colegas abre caminho para uma estratégia distinta: usar um composto que amplifique ainda mais o sinal de VEGF do tumor. Se funcionar como o esperado, esse sinal estimularia uma produção ainda maior de proteínas jagged e a criação de mais vasos. A expectativa, no entanto, é de que sejam vasos excessivamente finos, incapazes de conduzir sangue para o tumor. “São predições empolgantes, ainda aguardando validação experimental”, comentaram por e-mail os pesquisadores brasileiros Renata Pasqualini e Wadih Arap, da Escola de Medicina da Universidade do Novo México, nos Estados Unidos. Eles dirigem um laboratório que é referência internacional na busca de novos tratamentos para diversas doenças, explorando diferenças entre as proteínas de vasos sanguíneos sadios e doentes (ver Pesquisa FAPESP nº 190). Para o casal, o novo modelo pode orientar o desenvolvimento de fármacos que atuem na formação anormal de vasos sanguíneos observada não só em tumores, mas também na artrite e em doenças associadas a problemas na retina. n
Artigos científicos BOARETO, M. et al. Jagged mediates differences in normal and tumor angiogenesis by affecting tip-stalk fate decision. PNAS. 21 jul. 2015. BOARETO, M. et al. Jagged-Delta asymmetry in Notch signaling can give rise to a Sender/Receiver hybrid phenotype. PNAS. 3 fev. 2015.
pESQUISA FAPESP 239 z 57
ambiente y
Os danos escondidos na lama Argila fina e alto teor de metais no material liberado pelo rompimento das barragens em Minas Gerais podem alterar dinâmica ecológica e de sedimentos da foz do rio Doce
Maria Guimarães
Q
uando Valéria Quaresma e Alex Bastos, um casal de especialistas em oceanografia geológica, começaram a estudar os sedimentos da costa capixaba junto à foz do rio Doce, por volta de cinco anos atrás, um dos objetivos era ter uma base para estabelecer planos de manejo dessa região na qual duas das principais fontes de aporte econômico estão em oposição ecológica: a pesca e a extração de petróleo. A primeira depende da saúde do ecossistema costeiro, que pode ser ameaçada por eventuais acidentes resultantes da segunda. A dupla de professores da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) não imaginava que o conhecimento seria solicitado tão rapidamente. No início de novembro, quando romperam as barragens da mineradora Samarco, em Minas Gerais, eles integraram o grupo de uma centena de pesquisadores organizado pela universidade e logo se prepararam para colher amostras comparativas. “No dia 21 de novembro a pluma que desceu o rio Doce chegou à foz e já tínhamos o barco preparado”, conta Valéria. No dia seguinte sua equipe coletava amostras da água marinha tingida de laranja. A primeira caracterização de como se comportam os sedimentos que o rio normalmente transporta está em um artigo publicado em dezembro de 2015 pelo grupo de Valéria na revista Brazilian Journal of Geology. Os resultados mostram que os sedimentos mais finos passam por um processo rápido de deposição, conhecido como floculação, quando a água doce encontra a salinidade e o pH diferentes do mar. A deposição desse sedimento, classificado como lama terrígena, se dá principalmente em profundidades de ao menos 10 metros, ao sul de onde o rio Doce 1
A fina argila em suspensão tingiu de laranja a foz do rio Doce, a ponto de a garrafa coletora de água (direita) ficar quase invisível quando submersa
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fotos 1 valéria quaresma / ufes 2 marcos daniel leite / ufes
desemboca, para onde são empurrados pelo vento nordeste – o predominante por ali. “Em seguida esse material pode ser ressuspendido e redistribuído para norte, conforme a força e a direção dos ventos e das ondas”, explica Valéria, que mapeou a deposição desses sedimentos não só no trabalho resultante das amostras que seu grupo coletou, como em dados compilados no artigo de revisão publicado em novembro de 2015 na revista Journal of South American Earth Sciences. Na região ao norte do rio Doce, junto à linha costeira, predominam partículas maiores e menos argilosas. Mesmo com conhecimento da região e com todo o preparo para receber a onda de lama que percorreu parte de Minas Gerais e do Espírito Santo, causando grandes danos às cidades adjacentes e à ecologia do rio e seus arredores, a avaliação do impacto do material oriundo dos rejeitos de mineração não é imediata. O que deu para ver logo de cara é que se trata de um volume espantoso de material argiloso com partículas muito finas, que não se depositam facilmente. “Não conhecemos esse tipo de sedimento que integra os rejeitos”, conta Valéria, “não sabemos como ele se comporta”. Ela pretende acompanhar sua trajetória em uma série de futuras viagens de campo. “Precisamos entre um e dois meses para ver como ficou o fundo.” A preocupação gerada pela mudança na dinâmica de transporte de sedimentos vai muito além de seu papel essencial para a estabilidade da linha de costa. Nas
coletas que já fizeram, os pesquisadores se espantaram com a água completamente turva, que tornava difícil enxergar os equipamentos submersos. Essa mudança nas características físicas da água, segundo Valéria, pode alterar completamente o ambiente necessário à vida dos organismos que vivem no fundo e compõem a base da cadeia alimentar marinha: a comunidade bentônica. Química
Além dos sedimentos, também preocupa os pesquisadores o conteúdo da lama em termos químicos. Um componente cuja abundância surpreende pouco, dada a atividade de extração de minério que deu origem ao acidente, é o ferro. Valéria afirma que isso pode ser um problema porque seu excesso pode causar uma proliferação excessiva dos organismos planctônicos (seres microscópicos que flutuam na coluna d’água) e provocar grande desequilíbrio ecológico. O químico Renato Rodrigues Neto, coordenador do Laboratório de Geoquímica Ambiental do Departamento de Oceanografia e Ecologia da Ufes, está à frente do grupo que vem analisando os elementos presentes na enxurrada de rejeitos. Por enquanto só foram analisadas amostras de cinco pontos na desembocadura do rio Doce, mas já se nota um aumento importante de alguns metais quando se compara antes e depois da chegada da lama. “Aumentaram muito os teores de vanádio, alumínio, ferro, manganês e cromo”, conta o pesquisa-
dor, que no final de dezembro terminou de elaborar um relatório preliminar com esses resultados. Mesmo espantado com o aumento em 50 vezes da concentração de ferro, que seu grupo detectou, esse não é o elemento que o preocupa por ser um nutriente naturalmente disponível. Mais preocupante foi o teor muito aumentado de cromo, um elemento que pode ser tóxico conforme sua apresentação. “Em geral ele ocorre na forma menos tóxica”, explica Rodrigues Neto, “mas ainda não testamos para saber o que existe agora”. São análises mais complexas, que exigirão uma parceria com outros laboratórios. Também falta, de acordo com o químico, avaliar se o cromo está numa forma biodisponível, que pode ser absorvida pelos organismos. A gravidade do acidente levou a uma cobrança por respostas imediatas e à organização rápida de pesquisadores empenhados em encontrá-las. Mesmo assim, entender como o ambiente e os organismos que vivem nele vão reagir e ser afetados requer tempo. Nos próximos meses, deve começar a se delinear o efeito causado nos animais e nas plantas da região. n Artigos científicos BASTOS, A. C. et al. Shelf morphology as an indicator of sedimentary regimes: a synthesis from a mixed siliciclastic-carbonate shelf on the eastern Brazilian margin. Journal of South American Earth Sciences. v. 63, p. 12536. nov. 2015. QUARESMA, V. S. et al. Modern sedimentary processes along the Doce river adjacent continental shelf. Brazilian Journal of Geology. v. 45, n. 4, p. 635-44. dez. 2015.
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evolução y
A riqueza dos campos de altitude História evolutiva de vegetação na área serrana da região Sul ressalta importância de ecossistema não florestal
Gilberto Stam
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60 z janeiro DE 2016
Paisagens do alto da serra: gramíneas, arbustos, araucárias e despenhadeiros abruptos
fotos 1 joão iganci / ufrgs 2 eduardo cesar
O
s campos de altitude da Serra Geral, no sul do Brasil, são encontrados sobre platôs cada vez mais altos à medida que avançam para a borda leste, onde a serra de repente despenca em imensos cânions. Vegetação campestre e arbustos predominam nessa área de invernos frios e solo raso, salpicada por afloramentos rochosos, pequenas manchas florestais e regiões encharcadas e ricas em matéria orgânica (turfeiras). A aparente monotonia dos campos, que alguns chamam de “mar de grama”, esconde uma rica biodiversidade vegetal, com quase 300 espécies exclusivas da região, muitas delas pouco estudadas até recentemente. “A taxa de endemismo é de 25%, muito maior do que a encontrada na Floresta Atlântica da região”, diz o botânico João Iganci, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Embora muitas plantas dali também existam em outras regiões de altitude, tanto tropicais quanto temperadas, é esse endemismo que torna especiais os campos do Sul. “O número total de espécies também é alto e comparável a outros centros de biodiversidade, considerando que a área é pequena.” Iganci, especialista na vegetação dos Campos de Cima da Serra, como são conhecidos na região, faz parte de um grupo da UFRGS e da Universidade Federal de Goiás (UFG) liderado pela geneticista Loreta Freitas, também da UFRGS, que busca compreender a história evolutiva das espécies da região e localizar áreas prioritárias para conservação. Os pesquisadores dividiram a Serra Geral em quatro regiões (ver mapa), sempre a partir de 900 metros acima do nível do mar, onde a floresta típica da Mata Atlântica dá lugar aos campos e às matas com araucária. A primeira etapa foi mapear a distribuição das espécies usando como indicador três gêneros típicos da região, todos eles
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com uma abundância de espécies endêmicas (índice de endemismo): Petunia, Calibrachoa e Adesmia. O estudo, parte do doutorado do biólogo Michel Barros, demonstrou que a Área 1, no cume da serra, abriga a maior diversidade, com 13 espécies, seguida pela Área 2, a oeste, com 10 espécies. Altos índices de endemismo geralmente ocorrem em ecossistemas antigos e estáveis, já que demora muito tempo para
novas espécies surgirem. Parece que foi isso mesmo que aconteceu nos campos de altitude sulinos, de acordo com simulações do clima desde 21 mil anos atrás, quando o planeta atingiu sua temperatura mais baixa desde o último ciclo glacial. Os resultados indicam que a Área 1, seguida pela 2, manteve um clima mais estável, confirmando a pista dada pela biodiversidade. “No último máximo glacial o clima era mais frio e seco, propício para pESQUISA FAPESP 239 z 61
2
1
3
4
1 Gramínea Elyonurus 2 Cravo-do-campo (Trichocline macrocephala) 3 Plantio de Pinus em campo 4 Petúnia Calibrachoa sellowiana
o desenvolvimento dos campos, o que permitiu que espécies desse ambiente avançassem sobre áreas mais úmidas e quentes, onde antes predominavam florestas”, conta Loreta. “Ao migrar para regiões para as quais não estavam adaptadas, as espécies campestres se diversificavam, dando origem a novas espécies e linhagens.” Durante esse período, houve expansão dos campos em direção a locais de menor altitude, ao norte. Mas, com o aquecimento gradual e aumento da umidade, as florestas voltaram a se expandir e ocupar regiões de campos que, por sua vez, se tornaram restritos às regiões mais altas, onde estão hoje. As florestas com araucária – que dividem o mesmo ambiente, formando mosaicos com os campos – também ti62 z janeiro DE 2016
veram um papel importante. “Ao longo do tempo, ocorreu uma competição constante entre campo e essas florestas, com uma alternância entre ambientes dependendo das condições climáticas”, diz Iganci. Essa dinâmica, que ainda hoje existe, pode ter sido responsável pela separação de determinadas populações que acabaram formando novas espécies. “Esse parece ter sido o caso de algumas petúnias polinizadas por abelhas”, diz Loreta. “Essas abelhas não conseguiam atravessar as florestas com araucária, que assim provocavam um bloqueio no fluxo gênico entre populações.” Os pesquisadores observaram também que a biodiversidade fica menor nas direções oeste e norte, conforme diminui a altitude e a umidade que vem do mar. “Os resultados para biodiversidade se referem apenas aos grupos estudados, mas são espécies altamente representativas da região”, diz Loreta. “Também observamos uma forte correlação da biodiversidade com o clima e a altitude.” Além de indicar áreas prioritárias e ajudar a
entender a origem da biodiversidade da região, o estudo contribui para revelar uma riqueza antes desconhecida. “Até pouco tempo atrás os Campos de Cima da Serra vinham sendo completamente negligenciados em estudos que levam em conta os aspectos ecológicos, evolutivos e conservacionistas”, diz Iganci. O pesquisador, que fez várias viagens de coleta nos últimos 10 anos, alerta para a degradação do ecossistema e identifica sua principal ameaça: o avanço da silvicultura, que consiste em plantações de pinheiro e eucalipto. Percepção campestre
O estudo contraria a ênfase dada às florestas que limita os esforços de preservação de campos no mundo todo. Um grupo de especialistas em ecossistemas campestres do Brasil, Estados Unidos, França, Bélgica e África do Sul tenta mudar essa percepção ressaltando, dentro e fora da comunidade científica, a alta biodiversidade dos campos, que devem ser vistos como ecossistemas antigos,
Onde estiveram e estão Zonas estáveis desde o último máximo glacial conservam riqueza
PR
Área 4
Paraguai
Área 3 Área 2 SC Argentina
Área 1 RS
Alto da serra O estudo examinou três gêneros vegetais nos campos em altitudes acima de 900 metros (cinza). As áreas mais diversas nas plantas estudadas (1 e 2) coincidem com as que permaneceram propícias à vegetação
Sobreposição das distribuições nos últimos 20 mil anos apontadas por modelagem ecológica n 1 gênero n 2 gêneros
uruguai
n 3 gêneros
Vales que separam áreas
fotos 1 e 2 ilse boldrini / ufrgs 3 valério pillar / ufrgs 4 jeferson fregonezi / ufrgs mapa alexandre affonso
Fonte michel barros
cuja história evolutiva de milhões de anos tem íntima relação com o fogo e a presença de animais herbívoros. Muitas plantas apresentam adaptações como caules subterrâneos e são capazes de brotar rapidamente após a queima e com órgãos subterrâneos como tubérculos, rizomas e bulbos, que armazenam água e amido em local protegido. “A diversidade de plantas e também de outros grupos dos ambientes de campo e de savana no Brasil pode ser considerada equivalente àquela das florestas”, diz o ecólogo Gerhard Overbeck, especialista em vegetação campestre, também da UFRGS. “Temos de levar em conta também a área ocupada por esses ecossistemas. O Pampa, por exemplo, ocupa pouco mais de 2% do Brasil, mas contém mais de 2.150 espécies de plantas apenas em ambientes de campo”, completa. Segundo ele, em algumas regiões campestres no sul do Brasil é possível encontrar mais de 50 espécies de plantas por metro quadrado, incluindo um grande número de espécies de gramíneas. Muitas plantas
de ambientes campestres têm um longo ciclo de vida, como algumas do gênero Vellozia, que ocorrem nos campos rupestres no Brasil Central, que demoram 100 anos para chegar à idade reprodutiva e podem viver até 500 anos. O problema é que os sinais de antiguidade no campo são mais difíceis de visualizar que o perímetro das árvores ou o acúmulo de matéria orgânica nas florestas. valorização humana
Os campos também prestam importantes serviços ecológicos. “Esses ecossistemas são fundamentais na regulação do ciclo hidrológico, pois além de a vegetação reter muito menos água das chuvas do que o dossel das florestas, as abundantes raízes finas funcionam como uma esponja que libera a água aos poucos para os rios e aquíferos”, diz a engenheira florestal especialista em Cerrado Giselda Durigan, do Instituto Florestal do Estado de São Paulo, em Assis. Além disso, o solo abriga tubérculos, bulbos e rizomas, adaptações das plantas que ajudam
a reter água na estação seca e permitem que elas resistam ao fogo e à herbivoria, desafios comuns nesses ambientes. “Essas estruturas contribuem para o sequestro de carbono, embora isso ainda não esteja quantificado”, diz Giselda. “Os solos são complexos e levam muito tempo para se formar. Se degradados, a recuperação é dificílima.” A falta de conhecimento sobre a ecologia dos campos tem levado a políticas de conservação equivocadas, como o incentivo à silvicultura, com resultados desastrosos para a biodiversidade e para os serviços ecológicos. “As árvores fazem sombra, impedindo o crescimento das plantas herbáceas ávidas por sol e reduzindo a biodiversidade”, diz Giselda. “Além disso, fazem com que 20% a 30% da água da chuva evapore antes de chegar ao solo.” Outro exemplo de proteção às avessas é a proibição da “sapecada”, queima provocada pelos pecuaristas serranos para manejo do pasto e proibida em 1992 pelo Código Florestal Estadual do Rio Grande do Sul. Giselda afirma que o fogo, assim como o gado (desde que não sejam excessivos), evita o adensamento das árvores, ajudando a manter estável a estrutura e a diversidade da vegetação campestre. Além disso, a variedade de gramíneas natural desses ambientes pode tornar a carne mais saudável do que a de animais confinados. O grupo internacional de especialistas, do qual fazem parte Giselda e Gerhard, publicou em 2015 um artigo no qual propõe o conceito de “campos antigos” (old growth grasslands, em inglês), um adjetivo em geral aplicado a florestas maduras. Os autores chamam a atenção para características específicas de ecossistemas de campo de savana que exigem estratégias de conservação distintas. Ao ampliar a compreensão desses ambientes, eles também esperam contribuir para inserir os campos na pauta do movimento ambientalista, lançando um novo olhar sobre esses ecossistemas que ajude a enxergar as riquezas escondidas no “mar de grama”. n
Artigos científicos Veldman, J. W. et al. Toward an old-growth concept for grasslands, savannas, and woodlands. Frontiers in Ecology and Environment. v. 13, n. 3, p. 154-62. abr. 2015. Barros, M. J. F. et al. Environmental drivers of diversity in Subtropical Highland Grasslands, Perspectives in Plant Ecology, Evolution and Systematics. v. 17, n. 5, p. 360-8. out. 2015.
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ecologia y
Recifes na foz do Amazonas Região da desembocadura do rio, entre o Pará e o Amapá, abriga a ocorrência mais ao norte de corais no litoral do Brasil Marcos Pivetta
D
istante 86 quilômetros da costa do Maranhão, o parcel de Manuel Luís é o maior banco de corais da América do Sul. Seus recifes, com profundidade entre 15 e 45 metros (m), abrangem uma área de cerca de 69 quilômetros quadrados. A seus paredões submersos são atribuídos os naufrágios de duas centenas de embarcações desde o século XVI até o XX. Protegido pelo status de parque estadual 64 z janeiro DE 2016
marinho, o parcel é tradicionalmente descrito como a ocorrência de recifes de corais mais setentrional do litoral brasileiro. Agora essa condição é colocada em dúvida por um novo estudo. Segundo artigo científico publicado em outubro no periódico Bulletin of Marine Science por biólogos do Grupo de Pesquisa em Antozoários (GPA) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), existem ambientes recifais um pouco mais profundos e quase desconhecidos, cerca de 550 quilômetros (km) ao norte do parcel, em frente à foz do rio Amazonas, entre os estados do Pará e do Amapá. A maior parte dos corais foi encontrada a profundidades que variam entre 30 e 125 m, ao longo da chamada zona mesofótica, onde incide pouca luz. Depois de rever a literatura científica sobre o tema e vasculhar os registros de coletas marinhas feitas desde os
anos 1950 perto do delta do maior rio do mundo, a equipe concluiu que existem ao menos 38 espécies de corais nessa região. A maioria das espécies identificadas (27) é da subclasse dos octocorais ou corais moles, que apresentam oito tentáculos em seus pólipos e incluem as gorgônias, corais azuis e penas-do-mar. Nove espécies são de corais pétreos, também denominados corais verdadeiros (ordem Scleractinia), uma de coral negro (ordem Antipatharia) e uma de hidrocoral ou coral de fogo (ordem Anthoathecata). As amostras analisadas no estudo pertencem às coleções do Museu de Oceanografia Dr. Petrônio Alves Coelho, da UFPE, e do Smithsonian National Museum of Natural History (EUA). Também foram identificados exemplares coletados na região durante as atividades do projeto Piatam Oceano, tocado por universidades brasileiras com patrocínio da Petrobras, que fez coletas de animais marinhos na década passada entre as costas do Pará e Amapá.
Cinco espécies de corais pétreos (ordem Scleractinia) encontradas perto da foz do Amazonas: ocorrência na zona mesofótica, onde incide pouca luz
Onde estão os corais mais setentrionais do país
fotos alf Cordeiro imagem mapa Earth Observatory / NASA, com informações de Cordeiro et al.
As formações se situam ao norte do parcel de Manuel Luís e distam entre 40 e 250 km das costas paraense e amapaense
Amapá
Corais na foz do rio Amazonas
Rio Amazonas
Parcel de Manuel Luís
pará
maranhão
pESQUISA FAPESP 239 z 65
1
ponde por 18% de toda a água doce que corre para os mares do planeta. Tudo isso dificulta a proliferação de corais, seres vivos que ocorrem em ambientes marinhos com parâmetros rígidos, como salinidade entre 3,45% e 3,64% e temperatura entre 24,5 e 28,3 graus Celsius (ºC). Estudos anteriores feitos na região estimam que a influência da água despejada pela boca do Amazonas no Atlântico pode ser sentida a uma distância de até 500 km das costas do Pará e do Amapá.
fotos 1 Ralf Cordeiro 2 Ministério do Meio Ambiente 3 heitor evangelista 4 NASA / Goddard Space Flight Center
Nidalia occidentalis: uma das 27 espécies de octocorais encontradas nos arredores da foz do Amazonas
A descoberta de colônias desses invertebrados marinhos ao largo do delta do Amazonas, entre 40 e 250 km mar adentro em relação à costa, foi uma surpresa. “Os rios são considerados obstáculos naturais à ocorrência de corais e o Amazonas sempre foi visto como uma barreira importante para a formação de recifes”, afirma o biólogo Ralf Cordeiro, primeiro autor do estudo. O Amazonas carrega uma enorme quantidade de sedimentos para o oceano e turva as águas marinhas. Esse efeito do rio sobre o oceano é captado em imagens de satélite, como a usada nesta reportagem para ilustrar os lugares de ocorrência dos corais na região Norte. Com menos luz incidindo em suas águas superficiais, os arredores do delta são um local inóspito para a proliferação de corais. O volume de água doce despejado em sua foz também altera consideravelmente a salinidade do Atlântico. Sozinho, o Amazonas res-
oásis de vida
As adversidades das condições locais provavelmente explicam a ausência de corais nas águas mais superficiais da foz do Amazonas e a concentração desses invertebrados marinhos em trechos mais profundos do Atlântico. De acordo com esse cenário, a existência de recifes em águas rasas se torna quase impossível naquela região, mas, à medida que a profundidade aumenta, surgem brechas para o surgimento de oásis de vida. “Depois
Conexão Antártida-Abrolhos Processos climáticos induzidos pelo buraco de ozônio podem estar associados a menor crescimento de corais no sul da Bahia O buraco na camada do gás ozônio
média anual das águas no sul
(O3) sobre a Antártida, que surge
da Bahia subiu 1ºC, de 24,8°C
durante a primavera no hemisfério
para 25,8ºC, entre 1948 e 2006.
Sul, pode ter um importante papel
Sensíveis a mínimas variações na
em uma alteração em curso no
temperatura do oceano, os corais
Atlântico tropical cerca de
de Abrolhos, situados cerca de
8 mil km ao norte do continente
40 km da costa, começaram
recifes de Abrolhos, os cientistas
gelado: a diminuição na taxa de
a crescer menos nas últimas quatro
coletaram três amostras de duas
crescimento dos recifes de corais
décadas. “Testamos vários parâmetros
espécies de corais-cérebro da região, a
em Abrolhos, no sul da Bahia, desde
que poderiam estar por trás do
Siderastrea stellata e a Favia leptophylla.
os anos 1980. Um estudo de
aquecimento das águas em Abrolhos,
As amostras eram de colônias sadias
pesquisadores brasileiros, franceses e
como o próprio aquecimento do
e foram obtidas na forma de
taiwaneses publicado em 17 de agosto
clima global e o fenômeno El Niño”,
testemunhos, pequenas colunas
no periódico Biogeosciences Discussions
afirma o geofísico Heitor Evangelista,
verticais de 28 ou 50 centímetros de
sugere que há uma forte correlação
do Laboratório de Radiologia e
altura que podem ser usadas para inferir
entre os dois fenômenos, apesar da
Mudanças Globais da Universidade
a taxa de crescimento dos corais ao
enorme distância que os separa.
Estadual do Rio de Janeiro (Uerj),
longo do tempo. As duas espécies
principal autor do estudo. “O que
mostraram uma queda em seu ritmo
de ozônio intensificou os ventos do
melhor explica essa mudança é a
de crescimento, sobretudo a partir de
oeste, que, mais fortes, passaram a
existência do buraco de ozônio,
meados da década de 1970 e início
levar mais águas superficiais quentes
que modifica os ventos do
dos anos 1980. Embora o buraco
para o trecho de mar próximo ao litoral
oeste ao redor da Antártida e,
de ozônio sobre a Antártida tenha sido
do Nordeste. Dados de modelos
consequentemente, a estrutura
identificado em 1985, seus efeitos sobre
climáticos indicam que a temperatura
dos ventos no Atlântico Sul.”
o clima antecedem a sua descoberta.
De acordo com o trabalho, o buraco
66 z janeiro DE 2016
3
Para determinar a evolução dos
Coleta em recife de Abrolhos (acima) e representação do buraco de ozônio (em azul) na Antártida: Atlântico mais quente afeta crescimento de corais
de uns 25 m de profundidade, a influência dos sedimentos e da água doce do rio é menor e as condições se tornam melhores para a existência de corais”, explica Cordeiro. A existência de corais de profundidade nas proximidades dos litorais do Pará e Amapá indica um padrão de ocorrência diferente do que se verifica nos pontos da costa brasileira onde há recifes. Em Abrolhos, no sul da Bahia, e mesmo no parcel de Manuel Luís, essas formações costumam se situar em águas rasas, de até 30 m de profundidade. Alguns corais identificados na boca oceânica do Amazonas são endêmicos do Brasil, capazes de construir recifes verdadeiros, como o coral-cérebro Mussismilia hispida. Isso é um indicativo de que pode haver ecossistemas recifais de tamanho
Os pesquisadores envolvidos no trabalho acreditam ter identificado uma teleconexão climática – um fenômeno em um canto do planeta capaz de causar repercussões em outra parte do globo – com implicações sobre o ambiente marinho no sul da Bahia. “A influência da Antártida na circulação atmosférica já é conhecida”, diz a professora Ilana Wainer, do Instituto Oceanográfico da
2
Parcel de Manuel Luís: corais em águas mais rasas do que nas costas do Pará e do Amapá
razoável a média profundidade naquela região, embora por ora não haja informações detalhadas sobre sua extensão. Os pesquisadores da UFPE acreditam que boa parte dos corais no delta do Amazonas é originária de populações ancestrais do Caribe. “Pode ter existido – ou talvez ainda exista – um corredor de corais na zona mesofótica entre o Caribe e o Atlântico”, diz o biólogo Carlos Daniel Pérez, coordenador do GPA e professor do Centro Acadêmico de Vitória da UFPE, coautor do estudo. Alguns trabalhos sugerem que os corais 4 da América Central e os do Norte do Brasil estiveram unidos num passado remoto. Um dado que corrobora essa hipótese é que mais da metade das espécies de corais da ordem Scleractinia encontradas na costa brasileira também está presente no Caribe. A maior parte dos estudos estima que a fauna marinha das duas regiões divergiu evolutivamente entre 5 e 16 milhões de anos atrás, justamente quando o Amazonas passou a desaguar no Atlântico.
Universidade de São Paulo (IO-USP). “Novo é esse impacto no Atlântico
estudos com vídeo e fotos
tropical, especificamente com relação
Para Alberto Lindner, biólogo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o artigo de Cordeiro e de seus colegas da UFPE aumenta consideravelmente o conhecimento sobre a presença de corais no entorno do delta do rio Amazonas e desbanca o parcel de
ao crescimento de corais.” Especialista em modelos climáticos sobre a interação do oceano com a atmosfera na região antártica, Ilana é coautora do paper.
Manuel Luís como o limite mais ao norte da distribuição geográfica desses invertebrados marinhos ao longo da costa do país. “Apesar de estudos anteriores indicarem a existência de esponjas, peixes recifais e de algumas espécies de corais na foz do Amazonas, o novo estudo surpreende ao contabilizar registros inéditos de mais de 20 espécies de corais nessa região”, afirma Lindner, coordenador do projeto Biodiversidade Marinha do Estado de Santa Catarina e estudioso dos corais. Por ser uma região de difícil acesso para a realização de coletas no Atlântico, a foz do Amazonas apresenta registros incompletos da ocorrência de seres marinhos. As águas turvas e revoltas são um desafio para os estudos oceanográficos e dificultam atividades de mergulho autônomo. Os pesquisadores acreditam que o trabalho de caracterização da área terá de ser feito com o auxílio de veículos submarinos operados remotamente, visto que há corais a profundidades acima dos 100 m. “Em razão do aquecimento global, da acidificação dos oceanos e de outras ameaças aos corais, como a pesca de arrasto, recomendamos a realização de levantamentos fotográficos e de vídeo para conhecermos melhor essas comunidades marinhas altamente negligenciadas”, diz Pérez. n
Artigos científicos CORDEIRO, R.T. S. et al. Mesophotic coral ecosystems occur offshore and north of the Amazon River. Bulletin of Marine Science. v. 91, n. 4, p. 491-510. out. 2015. EVANGELISTA, H. et al. Southwestern Tropical Atlantic coral growth response to atmospheric circulation changes induced by ozone depletion in Antarctica. Biogeosciences Discussions. 15 ago. 2015.
pESQUISA FAPESP 239 z 67
ASTRONOMIA y
Investigação
solar Pesquisadores tentam compreender as reações que ocorrem no interior de estrelas como o Sol
P
ara entender melhor como a matéria na forma de gás quente e ionizado se move dentro das estrelas, uma equipe internacional liderada pelo astrônomo peruano Jorge Meléndez, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (USP), comparou as quantidades dos elementos químicos berílio e lítio observadas na superfície do Sol e de outras sete estrelas semelhantes encontradas na Via Láctea. “Não podemos enxergar o interior das estrelas, vemos apenas a luz de suas camadas exteriores”, explica Marcelo Tucci Maia, aluno de doutorado de Meléndez e primeiro autor do novo estudo, publicado em março de 2015 na revista Astronomy & Astrophysics. “A abundância desses elementos funciona como uma sonda para investigar o que acontece no interior estelar.” A conclusão do estudo é de que a matéria na superfície de estrelas parecidas com o Sol pode se misturar com a de camadas mais profundas do que muitos pesquisadores imaginavam, mas não tão internas quanto outros propunham. Meléndez e seus colegas usaram o Very Large Telescope (VLT), do Observatório Europeu Austral (ESO) em Monte Paranal, Chile, para observar o Sol e mais sete estrelas, 68 z janeiro DE 2016
escolhidas por possuírem massa e composição química muito próximas às solares, mas idades bastante diferentes. Enquanto o Sol tem 4,6 bilhões de anos de idade, a estrela mais jovem do estudo tem apenas 500 milhões de anos e a mais velha, 8,2 bilhões de anos. “É como se pudéssemos acompanhar a evolução do Sol, desde jovem até muito velho”, Maia explica. A equipe de Meléndez já havia publicado outros estudos sobre esses mesmos astros e mostrado que, quanto mais velha a estrela, menos lítio ela tem em sua superfície. Esses resultados confirmaram indicações de estudos anteriores que indicavam que estrelas semelhantes ao Sol destroem lítio à medida que envelhecem. A maior parte do lítio do Universo foi criada na origem dos tempos, a explosão do Big Bang, há cerca de 13,6 bilhões de anos. Considerado um elemento relativamente frágil, o lítio é destruído por diversos tipos de reações nucleares que acontecem no interior das estrelas a temperaturas superiores a 2,5 milhões de graus Celsius. Dentro do Sol, segundo os modelos-padrão de evolução estelar, temperaturas tão altas só ocorrem a grandes profundidades, próximo do núcleo, em uma região chamada de zona radiativa. A temperatura na zona radiati-
va varia de 15 milhões de graus, próximo ao núcleo, até 1,5 milhão de graus, mais externamente. Logo acima da camada radiativa, na chamada zona convectiva, a temperatura diminui gradualmente de 1,5 milhão de graus até alcançar 6 mil graus na superfície da estrela. Na zona radiativa, a energia produzida no núcleo por meio da fusão de elementos químicos (fusão nuclear) é transportada para regiões mais externas pelas partículas de luz (fótons), enquanto a matéria permanece relativamente imóvel. Já na zona convectiva, o transporte de energia é diferente. A matéria é aquecida na vizinhança da zona radiativa e sobe até próximo da superfície, onde libera calor e afunda novamente. Até recentemente, os astrônomos supunham que a matéria da zona radiativa não se misturava com a matéria da zona convectiva. As observações de Meléndez e seus colaboradores, entretanto, indicam que isso deve ocorrer de alguma forma; caso contrário, não seria possível explicar o desaparecimento do lítio na superfície das estrelas. Outros pesquisadores vêm modificando as equações matemáticas que descrevem a estrutura interna das estrelas para levar em conta outros fenômenos físicos que permitiriam o trans-
Anatomia de uma estrela Movimentos de convecção transportam matéria de regiões profundas para a superfície de astros como o Sol
1
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Cromosfera
Núcleo
É a camada imediatamente superior à fotosfera. A temperatura inicialmente decresce de 5.700 graus para cerca de 3.600 e depois volta a subir até alcançar cerca de 35 mil graus na parte mais externa dessa camada
Região mais interna, densa e quente do Sol, com temperaturas da ordem dos 15 milhões de graus. Sob a força da gravidade, núcleos de hidrogênio se fundem e liberam energia na forma de fótons, que escapam para a zona radiativa
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Zona radiativa Fótons vindos do núcleo são absorvidos pelas partículas de matéria e depois reemitidos nessa região em que as temperaturas variam de 15 milhões de graus, nas camadas mais profundas, a 1,5 milhão, na mais superficial
Fotosfera É a camada mais interna da atmosfera solar, com temperaturas em torno de 5.700 graus. Toda a luz visível do Sol provém da fotosfera
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Zona de convecção
A temperatura diminuí de 1,5 milhão de graus, na região mais interna dessa zona, para cerca de 6 mil graus, na mais externa. Essa diferença de temperatura faz a matéria aquecida na vizinhança da zona radiativa subir e liberar energia próximo à superfície
Jenny Mottar / Nasa
Fonte Livro Mysteries of the Sun - Nasa e Wikipedia
porte do material da zona convectiva para regiões mais profundas e quentes. Eles, no entanto, ainda debatem quais seriam esses fenômenos. Alguns defendem que essa mistura adicional seria provocada pela rotação da estrela. Outros imaginam que outros processos, como o padrão de difusão dos núcleos atômicos em um nível microscópico, sejam mais importantes. Para jogar alguma luz nesse debate, Maia, Meléndez e seus colegas decidiram analisar a abundância de outro elemento químico frágil, o berílio. Assim como o lítio, o berílio é destruído por reações nucleares. Mas apenas por aquelas que acontecem a 3,5 milhões de graus. “O berílio é um dos elementos químicos mais difíceis de se observar, pois é difícil isolar a sua assinatura na luz da estrela”, diz Maia. De acordo com o estudo da Astronomy & Astrophysics, a superfície de uma es-
trela com o porte do Sol perde muito pouco berílio ao longo de sua evolução. Segundo Maia, essa característica, medida agora pelo grupo, estabelece uma profundidade máxima em que a mistura do material da zona radiativa com o da zona convectiva pode ocorrer. A mistura deve acontecer em profundidades nas quais a temperatura chega a 2,5 milhões de graus e não deve ir muito além, parando na região em que ela alcança os 3,5 milhões de graus. Esse comportamento permitiria explicar por que ao longo da vida dessas estrelas quase não ocorre destruição de berílio, consumido a temperaturas mais elevadas, ao passo que uma proporção maior de lítio é destruída. O resultado já ajudou a descartar um dos modelos astrofísicos de evolução de estrelas como o Sol. Mas as incertezas
nas observações ainda não permitem distinguir qual seria o modelo mais correto entre os vários existentes. A equipe de Meléndez espera esclarecer ainda mais a questão ao incluir em suas análises os dados de outras nove estrelas semelhantes ao Sol, observadas em julho de 2015 com o telescópio japonês Subaru, instalado no monte Mauna Kea, no Havaí, Estados Unidos. n Igor Zolnerkevic
Projeto High precision spectroscopy: impact in the study of planets, stars, the galaxy and cosmology (nº 2012/24392-2); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Jorge Luiz Meléndez Moreno (IAG-USP); Investimento R$ 337.292,40 (para todo o projeto).
Artigo científico TUCCI MAIA, M. et al. Shallow extra mixing in solar twins inferred from Be abundances. Astronomy & Astrophysics. v. 576. abr. 2015.
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tecnologia Engenharia Aeroespacial y
Protótipo do Amazonia 1 serviu para demonstrar que os componentes são mantidos dentro dos limites das temperaturas extremas do espaço
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Um satélite
brasileiro Amazonia 1 desenvolvido no país vai monitorar recursos naturais e ajudar no combate ao desmatamento Yuri Vasconcelos
léo ramos
S
e tudo correr como planejado, o Brasil deverá lançar em 2018 o primeiro satélite nacional de médio porte inteiramente projetado e construído no país. Batizado de Amazonia 1 (sem acento), o artefato foi desenvolvido nos laboratórios do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e terá como missão monitorar os recursos naturais do país. Trata-se de um satélite de observação da Terra, o primeiro feito a partir da plataforma multimissão (PMM), uma estrutura genérica criada pelo Inpe para a fabricação de satélites na classe de 500 quilos. O Amazonia 1 será lançado em uma órbita de 750 quilômetros e passará sobre o Brasil a cada cinco dias. Dotado de uma câmera capaz de fazer imagens de uma faixa de 850 quilômetros de largura, o satélite vai auxiliar no controle do desmatamento da floresta amazônica, na previsão de safras agrícolas, no monitoramento de zonas costeiras e no gerenciamento de recursos hidrográficos. “O Amazonia 1 é o primeiro satélite de alta complexidade projetado, montado e testado no país”, diz o pesquisador Adenilson Roberto da Silva, responsável no Inpe pela área de satélites baseados na PMM. “Com ele, como vários outros países, vamos dominar o ciclo completo de desenvolvimento de satélites estabilizados em três eixos.” Artefatos com essa característica podem alterar em órbita a sua posição e orientação em relação à Terra, o que permite focalizar melhor os pontos escolhidos. Já foram gastos R$ 183 milhões no desenvolvimento do satélite e serão necessários aproximadamente mais R$ 50 milhões pESQUISA FAPESP 239 z 71
para a sua conclusão, totalizando R$ 233 milhões. Esse valor está relacionado não apenas ao custo do satélite mas também ao desenvolvimento dos sistemas e equipamentos. “Um segundo satélite custará algo próximo à metade desse valor”, diz Adenilson. “Estou otimista que, a partir desse satélite, nós possamos não só atender a demanda do país como exportar, de forma semelhante à indústria aeronáutica brasileira”, diz Leonel Perondi, diretor do Inpe. O Amazonia 1 integra o Programa Nacional de Atividades Espaciais (Pnae) sob a responsabilidade da Agência Espacial Brasileira (AEB). Em dezembro, o Inpe concluiu com êxito os testes térmicos do satélite, uma etapa importante do desenvolvimento quando são simuladas as condições que ele enfrentará em órbita. “No espaço, o satélite será submetido à radiação espacial e a temperaturas extremas. As partes mais expostas enfrentarão temperaturas de cerca de -80ºC no período noturno e +80ºC nas horas iluminadas”, destaca Adenilson. Antes dessa bateria de testes, feita no Laboratório de Integração e Testes (LIT) do Inpe, em São José dos Campos (SP), o Amazonia 1 já havia sido submetido com sucesso a outros ensaios. No fim de 2013, um modelo estrutural – espécie de réplica do próprio satélite – foi submetido a ensaios mecânicos que simularam as condições de vibração e acústi72 z janeiro DE 2016
voo, programados para acontecer em 2017. Essa é a última etapa antes da conclusão do satélite”, conta Adenilson. O Inpe ainda não definiu quando e qual foguete fará o lançamento do satélite, mas a escolha deverá recair sobre os lançadores hoje disponíveis no mercado internacional, porque o país ainda não tem um foguete para esse fim. O satélite foi qualificado para ser compatível com uma família de lançadores, tais como o ucraniano Dnepr, o norte-americano Minotaur-C e o europeu Vega, entre outros. Classificado como um satélite para sensoriamento remoto de órbita polar baixa, o Amazonia 1 vai orbitar o planeta passando pelos dois polos, vindo do Norte em direção ao Sul, e sobrevoando o Brasil durante o dia. Ele cruzará a linha do Equador sempre às 10h30. Orbitando a uma velocidade de 7,5 quilômetros por segundo, ele levará 100 minutos para circundar a Terra. Um aspecto importante do satélite é o sobrevoo sobre o mesmo ponto ca que ele irá expeem terra a cada cinco rimentar durante o dias, período chamado lançamento. Pouco de revisita. Para efeito depois, nos primeiO Amazonia 1 de comparação, a reviros meses de 2014, dará uma sita do Satélite Sinoforam qualificados -Brasileiro de Recursos os propulsores a sevolta na Terra Terrestres (Cbers), sérem empregados no rie de satélites feita em artefato. Desenvolem 100 minutos conjunto com a China, vidos pela empresa acontece a cada 26 dias. brasileira Fibrafore sobrevoará “O sobrevoo rápido do te, também de São a mesma Amazonia 1 aumenta a José dos Campos, probabilidade de sua os seis propulsores região a cada câmera captar imagens que equiparão o saúteis”, explica Adeniltélite são essenciais cinco dias son. O Amazonia 1 terá para a realização de uma câmera com resomanobras no espaço, necessárias para a aquisição e a ma- lução de imagem de 60 metros (m) por 60 m, enquanto o Cbers-4 tem várias nutenção da órbita. “Com a qualificação do modelo térmi- câmeras sendo que a de maior resolução co, já estão em andamento as atividades tem 5 m por 5 m. O Amazonia 1 deverá voar 25 anos dede uma nova etapa: a integração e testes do modelo elétrico, quando iremos veri- pois do lançamento do primeiro satélificar a compatibilidade elétrica e testar te totalmente feito no Brasil, o Satélite as interfaces entre todos os subsistemas de Coleta de Dados 1 (SCD-1), em 1993. e equipamentos. Esses ensaios devem Cinco anos depois, em 1998, outro satéocorrer em 2016”, explica Adenilson. lite dessa mesma família, o SCD-2, foi Também estão previstos para este ano os colocado em órbita. Esses artefatos, aintestes de compatibilidade eletromagné- da em atividade, recebem informações tica para demonstrar que todos os sub- ambientais transmitidas por plataformas sistemas do satélite estão funcionando de coleta de dados instaladas em locais perfeitamente, sem gerar interferências remotos do território nacional e as enindevidas. “Se tudo correr bem, partimos viam para estações terrenas do Inpe em para a integração e testes do modelo de Cuiabá, em Mato Grosso, e em Alcântara,
Amazonia 1 é o primeiro satélite produzido dentro da plataforma multimissão projetada no Inpe (à esquerda) Antena do satélite que será lançado em 2018 (abaixo)
no Maranhão. Os dados coletados (temperatura, pressão, umidade, pluviometria etc.) são usados para diversas aplicações, tais como previsão de tempo, estudos relacionados a correntes oceânicas e marés e planejamento agrícola, entre outros. As diferenças entre os dois satélites são grandes. O segundo pesava apenas 115 quilos, cerca de um quinto dos pouco mais de 500 quilos do Amazonia 1. O sistema de estabilização dos artefatos também é outro. Os satélites da família SCD são estabilizados no espaço por rotação e se comportam em órbita como se fossem um pião, girando em torno do próprio eixo. “O único controle que temos é sobre sua velocidade de rotação. Ele fica sempre apontado para o mesmo ponto no espaço e seria impossível reposicioná-lo para monitorar um desastre ambiental com mais detalhes”, explica Adenilson. Já o Amazonia 1, como é estabilizado em três eixos, pode ter sua câmera apontada para qualquer lugar em busca da imagem desejada. Os dois satélites também diferem no controle da órbita. Como não possui um subsistema de propulsão, o SCD se aproxima da Terra algumas dezenas de metros a cada ano, enquanto o Amazonia 1 se valerá dos propulsores desenvolvidos pela Fibraforte para se manter em órbita durante toda a sua vida útil, de quatro anos.
foram qualificados pela Equatorial. Essa mesma câmera, com poucas diferenças, está instalada no Cbers-4. A Equatorial também ficou responsável pelo desenvolvimento do gravador digital de dados (DDR, na sigla em inglês) do satélite e coube à Omnisys, de São Bernardo do Campo (SP), a fabricação do terminal de processamento remoto (RTU), que faz a interface entre a câmera WFI e o computador de bordo, do transmissor de dados em banda X, que vai enviar as imagens feitas para o controle em terra, além da antena desse transmissor. Já o conversor de voltagem foi encomendado à AEL Sistemas, de Porto Alegre (RS). Os painéis solares, que geram energia para funcionamento do satélite, foram produzidos pela Orbital. O instituto se encarregou do desenvolvimento e da finalização de vários subsistemas, entre eles o de controle térmico, o de provimento de energia, incluindo os painéis solares, e o de telemetria e telecomando de serviços – esses dois últimos também tiveram participação da empresa Mectron, de São José dos Campos. A estrutura do satélite ficou a cargo da Cenic Engenharia, também de São José dos Campos, enquanto o subsistema de controle de atitude e tratamento de dados foi desenvolvido por meio de um acordo de transferência de tecnologia com a empresa argentina Invap. “Uma vez completado o ciclo de desenvolvimento do Amazonia 1, teremos o domínio de toda a cadeia de fabricação de um satélite desse porte, o que vai nos permitir partir para projetos maiores e voltados para outras aplicações”, diz Adenilson. “Geramos competência nas
empresas para que possam estar capacitadas para projetar e fabricar sistemas espaciais no Brasil”, conclui Perondi. Para Pierre Kaufmann, professor da Escola de Engenharia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo, e coordenador do Centro de Rádio-Astronomia e Astrofísica Mackenzie, a construção do Amazonia 1 é um empreendimento justificável, embora não signifique um salto tecnológico em termos globais, porque outros países detêm o conhecimento sobre a fabricação de artefatos desse porte e complexidade. “O Amazonia 1 não representa uma inovação competitiva internacionalmente, mas tem sua importância para nós. Como o setor espacial é estratégico, é relevante para o país ter autonomia tecnológica”, diz ele. Até hoje, destaca Kaufmann, o Brasil tem se valido de satélites de sensoriamento remoto comprados do exterior ou desenvolvidos com parceiros, como é o caso do Cbers. Para o professor José Leonardo Ferreira, do Instituto de Física da Universidade de Brasília (UnB), ex-pesquisador do Inpe e ex-consultor da Agência Espacial Brasileira (AEB), o Amazonia 1 representa mais um passo em direção à independência tecnológica no setor espacial. “É importante sabermos desenvolver sistemas espaciais e ter total autonomia no uso e nas aplicações.” n
Projeto Desenvolvimento e qualificação de propulsor monopropelente de 5N para satélite (nº 2003/07755-5); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) (Pipe); Pesquisador responsável Humberto Pontes Cardoso (Fibraforte); Investimento R$ 399.026,25.
fotos lÉo ramos
PARCEIROS NACIONAIS
A nacionalização dos diversos componentes que constituem o Amazonia 1 é uma característica relevante do projeto. A câmera WFI (sigla para Wide Field Imager ou Imageador de Amplo Campo de Visada), responsável por fazer as imagens do território brasileiro, foi feita por um consórcio formado pelas empresas Equatorial Sistemas, de São José dos Campos, e Opto Eletrônica, de São Carlos, no interior de São Paulo. As objetivas do imageador foram desenvolvidas pelas duas empresas, enquanto a eletrônica de processamento de sinais, a montagem, a integração e os testes do subsistema pESQUISA FAPESP 239 z 73
ENGENHARIA EletrônicA y
Drones A sobre o campo Avanços tecnológicos ampliam as possibilidades do uso de aeronaves não tripuladas na agricultura
Rodrigo de Oliveira Andrade
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vanços recentes em áreas da tecnologia da computação, associados ao desenvolvimento de sistemas globais de navegação e geoprocessamento, estão ampliando as perspectivas de uso dos veículos aéreos não tripulados, os drones, na agricultura. Relativamente baratas e fáceis de usar, essas aeronaves, equipadas com sensores e recursos de imagem cada vez mais eficientes e precisos, podem auxiliar agricultores a aumentar a produtividade e reduzir danos em lavouras por meio de levantamentos de dados que permitem detectar pragas e estimar o índice de crescimento das plantas, para citar alguns exemplos. Diante das possibilidades de uso dessas aeronaves, os cientistas da computação Bruno Squizato Faiçal, Heitor Freitas e o professor Jó Ueyama, do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da Universidade de São Paulo (ICMC-USP) de São Carlos, interior paulista, desenvolveram um sistema inteligente e autônomo de pulverização de agroquímicos com drones. O uso de agroquímicos é essencial na agricultura de larga escala. Esses defensivos químicos, em geral, são pulverizados manualmente sobre as lavouras ou com o auxílio de tratores. Mesmo quando usam algum tipo de proteção, como máscaras, os trabalhadores rurais ficam expostos ao produto, que pode provocar sérios problemas de saúde como câncer e efeitos adversos ao sistema nervoso central e periférico. O Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos. A venda no país cresceu substancialmente nos últimos anos, saltando de US$ 2 bilhões em 2001 para mais de US$ 8,5 bilhões em 2011, segundo um relatório do Instituto Nacional do Câncer (Inca) sobre os riscos para a saúde humana do uso de agrotóxicos. Controlar a quantidade de agroquímicos aplicados nas lavouras, por sua vez, é muito difícil. A pulverização quase sempre está sujeita a fatores meteorológicos, como a velocidade e direção do vento, que podem comprometer sua aplicação na área de cultivo, espalhando-o por áreas vizinhas. O sistema desenvolvido pelos pesquisadores do ICMC-USP prevê o uso orquestrado de um drone de asas rotativas, na forma de hélices, e uma rede de sensores sem fio instalada ao redor da área de cultivo. Baseia-se em um sistema de inteligência artificial capaz de ajustar a rota da aeronave de acordo com condições meteorológicas específicas. Segundo eles, isso se dá por meio do cruzamento
fotos eduardo cesar
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de dados gerados pelo drone com os obtidos em tempo real pelos sensores instalados às margens da área a ser pulverizada. “Primeiro, o drone faz alguns voos de treinamento em diferentes alturas e condições meteorológicas para conhecer o padrão de deposição de seu sistema de pulverização e a influência causada pelas condições meteorológicas”, explica Faiçal. “Essas informações são armazenadas para que mais tarde sejam usadas para construir um modelo de conhecimento que permita ao drone tomar decisões durante a pulverização em condições meteorológicas semelhantes às anteriores ou inéditas.” Ao se aproximar dos sensores instalados ao redor da área pulverizada, o drone verifica se as informações por ele geradas conferem com as obtidas em tempo real pelos equipamentos no
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solo. Com base no cruzamento dessas informações, o sistema é capaz de regular a liberação do produto químico sobre a lavoura. A ideia é que a aeronave e demais sensores funcionem de modo autônomo, com uma estação de controle e um técnico para monitorar o andamento do processo. As coordenadas registradas no sistema de navegação do drone, em concordância com os cálculos cruzados entre a aeronave e os sensores, determinam a potência de uma bomba que regula a quantidade de agroquímico liberado. Quanto maior for a potência, mais produto é liberado. Segundo os pesquisadores, isso favorece uma pulverização mais segura e precisa, capaz de melhorar a cobertura da aplicação e a qualidade do processo de cultivo, garantindo maior aproveitamento dessas substâncias pelas plantas com me-
Sistema orquestrado: troca de informações entre sistemas embarcados (1) no drone e sensores instalados em solo (2) permite uma pulverização mais precisa e segura, com técnicos monitorando o andamento do processo (3)
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NOVAS APLICAÇÕES
Nos últimos 15 anos, agricultores de vários países começaram a ver nos drones uma oportunidade para aplicar no campo conceitos da chamada agricultura de precisão, baseada no uso de instrumentos e recursos da tecnologia da informação para implementar melhorias na produção agrícola. A vantagem dos drones sobre outros sistemas de monitoramento é que eles podem fazer sobrevoos semanais, a baixo custo, durante todo o período de produção. A Embrapa Instrumentação, em São Carlos, interior de São Paulo, investe desde a década de 1990 no desenvolvimento de novos sistemas e aeronaves capazes de operar com bom desempenho mesmo em condições de campo adversas. Sob coordenação do engenheiro eletrônico Lúcio André de Castro Jorge, os projetos procuram ampliar as possibilidades de adaptação dos drones a operações agrícolas diversas por meio do uso de câmeras convencionais de alta definição, sensores e câmeras termais e multiespectrais, em geral, usadas no monitoramento de lavouras, em estimativas de volume de produção e índice de doenças e pragas. Em Gavião Peixoto, município próximo a São Carlos, pesquisadores testam novos componentes em drones semelhantes a um mini-helicóptero, com hélice de 2,80 metros (m) de diâmetro. Eles fazem sobrevoos periódicos em plantações de laranja para a detecção do greening, doença que afeta o amadurecimento dos frutos, deixando as folhas das plantas amareladas, e costuma ser identificada apenas em estágio avançado. Mais flexíveis e precisos durante a pulverização, sem 76 z janeiro DE 2016
uso de sensores e de forma manual, também em culturas de arroz, soja e trigo, os drones da Embrapa integram um conjunto mais amplo de pesquisas voltado ao desenvolvimento de softwares e sistemas embarcados de captura de imagens adequados a várias aplicações agrícolas, de pequenas a grandes propriedades. Os projetos contam com o apoio da Rede de Agricultura de Precisão da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da própria Embrapa, e são desenvolvidos no novo Laboratório de Referência Nacional em Agricultura de Precisão (Lanapre), inaugurado em 2013. Nele, a equipe de Lúcio Jorge trabalha na concepção de novos sistemas integrados, testando-os e validando-os em plantações de soja, milho e pastagens cultivadas em uma fazenda da Embrapa ao lado do laboratório. “Os testes são feitos com diferentes modelos de aeronaves, como o Isis, da Hórus, o Echar, da XMobots, e o Otus, da Aérials, todas empresas nacionais, e embarcados com software livre, o que ajuda a baratear o processo de inovação”, diz o pesquisador. Os sistemas hoje desenvolvidos pelo grupo de Lúcio Jorge têm possibilitado identificar falhas no plantio, estimar o índice de crescimento das plantas e detectar diferentes níveis de estresse nutricional e anomalias causadas por ferrugem, estresse hídrico, fungos e pragas, por meio de câ-
Semelhante a um mini-helicóptero, drone da Embrapa ajuda na detecção de doenças que afetam o amadurecimento dos frutos
fotos Eduardo Cesar
nos prejuízo ao ambiente. O sistema foi avaliado em um drone de asa rotativa com oito motores elétricos mantidos por baterias e capacidade de carga de 2,5 quilogramas (kg) em campos abertos dentro da própria universidade. O protótipo mostrou-se eficaz ao liberar quantidades controladas de agroquímicos em áreas predeterminadas, levando em conta aspectos meteorológicos e as rotas calculadas pelo seu sistema de GPS. “Nosso sistema poderá garantir uma aplicação específica e inteligente, com menos desperdício e menor contato do agricultor com o agrotóxico”, comenta Faiçal. Outra vantagem, segundo ele, é que esse mesmo sistema pode ser adaptado e instalado em outros veículos usados em terra, como tratores, por exemplo, se conectando com sensores espalhados na lavoura. Um longo caminho ainda precisa ser percorrido, no entanto, até que a tecnologia esteja à disposição de agricultores. Um dos desafios é adaptar todo o sistema para ser usado em aeronaves maiores, capazes de pulverizar grandes áreas agrícolas. A equipe do ICMC-USP já entrou com um pedido de patente por meio da Agência USP de Inovação.
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Para decolar, o drone Echar, da XMobots, é posicionado em uma estrutura semelhante a um estilingue (1) e, em seguida, catapultado (2). Após sobrevoo, o motor desliga e o paraquedas se abre e amortece a aterrissagem da aeronave (3)
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Os drones são responsáveis meras multi e hiperespectrais, em grande medida pela expancapazes de obter simultaneasão e pelo desenvolvimento da mente imagens em alta resoindústria aeroespacial munlução espacial, espectral – com dial, com estimativas de granvárias faixas de comprimento Mercado des investimentos, dos atuais de onda eletromagnética na mundial de US$ 2,7 bilhões por ano para formação da fotografia – e de cerca de US$ 8,3 bilhões anuais infravermelho. Outras, ainda drones deve na próxima década. As possibiem desenvolvimento, poderão ajudar na dispersão de semenmovimentar até lidades são várias e com a regulamentação do setor o uso civil tes de eucalipto e liberação de da tecnologia deverá ser ainda inimigos naturais de algumas US$ 1,7 bilhão mais expressivo. Enquanto os pragas para controle biológico. até 2025, órgãos regulatórios do Brasil Os primeiros drones no Brasil procuram a melhor maneira começaram a ser desenvolvidos segundo a de lidar com questões de seem meados dos anos 1980 com gurança e privacidade, a Lux o Acauã, aeronave na forma de Lux Research Research, empresa norte-ameum miniavião concebida pelo ricana que presta consultoria Centro Tecnológico Aeroespaem pesquisas de mercado, escial (ver Pesquisa FAPESP nº tima que mais de 1 milhão de 211) em parceria com a empresa Avibras, inicialmente para fins militares. Esse drones deverão ser vendidos até 2025. A tecnologia embarcada deve ser responsável crescimento – para além do âmbito militar – tem se refletido em aplicações diversas, do monito- por US$ 670 milhões do US$ 1,7 bilhão moviramento ambiental à inspeção aérea em opera- mentado neste mercado durante esse período. ções de combate ao tráfico de drogas, até missões No relatório Commercial drones: Market shahumanitárias, com a entrega de medicamentos e res, strategies, and forecasts, worldwide, 2015 to vacinas em áreas de difícil acesso, por exemplo. 2021, um documento de 620 páginas produzido Mesmo com o desenvolvimento acelerado do e divulgado pela empresa norte-americana RnR setor, os voos dos drones ainda carecem de regras Market Research, analistas do setor afirmam específicas. A legislação brasileira avançou um pou- que os drones estão mudando a maneira como a co nesse sentido a partir de uma consulta pública agricultura é conduzida no mundo e que essas feita recentemente pela Agência Nacional de Avia- aeronaves movimentaram US$ 609 milhões em ção Civil (Anac), segundo Lúcio Jorge. “Não haverá 2014. Eles estimam que esse valor deva alcançar restrições ao uso de drones nos campos, desde que se US$ 4,8 bilhões em todo o mundo até 2021. n respeite as altitudes estabelecidas”, diz. As empresas do setor vendem aeronaves, peças e softwares, mas esperam por uma regulação mais específica. Projetos Nos Estados Unidos, no dia 14 de dezembro, a Ad1. Utilizando inteligência computacional e VANTs para reduzir a deriva na aplicação de agrotóxicos (nº 2013/18859-8); Modalidade ministração Federal de Aviação (FAA, na sigla em Bolsa no país – Regular – Doutorado; Pesquisador responsável Jó inglês) anunciou novas regras para o uso de drones Ueyama (ICMC-USP); Bolsista Bruno Squizato Faiçal (ICMC-USP); em seu espaço aéreo. Os proprietários dessas aeroInvestimento R$ 72.650,00. 2. Explorando a abordagem sensor web e o sensoriamento partinaves naquele país terão de cadastrar nome, endecipatório no monitoramento de rios urbanos (nº 2012/22550-0); reço e e-mail em um banco de dados nacional, que Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável gerará um certificado de registro das aeronaves. Jó Ueyama (ICMC-USP); Investimento R$ 60.529,50. pESQUISA FAPESP 239 z 77
pesquisa empresarial y
Receitas inovadoras Para conquistar espaço no mercado, Alibra desenvolve novos ingredientes para a indústria alimentícia Yuri Vasconcelos
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esmo quem nunca ouviu falar da Alibra Ingredientes já pode ter consumido alguns dos produtos dessa empresa 100% nacional. Criada em 2000, com sede em Campinas (SP), ela fornece aditivos, derivados lácteos e misturas alimentícias em pó para indústrias de alimentos e bebidas, entre elas Nestlé, Vigor, Bunge, Mococa e Nissin Ajinomoto. Seu portfólio tem mais de 600 itens de ingredientes usados na fabricação de sorvetes, pães, biscoitos, laticínios, pizzas e molhos. O carro-chefe são os compostos lácteos formulados a partir do soro do leite. Há também uma linha de alimentos prontos vendida em supermercados e para atacadistas, como achocolatados, farinha láctea e cereais em pó, e um conjunto de produtos destinados a cozinhas industriais, restaurantes e empresas de refeições coletivas (aviação ou hospitais), como alimentos semiprontos e ingredientes para preparação de pratos doces e salgados. A história da empresa, fundada por ex-alunos do curso de Engenharia de Alimentos na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é marcada pelo pioneirismo. A Alibra foi a primeira indústria nacional a fabricar, em 2009, um alimento análogo ao queijo, com as mesmas características físicas e sensoriais do laticínio, mas cuja matéria-prima usada na formula-
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Placa para análise microbiológica, no laboratório da empresa
Os sócios Roberto e Humberto, a partir da esquerda, e funcionárias do centro de P&D, em Campinas
empresa Alibra
Centros de P&D Campinas (SP) e Marechal Rondon (PR)
fotos eduardo cesar
Nº de funcionários
ção não é o leite. “Existem empresas que vendem um produto semelhante, mas que usam na sua formulação matérias-primas tradicionais, como o próprio queijo. Dominamos a técnica de fabricação do análogo a partir de proteínas lácteas funcionais, amidos especiais de milho ou mandioca e gorduras vegetais”, explica o diretor-presidente Humberto Salvador Afonso, um dos criadores da empresa. O queijo análogo foi elaborado para substituir parcial ou totalmente os queijos tradicionais. De acordo com Afonso, ele tem as mesmas características dos queijos e valor nutricional equivalente, mas custa até 20% menos. “O análogo substitui satisfatoriamente a muçarela e é um item importante de nossa linha food service. Fizemos pesquisa, importamos equipamentos e levamos cinco anos para desenvolver sua formulação. O resultado é um alimento inovador e não
dependente de ingredientes puramente lácteos”, diz o diretor-presidente da Alibra. O queijo análogo é usado principalmente em pizzas e na fabricação de alimentos pré-prontos, como salgadinhos recheados de queijo. No ano passado, a empresa saiu na frente de suas concorrentes ao desenvolver o primeiro óleo em pó do país, uma opção para indústrias que buscam ingredientes ricos em ácidos graxos essenciais. E, mais recentemente, inovou ao elaborar uma linha de sorvetes fortificados, formulados com nanopartículas de ferro e vitamina C. “Lançamos um lote experimental em 23 de setembro, o dia do sorvete, para chamar a atenção da indústria de gelados para a importância de uma alimentação saudável”, explica Afonso. Em um mercado pulverizado e com tantos competidores como o de ingredientes e produtos alimentícios, a mar-
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Principais produtos Ingredientes para as indústrias de laticínios, biscoitos e pizzas, além de produtos prontos como achocolatados e cereais em pó
ca Alibra é praticamente desconhecida do consumidor. “A população não sabe quem são os fabricantes de ingredientes. Mas temos 900 clientes pelo Brasil e apostamos na inovação para nos diferenciar. Essa é a nossa fortaleza”, diz. Segundo Afonso, o que diferencia a empresa é a busca constante pela inovação e pelo desenvolvimento de produtos com alto valor tecnológico. pESQUISA FAPESP 239 z 79
1 Preparação e testes de novos ingredientes 2 Produtos da empresa preparados para análise de proteínas 3 Experimento com destilador de nitrogênio para preparo de amostras
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A empresa tem dois centros de pesquisa e desenvolvimento (P&D), um em Campinas e outro em sua unidade fabril de Marechal Cândido Rondon, no interior do Paraná. Ao todo, 10 pessoas trabalham neles. Cerca de 1% do faturamento, que em 2015 deve atingir R$ 150 milhões, é investido por ano em atividades de P&D, seja no desenvolvimento de produtos, na compra de equipamentos ou na montagem de laboratórios. “Planejamos instalar em Campinas um equipamento UHT [Ultra High Temperature], que faz a esterilização de vários produtos. É uma tecnologia importante e que
vai tornar mais eficaz a criação de novos produtos”, acredita o diretor executivo Roberto Stefanini, sócio-fundador da Alibra, responsável pela área de P&D. Ele explica que, para responder à demanda de seus clientes por novos produtos, a empresa recorre sempre à inovação. “Não fazemos pesquisa pura em nossos laboratórios, mas desenvolvemos soluções sob medida. Realizamos projetos especiais com foco em formulações personalizadas para atender às necessidades de aplicação de cada cliente. Nosso objetivo final é que o produto adquira as características desejadas”, diz Stefanini.
Instituições que formaram os pesquisadores da empresa Humberto Salvador Afonso, engenheiro de alimentos, diretor-presidente da empresa
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp): graduação Fundação Getulio Vargas: mestrado
Roberto Stefanini, engenheiro de alimentos e diretor executivo
Unicamp: graduação Fundação Armando Álvares Penteado (Faap): mestrado
Gisela Alvarado, engenheira de alimentos e gerente de Qualidade
Unicamp: graduação e mestrado
Dolores Lustoza, engenheira química e gerente técnica da área de Laticínios
Faculdades Oswaldo Cruz: graduação
Mariane de Oliveira Balles, engenheira de alimentos e coordenadora da área de P&D em Campinas (SP)
Unicamp: graduação
Débora Laschi, tecnóloga de alimentos e assistente técnica da área de Gelados
Faculdade de Tecnologia Termomecânica: graduação Universidade São Judas Tadeu: pós-graduação em Gestão da Qualidade na Indústria de Alimentos
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Essas soluções customizadas podem se materializar, por exemplo, em um novo aditivo que torne um alimento mais estável ou em um ingrediente que altere a formulação original do produto do cliente, deixando-o mais viscoso. SORO DO LEITE
Os produtos principais da Alibra são os compostos e as misturas lácteas fabricadas com soro de leite e gorduras vegetais ou lácteas. O soro é um coproduto da fabricação do queijo e, até 10 anos atrás, era descartado pelas queijarias ou usado para alimentar porcos. O produto tem 6,5% de material sólido, principalmente lactose, sais minerais e proteínas não coaguladas na formação do queijo, como as lacto-albuminas e as lacto-globulinas. A Alibra recebe das queijarias o soro pré-tratado e concentrado, com um teor de sólidos em torno de 65%. Com amplo domínio da técnica de secagem, a empresa transforma esse soro em um concentrado à base de pó. Nesse processo, o produto, em sua forma líquida,
Nanoencapsular partículas de ferro e vitamina C previne sabores ruins e torna o sorvete mais saboroso e nutritivo, além de preservar melhor o aroma
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é colocado em torres de secagem para eliminar a água existente no concentrado (35% do total). O soro em pó resultante é usado para a fabricação de compostos e misturas lácteas. As diferenças entre esses dois ingredientes estão no teor de proteínas, que está abaixo de 9% nas misturas, e na presença de leite em pó na formulação exclusiva dos compostos. “Os dois, compostos e misturas lácteas, são matéria-prima para a fabricação de sorvetes, pães, biscoitos e massas. Também comercializamos diretamente para os clientes o concentrado do soro em pó”, diz Stefanini. A Alibra vende como produto final os compostos lácteos adoçados em pó Merilú e Nutrisim, marcas próprias, que contêm em sua fórmula proteínas de leite associadas a carboidratos, vitaminas e gordura. Para ser consumido, basta que sejam misturados com água, como ocorre com os leites em pó tradicionais. A Nestlé possui um composto lácteo similar, vendido na região Nordeste com a marca Ideal.
Outro produto da empresa que tem um processo de fabricação similar ao concentrado de soro é o óleo em pó, lançado em 2015, que utiliza a tecnologia de produção spray dryer. Trata-se de um processo usado em torres de secagem que transforma ingredientes líquidos em pó. Além de ter alto valor nutritivo e energético, o óleo em pó apresenta vantagens como facilidade de armazenamento, manuseio e transporte. Ele é comercializado para a indústria de alimentação enteral, indicada para pacientes com dificuldades de ingestão de alimentos na forma líquida ou em pó pela boca, e para empresas de nutrição animal e fabricantes de suplementos para atletas e produtos naturais. Aquisição estratégica
Em 2015, a fim de fortalecer sua presença no mercado, a Alibra adquiriu o controle da Genkor, especializada na fabricação de microingredientes (corantes, estabilizantes, espessantes, emulsificantes). A compra fez parte de um investimento
de R$ 23 milhões feito pela Alibra nos dois últimos anos para diversificar sua atuação. Com a aquisição, a Genkor virou uma unidade de negócios da Alibra. “As duas empresas tinham produtos complementares e algumas parcerias em atividades das áreas técnicas e comerciais. Sempre existiu o desejo de realizar a fusão e havia boas perspectivas com a incorporação”, afirma Afonso. Genkor e Alibra integram o mesmo conglomerado, o Grupo Káiros, formado por 10 empresas do setor alimentício e controlado por Afonso. E foi outra empresa do Káiros, que, em certa medida, inspirou a Alibra a lançar seu picolé fortificado em setembro do ano passado. Especializada na elaboração de ingredientes em escala nanométrica, a divisão Funcional Mikron da Ultrapan repassou à Alibra o conhecimento necessário para que ela criasse os picolés com nanopartículas de ferro e vitamina C. “O nanoencapsulamento dos elementos fortificantes previne sabores negativos, deixando o produto nutritivo e saboroso. Outras características sensoriais, como aroma, cor e sensação na boca, também são preservadas”, explica a tecnóloga de alimentos Debora Laschi, assistente técnica da área de Gelados. “Com essa inovação, a intenção da Alibra não é criar uma linha de picolés fortificados, mas vender o sistema nutricional encapsulado para fabricantes de sorvetes.” n pESQUISA FAPESP 239 z 81
humanidades ECONOMIA y
As boas-novas da cana-de-açúcar Além dos benefícios ambientais, o aumento da produção de etanol ajudou a melhorar os indicadores sociais no campo
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riado em 1975 para reduzir os gastos com a importação de petróleo, o Programa Nacional do Álcool (Proálcool) alterou profundamente a matriz energética brasileira, reduzindo a poluição e a emissão de gases de efeito estufa. Mas, além dos benefícios ambientais, a expansão recente da agroindústria canavieira também provocou impactos positivos nos indicadores sociais do país, aponta o estudo Socio-economic impacts of Brazilian sugarcane industry (Impactos socioeconômicos da indústria brasileira de cana-de-açúcar), publicado no número 16 da revista Environmental Development (dezembro de 2015). Subsidiados por extenso levantamento bibliográfico, Márcia Azanha Ferraz Dias Moraes, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), Fabíola Cristina Ribeiro de Oliveira, do curso de Ciências Econômicas da Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep), e Rocio A. Diaz-Chavez, do Centro de Política Ambiental do Imperial College, de Londres, utilizaram dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) e da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) para comparar a situação dos empregados no cultivo da cana-de-açúcar com a dos trabalhadores nos demais segmentos agrícolas. Também compa82 z janeiro DE 2016
raram indicadores sociais dos descendentes dos empregados da lavoura canavieira com os de outras culturas, procurando verificar se as condições dos pais influenciariam as dos filhos. O estudo mostrou que os trabalhadores envolvidos com a cana-de açúcar recebem salários maiores, são mais escolarizados e têm uma proporção maior de emprego formal quando comparados com a média desses indicadores para as outras culturas analisadas. Foi possível ainda verificar que os descendentes dos empregados da lavoura canavieira apresentam indicadores socioeconômicos melhores, além de terem uma mobilidade maior para outros setores fora do agrícola: “Podemos dizer que a expansão canavieira verificada a partir de 2008 contribuiu para a melhoria dos indicadores sociais agrícolas”, afirma Márcia. Mas essas conquistas são relativamente recentes, adverte a professora. “Quando surgiu o Proálcool, o foco principal era buscar alternativas ao petróleo e naquele momento as questões ambientais ou sociais eram secundárias.” Na época, a prioridade era diminuir a todo custo a dependência em relação ao petróleo importado, que respondia por mais de 80% do consumo nacional. Esse objetivo econômico foi alcançado: a produção de cana-de-açúcar aumentou de 88,9 milhões de toneladas, em 1975,
Ricardo Azoury / olhar imagem
Maurício Puls
Colheita mecanizada de cana-de-açúcar em Piracicaba (SP), em 2007: melhores condições de trabalho
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fotos eduardo cesar
Cana-de-açúcar é recebida para o início do processo de produção de etanol em Nova Europa (SP): benefícios econômicos, ambientais e sociais
para 588,5 milhões, em 2013, o que permitiu que a produção de etanol crescesse de 555 milhões de litros para 23,2 bilhões de litros no mesmo período. Isso contribuiu para que a dependência do petróleo importado caísse para 18% do consumo nacional em 2013. O Proálcool trouxe outros benefícios diretos. Como demonstrou o estudo Social externalities of fuels (Externalidades sociais dos combustíveis), de 2011, elaborado por Márcia, Fabíola e outros autores, a expansão do complexo sucroalcooleiro criou empregos e aumentou a renda em vastas regiões do interior do país, enquanto as plantas dedicadas ao refino de petróleo sempre se concentraram em poucas cidades litorâneas. DOIS TEMPOS
Contudo, do ponto de vista social, a situação não era satisfatória. “Quando se olha a literatura produzida nos anos 1980 sobre o assunto, verifica-se que as condições de trabalho no setor da cana eram ruins; havia uma informalidade grande e até mesmo trabalho infantil”, diz Márcia. No plano ambiental, o quadro geral não era melhor: as queimadas produziam grandes nuvens de fumaça. De acordo com Márcia, esses problemas estavam ligados ao processo de colheita manual da cana, com a utilização do trabalho de migrantes que vinham para São Paulo: “As condições de trabalho e dos alojamentos eram problemáticas e havia a atuação dos ‘gatos’ [intermediários na contratação da mão de obra]. Com as pes84 z janeiro DE 2016
quisas desenvolvidas no nosso grupo de estudo, conseguimos verificar que houve uma mudança importante nas condições de trabalho. São dois períodos completamente diversos. Atualmente não faz mais sentido falar em trabalho escravo na cultura canavieira”. Outros estudos citados por Márcia já apontavam nessa direção. A tese Indicadores socioeconômicos em estados produtores de cana-de-açúcar: análise comparativa entre municípios, de Janaina Garcia de Oliveira, defendida na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em 2011, concluiu que o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dos municípios produtores de cana apresentou uma evolução favorável de 1970 a 2000: “Os municípios canavieiros em todos os estados apresentam melhores indicadores de distribuição de renda e de acesso aos serviços de infraestrutura, principalmente acesso a instalações sanitárias”. Os avanços nas condições de trabalho se intensificaram desde então. Que fatores contribuíram para essa mudança? “O primeiro motivo foi uma ação muito rigorosa do Ministério Público do Trabalho ao exigir o efetivo cumprimento das normas”, diz a autora. A fiscalização estatal foi reforçada pelo interesse internacional, que ganhou importância à medida que o país ampliou suas exportações de açúcar e álcool. A intensa concorrência entre os produtores dessas commodities no mercado mundial, bem como a preocupação das empresas compradoras de açúcar e etanol, que
E, como observa Francisco Alves, professor associado do Departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), a mecanização não eliminou totalmente o corte manual. “Na realidade, o modelo de mecanização posto em prática na cana requer a combinação do corte mecanizado com o corte manual de elevada produtividade: os trabalhadores empregados no corte da cana têm de ter elevada Diminuição de produtividade, que hoje passa postos no corte das 14 toneladas por homem por dia de trabalho”, diz Alves. de cana foi Isso acarreta um aumento das doenças de trabalho. compensada em A diminuição gradativa da departe por criação manda por cortadores manuais foi compensada, ao menos em de vagas em parte, pela criação de vagas de tratoristas, motoristas, mecânioutras funções cos, condutores de colheitadeiras e técnicos em eletrônica, apontou Márcia em seu estudo O mercado de trabalho da agroindústria canavieira: Desafios e oportunida-
passaram a exercer uma auditoria mais rigorosa sobre as práticas sociais e ambientais dos fornecedores brasileiros, também contribuíram para a adoção de práticas mais sustentáveis. MECANIZAÇÃO
O afluxo de investidores estrangeiros para o setor, a partir do ano 2000, contribuiu para a adoção de uma administração mais responsável porque essas empresas trouxeram novos padrões gerenciais e trabalhistas. Segundo Márcia, nem todas as empresas nacionais tinham práticas reprováveis, mas as estrangeiras ajudaram a erguer o patamar das condições sociais e trabalhistas. Contudo, a principal explicação para a mudança no campo está, segundo a autora, na mecanização da colheita. O processo se acelerou com a eliminação gradativa da queima da cana no estado de São Paulo, determinada pela assinatura do Protocolo Agroambiental do Setor Sucroenergético, de 2007, e pela legislação estadual que disciplina o tema. Isso trouxe enormes benefícios ambientais ao acabar com os problemas causados pelas queimadas, além de permitir o aproveitamento da palha da cana na geração de energia elétrica (tal como já era feito com o bagaço). Por outro lado, a mecanização teve um efeito perverso ao inviabilizar a colheita manual da cana, provocando redução de postos de trabalhos. “A mecanização exige menos trabalhadores”, diz a pesquisadora. “Uma colheitadeira substitui, em média, 80 cortadores.” De 2000 a 2012, o número de trabalhadores com carteira assinada em todo o complexo sucroalcooleiro passou de 642.848 para 1.091.575 – um incremento global de 69,8%. Desagregando os dados, constata-se que o volume de empregos com carteira cresceu 205,2% nas destilarias de álcool e 153,93% nas usinas de açúcar. Mas o número de trabalhadores com carteira na cultura da cana-de-açúcar caiu 7,4%, de 356.986 para 330.710 empregados. A regressão setorial no emprego tem um aspecto positivo. “Cortar cana manualmente é um trabalho extenuante”, diz Márcia. O caráter penoso é ressaltado por outros pesquisadores. Segundo Maria Aparecida de Moraes Silva, professora aposentada da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Araraquara, “a vida útil de um cortador de cana não ultrapassa 15 anos: o trabalho acaba com a coluna, os punhos, os braços”.
Colheita manual em Olímpia (SP): trabalho extenuante que se encontra em processo de extinção
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Centro de Tecnologia Canavieira em Piracicaba (SP): avanços melhoraram condições, mas diminuíram postos de trabalho
des, de 2007. Para atenuar o problema do desemprego gerado pela mecanização, as federações patronais e de trabalhadores de São Paulo têm providenciado, de acordo com o último estudo da autora, cursos de treinamento e requalificação para 3 mil trabalhadores a cada ano. Também houve uma absorção de parte desses trabalhadores em obras de infraestrutura nas regiões Norte e Nordeste do país. GERAÇÕES
Para avaliar melhor o alcance das transformações, Márcia, Fabíola e Rocio utilizaram dados de fontes governamentais (Pnad e Rais) que permitem comparar as condições de trabalho e os níveis de escolaridade entre duas gerações de trabalhadores. Para evitar distorções na comparação com os demais setores agrícolas, não foram levados em conta os dados referentes aos empregados nas destilarias de álcool e usinas de açúcar. O cruzamento das informações revela que a renda média do chefe de família (a pessoa de referência na família, na denominação atual das estatísticas oficiais) no cultivo da cana era 46,5% maior que a renda média dos demais setores agrícolas. A escolaridade média é de cinco anos de estudo no ramo dos trabalhadores da cana, diante de quatro anos nos demais. Em comparação com seus pais, os filhos desses trabalhadores têm uma escolaridade média mais alta: 8,4 anos, no caso dos empregados na cana, e 8,1 anos, no restante do setor agrícola. Contudo, todos possuem uma renda menor que a auferida pelos pais (no caso da cana 14,2% menor, e para a agricultura em geral, 3,2% menor). Vários fatores influenciam os rendimentos dos trabalhadores, o que pode explicar por que os filhos, apesar de maior escolaridade, ainda ganham em média menos que os pais. Considerando os chefes de família, é possível notar ainda que, no setor da cana, 86,98% têm 86 z janeiro DE 2016
A maioria dos descendentes de empregados da cana se encaminha para o setor de serviços carteira assinada, ante apenas 34,23% nos demais setores agrícolas. Quando se comparam os descendentes, constata-se que 70,05% dos descendentes dos trabalhadores da cana têm carteira, em relação aos 49,31% dos filhos de trabalhadores dos demais setores. Observa-se portanto a influência dos pais nas condições de trabalho dos filhos, ou seja, o fato de a maioria dos trabalhadores da cana terem carteira assinada deve ter influenciado as escolhas dos seus descendentes. No caso dos filhos de trabalhadores agrícolas em geral, 43,2% seguem na agricultura; no dos filhos dos trabalhadores da cana, o percentual cai para 29,3%, indicando uma maior mobilidade para outros setores. A maior parte dos descendentes dos empregados no setor canavieiro encontra emprego no setor de serviços (35,3%). A indústria de transformação absorve 20,9%, a construção civil, 8,1% e a administração pública, 4,9%. Essa maior mobilidade social resulta provavelmente da influência do contexto familiar. “As condições da família influenciam muito as escolhas dos filhos”, explica Márcia. “As melhores condições de trabalho dos pais abrem a possibilidade de um emprego melhor para os filhos.” n Artigo científico MOR AES, M. A. D. et al. Socio-economic impacts of Brazilian sugarcane industry. Environmental Development. v. 16, p. 31-43, dez. 2015.
LÍNGUA y
A redescoberta da filologia Pesquisadores discutem questões teóricas para construir subsídios e embasar os estudos clássicos da área Márcio Ferrari
reprodução de painéis do museu da língua portuguesa eduardo cesar
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istoricamente, a filologia pode ser considerada uma espécie de ciência-tronco da qual se desenvolveram não apenas estudos como o da etimologia, mas também ciências modernas como a linguística e os estudos literários. De um ponto de vista estrito, a filologia é o estudo do texto, incluindo sua linguagem e seus aspectos literários, por meio da análise histórica de documentos escritos. Mas, à medida que aqueles ramos do conhecimento foram se tornando independentes, seu campo foi deixando de ter contornos claros. Em alguns casos, o próprio termo parou de ser usado. Em lugar de “filologia clássica” (que trabalha com textos da Antiguidade grega e romana), costuma-se usar no Brasil as expressões “letras clássicas” ou “estudos clássicos”. Hoje, em âmbito mundial, observa-se um esforço acadêmico de fortalecer os estudos filológicos repensando seu terreno teórico. No país, o principal polo dessas atividades está na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “A teoria da filologia ainda é pouco conhecida aqui, mas está em pleno desenvolvimento em países como a Alemanha”, diz a professora Isabella Tardin Cardoso, da área de estudos clássicos do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, que desde 2006 é pesquisadora e docente convidada do Seminário de Filologia Clássica da Universidade de Heidelberg (Alemanha), onde vem conduzindo estudos, cursos, palestras e workshops conpESQUISA FAPESP 239 z 87
juntos e em intercâmbio com o professor alemão Jürgen Paul Schwindt. Várias dessas atividades receberam apoio da FAPESP em forma de auxílio para organização de colóquios e para trazer pesquisadores do exterior. “É interessante observar que os estudos clássicos costumam ser vistos como uma área extremamente prática, até resistente à teoria”, diz Isabella. Seriam atividades “quase artesanais e desprovidas de princípios interpretativos”. Ela cita como exemplos de tarefas atribuídas à filologia clássica a identificação e colação de fragmentos textuais, a comparação e edição de textos antigos contidos em manuscritos, a suposição e identificação de lacunas, a contextualização das informações encontradas nesses documentos e sua tradução. “Essas práticas são bastante valorizadas também entre profissionais brasileiros.” FRAGMENTOS
Uma observação um pouco mais profunda, no entanto, desfaz a ideia de que essas atividades são desprovidas de intencionalidade ou subjetividade, como se pode inferir da escolha dos manuscritos a serem estudados ou no próprio processo de pesquisa ou tradução, quando o estudioso pondera o que privilegiar e o
É comum os estudos clássicos serem vistos como uma área muito prática e mesmo resistente à teoria
que deixar de lado. Entre os documentos escritos da Antiguidade, há um grande número de obras que chegaram aos dias de hoje incompletas ou em diferentes versões. Isabella cita, como exemplo, a tragédia Atreu, do dramaturgo e poeta latino Lúcio Ácio (170 a.C.-86 a.C.). “A ordem em que um estudioso edita os fragmentos segue certos princípios, conscientes ou não”, diz Isabella, que vem trabalhando com os fragmentos de Ácio e do orador e filósofo Cícero (106 a.C.-43 a.C.), também latino.
O latinista e professor do IEL-Uni camp Paulo Sérgio de Vasconcellos observa que não é só no Brasil que se dá pouca atenção à discussão de pressupostos teóricos da filologia clássica. “Um ilustre classicista, o escocês David West [1926-2013], pregava a seus alunos o abandono da teoria para ir diretamente aos textos, como se fosse possível tratar deles sem uma teoria, explícita ou implícita”, diz Vasconcellos. “Nos últimos tempos, assistimos a uma mudança na área: há um interesse cada vez maior em discutir as questões teóricas que embasam o trabalho dos classicistas, e o projeto ‘Teoria da filologia’, no caso brasileiro, é fundamental nesse processo.” O projeto, que propiciou em 2014 a fundação do Centro de Estudos de Teoria da Filologia, com sedes na Unicamp e em Heidelberg, tem Isabella e Vasconcellos como coordenadores no Brasil, e Schwindt e Melanie Möller (Freie Universität Berlin), na Alemanha. Participam ainda pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Universidade de Budapeste (Hungria). A identificação, o estudo e o questionamento dos pressupostos envolvidos nas práticas usuais dos filólogos são o campo da teoria da filologia, que pode ser considerada uma epistemologia desse campo do saber. “A perspectiva epistemológica é indispensável se não quisermos ficar de fora de toda narrativa moderna nas artes e humanidades”, afirma Schwindt, um dos pioneiros dessa área na Alemanha. “A teoria da filologia examina o modo como nos
reprodução de painéis do museu da língua portuguesa eduardo cesar
relacionamos com os textos, e a ênfase das minhas pesquisas está em como encontramos neles algo que é similar àquilo que nos leva, como primeiro impulso, a conhecê-los.” A fim de explorar e desenvolver a teoria da filologia, os grupos de intercâmbio pensaram num possível dicionário de conceitos importantes na área, mas não os mais óbvios, como “texto” e “autor”. Passou-se em seguida à ideia de tematizar não mais tais conceitos e sim palavras que “normalmente são apresentadas como tendo significado evidente”. Entre muitos outros, foram estudados os termos “clássico”, “conhecimento” e a própria palavra “filologia”. Nasceu daí o projeto bilíngue e binacional “Palavras para uma teoria da filologia”, com financiamento de instituições de fomento alemãs, como a DFG e Alexander von Humboldt, em andamento desde 2013. Um livro bilíngue homônimo deverá ser lançado em 2016 pela editora Winter Universitätsverlag, de Heidelberg. Schwindt vê o projeto como o pontapé inicial de um trabalho de mapeamento e até de redefinição, quando necessário, dos conceitos e termos que podem se relacionar à filologia. “Nesses estudos, fenômenos que tradicionalmente não estão associados à seara da filologia, como temporalidade, reconhecimento, ordem e subversão, são colocados num vínculo substancial com o trabalho filológico”, observa o professor alemão. Isabella ficou responsável pelo estudo da palavra “efemeridade”. “Reflito sobre como esse termo está presente no
vocabulário filológico e de que modo se conjuga com a própria efemeridade do conhecimento, sem a qual não se pode pensar, por exemplo, a noção de progresso, um princípio das ciências modernas”, diz a pesquisadora. IMITAÇÃO
Pesquisadores da Unicamp e da Universidade de Heidelberg criaram um projeto que repensa a filologia a partir de palavras escolhidas
O projeto foi precedido de outros, a começar pelo ensaio de Isabella intitulado “Teatro do mundo: filologia e imitação”, incluído no livro Was ist eine philolo gische Frage? (O que é uma questão filológica?), que Schwindt organizou para a editora alemã Suhrkamp, uma das mais tradicionais da Europa. “No capítulo, trato de um conceito importante para os estudos filológicos antigos e modernos, o de imitação”, conta Isabella. “Recorri à obra teatral A vida de Galileu, de Bertolt Brecht, e utilizo a metáfora do ‘teatro do mundo’ para observar mais de perto a imitação e o fazer de conta que ela envolve, como parte das ciências em geral e da filologia em particular.” A metáfora do teatro como representação do mundo ou da vida tem presença recorrente na literatura e na filosofia ocidentais e, na visão de Isabella, é um recurso necessário à ciência para suas formulações e desenvolvimentos, como se o texto científico fosse “uma imitação do próprio objeto de estudo”. Dando continuidade à comparação entre ciência e arte, Isabella escreveu um texto sobre o termo “ilusão”, editado em forma de livro para a Universidade de Viena (Áustria), Trompe l’oeil: Philologie und Illusion (Trompe l’oeil: Filologia e pESQUISA FAPESP 239 z 89
ilusão), título referente à expressão francesa que identifica a técnica de pintura que dá impressão de profundidade em imagens bidimensionais. Intertextualidade
A pesquisadora observa que, ao contrário do que costumava ocorrer nos estudos clássicos entre os séculos XIX e XX, a imitação, na Antiguidade e no Renascimento, era um procedimento aceito e enaltecido na literatura, e funcionava como numa espécie de competição. Ela exemplifica com a descrição de um “mundo dos mortos” em Homero, Virgílio, Dante e Boccaccio. Uma referência moderna e autoirônica a esse hábito foi a definição dada por Ariano Suassuna a sua comédia O santo e a porca (1957) como uma “imitação nordestina de Plauto”. Outro aspecto revelador do estudo da imitação é o hábito, entre pesquisadores, de procurar “imitar a intenção do autor”. Para isso, até meados do século XX, na falta de informações históricas, costumavam-se admitir “dados” sobre a vida de escritores que foram deduzidos a partir do estilo. Assim, “Plauto era pobre e se dirigia para um público mais simples” ou “Catulo escrevia seus poemas para uma namorada”. Isabella ressalta que hoje as metodologias questionam tal foco no “autor”, mas não deixam de
Professor alemão considera o Brasil um país propício para a pesquisa científica das estruturas da filologia
lado a imitação de seu objeto de estudo, quer do texto (seu estilo e lógica), quer do público que o texto teria na época em que foi produzido. Estudos aparentados e pioneiros vêm sendo realizados por Vasconcellos no campo da intertextualidade, a análise de dois ou mais textos, de modo a revelar novos aspectos sobre eles. “Todo latinista sabe que a literatura da antiga Roma mantém um diálogo constante e complexo com a literatura grega e também internamente”, relata o pesquisador. “No passado, o filólogo simplesmente se contentava em mencionar as passagens
dos outros autores. A teoria intertextual veio sofisticar esse estudo comparativo, mostrando um processo de geração de sentidos.” Vasconcellos, ao lado de Patricia Prata, também professora do IEL-Unicamp, coordena uma equipe que está traduzindo para o português “textos fundamentais sobre intertextualidade nos estudos clássicos”, entre eles Arte alu siva, do italiano Giorgio Pasquali, e Nos ombros de gigantes: Intertextualidade e estudos clássicos, do inglês Don Fowler. Para Isabella, a repercussão obtida por todos esses trabalhos comprova a necessidade de refletir sobre a prática da filologia. Segundo ela, o projeto “Palavras para uma teoria da filologia” estimulou um grupo binacional de especialistas a se reunir em torno de algumas das questões centrais que cercam essas práticas. Schwindt descobriu vantagens na parceria com pesquisadores brasileiros. “Ficou claro para mim que a perspectiva científica no estudo das estruturas da filologia podem desenvolver-se muito melhor num contexto acadêmico não exposto à carga de influências ideológicas que moldou nosso trabalho na Europa”, avalia. Para ele, a intensidade das viagens de estudiosos dos dois países motivadas pelo interesse na teoria da filologia é prova de que há um terreno fértil para ambos os lados. n
memória
O legado de um monge invisível Ignorados no século XIX, experimentos de Gregor Mendel com wellcome images / wikimedia commons
ervilhas deram origem à genética Maria Guimarães
Mosteiro no início dos anos 1860: Mendel contemplando uma flor e Napp, à sua frente, com crucifixo
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á 150 anos, em 1866, foi publicado um trabalho que ficou conhecido como a base da genética: “Experimentos em hibridização de plantas”, de Gregor Johann Mendel. No ano anterior, em fevereiro e março de 1865, esse monge da Morávia (à época parte da Áustria, hoje República Tcheca) apresentara seu trabalho em duas sessões da Sociedade de Pesquisa Natural de Brünn, cidade hoje conhecida como Brno. Suas conclusões foram recebidas com uma indiferença que em nada sugeria o reconhecimento que viria mais tarde. Mendel passara sete anos cultivando quase 30 mil plantas de ervilha, cujas partes reprodutivas ele dissecava minuciosamente para obter os cruzamentos controlados que lhe permitiriam entender como características simples, como cor das flores e formato das sementes, eram transmitidas de uma geração a outra. Os experimentos lhe permitiram inferir PESQUISA FAPESP 239 | 91
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Mendel não ter sido reconhecido: era um monge concentrado em cultivar ervilhas, que apresentou seus resultados em palestras numa sociedade científica pequena e os publicou nos anais da mesma sociedade, com distribuição limitada. Também é provável que estivesse à frente de seu tempo. “Ainda não se usava estatística na biologia”, explica o professor da Unesp. A matemática usada para analisar os resultados dos cruzamentos das ervilhas era de difícil compreensão para a comunidade interessada em hibridização de plantas naquela época. Além disso, um outro assunto dominava a cena naquele mesmo momento – Charles Darwin publicara seu Origem das espécies poucos anos antes, em 1859. Darwin fazia parte daqueles a quem Mendel enviou sua publicação, que aparentemente não foi lida. Após sua morte, foi encontrada na biblioteca do britânico com as páginas ainda unidas como saíam da gráfica. Mendel morreu em 1884, aos 63 anos, sem ter encontrado quem desse importância a seu trabalho. científica com sua aluna de Apenas na virada para o mestrado Caroline Batisteti, século XX, os botânicos em artigo publicado em 2010 europeus Hugo de Vries, na revista Filosofia e História Carl Correns e Erich da Biologia. Ele explica que Tschermak-Seysenegg se Mendel é um exemplo de aproximaram dos mesmos prematuridade científica resultados e descobriram porque suas conclusões o estudo publicado mais não se conectavam com o de três décadas antes. pensamento do período. O zoólogo William Bateson Mas o pesquisador não está se encarregou de difundir convencido de que seja o trabalho e dar crédito a possível lançar esse olhar seu autor, providenciando ao passado de forma isenta. a publicação do texto “A questão da prematuridade traduzido para o inglês, é muito calcada no que nos em 1901, na revista Journal interessa hoje”, afirma. of the Royal Horticultural Para Caluzi, outros fatores Society. Foi aí que, de fato, contribuíram para o fato de nasceu a genética. n Selos lançados em agosto de 2015 em Portugal celebram a efeméride das descobertas de Mendel
A meta mais sublime do êxtase terreno,/ A de observar, quando me erguer de minha tumba,/ Minha arte florescendo pacificamente/ Entre os que vieram depois de mim”. A fama veio tardia, quando ele de fato já estava na tumba. Uma pergunta recorrente é por que as descobertas de Mendel foram ignoradas. O físico e historiador da ciência João José Caluzi, do campus de Bauru da Universidade Estadual Paulista (Unesp), debruçou-se sobre o conceito de prematuridade
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a existência de fatores recessivos e dominantes, que funcionam de acordo com duas leis da hereditariedade. A Lei da Segregação afirma que cada indivíduo recebe dois fatores dos pais, mas transmite apenas um para cada descendente. A Lei da Segregação Independente, por sua vez, diz que cada característica é herdada independentemente das outras. Essa teoria explica por que características parentais que desaparecem nos descendentes podem reaparecer na geração subsequente. O trabalho foi feito numa estufa no mosteiro agostiniano de Santo Tomás, em Brünn, onde Mendel era monge menos por vocação religiosa do que por ímpeto científico. Filho de lavradores, o jovem Johann não tinha inclinação para a labuta agrícola. Mas, sem recursos financeiros, as oportunidades de estudo eram parcas e restritas à esfera religiosa. O diretor do mosteiro que o acolheu, o abade Cyril Napp, pretendia criar um centro de excelência no conhecimento e estimulava a investigação científica entre seus monges. Ali Johann foi rebatizado como Gregor e encontrou o tempo e o espaço para dedicar-se ao trabalho aparentemente singelo que, para ele, nada tinha de modesto. De acordo com o livro O monge no jardim, de Robin Marantz Henig (editora Rocco, 2001), Mendel almejava a glória, como sugere um poema que escreveu quando adolescente em homenagem a Gutenberg, o inventor da prensa móvel: “Possa o poder do destino me conferir/ O supremo êxtase da felicidade terrena,/
Arte
A matemática da música Jônatas Manzolli produz espetáculos multissensoriais criando modelos de programação para computadores |
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brasileiro Jônatas Manzolli tem passado boa parte de seus dias num espaço de imersão no Instituto de Sistemas Autônomos e Neurorrobótica da Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona, manipulando teclados de computador. Com eles, produz uma profusão integrada de cores, formas e sons – um espetáculo para os sentidos que cobre as paredes e enche o ambiente com oito canais de áudio. Manzolli não é neurocientista ou engenheiro, mas músico e matemático. “Para meus alunos, eu me considero um compositor e também alguém que faz tradução entre as duas áreas, como um pêndulo”, diz Manzolli, professor do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde coordenou também o Núcleo Interdisciplinar de Comunicação Sonora (Nics).
Márcio Ferrari
Em Barcelona, Manzolli desenvolveu o sistema CromaCronos (“croma de cor e cronos de tempo ou música”), que permite suas composições multissensoriais. No momento ele se dedica “à parte criativa”, uma vez que a parte técnica está resolvida, com suas representações matemáticas precisas e sistemas algorítmicos. “Eu posso programar o computador e montar uma espécie de instalação sonora ou ir para o palco e interagir com a máquina como um instrumento musical, em tempo real”, descreve Manzolli. É o que ele vai fazer este ano na apresentação intitulada Descobertas, “um concerto multimodal interativo com a Orquestra Sinfônica da Unicamp”, durante as comemorações dos 50 anos da universidade. O laboratório em que o músico trabalha promove “uma abordagem contemporânea para sis-
Manzolli comanda o computador no laboratório em Barcelona, produzindo som e imagem
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temas complexos”, neste caso os mecanismos do cérebro humano. “Em vez de fazer simulações gráficas no computador, o próprio ambiente é um simulador no qual podemos entrar e imergir”, diz Manzolli. Os neurocientistas que trabalham no laboratório usam o sistema para compreender, por meio das imagens e sons, impulsos gerados não só pela ação direta de quem opera o computador, mas também por sinais inconscientes, como a respiração e a condutância elétrica da pele. O músico aproveita esses recursos para explorar possibilidades artísticas. “Embaixo do sistema há toda uma camada de representação matemática que se traduz em sons e imagens e, quando eu toco, ela responde a meus estímulos, criando um diálogo”, descreve Manzolli. circuitos cerebrais
A pesquisa de Manzolli no instituto espanhol, que tem apoio da FAPESP e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), incluiu a colaboração num projeto que utiliza jogos e realidade virtual para reabilitar pessoas que sofreram danos cerebrais, como derrames. “O sistema cria estímulos visuais e sonoros e propõe que a pessoa interaja com a representação do corpo na realidade virtual”, explica Manzolli. “Ao fazer isso, o paciente é levado a reconectar ou reconduzir circuitos cerebrais que foram danificados.” Um dos resultados do projeto será um livro coescrito pelo músico brasileiro, pela neurologista espanhola Anna Mura e pelo neurocientista suíço Paul Verschure, com quem trabalha desde 1998. O gosto pela música e pela matemática vem de longe na história de Manzolli, que já tocava piano aos 7 anos de idade. Na hora de prestar vestibular, ele escolheu matemática. Chegando à metade do curso na Unicamp, entediado com a aridez teórica dos cálculos, tomou conhecimento da obra do grego Iannis Xenakis (1922-2001). O músico e arquiteto compunha obras instrumentais e eletrônicas com um sistema desenvolvido por ele mesmo. Para Xenakis, diz Manzolli, “a música era uma nuvem de notas e texturas complexas e, como tal, deveria ser criada com modelos estocásticos”, isto é, indeterminadamente, por meio de variáveis aleatórias. Entusiasmado, o jovem estudante de matemática prestou vestibular para o curso de Música do Instituto de Artes da Unicamp e entrou. Na época eram possíveis matrículas simultâneas em dois cursos da universidade. Escolheu estudar composição e regência e se aproximou dos professores que trabalhavam com experimentação eletroacústica e música contemporânea. Os computadores de boa qualidade eram raros no Brasil naquele período, meados dos anos 1980. Manzolli criava num sintetizador analógico (“uma joia”) e brinca que também “compunha a 94 | janeiro DE 2016
Cores e formas geradas por impulsos conscientes e inconscientes, como a respiração e a eletricidade da pele do músico
música no pescoço”: pendurava na nuca pedaços de fita magnética de um gravador de quatro canais que recortava e misturava os sons entre si. Depois de graduado, com mestrado em Matemática e doutorado em Composição Musical, ingressou como professor na Unicamp em 1994, onde logo se juntou ao Nics, que hoje considera “a única razão por que tudo o que eu estou fazendo dá certo”. Ele se refere à capacidade de realização do grupo graças à sua estrutura interdisciplinar, onde cabem estudantes de diversas origens, entre elas a música, a engenharia, a matemática e a dança – parte importante da obra de Manzolli se utiliza de interfaces gestuais para a composição musical. Ao contrário do que pode fazer supor o uso mais convencional e popular do computador na música, a criação de partituras é apenas parte das possibilidades sonoras oferecidas pela máquina. O músico pode trabalhar com a própria programação no momento da execução. “Eu costumo dizer que todo processo de composição é uma improvisação”, diz Manzolli. “Como a música é um fenômeno no tempo, existe sempre um aspecto que está no aqui e agora. Com o computador, o músico pode expandir ou contrair a presença desse aspecto como ele quiser.” n
resenhas
Etnologia francesa no Brasil e na África Guilherme Simões Gomes Júnior
H
eduardo cesar
A viagem como vocação: itinerários, parcerias e formas de conhecimento Fernanda Arêas Peixoto Edusp 288 páginas | R$ 45,00
á um desenho explícito na disposição dos capítulos de A viagem como vocação, livro de Fernanda Arêas Peixoto que apresenta seis estudos: dois que tratam exclusivamente de Roger Bastide, dois de Gilberto Freyre, um que mescla roteiros de Pierre Verger e Bastide e, por fim, um dedicado a Michel Leiris. Nesse quadro, o último parece destoar. De um lado, porque trata de uma viagem por acontecer, isto é, de um artigo – “L’oeil de l’ethnographe” – que Leiris escreve na França antes de partir para a Missão Dakar-Djibouti; de outro, porque o Brasil está ausente, enquanto nos cinco estudos que o precedem é o território visado e percorrido ou o lugar de onde se parte para, em outros quadrantes, ser reencontrado. Mas há um desenho oculto no qual o ensaio sobre Leiris passa a fazer sentido (o leitor poderia começar por ele). Porque na linha do tempo trata da experiência mais recuada e diz respeito ao momento decisivo (1930) no qual a etnologia francesa começa a sair de seus gabinetes e passa a ter por base etnografias de pesquisadores também franceses. Os outros ensaios tratam de viagens posteriores. As fontes no livro – literatura científica, mapas, artigos de jornais, cartas, desenhos, fotografias – são examinadas com senso de detalhe. Que o etnógrafo seja também um fotógrafo é fato recorrente, mas cabe observar que são profissões com fins distintos. Mas há uma borda na qual se embaralham, trata-se do encontro que se dá no gênero híbrido que é a narrativa de viagem. A serviço de uma revista ilustrada, o fotógrafo anda mais rápido e tem a segurança de quem quer e sabe fazer boas fotografias para encantar um público leigo; já o etnólogo sabe que boas fotografias não são suficientes para convencer uma comunidade científica. Verger, o fotógrafo, aproxima-se da etnologia por meio de escritos de Bastide; enquanto este renova a sua perspectiva etnológica aceitando os desafios propostos pelo fotógrafo para encontrar o Brasil na África. Numa observação pessoal de Bastide para Verger, o etnólogo diz ao fotógrafo que ele “se mantém ao nível dos documentos, é preciso se valer deles”, como a afirmar que o documento é pouco sem o recurso ao rigor da ciência.
Já a relação de Leiris com o fotógrafo e viajante William Seabrook é distinta. Primeiro, porque Leiris não era ainda etnólogo, mas apenas um letrado que viu na etnologia a possibilidade de escapar de suas crises e desorientação naquele ambiente francês que misturava vanguarda surrealista, psicanálise, arte negra e frequentação dos cursos de Marcel Mauss. A intuição de Leiris anterior à viagem e confirmada no retorno é de que o olho do etnógrafo não é o mesmo do fotógrafo, porque é preciso superar as “visões equivocadas construídas pelas ‘lentes deformadoras’ da cultura europeia”. Se essa perspectiva crítica, que parece ser comum a Leiris e Alfred Metraux (que frequentou os mesmos círculos), levou o último para o rigor da ciência, em Leiris a etnologia tem forte carga reflexiva. Ao mesmo tempo que é capaz de dissipar fantasmagorias, é um empreendimento de reconstrução de si. Se Seabrook foi fundamental no deslanchar do projeto africano, no retorno Leiris afasta-se dele. Vistos pela chave interpretativa do último estudo, aqueles que no início são dedicados a Bastide (sobre as cidades e o candomblé barroco) ganham nova luz. Não é possível entender as escolhas interpretativas de Bastide sem levar em conta o trânsito entre etnologia e vanguardas estéticas na França, sobretudo porque a visão do barroco que elabora é em grande parte filtrada pelas lentes do surrealismo. Nesse segundo desenho, no qual a escola francesa de sociologia e etnologia é uma espécie de sujeito oculto, é Gilberto Freyre quem destoa. Há pouco espaço para tratar dele, mas cabe uma palavra. Enquanto as viagens de Leiris, Bastide e Verger são carregadas de reflexividade e desejo de descoberta, a viagem à África de Freyre não passa de um périplo de autoafirmação, suas fotos entre monumentos e nativos estão carregadas de uma perspectiva imperial. Freyre, no auge de sua consagração, confirma o que já sabia. Com o artigo “Lévi-Strauss no Brasil: a formação do etnólogo” (1998) e o livro Diálogos brasileiros (2000), A viagem como vocação (2015) forma um conjunto incontornável de excelentes estudos sobre a escola francesa no Brasil e na África. Guilherme Simões Gomes Júnior é professor do Departamento de Antropologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
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Memórias médicas de surtos e epidemias
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Investigação de surtos e epidemias no Brasil Guido Carlos Levi e Vicente Amato Neto (organizadores) Segmento Farma Editores 56 páginas Informações: 3093-3300
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e tempos em tempos o mundo entra em alerta por risco de pandemias de patógenos emergentes (novos) ou reemergentes (conhecidos). Assim foi com a pandemia da peste negra que varreu metade da população da Europa no século XIV, a gripe espanhola que em 1918 matou mais gente do que a Primeira Guerra Mundial, e mais recentemente o HIV e a dengue. Algumas ameaças frustraram-se por razões não completamente compreendidas ou por ação dos governos locais, tais como a Sars (Síndrome Respiratória Aguda Grave, na sigla em inglês), o vírus H5N1 e a Mers-Cov (Síndrome Respiratória por Coronavírus do Oriente Médio). Outras estão chegando e já causam enorme preocupação, como a febre Chikungunya e o Zikavirus. A história dos surtos e epidemias no Brasil é rica e fascinante. Muito bem documentada é a história de nosso médico maior, Carlos Ribeiro, Justiniano das Chagas (1979-1934), que em 1909 foi enviado para investigar um suposto surto de malária no interior de Minas Gerais e acabou por descobrir uma doença nova que hoje leva seu nome. Ou a surpreendente descoberta do norte-americano Raymond Shannon, que identificou larvas do Anopheles gambiae, o mais competente vetor da malária na África, em uma poça d’água em Natal, em 1930. Histórias interessantíssimas, mas que sempre foram contadas muitos anos depois da morte de seus protagonistas. Foi portanto com duplo prazer que li o livro de meus mestres Guido Carlos Levi e Vicente Amato Neto Investigação de surtos e epidemias no Brasil. Primeiro por se tratar de dois ex-professores meus de quatro décadas atrás; e, segundo, porque se trata de histórias verídicas narradas por seus protagonistas. O livro não é uniforme, nem no estilo, nem nos temas, nem na profundidade em que os assuntos são tratados. São memórias por vezes muito remotas, com mais de 50 anos de história, por vezes muito recentes; alguns temas são duplicados, outros quase vinhetas, mas todas elas muito interessantes. Percebe-se que são experiências pessoais que tiveram impacto significativo na vida profissional de seus autores. Longe de ser um defeito, essa aparente heterogeneidade é reflexo da maior qualidade do livro; trata-se de uma obra
despretensiosa, cujo objetivo explícito no prefácio é a narrativa que não deveria se ater exclusivamente aos aspectos médicos, mas que levasse em conta o pano de fundo social e humano. Os textos, dessa forma, são depoimentos pessoais dos autores, que escolheram situações inusitadas, são muito instrutivos e, às vezes, até mesmo engraçados. A leitura é leve, fácil e demonstra a grande experiência dos autores em suas diversas subespecialidades da infectologia. A única coisa da qual senti falta foi uma página final com a inserção institucional dos oito autores dos textos. Em 1967 o então cirurgião-geral do Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos, William Stewart, teria pronunciado: “É chegada a hora de fecharmos o livro das doenças infecciosas”. Mesmo que não haja evidências de que ele teria de fato dito tal frase, ela reflete o espírito da época. A realidade é que ainda hoje uma em cada quatro pessoas que morrem no mundo por ano tem como causa a Aids e/ou malária e/ou tuberculose. A dengue põe em risco metade da população mundial e a malária ainda mata uma criança por minuto, quase todas na África. Estamos longe de poder cantar vitória sobre as doenças transmissíveis e o Brasil tem papel primordial no treinamento de especialistas nessa área. Assim, peço licença a meu velho mestre Amato para aproveitar o “resmungo” de uma de suas historinhas neste livro. Nossas universidades têm hoje uma certa obsessão em mandar alunos para estágio no exterior. No caso da medicina, são os alunos estrangeiros que querem vir para o Brasil! Espero que esse agradável livrinho faça sucesso e, principalmente, que possa inspirar nossos alunos a reconhecer que eles têm muito a ganhar com a experiência local em moléstias infectocontagiosas. Que ninguém se iluda; a próxima pandemia (provavelmente de gripe) é apenas uma questão de tempo. É essencial que o mundo tenha um número suficiente de especialistas experientes e preparados. O Brasil terá muito com que contribuir. Eduardo Massad é professor do Departamento de Medicina Legal da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
eduardo cesar
Eduardo Massad
carreiras
Tendências
Força de trabalho digital
ilustraçãO daniel bueno
Entrevistas com 228 executivos mostram o comportamento das empresas em relação à robótica e à inteligência artificial O mercado de trabalho corporativo está cada vez mais exigente em profissionais com conhecimentos em robótica e inteligência artificial, áreas que utilizam softwares para permitir, por exemplo, aos computadores reconhecer padrões e fazer associações de forma automática. Essa tendência é abordada no relatório Preparing for the digitisation of the workforce, realizado pela revista inglesa The Economist com o patrocínio da Everis, consultoria de origem espanhola. Foram entrevistados 228 executivos em empresas nos Estados Unidos, Europa, América Latina e Ásia. Do total, 80% acreditam que a capacidade de usar ferramentas digitais será um fator fundamental para seu sucesso no futuro. Mas enquanto 58% dos pesquisados criaram uma estratégia para a digitalização do trabalho, desses, apenas 23% implementaram essa tarefa.
Entre as barreiras para o avanço da digitalização da força de trabalho está a alta demanda de profissionais com boa formação, como pesquisadores. Entre os entrevistados, 82% concordam que sua organização precisa transformar a forma de gerenciar o trabalho usando a tecnologia digital. Entre os empecilhos está a ausência de conhecimentos técnicos por parte dos profissionais. Na robótica, o uso mais comum é na linha de produção, mas cresce o uso de robôs virtuais no gerenciamento de dados, permitindo que empregados qualificados possam concentrar atenção onde são mais necessários. Robôs virtuais captam dados de negócios da empresa para organizar as informações de forma mais eficiente e ágil. Na área da inteligência artificial, 43% dos entrevistados dizem que sua
organização está fazendo uso da tecnologia. Aplicação mais comum é na análise e mensuração de dados. “O uso de robótica e inteligência artificial é uma tendência na economia. Hoje há uma incorporação gradativa de ferramentas computacionais e de informática”, diz Renato Pedrosa, professor do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e um dos coordenadores adjuntos da FAPESP na área de programas especiais. “Robótica é uma área em que os alunos da graduação na engenharia das boas universidades são razoavelmente bem informados, o mesmo acontece com os alunos de ciência da computação em relação à inteligência artificial. Em programas de pós-graduação avança-se em algumas das técnicas de forma mais específica, o que resulta em melhor aproveitamento nas áreas”, diz o professor Roberto Marcondes, do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME-USP) e coordenador adjunto da área de ciências exatas e matemática da FAPESP. Como fica o profissional que é também pesquisador, mas de outra área, que precisa de conhecimentos em robótica e inteligência artificial no seu trabalho dentro da empresa? “Esse profissional precisa entender, no mínimo, quais os modelos matemáticos e os algoritmos que são implementados nos softwares, que estão por trás dos sistemas que se quer implantar ou que estão disponíveis no mercado”, diz Marcondes. “Penso que se de um lado há a substituição de algumas atividades por máquinas, do outro há uma ampliação do setor de serviços”, diz Pedrosa. “Precisamos de gente para organizar o grande volume de informações e dados gerados pelos sistemas digitais”, completa. n Marcos de Oliveira e Bruno de Pierro PESQUISA FAPESP 239 | 97
Consultoria
Mercado valoriza profissionais com pós-graduação
Nas águas do mundo
A instabilidade econômica do país não impediu que profissionais com mestrado tivessem aumento médio de salário de 21,4% no primeiro semestre de 2015 em comparação ao mesmo período de 2014. A constatação está num estudo da consultoria Produtive, de São Paulo, que analisou a remuneração de executivos recolocados no mercado pela empresa nas regiões Sul e Sudeste do país. Enquanto em 2014 a média salarial desses profissionais era de R$ 13,8 mil, em 2015 subiu para R$ 17,5 mil. O estudo reafirma que é um diferencial cada vez maior no mercado de trabalho ter mestrado ou doutorado. A análise da consultoria indica que as empresas precisam de profissionais integrados com o mercado e a academia. Outro ponto destacado é que profissionais com esse perfil têm capacidade de gerar fontes alternativas de renda, além das funções tradicionais do cargo. Além disso, eles podem investir todo o tempo disponível na carreira na empresa ou conciliar o trabalho corporativo com aulas na academia como professor, principalmente em universidades privadas. Os executivos com pós-graduação sem o grau de mestrado ou doutorado tiveram aumento de 12,4% na comparação com 2014. A média dos salários passou de R$ 9,3 mil para R$ 10,6 mil. Aqueles que possuem apenas a graduação tiveram aumento de 4,6% com a média dos salários pulando de R$ 5,8 mil para R$ 6 mil. A consultoria analisa que o estudo reflete a valorização dos profissionais dentro da tendência atual de reconhecimento da hiperespecialização. A exigência é por profissionais focados com formação sólida, conhecimento e profundidade teórica. n M. O.
uma bolsa do programa Ciências sem fronteiras, do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), na modalidade que busca atrair pesquisadores para o país, e tornou-se professor visitante na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). No final de 2013 participou de um concurso público para a vaga de professor na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). “Eu nunca tinha participado de concursos e Português da cidade do Porto, não conhecia São Carlos, tinha o biólogo Hugo Sarmento, aos 37 anos, já morou em quatro países. apenas ouvido colegas recomendar a universidade, a cidade e também Formado na Universidade do a FAPESP”, diz Sarmento. No Minho, em Portugal, ele fez início de 2014, ele já era professor o doutorado na Universidade no Departamento de Hidrobiologia de Namur, na Bélgica, onde ficou da UFSCar, ano em que teve por seis anos também como aprovado um projeto do Programa responsável por projetos de Jovens Pesquisadores em Centros pesquisa. Nesse período passou Emergentes da Fundação para várias temporadas em países africanos estudando o plâncton de estudar a biodiversidade e a genética de microalgas e plânctons. grandes lagos como o Kivu e o “Queremos explorar essa Tanganica. “Esse trabalho me levou diversidade de microrganismos a ficar por mais de três meses por em ecossistemas aquáticos e ano em países como Ruanda e República Democrática do Congo”, identificar, por exemplo, aqueles diz Sarmento. Antes do doutorado, que têm toxinas e podem ser morou por nove meses em Angers, patógenos, e também mapear a distribuição de genes com possível na França, para estagiar em uma aplicação futura em biotecnologia. empresa de consultoria ambiental “Na expedição Tara Oceans com bolsa da União Europeia. encontramos mais de 35 mil Depois fez estágio de espécies de bacterioplâncton no pós-doutorado no Instituto de oceano e descrevemos mais de Ciências do Mar em Barcelona, 40 milhões de genes.” Ele colabora na Espanha, por cinco anos. com o professor Armando Vieira, Nesse período visitou outros também da UFSCar, em um países, inclusive o Brasil, durante projeto para enriquecer e as expedições Tara Oceans e manter na universidade uma Malaspina para coleta e pesquisa de plânctons em todos os mares do das maiores coleções de microalgas do mundo. “Encontrei planeta, entre 2009 e 2012. na UFSCar um excelente Casado com uma brasileira que ambiente e infraestrutura para a trabalha com comércio exterior pesquisa e acredito que poderei e que ele conheceu há 15 anos na França, Sarmento tinha ideia de se contribuir para o avanço da ciência na minha área.” n fixar no Brasil e se candidatou a M. O.
98 | janeiro DE 2016
PERFIL
arquivo pessoal
Biólogo português que estudou e trabalhou em quatro países agora é professor na UFSCar
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