Carros elétricos

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Cana transgênica desenvolvida no país combate praga

agosto de 2017 | Ano 18, n. 258

Técnica de edição de genes corrige mutação em embriões humanos Atlas indica áreas prioritárias para explorar energia solar Vida pode ter surgido em terra firme há 4 bilhões de anos

Automóveis movidos a eletricidade deverão representar 16% da frota mundial até 2030. No Brasil, a difusão ainda é pequena por causa do preço e da ausência de rede de recarga

carros

Videoativistas da periferia mostram sua própria visão de São Paulo Entrevista

O antropólogo Eduardo Brondizio destaca a vulnerabilidade da Amazônia urbana

létricos

> Biossensor faz diagnóstico de dengue em 20 minutos


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A beleza do conhecimento

Sua pesquisa rende imagens bonitas? Mande para imagempesquisa@fapesp.br Seu trabalho poderá ser publicado na revista.

Movimento rastreado Mais de 2 mil robalos que nadam pela bacia do rio Ribeira, que inclui o estuário de Cananéia, no sul do litoral paulista, têm um curioso pino amarelo no dorso. Trata-se de uma marcação feita pelo grupo do biólogo Domingos Garrone Neto, que permite o reconhecimento dos peixes quando são recapturados. Por meio de expedições de coleta e da colaboração de pescadores, a equipe já verificou deslocamentos entre São Paulo e Paraná, estados com legislação distinta para a pesca dos robalos, e investiga o uso das águas dos rios e do mar por esses animais. Imagem enviada por Domingos Garrone Neto, professor no campus de Registro da Universidade Estadual Paulista (Unesp)

PESQUISA FAPESP 258 | 3


agosto  258

POLÍTICA DE C&T

CAPA Automóveis elétricos devem representar 16% da frota mundial em 2030 p. 18

34 Atlas Estudo indica áreas favoráveis para explorar a energia solar no Brasil 38 Indicadores Relatório revela que a FAPESP manteve ritmo de investimentos em 2016 42 Obituário A contribuição de Maryam Mirzakhani, primeira mulher a ganhar a Medalha Fields

No Brasil, preço alto e falta de rede de recarga dificultam disseminação p. 22 Objetivo da indústria é aumentar a autonomia da bateria p.26

CIÊNCIA 50 Entrevista A física Yvonne Mascarenhas começou a usar difração de raios X para verificar estruturas moleculares nos anos 1960 54 Biologia Pesquisadores usam edição gênica para corrigir mutação em embriões humanos

55 Ecologia Peixes-limpadores do atol das Rocas conseguem alimento ao remover parasitas de peixes maiores 58 Geoquímica Experimentos com bactérias sugerem que a vida pode ter surgido em terra firme 62 Entrevista Nicholas Suntzeff, astrofísico norte-americano, mede a distância de galáxias nos confins do Universo 66 Astrofísica Comportamento caótico do plasma ajuda a explicar ciclo magnético de estrelas semelhantes ao Sol

80 Biotecnologia Cana-de-açúcar transgênica é aprovada para plantio no Brasil HUMANIDADES 88 Psicologia social Para Ecléa Bosi, memória é usada também para reconstruir e repensar o presente

TECNOLOGIA 68 Engenharia Biossesores portáteis facilitam o diagnóstico de doenças como a dengue 72 Pesquisa empresarial Stefanini investe em P&D para obter 85% de seu faturamento com soluções digitais 76 IBM é um dos mais produtivos centros de inovação do país

ENTREVISTA Eduardo Brondizio Antropólogo fala sobre a vulnerabilidade das cidades da Amazônia p. 28

p. 58


www.revistapesquisa.fapesp.br No site de Pesquisa Fapesp estão disponíveis gratuitamente todos os textos da revista em português, inglês e espanhol, além de conteúdo exclusivo

SEÇÕES 3 Fotolab

vídeos youtube.com/user/pesquisafapesp

6 Comentários 7 Carta da editora 8 Boas práticas Levantamento aponta frequência e gravidade de 60 condutas antiéticas ou duvidosas 11 Dados Dispêndios em P&D Medicina Exercícios podem deter a caquexia, inflamação que induz à perda de peso e agrava o câncer p. 44

Audiovisual Videoativistas da periferia de São Paulo mostram como veem a metrópole p. 82

Experimento reproduz fenômeno que pode ocorrer perto de buracos negros bit.ly/vAstrofbagno

12 Notas 90 Memória Etnógrafa Wanda Hanke viajou sozinha pela América do Sul nos anos 1930 para estudar indígenas 92 Resenha Vida caipira, de Pedro Ribeiro. Por Neusa de Fátima Mariano 94 Carreiras Saber coordenar grupos de pesquisa ajuda a criar uma agenda de trabalho sustentável 98 Classificados

Softwares colaboram nas inspeções de árvores das cidades bit.ly/vArvores

rádio  bit.ly/PesquisaBr Educador físico Fabio Bertapelli explica as novas curvas de crescimento para monitorar o peso e a altura de jovens com Down  bit.ly/PodcastDown

Foto da capa Léo Ramos Chaves


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Belas adormecidas

Sobre a nota “Nível do mar na costa brasi­ leira deve subir” (edição 256), tudo tende a ficar pior: destruição de ecossistemas inteiros, mudança nas correntes marinhas e bilhões de vidas perdidas. Esse cenário pode ainda ficar pior se nada fizermos.

José Joaquín Lunazzi

Cleide M. Fuhlendorf

pesquisa_fapesp

IFGW/Unicamp

Campinas, SP

Pesquisa Fapesp

Assinaturas, renovação e mudança de endereço Envie um e-mail para assinaturaspesquisa@ fapesp.br ou ligue para (11) 3087-4237, de segunda a sexta, das 9h às 19h Para anunciar  Contate: Paula Iliadis  Por e-mail: publicidade@fapesp.br Por telefone: (11) 3087-4212 Edições anteriores Preço atual de capa acrescido do custo de postagem. Peça pelo e-mail: clair@fapesp.br Licenciamento de conteúdo Adquira os direitos de reprodução de textos e imagens de Pesquisa FAPESP. Por e-mail: mpiliadis@fapesp.br Por telefone: (11) 3087-4212

6 | agosto DE 2017

Marcelo Prado Felice

Vídeos

Lindo trabalho, que traz o conhecimento de forma clara e objetiva (“A saúde das árvores urbanas”). Muito bom este vídeo. Esclarecedor. Ibirá Lucas

pesquisafapesp cartas@fapesp.br R. Joaquim Antunes, 727 10º andar CEP 05415-012 São Paulo, SP

Nível do mar

A respeito da reportagem “Artigos ador­ mecidos” (edição 256), não vejo sentido em avaliar o número de citações limitando a somente os últimos anos. Isso é querer obrigar a publicar sobre algo incremental do momento e não em pesquisa básica. O número total de citações mostra a trajetória sem limitações, se se quiser dividir pelo número de anos em atividade, até que poderia ser um critério mais razoável. Um fator que vem mudando a si­ tuação são as redes sociais de cientistas, nas quais se pode colocar livremente artigos sem que fiquem na clausura do acesso restrito.

Ciência sem Fronteiras

Custo alto com retorno perto do zero (“Ex­ periência encerrada”, edição 256). Mais uma ação populista sem nenhum controle.

Qual o status atual da saúde das árvores de São Paulo? As entrevistas foram genéricas e só se falou de projetos em andamento. Faltou mostrar resultados dos estudos dos grupos.

Fabrício Vilas Boas

Thais Mauad

R$ 13,2 bilhões? Com esse dinheiro dá para trazer quantos professores de fora do país para darem aula aqui? E financiar quantos projetos?

Muito importante a discussão do vídeo “Vale quanto pesa”. A indústria farma­ cêutica, por exemplo, depende desse padrão. Luzianderson Ramos

Matheus Grossi

O programa foi ótimo. O maior erro foi na execução. Mas ainda assim acredito que quem teve essa oportunidade poderá fazer a diferença. Eu fui bolsista do Ciência sem Fron­ teiras. Estou iniciando o doutorado em agosto e espero poder dar retorno de alguma forma à sociedade pelo investimento que recebi. Gustavo Anndré

Correção

Na reportagem “Na selva de pedra” (edição 255), a araponga é uma ave típica da Mata Atlântica, e não do Cerrado, como foi publicado.

Sua opinião é bem-vinda. As mensagens poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

A mais lida de julho no Facebook POLÍTICA

Experiência encerrada

54.387

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ilustração fabio otubo

Reportagem on-line


fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo

carta da editora

José Goldemberg Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior Carmino Antonio de Souza, Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, João Fernando Gomes de Oliveira, joão grandino rodas, José Goldemberg, Marilza Vieira Cunha Rudge, José de Souza Martins, julio cezar durigan, Pedro Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski, Suely Vilela Sampaio

A alternativa elétrica Alexandra Ozorio de Almeida |

diretora de redação

Conselho Técnico-Administrativo Carlos américo pacheco Diretor-presidente Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico fernando menezes de almeida Diretor administrativo

issn 1519-8774

Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Anamaria Aranha Camargo, Ana Maria Fonseca Almeida, Carlos Américo Pacheco, Carlos Eduardo Negrão, Fabio Kon, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Francisco Rafael Martins Laurindo, José Goldemberg, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Lucio Angnes, Luiz Nunes de Oliveira, Marie-Anne Van Sluys, Maria Julia Manso Alves, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner Caradori do Amaral, Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos diretora de redação Alexandra Ozorio de Almeida editor-chefe Neldson Marcolin Editores Fabrício Marques (Política de C&T), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência), Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores espe­ciais), Bruno de Pierro (Editor-assistente) revisão Alexandre Oliveira e Margô Negro arte Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos (Editora de infografia), Júlia Cherem Rodrigues e Maria Cecilia Felli (Assistentes) fotógrafos Eduardo Cesar e Léo Ramos Chaves Mídias eletrônicas Fabrício Marques (Coordenador) Internet Pesquisa FAPESP on-line Maria Guimarães (Editora) Rodrigo de Oliveira Andrade (Repórter) Jayne Oliveira (Redatora) Renata Oliveira do Prado (Mídias sociais) banco de imagens Valter Rodrigues Colaboradores Alexandre Affonso, Christina Queiroz, Daniel Almeida, Diego Freire, Domingos Zaparolli, Evanildo da Silveira, Haroldo Ceravolo Sereza, Igor Zolnerkevic, Maurício Pierro, Neusa de Fátima Mariano, Pedro Hamdan, Reinaldo José Lopes, Renato Pedrosa, Sandro Castelli, Yuri Vasconcelos, Zansky É proibida a reprodução total ou parcial de textos, fotos, ilustrações e infográficos sem prévia autorização Tiragem 25.400 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA FUSP – FUNDAÇÃO DE APOIO À UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP

Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo

A

busca por alternativas aos combustíveis fósseis ganhou ímpeto nos anos 1970, quando o mundo sofreu os efeitos de dois choques no mercado de petróleo. No Brasil, país de matriz energética maciçamente de origem hidráulica, o principal resultado desses esforços foi o desenvolvimento de veículos movidos a um biocombustível que se tornaria um diferencial brasileiro – o etanol. Nas últimas décadas, o interesse por outras fontes tem sido impulsionado por uma preocupação crescente: o aquecimento global. Carros elétricos são apresentados como uma alternativa amigável ao ambiente, mesmo quando alimentados com eletricidade gerada por termelétricas poluentes, por serem muito eficientes. O alto custo associado às baterias, cuja eficiência está ainda aquém do desejável, é um problema, assim como a necessidade de uma infraestrutura de abastecimento para que essa opção seja de fato viável. A reportagem de capa desta edição (página 18) oferece um panorama atual dos carros elétricos: os desafios tecnológicos, os diferentes tipos, o cenário internacional e as perspectivas no Brasil. No caso brasileiro, uma possibilidade seria o desenvolvimento de uma versão híbrida que aproveite as vantagens dos elétricos sem, contudo, descartar o etanol e a sua importância para a indústria automobilística e a economia. Para isso, será necessário um extensivo trabalho de pesquisa e desenvolvimento. Substituir carros poluentes por não poluentes é desejável, mas há outros fatores em jogo, como os congestionamentos urbanos e os investimentos necessários para as novas estruturas de distribuição de energia. No quesito sustentabilidade, avanços tecnológicos devem ser analisados levando-se em

conta o ciclo completo: a matéria-prima, o dispêndio energético e a emissão de poluentes na sua fabricação, sua eficiência e os impactos de seu descarte, entre outros pontos. Devem, também, ser pensados em termos mais amplos, no contexto de políticas públicas, dos incentivos ao transporte individual, como defendem alguns grupos, ou de prioridade ao transporte público, como pedem outros. Essas questões vão ao encontro do tema de uma entrevista desta edição. O antropólogo brasileiro radicado nos Estados Unidos Eduardo Brondizio é um dos coordenadores de um painel da ONU que trabalham em uma avaliação sobre biodiversidade e suas contribuições para a sociedade (página 28). O grupo estuda questões que aliam problemas ambientais e sociais, como a conciliação de políticas contra a pobreza com políticas de conservação. Um dos objetivos é ampliar a discussão sobre mudanças climáticas de forma que seu combate não seja visto como um fim em si mesmo, mas como parte de um processo de mudança. A edição também traz uma presença feminina de peso, algumas como reconhecimento póstumo por sua atuação na ciência, como a matemática iraniana Maryam Mirzakhani, primeira mulher a receber a Medalha Fields (página 42), a psicóloga Ecléa Bosi, que se dedicou a estudar a coletividade e a memória (página 88), e a etnógrafa austríaca Wanda Hanke (página 90), que se aventurou sozinha pelo Brasil na década de 1930. Recentemente premiada pela União Internacional de Química Pura e Aplicada (Iupac), a cristalógrafa Yvonne Mascarenhas, 86 anos, contou em entrevista sobre o início no país da área de conhecimento que usa raios X para investigar a estrutura de moléculas (página 50). PESQUISA FAPESP 258 | 7


Boas práticas

Sessenta tons de má conduta Levantamento sugere que frequência elevada de omissões e deslizes pode causar mais danos à integridade científica do que casos ocasionais de fraude Pesquisadores e instituições se mobilizam para prevenir as formas mais graves de má conduta científica, como fraudes e manipulação de dados, mas não combatem com tanto vigor comportamentos duvidosos ou negligentes que, embora não produzam escândalos, comprometem a integridade da pesquisa pela elevada frequência com que ocorrem. Para avaliar se essa premissa é verdadeira, um grupo coordenado pelo psiquiatra Joeri Tijdink, da Universidade Livre de Amsterdã, Holanda, ouviu 227 especialistas de vários países que participaram das quatro primeiras conferências mundiais de integridade científica, realizadas entre 2007 e 2015. Os entrevistados responderam a um questionário eletrônico que os convidava a opinar sobre uma lista de 60 tipos diferentes de condutas antiéticas ou controversas. Eles atribuíram pontos a certas características de cada um dos itens, como a gravidade e a regularidade com que ocorrem, e isso resultou em vários rankings. No ranking dos problemas mais frequentes, o primeiro da lista foi um viés que não necessariamente compromete a consistência de um artigo científico, que é citar dados selecionados a fim de realçar descobertas ou convicções do autor. Em segundo lugar, foi mencionada a falta de supervisão e orientação adequadas para estudantes e pesquisadores em início de carreira, deslize que pode ser produto de negligência ou de excesso de tarefas de um líder de pesquisa. Já em outros dois rankings produzidos 8 | agosto DE 2017

pelo levantamento, os que medem a percepção sobre os impactos da má conduta na validade da pesquisa e na confiança que ela inspira, o problema campeão em respostas foi a fabricação de dados – que na lista dos mais frequentes aparece em penúltimo lugar. Em segundo lugar, aparece o expediente de modificar, fabricar ou remover dados depois que eles já foram analisados pela primeira vez e, em terceiro, a manipulação de conclusões por pressão do patrocinador do estudo. O plágio foi considerado comum (ficou em 12º lugar entre os mais frequentes), mas com impacto limitado (42º na lista dos que mais causam impacto na validade da pesquisa). “Práticas questionáveis ou indesejadas, que às vezes nem são intencionais, podem ter um impacto acumulado maior do que os casos de fraude”, disse Tijdink ao site da publicação Nature Index. Alguns dos problemas corriqueiros, observa Tijdink, são muito difíceis de eliminar. Ele cita como exemplo o terceiro tipo mais frequente de problema apontado no levantamento: não divulgar pesquisas cujo resultado foi negativo. Dar publicidade a eventuais resultados negativos obtidos ao longo do processo de investigação é importante para compreender o quanto são representativos os resultados positivos registrados. “Mas resultados negativos não rendem artigos em revista de alto impacto nem ajudam a obter financiamento para pesquisa. É difícil superar esse círculo vicioso”, diz o psiquiatra. O levantamento foi publicado na revista


Comportamentos antiéticos ou negligentes Levantamento com 227 especialistas em integridade científica apontou os tipos de má conduta mais frequentes e os que causam mais impacto na validade das pesquisas Os mais frequentes

Os de mais impacto

1 Citar dados selecionados a fim de realçar

1 Fabricação de dados

descobertas ou convicções do autor

2 Supervisionar de forma insuficiente estudantes

2 Remover ou modificar informações,

ou adicionar dados fabricados, depois que

e pesquisadores em início de carreira

uma primeira análise dos dados foi realizada

3 Deixar de publicar resultados negativos válidos

3 Mudar resultados ou conclusões de

4

um estudo por pressão do patrocinador

Solicitar ou atribuir a coautoria de

um artigo científico sem haver contribuição efetiva

4 Escolher metodologias de

pesquisa ou instrumentos de avaliação de resultados claramente inadequados

5

Citar artigos com o objetivo de

agradar a editores, revisores e colegas

5 Ocultar resultados que contradizem

ilustrações maurício pierro

descobertas anteriores

Research Integrity and Peer Review no final de 2016 e apresentado em maio na 5ª Conferência Mundial de Integridade Científica, realizada em Amsterdã – o autor principal do artigo é o epidemiologista Lex Bouter, reitor da Universidade Livre entre 2006 e 2013 e um dos organizadores da conferência. “Fica claro, na nossa avaliação, que devemos transferir a atenção dos casos de fabricação e falsificação de dados, que são ocasionais, para os casos menores de má conduta, como arredondamentos estatísticos e seleção de dados, que são muito mais frequentes”, disse Bouter, que é professor de metodologia e integridade científica, ao apresentar o levantamento na conferência. Um quarto ranking foi produzido a partir da opinião dos entrevistados sobre quais problemas de má conduta seriam mais fáceis de prevenir. Em primeiro, despontou a atitude de ignorar riscos impostos a participantes do estudo e, em segundo, os truques que permitiram a alguns pesquisadores terem controle sobre o processo de revisão de seus próprios papers. O trabalho também apontou nuanças sobre a percepção em diferentes campos do conhecimento.

Nas ciências naturais, o problema que mais compromete a validade da pesquisa seria, segundo entrevistados da área, o arredondamento incorreto de resultados estatísticos, enquanto na área de ciências biomédicas seria a fabricação de dados e, nas ciências sociais, a possibilidade de revisar os próprios papers. Durante o processo de revisão do artigo de Tijdink e Bouter feito pela Research Integrity and Peer Review, o trabalho recebeu críticas pelas características da amostra de entrevistados. Dos 1.131 que receberam o questionário, apenas 227 responderam – e nesse grupo havia uma prevalência de professores e pesquisadores seniores, o que poderia levar a conclusões enviesadas. O caráter subjetivo dos resultados – baseados em opiniões pessoais dos pesquisadores balizadas por um conjunto de 60 comportamentos predeterminados – também foi apontado como uma limitação, reconhecida pelos autores. Tijdink argumentou, contudo, que é muito difícil mensurar objetivamente o impacto dos casos mais brandos de má conduta científica e explicou que o levantamento das opiniões de

especialistas foi a forma que encontrou de avaliar a amplitude do fenômeno. Esse recurso também foi utilizado por uma pesquisa que comparou as percepções sobre integridade científica entre 1.200 pesquisadores da área biomédica na China em 2015 com as obtidas em um levantamento feito em 2010. O paper, publicado em abril na revista Science and Engineering Ethics, sugere que 40% da produção científica chinesa nessa área do conhecimento está associada a alguma forma de má conduta, mas reforça a ideia de que tipos mais brandos são os mais disseminados. Os mais prevalentes, segundo os entrevistados chineses, são o plágio e a atribuição imprópria de autoria a pesquisadores que não deram uma contribuição efetiva à pesquisa publicada – bem à frente das fraudes e da fabricação de dados. Artigos científicos BOUTER, L. et al. Ranking major and minor research misbehaviors: Results from a survey among participants of four World Conferences on Research Integrity. Research Integrity and Peer Review. 21 nov. 2016. LIAO, Q.-J. et al. Perceptions of chinese biomedical researchers towards academic misconduct: A comparison between 2015 and 2010. Science and Engineering Ethics. 10 abr. 2017.

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Denúncia atrasa premiação na Alemanha

10 | agosto DE 2017

Britta Nestler, entre o presidente da DFG, Peter Strohschneider, e a ministra da Educação, Johanna Wanka, recebe o Prêmio Leibniz

A entrega do Prêmio Leibniz ocorreu na reunião anual da DFG na cidade de Halle, na presença da ministra da Educação e Pesquisa da Alemanha, Johanna Wanka. “É importante para a DFG que a Britta Nestler receba esse prêmio em uma cerimônia formal e na presença de quem toma decisões políticas”, disse Dzwonnek. Nestler não se pronunciou. Não é a primeira vez que a DFG passa por uma situação desse tipo.

Segundo a revista Der Spiegel, em 2005 a professora de medicina Stefanie Dimmeler também teve o prêmio suspenso após ser acusada de fraude. Comprovou-se que ela usou uma mesma imagem em vários artigos como se representassem experimentos diferentes. A DFG concluiu que ela não agiu de má-fé, tampouco o equívoco comprometeu a veracidade dos trabalhos publicados. Ela recebeu o prêmio.

A geografia da autocitação Um truque desonesto utilizado por pesquisadores para inflar o impacto de sua produção científica é o abuso da autocitação. Isso ocorre quando o autor, ao escrever um artigo, menciona sem necessidade vários de seus trabalhos anteriores, a fim de aumentar o número de citações. Um estudo publicado no Journal of Occupational and Organizational Psychology por pesquisadores da Universidade de Leuven, na Bélgica, sugere que o excesso de autocitação é um fenômeno mais detectado entre autores que residem em países em que o individualismo e a competitividade se acentuam como traços culturais, como Estados Unidos e Reino Unido. “Nesses países, há uma ênfase no desenvolvimento pessoal, o que

cria condições para se reforçar práticas de autopromoção”, escreveu Nick Deschacht, autor principal do estudo, em um post no blog da London School of Economics and Political Science, no Reino Unido. A autocitação é menos frequente, segundo o estudo, em países onde predomina uma cultura classificada como mais coletivista, como China e Coreia do Sul. Deschacht e sua equipe analisaram o número de autocitações em 1.346 artigos publicados entre 2009 e 2014 nas áreas de gestão e negócios. Em países “individualistas”, 13% fizeram cinco ou mais autocitações nos trabalhos analisados, em oposição a apenas 7% dos autores de países apontados como “coletivistas”.

DFG / Falk Wenzel

Com quatro meses de atraso, a Sociedade Alemã de Amparo à Pesquisa (DFG) concedeu à matemática e cientista de materiais Britta Nestler, 45 anos, o Prêmio Leibniz, que todos os anos reconhece o trabalho de cerca de uma dezena de líderes de pesquisa no país oferecendo a cada um deles € 2,5 milhões para investir em seus projetos ao longo de sete anos. Enquanto os outros nove ganhadores do prêmio foram agraciados no dia 15 de março, Nestler, pesquisadora do Instituto de Tecnologia de Karlsruhe, só pôde receber a condecoração no dia 4 de julho. Nesse intervalo, ela enfrentou uma investigação por má conduta científica na DFG – e foi inocentada. A lista dos agraciados havia sido divulgada em dezembro e, em março, poucos dias antes da cerimônia, uma denúncia anônima acusou a pesquisadora de fraude em projetos de pesquisa financiados pela DFG, que é a principal agência de apoio à pesquisa básica da Alemanha. O teor da denúncia foi mantido em sigilo pela DFG, que abriu uma investigação e decidiu suspender temporariamente a premiação já anunciada. “Embora tenha sido uma decisão difícil, ela foi feita para preservar os interesses de Britta Nestler, da DFG e do Prêmio Leibniz”, disse Dorothee Dzwonnek, secretária-geral da agência, na cerimônia de premiação. “Em seguida, trabalhamos arduamente para investigar todos os aspectos das alegações, ouvimos Nestler e contratamos um revisor externo antes que o nosso comitê de inquérito de alegações de má conduta abordasse o assunto. Essa investigação não revelou evidências de má conduta.”


Dados

Dispêndios em P&D

Desembolso de recursos para p&D em São Paulo Dispêndios em P&D em São Paulo cresceram 44% nas duas últimas décadas, passando de R$ 19,5 bilhões para R$ 28,0 bilhões1. Instituições de ensino superior (IES) ampliaram sua participação, de 19% para 22%, enquanto agências de

28.033

fomento e institutos de pesquisa (IP) perderam espaço.

20.934

Dispêndios em P&D em São Paulo por setor da fonte em milhões R$ constantes (2016)

19.471

As empresas atingiram 60% do total dos dispêndios em 2016. Esse valor é próximo da média dos países industrializados2 (61%), e acima da brasileira, de 45%3.

11.290 58%

4.561 23%

n Instituições de ensino superior (IES) n Agências de fomento e institutos de pesquisa (IP) n Empresas

16.885 60% 12.350 59%

4.934 18%

3.941 19%

3.620 19%

4.643 22%

1996

2006

6.213 22%

2016

composição dos recursos de fontes governamentais As IES estaduais responderam por 72% dos dispêndios do governo estadual, em 2016. Os IPs do estado apresentaram queda nos últimos 20 anos e a FAPESP mostrou estabilidade. As agências de fomento lideraram, em 2016, os dispêndios de fontes federais em São Paulo. O maior crescimento vem ocorrendo nas universidades, que representam 9% do total.

Dispêndios em P&D em SP em milhões R$ constantes (2016)

Participação federal nos dispêndios públicos em P&D em São Paulo e no Brasil (2014)

Governo estadual

Governo federal

n Instituições de ensino superior estaduais n Ag. de fomento e inst. de pesquisa estaduais n FAPESP

n Instituições de ensino superior federais n Ag. de fomento e inst. de pesquisa federais n Agências federais

n SP n Brasil

6.357 5.018 1.014 837 3.167

1996

5.497 993

1.137 667

732

3.772

2006

2016

67%

39%

4.072 3.072

4.553

O governo federal financiou 39% dos dispêndios públicos em São Paulo, fração muito menor do que sua participação em nível nacional, de 67%3.

2.748

1.357

1.039

1.354 361

1.177 531

1996

2006

1.650 1.481 941

2016

Total

1 Valores constantes em R$ de 2016 (deflacionados pelo IGP-DI).  2 A média da participação de empresas (como fonte) de países da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em 2015, foi de 61% do total de dispêndios em P&D.  3 Valores para 2014, último ano com dados disponíveis (MCTIc).  Fontes Indicadores de CT&I da Fapesp (SP), Indicadores de CT&I do MCTic (Brasil), Main Science and Technology Indicators, OCDE (OCDE).

PESQUISA FAPESP 258 | 11


Notas Estoques de tambaqui em declínio Entrevistas com 392 pescadores de comunidades rurais dos arredores de Manaus sugerem que a captura excessiva do tambaqui (Colossoma macropomum) está afetando os estoques desse peixe ao longo de até mil quilômetros do rio Purus, um afluente do rio Solimões. O tambaqui é um dos pratos preferidos na capital amazonense, uma metrópole com mais de 2 milhões de habitantes imersa na floresta. O tamanho do peixe reduziu-se pela metade e a frequência de sua captura também diminuiu, segundo estudo feito por pesquisadores de universidades brasileiras e do Reino Unido (PNAS, 24 de julho). Eles perguntaram aos pescadores o tamanho e a quantidade de tambaquis capturados nos dias anteriores à entrevista para obter uma estimativa das características das populações do peixe à medida que se afastava da metrópole. Em média, os tambaquis pescados no Purus a distâncias de até 500 quilômetros (km) de Manaus pesavam cerca de 2,5 quilos (kg). A mil km da capital amazonense, atingiam 4,5 kg. A diminuição dos tambaquis de grande porte representa um problema econômico para os pescadores das comunidades próximas a Manaus. Com a redução do número de exemplares maiores, que alcançam preços mais altos no mercado, a renda cai. Além disso, o aumento da captura dos peixes menores, que nem sempre alcançaram a idade reprodutiva, pode prejudicar a capacidade de renovação dos estoques e tornar sua pesca insustentável no longo prazo. A sobrepesca do tambaqui também pode afetar seu papel ecológico de dispersor de sementes, uma vez que os peixes menores as transportam por distâncias também menores. Os autores do estudo atribuem o declínio nos estoques na região de Manaus à demanda elevada e à facilidade de conservação e transporte proporTambaqui, um dos preferidos nas mesas de Manaus

cionada por barcos de grande porte, que abastecem com gelo os pequenos pescadores e deles compram o peixe.

Brasil

Tamanho do maior tambaqui já pescado nas comunidades (kg) Lábrea

MANaus

o

Ri

Tapauá

beruri So

li m õ

es

18,1 a 19

s

li m õ

19,1 a 24

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12 | agosto DE 2017

15,1 a 18

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Canutama

Rio P u

Rio

So

7,9 a 11

1 1000

1500 Distância fluvial em kilômetros

fonte TREGIDGO, D. J. et al. PNAS. 2017


2

O próton e o anti-hidrogênio

DNA, agora para registrar filmes

Duas notícias do mundo atômico. A primeira é que aumentou a

os pesquisadores recuperaram os dados codificados no genoma

precisão com que se mede a

A imagem da pessoa

das bactérias e

massa do próton, a partícula de

cavalgando abaixo faz

reconstituíram o filme

carga elétrica positiva que é um

parte de um pequeno

com 90% de precisão

dos componentes básicos do

vídeo feito com a

(Nature, 12 de julho).

núcleo de todos os átomos.

informação recuperada

O experimento indica a

A massa do próton é um dos fa-

de um material nunca

possibilidade de usar

tores que determinam o movi-

usado antes com essa

células vivas para

finalidade: a molécula de

armazenar informações.

DNA. Geneticistas da

Bactérias poderiam

Universidade Harvard,

ajudar no monitoramento

Estados Unidos, usaram

ambiental ao guardar

trechos de DNA para

registros de metais

codificar os pontos

pesados e outros

escuros e claros de

poluentes. “Estamos

imagens de um homem

tentando desenvolver

galopando, feitas em

um gravador molecular

1878 pelo fotógrafo

que possa ser inserido

partes por trilhão, o novo valor da massa do próton é

inglês Eadweard

nas células para

1,007276466583 unidade de massa atômica, um pou-

Muybridge (1830-1904).

coletar informação

co menor do que a medida anteriormente (Physical

Depois, implantaram

ao longo do tempo”,

Review Letters, 18 de julho). A segunda notícia é que um

esses trechos no DNA

disse o geneticista

grupo de 50 físicos de 17 instituições de pesquisa co-

de bactérias usando a

Seth Shipman, autor

municou ter feito a primeira observação detalhada das

técnica de edição de

do estudo, ao jornal

linhas espectrais finas de um átomo de antimatéria, o

genes CRISPR-Cas

britânico The Guardian.

anti-hidrogênio – ele tem as mesmas características

(ver Pesquisa FAPESP

Assim, talvez se torne

que o hidrogênio, mas é formado por partículas com

no 240). Ao se

possível programar

carga elétrica oposta –, em um dos equipamentos da

reproduzirem, as

neurônios para registrar

Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (Cern),

bactérias transmitiram a

informação do cérebro

na fronteira da Suíça com a França. Os pesquisadores

informação para seus

em desenvolvimento.

3

mento dos elétrons ao redor do núcleo atômico. Equipes do Instituto Max Planck de Física Nuclear, da Alemanha, e dos Laboratórios Riken, do Japão, obtiveram um valor três vezes mais preciso do que nas medições anteriores. A nova medição foi realizada por meio da comparação fotos 1 Léo Ramos Chaves / foto feita no Aquário de São Paulo 2 Chukman So / Universidade da Califórnia, Berkeley  3 instituto max planck de física nuclear 4 seth shipman / universidade harvard

descendentes. A seguir,

de um único próton em movimento em um campo magnético com a massa de um núcleo de carbono 12, formado por seis prótons e seis nêutrons e usado como padrão de massa atômica. Com uma precisão de 32

As trajetórias do átomo de anti-hidrogênio em experimento realizado em 2016, no Cern (no alto), e a armadilha Penning, usada para aprisionar prótons (acima)

irradiaram átomos de anti-hidrogênio com micro-ondas. Em resposta, os antiátomos revelaram sua identidade emitindo ou absorvendo energia em frequências específicas – são as linhas espectrais, características para cada átomo, como as impressões digitais das pessoas. Como se esperava, as linhas espectrais do anti-hidrogênio corresponderam muito bem às do hidrogênio, já bem conhecidas (Nature, 3 de agosto).

A imagem original (à esq.) e a reconstituída com dados recuperados do DNA das bactérias (à dir.)

4

PESQUISA FAPESP 258 | 13


Cerca de 30% menor do que a Trappist-1, a estrela EBLM J0555-57Ab é pouco maior do que Saturno e tem 85 vezes mais massa do que Júpiter

JúPITER

saturno

EBLM J0555-57Ab

TRAPPIST-I

1

Avanços contra a Aids

Também em julho, a

Pouco maior do que Saturno e com massa 85 vezes su-

Organização Mundial da

perior à de Júpiter, o objeto celeste denominado EBLM

Saúde (OMS) divulgou

J0555-57Ab é a menor estrela já identificada e medida

um relatório indicando

(Astronomy & Astrophysics, no prelo). Distante cerca de

Uma vacina

que o total de mortes

600 anos-luz da Terra, a EBLM J0555-57Ab faz parte de

experimental contra o

causadas pela Aids por

um sistema binário, composto por duas estrelas, das quais

HIV foi bem tolerada e

ano caiu de 1,9 milhão,

ela é a menor. Sua massa equivale a 8% da do Sol e é

gerou anticorpos nos

em 2005, para 1 milhão,

semelhante à da estrela Trappist-1, que abriga um sistema

quase 400 voluntários

em 2016, porque mais

com sete planetas rochosos, três deles na chamada zona

saudáveis de Ruanda,

da metade das pessoas

habitável, em que, teoricamente, algum tipo de vida po-

de Uganda, da África

infectadas no mundo

deria se desenvolver. Seu raio, no entanto, é 30% menor

do Sul, da Tailândia

recebe tratamento

do que o da Trappist-1. A força gravitacional em sua su-

e dos Estados Unidos,

antirretroviral, embora

perfície é cerca de 300 vezes maior do que na Terra. Para

comunicaram

o ritmo de transmissão

a equipe internacional de astrofísicos envolvida na des-

pesquisadores dos

do vírus ainda seja

coberta, dificilmente será encontrada uma estrela menor

Institutos Nacionais de

considerado alto. No ano

do que essa. “Nosso achado revela o quão pequenas as

Saúde (NIH) dos Estados

passado, 1,8 milhão de

estrelas podem ser”, diz Alexander Boetticher, aluno de

Unidos durante um

pessoas foram infectadas

mestrado do Instituto de Astronomia da Universidade de

congresso realizado em

com o HIV, o equivalente

Cambridge, na Inglaterra, primeiro autor do artigo que

julho em Paris. Outro

a uma pessoa a cada

descreve o objeto celeste, no material de divulgação do

teste conduzido pelos

17 segundos. Um dado

estudo. “Se essa estrela tivesse se formado com um pou-

NIH indicou que o uso

preocupante do relatório

co menos de massa, as reações de fusão do hidrogênio

de um anel vaginal

é que 10% das pessoas

em seu núcleo não poderiam se sustentar, e ela teria se

renovado mensalmente

que hoje começam o

transformado em uma anã-marrom.” Opaca e fria, uma

ou de um comprimido

tratamento antirretroviral

anã-marrom é um objeto astronômico com massa inter-

diário, ambos contendo

na África, na Ásia e na

mediária entre a de um planeta e a de uma estrela. A EBLM

antirretrovirais, são

América Latina estão

J0555-57Ab foi classificada como anã-superfria, como a

estratégias seguras e

infectadas com uma

Trappist-1. Ela foi encontrada pelo projeto Wide Angle

eficazes para prevenir

cepa do HIV resistente

Search for Planets (Wasp), que procura exoplanetas em

a transmissão do vírus

a algum dos remédios

nossa galáxia e é coordenado pelas universidades britâ-

entre adolescentes.

mais usados.

nicas de Keele, Warwick, Leicester e Saint Andrews.

14 | agosto DE 2017

fotos 1 Universidade de Cambridge 2 léo ramos chaves

A menor estrela possível


Elsevier avança em repositórios

já aconteceu em 2013, quando a editora comprou a Mendeley, uma popular rede social em que pesquisadores

A holandesa Elsevier, a

compartilham artigos.

maior editora científica

No ano passado, adquiriu

do mundo, torna-se

a Social Science

dominante também no

Research Network

segmento dos

(SSRN), repositório de

repositórios em acesso

preprints na área de

aberto. No mês passado,

ciências humanas e

ela anunciou a compra

sociais, e a empresa de

da bepress, empresa

indicadores de pesquisa

com sede em Berkeley,

Plum Analytics. “A

na Califórnia, cujo

bepress tem contribuído

portfólio inclui o Digital

para que instituições de

Commons, uma

pesquisa divulguem sua

plataforma utilizada

produção. Estamos

por mais de 500

ansiosos para trabalhar

universidades e

juntos”, afirmou em um

institutos de pesquisa

comunicado Oliver

para gerenciar

Dumon, diretor-geral de

seus repositórios

Produtos de Pesquisa

institucionais,

da Elsevier.

que reúnem mais de 2,3 milhões de documentos armazenados em nuvem. O valor do negócio não O silenciamento temporário de um gene gera sementes residuais na variedade Sultanina

foi divulgado. Com a aquisição, a Elsevier busca reforçar sua presença digital e

2

ampliar o número de clientes de seus serviços de análise de

O segredo das uvas sem semente

informações de ciência e tecnologia, como a base de dados de periódicos

Conhecidas nos Estados Unidos e no Brasil

gene estivesse envolvido na formação de se-

Scopus e o Elsevier's

pelo nome de Thompson Seedless, as uvas-

mentes, mas a hipótese ainda não havia sido

Research Intelligence,

-brancas da variedade Sultanina são resultado

demonstrada. Revers e seus colaboradores

que serão interligados ao

de uma mutação natural que as deixou sem

constataram que, na Chardonnay, o VviAGL11

Digital Commons e

sementes. Originárias provavelmente da região

é expresso em momentos cruciais para a for-

entre a Turquia e a Grécia, são consumidas

mação da casca que reveste as sementes. Na

preferencialmente in natura ou como passas

Sultanina, o gene simplesmente não é ativado

e seu vinho não é visto como de qualidade.

nessa fase e isso resulta em sementes residuais

Pesquisadores brasileiros liderados pelo bió-

– na prática, em uvas sem semente. A deter-

logo molecular Luís Fernando Revers, da Em-

minação do papel desse gene pode ser útil

brapa Uva e Vinho, de Bento Gonçalves, no

para manipular a formação de sementes nas

Rio Grande do Sul, comprovou o mecanismo

variedades plantadas. “A expectativa é de

molecular que leva essas uvas a não terem

transformar esse conhecimento em uma fer-

sementes (Journal of Experimental Botany, 28

ramenta para, antes mesmo de produzir o

de março). Eles compararam o padrão de ati-

fruto, saber, por meio de testes de DNA, se a

vação do gene VviAGL11 durante o desenvol-

uva irá ou não ter sementes”, diz o biólogo

vimento de frutos de uma uva com sementes,

molecular. Segundo o pesquisador, essa seria

a branca Chardonnay, usada para fazer vinho,

uma forma de acelerar o desenvolvimento de

e da Sultanina. Há anos, suspeita-se que esse

novos cultivares.

disponibilizados a seus usuários. Essa integração

Logomarca da Elsevier, fundada em 1880

PESQUISA FAPESP 258 | 15


2

1

Cabeça de machado (à esq.) encontrada em escavação no sítio arqueológico de Madjedbebe (à dir.), no Parque Nacional Kakadu, na Austrália

Chegando mais cedo à Austrália A descoberta de cerca de 11 mil artefatos, como pe-

trália. O coordenador do estudo, Chris Clarkson,

dras de moagem e cabeças de machados, escavados

professor da Universidade de Queensland, Austrália,

a uma profundidade de 2,6 metros no Parque Na-

encontrou os artefatos em 2015, escavando uma

cional de Kakadu, norte da Austrália, indica que a

área já explorada do sítio arqueológico de Madjed-

ocupação do continente pelos aborígenes vindos da

bebe. Segundo ele, os resíduos de rochas e restos de

África pode ter começado há pelo menos 65 mil anos.

fósseis sugerem a exploração da madeira como com-

Datados por meio de uma técnica chamada lumines-

bustível e o consumo de sementes e raízes. Esse

cência opticamente estimulada, usada para deter-

trabalho também indica que os primeiros seres hu-

minar a data da última vez em que um objeto foi

manos a chegarem à Austrália teriam convivido com

exposto à luz do sol antes de ser coberto pela terra,

animais como os marsupiais gigantes, do porte de

alguns artefatos poderiam ter 80 mil anos. Essa

um pequeno urso, durante cerca de 25 mil anos,

descoberta antecipa em cerca de 20 mil anos a es-

antes de gradativamente causarem a extinção da

timativa da chegada dos primeiros habitantes à Aus-

megafauna (Nature, 20 de julho).

Não houve declínio na

25 de julho). Onde

mililitro (ml), em 1973,

sugerem que as baixas

América do Sul, na África

houve redução,

para 47 milhões por ml,

contagens estariam

e na Ásia. A conclusão

a concentração de

em 2011 – uma queda de

associadas a um estilo

suscita preocupação

espermatozoides

52,4%. Embora não se

de vida pouco saudável

sobre a capacidade

despencou, em média,

saiba a causa dessa

e à exposição a

reprodutiva masculina.

de 99 milhões por

redução, os autores

produtos químicos.

O número de

Sob a coordenação

espermatozoides

do epidemiologista

produzidos pelos homens

Hagai Levine, da

de algumas regiões do

Universidade Hebraica

mundo caiu pela

de Jerusalém, em

metade nos últimos

Israel, os pesquisadores

40 anos. De 1973 a

realizaram uma

2011, a concentração

meta-análise de 185

de espermatozoides em

estudos publicados ao

indivíduos que vivem

longo das últimas três

na América do Norte,

décadas envolvendo

Europa, Austrália e Nova

43 mil homens de

Zelândia diminuiu, em

50 países (Human

média, 1,4% ao ano.

Reproduction Update,

Concentração de espermatozoides (milhões /ml)

Fertilidade masculina cai à metade em 40 anos

100

99

Redução média na

90

concentração de na América do Norte, Europa,

70

Austrália e Nova Zelândia

60 50

47 1970

1980

1990

2000

fonte  levine, h. et al. human reproduction update, 2017

16 | agosto DE 2017

espermatozoides

52,4% de queda

80

2010

Ano


Unicamp, a primeira da América Latina

3

A Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) foi classificada como a melhor da América Latina na edição de 2017 do ranking da revista britânica Times Higher Education. A instituição recebeu um total de 87,9 pontos, ante 87,5 da Universidade de São fotos 1 Chris Clarkson / Copyright Gundjeihmi Aboriginal Corporation 2015 2 Dominic O'Brien / Copyright Gundjeihmi Aboriginal Corporation 2015 3 Hervé Sauquet e Jürg Schönenberger

Paulo (USP). A Pontifícia Universidade Católica do Chile foi a terceira colocada. Na edição de 2016, a USP ficou em primeiro lugar, com 84,6 pontos e a Unicamp em segundo, com 83,7. A dianteira da instituição de Campinas pode ser explicada pela evolução em duas categorias. Uma é a de pesquisa, que tem um peso de 34%. A pontuação da Unicamp

No centro desta reprodução artística, a flor ancestral das angiospermas atuais, que deve ter vivido entre 250 milhões e 140 milhões de anos atrás​

subiu de 95,1 para 98,3, enquanto a da USP manteve-se em 100. Essa categoria inclui os resultados de uma pesquisa de reputação feita com cientistas de

A mãe de todas as flores

mais de 100 países atualizada anualmente, os números da produção

A ​ ancestral das angiospermas (plantas com

e de fósseis e em dados filogenéticos mole-

científica e a proporção

flores) atuais provavelmente tinha flores

culares de 792 espécies de angiospermas

de staff acadêmico.

bissexuais e de simetria radial, com pelo me-

(Nature Communications, 1º de agosto). Ape-

A segunda categoria,

nos 10 sépalas (estruturas semelhantes a

sar das incertezas remanescentes sobre

com peso de 2,5%,

folhas, externas às pétalas) e cinco carpelos

alguns aspectos da reconstrução da flor

é a de transferência de

(folhas modificadas que abrigam os óvulos

primordial, esse estudo sugere as possíveis

conhecimento, que

da flor) arranjados em forma de espiral. As

transformações das estruturas das flores ao

avalia a capacidade

cores, formas e tamanhos da flor primordial,

longo da evolução com base em uma amos-

de uma instituição obter

no centro da imagem acima, são criações

tragem ampla e métodos de análise refinados.

recursos para pesquisa

artísticas, mas as informações sobre sua

O ancestral comum mais recente das espécies

com o setor empresarial.

provável estrutura resultam de um estudo

atuais de angiospermas deve ter vivido entre

Nela, a Unicamp obteve

sobre evolução floral de angiospermas que

250 milhões e 140 milhões de anos atrás. Já

17 pontos a mais do

reuniu botânicos da França, Áustria, Estados

o ancestral das plantas com sementes, que

que a USP – em 2016,

Unidos e Brasil (Juliana El Ottra, da Univer-

inclui as angiospermas e as gimnospermas

a diferença foi de

sidade de São Paulo). O estudo se baseou na

(sem flores), deve ter vivido entre 350 mi-

11 pontos. Nas demais

análise da estrutura floral de espécies atuais

lhões e 310 milhões de anos atrás.

categorias, a pontuação flutuou pouco. PESQUISA FAPESP 258 | 17


A ascensão dos

elétricos Automóveis movidos a eletricidade deverão representar 16% da frota mundial até 2030 Yuri Vasconcelos

18 | agosto DE 2017

divulgação nissan

capa


Modelos da Nissan são recarregados no centro de pesquisa da montadora na Inglaterra

léo ramos chaves

A

produção de carros movidos a energia elétrica acelera pelo mundo, já provoca mudanças na indústria automobilística e promete transformações na mobilidade urbana. A frota global de automóveis elétricos e híbridos, denominação dada aos modelos que utilizam um motor elétrico em conjunto com um de combustão interna, superou 2 milhões de unidades em 2016, um aumento de 60% em relação ao ano anterior. China, Japão, Estados Unidos e Europa são os principais mercados e concentram os maiores fabricantes. O estoque de automóveis elétricos no mundo poderá chegar a 70 milhões de unidades em 2025, de acordo com o relatório Global EV Outlook 2017, da Agência Internacional de Energia (AIE). Outra projeção, da consultoria Morgan Stanley, indica que em 2030 cerca de 16% da frota global de veículos de passeio será movida a baterias. Hoje, eles representam 0,2% do mercado, que totaliza 947 milhões de automóveis. O avanço dos elétricos, um fenômeno por enquanto mais presente em nações ricas em razão do elevado custo dessa tecnologia, é motivado por preocupações ambientais e pela perspectiva de esgotamento de petróleo. A fumaça liberada pelo escapamento dos veículos movidos a combustíveis fósseis é a principal causa da poluição nos grandes centros urbanos e responde por um quinto de toda a emissão de dióxido de carbono (CO2) do planeta, o principal gás de efeito estufa (GEE). Para lidar com essa situação, governos de diversos países têm proposto limites à circulação desses veículos e estimulado o uso dos elétricos, em tese menos agressivos ao ambiente. Recentemente, autoridades francesas e britânicas anunciaram a intenção de proibir a venda de modelos a gasolina ou diesel a partir de 2040. Na Noruega, onde 37% dos carros novos vendidos em janeiro deste ano eram movidos a eletricidade, e na Holanda, a proibição da comercialização deve ocorrer ainda mais cedo, em 2025, enquanto na Alemanha o banimento está previsto para 2030. Do lado da indústria, as maiores fabricantes já oferecem modelos elétricos e híbridos. A Volvo anunciou que a partir de 2019 todos os seus carros terão motores elétricos.

A onda global chega lentamente ao Brasil, que precisa superar vários obstáculos para fazer a transição do carro a combustão interna para o elétrico. “A falta de política pública e de uma infraestrutura de recarga são os principais entraves à massificação desses carros no país”, relata Ricardo Guggisberg, presidente-executivo da Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE). Segundo ele, assim como ocorreu em outras nações, a mobilidade elétrica precisa de incentivos do governo para se estabelecer (ver mais sobre os desafios do carro elétrico no Brasil na página 22). Atualmente, circulam nas ruas do planeta por volta de 50 diferentes modelos de automóveis elétricos, número que deve saltar para 120 nos próximos três anos. Esses veículos podem ser classificados em três grupos, segundo a forma de suprimento de energia. O primeiro reúne os chamados elétricos puros ou a bateria (VEB). Tracionados por um ou mais motores elétricos, eles empregam apenas baterias como fonte de energia. “A bateria deve ser recarregada na rede elétrica, mas também pode aproveitar a energia regenerada pelo carro durante as desacelerações e frenagens”, explica o engenheiro eletricista Raul Fernando Beck, responsável pela Área de Sistemas

Conector para recarga de carros elétricos: a principal vantagem é a emissão nula ou muito reduzida de poluentes

PESQUISA FAPESP 258 | 19


Model 3: as primeiras unidades do carro “popular” da Tesla (à esq.) foram entregues em julho deste ano

de Energia da Fundação Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD), de Campinas (SP), e coordenador da Comissão Técnica de Veículos Elétricos e Híbridos da Sociedade de Engenheiros da Mobilidade (SAE Brasil). São ideais para uso urbano, pois têm autonomia limitada. “As baterias atuais permitem que os carros rodem em média 250 quilômetros (km) sem necessidade de recarregamento”, diz Beck. O segundo conjunto é dos veículos elétricos híbridos (VEH), que têm pelo menos um motor elétrico e um motor a combustão interna. Nesse caso, não é preciso recarregar a bateria em um eletroposto, nome dado ao ponto de recarga, pois ela é alimentada exclusivamente por um gerador acionado pelo motor a combustão, também usado para mover o carro. O veículo, portanto, é abastecido em postos de combustível. A vantagem dos híbridos é a maior autonomia. Por outro lado, não são totalmente isentos de emissões. O terceiro grupo é dos híbridos plug-in (VEHP), uma combinação entre os elétricos puros e os híbridos. Esses modelos também têm dois motores distintos (a combustão e elétrico) e podem ser alimentados tanto com combustíveis tradicionais, como gasolina e diesel (ainda não existem plug-ins a álcool), como a partir da rede elétrica (ver gráfico na página ao lado). matriz energética

O maior diferencial dos veículos elétricos é a emissão nula ou reduzida de poluentes e de gases de efeito estufa no seu funcionamento. Essa vantagem, entretanto, pode ser diluída dependendo da matriz energética do país em que a frota circula. Em muitas nações europeias, a maior parte da eletricidade é gerada por fontes não renováveis e poluentes, como o carvão queimado em usinas termelétricas. Assim, mesmo que os elétricos não contribuam diretamente para o aumento da poluição atmosférica e o aquecimento do planeta – já que seu nível de emissões é nulo ou muito 20 | agosto DE 2017

baixo –, a energia que alimenta suas baterias foi produzida por uma fonte “suja”. Com isso, a pegada de carbono deles aumenta. Pegada de carbono é um índice que mede o impacto de certa atividade humana ou tecnologia sobre o ambiente a partir da quantificação do CO2 emitido. A questão é polêmica e divide os especialistas. Se, no cálculo da pegada de carbono, considerarmos também a energia gasta na fabricação do carro e seus componentes, a vantagem dos elétricos diminui mais ainda. “Gasta-se muita energia na fabricação das baterias. Se essa energia é gerada por combustíveis fósseis, as emissões de CO2 são consideráveis e a pegada global do carro elétrico se eleva”, explica o engenheiro mecânico Francisco Emílio Baccaro Nigro, professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) e assessor da Secretaria de Energia e Mineração do Estado de São Paulo. Ainda assim, destaca Nigro, entre queimar combustíveis fósseis em motores a combustão ou para gerar energia elétrica que alimentará veículos elétricos, a segunda opção é mais ambientalmente amigável, pois esses carros são mais eficientes no uso de energia do que os automóveis com motores a combustíveis fósseis. Mas há quem ache o contrário. Para o físico José Goldemberg, especialista em energia, a fabricação de carro elétrico só vale a pena para o país que for fabricá-lo se a maior parte da matriz energética for renovável, como no Brasil. “Para os Estados Unidos, que têm a maior parte da produção elétrica originária do combustível fóssil, não vejo vantagem em substituir o motor a combustão. Aqui, haveria benefícios”, diz Goldemberg, que é presidente da FAPESP. A matriz energética brasileira é baseada na fonte hidráulica, considerada limpa e renovável e que responde por 64% da eletricidade gerada. Por isso, os carros elétricos tendem a se manter vantajosos do ponto de vista ambiental quando comparados aos movidos a gasolina ou diesel. Essa vantagem permanece mesmo quando a compara-


DIFERENTES TECNOLOGIAS

Crescimento acelerado

Os carros elétricos são classificados conforme o suprimento de energia

Frota aumenta no mundo movida por preocupações ambientais

VENDAS EM ALTA

MAIORES MERCADOS

Estimativas apontam que o estoque global de carros elétricos deve chegar a 70 milhões em 2025. Hoje, eles somam 2 milhões de unidades

Chineses detêm o maior número de veículos elétricos e híbridos (dados de 2016)

FROTA (em milhões de unidades)

China

648 mil

80 EUA 60

563 mil Japão

40

151 mil 20

Noruega

133 mil

0 2010

2015

2020

2025

Fonte Global EV Outlook 2017/AIE

fotos  tesla infográfico ana paula campos ilustração alexandre affonso

ção é feita com os veículos a etanol, um combustível sustentável menos agressivo ao ambiente. “A pegada de carbono da eletricidade gerada no Brasil é muito semelhante à do etanol. Mas essa relação pode mudar se o país passar a usar mais usinas termelétricas para complementar a geração das hidrelétricas”, relata Nigro. Para ele, um carro híbrido a etanol pode ser a melhor solução para o país. “Um modelo com essas características faz todo o sentido”, afirma Nigro. O engenheiro eletricista Ricardo Takahira, diretor do Núcleo de Pesquisas da ABVE e membro da Comissão Técnica de Veículos Elétricos e Híbridos da SAE Brasil, tem opinião semelhante. “Apoiar a hibridização flex fuel é dar um passo adiante em termos tecnológicos. Mas sem volumes expressivos de venda de elétricos no país é difícil que as multinacionais autorizem investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) e produção por aqui”, opina Takahira. silencioso e eficiente

A reduzida emissão de ruídos – já que no carro elétrico não há queima de combustível, a principal causa do ruído dos motores a combustão – e o baixo custo para rodar são outras vantagens dos elétricos. Um estudo da CPFL Energia mostrou que o custo por quilômetro rodado de um carro a combustão é de R$ 0,31, enquanto o de um veículo elétrico é de R$ 0,11, ou seja, três vezes menor. O elevado rendimento energético também é um diferencial desses modelos. “Enquanto a eficiência energética dos carros a combustão interna é de cerca de 25%, nos carros elétricos ela começa em 85%, a depender do modelo”, destaca o especialista da ABVE. O consumo energético de um veículo é a quantidade de energia fornecida pela fonte (bateria, gasolina, diesel, álcool etc.) efetiva-

Holanda

112 mil

mente usada para mover o veículo. Nesse processo, parte da energia é perdida em forma de calor. Apesar do apelo ecológico e do boom de vendas no exterior, nem tudo são boas notícias no segmento dos elétricos. “As baterias são o calcanhar de Aquiles desses modelos. As atuais são pouco eficientes por conferir uma autonomia limitada aos veículos, são pesadas, caras de produzir e representam boa parte do custo do carro”, esclarece o engenheiro mecânico Marcelo Augusto Leal Alves, do Centro de Engenharia Automotiva (CEA) da Poli-USP (saiba mais sobre os estudos relativos a baterias na página 26). Os principais fabricantes globais de bateria, entre eles Panasonic, Samsung, LG e NEC, correm para superar esse gargalo. A empresa norte-americana de elétricos Tesla, que se tornou uma das montadoras mais valorizadas do mundo produzindo carros de luxo (o topo de linha Model X custa a partir de US$ 83 mil nos Estados Unidos e é vendido por quase R$ 1 milhão no Brasil), entrou nesse mercado e construiu com a Panasonic uma fábrica de baterias no estado de Nevada, a Gigafactory, que começou a operar este ano. A expectativa de Elon Musk, dono da companhia, é de que a fábrica provoque uma redução no custo de produção das baterias superior a 30% quando estiver operando em plena carga, no ano que vem. Para os especialistas, a vantagem ambiental oferecida pelos elétricos ao lado das preocupações com o esgotamento dos combustíveis fósseis faz da mobilidade elétrica uma forte promessa para o futuro. “O mundo ruma na direção dos elétricos”, diz Nigro. Mas essa tecnologia ainda precisa superar desafios – como a limitada autonomia oferecida pelas baterias e o seu preço, ainda elevado demais para a maioria dos consumidores – para que seja difundida em larga escala no mundo. n

ELÉTRICO A BATERIA (VEB) Também conhecido como puro elétrico, usa exclusivamente energia da bateria, que precisa ser recarregada na rede elétrica. Não emite poluentes e é ideal para trajetos urbanos curtos Modelos Tesla Model 3, Nissan Leaf, Renault Zoe, Chevrolet Bolt, BYD e6

ELÉTRICO HÍBRIDO (VEH) Combina um motor a combustão com um elétrico – o carro alterna entre os dois buscando maior eficiência. A bateria é recarregada somente pelo motor convencional e pela energia gerada nas desacelerações e nas frenagens Modelos Toyota Prius, Ford Fusion, Lexus CT200h

ELÉTRICO HÍBRIDO PLUG-IN (VEHP) Versátil, é um híbrido no qual a bateria do motor elétrico pode ser recarregada tanto pela rede elétrica quanto pelo motor a combustão. Assim como o híbrido, tem maior autonomia do que o elétrico puro Modelos BMW i8, Mitsubishi Out­­lander, Volvo V60

PESQUISA FAPESP 258 | 21


Os desafios no Brasil Difusão dos modelos elétricos no país depende da superação de diversos obstáculos

O

s carros movidos a bateria já são uma realidade nas ruas de cidades europeias, americanas, chinesas e japonesas, mas no Brasil pouco se vê esses veículos. Entre 2011 e 2016, cerca de 4 mil automóveis elétricos ou híbridos foram licenciados – no ano passado, apenas 1.091 unidades, um número insignificante diante do 1,68 milhão de carros vendidos ao todo no Brasil. Como as montadoras instaladas no país não fabricam veículos de passeio com essa tecnologia, todas as vendas são de importados, bem mais caros do que os automóveis a combustão. O Toyota Prius, um dos mais baratos comercializados no país, custa a partir de R$ 120 mil. Além dele, cerca de uma dezena de modelos estão à disposição do consumidor brasileiro. “Redução de impostos, incentivos para a compra, liberação do rodízio e do uso da faixa exclu22 | agosto DE 2017

O motor dos automóveis elétricos é mais simples e tem bem menos peças do que os de modelos a combustão interna

siva de ônibus e acesso a áreas restritas da cidade são medidas que podem estimular tanto a utilização massiva desses veículos pela população como influenciar sua produção no Brasil”, recomenda Ricardo Guggisberg, presidente-executivo da ABVE. “Os elétricos e os híbridos são mais caros do que um veículo comum por causa da tecnologia empregada, mas a alta carga tributária contribui para que os valores finais sejam maiores.” Algumas das reivindicações da ABVE já foram atendidas. Em 2015, o governo reduziu o imposto de importação para carros elétricos e híbridos de 35% para uma alíquota máxima de 7%. Vários estados, entre eles Ceará, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo, isentaram ou reduziram a alíquota de IPVA, o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores, desses veículos, e a prefeitura de São Paulo dispensa do rodízio os automóveis movidos a eletricidade. Especialistas, no entanto, questionam a efetividade de conferir incentivos para uma indústria que sempre teve ajuda do governo. Um estudo do Instituto Econômico de Montreal (MEI), do Canadá, mostrou que o estímulo aos veículos elétricos nem sempre é eficiente. Lá, o governo da província de Ontário oferece ao consumidor até 14 mil dólares canadenses (R$ 34,9 mil) para a compra de um híbrido ou elétrico, enquanto em Quebec a quantia chega a 8 mil dólares canadenses (R$ 20 mil). O pesquisador Germain Belzile, do MEI, e o consultor independente Mark Milke fizeram as contas e concluíram que o incentivo em Ontário custa 523 dólares canadenses (R$ 1.320) por tonelada de CO2


não emitido – equivalente ao total de gás de efeito estufa (GEE) –, enquanto em Quebec esse valor cai para 288 dólares canadenses (R$ 730). Para chegar a esses valores, eles consideraram que os modelos elétricos emitem 30 toneladas de CO2 a menos do que os veículos a combustível fóssil, em uma década. Como o preço no mercado de crédito de carbono de cada tonelada de GEE eliminada é de 18 dólares canadenses, ao subsidiar a compra do carro elétrico, os governos de Ontário e de Quebec gastam, respectivamente, até 29 vezes e 16 vezes mais. No mercado de carbono, empresas e países negociam certificados que equivalem a cada tonelada de GEE não emitida ou retirada da atmosfera. malha de recarga

fotos  léo ramos chaves

Outro desafio a ser vencido pela mobilidade elétrica é a criação de uma infraestrutura para recarga das baterias, com a implantação de eletropostos em centros urbanos e estradas. “Em um país com dimensões continentais como o Brasil, esse é um grande desafio. Já pensou se uma pessoa quiser fazer uma viagem de São Paulo a Belém com um carro elétrico? Ele vai precisar encontrar muitos eletropostos ao longo do caminho”, pontua o engenheiro mecânico Marcelo Alves, do CEA/USP. Não existem dados oficiais, mas estima-se que a rede nacional de recarga não chegue hoje a 100 unidades. Para solucionar esse problema, uma proposta em tramitação no Senado obriga a instalação de eletropostos em estacionamentos públicos e garagens de prédios. A medida, entretanto, é questionada até pelos defensores dos veículos elétricos. “Será que é certo exigirmos a instalação de eletropostos sem termos ainda uma frota consolidada? O importante é fazer com que o aumento do número de elétricos seja natural, e que essa evolução seja acompanhada de eletropostos onde for necessário”, defende o engenheiro eletricista Ricardo Takahira, da ABVE. A regulamentação da venda da energia para recarregar as baterias é outro assunto em discussão. A legislação proíbe a cobrança de reabastecimento

Laboratório de Mobilidade Elétrica do CPqD e da CPFL Energia, em Campinas: avaliação de pontos de recarga

em eletropostos públicos, pois só concessionárias registradas na Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) podem comercializar energia. “A Aneel abriu este ano uma audiência pública para discutir o tema, já que o marco regulatório impõe restrições à execução de recarga pública de veículos elétricos por órgãos e empresas que não sejam os distribuidores de energia”, destaca o engenheiro eletricista Danilo do Nascimento Leite, coordenador do Programa de Mobilidade Elétrica – Emotive, da CPFL Energia. Um dos modelos em debate é aquele em que os quilowatts consumidos na recarga são cobrados na conta de luz do dono do carro. “O motorista passaria um cartão para liberar o abastecimento e o valor iria para sua conta de energia”, sugere Takahira. velocidade de abastecimento

Diferentes padrões de plugs e conectores em eletroposto de recarga rápida de veículos elétricos

A indústria também trabalha para acelerar o tempo de recarga. Enquanto os veículos a gasolina e álcool são abastecidos em minutos, os elétricos precisam de pelo menos uma hora. Existem três sistemas de alimentação. Os de recarga rápida recarregam 80% da bateria em 30 minutos e precisam de mais 30 para completar os 20% restantes; os semirrápidos levam até três horas; e os normais demoram de 6 a 22 horas para deixar a bateria carregada. “A lógica do sistema é que eletropostos de recarga rápida e semirrápida sejam instalados em locais públicos, como shopping centers, para que o usuário reabasteça o carro enquanto faz compras. Já os pontos de recarga normal devem ficar em residências, para recarregar as baterias de madrugada”, explica o engenheiro eletricista Vitor Torquato Arioli, pesquisador da Área de Sistemas de Energia da Fundação Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD). Em parceria com a CPFL Energia, o CPqD mantém uma unidade de pesquisa, o Laboratório de Mobilidade Elétrica, que estuda eletropostos comerciais usados ao redor do planeta. A exemplo do que ocorre com os plugues de tomadas elétricas, PESQUISA FAPESP 258 | 23


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Estudo da CPFL Energia indica que veículos a bateria causam baixo impacto na rede elétrica

cujo padrão varia conforme o país, os pontos de recarga têm uma diversidade de conectores (peça na extremidade do cabo que se encaixa no carro para fazer a recarga). “Existem vários fabricantes de eletropostos no mundo, como a chinesa BYD e a alemã Siemens, mas é importante que o Brasil desenvolva eletropostos para não haver dependência internacional desse equipamento”, opina Arioli. Há uma discussão no mundo sobre padronizar os conectores para simplificar o processo de recarga das baterias dos diversos modelos de carros existentes, de modo a evitar a necessidade de duplicar a infraestrutura necessária. O Laboratório de Mobilidade Elétrica também pesquisa o impacto dos veículos a bateria sobre a rede elétrica. Há dois anos, a CPFL Energia fez um estudo para verificar os reflexos do uso em massa de veículos elétricos no consumo de energia no país. “Estimamos que a expansão dos modelos elétricos teria impacto limitado na demanda de energia”, afirma Danilo Leite. “Nossas projeções iniciais apontam que o uso dessa tecnologia ampliaria o consumo de energia entre 0,6% e 1,7% no Sistema Interligado Nacional (SIN) em 2030, quando as previsões indicam que a frota de elétricos no país poderá alcançar entre 5 milhões e 13 milhões de unidades.” Segundo especialistas, além de causar baixo impacto na rede elétrica, os carros a bateria poderiam ser usados para equalizar o sistema elétrico 24 | agosto DE 2017

Modelo em escala reduzida do superesportivo da Electric Dreams: ensaios são realizados em túnel de vento

Técnico do centro de P&D da Itaipu Binacional trabalha no desenvolvimento de uma bateria para carros a eletricidade (acima). Mais de 80 protótipos elétricos já foram montados pela usina (à dir.)

nacional. “É o conceito de smart grid. Embora o veículo elétrico não seja um produtor de energia, ele tem o potencial de funcionar como um pulmão em horários de pico, como no fim da tarde. Conectado a um eletroposto, poderia devolver à rede a energia não utilizada, suprindo o sistema”, sugere o engenheiro eletricista Celso Novais, coordenador do Programa Veículo Elétrico da Itaipu Binacional, um dos principais centros de estudo sobre mobilidade elétrica no país. Criado em 2006, o programa pesquisa soluções na área de mobilidade elétrica. Mais de 80 protótipos elétricos já foram montados no Centro de Pesquisa, Desenvolvimento e Montagem de Veículos Elétricos (CPDM-VE) da usina. “No início, obtivemos know-how por meio da parceria com a suíça Kraftwerke Oberhasli AG, controladora de hidrelétricas na região dos Alpes, para realizar a transformação de veículos a combustão em elétricos. Na época, boa parte dos componentes era de importados. Hoje, cerca de 60% são produzidos no Brasil”, conta Novais. Em 2014, a Itaipu iniciou a montagem do compacto elétrico Renault Twizy, fruto de um acordo com a montadora francesa. O carro chega parcialmente desmontado e os técnicos fazem a integração do sistema de tração, baterias e motor elétrico, somando cerca de 90 itens. O objetivo da iniciativa é aprofundar os estudos de nacionalização dos componentes e preparar fornecedores de autopeças para o mercado. “Não temos a intenção de nos tornarmos uma fábrica de veículos elétricos – este é o papel das montadoras de automóveis –, mas queremos dominar essa tecnologia”, relata Novais.

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fotos 1 Alexandre Marchetti / Itaipu Binacional 2 eletric dreams 3 Caio Coronel / Itaipu Binacional

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“Quando houver demanda, a indústria local poderá produzir os principais sistemas, como motores elétricos e inversores.” O programa de Itaipu tem como parceiros fabricantes de componentes automotivos, como a Weg, que produz motores elétricos, e a Moura, indústria de baterias, além de institutos de pesquisa e concessionárias de energia. modelo nacional

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Por dentro de um elétrico Sem ruídos da combustão e do cano de escape, condução dos modelos movidos a bateria é suave e silenciosa

1 BATERIA O conjunto de baterias armazena a energia usada no funcionamento do motor elétrico. Pesa a partir de 250 quilos e em alguns veículos fica alojado no assoalho

Ponto de carregamento

infográfico ana paula campos ilustração alexandre affonso

1 3

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Nos últimos anos, houve no país várias iniciativas visando à construção de um veículo elétrico nacional em larga escala, mas nenhuma vingou. Uma pequena empresa de São José dos Campos (SP), a Electric Dreams, persegue essa meta. Ela investe há seis anos no projeto de um superesportivo capaz de acelerar de 0 a 100 km/h em apenas 2,7 segundos. Com quatro motores, um para cada roda, o modelo foi desenvolvido com base em simulações computacionais e ensaios em túneis de vento usados pela indústria aeronáutica. “Desenvolvemos o carro do zero. Criamos todos os sistemas, algoritmos de controle e softwares embarcados, e já temos um modelo em escala reduzida. Nossa intenção é que nosso superesportivo sirva de laboratório para gerar carros elétricos mais simples, ônibus e caminhões”, declara o engenheiro aeronáutico Fábio Zilse Guillaumon, ex-funcionário da Embraer que deixou a fabricante de aviões para montar a Electric Dreams. O projeto tem recursos do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP e do Fundo Tecnológico (Funtec) do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O CPqD colaborou no desenvolvimento da bateria. “O sistema de armazenamento de energia é o coração e um dos grandes desafios técnicos do carro”, avalia Guillaumon. “A solução proposta foi uma bateria com dois tipos de células de lítio, que fornece energia para os motores e proporciona autonomia de 400 km, similar à dos carros a combustão”, conta. A previsão é de que um protótipo seja finalizado no próximo ano. Apesar dos esforços de pesquisa, ainda deve levar algum tempo para o Brasil se inserir na cadeia produtiva mundial dos veículos elétricos, seja fabricando carros localmente, seja fornecendo componentes para as montadoras globais. “O Brasil tem uma matriz energética limpa e um combustível renovável líquido vantajoso, o etanol”, afirma Francisco Nigro, da Poli-USP. “Não temos necessidade de incentivar a cadeia do elétrico com o mesmo ímpeto de Europa, China e Estados Unidos.” n

2 Inversor

3 Motor elétrico

4 Freio regenerativo

Projeto

Também chamado de módulo de controle, gerencia a energia elétrica gerada pela bateria e enviada ao motor

O motor converte a eletricidade das baterias em movimento, que gira o eixo das rodas e faz o veículo se mover

Transforma a energia cinética do movimento do carro em energia elétrica, que reabastece as baterias

Desenvolvimento do assoalho de um veículo elétrico puro em função de suas características aerodinâmicas, térmicas e mecânicas (nº 12/51376-8); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador Responsável Fábio Zilse Guillaumon (Electric Dreams); Investimento R$ 152.690,00.

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Baterias mais eficientes A maior limitação tecnológica do carro elétrico é o sistema de armazenamento de energia, que tem relação direta com a autonomia

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onsórcios de pesquisa da Ásia, Europa e Estados Unidos, formados por fabricantes de baterias, montadoras de automóveis, universidades e centros de inovação, travam uma corrida na busca de uma bateria que apresente maior densidade de energia (quantidade de energia armazenada por seu volume), tenha vida útil mais extensa, possua menor custo e seja mais segura. Hoje, o valor da bateria corresponde a até 50% do preço do automóvel, mas seu custo vem caindo de forma consistente. O preço da bateria, em termos de sua capacidade de armazenamento, está próximo de US$ 300 por quilowatt-hora (kWh) – cerca de R$ 960 por kWh. Há sete anos era três vezes maior. Paralelamente, ela tem se tornado mais eficiente do ponto de vista energético, proporcionando maior autonomia aos veículos – quanto mais energia a bateria acumula, maior quilometragem o veículo pode rodar. Sua densidade energética mais do que triplicou nos últimos sete anos, atingindo cerca de 350 watts-hora por litro (ver infográfico na página 27). Um watt-hora (Wh) corresponde à potência de 1 watt por uma hora e é a unidade

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Ensaios de resistência das baterias lítio-íon do CPqD usadas em veículos elétricos

usada para medição de energia elétrica, ao passo que litro (L) refere-se ao volume da bateria. O estado da arte em termos de bateria são as de lítio-íon, similares às usadas em celulares e notebooks. “A grande vantagem dessas baterias é sua alta densidade energética. Por ser um metal leve, o lítio é capaz de armazenar maior quantidade de energia em espaços menores”, destaca a química Maria de Fátima Rosolem, pesquisadora da Área de Sistema de Energia do CPqD. “Além disso, tem um elevado eletropotencial, isto é, a capacidade de ganhar ou perder elétrons, que é o princípio básico da geração de corrente elétrica”, pontua. As baterias são constituídas por uma ou várias células de lítio-íon interligadas num mesmo conjunto. Os tipos mais comuns são as cilíndricas, parecidas a pilhas pequenas, medindo 18 milímetros (mm) de diâmetro por 65 mm de altura. O segundo modelo, conhecido como pouch, tem formato plano e achatado. Há, por fim, as prismáticas, que lembram uma caixa retangular do tamanho de um livro. Como a célula tem uma tensão média de 3,6 volts (V) e um carro elétrico precisa de 300 a 600 V para funcionar, centenas ou milhares de células de lítio são usadas na bateria para gerar energia . Os modelos da Tesla, por exemplo, têm 7,4 mil células cilíndricas, empacotadas em módulos menores e acomodadas no assoalho do veículo. O problema do lítio é sua segurança de operação. “As baterias trabalham bem numa temperatura de até 25 graus Celsius. Acima disso, é preciso mantê-las refrigeradas. O superaquecimento pode causar sua explosão”, afirma o engenheiro eletricista Cel-


O segredo das baterias de lítio

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Por serem feitas com um metal leve, elas conseguem armazenar mais energia em menos espaço

CARGA E DESCARGA Os íons de lítio se deslocam do ânodo para o cátodo, gerando uma corrente elétrica, que alimenta o motor do carro. Na hora da recarga, os íons de lítio fazem o movimento inverso, acumulando energia na bateria

infográfico ana paula campos ilustração alexandre affonso

descarga e–

Corrente carga

2 NO FUTURO

Ânodo: a placa negativa é composta por grafite Separador: permeável, impede o contato das duas placas, mas permite a passagem dos íons

Cátodo: a placa positiva é formada por óxidos metálicos de lítio Eletrólito: solvente orgânico com sais de lítio em estado líquido por onde os íons se movem

Para elevar sua densidade energética e capacidade de gerar energia, pesquisadores buscam aumentar a quantidade de íons de lítio que se deslocam de uma placa para outra. Há também estudos com outros metais em substituição ao lítio Fonte cpqd

so Novais, do Programa Veículo Elétrico da Itaipu Binacional. Para contornar essa limitação, a bateria conta com um circuito eletrônico que faz seu gerenciamento e a mantém funcionando em condições adequadas de temperatura, corrente e tensão. O desbalanceamento da bateria, que ocorre quando suas células trabalham em ritmo diferente, também diminui seu poder de ciclagem (número possível de descargas e recargas) e sua vida útil, hoje em torno de oito anos. “Após esse período, elas perdem até 30% da capacidade inicial. Mas podem ser reaproveitadas em outras aplicações, como armazenamento de energia fotovoltaica em residências e centrais de telecomunicações”,

CUSTO EM BAIXA, DENSIDADE EM ALTA Confira a evolução do valor e da densidade energética das baterias

custo da bateria (dólares por kWh)

Fonte Global EV Outlook 2017 / AIE

900 800

500

Custo Densidade energética

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300

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Projeção

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0 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016

2022

densidade energética (Wh/L)

1.000

sustenta Maria de Fátima. “Como não contêm metais pesados, podem ser recicladas.” Quando as baterias se esgotam, os donos de carros elétricos precisam repô-las ou trocar de veículo, dado que a bateria representa metade de seu valor. Este é mais um fator a encarecer os carros elétricos. As baterias modernas empregam óxidos metálicos de lítio na confecção da placa positiva (cátodo) e grafite na negativa (ânodo) (ver infográfico ao lado). “A composição das placas é o elemento-­ -chave para melhorar o desempenho da bateria”, diz Maria de Fátima. Cientistas buscam identificar novos metais e a melhor combinação de lítio com outros materiais para otimizar sua densidade energética. Duas apostas são as baterias de zinco-ar e lítio-ar, que conseguem armazenar quase duas vezes mais energia do que os modelos de lítio-íon, mas ainda estão em estágio de desenvolvimento. Recarga por indução

Em maio deste ano, a fabricante de chips para smartphones Qualcomm apresentou uma tecnologia de carregamento de bateria com o carro em movimento. Batizada de Dynamic Electric Vehicle Charging System (DEVC), ela fornece energia para a bateria por indução (sem que haja contato entre o carro e o carregador, instalado no solo) durante o deslocamento do veículo sobre um pavimento especial, dotado de uma espécie de trilho eletrificado. A vantagem do DEVC é que os carros poderão ter baterias menores, sem perda de autonomia. No Brasil, são poucos os estudos básicos sobre a química de baterias para carros elétricos. O mais comum são testes de tecnologias prontas e pesquisas incrementais envolvendo células já existentes. “Fazemos estudos de caracterização e envelhecimento em células e desenvolvemos baterias completas, com células de lítio-íon comerciais, porém projetando a eletrônica de controle, o sistema de refrigeração e o empacotamento mecânico”, conta o pesquisador Raul Beck, do CPqD. Em Foz do Iguaçu (PR), a equipe do Programa Veículo Elétrico de Itaipu conseguiu criar uma bateria de sódio, níquel e cloro, 100% reciclável. “Nosso modelo tem características equivalentes à de lítio em termos de capacidade de armazenamento e potência”, explica Celso Novais. “No entanto, ela tem o formato de um monobloco, que não pode ser dividido em módulos menores. Por isso, é mais adequada a veículos elétricos maiores, como ônibus, trens e caminhões.” O projeto de nacionalização da bateria de sódio de Itaipu teve início em 2012. “Agora, estamos trabalhando com empresas suíças e alemãs em uma versão avançada do modelo. Caracterizada por células planas e compactas, poderá ser dividida em módulos menores. Nossa expectativa é de que seja mais competitiva do que as baterias à base de lítio e que comece a ser produzida em 2019”, declara Novais. n PESQUISA FAPESP 258 | 27


entrevista Eduardo S. Brondizio

A Amazônia urbana é invisível Antropólogo propõe diálogo para aproximar o debate ambiental e a discussão sobre o desenvolvimento socioeconômico

Fabrício Marques  |

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retrato

Léo Ramos Chaves

antropólogo paulista Eduardo S. Brondizio vive desde o início dos anos 1990 nos Estados Unidos, onde fez carreira como professor da Universidade de Indiana, em Bloomington. Seus interesses de pesquisa, porém, jamais deixaram o Brasil. Permaneceram ancorados em áreas da Amazônia como nos municípios da região da Ilha de Marajó, no Pará, ou nas franjas das rodovias Cuiabá-Santarém e Transamazônica, que ele visita periodicamente. Ali, Brondizio e seus alunos, muitos deles brasileiros, comparam dados estatísticos e de sensoriamento e entrevistam famílias de ribeirinhos e de imigrantes recém-chegados, para compreender como elas tomam decisões sobre migração e uso da terra com impacto na transformação social e na paisagem regional. O acompanhamento de parte das famílias é feito há quase 30 anos. Várias delas não vivem mais em áreas rurais. São encontradas nas periferias das cidades, para onde se transferiram em busca de oportunidades, num processo de transformação da Amazônia que se acelerou de forma exponencial desde os anos 1970. Perto de 80% da população da região habita cidades e padece de problemas clássicos como falta de saneamento, desemprego e 28 | agosto DE 2017

criminalidade. Tais questões, ele observa, são relegadas nas discussões sobre o futuro da Amazônia, que é valorizada internacionalmente como grande estoque de carbono e santuário da biodiversidade. Nascido em São José dos Campos há 54 anos, Brondizio estudou agronomia na Universidade de Taubaté, onde se interessou pela mudança no padrão de uso da terra de comunidades rurais. Passou pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e coordenou pela Fundação SOS Mata Atlântica o primeiro atlas do domínio da Mata Atlântica, desenvolvido em colaboração com o Inpe. Em 1991, foi fazer doutorado em antropologia ambiental na Universidade de Indiana, orientado pelo antropólogo Emilio Moran, mas não conseguiu voltar para o Brasil como planejara: sua formação interdisciplinar de agrônomo, especialista em sensoriamento remoto e antropólogo não se encaixava em programas disciplinares das universidades. Depois de um ano na Universidade do Arizona, foi contratado em 1998 pela própria Universidade de Indiana, onde é professor titular e foi chefe do Departamento de Antropologia, um dos mais tradicionais do país, por sete anos. Desde 2015 é diretor do interdisciplinar Centro de Análise de Paisagens Socioecológicas (Casel).


idade 54 anos especialidade Antropologia ambiental formação Graduação em agronomia (1987) pela Universidade de Taubaté; doutorado em antropologia ambiental (1996) pela Universidade de Indiana instituição Universidade de Indiana produção científica 190 artigos e capítulos de livros, 7 livros e periódicos especiais; 12 orientações ou co-orientações de doutorado e 4 de mestrado, 7 supervisões de pós-doutorado

PESQUISA FAPESP 2xx | 29


De passagem pelo Brasil, antes de seguir para trabalho de campo no Pará e no Maranhão, Brondizio deu a Pesquisa FAPESP a entrevista a seguir, em que fala da sua trajetória e de sua missão mais recente: ele é um dos coordenadores, ao lado da argentina Sandra Diaz e do alemão Josef Settele, de um painel que está produzindo para a Plataforma Intergovernamental de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES), ligada às Nações Unidas, a mais abrangente avaliação sobre biodiversidade e ecossistemas e suas contribuições para a sociedade. Como evolui o trabalho do painel de especialistas que está preparando a Avaliação Global sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos? É um projeto ambicioso, que busca fazer uma síntese do que aconteceu nos últimos 50 anos do ponto de vista ambiental e municiar a nova fase da agenda global de biodiversidade e desenvolvimento sustentável para o período de 2020 a 2030. Estamos terminando a primeira versão e há mais dois anos de trabalho pela frente. São 150 autores de mais de 60 países. A análise tem uma agenda inovadora de inclusão de conhecimento e práticas indígenas e locais, e de problemas enfrentados por essas populações. É a primeira vez que se consegue em um levantamento dessa escala uma representatividade das ciências sociais e das ciências naturais mais ou menos equivalente. Quais são as dificuldades de produzir um trabalho como esse? Houve um esforço grande para montar um time diverso, do ponto de vista geográfico, disciplinar e de gênero. Essa é uma parte importante do trabalho: trazer pessoas reconhecidas em suas áreas, capazes de falar sobre problemas que transcendem suas disciplinas. Usamos um modelo conceitual que explicita mecanismos de inter-relação entre natureza e sociedade e suas implicações para o bem-estar das pessoas e para a biodiversidade. Começamos bem, alinhavando temas que aglutinam problemas ambientais de uma maneira que eles se encontrem com as demandas sociais. Por exemplo, a implicação das trajetórias atuais de urbanização para os próximos 20 anos; ou a conciliação de políticas contra a pobreza com as políticas de conservação; ou ainda os desafios de governar os recursos 30 | agosto DE 2017

Há inabilidade em valorizar os recursos regionais da Amazônia e em promover uma economia transformativa e não extrativista

comuns globais de maneira sustentável. São grandes questões de interesse para políticas públicas, que servem para orientar uma síntese relevante e útil para diferentes regiões e setores da sociedade. E o objetivo é apontar caminhos para os próximos 20 anos... Além de uma análise das mudanças nos últimos 50 anos, um dos objetivos é ampliar a discussão sobre mudanças climáticas não como um fim em si mesma, mas como parte de um processo de mudanças sociais e ambientais maior, com diferentes visões de desenvolvimento e de futuro. Promover, de modo isolado, a energia renovável ou políticas de captação de carbono não necessariamente vai trazer soluções para as vulnerabilidades ambientais e o desenvolvimento de diferentes regiões. Esperamos contribuir para aproximar a discussão ambiental e climática do debate social e de desenvolvimento socioeconômico. O descompasso entre o debate das mudanças climáticas e políticas de desenvolvimento foi um dos motes para a saída dos Estados Unidos do Acordo de Paris. Isso está contemplado no trabalho?

A questão norte-americana é muito complexa. Alguns levantamentos mostram que a maioria da população se preocupa com as mudanças climáticas e apoia mudanças na sociedade. Há, porém, divisões partidárias e ideológicas que manipulam questões de maneira a polarizar agendas políticas alinhadas a interesses de certos setores econômicos. Essa polarização cria um debate de certa maneira falso entre oportunidades e ameaças ao estilo de vida americano. Em parte, isso reflete como a questão climática tem sido tratada separadamente da realidade social e ambiental das pessoas. Nos Estados Unidos ou no Brasil, precisamos sair de um debate simplista e confrontar a complexidade dos dilemas coletivos que a mudança climática nos obriga a encarar. O que se pode esperar concretamente do levantamento? Além de apresentar um retrato atual do planeta, vamos avaliar a agenda global de biodiversidade colocada em prática entre 2011 e 2020. Há uma parte do levantamento mais reflexiva, que é pensar em objetivos e futuros desejáveis. Como preservar a floresta e manter a necessária produção alimentar de maneira mais inclusiva? Como é possível resolver problemas urbanos de uma maneira socialmente justa e ambientalmente adequada? Como governar os recursos comuns globais como os oceanos, a biodiversidade e todos os benefícios “invisíveis” que tiramos da natureza? Talvez uma das partes mais inovadoras seja refletir sobre caminhos alternativos para chegar a objetivos desejados. O momento é oportuno, pois há vários debates que se encontram travados em parte por falta de diálogo entre as ciências e entre elas e diferentes setores da sociedade. Um levantamento como esse permite fazer perguntas que nos forçam a considerar diferentes pontos de vista, assim como reconhecer que, do ponto de vista ambiental e de desenvolvimento socioeconômico, nossas interdependências transcendem fronteiras, culturas e classes sociais. E onde se encaixa o debate sobre o futuro da Amazônia? Nos países do hemisfério Norte, houve uma aceleração muito forte da transformação ambiental e social desde a Segunda Guerra. E o que se viu depois foi um deslocamento regional desse fenômeno


arquivo Pessoal

Brondizio com colonos em trabalho de campo na Transamazônica em 2001

para outras partes do globo. Esses deslocamentos de impacto também acontecem dentro de países como o Brasil. Por isso, mesmo observando melhorias em algumas regiões, o ambiente global se deteriora. O que vemos hoje na Amazônia é a reprodução de um processo de expansão de extração de recursos que se alinha a visões políticas nacionais e fortes interesses econômicos e que desencadeia uma transformação intensa para alimentar cadeias de mercado regionais e globais. Continuaremos a ver mudanças intensas na Amazônia, assim como em partes da América Latina, Ásia e África. Como o que sucede hoje na Amazônia tem a ver com o que ocorreu globalmente? A Amazônia é emblemática por ser possível enxergar a confluência de várias forças na região, como a pressão do mercado global para obter matérias-primas, a pressão promovida pela visão desenvolvimentista agressiva nacional ou a urbanização generalizada. Mas também reações a esses processos e contradições entre essas forças operando lado a lado. A Amazônia vem passando por fases de transformações ambientais e sociopolíticas. Houve uma mudança na configuração regional a partir do final dos anos 1980 e começo dos anos 1990, e que se intensificou nos últimos 10 anos, quando processos que aconteciam de forma desarticulada começam a interagir fisica, social e virtualmente. As transformações não envolvem só flutuações em taxas de desmatamento. Quando se analisam as tendências demográfica, de in-

fraestrutura, de extração, de consumo e de poluição, vê-se que a Amazônia é um microcosmo da aceleração global e dos problemas decorrentes. Há muitos exemplos de iniciativas positivas de indivíduos, grupos, municípios que, porém, nadam contra uma correnteza de problemas estruturais, interesses corporativos e políticas públicas contraditórias. Há ainda uma inabilidade em valorizar os recursos regionais e promover uma economia transformativa e não extrativista, para beneficiar a região e sua população. Qual é o prejuízo? Áreas de conservação e indígenas estão virando ilhas de diversidade biológica e cultural, a poluição dos rios e problemas urbanos aumentam e conflitos sociais se multiplicam. Há um processo muito rápido de urbanização e os municípios não conseguem acompanhar as demandas por serviços públicos e sociais e por manejo ambiental criadas pela transformação. A Amazônia também é emblemática do Brasil e de outras regiões no que tange à violência. A região tem uma longa história de violência indígena e agrária que continua, mas agora também a trajetória de violência urbana é assustadora, afetando cidades grandes e pequenas. Além da expansão do tráfico de drogas, ela reflete a falta de uma economia transformativa capaz de criar mais renda e oportunidades para a população. A maioria dos municípios está insolvente e dependente de transferências federais, assim como muitas famílias. Há a reprodução histórica de uma economia política extrativista.

A economia do açaí, que o senhor estudou, seria um exemplo disso? O açaí é emblemático. A indústria do açaí que vemos hoje vem das mãos dos pequenos produtores e ribeirinhos da região. Vem de um conhecimento local e da tecnologia de intensificação agroflorestal deles que permitiu responder primeiro a uma demanda urbana regional. A partir disso é que cresceu para atender o mercado nacional e global. Toda a região do estuário-delta do Amazonas está imersa em uma economia produtiva florestal que é inclusiva, ambientalmente favorável, tem um mercado forte e ligado à identidade regional. O açaí movimenta uma economia informal imensa e importante. Mesmo assim, não se valorizam os produtores como agentes ativos do processo de globalização dessa economia e os municípios como locais onde deveria acontecer a agregação de valores. Assim como outros recursos regionais, a cadeia produtiva do açaí tem um sistema de agregação de valor que é proporcional à distância da área produtora. Como consequência, os produtores não levam os benefícios. O que eles ganham é pouco em comparação ao valor agregado longe dali. Nos nossos levantamentos nessa região, uma porcentagem pequena, em torno de 20% das famílias, consegue viver do açaí como primeira renda. A maior parte depende de aposentadoria e de programas de transferência de renda, como o Bolsa Família. Isso é um retrato da realidade regional. O quanto as cidades estão vulneráveis? O que me chama mais a atenção, e tenho tentado expor o máximo possível em artigos ou apresentações, é a invisibilidade do problema urbano na Amazônia, o “elefante na sala” do desenvolvimento sustentável. Me refiro a problemas urbanos relacionados à pobreza e à vulnerabilidade ambiental, como inundações e carências sanitárias, e violência. Mais da metade da população de Belém está vulnerável a inundações, que trazem lixo e esgoto. Ninguém fala de poluição na Amazônia, da poluição orgânica doméstica ou dejetos industriais ou de pesticidas. Isso é incrível. Quase a totalidade do esgoto e boa parte do lixo gerado nas mais de 700 cidades da região vão para os rios. E ninguém fala nisso. Prevalece uma mentalidade segundo a qual o rio absorve tudo e que a população é “adaptada” PESQUISA FAPESP 258 | 31


Estudioso da cultura do açaí, o pesquisador acompanha produtores no Amapá, em 2006

a uma realidade sanitária brutal. A escala da natureza regional esconde problemas tão grandes quanto o desmatamento. Tenho orientado o meu trabalho para esta questão: enxergar os efeitos da urbanização que se manifestam nas cidades e seus entornos, na vida de milhões de pessoas, e as implicações das redes interurbanas para a configuração da paisagem regional nas próximas décadas. Aceita-se uma realidade social cruel como se fosse naturalizada. Sem falar da violência. Grandes áreas de cidades como Manaus e Belém, assim como rios no entorno, são controladas por criminosos e piratas e esta realidade se espalha para pequenas cidades. Como evoluiu sua pesquisa na região? Comecei a trabalhar na região em 1989 com o Emilio Moran, estudando comunidades ribeirinhas do Marajó e as suas formas de adaptação ao ambiente local e interações com o processo de desenvolvimento. Ter tido o Emilio como orientador e colaborador de longo prazo no Anthropological Center for Training and Research on Global Environmental Change (ACT) em Indiana foi um privilégio. Esse trabalho continuou em colaboração com o Walter Neves, recém-aposentado da USP, Rui Murrieta, também professor na USP, e vários colegas dentro do grupo de ecologia e biologia humana na época no Museu Emilio Goeldi em Belém. O Walter liderou um projeto de antropologia ecológica interdisciplinar e inovador apoiado pelo CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico]. Durante todo esse pe32 | agosto DE 2017

ríodo tenho trabalhado em colaboração com minha esposa, também antropóloga, Andrea D. Siqueira. Nossas filhas, Maira e Julia, sempre nos acompanharam na região. Minha perspectiva inicial era bem local e sempre trabalhei em nível de unidade doméstica para entender como as famílias tomam decisões envolvendo o uso da terra, migração, produção, como formam comunidades. Por que as famílias? Vejo a família como a unidade mais desagregada para entender o processo de transformação. Antes de ir para a Amazônia, meu primeiro trabalho de pesquisa foi avaliar em meados dos anos 1980 o impacto da construção da rodovia Rio-Santos na comunidade de Trindade. Meu interesse era estudar como uma estrada e o processo imobiliário que seguiu transformaram a paisagem de uma comunidade pesqueira e desenvolver metodologias de sensoriamento remoto para análise local. Essa é uma pergunta que norteia o meu trabalho desde o começo: entender a transformação das famílias rurais do Brasil, o que agora, seguindo essas famílias, me levou à análise da transformação urbana. Quando comecei a trabalhar na Amazônia, desenvolvi em colaboração com colegas uma metodologia através da qual nós pudéssemos examinar como o processo de decisão das famílias tem implicações para paisagem regional. Trabalhei nessa linha em várias regiões da Amazônia em um gradiente de populações rurais, de populações históricas a colonos recém-chegados. Mas sempre tendo

Como decisões tomadas por famílias influenciam transformações regionais? Vamos tomar o exemplo da urbanização no estuário-delta do Amazonas. A região tinha e ainda tem uma hierarquia social muito forte, que foi de certa forma quebrada com a ampliação das possibilidades de transporte, melhor acesso à comunicação, à mídia e a direitos. As pessoas passaram a enxergar outras opções na vida além das disponíveis para as gerações anteriores, que se viam dependentes de donos de terras, em geral, ausentes. As respostas de cada família ao mercado do açaí levaram a uma transformação da paisagem regional para uma economia agroflorestal. Essas possibilidades de transporte, de comunicação e mercado, e a renda que começou a vir com o açaí, alinhado com a falta de serviços na zona rural, levaram as pessoas a tomar decisões: as famílias começaram a comprar um lote na cidade e a fazer sua casinha, que se tornou uma opção para os filhos estudarem, para buscar atendimento de saúde e trabalho. A transformação urbana regional é resultado da interação entre expectativas e decisões individuais, pressões sofridas nas áreas rurais e indígenas e oportunidades criadas por mudanças na infraestrutura regional. Vimos uma reorganização familiar muito interessante nessa e em outras áreas da Amazônia, que é o que chamamos de famílias multilocalizadas. Para se adaptar a limitações econômicas e sociais, as famílias se organizam de maneira a ter membros na cidade e na zona rural. O senhor dirigiu o conselho do Workshop em Teoria Política e Análise de Políticas da Universidade de Indiana, criado em 1975 pela cientista política e ganhadora do Nobel Elinor Ostrom e conhecido por promover um ambiente de colaboração interdisciplinar. Que estratégias são usadas?

arquivo Pessoal

como objetivo manter um “pé dentro da casa”, entrevistando as famílias e entendendo o processo de baixo para cima, e com uma visão regional, trabalhando com informações mais agregadas, como dados censitários de setores e municípios, e de sensoriamento remoto. Nosso trabalho hoje se estende a estudos sobre a interação entre áreas indígenas, expansão agropastoril e as redes interurbanas que se expandem na região.


Vincent e Lin Ostrom criaram o workshop com a intenção de trabalhar com ideias de forma colaborativa, como em uma oficina onde há mestres e aprendizes que lapidam ideias conjuntamente. As questões principais do workshop são em torno de compreender dilemas de ação coletiva e da governança de recursos comuns e bens públicos. Um dos esforços da Lin foi criar arcabouços conceituais, como o Institutional Analysis and Development (IAD) e o de Sistemas Socioecológicos (SES), que se tornam ferramentas para colaboração interdisciplinar em torno de problemas complexos, não importando a escala. Trabalhar com ela foi um dos maiores privilégios que tive. Recebo em Indiana muitos brasileiros para serem treinados no IAD e SES e nas metodologias que desenvolvemos. Esses arcabouços permitem analisar de maneira sistemática e comparativa problemas de ação coletiva, como arenas que envolvem participantes com diferentes visões, posições e poderes. Eles interagem em um processo de negociação influenciado por regras formais e informais, pelo ambiente biofísico e social. Poderia dar exemplos dessas arenas? Por exemplo, a governança de um rio que atravessa propriedades agroindustriais e áreas indígenas. Ou as decisões da população sobre os danos e benefícios da construção de um empreendimento. Todos esses problemas lidam com recursos comuns sobre os quais a apropriação de uns limita o benefício de outros, onde se pode ver tanto cooperação como conflitos, dependendo dos atores, suas visões, poderes e o contexto no qual operam. O senhor tem orientandos de vários países. Que problemas eles estudam? Meus estudantes trabalham com diversos problemas sobre interação socioambiental, uso da terra, instituições e governança, relações rural-urbano, a globalização de produtos locais, o impacto de políticas públicas, identidade cultural de populações rurais, assim como as dimensões sociais das mudanças climáticas. Tenho a oportunidade de trabalhar com alunos e pós-doutores em diferentes partes da Amazônia e Brasil, nos Andes, na África, na Europa e na Ásia. Minhas duas últimas doutorandas, Ana de Lima e Andressa Mansur, ambas brasileiras, estudaram, uma, o impacto do Bolsa Família na eco-

Grandes áreas de cidades como Manaus e Belém, assim como os rios no seu entorno, são controladas por criminosos

nomia familiar e na saúde de mulheres e crianças no oeste amazônico, e a outra, a vulnerabilidade de populações urbanas à inundação nas cidades do estuário-delta do Amazonas. Temos estudantes trabalhando sobre globalização de quinoa, manejo e governança de recursos comuns em diferentes países, a atitude ambiental de pequenos e grandes produtores, o impacto de hidrelétricas, conservação e áreas indígenas, etnobotânica. A lista é longa. Como vai o trabalho com o Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais da Universidade Estadual de Campinas (Nepam-Unicamp), onde o senhor é professor colaborador? Temos um fluxo constante, em parte graças à FAPESP, de estudantes entre a Unicamp e Indiana. Construímos parcerias muito produtivas, por exemplo, com a equipe da socióloga Lucia da Costa Ferreira, que trabalha com uma perspectiva de arenas e conflitos que tem ajudado a expandir nossas ferramentas analíticas. E também com a equipe da antropóloga Celia Futemma, com a qual estamos estudando a cooperação entre pequenos produtores rurais e o papel da ação coletiva para conservação. Além disso, co-

laboro com colegas do Inpe, da Embrapa, da Fiocruz, da USP, das universidades federais do Pará, Maranhão, Brasília e outras. Também tem sido produtiva a colaboração com colegas da Universidade do Vale do Paraíba, junto ao laboratório da geógrafa Sandra Costa, que com apoio da FAPESP tem permitido continuar nossos levantamentos de populações ribeirinhas e entender a transformação das pequenas cidades da região estuarina. O senhor trabalhou no Inpe antes de ir para os Estados Unidos. O que fez? Com a abertura civil do Inpe, em 1985, procurei treinamento em sensoriamento remoto para entender como a estrada Rio-Santos influenciou a vida dos pescadores de Trindade. Passei dois anos no Inpe, privilegiado pela orientação do Dalton Valeriano, desenvolvendo uma metodologia de uso de sensoriamento para análise de transformação do uso da terra em escala local. Fui membro fundador e parte do corpo técnico da Fundação SOS Mata Atlântica e usei essas experiências para analisar a transformação histórica da Mata Atlântica no Brasil. Como foi o doutorado em Indiana? Desenvolvi um doutorado com concentração em antropologia ambiental e ciências do ambiente, trabalhando em uma tese sobre a globalização do açaí e as dimensões humanas do uso da terra. Passamos, eu e Andrea, boa parte desse período morando na Amazônia, principalmente no Marajó. Estávamos prontos para voltar, mas não encontramos oportunidades interessantes em concursos. Acabei indo para a Universidade do Arizona. Voltamos para Indiana para trabalhar com a Elinor Ostrom e o Emilio Moran em um novo centro de excelência interdisciplinar financiado pela National Science Foundation. A Universidade de Indiana deu em contrapartida cinco posições de professores para os departamentos disputarem, uma delas na minha especialidade. Foi superconcorrido e minhas chances eram pequenas porque nos Estados Unidos raramente se contrata acadêmico formado na própria universidade. Ganhei a posição no Departamento de Antropologia, o que me permitiu conciliar ensino e pesquisa disciplinar e interdisciplinar. Um caminho na época desafiante, mas que hoje está se tornando mais regra que exceção. n PESQUISA FAPESP 258 | 33


política c&T  Atlas y

Para aproveitar

o Sol Estudo indica áreas favoráveis para explorar a energia solar no Brasil Bruno de Pierro

<600

800

1.000

1.200

1.400

1.600

1.800

2.000

>2.200

kWh/m2/ano

O continente europeu apresenta uma grande gama de valores e ampla variabilidade dos índices de irradiação ao longo do ano, ao contrário do que ocorre no Brasil

fonte  enio pereira/inpe

A

produção de energia elétrica por meio de tecnologia solar fotovoltaica no Brasil está crescendo em ritmo acelerado, embora ainda represente menos de 0,02% da matriz de energia elétrica do país. Segundo dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), a potência instalada no território nacional no primeiro trimestre deste ano atingiu 107,6 megawatts (MW), 15 vezes mais do que a registrada no mesmo período em 2015. Para orientar a expansão da exploração desse tipo de energia no país, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) lançou a segunda edição do Atlas brasileiro de energia solar, que reúne um conjunto de informações acumuladas nos últimos 17 anos sobre a incidência de radiação e os locais mais propícios para a instalação de módulos fotovoltaicos. O documento substitui a primeira versão do Atlas, lançada em 2006, que reunia um espectro de informações menor, referentes à década anterior. Produzido em colaboração com instituições como as universidades federais de São Paulo e de Santa Catarina, a Tecnológica Federal do Paraná e o Instituto Federal de Santa Catarina, o Atlas identificou um potencial de geração de energia solar no Brasil que chega a 2.281 quilowatts-hora por metro quadrado por ano (kWh/m²/ano), o suficiente para produzir o equivalente a três vezes o consumo residencial anual nos estados da Bahia e de Pernambuco. O estudo reafirma que os maiores valores de irradiação solar ocorrem no chamado Cinturão Solar, faixa que vai do Nordeste ao Pantanal (ver mapa), em espe-


O potencial brasileiro Conheça algumas conclusões do Atlas feito pelo Inpe com base em 17 anos de observação do território nacional Cinturão Solar

O sertão da Bahia e boa parte de Minas Gerais ostentam as maiores taxas de irradiação dentro do chamado Cinturão Solar, faixa que vai do Nordeste ao Pantanal

A Amazônia tem muitas chuvas e nebulosidade durante o ano e é considerada a menos atrativa do país para grandes empreendimentos em energia solar

O Rio Grande do Sul apresenta índices de irradiação excelentes nos meses de verão. No inverno, é

Minas Gerais é o estado

o estado que registra os menores

com o maior número de

valores de irradiação solar do país

sistemas de microgeração de energia solar instalados no país. São 2.263, segundo a Aneel

O sudoeste de Minas Gerais, o noroeste de

Escala dos níveis de irradiação solar em quilowatts-hora por metro quadrado por ano 1.277

1.368

1.460

1.551

1.642

1.733

1.825

1.916

2.007

2.098

São Paulo e o norte do Paraná são áreas 2.190

2.281 kWh/m2 / ano

prioritárias para investimentos, em razão da maior facilidade de conexão ao sistema nacional de transmissão de energia, embora

fonte  atlas brasileiro de energia solar, com valores convertidos por enio pereira

não tenham os níveis de irradiação mais altos pESQUISA FAPESP 258  z  35


cial no sertão da Bahia e em boa parte de Minas Gerais. Uma novidade é a recomendação de que os investimentos em novas plantas de geração de energia fotovoltaica busquem também áreas mais ao sul, que abranjam o sudoeste de Minas Gerais, passando pelo noroeste de São Paulo e o norte do Paraná. Embora apresentem níveis de irradiação solar um pouco mais baixos que os do Nordeste, essas áreas têm acesso a mais pontos de conexão com o sistema interligado de transmissão de energia elétrica do país. “Os estados do Nordeste têm alta incidência solar, mas estão em uma região com menos opções de conexão com a rede nacional de distribuição de energia elétrica . Isso pode inviabilizar projetos na região, porque torna mais cara a interligação dos sistemas fotovoltaicos às redes de distribuição”, explica o físico Enio Pereira, pesquisador do Laboratório de Modelagem e Estudos de Recursos Renováveis de Energia do Inpe e coordenador do estudo. Procura-se com isso evitar problemas como os enfrentados na produção de energia eólica no país. “Alguns parques eólicos foram instalados no Nordeste sem linhas de transmissão suficientes. Essa situação acabou impondo a necessidade de novos investimentos no transporte de energia.” O custo de implantação da energia solar ainda é alto. Atualmente, são necessários aproximadamente R$ 8 milhões para erguer uma central solar com potência instalada de 1 megawatt (MW). Esse investimento representa em média três vezes mais do que o necessário para construir uma central eólica com a mesma capacidade. O Brasil conta com algumas centrais solares, como a Usina Solar de Tauá, no sertão cearense, e a Usina Solar Cidade Azul, no município de Tubarão, em Santa Catarina. monitoramento atualizado

Assim como aconteceu com o Atlas de 2006, a nova edição se propõe a orientar a elaboração de políticas para o setor de energia solar. “O primeiro Atlas foi lançado em uma época em que a energia solar fotovoltaica dava seus primeiros passos e ajudou a Empresa de Pesquisa Energética [EPE, empresa pública vinculada ao Ministério de Minas e Energia] a implementar os primeiros projetos”, afirma Pereira. O novo estudo traz um conjunto maior de dados e análises. “Refinamos os dados e aperfeiçoamos as metodologias. O Atlas funciona como uma ferramenta para incentivar os investidores a implementar mais projetos de energia solar, agora com uma base mais confiável de evidências”, ressalta. As informações foram coletadas em mais de 500 estações solarimétricas espalhadas pelo território nacional e no monitoramento por satélite dos índices de irradiação solar dos últimos 17 anos. O Brasil, mostra o estudo, tem uma distribuição bastante uniforme de irradiação solar, que varia 36  z  agosto DE 2017

Matriz de energia elétrica Participação de centrais solares na produção de eletricidade no Brasil ainda é pequena

Hidrelétrica

Termelétrica

61,27%

26,92%

Central eólica Central solar fotovoltaica

6,86% Pequena hidrelétrica

0,02%

3,27% Central hidrelétrica

0,35%

Termonuclear

1,31%

pouco na geografia do país. Uma exceção é a região amazônica, que tem muitas chuvas durante o ano e, por isso, não desperta interesse para grandes empreendimentos em energia solar. “A nebulosidade na Amazônia tem impacto negativo sobre a geração de energia em centrais solares”, afirma Pereira. Isso não impede que projetos de microgeração fotovoltaica, modelo baseado em painéis instalados nos telhados das casas, sejam implementados na região, alerta. A física Izete Zanesco, pesquisadora do Núcleo de Tecnologia em Energia Solar da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), salienta que o planejamento do setor deve levar em consideração as áreas que ficaram de fora do Cinturão Solar. “Como o Brasil tem níveis favoráveis de irradiação solar em todo o território, módulos fotovoltaicos podem ser instalados em residências ou empresas em qualquer lugar do país”, afirma. Já no caso de grandes centrais fotovoltaicas, ela reconhece que é mais produtivo seguir as informações do Atlas e instalá-las nas regiões com maior incidência solar. A Aneel projeta para 2024 mais de 800 mil residências no Brasil produzindo a própria energia elétrica por meio de fonte solar. No caso da microgeração, com potência instalada menor ou igual a 75 kW, havia, no primeiro trimestre de 2015, 556 sistemas de microgeração de energia solar instalados no país. Em agosto de 2017, esse número havia saltado para 12.977. A maioria desses sistemas concentra-se nos estados de Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul e Paraná. Um dos motivos do crescimento são as recentes mudanças na legislação e a regulamentação do

fonte  aneel


foto  plinio bordin

Com potência instalada de 3 MW, a Usina Solar Cidade Azul, no município de Tubarão, em Santa Catarina, é uma das maiores centrais do país

O Nordeste tem alta irradiação, mas está distante das redes de transmissão de energia, diz Enio Pereira

setor, que permitiram que o excedente de captação de energia solar gerado, por exemplo, em residências, possa ser distribuído para a rede de eletricidade, gerando um desconto na fatura de energia dos produtores domésticos. Algumas empresas já transformam esse excedente em um crédito a favor do consumidor, como é o caso da CPFL Energia na região de Campinas. Outro fator é que o preço dos sistemas fotovoltaicos caiu significativamente na última década, em parte devido à entrada da China no mercado fornecedor. “Hoje, mais de 80% dos módulos fotovoltaicos são produzidos na Ásia, especialmente na China, que também é o país que mais instala esses equipamentos”, explica o físico Arno Krenzinger, pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). De acordo com ele, o barateamento das placas pode favorecer a consolidação de mais empreendimentos no país, caso haja também políticas de incentivos mais fortes. “O Brasil depende da importação de células solares, um componente tecnológico dos módulos. Há grupos de pesquisa desenvolvendo esse material no país, mas não em escala industrial.” Mesmo mais acessível, trata-se de uma tecnologia cara para o consumidor comum. “O investimento para

quem quer instalar um sistema fotovoltaico de 2 kilowatts na residência é de aproximadamente R$ 15 mil”, estima Izete Zanesco. Isso representaria, em média, uma economia de aproximadamente R$ 200 reais por mês na conta de luz, variando de acordo com o estado. O Atlas identificou uma tendência de aumento da irradiação solar em quase todas as regiões do país. No Sudeste, por exemplo, a média diária de irradiação solar em 2006 foi de 5 kWh/m²/ano; em 2014 houve um leve aumento, para 5,2 kWh/m²/ ano. A exceção é a região Sul, que apresentou uma redução da incidência de radiação solar. Em 2006, a média era de 4,7 kWh/m²/ano e, em 2014, havia caído para aproximadamente 4,5 kWh/m²/ano. “Ainda assim, mesmo no local menos ensolarado do Brasil é possível gerar mais eletricidade solar do que no local mais ensolarado da Alemanha, um dos países mais avançados no uso dessa energia”, afirma Enio Pereira. De acordo com o pesquisador, os mecanismos físicos associados ao fenômeno ainda são pouco compreendidos. O estudo do Inpe também aponta tendências tecnológicas ligadas à energia solar que poderiam ser mais exploradas no país. Uma delas é a energia heliotérmica, em que a radiação solar é captada e armazenada em forma de calor – Espanha e Estados Unidos são alguns dos países que usam essa tecnologia. “Trata-se de um processo em que se utiliza a energia solar para aquecer um fluido, que passa por uma caldeira e gera vapor na usina termelétrica”, explica Enio Pereira, do Inpe. O Atlas também recomenda a expansão do uso da energia solar para aquecimento de água a temperaturas abaixo de 100 °C, em substituição a sistemas de aquecimento elétrico ou a gás, como chuveiros. n pESQUISA FAPESP 258  z  37


Colaboração OsGeMeOs e Blu, 2010, Lisboa, portugal

INDICaDORes 

apesar da conjuntura econômica adversa, Fapesp manteve ritmo de investimentos, mostra Relatório de atividades 2016 Fabrício Marques

A

FAPESP investiu em 2016 um total de R$ 1.137.355.628 em 24.685 projetos de pesquisa. O valor foi um pouco inferior ao desembolso de 2015, de R$ 1.188.693.702 para 26.445 projetos então em andamento. Apesar da conjuntura adversa, fruto da diminuição das receitas tributárias estaduais resultante da crise econômica do país, foram contratados no ano 10.480 novos projetos – 4% mais do que em 2015 –, 38 z AGOSTO DE 2017

sendo 5.491 bolsas no Brasil, 1.162 bolsas no exterior e 3.827 auxílios à pesquisa. “A Fundação foi capaz de manter seus compromissos e seu ritmo de atuação no financiamento da pesquisa, apesar dos problemas econômicos que o Brasil enfrentou em 2016”, afirma o presidente da FAPESP, o físico José Goldemberg. O desempenho da Fundação no ano passado compõe o Relatório de atividades 2016, lançado em agosto e disponível em fapesp.br/publicacoes, onde também

estão sínteses anuais sobre as atividades da FAPESP desde 1962, ano em que começou a operar. O documento de 2016 é estampado com obras dos artistas de rua Gustavo e Otávio Pandolfo, conhecidos como OSGEMEOS – algumas delas também ilustram esta reportagem. O crescimento da cooperação com o setor empresarial é um dos destaques positivos do relatório. O programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) teve o melhor ano desde a sua criação, em 1997: foram 228 novas propostas contratadas, ou mais de quatro por semana – quase uma por dia útil –, e investimentos de R$ 55,5 milhões (ver Pesquisa FAPESP nº 257). Em 2015, 159 projetos foram contratados e o desembolso total do programa foi de R$ 29,9 milhões. O Pipe foi a primeira iniciativa de uma agência brasileira a oferecer recursos não reembolsáveis para pequenas

FOTO OsGeMeOs

a i c n ê i Resil na crise


Como os recursos foram investidos Desembolso da Fapesp em 2016 segundo quatro classificações

R$ 1.137.355.628 Desembolso da FAPESP em apoio a projetos de pesquisa Segundo a natureza da aplicação 53%

39%

Apoio à pesquisa com vistas a aplicações

8%

Apoio ao avanço do conhecimento

Apoio à infraestrutura de pesquisa

segundo a área do conhecimento 40,5% Ciências da vida

segundo o vínculo institucional do pesquisador 47% USP

37%

11,5%

Ciências exatas e da Terra e engenharias

Interdisciplinar

13%

13%

Unesp

Unicamp

12%

11% Ciências humanas e sociais

5% 5% 4%

Instituições federais

Instituições particulares

Instituições estaduais

Empresas particulares

segundo os programas da fundação 39,5%

34,1%

Bolsas regulares no país e no exterior

14,3%

Auxílios regulares

o crescimento do pipe

2011

Evolução do número de projetos contratados no programa pesquisa inovativa em pequenas empresas*

2012

Programas especiais

Programas de pesquisa para inovação tecnológica

49 54 130

2013

124

2014

4 projetos por semana em 2016

12,1%

159

2015

228

2016

* Não inclui bolsas

a evolução dos projetos temáticos

recursos investidos nos projetos e em auxílios e bolsas a eles vinculados (em R$)

número de projetos contratados 2016

88

2016

256.266.138

2015

250.586.553

2015

82

2014

2014

83

2013

2013 2012 2011

75 84 77

2012 2011

219.410.613 194.588.658 181.623.404 149.329.075

e médias empresas desenvolverem inovações em fases iniciais. “É um programa que tem dado uma enorme contribuição ao desenvolvimento científico, tecnológico e econômico do estado de São Paulo, estimulando a criação de empresas que prosperam e geram empregos e riqueza”, avalia o físico Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP. A criação de centros de pesquisa em engenharia em cooperação com empresas também recebeu impulso em 2016 com a implantação do Centro de Pesquisa Aplicada em Bem-Estar e Comportamento Humano, parceria da FAPESP com a Natura e as universidades de São Paulo (USP), Federal de São Paulo (Unifesp) e Mackenzie. Sediado na USP, o centro se dedica a estudos multidisciplinares sobre comportamento humano, em um investimento conjunto de R$ 40 milhões em 10 anos. A proposta é reunir conhecimento, metodologias e tecnologias em áreas como psicologia experimental e neurociência que criem indicadores de bem-estar da população brasileira e ajudem a criar produtos inovadores. Andrea Álvares, vice-presidente de marketing e inovação da Natura, afirmou que o modelo está na vanguarda da inovação aberta. “Quanto maior a diversidade dos pesquisadores envolvidos, mais ricos serão os resultados”, disse ela no evento de lançamento do centro. A parceria com a Natura se somou a outros quatro centros criados em anos anteriores, dois deles com a farmacêutica GSK, um com a montadora Peugeot-Citroën e outro com a empresa de petróleo e gás BG. Nesse modelo, cada R$ 1 investido pela FAPESP terá mobilizado mais R$ 1 da empresa e R$ 2 da universidade ou instituto de pesquisa que sedia o centro. Juntos, esses cinco centros receberão R$ 259 milhões em investimentos. Outro destaque do relatório foi o crescimento do apoio à pesquisa interdisciplinar, campo responsável por 11,5% do desembolso da Fundação em 2016, atrás das Ciências da Vida (40,5%) e das Ciências Exatas e da Terra e Engenharias (37%), e à frente das Ciências Humanas e Sociais (11%). O desempenho é superior ao de 2015, quando 10,4% do desembolso da Fundação foi para projetos interdisciplinares, e muito à frente do registrado em 2006 (7,78%) ou em 2013 (3,08%). A FAPESP também manteve investimentos consistentes em modalidades pESQUISA FAPESP 258  z  39


de fomento que financiam projetos de pesquisa competitivos mundialmente. Os projetos temáticos, que envolvem objetivos ousados capazes de justificar um financiamento com duração de até cinco anos e com frequência reúnem pesquisadores de várias instituições, receberam R$ 256.266.138 em 2016, ante R$ 250.586.553 em 2015. O montante inclui recursos desembolsados nos projetos e em auxílios e bolsas no país e no exterior vinculados a eles. A quantidade de projetos contratados foi a maior dos últimos seis anos – chegou a 88, seis a mais do que em 2015 (ver quadro na página 39). Havia 477 temáticos em andamento em 2016. Da mesma forma, o programa Jovens Pesquisadores em Centros Emergentes manteve seu fôlego: recebeu R$ 68,2 milhões em 2016, contando também com auxílios e bolsas vinculados, para 313 projetos em andamento, ante R$ 67,3 milhões de 2015. Cinquenta e oito desses projetos foram contratados no ano passado. O programa financia, por até quatro anos, a formação de núcleos liderados por jovens pesquisadores com nível de doutorado e alto potencial, preferencialmente em instituições ainda com pouca tradição no tema do projeto. Conforme está previsto na Constituição estadual de 1989, a FAPESP recebe 1% da receita tributária paulista para investir em pesquisa científica e tecnológica. O repasse feito pelo Tesouro Esta40 z AGOSTO DE 2017

The carnival is over, 2016, são paulo, Brasil

2

dual em 2016 atingiu R$ 1.057.714.553 e foi 1,2% superior, em valores nominais, à transferência feita no ano anterior. Já em valores corrigidos pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), houve queda de 5% em relação a 2015. Esse repasse foi responsável por 78,7% da receita da Fundação. O desembolso de 2016 foi complementado com R$ 215.154.402, provenientes de acordos e convênios com outras agências, instituições e empresas, e com R$ 71.328.947 oriundos de receitas da própria Fundação, que mantém um patrimônio rentável para complementar os recursos recebidos do Tesouro. Essas receitas complementares foram 6% menores em 2016, em termos nominais, que as de 2015. É possível enxergar o alcance do investimento segundo diferentes perspectivas. Uma delas é a divisão dos recursos pelos programas da FAPESP: 39,5% do desembolso se destinou a bolsas no Brasil e no exterior, 34,1% a auxílios regulares à pesquisa, 14,3% a programas especiais, como os que apoiam Jovens Pesquisadores e pesquisas em eScience, e 12,1% a programas de inovação tecnológica. No caso dos auxílios regulares, os recursos foram 9% menores do que em 2015 e o volume de projetos contratados, 3% inferior. A queda foi mais notada em modalidades como a participação ou organização de reuniões científicas, enquanto os auxílios regulares – projetos financiados por até dois anos – aumentaram 17% e os projetos temáticos, 9%.

FOTOS 1 LOsTaRT / IGNaCIO aRONOVICH 2 FILIpe BeRNDT

Fachada do Museu de arte Moderna, 2010, são paulo


o investimento em bolsas contratações de bolsas no país pela FAPESP

Iniciação científica 2.287 2.036 Mestrado 731 728 n 2016

Doutorado

n 2015

697 644 Doutorado direto 1

136 112

O desembolso com bolsas foi de R$ 448,9 milhões, 6% menor em valores nominais que o de 2015. Mesmo assim, houve aumento de 4% no número de novas bolsas contratadas e as vigentes tiveram reajustes de 11%. O principal destaque entre as bolsas no país foi em iniciação científica: foram contratadas 2.287 bolsas, 12% mais do que as 2.036 no ano anterior. O número de bolsas de mestrado, doutorado e doutorado direto cresceu, respectivamente, 0,4%, 8% e 21%. No pós-doutorado, houve redução de 684 bolsas em 2015 para 634 em 2016. A contratação de bolsas no exterior caiu 7%: foram 1.162 no ano passado, ante 1.244 em 2015. A redução se concentrou nas bolsas para estágios no exterior, com até um ano de duração, dependendo da modalidade. Já a contratação de bolsas de pesquisa no exterior subiu de 254 em 2015 para 258 em 2016. O número de pesquisadores do exterior que obtiveram bolsas de pós-doutorado no Brasil financiadas pela FAPESP caiu de 123 em 2015 para 93 em 2016. Mas a proporção de bolsas concedidas a pesquisadores que vieram de fora ficou estável: elas representaram 19% do total de bolsas de pós-doutorado no país, pouco abaixo dos 21% de 2015, mas acima do nível dos cinco anos anteriores, que oscilou de 13% a 18%. Os bolsistas, em geral estrangeiros, estavam vinculados às áreas de ciências exatas e da Terra (36%), engenharias (26%), ciências humanas (26%) e ciências sociais aplicadas (25%).

Pós-doutorado 634 684

números da inovação em 2016

1.599

patentes de invenção foram solicitadas ao inpi por residentes do estado (31% do total)

cidades com maior número de patentes

654  são paulo 142  campinas 44  são carlos 37  S. J. dos campos 36  sorocaba

entidades com maior número de patentes

62  unicamp 60  usp 31  whirlpool 30  unesp 24  natura 19  fundação cpqd

Outra forma de analisar o investimento da Fundação distingue os objetivos do apoio à pesquisa. Por esse critério, vê-se que 53% dos recursos foram destinados a pesquisas de caráter aplicado. Essa rubrica inclui o investimento em auxílios e bolsas em áreas como agronomia e veterinária, engenharia e saúde, que quase sempre resultam em aplicações, além de programas que estimulam a inovação nas universidades e empresas e de alguns programas especiais da Fundação. Outros 39% foram investidos em apoio ao avanço do conhecimento, por meio de programas que formam recursos humanos e estimulam a pesquisa acadêmica, o que inclui bolsas e auxílios. Por fim, 8% apoiaram a infraestrutura de pesquisa, permitindo recuperar, modernizar e adquirir equipamentos para laboratórios, ampliar o acervo de bibliotecas de instituições de ensino e pesquisa e garantir a pesquisadores acesso rápido à internet. Os investimentos no programa de Equipamentos Multiusuários (EMU), voltados para a compra de equipamentos de alto valor e que se tornam disponíveis para um amplo número de pesquisadores, foram de R$ 37,5 milhões em 2016, incluindo os 134 projetos concedidos como vinculados a auxílios regulares, Temáticos e ao programa Jovens Pesquisadores. Esse montante também contempla os quatro projetos específicos do EMU, que custaram R$ 1,3 milhão. Ao longo de 2016, estavam vigentes acordos de cooperação entre a FAPESP e 94 organizações, 28 deles firmados no ano. Entre os novos acordos com agências de fomento e instituições acadêmicas, apenas um foi celebrado com uma instituição brasileira – o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Os outros 24 foram acordos internacionais firmados com 7 organizações dos Estados Unidos, 3 do Reino Unido, 3 da Austrália, 2 do Canadá, 2 da França, 2 da China, 1 da Holanda, 1 da Itália, 1 da Noruega, 1 do Chile, e um com 1 agência multinacional. Foram assinados acordos com três empresas: a Statoil, de origem norueguesa, a holandesa Koppert e a norte-americana IBM. Dois simpósios científicos da série FAPESP Week, que buscam estimular colaborações científicas entre pesquisadores de São Paulo e de outros países, foram realizados em 2016: um deles nos Estados Unidos, em março, e outro no Uruguai, em novembro. n pESQUISA FAPESP 258  z  41


obituário y

Exploradora dos espaços curvos A matemática iraniana Maryam Mirzakhani, primeira mulher a ganhar a Medalha Fields, morre aos 40 anos

E

ntregue a cada quatro anos, a Medalha Fields reconhece até quatro matemáticos com no máximo 40 anos de idade que produziram contribuições excepcionais para a disciplina. Nas primeiras 17 edições do prêmio, entre 1936 e 2010, a União Internacional de Matemática (IMU) distribuiu 51 medalhas – todas elas para homens, numa evidência de que a predominância masculina nessa área do conhecimento pode ser avassaladora em estratos mais competitivos da carreira. A escrita se quebrou pela primeira vez em 2014, quando Maryam Mirzakhani, iraniana radicada nos Estados Unidos e professora da Universidade de Stanford, tornou-se a primeira mulher agraciada com a honraria. Responsável por contribuições originais sobre a dinâmica e a geometria de superfícies complexas e descrita como uma figura serena e de enorme ambição intelectual, Maryam foi surpreendida pela premiação. Ignorou o primeiro aviso da IMU de que receberia a medalha – achou que o e-mail fosse uma brincadeira. Quando foi comunicada oficialmente por 42 | agosto DE 2017

telefone, precisou expor um problema particular. Vítima de câncer de mama, ela convalescia de um ciclo de sessões de quimioterapia. Não tinha certeza de que poderia ir à cerimônia nem se se sentiria disposta para enfrentar o assédio da imprensa. Mas ela compareceu. Um cordão de proteção formado por amigas poupou-a de assédio na solenidade realizada em Seul, na Coreia do Sul, no dia 13 de agosto de 2014. Trinta e cinco meses depois, Maryam Mirzakhani morreu em um hospital nos Estados Unidos, no dia 14 de julho, em consequência de uma recidiva do câncer, agora instalado na medula óssea. Tinha 40 anos de idade. A iraniana foi definida como a “mestre dos espaços curvos” pelo canadense Manjul Bhargava, da Universidade Princeton, que também ganhou a Medalha Fields em 2014. “Todo mundo sabe que a menor distância entre dois pontos de uma superfície plana é uma reta, mas se a superfície for curva – por exemplo, a de uma bola ou de uma rosquinha – a distância mais curta será o percurso de um caminho curvo, o que pode se tornar complicado. Maryam provou muitos

teoremas surpreendentes sobre esses caminhos mais curtos em superfícies curvas, chamados geodésicas”, explicou ele à revista The New Yorker. Bhargava e Maryam nunca foram parceiros de pesquisa, mas, em uma situação engraçada, resolveram juntos um problema combinatório simples. Depois de receberem as medalhas em Seul, perceberam que a organização ignorara o fato de o nome de cada vencedor ter sido gravado na honraria. Bhargava ganhara a medalha que pertencia ao britânico Martin Hairer, que por sua vez recebera a de Maryam, que levara a de Artur Ávila, primeiro brasileiro a conquistar a honraria (ver Pesquisa FAPESP nº 223). Ávila ostentava a medalha de Bhargava. O ambiente festivo dificultava a tarefa de reunir os quatro em um mesmo lugar. Entre risadas, Bhargava e Maryam discutiram qual seria a forma mais rápida para que cada dupla se encontrasse e destrocasse as medalhas. Graduada em Matemática na Universidade Tecnológica de Sharif, em Teerã, Maryam Mirzakhani transferiu-se para os Estados Unidos para fazer doutorado

foto universidade de stanford

e deixa legado original


Maryam Mirzakhani produziu contribuições sobre a dinâmica e a geometria de superfícies complexas. Ao lado, anotações da pesquisadora

em Harvard e trabalhava em Stanford desde 2009. Na casa em que vivia com o marido, o cientista da computação checo Jan Vondrák, e a filha, Anahyta, hoje com 6 anos, ela costumava usar o chão para escrever em enormes telas de papel, nas quais esboçava ideias, fórmulas e diagramas de superfícies hiperbólicas – superfícies abstratas com formas semelhantes a rosquinhas, com um ou mais buracos, nas quais distâncias e ângulos são medidos de acordo com um certo conjunto de equações. Em algumas superfícies hiperbólicas, o caminho mais curto entre dois pontos pode ser uma geodésica longa, enquanto em outras pode ser um laço curto, como o círculo de uma esfera. Sua tese de doutorado, justamente sobre essas voltas em superfícies de geometria hiperbólica, foi definida como uma contribuição altamente original. “É o tipo de matemática que você reconhece imediatamente como algo que vai

pertencer a um livro-texto”, disse à revista Quanta Alex Eskin, matemático da Universidade de Chicago. Eskin, Maryam e o matemático Amir Mohammadi, da Universidade da Califórnia, San Diego, trabalharam juntos em um projeto sobre a dinâmica de superfícies abstratas conectadas a mesas de bilhar que culminou com a solução do chamado “teorema da varinha mágica”, sobre espaços inteiros compostos por superfícies hiperbólicas. talentos excepcionais

Maryam nasceu e cresceu no Irã. No ensino fundamental, um dos professores desencorajou-a a se tornar matemática, dizendo que ela não tinha um talento particular para a disciplina. Mas ela fez o ensino médio numa escola para garotas em Teerã administrada pela Organização Nacional para o Desenvolvimento de Talentos Excepcionais do país. Em 1995, aos 18 anos, ganhou uma medalha de ouro na 36a Olimpíada Internacional de Matemática, em Toronto, no Canadá. Três dias depois de sua morte, Maryam Mirzakhani foi lembrada na abertura da 58ª edição da Olimpíada, realizada no

Rio de Janeiro. A disparidade de gênero na matemática, um problema que o exemplo de Maryam buscava combater, também foi uma preocupação do evento, que premiou pela primeira vez com um troféu as cinco garotas que mais contribuíram para o sucesso de suas equipes. Dos 623 alunos do ensino médio de 112 países que participaram da olimpíada, apenas 65 eram garotas. Entre os representantes do Brasil, só havia homens. De acordo com Marcelo Viana, diretor do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), a pressão cultural contrária às mulheres da matemática é resistente e se alimenta da falsa ideia de que elas teriam uma propensão natural por algumas áreas do conhecimento, como as ciências humanas, mas não por áreas mais duras ou abstratas do conhecimento. “Essa é uma besteira que se perpetua. Temos que atuar e acreditar que seja possível reverter o quadro em médio e longo prazos”, afirma. “Se são poucos os exemplos de inspiração, as garotas acabam achando que a matemática não é para elas, alimentando um círculo vicioso.” n Fabrício Marques pESQUISA FAPESP 258 | 43


ciência  MEDICINA y

Magreza reversível Exercício físico pode deter a caquexia, inflamação que induz à perda de peso e agrava o câncer e outras doenças

Carlos Fioravanti

Trois hommes qui marchent, Alberto Giacometti, bronze com pátina marrom, 1948

44  z  agosto DE 2017

H

á cinco anos, o cirurgião Paulo Alcântara ficou intrigado ao ver que dois pacientes que atendera na mesma semana no Hospital Universitário da Universidade de São Paulo (HU-USP), com a mesma idade e o mesmo tipo de câncer avançado de intestino, reagiam de modo diferente ao tratamento. Um era obeso e o outro, muito magro. A magreza era uma expressão da caquexia, síndrome caracterizada pela perda contínua de massa muscular e de apetite que pode acompanhar – e agravar – não apenas o câncer, mas também a Aids, a insuficiência cardíaca e a doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC). Verificada em 40% das pessoas com câncer e em 80% das hospitalizadas com tumores malignos, a caquexia dificulta o tratamento e responde por 20% das mortes causadas por essa doença. O paciente magro morreu um ano e meio depois em consequência do câncer e da caquexia, enquanto o outro viveu mais quatro anos. Intrigado com essa situação, Alcântara procurou a bióloga Marília Seelander, que trabalha com exercício físico, inflamação e câncer há 25 anos no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP (ver Pesquisa FAPESP no 89). Com base nos resultados de experimentos em modelos animais, os dois pesquisadores planejaram um estudo para avaliar os possíveis efeitos da atividade física em pessoas com câncer e caquexia. Os resultados preliminares dos testes no HU indicam que um programa de exercícios físicos – andar ou correr em uma esteira durante uma hora por dia, durante seis semanas, no próprio hospital – pode reduzir os processos inflamatórios que resultam em perda de peso. Os participantes com câncer e caquexia recuperaram massa muscular e apetite e apresentaram uma melhor recuperação pós-operatória, em comparação com os sem caquexia. Notou-se também uma mudança do perfil de ci-


pESQUISA FAPESP 258  z  45

Zak Hussein / Corbis / Getty Images


tocinas, proteínas que ativam as células de defesa: os níveis de citocinas pró-inflamatórias, que causam e agravam a caquexia, caíram e os de citocinas anti-inflamatórias subiram. Até agora, 332 pacientes com câncer de estômago, pâncreas e intestino – com e sem caquexia – participaram do estudo; 272 formaram o grupo dos sedentários e 50 o dos que se submeteram ao treinamento físico. “O bloqueio da caquexia poderia permitir um tratamento mais intensivo, favorecer a qualidade de vida e ampliar a sobrevida dos pacientes”, diz Alcântara. “Mas temos de chegar a 100 casos em cada grupo de pessoas com e sem câncer e com e sem caquexia para termos resultados com significância estatística.” Os estudos em andamento, propostos em um artigo de 2015 na revista Current Opinion in Supportive and Palliative Care, integram equipes da USP, do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp), da Santa Casa de São Paulo e do hospital Santa Marcelina. Ainda não há pesquisas científicas concluídas sobre a ação do exercício físico em pessoas com câncer e caquexia, mas seus efeitos foram observados em pessoas com DPOC. Um grupo da Alemanha e da Holanda verificou que exercícios intensos durante quatro meses favoreceram a recuperação do estado de saúde e da força muscular em pessoas com DPOC e caquexia, em comparação com os que receberam suplementação nutricional e com o grupo controle. O estudo foi feito com 81 pacientes e publicado em junho deste ano na Journal of Cachexia, Sarcopenia and Muscle. “As alterações metabólicas características da caquexia debilitam o organismo, favorecem o crescimento tumoral e dificultam o tratamento”, sintetizou Alcântara. Na tarde de 13 de junho, ele acompanhou uma reunião no ICB, em que os pesquisadores da equipe de Marília Seelander apresentaram os resultados das análises de sangue e tecidos coletados dos participantes do HU. Os indivíduos com caquexia apresentaram uma redução no metabolismo de proteínas e nos níveis de dois hormônios – a leptina, que regula o apetite, e a insulina, que favorece a absorção de glicose pelas células. O funcionamento do hipotá-

1

Sala de treinamento do Hospital Universitário da USP usada na recuperação de peso

O exercício físico se mostrou benéfico para deter a inflamação em pessoas com doença pulmonar crônica

lamo, região do sistema nervoso central que controla a fome, mostrou-se alterado. As comunidades bacterianas do intestino, que poderiam causar ou agravar processos inflamatórios, mudaram, e os músculos, incluindo o do coração, haviam enfraquecido. “O desequilíbrio causado pela caquexia é tão intenso que as pessoas continuam perdendo peso, mesmo quando recebem complementação nutricional, porque as células não conseguem mais absorver os nutrientes”, comentou Marília. A caquexia foi registrada pela primeira vez pelo médico e filósofo grego Hipócrates (460-370 a.C) e descrita como um abatimento profundo pelo médico francês Paul Broca (1824-1880) em seu tratado sobre tumores publicado em 1866. A produção da proteína colágeno (em vermelho) se intensifica nas pessoas com câncer e com caquexia, resultando na formação de fibras que prejudicam o funcionamento das células de gordura (à esq.). Pacientes com câncer e sem caquexia têm menos colágeno (à dir.)

2

46  z  agosto DE 2017


Descontrole crescente A caquexia evolui a partir de uma inflamação que se espalha pelo organismo

origem

consequências

Em resposta a um tumor,

O hipotálamo reduz a

as células de defesa

produção de hormônios

produzem proteínas

que ativam o apetite

inflamatórias, como a interleucina-6 (IL-6), que O fígado aumenta a produção

entram na circulação Tumor

de proteínas que intensificam a inflamação

primeiras reações O tecido adiposo subcutâneo

O tecido muscular começa

acumula IL-6 e células de defesa,

a se atrofiar

que causam inflamação local

resultado

fotos 1 léo ramos chaves 2 Miguel Luis Batista Jr. /UMC infográfico ana paula campos  ilustraçãO Zansky

As células de gordura liberam ácidos graxos, que espalham

O desequilíbrio do

a reação inflamatória para

organismo se intensifica

outros tecidos e órgãos

e torna-se irreversível

O médico paraense Alfredo Leal Pimenta Bueno (1886-?) a apresentou como um dos sinais do período final do câncer, cuja origem analisou em uma série de artigos publicados na revista Brasil Médico de 1926 a 1928. “A caquexia favorece o crescimento dos tumores e pode avançar a ponto de se tornar irreversível”, observou o oncologista Gilberto de Castro Jr., do Icesp. Nem sempre tratar o tumor resolve a caquexia. “O exercício físico, de alguma maneira, pode bloqueá-la e ser uma terapia de suporte”, diz ele. “Ainda temos de definir a intensidade, a frequência e a duração do exercício mais adequadas, mas precisamos fazer os pacientes com câncer se movimentarem mais.” Vários estudos já indicaram os benefícios do exercício físico na luta contra o câncer (ver quadro na página 48). Em laboratório

“O treinamento físico minimiza a caquexia”, corrobora a professora de educação física Patrícia Chakur Brum, com base em seus experimentos com modelos animais na Escola de Educação Física e Esporte da USP. Com sua equipe, ela usou dois grupos de ratos com tumor de Walker 256, utilizado em estudos experimentais porque cresce com rapidez e induz a atrofia muscular característica da caquexia. Um era de animais sedentários e outro teve de fazer exercícios em uma

Fonte USP e UMC

esteira diariamente, durante 15 dias, começando no dia seguinte à injeção das células tumorais. Os animais que fizeram exercício apresentaram uma sobrevida 31% maior que os do outro grupo, embora sem redução no ritmo da progressão desse tipo de tumor, bastante agressivo. Patrícia encontrou indicações de que o exercício aeróbico pode melhorar o funcionamento das células musculares em animais com tumor de Walker 256. “O treinamento físico pode não atuar diretamente sobre o tumor, mas deixa os músculos mais funcionais”, diz ela. Seu grupo também verificou que a atividade física prévia pode retardar o início do tumor de pele e de mama em camundongos. No laboratório de Marília no ICB os resultados foram mais expressivos: nos animais que tiveram de fazer esteira ou nadar em um programa mais longo de exercícios, o tamanho do tumor de Walker apresentou uma redução da ordem de 50%. A perda de massa muscular, embora seja a expressão mais visível, não é a causa, mas uma das consequências do processo que leva o organismo a consumir-se. “Ainda não sabemos como e quando a caquexia começa”, reconhece o educador físico Miguel Luiz Batista Júnior, professor da Universidade de Mogi das Cruzes. O início deve ser uma inflamação ativada por uma produção intensa de citocinas pró-inflamatórias, principalmente pESQUISA FAPESP 258  z  47


Suar, parte da prevenção O exercício físico ajuda a prevenir o câncer, favorece a recuperação pós-cirúrgica e reduz os efeitos colaterais dos medicamentos, a reincidência dos tumores e a mortalidade, de acordo com estudos realizados nos Estados Unidos. Em um artigo de junho de 2016 no Journal of American Medical Association (Jama), Steven Moore e sua equipe de epidemiologia do Instituto Nacional do Câncer, nos Estados Unidos, apresentaram uma análise de 12 estudos sobre os efeitos da atividade física em 26 tipos de câncer, realizados nos Estados Unidos e na Europa, com 1,4 milhão de pessoas, acompanhadas durante 11 anos. Os pesquisadores associaram a prática de atividade física moderada ou intensa nas horas de lazer, como a caminhada, a um menor risco de 13 tipos de câncer, com a queda mais acentuada nos tumores de esôfago (incidência 42% menor) e menos nos de mama (queda de 10%), mesmo entre obesos e fumantes. Se os médicos e as pessoas com câncer adotassem o exercício físico como parte do tratamento, poderia ocorrer o mesmo fenômeno verificado no tratamento de doenças do coração, na visão do educador físico Carlos Eduardo Negrão, professor

Exercícios aeróbicos como correr e andar de bicicleta são indicados para ajudar a evitar o câncer e reduzir os efeitos indesejados de medicamentos

Coração (InCor), também da USP. “Até a década de 1970, o aconselhado às pessoas com insuficiência cardíaca era não fazer exercício físico, que depois começou a ser recomendado e hoje é uma parte importante do tratamento”, lembra (ver Pesquisa FAPESP no 238). “Em câncer, muito provavelmente vamos trilhar um caminho semelhante.” Dois estudos recentes de seu grupo no

da Escola de Educação Física e Esporte da

InCor publicados em 2014 e 2016 na

Faculdade de Medicina e diretor da

American Journal of Physiology – Heart

Unidade de Reabilitação Cardiovascular

and Circulatory Physiology mostraram que

e Fisiologia do Exercício do Instituto do

o exercício físico em pessoas com problemas cardíacos pode desativar os processos de degradação de proteínas das células dos músculos, estimular a produção de citocinas anti-inflamatórias e melhorar o fluxo de cálcio, fundamental para o bom funcionamento dos músculos, principalmente do coração, cujo funcionamento pode ser prejudicado pelos medicamentos antitumorais e pela caquexia. Em um artigo de maio deste ano na Oncology Reports, pesquisadores da França argumentaram que “o exercício físico desponta como uma estratégia não farmacológica interessante coração induzidas pela caquexia”, já que o treinamento aeróbico, como também eles reconheceram, tem efeitos anti-inflamatórios e evita a atrofia do músculo cardíaco.

48  z  agosto DE 2017

fotos  léo ramos chaves

para contrabalançar as deficiências do


a interleucina-6 (IL-6), como resultado da ação das células de defesa contra os tumores. “O nível de IL-6 em circulação na corrente sanguínea aumenta de duas a três vezes em pessoas com câncer e de cinco a seis vezes nas com caquexia”, diz Batista, que estuda os mecanismos da caquexia desde 2008 em colaboração com o grupo da USP e da Universidade de Boston, Estados Unidos (ver infográfico na página 47). outras estratégias

Com base em amostras de tecidos de pessoas com câncer, as equipes da UMC e da USP concluíram que o tecido adiposo branco subcutâneo atrofia e se torna fibroso, em consequência do acúmulo de células de defesa e da formação de uma malha externa da proteína colágeno sobre os adipócitos, como detalhado em um artigo de 2016 na Journal of Cachexia, Sarcopenia and Muscle. “Em consequência, o tecido adiposo perde a função de armazenar energia para o organismo”, ressalta Batista. Em seu laboratório, Batista testou a pioglitazona, já usada contra diabetes, para deter a caquexia. O fármaco deteve a redução da massa muscular e aumentou em 27% a soNíveis baixos brevida de ratos com tumor de Walde albumina e ker 256, em comparação com os anido grupo-controle. Descrito em altos da proteína mais 2015 na PLOS ONE, esse estudo sugere que a pioglitazona poderia ser c-reativa usada nos estágios iniciais e finais da caquexia, por reduzir a resistência poderiam indicar à insulina e facilitar a absorção de o início da glicose pelas células, embora possa causar danos ao coração. Estudos caquexia clínicos em andamento nos Estados Unidos avaliam também as possibilidades de uso de um antidiabético, a metformina, e outros medicamentos como a grelina e anamorelina. No Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (IB-Unicamp), a bióloga Maria Cristina Marcondes verificou que a leucina, aminoácido com ação anti-inflamatória, evita a degradação muscular em ratos com tumor de Walker 256. “O tumor continua a crescer, mas os animais recuperam pelo menos 25% da massa muscular”, ela observou. Seu grupo também está buscando marcadores moleculares que alertem para o início dessa síndrome, em sintonia com a preocupação das equipes médicas que atendem pessoas com câncer e caquexia e gostariam de fazer um diagnóstico e agir o mais cedo possível para deter a perda de peso e o desequilíbrio orgânico. Marília Seelander lembra que, como a medição de IL-6 e outras citocinas inflamatórias é cara, uma alternativa seria se valer dos exames dos

níveis da proteína c-reativa (PCR) do fígado e duas outras do sangue, a hemoglobina e a albumina. Segundo ela, valores da PCR muito acima e de albumina e hemoglobina muito abaixo dos normais poderiam indicar o início da caquexia antes da perda de massa muscular. Além disso, manchas claras nos músculos nas imagens de tomografia poderiam indicar infiltração de gordura ou de células do tecido adiposo, sinalizando o início de um processo inflamatório capaz de levar à perda muscular. À medida que avançarem, essas propostas devem ajudar a deter um problema que só aparece quando a perda de massa muscular já é evidente. Nos próximos anos, é possível que o tratamento da caquexia combine várias estratégias, conciliando suplementação alimentar, exercícios físicos e novos medicamentos, para deter os desequilíbrios orgânicos que agravam a evolução do câncer e outras doenças. O que permanece aberto, sem soluções à vista, é uma das perguntas que motivaram o médico Paulo Alcântara há cinco anos. Até agora existem apenas hipóteses de difícil comprovação para explicar por que algumas pessoas têm caquexia e outras não, ainda que com a mesma idade e o mesmo estágio de câncer. n

Projetos 1. Inflamação sistêmica em pacientes com caquexia associada ao câncer: Mecanismos e estratégias terapêuticas, uma abordagem em medicina translacional (nº 12/50079-0); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Marília Cerqueira Leite Seelander (USP); Investimento R$ 2.246.952,23. 2. Bases moleculares da caquexia: Adipogênese e remodelagem da matriz extracelular do tecido adiposo branco de pacientes com câncer gastrointestinal (nº 10/51078-1); Modalidade Jovem Pesquisador; Pesquisador responsável Miguel Luiz Batista Jr. (UMC); Investimento R$ 910.407,63.

Artigos científicos ANTUNES-CORREA, L. M. et al. Molecular basis for the improvement in muscle metaboreflex and mechanoreflex control in exercise-trained humans with chronic heart failure. American Journal of Physiology. v. 307, n. 11, p. 1655-66. 2014. BATISTA, M. L. Jr., Cachexia-associated adipose tissue morphological rearrangement in gastrointestinal cancer patients. Journal of Cachexia, Sarcopenia and Muscle. v. 7, n. 1, p. 37-47. 2016. BELLOUM, Y. et al. Cancer-induced cardiac cachexia: Pathogenesis and impact of physical activity. Oncology Reports. v. 37, n. 5, p. 2543-52. 2017. BELUZI, M. et al. Pioglitazone treatment increases survival and prevents body weight loss in tumor– bearing animals: Possible anticachectic effect. PLoS One. V. 10, n. 3, p. 1-16. 2015. LIRA, F.S. et al. The therapeutic potential of exercise to treat cachexia. Current Opinion in Supportive and Palliative Care. v. 9, n. 4, p. 31724. 2015. MOORE, S. C. et al. Association of leisure-time physical activity with risk of 26 types of cancer in 1.44 million adults. Jama Internal Medicine. v. 176, n. 6, p. 816-25. 2016. NOBRE, T. S. et al. Exercise training improves neurovascular control and calcium cycling gene expression in patients with heart failure with cardiac resynchronization therapy. American Journal of Physiology. v. 311, n. 5, p. 1180-88. 2016. VAN DE BOOL, C. et al. A randomized clinical trial investigating the efficacy of targeted nutrition as adjunct to exercise training in COPD. Journal of Cachexia, Sarcopenia and Muscle. 2017 (no prelo).

pESQUISA FAPESP 258  z  49


Entrevista Yvonne Primerano Mascarenhas y

A senhora

dos cristais Física homenageada em congresso mundial de química começou na década de 1960 a estudar estruturas moleculares por meio de difração de raios X Reinaldo José Lopes

50  z  agosto DE 2017

refere ao empacotamento das moléculas no cristal. Por meio dessa técnica, um feixe de raios X incide sobre o cristal e gera outros feixes; os valores dos desvios desses feixes indicam as posições dos átomos da molécula. Aos 86 anos, com quatro filhos, 10 netos e sete bisnetos, ela continua publicando artigos científicos. Um dos recentes trata de uma substância extraída das folhas do jaborandi com ação contra o verme cau­sador da esquistossomose. Outro trata da caracterização de uma proteína isolada da bactéria Bacillus thurigiensis que poderia ser usada como inseticida. Em julho, Yvonne foi uma das 12 cientistas a receber o prêmio oferecido pela União Internacional de Química Pura e Aplicada (Iupac) a mulheres com realizações de impacto na pesquisa em química ou engenharia química. Ela recebeu Pesquisa FAPESP em seu laboratório da USP em São Carlos poucos dias antes de viajar para São Paulo para receber o prêmio na abertura do 46º Congresso Mundial de Química da Iupac. Qual o significado desse seu primeiro prêmio internacional? Foi interessante porque, embora eu trabalhe num instituto de física, minha atividade é interdisciplinar. Lido muito com os químicos e a química foi a minha primeira graduação. Minha relação com a química começou quando eu estava com 14 ou 15 anos e fazia o curso clássico

Léo Ramos Chaves

Y

vonne Primerano Mascarenhas colocou os pés pela primeira vez em São Carlos em fevereiro de 1956, com o primeiro filho no colo e a segunda filha na barriga. Para quem vinha do Rio de Janeiro com a família, era uma aventura chegar à pequena cidade do interior paulista. Gastavam-se 24 horas a bordo de dois trens diferentes – a estrada asfaltada terminava em Rio Claro, a 65 quilômetros de São Carlos. Paulista de Pederneiras, Yvonne tinha concluído duas graduações, uma em química e outra em física, poucos anos antes na Universidade do Brasil, atual Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ela e o então marido, o físico carioca Sérgio Mascarenhas de Oliveira, tinham sido contratados como professores do nascente campus da Universidade de São Paulo (USP) na cidade, que na época tinha apenas uma escola de engenharia. Ao longo das décadas seguintes, Yvonne e o marido teriam um papel crucial na criação do Instituto de Física de São Carlos (IFSC-USP) e na transformação do campus da cidade em um dos mais importantes polos de pesquisa da América Latina. Combinando seus interesses em química e física, ela se tornou a matriarca da cristalografia no país, ensinando gerações de alunos a investigar a estrutura dos mais variados tipos de moléculas. A cristalografia consiste no uso da difração de raios X para determinar tanto a estrutura molecular de uma substância quanto sua estrutura cristalina, que se


Física de São Carlos identificou a estrutura do hormônio oxitocina e de substâncias com potencial terapêutico extraídas de plantas

[na época, uma das variantes do atual ensino médio] num colégio particular muito bom, o Mello e Souza, no Rio de Janeiro. Nessa época meu grande amor era pelas letras. Eu pensava em fazer letras clássicas e planejava aprender grego assim que chegasse à faculdade. Os alunos do clássico tinham disciplinas como latim, literatura portuguesa e brasileira, francês etc. e também aprendiam o essencial de física, química e matemática. Foi então que cursei a disciplina de química com um professor jovem, médico de formação, Albert Ebert [1916-2016]. Foi ele que despertou meu interesse sobretudo pela química orgânica. O que chamou sua atenção? Foi a possibilidade de estudar os compostos que formam todas as substâncias, inclusive os seres vivos, e a maneira muito lógica como o professor Ebert apresentava tudo isso. Com ele, vi diante de mim um universo de aplicações, uma ciência extremamente importante. Logo que me formei, Ebert me ajudou a arrumar um emprego no Liceu Franco-Brasileiro, no Rio. Anos depois ele se tornou diretor da Faculdade de Educação da UFRJ. Quando a senhora estava na graduação, em 1953, foi desvendada e publicada a estrutura da molécula de DNA com base no trabalho de cristalografia de uma química britânica, Rosalind Franklin. Como esse fato chegou até vocês? Teria sido uma inspiração para se tornar cristalógrafa? Minha introdução à cristalografia ocorreu de um jeito mais simples. No curso de química, a disciplina de cristalografia era dada por professores do curso de história natural, mineralogistas que usavam apenas técnicas ópticas, com luz visível, para analisar e classificar os minerais. Por sorte, Elisiário Távora tinha começado a lecionar um ano antes na UFRJ, depois de fazer o doutorado no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) pESQUISA FAPESP 258  z  51


com um grande cristalógrafo, Martin Buerger. Távora chegou com as ideias fresquinhas da cristalografia moderna e aí sim realmente vi a potencialidade da área, com o uso de técnicas como a difração de raios X. No início eu sabia muito pouco de biologia e bioquímica; a físico-química é que me impressionava, tanto que fui fazer graduação em física porque achei que precisava disso para me inteirar melhor dessa área. Naquela época era muito difícil obter a estrutura de moléculas com difração de raios X, mas essa possibilidade ficou na minha cabeça como algo que valia a pena tentar. Quando eu e Sérgio viemos para São Carlos, em 1956, encontramos um bom laboratório de ensino de física, com equipamentos de origem alemã, e um aparelho de raios X médico no porão. Sérgio conseguiu trocá-lo por outro, mais adequado aos nossos objetivos, e começamos a fazer experimentos para obter a orientação de monocristais. Depois, em 1959, fui com Sérgio, que já era professor catedrático, para a Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos, e fiz um estágio de pesquisa em cristalografia. Foi lá que comecei a usar técnicas de análise usando monocristais e aprendi a interpretar os difratogramas [diagramas de difração de raios X em cristais] e a usar computadores, que ainda eram muito simples e enormes. Usávamos cartões perfurados para inserir os dados experimentais e realizar uma parte do cálculo com os programas disponíveis nessa época, depois outra parte com outros cartões, e assim por diante. Cada cartão tinha uma perfuração na última coluna para indicar que precisávamos somar o resultado com o do próximo cartão. Por que os monocristais são importantes? Para conhecer a estrutura de uma molécula, temos de obter um monocristal a partir de uma solução. Um monocristal bom possui uma forma geométrica de acordo com a sua simetria e é transparente, mas deve ser pequeno. Cada vez mais, é possível usar cristais menores, com até centésimos de milímetro, à medida que melhoram as fontes e detectores de raios X. A interpretação das imagens de cristalografia parece ter um quê de intuitiva ou até artística. Essa impressão está certa? 52  z  agosto DE 2017

Com bons cristais e programas de computador, é cada vez mais fácil estudar moléculas pequenas, com até 200 átomos

Não é nem artística nem intuitiva. Temos uma porção de informações a partir da difração dos raios X pelos elétrons do material. No início a determinação de estruturas era feita pelo método de tentativa e erro, propondo-se um modelo para a estrutura e calculando as intensidades dos feixes difratados; se concordassem com os dados experimentais se estabelecia a veracidade do modelo. Depois foram criados vários métodos para o tratamento dos dados experimentais. O primeiro era o método do átomo pesado. Um átomo relativamente mais pesado de uma molécula vai dominar a difração e dar um pico no mapa de densidade eletrônica, calculado a partir das intensidades dos feixes difratados, e isso é uma pista sobre a estrutura molecular. A partir daí se consegue calcular os mapas de densidade eletrônica e atribuir os picos que vão sendo obtidos a átomos leves, como oxigênio e carbono. É óbvio que esse processo só começou a funcionar com eficiência com a ajuda de computadores; antes todos os cálculos eram feitos à mão com máquina de calcular. Hoje o maior problema é obter um bom cristal. Vale a regra GI = GO, ou seja, garbage in, garbage out [“se entra lixo, sai lixo”]. Com bons cristais e bons programas para obter a estrutura a partir de dados experimentais de difra-

ção de raios X, é cada vez mais fácil estudar moléculas pequenas, com até 200 átomos, sem contar hidrogênios. Para macromoléculas como as proteínas, ainda existe o problema de como purificar, obter monocristais e inserir átomos pesados; às vezes, levam-se anos tentando todo esse processo, o que é indispensável para determinar a estrutura molecular. Por sorte, hoje existem equipamentos automáticos que ajudam muito a preparar soluções variando simultaneamente vários parâmetros, tais como a acidez, a viscosidade e o solvente. Um bom cristal também é esteticamente atraente? Sem dúvida é! Eu os observo ao microscópio e considero bons os que não têm defeito. Às vezes, o cristal tem forma externa bonita, mas defeitos que complicam a análise, ou então é geminado, o que também atrapalha. Uma estrutura desejável é a que aparece quando a distribuição das celas unitárias [as unidades cristalográficas com forma e simetria definidas que compõem o cristal] é a mais perfeita possível. Defeitos sempre existirão, mas a prova final de que o cristal é bom vem quando usamos o feixe de raios X e obtemos dados que permitem determinar, sem sombra de dúvida, uma cela unitária com simetria definida. Há cristais de quartzo e outros materiais com muitas geminações em formatos maravilhosos, mas que não servem para a análise da estrutura molecular nem para aplicações tecnológicas. Quais são seus trabalhos mais importantes? As estruturas que eu estudei foram importantes para os químicos ou físicos, com quem sempre colaborei. Lembro de uma colaboração com Otto Gottlieb [químico tcheco radicado no Brasil, 1920-2011], que trabalhava com compostos obtidos de plantas no Instituto de Química da USP e na UFRJ (ver Pesquisa FAPESP no 43). Ele estudava as substâncias da planta Aniba gardineri e não conseguia esclarecer o mecanismo de dimerização [formação de uma estrutura dupla, pela união de duas unidades similares] de uma de suas moléculas, a 5,6-dehidrocavaína. Gostei muito de fazer esse trabalho, porque Otto ficou feliz quando viu o resultado. Ele tinha muito interesse nas plantas da família Lauraceae, que apresentam uma


arquivo pessoal

Yvonne (à dir.) com o físico Herbert Hauptman e sua esposa, Edith Citrynell, em uma visita a uma fazenda em Descalvado, após um curso em São Carlos, em 1976

grande diversidade de usos medicinais e industriais. O primeiro trabalho que fiz nos Estados Unidos foi a determinação da estrutura molecular de um barbiturato, o ácido violúrico. A determinação de sua estrutura apresentou um resultado inédito na área de ligações de hidrogênio, devido ao fato de uma molécula de água de cristalização apresentar uma ligação bifurcada, isto é, um de seu hidrogênios faz ligação com dois átomos diferentes da molécula de ácido violúrico. Por essa razão o artigo publicado teve um número razoável de citações. Esse é a meu ver mais um exemplo de um achado científico proporcionado pela boa sorte! Outro trabalho que considero importante foi a determinação da estrutura da oxitocina, hormônio de grande importância biológica, durante uma visita ao Departamento de Cristalografia do Birbeck College, em Londres, em colaboração com Sir Tom Blundell. Passei a me interessar na caracterização de materiais semicristalinos ao participar do INCT [Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia] em polímeros condutores, coordenado por Roberto Mendonça Faria, aqui do IFSC. Durante o doutoramento de meu aluno Edgar Sanches, conseguimos esclarecer vários detalhes da polianilina, tanto sob sua forma

condutora como isolante. Meu interesse por produtos naturais ressurgiu quando coordenei para a Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] o projeto Avanços, Benefícios e Riscos da Nanotecnologia Aplicada à Saúde no âmbito da rede NanoBiotec que versou, em parte, sobre substâncias de origem natural com ação farmacológica. Uma das plantas estudadas foi o jaborandi. Um dos componentes extraídos de suas folhas já está em uso medicinal, para tratamento de problemas oftálmicos. Entretanto, o resíduo da extração, constituído por outros componentes da planta diluídos em solventes orgânicos, não deveria ser simplesmente jogado no ambiente. Veio daí a ideia de analisar todos os compostos do extrato em busca de outras substâncias com propriedades interessantes. Esse era o tema de um grupo de pesquisa do campus de Delta do Parnaíba da Universidade Federal do Piauí, onde realizamos um dos nossos workshops. Incidentalmente notei que os pesquisadores desse grupo estavam entregando amostras de um desses componentes do resíduo para Ana Maria da Costa Ferreira, professora do Instituto de Química da USP, e perguntei: “Vocês sabem a estrutura dessa molécula?”. Então eles disseram: “A gente adoraria saber,

mas não temos monocristal aí dentro”. Olhando o pó dentro do vidro, vi partículas brilhando, o que significava que havia cristais ali, sim. Eles permitiram que eu trouxesse para São Carlos uma amostra dessa substância, que atua sobre o verme Schistosoma mansoni, causador da esquistossomose. Usando os monocristais que de fato existiam no pó, determinamos sua estrutura. Como a forma natural dela não é o ideal para a administração como fármaco, por ser insolúvel em água, Ana Maria sintetizou vários derivados dessa substância, complexando-a com zinco e cobre, o que a torna mais solúvel em água. As estruturas moleculares desses complexos também foram determinadas em nosso grupo. A partir, em grande parte, do grupo de cristalografia de nosso instituto, formaram-se muitos mestres e doutores, que, por sua vez, orientaram seus próprios alunos. Existem hoje cerca de 100 pesquisadores com sólida formação em cristalografia estrutural em várias universidades e centros de pesquisa no Brasil. Seu prêmio no congresso da Iupac era dirigido para mulheres cientistas. Como vê as dificuldades de participação das mulheres no mundo da pesquisa? As universidades mais tradicionais do mundo negavam o ingresso das mulheres até meados do século XX. Na Faculdade Nacional de Filosofia da antiga Universidade do Brasil, atual UFRJ, esse tipo de barreira não existia, embora houvesse um número reduzido de mulheres nos cursos de ciências exatas; havia mais no curso de química do que no de física. Ainda hoje, por razões a meu ver históricas e culturais, os homens é que ocupam os cargos de liderança e decisão, e a sociedade é feita de maneira a conservar o poder nas mãos dos grupos dominantes. Uma amiga minha ficou muito revoltada quando os integrantes de uma banca de um concurso que ela estava prestando, longe daqui, perguntaram como ela resolveria o fato de o marido dela já ser professor em São Carlos. É o tipo de coisa que ninguém perguntaria a um candidato homem. Costumo dizer que a luta pelos direitos das mulheres, em tese, já foi vencida. A questão é aprender a exercer esses direitos. Na política e no governo, a maioria de nossos representantes são homens. Em quem as mulheres votam? Em geral em homens, como o resultado das eleições revela claramente. n pESQUISA FAPESP 258  z  53


BIOLOGIA y

A era da edição gênica Pesquisadores corrigem em embriões humanos mutação associada a uma doença cardíaca Ricardo Zorzetto

54  z  agosto DE 2017

Embriões nos estágios iniciais de multiplicação após reparo de gene feito com CRISPR-Cas9

na Suécia, na Nature. E levanta questões éticas. Teme-se, por exemplo, que a edição de genes possa ser usada para gerar pessoas mais fortes ou inteligentes. “A CRISPR-Cas9 é uma técnica poderosa, que pode corrigir uma mutação”, afirma a bióloga Ângela Saito, pesquisadora do Laboratório de Modificação do Genoma (LMG) no Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), em Campinas. “Como há o risco de alterações inespecíficas e resultados indesejáveis, mais estudos precisam ser feitos antes que possa ser usada para tratar doenças hereditárias humanas.” Para o embriologista José Xavier Neto, coordenador do LMG do LNBio, “por ora, a edição de genes apresenta uma solução para um problema que pode ser resolvido de modo mais seguro com a seleção de embriões obtidos por fertilização in vitro antes da implantação no útero”. n

Versão atualizada em 29/08/2017

fita dupla de DNA e ativa nos embriões os mecanismos de reparo que produziram uma cópia íntegra do MYBPC3 – as células humanas têm duas, mas uma mutada já causa problemas. Antes das equipes de Mitalipov e de Liu, outros grupos na China haviam tentado usar a técnica para editar embriões humanos, sem sucesso. Mitalipov e seu grupo conseguiram aumentar a eficiência e a segurança da técnica ao identificar o momento e o modo mais adequados de adotá-la. Eles injetaram a Cas9 no óvulo com o espermatozoide na fecundação – mesmo assim, ela só funcionou em metade dos casos. Quando foi inserida após a fecundação, os embriões apresentaram um problema chamado mosaicismo: metade de suas células tinha o gene corrigido e metade, a versão defeituosa. Inicialmente, os pesquisadores suspeitaram que, mesmo quando corrigiu o problema do embrião, a Cas9 tivesse atuado sobre 15 regiões diferentes da originalmente prevista. Uma análise posterior não encontrou defeitos nessas regiões, sugerindo que o problema estava na técnica de verificação usada. Nenhum embrião foi implantado em mulheres, algo não permitido nos Estados Unidos. O trabalho prepara o caminho para o uso clínico de terapias baseadas nessa ferramenta, escreveram Nerges Winblad e Fredrik Lanner, do Instituto Karolinska,

Artigo científico MA, H. et al. Correction of a pathogenic gene mutation in human embryos. Nature. 2 ago. 2017.

ohsu

P

esquisadores liderados pelo geneticista Shoukhrat Mitalipov, da Universidade de Saúde e Ciência de Oregon, nos Estados Unidos, usaram uma técnica de edição de genes para corrigir em embriões humanos uma mutação responsável pelo desenvolvimento tardio de uma doença cardíaca. Essa é a primeira demonstração feita nos Estados Unidos de que é possível eliminar uma cópia defeituosa de um gene e substituí-la por uma versão íntegra nas células do embrião sem, aparentemente, prejudicar o seu desenvolvimento. Valendo-se da mesma técnica, em março deste ano, a equipe de Jianqiao Liu, da Universidade Médica de Guangzhou, na China, já havia restaurado em embriões humanos dois genes ligados a duas formas de anemia, mas com um índice menor de sucesso. No estudo publicado em 2 de agosto na revista Nature, Mitalipov e outros 30 pesquisadores dos Estados Unidos, da Coreia do Sul e da China usaram uma técnica de edição de genes chamada CRISPR-Cas9 para eliminar a cópia alterada do gene MYBPC3, que codifica uma proteína descoberta nos anos 1980 pelo biólogo brasileiro Fernando Reinach. Esses sistema de edição é formado por uma proteína (Cas9) ligada a uma molécula que a direciona a uma região de repetições do DNA conhecida pela sigla CRISPR (ver Pesquisa FAPESP nº 240). A Cas9 corta a


ivan sazima

ecologia y

Aliança no fundo do mar As seis espécies de peixes-limpadores do atol das Rocas conseguem alimento ao remover parasitas de peixes maiores Carlos Fioravanti

Elacatinus phthirophagus (amarelo e preto) limpando Cephalopholis fulva

A

s águas do atol das Rocas, a 267 quilômetros (km) de Natal, Rio Grande do Norte, abrigam um dos fenômenos mais chamativos dos recifes, quando os peixes predadores se concedem momentos de trégua e se submetem à limpeza realizada por outros peixes e camarões. Em um dos levantamentos mais abrangentes já realizados no atol, biólogos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) identificaram oito espécies limpadoras – seis de peixes e duas de camarões – nessa área de conservação biológica, fechada para visitação pública, com área de 5,5 quilômetros quadrados (km2). Os peixes-limpadores se especializaram em comer parasitas, tecidos doentes ou muco de peixes maiores e tartarugas, que os especialistas chamam de clientes. “Como resultado dessas interações, os clientes mantêm a saúde e o limpador consegue alimento, mas os dois lados tiveram que evoluir até se reconhecerem e não se atacarem na hora da limpeza”, resume o biólogo colombiano Juan Pablo Quimbayo Agreda, pesquisador da UFSC. Ele integra a Rede Nacional de Pesquisa em Biodiversidade Marinha (Sisbiota-Mar), que reúne 30 pesquisadores de nove instituições, com o propósito de pESQUISA FAPESP 258  z  55


avaliar a biodiversidade das quatro ilhas oceânicas do Brasil: o atol das Rocas, o arquipélago de Fernando de Noronha e o de São Pedro e São Paulo e as ilhas de Trindade e Martim Vaz. “Os peixes-limpadores evoluíram a partir de outros peixes que comiam pequenos crustáceos e outros invertebrados”, comenta o biólogo Carlos Ferreira, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e um dos coordenadores da Sisbiota-Mar. Segundo ele, ao se especializarem em comer parasitas, um recurso alimentar pouco abundante, os peixes que vivem principalmente em recifes “evitaram a competição por outros alimentos”. Em maio de 2016, sob a orientação de Ferreira e dos biólogos Sérgio Floeter, da UFSC, e Ivan Sazima, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Quimbayo e os biólogos Lucas Nunes e Renan Ozekoski, também da Sisbiota-Mar, observaram 318 interações de limpeza entre os peixes, em profundidades variando de 1 metro (m) a 5 m, durante 44 horas ao longo de 22 dias. Duas espécies exclusivas da região foram as mais atuantes: o bodião-de-noronha (Thalassoma noronhanum), que atinge 12 cm quando adulto, e o neon-cata-piolho (Elacatinus phthirophagus), de até 4 cm. O bodião participou de 75% das faxinas e atendeu ao maior número

56  z  agosto DE 2017

No atol, o bodião prefere os clientes herbívoros e evita os predadores, que poderiam comê-lo se a limpeza não fosse bem-feita

O camarão Lysmata, de antenas brancas, entre as nadadeiras ventrais de um Holocentrus

de espécies de clientes, 18, de um total de 22 espécies de peixe e uma de tartaruga que procuraram os serviços dos limpadores. Em um artigo publicado em julho deste ano na revista Environmental Biology of Fishes, os biólogos atribuem o número elevado de sessões de limpeza ao fato de a maioria (82%) dos clientes ser herbívoros; além disso, o bodião era a espécie mais abundante por lá. Os três biólogos observaram comportamentos peculiares dos peixes-limpadores do atol. Em Fernando de Noronha, apenas os bodiões jovens se alimentam de parasitas dos outros peixes, mas no atol o hábito se mantém também entre os adultos. No atol, o bodião evita se aproximar de espécies que poderiam comê-lo. “Supomos que essa espécie, de algum modo, consegue identificar as espécies perigosas, provavelmente por um processo evolutivo que eliminou os imprudentes”, diz Quimbayo. O neon apresentou uma dieta flexível, abandonando os hábitos herbívoros de outros lugares para, no atol, saciar-se com vermes, até mesmo arriscando-se ao se aproximar de clientes carnívoros, como o tubarão-lixa (Ginglymostoma cirratum), que chega a 4 m de comprimento e 100 quilogramas (kg) de peso. Ao redor da ilha Malpelo, a 400 km a oeste da costa da Colômbia, entre agosto de 2010 e abril de 2015, Quimbayo iden-


Atol das Rocas, a 267 km a nordeste de Natal, RN: oito espécies limpadoras entre os recifes

tificou cinco espécies de peixe agindo como limpadores, nenhuma delas especializada nessa atividade como no atol. Em metade (56%) das 120 interações, os clientes eram espécies predadoras, como garoupas, raias e tubarões.

fotos  juan quimbayo

Rituais de limpeza

Mais frequentes no início e final do dia, as limpezas podem durar de poucos segundos a vários minutos. As sessões de limpeza ocorrem em geral em espaços específicos, as chamadas estações de limpeza, próximas a rochas ou corais, e seguem rituais próprios (ver Pesquisa FAPESP no 79). Os clientes entram nas estações de limpeza e assumem cores mais vivas ou nadam de boca para baixo, indicando que se deixarão limpar e não atacarão. “Eles estão em uma zona de trégua, ninguém vai comer ninguém”, relata Quimbayo. Ele já viu que os limpadores não devem abusar da sorte para não correr o risco de serem comidos durante o serviço. “Se o limpador tirar um pedaço de pele ou muco, o cliente pode não gostar e reagir com uma mordida brusca.” Dispersas pelas baías e ilhas do mundo, circulam 208 espécies de peixe-limpador, o equivalente a cerca de 3% das 6.500 espécies de peixe de recifes e menos de 1% do total das 30 mil espécies de peixe, de acordo com um levantamento coordenado por David Brendan Vaughan, da Universidade James Cook, da Austrália, publicado em 2016 na revista Fish and Fisheries. Camarões-limpadores são ainda mais raros. Das 51 espécies já identificadas, duas vivem no atol: Lysmata grabhami, com antenas brancas e até 6 cm de

Pomacanthus paru (preto com listras amarelas) limpando Acanthurus

comprimento, e Stenopus hispidus, com corpo malhado de branco e vermelho, antenas brancas e até 10 cm de comprimento. Eles responderam por apenas 3,7% e 2,7%, respectivamente, de todos os episódios de limpeza registrados e entraram em ação principalmente quando os peixes-limpadores não estavam por perto, como Quimbayo já havia observado em um estudo de 2012 nas ilhas de Cabo Verde e São Tomé, na costa da África. Ilhas em perigo

Os levantamentos da Sisbiota-Mar indicaram que o atol das Rocas é a mais preservada das quatro ilhas oceânicas brasileiras, por ser uma reserva biológica com acesso permitido somente a pesquisadores. “Mesmo em Fernando de Noronha, que possui status de parque nacional, a área protegida sustenta uma população humana crescente e existe uma área fora

do parque em que são permitidas atividades como a pesca”, observa Ferreira. Segundo ele, os peixes da área protegida podem nadar para a não protegida, onde são pescados. No arquipélago de São Pedro e São Paulo, a mil km de Natal, já não há tubarões e os cardumes de atum foram bastante reduzidos por causa da pesca excessiva, segundo Ferreira. Nos últimos anos, a ilha de Trindade, a 1,2 mil km a leste de Vitória, capital do Espírito Santo, tem sofrido a ameaça da pesca submarina, “por não ter nenhum status de proteção”, diz ele. Em agosto deste ano, na quinta expedição do projeto, a equipe da Sisbiota-Mar pretende voltar a Trindade para fazer o monitoramento anual das comunidades de organismos marinhos. n

Artigos científicos QUIMBAYO, J. P. et al. Cleaning interactions at the only atoll in the South Atlantic. Environmental Biology of Fishes. v. 100, n. 7, p. 865-73. 2017. VAUGHAN, D. B. et al. Cleaner fishes and shrimp diversity and a re-evaluation of cleaning symbioses. Fish and Fisheries. v. 18, p. 698-716. 2017.

pESQUISA FAPESP 258  z  57


Geoquímica y

Refúgios aprazíveis em

um mundo de vulcoes Experimentos com bactérias sugerem que a vida

pode ter surgido em terra firme

Maria Guimarães

D

iversas representações artísticas mostram a Terra repleta de vulcões sob um verdadeiro bombardeio de meteoros durante o Hadeano, o período geológico que durou de 4,6 bilhões a 4 bilhões de anos atrás. Esse seria o cenário do surgimento da vida, em formas ainda simples. A ideia corrente é que oceanos de magma ou fontes hidrotermais, frestas na crosta terrestre que espirram água quentíssima no fundo dos mares ou na superfície do planeta, poderiam ser ambientes propí58  z  agosto DE 2017

cios para impulsionar reações químicas pouco triviais capazes de formar moléculas complexas autorreplicantes: a base da vida. Não há consenso sobre isso, em parte porque restam poucos indícios que permitam reconstruir, tanto do ponto de vista geológico como biológico, esse período da história do planeta. Em geral se procuram indícios sobre o Hadeano nas rochas, mas o engenheiro geólogo Carlos Roberto de Souza Filho e sua equipe no Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (IGe-Unicamp)

resolveram ver o que bactérias e outros seres unicelulares atuais têm a dizer sobre o período e chegaram a uma conclusão diferente. “O surgimento da vida também em terras emersas é uma possibilidade forte”, defende Souza Filho, com base em resultados publicados em junho na revista Scientific Reports. O trabalho é consequência de um encontro entre geoquímica e biologia. Durante um estágio de pós-doutorado no laboratório de Souza Filho, o geoquímico Alexey Novoselov fez simulações numé-


Formação da Terra

a evolução no Planeta

Bombardeio tardio de asteroides Cristais de zircão de Jack Hills

4,56

4,4

4,1 a 3,8

Primeiras células com núcleo

2,7

2,3

0,5

Surgimento dos seres humanos modernos 0,2 bilhões de anos atrás

Hadeano

Formação do núcleo da Terra

arqueano

Primeiros fósseis de seres vivos

ricas usando informações sobre algumas características químicas das bactérias e arqueias atuais. Formadas por uma só célula, as bactérias e as arqueias existentes hoje descendem de um ancestral comum – possivelmente o último ancestral comum universal ou Luca, na sigla em inglês – que teria existido há cerca de 4 bilhões de anos, pouco após o surgimento da vida na Terra. Mesmo tendo divergido há tanto tempo, esses dois grupos de seres vivos preservam concentrações muito semelhantes de cer-

proterozoico

Aumento do oxigênio na atmosfera

fanerozoico

Primeiros animais com esqueleto

FONTE baseado em infográfico de andree valley / universidade de wisconsin-madison

Formação da Lua

ilustração  sandro castelli

Era dos dinossauros

tos componentes químicos inorgânicos, como óxido de silício (SiO2) e hidróxido de titânio (Ti(OH)4) e os íons de cálcio (Ca2+), de magnésio (Mg2+), de sulfato (SO42-), entre outros. Uma corrente restrita de pesquisadores começou a sugerir nos últimos anos que essa similaridade seria um indicador da composição química do ancestral comum, que, por sua vez, refletiria as condições químicas do ambiente em que existiu. O pouco que se conhece do Hadeano vem da análise química de pequenos

cristais de zircão encontrados em Jack Hills, na Austrália, formados há cerca de 4,4 bilhões de anos. Muito estudados, eles indicam que havia oxidação no manto terrestre e sugerem a existência de água líquida naquela época. Em parceria com pesquisadores do Chile, da Argentina, dos Estados Unidos e da Alemanha, Novoselov, Souza Filho e outros colaboradores da Unicamp tentaram obter informações adicionais sobre essa Terra primitiva examinando a composição química compartilhada por bactérias e arqueias. pESQUISA FAPESP 258  z  59


Estas últimas são seres unicelulares que já foram classificados no mesmo grupo que reúne as bactérias, mas, no final dos anos 1970, passaram a integrar um grupo à parte. “Tentamos identificar as características minerais do ambiente no Hadeano preservadas no metabolismo das bactérias e das arqueias, os organismos mais primitivos que existem hoje”, explica o professor da Unicamp. As escolhidas foram cinco espécies de bactérias (Acetobacter aceti, Alicycloba­ cillus acidoterrestris, Escherichia coli, Nes­ terenkonia lacusekhoensis e Vibrio cho­ lerae) e duas de arqueias que vivem em ambientes hipersalinos (Haloferax vol­ canii e Natrialba magadii). Eles optaram por trabalhar com bactérias e arqueias porque não há representantes vivos de seres do Hadeano e os fósseis mais antigos preservados são de algas de um perío­do mais recente, o Arqueano, que durou de 4 bilhões a 2,5 bilhões de anos atrás. Por meio de análises geoquímicas de alta precisão feitas com um espectrômetro de massa, os pesquisadores quantificaram os elementos químicos inorgânicos compartilhados por essas espécies de bactérias e arqueias. O grupo também cultivou os microrganismos em meios de cultura com composições distintas, o que permitiu medir quanto eles absorvem dos elementos químicos do ambiente e quanto é passado de uma geração para outra. Segundo os pesquisadores, essa informação possibilitaria inferir as condições em que se formou o suposto ancestral comum a todos os organismos, como havia sido proposto alguns anos atrás pelo biólogo Jack Trevors, professor emérito da Universidade de Guelph, no Canadá. Os resultados obtidos pela equipe de Souza Filho indicam que o metabolismo das bactérias e das arqueias de fato conserva uma assinatura química do ambiente em que se desenvolveram. Como esses seres vivos compartilham vias metabólicas que provavelmente surgiram há bilhões de anos e usam os mesmos componentes inorgânicos, ao olhar para esses componentes, os pesquisadores estariam enxergando o passado distante do planeta. “Possivelmente, obtivemos os indícios mais antigos da existência de uma conexão entre os seres vivos e o mundo mineral”, conta Novoselov, atual­ mente pesquisador no Instituto de Geo­ logia Econômica e Aplicada do Chile. 60  z  agosto DE 2017

Colônia de Escherichia coli, bactérias que podem ter compartilhado um ancestral comum com as arqueias

1

Exemplares de arqueia da espécie Haloferax volcanii, encontrada em ambientes hipersalinos

Possivelmente, obtivemos os indícios mais antigos de uma conexão entre os seres vivos e o mundo mineral, diz Novoselov

2

“O ancestral se formou na presença de rochas basálticas, de rochas komatiíticas ou de algum outro tipo de lava vulcânica?”, pergunta Souza Filho, exemplificando os questionamentos que fizeram. Se bactérias e arqueias adquiriram determinados elementos, significa que os minerais que os contêm deveriam estar presentes no ambiente original. Os resultados corroboram o que era previsto pelos modelos baseados nos cristais de zircão e sugerem que as formas iniciais de vida surgiram em um clima moderado, com estações secas e úmidas, em uma atmosfera menos rica em gás carbônico (CO2) do que a atual. O palco teria sido um ambiente de terra firme, como cavidades em rochas (provavelmente basaltos) nas quais os microrganismos pudessem se proteger.


fotos 1 Eric Erbe e Christopher Pooley / USDA, ARS, EMU 2 Jerry eichler / ben-gurion university  3 NASA/GSFC/METI/ERSDAC/JAROS, and U.S./Japan ASTER Science Team  4 John W. Valley ​/ University of Wisconsin – Madison

Esse resultado favorece a hipótese de que a vida poderia ter surgido em rochas expostas a intempéries como chuva e vento; em um pequeno lago quente, como propôs o naturalista inglês Charles Darwin no século XIX; ou em fontes hidrotermais em terra firme, segundo uma hipótese mais recente apoiada por alguns pesquisadores. Em todos esses casos, as moléculas características dos seres vivos – proteínas, lipídios e DNA, por exemplo – necessitam de alternância entre a umidade e a aridez para se formarem, o que só poderia ocorrer em terra emersa, e não no mar. Outros grupos discordam e apostam que a vida teria se originado no oceano primitivo ou, como se passou a propor nas últimas décadas, em regiões ainda mais inóspitas, como as fontes hidrotermais de regiões profundas do oceano. Souza Filho reconhece que o cenário imaginado a partir desses resultados é hipotético e não exclui que formas primordiais de vida também tenham surgido em altas temperaturas. “Os extremófilos, seres que vivem em condições muito adversas, trazem uma lição interessante da qual afloram várias ideias, como a de que lugares ultraquentes ou ultrassalinos são cheios de vida e um grande nicho de exploração científica”, conta. Ele também vê algumas possíveis consequências extraplanetárias de suas conclusões. “O ambiente de Marte foi parecido com o da Terra mais antiga”, conta. “Um melhor entendimento de como a vida surgiu e evoluiu na Terra coloca em perspectiva a possibilidade de haver vida em condições externas ao nosso planeta e, por analogia, selecionar planetas e regiões mais favoráveis para encontrá-la”, afirma. Oceano de laboratório

A reflexão pode ser relevante tanto para a possibilidade de haver vida extraterrestre, como pela noção de que ela pode ter vindo para a Terra a partir de outros pontos do Universo, uma hipótese conhecida como panspermia (ver Pesquisa FAPESP nº 193). “Por enquanto, é impossível dizer se a vida surgiu em nosso planeta ou em outro lugar”, diz o químico Dimas Zaia, professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Na suposição de que tenha surgido aqui, ele tenta recriar em laboratório as condições para que a vida surja. Não significa,

Austrália

Jack Hills Canberra

4 3

Região de Jack Hills, na Austrália, onde foram encontrados os cristais de zircão mais antigos, como o do detalhe, com 4,4 bilhões de anos

necessariamente, reproduzir o passado. “Nunca vamos saber exatamente como a vida surgiu, pois não dispomos de informações precisas sobre a Terra daquele período”, afirma. “Mas podemos mostrar que existe a possibilidade de sintetizar vida a partir de matéria inanimada.” Para isso, ele desenvolveu uma água do mar que chama de água 4 bi, por incluir compostos e íons que, supõe-se, eram abundantes naquele momento, como os íons de sulfato, de magnésio e de cálcio. “Tudo o que tenho feito nos últimos três anos é com essa água.” Os experimentos envolvem dissolver substâncias nessa água, em diferentes condições, e observar o que acontece do ponto de vista químico. Recentemente, seu grupo mostrou que a água marinha atual causa o colapso de cavidades manométricas existentes nas partículas de argila, o que reduz a possibilidade de ocorrerem reações químicas entre moléculas aderidas a elas. Já a água 4 bi não degrada o mineral, uma observação que corrobora a hipótese de que seria propícia à origem da vida. “As moléculas orgânicas estão muito diluídas no mar, por isso precisam concentrar-se em

partículas para que possam encontrar-se e formar polímeros”, explica. Na água 4 bi, vários outros minerais, além da argila, mantêm-se estáveis tanto em temperatura ambiente como a 80 graus Celsius e abrigam íons de magnésio e potássio em sua superfície – condições propícias à formação de polímeros, conforme indica artigo publicado on-line no final de 2016 na revista Origins of Life and Evolu­ tion of the Biosphere. Os fragmentos de minerais funcionam como catalisadores que também protegem as moléculas da radiação ultravioleta (não havia camada de ozônio na fase inicial do planeta) e da degradação por hidrólise. Em conjunto, experimentos com bactérias e reações químicas na água podem ajudar a reconstruir ambientes pretéritos e sugerir como eles podem ter conduzido à formação da vida. n Projeto Quantifying the constraints on the environment of early Earth: the cradle for emerging life on a young planet (nº 11/12682-3); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Carlos Roberto de Souza Filho (Unicamp); Bolsista Alexey Novoselov; Investimento R$ 249.462,97.

Artigos científicos NOVOSELOV, A. A. et al. Geochemical constraints on the Hadean environment from mineral fingerprints of prokaryotes. Scientific Reports. v. 7, 4008. 21 jun. 2017. CARNEIRO, C. E. A. et al. Interaction at ambient temperature and 80 °C, between minerals and artificial seawaters resembling the present ocean composition and that of 4.0 billion years ago. Origins of Life and Evolution of the Biosphere. On-line. 14 out. 2016.

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Entrevista Nicholas Suntzeff y

Observador do Universo distante Um dos descobridores da expansão acelerada do Cosmo fala sobre o desafio de encontrar pistas sobre o que é a misteriosa energia escura

O

astrônomo norte-americano Nicholas Suntzeff, pesquisador da Universidade do Texas A&M, nos Estados Unidos, observa estrelas distantes explodirem há mais de 30 anos. Em 1986, ele e colaboradores do Observatório Interamericano de Cerro Tololo (CTIO), no Chile, mostraram como utilizar o brilho de um tipo especial de explosão estelar, as supernovas do tipo Ia, para medir com precisão a distância de galáxias que se encontram quase no limite do Universo. Essas medições levaram à descoberta, em 1998, de que o Universo se encontra em expansão acelerada. Isso significa que as galáxias estão se afastando umas das outras a velocidades cada vez maiores. Até aquele momento, a maioria dos astrônomos concordava com a ideia de que esse afastamento, iniciado há pouco mais de 13 bilhões de anos, após o Big Bang, a explosão que teria gerado o Cosmo, estaria ocorrendo a velocidades decrescentes. A causa da desaceleração seria a atração gravitacional que os aglomerados de galáxias, as maiores estruturas encontradas no Universo, exercem entre si. Tanto as observações feitas pela equipe de Suntzeff e do astrônomo australiano Brian

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Schimdt quanto as da equipe concorrente, comandada pelo norte-americano Saul Perlmutter, sugeriam o contrário: com o tempo, o espaço entre as galáxias expandia de forma acelerada. Por esse achado, Perlmutter, Schmidt e Adam Riess foram laureados com o Nobel de Física de 2011. Confirmado por observações posteriores, esse achado transformou a cosmologia. Hoje os pesquisadores dessa área só conseguem explicar a estrutura atual do Cosmo quando consideram a expansão acelerada e atribuem esse efeito à existência da energia escura. Caso a energia escura – que repeliria a matéria, ao contrário da força gravitacional – de fato exista e seja responsável pela expansão acelerada, ainda restarão perguntas a responder. Ninguém sabe o que ela é. Alguns modelos teóricos propõem que seja uma forma de energia intrínseca ao espaço vazio, chamada de constante cosmológica. Outros sugerem que seja uma quinta força fundamental, diferente das quatro outras conhecidas pela física – gravitacional, eletromagnética, nuclear forte e nuclear fraca. Para descobrir qual dessas propostas explica melhor o Universo, os físicos necessitam de medições mais precisas das distâncias entre as

Léo ramos chaves

Igor Zolnerkevic


Nicholas Suntzeff colabora com o principal projeto de observação do Cosmo em grande escala, o Dark Energy Survey

galáxias. O problema é que ainda não se sabe qual grau de precisão seria necessário atingir para eliminar algumas hipóteses. Suntzeff colabora com o principal projeto de observação do Universo em grande escala em andamento, o Dark Energy Survey (DES), e nos projetos de construção do telescópio espacial Wilde Field Infrared Survey Telescope (Wfirst), da Nasa, e do Large Synoptic Survey Telescope (LSST), no Chile. Em julho, ele apresentou seminários na Universidade de São Paulo (USP) em São Carlos e no Instituto Sul-americano de Pesquisa Fundamental do Centro Internacional de Física Teórica (ICTP-SAIFR), que funciona em São Paulo no Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Abaixo, a entrevista que Suntzeff concedeu a Pesquisa FAPESP. Como foi descobrir que o Universo se encontrava em expansão acelerada? Foi inesperado. O objetivo era medir uma desaceleração na expansão do Universo. Esperávamos um número positivo para a desaceleração, mas medimos um valor negativo. Ficamos animados. Eu era o encarregado das observações. Os outros pesquisadores vinham a mim para saber se o telescópio estava funcionando bem e se os instrumentos estavam calibrados. Minha assinatura garantia a qualidade dos dados. A maior preocupação era saber se havia cometido algum erro que pudesse levar a informações enganosas. O grupo de Saul Perlmutter também estava em Cerro Tololo, realizando as mesmas medições que nós, com o mesmo telescópio e os mesmos instrumentos. Eu os ajudava em uma noite e, na seguinte, tomava dados para a minha equipe. Havia uma competição científica, não pessoal. Gostávamos deles. E eles chegaram ao mesmo resultado que nós. O que é essa energia escura que causa a expansão acelerada do Universo? pESQUISA FAPESP 258  z  63


Energia escura é um termo que usamos para algo que não entendemos. Não gosto do termo. Não medimos a energia escura. Nossas medições mostraram que supernovas, cujo brilho intrínseco conhecemos, estão muito mais distantes do que seria esperado caso o Universo fosse feito só de matéria. Quanto maior a quantidade de matéria do Universo, mais próximas de nós elas deveriam estar. Mas o brilho delas é 20% mais fraco do que deveria ser. Essa foi a descoberta. O que explicaria esse resultado? A primeira interpretação é que se elas estão mais distantes do que deveriam estar, caso sofressem apenas a influência da força gravitacional, algo as deve ter empurrado contra a gravidade. Uma espécie de antigravidade deve tê-las afastado tanto. A única forma aceitável de produzir uma antigravidade na teoria da relatividade geral é acrescentar às equações de Einstein um termo constante, a chamada constante cosmológica. Qual fenômeno justificaria a existência da constante cosmológica? Não sabemos. Talvez seja consequência das mesmas flutuações na energia do vácuo que faz surgir as partículas elementares. Foi a partir dessa ideia que o físico Michael Turner, da Universidade de Chicago, cunhou o termo energia escura. Não gosto do termo porque introduz um viés no modo de pensar uma explicação para o fenômeno. Medimos que galáxias distantes estão muito mais longe do que deveriam. Constante cosmológica e flutuações no vácuo são interpretações para o que observamos. Acredito que meus dados estão corretos porque outros experimentos, usando técnicas diferentes, encontraram a mesma coisa. Quais são? Há quatro técnicas. Além de medir a distância das supernovas, podemos buscar pequenas distorções nas imagens de galáxias muito longínquas. A luz vinda dessas galáxias atravessa o Universo e é distorcida pela massa de aglomerados de galáxias do caminho. É a chamada lente gravitacional. As lentes gravitacionais permitem medir como o efeito acumulado da massa e da energia do Universo afeta a sua expansão. Outra técnica consiste em examinar a estrutura em grande escala, ou seja, a forma e o tamanho dos aglomerados de galáxia, e medir o quanto a expansão ace64  z  agosto DE 2017

depois de nossas medições, tive certeza de que não tínhamos cometido engano.

Se tivéssemos errado ao medir a distância das supernovas, as medições com outras técnicas não levariam à mesma conclusão

lerada do Universo dificulta a formação dos aglomerados pela atração gravitacional entre as galáxias. Há ainda o método que investiga as oscilações acústicas bariônicas. São ondas no gás ionizado que preenchia o universo primordial e, 300 mil anos depois do Big Bang, originaram a radiação cósmica de fundo, uma forma de radiação na faixa das micro-ondas que permeia o Universo. Essas oscilações deixaram marcas circulares, com 400 mil anos-luz de raio, na distribuição de temperatura da radiação cósmica de fundo. Esses círculos se expandiram com o Universo, influenciando a formação de galáxias, e, hoje, têm 500 milhões de anos-luz. No Universo atual, observamos um pequeno incremento na probabilidade de uma galáxia ter vizinhas a uma distância de 500 milhões de anos-luz. É preciso observar milhões de galáxias para notar esse aumento de probabilidade, que é muito tênue. A comparação da distribuição das manchas na radiação cósmica de fundo com a distribuição das galáxias fornece uma estimativa acurada para a quantidade de energia escura. É maravilhoso o fato de que todos os métodos dão o mesmo resultado. Se tivéssemos cometido erros ao medir a distância das supernovas, as medições usando as outras técnicas não permitiriam chegar à mesma conclusão. Quando os resultados da estrutura em larga escala começaram a chegar, anos

Que nível de precisão as medições teriam de alcançar para se saber qual teoria explicaria melhor o que é a energia escura? A energia das flutuações no vácuo prevista pela teoria quântica de campos não bate com o que vemos. Ela prediz valores enormes, e observamos um valor muito pequeno. A energia escura, seja lá o que for, tem um efeito desprezível em pequenas escalas e é quase impossível medi-la em um laboratório na Terra. É o seu efeito acumulado por todo o espaço que a faz dominar a dinâmica do Universo. Os físicos não fazem ideia de qual deveria ser o valor da constante cosmológica, por isso não sabem dizer com que grau de precisão teríamos de medir a expansão do Universo. Sem um valor teórico, não há com o que comparar os dados das observações e dizer se determinado modelo está correto. Os físicos nos pedem para fazermos medições com a maior precisão possível. Fazemos isso, mas o que vamos testar? Eles precisam nos dizer qual o nível de precisão a ser alcançado nas medições para que se comece a ver um desvio entre os valores previstos para a constante cosmológica e os medidos. Aumentar a precisão é cada vez mais difícil. Quero testar alguma teoria, e não me dedicar a uma busca ilimitada por medições mais e mais precisas. Um resultado interessante seria mostrar que o aumento no ritmo de expansão do Universo não é constante ao longo do tempo. Isso não indicaria o que é a energia escura, mas mostraria que precisamos de uma nova teoria da física para explicá-la. Enquanto existir a possibilidade de que seja uma constante cosmológica, não podemos atribuir esse efeito a uma força desconhecida. Como se interessou por cosmologia? Após o doutorado, fui trabalhar no Observatório Palomar, no Monte Wilson, na Califórnia. Queria estudar a estrutura da Via Láctea e entender como a nossa galáxia se formou a partir de observações de suas estrelas mais antigas. Um dos astrônomos do observatório, Allan Sandage [1926-2010], ficou interessado nas estrelas que eu observava porque ele as usava em seus estudos cosmológicos. Sandage havia sido assistente de Edwin Hubble [1889-1953], o primeiro a medir a


dizendo: “Nick, esse foi o maior erro que cometi na vida, me desculpe por ter escrito aquela carta, considero que fez um grande trabalho e me orgulho de você”. É um absurdo que a relação entre duas pessoas possa depender do valor da taxa de expansão do Universo, mas essas medidas eram importantes para ele.

NASA / ESA / THE Hubble Key Project Team E The High-Z Supernova Search Team

Sua família possui uma história incomum. Seu avô era dono de uma fábrica de armas na Rússia czarista e fugiu do país durante a Revolução Russa. Cresci em São Francisco, na Califórnia. Todos os meus parentes falavam russo. Eu tinha um tio que se vestia com um uniforme cossaco, totalmente inapropriado para São Francisco. Era uma jaqueta vermelha com botões de latão, botas até o joelho e esporas, como se a qualquer momento fosse montar em um cavalo. Parecia que acabara de sair do palco de uma ópera. Eu morria de medo de ser visto na rua ao lado dele. Queria ser um adolescente normal. Só mais tarde me dei conta de quão maravilhosas eram essas pessoas e passei a valorizar a história da família. taxa de expansão do Universo em 1929, a chamada constante de Hubble. Sandage era o principal cosmólogo observacional da época. Eu nunca havia pensado em trabalhar com cosmologia, mas, ao nos conhecermos melhor, ele me encorajou dizendo que, em última instância, tudo se resumia a fazer cosmologia e, em sua opinião, só havia dois números importantes para se medir: a constante de Hubble e a taxa de desaceleração da expansão do Universo. Seu objetivo de vida era medir essas duas grandezas. Na época, eu não me achava inteligente o bastante para fazer o que Sandage fazia. Passei muitas noites com ele no observatório de Las Campanas. Nas noites nubladas, comecei a estudar a literatura e a conversar com Sandage sobre cosmologia. Percebi que não era tão difícil e que eu poderia atuar nessa área. Trabalhamos juntos quando ele começou a usar supernovas para medir a desaceleração do Universo. Mas não deu certo. Quando fui para Cerro Tololo, ele disse: “Nick, você está indo para esse outro observatório onde desenvolverá novos detectores digitais. Você deveria usar as supernovas para medir a desaceleração do Universo”. Um amigo próximo, Mark Phillips,

Sempre foi fascinado por observatórios? com quem estudei na No começo, queria ser mapós-graduação, trabaImagem da supernova SN 1994D, embaixo temático. Me graduei em lhava em Cerro Tololo à esquerda, um dos matemática, na Universidacom supernovas e coobjetos estudados de de Stanford, na Califórmeçamos a colaborar. pelo astrofísico nia. Depois decidi que não Foi assim que a coisa era um matemático bom o decolou. Quando finalsuficiente. Mas sempre fui mente medimos a desaceleração, que se revelou na verdade bom em realizar experimentos e sempre uma aceleração, Sandage ficou zangado. gostei de construir coisas. Meu colega de graduação Michael Kast e eu construímos o Observatório Estudantil de Zangado? Talvez tenha sentido inveja. Sandage ha- Stanford, que ainda funciona. Fiz então via obtido o valor da constante de Hubble, pós-graduação em física experimental lá. mas não conseguira medir a taxa de desa- O forte de Stanford eram os aceleradores celeração. Quando publicamos nossos da- de partículas, mas não gostei da cultura dos, em 1998, ele começou a nos criticar e do departamento, do pessoal que achava a buscar furos no nosso argumento. Acho saber mais do que todo mundo. Quando que ele acreditava em nosso resultado, decidi fazer doutorado em astronomia, o mas desejava que fosse ele quem o tivesse chefe do Departamento de Física ficou obtido. Na mesma época, publiquei um horrorizado. Disse que físicos de Stannovo valor para a constante de Hubble, ford não iam para a astronomia, uma do qual ele também discordou. Ele me área para físicos fracassados. Era desse escreveu uma carta dizendo que estava ego que eu não gostava nos físicos expedesapontado, que a qualidade do meu tra- rimentais. Hoje sei que me enganei. Tebalho tinha decaído e que eu havia cedido nho muitos amigos físicos experimentais, ao diabo. Afirmava que aquela seria nossa gente muito boa. A verdade é que não me última conversa. Ele não falou comigo por dei bem com aquele pessoal e fui fazer 10 anos, até se convencer de que estáva- doutorado em astronomia na Univermos certos. Depois, escreveu outra carta, sidade da Califórnia, em Santa Cruz. n pESQUISA FAPESP 258  z  65


ASTROFÍSICA y

A diferença que iguala o

Sol a suas irmãs Comportamento caótico do plasma ajuda a explicar variações no ciclo magnético das estrelas análogas solares

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U

m grupo internacional de astrofísicos do qual participou o brasileiro José-Dias do Nascimento Júnior, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), parece ter encontrado a resposta para uma questão que há quase duas décadas intriga quem estuda o Sol e as estrelas muito semelhantes a ele, as análogas solares. Exceto pelas idades, que podem variar bastante, esses astros se parecem em quase tudo com o Sol. Apresentam massa, tamanho, temperatura e luminosidade similares. Tantas semelhanças fazem os pesquisadores imaginar que esses astros possam ajudar a reconstituir o passado e a projetar o futuro da estrela que aquece e ilumina a Terra e os planetas vizinhos. Até recentemente, a dificuldade em entender as variações na duração do ciclo de atividade magnética desses astros fazia o Sol parecer uma estrela ímpar.

Um estudo publicado por Nascimento e seus colaboradores em julho na revista Science ajuda a desfazer o mistério e indica que nada no Sol o torna diferente de suas irmãs. “A duração do ciclo magnético das análogas solares varia muito, alguns são mais longos e outros mais curtos, mas nenhum coincide com o do Sol”, conta o astrofísico brasileiro, que também é pesquisador visitante do Centro de Astrofísica da Universidade Harvard, nos Estados Unidos. Um dos trabalhos que colaboraram para fortalecer a reputação do Sol como estrela única em sua categoria foi publicado em 2007 na revista Astrophysical Journal pela astrofísica alemã Erika Böhm-Vitense (1923-2017), então professora na Universidade de Washington, Estados Unidos. Uma figura do artigo deixava clara a diferença. O gráfico correlacionando o tempo em que a estrela completa uma


ilustraçãO the galileo project

Manchas registradas por Galileu Galilei entre 9 e 12 de junho de 1613

volta em torno de seu eixo (período de rotação) com a duração do ciclo magnético separava em dois grupos as quase 30 estrelas analisadas: as mais jovens, com ciclo magnético mais curto, ficavam de um lado; e as mais velhas, de ciclo longo, de outro. No meio, isolado, aparecia o Sol. O trabalho publicado agora na Science retira o Sol dessa posição especial ao explicar a origem das variações nos ciclos magnéticos e indicar que é muito improvável – se não impossível – encontrar dois desses ciclos iguais, mesmo que todas as outras características das estrelas sejam quase idênticas. A razão dessa improbabilidade é que alguns fenômenos envolvidos na geração dos campos magnéticos estelares parecem seguir as regras da chamada teoria dos sistemas dinâmicos ou teoria do caos. Como os fenômenos descritos por essa teoria são muito sensíveis às condições

iniciais, mesmo que elas sejam muito parecidas, os resultados podem ser bem distintos. Assim, só haveria dois ciclos magnéticos coincidentes se as estrelas fossem iguais em tudo, algo extremamente raro na natureza. “Essa componente caótica explica por que dificilmente conseguiremos encontrar duas estrelas com ciclo magnético de mesma duração”, relata o pesquisador. Ela também permite compreender por que, no caso do Sol, a duração desse ciclo pode variar. “Nossos resultados indicam que o Sol é uma estrela comum, como qualquer outra de sua categoria.” Estrelas como o Sol são esferas de gás superaquecido e eletricamente carregado (plasma), composto basicamente por hidrogênio e hélio. Seu campo magnético é gerado no terço mais superficial da estrela pelo movimento do plasma, que é transportado das regiões mais profundas e quentes dessa camada para as mais superficiais e frias, ao mesmo tempo que gira arrastado pela rotação da estrela. Toda essa movimentação distorce as linhas do campo magnético amplificando-o. De tempos em tempos, esse campo sofre uma inversão de polaridade: o positivo se torna negativo e vice-versa. No caso do Sol, que dá uma volta em torno de seu eixo em 28 dias, a inversão de polaridade ocorre aproximadamente uma vez a cada 11 anos. São necessários outros 11 anos para os polos retornarem à configuração magnética inicial e completar o ciclo, num total de 22 anos. Já foram observadas, no entanto, inversões a cada 9 e até 14 anos. Essas inversões de polaridade coincidem com o período de mínima atividade da estrela, enquanto os períodos de máxima atividade são marcados pelo surgimento das manchas (regiões escuras e mais frias) na superfície do Sol, registradas pela primeira vez no século XVII pelo matemático e astrônomo Galileu Galilei (ver imagens acima). O físico e matemático irlandês Joseph Larmor propôs em 1919, na chamada teoria do dínamo, que a origem do campo magnético contínuo do Sol seria o movimento de partículas elétricas em seu interior, algo válido também para outras estrelas. Projetos que monitoraram a atividade estelar por longos períodos indicaram, no entanto, que o comportamento dos ciclos magnéticos seria mais complexo. Modelos de magneto-hidrodinâmica, que são mais sofisticados e

consideram as estrelas preenchidas por um fluido condutor de eletricidade, até conseguiam reproduzir as inversões de campo magnético, mas não geravam de modo fiel o ciclo completo de muitas delas. Nascimento e os astrofísicos franceses Allan Sacha Brun, do Laboratório de Astrofísica, Instrumentação e Modelagem Paris-Saclay, e Antoine Strugarek, da Universidade de Montreal, no Canadá, melhoraram a capacidade de previsão desses modelos ao acrescentar a eles equações da teoria do caos que descrevem o movimento turbulento do plasma. simulações 3d

Usando o novo modelo, eles realizaram simulações tridimensionais do interior do Sol e de 30 análogas solares, obtendo ciclos muito semelhantes aos medidos pelas observações astronômicas. Também notaram que a duração do ciclo magnético depende da velocidade de rotação da estrela: os astros que giram mais rapidamente apresentam ciclos mais curtos. “A tendência que encontramos é diferente da obtida pelos modelos do passado”, afirmou Strugarek, primeiro autor do artigo da Science, em um comunicado à imprensa. “Já era esperado que a atividade magnética da estrela fosse influenciada por sua velocidade de rotação”, conta a astrofísica Elisabete Dal Pino, da Universidade de São Paulo (USP), que não participou do estudo. “O resultado que obtiveram”, continua ela, “é relevante por mostrar que estrelas semelhantes ao Sol, mas com rotação diferente, podem apresentar ciclos magnéticos de duração distinta”. Conhecer a duração do ciclo magnético das estrelas é importante para a identificação de planetas e orientar a busca de vida ao redor de estrelas como o Sol. “A atividade magnética das estrelas gera um sinal que pode ser confundido com um planeta em sua órbita”, conta Nascimento. Segundo o pesquisador, estima-se que parte dos planetas extrassolares encontrados por uma das técnicas possa não existir e, em alguns casos, representar um resultado falso, causado por manifestações magnéticas. n Ricardo Zorzetto

Artigo científico STRUGAREK, A. et al. Reconciling solar and stellar magnetic cycles with nonlinear dynamo simulations. Science. 14 jul. 2017.

pESQUISA FAPESP 258  z  67


tecnologia  Engenharia y

Biossensores na medicina Portáteis e precisos, dispositivos pretendem aprimorar diagnóstico de doenças infecciosas e genéticas Rodrigo de Oliveira Andrade

A

vanços recentes no campo da biologia molecular estão ampliando as possibilidades de uso de biossensores no diagnóstico e na prevenção de doenças. Desenvolvidos com base em elementos de reconhecimento biológico, como antígenos e anticorpos, esses dispositivos podem se tornar aparelhos portáteis e baratos, semelhantes aos utilizados na medição das taxas de glicose no sangue. Amplamente usados em outros países, os biossensores atraem cada vez mais a atenção de grupos de pesquisa brasileiros, que nos últimos anos passaram a investir em dispositivos voltados especificamente para a detecção de doenças

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infecciosas negligenciadas, associadas à pobreza e à falta de saneamento básico. É o caso dos pesquisadores do Grupo de Nanomedicina e Nanotoxicologia do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP). Desde 2010 eles trabalham no desenvolvimento de um conjunto de sensores capazes de identificar sinais de doenças diversas. Caso se mostrem eficazes nos próximos estágios de avaliação, esses aparelhos podem se tornar uma alternativa aos exames realizados em laboratórios de análises clínicas e ser usados em consultórios médicos ou por agentes de saúde em visitas às residências de pessoas que vivem em regiões remotas do país.


léo ramos chaves

Eletrodo usado na concepção de dispositivos para detecção de antígenos e anticorpos

Nos Estados Unidos, os biossensores há algum tempo estão sendo usados por médicos para acelerar os resultados de exames ou no monitoramento das condições de saúde de indivíduos acometidos por doenças como Aids e hepatite C. Em outras situações, ajudam a medir os níveis de oxigênio ou álcool no sangue, como no caso de um biossensor flexível criado por pesquisadores da Universidade da Califórnia em San Diego. Também os Institutos Nacionais de Saúde (NIH) daquele país investem em pesquisas para a concepção de biossensores médicos baseados em sistemas diversos, seja de atração química, correntes elétricas, detecção de luz, entre outros.

No IFSC-USP, um dos biossensores médicos em estágio mais avançado de desenvolvimento é o de diagnóstico da dengue, doença que acomete 390 milhões de pessoas no mundo por ano, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). O dispositivo baseia-se na identificação elétrica da proteína NS1, secretada pelo vírus na corrente sanguínea nos primeiros dias após a infecção. Essa proteína, um antígeno, induz uma resposta imune no organismo humano para produzir anticorpos contra ela. O problema é que isso acontece somente após o quinto dia, o que dificulta a detecção precoce da doença. Para acelerar esse processo, os físicos Nirton Cristi e

Alessandra Figueiredo, sob coordenação do engenheiro de materiais Valtencir Zucolotto e do físico Francisco Guimarães, desenvolveram um sistema de diagnóstico da dengue com base na imunoglobulina IgY, anticorpo que combate a NS1. A IgY foi isolada de galinhas inoculadas com NS1 e, em seguida, imobilizada em um eletrodo de ouro acoplado a um circuito, sobre o qual há um fluxo constante de elétrons. A ideia é que o exame seja feito por meio de uma gota de sangue sobre o dispositivo. Se houver infecção, ao entrar em contato com a NS1, a imunoglobulina IgY altera o fluxo de elétrons, produzindo um sinal que é registrado e processado por um softwapESQUISA FAPESP 258  z  69


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Microbalança de cristal de quartzo utilizada pelos pesquisadores da UFPR no desenvolvimento de equipamento para diagnóstico da dengue

re. O resultado sai em até 20 minutos. “Quanto maior a concentração de NS1 no eletrodo, mais intensa será a alteração do potencial elétrico”, explica Nirton, hoje professor no Instituto de Ciência e Tecnologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em São José dos Campos. O projeto foi desenvolvido com a empresa DNApta Biotecnologia, de São José do Rio Preto, que compartilha os direitos da patente da tecnologia. Por meio de uma abordagem distinta, a professora Maria Rita Sierakowski e o doutorando Cleverton Luiz Pirich, do grupo BioPol da Universidade Federal do Paraná (UFPR), criaram um biodispositivo de detecção da NS1 baseado em uma microbalança de quartzo com sensores piezoelétricos, capazes de gerar corrente elétrica quando deformados por uma pressão mecânica. O sistema foi desenvolvido em colaboração com o Instituto de Química da USP. É composto por um cristal de quartzo, um eletrodo de ouro revestido com polietilenimina e nanofilmes de nanocristais de celulose bacteriana, modificados para reagir quimicamente ao entrar em contato com a NS1, alterando os padrões de frequência e dissipação de energia nos nanocristais. “Desse modo, quando uma amostra de soro contendo NS1 é colocada sobre o biossensor, é possível verificar, a partir de um software, se a proteína se ligou à superfície do material por meio da detecção de microvibrações mecânicas”, explica Maria Rita. 70  z  agosto DE 2017

Estima-se que o mercado mundial de biossensores alcance US$ 27 bilhões até 2022

O biossensor para diagnostico de dengue integra uma série de outros dispositivos criados pelos pesquisadores de São Carlos. Todos baseiam-se em sistemas eletroquímicos que alteram padrões de sinais elétricos ao detectarem eventos biológicos específicos. Um dos primeiros biossensores concebidos por eles é capaz de identificar e distinguir anticorpos de leishmaniose e da doença de Chagas, hoje diagnosticadas com o auxílio do teste Elisa, que permite detectar anticorpos específicos em amostras de sangue. Apesar de ser amplamente usado pelos laboratórios de análise clínica, o Elisa é incapaz de diferenciar os anticorpos produzidos contra infecções causadas por essas doenças, o que leva à necessidade de exames complementares. O biodispositivo foi desenvolvido em parceria com diversas instituições de pesquisa do país. É composto de circuitos elétricos impressos em pequenos eletrodos, sobre os quais é depositado um conjunto de proteínas antigênicas isoladas do protozoário Leishmania amazonensis, uma das espécies que causam a forma tegumentar da leishmaniose no

Brasil, ou Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas, que acomete cerca de 8 milhões de pessoas no mundo por ano, segundo a OMS. “Se o anticorpo de interesse estiver presente na amostra analisada, a ligação entre ele e a proteína antigênica produz uma alteração na resposta elétrica do eletrodo, acusando a presença do patógeno”, explica Zucolotto. O biodispositivo do IFSC, em fase de protótipo, demora cerca de 20 minutos para apresentar a resposta e teve patente depositada no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). Análises genéticas

Mais recentemente, a equipe de São Carlos também começou a trabalhar na concepção de genossensores para reconhecer sequências específicas do material genético de vírus e mutações associadas a tumores. Em 2016, Zucolotto, a física Laís Ribovski e o químico Bruno Campos Janegitz, do Centro de Ciências Agrárias da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), criaram um sensor capaz de identificar a mutação 185delAG, associada aos tumores de mama e ovário. No

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experimento que fizeram, eles imobilizaram na superfície do dispositivo um trecho da sequência complementar à região do DNA onde ocorre essa mutação, de modo que, quando a sequência correspondente fosse colocada no eletrodo, a ligação desencadeasse uma alteração na resposta elétrica do equipamento, indicando a presença da sequência-alvo ligada à mutação. Os resultados dos testes com o dispositivo foram descritos em um artigo publicado na Microchemical Journal. Por ora, foram usadas apenas sequências sintetizadas em laboratório. A mesma técnica foi usada para diferenciar infecções causadas pelos vírus zika e da dengue. Tal como acontece nas infecções por dengue, o zika também secreta quantidades expressivas de NS1 na corrente sanguínea nos primeiros dias após a infecção, o que pode comprometer a análise feita pelos biossensores desenvolvidos para dengue até aqui. Usando ferramentas de bioinformática, eles identificaram regiões específicas do material genético dos dois vírus para serem imobilizadas, cada um, na superfície de um eletrodo. A ligação entre a sequência que está no dispositivo e a da amostra produz uma alteração no sinal elétrico, indicando a presença do material genético dos vírus. O sensor mostrou bons resultados em testes preliminares envolvendo sequências sintetizadas em laboratório.

Um dos eletrodos desenvolvidos pelo grupo do Instituto de Física de São Carlos

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No Brasil, ainda há um longo caminho até que esses aparelhos sejam produzidos em larga escala

fotos  1 e 3 léo ramos chaves 2 cleverton pirich

Transferência de tecnologia

Os biossensores constituem uma tecnologia em ascensão no mundo. De acordo com dados da Markets and Markets, empresa de pesquisa e consultoria norte-americana na área de tecnologia da informação, o mercado de biossensores foi avaliado em cerca de US$ 16 bilhões em 2016. Estima-se que alcance US$ 27 bilhões até 2022. Os biossensores médicos detêm 66% desse mercado. As principais empresas que investem na concepção desses equipamentos são as norte-americanas Abbott Laboratories e Johnson & Johnson, e a alemã Bayer Healthcare. A demanda por esses dispositivos deve ser catapultada nos próximos anos, devido sobretudo à crescente prevalência de doenças como diabetes e à necessidade de dispositivos que monitorem os níveis de glicose no sangue. Segundo a Federação Internacional de Diabetes, a doença deverá acometer 552 milhões de pessoas no mundo em 2030.

Os Estados Unidos é o principal mercado de biossensores, resultado de uma cultura de rápida adoção de produtos tecnologicamente avançados por médicos e pesquisadores. No Brasil ainda há um longo caminho até que eles sejam produzidos e comercializados em larga escala. Esses equipamentos são desenvolvidos majoritariamente em universidades e centros públicos de pesquisa. Após sua concepção em laboratório, eles precisam ainda passar por testes de segurança e eficácia, ser patenteados e, especialmente, atrair o interesse de empresas dispostas a fazer com que cheguem ao mercado consumidor. Estima-se que o custo de produção dos eletrodos usados em biossensores, em escala de laboratório, seja de cerca de US$ 2. “A ideia é desenvolver aparelhos completos cujo valor da unidade não ultrapasse US$ 100 (cerca de R$ 315)”, comenta Zucolotto. Ainda assim,

a maioria dos dispositivos desenvolvidos no Brasil encontra-se em fase de protótipo, sem aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Há também um longo caminho até que esses dispositivos sejam capazes de dar conta do grande volume de amostras que todos os dias são analisadas nos laboratórios. “Para além do potencial de aplicação dessa tecnologia em grandes laboratórios, é preciso que os biossensores sejam capazes de analisar, identificar e quantificar elementos de interesse clínico em grandes quantidades de amostras”, diz a médica Jeane Tsutsui, diretora-executiva do Fleury Medicina e Saúde. “Para que os biossensores possam chegar aos consultórios médicos e agentes de saúde é preciso investimento em projetos conjuntos entre empresas e universidades para sua validação clínica”, conclui. n

Projetos 1. Desenvolvimento de sensores e biossensores eletroquímicos para diversos fins analíticos (nº 15/19099-2); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Bruno Campos Janegitz (UFSCAR); Investimento R$ 169.539,83. 2. Estudo da interação entre materiais nanoestruturados e sistemas biológicos: Aplicações ao estudo de nanotoxicidade e desenvolvimento de sensores para diagnóstico (nº 08/08639-2); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Valtencir Zucolotto (IFSC-USP); Investimento R$ 368.230,90.

Artigos científicos RIBOVSKI, L. A. label-free electrochemical DNA sensor to identify breast cancer susceptibility. Microchemical Journal. v. 133, p. 37-42. jul. 2017. FIGUEIREDO, A. et al. Electrical detection of dengue biomarker using egg yolk immunoglobulin as the biological recognition element. Scientific Reports. jan. 2015. PIRICH, C. L. et al. Piezoelectric immunochip coated with thin films of bacterial cellulose nanocrystals for dengue detection. Biosensors and Bioelectronics. v. 15, n. 92, p. 47-53. jun. 2015.

pESQUISA FAPESP 258  z  71


pesquisa empresarial

Inovar para se reinventar Multinacional brasileira de serviços de TI, Stefanini aposta em P&D para obter 85% de seu faturamento com soluções digitais Domingos Zaparolli

A

Stefanini, empresa brasileira de prestação de serviços de Tecnologia da Informação (TI) com faturamento anual de R$ 2,6 bilhões, está sendo reinventada. A empresa é identificada hoje como fornecedora de serviços de suporte e manutenção, o service desk, serviços de engenharia em campo denominados field service e terceirização de processos que fazem uso intenso de TI, o business process outsourcing (BPO). Em cinco anos, seus gestores querem que ela seja reconhecida como uma companhia de soluções digitais para os setores financeiro, varejo, administração pública, além de ser capaz de apoiar a transição das indústrias para o universo 4.0, no qual os processos produtivos utilizam tecnologias avançadas como inteligência artificial, internet das coisas, computação em nuvem e sistemas ciberfísicos, que é a interação de componentes de informática e de máquinas ou equipamentos. A meta da empresa, cuja sede fica em São Paulo, é que os negócios digitais respondam por 85% das receitas em 2022. Em 2016, essa participação foi de 26%.

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“Concluímos que precisávamos mudar nosso foco de atuação ou a companhia não estaria mais ativa em um prazo entre cinco e 10 anos”, conta Breno Barros, diretor de Inovação e Negócios Digitais da empresa. A estratégia de reestruturação da Stefanini, iniciada no ano passado, está alicerçada em investimentos em pesquisa e desenvolvimento e na aquisição de startups e empresas com foco em inovação que possam complementar o portfólio da companhia. Desde 2011, 14 empresas já foram incorporadas, entre elas a Document Solutions, especializada em digitalização e processamento de documentos, a Orbitall, que atua no segmento de meios de pagamento, a Top Systems, de soluções em transações financeiras, a Woopi, no desenvolvimento de sistemas de autoatendimento com base em inteligência artificial, e a IHM Engenharia, especializada em automação industrial. A Diretoria de Inovação comandada por Barros foi criada no início de 2016 com o objetivo de coordenar esse processo de reestruturação. Em seu primeiro ano, contou com um orçamento equivalente a 5% do faturamento global para


empresa stefanini

Centro de P&D São Paulo (SP)

Nº de pesquisadores 140 (Brasil e exterior)

Principais produtos Plataformas de banco digital, sistemas de atendimento cognitivo, soluções em

Alex Williamson / getty images

automação industrial

investimentos em pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I). Em 2017, a verba subiu para 7% e deverá evoluir gradualmente para 10% ao ano, embora esse patamar possa ser ainda maior. “Estamos analisando abrir o capital da companhia como forma de obter mais recursos para inovar.” BANCO DIGITAL

Os primeiros resultados do trabalho de P&D da Stefanini e suas empresas de base tecnológica já começam a aparecer. Em setembro de 2016, a companhia lançou uma das primeiras plataformas

integradas de banco digital do mercado brasileiro, composta de solução para o core banking, que é o gerenciamento das transações financeiras, plataforma de crédito e abertura de contas, análise de fraude documental, automação de canais de contato com clientes, como os ATMs (caixas automáticos) e as operações dos departamentos de retaguarda. “Somos capazes de colocar em funcionamento um banco digital completo em até seis meses, enquanto os concorrentes vendem soluções digitais específicas para cada atividade bancária”, afirma Barros. Em 2016, a internet e o mobile banking

juntos responderam por 57% das transações bancárias realizadas no país e a projeção é de que chegue a 80% em 10 anos. Em abril de 2016, o Banco Central autorizou a abertura de contas correntes totalmente digitais, sem contato presencial entre clientes e instituições bancárias. Em um ano, já existe quase 1 milhão de contas totalmente digitais no país e a expectativa é de que esse número chegue a 3,3 milhões até o final de 2017. Além da comodidade, as estruturas digitais oferecem menores taxas aos clientes. Wander Cunha, diretor-executivo da área de Business Consulting da Stefanini, relata que os planos da companhia em desenvolver uma plataforma bancária digital integrada tiveram início em 2015. Em setembro daquele ano, a empresa solicitou um financiamento de R$ 21 milhões à Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), mas iniciou os trabalhos com recursos próprios antes mesmo do financiamento ser aprovado, o que só ocorreu em 2017. Na avaliação de Cunha, o pioneirismo pode gerar uma boa oportunidade para a Stefanini se posicionar nesse segmento de mercado. “Trabalhamos com a perspectiva de conquistar entre 30% e 40% do mercado brasileiro de plataforma bancária digital”, estima. O primeiro contrato já foi estabelecido com o Sistema de Crédito Cooperativo (Sicredi), que reúne 3 milhões de associados em 20 estados brasileiros. A implementação da plataforma digital do Sicredi está sendo realizada pelo pESQUISA FAPESP 258  z  73


escritório da Stefanini de Porto Alegre e conta com o apoio do Parque Científico e Tecnológico da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RS) do Rio Grande do Sul (Tecnopuc). A companhia foi uma das primeiras a realizar uma parceria com o parque tecnológico, logo que foi inaugurado em 2003. Segundo Marcelo Barradas, diretor da Stefanini para a região Sul, o ambiente de inovação criado pela Tecnopuc teve papel importante na adequação de soluções globais para o projeto do banco digital brasileiro – já que as normas regulatórias, a contabilidade bancária, o processo de abertura de contas e os instrumentos de segurança são diferentes de um país para outro. Em 2016, a relação da Stefanini com a Tecnopuc se tornou mais estreita com o estabelecimento de um laboratório conjunto com a Faculdade de Informática da PUC-RS. A instalação tem uma equipe fixa composta por três pesquisadores e deverá ser reforçada por mais dois, além de três alunos estagiários. “A parceria é muito positiva para a empresa, que agrega valor aos seus produtos com a colaboração dos especialistas da universidade, e também é muito boa para a academia, uma vez que professores e alunos têm oportunidade de aplicar seus conhecimentos para solucionar problemas reais e gerar inovações que cheguem ao mercado”, explica Ricardo Bastos, diretor da Agência de Gestão Tecnológica da PUC-RS. Outra inovação recente é a plataforma de atendimento cognitivo Sophie, capaz de interagir com usuários huma-

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nos e sistemas por meio de um conjunto crescente de interfaces de texto e voz, geridos por meio de algoritmos de Inteligência Artificial (IA). Como todas as plataformas de IA disponíveis no mercado, a Sophie utiliza redes neurais capazes de reconhecer padrões e realizar o aprendizado de máquina, ou seja, evoluir sem ser especificamente programada. IBM, Google e Microsoft já oferecem ferramentas com essas características. A Sophie, porém, é uma das primeiras plataformas criadas especificamente para sistemas de atendimento ao público, como call centers, relata Alexandre Winetzki, fundador e presidente da Woopi, empresa responsável pela solução. “Enquanto as demais plataformas lidam

equipe de pesquisadores Conheça alguns profissionais da equipe de P&D da Stefanini e saiba quais instituições foram responsáveis por sua formação Breno Barros, cientista da computação, diretor de Inovação e Negócios Digitais

Universidade Federal do Pará (UFPA): graduação

Byron Leite Dantas Bezerra, engenheiro da computação, cientista-chefe da Document Solutions

Universidade Federal de Pernambuco (UFPE): graduação, mestrado e doutorado

Cleber Zanchettin, engenheiro da computação, pesquisador da Document Solutions

Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc): graduação UFPE: mestrado e doutorado

Augusto dos Santos Moura Junior, engenheiro eletricista, presidente da IHM Engenharia

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG): graduação, mestrado e doutorado

Fabio Caversan, engenheiro da computação, diretor de Pesquisa e Desenvolvimento da Woopi

Faculdade de Engenharia de Sorocaba: graduação Universidade de São Paulo (USP): mestrado

Paulo André Perez, engenheiro eletricista, líder da área USP: graduação, mestrado e doutorado de Intelligence Solutions

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Assistente virtual gerada pela plataforma de atendimento cognitivo Sophie: utilização em call centers

igualmente com dados, fotos e imagens, nossa abordagem foi concentrar esforços na linguagem humana, na busca semântica e no processamento da linguagem natural”, esclarece. A plataforma foi desenvolvida em português e está ganhando duas novas versões, em inglês e espanhol. A Sophie já está em processo de homologação em 20 potenciais clientes, sendo 18 no Brasil, um nos Estados Unidos e outro na Europa. O primeiro contrato foi fechado com a Emprel, Empresa Municipal de Informática da Prefeitura de Recife. FOCO NA AUTOMAÇÃO

Automação industrial é outro segmento de negócio em que a Stefanini investe para expandir suas atividades em soluções digitais. Em 2015 a companhia adquiriu o controle da IHM Engenharia, empresa com sede em Belo Horizonte criada em 1994 e que já desenvolveu mais de 800 projetos de automação em diversos segmentos industriais. A IHM tem uma equipe de P&D composta por 15 pesquisadores em automação e inteligência artificial que agora se dedica principalmente a desenvolver soluções voltadas para a indústria 4.0. A IHM Engenharia foi a responsável por desenvolver um sistema para mitigar


fotos 1 divulgação stefanini  2 Anglo American

Vista da unidade de beneficiamento do mineroduto Minas-Rio, que conta com uma solução de automação da IHM Engenharia, empresa do grupo. O sistema foi projetado para tornar mais segura a operação nos 529 km de duto

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riscos e evitar paralisações no mineroduto do Sistema Minas-Rio, da Anglo American. O duto de 529 quilômetros, o maior do mundo para minérios, conecta uma mina de ferro em Conceição do Mato Dentro (MG) ao Porto de Açu, em São João da Barra (RJ). O sistema da IHM verifica automaticamente cada etapa da operação e encaminha informações para uma sala de controle, sem a necessidade de funcionários caminharem ao longo do trecho para saber como está o bombeamento pelo duto. O processo reduz o tempo de resposta em caso de necessidade de intervenção e inibe ocorrências. “Utilizamos técnicas de deep learning para desenvolver um modelo matemático a partir de dados históricos do processo para prever anomalias, como entupimentos ou vazamentos no duto, e com isso reduzimos riscos de acidentes ambientais ou perda significativa de produtividade”, diz Breno Barros. Deep learning é o processo de aprendizado da máquina. NOVO PARADIGMA

A estrutura e as atividades de inovação do grupo Stefanini são descentralizadas, sendo que cada uma das empresas incorporadas desenvolve projetos próprios e conta com sua equipe dedicada à pesquisa e ao desenvolvimento de produtos e serviços. Cabe ao núcleo comandado por Breno Barros a tarefa de coordenar o trabalho e buscar sinergias entre as diversas unidades. Ao todo, a equipe é

A Stefanini está presente em 40 países, possui 65 escritórios no Brasil e tem 21 mil funcionários

composta por cerca de 140 pesquisadores, que se dedicam em tempo integral ou parcial aos projetos de inovação do grupo no Brasil e no exterior. Além da Tecnopuc, a empresa mantém parcerias com a Fundação Getulio Vargas (FGV), Universidade de São Paulo (USP), Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos, além das universidades de Administração e Nacional de Singapura. A prioridade em inovação é uma mudança significativa de paradigma na história da Stefanini. A empresa foi criada

em 1987 por Marco Stefanini, um geólogo formado pela USP que encontrou oportunidade de trabalho na área de tecnologia bancária. A proposta inicial era a oferta de treinamento e cursos de formação profissional para o setor financeiro. No início dos anos 1990, a empresa se posicionou como prestadora de serviços terceirizados em TI. Os serviços de suporte e manutenção da Stefanini responderam por 74% do faturamento da companhia em 2016 e sustentam uma folha de pagamento formada por mais de 21 mil funcionários em 65 escritórios no Brasil e em outros 40 países na América do Norte, Ásia, América Latina e Europa. A estrutura no exterior responde por 40% da receita e permitiu a Stefanini tornar-se a quinta companhia brasileira mais internacionalizada, segundo o Ranking das Multinacionais Brasileiras 2016, elaborado pela Fundação Dom Cabral. Essas atividades, no entanto, são classificadas no mundo corporativo como “comoditizadas”, ou seja, não existem diferenças significativas entre as ofertas de mercado e a lucratividade depende de grandes volumes negociados. A demanda global por esses serviços, porém, é declinante. “A revolução digital está mudando os conceitos de suporte e manutenção e irá tornar dispensável a engenharia de campo”, diz Barros. Foi essa constatação que levou a Stefanini a buscar novos rumos. n pESQUISA FAPESP 258  z  75


folha a unidade de P&d brasileira é líder global na multinacional na criação de soluções em computação cognitiva voltadas à área de recursos naturais

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Elevada

produtividade Com 250 solicitações de patentes e 412 artigos publicados,

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Laboratório de Pesquisas da IBM no Brasil, criado em 2011, acumula 250 solicitações de patentes submetidas ao Escritório de Patentes e Marcas dos Estados Unidos (USPTO), sendo 40 já concedidas, e 412 artigos publicados em revistas científicas. As patentes são relacionadas às áreas de nanotecnologia, computação em nuvem, computação cognitiva e internet das coisas, com aplicações principalmente na indústria de óleo e gás, mineração, agronegócio, finanças e saúde. O desempenho estabelece a multinacional norte-americana como um dos mais produtivos centros de inovação empresarial do Brasil. A área de pesquisa e desenvolvimento (P&D) da empresa conta com duas estruturas laboratoriais no país, em São Paulo e no Rio de Janeiro, onde trabalham 140 pessoas dedicadas à inovação. Segundo Ulisses Mello, diretor de pesquisas da IBM Brasil, o país é líder global

unidade de P&D da IBM é um dos mais profícuos centros de inovação do país

Nos laboratórios em São Paulo e no Rio de janeiro, trabalham 140 pessoas dedicadas à inovação

inovação

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Flora brasiliensis

saúde

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utilizada no setor da saúde, a plataforma de serviços cognitivos watson permite que os médicos insiram no sistema informações clínicas de seus pacientes, como histórico do tratamento e resultado de exames

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desenvolvida no brasil, a plataforma de inovação aberta ibm agritech pode contribuir para elevar a produtividade agrícola nacional

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fotos 1 ibm 2 e 7 PEDRO GUERMANDI PAVANATO / ibm 3 reprodução do livro flora brasiliensis 4 reprodução do livro lebensfluten – tatensturm 5 IBM Watson Health 6 Léo ramos chaves

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um novo laboratório experimental de nanotecnologia foi inaugurado no rio em abril deste ano

do grupo no desenvolvimento de soluções em computação cognitiva na área de recursos naturais, e o propósito do Laboratório de Pesquisas, instalado há seis anos, continua sendo o de “aproveitar a vocação brasileira para a produção de produtos agropecuários, minérios e petróleo para agregar valor em conhecimento e produzir e exportar, além de commodities, tecnologia”. Em abril deste ano, a companhia ampliou sua atividade de P&D com um investimento de US$ 4 milhões em um novo laboratório experimental em nanotecnologia, o NanoLab, sediado no Rio. A IBM brasileira já realizava havia quatro anos pesquisas na área de nanotecnologia e o país é referência na multinacional em investigação de microfluidos, o estudo dos fluidos em microescala, e no desenvolvimento de microdispositivos, similares a chips de computadores, para análises químicas. O novo laboratório oferecerá aos pesquisadores uma estrutura de equipamentos para caracterização, manipulação e teste de nanopartículas, como microscópios ópticos e de força atômica de alta precisão, impressoras 3D e ferramentas de testes de hardware e software. As pesquisas em nanotecnologia e microfluidos são voltadas principalmente para os setores de saúde, agronegócio e petrolífero e resultaram em 25 pedidos de patentes na USPTO. Uma das

investigações mais promissoras tenta determinar como expandir a extração de petróleo nos reservatórios a partir do estudo do comportamento de moléculas de óleo líquido em contato com um material sólido, representando rochas, em nanoescala. A equipe do NanoLab se dedica ao estudo de diferentes técnicas e materiais que podem ampliar a extração de óleo. Mathias Steiner, gerente do laboratório, diz que 60% do óleo de um reservatório permanece em capilares nas rochas, que às vezes têm apenas dezenas de nanômetros de largura. “Um aumento de produção de apenas 1%, usando os resultados da pesquisa em nanociências e nanotecnologia, significaria quase 1 milhão de barris de óleo adicionais a cada dia no mundo”, relata Steiner, que coordena a pesquisa. No Brasil, a

A empresa conta com 12 laboratórios globais e tem 50 mil patentes ativas. em 2016, a companhia investiu US$ 6 bilhões em p&D no mundo

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elevação de 1% em sua produção diária de 2,4 milhões de barris resultaria em uma expansão da produção em 8,8 milhões de barris por ano. Os trabalhos de pesquisa básica ocorrem em paralelo com os de pesquisa aplicada. Ao mesmo tempo que o NanoLab investiga o fluxo de óleo em nanocapilares e estuda qual a pressão necessária para bombear água de modo a melhorar o desempenho do reservatório, o laboratório usa o Watson, uma plataforma de serviços cognitivos em nuvem, para analisar polímeros existentes no mercado que possam ser usados em sistemas para extração do óleo dos capilares das rochas. Sistemas cognitivos são capazes de processar informações não estruturadas e estruturadas e têm a capacidade de criar probabilidades e hipóteses com base nos dados e conhecimentos assimilados. Ado Jorio, professor titular do Departamento de Física e pró-reitor de Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), diz que a nanotecnologia está no seu início e contar com um laboratório como o NanoLab no Brasil gera numerosas oportunidades para a pesquisa no país. O Laboratório de Nanoespectroscopia (LabNS) da UFMG possui um convênio de pesquisa com o NanoLab. Segundo Jorio, há uma complementaridade entre os dois centros de pesquisa. O LabNS tem desenvolvido equipamentos de medida para nanoespectroscopia óptica que ainda não são comerciais e 78  z  agosto DE 2017

IBM e FAPESP possuem um acordo de cooperação para financiamento de pesquisas em computação cognitiva

possibilitam medidas de óptica na escala nanométrica. A IBM, por outro lado, tem competência na produção de nanodispositivos para aplicações diversas no sensoriamento para agricultura e em óleo e gás. “Vamos unir essas duas tecnologias para procurar na escala nanométrica possíveis soluções para a melhoria do custo energético da extração de petróleo e para o desenvolvimento de grãos para a agronomia”, conta. TECNOLOGIA CONVERSACIONAL

A IBM, que celebra seu centenário no Brasil, obteve em 2016 uma receita global de US$ 79,9 bilhões e investiu US$ 6 bilhões em P&D – a empresa não divulga

dados de faturamento e gastos em inovação no Brasil. No total, o grupo conta com 12 laboratórios globais, 8 mil inventores, sendo 3 mil cientistas (os outros 5 mil são funcionários com outras funções que participaram de inovações que geraram patentes), e soma 50 mil patentes ativas. Parte do trabalho de pesquisa feito pela companhia é realizada com parceiros acadêmicos. No Brasil, a multinacional mantém acordos com a Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio), o Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME-USP), a Escola Politécnica da USP, além da UFMG. Uma linha de trabalho importante do laboratório no país é a tecnologia conversacional. A ideia é utilizar o sistema cognitivo Watson para reunir dados, análises e opiniões de diferentes especialistas num determinado campo de especialização, publicadas ou divulgadas nos mais diferentes formatos (texto, vídeo e imagens), e oferecer aos usuários um conjunto organizado de informações por meio de um aplicativo. Na área rural, o aplicativo conversacional, ainda em desenvolvimento, foi batizado de Agria. Uma solução similar também está sendo feita para o setor financeiro, denominada Finch. “Até mesmo um pequeno poupador poderá ter acesso a vários analistas antes de tomar a decisão sobre seu investimento”, conta Ulisses Mello. O desenvolvimento de inovações brasileiras em computação cognitiva motivou a IBM a estabelecer um acordo de cooperação com a FAPESP na modalidade Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite). IBM e FAPESP irão custear, meio a meio, um investimento de US$ 500 mil em 10 anos para o financiamento de pesquisas conjuntas entre universidades paulistas e o centro de P&D da IBM no país. Uma primeira chamada pública já foi realizada e sete projetos foram aprova-

fotos 1 eduardo cesar 2 PEDRO GUERMANDI PAVANATO  3 ibm

Com auxílio de computação cognitiva e internet das coisas, os pesquisadores desenvolvem modelos de agricultura de precisão usando previsão do clima


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Imagens em 3D (à esq.) e de tomografia computadorizada (abaixo) para análise de fluidos em microescala

A equipe do NanoLab realiza estudos para elevar a produtividade dos campos de petróleo do país

dos e contratados em março deste ano. Entre eles estão projetos para estimar automaticamente a faixa etária pelo processamento do sinal de voz, estudos sobre aprendizado avançado de máquina, desenvolvimento de técnicas para inferência e aprendizado de programas lógicos probabilísticos, descrição e solução de jogos espaciais e computação de linguagem com neurônios-espelho. Os serviços cognitivos do Watson já são usados no setor financeiro brasileiro desde 2015, quando o Bradesco adotou o sistema para o call center interno do banco. Primeiro, o laboratório brasileiro da IBM teve de inserir a língua portuguesa, com suas nuances regionais, no Watson. No segundo momento, o banco alimentou o sistema com seus dados sobre rotinas de trabalho e produtos do Bradesco, permitindo ao sistema oferecer respostas para mais de 200 mil questões sobre 59 produtos e serviços do banco. Em 2016 foi a vez do Banco do Brasil contratar o sistema para atender aos seus clientes de internet banking, por onde são realizadas 60% das transações da instituição. Com o sistema já é possível realizar 144 transações diferentes. O Watson também está sendo empregado na área da saúde. Uma iniciativa em

desenvolvimento ocorre no Hospital do Câncer Mãe de Deus, em Porto Alegre (RS). Segundo Márcia Ito, cientista da IBM no segmento de saúde, a solução Watson for Oncology permitirá aos médicos incluir no sistema as informações clínicas de seu paciente, como histórico e resultados de exames, e o programa apresentará opções de tratamento baseadas em evidências científicas mundiais. “É um sistema de apoio à decisão clínica. Mas a palavra final sempre será do médico”, destaca Márcia. Para os médicos, uma vantagem do sistema é obter informações atualizadas sobre novas comprovações científicas. Quando se trata da área oncológica, por exemplo, a tarefa é especialmente difícil diante dos cerca de 50 mil trabalhos de estudos sobre câncer publicados por ano no Brasil e no mundo. No momento, a equipe brasileira trabalha na adaptação do Watson para lidar com a linguagem e a terminologia clínica do país, com os protocolos clínicos locais e com as regulamentações da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). FOCO NO AGRONEGóCIO

A importância do agronegócio na economia brasileira levou a IBM a pensar em soluções para o setor. Surgiu, assim, a plataforma de inovação aberta IBM AgriTech, que usa tecnologias da empresa, como computação cognitiva, internet das coisas e blockchain – registro de transações digitais com garantia de autenticidade –, para desenvolver no país soluções locais com potencial de

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comercialização global. Entre os projetos em desenvolvimento no laboratório estão modelos de agricultura de precisão usando previsão do clima, que permite a empresas parceiras criar ferramentas para informação no campo, com orientação sobre o melhor dia e hora para plantio, colheita, irrigação e aplicação de defensivos agrícolas. Outro campo de pesquisa é a compreensão cognitiva de imagem, permitindo a análise de fotos feitas no campo por drones com base em inteligência artificial. O objetivo é conceber ferramentas que, por exemplo, detectem o início do avanço de pragas na lavoura, ou softwares que façam a contagem de frutas em um pomar ou o inventário de árvores de uma floresta de eucaliptos para uma empresa de papel e celulose. Lançado recentemente, o IBM AgriTech foi desenvolvido em parceria com companhias que atuam no agronegócio e com empresas do setor de tecnologia agrícola do país. n Domingos Zaparolli

Artigo científico Giro, R. et al. Adsorption energy as a metric for wettability at the nanoscale. Scientific Reports. 11 abr. 2017. Os sete projetos do acordo IBM-FAPESP estão listados na versão on-line desta reportagem.

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biotecnologia y

Canaviais mais resistentes Variedade de cana-de-açúcar transgênica desenvolvida por empresa de Piracicaba é aprovada para plantio Evanildo da Silveira

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Brasil é líder mundial na produção de cana-de-açúcar, com 8,9 milhões de hectares plantados e uma safra estimada de 647 milhões de toneladas este ano. Esse número só não é maior por causa da broca-da-cana, a fase larval da mariposa Diatraea saccharalis, a principal praga dos canaviais. As perdas provocadas no país pelo inseto geram um prejuízo anual de quase R$ 5 bilhões, incluindo o gasto com medidas de controle, e comprometem uma área de 521 mil hectares. Para tentar reverter esse quadro, o Centro de Tecnologia Canavieira (CTC), uma empresa nacional localizada em Piracicaba (SP), desenvolveu uma cana transgênica resistente à praga. Batizada de CTC 20 Bt, a variedade foi aprovada em junho deste ano pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), órgão responsável pela análise da avaliação de biossegurança de organismos geneticamente modificados (OGM) no Brasil. Para Antonio de Padua Rodrigues, diretor técnico da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), entidade cujos associados respondem por mais da metade da produção nacional, o desenvolvimento da cana transgênica do CTC reflete os avanços tecnológicos do setor sucroenergético brasileiro. “Com a entrada definitiva dessas versões geneticamente

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modificadas no mercado, os produtores terão canaviais mais rentáveis e resistentes a doenças e pragas”, informou a Unica por meio de nota. Com a aprovação pela CTNBio, a cana transgênica será introduzida de forma gradual com o acompanhamento das áreas plantadas. Ela será inicialmente vendida para produtores selecionados, principalmente do Centro-Sul, onde a variedade se adapta melhor, que se comprometerem a seguir padrões de controle e multiplicação, sem a industrialização. Durante dois a três anos, toda a cana produzida será usada como muda. “Vamos desenvolver também variedades geneticamente modificadas para outras regiões e diferentes tipos de solo”, diz

o engenheiro-agrônomo William Lee Burnquist, diretor de Melhoramento Genético do CTC. O ciclo da broca se inicia quando a mariposa põe seus ovos nas folhas da cana. Ao eclodirem, as larvas passam a comer a polpa do colmo (caule). Os furos feitos por elas fragilizam a planta, que fica sujeita a ser derrubada pelo vento. Além disso, permitem o ataque de fungos, como Colletotrichum falcatum e Fusarium moniliforme, causadores da podridão vermelha, doença que reduz a pureza do caldo e a qualidade do açúcar e do álcool produzidos. A cana transgênica foi desenvolvida para enfrentar esses problemas. “Introduzimos no genoma da planta o gene

O processo de transgenia Como os pesquisadores brasileiros criaram a variedade CTC 20 Bt

Fonte ctc

Bacillus thuringiensis

Gene Cry1Ab

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O gene Cry1Ab da bactéria Bacillus thuringiensis é clonado em laboratório. Várias cópias são produzidas

Em seguida, micropartículas de ouro são recobertas com cópias do gene


foto eduardo cesar  infográfico ana paula campos  ilustraçãO pedro hamdan

A broca-da-cana causa prejuízo de R$ 5 bilhões e compromete 521 mil hectares de canaviais no país

Cry1Ab da bactéria de solo Bacillus thuringiensis, a mesma usada para desenvolver milho, soja e algodão geneticamente modificados resistentes a insetos”, relata Burnquist. O Cry1Ab é clonado em laboratório por engenharia genética. Em seguida, micropartículas de ouro são recobertas com cópias do gene e introduzidas no genoma da cana, que passa a produzir uma proteína tóxica para a broca (ver infográfico abaixo). A planta modificada é multiplicada em viveiro e, em seguida, cultivada no campo. “Assim que nasce, a larva tem contato com essa toxina”, conta Burnquist. “Quando ela sai do ovo, começa a se alimentar da planta, ingere a proteína e morre antes de furar o colmo.” Hoje, os produtores combatem a broca-da-cana com inseticidas químicos e controle biológico – pequenas vespas da espécie Cotesia flavipes são soltas no campo para parasitar as lagartas (ver Pesquisa FAPESP nº 195). As pesquisas do centro começaram em 1994 e posteriormente receberam o impacto da capacitação profissional promovida pelo Projeto Genoma Cana, entre 1998 e 2004, realizado por vários grupos em universidades e institutos de pesquisa e financiado pela FAPESP e pelo CTC. “Nesse período, a capacitação profissional em biotecnologia canavieira foi muito grande. Aqui no CTC, muitos dos profissionais colaboraram no Projeto Genoma Cana, na Alellyx [empresa spin-out do projeto genoma, depois comprada pela Monsanto] ou tiveram

3 Com um canhão biobalístico, as micropartículas são bombardeadas contra células do calo embriogênico, um tecido do caule da cana

aulas com aqueles que participaram”, conta Burnquist. No fim de 2015, a empresa protocolou na CTNBio o pedido de liberação comercial. A biossegurança da planta geneticamente modificada foi analisada por várias subcomissões do órgão, que consideraram a nova variedade segura sob os aspectos ambiental, vegetal, de saúde humana e animal. Os estudos do CTC mostraram que o gene Cry1Ab é eliminado dos derivados da cana, durante a fabricação do açúcar e do etanol, e não causa danos ao solo. O CTC já solicitou a autoridades dos Estados Unidos, Canadá e outros países a liberação da venda de açúcar produzido a partir da cana transgênica, o que só deve ocorrer em alguns anos. Das 150 nações para as quais o Brasil exporta o

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As células bombardeadas são cultivadas em meio de cultura. Os embriões resultantes darão origem à cana transgênica

O gene promove a produção de uma proteína que destrói o sistema digestivo da broca, causando sua morte

produto, cerca de 40% impõem barreiras ao açúcar oriundo de cana transgênica. Outra pesquisa para tornar a cana imune a pragas é feita na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), em Piracicaba. Lá, o engenheiro-agrônomo Márcio de Castro Silva Filho se dedica desde a década de 1990 a entender como a cana reage ao ataque de insetos (ver Pesquisa FAPESP nº 125). O pesquisador descobriu há alguns anos um gene na própria cana com ação antifúngica. Batizado de sugarina, ele estimula a produção de substâncias tóxicas que matam os fungos causadores da podridão vermelha. “Notamos que os genes que expressam proteínas contra a Diatraea saccharalis quando ela ataca a planta o fazem de forma sistêmica, ou seja, todos os tecidos do vegetal produzem essas proteínas”, explica Silva Filho. “No caso do sugarina é diferente, ele só se expressa no ponto que a broca atacou.” A descoberta levou o pesquisador a estudar o fenômeno. “Vimos que a proteína expressa pelo sugarina não tem efeito sobre a lagarta, mas contra os fungos C. falcatum e F. Moniliforme”, conta. “Recentemente, verificamos que variedades de cana com maior expressão dos sugarinas apresentam menores níveis de infestação de fungos. Essa descoberta poderá auxiliar o desenvolvimento de variedades mais tolerantes.” n pESQUISA FAPESP 258  z  81


humanidades   AUDIOVISUAL y

Integrante do coletivo Cinescadão grava imagens de prédio ocupado em 2007 na rua Mauá, no centro da capital paulista

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A periferia por a m s e ela m Grupos de jovens usam vídeos para reivindicações sociais, expressões culturais e mostrar como veem a metrópole paulistana

Christina Queiroz

fotos  Guilhermo Aderaldo

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a década de 2000, vídeos produzidos por moradores de áreas periféricas da cidade de São Paulo chamaram a atenção de pesquisadores para uma nova expressão do videoativismo. Tratava-se do trabalho de grupos que questionavam as representações da periferia e de seus moradores. A redução nos preços e a fácil portabilidade dos equipamentos audiovisuais, aliadas à ampliação do acesso a cursos de formação e a linhas de financiamento para produção, motivaram jovens a se unir e criar coletivos dedicados a mostrar uma nova visão da metrópole paulistana. Diferentemente dos chamados vídeos populares dos anos 1970 e 1980, que tinham um direcionamento político afinado com as lutas operárias e os movimentos contra a ditadura, o videoativismo do século XXI aborda reivindicações sociais, expressões culturais e demandas identitárias das populações da periferia. O antropólogo Guilhermo Aderaldo, pós-doutorando no Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo pESQUISA FAPESP 258  z  83


(FFLCH-USP) e que, atualmente, realiza estágio de pesquisa na Universidade de Buenos Aires, lançou recentemente o livro Reinventando a cidade – Uma etnografia das lutas simbólicas entre coletivos culturais videoativistas nas “periferias” de São Paulo; resultado de sua tese de doutorado defendida na USP. O pesquisador relaciona o surgimento dos coletivos ao trabalho de organizações – principalmente as não governamentais (ONGs) – que passaram a oferecer cursos e oficinas de educação audiovisual para populações jovens nas regiões periféricas paulistanas. “Esses cursos se proliferaram e influenciaram o surgimento de festivais e mostras. O poder público criou linhas de financiamento para fomentar um modelo de produção que passou a receber nomes como cinema ‘de favela’, ‘de periferia’, ‘comunitário’, ‘divergente’, ‘popular’ ou ‘de quebrada’”, conta. O Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), desenvolvido pela prefeitura de São Paulo desde 2003, fez parte desse processo, ao financiar atividades artístico-culturais de jovens de baixa renda. O VAI subsidiou 956 projetos em ações de grupos juvenis da periferia de São Paulo, o que corresponde a R$ 18 milhões, de acordo com dados oficiais do munícipio. Para a parte de audiovisual foram apoiadas 143 iniciativas. As demais se referiam a outras linguagens culturais, como teatro e música.

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deraldo analisou a condição ambivalente de alguns desses programas de formação criados por ONGs, uma vez que, por um lado, essas instituições oferecem capacitação técnica para a realização de vídeos e, por outro, costumam empregar uma linguagem institucional baseada na lógica da responsabilidade social. Segundo ele, essa linguagem, em vez de pensar

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Gravação do coletivo Cinescadão realizada com crianças

Rappers do grupo CaGeBe durante “ocupação audiovisual” em prédio no centro de São Paulo

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os jovens como atores políticos reivindicando direitos, pode acabar por enxergá-los apenas na condição moral de “vítimas vulneráveis” à espera de oportunidades no mercado. Outro problema é que algumas organizações provedoras dos cursos, mais tarde, contratavam esses jovens formados sem registro profissional e mediante salários inferiores aos valores de mercado. Para o pesquisador, o descontentamento com esse tipo de situação foi um dos fatores que levou vários jovens, principalmente os mais escolarizados ou com histórico de participação em movimentos sociais, a se organizarem em torno dos coletivos voltados à produção audiovisual independente, como forma de utilizar os conhecimentos apreendidos para além do escopo das organizações do terceiro setor. A pesquisa dialoga com trabalhos de etnógrafos urbanos como o norte-americano William Foote-White (1914-2000) e o francês Michel Agier (1953), além de teóricos dos estudos culturais que propõem análises interdisciplinares de aspectos da cultura, entre eles o jamaicano Stuart Hall (1932-2014) e o indiano Homi Bhabha (1949). Aderaldo chegou às constatações a partir de uma pesquisa centrada na observação das experiências cotidianas dos jovens que participavam de coletivos. Um dos grupos estudados foi o Cinescadão, formado por moradores da região norte de São Paulo e que promoviam intervenções culturais na favela Peri, onde reside a maior parte dos seus integrantes. Entre essas intervenções estavam a criação e a projeção de vídeos, apresentações de grupos de rap e a pintura de grafite em diferentes áreas da cidade. Um dos filmes produzidos pelo coletivo foi Imagens Peri Féricas, que mostra uma série de ações praticadas pelo coletivo, sobretudo as intervenções culturais realizadas na mencio-


Ação promovida pelo coletivo Núcleo de Comunicação Alternativa em uma quadra na região do Grajaú, em São Paulo

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nada favela. Esse vídeo foi depois assistido por parte da comunidade da favela Peri. Aderaldo acompanhou, ainda, a atuação da rede Coletivo de Vídeo Popular (CVP), que reu­ nia diferentes grupos interessados na produção audiovisual e da qual também faziam parte núcleos de mídia vinculados a movimentos sociais. “A rede integrou o trabalho audiovisual e a realidade social de populações que, mesmo distantes geograficamente, possuíam proximidade simbólica”, relata o pesquisador. Esse era o caso, por exemplo, de uma ocupação mobilizada pela luta por moradia na área central da cidade e uma favela no extremo norte da capital paulista.

fotos 1 e 2  Guilhermo Aderaldo  3 Erick Diniz

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abriel de Barcelos Sotomaior, jornalista com doutorado em multimeios pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e estudioso da cinematografia produzida por movimentos sociais, conta que o videoativismo está presente também entre organizações rurais. Um exemplo é o trabalho do núcleo Brigada de Audiovisual da Via Campesina, que também participava do CVP. Criado na primeira metade dos anos 2000, o grupo reunia organizações como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e a Pastoral da Terra. A proposta era mostrar uma nova perspectiva de representação da luta pelo solo. “O coletivo se originou a partir de um curso em que os participantes se mostraram insatisfeitos com a abordagem dos temas no audiovisual dominante, criando uma série de documentários

com registros, discussões e manifestações do cotidiano das reivindicações no campo”, conta Sotomaior, que mantém o site Cinemovimento com trabalhos sobre audiovisual e lutas sociais (cinemovimento.wordpress.com). A partir da construção dessas “pontes comunicativas” entre coletivos e movimentos sociais de diferentes regiões da cidade, Aderaldo defende que emergiu um novo tipo de interpretação da paisagem e das desigualdades da metrópole. “O conceito de periferia, que nas mídias corporativas costuma ser representado como sinônimo de áreas fixas marcadas por uma situação de carência, cedeu lugar a novas representações”, conta. Nessas novas interpretações, a periferia passou a designar processos móveis em que pessoas e lugares se conectam por causa do acesso desigual a direitos. Para o pesquisador, as experiências audiovisuais permitiram a esses jovens redefinir o sentido da paisagem urbana, na medida em que eles romperam com a linguagem institucional que os concebe somente como sujeitos tutelados. Aderaldo lembra que o sentido das palavras “periferia” e “favela” muda conforme o contexto em que são utilizadas. “Enquanto alguns agentes institucionais podem falar da ‘periferia’ como equivalente a lugares carentes e violentos, um rapper utiliza o termo para designar noções como luta, honra ou resistência”, analisa. O sociólogo Noel dos Santos Carvalho, coordenador do curso de Comunicação Social – Midialogia do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (IA-Unicamp), contextualiza em um movimento mais amplo o argumento dos pESQUISA FAPESP 258  z  85


Com 30 minutos, A luta do povo (1980), de Renato Tapajós, procurou traçar um resumo dos movimentos populares dos anos 1970

jovens que se posicionam como protagonistas nas representações audiovisuais sobre a periferia e a cidade. Para o pesquisador, com a emergência dos novos movimentos sociais a partir da década de 1960, grupos minoritários lentamente ganharam voz e o poder de se autorrepresentar, entre eles gays, negros, mulheres e índios, deslocando os limites entre o centro e a periferia. “Onde está o centro e a periferia se falamos dos grupos indígenas em relação aos negros?”, indaga. História entrelaçada

Apesar de a eclosão dos coletivos estudados por Aderaldo se situar especialmente na primeira metade dos anos 2000, o videoativismo é uma prática anterior às plataformas digitais e às redes sociais. “O videoativismo se confunde com a história do documentário e da videoarte. Se entendida como forma de gerar visibilidade para um fato, um povo ou uma determinada situação, essa prática existe desde o próprio surgimento do documentário”, observa Tarcísio Torres, professor no Programa de Pós-graduação em Linguagens, Mídia e Arte da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) e autor do livro Ativismo digital e imagem – Estratégias de engajamento e mobilização em rede. O surgimento do documentário é associado aos filmes do norte-americano Robert Flaherty (1884-1951), em especial Nanook of the North e Moana, produzidos nos anos 1920 (ver Pesquisa FAPESP nº 255). Torres lembra que o lançamento da câmera Portapak nos anos 1960, mais leve e barata do que suas antecessoras, proporcionou uma série de experiências por parte dos primeiros videoartistas, entre eles o norte-americano Andy Warhol (1928-1987) e o sul-coreano Nam June

A luta pela moradia foi retratada em Há lugar – Ocupações na zona leste (1987), de Julio Wainer e Juraci de Souza 86  z  agosto DE 2017

Paik (1932-2006). Já as práticas de videoativismo como são conhecidas hoje têm a chamada Batalha de Seattle, de 1999, como marco histórico. Naquele ano, ativistas de várias frentes se reuniram na cidade norte-americana para protestar contra as ideias neoliberais que permeariam o encontro da Organização Mundial do Comércio (OMC). A manifestação derivou na criação do Independent Media Center (Indymedia), uma plataforma para o carregamento de vídeos independentes que ofereciam conteúdo do ponto de vista dos manifestantes, com o objetivo de ser uma alternativa às narrativas dos grandes meios de comunicação. “Hoje, a Indymedia é uma rede de plataformas espalhadas pelo mundo. No Brasil, chama-se Central de Mídia Independente”, explica Torres. Quando a plataforma de vídeos YouTube foi lançada, em 2005, já havia uma ampla rede de conteúdo ativista organizada. “O novo canal representou uma possibilidade de divulgação do que já estava sendo feito e a melhoria da potência do sinal de internet criou a possibilidade de um compartilhamento dinâmico e imediato”, pontua o professor da PUC-Campinas.

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o Brasil, o documentarista Denis Porto Renó, professor no Departamento de Comunicação Social da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Bauru, aloca os primórdios do videoativismo entre os anos 1970 e 1980, quando a prática era chamada de vídeo popular. Na linha de frente desse movimento estava a Associação Brasileira de Vídeo Popular (ABVP), que teve como um de seus fundadores Luiz Fernando Santoro, professor na Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP. Nos anos 1980,


especializadas de direitos sociais e cidadania”, compara Noel Carvalho, professor da Unicamp. Cenário de desmonte

O fenômeno dos coletivos da década de 2000 passou por transformações. Hoje, diante de um cenário de recessão econômica e cortes nos gastos públicos, a situação se tornou pouco favorável. A rede CVP, por exemplo, foi desmobilizada. “Além de questões pessoais entre os participantes dos grupos, mudanças políticas e econômicas do país também impactaram a produção de vídeos na medida em que há menos verbas, editais e espaço para interlocução com o poder público”, avalia Aderaldo. De acordo com ele, o Cinescadão foi reconfigurado de forma diferente da época em que ele o estudou, porém segue atuando. O pesquisador identifica, no entanto, o surgimento de novos coletivos, alguns formados apenas por mulheres e que adotam como questão central a desigualdade de gênero e a temática racial. “O videoativismo é um campo dinâmico, que muda conforme a temperatura política dos tempos”, conclui o pesquisador. n

Livros ADERALDO, G. Reinventando a cidade – Uma etnografia das lutas simbólicas entre coletivos culturais videoativistas nas “periferias” de São Paulo. São Paulo: Annablume, 2017. SANTORO, L. F. A imagem nas mãos – O vídeo popular no Brasil. São Paulo: Summus, 1989. SILVA, T. T. Ativismo digital e imagem – Estratégias de engajamento e mobilização em rede. Jundiaí: Paco Editorial, 2016.

Filmes Cinescadão. Imagens Peri Féricas: bit.ly/2unxLP8. Brigada Audiovisual da Via Campesina. Ensaio sobre a crise: bit.ly/2vmOjLs.

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Versão atualizada em 30/08/2017

fotos  reprodução youtube.com

Santoro desenvolveu uma tese pioneira sobre a presença do videoativismo no país. “No final da década de 1970, sindicatos e movimentos sociais passaram a financiar a produção de trabalhos para combater o regime militar. Os vídeos populares não tinham preocupação com a linguagem cinematográfica e seu propósito era fazer as ideias circularem na sociedade”, conta Santoro, diferenciando essas produções dos filmes elaborados pelos coletivos atuais. O videoativismo Santoro afirma que se os grupos como é conhecido recentes manifestam uma preocupação com a linguagem audiovisual hoje teve a inexistente no passado, eles também apresentam pouca circulação nos chamada Batalha espaços de formação da opinião pública. Por outro lado, a ABVP criava de Seattle, de políticas para disseminar o vídeo 1999, como popular em todo o país nas décadas de 1970 e 1980. Entre essas polítimarco histórico cas estavam projeções nas sedes de sindicatos e entidades sociais e por meio da TV dos Trabalhadores. A associação também mantinha parcerias com escolas para que os professores pudessem alugar os vídeos produzidos e projetar em sala de aula. Além disso, Santoro lembra que nas décadas de 1970 e 1980 o videoativismo mostrava, por exemplo, as lutas pelo aumento do salário dos metalúrgicos, enquanto hoje os coletivos seguem pelo caminho da expressão cultural e da representação de identidades. “Em um ambiente de maior participação democrática, o arco de reivindicações é mais amplo e abarca questões mais


PSICOLOGIA SOCIAL y

O passado vivo Ecléa Bosi trabalhou para mostrar que a memória é usada também para reconstruir e repensar o presente Haroldo Ceravolo Sereza

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rofessora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), Ecléa Bosi, morta em julho aos 80 anos, deu um novo relevo para sua disciplina no panorama intelectual brasileiro ao desenvolver pesquisas sobre a coletividade e a memória. Nessa trajetória, Memória e sociedade – Lembrança de velhos (1973) se tornaria referência obrigatória ao articular a entrevista de idosos com a obra de sociólogos como Maurice Halbwachs (1877-1945) e filósofos como Henri Bergson (1859-1941). “Em diálogo com Halbwachs, Ecléa traz o passado tal como foi vivido e sentido pelos grupos, descoberto e também filtrado pela memória coletiva”, explica José Moura Gonçalves Filho, colega da psicóloga no IP. “Com Bergson, ela mostrou a memória como reaparição do passado profundo e não domado, quase livre dos filtros e só ouvido por pessoas”, diz. “A memória, que é originalmente um trabalho coletivo, quando se desenvolve como um trabalho pessoal mais ou menos desa-

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marrado das ideologias, pode levar o passado a falar mais do que pôde falar aos grupos.” No artigo “Memória e sociedade: Ciência poética e referência de humanismo”, Paulo de Salles, do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do IP, registra alguns dos nomes que levaram a obra de Ecléa para além das fronteiras da psicologia. “Octavio Ianni [1926-2004], da sociologia, encontrou no livro ‘uma linda lição de vida’. Paulo Sérgio Pinheiro, cientista político, apontou que ‘a história social de São Paulo saltou léguas com este mergulho magistral’.” O livro repercutiu fora do Brasil, continua Salles: Pierre Bourdieu (1930-2002) “propunha capítulos de Memória e sociedade para leitura e debate com seus alunos de pós-graduação, nos seminários que organizava”, e o psicólogo Karl Scheibe, da Universidade Wesleyan, Connecticutt, nos Estados Unidos, em Self studies (1995), “saúda em Memória e sociedade o encontro milagroso entre idosos solitários, à espera da doença ou da hora

A pesquisadora e seus livros (à dir.): prosa científica marcada por referências literárias e mitológicas


extrema, e uma pesquisadora, que irá se tornar para eles amiga verdadeira”. Explicando seu método de pesquisa em Memória e sociedade, Ecléa escreveu que seu objetivo era “registrar a voz e, através dela, a vida e o pensamento dos seres que já trabalharam por seus contemporâneos e por nós”. A memória, assim, não se confunde com a “história”, embora dela participe. E não é, ainda, um simples “reviver”: a memória é também um recurso ativo para reconstruir e repensar o presente a partir de imagens do passado. Essa forma de refletir sobre a relação especial do indivíduo com o passado foi sintetizada no título do livro O tempo vivo da memória – Ensaios de psicologia social (2003). Ecléa buscou entender como se constrói a memória social e sua complexa relação com a memória individual. Como se inter-relacionam? O que é lembrando e o que é esquecido? Que significado as lembranças têm para os dias que correm? O que significa a velhice na sociedade capitalista? A perguntas do gênero, Ecléa respondia com histórias recontadas pelos informantes, a partir de uma análise profundamente ética e de uma prosa científica marcada, também, por referências literárias e mitológicas. Recordações

fotos  léo ramos chaves

Um exemplo: comparando a narrativa de duas irmãs, Brites e Lavínia, entrevistadas para Memória e sociedade, Ecléa mostrou como há uma diferença significativa na forma como elas se recordam do fim da Primeira Guerra Mundial: Brites se lembrava da irmã, seis anos mais velha, chegando em casa e acordando o pai para contar o evento e o fato de que um baile no Trianon foi interrompido para que se tocasse o Hino Nacional: “era o dia 11 de novembro”. Lavínia, por sua vez, não se recordava do fato – para ela, “foi uma coisa sem repercussão”, ainda que, provavelmente, a família, francófila, tenha comemorado.

Longe de se preocupar em achar uma verdade, o que interessava a Ecléa era entender como as diferentes observações sobre o mesmo fato se complementam e se contrapõem. “Para localizar uma lembrança não basta um fio de Ariadne [Ariadne, na mitologia grega, dá um fio de lã ao herói Teseu, para que ele possa sair do labirinto após enfrentar o Minotauro]; é preciso desenrolar fios de meadas diversas, pois ela é um ponto de encontro de vários caminhos”, escreveu ela. “Ecléa trouxe para a compreensão das relações entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa uma ideia muito profunda, a de comunidade de destino”, explica José Moura. “Isso supõe que o pesquisador, para compreender o sujeito da pesquisa, participe em alguma medida do azar e da sorte, do fardo e da fortuna dos sujeitos da pesquisa.” No caso do livro Memória e sociedade, a comunidade de destino é o envelhecimento; a partir desse ponto comum é que o pesquisador deve falar aos sujeitos da pesquisa e ouvi-los. Outra obra marcante de Ecléa foi a que resultou no livro Cultura de massa e cultura popular: Leituras de operárias (1972). Ecléa realizou entrevistas com trabalhadoras fabris e encontrou mulheres expressando um forte desejo de ter acesso à instrução para si ou para os filhos, mulheres que despendiam parte significativa dos salários em pesadas prestações para comprar livros. Livros que eram, muitas vezes, refugos das editoras, mas que iam parar num lugar de honra nas casas. Um exemplar chegava a custar mais de oito dias de trabalho. Odair Furtado, professor do Programa de Pós-graduação em psicologia social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), afirma que essa obra de Ecléa – orientada por Dante Moreira Leite (1927-1976), pioneiro dessa área no Brasil – provocou um enorme impacto entre os alunos no início dos anos 1970. “A psicologia sempre teve um recorte mais elitizado, dentro de consultórios particulares ou na universidade. Na época, os órgãos públicos quase não contratavam psicólogos”, lembra. Os recortes sociais dados por Ecléa e pela também psicóloga Arakcy Martins Rodrigues, autora de Operário, operária (1978), rompiam, em plena ditadura, com essa lógica. O compromisso social e político de Ecléa Bosi com seus entrevistados permitiu que ela pudesse projetar e concretizar mudanças para além das pesquisas e orientações tradicionais. Nesse sentido, sua atuação de maior alcance foi a concepção e a coordenação até o fim de 2016 do programa Universidade Aberta à Terceira Idade. Criado em 1994, o programa permitiu que mais de 100 mil idosos participassem de disciplinas de graduação, seminários, palestras e trocas de informações e experiências com os alunos da USP. n pESQUISA FAPESP 258  z  89


memória

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Coletora autônoma Etnógrafa austríaca Wanda Hanke viajou sozinha pelo interior da América do Sul nos anos 1930 para estudar grupos indígenas  |  Rodrigo de Oliveira Andrade

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etnógrafa austríaca Wanda Hanke ia pelos seus 40 anos quando embarcou para a América do Sul para estudar populações indígenas. Sem apoio institucional, ela passou os últimos 25 anos de sua vida embrenhando-se sozinha em florestas no interior da Argentina, Bolívia, Brasil e Paraguai, reunindo, fotografando e registrando artefatos e povos ainda não estudados. Suas expedições resultaram em uma profusão de estudos linguísticos, objetos da cultura material e registros iconográficos de várias etnias. Pouco conhecidos, os trabalhos de Wanda constituem um registro histórico sobre a diversidade indígena sul-americana, tendo também contribuído para a consolidação da etnologia na região. Wanda Hanke (1893-1958) nasceu em Opava, cidade da atual República Tcheca. Os raros 90 | agosto DE 2017

registros sobre sua vida na Europa sugerem que tenha se graduado em medicina na Alemanha e, mais tarde, cursado direito e filosofia. Sabe-se que trabalhou como médica por alguns anos antes de se interessar pela etnologia, então uma ciência incipiente. “A falta de perspectiva de trabalho como etnógrafa na Europa a levou a se aventurar em expedições pela América Latina, em uma época em que as mulheres que excursionavam pelo Brasil o faziam com seus maridos ou corriam o risco de serem malvistas pelos locais”, explica a historiadora Mariana Moraes de Oliveira Sombrio, do Programa de Pós-graduação Interunidades em Museologia da Universidade de São Paulo (USP). Mariana estuda a trajetória de mulheres que incursionaram pelo Brasil na primeira metade do século XX. Com base na análise de documentos

Fotos feitas pela pesquisadora à época em que viveu entre os índios Bororo, em Mato Grosso


do Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas do Brasil (CFE), órgão federal criado em 1933 para fiscalizar e licenciar o trabalho de pesquisadores estrangeiros no país, ela e a historiadora Maria Margaret Lopes, do Núcleo de Estudos de Gênero da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), encontraram registros de pedido de licença de 38 mulheres expedicionárias. A maioria era estrangeira, como a antropóloga austríaca Etta Becker-Donner (1911-1975), do Museu Etnológico de Viena, que desbravou parte do Brasil nos anos 1940, e a arqueóloga norte-americana Betty Meggers (1921-2012), do Instituto Smithsonian, que nos anos 1950 mostrou que os povos da foz do Amazonas tinham uma cultura material complexa. Diferentemente de Etta e Betty, Wanda viajava sozinha. Era uma coletora autônoma, sem vínculo fixo com nenhuma instituição. Articulava-se em atividades científicas e comerciais, reunindo e vendendo coleções, escrevendo artigos, fotografando e registrando suas viagens. Veio à América do Sul pela primeira vez em

1934 para documentar os índios Cainguá, no norte da Argentina. De lá, seguiu para o Paraguai para estudar os Guayaki. “Sem apoio econômico, Wanda financiava suas próprias expedições atuando como médica em pequenos vilarejos”, diz Mariana. A etnógrafa voltou à Europa em 1936 para angariar recursos para suas excursões. Sem sucesso, retornou à América do Sul no ano seguinte para outra expedição. A viagem deveria durar dois anos, mas se estendeu por duas décadas. De volta à Argentina, dedicou-se à arqueologia, coletando objetos de povos como Matako e Toba. Em 1939, debruçou-se sobre os Botocudos, de Santa Catarina. Anos antes, a etnógrafa havia enviado um ofício ao CFE comunicando a vinda ao Brasil de uma expedição chefiada por ela para fazer pesquisas étnicas, sociológicas e linguísticas em regiões próximas aos rios Xingu e Tapajós. O pedido, no entanto, foi negado — possivelmente porque ela não tinha vínculo com nenhuma instituição de pesquisa ou ensino e não demonstrava ter condições de arcar com os custos da expedição.

fotos 1 e 2 acervo do museu paranaense  3 Stefanie Liener, 2010

3

Etnógrafa deixou a Europa em 1934 para estudar índios na América Latina

2

Entre um casal de índios da etnia Kaingang, em Faxinal, Paraná

Mesmo assim, Wanda entrou no Brasil. Em Santa Catarina, coletou artefatos e anotou palavras e dados antropométricos sobre os Botocudos. Pouco depois, seguiu para Curitiba, onde conheceu o médico e antropólogo José Loureiro Fernandes, diretor do Museu Paranaense, com quem passou a se corresponder e a negociar artefatos coletados em suas viagens, o que a ajudou a financiar suas expedições. Wanda fez o mesmo quando esteve na Bolívia. Com o tempo, no entanto, suas condições de pesquisa tornaram-se cada vez mais precárias. Escreveu várias vezes à Universidade Mayor de San Simón, em Cochabamba, pedindo que lhe pagassem pelas peças que havia negociado. Com o que conseguiu juntar, viajou à Europa em 1955 para, mais uma vez, tentar levantar fundos para suas viagens. Voltou ao Brasil em 1957 para estudar os índios dos rios Nhamundá e Yatapu,

na Amazônia. Foi quando contraiu malária. Morreu aos 65 anos, em Benjamin Constant, no Amazonas. Wanda publicou artigos científicos em revistas do Brasil e do exterior. “Ela também registrou relatos sobre a narrativa mítica sobre a criação do mundo entre os Botocudos, fez listas de palavras indígenas com suas traduções aproximadas e, no caso dos Kaingang, um ensaio de gramática”, conta o linguista Wilmar da Rocha D’Angelis, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. Algumas foram publicadas, outras, não. Suas anotações eram imprecisas e suas traduções, não raro, bastante simplificadas. Também escreveu dois livros, Dos años entre los cainguá e A pesquisa etnográfica na América do Sul, publicado em 1964, após sua morte. A falta de treinamento em antropologia prejudicou as análises dos objetos que coletou. Ainda assim, segundo D’Angelis, o material que reuniu, hoje em museus, representa uma fonte pouco explorada em etnologia indígena que, aos poucos, começa a ser redescoberta. n PESQUISA FAPESP 258 | 91


resenha

Simples e pleno Neusa de Fátima Mariano

C

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Dona Dita e “seu” Maurílio, em 1998

No que concerne ao masculino, o trabalho espacializado para além do terreiro da casa, ainda que solitário, muitas vezes se confunde com o ócio. Mas, sobretudo em situações de coletividade como é o mutirão, o trabalho pode ser interpretado pelo leitor desavisado como atividade de pouca dedicação e muita festa. Nesse sentido, nas pegadas do pensamento de Monteiro Lobato, o caipira é visto como preguiçoso e ignorante. Pedro Ribeiro depõe a favor do modo de ser, pensar e agir da família caipira ao narrar o seu cotidiano no sítio e seus afazeres, desde o cantar do galo até o pôr do sol: roçar, carpir, arar, plantar e colher, tratar do pouco gado para o queijo e para a distribuição do leite à comunidade. Nos dias de descanso, “seu” Maurílio dedica-se à manutenção do sítio ora tecendo jacás, ora fazendo pequenos reparos nos cercados e nas ferramentas, no pouco discernimento entre trabalho e diversão. Na entressafra, trabalha por empreitada para outros. Há que enaltecer também o encontro, a sociabilidade caipira que propicia as trocas (informa-

reprodução da capa eduardo cesar

Vida caipira Pedro Ribeiro Edusp 152 páginas R$ 59,90

omo a própria cultura caipira, o título do livro assim se revela, simples e pleno: Vida caipira, de Pedro Ribeiro. Resultado de sua tese de doutorado, defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), neste livro são encontradas não só palavras que expressam o dia a dia de uma família caipira, a da dona Dita, “seu” Maurílio e seus filhos, mas também imagens fotográficas que revelam a plenitude da vida no campo. Mas o que há de diferente das demais famílias? O autor surpreende ao elucidar que o conceito de família aqui apresentado envolve lar e patrimônio. Isso significa dizer que há, no interior dessa forma, conteúdos que tomam a dimensão totalizadora da vida. Assim está inserido o seu cotidiano, em diálogo direto com a natureza, não apenas no sentido do conhecimento, do saber fazer, do aproveitamento sustentável dos recursos e respeito a eles, mas de uma consciência de pertencimento e de identidade com a própria natureza: seus ciclos temporais, suas condições físico-espaciais, suas características singulares e ao mesmo tempo simples. Diante da narrativa de processos históricos sobre a região de Cunha, no Vale do Paraíba, onde está localizado o sítio da família de “seu” Maurílio, e de conceitos acadêmicos, a comunidade, o sítio, a família, o caipira e o caboclo vão sendo desvendados pelo autor. Mas também o são por meio das fotografias que, apesar de serem cenas estáticas, trazem o movimento do cotidiano perfazendo ou complementando, ou melhor dizendo, reafirmando tais conceitos científicos. Desta forma, à luz das panelas areadas, as lentes do fotógrafo e etnógrafo captam o olhar longe da mãe, da mulher Benedita, debruçada sobre a janela quadrada que filtra seus pensamentos, embalados pela sonoridade do quintal. O feminino retratado como a fonte da vida, a manutenção da família, o guardião da reprodução, tal qual simbolismo trazido pelo milho colhido, a abundância do alimento. A prosperidade torna-se mais próspera quando a colheita é misturada às crianças de futuro ainda incerto quanto à permanência ou não no sítio, na vida caipira.


Fotos Pedro Ribeiro / Vida caipira

Francislene, Pricila e André em meio às espigas de milho no sítio de Ditinho Teixeira, em 1997

ções, favores, olhares, compromissos e alegrias). A religiosidade revestida de catolicismo popular, tão bem retratada no livro, convida o leitor a entrar no ritmo do moçambique, dançado sob o comando dos mestres, ao som dos bastões e dos chocalhos. E assim as famílias se estendem para fora da casa, do sítio, misturam-se, enriquecem-se e se confundem sob a regência da fé, da devoção e da comunhão: as Festas do Divino, de São José da Boa Vista, do Milho; o tapete de Corpus Christi; a romaria, a missa, e a novena semanal; o aniversário infantil. No ritmo do calendário agrícola-religioso, a “naçãozinha”, como diria Antonio Candido, espalha-se e se reúne na centralidade do bairro rural, na quase vila, na quase ponte para o urbano. O autor chama a atenção para a interpretação equivocadamente linear sobre o desenvolvimento da cultura caipira, como se esta estivesse caminhando para o seu fim a partir do processo de urbanização. Há formas diferenciadas de viver, ver e sentir o mundo, sendo que o universo caipira se encontra em constante diálogo com os processos de modernização, anunciando as contradições socioespaciais. As alterações da paisagem mostram isso, em que há uma atenção à pecuária em detrimento da agricultura, em que o terreno da capela é tomado pelos “fuscas”, em que o chapéu de palha cede lugar ao chapéu de cowboy. São transformações que não interferem na estrutura

do modo de ser, pensar e agir da família caipira, mas que a colocam no mundo. Ainda que alguns jovens se vão na aventura urbana, outros tantos ( já não mais tão jovens) retornam, talvez como vencedores deste urbano, mas com o coração apertado na busca de suas origens, para revivificar a cumplicidade orgânica com a natureza, naquilo que é simples e pleno. Neusa de Fátima Mariano é geógrafa e professora do Centro de Ciências Humanas e Biológicas da UFSCar, campus de Sorocaba. É especializada nos temas que envolvem a cultura caipira, a religiosidade popular e a geografia cultural.

Participantes da festa de São José da Boa Vista dançam ao ritmo do moçambique, em 1999 PESQUISA FAPESP 258 | 93


carreiras

Liderança científica

Gestão de laboratório Saber coordenar grupos de pesquisa é importante para criar uma agenda de trabalho sustentável envolvendo grandes projetos Liderar um grupo de pesquisa exige responsabilidade para coordenar e planejar os trabalhos da equipe, capacidade para conceber novas linhas de investigação e buscar financiamento para projetos. É preciso que todas as ações sejam articuladas, com objetivos claros e bem definidos, e que o líder tenha consciência de suas próprias limitações, de forma a delegar as atividades adequadamente. Construir um ambiente saudável de trabalho é importante para estimular a criatividade da equipe, otimizar os esforços de pesquisa e proporcionar bons resultados. Os grupos de investigação constituem, ao mesmo tempo, um ambiente de produção de conhecimento e de formação de recursos humanos. Costumam reunir indivíduos em diferentes estágios de desenvolvimento profissional, de alunos de iniciação científica a pesquisadores de pós-doutorado. “Estudantes de doutorado e pós-doutorandos têm 94 | agosto DE 2017

formação acadêmica mais sofisticada, com ideias aprimoradas e capacidade analítica mais apurada, diferentemente dos alunos de iniciação científica e de mestrado, ainda no início de sua trajetória acadêmica”, compara a cientista política Renata Mirandola Bichir, professora do curso de gestão de políticas públicas da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), a USP Leste, em São Paulo. “Desse modo, é importante que o líder do grupo invista na construção de uma linguagem comum entre todos os membros da equipe, de modo a evitar relações assimétricas”, completa. Renata coordena 10 pesquisadores em um grupo de pesquisa do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP, cujo objetivo é entender o papel das políticas públicas e das instituições nos processos de desenvolvimento econômico e de


ilustrações  daniel almeida

redução da pobreza em grandes centros urbanos. Para a pesquisadora, é importante que o coordenador identifique as características de cada integrante da equipe, avalie suas capacidades e limitações e distribua as atividades de pesquisa de acordo com o nível de formação de cada um. “Isso ajudará a manter o grupo motivado e comprometido com os trabalhos em desenvolvimento”, ela destaca. Um dos desafios dos líderes é a articulação entre os processos de ensino e pesquisa e as exigências de produtividade e apresentação de resultados. A publicação de artigos científicos, sobretudo em revistas de qualidade, tende a ser um objetivo comum à maioria dos projetos. Mas, para chegar lá, há um longo processo. Exige-se uma atividade consistente e contínua de revisão da literatura, a formulação de perguntas científicas relevantes e o estabelecimento de propostas metodológicas adequadas para que as hipóteses sejam testadas e os resultados, apresentados e discutidos em artigo ou livro. “Para manter a produtividade do grupo, tocamos vários projetos ao mesmo tempo, todos interconectados, o que implica cooperação entre os membros da equipe”, diz o psiquiatra Euripedes Constantino Miguel, do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina (FM) da USP. Euripedes Miguel é responsável pela coordenação de vários projetos no Instituto Nacional de Psiquiatria do Desenvolvimento para Crianças e Adolescentes (INPD). Segundo ele, para que as atividades sejam desempenhadas de modo integrado e alinhadas aos objetivos de cada projeto, o coordenador precisa criar um ambiente de cooperação, para que todos possam se desenvolver em conjunto. “O processo de ensino não envolve apenas aspectos técnicos, mas o aprimoramento de habilidades sociais”, comenta. Para isso, ele envolve alunos em início de formação acadêmica com estudantes de pós-graduação. “Assim, os mais preparados instruem os iniciantes e

o conhecimento é transmitido em cadeia”, conta Euripedes Miguel, destacando que, nos projetos que lidera, os pesquisadores mais graduados são direcionados a atividades que agregam maior valor à pesquisa, como a realização dos experimentos e análise e interpretação dos resultados. É o que acontece também no Laboratório de Genética Molecular do Instituto de Biociências (IB) da USP, chefiado pela geneticista Lygia da Veiga Pereira. Como em muitos laboratórios norte-americanos e europeus, os pós-doutores são um elemento-chave em sua equipe. Além de coordenar tarefas, escrever artigos científicos e ajudar a conceber e executar novas linhas de pesquisa, eles também coorientam alunos de iniciação científica, mestrado e doutorado. Para Renata Bichir, o coordenador do grupo deve enfatizar aos pós-doutorandos a importância de auxiliar os alunos em início de formação. “Essa experiência os ajuda a aprimorar suas habilidades científicas, fazendo com que adquiram experiência que mais tarde será importante para dar autonomia no estabelecimento e gerenciamento de seus próprios grupos de

pesquisa”, ressalta. Por isso, também é recomendável que os líderes incentivem os pós-doutores a participarem de cursos de gestão e liderança, para que aprendam a distribuir os trabalhos no laboratório, a motivar colegas e dissolver tensões, a manter as atividades dentro do orçamento e cronograma estipulados e a assegurar que todos trabalhem em prol do mesmo objetivo. Reuniões de acompanhamento

Para que as atividades sejam desenvolvidas adequadamente, aconselha-se que os coordenadores realizem reuniões periódicas com os membros de sua equipe para discussão das metas estabelecidas e identificação de problemas e soluções. “Esses encontros são essenciais para o sucesso dos projetos e, por isso, precisam ser realizados regularmente”, explica Lygia, do IB-USP. Ela sugere que durante essas reuniões todos os pesquisadores façam apresentações sobre as atividades que desenvolveram na semana anterior, ressaltando sua importância para o andamento do projeto principal, independentemente se se trata de uma pesquisa de iniciação científica ou doutorado.

PESQUISA FAPESP 258 | 95


“Essa também é uma forma de manter todos motivados e comprometidos com o trabalho”, conta a bióloga Lúcia Lohmann. Também do IB-USP, ela coordena vários projetos, sendo o principal desenvolvido no âmbito da cooperação entre os programas Biota-FAPESP e Dimensions of Biodiversity, da National Science Foundation, uma das principais agências norte-americanas de fomento à ciência. “Essas reuniões ajudam os alunos a entender como suas contribuições individuais são fundamentais para o andamento do projeto como um todo.” Lúcia realiza semanalmente reuniões com sua equipe para discutir artigos científicos relevantes para os trabalhos em andamento, avaliar manuscritos, propostas de auxílio, preparação de palestras, entre outras atividades. Para manter a produtividade do grupo, ela estabelece cronogramas envolvendo todos os subprojetos. “Com esses dados em mãos, avalio o que foi feito em cada ano e estipulo objetivos para o próximo”, explica. Ao mesmo tempo, para dar conta das exigências de produtividade e publicação de resultados, Lúcia orienta seus mestrandos e doutorandos a escreverem os capítulos de suas dissertações e teses na forma de artigo científico e a submeterem esses manuscritos às revistas científicas à medida que trabalham nos projetos. “Cada aluno no laboratório publica pelo menos um artigo científico como primeiro autor por ano.” Busca por recursos

Outro desafio comum aos gestores envolve a busca por financiamento para os projetos de pesquisa. A fim de conseguir recursos, principalmente de agências de fomento, os pesquisadores precisam apresentar um projeto que é submetido ao processo de análise por pares (ver Pesquisa FAPESP nº 254). Mesmo que a solicitação seja atendida, pode acontecer de o valor concedido 96 | agosto DE 2017

1

Distribua os trabalhos no laboratório de acordo com o nível de formação de cada membro da equipe. Isso ajudará a manter o grupo motivado e comprometido com as pesquisas em desenvolvimento

2

Envolva os pesquisadores em estágio inicial de formação acadêmica com estudantes experientes, de modo que os mais preparados instruam os iniciantes e que o conhecimento seja transmitido em cadeia

3

Tente criar um ambiente de cooperação entre os pesquisadores, para que um ajude a alavancar a carreira do outro e que todos possam crescer em conjunto

4 Incentive os pós-doutorandos a participarem de cursos de gestão e liderança para que aprendam a distribuir a carga de trabalho no laboratório, motivar seus colegas e desarmar tensões

5

Realize reuniões periódicas para acompanhamento das metas estabelecidas, identificação de dificuldades e busca de soluções. Esses encontros podem ser fundamentais para o sucesso dos projetos desenvolvidos pelo grupo

ficar aquém do que é solicitado, cabendo ao coordenador se reorganizar para atingir os objetivos iniciais do projeto com menos dinheiro do que o previsto. “Na falta de recursos, pode-se recorrer a editais e outras fontes alternativas de receita, como promoção de cursos pagos e parcerias com instituições privadas”, sugere Euripedes Miguel, da FM-USP. “O coordenador precisa usar sua experiência para se antecipar a essas e outras dificuldades.” Tão importante quanto garantir recursos para o projeto é o relacionamento saudável do coordenador com sua equipe. “Temos de ouvir e entender os

anseios dos pesquisadores e demonstrar preocupação com a carreira de cada um, colocando-nos à disposição para discutir qualquer assunto que ajude a garantir o desenvolvimento profissional dos membros da equipe”, destaca Euripedes Miguel. Para que isso aconteça, o coordenador deve exercer seu papel de liderança de forma distribuída e descentralizada, sem recorrer a estruturas hierárquicas muito rígidas. “Um bom coordenador precisa ser capaz de deixar o protagonismo de lado sempre que isso contribuir para o aprimoramento do trabalho em equipe”, recomenda o pesquisador. n Rodrigo de Oliveira Andrade


perfil

Do verbo às máquinas Formado em letras, cientista cognitivo André Souza transitou pela psicologia, estatística e hoje trabalha com novas tecnologias nos EUA

fotos arquivo pessoal

No Google, Souza trabalha no desenvolvimento de produtos que mimetizam a cognição humana

Quando adolescente, o cientista cognitiva. “Entrei em contato para cognitivo André Souza, hoje com 36 saber se tinha algum projeto com o anos, tinha apenas um objetivo: qual poderia colaborar”, ele conta. morar nos Estados Unidos. À época, Meier, por sua vez, indicou-lhe disseram-lhe que precisaria primeiro outra pesquisadora, Catharine ter um diploma universitário e Echols, do Departamento de aprender inglês. Sem condições de Psicologia da mesma universidade, arcar com os custos de um curso de que estudava psicologia da linguagem idioma ou de uma universidade e orientava uma doutoranda privada, tentou a sorte no vestibular brasileira chamada Débora Souza. de letras na Universidade Federal de “Catharine aceitou que eu trabalhasse Minas Gerais (UFMG). A ideia era, como voluntário em seu laboratório”, gratuitamente, graduar-se em um relembra Souza. “No fim do curso superior e aprender inglês. intercâmbio, sugeriu que eu A estratégia deu certo. voltasse ao Brasil e ajudasse sua A oportunidade de ir aos Estados orientanda na coleta de dados. Desse Unidos surgiu na graduação, modo, criaria uma oportunidade a partir de um intercâmbio de para retornar aos Estados Unidos.” alguns meses na Universidade do Texas. À época, Souza estava interessado por linguística cognitiva, segundo a qual o contexto orienta ou influencia a construção semântica das palavras. Ao pesquisar sobre o tema, descobriu que Richard Meier, do Departamento de Linguística da Universidade do Texas, havia se formado na Universidade da Califórnia em San Diego, referência Equipamento usado pelo pesquisador para monitorar os mundial em linguística movimentos oculares de usuários de novas tecnologias

Foi o que fez. Graduou-se em 2004, mas não voltou imediatamente ao Texas. Entrou no mestrado no Departamento de Psicologia da UFMG e estudou como crianças na primeira infância aprendem a falar, flexionando os verbos. O trabalho ampliou seu horizonte de pesquisa para o doutorado. Souza elaborou então um projeto para comparar o mesmo processo em crianças brasileiras e norte-americanas, que foi aceito pela Universidade do Texas. Ele embarcou em 2007 para fazer o doutorado. Durante o curso, envolveu-se em vários projetos, deu aula, orientou alunos e publicou artigos. Também mudou de orientador e tema de pesquisa. “Estudei como certos sotaques influenciam as decisões que tomamos no dia a dia”, explica. Em seguida, fez dois pós-doutorados, no Canadá e no Texas, onde começou a trabalhar com eye tracking, técnica usada para avaliar o comportamento de indivíduos a partir do monitoramento de seus movimentos oculares. Em 2014, foi para a Universidade do Alabama, também nos Estados Unidos, trabalhar como professor de estatística avançada. Criou uma linha de pesquisa para estudar como alteramos nossas habilidades cognitivas à medida que interagimos com novas tecnologias. Para viabilizar suas pesquisas, submeteu, com sucesso, um pedido de financiamento a um fundo do Google para pesquisas tecnológicas em universidades. Ainda no Alabama, Souza foi convidado para apresentar os resultados de sua pesquisa na sede do Google, na Califórnia. Ficou encantado com a dinâmica de trabalho da empresa e resolveu tentar algo novo. Mandou currículos para Google, Twitter, Facebook, entre outras empresas de tecnologia. “Em fins de 2016, o Google me convidou para participar de um processo seletivo para pesquisador”, conta. Foram várias entrevistas até que, semanas depois, recebeu a notícia de que tinha sido aprovado. Hoje ele coordena uma equipe que pesquisa o uso de inteligência artificial na concepção de produtos que mimetizem a cognição humana. R.O.A. PESQUISA FAPESP 258 | 97


classificados

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