O medo do estrangeiro

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outubro de 2015  www.revistapesquisa.fapesp.br

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Pesquisa FAPESP outubro de 2015

n.236

Experiências internacionais inspiram criação de cargos de cientista-chefe

Projeto promove reaproximação de famílias separadas pela hanseníase Simbiose entre protozoário e bactéria reproduz evolução de célula nucleada

n.236

Pioneiro da tradução do russo e ex-pracinha, Boris Schnaiderman publica relato sobre a guerra Empresas produzem insetos para polinização na agricultura e combate a pragas

o medo do estrangeiro Distância do padrão branco e europeu e mercado de trabalho limitado são algumas das razões da hostilidade aos atuais imigrantes no Brasil


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/PesquisaFapesp

Foram 30 mil novos fãs em 8 meses

flaticon / CC BY 3.0

um crescimento de 50%

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mil

mil jan. 2015

abr. 2015

80 mil

jun. 2015

90 mil

set. 2015

Os vídeos postados alcançam números expressivos

Carolina Maria de Jesus

Química verde

Suspenso pelo som

• Distribuído para mais de 1.760.000 pessoas • 14 mil compartilhamentos • 2,4 mil curtidas • 304 comentários • Exibido em exposição no Museu Afro Brasil

• Distribuído para mais de 1.113.000 pessoas • 10 mil compartilhamentos • 3,1 mil curtidas • 420 comentários

• Distribuído para mais de 285 mil pessoas • 4,5 mil compartilhamentos • 2,2 mil curtidas • 223 comentários • Concorrente no 8th Imagine Science Film Festival de Nova York

r e v i s ta pe s q u i s a .fa pe sp.b r


fotolab

Caos no ensino Na saída da aula de mecânica clássica, uma conversa com o professor, Fabio Alliguieri, atiçou a curiosidade de Aluizio Salvador sobre propriedades caóticas. Um estudo teórico do pêndulo duplo, estrutura semelhante a um braço articulado, serviu como guia para construir seu próprio aparato, com uma luz na ponta que permite registrar o movimento numa fotografia em longa exposição e demonstrar que ínfimas alterações nas condições iniciais geram grandes diferenças no movimento. O próximo passo é fazer análises matemáticas que comprovem que o balanço não segue um padrão repetitivo. Para o estudante, a experiência destaca a importância de recursos didáticos que motivem a investigação.

Foto enviada por Aluizio Salvador, estudante de licenciatura em física no Instituto Federal do Paraná, campus Paranaguá Se você tiver uma imagem relacionada à sua pesquisa, envie para imagempesquisa@fapesp.br, com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.

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outubro  236

66 CAPA 16 Distância do padrão histórico de imigrante branco e europeu e mercado de trabalho limitado são algumas das razões da hostilidade aos fluxos migratórios atuais ENTREVISTA 24 Boris Schnaiderman Professor de literatura, pioneiro da tradução de livros russos e ex-pracinha, lança livro sobre participação na Segunda Guerra

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA 30 Gestão pública Experiências internacionais inspiram governo de São Paulo a criar cargo de cientista-chefe em secretarias estaduais 36 Bibliometria Relatório propõe limites para o uso de indicadores na avaliação científica no Reino Unido 40 Ensino de ciências Jovens brasileiros recorrem à bagagem cultural e religiosa para explicar a evolução dos seres vivos, aponta tese

CIÊNCIA 44 Ornitologia Estudos flagram o processo de surgimento de 11 espécies em grupo de aves da América do Sul 50 Parasitologia Simbiose entre protozoário e bactéria ajuda a entender a origem de organelas celulares fotos da capa  eduardo cesar

44 54 Biologia molecular Plantas medicinais podem reduzir lesões locais causadas pela picada da jararaca 56 Geologia Pesquisas determinam a influência de grande falha na crosta do Brasil na formação das bacias sedimentares do Paraná e do Parnaíba 58 Física Experimento mostra que informação quântica transmitida por fótons resiste aos efeitos da turbulência do ar 60 Astrofísica Descoberta de sistema com duas estrelas de alta massa em processo de fusão indica um caminho evolutivo diferente para esses astros

TECNOLOGIA 62 Biotecnologia Animais recebem genes humanos e produzem proteínas no leite para tratamento de doenças 66 Agricultura Empresas desenvolvem métodos de criação de insetos para polinização e combate a pragas 70 Energia Reaproveitar água em hidrelétrica eleva o abastecimento e o fornecimento de eletricidade para São Paulo e Baixada Santista

74 Pesquisa empresarial Spectra projeta e constrói simulador de voo e laboratórios de testes para a indústria automobilística

HUMANIDADES 78 Sociedade Pesquisadores de várias áreas usam levantamentos históricos e testes de DNA para reaproximar famílias separadas pela hanseníase 84 Cinema Filmes do diretor Jia Zhang-ke ganham o mundo com visão crítica sobre o país 88 Comunicação Fartura de notícias on-line refaz os espaços e os papéis do jornalismo científico seçÕes 3 Fotolab 5 Cartas 6 On-line 7 Carta da editora 8 Dados e projetos 9 Boas práticas 10 Estratégias 12 Tecnociência 91 Memória 93 Arte 95 Resenha 96 Carreiras

84


cartas

cartas@fapesp.br

Crise da água

você encontra todos os textos de

A reportagem “Água reciclada” (edição 235) é muito boa. Sou uma engenheira de meio ambiente estrangeira que mora no Brasil. Estou feliz que os engenheiros brasileiros estejam pensando em soluções avançadas e sustentáveis.

Pesquisa FAPESP, na íntegra, em

Shazeeda Ameerally

português, inglês e espanhol.

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CONTATOS Site  No endereço eletrônico www. revistapesquisa.fapesp.br

Também estão disponíveis edições internacionais da revista em

Jornalismo científico

gem mais acessível fazendo com que as portas do conhecimento atualizado estejam abertas à população. Muitas vezes essa população nem sabe quem é quem e o que fazem os nossos pesquisadores nos diferentes campos da ciência. Marte Ferreira da Silva Atibaia, SP

Vídeos

cartas@fapesp.br ou para a rua

Sobre a reportagem “Paz relativa” (edição 235), não dá para o jornalista passar a informação ao público tal qual o cientista falou. Ele traduz a mesma informação de forma que o público entenda, senão a informação não foi passada.

Joaquim Antunes, 727 – 10º andar,

Augusto de Souza

Senti saudades de Ribeirão Preto ao ver o vídeo “Um enxame ordenado”. Sou muito grato ao Departamento de Genética da USP de Ribeirão pela formação que recebi em produção de rainhas e inseminação instrumental. Gastei muitas horas nesse mesmo laboratório onde foi realizada a entrevista.

CEP 05415-012, São Paulo, SP

Via Facebook

Raimundo Maciel

inglês, francês e espanhol Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação pelo e-mail

Via Facebook

Assinaturas, renovação e mudança de endereço Envie um e-mail para assinaturaspesquisa@fapesp.br ou ligue para (11) 3087-4237, de segunda a sexta, das 9h às 19h

O grande problema do jornalismo científico é a interpretação e entendimento por parte dos jornalistas quando se trata de assunto científico ou médico. Seja na imprensa escrita ou falada. Edmundo Santana dos Santos Via Facebook

Interdisciplinaridade e popularização da ciência e tecnologia: precisamos utilizar todas as formas de mídia para compartilharmos conhecimento. Parabéns a todos os envolvidos no vídeo “Força que vem da união”. Silvestre Labiak Jr.

Para anunciar Contate Júlio César Ferreira na Mídia Office, pelo e-mail julinho@midiaoffice.com.br, ou ligue para (11) 99222-4497 Classificados  Ligue para (11) 3087-4212 ou escreva para publicidade@fapesp.br Edições anteriores Preço atual de capa acrescido do custo de postagem. Peça pelo e-mail clair@fapesp.br Licenciamento de conteúdo Para adquirir os direitos de reprodução de textos e imagens de Pesquisa FAPESP ligue para (11) 3087-4212 ou envie e-mail para mpiliadis@fapesp.br

Pesquisa no Irã

O Irã tem uma importante rede de universidades, algumas estão entre as mais antigas do mundo, com pesquisadores formados nos principais centros (nota da seção Estratégias, “Otimismo na pesquisa do Irã”, edição 234). Nos congressos internacionais como o International Association for Media and Communication Research, mesmo durante as sanções era ativa a participação de pesquisadores iranianos da área de comunicação. Elias Machado Via Facebook

Magda Soares

Gostei da frase de Magda Becker Soares (“O poder da linguagem”, edição 233) sobre a preocupação em disseminar o conteúdo ci­entífico dos artigos de pesquisa para a comunidade não científica, de forma a colocar à disposição de toda a sociedade as descobertas em uma lingua-

Via Facebook

Achei superinteressante o vídeo “Da garoa à tempestade” sobre as chuvas em São Paulo, pois tratam da influência da urbanização na maximização das chuvas intensas. Andrey Binda Via Facebook

Correção

A capacidade de produção de etanol da GranBio é de 82 milhões de litros por ano com palha de cana e não de 82 bilhões, como consta na página 73 da reportagem “A vez da biotecnologia na biomassa” (edição 235). Até agosto, a produção atingiu 3 milhões de litros de etanol e não 3 bilhões.

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar – CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

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Galeria de imagens

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A mais vista do mês no Facebook HUMANIDADES

Paz relativa

44.013 visualizações 564 curtidas 213 compartilhamentos entre 19 e 25 de setembro no perfil de Pesquisa FAPESP

Exclusivo no site x Um crânio encontrado em um sítio arqueológico de Minas Gerais com mandíbula, seis vértebras cervicais e as duas mãos cobrindo o rosto – uma virada para cima, outra para baixo – é o mais antigo registro de decapitação nas Américas. Marcas nos ossos indicam

Rádio Pesquisadores falam das aplicações da nanofotônica e de árvore rara do Cerrado

Confira alguns modelos de pequenas aeronaves brasileiras clicados pelo fotógrafo Léo Ramos

que não só a cabeça foi cortada horas após a morte, como as mãos foram decepadas. O achado, feito por

Vídeos do mês

youtube.com/user/PesquisaFAPESP

pesquisadores de diversas instituições e descrito na PLoS One, está ajudando a entender melhor a liturgia funerária de grupos que habitaram o país há cerca de 9 mil anos.

x Morcegos brasileiros de espécies e hábitos alimentares distintos, e Assista ao vídeo:

não somente aqueles que comem insetos, podem estar servindo como reservatório do hantavírus, causador de doenças cardiopulmonares.

Como a estrutura social e o comportamento de abelhas estão codificados no DNA

Em estudo publicado na revista The American Journal of Tropical Medicine and Hygiene, um grupo internacional de pesquisadores analisou morcegos de várias espécies que se alimentam de frutas, carne e sangue. Os animais foram capturados entre fevereiro de 2012 e abril de 2014 em São Paulo e no norte de Minas Gerais. Nove dos 53 morcegos analisados tinham anticorpos específicos contra a nucleoproteína recombinante do vírus. 6 | outubro DE 2015

Assista ao vídeo:

Pesquisadores estudam biofilme formado pela Xylella fastidiosa

ilustraçãO negreiros

on-line


carta da editora fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo José Goldemberg Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, joão grandino rodas, José Goldemberg, Maria José Soares Mendes Giannini, Marilza Vieira Cunha Rudge, José de Souza Martins, Pedro Luiz Barreiros Passos, Suely Vilela Sampaio

Estranhamento e hostilidade Alexandra Ozorio de Almeida |

diretora de redação

Conselho Técnico-Administrativo Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico Joaquim J. de Camargo Engler Diretor Administrativo

issn 1519-8774

Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Anamaria Aranha Camargo, Carlos Eduardo Negrão, Fabio Kon, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Joaquim J. de Camargo Engler, José Goldemberg, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Lucio Angnes, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner Caradori do Amaral, Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos diretora de redação Alexandra Ozorio de Almeida editor-chefe Neldson Marcolin Editores Fabrício Marques (Política), Márcio Ferrari (Humanidades), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência); Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores espe­ciais); Bruno de Pierro (Editor-assistente) revisão Daniel Bonomo, Margô Negro arte Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos (Editora de infografia), Maria Cecilia Felli e Alvaro Felippe Jr. (Assistentes) fotógrafos Eduardo Cesar, Léo Ramos Mídias eletrônicas Fabrício Marques (Coordenador) Internet Pesquisa FAPESP online Maria Guimarães (Editora) Rodrigo de Oliveira Andrade (Repórter) Renata Oliveira do Prado (Mídias sociais) Rádio Pesquisa Brasil Biancamaria Binazzi (Produtora) Colaboradores Alexandre Affonso, André Julião, Daniel Bueno, Claudia Tozetto, Francisco Bicudo, Evanildo da Silveira, Fabio Otubo, Igor Zolnerkevic, Jayne Oliveira, Marcella Beraldo de Oliveira, Mauro de Barros, Nelson Provazi, Salvador Nogueira, Sandro Castelli, Valter Rodrigues, Yuri Vasconcelos É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização Para falar com a redação (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br Para anunciar Midia Office - Júlio César Ferreira (11) 99222-4497 julinho@midiaoffice.com.br Classificados: (11) 3087-4212 publicidade@fapesp.br Para assinar (11) 3087-4237 assinaturaspesquisa@fapesp.br Tiragem 42.600 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo

A

crise humanitária que ganhou visibilidade com a chegada em massa de imigrantes, muitas vezes refugiados, à Europa, oriundos principalmente do Oriente Médio e do norte da África, recolocou em pauta o fenômeno migratório em grande escala. Seu impacto reverberou em outros países, inclusive no Brasil, que viu dobrar a entrada de refugiados nos últimos quatro anos. Os sírios, por exemplo, hoje representam 24,5% dos 8.530 refugiados no país. Apesar do número pequeno (perto do contingente que chega à Europa), esses imigrantes frequentemente causam estranhamento e são alvo de ações discriminatórias no Brasil. O tema é objeto de pesquisas como as do Núcleo de Estudos de População da Universidade Estadual de Campinas (Nepo-Unicamp) e do Centro de Estudos da Metrópole da Universidade de São Paulo (CEM-USP), apresentadas na reportagem de capa (página 16). Desde os anos 2000, as grandes áreas metropolitanas deixaram de ser o destino quase exclusivo dos imigrantes: em busca de trabalho, esses contingentes agora seguem os investimentos em agropecuária ou industriais em cidades do interior. Pesquisadores também sugerem que a onda imigratória dos últimos 10 anos estaria em desacordo com pressupostos históricos tácitos, segundo os quais os estrangeiros “ideais” para o Brasil seriam brancos, europeus e católicos. Essa visão discriminatória e restritiva chegou a embasar ações do Estado brasileiro – a chamada política de branqueamento do Estado Novo (ver Pesquisa FAPESP nº 201). Na onda atual predominam latino-americanos (bolivianos, haitianos e colombianos), além de africanos como senegaleses e congoleses; por estarem distantes desse padrão, haveria mais estranhamento. Esse fator, associado a outros como a competição pelos postos de trabalho

e a ausência de políticas públicas voltadas para a inserção dos imigrantes na sociedade brasileira, contribuiria para as reações de hostilidade. O estado de São Paulo, cujo desenvolvimento (inclusive o científico-tecnológico) tanto se beneficiou da imigração, está em boa posição para uma resposta mais construtiva. Outra história de estranhamento e violência diz respeito às vítimas da política discriminatória contra pessoas com hanseníase no Brasil, vigente até 1986 (página 78). A prática de internação compulsória em hospitais-colônia era precedida pela queima da casa do paciente com todos os seus pertences. Estima-se que 40 mil pessoas tenham sido separadas de suas famílias por conta dessas estratégias de isolamento, com 25 mil crianças colocadas em orfanatos especiais. Em 1924, quando ainda não havia um tratamento eficaz, foi implementada a prática de internação compulsória, que ganhou força na década de 1940: em 1943, 41 hospitais-colônia espalhados pelo país abrigavam 17 mil pessoas. Na mesma década, o Brasil passou a medicar os pacientes com sulfona, o que exigia apenas visitas periódicas a hospitais. Mesmo assim, e tendo subscrito um acordo internacional pelo fim das internações compulsórias em 1952, a prática seguiu no Brasil por mais de 30 anos, partindo famílias e marginalizando parentes próximos. Um projeto desenvolvido desde 2011 por uma equipe da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), associada à organização não governamental Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), utilizando pesquisas históricas e testes de DNA, procura reunir familiares de hansenianos que não se conheciam ou estavam separados. Em ambos os casos, a superação do desconhecimento mostra que o estranhamento e a violência a ele associada são nocivos para a sociedade. PESQUISA FAPESP 236 | 7


Dados e projetos Temáticos e Jovem Pesquisador recentes Projetos contratados em agosto e setembro de 2015 temáticos  Escritos sobre os novos mundos: uma história da construção de valores morais em língua portuguesa Pesquisador responsável: Jean Marcel Carvalho França Instituição: FCHS de Franca/Unesp Processo: 2013/14786-6 Vigência: 01/09/2015 a 31/08/2019

 Aspectos epidemiológicos do Toxoplasma gondii em animais domésticos e silvestres da fauna amazônica Pesquisadora responsável: Solange Maria Gennari Instituição: FMVZ/USP Processo: 2015/11530-6 Vigência: 01/09/2015 a 31/08/2019

 As bacias do Pantanal, Chaco e Paraná

comunicação e de junções celulares no sistema digestivo de fetos bovinos, bezerros recém-nascidos e bovinos adultos Pesquisador responsável: Francisco Javier Hernandez Blazquez Instituição: FMVZ/USP Processo: 2015/50095-3 Vigência: 01/08/2015 a 31/07/2020

(PCPB): evolução e estrutura sísmica da crosta e manto superior Pesquisador responsável: Marcelo Sousa de Assumpção Instituição: IAG/USP Processo: 2013/24215-6 Vigência: 01/09/2015 a 31/08/2019

 O que determina o crescimento da massa estelar de galáxias elípticas? Intrínseco ou ambiente: a saga continua... Pesquisador responsável: Reinaldo Ramos de Carvalho Instituição: Inpe/MCTI Processo: 2014/11156-4 Vigência: 01/08/2015 a 31/07/2018

 Contribuição da via AMPK para a fibrose renal e patogênese da nefro e retinopatia diabéticas Pesquisador responsável: José Butori Lopes de Faria Instituição: FCM/Unicamp Processo: 2014/22687-0 Vigência: 01/09/2015 a 31/08/2020

 Expressão de proteínas de

 Public accountability to residents in contractual urban redevelopment (Parcour). (FAPESP-ESRC-NWO) Pesquisadora responsável: Maria Lucia Refinetti Rodrigues Martins Instituição: FAU/USP Processo: 2015/50131-0 Vigência: 01/09/2015 a 31/08/2018 Jovens pesquisadores  Ecologia genômica de insetos: adaptações ao clima e evolução de

adenocarcinomas gástricos no Brasil Pesquisador responsável: Emmanuel Dias Neto Instituição: A.C. Camargo Cancer Center/FAP Processo: 2014/26897-0 Vigência: 01/08/2015 a 31/07/2020

 Metabolismo e distribuição de

xenobióticos naturais e sintéticos: da compreensão dos processos reacionais à geração de imagens teciduais (Biota) Pesquisador responsável: Norberto Peporine Lopes Instituição: FCF Ribeirão Preto/USP Processo: 2014/50265-3 Vigência: 01/07/2015 a 30/06/2019

 Melatonina e a regulação do

metabolismo energético: estudos básicos, clínicos e epidemiológicos Pesquisador responsável: José Cipolla Neto Instituição: ICB/USP Processo: 2014/50457-0 Vigência: 01/07/2015 a 30/06/2020

 Teorias da causalidade e ação humana na filosofia grega antiga Pesquisador responsável: Marco Antonio de Ávila Zingano Instituição: FFLCH/USP Processo: 2015/05317-8 Vigência: 01/09/2015 a 31/08/2020  Álgebra não comutativa e aplicações

Pesquisador responsável: Francisco Cesar Polcino Milies Instituição: IME/USP Processo: 2015/09162-9 Vigência: 01/08/2015 a 31/07/2020

8 | outubro DE 2015

 Exossomos e microvesículas contendo

interações ecológicas Pesquisador responsável: Rodrigo Cogni Instituição: IB/USP Processo: 2013/25991-0 Vigência: 01/01/2016 a 31/12/2019

 Ocitocina e viés racial: impacto da

administração intranasal de ocitocina na empatia à dor física e nas percepções de ameaça em contextos raciais Pesquisadora responsável: Ana Alexandra Caldas Osorio Instituição: CCBS/UPM Processo: 2014/06777-0 Vigência: 01/07/2015 a 30/06/2018

 Reprogramação do metabolismo de purina em Bacillus subtilis através de tecnologia de sRNA Pesquisadora responsável: Danielle Biscaro Pedrolli Instituição: FCF de Araraquara/Unesp Processo: 2014/17564-7 Vigência: 01/09/2015 a 31/08/2019  Estudo da correlação entre atividade de

agentes antineoplásicos de primeira linha e resposta terapêutica, tempo de progressão e sobrevida global em pacientes com câncer epitelial de ovário avançado Pesquisador responsável: Paulo D’Amora

miRNAs modulam mudanças epigenéticas durante o cultivo in vitro de gametas e embriões em bovinos Pesquisador responsável: Juliano Coelho da Silveira Instituição: FZEA/USP Processo: 2014/22887-0 Vigência: 01/09/2015 a 31/08/2019

 Bases moleculares da toxicidade de oligômeros proteicos associados a amiloidoses do sistema nervoso Pesquisador responsável: Adriano Silva Sebollela Instituição: FMRP/USP Processo: 2014/25681-3 Vigência: 01/08/2015 a 31/07/2019  Engenharia genética de leveduras para a descoberta de novos medicamentos Pesquisadora responsável: Elizabeth Bilsland Instituição: IB/Unicamp Processo: 2015/03553-6 Vigência: 01/08/2015 a 31/07/2019  Células-tronco, brotação e a evolução da colonialidade em ascidias (FAPESP-ANR Devodiversity) Pesquisador responsável: Federico David Brown Almeida Instituição: IB/USP Processo: 2015/50164-5 Vigência: 01/08/2015 a 31/07/2019

Qualidade da educação e produtividade do trabalho em países escolhidos (classificados por região) 90.000

África Subsaariana

Produtividade anual do trabalhador 2000-2010 ($PPP por trabalhador por ano)

 Epidemiologia e genômica de

 Impacto da regulação traducional na diferenciação neuronal Pesquisador responsável: Mario Henrique Bengtson Instituição: IB/Unicamp Processo: 2014/21704-9 Vigência: 01/09/2015 a 31/08/2019

Ensino e trabalho

 Desenvolvimento e implantação de métodos de avaliação visual: aplicações clínicas e em modelos animais Pesquisadora responsável: Dora Selma Fix Ventura Instituição: IP/USP Processo: 2014/26818-2 Vigência: 01/09/2015 a 31/08/2020

Instituição: EPM/Unifesp Processo: 2014/19171-2 Vigência: 01/09/2015 a 31/08/2019

80.000

América Latina

70.000

América do Norte (menos México) Ásia

60.000

Europa Europa Oriental

50.000

Oceania Oriente Médio e África do Norte

40.000

Oriente Médio (Opep)

30.000

20.000

10.000

0

250 300 350 400 450 500 550

Índice de Qualidade Educacional – IQE Índice de Qualidade Educacional: média dos exames internacionais com base na escala do Pisa (média dos países da OCDE: 500) Produtividade do Trabalho 2000-2010: PIB por trabalhador, média para 2000-2010. Poder de paridade de compra (PPP$) 2005 China*: IQE da China se refere apenas a Xangai   Fontes: IQE – Hanushek, E.; Woessmann, M. Schooling, Cognitive skills and the Latin American puzzle. J. Development Econ. 99(2), 497-512, 2012.  Produtividade do trabalho – Heston, A.; Summers, R.; Aten, B. Penn World Table version 7.1. Center for International Com­parisons of Production, Income and Prices, U. Penn, July 2012. Elaboração: Pedrosa, R.H.L. Edu­cação, cres­­ ci­m ento econômico e produtividade do trabalho. Rede Formação para o Trabalho, vol. 6. Produtividade e Desenvol­v i­m ento, ABDI/Ipea, 2014.


Boas práticas

fotos  léo ramos

Universidades promovem integridade Duas universidades federais sediadas no estado de São Paulo, a do ABC (UFABC) e de São Carlos (UFSCar), criaram órgãos internos dedicados a promover boas práticas científicas e a apurar casos de má conduta. Com isso, tornaram-se as primeiras universidades públicas paulistas a montar estruturas para coordenar ações de educação e prevenção e examinar alegações de desvios. O Código de boas práticas científicas da FAPESP, lançado em 2011, estipulou que as instituições de pesquisa com projetos apoiados pela Fundação mantenham instâncias encarregadas de promover atividades educativas sobre integridade da pesquisa, de aconselhar alunos e docentes e de investigar e, se for o caso, punir casos de má conduta. No Brasil, universidades como a Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Federal de Goiás (UFG) também criaram órgãos desse tipo. Fundada há 10 anos, a UFABC tem 590 professores, 12,4 mil alunos de graduação e 1.137 de pós-graduação. “Ainda não tivemos nenhum episódio de má conduta, mas precisamos estar preparados para o caso de isso acontecer”, diz Igor Leite Freire, professor do Centro de Matemática, Computação e Cognição da universidade e pró-reitor adjunto de Pesquisa, designado para comandar o escritório. “Nosso quadro de docentes é jovem e as questões relacionadas à integridade científica são complexas, ou seja, não se limitam a problemas que qualquer pessoa consegue identificar, como plágio ou fraudes. As dúvidas poderão ser resolvidas no escritório”, afirma. O órgão da UFABC foi criado em agosto e, nos primeiros três meses de atividade, vai preparar um regimento interno.

O foco principal do escritório são ações preventivas e educativas, com a orientação de alunos e pesquisadores, sem esquecer de possíveis investigações sobre alegações de má conduta. Uma preocupação é garantir que as apurações sejam sigilosas, para evitar prejuízos à reputação de pesquisadores durante a investigação. “É preciso ter normas claras e precisas para evitar que uma eventual punição seja contestada na Justiça”, diz Freire. A preocupação com a integridade científica na UFABC não é nova. Após participar do 3º Brispe (Brazilian Meeting on Research Integrity, Science and Publication Ethics), evento realizado na sede da FAPESP, em 2014, que reuniu especialistas e apresentou experiências do Brasil e do exterior (ver Pesquisa FAPESP nº 223), o então pró-reitor de Pesquisa da UFABC, Harki Tanaka, promoveu um workshop de integridade em pesquisa na UFABC que teve entre os palestrantes o diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz. A ideia de criar um escritório começou a ser amadurecida após esse evento e foi levada adiante pela atual pró-reitora de Pesquisa, Marcela Sorelli Carneiro Ramos, e pelo reitor da UFABC, Klaus Capelle. “O evento ajudou a universidade

Campus da UFABC, em Santo André: educação contra má conduta

Laboratório da UFSCar: disciplina sobre integridade científica

a tomar a decisão de criar o escritório”, diz Freire. O anúncio foi feito dias antes da realização do segundo workshop de integridade em pesquisa, em agosto. No caso da UFSCar, sua Comissão de Integridade Ética na Pesquisa (Ciep) foi criada no fim de 2014, por uma iniciativa da Pró-reitoria de Pesquisa. O objetivo é fortalecer ações em andamento e colocar em prática uma das diretrizes do Plano de Desenvolvimento Institucional da UFSCar, que é “garantir a prática de atividades acadêmicas norteadas por preceitos éticos”. O regimento da comissão está sendo avaliado pela procuradoria da universidade e deverá ser homologado pelo Conselho de Pesquisa. Composta por membros de áreas diversas, a comissão cuida de ações educacionais e consultivas sobre integridade científica. Entre os planos, há a intenção de criar um curso sobre integridade científica para a pós-graduação. “Iremos definir com o Conselho de Pós-graduação se será uma disciplina obrigatória”, diz Ana Abreu, professora do Centro de Educação e Ciências Humanas e presidente da Ciep. O órgão poderá contribuir para a apuração de eventuais casos de má conduta científica. A comissão está concluindo o documento Diretrizes da UFSCar sobre ética na pesquisa, que será colocado em consulta pública em outubro. A UFSCar, hoje com quatro campi, tem 1.186 professores, 14.299 alunos de graduação e 3.915 alunos de pós-graduação. PESQUISA FAPESP 236 | 9


Estratégias Inventário do Cerrado

1

Segurança alimentar

O presidente do CNPq, Hernan Chaimovich (esq.), entrega um dos prêmios Jovem Cientista 2015

Um levantamento

executada pelo Serviço

exaustivo sobre a

Florestal Brasileiro (SFB),

vegetação do Cerrado,

órgão vinculado ao

segundo maior bioma

Ministério do Meio

brasileiro, receberá

Ambiente (MMA),

R$ 60 milhões em

e busca criar uma

recursos do Programa

grande plataforma com

de Investimento Florestal

informações de recursos

(FIP, na sigla em inglês),

florestais em todo o país.

vinculado ao Climate

“O levantamento já está

Investment Funds (CIF)

sendo realizado em

do Banco Mundial.

outros biomas, como a

O objetivo é levantar

Amazônia. Esperamos

informações sobre a

obter dados sobre a

vegetação nativa, como

extensão das florestas

a estrutura e a dimensão

no Brasil, onde estão

das plantas, e também

e como estão

aplicar um questionário

distribuídas”, explica

nas populações locais

Joberto Veloso

para saber como elas

de Freitas, diretor de

utilizam materiais

Pesquisa e Informações

Bárbara Rita Cardoso,

na dieta dos idosos

pesquisadora de

pode ser uma estratégia

pós-doutorado na

simples para diminuir as

biológicos, como madeira

Florestais do SFB.

Universidade de

chances de o Alzheimer

e sementes, para a

“Com isso, será possível

Melbourne, na Austrália,

avançar”, disse Bárbara.

subsistência, a fabricação

ter um panorama das

recebeu da presidente

O tema escolhido para a

de produtos e a prestação

espécies vegetais e

Dilma Rousseff o

28ª edição do Prêmio

de serviços. A ação,

eventualmente descobrir

Prêmio Jovem Cientista,

Jovem Cientista foi

que terá apoio do Banco

novas, além de identificar

concedido pelo

segurança alimentar e

Interamericano de

aquelas que estão em

Conselho Nacional de

nutricional. Na categoria

Desenvolvimento (BID)

risco de extinção.”

Desenvolvimento

Ensino Médio, a campeã

no gerenciamento dos

A área de abrangência

Científico e Tecnológico

foi Joana Meneguzzo

recursos, faz parte de

do inventário, levando

(CNPq), na categoria

Pasquali, do Colégio

um projeto mais amplo,

em conta todos os biomas

Mestre e Doutor. No

Mutirão de São Marcos,

o Inventário Florestal

brasileiros, será de 20 mil

ano passado, Bárbara

em São Marcos, Rio

Nacional. A iniciativa é

quilômetros quadrados.

defendeu sua tese

Grande do Sul, com uma

de doutorado na

pesquisa sobre um kit

Faculdade de Ciências

detector de substâncias

Farmacêuticas da

tóxicas no leite.

Universidade de São

Na categoria Ensino

Paulo (USP). O trabalho

Superior, o contemplado

indica que o consumo

foi o estudante Deloan

diário de castanha-do-

Edberto Mattos Perini,

-brasil, nome oficial

da Universidade Federal

da castanha-do-pará,

da Fronteira do Sul

pode ajudar a reduzir o

(UFFS), Rio Grande

risco de eclosão da

do Sul, com um trabalho

doença de Alzheimer

sobre o potencial da

em idosos que estão no

agricultura urbana

começo do processo de

no abastecimento de

perda da cognição. “A

alimentos em cidades

introdução da castanha

de pequeno porte.

10 | outbro DE 2015

Árvore do Cerrado: levantamento sobre importância biológica e social

2


Ajuda coletiva

Cinquenta anos da Unicamp A Universidade Estadual

universidades de outros

O paleontólogo Lee

de Campinas (Unicamp)

países que também

Berger, da Universidade

iniciou uma série de

foram fundadas em 1966.

de Witwatersrand, na

eventos para comemorar

“Fomos procurados

África do Sul, buscou

seus 50 anos de fundação,

pelas universidades de

uma saída criativa para

que se completam em 5

Brunel e Bath, ambas

enfrentar um desafio.

de outubro de 2016. Nos

do Reino Unido. Vamos

Em outubro de 2013 ele

próximos 12 meses serão

promover eventos em

recorreu à internet para

realizadas atividades

conjunto, tanto aqui

pedir ajuda a colegas em

acadêmicas, culturais

quanto na Inglaterra”,

uma das escavações mais

e artísticas, como

disse. O objetivo

difíceis de sua carreira,

apresentações da

é aprofundar a

na caverna Rising Star,

Orquestra Sinfônica da

cooperação entre as

na África do Sul. “Caros

Unicamp e conferências

instituições e discutir

colegas, preciso da ajuda

sobre filosofia, arte e

estratégias para as

de vocês”, publicou

educação ministradas por

próximas cinco décadas.

em uma rede social.

docentes da universidade

A programação inclui

“O problema é o seguinte:

destinadas a professores

o lançamento de uma

precisamos de pessoas

do ensino fundamental e

coleção de livros sobre

médio das redes públicas

a história da Unicamp.

de ensino de Campinas,

Um deles aborda

Limeira e Piracicaba.

a trajetória do

Em entrevista ao Jornal

Departamento de

da Unicamp, Ítala

Enfermagem, agora

magras e de preferência

3

fotos 1 CNPQ 2 Nevinho / Wikimedia commons  3 Brett Eloff  4 isro

pequenas. Não podem ser

Berger e os ossos: colaboradores magros e pequenos

claustrofóbicas, devem

cerca de 20 centímetros

estar em forma e ter

de largura, mas deu certo.

alguma experiência com

Os mais de 1.500 pedaços

escavações”, dizia a

de ossos e dentes

D’Ottaviano, presidente

transformado em

mensagem. Berger havia

coletados revelaram ser

da comissão responsável

faculdade. Outro conta

acabado de descobrir

de um hominídeo até

pela organização dos

a história da química

uma pequena câmara

então desconhecido.

eventos, disse que

no Brasil, destacando

subterrânea repleta de

O feito foi descrito na

algumas atividades serão

as contribuições da

remanescentes fósseis.

revista eLife e anunciado

feitas em parceria com

Unicamp nessa área.

O local, no entanto,

no dia 10 de setembro.

era muito profundo e

O primata foi batizado de

de difícil acesso. Após

Homo naledi. No idioma

o pedido de socorro, seis

sotho, uma das 11 línguas

pesquisadores – com as

oficiais da África do Sul,

características que ele

naledi significa estrela.

pedia – ofereceram ajuda.

Homo, como se sabe, é o

Precisaram atravessar

gênero ao qual pertencem

passagens medindo apenas os humanos modernos.

Observatório indiano

Astrosat em preparação para o lançamento: buracos negros

Universo onde ocorre o nascimento de estrelas, com destaque para o estudo de

O primeiro observatório da Índia dedica­

buracos negros e estrelas de nêutrons,

do a estudos astrofísicos, o Astrosat, foi

um dos mais densos objetos do Cosmo.

lançado com sucesso no dia 28 de se­

De acordo com a Organização de Pes­

tembro da base espacial de Sriharikota,

quisa Espacial da Índia (Isro, na sigla em

no golfo de Bengala. O satélite, que pesa

inglês), órgão responsável pela constru­

pouco mais de 1,5 tonelada, está equi­

ção e lançamento do Astrosat, as infor­

outros quatro centros de pesquisa no

pado com dois telescópios capazes de

mações coletadas pelo satélite em uma

país. “O Astrosat representa um novo

analisar diferentes formas de radiação

órbita a 650 quilômetros da superfície

capítulo para a astronomia da Índia”,

eletromagnética: luz visível, raios ultra­

terrestre serão enviadas ao Centro In­

disse à revista Nature Swarna Kanti Ghosh,

vio­le­ta e raios X de alta e baixa energia.

diano de Dados Espaciais, em Bangalore.

diretor do Centro Nacional de Astrofísica

O objetivo é esquadrinhar regiões do

Os dados depois serão redistribuídos para

de Rádio, que colaborou no projeto.

4

PESQUISA FAPESP 236 | 11


Tecnociência Vesúvio

Campi Flegrei

Sinais de água em Marte

Golfo de Nápoles

Era uma notícia há

presença de água líquida

muito esperada. Dados

(Nature Geoscience,

coletados pela sonda

28 de setembro). Essas

espacial Mars

faixas se tornam mais

Reconnaissance Orbiter

escuras e parecem descer

(MRO) confirmaram

as encostas nas estações

que água líquida corre

mais quentes. Nos

de tempos em tempos

períodos mais frios,

Uma equipe internacional

por Donald B. Dingwell

na superfície de Marte,

elas desaparecem.

da qual participa a

na Universidade

anunciou a Nasa,

Desde que essas faixas –

vulcanóloga brasileira

Ludwig-Maximilian em

agência espacial

as chamadas linhas

Cristina De Campos

Munique, Alemanha,

norte-americana, no dia

recorrentes de encosta

reproduziu em

Cristina submeteu dois

28 de setembro. As faixas

– foram identificadas pela

laboratório o que

tipos de magma do

escuras e alongadas

primeira vez em 2010,

acontece na câmara

supervulcão de Campi

que aparecem nas

suspeitava-se que

magmática dos vulcões,

Flegrei, em Nápoles, Itália,

encostas de montanhas

estivessem associadas à

o local em que as rochas

a temperaturas próximas

e cânions durante o

presença de água líquida,

derretidas que formam

às do interior dos

verão marciano, quando

que já foi abundante no

os diferentes tipos de

vulcões e mediu o tempo

as temperaturas ficam

planeta num passado

magma se misturam

necessário para que

acima de zero grau

distante. Mas faltavam

antes das erupções.

reagissem quimicamente

Celsius, seriam marcas

evidências mais sólidas.

O experimento permitiu

e se misturassem. Na

deixadas pelo fluxo de

Para o ex-astronauta

estimar com mais

natureza, a descompressão

água salgada. Um dos

John Grunsfeld,

precisão o tempo entre

dessa mistura libera

instrumentos da MRO

administrador-associado

o preenchimento da

gases que fazem o magma

identificou nessas faixas

do Diretório de Missões

câmara magmática

expandir e ser ejetado

escuras de quatro regiões

Científicas da Nasa, agora

e o início da mistura dos

do vulcão. Com base

próximas ao equador do

as evidências científicas

magmas e a expulsão por

nessas informações, os

planeta vermelho uma

são convincentes.

meio de uma erupção

pesquisadores criaram

assinatura química

Os sinais da presença de

ou explosão. Nos casos

um modelo matemático

característica de

água líquida reacendem

analisados, esse intervalo

que permitiu estimar

alguns sais hidratados

a expectativa de que

foi inferior a uma hora,

o tempo entre o início

(perclorato de magnésio,

esse planeta vizinho,

e não de dias, como se

da mistura do magma

clorato de magnésio e

hoje frio e desértico,

imaginava (Scientific

e o seu derramamento.

perclorato de sódio)

possa abrigar alguma

Reports, setembro). Nos

Testes com o material

que só se formam na

forma de vida.

laboratórios coordenados

de três explosões de

1

Um cronômetro para erupções Nápoles

Supervulcão visto do espaço: golfo de Nápoles e a sequência de crateras de Campi Flegrei

Cratera Hale, em Marte: fluxo de água criaria as linhas escuras nas encostas das montanhas

Campi Flegrei, o vulcão 2

mais perigoso da Europa, indicaram que esse intervalo é inferior a uma hora. “Esse tipo de informação é importante para a defesa civil, uma vez que, preenchida a câmara magmática, o vulcão entra em erupção quase imediatamente”, diz Cristina. Ela calcula que a mesma estimativa de tempo valha para vulcões de composição semelhante.

12 | outubro DE 2015


Sobrecarga cerebral

3

Redes ópticas mais velozes Pesquisadores do

Communications, o novo

Os neurônios, as células

Centro de Pesquisa e

chip é um dos primeiros

que armazenam e

Desenvolvimento em

no mundo para

Telecomunicações

comunicações ópticas

(CPqD), em Campinas,

produzido na escala de

planejam iniciar em

16 nanômetros, 37 vezes

dezembro os testes de

mais reduzida do que os

um novo processador

produzidos nas fábricas

para redes de fibra

de chips mais avançadas

Minicérebro gerado a partir de célula da pele: ferramenta para estudar a atividade de neurônios

transmitem informações no cérebro, apresentam mais conexões e trocam mais informações entre si em uma doença

fotos  1 ESA e Wikimedia commons 2 NASA / JPL / Universidade do Arizona 3 Muotri lab / UCSD 4 Nasa / CXC/ M.Weis

genética rara que afeta quase exclusivamente

Eles retiraram células

óptica. Contendo 16,8

do Brasil. No início de

os bebês do sexo

da pele de três garotos

milhões de transistores,

junho, o CPqD enviou

masculino: a síndrome da

com a síndrome e,

cada um com cerca de

uma versão mais simples

duplicação do MECP2.

em laboratório, as

16 nanômetros de

(chip de teste) do

Além de essas células

fizeram regredir a um

comprimento de porta,

processador para ser

se comunicarem mais,

estágio mais versátil,

o novo chip deve

produzida em Taiwan.

a troca de informações

no qual podem originar

integrar os módulos

A primeira versão deve

entre elas ocorre de um

células de diferentes

transceptores ópticos,

ficar pronta em dezembro,

modo anormalmente

tecidos. Depois,

equipamentos que

quando será submetida a

sincronizado, verificou

estimularam-nas a se

convertem sinais

uma prova de conceito.

a equipe do biólogo

transformarem em

elétricos em luminosos e

“Esperamos ter uma

brasileiro Alysson Muotri,

neurônios. Cultivadas em

vice-versa, da nova

avaliação completa do

da Universidade da

uma matriz tridimensional,

geração de redes de fibra

protótipo no início do

Califórnia em San Diego.

as células originaram

óptica. O objetivo é

ano que vem”, diz Juliano

Causada pela duplicação

estruturas com diferentes

aumentar a capacidade

Oliveira, gerente de

do gene MECP2, essa

camadas celulares,

de transmissão para 400

tecnologias ópticas do

síndrome provoca um

semelhantes a cérebros

gigabits por segundo

CPqD. A versão final

retardo severo no

microscópicos. Os

(Gbps), velocidade

do chip deve ficar pronta

neurodesenvolvimento.

neurônios desses

quatro vezes superior

até o início de 2017.

Os meninos com uma

minicérebros tinham

à das redes atuais.

O projeto recebeu

cópia extra do gene

mais ramificações e se

Projetado e desenvolvido

R$ 59 milhões do Fundo

apresentam dificuldade

comunicavam mais do

pelo CPqD em parceria

para o Desenvolvimento

de fala e de controle dos

que os obtidos a partir de

com a empresa

Tecnológico das

movimentos, além

células da pele de pessoas

norte-americana ClariPhy

Telecomunicações.

de traços de autismo.

sem a síndrome. Testes

Muotri e seus

com 43 compostos

colaboradores usaram

mostraram que um deles

uma estratégia inovadora

reverteu as alterações

para investigar como as

estruturais e funcionais

células cerebrais dessas

das células (Molecular

crianças funcionam.

Psychiatry, setembro).

O glutão da Via Láctea: o buraco negro Sagitário A* emite raios X ao se alimentar de material do objeto G2

Emissão de raios X

Sagitário A*

G2

O despertar de um gigante

4

O buraco negro no centro da Via Láctea

do um gigante relativamente silencioso.

passaram a ocorrer uma vez por dia, sinal

anda mais ativo nos últimos tempos. De

Em geral, detecta-se em seus arredores

de incremento da voracidade de Sagitário

meados de 2014 para cá, astrônomos da

um clarão no comprimento de onda dos

A* (MNRAS, no prelo). Os astrônomos

Europa e dos Estados Unidos registraram

raios X uma vez a cada 10 dias. Flashes

ainda não sabem se essa flutuação é par-

um aumento na frequência das emissões

dessa luz bastante energética, invisível

te de um ciclo natural ou decorrente da

de raios X emanados das proximidades

aos olhos humanos, são emitidos toda vez

passagem de um objeto em sua vizinhan-

de Sagitário A*, o buraco negro da galáxia.

que o gás aquecido do disco de acreção

ça. Os flashes aumentaram seis meses

Desde que essa região do espaço começou

cai em direção ao buraco negro. Há pou-

depois que um objeto chamado G2, pos-

a ser monitorada regularmente há cerca

co mais de um ano, porém, a frequência

sivelmente uma estrela envolta em gás,

de 15 anos, o Sagitário A* tem se mostra-

desses clarões aumentou 10 vezes: eles

se aproximou do buraco negro.

PESQUISA FAPESP 236 | 13


O Programa Mais Médicos é muito mais que médicos. Você que sonha em ser médico, esse é o caminho cheio de oportunidades.

• Mais 11.400 vagas para medicina até 2017. • 5.200 vagas já autorizadas e um novo currículo de medicina. • Expansão de vagas de residência médica em andamento. E, a partir de 2019, cada médico formado terá garantida a sua vaga de residência. Acesse maismedicos.gov.br e informe-se sobre os novos cursos de medicina, vagas de graduação e residência médica. O Brasil do Mais Médicos é o Brasil que cuida, educa e avança.


Uma Pátria Educadora se faz com mais acesso à educação.

Ministério da Educação


capa

As raízes da resistência Distância do padrão histórico de imigrante branco e europeu e mercado de trabalho limitado são algumas das razões da hostilidade aos fluxos migratórios atuais

V Texto

Carlos Fioravanti

Fotos

Eduardo Cesar

oltem para Cuba!” A socióloga Roberta Peres assustou-se com o grito vindo de um passageiro de um carro cinza que passava em frente à Missão Paz, instituição religiosa que atende migrantes, imigrantes e refugiados recém-chegados à cidade de São Paulo. O haitiano que ela entrevistava – um estudante de engenharia que interrompeu o curso porque sua universidade fora destruída pelo terremoto de 2010 no Haiti – não entendeu a situação, já que conversavam em inglês. Era o início de 2014, auge da chegada de haitianos à capital paulista. A hostilidade cresceu nos meses seguintes. No sábado 1º de agosto de 2015, seis haitianos foram baleados com espingarda de chumbinho na rua do Glicério e na escadaria da paróquia Nossa Senhora da Paz, que abriga a Missão Paz. “Em várias cidades brasileiras os haitianos ainda são oprimidos pelos moradores locais”, observa Rosana Baeninger, também socióloga e colega de Roberta no Núcleo de Estudos de População

16 | outubro DE 2015


Vendedores de ervas e temperos típicos da Bolívia na feira da rua Coimbra, em São Paulo

PESQUISA FAPESP 236 | 17


(Nepo) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). As duas participaram de uma pesquisa recém-concluída sobre a situação e os planos de 250 haitianos que vivem em Manaus, Porto Velho, capital de São Paulo e três cidades do interior paulista (Campinas, Jundiaí e Santa Fé do Sul), Curitiba, Camboriú, Porto Alegre e Encantado, no Rio Grande do Sul. Os entrevistados eram, na maioria, homens com idade entre 24 e 29 anos, que pretendiam trazer os familiares, mas não pensavam em permanecer no Brasil. “Para os haitianos”, diz Roberta, “o Brasil está deixando de ser um país de destino para ser uma etapa de trânsito, ainda que demorada, para os Estados Unidos, para onde a maioria disse que gostaria de ir”.

O

levantamento reiterou duas conclusões prévias da equipe do Nepo. A primeira é a desconcentração territorial: cidades do interior paulista como Piracicaba e Limeira, além de Campinas, Jundiaí e Santa Fé do Sul, por causa de investimentos internacionais em agropecuária ou indústria, estão recebendo mais imigrantes e vivendo situações antes comuns apenas em capitais como São Paulo, que até o início dos anos 2000 constituíam o destino quase exclusivo dos estrangeiros. “O excedente populacional acompanha alocações do capital internacional, embora a cidade de São Paulo continue como referencial no imaginário imigratório”, diz Rosana. A segunda conclusão é que a onda imigratória dos últimos 10 anos – formada por bolivianos, peruanos e outros povos latinos, aos quais se somaram haitianos, senegaleses e congoleses, a partir de 2010 – contraria pressupostos históricos tácitos. “Desde o final do século XIX criou-se a ideia de que o imigrante, para ser aceito, teria de ser branco e europeu, e os imigrantes atuais são indígenas que falam espanhol, como os bolivianos, ou negros que falam francês ou crioulo, como os haitianos”, diz Rosana, que trabalha nesse campo há 30 anos. Segundo ela, o distanciamento do padrão histórico branco europeu, a ausência de uma necessidade explícita da mão de obra estrangeira e a escassez de políticas públicas locais, estaduais e federais que promovam a interação social dos imigrantes do século XXI geram o que ela chama de “distanciamento em relação ao outro” e as reações de hostilidade. Os japoneses que chegaram no início do século XX, observa Rosana, embora tolerados pela necessidade de mão de obra para as plantações de café, então a base da economia nacional, foram hostilizados e discriminados, como mostrou o filme Gaijin – Os caminhos da liberdade (1980). Os orientais eram vistos como uma raça inferior, tanto quanto negros e índios, que prejudicaria o branqueamento da população desejado pelo governo brasileiro e promovido por imigrantes europeus. 18 | outubro DE 2015

De caráter eugenista, o projeto de branqueamento da população brasileira tinha sido estabelecido por Getúlio Vargas durante o Estado Novo (1930-1945). De acordo com estudo do historiador Fábio Koifman, da Universidade Federal Rural Fluminense, publicado no livro Imigrante ideal: o Ministério da Justiça e a entrada de estrangeiros no Brasil (1941-1945) (Civilização Brasileira, 2012), o projeto estabelecia quais eram os imigrantes desejáveis – branco, católico e apolítico, de preferência portugueses de baixa escolaridade, sem “ideias dissolventes” como as que tinham grupos intelectualizados da Alemanha, França e Áustria, entre outros países. Os indesejáveis eram negros, japoneses, idosos e deficientes. Em 1930, durante a campanha à Presidência, Vargas alertou que a imigração teria de ser pensada também sob o critério étnico, não apenas econômico. Depois de

Imigrantes africanos trabalhando como camelôs e, à direita, frequentadores do comércio de rua mantido por bolivianos na região do Brás, em São Paulo


Os coiotes dizem aos haitianos que vão encontrar emprego fácil logo depois de chegarem ao Brasil eleito, ele aprovou várias leis que estabeleciam cotas de imigração restringindo a entrada, principalmente, de orientais. “Segmentos letrados da sociedade brasileira e muitos homens do governo, incluindo Vargas, acreditavam que o problema do desenvolvimento brasileiro estava relacionado à má formação étnica do povo. Achavam que trazendo ‘bons’ imigrantes, ou seja, brancos que se integrassem à população não branca, o Brasil em 50 anos se transformaria em uma sociedade mais desenvolvida”, disse Koifman em entrevista à Pesquisa FAPESP em 2012 (ver edição nº 201). PRECONCEITOS

Tanto no Brasil quanto na Europa, os meios de comunicação tratam a chegada dos imigrantes “como uma ameaça, como se o país tivesse sendo invadido por uma horda de desocupados, ba-

derneiros que vêm para cá para pressionar o tão combalido sistema de proteção social e o mercado de trabalho”, escreveu Antônio Tadeu Ribeiro de Oliveira, pesquisador do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em um artigo publicado em janeiro deste ano na Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana. Segundo ele, a dimensão desse fenômeno, apesar da intensa visibilidade, “é bem inferior ao da entrada através de aeroportos, portos e outras áreas de fronteiras de imigrantes irregulares brancos”. Quem chega muitas vezes se decepciona. Segundo padre Paolo Parise, um dos diretores da Missão Paz, os coiotes, como são chamados os agentes que cobram dos interessados para ajudá-los a atravessar as fronteiras de outro país, prometem aos haitianos emprego fácil e ganhos de US$ 1.500 por mês. “Os haitianos dizem que PESQUISA FAPESP 236 | 19


não imaginavam que o Brasil fosse tão racista”, diz ele. Mantida pela Congregação Scalabriniana e por doações, desde 1978 a Missão Paz oferece abrigo, alimentação, atendimento médico e psicossocial e serviços de documentação para imigrantes, refugiados e migrantes. Por ali passaram 11 mil dos 60 mil haitianos que entraram no Brasil desde 2010. No início de setembro, padre Paolo cumprimentava os recém-chegados sírios com a mão no peito, sem estender a mão nem tocá-los, como fazia com os latinos que encontrava enquanto caminhava, indicando os cuidados indispensáveis para lidar com os representantes dos diferentes países e culturas.

N

este ano, a equipe da Missão conseguiu empregos para 1.180 imigrantes. Até setembro do ano passado, foram 1.700, o que faz padre Paolo prever que o ano possa terminar com um terço a menos de contratações. O levantamento da Unicamp também indicou que a fase boa parece ter passado. Depois de uma época de emprego temporário relativamente fácil na construção civil antes da Copa do Mundo de 2014, muitos agora preferem ir para Santa Catarina e Rio Grande do Sul, onde, acreditam, encontrarão empregos melhores. “Os órgãos públicos estão se posicionando a favor da imigração e se responsabilizando por criar políticas públicas”, observa Camila Baraldi, coordenadora-adjunta da Coordenação de Políticas para Migrantes (CPMig) da Secretaria

20 | outubro DE 2015

Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo. Como uma de suas primeiras ações, logo após ser criada, em 2013, a coordenação promoveu a simplificação da abertura de contas bancárias pelos imigrantes como forma de reduzir os assaltos a esses grupos de pessoas, que antes guardavam com eles o dinheiro que acumulavam, e facilitar a contratação por empresas. Uma boa parte do tempo das equipes do CPMig é dedicada aos haitianos, que em 2014 chegavam em grande número, às vezes um ônibus por dia. O fluxo hoje está menor, mas ainda chegam dois a três ônibus por semana vindos do Acre, a primeira parada no Brasil. A maioria permanece, ao menos no início, na capital. Agora a entrada de sírios é que está aumentando: em agosto as equipes da prefeitura atenderam 25. Para os que chegam sem ter para onde ir, a coordenação oferece abrigos e apoio para a emissão de documentos e a procura de emprego, além de promover a articulação com as equipes de outros órgãos públicos para assegurar o acesso a serviços de saúde e educação e assistência social. “Muitas vezes esses direitos são negados, por desconhecimento de quem os atende”, diz Camila. Nesse momento uma das prioridades é a formação do Comitê Intersetorial da Política Municipal para a População Imigrante, criado em agosto, que deverá ter 13 representantes do poder público e 13 da sociedade civil, com a tarefa de redigir uma proposta de política pública para a população imigrante que hoje vive na cidade de São Paulo.

Sírios recém-chegados acolhidos pela Oásis Solidário, organização mantida pela comunidade síria estabelecida em São Paulo


Um Brasil cosmopolita Refugiados e imigrantes chegam em fluxo contínuo nos últimos anos e se espalham pelo país 2000 – Outubro/2014 Origem dos refugiados no Brasil

1.524

Síria

Líbano

Serra Leoa

Haitianos no Brasil

784

258

Colômbia INFOGRÁFICO  ANA PAULA CAMPOS

Iraque

263 Palestina

137

1.218

2000 – 2014

229

391

145 Bolívia

Libéria

1.067

República Democrática do Congo

Angola

O suporte legal de apoio a quem imigra ainda é precário. O Estatuto do Refugiado, de 1997, assegura alguns direitos, como o registro de estrangeiro no Brasil, mas ações mais amplas são dificultadas pelo caráter restritivo do Estatuto do Estrangeiro, em vigor desde a década de 1980. Em julho o Senado aprovou um projeto de lei que cria uma nova Lei de Migração, que revoga o estatuto e reduz as exigências para a concessão de vistos e autorização de residência. O projeto hoje tramita na Câmara dos Deputados. Nos últimos quatro anos, o número de refugiados no país dobrou, atingindo 8.530 até setembro de 2015, segundo o Comitê Nacional de Refugiados, do Ministério da Justiça. Os sírios, que chegam em número crescente, representam 24,5% do total de refugiados de 81 nacionalidades que vivem no Brasil, seguidos pelos colombianos, angolanos e congoleses e libaneses. Há também 12.666 pedidos de refugiados em análise. No Brasil não há multidões de refugiados como as que há meses chegam aos países centrais da Europa, vindas principalmente da Síria, destruída pela guerra. Em 2015, a Alemanha recebeu cerca de 200 mil imigrantes, que podem compensar a redução da população gerada pela queda da taxa

1-50 51-500 501-1.000 1.001-2.500 2.501-5.000

Total de refugiados no Brasil

Novos refugiados reconhecidos no Brasil

2010

2011

2012

2013

2014

4.357

4.477

4.689

5.256

7.289

2.032

150

128

260

712

fonte  ACNUR E SINCRE-POLÍCIA FEDERAL

PESQUISA FAPESP 236 | 21


flitos ocorridos na Europa, “mas expressam a dificuldade da sociedade receptora em acolher estes grupos de imigrantes”, ressalta Rosana. Em 2012 e 2013, pichações em portas de lojas de Piracicaba hostilizaram os coreanos, numerosos na cidade desde quando a montadora sul-coreana Hyundai começou a construir sua fábrica, em 2010. No início de agosto deste ano, o muro do cemitério de Nova Odessa, cidade próxima a Campinas, foi pichado com a frase “Back to Haiti” (“Voltem ao Haiti”). Até julho, a Igreja Batista de Nova Odessa tinha ajudado cerca de 80 haitianos a encontrarem empregos e a aprenderem português. Em 2014, 13 haitianos denunciaram espancamentos sofridos nas empresas em que trabalhavam em Curitiba. Na capital estima-se em 2.500 o número de haitianos, a maioria trabalhando em construtoras.

de natalidade, mas em geral os imigrantes são indesejados – e não apenas na Europa. De acordo com estudo do instituto francês Ipsos, metade dos moradores entrevistados em 24 nações, incluindo o Brasil, disse que havia imigrantes demais em seus países; 46% acreditavam que os estrangeiros dificultavam o acesso dos moradores nativos a empregos e apenas 21% dos 17.533 entrevistados consideraram positivo o impacto dos imigrantes em seus países. No Brasil, 36% dos que foram ouvidos disseram que os imigrantes intensificam a disputa por empregos, índice bem abaixo dos 85% da Turquia, 68% da Rússia e 56% dos moradores da Argentina com a mesma opinião. As reações contrárias exibidas até agora nas cidades brasileiras também estão longe dos con-

A

Boliviana em trajes de festa assistindo a festival de poesia na feira dominical da praça Kantuta, no bairro do Canindé 22 | outubro DE 2015

pesar das dificuldades, os imigrantes conquistam seus territórios. Já se veem lanchonetes, docerias, lojas de roupas e lan houses com funcionários ou proprietários haitianos na região do Glicério, próxima à Missão Paz, em São Paulo. A rua Coimbra, no bairro do Brás, é o coração da comunidade boliviana na capital, estimada em 300 mil imigrantes, dos quais apenas 90 mil regularizados. As feiras de sábado e domingo da rua Coimbra reúnem cerca de 6 mil bolivianos e visitantes que podem comprar batatas que parecem cenouras, pedras brancas ou pretas ou rajadas com pontos vermelhos, além de muitos tipos de milho e de pimenta e outros temperos, em meio a restaurantes que servem salchipara, silpancho, sajta, caldo de cordan e outros pratos típicos. Como provável efeito da clandestinidade em que viveram ou vivem, os vendedores são atenciosos, mas ariscos, falam com entusiasmo dos numerosos tipos de milho, quando muito contam sobre a cidade de origem, em geral La Paz ou Cochabamba, e depois silenciam. A feira foi regularizada pela prefeitura em novembro de 2014, o que permitiu melhorias em sua organização e segurança, depois de funcionar 11 anos na ilegalidade. A menos de 3 quilômetros dali funciona uma maternidade municipal cujas equipes, desde 2005, se especializaram em atender mulheres bolivianas que em geral não falam português. Em um artigo publicado em 2006 na revista Estudos Avançados, o antropólogo Sidney Silva, da Universidade Federal do Amazonas, escreveu que a imigração boliviana se tornou mais visível em São Paulo a partir da década de 1980, mas começou nos anos 1950 com estudantes que chegavam por meio de um programa de intercâmbio cultural Brasil-Bolívia. “Após o término dos estudos, muitos deles acabavam optando pela sua permanên-


cia, em razão das múltiplas ofertas de emprego encontradas naquele momento no mercado de trabalho paulistano”, observou Silva. Depois, o fluxo de imigrantes latino-americanos – bolivianos, peruanos e paraguaios, uruguaios e chilenos – continuou em crescimento. Eles trabalham principalmente em confecções e no comércio. Para entender as raízes da imigração, a socióloga Patrícia Freitas, atualmente pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), um dos 17 Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP, entrevistou 17 bolivianos em São Paulo e outros 33, durante oito meses, em 2012 e 2013, em cidades e em municípios rurais da Bolívia, como parte de seu doutorado, orientado por Rosana Baeninger. “Em geral os bolivianos que imigraram estão sendo expulsos do campo desde as décadas de 1980 e 1990 e viveram em situações de extrema precariedade nas cidades da Bolívia”, Patrícia concluiu, após refazer as trajetórias pessoais dos entrevistados. “As condições de trabalho lá são piores do que aqui, onde podem ganhar mais. Há casos de exploração, sim, mas muitos se dão bem”, diz. Segundo ela, os contratadores atraem os interessa-

Imigrantes árabes ganham as ruas de São Paulo

dos em emigrar por meio de anúncios e pagam a viagem para São Paulo ou Buenos Aires, outro destino comum, para trabalhar em oficinas de costura, criando uma dívida nem sempre paga, porque os imigrantes, depois de chegarem, encontram empregos melhores. Os 50 entrevistados haviam passado por 180 oficinas de costura nas cidades bolivianas e em São Paulo.​ “Esta é uma oportunidade de nos reconhecermos como parte da América Latina”, diz Camila Baraldi, da CPMig. Em seu doutorado, concluído em 2014 na USP, ela argumentou que a cidadania sul-americana está em construção e “poderia vir a ser uma cidadania fundada no paradigma da mobilidade”. Padre Paolo sugere: “Temos de aprender e ensinar as razões históricas dos fluxos migratórios”. “O mundo hoje”, diz ele, “é feito pela emigração e pelo refúgio, que deixaram de ser circunstanciais e hoje são estruturais”. A migração internacional é uma condição básica pela qual as sociedades e estados se formam, se expandem e se reproduzem, reitera Thomas Nail, professor da Universidade de Denver, Estados Unidos, em um livro recém-lançado (The figure of the migrant, Stanford University Press). “As condições sociais da migração”, ele observa, “são sempre uma mistura dos tipos de expulsão territorial, política, jurídica e econômica. Os quatro operam ao mesmo tempo, em graus diferentes”. O mundo acadêmico tem um papel a cumprir nesse campo, oferecendo oportunidades para estudantes e pesquisadores prosseguirem em suas carreiras, alertou um editorial da Nature de 10 de setembro. De outro modo, argumentou a revista, pode-se perder uma geração inteira de talentos do Oriente Médio e de outras regiões do mundo. n

Projetos 1. Observatório das migrações em São Paulo: migrações internas e internacionais contemporâneas no estado de São Paulo (no 2014/04850-1); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Rosana Aparecida Baeninger (Nepo/Unicamp); Investimento R$ 555.279,96. 2. A governança das migrações internacionais e os seus impactos na experiência social dos migrantes: um estudo comparativo dos contextos nacionais e locais de São Paulo, no Brasil, e Buenos Aires, na Argentina (nº 2014/11649-0); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Eduardo Cesar Leão Marques (USP); Bolsista Patrícia Tavares de Freitas; Investimento R$ 169.557,84.

Artigos científicos BAENINGER, R. Rotatividade migratória: um novo olhar para as migrações internas no Brasil. Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana. v. 20, n. 39, p. 77-100. 2012. FREITAS, P. T. de. Família e inserção laboral de jovens migrantes na indústria de confecção. Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana. v. 22, p. 231-46. 2014. Keep a welcome. Nature, v. 525, p. 157. 10 set. 2015. OLIVEIRA, A.T. R. de. Os invasores: As ameaças que representam as migrações subsaariana na espanha haitiana no Brasil. Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana. v. 23, n. 44, p. 135-55. jan./jun. 2015. SILVA, S. A. Bolivianos em São Paulo: entre o sonho e a realidade. Estudos Avançados. v. 20, n. 57, p. 157-70. 2006.

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entrevista Boris Schnaiderman

Memórias de um ex-combatente Professor de literatura, um dos pioneiros da tradução de livros russos e ex-pracinha, lança livro sobre participação na Segunda Grande Guerra

Neldson Marcolin  |

retrato

Léo Ramos

O

professor e tradutor Boris Schnaiderman, de 98 anos, pode ser encontrado em seu apartamento na capital paulista, não raro, datilografando em uma máquina de escrever Olivetti. Não, ele não traduz mais os grandes autores russos, nem prepara aulas de língua e literatura russas. Nos últimos tempos, Schnaiderman tem se dedicado com maior ênfase a dois temas que o acompanham há 70 anos. O primeiro é quase uma obsessão: a revisão contínua de livros traduzidos por ele à procura das melhores soluções semânticas e literárias. O segundo tem um caráter mais íntimo pela experiência visceral – trata-se de sua participação como pracinha da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Segunda Grande Guerra. As lembranças do conflito o levaram a publicar Caderno italiano (Perspectiva), um livro com suas memórias daquele período, que ainda lhe provocam repulsa, indignação e frustração. Schnaiderman é conhecido como um dos primeiros tradutores a verter contos, romances e poemas diretamente do russo para o português, a partir dos anos 1940. Judeu ucraniano de formação russa, nasceu no ano da revolução comunista de 1917, que deu origem à União Soviética. A família imigrou para o Brasil em 1924, insatisfeita com as condições e perspectivas de vida no Leste Europeu, e se estabeleceu no Rio de Janeiro. O jovem Boris tinha verdadeiro interesse por literatura, mas demorou até conseguir se dedicar apenas às traduções, ensaios e aulas. Antes, formou-se e trabalhou em agronomia. Apenas nas horas vagas fazia traduções, que raramente o agradavam. “Meus primeiros textos têm muitos defeitos e hoje não aceito mais aquelas versões”, diz ele, famoso pelo rigor com que encara o próprio trabalho e por

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idade 98 anos especialidade Língua e literatura russas formação Bacharelado em Agronomia (Escola Nacional de Agronomia), doutorado em Literatura (FFLCH-USP) instituição FFLCH-USP produção científica Oito livros como autor (ensaios, ficção e autobiografia) e dezenas de outros como tradutor


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transpor para português textos de Tolstói, Dostoiévski, Púchkin, Tchékov, Górki e Maiakóvski, entre outros. Sua produção ficou mais constante depois de ser contratado em 1960 pela Universidade de São Paulo (USP), onde foi um dos criadores do primeiro curso livre de russo. Em 1964, Schnaiderman lançou seu primeiro livro como autor, Guerra em surdina (hoje publicado pela Cosac Naify), memória misturada a ficção num mergulho reflexivo sobre o período que passou na Itália, onde era o responsável por fazer os cálculos de onde os projéteis deveriam cair para atingir o alvo. Passados 70 anos do final do conflito mundial, Schnaiderman volta ao tema para reafirmar seu ponto de vista como partícipe daquele período. Schnaiderman é casado desde 1986 com a professora e pesquisadora em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Jerusa Pires Ferreira. Tem dois filhos do primeiro casamento, a psicanalista e cineasta Miriam e Carlos, atual secretário de Saúde de Guarulhos, cidade da Região Metropolitana de São Paulo. Na entrevista abaixo, ele falou sobre as memórias da Segunda Guerra, sua trajetória profissional e os desafios da tradução.

Vargas, no momento seguinte tínhamos de aceitar tranquilamente ir lutar a favor dos Aliados. Eu era antimilitarista, mas acompanhava o noticiário e estava transtornado com o que estava acontecendo na Europa, embora ainda não se tivesse a dimensão do que era o Holocausto. Por isso achei que tinha de ir para a guerra. Há também a demonstração, no livro, de certa tristeza pelo não reconhecimento da atuação dos soldados brasileiros, como se vocês tivessem viajado a passeio. Mesmo mal preparados, os brasileiros cumpriram seu papel da melhor maneira possível. Lutaram de verdade, com ímpeto e muitas vezes com real competência, adquirida no próprio campo de luta. Eu

progresso desaparecem. Isso é bem discutido em Guerra e paz, quando Tolstói conclui que o homem cria seus mitos bélicos e, depois de cada guerra, acomoda os fatos de acordo com eles. O senhor também reclama um pouco dos jornalistas brasileiros que escreveram sobre o tema. Nem todos. O Rubem Braga e o Joel Silveira trouxeram contribuições muito importantes sobre o período. Ocorre que eles não apontaram a contradição básica: o fato de os brasileiros estarem lutando pela democracia como enviados de um governo de cunho fascista. E lutando sem nenhuma convicção. Nenhum deles fala sobre isso. O Rubem Braga chega próximo disso, no máximo. Há outros autores, completamente desconhecidos, que lutaram na guerra e escreveram depoimentos pessoais mais fortes, viscerais. Mas hoje em dia há poucos de nós vivos para falar sobre isso. Em 1964 foi lançado Guerra em surdina sobre o mesmo tema, em meio ao início da ditadura militar. O senhor sofreu algum tipo de intimidação? Aquele livro era algo entre considerações pessoais e ficção. É um relato da guerra escrito no plano interior e expressava o que vai por dentro de um indivíduo naqueles momentos. Por isso o nome Guerra em surdina. Já Caderno italiano trata de minhas memórias do período e é uma narração autobiográfica. Em 1964 não aconteceu nenhuma reação extremada, embora o livro fugisse dos relatos oficiais da FEB. Sofri depois, por causa de algumas atitudes de protesto durante a ditadura militar.

Saímos do Brasil, onde havia uma ditadura, para lutar na Europa e defender a democracia alheia

Em Caderno italiano, o senhor escreveu que se sente frustrado com a imagem que ficou da campanha brasileira na Segunda Guerra, considerada ora excessivamente edificante, ora desprovida de qualquer importância. Por que essa impressão? Conto no livro que me defrontei no Brasil com uma ignorância completa em relação ao que fomos fazer na Itália. Nossa participação na guerra era algo estranho. Vínhamos do Brasil, onde havia uma ditadura de tendência fascista, para lutar na Europa e defender a democracia alheia. A maioria dos soldados não tinha nenhuma vontade de lutar e não entendia por que estava ali. No entanto, eles lutaram e se saíram relativamente bem. Para mim foi uma situação muito esquisita, um paradoxo da história. Num momento, ouvíamos as arengas pró-Eixo do governo 26 | outubro DE 2015

estava lá e vi isso. Essa é uma das perplexidades que me acompanham até hoje: esses lutadores eficientes não percebiam ter um ideal para lutar. Por que voltou ao tema 70 anos depois da guerra e qual a razão de se sentir impotente diante das histórias sobre ela? Ainda tenho essa necessidade de mostrar o que realmente aconteceu, segundo o que vi. Quero lembrar que os brasileiros foram para a guerra e lutaram, mesmo que a maioria não estivesse motivada. Também fico inconformado ao ver que prevalece uma versão menos deprimente do que a minha sobre os acontecimentos que ocorrem durante as guerras, quando todos os conceitos de civilização e

Chegou a ser preso? Fui detido quatro vezes. Como outros, eu protestava por causa da situação política e participava de manifestações fora e dentro da universidade. Embora fosse naturalizado, sentia-me totalmente brasileiro, esquecia que não tinha nascido aqui. Em uma das vezes fui detido dentro da sala de aula. Mas nunca fiquei realmente preso nem sofri a violência que


fotos  Acervo pessoal / Caderno Italiano

outros professores sofreram. Era “convocado” para dar explicações por algumas horas e depois liberado. Também não cheguei a ser cassado pelos atos institucionais editados pelo regime militar. Vamos falar um pouco mais sobre o início de sua trajetória. Sua família saiu de Odessa quando o senhor tinha 8 anos. Por que seus pais escolheram o Brasil? Não sou de Odessa, fui para lá com 1 ano de idade. Nasci em Úman, uma cidade de tamanho médio da Ucrânia. Tivemos de sair porque logo depois da revolução russa ocorreram pogroms, massacres de judeus em algumas cidades no leste da Europa. Minha primeira infância foi em Odessa e tive formação totalmente russa. Quando quisemos emigrar não havia muitas possibilidades de escolha. Ia-se para onde se conseguia visto. Um primo tinha saído alguns meses antes por ter ficado muito revoltado, ao ser excluído da universidade por não vir de família proletária. Saiu clandestinamente por Viena, andou por várias embaixadas, consultando onde poderia se acomodar, e foi aceito pela do Brasil. Veio para São Paulo e começou trabalhando como pedreiro na construção civil. Depois se formou em engenharia e teve alguns cargos importantes. Chamava-se Pedro Pasternak. Ele nos escrevia contando maravilhas do Brasil. Acabamos vindo para cá e ficamos morando no Rio de Janeiro. Como meu pai era comerciante, durante algum tempo morou também em Porto Alegre.

Brasileiros em Camaiore, Itália, ocupada pela FEB. Abaixo, Schnaiderman dois dias depois do fim da guerra

Por que optou por cursar agronomia? Quando tinha uns 13 anos, por alguma razão eu disse que queria ser agrônomo. Um pouco depois, entre os 14 e 15 anos, passei por uma grande crise de identidade e me senti mais brasileiro do que antes. Ao mesmo tempo, comecei a me ocupar da literatura, que era o que me agradava mais. Para todos os efeitos, no entanto, a família já havia me destinado à agronomia e fiz o curso. Atuou na área? Sim, por vários anos trabalhei como engenheiro agrônomo. Cursei a Escola Nacional de Agronomia do Rio e me formei em 1940, aos 23 anos. Em seguida me naturalizei, prestei o serviço militar e fui para a guerra. Na volta, morei alguns anos em São Paulo e trabalhei em Barbacena, cidade de Minas Gerais. E o que o levou a desistir definitivamente da profissão? Agronomia era o ganha-pão, embora eu tivesse certo gosto nesse trabalho. Antes da guerra, eu já tinha conseguido um emprego na Baixada Fluminense, no Instituto de Ecologia Agrícola, que depois passou a se chamar Instituto de Ecologia e Experimentação Agrícolas. Quando a guerra acabou continuei lá por pouco tempo. Eu queria me ocupar de alguma coisa mais literária, que envolvesse textos, e acabei trabalhando na Agência Tass, a Agência Telegráfica da União Soviética. Secretariei o correspondente da

Tass, Iúri Kalúguin, por pouco mais de um ano, logo depois de 1945. Então o senhor, de certo modo, trabalhou com jornalismo. Gostava dessa área? Trabalhei com gosto, embora não fosse o ideal. Fazia resumos e traduções de notícias que saíam em jornais brasileiros. Eu auxiliava o jornalista russo, que escrevia. Aos poucos, as coisas foram ficando muito difíceis para quem vinha da União Soviética e trabalhava em instituições soviéticas. Meu pai, que era comerciante e naquele tempo fazia a distribuição de filmes russos no Brasil, disse que estava precisando de minha ajuda. E deixei a Tass. Depois disso o senhor foi para Barbacena e nos anos 1950 se fixou em São Paulo. O que o trouxe aqui? Fiquei em Minas de 1948 a 1953 dirigindo o Núcleo de Agricultura da Escola Agrotécnica de Barbacena. Minha primeira mulher, Regina, era química e depois se tornou psicanalista. A mãe dela morava em São Paulo e teve câncer. Viemos para cá ajudá-la e me vi sem emprego. Certo dia, li um anúncio no jornal pedindo gente que soubesse línguas. Arrisquei e me apresentei. Acabei contratado para trabalhar na redação de uma enciclopédia, a Mérito, da editora norte-americana Jackson. Fui um dos redatores e devo ter escrito alguns milhares de verbetes. Eles tinham um escritório instalado aqui em São Paulo em uma situação muito estranha. PESQUISA FAPESP 236 | 27


Jipe da Central de Tiro brasileira carregado de soldados atravessa o rio Panaro, na Itália

Estranha por quê? Por muito tempo a enciclopédia não saía do comecinho da letra A, parecia que nada funcionava. Era evidente que a matriz norte-americana não iria permitir isso por muito mais tempo. Havia um supervisor para a América Latina que era colombiano e aparecia só de vez em quando. Até que um dia fizeram uma limpeza geral, demitiram quase todos e fui um dos que ficaram, junto com outros dois ou três redatores. Trabalhei sete anos lá. Não fiquei até o final por ter sido escolhido para iniciar as aulas de russo na USP, em 1960. E mais tarde me tornei o responsável pelo curso de língua e literatura russas da USP. O senhor era agrônomo, sem formação em letras. Como foi contratado? Minhas traduções diretamente do russo para o português já eram bem conhecidas e foi o que bastou para servir como atestado de competência. Mas tive de me tornar autodidata em letras. Seu editor na Perspectiva, Jacó Guinsburg, outro autodidata, já disse que o autodidatismo pode ter um alto preço. O senhor concorda com isso? Plenamente. O autodidata tem a vantagem de aprender livremente, mas sofre muito mais para achar os melhores caminhos sozinho, o que acaba levando muito mais tempo do que na educação formal. Na USP acabei achando esses caminhos. Eu já havia tido experiência anterior como professor na Escola Agrotécnica de Barbacena, embora a USP fosse completamente diferente. Dei-me bem no ambiente paulistano universitário. Depois de alguns anos fiz um doutorado. 28 | outubro DE 2015

Quem foi seu orientador? Antonio Candido. Ele me aceitou, mas disse que não iria me orientar de fato. Àquela altura, ele dizia que eu conseguiria me defender sozinho e que apenas assinaria a tese. Deu-me toda a liberdade e confiança. Quando terminei, levei para ele, que leu e a aceitou muito bem. Defendi a tese em 1971. O título era A poética de Maiakóvski através de sua prosa, que redundou em livro da editora Perspectiva. Foi antes, então, no começo dos anos 1960, que o senhor conheceu os poetas concretistas Haroldo e Augusto de Campos e iniciou sua colaboração com eles, inclusive traduzindo Maiakóvski? Exato. Foi muito bom o contato, a troca e o trabalho com eles. Com o Augusto me dou bem até hoje [Haroldo de Campos morreu em 2003]. Na época eu não gostava de poesia concreta, mas, como tradutores, eles eram magistrais. O Augusto ainda é. Fui professor particular de russo do Haroldo, enquanto o Augusto se matriculou no curso da USP e foi até o final do segundo ano. Na prática, fui professor dos dois. O Haroldo tinha imensa facilidade e aptidão para línguas. Ambos eram capazes de fazer traduções livres e, ao mesmo tempo, fiéis, o que nunca é fácil. Em Tradução, ato desmedido, o senhor escreveu: “O arrojo, a ousadia, os voos da imaginação, são tão necessários na tradução como a fidelidade ao original, ou melhor, a verdadeira fidelidade só se obtém com esta dose de liberdade no trato com os textos”. No entanto, quando começou sua atividade como tradutor, assinava como Boris Solomonov, e hoje critica

Por que o senhor usava pseudônimo quando começou a traduzir? Comecei a traduzir nas horas vagas de um emprego que eu tinha no Ministério da Agricultura. Na época, eu lia muito em russo, ainda lutava com um problema de bilinguismo e não conseguia me expressar de uma forma satisfatória em português. Fiz várias traduções de um modo um tanto inseguro e, por isso, assinava Boris Salomonov, abreviatura de Salomônovitch, meu patronímico russo [sobrenome derivado do nome do pai ou de um antecessor paterno, obrigatório na Rússia; no caso, Salomônovitch significa “filho de Salomon”, ou Salomão, pai de Boris]. Não era bem um pseudônimo, porque era um nome que eu não usava normalmente, mas era meu nome do meio. Não existiam nem dicionários russo-português no Brasil e eu tinha de ir à Biblioteca Nacional para olhar palavras e termos que não conhecia nos dicionários russo-francês e russo-inglês. Eu ainda não tinha formação e experiência suficiente na tradução e não conhecia pessoas que pudessem me criticar e advertir. Mais tarde, aprendi que nenhuma tradução pode ser considerada concluída, se não houver o cotejo com o original por meio da leitura do traduzido em voz alta. Mesmo assim, na década de 1940, a editora Vecchi encampou meu trabalho. Já me disseram que foi importante publicar os grandes autores russos naquela época em edições populares, como fazia a Vecchi. Mas eu não concordo. As traduções tinham muitos problemas. Qual foi seu primeiro livro traduzido publicado? Comecei logo com Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski, publicado em 1944,

Acervo pessoal / Caderno Italiano

o trabalho daquela época. Dizia que os textos eram um pouco engravatados... Esse livro que você cita é de 2011 e eu já havia aprendido o ofício. Comecei a traduzir no começo dos anos 1940. Os textos eram muito formais, especialmente por causa da revisão. Na editora Vecchi, do Rio, onde comecei a publicar, o revisor queria tudo numa linguagem muito clássica. Se o romancista usava uma linguagem coloquial, como a de Dostoiévski, o revisor substituía por um português castiço e antiquado. O tradutor nem via esse processo acontecer e não tinha poder para contestar isso, na época.


que até foi bem recebido pela crítica. Mas foi também uma temeridade. Se eu conhecesse o livro antes, não teria feito. É uma tradução cheia de defeitos e hoje não a aceito mais. Quando começou a usar o nome Boris Schnaiderman? Apenas em 1959. Publiquei Contos, uma coletânea de Tchékhov em que fiz a seleção, tradução, prefácio e notas para a Civilização Brasileira, do Rio. Acreditava que já estava suficientemente maduro, mas fiquei horrorizado quando vi impresso, porque achei uma série de lacunas e imprecisões. Mesmo assim, Otto Maria Carpeaux fez grandes elogios no então Suplemento Literário do Estadão. Prometi a mim mesmo fazer uma nova tradução melhorada, o que só consegui em 1985, quando saiu com outro título, A dama do cachorrinho e outros contos, para a editora Max Limonad. Continuei insatisfeito com alguns dos contos e em 1999 consegui publicar o mesmo livro na Editora 34, com soluções melhores. Nos anos 1960 minha atividade como tradutor foi grande. Depois de Contos, adotei uma nova técnica: o texto em português já traduzido por mim era lido em voz alta por outra pessoa enquanto eu acompanhava em russo. Levei vários anos para descobrir como essa prática elementar é importante.

toiévski e, no entanto, tento transpor para o português o que eles disseram em russo dentro do contexto da cultura russa. Tenho traduzido grandes autores, como Púchkin, Tchékov, Górki, Maiakóvski. O “ato desmedido” vale para todos eles. Traduzi Khadji-Murát, de Tolstói, pela primeira vez em 1949 e de lá para cá já fiz outras quatro traduções diferentes do mesmo livro, para melhorá-lo e diminuir o que chamo de violência. A última delas saiu em 2010 pela Cosac Naify. Isso aconteceu com muitos outros livros também.

prio de trabalhar. Como conhecia mal a língua, traduzia em voz alta os textos em russo. Dois escritores em início de carreira, Brito Broca e Orígenes Lessa, ouviam a tradução e escreviam em bom português. Até a mulher de Orígenes, Elsie Lessa, traduziu com Zeltzóv pelo menos um livro. A tradução levava só o nome dele, que assinava como George Selzoff, embora a produção fosse conjunta. Ele traduzia, imprimia e vendia. Durou pouco tempo e não saberia dizer se antes alguém mais fez traduções diretamente do russo.

Quem mais gostou de traduzir? O que me causava mais entusiasmo era Tchékhov. Ele morreu cedo, aos 44 anos, e deixou uma obra vasta. Consagrou-se com histórias curtas, embora tivesse escrito de tudo.

O senhor é contemporâneo de Tatiana Belinky (1919-2013), russa naturalizada brasileira que, além de ter sido importante para a literatura infantil no Brasil, também foi uma das pioneiras da tradução de livros direto do russo. Gostava das traduções dela? Muito. Tenho o maior respeito pelo trabalho de Tatiana. A tradução de Almas mortas, de Gógol, é absolutamente admirável. Ela traduziu bastante do russo e também de outras línguas.

Nenhuma versão pode ser considerada concluída se não houver o cotejo com a tradução em voz alta

Isso resolveu os problemas das traduções? Em grande parte, sim. Com essa técnica consegui eliminar muitos equívocos semânticos, mas ainda me choca a linguagem solene demais que usei naquele período. Para alguns escritores podia dar certo. Para Tolstói, com sua rebeldia antiliterária, e Dostoiévski, com sua escrita “relaxada”, não funcionava, era ruim. Essa eterna insatisfação com suas próprias traduções e o hábito de refazê-las constantemente deve ser angustiante. É por isso que o senhor classifica a tradução como um “ato desmedido”? Não tenho dúvidas quanto a isso. Desmedido porque é uma violência pegar uma obra de Tolstói ou Dostoiévski e traduzir. Não sou Tolstói nem Dos-

Como eram as traduções do russo para o português antes de o senhor começar a fazê-las? A maioria derivava das traduções francesas. Até onde sei, as primeiras direto do russo para o português ocorreram no começo de 1930. Entre os amigos dos meus pais havia gente vinda de Riga, na Letônia, de formação russa. Eram pessoas que saíram da União Soviética durante ou logo depois da revolução e foram para os países vizinhos, até conseguir emigrar outra vez. Um deles, Iúri Zeltzóv, veio para o Brasil no final de 1920 e criou aqui a Biblioteca de Autores Russos. Ele tinha um modo pró-

Como o senhor vê a literatura russa no Brasil hoje? Desde o começo do século XX houve um grande interesse pela Rússia e pelos temas russos no Brasil. Na década de 1950, por razões ideológicas, houve um declínio desse interesse. Depois, nas últimas décadas do século XX, voltou a crescer. Hoje vejo uma procura significativa por essa literatura, com lançamentos dos mais diversos autores e boas traduções. E o contrário? Acha que os autores brasileiros seriam apreciados pelos russos? A literatura brasileira é pouco divulgada na Rússia. Se houvesse um bom trabalho de tradução e divulgação, acho que teria público. Quando Jorge Amado foi traduzido por lá, há muito tempo, fazia sucesso e tinha um público grande. Aos 98 anos, ainda traduz? Hoje não faço novas traduções. Apenas melhoro traduções antigas. Enquanto tiver cabeça, continuarei. n PESQUISA FAPESP 236 | 29


política c&T  Gestão Pública y

Reino Unido Além do imunologista Mark Walport, cientista-chefe ligado ao premiê David Cameron, há conselheiros em todos os ministérios e em

Com ajuda da ciência

certos departamentos do governo britânico. Juntos, eles formam uma rede de aconselhamento

Estados Unidos Foi um dos primeiros países a criar o cargo de cientista-chefe, em 1957, função hoje desempenhada por John Holdren. Nas últimas décadas, vários departamentos do governo

Experiências internacionais inspiram governo de São Paulo a criar cargo de cientista-chefe em secretarias estaduais

passaram a contar com especialistas que atuam como consultores

Israel O governo conta com

Bruno de Pierro

cientistas-chefes em cada um dos 13 ministérios. Eles têm a função de auxiliar os ministros em temas referentes a cada pasta. O modelo foi inspirado no sistema britânico

cientista-chefe em 2009. O especialista trabalha auxiliando o governo, mas mantém suas atividades acadêmicas. Esse modelo garante que o cientista tenha contato com o cotidiano da administração pública, sem abrir mão de suas atividades de pesquisa

Comissão Europeia Está implementando um novo modelo de aconselhamento, baseado em um comitê composto por sete cientistas de alto nível, não mais concentrado na figura de um cientista-chefe

30  z  outubro DE 2015

léo ramos

U

ma medida inédita no país anunciada pelo governo do estado de São Paulo pretende aproximar ciência e gestão pública. Até o início de 2016, cada secretaria estadual deverá contar com um cientista-chefe, cuja função principal será apontar as melhores soluções baseadas no conhecimento científico para enfrentar desafios da respectiva pasta. O anúncio foi feito por Márcio França, vice-governador e secretário estadual de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação, na abertura do Fórum Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap), realizado em 27 e 28 de agosto, na capital paulista. A iniciativa é inspirada no modelo de aconselhamento científico praticado em diferentes níveis de governo em países como Estados Unidos, Reino Unido e Israel. A iniciativa começou a amadurecer em uma reunião do Conselho Superior da FAPESP, no dia 18 de março, da qual o vice-governador participou como convidado. Na ocasião, França mencionou a dificuldade de identificar pesquisadores com ideias para auxiliar a gestão pública. A sugestão de

Nova Zelândia Criou a função de


Alemanha

China

Índia

Destaca-se por

Não tem um

Documentos de reuniões

aproveitar as entidades

cientista-chefe ligado

organizadas pelas

representativas da

ao governo. Os tomadores

academias nacionais são

comunidade científica,

de decisão contam com

disponibilizados ao

como agências de

a ajuda de instituições

governo e ao público em

fomento e academias

nacionais, como a

geral. Relatório sobre

nacionais, para obter

Academia Chinesa de

experimentação animal,

consultoria científica em

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Austrália

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governamentais. Alguns

em resposta às demandas

de programas de apoio à

segurança, energia

ministérios dispõem de

parlamentares

inovação em empresas

e meio ambiente

consultores pESQUISA FAPESP 236  z  31


criar a função de cientista-chefe partiu de Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da Fundação. “O professor Brito citou a experiência de países europeus, entre eles o Reino Unido, que criaram o cargo de cientista-chefe em suas estruturas de governo para auxiliar ministros, primeiros-ministros ou presidentes a tomar decisões”, relata Fernando Costa, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membro do Conselho Superior da FAPESP, um dos presentes à reunião.

32  z  outubro DE 2015

2014, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, ofereceu um prêmio de US$ 20 milhões para o grupo de pesquisa que conseguir desenvolver o melhor teste de diagnóstico capaz de reconhecer rapidamente infecções causadas por bactérias resistentes a antibióticos. Segundo informações do Centro para Controle e Prevenção de Doenças (CDC), essas infecções são responsáveis pela morte anual de 23 mil norte-americanos. A ação foi motivada por uma avaliação encomendada pela Casa Branca ao Conselho de Ciência e Tecnologia (PCAST), formado por cerca de 20 especialistas, entre ganhadores de Prêmio Nobel e representantes do setor industrial. O grupo é comandado por John Holdren, professor da Universidade Harvard e conselheiro científico de Obama. Os Estados Unidos têm tradição em aconselhamento científico. Em 1933, o presidente Franklin Roosevelt criou um comitê consultivo formado por cientistas, engenheiros e profissionais da saúde para assessorá-lo. Em 1957, o país foi o primeiro a nomear um cientista-chefe para trabalhar na Casa Branca. Logo departamentos e autarquias passaram a contar com a consultoria de especialistas. Em 1998, a então secretária de Estado, Madeleine Albright, encomendou um relatório para as Academias Nacionais de Ciências dos Estados Unidos sobre o suporte que a ciência poderia dar em assuntos relativos à política externa. A recomendação foi que ela escolhesse um assessor científico. “Minha tarefa é ajudar o governo a aproveitar os recursos da ciência e da tecnologia para embasar a política externa”, disse à Pesquisa FAPESP Vaughan Turekian, assessor científico de John Kerry, o atual secretário de Estado. Ex-diretor internacional da Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS),

fotos 1 universidade de nottingham 2 pete souza / casa branca

N

o encontro, Brito Cruz explicou ao vice-governador que cerca de 55% dos recursos da FAPESP são investidos em pesquisas voltadas para aplicações, e Eduardo Moacyr Krieger, vice-presidente da instituição, acrescentou que quase 30% dos investimentos da Fundação são direcionados para a área da saúde e podem beneficiar diretamente ações da Secretaria da Saúde. “Outros campos, como agricultura, educação e segurança pública, também deveriam aproveitar mais a contribuição de pesquisadores”, afirma Krieger. Márcio França gostou da sugestão. “Pensei: por que não aprimorar o diálogo com a comunidade científica por meio de uma fundação como a FAPESP?”, recorda-se o vice-governador, que levou a ideia ao governador Geraldo Alckmin e recebeu sinal verde para implementá-la. “Essa medida não significa que o governo de São Paulo não vem ouvindo a comunidade científica”, observa Marilza Vieira Cunha Rudge, vice-reitora da Universidade Estadual Paulista (Unesp), também membro do Conselho Superior da FAPESP. Segundo ela, o objetivo é fazer com que os conhecimentos gerados em universidades e instituições de pesquisa do estado sejam absorvidos rapidamente pela administração pública. Uma minuta do decreto está sendo redigida com assessoria da Fundação. Um dos objetivos é que os cientistas-chefes ampliem a aplicação de resultados de pesquisas, entre as quais as apoiadas pela FAPESP, sugerindo articulações com projetos em andamento e propondo novos projetos. O governo analisa agora os detalhes da iniciativa. O primeiro passo será selecionar os cientistas-chefes que atuarão nas secretarias. Segundo França, o mais provável é que se convidem professores vinculados às três universidades estaduais paulistas – a de São Paulo (USP), a Unicamp e a Unesp – que poderiam ou não se licenciar. Também se discute qual seria o prazo mais adequado para o seu mandato. Para França, uma coisa é certa: os cientistas-chefes terão muito trabalho. “Os problemas e os desafios surgem aos montes na administração pública. Todos os dias e nas mais diversas áreas”, observa o vice-governador. A bússola que orienta os caminhos futuros é a dos exemplos internacionais. Em setembro de


em 2010, quando cinzas de um vulcão na Islândia afetaram o espaço aéreo do Reino Unido, e em 2011, após o incidente nuclear de Fukushima, no Japão. O Reino Unido conta com cientistas-chefes em departamentos e ministérios. “Há uma rede de conselheiros científicos dentro do governo. Isso aproximou ainda mais os diferentes ministérios. O professor Walport organiza uma reunião semanal com os conselheiros, que discutem juntos as prioridades de cada área”, disse à Pesquisa FAPESP Robin Grimes, conselheiro-chefe para assuntos “Acredito que São Paulo conseguirá científicos do Ministério se articular melhor com a ciência”, das Relações Exteriores do Reino Unido. “Acredito diz Robin Grimes, do Reino Unido que São Paulo conseguirá se articular melhor com a ciência ao adotar essa medida, além de obter acesso financia pesquisa biomédica. Desde 2013, Walport a conceituadas redes de pesquisadores no Brasil assessora o premiê David Cameron. Um dos pri- e no mundo”, afirmou Grimes. meiros temas tratados por Walport no governo foi o da experimentação animal. Em 2014, após ara James Wilsdon, especialista em política estatísticas mostrarem que o número de animais científica da Universidade de Sussex, Inglautilizados em testes pré-clínicos aumentou nos terra, esses exemplos ajudaram outros paíúltimos anos no Reino Unido, o governo anun- ses a criar modelos de aconselhamento científico ciou medidas para reduzir ou substituir seu uso. adaptados a suas realidades. “Há uma grande vaWalport atuou como ponte entre o governo e a riedade de temas que demandam o olhar da ciêncomunidade científica. Reconheceu a necessida- cia, como mudanças climáticas, pandemias, segude de mudanças, mas salientou que a abolição de rança alimentar e pobreza”, explica Wilsdon em animais em estudos científicos ainda é inviável. um relatório apresentado na conferência da Rede Walport também preside o Conselho de Ciência Internacional para Aconselhamento Científico a e Tecnologia (CST), ligado ao Departamento de Governos (INGSA), realizada em agosto de 2014 Negócios, Inovação e Capacitação do Reino Uni- em Auckland, na Nova Zelândia. A entidade reúne do. O órgão dispõe de uma divisão de especialistas tomadores de decisão e pesquisadores com o objeque forma o Grupo de Aconselhamento Científico tivo de compartilhar experiências e discutir a utipara Emergências (Sage). A equipe foi acionada lização de informações científicas em governos. O documento apresenta uma avaliação dos modelos de aconselhamento adotados em 20 países. Além dos exemplos clássicos, são apresentados casos de países que criaram recentemente o cargo, como a Nova Zelândia, cujo primeiro cientista-chefe, Peter Gluckman, foi nomeado em 2009. O estudo mostra que alguns países optaram por formas de aconselhamento não atreladas à figura de um cientista-chefe. No Japão, o Conselho de Ciência, Tecnologia e Inovação (CSTI) é um dos quatro conselhos que auxiliam o gabinete do primeiro-ministro. Ele é formado pelo primeiro-ministro, seis ministros de Estado e representantes da comunidade científica e do setor industrial. Já países como China, Alemanha, Holanda e África do Sul aproveitam a expertise das entidades representativas da comunidade científica. A Sociedade Alemã de Pesquisas Científicas (DFG), agência não governamental de apoio à pesquisa, é consultada pelo governo e ajuda a elaborar políticas públicas. “Fazemos declarações em comissões do Turekian conta que foi submetido a um rigoroso processo de análise de suas credenciais científicas. “O assessor é nomeado por um período determinado. Isso é intencional. Convém lembrar que o cargo não é uma indicação política”, esclarece. Outra referência é o Reino Unido, que criou o cargo em 1964. A função de cientista-chefe é desempenhada hoje pelo imunologista Mark Walport, ex-diretor do Wellcome Trust, fundação que

1

P

Robin Grimes, do governo britânico, em visita ao campus da Universidade de Nottingham na Malásia, em 2013 (acima, de gravata); e John Holdren, cientista-chefe dos Estados Unidos, que aconselha o presidente Obama (abaixo)

2

pESQUISA FAPESP 236  z  33


1

2

Senado e temos interação direta com o governo”, diz Dietrich Halm, diretor-presidente da DFG para a América-Latina. Segundo Wilsdon, uma das vantagens desse modelo é que os pesquisadores gozam de independência em relação ao governo.

N

a região da América-Latina e Caribe, o relatório do fórum de aconselhamento científico cita os exemplos de Cuba e El Salvador. No modelo cubano, há um escritório de aconselhamento científico vinculado ao conselho de Estado, formado por 31 membros. Embora o Brasil nunca tenha contado com a figura do cientista-chefe, a administração pública no país criou mecanismos de articulação com pesquisadores. “Informalmente, o governo federal é aconselhado pela comunidade científica em vários temas”, disse Aldo Rebelo, então ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). “No meu caso, mantive contato com a Academia Brasileira de Ciências (ABC), com a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e com sociedades científicas.” Segundo o vice-presidente da FAPESP, Eduardo Moacyr Krieger, que também foi presidente da ABC, a atuação do cientista-chefe deve complementar o trabalho que as academias de ciências desenvolvem. “As recomendações dadas pelas academias aos governos estão no plano macro. Já o cientista-chefe está no plano da implementação e do detalhamento do que deve ser feito no cotidiano da administração pública”, diz ele. No estado de São Paulo a assessoria científica ao governo já era praticada em situações específicas, mesmo sem a presença de cientistas-chefes. É o caso da interlocução entre especialistas ligados ao Programa Biota-FAPESP e a Secretaria Estadual do Meio Ambiente. Desde o lançamento do programa em 1999, 23 resoluções e decretos estaduais mencionam resultados do Biota como referência

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3

para a tomada de decisões. Há um canal de diálogo com gestores das unidades de conservação onde são desenvolvidos projetos. “Os pesquisadores costumam ser membros de conselhos consultivos de parques estaduais e outras áreas protegidas”, observa Carlos Joly, professor da Unicamp e coordenador do programa. Os especialistas vinculados ao Biota também trabalham em parceria com instituições ligadas à secretaria, como o Instituto de Botânica, o Instituto Florestal e a Fundação Florestal. E o próprio gabinete da secretária do Meio Ambiente, Patricia Faga Iglecias Lemos, acompanha a produção científica do programa. Outra experiência é a do Conselho Estadual de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde, criado em 2014 para assessorar a Secretaria da Saúde na formulação e condução de políticas. O órgão é composto por representantes de universidades públicas instaladas em São Paulo, institutos, centros de pesquisa, hospitais e entidades ligadas ao setor industrial. “Atualmente, o conselho discute


a proposta de criação de uma política estadual de Feldmann, a trabalhar como seu assessor. “Naciência, tecnologia e inovação em saúde”, explica quele momento isso já não foi visto como algo Sergio Swain Muller, presidente do conselho. “Já incomum. Aos poucos os pesquisadores se deram realizamos oficinas, ouvimos a contribuição das conta da importância de trabalhar em colaboração universidades e estamos preparando um documen- com gestores públicos”, afirma Joly. to com diagnósticos e ações para a consolidação desse plano.” Cabe também ao conselho auxiliar climatologista Carlos Nobre, presidente na definição de prioridades para o próximo edital da Coordenação de Aperfeiçoamento de do Programa de Pesquisa para o Sistema Único de Pessoal de Nível Superior (Capes), guarda Saúde (PPSUS), conduzido pela FAPESP em par- na memória histórias da relação tensa entre políceria com a Secretaria da Saúde, o Ministério da ticos e cientistas. Em 1998, Nobre e sua equipe do Saúde e o CNPq. “Uma das prioridades é apoiar Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climátipesquisas sobre novos mecanismos de gestão pú- cos (CPTEC) encaminharam ao governo federal blica da saúde”, diz Muller. Já no âmbito da Secre- e ao Congresso um parecer prevendo uma seca taria Estadual de Agricultura e Abastecimento foi de grande intensidade no Nordeste nos meses criada em 2002 a Agência Paulista de Tecnologia seguintes, em decorrência do El Niño. “Ninguém dos Agronegócios (Apta), que atua na coordena- nos ouviu”, lembra Nobre. “Acho que não acreção de pesquisas de interesse da ditavam, na época, que fosse pasta. Sua estrutura compreende possível fazer previsão de seos institutos Agronômico (IAC), cas de qualidade com base em Biológico, de Economia Agrícola, modelos matemáticos.” de Pesca, de Tecnologia de AliO vice-governador Márcio “Ajudo o mentos e o de Zootecnia, além França reconhece que há pongoverno a de 15 polos regionais de pesquisa. tos de tensão quando políticos “Prospectamos estudos capae cientistas se encontram. “A aproveitar zes de resolver problemas enquestão é que nem sempre o frentados por agricultores e os consenso científico é financeia vasta gama encaminhamos para a secretara e politicamente viável naria”, diz Orlando Melo de Castro, quele momento”, diz ele. Para de recursos da coordenador da Apta. Um dos Carlos Nobre, que já ocupou ciência”, desafios da secretaria cuja solucargos de gestão de política ção vem sendo debatida entre os científica no MCTI e integra diz Turekian, institutos abrigados pela agência o corpo de especialistas do fóé tornar a cana-de-açúcar mais rum global de aconselhamendos EUA resistente à seca. “O IAC foi proto científico, ainda assim a sicurado, porque já trabalha nesse tuação é melhor hoje. “Amassunto, inclusive em parceria bos os lados perceberam que com usinas localizadas em Goiás, a solução de problemas como onde há um período de seca prolongado. A ideia secas e desastres naturais dependem de ações é aproveitar essas pesquisas em programas da conjuntas”, afirma. secretaria”, explica Castro. Autora do livro The fifth branch: science advisers Para o sociólogo Simon Schwartzman, estu- as policymakers e de artigos que abordam a relação dioso da comunidade científica brasileira e pes- entre ciência, democracia e política, a norte-amequisador do Instituto de Estudos do Trabalho e ricana Sheila Jasanoff, da Universidade Harvard, Sociedade, o país não tem tradição no uso da ciên- adverte que o aconselhamento científico a govercia por gestores públicos. “Claro, há exceções”, nos exige muitos julgamentos. “Requer a tomada pondera. “O Ministério da Saúde conta com um de decisões sobre, por exemplo, se é melhor corcentro de pesquisas próprio, o Instituto Oswaldo rer um risco ou se precaver. É preciso saber como Cruz, assim como acontece com o Ministério da pesar as diversas evidências”, explica. Segundo Agricultura, que tem a ajuda da Embrapa.” Car- ela, o aconselhamento pode de fato auxiliar os los Joly recorda-se que a comunidade científica gestores. “Mas os órgãos científicos consultivos costumava impor barreiras na hora de se sentar precisam operar de forma aberta e transparente. à mesa com políticos. “Colaborei como assessor Isso é exigido por lei nos Estados Unidos”, exde meio ambiente na elaboração da Constitui- plica. Em 2010, o governo britânico divulgou um ção Federal de 1988. Na época, fui criticado por documento no qual recomenda que os níveis de colegas, que pensavam que cientista não deveria incerteza presentes em torno de questões cientíse envolver com assuntos da política”, conta. Em ficas sejam explicitamente identificados nos pare1995, Joly foi convidado pelo então secretário de ceres enviados a gestores públicos, comunicados Meio Ambiente do estado de São Paulo, Fábio em linguagem simples e direta. n

O

fotos 1 beca-ilri hub / marvin wasonga  2 Brendon O’Hagan / ICSU  3 aaas

Mark Walport, cientista-chefe do Reino Unido, em visita a centro de pesquisa no Quênia, em julho (primeiro à esquerda na foto ao lado); Peter Gluckman, cientista-chefe do primeiro-ministro da Nova Zelândia (na foto à direita); e Vaughan Turekian, assessor direto de John Kerry, secretário de Estado norte-americano (abaixo)

pESQUISA FAPESP 236  z  35


Bibliometria y

Cuidado com a maré

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Relatório propõe limites para o uso de indicadores na avaliação científica no Reino Unido

fotos  léo ramos

Fabrício Marques

O

debate sobre a confiabilidade de métodos quantitativos para medir o impacto da produção científica e acadêmica ganhou um novo capítulo com a divulgação, em julho, de um relatório encomendado pelo Higher Education Funding Council for England (Hefce), órgão responsável por financiar e avaliar o sistema universitário e de pesquisa da Inglaterra. Fruto de 15 meses de trabalho de uma equipe interdisciplinar independente, o documento The metric tide (A maré das métricas) aborda a utilidade e o uso abusivo de indicadores no julgamento do mérito de universidades e grupos de pesquisa. Diante da constatação de que se disseminaram parâmetros como indicadores de impacto e rankings universitários, o grupo sugere parcimônia ao empregá-los. “As métricas precisam ser escolhidas com cuidado e devem sempre suplementar e apoiar o julgamento de especialistas, em vez de substituí-lo”, diz Richard Jones, pró-reitor de Pesquisa e Inovação da Universidade de Sheffield, membro do painel que produziu o documento.

O grupo apresentou o conceito de “métrica responsável”, baseado em cinco pontos. Um deles é a humildade, entendida como o reconhecimento de que a avaliação por pares, embora imperfeita e sujeita a equívocos, é capaz de enxergar de forma ampla a qualidade da produção científica, algo que indicadores isolados ainda não conseguem fazer. O segundo ponto é a robustez, condição que exclui o uso de dados descontextualizados ou não suficientemente representativos num processo de avaliação. Segundo o relatório, a ênfase em parâmetros “estreitos e mal desenhados” produz consequências negativas. Um exemplo desaconselhado é a utilização do fator de impacto de uma revista científica para definir a qualidade de qualquer trabalho publicado nela ou o mérito de seus autores. Isso porque tais índices apenas espelham médias observadas em conjuntos de artigos publicados em períodos anteriores. O documento também menciona o uso de citações de artigos como um critério universal de qualidade, sem contemplar as realidades distintas das disciplinas. pESQUISA FAPESP 236  z  37


O terceiro ponto é a transparência, garantindo que a coleta de dados e suas análises sejam abertas e compreensíveis para os pesquisadores e a sociedade. A utilização massiva de rankings universitários é criticada pelo relatório, com o argumento de que falta em muitos deles transparência sobre a escolha de indicadores. O quarto ponto é a diversidade, esforço para adotar um conjunto de indicadores capaz de abranger aspectos variados da contribuição dos pesquisadores. Por fim, o quinto elemento é a reflexividade, compreendida como a preocupação de identificar prontamente efeitos indesejados que o uso de indicadores possa gerar e a disposição para corrigi-los. “A atração pelas métricas só tende a aumentar”, escreveu na revista Nature James Wilsdon, professor da Universidade de Sussex e líder do painel que produziu o relatório. Segundo ele, há demandas crescentes para avaliar o investimento público em pesquisa e educação superior e, ao mesmo tempo, a quantidade de dados sobre o desempenho científico e a capacidade de analisá-los se multiplicaram. “As instituições precisam administrar suas estratégias de pesquisa e, simultaneamente, competir por prestígio, estudantes e recursos.” O assunto é especialmente sensível no Reino Unido porque, a cada cinco anos, suas universidades e grupos de pesquisa são submetidos a um grande processo de avaliação, que define a distribuição de verbas públicas pelo período seguinte. O último deles, o Research Excellence Framework (REF 2014), foi divulgado pelo Hefce em dezembro passado. Cento e cinquenta e quatro universidades submeteram 1.911 itens em 36 campos do conhecimento. Cada item apresentado

reuniu um conjunto de trabalhos científicos, estudos de caso, patentes, projetos de pesquisa em curso, informações sobre o desempenho de pesquisadores e indicadores bibliométricos, vinculado a um departamento ou a um grupo de pesquisa, e foi avaliado por painéis de especialistas. A qualidade da produção científica foi responsável por 65% da avaliação, o impacto da pesquisa fora da academia (uma novidade do REF 2014) valeu 20% e o ambiente de pesquisa, 15%. O julgamento concluiu que 30% das universidades do Reino Unido são líderes mundiais, 46% têm nível internacional de excelência, 20% têm reconhecimento internacional e 3% reconhecimento apenas nacional. discrepâncias

A equipe responsável pelo relatório avaliou os dados do REF 2014 e concluiu que nem sempre indicadores individuais e análise por pares produziam resultados convergentes. Discrepâncias acentuadas foram observadas, por exemplo, no desempenho de pesquisadores em início de carreira. Da mesma forma, a cobertura dos indicadores mostrou-se desigual nos campos do conhecimento, com problemas específicos atingindo em especial o painel de Artes e Humanidades. O relatório recomendou que o

Falta transparência na seleção de indicadores usados por rankings de universidades, diz relatório

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modelo atual do REF seja mantido, baseado na avaliação qualitativa feita por especialistas que podem, porém, considerar indicadores selecionados de forma criteriosa. E sugeriu que se aumentem os investimentos em “pesquisa sobre a pesquisa”, para aprofundar a compreensão sobre o uso de indicadores. O grupo também instituiu um prêmio às avessas, o Bad Metric Prize, para denunciar os usos inapropriados de indicadores quantitativos. Os primeiros premiados serão conhecidos no ano que vem. Enquanto o relatório era produzido, a comunidade científica britânica chocou-se com uma tragédia relacionada à pressão exercida sobre os pesquisadores pelas métricas. Stefan Grimm, por 10 anos professor de toxicologia da Faculdade de Medicina do Imperial College, suicidou-se aos 51 anos de idade. Estava deprimido com o anúncio de sua demissão e deixou um e-mail relatando as sucessivas ameaças que sofreu de seu superior para conseguir um determinado patamar de financiamento para seu laboratório, que ele não conseguiu atingir. O Imperial College anunciou a revisão de seus critérios de avaliação depois do episódio, mencionado na apresentação do relatório. O documento encomendado pelo Hefce perfila-se com textos recentes que defendem ideias semelhantes. Um deles é o Manifesto de Leiden sobre métricas de pesquisa, lançado em setembro de 2014 na 19ª Conferência Internacional de Indicadores em Ciência e Tecnologia, realizada em Leiden, na Holanda. Seus 10 princípios coincidem em grande medida com as recomendações do grupo britânico. Falam, por exemplo, da necessidade de transparência na análise de dados e propõem considerar as diferenças entre


fotos  léo ramos

áreas nas práticas de publicação e citação. Outra referência é a Dora, sigla para San Francisco declaration on research assessment, lançada em dezembro de 2012 em um encontro da American Society for Cell Biology, que faz 18 recomendações para pesquisadores, instituições, agências de fomento e editores científicos. A principal delas propõe eliminar o uso do fator de impacto de revistas como indicador da qualidade de um artigo. Quase 600 instituições científicas e 12,5 mil pesquisadores já assinaram a declaração – o relatório do Hefce sugere que instituições e agências tornem-se signatárias da declaração para orientar publicamente suas práticas no campo da avaliação. A importância de o Reino Unido adotar esse tipo de postura não é desprezível. “Se a maioria dos países ainda está na infância da discussão sobre avaliação, o Reino Unido está alguns passos adiante, querendo sair da adolescência”, observa Sergio Salles-Filho, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador do Grupo de Estudos sobre Organização da Pesquisa e da Inovação (Geopi), que avaliou programas da FAPESP. Ele observa que a inclusão

de novos parâmetros para avaliar a produção científica também é motivada pela necessidade de sofisticar a avaliação, mensurando aspectos diversos ligados a seu impacto na sociedade. “Em certas áreas, o mais importante não é publicar artigos, mas produzir manuais usados na indústria, promover mudanças nas políticas públicas ou mudar as diretrizes da política econômica. Os processos de avaliação estão se transformando e daqui a 20 anos serão muito diferentes.” ciclo completo

O Brasil tem avançado na ampliação de critérios de avaliação. “As agências de fomento não se satisfazem mais em saber apenas qual é o impacto específico de um artigo científico e buscam fazer avaliações de ciclo completo, que acumulam informações sobre o trabalho de pesquisadores e os resultados de programas para medir sua contribuição no longo prazo”, diz, referindo-se ao esforço da FAPESP e mais recentemente da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) de sistematizar um processo de coleta de dados que siga reunindo informações sobre os resultados de pesquisa ao longo do tempo.

Rogério Mugnaini, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), está estudando a diversidade de critérios de avaliação dos programas de pós-graduação feita pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), se baseando em todos os documentos propostos pelas áreas do conhecimento desde 1998. Já observou que as áreas recorrem cada vez mais a indicadores de impacto, mesmo que esses parâmetros não sejam valorizados pela cultura daquela disciplina. “Algumas áreas, como a geografia, estão adotando o modelo de avaliação das ciências duras”, diz Mugnaini. “Como o volume de títulos a ser avaliado é muito extenso, há uma tendência de adoção de indicadores, desconhecendo suas limitações.” Para Salles-Filho, há mais aspectos que precisam ser contemplados na avaliação dos programas de pós-graduação. “Formamos 15 mil doutores por ano no Brasil, mas não sabemos onde estão e o que estão fazendo com o conhecimento e a experiência adquiridos no doutorado, se estão orientando teses, trabalhando no setor público ou na iniciativa privada. Deveríamos ter uma visão dos impactos sociais da formação em pós-graduação”, diz. n pESQUISA FAPESP 236  z  39


Ensino de ciências y

Visões nubladas Com formação precária, jovens brasileiros recorrem à bagagem cultural e religiosa para explicar a evolução dos seres vivos, aponta tese

U

m estudo que comparou o nível de conhecimento científico de alunos no Brasil e na Itália traz um panorama revelador sobre problemas no ensino da teoria da evolução e seu impacto na formação dos jovens brasileiros. O levantamento sugere que a precária formação científica dos estudantes de ensino médio do país os leva a recorrer a sua bagagem cultural e religiosa para explicar a evolução dos seres vivos e a origem da espécie humana, algo que não se observa entre os italianos, que recebem uma educação científica mais sólida. O estudo envolveu as equipes de Nélio Bizzo, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP), e de Giuseppe Pelegrini, docente da Universidade de Pádua, na Itália, e baseou-se na aplicação de um questionário padronizado respondido por estudantes de 15 anos de idade dos dois países. No Brasil, 2.404 alunos de 78 colégios públicos e privados de todos os estados brasileiros participaram

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do levantamento, sorteados aleatoriamente a partir de um plano com rigor estatístico, compondo uma amostra de representação nacional e regional. Os resultados foram publicados na tese de doutorado de Graciela da Silva Oliveira, professora da Universidade Federal do Mato Grosso, que foi defendida em agosto no programa de pós-graduação da FE-USP sob orientação de Bizzo. O estudo mostra que há uma diferença clara na postura dos estudantes dos dois países frente a conceitos da teoria da evolução. Na Itália, um país de forte tradição católica, concepções de mundo científicas e religiosas coexistem no repertório dos estudantes e só eventualmente entram em conflito, com alguns exemplos de alunos que rejeitam a abordagem científica sobre a origem dos seres humanos e das espécies. Eles, porém, exibem familiaridade com conhecimentos científicos e, se os rejeitam, isso não pode ser explicado por falta de entendimento. Já no Brasil, a

realidade é distinta. Falta à maioria dos jovens domínio sobre os conceitos. Por isso, muitos alunos responderam que “não sabem” quando foram indagados se eram falsas ou verdadeiras afirmações como a existência de parentesco entre o ser humano e os outros primatas. “Eles consideram válidas percepções de compreensão mais simples, como a de que os seres vivos mudam ao longo do tempo e que a evolução biológica acontece na natureza, mas se confundem com temas relacionados à ancestralidade comum e à origem humana”, diz Graciela. A principal explicação para o desempenho distante dos dois países tem relação com a educação científica. “Na Itália, as primeiras noções sobre a teoria evolutiva são mostradas aos alunos nas séries iniciais do ensino fundamental e se sofisticam no conteúdo das aulas ao longo da trajetória escolar”, afirma Bizzo. “Desde os 9 anos de idade as crianças italianas estudam a origem do Homo sapiens, e isso tanto nas aulas de ciências


léo ramos

Exposição permanente Do macaco ao homem, no Catavento Cultural, em São Paulo: conhecimento sobre evolução fora da escola

como nas de história.” No mês passado, o Ministério da Educação lançou uma proposta de Base Nacional Comum Curricular (BNC) para o ensino básico do Brasil que será discutida nos próximos meses. “Essa proposta inclui no currículo do 6º ano do ensino fundamental a história evolutiva das espécies. É um avanço. Falta no currículo brasileiro a história da vida na Terra. Se, por exemplo, a paleontologia estivesse presente no currículo de ciências, a dificuldade dos estudantes seria menor”, afirma Bizzo, que coordena o Núcleo de Pesquisa em Educação, Divulgação e Epistemologia

da Evolução (Edevo-Darwin), vinculado à Pró-reitoria de Pesquisa da USP, dentro do qual o levantamento binacional foi feito. O trabalho será complementado com estudos comparativos feitos com estudantes das ilhas Galápagos, no Pacífico, cuja observação inspirou Charles Darwin a formular a teoria da evolução. Os dados da equipe equatoriana farão parte de uma dissertação de mestrado, na Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (Flacso), e estão sendo analisados por Adrián Soria, sob orientação do professor Nicolás Cuvi. O processamento de dados, realizado na USP, revelou que a realidade dos jovens que vivem nas ilhas Galápagos, e que têm contato diário com a realidade que influenciou Darwin, está mais próxima daquela dos jovens brasileiros do que da dos italianos. Para além dos atritos entre o criacionismo, crença que atribui a criação dos seres vivos e da humanidade a um agente sobrenatural, e a teoria de Darwin, que propõe ancestralidade comum entre

seres vivos e sua evolução por seleção natural, existe uma dificuldade de compreensão de conceitos complexos que é agravada pela formação escolar deficiente. “É comum que os alunos criem concepções distorcidas. Muitos acham que as espécies evoluíram de forma rápida e que, de uma geração para outra, surgiram mudanças significativas”, comenta Marcelo Motokane, professor do Departamento de Biologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, especialista no ensino de biologia. “Também têm dificuldade em compreender que as mudanças acontecem em nível populacional e não conseguem conceber escalas de tempo tão diferentes das que estão acostumados a lidar”, explica. pergunta frequente

Visões equivocadas sobre a evolução fazem parte do cotidiano do estudante de biologia Moisés Bezerra da Silva, de 28 anos, que trabalha como monitor da exposição permanente Do macaco ao homem, pESQUISA FAPESP 236  z  41


Alunos do ensino fundamental interagem com reprodução de pinturas rupestres (esq.) e reconstituição de sepultamento de homem que viveu há 28 mil anos na Rússia (dir.), no museu de ciências Catavento Cultural

exibida no museu de ciências Catavento Cultural, em São Paulo. Segundo Moisés, uma das perguntas mais frequentes feitas por estudantes que visitam o museu em caravanas e pelo público de todas as idades que aparece nos fins de semana é: se o homem vem do macaco, por que os macacos continuam a existir? “Quando mostramos as réplicas dos fósseis dos ancestrais do Homo sapiens, como elas foram encontradas e a escala do tempo em que eles viveram, muitas pessoas ficam surpresas e fascinadas”, diz Moisés, que sempre inicia a visita guiada de 50 minutos com um alerta. “Eu explico que a exposição é baseada no conhecimento científico sobre a origem das espécies e que o objetivo não é contestar a crença religiosa de ninguém. E, em tom de brincadeira, sugiro que me convidem para almoçar depois da apresentação se quiserem discutir fé e religião. Mas é comum que alguns 42  z  outubro DE 2015

argumentem que a evolução é uma farsa e que o homem é obra de Deus”, afirma o monitor, que conhece bem os embates entre a ciência e a religião. Criado numa família bastante religiosa, que sempre frequentou a igreja Assembleia de Deus, Moisés cresceu ouvindo as explicações bíblicas para a origem do homem e só foi tomar contato com a teoria da evolução quando ingressou em um curso noturno de biologia de uma faculdade privada de São Paulo, já que as escolas públicas de ensino fundamental e médio que frequentou se eximiram de tratar do assunto. “O curso abriu novas perspectivas para mim”, diz o estudante, que deve se formar no ano que vem. Para conduzir as visitas à exposição, Moisés teve um treinamento com outros monitores e fez um curso de curta duração com o arqueólogo e antropólogo Walter Neves, idealizador da mostra.

Para o professor Marcelo Motokane, além de reforçar o currículo é preciso melhorar os cursos de licenciatura em ciências biológicas. “É comum que os professores não entendam de forma adequada os conceitos da teoria da evolução. E, mesmo quando conhecem, muitos têm dificuldade em evitar que os alunos criem interpretações distorcidas”, afirma. A pesquisa no ensino de ciências, segundo Motokane, tem apontado caminhos para enfrentar esses problemas, como o ensino por investigação, baseado no reconhecimento de um problema e a tentativa de solucioná-lo utilizando o conhecimento científico. “Mas ainda temos um ensino muito baseado na mera transmissão de conceitos.” No cômputo geral, 17% dos estudantes brasileiros afirmaram que “gostariam de ser cientistas” e 29% se disseram interessados em “trabalhar com a ciência”. Segundo Graciela, há indícios de que o interesse dos alunos é maior em escolas mais comprometidas com as aulas de ciências. Estudos qualitativos irão investigar o tema em mais profundidade. Um agravante captado pela pesquisa é que a busca de conhecimento sobre ciências fora dos espaços escolares é rara no Brasil. “Há poucos programas de televisão sobre temas científicos e mesmo o hábito de pesquisar esses temas na internet não é muito difundido”, afirma Graciela. Segundo a pesquisadora, não se observa nas respostas da maioria dos estudantes brasileiros uma perspectiva dogmática, em que a religião muda radicalmente a percepção dos jovens. Mas eles buscam na cultura aquilo que a escola não fornece. “A religião não é a única fonte de resistência. Há fatores culturais e também sociais, como a escolaridade das famílias, que influenciam a visão de mundo dos estudantes”, diz ela.


fotos  léo ramos

A ideia de que a religião não exerce influência de forma isolada é conhecida em outros estudos, mas o levantamento teve o mérito de mapeá-la dentro da realidade educacional brasileira. O nível socioeconômico e o acesso à informação dentro de casa parecem ter alguma relevância. Um exemplo: diante da afirmação de que “os fósseis são evidências de seres vivos que viveram no passado”, os estudantes que declararam ter mais livros em casa responderam “verdadeiro” com maior frequência. Entre os que possuem uma biblioteca em casa com mais de 250 livros, o percentual chegou a 93,9%. Entre os que têm entre 10 e 250 livros, o índice oscilou entre 82% e 84%. Já entre os que não possuem nenhum livro foi de 71,6%, chegando a 79% entre os que têm entre 1 e 10 livros. formação do planeta

Da mesma forma, a escolaridade dos pais parece contribuir de alguma forma para o desempenho dos alunos. No item “A formação do planeta Terra se deu há cerca de 4,5 bilhões de anos”, a distribuição das respostas para a opção “verdadeiro” variou de acordo com o nível de instrução da mãe. Se a mãe não tinha nenhuma

“Há projetos de lei tramitando no Congresso que propõem tratar do criacionismo nas aulas de ciências”, alerta Nélio Bizzo

escolarização, o índice foi de 34,6%; se tinha o ensino fundamental, 42,7%; ensino médio, 47,9%; ensino superior, 53%. Em relação à origem de plantas e animais a partir de espécies presentes no passado, o índice de resposta “verdadeiro” foi de 54,6% para jovens cuja mãe não tinha escolarização e de 73,9% quando as mães tinham diploma universitário. E há, também, a influência da religião, mas o tipo de credo faz bastante diferença.

Na afirmação “A espécie humana descende de outra espécie primata”, os jovens católicos assinalaram com maior frequência a opção “verdadeiro” (47,6%). Significa que pouco menos da metade dos jovens que se declararam católicos rejeitam o criacionismo. Eles são seguidos pelos sem religião (47,4%) e os de outras religiões (35,5%). Quem mais rejeitou a afirmação foram os evangélicos pentecostais e os evangélicos tradicionais (31,5% e 25,4% de opção “verdadeiro”, respectivamente), que também apresentaram a maior frequência na opção “falso”, com 48,1%. “Os resultados indicam que, entre alguns jovens que não reconhecem a mudança dos seres vivos ao longo do tempo, percebe-se com maior intensidade a religião como um importante componente na sua visão de mundo”, diz Graciela. Para Nélio Bizzo, ensino de ciências de qualidade ajudaria a evitar que esse contingente se amplie. “É preciso ficar alerta. Há projetos de lei em tramitação no Congresso que propõem tratar do criacionismo como conteúdo válido nas aulas de ciências. Um dos objetivos do nosso núcleo de pesquisa, que foi criado em 2012, era criar uma referência científica para discutir propostas desse tipo”, diz. n Fabrício Marques pESQUISA FAPESP 236  z  43


ciência  Ornitologia y

Caboclinho-de-papo-escuro (Sporophila ruficollis)

Caboclinho-do-sertão (S. nigrorufa)

Caboclinho-de-barriga-preta (S. melanogaster)

Caboclinho-de-barriga-vermelha (S. hypoxantha)

A origem dos caboclinhos Estudos flagram o processo de surgimento

Caboclinho-de-sobre-ferrugem (S. hypochroma)

de 11 espécies em grupo de aves da América do Sul

O

material genético e a aparência física de 11 espécies de caboclinhos, pequenas aves de áreas abertas da América do Sul que comem sementes e pertencem ao gênero Sporophila, o mesmo de seu primo curió, contam uma história evolutiva singular, ainda em construção, difícil de ser flagrada. Estudos recentes feitos a partir do sequenciamento de diferentes trechos de seus genomas indicam que oito dessas espécies – justamente as que devem ter se originado há menos tempo e vivem próximas entre si, partilhando, às vezes, um mesmo hábitat 44  z  outubro DE 2015

– conservam um DNA extremamente parecido, indistinguível para fins de identificação taxonômica. Segmentos do genoma de uma espécie se encontram misturados ao de outra espécie, formando um mosaico molecular. Ainda assim, os machos de cada espécie apresentam diferenças nítidas em sua morfologia, em especial no padrão de cores e de emissão de sons. “A plumagem e o canto nas aves evoluem de forma mais rápida do que a maioria das diferenças genéticas”, diz Luís Fábio Silveira, curador da seção de Ornitologia do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo

fotos  léo ramos  (s. ruficolis e fêmea claudio timm  S. minuta saulo gomes  s. hypochroma silvia linhares)

Marcos Pivetta


Caboclinho-de-chapéu-cinzento (S. cinnamomea)

Caboclinho-comum (S. bouvreuil)

Os machos de 11 espécies do gênero Sporophila apresentam padrão de cor diferente na plumagem. As fêmeas de todas as espécies compartilham a mesma aparência. O DNA de oito espécies é indistinguível

Caboclinho-lindo (S. minuta)

FÊMEA

(MZ-USP), autor de trabalhos recentes com os caboclinhos ao lado do biólogo evolutivo argentino Leonardo Campagna, que faz estágio de pós-doutorado no Laboratório de Ornitologia da Universidade Cornell, Estados Unidos. Apenas as três espécies mais antigas, o caboclinho-de-peito-castanho (S. castaneiventris), o caboclinho-lindo (S. minuta) e o caboclinho-comum (S. bouvreuil), acumularam diferenças significativas em seu DNA a ponto de os exames moleculares serem capazes de diferenciá-las entre si e das demais. O caboclinho-de-peito-castanho e o caboclinho-lindo vivem em áreas distintas do norte da

Caboclinho-de-papo-branco (S. palustris)

Caboclinho-de-peito-castanho (S. castaneiventris)

Caboclinho-branco (S. pileata)

América do Sul e suas populações quase não têm contato com os exemplares das oito espécies mais jovens. O caboclinho-comum, como seu nome popular indica, é a forma mais abundante e ocorre no Pará, em todo o Nordeste e Sudeste, e em trechos do Centro-Oeste (ver mapa na pág. 47 com a distribuição geográfica das espécies). Sua área de ocorrência tem pontos de interseção com a das demais espécies. “A parte do genoma que produz a diferença morfológica entre as espécies deve ser pequena”, afirma Campagna. Em junho do ano passado, um estudo publicado na revista Nature mostrou que o DNA de duas espécies pESQUISA FAPESP 236  z  45


46  z  outubro DE 2015

europeias de corvo, a gralha-preta (Corvus corone) e a gralha-cinzenta (Corvus cornix), era praticamente idêntico. A diferença equivalia a menos de 0,28% do genoma, apesar da distinção de cores característica de cada ave. De acordo com os trabalhos da dupla Silveira e Campagna, o S. bouvreuil é o parente vivo mais próximo das oito espécies mais jovens de caboclinho, que habitam o sul do Brasil, Uruguai, Paraguai, norte da Argentina e leste da Bolívia. “Antes se acreditava que era o S. minuta”, comenta Campagna. Essas espécies de origem mais recente, que devem ter surgido entre 1,2 milhão e 500 mil anos atrás, são o caboclinho-de-barriga-vermelha (S. hypoxantha), caboclinho-de-barriga-preta (S. melanogaster), caboclinho-de-papo-escuro (S. ruficollis), caboclinho-de-papo-branco (S. palustris), caboclinho-do-sertão (S. nigrorufa), caboclinho-de-chapéu-cinzento (S. cinnamomea), caboclinho-de-sobre-ferrugem (S. hypochroma) e caboclinho-branco (S. pileata). As cinco primeiras estão ameaçadas de extinção. O brasileiro e o argentino, que estudavam em separado os caboclinhos até 2013, quando resolveram trabalhar em conjunto, publicaram dois artigos sobre esse grupo de aves. O primeiro saiu em 2013 no periódico The Auk e o segundo em agosto deste ano na Molecular Ecology. Todos os tipos de caboclinho têm aproximadamente 10 centímetros

de comprimento total e 7 gramas de peso, e são apreciados por seu bonito canto. Fêmeas iguais

Diferentemente dos machos, as fêmeas e as aves jovens das 11 espécies de caboclinhos são muito semelhantes na aparência externa, com plumagem de cores menos chamativas. Isso faz com que seja difícil atribuir a que espécie pertence um exemplar do sexo feminino ou um filhote levando-se em conta apenas esse parâmetro. Em geral, as fêmeas têm o dorso mais escuro, amarronzado, e a parte ventral é mais clara, em tons de oliva. Como a existência de híbridos entre as 11 espécies é praticamente desconhecida na natureza, os pesquisadores acreditam que as aves tenham algum mecanismo, talvez o canto e a distribuição geográfica, que lhes permita reconhecer o parceiro sexual de sua espécie e, assim, reproduzir-se com os companheiros corretos. Também há evidências de que a plumagem das fêmeas possa exibir tonalidades na faixa do comprimento de onda do ultravioleta, invisível ao olho humano, mas não ao das aves. Esse seria um mecanismo extra de reconhecimento entre as espécies. Em gaiolas em sua casa em São Paulo, Silveira está criando as 11 espécies com o intuito de entender os mecanismos que guiam a reprodução dos diferentes tipos de caboclinho. Quando um

fotos  cesar medolago  infográfico ana paula campos  ilustraçãO sandro castelli

Macho de caboclinho-branco faz a corte da fêmea: ave reconhece parceiro da espécie


casal de aves cruza e produz filhotes saudáveis, o ornitólogo assume que a fêmea encontrou o macho de sua espécie. Ele então separa a dupla para posteriores estudos. Se os passarinhos recém-nascidos morrem depois de um tempo, provavelmente houve um cruzamento de duas espécies distintas, que perderam a capacidade de produzir híbridos sadios. “Não dá para descartar a existência de híbridos de caboclinhos, até porque é difícil identificar a espécie dos exemplares juvenis, mas nunca encontrei um deles na natureza”, pondera Silveira. Outra particularidade que dificulta o reconhecimento das espécies é que os machos periodicamente perdem sua típica plumagem colorida, antes de migrar para o norte do país para fugir do frio invernal do sul, e ficam parecidos com as fêmeas. A dupla de pesquisadores acredita estar diante de um caso complexo de especiação em curso, processo evolutivo em que, a partir da população de uma hipotética espécie ancestral, surgem outras espécies. “Essa é uma história que

está em construção há poucos milhões de anos”, afirma Campagna. Por ora, os estudos genéticos e as análises sobre a morfologia e a distribuição geográfica das espécies permitem traçar um cenário aproximado da provável história evolutiva dos caboclinhos da América do Sul. O gênero Sporophila, que literalmente significa comedor de sementes, compreende atualmente 38 espécies. Após a subida do istmo do Panamá, evento geológico que conectou as duas metades do continente uns poucos milhões de anos atrás (as previsões variam de 3 milhões a 12 milhões de anos), exemplares de Sporophila se dispersaram pelas Américas Central e do Norte. Silveira e Campagna trabalharam com um subconjunto de todo o gênero, os chamados caboclinhos do sul, as tais 11 espécies. A maioria dessas espécies foi descrita nos séculos XVIII e XIX. Foram, portanto, alçadas a esse status há mais de um século, quando os taxonomistas usavam fundamentalmente a aparência externa, o canto, o hábitat e o comportamento das aves para diferenciá-las. “Seu esqueleto é idêntico. A partir da análise dos ossos também não é possível distinguir as espécies”, comenta Silveira. Em boa parte dos casos, o nome popular da ave destaca seu principal traço físico, a marca registrada que faz os taxonomistas reconhecê-la em meio a espécies semelhantes.

Hábitat dos caboclinhos As espécies mais antigas vivem no norte da América do Sul e as mais recentes se espalharam pelo centro-sul As relações filogenéticas entre as 11 espécies do gênero Sporophila. A espécie que primeiro divergiu das demais é a S. castaneiventris

Fonte Campagna e Silveira

S. nigrorufa

S. castaneiventris

S. pileata

S. melanogaster

S. hypoxantha

S. bouvreuil

S. cinnamomea

S. palustris

S. minuta

S. ruficollis

S. hypochroma pESQUISA FAPESP 236  z  47


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Espécies de tentilhão de Galápagos com bico grosso (acima) e com bico fino: Darwin percebeu a diferença no século XIX e um estudo recente identificou gene associado a esse traço físico

48  z  outubro DE 2015

surgiram mais ou menos ao mesmo tempo. Elas compartilharam um ancestral comum com o S. bouvreuil e, antes disso, dividiram outro ancestral comum entre elas”, diz Campagna. Os modernos estudos de genética de populações permitem, em alguns casos, calcular quando uma espécie teria surgido. Silveira e Campagna estimam que as espécies derivadas do caboclinho-comum tomaram forma entre 1,2 milhão e 500 mil anos atrás. Nesse momento, as estimativas sugerem que as populações de aves do gênero Sporophila teriam aumentado 10 vezes de tamanho. O gigantismo desse bando ancestral é citado como uma das possíveis explicações para ainda não ser possível ver distinções evidentes no DNA das formas mais recentes de caboclinho. “Espécies derivadas de populações muito grandes demoram mais tempo para fixarem suas diferenças no genoma”, afirma o biólogo argentino. Esse fenômeno se deve aos efeitos da deriva genética, que a cada geração faz com que alguns indivíduos herdem certas características simplesmente por acaso (não em razão da seleção natural, de alguma mutação ou da migração de populações). Os efeitos da deriva são mais lentos em grupos oriundos de populações numerosas. A história dos caboclinhos remete à de outro grupo de aves, os tentilhões das ilhas Galápagos, no Equador. Essas aves se tornaram um exemplo clássico do processo de especiação e de adap2 tação evolutiva e foram citadas no livro A origem das O caboclinho-de-papo-escuro tem, espécies, de Charles Darwin por exemplo, uma mancha negra (1809-1882), que lançou as abaixo do bico e o caboclinho-branbases da teoria da seleção co é a espécie com mais quantidade Plumagem e natural. O naturalista inglês de plumagem alva. canto dos percebeu que o formato do Segundo os estudos recentes da bico dos tentilhões variadupla, que analisou o DNA mitocaboclinhos va nas diferentes ilhas do condrial (herdado apenas da mãe) e arquipélago do Pacífico. O 3 mil marcadores moleculares preevoluíram mais avanço dos estudos evolusentes no DNA desse grupo de aves, tivos mostrou que esse trao representante mais antigo conherápido do que ço físico varia em função do cido dessa linhagem é o caboclinhoa maioria tipo de alimentação disponí-de-peito-castanho, que ocorre no vel no território em que os norte da América do Sul. Os cabodas diferenças tentilhões habitam, da comclinhos foram se diversificando e petição entre as espécies e construindo uma jornada evolutiva genéticas do isolamento geográfico. que os levaria a ocupar também a Em boa parte das ilhas do porção meridional do subcontinenarquipélago do Pacífico, há te. Uma outra população ancestral tentilhões com bicos de forteria, ao longo do processo evolutivo, se modificado e gerado o caboclinho-lindo, mato diferente, adaptados à oferta local de comicujo hábitat por excelência é a Amazônia. Do es- da. Os tentilhões de terra, por exemplo, tendem toque que originou essa espécie derivaria também a ter bicos mais largos, mais hábeis para quebrar o caboclinho-comum, que vive numa vasta porção sementes. Os tentilhões canoros apresentam bido Nordeste e do Sudeste do Brasil e teria sido o cos finos e pontudos, bons para espetar insetos. O casal de biólogos evolucionistas britânico responsável por gerar uma grande diversidade de formas à medida que foi ocupando novas áreas Peter e Rosemary Grant, professores eméritos ao sul do subcontinente. “Ao menos oito espécies da Universidade de Princeton, Estados Unidos,


fotos 1 p. r. grant 2 Putney Mark / Wikimedia Commons  3 jans canon / wikimedia commons 4 Andreas Trepte / www.photo-natur.de

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disse em seu mais recente livro, 40 years of evolution: Darwin’s finches on Daphne Major island (40 anos de evolução: tentilhões de Darwin na ilha Daphne Maior, em tradução livre), lançado em 2014, que os caboclinhos parecem ser uma espécie de versão em terra firme dos tentilhões de Darwin. “Em muitos aspectos, os caboclinhos podem ser o equivalente continental dos tentilhões de Darwin”, escreveram os Grant, que, durante quatro décadas, passaram seis meses por ano em Galápagos. O casal, aliás, foi coautor de um trabalho da Universidade de Uppsala, Suécia, publicado em fevereiro deste ano na Nature que divulgou o sequenciamento de todo o genoma das 14 espécies de tentilhão de Galápagos e uma da Ilha do Coco, também no Pacífico, mas pertencente à Costa Rica. Um dos resultados foi a identificação do gene ALX1 como um dos responsáveis pelo formato dos bicos das aves. Espécie ou variação morfológica

Nem todos os taxonomistas concordam com a ideia de que os 11 tipos diferentes de caboclinho devem ser vistos como espécies distintas. Ainda que a morfologia, alguns hábitos e a distribuição geográfica apresentem particularidades, ao menos oito espécies são praticamente iguais do ponto de vista molecular. “Se não há alterações genéticas que expliquem as diferenças no fenótipo, não há por que considerar algumas formas de caboclinho como espécie”, afirma o biólogo Miguel Trefaut Rodrigues, taxonomista especializado em répteis do Instituto de Biociências (IB) da USP, amigo de Silveira. “Classificar seres vivos é sempre difícil. Mas a genética torna esse trabalho menos impreciso.” Para ele, as oito espécies mais novas de caboclinhos, cujo DNA é indistinguível entre si, deveriam ser consideradas como uma única espécie que apresenta diferentes morfologias, no caso um padrão de cores distinto na plumagem.

Gralha-preta e gralha-cinzenta: as duas espécies europeias de corvo apresentam plumagem de cor distinta, mas seus genomas diferem em menos de 0,28%

O biólogo evolutivo Fábio Raposo do Amaral, docente da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), campus de Diadema, prefere não entrar no mérito da questão se as formas mais recentes de caboclinhos devem ser consideradas como espécies diferentes ou como uma variação morfológica (de aparência externa) de uma única espécie. “No passado recente, fomos ingênuos e achamos que a genômica iria resolver automaticamente as questões taxonômicas mais complexas”, diz Amaral, que trabalha com aves. “Mas os caboclinhos estão numa situação intermediária, em que há um descompasso entre a variação morfológica e a genética. Mesmo com grandes conjuntos de dados em mãos, ainda temos muito o que aprender sobre como surgem as espécies.” Silveira e Campagna esperam realizar novos estudos que talvez consigam encontrar assinaturas moleculares no genoma de cada espécie do gênero, talvez os genes responsáveis por algum traço específico, como fizeram os pesquisadores com o gene ligado à formação do bico nos tentilhões de Darwin. “Nossa ideia é sequenciar trechos do genoma que podem estar ligados à produção da cor nas penas de cada espécie”, diz o curador de seção de ornitologia do MZ-USP. n

Artigos científicos CAMPAGNA, L. et al. Identifying the sister species to the rapid capuchino seedeater radiation (Passeriformes: Sporophila). Auk. v. 130, n. 4, p.645-55. out. 2013. CAMPAGNA, L. et al. Distinguishing noise from signal in patterns of genomic divergence in a highly polymorphic avian radiation. Molecular Ecology. v. 24, n. 16, p. 4238-51. ago. 2015.

pESQUISA FAPESP 236  z  49


Parasitologia y

Parceiros inseparáveis Associação simbiótica entre protozoário e bactéria ajuda a entender a origem de organelas celulares Maria Guimarães

O

s protozoários tripanossomatídeos são famosos por atacar seres humanos, além de plantas e animais de interesse econômico. Destacam-se os parasitas Trypanosoma cruzi, responsável pela doença de Chagas, T. brucei, da doença do sono na África, e os do gênero Leishmania, que causam as leishmanioses. Mas para a parasitologista Cristina Motta, do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), esse não é o aspecto mais interessante desses seres unicelulares. Alguns tripanossomatídeos albergam em seu interior uma bactéria sem a qual são incapazes de viver na natureza. E vice-versa: a bactéria também não sobrevive sozinha. Essa relação de endossimbiose pode ajudar a entender a origem dos eucariotos (organismos com material genético compartimentalizado no núcleo da célula), cujas organelas – como a mitocôndria e o cloroplasto – resultam de associações com bactérias. O que se observa nesses organismos é um passo intermediário na evolução das organelas. “São dois seres diferentes que 50  z  outubro DE 2015

se encontraram, viveram em harmonia e agora formam um só ser, já que um não existe sem o outro”, diz Cristina. Intrigante é o fato de cada protozoário conter apenas uma bactéria: elas se dividem mais depressa que o tempo de geração do hospedeiro, de seis horas, e poderiam ser numerosas dentro da célula. “Mas isso não ocorre, o que indica fortemente que o protozoário controla a proliferação do endossimbionte.” Esse controle rigoroso é importante porque, sem ele, a bactéria pode tornar-se um parasita e dominar, ou até matar, o hospedeiro. Cristina e seus colegas vêm estudando esse controle, como mostram os resultados com as espécies Strigomonas culicis e Angomonas deanei, publicados em junho deste ano na revista Frontiers in Microbiology como parte da tese de doutorado defendida este ano por Carolina Catta-Preta. Usando compostos que inibem o ciclo celular do hospedeiro, mas normalmente não afetam bactérias, os pesquisadores mostraram que a divisão do endossimbionte também é impedida. É mais um indício de que a bactéria perdeu o controle da maquinaria que causa

a sua fissão, agora a cargo do hospedeiro. Com o bloqueio feito em pontos diversos do ciclo celular do protozoário, em alguns casos o endossimbionte começa o processo de replicação do seu material genético, sem conseguir fazer a divisão final, formando assim um longo filamento que contém várias cópias do material genético bacteriano. Normalmente, quando as bactérias se dividem, primeiro duplicam todo o seu conteúdo, inclusive o DNA. Depois se formam o septo e um anel que, por constrição, promovem a formação de duas células-filhas. No caso do simbionte estudado, essas estruturas típicas da divisão bacteriana não se formam. Com sua especialidade em microscopia, anos atrás Cristina já observara a ação coordenada da replicação de Angomonas deanei e da bactéria que vive dentro dele. O primeiro DNA a se replicar no organismo composto é o do endossimbionte, que se alonga apoiado no núcleo do protozoário até dividir-se em dois. Segundo Cristina, o núcleo funciona como referência topológica e a bactéria precisa estar bem posicionada para se dividir


carolina catta-preta / ufrj

Microscopia eletrônica de varredura mostra a divisão de Angomonas deanei, um protozoário com bactéria simbiótica

e garantir que cada novo protozoário carregue um simbionte. Em seguida se divide o cinetoplasto, região especializada da mitocôndria que contém o DNA e está associada à estrutura locomotora do protozoário conhecida como flagelo. Quando o núcleo enfim se divide, o protozoário está pronto para se separar em dois com uma bactéria em cada um, conforme descrito em artigo de 2010 na PLoS One. Falta agora esmiuçar os mecanismos moleculares envolvidos nessa divisão sincronizada de estruturas. Cristina conta com o avanço tecnológico e dos conhecimentos científicos, que proporcionam o desenvolvimento de projetos com genomas, transcriptomas e mesmo com redes metabólicas. “É uma visão mais integrada, que nos permitirá entender mais profundamente essa relação simbiótica”, diz Cristina. Parcerias

A amplitude do trabalho exige a reunião de especialidades diferentes. No Rio de Janeiro, Cristina conta com colegas da UFRJ e do Instituto Oswaldo Cruz. Mas ela também ampliou os horizontes geopESQUISA FAPESP 236  z  51


gráficos e mergulhou nos aspectos celulares e genéticos com a ajuda, em parte, de colaboradores de São Paulo, onde encontrou interlocutores interessados na questão evolutiva. Um deles é o parasitologista Erney Plessmann de Camargo, da Universidade de São Paulo (USP). Renomado por suas pesquisas com T. cruzi (ver entrevista em Pesquisa FAPESP nº 204), desde os anos 1980 ele se interessa pelo estudo da endossimbiose em tripanossomatídeos e mais recentemente empreendeu o sequenciamento de cinco espécies que contêm bactéria simbiótica em parceria com o Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC), em Petrópolis, na serra carioca. Em estudo publicado em 2013 na PLoS One, Cristina fez análises dos genomas de duas dessas espécies e mostrou perda de genes nas bactérias. “É um genoma reduzido, mas bastante funcional, capaz de completar vias biossintéticas essenciais do protozoário hospedeiro”, comenta, comparando a uma árvore bonsai. Esses resultados ajudam a explicar algo que chamou a atenção de Cristina quando tinha 18 anos e começava um estágio no Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho: a baixíssima exigência nutricional de um parasita de insetos quando comparada à de outros tripanossomatídeos. Já naquela época, o microscópio eletrônico ajudou a flagrar a bactéria simbiótica. Mais tarde, o genoma de protozoários e respectivos endossimbiontes corroborou dados obtidos em estudos nutricionais e bioquímicos, indicando uma intensa troca metabólica entre os dois organismos. Graças à bactéria, o protozoário consegue produzir praticamente todos os aminoácidos necessários, enquanto os tripanossomatídeos sem simbionte precisam ter o meio de cultura suplementado. O mesmo vale para o heme, composto à base de ferro, que faz parte de proteínas como a hemoglobina do sangue. “As bactérias sintetizam heme, que acaba sendo importante para o crescimento do protozoário”, conta o biólogo Sergio Schenkman, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), coautor do artigo. “Os protozoários que causam doenças não fabricam heme, por isso precisam ser parasitas.” Para o pesquisador, essa lacuna cria neles um ponto fraco que pode ser usado como arma contra a doença ou para entendê-la. 52  z  outubro DE 2015

Graças à bactéria, o protozoário consegue produzir praticamente todos os aminoácidos necessários

O objetivo é refinar cada vez mais a compreensão desse sistema integrado. Um enfoque na parceria com Schenkman, parte do trabalho de Carolina Catta-Preta, é usar o sistema de interferência de RNA, o RNAi, para influir no ciclo celular de A. deanei. É uma ferramenta mais precisa para manipular pontos exatos do controle da divisão celular, uma vez que sejam identificadas as sequências-alvo no organismo. Resultados ainda não publicados mostram que esse é um caminho promissor para corroborar e aprofundar o que já foi descrito com a ajuda de drogas que bloqueiam a divisão das bactérias, entre outros aspectos. Em colaboração com colegas franceses, das universidades de Lyon e de Bordeaux e do LNCC, Cristina também está detalhando a rede metabólica e o metabolismo energético desses organismos por meio de análises em computador das sequências genéticas identificadas. Origem

A autossuficiência em relação aos nutrientes pode ser essencial nas sete espécies caracterizadas pela endossimbiose. Elas infectam apenas insetos, de nutrição inconstante. “Protozoários que parasitam vertebrados encontram um ambiente nutricional, no sangue ou no interior das células, mais rico”, compara Cristina. Sua associação com o grupo de Schenkman e o da bióloga Carolina Elias, do Instituto Butantan, tem cerca de uma década e busca elucidar aspectos do ciclo celular do protozoário e entender como a bactéria pode coevoluir com a célula hospedeira. “O ciclo celular só era conhecido em T. brucei, que não tem endossimbionte”, lembra o pesquisador da Unifesp. Em sua visão, só é possível compreender um organismo quando se detalha o seu processo de divisão celular para reprodução, a mitose, e quais moléculas o regulam. No caso dos protozoários e seus endossimbiontes, eles ainda não chegaram lá. “Não sabemos como o hospedeiro controla a formação do anel que provoca a divisão das bactérias.”

Ainda há um longo caminho a trilhar para compreender esses organismos compostos, mas o olhar de Cristina vai muito além deles. “Usamos a endossimbionte em tripanossomatídeos para entender como surgiram as organelas na célula eucariota e também a sua estrutura e funcionamento otimizados”, conta. “Estabelecer como o protozoário controla a divisão da bactéria tem relação direta com a origem da mitocôndria na célula eucariota.” Os estudos evolutivos mostram que as bactérias simbióticas das diferentes espécies de tripanossomatídeos têm um único ancestral, conforme mostra o estudo de 2013 na BMC Evolutionary Biology, cujo primeiro autor é o biólogo João Alves, do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP. O estudo indica ainda a transferência de genes de bactérias para o núcleo da célula hospedeira – tanto das endossimbiontes como de outras já perdidas. Algumas dessas transferências gênicas completam vias de síntese de aminoácidos essenciais para o protozoário. A origem única do endossimbionte em tripanossomatídeos é mais um paralelo com o surgimento das organelas, como a mitocôndria, que deriva de um único encontro entre microrganismos. A teoria conhecida como endossimbiótica, que descreve esse acontecimento, se popularizou a partir dos anos 1970, com


O simbionte (verde) lidera o processo de divisão junto ao núcleo (azul). O cinetoplasto (vermelho) se divide em seguida. Estruturas aparecem em reconstrução tridimensional (ao lado) e ao microscópio eletrônico de transmissão (abaixo)

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fotos 1 carolina catta-preta/ufrj  2 modificada de catta-preta et al., 2015, Frontiers in microbiology

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a publicação do livro Origem das células eucariotas, da evolucionista norte-americana Lynn Margulis, mas é bem mais antiga que isso. Em 1905, o biólogo russo Konstantin Mereschkowski propôs que estruturas de células vegetais teriam surgido de uma cianobactéria. De lá para cá uma infinidade de estudos corrobora essa ideia, mas investigar e descobrir como esse processo pode ter acontecido é um privilégio de poucos. Os endossimbiontes dos tripanossomatídeos estão no meio do caminho evolutivo entre bactérias de vida livre e organelas. Tendo perdido a maior parte do seu material genético e da sua parede celular, eles não têm existência autônoma na natureza. Na prática, a associação já funciona como um organismo único, embora seja possível “curar” o protozoário por meio de tratamento com antibióticos. Uma cura útil na pesquisa, mas pouco desejável do ponto de vista do organismo, já que o condena a uma vida em laboratório, com nutrientes fornecidos pelos pesquisadores. “Vejo a endossimbiose em tripanossomatídeos como um caso de amor eterno e isso sempre me incentivou a estudar essa história”, diz Cristina, comparando o casamento entre os dois microrganismos ao interesse que a move. Mesmo dedicando a maior parte de seu tempo ao microscópio, ao laboratório e a análises em computador, Cristina

afirma que sua ferramenta principal de trabalho é o pensamento. Por isso, há mais de 10 anos ela também se dedica a cursar especializações em filosofia e até ministra disciplinas de filosofia para a pós-graduação em biofísica. Esse olhar multidisciplinar vai além da ciência de bancada e lhe dá uma visão ampla. “O parasitismo também é uma forma de simbiose, porque o termo simbiose significa viver junto”, afirma, tornando mais abrangente o fascínio por seu objeto de estudo. “São dois lados da moeda em um único ser: o protozoário é ao mesmo tempo parasita do inseto e hospedeiro do endossimbionte.” n

Artigos científicos CATTA-PRETA, C. M. et al. Endosymbiosis in trypanosomatid protozoa: the bacterium division is controlled during the host cell cycle. Frontiers in Microbiology. v. 6, artigo 520. 2 jun. 2015. ALVES, J. M. P. et al. Endosymbiosis in trypanosomatids: the genomic cooperation between bacterium and host in the synthesis of essential amino acids is heavily influenced by multiple horizontal gene transfers. BMC Evolutionary Biology. v. 13, p. 190. 9 set. 2013. MOTTA, M. C. M. et al. Predicting the proteins of Angomonas deanei, Strigomonas culicis and their respective endosymbionts reveals new aspects of the Trypanosomatidae family. PLoS One. v. 8, n. 4, e60209. 2 jun. 2013. MOTTA, M. C. M. et al. The bacterium endosymbiont of Crithidia deanei undergoes coordinated division with the host cell nucleus. PLoS One. v. 5, n. 8, e12415. 26 ago. 2010.

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biologia molecular y

Aliadas do soro antiofídico Plantas medicinais podem reduzir lesões locais causadas pela picada da jararaca Francisco Bicudo

54  z  outubro DE 2015

Antes de demonstrar a ação dessas plantas, o grupo da Unesp precisou desvendar um enigma sobre o veneno da jararaca. Nos anos 1980, estudos internacionais indicaram que, no veneno da jararaca, as proteínas fosfolipases A2, comuns no veneno de muitas serpentes, apresentam modificações em sua estrutura que potencializam seus efeitos locais. Fernandes e colegas recorreram à cristalografia, principal técnica usada para compreender a estrutura tridimensional de proteínas, e identificaram dois aminoácidos que ocupam posições diferentes nas fosfolipases alteradas. Eles mostraram ainda que os dois tipos de fosfolipases agem de maneira distinta sobre as células musculares. Enquanto as tradicionais provocam o rompimento da célula, as modificadas inicialmente causam danos menores: elas perfuram a membrana celular e geram um desequilíbrio no fluxo de íons que leva a uma morte celular aparentemente mais lenta. Em conjunto, porém, as duas formas aceleram a formação e ampliam a extensão das feridas. “Inicialmente buscamos compreender a organização espacial dos aminoácidos e, em seguida, descrever os mecanismos de

danos às membranas das células”, conta o pesquisador, que publicou as conclusões em 2013 e 2014 no periódico Biochimica et Biophysica Acta. “Eram informações necessárias para buscar um composto capaz de completar a soroterapia”, diz. efeito protetor

Nessa procura, o grupo da Unesp testou moléculas presentes em três espécies de plantas medicinais: o ácido aristolóquico (encontrado em uma planta da Mata Atlântica conhecida como jarrinha ou papo-de-peru), o ácido rosmarínico (da erva-baleeira, nativa da mesma mata) e o ácido cafeico (abundante nas folhas do boldo-baiano ou assa-peixe, de origem africana). Em laboratório, os pesquisadores analisaram o que ocorre com os músculos de camundongos em contato só com o veneno da jararaca e após a adição de cada um dos compostos. “Na primeira situação o músculo é danificado e perde a capacidade de contrair. Já na segunda, com qualquer dessas substâncias, ele se mantém preservado”, explica Marcos Fontes, coordenador do LBME. O próximo passo é buscar parcerias com instituições com reconhecida com-

eduardo cesar

P

or volta de 30 mil pessoas são picadas por serpentes no Brasil a cada ano, segundo dados do Ministério da Saúde. As principais vilãs dessa lista, responsáveis por quase 80% dos casos, são as jararacas, cobras do gênero Bothrops, presentes em todas as regiões brasileiras. A recomendação médica é expressa: quem é picado deve receber o soro antiofídico com urgência. “O soro tem ação sistêmica. Consegue minimizar os distúrbios de coagulação, a insuficiência renal e evitar a morte, mas, no caso das jararacas, não combate lesões locais sérias, como feridas e necroses, que podem levar à amputação de pernas e braços”, afirma o biólogo Carlos Fernandes, do Laboratório de Biologia Molecular Estrutural (LBME) da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu. Buscando alternativas, ele demonstrou que plantas usadas por comunidades tradicionais e indígenas com fins medicinais são eficazes para tratar as lesões locais – os resultados mais recentes foram publicados em julho na revista PLoS One. “Esperamos que uma pomada, por exemplo, possa num futuro próximo complementar o efeito do soro.”


petência na realização de testes com medicamentos, como o Instituto Butantan e a Fundação Oswaldo Cruz, para iniciar ensaios pré-clínicos que possam levar à fabricação de um emplastro ou uma pomada de aplicação local. Catarina Teixeira, do Laboratório de Farmacologia do Butantan, recentemente começou a investigar o efeito antiofídico de algumas substâncias de origem vegetal e considera a diversidade da flora brasileira um arsenal valioso para enfrentar esse problema de saúde pública. Em um estudo feito em seu laboratório, Mônica Kadri, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, confirmou que o extrato da casca de Tabebuia aurea, ipê comum no Pantanal, tem efeito anti-inflamatório e cicatrizante e pode minimizar a ação do veneno da jararaca no local da picada. “Tentar associar o tratamento com plantas à soroterapia é uma linha de pesquisa antiga, mas precisamos de mais articulação entre pesquisadores de diferentes especialidades para torná-la realidade”, comenta Catarina. O desafio imediato dos grupos é verificar se o efeito observado in vitro se mantém in vivo. “O que desejamos”, diz Fontes, “é que um dia, ao ser picada, a pessoa possa de imediato usar uma pomada no local e buscar a aplicação do soro”. n

Projetos 1. Estudos estruturais e funcionais com proteínas de veneno de serpentes nativas, recombinantes e complexadas com inibidores vegetais (n° 2012/06502-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Marcos Roberto de Mattos Fontes (Unesp); Investimento R$ 743.409,00. 2. Estudos estruturais de fosfolipases A2 neurotóxicas (nº 2013/17864-8); Modalidade Bolsa no país – Pós-doutorado; Pesquisador responsável Marcos Roberto de Mattos Fontes (Unesp); Beneficiário Carlos Alexandre Henrique Fernandes (Unesp); Investimento R$ 168.748,00. 3. Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Toxinas (nº 2008/57898-0); Modalidade Projeto Temático-INCT; Pesquisador responsável Osvaldo Augusto Brazil Esteves Sant’anna; Investimento R$ 3.974.330,00 (FAPESP/ CNPq/CAPES).

Artigos científicos

Bothrops insularis ou jararaca-ilhoa, natural da ilha de Queimada Grande, no litoral paulista

FERNANDES, C. A. H. et al. Structural basis for the inhibition of a phospholipase A2-like toxin by caffeic and aristolochic acids. PLoS One. v. 10, n. 7, e0133370. 20 jul. 2015. FERNANDES, C. A. H. et al. A structure-based proposal for a comprehensive myotoxic mechanism of phospholipase A2-like proteins from viperid snake venoms. Biochimica et Biophysica Acta. v. 1844, n. 12, p. 2265-76. 30 set. 2014. FERNANDES, C. A. H. et al. Structural bases for a complete myotoxic mechanism: crystal structures of two non-catalytic phospholipases A2-like from Bothrops brazili venom. Biochimica et Biophysica Acta. v. 1834, n. 12, p. 2772-81. dez. 2013.

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Geologia y

Parque Nacional de Sete Cidades, no Piauí: lineamento transbrasiliano corta a região 1

A fratura-mãe Pesquisas determinam a influência de grande falha na crosta do Brasil na formação das bacias sedimentares do Paraná e do Parnaíba André Julião

I

mensa cicatriz na crosta terrestre que cruza o Brasil, o lineamento transbrasiliano teve influência na formação das bacias sedimentares do Paraná e do Parnaíba. Embora a hipótese fosse discutida há 40 anos, desde que essa estrutura geológica foi descoberta, apenas agora um grupo de pesquisadores das universidades de Brasília (UnB), Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e Estadual de Campinas (Unicamp) conseguiu avançar no entendimento do papel desempenhado pelo lineamento na formação dessas bacias. Os geólogos produziram um retrato mais preciso do subsolo das áreas 56  z  outubro DE 2015

por onde passa o lineamento, que, em quase sua totalidade, se encontra encoberto por sedimentos. As medições feitas na crosta e no manto (camada geológica inferior à crosta) mostram que a quebra do lineamento formou os primeiros depocentros, pontos de acumulação de sedimentos que culminam na formação das bacias. “Muitos outros locais no mundo possuem bacias que tiveram seus depocentros relacionados à reativação de falhas geológicas”, explica Julia Curto, pesquisadora da UnB e primeira autora de um artigo publicado em agosto na Tectonophysics. Nem sempre,

porém, os lineamentos dão início a uma deposição de sedimentos. É preciso que as falhas sejam reativadas – se movimentem – de tempos em tempos, “criando espaços que acomodem esses sedimentos”, diz. As novas análises também geraram um retrato mais preciso do relevo do embasamento das bacias do Paraná e do Parnaíba. O embasamento é a camada mais profunda e antiga, composta por rochas mais densas. É sobre elas que os sedimentos, decorrentes do processo de erosão, se depositam, formando as bacias sedimentares. Para conseguir o retrato do que está por baixo da bacia, os geofísicos cruzaram


Bacia do Parnaíba

Lineamento transbrasiliano

Bacia do Paraná

O lineamento transbrasiliano foi importante para a formação das bacias do Parnaíba e do Paraná (mapa). Na imagem de satélite, a falha geológica Serra Negra, perto da cidade de Bom Jardim de Goiás, em Goiás: um dos poucos lugares em que o lineamento não se encontra totalmente encoberto

fotos 1 ICMBio / MMA  2 Google Maps / Earth / Julia Curto  mapa  Sandro Castelli

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dados magnéticos e de gravimetria. Eles são obtidos por equipamentos embarcados em aviões que sobrevoam a área de estudo e detectam pequenas mudanças nos campos gravitacional e magnético da Terra. Esses dois campos variam conforme a densidade das rochas e suas propriedades magnéticas. Os aparelhos medem os contrastes entre rochas mais e menos densas e com maior ou menor intensidade de magnetização, formando mapas detalhados do subsolo. Foi a primeira vez que os dois métodos foram usados simultaneamente para estudar o lineamento. “O que havia era uma estimativa apenas de gravimetria, que pode levar a grandes imprecisões”, diz Reinhardt Fuck, pesquisador da UnB. Parte dos levantamentos usados pelos pesquisadores foi feita nos anos 1970 no projeto Radam Brasil, que mapeou pela primeira vez o subsolo brasileiro. Foi compilando os dados desses voos que o geólogo Carlos Schobbenhaus, na época no Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), descobriu o lineamento. Os dados mais recentes foram obtidos de sobrevoos realizados pela Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocom-

bustíveis (ANP). “Depois de muito tempo em que praticamente só se explorou petróleo no mar, o Brasil começa a olhar para o continente”, diz Hilário Bezerra, professor da UFRN e um dos autores do estudo. As pesquisas do grupo fazem parte de um projeto financiado pela Petrobras que se encerra em 2015. UMA FALHA BRASILEIRA

“O trabalho traz resultados muito interessantes, pois, até então, alguns autores chegavam a contestar se o lineamento realmente passava por baixo da bacia do Paraná”, afirma Marcelo Assumpção, professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), que não participou do projeto. Na bacia do Parnaíba, ele diz, a influência do transbrasiliano é mais evidente, já que o lineamento reaparece do outro lado, no Ceará. “Agora conseguimos ver exatamente por onde passa o lineamento debaixo da bacia e ainda descobrimos várias regiões subterrâneas que não conhecíamos”, diz David Castro, pesquisador da UFRN que publicou no ano passado um estudo sobre o tema.

O lineamento divide o território nacional em duas grandes regiões. De um lado, a Amazônia, uma porção do Centro-Oeste e pequenos trechos do Ceará e Piauí; do outro, as regiões Sul, Sudeste e todo o resto do Nordeste. Ele começa na Argentina, passa pelo Paraguai e vai até o litoral do Ceará, totalizando 5 mil quilômetros (km) de extensão. Registra profundidades de até 40 km e, em alguns trechos, pode ter 200 km de largura. Como se formou quando a América do Sul e a África ainda faziam parte de um mesmo supercontinente, Gondwana, ele tem uma continuação no continente africano, o lineamento Kandi, que cruza o Saara por cerca de 4 mil km. Essa falha na crosta originou-se no período geológico chamado Ciclo Brasiliano, entre 750 milhões e 540 milhões de anos atrás, quando o cráton do São Francisco se chocou com o cráton amazônico. Crátons são pedaços antigos relativamente estáveis das placas tectônicas. A colisão desses dois blocos gerou movimentação de rochas, misturou as mais recentes com as mais antigas e juntou rochas pobres e ricas em minerais magnéticos. Também foram geradas outras falhas geológicas. Algumas delas foram preenchidas por sedimentos que se depositaram e começaram a formar as bacias. Depois de consolidado, o lineamento voltou a se movimentar. A primeira vez foi no Cambriano, cerca de 540 milhões de anos atrás, e depois no Mesozóico, entre 252 milhões e 65 milhões de anos atrás. Essas movimentações abalaram ainda mais a estrutura do lineamento, misturando mais as rochas e sedimentos à sua volta. Hoje não há choques entre as bordas dos crátons. Eventualmente, em intervalos de milhões de anos, podem ocorrer pequenos movimentos nas bordas, mas o bloco como um todo é estável. Os dados obtidos no projeto do lineamento transbrasiliano continuarão sendo analisados. Uma das ideias é fazer mapeamentos mais detalhados de algumas áreas. Eles podem desvendar com mais precisão a origem das bacias sedimentares que o lineamento cruza. “O natural agora é ir aumentando o zoom”, conclui Julia. n

Artigo científico CURTO, J. B. et al. Crustal framework of the northwest Paraná Basin, Brazil: Insights from joint modeling of magnetic and gravity data. Tectonophysics. v. 655, p. 58-72. 1º ago. 2015.

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FÍSICA y

Segredos da luz Experimento mostra que informação quântica transmitida por fótons resiste aos efeitos da turbulência do ar

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interesse de Osvaldo Farías pela influência da turbulência do ar na propagação da luz levou-o a visitar, há alguns anos, uma exposição em Nova York com o quadro A noite estrelada, de Vincent van Gogh (1853-1890). O físico do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro, queria ver de perto a famosa tela, alvo de estudos feitos por colegas físicos que analisaram suas formas geométricas e concluíram que os vórtices pincelados pelo pintor holandês possuem uma ordem matemática semelhante à das correntezas turbulentas de ar, da água e dos fluidos em geral. Esse paralelismo entre arte e ciência pode ser evocado para explicar um trabalho recente do pesquisador. Da mesma forma que é possível reconhecer a luz distorcida das estrelas no firmamento retratado por Van Gogh, Farías e uma equipe internacional de físicos demonstraram que, se forem codificadas quanticamente da maneira certa, as informações transportadas por um feixe de luz através da atmosfera turbulenta da Terra podem ser recuperadas. O resultado do estudo, publicado em fevereiro deste ano na revista Scientific Reports, abre caminho para o desenvolvimento de tecnologias de transmissão de mensagens confidenciais,

teoricamente à prova de espionagem, por meio de fontes de laser montadas em terra ou embarcadas em navios, aeronaves e satélites. “Nosso experimento foi uma prova de princípio”, explica Farías. “Geramos e transmitimos os estados de luz necessários para implementar um protocolo de criptografia quântica.” Hoje existem sistemas comerciais de criptografia quântica, mas eles usam a rede de fibra óptica, e não a atmosfera, para transmitir dados. A criptografia quântica é considerada mais segura do que a tradicional. É quase impossível ler ou copiar uma chave criptográfica transmitida por meio das propriedades quânticas das partículas que constituem a luz, os fótons. Diferentemente da criptografia clássica, a quântica permite ao receptor da chave, que depois será usada para decodificar uma mensagem secreta, descobrir qualquer tentativa de interceptação. Apesar da inviolabilidade teórica, a estratégia não se mostrou totalmente à prova de espionagem. Nos últimos anos, pesquisadores conseguiram violar sistemas comerciais que usam criptografia quântica. A informação a ser transmitida nessas mensagens pode ser escrita em um código binário semelhante ao dos computadores usando uma propriedade quântica dos

imagem de fundo fragmento da obra A Noite Estrelada de Vincent van Gogh  infográfico ana paula campos  ilustraçãO fabio otubo

Igor Zolnerkevic


fótons chamada de polarização. Essa propriedade pode ser visualizada como uma flecha apontando para um certo sentido – por exemplo, para cima ou para baixo. Assim, um fóton com flecha para cima poderia representar um bit de informação do Informação quântica sobrevive a tipo 0, enquanto um fóton de flecha para viagem através de ar turbulento baixo, um bit do tipo 1. As leis da mecâniPolarização ca quântica permitem ainda que um fóton Fóton apresente uma superposição de estados. No contexto da criptografia, esse fenômeno, que diferencia o mundo clássico Fonte de laser do quântico, tornaria impossível para um Feixe de fótons espião determinar qual estado foi enviado. Preparação Há entretanto um problema em usar do sinal a polarização dos fótons dessa maneira. Tanto o emissor como o receptor da men- cidiram colaborar em um experimento sagem precisam concordar exatamente que usaria filtros q-plate tanto para gecom as definições de “para cima” e “para rar os fótons propostos por Walborn e baixo”. “Imagine um cenário de guerra Aolita quanto para detectá-los. Farías colaborou com o experimenem que alguém em terra precisa enviar uma mensagem secreta para um navio no to desenvolvendo um modo de simular mar”, sugere o físico Stephen Walborn, da em laboratório o efeito que a turbulênUniversidade Federal do Rio de Janeiro cia do ar teria sobre o feixe de fótons (UFRJ), colaborador de Farías. “O balan- transmitindo a informação quântica. “A ço para esquerda e para direita do navio turbulência causada por flutuações da vai criar erros na recepção da mensagem.” temperatura e da densidade do ar age coPara evitar esse problema, Walborn e o mo uma lente que distorce o feixe de luz físico Leandro Aolita, também da UFRJ, de maneira aleatória, como as miragens propuseram em 2007 uma nova maneira sobre o asfalto quente”, explica Farías. de codificar a informação quântica. Eles “Construí uma máquina que mistura, por perceberam que poderiam preparar dois meio de ventiladores, o ar aquecido por estados diferentes de fótons para repre- resistências elétricas com o ar frio do lasentar os bits 0 e 1, cuja aparência não boratório. Quanto maior a diferença de muda quando o receptor da mensagem temperatura entre o ar quente e o frio, gira ou balança em relação ao emissor. maior o grau de turbulência. Assim, a Um 0 seria codificado por um fóton cuja máquina simula o efeito da propagação fase espacial percorre uma trajetória da luz por alguns quilômetros de ar.” Com o experimento, os pesquisadores em espiral, girando em sentido horário, enquanto sua polarização gira, na mes- provaram que o esquema de Walborn e ma proporção, em sentido anti-horário. Aolita funciona. Verificaram que, emboO 1 seria codificado por um fóton com ra a turbulência distorça o feixe laser, o giro da fase e da polarização em senti- filtro q-plate receptor consegue captar dos contrários ao 0. “Esses estados não fótons que preservaram sua informação sofrem mudanças quando há rotações”, quântica. “Mostramos que a informação detectada é confiável”, diz Farías. explica Walborn. “A possibilidade de transmitir inforA ideia permaneceu como uma possibilidade teórica até 2011, quando Aolita mação quântica codificada em estados e Walborn conheceram o físico Fabio que não dependam do alinhamento reSciarrino, da Sapienza Universidade de lativo entre o transmissor e o receptor é Roma, Itália. O grupo de Sciarrino vem interessante para aplicações envolvendo realizando experimentos com fótons de estações móveis”, comenta Carlos Mondiferentes tipos de fases giratórias. Es- ken, especialista em óptica quântica e ses fótons são preparados dessa maneira turbulência da Universidade Federal de quando um feixe de laser atravessa um Minas Gerais. n filtro especial chamado de q-plate, desenvolvido pelo físico Lorenzo Marrucci, Artigo científico da Universidade de Nápoles Federico II, FARÍAS, O. J. et al. Resilience of hybrid optical angular motambém na Itália. Os pesquisadores dementum qubits to turbulence. Scientific Reports. fev. 2015.

mensagens giratórias

Ventos turbulentos

Feixe torcido

Detecção do sinal

BIT-0 Feixe gira em sentido horário e polarização, em sentido anti-horário BIT-1 Feixe gira em sentido anti-horário e a polarização, em sentido horário

Preparadas por um filtro especial, combinações de rotação da trajetória e da polarização dos fótons de um feixe de luz podem representar os bits 0 e 1 de um sinal. A turbulência do ar no caminho distorce a rotação de vários dos fótons. Mesmo assim, alguns sobrevivem à viagem e preservam a informação detectada

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astrofísica y

A

descoberta de um objeto astrofísico dos mais raros e incomuns no Cosmos, feita por um grupo internacional de pesquisadores com participação de brasileiros, pode levar a um entendimento mais refinado de como evoluem as estrelas de alta massa, muito maiores e mais luminosas que o Sol. O objeto é conhecido pela sigla VFTS 352 e se localiza na nebulosa de Tarântula, também conhecida como 30 Doradus, que faz parte da Grande Nuvem de Magalhães, uma das galáxias-satélite da Via Láctea, a cerca de 160 mil anos-luz de distância da Terra. Ele é composto por duas estrelas azuis do tipo O, com uma massa combinada 58 vezes maior que a do Sol, que estão numa fase chamada de “overcontato”. A expressão significa que uma estrela está basicamente colada na outra, compartilhando seu envelope, sua região mais externa. Segundo os astrofísicos, essa situação indica que as estrelas devem estar se fundindo. “Conhecemos apenas outros três sistemas com essa configuração”, explica Leonardo Almeida, que faz estágio de pós-doutorado no Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas

da Universidade de São Paulo (IAG-USP) e é o primeiro autor do artigo que reporta a descoberta, a ser publicado neste mês no periódico Astrophysical Journal. “O VFTS 352 é o mais interessante e importante, pois é o de maior massa e mais quente.” As estrelas do sistema binário já estão compartilhando cerca de 30% do seu envelope. Com o passar do tempo, provavelmente se tornarão uma estrela só. Mas isso não vai acontecer tão cedo. “Embora o sistema deva evoluir muito rápido para o tempo das estrelas, não veremos nada radical nos próximos séculos”, afirma o astrofísico Augusto Damineli, também da USP e coautor do trabalho. O sistema atrai interesse por permitir um estudo prático de um caminho evolutivo diferente para estrelas de alta massa. Até recentemente se imaginava que elas se formassem isoladamente, e não também em duplas como parece ser o caso do sistema VFTS 352. “A teoria de evolução estelar foi feita em cima de estrelas menos massivas e isoladas”, diz Cássio Leandro Barbosa, astrônomo especialista em estrelas de alta massa que não participou do estudo. “Nesse

Rota alternativa Descoberta de sistema com duas estrelas de alta massa em processo de fusão indica um caminho evolutivo diferente para esses astros

Salvador Nogueira

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caso, temos uma violação dupla dessas condições, de modo que elas devem ser diferentes do que prevê a teoria.” As primeiras medições indicam que as estrelas do sistema são mais quentes do que advoga o modelo tradicional. Sua temperatura ultrapassa os previstos 40 mil Kelvin (K). “Descobertas recentes como essa mostram que pelo menos 70% das estrelas do tipo O interagem em sistemas duplos”, diz Damineli. Um aspecto importante é que estrelas desse tipo são as principais fontes de oxigênio existentes no Universo. As estrelas são classificadas de acordo com a temperatura. Esta, por sua vez, pode ser associada à massa, ao menos quando as estrelas estão na chamada sequência principal e usam hidrogênio para alimentar as reações nucleares que as fazem brilhar. As do tipo O são as maiores de todas, seguidas pelas dos tipos B, A, F, G, K e M. O Sol, de porte modesto, é do tipo G. A descoberta do sistema binário foi feita por dois projetos paralelos, o VLT-Flames Tarantula Survey e o The Tarantula Massive Binary Monitoring. Ambos usaram o Very Large Telescope, do


elementos pesados. Ao fim de sua vida, quando a fusão nuclear já não é mais possível, as estrelas de tipo O desaparecem em violentas explosões conhecidas como supernovas. São esses eventos que produzem todos os elementos acima do ferro. Graças a esse ciclo promovido pelas estrelas há mais de 13 bilhões de anos, surgiram os átomos que compõem a Terra e seus habitantes. Os detalhes das proporções de produção desses elementos, no entanto, ainda estão longe de serem resolvidos. "Os astrônomos costumam fazer a contabilidade da produção dos elementos químicos admitindo que as estrelas são isoladas", afirma Damineli. “Descobertas como a VFTS 352 exigem que se refaçam as contas, levando em consideração a elevada duplicidade das estrelas de alta massa.” Em seu estágio final, o sistema VFTS 352 pode produzir o que os astrônomos conhecem como uma explosão de raios gama de longa duração. “Esses objetos, quando explodem a 12 bilhões de anos-luz de nós, chegam a interromper as telecomunicações, se seu eixo de rotação está na nossa direção”, diz Damineli. “Se morrer

Observatório Europeu do Sul (ESO), em suas observações. O achado foi considerado tão importante que motivou até observações feitas com o disputado Telescópio Espacial Hubble. Fábrica de elementos

foto  NASA, ESA, D. Lennon e E. Sabbi (ESA/STScI), J. Anderson, S. E. de Mink, R. van der Marel, T. Sohn, e N. Walborn (STScI), N. Bastian (Excellence Cluster, Munich), L. Bedin (INAF), E. Bressert (ESO), P. Crowther (Universidade de Sheffield), A. de Koter (Universidade de Amsterdã), C. Evans (UKATC/STFC), A. Herrero (IAC), N. Langer (AifA), I. Platais (JHU), e H. Sana (Universidade de Amsterdã) infográfico ana paula campos

O Big Bang, evento que marca o início do Universo, produziu em quantidades significativas apenas dois elementos: hidrogênio e hélio. Teria sido desses átomos primordiais que surgiram as primeiras estrelas, agregadas a partir de nuvens gasosas pela força gravitacional. Conforme a massa começa a se contrair pela gravidade no centro da estrela, a pressão e a temperatura internas se tornam tão grandes que os núcleos de hidrogênio começam a se fundir, formando hélio. É essa a reação que produz a energia do astro. Contudo, quando o hidrogênio no centro da estrela se esgota, o processo recomeça com elementos cada vez mais pesados. Primeiro hélio, depois oxigênio e então ladeira acima na tabela periódica, até chegar ao ferro. Quanto mais massa tem uma estrela, maiores a pressão e a temperatura internas, e maior a capacidade de produzir

dessa forma, por estar a menos de 200 mil anos-luz de nós, mais que um espetáculo, esse sistema será um potencial problema para possíveis planetas habitados que ficarem na direção do feixe de raios gama.” Apontados para a Terra, os raios gama não chegariam a atravessar a atmosfera, mas poderiam detonar a camada de ozônio e, assim, expor a vida aos nocivos raios ultravioleta solares. Isso mostra como certos eventos astrofísicos podem ser hostis à vida, mesmo a distâncias gigantescas. Contudo, Leonardo Almeida lembra que esse evento só acontecerá daqui a milhões de anos: “E a probabilidade de o feixe de raios gama estar na nossa direção é muito, muito pequena”. n

Projeto Distâncias precisas de aglomerados jovens através de binárias eclipsantes massivas (nº 2012/09716-6); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Augusto Damineli (IAG-USP); Beneficiário Leonardo Almeida; Investimento R$ 239.299,28 e US$ 44.400,05.

Artigo científico ALMEIDA, L. A. et al. Discovery of the massive overcontact binary VFTS 352: Evidence for enhanced internal mixing. Astrophysical Journal. No prelo.

O sistema VFTS 352 As duas estrelas têm massa combinada 58 vezes maior que a do Sol e partilham 30% de sua constituição Localizadas na nebulosa de Tarântula, que faz parte da Grande Nuvem de Magalhães, uma das galáxias-satélite da Via Láctea, as estrelas (ponto destacado na imagem ao lado) estão numa fase denominada “overcontato”. Uma está colada na outra, compartilhando sua região mais externa. A temperatura em certas partes do sistema ultrapassa os 40 mil Kelvin (K), mais do que preveem os modelos atuais de formação estelar

Temperatura efetiva (em mil K)

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tecnologia  biotecnologia y

Cabras transgênicas Animais recebem genes humanos e produzem proteínas no leite para tratamento de doenças

Marcos de Oliveira

Gluca: a cabra transgênica da Unifor que tem no leite uma proteína humana para tratamento da doença de Gaucher

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A

cabra Gluca vive num abrigo especial na Universidade de Fortaleza (Unifor), no Ceará. Trata-se do primeiro caprino transgênico da América Latina produzido pela técnica de clonagem com células geneticamente modificadas. O nome vem de uma proteína que ela tem no leite, chamada de glucocerebrosidase, que atua no processamento de glicocerebrosídeos, um tipo de gordura celular. Quem não a produz tem comprometimento de órgãos como fígado, baço e no sistema nervoso central, além de dor nos ossos. Os sintomas fazem parte da caracterização clínica da doença de Gaucher (pronuncia-se Gochê), uma enfermidade genética rara. A Gluca é parte de um experimento iniciado na Unifor para que cabras transgênicas tenham no leite a glucocerebrosidase, que, depois de extraída e purificada, poderá ser transformada em um biofármaco para combater essa doença. Em outubro, o rebanho transgênico instalado no Núcleo de Biologia Experimental (Nubex) da universidade, formado por Gluca e uma cabra clonada da própria Gluca chamada Beta, poderá aumentar. A primogênita está prenhe de dois ou três filhotes – não foi possível definir com precisão pelo ultrassom – com chance de 50% de cada filhote ser transgênico. Isso acontece porque o pai não é um animal transgênico. Quando der à luz, será a primeira vez que Gluca, que nasceu em março de 2014, terá uma lactação normal. Quando ela tinha 6 meses de idade, os pesquisadores induziram a lactação por meio de hormônios para comprovar a presença da proteína no leite. “Quando Gluca estiver lactando, teremos muito mais leite disponível para verificação de sua composição, funcionalidade e testes de purificação”, diz Marcelo Bertolini, que coordenou o projeto na Unifor, onde ficou por seis anos. Desde julho deste ano ele é professor da Universidade Federal do Rio


foto  unifor  ilustrações freepik.com (frasco), titanui.com (pílulas), zcool.com.cn (leite)

Grande do Sul (UFRGS). “Na lactação induzida, a presença da glucocerebrosidase no leite da Gluca variou de 4 a 8 gramas por litro (g/l). Se tivermos a média de 5 g/l com quatro cabras, estará garantido o número de animais necessários para suprir todos os cerca de 700 pacientes que têm a doença de Gaucher no Brasil”, diz Bertolini. Com a Gluca e a Beta, e se os dois ou três cabritos forem fêmeas e tiverem a proteína no leite, estará completo o rebanho para a produção do biofármaco. A disponibilidade do medicamento brasileiro, no entanto, não ocorrerá imediatamente. Será preciso purificar a molécula de proteína do leite e produzir um fármaco injetável, em um processo que pode demorar cinco anos ou mais. A intenção do grupo de pesquisadores é esperar as primeiras análises com o leite natural da Gluca para buscar parcerias em empresas e institutos de pesquisa, requisito fundamental na realização dos testes clínicos e submissão do medicamento à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para aprovação. A empresa Quatro G, parceira do grupo da Unifor, vai receber o leite da Gluca para purificar a proteína. No início do projeto, a empresa, que está sediada no Parque Tecnológico da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), em Porto Alegre, fez a produção das sequências genéticas para a inserção do gene da glucocerebrosidase no genoma da cabra. O desenvolvimento da Gluca se deu pela técnica de clonagem com células geneticamente modificadas. O primeiro passo é introduzir uma sequência genética complexa contendo o gene humano da proteína glucocerebrosidase em células de uma cabra. Quando o gene se incorpora ao genoma do animal, as melhores células são escolhidas pelos pesquisadores para inserção nos ovócitos, que são as células reprodutoras femininas, cujo DNA materno fora removido. Depois, o embrião clonado e transgênico é transferido para uma cabra não transgênica para o estabelecimento pESQUISA FAPESP 236  z  63


Produção biotecnológica de animais transgênicos Na Unifor foi realizada pela primeira vez no Brasil a clonagem com células geneticamente modificadas Material genético

Núcleo é retirado do ovócito Descarga elétrica

1

transgênicas são

descarga elétrica. Abrem-se

escolhidas e inseridas

partir de uma

poros nas membranas das células

em ovócitos caprinos

pequena biópsia

caprinas que permitem a entrada

que tiveram seu DNA

auricular

e integração da construção do

materno removido

de uma cabra são

o gene da glucocerebrosidase

multiplicadas a

humana e um promotor genético para que a proteína

2

da gestação. “A eficiência desse método ainda é baixa, mas o resultado foi positivo considerando o altíssimo valor científico do caprino transgênico”, explica o médico veterinário Leonardo Tondello Martins, professor do Centro de Ciências da Saúde da Unifor. “No experimento que resultou no nascimento da Gluca foram transferidos 858 embriões, divididos entre 60 receptoras. Das 11 prenhezes identificadas, nasceu um animal saudável e transgênico, a Gluca”, conta Leonardo. O projeto recebeu recursos de R$ 2,4 milhões da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) no Programa de Subvenção Econômica captado pela Quatro G, em parceria com os pesquisadores da Unifor. Os animais, da raça anglo-nubiano, foram cedidos pela Esperança Agropecuária, do Grupo Edson Queiroz, que também está ligado à fundação de mesmo nome que mantém a Unifor. Origens distintas

A produção de um medicamento contra a doença de Gaucher no país poderá levar o governo brasileiro a economizar mais de R$ 140 milhões por ano – R$ 200 mil por paciente – com medicamentos importados para os doentes que os recebem gratuitamente. “Estimamos, com dados que temos do mercado, que o uso de animais como biorreatores para 64  z  outubro DE 2015

4

As melhores células

transfecção celular com uma

Células da orelha

uma sequência de DNA contendo

só se expresse no leite

3

É realizado o procedimento de

É produzida em laboratório

DNA no genoma

fármacos complexos pode ficar até 80% mais barato em relação a outras técnicas biotecnológicas”, diz Bertolini. Os medicamentos utilizados contra a doença de Gaucher são o Cerezyme, produzido pela técnica de DNA recombinante, caracterizada pela inserção de um gene de uma proteína em células de ovário de hamster chinês, desenvolvido pela empresa norte-americana Genzyme Corporation, atualmente uma subsidiária da francesa Sanofi. O outro é o Uplyso, da israelense Protalix, que utiliza células de cenoura transgênica na fabricação do fármaco. Esses medicamentos não possuem a própria glucocerebrosidase, mas substâncias que promovem o mesmo efeito. A produção de medicamentos utilizando animais como plataforma tem no mundo dois exemplos que chegaram ao mercado, segundo a Sociedade Internacional de Tecnologia Transgênica (ISTT, na sigla em inglês). O ATryn foi o primeiro, aprovado em 2006 na Europa e em 2009 nos Estados Unidos. Ele foi desenvolvido pela Genzyme Transgenics Corporation (GTC) Biotherapeutics, hoje da norte-americana rEVO Biologics, que disponibiliza a antitrombina alfa a partir do leite de cabras transgênicas. A substância é usada no tratamento de tromboembolismo em cirurgias de pacientes com deficiência congênita da antitrombina

hereditária, doença que provoca coágulos no interior dos vasos sanguíneos. O segundo é o Ruconest, aprovado em 2013, medicamento usado para o angioedema hereditário, mal que atinge pessoas que nascem com deficiência da enzima inibidora de esterase C1 (C1INH). A enfermidade provoca inchaços dolorosos em partes moles do corpo, principalmente no abdômen, rosto e genitais. A solução encontrada pela empresa que desenvolveu o medicamento, a holandesa Pharming, foi expressar e purificar a enzima no leite de coelhas transgênicas. Para o agrônomo Elibio Rech, pesquisador na Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, em Brasília, as empresas farmacêuticas estão muito interessadas em fazer fármacos com animais. “Considero o produto desenvolvido [pelo grupo da Unifor] de extrema importância científica e tecnológica para o país”, diz Rech. Também no Ceará

No Brasil, o experimento pioneiro na área de animais transgênicos também aconteceu em Fortaleza, na Universidade Estadual do Ceará (Uece). No total, já nasceram sete cabras transgênicas desde 2008, em projeto coordenado por Vicente José Freitas, professor da Faculdade de Veterinária da Uece. Os animais têm o gene codificador do fator estimulan-


Cabra mãe não transgênica

Proteína

Gluca

Descarga elétrica

leite

5

8

Para saber se a proteína

Para se tornar um

contendo o gene da

glucocerebrosidase está

medicamento é

realizar a fusão entre os

glucocerebrosidase

presente no filhote, é feita a

preciso purificar a

ovócitos e as células

humana são implantados

indução da lactação aos

proteína do leite e

transgênicas, o que gera

em uma cabra não

6 meses de vida do animal

transformá-la em

embriões transgênicos

transgênica

por meio de hormônios

um produto injetável

elétrica é dada para

te de colônia de granulócitos humanos (hG-CSF), importante para reforçar o sistema imunológico em pacientes que passaram por quimioterapia e estão vulneráveis a infecções oportunistas, como aqueles com Aids. Atualmente existem medicamentos com o mesmo efeito produzidos no exterior que oferecem proteínas análogas sintetizadas por bactérias recombinantes ou ovários de hamster chinês. As proteínas presentes nas cabras transgênicas da Uece e da Unifor são iguais às existentes no ser humano, portanto possivelmente mais fáceis de se adaptarem ao organismo. infográfico ana paula campos  ilustraçãO alexandre affonso  foto uece

7

Grupos de 12 a 15 embriões

Uma nova descarga

6

Fonte Unifor

Os experimentos na Uece foram realizados em parceria com a equipe do professor Antonio Carlos Carvalho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e duas pesquisadoras russas: Irina Serova, do Instituto de Genética Molecular de Moscou, e Lyudmila Andreeva, do Instituto de Citologia e Genética de Novosibirsk. “Conseguimos 600 microgramas (mcg) da proteína por litro (l) de leite das cabras. A única referência que temos foi um projeto da Coreia do Sul, entre dois institutos de pesquisa e a empresa Hanmi, que em experimentos apresentou 50 mcg/l”, conta Vicente.

Aos 10 meses de idade, fêmea transgênica obtida na Uece, da raça canindé

“O nosso problema é encontrar um parceiro empresarial para que possamos purificar a proteína do leite e fazer os testes clínicos. Vão passando os anos e isso não acontece”, lamenta Vicente. “Minha esperança é uma parceria com o Instituto Vital Brasil, no Rio de Janeiro, que no ano passado demonstrou interesse em ter nossos animais transgênicos para purificação [da proteína] e produção do fármaco.” De acordo com o pesquisador, como existem vários medicamentos produzidos por bactérias ou ovários de hamster, embora não sejam de proteínas 100% humanas, as indústrias farmacêuticas não querem mudar o sistema de produção. Ele lembra que o custo da fabricação em animais é menor que em cultivo celular e cita um artigo científico – “Expression systems and species used for transgenic animal bioreactors” – de pesquisadores de duas universidades chinesas e uma japonesa. Eles fazem um resumo mostrando, de maneira geral, que o custo de 50 quilos de proteína por ano seria de US$ 147 por grama (g) do produto em cultivo celular e US$ 20/g em animal transgênico. Para Vicente José, apesar de todas as dificuldades de investir em biorreatores de animais, os experimentos realizados até agora mostram que ainda dá tempo de o Brasil vir a ser uma referência nessa área. n pESQUISA FAPESP 236  z  65


Mamangava (Xylocopa suspecta) em estufa de criação da empresa Florilegus, em Jundiaí (SP) 66  z  outubro DE 2015


Agricultura y

Produção

alada Empresas desenvolvem métodos de criação de insetos para polinização e combate a pragas Evanildo da Silveira

léo ramos

N

inhos da abelha nativa mamangava devem estar disponíveis nos próximos meses para venda a produtores de maracujá. Quando presente na plantação, essa abelha aumenta o número de frutos nos maracujazeiros por meio da polinização. Os insetos estão sendo produzidos ainda em escala-piloto pela empresa Florilegus, de São Paulo, que iniciou as atividades em 2013 com o objetivo de produzir e vender ninhos de mamangava da espécie do gênero Xylocopa. “Em vários países, as pessoas e os governos estão se mobilizando para aumentar a presença de polinizadores, essenciais na cadeia produtiva agrícola, que muitas vezes são afetados com o uso intensivo de inseticidas na lavoura”, explica a zootecnista Paola Marchi, fundadora da Florilegus. “O Brasil, por exemplo, é um dos maiores produtores de maracujá e a presença das abelhas de grande porte, como as mamangavas, é essencial porque as flores não polinizadas não geram frutos. Essas abelhas estão cada vez mais escassas nos cultivos e existe uma demanda crescente pelos serviços de polinização”, diz. Os produtores poderão adquirir ninhos contendo os insetos recém-emergidos, que poderão ser liberados nos cultivos em florescimento. “A quantidade adequada por área e o tempo indicado de permanência nas plantações ainda estão sendo ajustados”, conta Paola. O que se sabe é que essa espécie frequentemente reutiliza seus ninhos antigos e, por isso, pode permanecer nas áreas cultivadas com maracujá por várias gerações. Mas para isso é necessário que haja condições adequadas para sua sobrevivência, pESQUISA FAPESP 236  z  67


não são insetos, mas aracnídeos como as aranhas e os carrapatos) microscópicos, usados no controle biológico de pragas. Duas das espécies, a Phytoseiulus macropilis e a Neoseiulus californicus, combatem outro tipo de ácaro, o rajado (Tetranychus urticae), que causa danos a hortaliças, frutas, flores e outras plantas cultivadas. A terceira, Stratiolaelaps scimitus, é usada no controle do fungus gnats (Bradysia matogrossensis). Mesmo com esse nome, trata-se de um inseto que se alimenta de fungos e ataca as raízes de várias culturas, principalmente durante a formação das mudas. “Produzimos cerca de 100 milhões de indivíduos por mês dessas três espécies na nossa biofábrica”, informa Poletti. “Eles são vendidos aos produtores e revendedores.” Também estabelecida no mercado está a Bug, empresa de Piracicaba, que cria quatro espécies de pequenas vespas parasitoides, além dos hospedeiros nos quais elas são multiplicadas. Trichogramma galloi e Trichogramma pretiosum são utilizadas no controle dos ovos da broca-da-cana (Diatraea saccharalis), uma pequena mariposa que, em sua fase larval, ataca canaviais (ver Pesquisa FAPESP nº 195). “Se o nível de infestação da broca-da-cana chegar a 10% da lavoura, o prejuízo é de mais de R$ 1.000,00 por hectare”, diz Alexandre de Sene Pinto, sócio e diretor de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) da empresa. A empresa cria, ainda, a Telenomus podisi, que parasita os ovos do percevejo-marrom

(Euschistus heros), causador de estragos em culturas como soja, feijão e arroz. A vespinha Bracon hebetor, por sua vez, elimina as larvas de traças de produtos armazenados, como fumo e amendoim. Todas as vespinhas são multiplicadas por meio de outras espécies de insetos, criadas na empresa especialmente para essa função. As duas do gênero Trichogramma e a B. hebetor, por exemplo, são multiplicadas em ovos e larvas da traça Anagasta kuehniella. Telenomus podisi é criada em ovos de seu hospedeiro natural, o percevejo-marrom. “A espécie Trichogramma galloi começou a ser criada em 2001, em pequena escala, mas hoje produzimos cerca de 250 milhões delas por dia, o que é suficiente para tratar 7 mil hectares de cana-de-açúcar no controle de ovos da broca”, conta Sene Pinto. Moscas na fruta

1

A Moscamed, de Juazeiro (BA), uma organização social sem fins lucrativos, tem uma estratégia diferente de controle biológico de pragas. Sua biofábrica produz machos estéreis da mosca-da-fruta-do mediterrâneo (Ceratitis capitata) que são liberados nas plantações de frutas (manga, uva, goiaba, acerola, laranja), principalmente na região Nordeste, para competir com seus congêneres selvagens (ver Pesquisa FAPESP nº 133). O presidente da Moscamed, Jair Fernandes Virgínio, explica que a criação é feita a partir da variedade Vienna 8, desenvolvida pela Agência Internacional de Energia Atômica, que, ao contrário das linhagens selvagens, tem pupas de machos e fêmeas de cores diferentes. Assim, é possível saber nessa fase o sexo do inseto que emergirá. A empresa se aproveita disso para eliminar as fêmeas ainda na fase de ovo com tratamento hidrotérmico. A água a 34°C mata todos os ovos com fêmeas, sobrando apenas os machos, que depois são esterilizados com radiação (raios X ou gama) e soltos na natureza. Antes é feito um monitoramento para estimar o número de moscas existentes no local. “Liberamos

Vespa Bracon hebetor, criada na empresa Bug, ataca larva de traça (Ephestia sp.) 68  z  outubro DE 2015

fotos 1 bug  2 promip

como a existência de outras plantas das quais elas possam coletar o pólen, fonte de proteína, porque as flores de maracujá fornecem a ela apenas o néctar, que é a fonte de energia. Para desenvolver a tecnologia de criação das mamangavas, a pesquisadora estuda aspectos reprodutivos desses insetos, como a capacidade das fêmeas em gerar descendentes. “Além disso, o armazenamento e o período de incubação de indivíduos imaturos estão sendo testados com diferentes temperaturas para prever e manipular o surgimento das mamangavas”, diz Paola. “Estamos desenvolvendo e aperfeiçoando técnicas para multiplicar os ninhos, como também seu transporte e instalação nos cultivos.” Em outra empresa, a Promip, de Engenheiro Coelho, na Região Metropolitana de Campinas, está em desenvolvimento uma tecnologia para a criação de abelhas nativas para polinização. É uma espécie sem ferrão, conhecida como mandaguari (Scaptotrigona depilis), que vive em colônias e pode polinizar culturas como morango, tomate e café, por exemplo. “Nós começamos o projeto em 2010”, conta o sócio-fundador Marcelo Poletti. “Ele foi dividido em três etapas: avaliação em laboratório da produção em massa, estudo da compatibilidade dos insetos com os produtos químicos usados na agricultura e da eficácia no campo. Estamos na última fase e devemos começar a venda dos ninhos em 2016.” O que a Promip já tem no mercado são três espécies de ácaros predadores (que


Abelha sem ferrão, opção de criação de insetos para polinização, da empresa Promip, da cidade de Engenheiro Coelho (SP)

2

mentais, com tamanhos que variam de 50 a 100 hectares”, diz. “Paralelamente, no mesmo projeto, vamos testar o controle biológico, usando a vespinha Diachasmimorpha longicaudata, que se alimenta da larva da mosca-da-fruta-sul-americana. Essas vespinhas serão liberadas em áreas com presença de frutas nativas.” As empresas produtoras de insetos estão surgindo porque o uso deles na lavoura reduz ou elimina a necessidade de aplicação de produtos químicos como inseticidas. “No sul do país, a traça do fumo é responsável pela perda de até 10% do produto armazenado, além de levar o pequeno agricultor a aplicar inseticidas em ambientes frequentados por ele e sua família, causando intoxicações”, diz Kovaleski. Ainda no Rio Grande do Sul, ele informa que, apenas na cultura da maçã, a mosca-da-fruta-sul-americana causa perdas anuais de cerca de R$ 30 milhões, custo da aplicação dos inseticidas e dos danos na colheita, o que representa 2% da produção. Quanto aos polinizadores, os prejuízos são causados por sua ausência. “A falta deles numa plantação pode causar uma queda da produtividade de até 40%”, diz Poletti, da Promip. n de um a nove machos estéreis para cada selvagem”, explica Virgínio. “Eles vão competir pelas fêmeas. Depois que um macho estéril copula com uma delas, elas vão colocar seus ovos nas frutas que não geram descendentes. Com o tempo e a liberação contínua de machos estéreis, a população das moscas se reduz até um nível em que não causa danos econômicos.” Princípio semelhante será testado pela Embrapa Uva e Vinho, unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária em Bento Gonçalves (RS), mas para outra espécie de mosca-da-fruta, a sul-americana (Anastrepha fraterculus), que danifica frutas cultivadas na região, principalmente maçã e pêssego. A diferença é que serão esterilizados machos e fêmeas, porque nesse inseto não é possível determinar o gênero na fase de pupa.

Por isso, no início dos experimentos de soltura poderão ser observados alguns danos externos em frutos. Mesmo com ovos inférteis, elas continuam a fazer a postura. A proposta é que, com as liberações dos insetos estéreis, as populações da mosca sejam reduzidas. Segundo o pesquisador Adalécio Kovaleski, da área de entomologia da Embrapa Uva e Vinho, as pupas serão produzidas na Estação Experimental de Fruticultura de Clima Temperado (EFCT) da unidade, em Vacaria (RS), e levadas semanalmente para o Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da Universidade de São Paulo (USP), em Piracicaba, onde serão expostas à radiação para serem esterilizadas. “De volta ao Rio Grande do Sul, as moscas adultas estéreis serão liberadas em áreas experi-

Projetos 1. Criação de abelhas solitárias da espécie Xylocopa frontalis (Olivier) em ambiente protegido e em escala comercial para sua utilização na polinização de maracujá e outras culturas de interesse econômico (nº 2013/50035-5); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisadora responsável Paola Marchi Cabral (Florilegus); Investimento R$ 91.246,97. 2. Criação massal e comercialização dos parasitoides de ovos Trissolcus basalis e Telenomus podisi para o controle de percevejos da soja (nº 2005/60732-9); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Alexandre de Sene Pinto (Bug); Investimento R$ 419.460,00. 3. Criação massal e comercialização de Trichogramma Spp e Cotesia Flavipes para o controle de pragas agrícolas (nº 2004/13825-9); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Alexandre de Sene Pinto (Bug); Investimento R$ 474.041,00. 4. Produção massal de colônias de abelhas sem ferrão e uso comercial para a polinização agrícola (nº 2012/51112-0); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Cristiano Menezes (Promip); Investimento R$ 627.224,03 e US$ 3.913,46.

pESQUISA FAPESP 236  z  69


energia y

Usinas versáteis Reaproveitar água em hidrelétrica eleva o abastecimento e o fornecimento de eletricidade para São Paulo e Baixada Santista

L

ocalizada no sopé da serra do Mar, em Cubatão, a usina hidrelétrica Henry Borden é uma importante fonte geradora de energia elétrica. Por meio de tubulações ela capta água da bacia do rio das Pedras, que está interligada à represa Billings, na Região Metropolitana de São Paulo, a 720 metros de altura, para mover o conjunto de turbinas projetado para gerar energia até 880 megawatts (MW) de potência. O empreendimento, no entanto, opera desde a década de 1990 apenas parcialmente, porque a captação da água está limitada, principalmente, pela proibição de reversão contínua das águas dos rios Tietê e Pinheiros para a Billings. Para permitir um aproveitamento maior da usina, o engenheiro civil Sadalla Domingos, professor do Departamento de Engenharia Mecânica da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), propõe a transformação da Henry Borden em uma hidrelétrica reversível. Essa possibilidade tem sido debatida no país – no fim do ano passado a Eletronorte (Centrais Elétricas

70  z  outubro DE 2015

do Norte do Brasil), uma das subsidiárias da Eletrobras, reuniu em Brasília 235 especialistas de Brasil, Portugal, França, Alemanha e Áustria e discutiu aspectos regulatórios e econômicos relacionados a esses empreendimentos. As usinas hidrelétricas reversíveis têm, além do reservatório principal (superior), um segundo lago (inferior), localizado depois da casa de força onde é gerada a energia elétrica. De dia, durante o período de maior consumo energético, a hidrelétrica usa água do reservatório superior para gerar eletricidade, como qualquer outra usina, e a armazena no inferior, etapa inexistente em usinas não reversíveis. À noite, quando o consumo cai, ela bombeia parte da água que passou pelas turbinas de volta para o reservatório superior. Estabelece-se, assim, uma espécie de circuito fechado, com reaproveitamento contínuo da água. Existem atualmente mais de 127 mil MW gerados em usinas reversíveis no mundo – o equivalente ao potencial de nove usinas do tamanho de Itaipu, que tem capacidade de geração de 14 mil

Usina Henry Borden: água desce 720 metros para gerar energia em Cubatão

emae

Yuri Vasconcelos


pESQUISA FAPESP 236  z  71


Circuito fechado Proposta para tornar reversível a Henry Borden, em operação na Baixada Santista desde 1929

São Bernardo do Campo

Sistema Billings e bacia do rio das pedras

720 m

Durante a noite, fora do horário de pico do consumo de energia, a Henry Borden pararia de operar e a água seria bombeada de volta para o alto da serra para ser reutilizada

Serra do Mar

Usina Henry Borden

Estação de bombeamento

MW. “Estados Unidos, Japão, China, Itália e França são os países líderes nesse tipo de empreendimento, criado por volta de 1890 na Europa”, relata o engenheiro Carmo Gonçalves, responsável pela área de tecnologia da Eletronorte e especialista em usinas hidrelétricas reversíveis. O Brasil tem apenas duas hidrelétricas do gênero, de pequeno porte, ambas no rio Pinheiros – a Usina Traição, com 22 MW, e a Usina Pedreira, com 108 MW. Durante o Seminário Técnico sobre Usinas Hidrelétricas Reversíveis no Setor Elétrico Brasileiro, realizado em Brasília, em 2014, foi apresentado o único estudo abrangente sobre o potencial dessa fonte de energia no país. “A Cesp [Companhia Energética de São Paulo] realizou um trabalho de pré-inventário no início dos anos 1980 mostrando que o potencial técnico desse tipo de empreendimento no estado de São Paulo era cerca de 200 mil MW”, destaca o engenheiro civil Paulo Sérgio Franco Barbosa, professor da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Embora não tenham sido realizados estudos de viabilidade econômica para implantação das usinas reversíveis – o que pode reduzir essa estimativa –, o potencial é grande.” O engenheiro explica que uma das principais vantagens das reversíveis é sua contribuição pa72  z  outubro DE 2015

Cubatão

Reservatório inferior

Viabilidade e adequações

Com a solução se pouparia até 7,5 mil litros por segundo de água da Billings e da bacia do rio das Pedras. Ao mesmo tempo, a usina operaria a plena carga

“A transformação da usina Henry Borden em uma hidrelétrica reversível possibilitaria o uso pleno de sua capacidade e pouparia até 7,5 mil litros de água por segundo da Billings, melhorando o abastecimento na região metropolitana de São Paulo”, afirma Sadalla, autor da proposta. “É uma solução importante para o momento atual, de crise no abastecimento, e resolveria um antigo conflito nesse sistema, entre geração de energia e fornecimento de água.” A proposta foi apresentada em junho e agosto na Poli-USP e no Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) e foi recebida pela Empresa Metropolitana de Águas e Energia (Emae), órgão do governo estadual responsável pela operação e pela manutenção da Henry Borden. “O projeto parece interessante, mas é preciso estudos que comprovem sua viabilidade econômica, técnica, institucional e ambiental”, afirma o engenheiro mecânico Fernando José Moliterno, gerente do Departamento de Planejamento e Engenharia da Emae. Para Sadalla, o custo e os benefícios de deixar reversível a Henry Borden vão depender de um detalhado plano ambiental, econômico e de engenharia. Pela proposta do pesquisador da USP, seria preciso fazer duas adequações principais para transformar em uma hidrelétrica reversível o complexo Henry Borden, que é formado por duas usinas, uma externa e outra subterrânea, escavada na rocha. A primeira providência seria construir o reservatório inferior para armazenar a água usada para mover as turbinas – atualmen-

foto emae infográfico ana paula campos  ilustraçãO fabio otubo

Fonte  Sadalla Domingos/USP

Atualmente, um conjunto de tubulações internas e externas leva água do sistema Billings e da bacia do rio das Pedras para o complexo hidrelétrico Henry Borden. Pelo projeto, será construído um reservatório para armazenar a água retirada da Billings

ra o sistema elétrico do país, que funciona de maneira interligada. “Essas usinas poderiam fornecer maior potência ao sistema no horário de pico, evitando oscilações de voltagem e frequência na rede, que ocasionam, muitas vezes, quedas no fornecimento”, explica Barbosa. Além disso, esse tipo de hidrelétrica pode dar suporte à expansão de fontes renováveis intermitentes de energia, compensando os períodos de ausência ou redução da geração elétrica por falta de luz solar (em dias nublados e durante o período noturno) ou vento na produção das usinas solares e eólicas, cada vez mais utilizadas no país. “Por esses motivos, as hidrelétricas reversíveis são vantajosas, mesmo que seu balanço energético seja negativo ao consumir mais energia – para fazer funcionar a estação de bombeamento – do que gerando”, conta o professor da Unicamp. Ele informa que o balanço energético negativo apresentado pelas reversíveis está entre 15% e 25%. Segundo o pesquisador, o grande desafio para sua inserção no Sistema Interligado Nacional (SIN) é o estabelecimento de bases regulatórias e de sua viabilidade econômica.


A Billings, com as águas dos rios Tietê e Pinheiros, serviu ao crescimento das indústrias de Cubatão e da capital

Rio das Pedras no alto da serra do Mar com vista do início das tubulações que levam a água para Cubatão

te, essa água é direcionada para rios da região. A outra seria instalar uma estação de bombeamento e uma adutora para mandar a água de volta para o sistema Billings, no alto da serra (ver infográfico na página 72). “Já temos tecnologia para isso”, garante Sadalla, acrescentando que o reservatório inferior seria construído entre os canais de fuga já existentes, usados para escoar a água da Billings. O complexo da Henry Borden foi iniciado em 1926 e entre as décadas de 1930 e 1960 teve sua potência ampliada até atingir os 880 MW. Para obter uma vazão de água compatível com sua capacidade, o engenheiro Asa White Billings, que projetou a hidrelétrica, concebeu o sistema de reversão do fluxo do rio Pinheiros, que nasce na Billings, cruza a cidade de São Paulo e deságua no rio Tietê. O sistema de reversão permitiu o caminho contrário: as águas do Tietê podem ser desviadas para a represa. Essa obra, que levou mais água para a Billings, realizada nos anos

1940, proporcionou uma importante oferta de energia para a Baixada Santista, impulsionando o crescimento das indústrias de Cubatão e da cidade de São Paulo. Nos anos 1990, no entanto, a crescente poluição dos mananciais da Grande São Paulo levou o governo estadual a restringir o sistema de reversão, a fim de evitar a contaminação da Billings pelas águas dos rios Tietê e Pinheiros. Concebida originalmente para fornecer água para o funcionamento da Henry Borden, a Billings, com o tempo, passou a ser empregada também para o fornecimento de água para a capital e cidades vizinhas. Em 1992, um dispositivo legal, inserido na Constituição paulista, determinou que o bombeamento das águas do Pinheiros para a Billings só poderia ser feito em situações excepcionais, entre elas, para controlar as cheias do rio. Com isso, a vazão de água destinada ao complexo Henry Borden foi drasticamente reduzida, impactando a geração de energia. Quando o sistema de reversão operava plenamente, as usinas produziam em torno de 470 MW e, com a redução da vazão, ela passou a gerar apenas 108 MW médios. Com a proposta de tornar a Henry Borden reversível, a água captada seria enviada de volta – permitindo, assim, aumentar a vazão de retirada e, consequentemente, ampliar a geração de energia. “Parece ser uma ideia interessante, com vantagens tanto para as indústrias e moradores da Baixada Santista quanto para a população da região metropolitana de São Paulo”, afirma Barbosa, da Unicamp. n

pESQUISA FAPESP 236  z  73


pesquisa empresarial y

Affonso Ferro, Guilherme Gibertoni, Jonas Dourado, João Boaventura, Aurelio Da Dalt e Amanda Shiokawa

Ensaio avançado Spectra projeta e constrói simulador de voo e laboratórios de testes para a indústria automobilística Yuri Vasconcelos

Q

uem passa em frente ao prédio da Spectra Tecnologia, localizado em uma rua do Belenzinho, antigo bairro industrial da zona leste de São Paulo, não desconfia da riqueza tecnológica que ele guarda. Um dos galpões da empresa, que ocupa uma área de 5.200 metros quadrados, foi adaptado para acomodar um simulador de voo para helicópteros militares, construído em parceria com o Centro Tecnológico do Exército (CTEx). O equipamento criado pela Spectra para treinamento de pilotos reproduz de forma fiel a cabine dos helicópteros militares Esquilo AS350 e Fennec AS550 e a insere num ambiente virtual 3D. Todos os instrumentos, co-

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mandos, manetes, displays e até os bancos presentes nele estão dispostos da mesma forma que no cockpit dessas aeronaves usadas pelo Exército brasileiro. “Somos a única empresa da América Latina que detém integralmente o conhecimento tecnológico para o projeto e a fabricação desse tipo de simulador”, afirma o engenheiro naval Aurélio Da Dalt, de 61 anos, um dos sócios-diretores da Spectra. “Ele vai complementar o treinamento de pilotos do Exército com um produto de concepção 100% nacional que, até então, só estava disponível em outros países, como França e Estados Unidos.” O projeto para construção do simulador teve início em 2007, em um contrato com o CTEx e foi concluído

em dezembro de 2011. Um ano depois, o equipamento, batizado de Shefe (Simulador de Helicópteros Esquilo e Fennec), foi homologado pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e, em seguida, recebeu a certificação FTD4, de preparação inicial de pilotos. O modelo está atualmente em processo para a homologação como Full flight nível B. Essa qualificação – que varia, em ordem crescente, de A a D – assegura que durante o voo simulado o piloto tenha a mesma sensação do voo real, incluindo os movimentos do helicóptero e suas respostas aos comandos. O equipamento será transferido no próximo ano para o Centro de Instrução de Aviação do Exército (CIAvEx), em Taubaté (SP), que está em reforma.


léo ramos

empresa Não foram poucos os obstáculos para criar esse ambiente virtual. “A empresa desenvolvedora de simuladores normalmente tem o suporte do fabricante do avião ou do helicóptero a ser simulado, que fornece o modelo matemático de voo, além de partes e componentes da aeronave”, explica o engenheiro mecânico João Carlos Boaventura, de 51 anos. A fabricante nacional das aeronaves, uma empresa do grupo francês Airbus Helicopters, não quis repassar informações pelo fato de a matriz possuir estreito relacionamento com fabricantes europeus de simuladores. “Não contamos com esse apoio e tivemos que projetar tudo do zero. O modelo matemático foi feito em conjunto com o ITA [Instituto

Tecnológico de Aeronáutica]”, diz João, o sócio-diretor da Spectra responsável pelas inovações na área de defesa. O projeto também teve apoio do Comando de Aviação do Exército (CAvEx) e do Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial (DCTA) da Aeronáutica. Outro aspecto envolvendo o simulador é que o valor previsto inicialmente pelo Exército para construí-lo mostrou-se insuficiente. Como era do interesse da Spectra a consolidação do projeto – o que lhe daria capacitação para concorrer com as maiores fabricantes de simuladores do mundo –, ela usou dinheiro do próprio caixa para finalizar o Shefe. “O projeto custou R$ 16,8 milhões, mas o contrato com o Exército só cobriu 44% desse va-

spectra

Centro de P&D São Paulo, SP

Nº de funcionários 19

Principais produtos Equipamentos para ensaios de durabilidade, peças e sistemas automotivos, simuladores de helicóptero e de tiro

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lor. Investimos cerca de R$ 9,5 milhões de recursos próprios, mas hoje temos um produto com índice de nacionalização de 92%”, afirma o engenheiro Aurélio, que também é professor do Instituto Mauá de Tecnologia. Concluído há quatro anos, o Shefe passa por um processo de modernização, com a implementação de novos softwares. Um dos profissionais que participam dessa tarefa é a engenheira eletricista Amanda Shiokawa Freitas, 27 anos. “Esse é um trabalho que envolve muita pesquisa para que os modelos matemáticos consigam simular os sistemas da aeronave e o equipamento opere em harmonia, sincronizado e sem atrasos”, diz Amanda, que iniciou sua carreira na Spectra como estagiária, em 2011. SIMULADOR DE TIRO

Outro desenvolvimento da Spectra para a área militar é um simulador de tiro para armamentos leves, conhecido pela sigla Stal. O projeto nasceu por não existir um

Equipamento de teste de carroceria de ônibus, acima, e produção de LEDs de alta potência

equipamento que atendesse aos requisitos do Exército e fosse produzido por empresa nacional. “O simulador de tiro servirá aos centros de treinamento para uma experiência equivalente ao treino feito em campo. O atirador utiliza réplicas de pistola e fuzil usados pelos militares e interage com alvos e a simulação 3D projetada em uma parede”, explica o cientista da computação Guilherme Simão Gibertoni, de 23 anos. O benefício desse simulador é reduzir os custos do Exército porque se deixa de gastar munição e deslocar a tropa para locais de tiro. Ao mesmo tempo, é um ambiente seguro para os primeiros testes de

Formação dos pesquisadores da empresa Aurélio Da Dalt, engenheiro civil e sócio-diretor

Universidade de São Paulo: graduação

João Carlos Boaventura, engenheiro mecânico e sócio-diretor

Universidade de São Paulo: graduação

Affonso Eduardo Ferro, engenheiro eletricista e sócio-diretor

Universidade de São Paulo: graduação

Amanda Shiokawa Freitas, engenheira eletricista na área de softwares

Universidade de São Paulo: graduação

Jonas Rossi Dourado, engenheiro de computação na área de software e firmware

Universidade de São Paulo: graduação

Guilherme Simão Gibertoni, cientista da computação, estagiário em desenvolvimento de software

Universidade de São Paulo: graduação

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tiro de jovens soldados. “A simulação 3D proporciona dinamismo com a posição e movimento dos alvos”, diz Guilherme. Criada em 1989, a Spectra é uma empresa de tecnologia com capital 100% nacional. Ela faturou R$ 12 milhões em 2014 e investe 15% desse valor na área de pesquisa, desenvolvimento e inovação. Conta atualmente com nove engenheiros, dois tecnólogos, seis técnicos e dois projetistas ligados ao setor de engenharia, além de 25 funcionários nas áreas industrial e administrativa. A linha de produtos é diversificada e inclui, além do simulador para helicópteros, equipamentos servo-hidráulicos para ensaios de durabilidade de veículos, módulos de eletrônica embarcada para controle da carroceria de ônibus (o produto foi fornecido por quase uma década a uma empresa brasileira – mais de 10 mil veículos foram equipados – e, atualmente, é exportado para o Peru), aquecedores industriais e sistemas de controle de guinchos de ancoragem para balsas usadas na exploração de petróleo em alto-mar, sendo a Petrobras cliente desse produto. “A diversificação faz parte de nossa estratégia comercial. Quando um setor não está bem, outro compensa. Procuramos ter o controle de todas as etapas de nossa produção. Dessa forma, temos


Simulador de pilotagem de helicópteros do Exército: interior da cabine e parte externa

um domínio maior sobre a tecnologia que desenvolvemos e sobre o preço dos nossos produtos”, afirma o engenheiro eletricista Affonso Ferro, 50, que compõe o trio que comanda os rumos da Spectra.

fotos  Léo ramos

LABORATÓRIO DE ENSAIOS

Os equipamentos servo-hidráulicos para ensaios de fadiga e durabilidade de componentes automotivos são o principal produto da Spectra e responderam por 30% do faturamento em 2014. Dotado de atuadores, bombas hidráulicas e um sistema de controle e aquisição de dados, o laboratório de ensaio é usado para testar diferentes peças e sistemas de carros, ônibus e caminhões, como suspensão, freios, amortecedores, caixas de direção e cintos de segurança. “Ele funciona como um simulador, reproduzindo de forma acelerada e muito precisa as condições do veículo em pista”, diz Affonso. “Nosso laboratório é empregado para realização de testes completos de desempenho e ensaios estáticos e dinâmicos para análise de tensões mecânicas, vibrações e fadiga na estrutura do veículo.” Um dos desenvolvedores do laboratório é o engenheiro de computação Jonas Dourado, de 25 anos. “Trabalho no projeto de um software e na criação de um equipamento para realizar tes-

Royalties recebidos pela venda de um sistema de simulação permitiram estruturar financeiramente a empresa tes de durabilidade de peças mecânicas, principalmente automotivas”, diz Jonas. Além de vender o laboratório montado, a Spectra também presta serviço às áreas de engenharia e desenvolvimento de fabricantes de autopeças e da indústria automobilística. Volkswagen, Mercedes-Benz, Scania, Ford, Fiat, Magneti Marelli e Mahle são alguns dos clientes. No ano passado, uma unidade foi exportada para a Argentina. “A Universidade Nacional de La Plata, a segunda maior do

país, comprou um laboratório por US$ 2 milhões”, informa Aurélio. O laboratório de testes, um dos maiores do gênero em operação no país, está na origem da criação da Spectra. Os três sócios se conheceram nos anos 1980, quando estavam na Mafersa, uma antiga fabricante de vagões e materiais ferroviários. Eles trabalhavam num laboratório de testes de durabilidade – parecido com o que desenvolveriam anos mais tarde –, cujos equipamentos eram importados da norte-americana Material Test Systems (MTS). O controle do laboratório era feito por um computador da época, que tinha o tamanho de um pequeno armário. Aurélio, João e Affonso tiveram a ideia de desenvolver o hardware e os softwares necessários para fazer o microcomputador IBM PC-XT controlar o laboratório. Um dos diretores da MTS abraçou a ideia e decidiu comprar a inovação quando estava pronta. Segundo Affonso, a Spectra foi a primeira empresa do mundo a usar um computador tipo PC para controlar um simulador de estrada. Centenas de sistemas foram vendidas para montadoras e fabricantes de autopeças mundo afora. “Durante cinco anos, recebemos royalties pela venda do nosso sistema. Foi isso que nos permitiu, no início, estruturar financeiramente a Spectra”, conta. n pESQUISA FAPESP 236  z  77


humanidades   Sociedade y

Violência, medo e preconceito Pesquisadores de várias áreas usam levantamentos históricos e testes de DNA para reaproximar famílias separadas pela hanseníase

N Texto

Rodrigo de Oliveira Andrade

Fotos

Eduardo Cesar, de Bauru

ivaldo Mercúrio tinha 7 anos quando uma ambulância preta com a sigla DPL, de Departamento de Profilaxia da Lepra, parou em frente à sua casa, em um sítio em Itápolis, interior de São Paulo. Dois médicos desceram e pediram para examinar toda a família. “Descobriram que minha mãe tinha hanseníase, a antiga lepra, e dias depois voltaram para levá-la”, ele relembra, aos 88 anos, enquanto caminha pelas ruas do antigo hospital-colônia Aimorés, hoje parte do Instituto Lauro de Souza Lima, em Bauru, um dos principais centros

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de atendimento a pessoas com hanseníase no estado de São Paulo. “Depois os médicos pediram para que eu, meu pai e meus irmãos fôssemos para a rua e puseram fogo em nossa casa.” Em 1933, a internação compulsória e a queima da casa das pessoas com hanseníase eram as formas adotadas para evitar que outras pessoas se contaminassem com a doença, vista com forte repulsa desde os tempos medievais. Dez anos depois, Nivaldo recebeu o mesmo diagnóstico da mãe e foi levado para Aimorés, onde vive desde então, exceto por alguns meses em que tentou trabalhar em Itápolis.


Aos 88 anos, Nivaldo Mercúrio vive no antigo hospital-colônia de Bauru desde os 17, quando foi internado após o diagnóstico de hanseníase

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Sua mãe foi levada para outro hospital e ele nunca mais a viu. Estima-se que cerca de 40 mil pessoas tenham sido separadas de suas famílias por causa das estratégias de isolamento adotadas como forma de tratar a hanseníase. O desafio agora é tentar reaproximar as famílias separadas à força. Desde 2011, uma equipe da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) trabalha com o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), organização não governamental sediada no Rio de Janeiro, para fazer com que familiares de pessoas com hanseníase que há muito não se viam ou sequer se conheciam se encontrem.

A

hanseníase é uma doença transmissível por meio do contato com secreções nasais, tosses ou espirros de pessoas infectadas. Por muito tempo conhecia-se apenas seu agente causador, a bactéria Mycobacterium leprae, identificada pelo médico norueguês Gerhard Hansen em 1873, que atinge os nervos e gera manchas esbranquiçadas ou avermelhadas na pele. Antes incerto, o tratamento hoje é simples, gratuito e eficiente, à base de sulfona e outros dois medicamentos, rifampicina e clofazimina, sem a necessidade de internações compulsórias. No entanto, o Brasil é o segundo país em número de casos da doença no mundo, atrás apenas da Índia. Em 2014, o Ministério da Saúde registrou 31.064 novos casos.

Pequenas cidades

Igreja e coreto dos anos 1950 preservados pelo Instituto Lauro de Souza Lima, em Bauru. Acima, registro de uma tentativa de fuga de um dos internos

Os hospitais-colônia, que funcionaram dos anos 1930 a 1980, eram pequenas cidades, com igreja, delegacia, presídio e prefeitura. Seus ocupantes plantavam, cozinhavam e faziam pequenas transações entre eles usando uma moeda própria, chamada lazareto, em referência aos primeiros hospitais-colônia surgidos na Ilha de San Lazzaro, perto de Veneza, na Itália, em meados do século XIII. “Uma vez internados, os doentes só saíam dos leprosários com autorização dos médicos, o que raramente acontecia”, conta a médica Lavínia Schuler-Faccini, professora da UFRGS e uma das coordenadoras do Instituto Nacional de Genética Médica e Populacional (Inagemp), sediado em Porto Alegre. “A maioria dos que nos procuram são filhos de pessoas com hanseníase querendo encontrar os irmãos, já que os pais muitas vezes estão mor-

tos”, diz Artur Custódio, presidente do Morhan, fundado em 1981 por ex-internos de hospitais-colônia, que hoje atende pessoas à procura de seus familiares. O trabalho integrado de médicos, historiadores, antropólogos e sociólogos permitiu às equipes de Porto Alegre e do Rio reaproximar 800 pessoas, por meio de visitas a antigos hospitais-colônia e consultas a arquivos para atestar o parentesco. “Quando as informações encontradas nos documentos não são suficientes, aplicamos o teste de DNA”, explica a bióloga Flávia Costa Biondi, da equipe da UFRGS. Pais e filhos que se reencontram, porém, raramente voltam a viver juntos. “Em geral os filhos não conseguem reconhecê-los como pais ou mães. O isolamento os fez completos desconhecidos”, diz Lavínia. Algumas histórias são dramáticas, como a de um homem que queria saber do pai internado havia décadas em um leprosário do Acre. Meses depois a equipe do Morhan o localizou, mas ele tinha morrido fazia poucas semanas. Estima-se que 25 mil crianças tenham se tornado órfãs de pais vivos internados em hospitais-colônia, principalmente nas regiões Norte e Nordeste. As crianças que nasciam nos leprosários ou não tinham com quem ficar eram levadas para os preventórios, como eram chamados os orfanatos para filhos de pessoas com hanseníase, às vezes em outras cidades. “Os médicos diziam às mulheres que seus filhos tinham morrido no parto, quando haviam sido dados para adoção”, relata Lavínia. Em 1943, os 22 preventórios do país abrigavam cerca de 2.500 crianças, que depois eram entregues para parentes ou desconhecidos dispostos a criá-las. Não era fácil encontrar quem as adotasse, porque se temia que as crianças estivessem contaminadas e pudessem transmitir a doença. Depois de examinar cerca de 10 mil fichas preenchidas por filhos de pessoas isoladas em leprosários do país, a equipe do Morhan verificou que muitas crianças adotadas eram forçadas a trabalhar, sofriam maus-tratos e eram discriminadas por serem filhos de pessoas com hanseníase. Por meio desses documentos, os pesquisadores também identificaram rotas de saída de crianças para adoção. “Muitas crianças do norte de Minas Gerais foram enviadas para a Itália e, do sul do Pará, por meio do Suriname, para a Holanda”, diz Custódio. Em julho, a equipe do Morhan localizou na Holanda dois irmãos, filhos de brasileiros que tiveram hanseníase e ainda estão vivos. O projeto coordenado pela equipe da UFRGS e do Morhan inspirou-se na busca de crianças e pais desaparecidos durante o governo militar da pESQUISA FAPESP 236  z  81


Argentina (1967 a 1983). Estima-se que, à época naquele país, 500 crianças tenham nascido de mães presas que depois desapareceram. Em geral, elas eram integradas às famílias de militares e, às vezes, registradas como filhos biológicos dos pais adotivos. “Mas há também casos de bebês abandonados em instituições religiosas ou em esquinas de Buenos Aires”, diz a antropóloga Claudia Lee Williams Fonseca, da equipe da UFRGS.

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ustódio defende que os filhos — e não apenas os pais — sejam indenizados pelo Estado brasileiro, que continuou a isolar pessoas com hanseníase até 1986, mesmo tendo assinado, em 1952, um acordo internacional comprometendo-se a interromper as internações compulsórias depois da descoberta de tratamentos eficazes para a doença. Na década de 1940, a sulfona começou a ser usada no tratamento da hanseníase no Brasil, que seguiu outros países, permitindo que as pessoas fossem tratadas apenas por meio de visitas periódicas a hospitais, não precisando mais serem isoladas. Em 2007, uma Medida Provisória aprovada pelo Congresso Nacional concedeu pensão vitalícia às vítimas da doença que continuaram a ser isoladas até 1986. ISOLAMENTO

A internação compulsória foi adotada no Brasil como estratégia para o controle da hanseníase a partir de 1924 e ganhou força na década de 1940, durante o governo Getúlio Vargas, com o Plano Nacional de Combate à Lepra, que previa o isolamento compulsório de todos os casos confirmados e o cuidado e a educação dos filhos sadios das pessoas doentes. “Como não havia nenhum medicamento eficaz”, diz Claudia Fonseca, da UFRGS, “o isolamento das pessoas com hansenía-

se era considerado essencial, tornando-se mais importante que o próprio tratamento existente”. Na década de 1920, as pessoas com hanseníase vagavam pelas ruas das cidades ou postavam-se à margem das estradas à espera de esmolas de viajantes, que os evitavam, porque se pensava que até o ar poderia estar contaminado. “Os doentes viveram em completo abandono por décadas no Brasil”, diz o médico Marcos Virmond, diretor do Instituto Lauro de Souza Lima, que atende cerca de 2 mil pessoas todos os meses. O instituto ainda preserva prédios, a igreja, o cassino, transformado em museu, as ruas de paralelepípedos e as praças repletas de árvores do antigo hospital-colônia Aimorés. Em São Paulo, o primeiro asilo desse tipo foi o Santo Ângelo, construído em Mogi das Cruzes, em 1928, onde, no arco da entrada principal, lia-se “Aqui renasce a esperança”. Em 1943, os 41 hospitais-colônia espalhados pelo país abrigavam 17 mil pessoas, que, uma vez internadas, precisavam encontrar novas formas de sobrevivência para não se abater pelo isolamento. “As pessoas, privadas de direitos básicos de cidadania, eram vigiadas, controladas e governadas por leis específicas”, diz Claudia Fonseca. A década de 1940 foi uma época de combate intensivo à doença, avalia Virmond. As pessoas suspeitas de estarem infectadas eram denunciadas às autoridades sanitárias e perseguidas nas ruas e em suas casas. Em seguida, eram isoladas nos hospitais-colônia. Em Aimorés, os doentes detidos pela polícia sanitária eram transportados em vagões especiais de trens até o hospital. A rejeição às pessoas com hanseníase não vem de hoje. A doença é considerada uma das mais antigas da história da humanidade — ainda que por séculos muitas doenças dermatológicas fossem confundidas com lepra. “Há registros de casos de pessoas

Pessoas com hanseníase recém-chegadas em vagões fechados ao hospital-colônia Aimorés na década de 1930 82  z  outubro DE 2015


fotos  Acervo do departamento de profilaxia da lepra  reproduções  eduardo cesar

Na década de 1920, quem tinha hanseníase vivia em acampamentos como este, à margem de uma estrada próxima a Bauru

queimadas vivas em suas casas na Idade Média, na Europa”, diz a socióloga Glaucia Maricato, da UFRGS. A aparência das pessoas com a doença, que causa deformações, somada ao medo do contágio, motivava os europeus a manter os pacientes em asilos, os lazaretos, ou expulsá-los das cidades. A hanseníase, mais do que qualquer outra, era vista como uma doença impura. Veio daí a ideia de que a maldade era uma das características do portador. “Os homens daquele tempo estavam persuadidos de que no corpo reflete-se a podridão da alma”, escreveu o historiador francês Georges Duby no livro Ano 1000 ano 2000: na pista de nossos medos. “O leproso era, só por sua aparência corporal, um pecador. Desagradara a Deus e seu pecado purgava através dos poros.”

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visão medieval da doença perdurou até o século XX, segundo a historiadora Yara Nogueira Monteiro, do Instituto de Saúde de São Paulo. Em um artigo publicado na revista Saúde e Sociedade, ela analisou como o isolamento compulsório das pessoas com hanseníase no estado contribuiu para que o estigma da doença atingisse pessoas sadias. De modo geral, ela observa, a internação de um dos pais acarretava a chamada explosão familiar. Quando a notícia de que alguém tinha hanseníase se espalhava, era comum que parentes próximos

perdessem o emprego e as crianças fossem expulsas da escola. Esse efeito cascata, segundo ela, contribuiu para que os doentes fossem deixados ainda mais à margem da sociedade. Foi o que aconteceu com Nivaldo Mercúrio. Em 1968, curado, ele deixou o hospital-colônia, voltou para Itápolis e arrumou um emprego. Semanas depois, porém, outros empregados exigiram do dono da empresa que ele fosse demitido porque vinha de um leprosário. Ele exibia os sinais de seu passado: suas mãos haviam atrofiado e falava com dificuldade, em consequência do tratamento com óleo de chaulmoogra, usado antes da sulfona. “Fui demitido e, meses depois, voltei para cá”, ele conta. O antigo hospital-colônia de Aimorés abriga hoje 74 pessoas que, como ele, um dia tiveram hanseníase. n

Artigos científicos FONSECA, C. L. W. et al. Project REENCONTRO: ethical aspects of genetic identification in families separated by the compulsory isolation of leprosy patients in Brazil. Journal of Community Genetics. v. 6, n. 3, p. 215-22. jul. 2015. PENCHASZADEH, V. B. & SCHULER-FACCINI, L. Genetics and human rights. Two histories: Restoring genetic identity after forced disappearance and identity suppression in Argentina and after compulsory isolation for leprosy in Brazil. Genetics and Molecular Biology. v. 37, p. 299-304. mar. 2014. MONTEIRO, Y. N. Violência e profilaxia: os preventórios paulistas para filhos de portadores de hanseníase. Saúde e Sociedade. v. 7, n. 1, p. 3-26. 1998.

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cinema y

Os olhos da China Filmes do diretor Jia Zhang-ke ganham o mundo com visão crítica sobre o país

divulgação

Márcio Ferrari

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os 45 anos, o chinês Jia Zhang-ke pode ser considerado um dos principais cineastas do mundo. Sua idade lhe permitiu testemunhar a transição histórica pela qual a China passou depois de 1976, com a morte de Mao Tse-tung, o fim da Revolução Cultural e a subida ao poder de Deng Xiaoping, que em poucos anos abriu o país à economia de mercado. Tanto pela importância estética quanto pela oportunidade de oferecer um olhar sobre uma realidade pouco conhecida aos olhos do mundo, os 21 filmes de Jia – entre curtas e longas-metragens, documentários e ficção – são cada vez mais vistos no exterior. No Brasil, o interesse se comprovou recentemente com a estreia do documentário Jia Zhang-ke, um homem de Fenyang, dirigido por Walter Salles, e com o trabalho da pesquisadora Cecília

Mello, professora no Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Textos de Salles, de Cecília, do crítico francês Jean-Michel Frodon e do próprio cineasta chinês compõem o livro O mundo de Jia Zhang-ke, lançado pela editora Cosac Naify simultaneamente ao filme. Cecília concluiu este ano o projeto de pesquisa “Intermidialidade, estética e política no cinema chinês de Jia Zhang-ke” no Departamento de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), campus Guarulhos. Além de conduzir o projeto e criar condições para sua continuidade, a pesquisadora, que em 2014 ingressou na ECA-USP, mas manteve o vínculo com a Unifesp, deu aulas, orientou alunos e criou uma linha de pesquisa sobre o cinema chinês. O interesse pela obra de Jia deu prosseguimento a seus estudos sobre realismo cinematográfico.

Cena do longa Em busca da vida mostra as ruínas provocadas pela construção da hidrelétrica de Três Gargantas pESQUISA FAPESP 236  z  85


“Primeiramente, é um diretor com um olhar para as transformações de um país que atrai as atenções do mundo e emerge como potência, mas permanece muito misterioso e, em muitos aspectos, isolado”, diz Cecília. “Em segundo lugar, procurei entender sua busca por uma nova linguagem cinematográfica para abordar o que é novidade também no mundo real.” Tradições

Os filmes de Jia dão conta dessas transformações mostrando personagens em trânsito, muitas vezes desgarrados de seus lugares e convívios de origem, em embate com as alterações que afetam hábitos do dia a dia. Seu terceiro longa-metragem, Plataforma (1997), que se passa em Fenyang, a cidade natal do diretor, acompanha uma trupe de artistas entre 1979, quando ainda encenavam homenagens a Mao, e o fim dos anos 1980, já quase no fim do processo de reformas de Deng. Em busca da vida (2006) mostra personagens deslocados pela construção da hidrelétrica de Três Gargantas, que submergiu várias cidades. Um toque de pecado (2013) reúne quatro histórias de violência tiradas do Weibo, o equivalente chinês do Twitter. “Nós vemos cidades que estão sendo demolidas, memórias que estão sendo apagadas, uma população flutuante que viaja ao sabor das oportunidades econômicas, e Jia quer investigar qual é o efeito dessa transformação no indivíduo”, descreve Cecília. “Na história do cinema, em geral os momentos de pico 86  z  outubro DE 2015

de criatividade vêm junto com as transformações histórico-sociais. No mundo todo, hoje, o diretor em que isso aparece de modo mais forte e relevante é Jia.” O crítico Jean-Michel Frodon destaca também, nos filmes de Jia, o questionamento dos limites entre ficção e documentário. O diretor e seus contemporâneos – a chamada sexta geração do cinema chinês – trouxeram consigo uma virada realista no panorama histórico da filmografia do país. Isso é evidente no

fotos divulgação

uso de locações reais, atores não profissionais, trechos improvisados e luz natural. “Da Revolução Comunista, em 1949, até o início dos anos 1980, o cinema da China esteve preso a obrigações de propaganda e muito distante da realidade”, informa Cecília. A constante foi quebrada pela quinta geração, de diretores como Zhang Yimou (Lanternas vermelhas) e Chen Kaige (Adeus, minha concubina), que ganharam notoriedade no exterior em meados da década de 1980. “Apesar de adotarem locações reais, esses filmes ainda transcorriam num tempo a-histórico e se passavam quase exclusivamente no campo.” Para a abordagem realista adotada por Jia foi essencial a utilização, a partir de Prazeres desconhecidos (2002), da tecnologia digital, muito mais ágil do que o trabalho com película. Isso permitiu, por exemplo, registrar em tempo real as transformações causadas pela construção da hidrelétrica no longa Em busca da vida. Paralelamente ao registro contemporâneo, Cecília procura revelar a presença, nos filmes do cineasta, de um diálogo sutil com tradições artísticas chinesas. “É um modo de chamar a atenção para a dimensão mais profunda das mudanças. Não se trata apenas de prédios demolidos, mas de toda uma tradição histórica que acaba”, diz Cecília. “O que é admirável no cinema de Jia é que ele não é nem a favor nem contra o novo ou o velho”, complementa Frodon. “Ele é capaz de mostrar e fazer o espectador sentir o que há de bom ou mau em cada aspecto. É verdade que isso é feito com uma sensação geral de perda, como quem pede mais cuidado com o antigo, que pode estar sendo destruído cegamente.” Um exemplo da presença do antigo no cinema de Jia, apontado por Cecília, é a interação com a pintura de rolo, a tradicional arte chinesa de representação


de paisagens que se desdobra horizontalmente como se narrasse uma história. Ela é evocada pelos deslocamentos laterais da câmera e pela alternância de pontos de vista dos personagens. Outra característica da pintura de rolo que encontra equivalente nos enquadramentos de Jia é a presença de espaços vazios, destinados ao preenchimento pela imaginação do observador (ou do espectador). PROIBIÇÕES

A pesquisadora também estudou os pontos de contato entre os filmes de Jia e a arquitetura de jardins, uma forma de arte tradicional na China que se relaciona diretamente com o filme O mundo. O enredo se passa num parque temático em Pequim que reúne reproduções em escala menor de pontos turísticos de todo o planeta. O filme, segundo Cecília, é uma viagem espacial conduzida de acordo com os preceitos dos jardins chineses, feitos para serem vistos de cima, como mosaicos, ou, quando à altura do chão, em movimento, como uma narrativa. Outro estudioso desse longa-metragem, o professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ) Denilson Lopes, vê nele aspectos de “transnacionalização”: os personagens principais não são os visitantes do parque, mas seus funcionários, alguns estrangeiros. “O parque é uma possibilidade de uma vida melhor,

Jia Zhang-ke em cena do documentário de Walter Salles e imagens de Plataforma e Um toque de pecado: tensões entre o novo e o velho, o individual e o coletivo

um espaço de encontro e sociabilidade, onde se caminha, trabalha-se e habita-se”, observa Lopes. “A globalização nesse caso foge à ideia de americanização ou homogeneização forçada.” Quanto mais a pesquisadora se debruça sobre os filmes e a história de Jia Zhang-ke, mais lhe parece que o cineasta abraçou a responsabilidade de representar, em seus filmes, uma essência totalizante da China, mesmo que o lugar que o cineasta ocupa no país seja ambíguo. Seus três primeiros filmes foram exibidos em festivais internacionais, mas proibidos internamente. O mundo recebeu cortes, Em busca da vida estreou nos cinemas sem atrair muito público e Um toque de pecado nem sequer pôde estrear. No entanto, Jia é uma celebridade graças à pirataria. “Aos poucos, ele foi se tornando o cineasta mais importante da China também dentro do país”, constata Cecília. Hoje seu rosto aparece em anúncios de uísque no metrô de Pequim. O modo como Jia conquistou o público chinês gradativamente tem a ver, para o pesquisador Isaac Pipano, com

a recusa do cineasta em adotar um discurso militante. “Passando ao largo das convenções de um cinema político de denúncia e sem criticar diretamente as estruturas de poder, Jia comenta os modos de vida e as experiências mais banais do cotidiano”, diz Pipano, doutorando em cinema na Universidade Federal Fluminense, cuja dissertação de mestrado em comunicação, defendida em 2012 na UFRJ, tratou do trabalho do diretor como documentarista. Cecília defende que Jia, embora vigiado pelo governo chinês, não se furta à incumbência de ser o principal retratista contemporâneo do país. “Apesar de toda a diversidade de idiomas e culturas da China, sempre houve um esforço oficial de manter uma ideia do país não como uma nação, mas como uma civilização”, conta a pesquisadora. “Jia nunca disse isso claramente, mas vejo em seu cinema um certo desejo de falar para toda a China. Sua intenção, por exemplo, com Um toque de pecado, foi fazer um filme que já nascesse clássico, e que pudesse ser lembrado daqui a 100 anos em seu país.” n

Projeto Intermidialidade, estética e política no cinema chinês de Jia Zhang-ke (2011/20692-9 e 2012/08694-9); Modalidade Programa Jovens Pesquisadores em Centros Emergentes; Pesquisadora responsável Cecília Antakly de Mello (EFLCH-Unifesp); Investimento R$ 43.655,49 e R$ 185.195,40.

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COmunicação y

Momento de transição Fartura de notícias on-line refaz os espaços e os papéis do jornalismo científico Carlos Fioravanti

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m fevereiro de 2012, o jornal espanhol Público parou de publicar a edição impressa, mantendo apenas a on-line. Uma das 126 pessoas dispensadas foi a editora de Ciência, Patrícia Fernández de Lis, que tratou de dar forma a uma alternativa em que já vinha pensando. Vendo que as notícias de ciência atraíam muitos leitores, ela formou uma equipe, conseguiu patrocinadores e criou o site Materia, lançado em julho de 2012, com notícias em primeira mão sobre ciência e tecnologia. Em um ano havia 1,5 milhão de usuários únicos e acordos de republicação de seu conteúdo em cerca de 200 jornais de países de língua espanhola. Em setembro de 2014 o jornal El País, o de maior circulação na Espanha, começou a republicar com exclusividade o noticiário do Materia e Patrícia assumiu o cargo de redatora-chefe de Ciência e

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Tecnologia do jornal, onde trabalhara antes de ir para o Público. A trajetória do Materia exemplifica o impacto da internet sobre o noticiário não só de ciência, mas também de outras áreas. Agora, pelos já não tão novos meios de comunicação on-line – sites, blogs e redes sociais –, as notícias são divulgadas de modo quase instantâneo, escritas tanto por jornalistas quanto por cientistas e outros interessados por ciência. Hans Peters, professor de jornalismo científico da Universidade Livre de Berlim, em um artigo na revista Mètode Science Studies Journal, observou que o mundo on-line deixou para trás o modelo clássico de comunicação de massa, pelo qual uma informação é transmitida por um emissor – no caso, o pesquisador –, por meio dos jornalistas, para o público, que deixou de ser completamente passivo. A internet permite que o leitor


ilustraçãO  nelson provazi

Esta é a terceira e última parte de uma série de reportagens sobre jornalismo científico, motivada pelos 20 anos de publicação do primeiro boletim Notícias FAPESP, que originou esta revista. A primeira reportagem, publicada na edição de agosto, relatou o trabalho pioneiro de Júlio Abramczyk e José Hamilton Ribeiro. A segunda, em setembro, abordou a relação entre cientistas e jornalistas. Esta trata das transformações, impasses e perspectivas do noticiário sobre ciência e tecnologia.

dissemine, comente ou corrija notícias imediatamente após lê-las. Espaços antes ocupados por jornalistas se perderam dentro de uma crise global do jornalismo tradicional – dezenas de publicações no Brasil, na América Latina, nos Estados Unidos e nos países da Europa eliminaram suas versões impressas e, com elas, suas seções de ciência, em consequência da migração dos leitores para publicações on-line. Outros espaços, no entanto, emergiram. Revistas científicas como Science, Nature e Lancet hoje têm seus próprios blogs e dão mais espaço para reportagens em formato jornalístico, com várias fontes de informação e uma visão geral de um tema. Neste ano, a semanal Nature começou a distribuir um boletim diário com indicações de reportagens publicadas em outras revistas ou jornais.

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Por sua vez, as instituições de pesqui­sa estão valorizando a comunicação direta com o público, por meio de seus próprios sites e de redes sociais, dispensando a intermediação do jornalista de jornais, revistas e de sites noticiosos não institucionais. Nos Estados Unidos, de modo mais intenso que no Brasil, universidades, agências de fomento como a National Science Foundation e centros de pesquisa como a Nasa, a agência espacial, distribuem notícias, vídeos, imagens e material didático para o público acadêmico e o não acadêmico. Em abril e maio deste ano, cientistas ingleses debateram na Royal Society, a academia britânica de ciências, suas estratégias de divulgação de novidades científicas por meio de revistas que publicam artigos (e não reportagens) e apresentações dirigidas tanto ao público em geral quanto para cientistas. A expansão da mídia on-line sugere que agora qualquer pessoa pode escrever sobre ciência – no Brasil, o total de blogs de ciência varia de 105, de acordo com um levantamento da Universidade Federal de Minas Gerais, a 210, número obtido por meio de dados levantados no Google, em portais de blogs e cadastros de jornalistas – e promove uma ampliação dos papéis dos jornalistas. Ao dar forma ao Materia, Patrícia Lis teve de fazer o que não fazia antes: contar com seu prestígio profissional para conseguir patrocinadores, negociar acordos de republicação do conteúdo on-line e gerenciar orçamentos de modo que o site se mantivesse e publicasse, como hoje, cinco reportagens diárias. Ao rever sua experiência, ela comentou à Pesquisa FAPESP que “formar uma equipe certa, com pessoas em quem se possa confiar, e produzir informação de alta qualidade” são fundamentais para obter credibilidade e visibilidade. Promover ou Fiscalizar?

Em 2013, a 8ª Conferência Mundial de Jornalistas de Ciência, organizada pela Federação Internacional de Jornalistas de Ciência (WFSJ, na sigla em inglês) na Finlândia, acentuou a necessidade de os jornalistas serem flexíveis, dominar as ferramentas de produção de conteúdo on-line e trabalhar mais intensamente com outros comunicadores de ciência para criar novos modelos de jornalismo

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“precisamos do jornalismo científico para pesar os valores da ciência”, diz ex-editora da BBC

científico (ver Pesquisa FAPESP nº 211). Na conferência deste ano, realizada em junho na Coreia do Sul, um dos debates tratou de qual deveria ser o papel dos jornalistas de ciência: promover a pesquisa científica ou fiscalizar o trabalho dos cientistas? Como em um tribunal, cada grupo defendia um ponto de vista e os participantes da plateia mudavam de lado à medida que se convenciam da argumentação de um ou de outro. Não se chegou a um consenso, mas a conclusão com maior número de adesões foi que “não se deve aceitar sem questionamento o que é apresentado pelos cientistas”, disse Bernardo Esteves, repórter de Ciência da revista Piauí que participou do debate. “Os pesquisadores em geral veem os jornalistas como seus porta-vozes, mas deveríamos dar mais espaço para uma discordância saudável e para uma apreciação mais crítica dos resultados de pesquisa”, observa Esteves. É a mesma posição da jornalista Susan Watts, editora de Ciência de um programa de televisão de um dos canais da BBC, do Reino Unido, demitida em novembro de 2013, quando seu cargo foi extinto. “Precisamos do jornalismo científico para pesar os valores e os vícios da ciência”, ela escreveu em abril de 2014 na Nature. Segundo ela, o noticiário deveria oferecer uma perspectiva crítica e uma visão bem-informada sobre o que a sociedade quer da ciência, sem se deixar levar apenas pelo deslumbramento das descobertas. Peters, da Universidade de Berlim, reconhece que, mesmo que os cientistas e os próprios leitores estejam produzindo ou reproduzindo notícias, é improvável que o jornalismo morrerá, já que sua tarefa precípua de informar com distanciamento dificilmente poderá ser substituída pelas outras formas de comunicação pública. Segundo ele, a autoapresentação da ciência, por meio de blogs de cientistas e de instituições, não poderá substituir com a mesma credibilidade o jornalismo como observador externo da ciência. n

Artigos científicos PETERS, H. P. The two cultures scientists and journalists, not an outdated relationship. Mètode Science Studies Journal. v. 4, p. 163-9. 2014. WATTS, S. Society needs more than wonder to respect science. Nature. v. 208, p. 151. 10 abr. 2014.


memória fotos 1 anuário da ffcl-usp de 1937-1938 2 henrique eisi toma

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Antigo prédio do curso de química da USP na alameda Glete, em São Paulo, em 1938. Abaixo, frascos de Caro ainda contêm os corantes alizarina e azul de metileno

História em frascos Vidros que pertenceram ao químico alemão Heinrich Caro ajudam a contar as origens da química na USP Bruno de Pierro

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m 1934, o químico alemão Heinrich Rheinboldt (1891-1955) chegou ao Brasil com a missão de ajudar a implantar o curso de ciências químicas na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL, atual FFLCH) da então recém-fundada Universidade de São Paulo (USP). A estratégia traçada na instituição nascente era procurar bons profissionais europeus que aceitassem passar um período na capital paulista para iniciar o ensino e a pesquisa nas diferentes áreas da ciência. Ao deixar a terra natal, Rheinboldt trouxe na bagagem frascos de vidro contendo substâncias químicas que pertenceram ao avô, o químico Heinrich Caro (1834-1910), considerado um dos precursores da indústria química moderna. A preservação dos objetos do avô não ocorreu por simples saudosismo. Rheinboldt era um “profundo cultor da história”, escreveu em 1994 Paschoal Senise (1917-2011), ex-professor emérito da USP e aluno de Rheinboldt na primeira turma do curso de química, que começou em 1935 e gerou o atual Instituto de Química (IQ). “Os frascos contam parte

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Heinrich Caro (1834-1910): precursor da indústria química moderna

Heinrich Rheinboldt, na cabeceira da mesa, em almoço com professores alemães no restaurante Brasserie Paulista, em São Paulo, em 1939

morou em Manchester, na Inglaterra, onde trabalhou na indústria têxtil. Lá, desenvolveu novas técnicas de tingimento de tecidos a partir de corantes artificiais. Segundo Carsten Reinhardt e Anthony Travis, em livro publicado em 2000, a habilidade para resolver problemas de aplicação de novos corantes permitiu a Caro estabelecer contatos com químicos acadêmicos do Reino Unido e a promover interações entre pesquisadores ingleses e colegas da Alemanha. “Caro era uma mistura de artesão, industrial e cientista”, escreveram os autores. Na década de 1880, já de volta à Alemanha, Caro começa seu trabalho na Basf (Badische Anilin & Soda Fabrik), então uma pequena empresa com 166 trabalhadores. Caro foi o responsável por introduzir na empresa a alizarina, um corante vermelho usado para tingir tecidos cuja síntese artificial foi realizada por Caro no final da década de 1860.

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Em 1876, Caro realizou a síntese do azul de metileno. Posteriormente, a substância teve diversos usos na pesquisa médica, em estudos de microrganismos. Em 1882, por exemplo, o prêmio Nobel Robert Koch anunciou a descoberta do bacilo da tuberculose, utilizando o azul de metileno como um marcador. “A síntese dos corantes praticamente acabou com o processo extrativo de corantes de plantas e deu início à indústria química moderna”, diz Toma. Caro também foi o primeiro pesquisador a descrever o ácido peroxosulfúrico que, por isso, é conhecido como ácido de Caro. Na indústria, ele é aplicado na produção de desinfetantes e outros tipos de limpadores. O historiador Shozo Motoyama, professor da USP, conta que, diferentemente do avô, Rheinboldt não se interessava pela pesquisa empresarial, embora reconhecesse a importância da pesquisa básica para o progresso da indústria a longo prazo. “Além disso, quando chegou à USP, Rheinboldt não introduziu temas da química de fronteira que estavam na moda na época, como fez o italiano Gleb Wataghin no Departamento de Física, ao tratar de assuntos de vanguarda, como raios cósmicos”, explica. No entanto, diz ele, o denominador comum entre eles era o perfil inovador. “No longo prazo, a atuação de Rheinboldt em campos como o da química orgânica sedimentou o caminho da química brasileira em várias ramificações, como a bioquímica, que se tornou um diferencial da USP”, diz Motoyama. n

fotos 1 wikimedia Commons 2 origem do iq-usp, paschoal senise

da história da indústria química no mundo”, diz Henrique Eisi Toma, professor do IQ, que mantém as peças antigas em seu laboratório na USP. “Também serviram de referência histórica para que Rheinboldt promovesse uma mudança significativa na química brasileira, ao fazer pesquisa e utilizar novos métodos e técnicas comuns em laboratórios na Europa.” Dentro dos vidrinhos há amostras de reagentes e compostos que marcaram a vida do avô. Caro iniciou a carreira na Universidade Friedrich Wilhelm, uma das mais antigas de Berlim, fundada em 1810, e que em 1949 mudou de nome para Universidade Humboldt. A entrada de Caro no universo da pesquisa empresarial se deu na década de 1850, quando teve contato com a técnica de impressão de calico (também chamado de chita), um tipo de tecido feito de algodão, tingido com corantes naturais. Entre 1859 e 1866, Caro


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O guitarrista e professor Budi Garcia com partituras de duas de suas composições

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     Budi Garcia, professor da Unicamp, repensa a música popular brasileira Márcio Ferrari

foto  Ricardo Cruzeiro

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utrora hostilizada a ponto de ter sido alvo de uma passeata de protesto em São Paulo em 1967, a guitarra elétrica hoje convive pacificamente com instrumentos mais tradicionais da música popular brasileira. E não só nos palcos e estúdios de gravação. Também na academia. Um dos responsáveis por essa mudança de status é o instrumentista e compositor Budi Garcia, professor dos cursos de música do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde leciona estruturação musical e guitarra elétrica. O goiano Budi – nascido Hermilson Garcia do Nascimento – integrou, em 1989, a primeira turma do curso de música popular da Unicamp. Até ali, completara dois anos da faculdade de jornalismo em Goiás, que havia começado com o objetivo de trabalhar na cobertura do cenário musical. Ingres-

sar num curso superior de música erudita não era uma ideia que o atraísse. Quando finalmente foi criado um curso que correspondia a seus interesses, encontrou uma turma visivelmente animada. “Provavelmente era sinal de uma demanda reprimida, prevista pelo maestro Benito Juarez quando convenceu o conselho superior a aprovar a criação de um espaço para a música popular na Unicamp”, diz Garcia. “No Brasil, a música popular preserva um vínculo estreito com a realidade social, o que a destaca da música erudita.” Se há resistência ao repertório popular nos meios acadêmicos, em relação à guitarra o estigma é duplo. “O Brasil é o único país que faz distinção vocabular entre violão e guitarra”, diz Garcia. A palavra “violão” teria nascido para diferenciar a guitarra da viola “caipira”. A oposição entre violão e guitarra não veio propriamente da eletrificação PESQUISA FAPESP 236 | 93


do instrumento (que já existia desde a década de 1930), mas do surgimento do rock, identificado ideologicamente como música estrangeira indesejada. “Estava em jogo uma afirmação da identidade musical, o que foi até bom porque, nos anos 1960, a MPB pôde se mostrar para o mundo como algo diferente e único”, diz o músico. A década já era a seguinte quando Garcia, adolescente e morador de Belo Horizonte, se interessou pela guitarra elétrica e pelo rock. Ele vinha tocando violão desde a infância, e a fase roqueira rapidamente enveredou pelo que na época se chamava de fusion, uma mistura de jazz e rock (com uma vertente que dialogava também com choro e bossa nova) que repercutiu fortemente entre músicos brasileiros como Heraldo do Monte, Hélio Delmiro e Toninho Horta. “Assim, por via da guitarra, eu reencontrei a música brasileira”, diz o professor, que atualmente desenvolve na Unicamp a pesquisa “O projeto brasileiro do guitarrista Heraldo do Monte”, com apoio da FAPESP. Hoje com 80 anos, Heraldo sempre se dedicou à guitarra elétrica, passando praticamente ao largo do rock. “Sua atuação nos anos 1960 impulsionou a construção de um estilo com sotaque brasileiro e especialmente nordestino”, diz Garcia. Um dos objetivos acadêmicos do pesquisador era dar continuidade a trabalhos sobre a música popular brasileira feitos no campo das ciências humanas (sociologia, linguística e história sobretudo) em uma época em que a academia só tinha espaço para a música de concerto. Embora tenha se tornado professor da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) em 1994, Garcia resistiu em fazer pesquisa acadêmica. Não se sentia à vontade em partir para a teorização e 94 | outubro DE 2015

percebia um ambiente “muito refratário à música popular”. Estava habituado a tocar na noite de Goiânia e Belo Horizonte ao lado de músicos conhecidos (além dos já citados, o trombonista Raul de Souza e o pianista Wagner Tiso) e receava penetrar em um mundo que de início lhe parecia restrito. A pesquisa, se limitou sua presença em apresentações e gravações, não o afastou dos grandes nomes. Seu mestrado em 2001 foi sobre o pianista Custódio Mesquita, da era de ouro do rádio. No doutorado voltou-se para o maestro Cyro Pereira, nome importante da fase dos festivais dos anos 1960, que foi seu professor na Unicamp. Agora, estuda Heraldo do Monte. As prioridades foram se invertendo para Budi Garcia e os afazeres acadêmicos hoje ocupam quase todo o seu tempo – embora, pela natureza da atividade musical, a prática e a teoria sempre andem lado a lado. O pesquisador acabou se tornando hábil na conciliação das duas atividades. A produção fora da universidade está um pouco dormente desde 2007, quando lançou o CD independente Azul marin. “Hoje tenho a perspectiva de fazer coisas mais pontuais”, diz. Sua atenção está voltada para o lugar em que, na graduação, foi despertado para vários aspectos da música – entre eles os arranjos orquestrais ensinados por Cyro Pereira e as inspirações vindas da música erudita, quando “invadia” aulas como as do compositor Almeida Prado. “Eu me encharquei daquele clima; foi muito transformador”, diz Garcia. A meta agora é desdobrar a pesquisa sobre Heraldo do Monte em um projeto maior para, trabalhando sobre a ideia de uma guitarra brasileira, explorar a criação de novas linguagens. n

Eduardo Knapp / Folhapress

Heraldo do Monte, pioneiro da guitarra elétrica no Brasil, inspirador e tema de pesquisa de Budi Garcia na Unicamp


resenha

Sexualização dos crimes femininos Marcella Beraldo de Oliveira

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A sexualização do crime no Brasil: Um estudo sobre criminalidade feminina no contexto de relações amorosas (1890-1940) Alessandra de Andrade Rinaldi Editora Mauad X 224 páginas | R$ 44,00

sexualização do crime no Brasil: Um estudo sobre criminalidade feminina no contexto de relações amorosas (1890-1940), pesquisa de doutorado de Alessandra de Andrade Rinaldi, apresenta uma minuciosa análise de processos criminais de mulheres autoras de crimes contra seus companheiros ou suas “rivais” em disputas amorosas no período do primeiro Código Penal. Rinaldi mostra um processo de “sexualização dos crimes” na Justiça que está apoiado na naturalização dos comportamentos pautados em diferenças sexuais, ou seja, os crimes são julgados com base em padrões sociais do que são entendidos como comportamentos femininos e masculinos. Com base em um extenso material de pesquisa coletado, a autora faz dialogar dois campos do saber, o histórico e o antropológico, delimitando um período de análise entre 1890 e 1940 e realizando uma análise antropológica dos processos criminais. O interesse foi perceber como os operadores do direito e os litigantes produzem e reproduzem representações sociais sobre relações de gênero, conjugalidade, relações amorosas e criminalidade. Rinaldi se inspira no trabalho que foi um marco nesse campo de estudos, o de Maria Filomena Gregori com o livro Cenas e queixas: Um estudo sobre mulheres, relações violentas e prática feminista, de 1993, propondo uma análise que não tem a priori a mulher como vítima da violência no contexto de relações amorosas ou conjugais, mas sim como autora e produtora de violência. Rinaldi, assim como Gregori, mostra uma mulher que é o oposto da fragilidade e da passividade, uma mulher ativa, agindo conforme seus desejos. O trabalho não procurou entender por que as mulheres cometeram tais atos, investigou de que forma suas ações violentas foram percebidas e interpretadas pelos profissionais do campo jurídico. O livro está dividido em duas partes. A primeira trata dos “crimes passionais”. A autora realiza um debate sobre o crime em geral no campo jurídico e médico-legal fazendo uma releitura brasileira da discussão sobre o próprio estatuto do crime, que no século XIX era entendido como resultado de um “psiquismo perturbado” e depois passa a ser visto como fruto de uma “natureza individual”, atributo da pessoa. Esse debate, no Brasil, incorporava as proposições da Escola Positiva do

Direito, predominando o discurso biologizante e naturalizador sobre os comportamentos transgressivos, entendidos como um atributo natural da mulher. Pouco peso se dava ao meio social em que ela vivia. Havia um discurso marcado pela patologização do comportamento feminino. Na segunda parte do livro, a análise está centrada nos processos criminais, mais especificamente nas diferentes versões dos depoimentos, buscando destacar a argumentação mobilizada tanto nas visões dos representantes do Poder Judiciário quanto dos litigantes desde o inquérito até o processo no Judiciário. Ao longo do livro vai se delineando um argumento de que apesar de essa mulher agir ativamente, ela própria se representa como passiva nos processos, corroborando para uma posição social e uma representação de gênero legitimada na sociedade patriarcal. A sua representação como frágil e passiva também serve como estratégia de defesa na Justiça. Seu ato criminoso, assim, é visto pelos representantes da Justiça como patologia, pois há um desvio daquilo que seria sua natureza feminina. Os processos analisados mostram que havia uma tendência em não considerar os atos violentos femininos como crimes, sobretudo quando envolvem duas mulheres em situação de disputa amorosa. Esse argumento é fundamental para explicar a absolvição tanto da mulher como autora do crime quanto do homem autor de violência nesse mesmo contexto. Mais importante do que punir os delitos, Rinaldi mostra que para o sistema de Justiça importa manter os vínculos conjugais, ou seja, o universo jurídico tende a não penalizar os crimes que eram cometidos no contexto de relações amorosas. O que demonstra condescendência com as mulheres autoras e legitima a violência doméstica, mostrando a importância e o peso que a instituição família ocupa na nossa sociedade, até mesmo nos dias atuais, que deve ser preservada acima de tudo! Este é um livro que, sem dúvida, servirá para promover o debate em várias áreas, tais como história, antropologia e direito, mais especificamente, no campo dos estudos de gênero. Marcella Beraldo de Oliveira é doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora de Antropologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

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Novas Oportunidades

Profissional da energia Operador de mercado livre precisa de certificado e deve se transformar em nova profissão Comprar e vender energia elétrica em um mercado formado atualmente por cerca de 1.800 empresas é a principal atividade de uma nova carreira que se firma cada vez mais no setor energético: operador do mercado livre de energia. É uma profissão multidisciplinar destinada principalmente a engenheiros, economistas e advogados. Na prática é uma oportunidade para o profissional egresso dessas áreas e que não deseja ficar na universidade ou dedicar-se a outras ocupações mais tradicionais. O salário inicial varia de R$ 7 mil a R$ 8 mil, além de bonificações semelhantes às dos operadores do mercado financeiro. O mercado livre de energia é um ambiente de negociação, semelhante a uma bolsa, onde cada consumidor negocia o custo, os prazos de fornecimento, a forma de pagamento de cada um dos 96 | outubro DE 2015

tipos de energia em diferentes fontes: hidrelétrica, eólica, solar, biomassa ou térmica. Esses mercados possuem relações com as políticas públicas de energia, porque os preços variam segundo o tipo de geração, se grandes hidrelétricas, termelétricas, ou ainda usinas eólicas, solares, de biomassa ou pequenas hidrelétricas. Toda usina de energia está autorizada a vender um determinado número de megawatts por ano para esse mercado. As empresas podem optar entre vários tipos de contrato que são monitorados pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), uma instituição pública de direito privado e sem fins lucrativos, regulada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). O mercado livre representa 25% de toda a geração de eletricidade distribuída no país coordenada pelo

Sistema Interligado Nacional (SIN), que redireciona a energia conforme a necessidade pelo território brasileiro. “Para atuar como operador do mercado de energia, o profissional precisa ter conhecimentos específicos, como as normas da CCEE e da Aneel, além de saber negociar e formular preços futuros de energia, acompanhar a demanda e a oferta de eletricidade e ficar atento às previsões climáticas e ao nível dos reservatórios de hidrelétricas”, explica Reginaldo Medeiros, presidente da Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia (Abraceel), que reúne 65 empresas que fazem ou intermedeiam a comercialização das empresas consumidoras e produtoras de eletricidade. A entidade se associou à Fundação para o Desenvolvimento Tecnológico da Engenharia (FDTE), ligada à Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), e promove todo ano uma prova para certificação de operadores de energia. O próximo exame será em 24 de outubro, mas as inscrições já estão encerradas. Em 2016, as inscrições começam em junho. Atualmente são 53 profissionais certificados, embora o mercado opere com 300 funcionários. No Brasil existem mil empresas que comercializam energia, como a CPFL e a Light, além da Petrobras, Votorantim e usinas de etanol que poderiam empregar esse profissional. Os grandes consumidores, como Volkswagen e Ford, e empresas produtoras de aço e ferro, como a Companhia Brasileira de Alumínio, também podem contratar esse profissional. Medeiros revela que o certificado é um dos pré-requisitos para a nova carreira profissional. “Queremos transformar o operador em uma carreira registrada no Ministério do Trabalho e com cursos regulares de graduação nas universidades.” n Marcos de Oliveira

ilustraçãO  daniel bueno  foto  luiz demattê

carreiras


Trajetória de ex-alunos da Unesp Ficar vinculado à universidade mesmo depois de deixar a graduação ou a pós-graduação pode fazer bem para a trajetória profissional de ex-alunos. É o que propõe a Universidade Estadual Paulista (Unesp) ao lançar o portal Sempre Unesp. “Para a universidade é bom ter um retorno e saber como os ex-alunos se desenvolveram profissionalmente depois da formação. Isso ajuda a própria universidade a avaliar a formação. Para os egressos, permanecer vinculado à instituição permite formar uma rede de profissionais, montar grupos de ex-alunos e ter informações sobre a evolução da profissão”, explica a professora Maria de Lourdes Spazziani, assessora da Pró-reitoria de Graduação da Unesp. Nos Estados Unidos, esse vínculo pós-universidade é comum, na Europa está se tornando mais valorizado e no Brasil ainda é incipiente. “Formar redes de profissionais que são ex-alunos pode facilitar o próprio trânsito na carreira.” Maria de Lourdes informa que o ex-aluno, ao se inscrever no portal, continuará a ter descontos na editora da universidade e participará do banco de estágios e do banco de empregos quando esses sistemas estiverem disponíveis. “Vamos fazer reuniões com os diretores das unidades para que eles colaborem acionando órgãos de classe, por exemplo.” Em mais de um mês, 5 mil ex-alunos atualizaram seus contatos no site. “Até o fim do ano vamos fazer uma ação nos nossos sistemas de graduação e pós-graduação para contatar mais de 100 mil ex-alunos por meio de um convite. Nossa meta é atingir 10 mil egressos para o portal com a colaboração das associações de ex-alunos já existentes”, diz. O portal pode ser acessado pelo site www.unesp.br/sempreunesp/. n M. O.

perfil

Veterinário orgânico Tese de diretor de empresa ganha Prêmio Capes na área de ciências ambientais A experiência das pessoas que trabalham em uma empresa produtora de carne de frango e ovos em um sistema de agricultura natural ou orgânica foi o tema da tese de doutorado vencedora na área de ciências ambientais do Prêmio Capes 2015. O médico veterinário Luiz Carlos Demattê Filho, autor da tese, diretor industrial da Korin Agropecuária e coordenador do Centro de Pesquisa Mokiti Okada (CPMO), mostrou o desenvolvimento ambiental, social e econômico dos produtores e colaboradores da empresa. Eles orientam seus trabalhos sob princípios de sustentabilidade em que, dentre uma série de diferenciações, os animais não recebem antibióticos, promotores do crescimento e quimioterápicos como nas granjas tradicionais. “Abordei a multifuncionalidade da agricultura no sentido de esse setor não ser apenas um negócio, mas também um meio social, que preserva a natureza e a cultura de uma área agrícola”, diz Demattê, que concluiu o estudo em 2014, quando fez 51 anos de idade. Ele foi orientado pelo professor Paulo Eduardo Moruzzi Marques no Programa Interunidades de Pós-graduação em Ecologia Aplicada da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo (Esalq-USP). Ele explica que as granjas tradicionais de carne de frango e ovos não utilizam hormônios, e sim antibióticos e outros medicamentos na ração, para prevenir doenças e promover a engorda rápida dos animais.

Desde o tempo de faculdade, ele procurou sempre se envolver com métodos diferenciados de produção, incluindo a agricultura orgânica. Começou estudando medicina veterinária na Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Botucatu. Formado em 1986, trabalhou como veterinário autônomo, em clínicas e haras, e foi professor na Universidade de Marília (Unimar), entre 1995 e 1997. “Ministrei aulas de fisiologia da reprodução e obstetrícia na Unimar. Foi um período interessante, minha experiência prática já era grande e fazia sucesso com os alunos porque eu os tirava da sala para trabalhar no campo”, lembra. Entre 1994 e 1999, quando ainda dava aulas, ele trabalhou na Fundação Mokiti Okada para realizar estudos na área de métodos orgânicos na produção pecuária. Em 2000, Demattê transferiu-se para a Korin e viu a necessidade de avançar nos estudos. Aos 38 anos entrou no mestrado na área de zootecnia na Unesp. Depois fez especialização em gestão empresarial na Fundação Getulio Vargas (FGV), em Campinas, sempre com foco na produção alternativa de frangos e ovos. “Fui buscar conhecimento para melhorar a produtividade sem comprometer os ideais da empresa voltados para a produção natural, orgânica e de base agroecológica”, conta. O doutorado na USP teve uma parte realizada na Universidade de Aarhus, na Dinamarca. Para ele, ainda faltam disciplinas nas universidades sobre agricultura orgânica, que possam formar profissionais para essa área em que as vendas, usando como exemplo a Korin, sobem de 20% a 25% ao ano. n M. O.

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