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Ciência eTecnologia
VENDA PROIBIDA
ASSINANTE
EXEMPLAR DE
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no Brasil
Fevereiro 2007 Nº 132 ■
PAIS E MAES HOMOSSEXUAIS CULTIVO DE VENENO PARA ´ FARMACOS
CONSTRUCOES DA ˆ NO NEUROCIENCIA NORDESTE
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Rádio Eldorado AM Sintonize 700 kHz Sábados, às 12h Reprise aos sábados às 19h e aos domingos às 14h ■
Se preferir, ouça o programa no site da revista
Apresentação Tatiana Ferraz Comentários Mariluce Moura Diretora de redação de Pesquisa FAPESP
Pesquisa Brasil ciência e tecnologia nas ondas do rádio Toda semana você tem uma hora de: ■
Novidades de ciência e tecnologia
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Entrevistas com pesquisadores
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Profissão Pesquisa
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Memória dos grandes momentos da ciência
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ANDRÉ PESSOA
IMAGEM DO MÊS
Lagartos do Brasil A família de répteis brasileiros ganhou oficialmente dois novos membros. Os lagartos Stenocercus squarrosus (foto) e Stenocercus quinarius foram descritos na última edição do South American Journal of Herpetology, da Sociedade Brasileira de Herpetologia. O artigo é assinado por Cristiano Nogueira, analista em biodiversidade da entidade Conservação Internacional-Brasil, e Miguel Trefaut, da Universidade de São Paulo. As novas espécies têm distribuição restrita no Cerrado e na Caatinga. O Stenocercus quinarius foi encontrado no Parque Nacional Grande Sertão Veredas, entre Minas Gerais e Bahia, e o Stenocercus squarrosus, no Parque Nacional da Serra das Confusões, no sul do Piauí. Os lagartos Sternocercus têm no máximo 14 centímetros de comprimento até a cauda e cabeça triangular com quatro protuberâncias que lembram chifrinhos.
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50 RITA SINIGAGLIA-COIMBRA/UNIFESP
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CAPA
CLAUDIUS
REPRODUÇÃO BODIES... THE EXHIBITION
EDUARDO CESAR
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> ENTREVISTA 10 Angelo Machado
fala sobre suas especialidades: neurobiologia, libélulas, literatura infantil e ambiente
GLÁUCIA RODRIGUES
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26 RECURSOS HUMANOS
Prêmio concedido a pesquisadora da Unicamp chama a atenção para a queda do interesse feminino pela computação 28 SAÚDE PÚBLICA
> POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
O desafio de garantir a quem precisa a vacina contra a doença pneumocócica
> CIÊNCIA 34 CAPA
Experiências de Miguel Nicolelis subvertem princípios da neurobiologia, prometem membros robóticos movidos pelo cérebro e apostam na ciência como agente de transformação social
22 AVALIAÇÃO
Estudos apontam 11 áreas do conhecimento em que a pesquisa brasileira brilha no mundo
> SEÇÕES
44 PLASTINAÇÃO
Exposição Bodies produz um espetáculo espantoso e minucioso da anatomia humana
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48 EPIDEMIOLOGIA
Tuberculose é 20 vezes mais comum entre índios do que no restante da população 50 BIOQUÍMICA
Equipe do Butantan desenvolve receita para cultivar glândulas de jararaca em laboratório 52 ZOOLOGIA
Ancestral das cobras que mais causam acidentes no Brasil era pequena e tinha dieta variada
3 IMAGEM DO MÊS 6 CARTAS 7 CARTA DA EDITORA 8 MEMÓRIA 16 ESTRATÉGIAS 30 LABORATÓRIO 60 SCIELO NOTÍCIAS ...........................
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ALBERTO HENSCHEL
EDUARDO CESAR
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MIGUEL BOYAYAN
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EDUARDO CESAR
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54 BOTÂNICA
Classificação genética soluciona mistério evolutivo de cipós e pode orientar preservação de matas tropicais 58 FÍSICA
Simulações em computador explicam propriedades elétricas do gelo
> TECNOLOGIA 66 INSETOS
Inseticidas menos tóxicos e com ação lenta no sistema de controle de formigas 70 ENGENHARIA ELETRÔNICA
Sensores de segurança com filtro óptico identificam com precisão pessoas e animais
76 INDÚSTRIA QUÍMICA
Braskem produz resinas com nanotecnologia que resultam em plásticos mais resistentes
86 COMPORTAMENTO
Estudos desmistificam preconceitos sobre famílias de pais homossexuais 90 PERSONALIDADE
> HUMANIDADES 80 HISTÓRIA
Imagem do negro no Brasil foi forjada com a chegada da fotografia no século XIX
73 ENGENHARIA DE MATERIAIS
Bento Prado Jr. aproximou a filosofia da literatura e de outras ciências humanas, redimensionou-a no Brasil e se tornou respeitado em todo o mundo
Espuma biodegradável substitui isopor
........................... 62 LINHA DE PRODUÇÃO 94 RESENHA 95 LIVROS 96 FICÇÃO 98 CLASSIFICADOS
CAPA MAYUMI OKUYAMA FOTO RITA SINIGAGLIA-COIMBRA/UNIFESP
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CARTAS cartas@fapesp.br
Anorexia Lemos no livro Histeria, de Sílvia L. Alonso e Mario P. Fuks: “Podemos identificar apresentações de histeria no seio de algumas epidemias que ocupam a cena contemporânea:os pânicos,a fadiga crônica,as anorexias e bulimias,as personalidades múltiplas e as fibromialgias”.O pediatra Mauro Fisberg responde na entrevista “Corpos sob pressão”(edição 131) a algumas questões agudas que andam na moda e na mídia,sobre belas modelos e adolescentes que sofrem de anorexia e bulimia,patologias alimentares – ou mesmo de doenças que entram no recente cardápio psiquiátrico,a ortorexia e a vigorexia. A psiquiatria tem uma necessidade crucial de apagar a existência e a pertinência dos sintomas histéricos,pois a psicofarmacologia ainda não fabricou nenhum remédio apropriado e eficaz que dê conta da velha e malvista histeria descoberta pelo médico vienense Sigmund Freud – a palavra (lógos) curando a doença (páthos). WALTER ZINGEREVITZ, FACULDADES INTEGRADAS TIBIRIÇÁ São Paulo,SP
Egito antigo Sem ser arqueólogo,permita-seme discordar da iniciativa de se ter uma equipe antropológica brasileira escavando no Egito (reportagem “Os imperadores e as múmias”,edição 131). A fundamentação está em que a arqueologia americana é a que mais necessita de escavações e,inclusive,onde aparecem os melhores resultados.Estamos tendo uma exposição em São Paulo sobre O tesouro do senhor do Sipán que mostra as maravilhas descobertas há menos de dez anos,enquanto saqueadores leigos trabalham intensamente levando peças sem muitas vezes lhes dar os cuidados devidos nem conservar os dados da escavação. Também no México existem sítios de 6
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muito valor,dos maias vêm se encontrando interessantes revelações e quem sabe o que talvez possa ser descoberto ainda em território brasileiro.Onde fica a integração latino-americana? Onde a presença de cientistas brasileiros seria mais notada e apreciada? JOSÉ J. LUNAZZI INSTITUTO DE FÍSICA/UNICAMP Campinas, SP
divíduo e no desenvolvimento de uma sociedade.Qualquer usuário dessa tecnologia sabe quais são esses benefícios. O que precisa ser melhor discutido é o papel do governo e a maneira como esse projeto está sendo conduzido. VITOR PIRES VENCOVSKY INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS/UNICAMP Campinas, SP
Crescimento EMPRESA QUE APÓIA A PESQUISA BRASILEIRA
Laptop para crianças Enquanto a maioria discute as funcionalidades e o desempenho dos computadores portáteis educacionais,seu preço de venda,onde será fabricado e quais empresas o fabricarão,pouco é discutido ou questionado sobre o papel do governo nesse projeto (reportagem “Revolução na sala de aula”,edição 131).Será que o projeto,idealizado para que cada criança “pobre”tenha seu próprio equipamento,deve ser financiado pelo governo brasileiro? Seráque o governo não deveria investir em projetos que atendessem à coletividade,melhorando as instituições públicas como escolas,universidades e bibliotecas? Investir na individualidade não é criar mais exclusão? Os equipamentos individuais não deveriam ser conquistados? Não é necessário discutir a importância e os benefícios desses equipamentos na formação do in-
Parabenizo Pesquisa FAPESP, que reservou três páginas da edição 130 para discutir a imobilidade da economia brasileira. Utilizando a divertida simbologia de Alice no país das maravilhas, a reportagem “Coma-meou be ba-me” pretendeu tratar os dilemas do crescimento econômico do paísde forma didática.Antestarde do que nunca,era de estranhar que essa instituição não tivesse ainda abordado o tema.Esperamos,pois,que essa reportagem seja a introdução de um amplo debate a ser aprofundado em 2007. MARIA LUCÍLIA VIVEIROS ARAÚJO São Paulo,SP
Discreta progressão Em relação ao uso dos compostos em parasitos do gênero Leishmania, o texto da reportagem Própolis contra câncer, na edição 129,diz que no grupo controle houve progressão da lesão da ordem de 80% e que no grupo tratado com os compostos não houve progressão.O correto é dizer que não houve progressão tão expressiva quanto ao controle,mas existiu uma discreta progressão da ordem de 4%. CLIZETE MARTINS UNICAPITAL São Paulo,SP Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br, pelo fax (11) 3838-4181 ou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.
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CARTA DA EDITORA
ISSN 1519-8774
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Neurônios bem usados
FAPESP CARLOS VOGT
MARILUCE MOURA – DIRETORA DE REDAÇÃO
PRESIDENTE MARCOS MACARI
VICE-PRESIDENTE CONSELHO SUPERIOR CARLOS VOGT, CELSO LAFER, GIOVANNI GUIDO CERRI, HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, JOSÉ ARANA VARELA, JOSÉ TADEU JORGE, MARCOS MACARI, SEDI HIRANO, SUELY VILELA SAMPAIO, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO RICARDO RENZO BRENTANI
DIRETOR PRESIDENTE CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ
DIRETOR CIENTÍFICO JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER
DIRETOR ADMINISTRATIVO
PESQUISA FAPESP CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR CIENTÍFICO), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTONIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, MÁRIO JOSÉ ABDALLA SAAD, PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLLI
DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA
EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN
EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS
EDITORES EXECUTIVOS CARLOS FIORAVANTI (LICENCIADO), CARLOS HAAG (HUMANIDADES), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA), RICARDO ZORZETTO (CIÊNCIA - INTERINO)
EDITORES ESPECIAIS FABRÍCIO MARQUES, MARCOS PIVETTA (EDIÇÃO ON-LINE),
EDITORAS ASSISTENTES DINORAH ERENO, MARIA GUIMARÃES
REVISÃO MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO
EDITORA DE ARTE MAYUMI OKUYAMA
CHEFE DE ARTE JOSÉ ROBERTO MEDDA
DIAGRAMADORES ARTUR VOLTOLINI, MARIA CECILIA FELLI
FOTÓGRAFOS EDUARDO CESAR, MIGUEL BOYAYAN
SECRETARIA DA REDAÇÃO ANDRESSA MATIAS TEL: (11) 3838-4201
COLABORADORES ANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), AZEITE DE LEOS, BRAZ, DANIEL KON (ESTAGIÁRIO), DANIELLE MACIEL (ESTAGIÁRIA), GREGORY ANCOSQUI (ESTAGIÁRIO); IRACEMA CORSO, GONÇALO CÁRCAMO, GONÇALO JÚNIOR, LAURABEATRIZ, LUIZ ROBERTO GUEDES, MARCIO LEVYMAN E YURI VASCONCELOS.
COORDENAÇÃO DE MARKETING E PROJETOS ESPECIAIS CLAUDIA IZIQUE (COORDENADORA) TEL. (11) 3838-4272 PAULA ILIADIS (ASSISTENTE) TEL: (11) 3838-4008 e-mail: publicidade@fapesp.br
ASSINATURAS TELETARGET TEL. (11) 3038-1434 – FAX: (11) 3038-1418 e-mail: fapesp@teletarget.com.br
IMPRESSÃO PLURAL EDITORA E GRÁFICA TIRAGEM: 35.700 EXEMPLARES
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CIRCULAÇÃO E ATENDIMENTO AO JORNALEIRO LM&X (11) 3865-4949 FAPESP RUA PIO XI, Nº 1.500, CEP 05468-901 ALTO DA LAPA – SÃO PAULO – SP
Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO
FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO SECRETARIA DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E TURISMO GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO
A
vegetação de restinga que margeia a estrada que leva de Natal a Macaíba lembra um pouco, pelo menos em meus olhos baianos, a da Linha Verde, rodovia que dá acesso a alguns dos mais paradisíacos trechos do litoral nordestino, entre a praia do Forte, na Bahia, e Mangue Seco, em Sergipe. Mas, ao fazer o percurso citado naquela rodovia, na verdade estamos seguindo para dentro do continente, nos afastando das belas praias de Natal e chegando perto do rio Potengi, afluente do Jundiaí. Nada, no entanto, que deva preocupar excessivamente os jovens doutores e pós-doutores de qualquer parte do país que decidirem mergulhar nas indagações cruciais da neurociência de ponta que o Instituto Internacional de Neurociência de Natal (IINN) promete desenvolver em terras potiguares e, ao mesmo tempo, queiram curtir o mar em Natal. Afinal, o IINN está a coisa de 20 a 25 quilômetros das praias de Natal. Num pulinho chega-se lá. Mas, a julgar pelo ritmo de trabalho do neurocientista Miguel Nicolelis, a cabeça à frente do projeto do IINN, difícil mesmo para os jovens cientistas em questão será encontrar muito tempo livre para as ondas de Natal. Professor titular na Universidade Duke, onde comanda um laboratório com 1.100 metros quadrados, que propõe novidades nada consensuais no campo da ciência básica do cérebro, enquanto realiza avançados experimentos com camundongos e macacos, de olhos postos na construção de neuropróteses (braços robóticos, por exemplo) capazes de obedecer tão-somente às ordens cerebrais, Nicolelis mostra-se incansável. Um dia está em Durham, no outro em São Paulo, depois em Natal, e já segue para o Japão... Parece extenuante, mas tudo indica que ele gosta muito do que faz. E mais ainda de sua convicção de que é possível articular num país como o Brasil ciência de ponta com transformação social em comunidades carentes. O trabalho da equipe de Ni-
colelis, com o apoio decisivo de Sidarta Ribeiro, e sem esquecer Cláudio Mello, ganhou a capa de Pesquisa FAPESP por sua importância. Que certamente será reavaliada entre 23 e 25 de fevereiro no II Simpósio do IINN. Confira a partir da página 34. Estudos de comportamento, ou melhor, de mudança de comportamentos sociais, com freqüência trazem uma bela carga de informação sobre o trânsito das sociedades de um padrão arcaico, ou no mínimo estabelecido, para um outro que ninguém acreditava que algum dia ia vigorar. E quando essas mudanças ocorrem em relação a instituições que pareciam sólidas como a pedra mais alta do Pão de Açúcar, em geral imagina-se que a elas se seguirá uma espécie de dilúvio social, com a instauração do caos e de uma insuportável permissividade. Pois bem, não é nada disso que atestam estudos recentes sobre as famílias de pais homossexuais. O par de iguais, sejam homens ou mulheres, revela muito poucas diferenças em relação ao casal heterossexual no que tange à criação de filhos. Vale a pena conferir na reportagem de Gonçalo Júnior a partir da página 86. Alguma dúvida sobre a nossa capacidade de ser bons e produtivos em algumas áreas que não samba e futebol? Um estudo em cienciometria mostra que desfrutamos um razoável prestígio internacional, digamos assim, em determinadas áreas científicas em que o país tem investido mais seriamente ao longo dos anos. Ou de décadas, em alguns casos. O critério que mediu isso mirou os artigos científicos de brasileiros ou com participação de brasileiros citados por outros autores entre 1994 e 2003. E aí vieram alguns resultados óbvios e outros surpreendentes. Um exemplo do primeiro caso: somos bons em cirurgias cardiovasculares. Do segundo: somos bons em física de partículas. Tudo está explicado a partir da página 22. Ah, e aproveitando o mote desta edição: somos bons em neurociência também. PESQUISA FAPESP 132
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COLEÇÃO MUSEU DA CIDADE DO RECIFE
Há 140 anos era inaugurada no Recife a primeira ferrovia urbana do país | N ELDSON M ARCOLIN
No tempo da maxambomba
MEMÓRIA
O
apelido “Veneza brasileira” sempre pareceu cair muito bem para o Recife.Cortada pelos rios Capibaribe e Beberibe,essa cidade-ilha, como a chamou o escritor Gilberto Freyre,tinha as canoas como principal meio de transporte de pessoas e cargas para chegar até Olinda e alcançar povoados que se formavam às margens dos rios.Até os anos 1860,o uso de cavalos e carruagens que poderiam transpor os caminhos alagadiços era muito caro para a maioria dos mais de 75 mil habitantes.A população da capital pernambucana exigia serviços e benfeitorias
como saneamento,água potável e iluminação. A cidade já era um importante centro financeiro e comercial da época,com potencial exportador concentrado na cana-de-açúcar e no algodão,mas faltavam condições que impulsionassem seu desenvolvimento. A solução veio sob a forma de uma ferrovia urbana, percorrida por uma locomotiva mirim que puxava vagões de passageiros. A maxambomba – corruptela da expressão inglesa machine pump (bomba mecânica) –,como
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COLEÇÃO MUSEU DO ESTADO DE PERNAMBUCO
COLEÇÃO MUSEU DA CIDADE DO RECIFE
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A maxambomba na estação Ponte d’Uchoa (página ao lado), um dos carros de passageiros (alto) e litografia de Francisco Henrique Carls, de 1878, com o trem em uma das estações (acima): progresso sobre trilhos
acabou popularmente batizada, foi o primeiro sistema de transporte urbano sobre trilhos do país, inaugurado em janeiro de 1867. A concessão foi dada pelo governo provincial em 1863 à firma inglesa Brazilian Street Railway Company Limited, com sede em Londres, composta por brasileiros e ingleses – embora, na prática, os três principais cargos da direção pertencessem aos britânicos. Os sócios pernambucanos eram o Barão do Livramento, José Bernardo Galvão Alcoforado e Antônio Luiz dos Santos.
“Foram abertas três linhas singulares para lugares onde o acesso era difícil aos recifenses: Apipucos, Ramal dos Aflitos e Várzeas”, conta o historiador José Lins Duarte, autor de dissertação sobre o tema, defendida na Universidade Federal de Pernambuco. Para construir a estrada de ferro a cidade se modernizou, com a construção de duas grandes pontes de ferro e serviços de infra-estrutura. “A princípio, a ferrovia foi muito útil para a elite local porque chegava às áreas de engenho.” Com o tempo, os engenhos foram desativados e as terras
loteadas para construção de casas, o que beneficiou os mais pobres. Os preços caíram para todos: uma carruagem podia custar mil-réis para qualquer distância. O trem cobrava 400 réis na segunda classe e os valores eram diferenciados, dependendo do destino. As locomotivas começaram com três carros, mas chegaram a puxar 17 deles. Até 1890, cada um carregava 28 pessoas – depois disso foi desenvolvido um novo modelo que dobrou a capacidade de passageiros. As máquinas eram feitas na Inglaterra – no total, havia 14 locomotivas no Brasil. “Era preciso fazer reparos constantes e os artífices mecânicos, carpinteiros e caldeireiros brasileiros começaram a reproduzir e substituir peças que vinham do exterior”, diz Duarte. “Em uma das visitas de inspeção, os ingleses elogiaram esse trabalho como sendo de excelente qualidade.” O sucesso da maxambomba estimulou a concorrência de outras companhias de trilhos urbanos em rotas diferentes dentro do Recife e arredores e mexeu com o comércio. Antes de 1867 as lojas fechavam às 18 horas. Com o sol forte durante a maior parte do dia, as sinhazinhas preferiam fazer compras mais tarde e o comércio passou a fechar às 21 horas, último horário em que a ferrovia funcionava. Com 22 quilômetros de trilhos e 20 estações, a maxambomba durou até 1914 – em alguns ramais ela só foi aposentada em 1919. Em seu lugar entraram os bondes elétricos.
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ENTREVISTA
Angelo Machado Entre livros e libélulas N ELDSON M ARCOLIN
O
pesquisador Angelo Machado tem o hábito de dar grandes saltos de tempos em tempos. Médico formado, especializou-se em neuroanatomia. Uma vez aposentado, prestou concurso em zoologia e virou um renomado entomólogo. Aos 50 anos começou a escrever livros para crianças e hoje é autor consagrado. Simultaneamente a essas atividades, trabalha como ambientalista com ênfase na preservação de espécies ameaçadas de extinção. Aos 72 anos, ele voa sobre todos esses assuntos com a leveza de um inseto. Para ser mais preciso, como se fosse uma libélula, bicho pelo qual nutre fiel paixão desde os 15 anos de idade. Natural de Belo Horizonte, Angelo Machado passou toda sua vida de pesquisador na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – com a exceção de dois anos e meio vividos em Chicago, Estados Unidos, na Universidade de Northwestern, onde fez pós-doutorado. Escreveu mais de cem artigos científicos sobre neurobiologia e entomologia e descreveu 48 novas espécies e quatro gêneros de libélulas. Ao mesmo tempo, seu nome foi incorporado a 27 seres vivos, entre libélulas, borboletas, besouros, aranhas e até um fungo, como homenagem de outros pesquisadores ao seu trabalho. Hoje a produção científica exuberante parece interessá-lo menos que seu hobby atual, escrever para crianças. Embora ainda esteja ativo como pesquisador e professor emérito da UFMG, Machado descobriu o universo fantástico da literatura infantil há 20 anos. Ao mesmo tempo que conta histórias ensina um pouco de biologia em seus livros, o que no início rendeu diversas críticas dos que não acham ser possível conciliar literatura com ciência.
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Pai de quatro filhos – Lúcia, Flávia, Paulo Augusto e Eduardo – e avô de seis netos, Machado é casado com Conceição, pesquisadora em biologia celular. No início da carreira, ela realizou e publicou trabalhos com o marido e ambos criaram o Laboratório de Neurobiologia da UFMG. Há cerca de 25 anos Machado foi para o Departamento de Zoologia e Conceição continuou na mesma linha de pesquisa onde está até hoje. Juntos, são o único casal da Academia Brasileira de Ciências. ■ De neurobiólogo, o senhor tornou-se entomologis-
ta. Mas diz que sua paixão sempre foi estudar insetos. Por que não foi direto para a entomologia em vez de fazer medicina? — Naquela época, em 1953, o curso de história natural estava começando e só tinha um bom professor e pesquisador de área que não me atraía. Pensei em fazer agronomia para poder estudar entomologia, mas olhei o programa e notei que tinha um monte de coisas que não me interessavam. Aí acabei na medicina porque o curso básico era muito bom tanto na teoria como na prática. Se fosse hoje, eu teria feito ciências biológicas e doutorado em entomologia. O senhor chegou a atuar como médico? — Depois de formado, não. Mas no sexto ano, quando era estagiário da Maternidade Odete Valadares, em Belo Horizonte, fiz muitos partos. Mas graças a Deus não inventei de fazer obstetrícia, que é a coisa mais chata do mundo. ■
E o interesse pelos insetos? — Meu gosto pelas ciências naturais foi despertado pelo professor Henrique Marques Lisboa. Ele era catedrático da Faculdade de Medicina e gos■
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FOTOS GLÁUCIA RODRIGUES
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tava de dar aulas práticas em nossa escola primária. Levava a gente para ver as coisas da mata e mostrava como pegar, criar girinos e larvas de insetos aquáticos. Comecei a colecionar insetos que pegava na fazenda. Naquela época eu era sacristão e um dia me falaram sobre um padre que entendia tudo de insetos. Levei uns besouros dentro de uma caixinha para que ele identificasse. O padre olhou e falou, “Este, este e este eu dou o nome amanhã. Os outros eu não sei”. Pensei, “Que padre ignorante”. Depois fiquei sabendo que ele era o maior especialista do mundo em uma família de besouros que tinha 20 mil espécies. Fiquei amigo do padre Francisco Pereira e aprendi entomologia com ele. Juntos fizemos oito expedições à Amazônia e conhecemos várias tribos de índios que são ótimos coletores de insetos. Essa experiência foi importante quando me tornei escritor. Os índios estão em cinco de meus livros. ■ Entre todos os insetos o senhor é fascinado por libélulas. Por quê? — Tenho uma tia, Lúcia Machado de Almeida, que foi escritora de literatura infantil. Em dois de seus livros os insetos são importantes: O escaravelho do diabo e O caso da borboleta Atíria. Um dia ela me disse, “Tem um professor chamado Newton Dias dos Santos que está dando um curso no Instituto de Educação e entende muito de libélulas. Leve suas libélulas lá que ele pode dar os nomes científicos”. Eu tinha 16 anos, fui até ele com uma caixinha com cinco libélulas e disse, “Professor, a tia Lúcia falou que o senhor poderia dar o nome dessas libélulas para mim”. Ele me olhou e falou assim, “Não vou dar nome de libélula nenhuma”. Eu me apavorei. Mas ele continuou, “Você mesmo vai achar os nomes”. E me deu o manuscrito da tese dele sobre libélulas de Lagoa Santa com a recomendação de ir para casa, estudar e descobrir sozinho. Fiz isso. No dia seguinte voltei lá, acertei alguns nomes, errei outros e ele me mostrou por que eu tinha errado. Aquilo foi decisivo. Em vez de simplesmente dar a solução, me mostrou o caminho. Aquelas libélulas eram banais. Se ele tivesse dado o que pedi eu teria apenas cinco nomes. Como não deu, mexo com libélulas até hoje. Passei as férias no Rio na casa do meu tio, o escritor Aníbal Machado, e ia diariamen-
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te ao laboratório do Newton Santos no Museu Nacional estudar libélulas. Voltei no ano seguinte. Assim me tornei especialista em libélulas ■ Quantos escritores havia na família? — Além de tia Lúcia, tinha minha prima Maria Clara Machado e meu tio Aníbal Machado, um nome importante na literatura brasileira. Meu pai, Paulo Machado, também escreveu um livro que foi premiado. O que não se sabe é como apareceu um cientista numa família como essa... ■ Deixe-me fazer uma pergunta inevitável: qual é a graça de estudar libélula? — São dois motivos básicos. Um é estético. A libélula é o animal mais bonito do mundo. As asas transparentes, os olhos grandes, a leveza, a rapidez do vôo, elas são lindas. O outro motivo é a biologia, que é muito interessante, porque ela passa parte de sua vida dentro d’água onde bota os ovos. Para estudos taxonômicos, que é o que eu faço hoje, o grupo das libélulas (odonatos) é muito bom. Está razoavelmente bem conhecido, mas ainda se encontram novas espécies. Isso é muito mais difícil, por exemplo, em aves e borboletas, já muito estudadas. Mas não é como em certas famílias de besouros, que têm tantas espécies novas que até se perde a graça de descrever. ■O
senhor publicou ainda muito novo o primeiro trabalho sobre libélula, não é? — Foi em 1953. Eu estava no primeiro ano da Faculdade de Medicina. O Newton me orientou e publiquei a descrição de uma fêmea desconhecida de libélula. Tinha 18 anos. Um ano depois descobri a primeira espécie nova. Hoje eu tenho cem trabalhos científicos publicados e, destes, 60 são sobre libélulas.
■ Mas os outros 40 artigos são sobre neurobiologia. Por que o senhor escolheu essa área? — Um dia, o professor Liberato João Afonso DiDio, catedrático de anatomia, me convidou para ser bolsista e, depois, seu assistente. Eu gostava de dissecar, mas não via muito futuro naquilo porque eu era mais da área microscópica. Então comecei a estudar e lecionar neuroanatomia porque me levava diretamente à histologia, à célula, e era disso que eu gostava. Estudei e publiquei um
livro que até hoje se usa, o Neuroanatomia funcional. O senhor também trabalhou nos Estados Unidos com microscopia eletrônica. Como foi esse período? — Estivemos lá durante dois anos e meio, eu e a Conceição, minha mulher. Antes deixe-me contar uma história. Quando já era professor veio uma aluna trabalhar comigo. Nessa época eu estudava uma glândula do cérebro, a pineal, e ela começou fazer o mesmo. Depois de algum tempo notamos que estávamos mais interessados um no outro do que na pineal. Fizemos um trabalho de namoro, um trabalho de noivado e trabalhos de casamento, que foram os quatro filhos. Quando alguém me pergunta, “O que você descobriu de mais importante na ciência?”, digo sempre, “Foi a Conceição”.
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■ E como surgiu o interesse pela glândula pineal? — O professor DiDio tinha que escolher um tema de pesquisa para mim e disse, “Esse aluno gosta de coisas estranhas então vou arrumar algo muito estranho para ele estudar. Você vai estudar... a pineal”. Eu concordei. Aí ele imaginou um bicho bem maluco e disse, “Vai estudar a pineal do tatu”. Fiz essa pesquisa e logo descobri que tatu não tem pineal. Esse fato serviu, pelo menos, para despertar meu interesse pela glândula. Nessa época, a Conceição já trabalhava comigo e a Fundação Rockefeller me deu uma bolsa de pós-doutorado na Universidade de Northwestern, em Chicago. Casamos e fomos para lá, em 1965. A Conceição também arrumou para trabalhar com um professor que pesquisava a pineal. Eu fazia microscopia eletrônica e ela técnicas avançadas de histoquímica. Fizemos alguns trabalhos juntos e publicamos bastante naquela época, inclusive na Science. Aí veio aquele dilema que todo mundo tem quando está fora: ficamos ou voltamos para o Brasil? Apesar de termos convite para ficar, decidimos voltar. ■ Os
filhos nasceram depois? — Levamos a Lúcia daqui e a Flávia nasceu lá. Já no Brasil nasceram Paulo Augusto e Eduardo. Como nunca perdi o vínculo com a UFMG, juntamente com a Conceição criamos o Laboratório de
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Neurobiologia. Ela se tornou professora de histologia e continuamos a trabalhar juntos. Em Chicago, ela aprendeu técnicas novas de histoquímica de fluorescência, para detectar catecolaminas [neurotransmissores]. Era algo muito avançado na época. Unindo a histoquímica com a microscopia eletrônica foi possível descobrir coisas muito interessantes.
— Eu era neurobiólogo e tinha um hobby, que era estudar libélulas. Quando me aposentei decidi fazer concurso de novo, para zoologia. Assim, o que era hobby virou profissão. Como um homem não deve viver sem hobby, comecei um novo, que foi escrever livros infantis e peças de teatro. ■ Quando
■ Na época seu interesse era voltado para
a microscopia eletrônica? — Sim. Eu fui a Chicago aprender microscopia eletrônica para usar em minhas pesquisas. Quando cheguei lá já tinha assunto, que era o estudo da pineal e sua inervação simpática durante o desenvolvimento. Descobri uma função nova para o retículo endoplasmático liso. Naquela época achava-se que as vesículas sinápticas da noradrenalina eram produzidas somente no aparelho de Golgi, no corpo dos neurônios, e daí migravam para a periferia. Eu consegui demonstrar que elas podem ser produzidas também nos terminais simpáticos pelo retículo endoplasmático liso. Apresentei esse trabalho em um simpósio na Finlândia e ele foi muito bem recebido e muito citado. Depois, já na UFMG, iniciamos uma nova linha de pesquisas sobre as lesões do sistema nervoso autônomo na doença de Chagas e fizemos algumas descobertas interessantes. Nesse ponto eu me aposentei e fui para a zoologia. Conceição continuou ativíssima nessa mesma linha de pesquisa onde está até hoje. ■ O senhor também montou o laboratório
de microscopia eletrônica, não é? — Coordenei um projeto para montar o Centro de Microscopia Eletrônica do Departamento de Morfologia do ICB. Mas isso foi exceção. Eu sempre usei todo o meu prestígio na universidade para não ser nada. ■ Como
assim? — Eu nunca quis concorrer para chefe de departamento, reitor, diretor, nem nada, com medo de ganhar. Nunca quis cargos burocráticos. Mas aceitei o desafio de montar o Centro de Microscopia Eletrônica porque tinha um bom currículo e era o mais qualificado para isso.
o senhor escreveu o primeiro? — Foi há 20 anos, O menino e o rio. Fui de férias para a praia, comecei a escrever e saiu uma porcaria. Sem querer, eu usava linguagem científica. Resolvi então contar a história para uma criança imaginária no gravador e o texto melhorou muito. Hoje não preciso mais do gravador. Agora vou lhe fazer uma pergunta: você acha que o fato de ser cientista me ajudou ou atrapalhou?
■ Eu acho que uma coisa não tem nada a
ver com a outra. — Estou de acordo, mas muitas pessoas acham que tem. Existe um preconceito que cientista não sabe escrever livro para criança. Mandei O menino e o rio para a Editora Ática. Depois de um ano me devolveram. Disseram que como literatura não servia porque ensinava coisas e como ecologia também não, porque tem bicho que fala, o que não é verdade. Fiquei muito chateado e desanimado e percebi que escritor iniciante, principalmente se for cientista, não tem vez. Nessa época quem leu O menino e o rio, gostou e me animou muito foi meu grande amigo Oswaldo Frota-Pessoa. Foi então que o André Carvalho, da Editora Lê, soube do livro e me pediu os originais. Ele foi publicado, está com 25 edições e ainda é um dos livros infantis de maior sucesso da Editora Lê.
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O escritor de literatura infantil é mais importante que o de literatura para adultos. Se um adulto lê um livro e não gosta, ele deixa de lado e procura outro. O menino fecha o livro e não lê nunca mais.
É o que mais vende? — Hoje não, mas mantém uma boa vendagem. No ano passado, a Secretaria de Educação de Belo Horizonte comprou 10 mil exemplares para distribuir nas escolas. Houve outras dificuldades. Uma crítica de literatura infantil escreveu que aquilo não era literatura, porque ensinava ciência e a mistura não dava certo.
■
Essa discussão foi superada? — Não. Até hoje ainda existe a postura de que cientista não sabe escrever litera-
■ ■ Por que decidiu, depois da aposentado-
ria, fazer um novo concurso?
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A situação ambiental do Brasil mudou muito. O maior avanço foi a institucionalização das variáveis ambientais nos órgãos do governo e das grandes empresas. Nossa legislação é muito boa e houve um grande aumento na conscientização das pessoas.
tura. Guimarães Rosa e Pedro Nava, que eram médicos, sabiam. Mas cientista não. Ainda há uma corrente na literatura infantil para a qual ela tem de ser só ficção. Uma vez tive uma discussão cordial sobre isso com a professora e crítica de literatura Marisa Lajolo. Na ocasião, eu disse a ela, “Veja se é verdade ou ficção: o que você acha de uma abelha que tenta copular com uma flor?”. Ela brincou, “Vai nascer uma florbelha”. Eu insisti,“É ou não é verdade?”. E expliquei que é verdade, sim. A flor libera uma substância que atrai a abelha para a cópula e ao tentar copular ela se lambuza de pólen e vai polinizar outra flor. Para conseguir se reproduzir, a flor engana a abelha que quer copular com ela. Isso não pode ser usado num livro? E, se for, não é literatura? Ora, a realidade, às vezes, é mais fantástica do que qualquer ficção. Bem, hoje meus livros já são bem aceitos pela crítica, pelos colegas e principalmente pelas crianças. ■ Na verdade, o senhor tem uma vantagem sobre os outros escritores porque conhece assuntos ignorados por eles. — A desvantagem inicialmente apontada pelos críticos virou vantagem. Uso em minhas histórias fatos que um escritor comum não conhece.
Dê um exemplo disso. — Veja o livro O Chapeuzinho Vermelho e o lobo-guará. Os zoólogos descobriram que o lobo-guará se alimenta mais de fruta que de carne. Então bolei uma nova versão para a história de Chapeuzinho Vermelho. O lobo-guará entra na casa da vovozinha e vai devorar Chapeuzinho quando vê uma melancia na fruteira e pergunta,“Chapeuzinho Vermelho, para que essa melancia tão grande?”. Ela responde, “É para você comer”. Aí, em vez de comer a menina, ele come a melancia e outras frutas e o lobo, que era terrível, acaba avacalhado. A descoberta dos zoólogos foi a base do livro, que ganhou o Prêmio Adolfo Aisen de Literatura Infantil, da União Brasileira de Escritores, em 1995. ■
Quantos livros o senhor escreveu? — Trinta e cinco livros para crianças e adolescentes, incluindo-se aí três textos de teatro, um livro de esquetes de teatro humorístico, um livro de humor para adultos e sete livros científicos. Esses de ■
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ciência incluem os que participei como um dos editores ou autores, como o Livro vermelho das espécies ameaçadas de extinção em Minas Gerais, A lista vermelha da fauna brasileira ameaçada de extinção e Áreas prioritárias para conservação em Minas. Todos destacam espécies ameaçadas de extinção. ■ Qual
livro ganhou o Prêmio Jabuti? — O velho da montanha, uma aventura amazônica, da Editora Melhoramentos. Foi uma das maiores emoções da minha vida. Era meu terceiro livro e receber esse prêmio me fez acreditar que realmente eu era um escritor. A narrativa se passa na tribo Tirió, no Pará, onde estive um mês coletando inseto. Os heróis são os meninos índios que andavam na mata comigo e eu dedico o livro a eles. A parte antropológica está toda correta. No fim do livro há uma nota explicativa do que é verdade e do que é ficção. Outro livro de destaque foi O tesouro do quilombo, que recebeu o selo de Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. Ele é o segundo de uma linha de livros de fundo histórico que eu iniciei.
■ Qual
foi o primeiro? — Foi Os fugitivos da esquadra de Cabral. A Nova Fronteira havia me encomendado um livro no cenário do descobrimento para adolescentes. Eu não sabia o que escrever até que um dia, lendo a Carta de Pero Vaz de Caminha, me chamou a atenção uma frase. Sabe aquela história sempre repetida de que Cabral deixou dois degredados aqui? Na Carta tem uma frase assim: “... ficaram também dois grumetes que fugiram do navio esta noite”. Os grumetes são adolescentes e eu descobri a minha história. Por que fugiram, o que aconteceu com eles, como viveram entre os índios, tudo isso está em Os fugitivos... Foi um sucesso e considero meu livro mais bem elaborado. ■ O senhor conseguiria viver só de litera-
tura hoje? — Não. Mas os direitos autorais de livros e de teatro ajudam bastante. O problema é que o mercado oscila muito. Por exemplo, no ano retrasado todos compraram livros: o governo federal, as prefeituras de São Paulo e de Belo Horizonte e o governo de Minas. Até o governo
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do México comprou. Já no ano passado as vendas caíram muito. ■ O senhor chegou a alguma conclusão so-
bre como a literatura infantil deve ser feita? — Eu acho que têm de ter histórias. Você pode entrar com poesia, onomatopéia, metáfora, a linguagem que quiser. As crianças, principalmente as que têm por volta de 10 anos, só vão gostar se tiver aventura. Outro componente importante que as crianças gostam é o humor. Eu costumo dizer que o escritor de literatura infantil é mais importante que o de literatura para adultos. Se os meninos não aprenderem a gostar de ler livros infantis, nunca lerão os livros de literatura para adultos. Se um adulto lê um livro e não gosta, ele deixa de lado e procura outro. O menino fecha o livro e não lê nunca mais. ■ Todos
os seus livros infantis têm base científica? — Não.
■ Então
o senhor não faz literatura apenas para fazer divulgação científica. — Quando faço literatura infantil meu principal objetivo é desenvolver na criança o hábito e o gosto pela leitura. Esse é o meu compromisso. Se, além disso, ela aprender alguma coisa de ciências, tanto melhor. Qual livro infantil não tem nada de ciência? — Um deles é O rei careca. Com ele aceitei o desafio de fazer um livro imitando os contos clássicos de Perrault e Grimm. Mas a coisa mais importante que fiz na minha vida foi a coleção Que Bicho Será?
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■ Por quê? — Porque milhares de crianças já se divertiram com as histórias. A coleção tem cinco livros, foi lançada há dez anos e até hoje vende muito! Ela tem como objetivo desenvolver na criança a curiosidade, que considero a principal motivadora da pesquisa científica. Na coleção, os bichos são detetives. Aparece um mistério. Um ovo, por exemplo. A libélula acha o ovo, chama os outros bichos e surge a pergunta, “Que bicho será que botou o ovo?”, “Que bicho será que a cobra comeu”etc. Depois dessa série a Nova Fronteira me pediu que eu fizesse outra co-
leção e eu fiz livros com o objetivo explícito de ensinar. Saiu a série de cinco livros da coleção Gente Tem, Bicho Também, que falam de nariz, garganta, olho, língua e dente. A coleção deu certo.
taz em Belo Horizonte e já esteve também no Rio. Cerca de 200 mil pessoas assistiram à peça, considerada um dos maiores sucessos da história do teatro em Minas.
■ Os seus livros acabam sendo 2 em 1, li-
■ Em maio haverá o lançamento de mais
teratura com ciência. — Na maioria, sim. No corpo do livro eu misturo ciência e ficção. No final tem sempre um anexo no qual o leitor descobre o que é real na história. Por isso, acho que a minha obra literária é também de divulgação científica.
um livro científico do qual o senhor participa. Do que se trata? — Ele será lançado pela Fundação Biodiversitas e sou um dos quatro editores. É o Livro vermelho das espécies ameaçadas de extinção da fauna brasileira. São 627 espécies ameaçadas e cada uma terá um capítulo. Serão dois volumes com cerca de 800 páginas cada um e 282 autores.
■O
senhor escreveu um livro de humor. Como é ele? — Fiz o Manual de sobrevivência em recepções e coquetéis com bufê escasso, da Editora Lê, baseado no manual de sobrevivência na selva, das Forças Armadas. Qual é o principal problema de sobrevivência na selva? Arranjar comida e bebida. Numa festa com bufê escasso o problema é o mesmo. Veja a situação: você vai a um casamento e não janta porque vai ter coquetel. Chega lá e tem aquele mundão de gente e você, morto de fome, sai em perseguição aos garçons para conseguir um pastel ou uma empada. O que fazer? Explico isso no Manual, feito com base científica. Esse livro surgiu com uma brincadeira: a manobra da dupla pinça. Imagine que você está procurando uma empada há meia hora e um garçom pára com a bandeja na sua frente. A etiqueta diz que você só pode pegar uma. É o momento de usar a técnica da dupla pinça. Com o dedo indicador e o polegar você forma a pinça nº 1, que usa para pegar a primeira empada. Com o dedo mínimo e a parte interna da mão você forma a pinça nº 2, que usa para pegar a segunda empada. Assim consegue pegar duas de uma só vez como se tivesse pegando apenas uma, porque a segunda fica escondida. Não é magia, é tecnologia!
■ O senhor mesmo adaptou esse livro para o teatro? — Sim. A pedido do humorista Carlos Nunes eu fiz a adaptação com o nome Como sobreviver em recepções e coquetéis com bufê escasso. Já adaptei cinco livros infantis, todos encenados, três dos quais foram publicados também como teatro. A comédia sobre o bufê escasso ficou seis anos entrando e saindo de car-
■ Esse é parte de seu trabalho como ambientalista? — É. Entrei para o movimento ambientalista por puro egoísmo. Ia à fazenda do meu pai, no Vale do Rio Doce, e gostava de coletar insetos, andar na mata e ouvir o canto do macuco ou do jaó. A cada ano tinha menos mata e menos bicho. Como eu gostava daquilo me filiei ao Centro para a Conservação da Natureza em Minas Gerais. Depois de uns 15 anos, percebemos que a luta ambientalista devia ser mais científica. Então o Centro criou a Fundação Biodiversitas, que é uma ONG técnica, da qual eu fui fundador e presidente por vários anos. ■ O senhor também é presidente da Con-
servação Internacional – Brasil. — Sim. A CI-Brasil é uma ONG muito grande. Temos um corpo de 50 técnicos com nível superior, cinco escritórios com atividades no Brasil todo, principalmente na área de conservação de ecossistemas e criação de corredores ecológicos. A equipe técnica é muito boa, de modo que meu trabalho é mais de representação. Já na Biodiversitas eu sou presidente do Conselho Curador, mas trabalho também como técnico voluntário em projetos sobre espécies ameaçadas de extinção. Estou no movimento ambientalista há 30 anos. Nesse período a situação ambiental do Brasil mudou muito. O maior avanço foi a institucionalização das variáveis ambientais nos órgãos do governo e das grandes empresas. Nossa legislação é muito boa e houve um grande aumento na conscientização das pessoas sobre o meio ambiente. Mas ainda estamos longe de chegar à situação ideal. ■ PESQUISA FAPESP 132
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> POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA ESTRATÉGIAS
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Punições exemplares
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Uma seqüência de punições a pesquisadores do Japão sugere que o governo e a comunidade científica do país deflagraram uma cruzada contra más condutas acadêmicas. Em dezembro passado, duas importantes universidades demitiram cientistas que publicaram artigos questionados e uma professora demitiu-se de uma terceira instituição, acusada de desvio de recursos. A Universidade de Osaka anunciou a demissão de um de seus membros por haver fabricado dados de uma pesquisa. Segundo jornais japoneses, trata-se do químico Akio Sugino, co-autor de um estudo publicado em julho no Journal of Biological Chemistry. Segundo a revista Science, um comitê interno concluiu que Sugino agiu sozinho. Mas, em meio ao escândalo, um outro co-autor do artigo cometeu suicídio. Uma investigação promovida pela Universidade Waseda, em Tóquio, concluiu que uma professora desviou para sua conta particular recursos públicos destinados a bolsistas. Kazuko Matsumoto, a acusada, nega a malversação, mas renunciou ao cargo. Por fim, a Universidade de Tóquio demitiu Kazunari Taira e Hiroaki Kawasaki por práticas de pesquisa não confiáveis envolvendo artigos publicados nas revistas Nature, Nature Biotechnology e Proceedings of the National Academy of Sciences. Foi a primeira vez que as universidades de Tóquio e de Osaka tomaram medidas tão drásticas. Antigamente, os escândalos 16
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eram abafados ou resultavam em punições discretas. Mas, com o crescimento da competição por recursos, passou-se a exigir mais transparência. Em 2006 as três universidades criaram códigos de conduta e comitês para investigar fraudes.
> Europa dá o primeiro passo Até 2020, a União Européia promete reduzir 20% de suas emissões de gases estufa em relação aos níveis de 1990, através da redução do consumo de combustíveis fósseis e do uso de fontes alternativas de energia. O anúncio foi feito pelo presidente da Comissão Européia, o português José Manuel Barroso. Ecologistas consideraram tímida a restrição. Para eles, uma redução menor do que 30% não deterá as conseqüências do aquecimento. “Trata-se da medida mais ambiciosa tomada por uma região do mundo para combater a mudança climática”, reagiu Barroso. Segundo ele, o bloco convidará todos os países desenvolvidos a reduzir as emissões em 30% e assumirá esse compromisso se o mundo industrializado o abraçar. George W. Bush, presidente do país que é o maior poluidor do planeta, fez ouvidos moucos para o apelo, mas já não é tão recalcitrante quando o assunto são as mudanças globais. No dia 23 de janeiro, anunciou um plano para reduzir o consumo de
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> Uma breve
gasolina no país em 20% até 2017. O debate deve esquentar ainda mais em fevereiro, após a divulgação de um novo relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC), fórum científico ligado às Nações Unidas, trazendo evidências de que o aquecimento se acelera.
viagem ao espaço O astrofísico britânico Stephen Hawking, de 65 anos, quer fazer uma viagem espacial num dos primeiros vôos turísticos da companhia Virgin Galactic. Em entrevista ao jornal The Daily Telegraph, ele afirmou que pretende fazer um vôo de treinamento em ambiente de microgravidade, antes de ir ao espaço em 2009 – numa nave de seis passageiros que desprenderá de um avião a cerca de 120 quilômetros de altitude e fará um vôo
> Contribuição compulsória
ILUSTRAÇÕES LAURABEATRIZ
Grandes empresas da Venezuela terão de investir de 0,5% a 2% de seus lucros com programas de ciência, tecnologia e inovação. A Lei Orgânica da Ciência, Tecnologia e Inovação entrou em vigor no dia 1º de janeiro para todas as companhias, públicas ou privadas, com receita anual superior a US$ 1,5 milhão. Segundo a agência de notícias SciDev.Net, o porcentual de contribuição dependerá do tipo de companhia – 2% para operações com petróleo e gás, 1% para empresas de mineração e eletricidade e 0,5% para os outros setores.
> A bronca do premiê O pronunciamento do primeiro-ministro indiano, Manmohan Singh, surpreendeu os pesquisadores que participavam do 94º Congresso da Ciência da Índia, em Chidambaram, no dia 3 de janeiro. O encontro é sempre aberto pelo premiê – que tradicionalmente louva os feitos dos cientistas. Desta vez foi diferente. Ele se disse “profundamente preocupado” com o declínio da ciência básica. “Nosso governo está fazendo o máximo para investir em ciência. Eu conclamo a comunidade acadêmica a também investir tempo e energia intelectual para revitalizar nossas instituições”, afirmou. Singh alertou que irá submeter laboratórios de pesquisa da Índia à avaliação de especialistas de outros países. Seus comentários foram provocados por informes de seu conselheiro científico, o renomado químico C. N. R.
Rao, descrevendo a revoada de talentos das universidades e dos laboratórios do governo para a indústria e para o exterior.
ISRAR ARDIANSYAH/ICAS
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> O plano dos
€ 53 bilhões
A União Européia (UE) lançou o Sétimo Programa Quadro, que irá investir um total de € 53,2 (cerca de R$ 150 bilhões) em pesquisas de 2007 a 2013. Trata-se do maior programa já proposto pela UE para incentivar o desenvolvimento da ciência e da tecnologia. Pesquisadores de países em desenvolvimento poderão participar de grupos que contenham pelo menos três integrantes de países da UE, em áreas como saúde, agricultura, biotecnologia, nanotecnologia, energia, ambiente, transportes, espaço, segurança e ciências sociais. Mais informações podem ser encontradas no endereço http://cordis.europa.eu/fp7/ home_en.html
O físico Stephen Hawking: passeio orbital
de uma hora. Catedrático de matemática na Universidade de Cambridge, Hawking sofre de uma moléstia que provoca paralisia progressiva e o impede de falar. Ele se desloca em uma cadeira de rodas e usa um sintetizador vocal para comunicar-se. O desejo de Hawking combina com a necessidade da Virgin Galactic de promover o turismo orbital – Richard Branson, dono da empresa, já avisou que bancaria a viagem de Hawking. O bilhete deve custar US$ 200 mil, ou cerca de R$ 440 mil.
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a cada três meses. Tais vistos simplesmente começaram a ser negados. Como muitos pesquisadores palestinos têm documentos de outros países, foram impedidos de retornar à universidade depois de viajarem ao exterior.“A perda de talentos é o produto final dessa política”, diz Sarit Michaeli, diretora do B’Tselem, grupo israelense de direitos humanos. Os protestos contra a asfixiada universidade unem pesquisadores palestinos e israelenses.
> As ambições
CIÊNCIA NA WEB Envie sua sugestão de site científico para cienweb@trieste.fapesp.br
memorias.ioc.fiocruz.br/101(supII).html
Uma edição especial sobre paleontologia da revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz está disponível na internet na íntegra, em inglês.
de Zâmbia
> Universidade sitiada A Universidade Birzeit, no território palestino da Cisjordânia, já perdeu 57 professores desde o ano passado. O êxodo foi involuntário e se deveu a uma imposição do governo israelense, que controla as fronteiras, de acordo com a revista Nature. Portadores de passaportes estrangeiros não têm residência permitida nos territórios palestinos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, por isso tinham de recorrer a vistos de turistas que expiram 18
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O governo de Zâmbia quer usar a ciência para incentivar o desenvolvimento e reduzir a pobreza. O Ministério das Finanças do país anunciou que o Banco de Desenvolvimento da África aprovou um empréstimo para lastrear o capítulo de ciência e tecnologia do novo plano nacional de desenvolvimento. A iniciativa prevê o treinamento de 300 pesquisadores em nível de pós-graduação e melhorar as condições de trabalho dos cientistas, por meio da reforma de 300 laboratórios. Um dos objetivos é reduzir a fuga de cérebros – mais de 200 pesquisadores migraram nos últimos 15 anos. O plano prevê investimentos totais de US$ 12 bilhões, sendo US$ 23 milhões carimbados para a ciência e tecnologia. Paul Zambezi, do Ministério da Ciência e Tecnologia, disse à agência de notícias SciDev.Net que nunca antes na história de Zâmbia investiu-se tanto na área.
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www.aeb.gov.br/cbers2
As trajetórias dos três satélites brasileiros, os SCD 1 e 2 e o CBERS-2, podem ser acompanhadas em tempo real no site da Agência Espacial Brasileira (AEB).
radio.unesp.br
O endereço disponibiliza os programas da rádio FM da Universidade Estadual Paulista (Unesp), sediada no campus da instituição em Bauru.
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> O avanço dos transgênicos Um relatório do Serviço Internacional para a Aquisição de Aplicações em Agrobiotecnologia (ISAAA, na sigla em inglês) mostra que a área plantada com culturas geneticamente modificadas no Brasil aumentou 2,1 milhões de hectares em 2006 em comparação com 2005. Com isso, o país tem hoje 11,5 milhões de hectares cultivados com soja e algodão transgênicos, área superada apenas pelos Estados Unidos, com 54,6 milhões de hectares, e Argentina, com 18 milhões de hectares. Depois do Brasil, despontam no ranking o Canadá (6,1 milhões de hectares), a Índia (3,8 milhões) e a China (3,5 milhões). O plantio de sementes de algodão resistentes a insetos, autorizado em 2005, já responde por 15% da safra brasileira. Mas o principal impulso veio da cultura de soja. As lavouras de culturas geneticamente modificadas ocupam hoje, no mundo, uma área de 102 milhões de hectares, 13% mais do que
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Parceria contra a meningite O Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos da Fundação Oswaldo Cruz (Bio-Manguinhos/Fiocruz) e o Instituto Finlay, de Cuba, vão produzir mais de 20 milhões de doses da vacina meningocócica AC nos próximos dois anos para abastecer os países africanos do chamado Cinturão da Meningite, como Costa do Marfim, Mali, Nigéria e Sudão. A iniciativa foi sacramentada num contrato entre as duas instituições e a Organização Mundial da Saúde (OMS), em meados de janeiro. O objetivo é prevenir a interrupção das campanhas de imunização, dado o interesse cada vez menor da indústria farmacêutica em fabricar as vacinas. A cooperação garantirá a continuidade do fornecimento. “É um acordo que visa um bem maior, que está sob a égide da solidariedade internacional”, afirmou o presidente interino da Fiocruz, Paulo Gadelha. A Bio-Manguinhos e o Instituto Finlay dominam a tecnologia de produção de vacinas contra os meningococos A e C. O acordo permitirá que os dois países viabilizem a produção em larga escala, que começará a ser distribuída até o final do ano.
no ano de 2005. O maior plantio é o de soja, com 58,6 milhões de hectares. Depois vem o milho, com 25,1 milhões de hectares, o algodão, com 13,4 milhões de hectares, e a canola, com 4,8 milhões de hectares.
> Novo diretor da Esalq O pesquisador Antonio Roque Dechen tomou posse no dia 16 de janeiro como novo diretor da Escola Superior de Agricultura Luiz MONSANTO
ESTRATÉGIAS
BRASIL
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Algodão transgênico: responsável por 15% da safra brasileira
de Queiroz (Esalq), unidade da Universidade de São Paulo em Piracicaba. Dechen substitui José Roberto Postali Parra, diretor entre 2004 e 2007. Formado pela Esalq em 1973, Dechen é professor do Departamento de Ciência do Solo, onde leciona a disciplina Nutrição Mineral de Plantas. Já havia ocupado as funções de vice-diretor e de presidente da Fundação de Estudos Agrários Luiz de Queiroz (Fealq), entre outras. No discurso de posse, fez planos para o futuro. “A demanda por energia e alimentos seguirá com forte expansão, portanto iremos primar pela formação de profissionais capazes, empreendedores e arrojados”, disse.
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> Oportunidade na Inglaterra
> Estudos climáticos na Amazônia O Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e a Universidade do Estado do Amazonas (UEA) lançaram o Programa de Pós-Graduação em Clima e Ambiente, iniciativa pioneira na região. O programa começa com nota 4 na avaliação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). A princípio serão 15 vagas para mestrado e dez para doutorado, com as primeiras turmas iniciando em agosto. Foram estabelecidas duas áreas de atuação: física do clima e ecossistemas amazônicos.“No Brasil são formados anualmente cerca de 10 mil doutores, sendo que na Amazônia esse número não chega a 50. Precisamos investir mais na capacidade de mostrar o que nós conhecemos”, disse Adalberto Val, diretor 20
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Estão abertas até 19 de março as inscrições para o programa Cátedra Capes/Seed – Universidade de Londres em Tecnologias Educacionais Inovadoras, parceria entre a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), a Secretaria de Educação a Distância (Seed), ambas ligadas ao Ministério da Educação, e o Instituto de Educação da Universidade de Londres. É oferecida uma vaga para doutores com trabalho vinculado à tecnologia da informação aplicada na educação. Os candidatos precisam ser doutores há pelo menos cinco anos e ter fluência em inglês, entre outros requisitos.
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> Doze semanas em Redmond Três estudantes brasileiros, Rodrigo de Oliveira e Ivo José García dos Santos, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e Börje Felipe Fernandez Karlsson, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, estão entre os oito latinoamericanos selecionados pela Microsoft Research, braço de pesquisa da gigante Microsoft, para estagiar no laboratório de pesquisas da companhia, em Redmond, nos Estados Unidos. Eles devem embarcar em julho e ficarão nos Estados Unidos por um período de 12 semanas. O programa, batizado de Bolsistas Latino-americanos, existe há dois anos. Para obter a bolsa, os alunos de doutorado foram submetidos a um processo de seleção que se baseia na avaliação do desempenho acadêmico, além de avaliar o potencial de investigação de cada um na área de
tecnologia da informação. A candidatura dos estudantes é apresentada pelas universidades. Também farão parte da turma dois alunos da Universidade de Buenos Aires, dois mexicanos, um da Universidade Autônoma do México e outro do Instituto Tecnológico de Monterrey, e um da Universidade do Chile.
> Boas relações institucionais O ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Machado Rezende, reuniu-se no dia 16 de janeiro em Brasília com os presidentes do Conselho Nacional dos Secretários Estaduais para Assuntos de Ciência, Tecnologia e Inovação (Consecti), Rafael Luchesi, e do Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap), Jorge Bounassar Filho. O resultado do encontro foi a assinatura de um acordo que estabelece mecanismos para intensificar a troca de ILUSTRAÇÕES LAURABEATRIZ
ESTRATÉGIAS
BRASIL
do Inpa, que destacou a participação da Secretaria de Estado da Ciência e Tecnologia (Sect) e da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado do Amazonas (Fapeam) nesse processo.
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informações e o intercâmbio entre o governo federal e as autoridades estaduais de ciência e tecnologia. Tais metas serão alcançadas por meio do agendamento de reuniões periódicas e da formação de um comitê para direcionar as ações. Na opinião de Rafael Luchesi, trata-se de um grande avanço nas relações institucionais que resulta do bom relacionamento entre o Ministério da Ciência e Tecnologia e as secretarias estaduais. “O acordo estimula o crescimento do sistema nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, favorece a articulação e estimula o aporte de recursos para os estados. Teremos maior agilidade nas ações e seremos executores diretos da política de Estado em diversas frentes”, afirmou o presidente do Consecti.
A Estação de Satélites Científicos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) localizada em Alcântara (MA), está recebendo dados do satélite francês Corot, lançado em 27 de dezembro. O Inpe faz parte da rede internacional de estações de recepção Corot e rastreia o artefato a cada 12 horas. A participação do Brasil no projeto decorre da assinatura de um acordo entre a Agência Espacial Brasileira (AEB) e o Centro Nacional de Estudos Espaciais da França (CNES). O satélite Corot é dedicado à busca de exoplanetas, planetas fora do sistema solar, e à sismologia estelar – estudo da estrutura estelar e de sua evolução. O satélite, que tem três anos de vida útil prevista, busca detectar planetas rochosos do tamanho da Terra.
> Ensaio para o supercomputador O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e a multinacional NEC assinaram um contrato de compra de um novo sistema computacional de alto desempenho para o Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC), que será útil na definição de seu próximo supercomputador, previsto para 2008. Um cluster
de 1,1 mil processadores está sendo fornecido pela norte-americana Sun Microsystems, através da NEC. O valor do contrato é de US$ 2,4 milhões. O novo equipamento deve chegar ao CPTEC, em Cachoeira Paulista (SP), em março. De acordo com o pesquisador José Paulo Bonatti, responsável pelo projeto, equipamentos com milhares de processadores exigem um grande esforço de desenvolvimento de softwares. Uma equipe de dez doutores do CPTEC/Inpe pretende
desenvolver neste novo ambiente computacional os mesmos programas que rodam hoje no supercomputador SX-6 da NEC. A experiência é estratégica para iniciar o processo de aquisição do próximo sistema computacional do CPTEC, cuja atualização é feita a cada quatro anos.
> Biografias homenageadas A segunda edição do Grande Prêmio Capes de Teses, destinado às melhores teses de doutorado em três conjuntos de áreas do conhecimento, vai homenagear novos nomes da academia. O prêmio das áreas de engenharias e ciências exatas e da terra será batizado com o nome do engenheiro Fernando Lobo Barboza (1913-2001), que exerceu papel fundamental na elaboração da Lei do Petróleo, nos anos 1950. A melhor tese em humanidades será agraciada com o Grande Prêmio Capes de Teses Celso Furtado, homenagem ao economista paraibano (1920-2004), que criou a Sudene e foi ministro do Planejamento e da Cultura. Já o prêmio das ciências biológicas, da saúde e agrárias receberá o nome de Johanna Döbereiner (1924-2000), pesquisadora conhecida por seus estudos sobre a fixação do nitrogênio no solo.
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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
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ois estudos publicados na revista Anais da Academia Brasileira de Ciências traçaram um retrato inédito do que o Brasil vem produzindo de mais relevante na cena científica internacional. Os pesquisadores Rogerio Meneghini e Abel Packer, do Centro LatinoAmericano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (Bireme), debruçaram-se sobre a nata da produção acadêmica nacional entre os anos de 1994 e 2003: o conjunto de 248 artigos científicos citados mais de cem vezes em outros artigos de publicações vinculadas à base de dados Thomson-ISI (Instituto para Informação Científica, na sigla em inglês). Essa amostra representa 0,23% dos 109.916 artigos de brasileiros publicados em revistas indexados no ISI naquele período. A repercussão de um paper é ordinariamente medida pelo número de menções que ele recebe em outros artigos. O passo seguinte foi tentar agrupar os 248 artigos em áreas do conhecimento. Foi possível encontrar denominadores comuns em 114 deles, levando os autores a concluir que 25 núcleos de excelência brasileiros obtiveram destaque especial em 11 diferentes campos: Entre os 12 artigos sobre a Floresta Amazônica, a maioria sobre as conseqüências da exploração da floresta, oito estavam vinculados ao Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), sediado em Manaus. “É um dado bastante positivo, porque demonstra a viabilidade de produzir pesquisa de alto nível fora dos grandes centros”, diz Meneghi-
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ni. A proximidade com o objeto de estudo não explica o impacto.“Muitas instituições de outros países também promovem pesquisas na Amazônia”, afirma. ■ Cirurgias cardiovasculares são o mote de 18 dos artigos mais citados. A maioria deles está vinculada a grandes redes de pesquisa internacional e muitos têm a ver com um mesmo assunto: a eficácia de técnicas como a angioplastia e a implantação de stents para desobstrução de artérias, levados a cabo em instituições paulistas como o Instituto do Coração (InCor) e o Instituto de Cardiologia Dante Pazzanese. Também teve repercussão uma inovadora técnica de redução de ventrículos esquerdos dilatados, inventada pelo cirurgião paranaense Randas Batista. ■ Vinte grupos brasileiros que estudam o metabolismo oxidativo das células produziram dez artigos que alcançaram mais de cem citações. Um dos destaques foram os cinco artigos da equipe de Aníbal Vercesi, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Seus trabalhos ajudaram a entender as relações entre as atividades da mitocôndria e a morte celular. Outros três trabalhos são do grupo de Ohara Augusto, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), em parceria com o uruguaio Rafael Radi. Os artigos resultam de uma pesquisa que reportou a formação de um radical de carbonato, composto até então desconhecido em organismos vivos. ■ Sete artigos sobre catálise química evidenciam o sucesso das pesquisas coordenadas por Jairton Dupont e Roberto F. de
AVALIAÇÃO
Em que somos bons? Estudos apontam 11 áreas do conhecimento em que a pesquisa brasileira brilha no mundo F ABRÍCIO M ARQUES
Souza, professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em 1992, eles desenvolveram novos sais fundidos, líquidos à temperatura ambiente, altamente estáveis, que encontraram ampla aplicação na indústria química. O grupo conseguiu produzir diversos líquidos iônicos, garantindo aplicações em vários campos da ciência. O trabalho foi feito em parceria com a Petrobras. ■ O seqüenciamento genético foi responsável por três artigos brasileiros de grande repercussão. O principal deles foi o do genoma do fitopatógeno Xylella fastidiosa, que mereceu a capa da revista Nature em 13 de julho de 2000. A Xylella é responsável pela praga agrícola do “amarelinho”. O seqüenciamento foi propiciado por um programa coordenado pela FAPESP, que organizou a rede vinculada a instituições paulistas.“É cedo para concluir se essa é a melhor forma de alcançar a excelência em biologia molecular”, diz Meneghini. “Mas houve um ganho fundamental na nossa capacidade de organizar redes de pesquisa em nível nacional.” ■ A pesquisa brasileira em neurociências produziu 16 artigos de alto impacto. Um dos grupos que se destacaram, no campo da farmacologia experimental, é liderado por Frederico Graeff,da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP de Ribeirão Preto, e busca compreender o efeito de drogas que aliviam ou produzem ansiedade no comportamento de ratos. O time com mais artigos é o de Iván Izquierdo, então da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que investiga os mecanismos da memória. O farmacologista Xavier Albuquerque, das universidades Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e de Maryland, nos Estados Unidos, pesquisa os aspectos biofísicos da transmissão sináptica nos neurônios. Um dos artigos em neurociências tem um autor brasileiro, Luiz Antônio Baccalá, da USP, mas foi conduzido num laboratório da Universidade Duke, nos Estados Unidos, comandado pelo brasileiro Miguel Nicolelis, conhecido por seus trabalhos com conexões sensomotoras (veja reportagem à página 34). Meneghini e Packer observam que tanto Xavier Albuquerque quanto Miguel Nicolelis foram estudantes de César Timo-Iaria, pesPESQUISA FAPESP 132
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de Federal de Minas Gerais, a Fundação Oswaldo Cruz e a Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto. ■ Por fim, três artigos sobre o uso de contraceptivos orais e seus efeitos em moléstias vasculares revelaram a participação da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em estudos com grandes redes de pesquisa internacionais.
quisador da USP e pioneiro nas neurociências no Brasil, que morreu em 2005. ■ A física de partículas foi responsável por 13 artigos, graças, em boa medida, a coletas de dados promovidas por duas redes de pesquisa, uma ligada ao Instituto de Física da USP e outra vinculada ao Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas. Os louros são diluídos: cada um dos artigos tem em média 154 autores oriundos de uma dezena de países. ■ A física quântica é o mote de sete artigos, divididos em duas categorias. Um deles, mais afeito ao campo teórico, é capitaneado por Constantino Tsallis, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas – responsável por conceitos que levaram 24
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seu nome, como a entropia Tsallis. O outro, em física experimental, é liderado por Luiz Davidovich, da UFRJ. ■ Catorze artigos versam sobre genética humana, com destaque para os estudos de Mayana Zatz e Maria Rita Passos Bueno, da USP, que identificaram os genes envolvidos na distrofia muscular humana. A Unidade de Endocrinologia Genética da Faculdade de Medicina da USP também contribuiu com dois artigos sobre uma doença genética, um tipo de pseudo-hermafroditismo. ■ Pesquisas sobre doenças infecciosas, como toxoplasmose, Aids e doença de Chagas, responderam por 14 artigos que destacam três instituições: a Universida-
O levantamento é útil para mostrar o rosto internacional da pesquisa brasileira, mas os autores alertam que é preciso contextualizar os dados. A predominância de artigos na área de medicina e biomedicina (108 dos 248 artigos) não se explica apenas pelo desempenho dos cientistas, mas também pelo fato de, no mundo inteiro, esse campo ser particularmente produtivo. Meneghini e Packer fizeram um outro estudo, ainda não publicado, no qual levantaram artigos que receberam pelo menos 50 citações. Surgiram, neste universo, grupos de excelência em áreas como a matemática, ciências da computação, antropologia, engenharia, medicina veterinária e biofísica. Em algumas dessas áreas, a produção acadêmica mundial é menor, o que explica o número de citações inferior. Atribui-se a pouca repercussão de pesquisas brasileiras em humanidades ao fato de tratarem de assuntos regionais, que não despertam interesse internacional. O levantamento traz vários achados que inspiram reflexões. Um deles é a considerável prevalência de estudos feitos por grandes redes internacionais, nas áreas de medicina, física de partículas e astronomia. São artigos sobre a incidência de doenças e a eficácia de drogas, ou que dependem da coleta de dados por meio de aceleradores ou telescópios. Entre os 37 artigos mais citados, que chegaram a receber 250 citações cada um, 18 são desse tipo. Em média, cada um desses artigos tem 21 autores de 9,4 países diferentes, diante de uma média de 3,8 países por artigo do conjunto de papers estudados. “São pesquisas importantes, mas algumas têm um escopo quase burocrático, no qual a participação dos pesquisadores se limita a fornecer dados em grandes quantidades”, diz Meneghini. Também chamou a atenção o fato de apenas quatro dos 37 artigos serem de responsabilidade exclusiva de autores brasileiros, numa demonstração da importância da colaboração internacional, o que
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inspirou os pesquisadores a escrever um segundo artigo, específico sobre o tema. Seria um sintoma de dependência ou de fraqueza? O presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Eduardo Krieger, não vê isso como um problema.“Das pesquisas publicadas por brasileiros, entre 30% e 35% têm colaboração internacional, o que é um número saudável”, diz Krieger.“Ocorre essa distorção no ranking dos mais citados porque há uma tendência de autores norte-americanos citarem mais seus conterrâneos”, afirma. Planejar o futuro – A idéia de fazer o levantamento surgiu em 2004, quando o britânico David King, assessor científico do governo do Reino Unido, fez um estudo sobre o 1% de artigos mais citados do mundo entre 1993 e 2001 e publicou um artigo na revista Nature mostrando o ranking dos 31 países que produzem as pesquisas de maior repercussão no planeta. Nele, o Brasil aparece num honroso 23º lugar. O estudo mostrou que o país publicou 27.874 artigos na base Thomson ISI, entre 1993 e 1997 (0,84% do total), e 43.971 artigos de 1997 a 2001 (1,21% do total). Mas que estudos brasileiros eram esses? O ranking não se propunha a responder isso, razão pela qual Meneghini e Packer resolveram levantar os dados.
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Conhecer os pontos fracos e os fortes é essencial para planejar o futuro e incrementar o desempenho da pesquisa. Na opinião de Eduardo Krieger, as 11 áreas de maior impacto podem ajudar o governo a direcionar investimentos, mas seria um erro apostar exageradamente em áreas com aplicações práticas deixando de lado a pesquisa básica.“É preciso expandir as áreas de excelência, mas não se pode esquecer que cada uma delas foi construída sobre uma base sólida de ciência descompromissada”, afirma. Ciência, diga-se, não se produz por geração espontânea. Jairton Dupont, professor da UFRGS e líder do grupo que se destacou em catálise química, lembra que os avanços em seu campo do conhecimento resultam de investimentos feitos a partir dos anos 1980 por força do primeiro Programa de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PADCT), do governo federal. “A química era uma espécie de prima pobre do sistema de ciência e tecnologia, mas conseguiu avançar bastante nos últimos 20 anos”, diz Dupont. Para ele, seu grupo teve êxito porque estava pronto para o inesperado – o processo inovador de catálise química foi impulsionado pela dificuldade de importação de reagentes. Aníbal Vercesi, responsável pelo destaque na área de estresse oxidativo, lembra que o reconhecimento de seu campo de pesquisa vem da grande popularidade que ele conquistou no exterior nos últimos anos. “Não há segredos. Tudo depende de muito trabalho e de ter o respaldo de bons estudantes e de bons colaboradores, além de buscar interação com outros pesquisadores.Visito vários laboratórios estrangeiros e estou sempre com as portas abertas para quem quiser conhecer o nosso trabalho”, afirma Vercesi, embora apenas um de seus cinco artigos com mais de cem citações tenha participação de estrangeiros. Para Eduardo Krieger, o desafio é destinar recursos capazes de garantir a manutenção de um crescimento anual de 8% nos artigos publicados, como acontece nos últimos 20 anos, embora a economia avance em ritmo bem menor. “Nosso sistema de pesquisa é jovem e tem evoluído muito. Temos de ajudar o país a se desenvolver e de torcer para que o crescimento da economia permita que a ciência brasileira dê novos saltos.” ■
Quem mais produz em saúde e biologia A Universidade de São Paulo (USP) é líder na produção de artigos sobre saúde e biologia. Entre 2001 e 2003 publicou 5.696 artigos indexados na base do ISI (Instituto para Informação Científica, na sigla em inglês) e 6.368 na base Medline. A liderança está registrada num estudo publicado no Brazilian Journal of Medical and Biological Research, que apresentou um ranking das 20 universidades brasileiras mais produtivas neste campo, responsáveis por 78,7% dos cerca de 25 mil papers publicados entre 2001 e 2003. O principal autor do estudo é o jornalista Ricardo Zorzetto, editor interino de ciência de Pesquisa FAPESP e pesquisador no grupo de Jair Mari, professor do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). A produção está concentrada em instituições da Região Sudeste. O segundo lugar ficou com a Universidade Federal do Rio de Janeiro, com 2.476 artigos no ISI, e 2.318 na Medline, seguida pela Unifesp, USP de Ribeirão Preto e Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Também figuram no ranking a Fundação Oswaldo Cruz, as universidades federais de Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Paraná, Pernambuco, Santa Catarina, Bahia, Ceará e Pará, três unidades da Estadual Paulista (Unesp), a Estadual do Rio de Janeiro, o campus da Unicamp em Piracicaba e a Universidade de Brasília (UnB).
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RECURSOS HUMANOS
Prêmio concedido a pesquisadora da Unicamp chama a atenção para a queda do interesse feminino na computação
Procuram-se mulheres
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laudia Bauzer Medeiros, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e presidente da Sociedade Brasileira de Computação (SBC), esteve em outubro em San Diego, na Califórnia, para receber um prêmio que reconhece a importância de seu trabalho acadêmico e, principalmente, de seu esforço voltado para ampliar a participação feminina em carreiras ligadas à informática. A engenheira Ijeoma Terese Ihenachor, da Agência de Tráfego Aéreo da Nigéria, e a professora Suriya Mayandi Thevar, presidente da Associação das Mulheres em Tecnologia da Informação da Índia, também foram agraciadas com o prêmio Agentes de Mudança, concedido pelo Instituto para Mulheres e Tecnologia Anita Borg e pela Sociedade Norte-Americana de Computação numa conferência que discutiu problemas relacionados à pesquisa e ao trabalho das mulheres neste campo do conhecimento. O prêmio é patrocinado por Fran Allen, pioneira da pesquisa em informática e primeira mulher a receber o título de fellow da IBM, o
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mais alto grau de reconhecimento científico da companhia. O interesse feminino pela computação vem decaindo no mundo inteiro. Conter esse fenômeno é estratégico. De um lado, grandes empresas como a Intel, a Microsoft e a HP consideram essencial garantir a diversidade de gêneros na pesquisa em alta tecnologia.“As companhias dependem do talento e da experiência das mulheres para competir globalmente”, disse Justin Rattner, diretor de tecnologia da gigante dos microprocessadores Intel, explicando por que a empresa é um dos apoiadores do Instituto para Mulheres e Tecnologia Anita Borg. De outro, considera-se que as mulheres são um fator-chave para ampliar o interesse das novas gerações pela computação.“Se os jovens se desinteressam, os países perdem espaço na economia global. A atração das mulheres significa, no longo prazo, que filhos e familiares também se envolvam nesse tipo de carreira”, explica Claudia. Duas décadas atrás, observa a pesquisadora, as mulheres chegaram a ocupar quase metade das vagas nos cursos de
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graduação em computação no Brasil. Desde meados dos anos 1990, o número de candidatas cai paulatinamente. Na graduação, dados do Ministério da Educação mostram que a participação feminina baixou de 30%, há 15 anos, para 5% a 10%. Como conseqüência, a presença feminina na pós-graduação começou a diminuir. “A situação é menos dramática porque a pós-graduação consegue atrair também pesquisadoras formadas em outras áreas”, disse. Segundo levantamento preliminar realizado pela SBC, na pós-graduação em ciência da computação atualmente 25% dos estudantes são mulheres. O número de professoras varia entre 25% e 30% do total. A SBC desenvolve várias atividades para mudar esse panorama, como as Olimpíadas de Computação, que envolvem alunos de todo o país, desde o ensino básico até o fim do ensino médio. Os medalhistas de todo o Brasil são levados à Unicamp para fazer um curso de uma semana, em quatro níveis de escolaridade.“Sempre vou falar para esses jovens e tenho observado o seguinte. Até mais ou menos os 12 ou 13 anos de idade, 50% dos medalhistas são meninas. Entre os 12 e 14, a porcentagem de mulheres já cai para 20%. Acima dos 16, raramente aparece alguma menina. Elas simplesmente se desinteressam. Este mesmo fenômeno da faixa etária está sendo constatado nos países de Primeiro Mundo, o que vem inclusive motivando políticas nacionais de mudança de imagem da área”, afirma a pesquisadora.
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O esforço de Claudia Bauzer Medeiros para mudar este cenário contempla dois tipos de iniciativa. Uma delas são as campanhas de conscientização da SBC para a necessidade de atrair mais jovens. “Não se trata apenas de atrair mulheres, mas de atrair novas gerações. E uma das formas de garantir uma maior inserção de jovens é pela inserção da mulher. Todos os estudos apontam a importância da educação da mãe como agente na educação da família e no conseqüente progresso nacional.” Outro tipo de iniciativa é a divulgação ampla do problema em fóruns e congressos.“Como presidente da SBC, tenho oportunidade de participar de diferentes tipos de eventos no Brasil e no exterior, nos quais discuto essa questão e propostas de solução. Sem a conscientização para o problema, ninguém vai se preocupar em atacá-lo”, diz Claudia. Competição - De acordo com a pesquisadora, há duas hipóteses para o desinteresse feminino – uma econômica, outra social.“O aspecto econômico resulta de um aumento da competição na área. Antes, as mulheres buscavam profissões associadas porque não havia tanto interesse. À medida que o setor evoluiu e começou a oferecer salários melhores, os homens pressionaram o mercado de trabalho e a competição foi acirrada”, explicou. A hipótese social considera o fato de a computação ser vista como uma profissão que privilegia o trabalho em isolamento, na qual se passa o dia todo
diante de uma tela. A mulher teria preferência por atividades que incluam contatos humanos.“Sabemos que isso é uma mistificação, pois a computação exige cada vez mais interação social e tem importância em todas as áreas”, afirma. Formada em engenharia eletrônica em 1976, pela PUC do Rio, Claudia Bauzer Medeiros sempre trabalhou com computação: seu primeiro emprego depois de formada foi na estatal Furnas, como analista de sistemas. Ainda nos anos 1970, fez mestrado em informática, também na PUC. Mais tarde, faria doutorado em ciência da computação na Universidade de Waterloo, no Canadá, pósdoutoramento no Institut National de Recherche en Informatique et en Automatique (Inria), na França, e a livre-docência e concurso para titular, defendidos na Unicamp, onde é professora desde 1985. Tem produção acadêmica em mais de 30 projetos de pesquisa na área de bancos de dados científicos. Filha de um médico e de uma psicóloga, Claudia é solteira e tem um casal de irmãos – um é professor de engenharia mecânica da Universidade Federal de Minas Gerais e a outra, professora de matemática na Universidade Federal Fluminense. “Tenho pais maravilhosos que ensinaram aos filhos a importância do estudo e do trabalho. Na minha geração ainda é raro, no Brasil, uma família em que todos os filhos fizeram doutorado – e cada um em uma área diferente”, diz. ■
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W Imagem de microscópio revela invasão por Streptococcus pneumoniae
SAÚDE PÚBLICA
Fôlego para a vacina Especialistas declaram 2007 o ano de luta contra a doença pneumocócica
innie tem 3 meses de idade e luta para respirar – de pouco adianta o tubo de oxigênio que entra em sua narina.Seus olhos arregalados são o retrato vivo do pânico diante da batalha quase perdida contra a doença pneumocócica,a principal causa de morte por pneumonia e meningite bacterianas.Essa cena,que se passa num país africano não definido mas poderia ocorrer em qualquer país em desenvolvimento,está no vídeo produzido pela pneumoADIP,organização norteamericana que defende o amplo acesso à vacina contra pneumococo para crianças do mundo todo.As imagens se repetiam sem parar no saguão do Segundo Simpósio Pneumocócico Regional, que em dezembro reuniu médicos,representantes da indústria farmacêutica e responsáveis pelas políticas de saúde pública das Américas do Sul,Central e do Norte.O folheto distribuído ao final do simpósio declara 2007 como o ano do combate contra a doença pneumocócica no continente,mas a batalha será difícil – não só por causa da bactéria em si,mas em razão do alto preço da vacina,por volta de US$ 50 por dose. Na América Latina,só Brasil e México a incluíram em programas – limitados – de vacinação.Em 2005 o governo brasileiro distribuiu 36 mil doses para imunizar crianças vulneráveis devido a outros problemas de saúde. Vacinar essa minoria tem pouco efeito do ponto de vista da saúde pública,mas Luiza de Marilac,coordenadora do Programa Nacional de Imunizações do Ministério da Saúde,calcula que para proteger contra o pneumococo os 3,2 milhões de crianças que nascem todo ano no país seria preciso dobrar o orçamento de que o programa dispõe para aquisição de vacinas. Produzida somente pelo laboratório Wyeth,é a mais cara de todas as vacinas básicas infantis.A expectativa é que o preço caia quando for produzida por outros fabricantes – em 2008 será lançada uma pela GSK –,mas ainda não se
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pode afirmar se o barateamento será suficiente para tornar a vacina viável para ser integrada no calendário de todas as crianças brasileiras. A vacina da Wyeth existe desde 1999 e já foi adotada nos Estados Unidos, onde as crianças começaram a ser imunizadas no final de 2000.Durante o simpósio,Cynthia Whitney,chefe da Seção de Doenças Respiratórias do Centro para Controle de Doenças (CDC) norte-americano,relatou os resultados da implementação da vacina em seu país.De 2000 a 2005 houve uma queda de 98% nos casos de infecção sangüínea e meningite causadas pelos tipos da bactéria Streptococcus pneumoniae presentes na vacina e teve também sucesso contra pneumonia e otite no ouvido médio.Mas o surpreendente,segundo a médica,foi observar uma redução no número de casos em adultos – que não foram vacinados.É o que os médicos chamam de efeito de rebanho:vacinar cr ianças interrompe a transmissão para os mais velhos e,nos Estados Unidos,preveniu boa parte da transmissão para adultos com mais de 65 anos.A campanha de vacinação excedeu as expectativas,segundo Cynthia, que comemora a decisão acertada de incluir a vacina contra pneumococo no calendário de imunizações. Inimigo dissimulado - Streptococcus pneumoniae, mais conhecida como pneumococo, é responsável por doenças letais como pneumonia e meningite,além de otites que podem causar surdez.Doenças pneumocócicas matam quase 1 milhão de crianças por ano, 90% delas nos países em desenvolvimento.Só na América Latina duas crianças morrem por hora e a cada ano 1,6 milhão de pessoas desenvolvem doenças causadas pela bactéria. No Brasil faltam dados sobre sua incidência,mas 750 mil pessoas foram internadas por pneumonia em 2005,das quais se estima que 40% fossem causadas por pneumococo,afirmou Expedito Luna, diretor do Departamento de Vigilância Epidemiológica do Ministério da Saúde.
Como a bactéria é responsável por várias doenças e todas podem também ser causadas por outros agentes,é difícil fazer uma avaliação exata de sua prevalência.“Não há uma doença em que o médico possa reconhecer o pneumococo só com exame clínico”,explicou Gabriel Oselka,pediatra da Universidade de São Paulo (USP) e membro do Comitê Técnico Assessor em Imunizações do Ministério da Saúde.É por isso que dados concretos são escassos no Brasil: faltam recursos para isolar a bactéria e flagrá-la em todos os casos que chegam aos hospitais.Assim,segundo Luna,só 11 mil casos de pneumococo foram diagnosticados em 2005 nos hospitais brasileiros.Como o tratamento em geral é receitado sem conhecer o inimigo,as doenças pneumocócicas são tratadas com antibióticos de amplo espectro que induzem à formação de linhagens de Streptococcus pneumoniae resistentes aos medicamentos.Por isso,a melhor forma de combate é a vacina. Embora as limitações econômicas sejam reais,Jon Andrus,da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas),acredita que o maior empecilho à aquisição de vacinas é uma mentalidade pouco empreendedora.“Há tantos dados e informação que agora temos que olhar para trás e perguntar:‘por que não?’”,argumentou.O desafio é definir um preço acessível a todos os países,que em seguida terão que fazer um esforço para obter fundos.O problema deixa então de ser científico e passa a ser político;para tentar solucioná-lo,a Opas pretende promover encontros entre ministros de Finanças e de Saúde dos países latino-americanos.Está em negociação um encontro durante a reunião do Banco Mundial na Guatemala,em abril,que para Andrus será uma oportunidade de convencer as autoridades governamentais de que “a morte de uma criança é mais importante do que a de uma vaca por febre aftosa”. José Ignácio Santos,diretor do Hospital Infantil Federico Gómez,no México,também ressaltou a necessidade de
se chegar a acordos entre organismos públicos e privados.“O sucesso depende de criatividade e capacidade de convencer os tomadores de decisão”,disse.O rumo mais defendido durante o simpósio envolve obter financiamento de instituições públicas e privadas,como o Fundo Rotatório da Opas,que ajuda e custeia os países associados na obtenção de vacinas. Ou então a Aliança Global para Vacinas e Imunização (Gavi),que dá apoio aos 75 países mais pobres (com PIB per capita menor de US$ 1 mil),sete deles latinoamericanos.Como as oportunidades de financiamento são desiguais entre as nações,Roberto Tapia-Conyer,que até novembro de 2006 era vice-ministro da Saúde do México, ressaltou a necessidade de encontrar esquemas alternativos para países intermediários como o Brasil – que não têm acesso ao Gavi nem ostentam economias fortes o suficiente para arcar com os custos da vacina. Se não houvesse limitações de custos, Oselka acha que não haveria dúvidas quanto a adotar a vacina contra pneumococo.“Mas há outras coisas em jogo, outras prioridades”,contrapõe.Levando em conta custos e benefícios,ele prevê que as vacinas contra meningococo C e varicela serão as próximas a entrar no calendário brasileiro de imunizações.São doenças comuns no Brasil,que podem ser detidas por esquemas de vacinação mais simples e mais baratos.Para determinar um plano de ação para o Brasil,o Ministério da Saúde encomendou um levantamento de custo-efetividade,que avalia o custo de implementação em relação ao ônus que as doenças impõem à sociedade e ao sistema de saúde,explicou Luiza de Marilac.Essa avaliação deve ficar pronta nos próximos meses e servirá como guia para definir as próximas vacinas a integrar o Programa Nacional de Imunizações.Um planejamento cuidadoso é essencial,ressaltou Luna, para que as decisões sejam sustentáveis a longo prazo. ■
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MUNDO
> CIÊNCIA
LABORATÓRIO
O cérebro consumista
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Prazer ou dor? depende do preço
investir no desenvolvimento de medicamentos que,como a quetamina,aparentemente funcionam mais rápido porque agem sobre o neurotransmissor glutamato, que entra na fase final da cadeia de reações químicas que regulam o humor.
> O mais antigo ritual humano Sheila Coulson,da Universidade de Oslo, Noruega,acredita ter encontrado sinais do mais antigo ritual realizado pelo Homo sapiens.Ocorreu na SHEILA COULSON / UNIVERSIDADE DE OSLO
Um medicamento chamado quetamina,que em doses altas funciona como anestésico, mostrou-se eficiente para combater a depressão que não cede aos antidepressivos tradicionais.Ao menos é o que sugere o resultado de um estudo preliminar conduzido por pesquisadores do Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos com 18 pessoas portadoras de depressão refratária. Enquanto os antidepressivos levam no mínimo duas semanas para surtir efeito nos pacientes mais sensíveis à medicação,a quetamina parece ser muito mais rápida: 71% dos participantes tratados com quetamina apresentaram redução dos sinais da depressão no dia em que receberam o medicamento.Em 35% dos casos,esse efeito durou uma semana,segundo artigo dos Archives ofGeneral Psychiatry . Apesar do resultado animador,é pouco provável que a quetamina se popularize como antidepressivo por causa dos efeitos colaterais, que incluem alucinações e euforia.Segundo os pesquisadores,esse estudo mostra a importância de se
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contra a tristeza
A decisão de comprar ou não um DVD, uma camiseta ou outras maravilhas do mundo do consumo não é tão simples quanto parece. Para entender os mecanismos envolvidos nessa escolha, Brian Knutson, da Universidade Stanford, examinou com um aparelho de ressonância magnética funcional a atividade cerebral de 26 pessoas que faziam compras virtuais (Neuron). Ele verificou que a compra de um produto desejado ativa uma região do cérebro chamada núcleo accumbens, ligada à sensação de recompensa. Quando o voluntário considerava o objeto de desejo caro demais, outra região cerebral, a ínsula, entrava em funcionamento, enquanto o córtex pré-frontal mesial era desligado — a ocorrência simultânea desses fenômenos está associada à expectativa de perda e dor, uma indicação de que pulsões anteriores ao capitalismo controlam o desejo de consumir.
Serpente de pedra: testemunha de ritos milenares
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África,onde agora é Botsuana, há 70 mil anos,cerca de 30 mil anos antes do que se acreditava.Lá,o povo san mantinha uma caverna só para rituais,onde eram observados por uma serpente de pedra de 6 metros de comprimento e 2 de altura – animal que,segundo a mitologia desse povo,criou os seres humanos.Ao cavar diante da serpente,Sheila encontrou pontas de lanças feitas com rochas de cores diferentes.As pontas vermelhas eram especiais. Os san as abandonavam, queimavam ou despedaçavam depois de prontas – uma destruição ritual de artefatos, segundo a pesquisadora. Além da serpente,pinturas na parede representam uma girafa e um elefante,animais que integravam a mitologia san.
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Arcabouço cósmico: matéria escura envolve galáxias jovens
> O Universo invisível Um grupo internacional de astrônomos revelou em janeiro o primeiro mapa tridimensional de um grande volume de matéria escura, forma desconhecida da matéria responsável por 80% da massa do Universo – os 20% restantes são matéria comum, prótons, nêutrons e elétrons que formam as galáxias. Como a matéria escura não pode ser vista porque não absorve nem emite luz, os astrônomos a mapearam por meio da observação da estrutura de meio milhão de galáxias. Com o auxílio dos telescópios espaciais Hubble e XMM Newton e de telescópios em terra nos Estados Unidos e no Chile, eles identificaram distorções que a matéria escura provoca na luz emitida pelas galáxias. O mapa da matéria escura revela uma rede de filamentos que se adensou próximo a aglomerados de galáxias entre 6,5 bilhões e 3,5 bilhões de anos atrás. Segundo Richard Massey, um dos autores do mapa publicado na Nature, a matéria escura é uma espécie de armação no interior da qual estrelas e galáxias se formam ao longo de bilhões de anos.
> Genes em ação Existem, afinal, diferenças genéticas entre raças humanas. Essa variação não está necessariamente associada a mutações nos genes, mas à sua atividade – ou expressão –, comandada por trechos de DNA vizinhos. A conclusão é de pesquisadores da Universidade da Pensilvânia, Estados Unidos, publicada na Nature Genetics. Eles compararam o grau de atividade de 4.197 genes em caucasianos, chineses e japoneses. Como os dois povos asiáticos são semelhantes entre si, os geneticistas decidiram ver se havia diferenças entre caucasianos e asiáticos. Elas existem e são importantes o suficiente para distinguir as duas etnias. A relevância do trabalho, porém, não é discriminar raças, mas compreender por que alguns grupos étnicos são mais suscetíveis do que outros a certas doenças.
> A fome dos hormônios Em alguns casos, a terapia hormonal pode ser mais eficaz que a psicoterapia para
tratar a bulimia, um dos mais comuns distúrbios alimentares. A bulimia atinge dez vezes mais mulheres do que homens e geralmente é tratada com terapia comportamental e antidepressivos. No Departamento de Saúde Feminina e Infantil do Instituto Karolinska, na Suécia, Sabine Naessén mostrou, porém, que quase um terço das mulheres com bulimia tem níveis altos do hormônio masculino testosterona e baixos de estrogênio, feminino. O resultado são ovários policísticos e alterações no ciclo menstrual, além da sensação exagerada de fome. Das 77 pacientes acompanhadas por Sabine, cerca de metade melhorou da bulimia após dois meses de tratamento com anticoncepcionais à base de estrogênio.
> Farejadores de minas Ratos-gigantes-da-gâmbia (Cricetomys gambianus) correm por campos minados de Moçambique em busca de minas terrestres. Treinados pelo belga Bart Weetjens, quando farejam pólvora, os ratos cavam o chão sem detonar os explosivos. É o sinal para seus parceiros humanos desarmarem as minas deixadas pela guerra civil, que acabou em 1992. Sem verbas para remover mais minas, Weetjens diversificou os dotes de seu exército: os ratos já detectam tuberculose em escarro de doentes com mais eficiência que um técnico com microscópio (Le Monde). Hoje 47% dos doentes escapariam ao faro dos roedores. Com mais treino, eles seriam úteis em prisões e bairros pobres onde a tuberculose causa danos. SYLVAIN PIRAUX
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Faro fino: ratosgigantes ajudam a localizar minas terrestres em Moçambique
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LABORATÓRIO
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BRASIL
> Tudo sobre os mamíferos O que é um cuxiú? De que se alimenta o tamanduábandeira? O mico-leãodourado corre mesmo risco de extinção? A informação disponível sobre mamíferos tupiniquins está agora reunida nas quase 440 páginas do livro Mamíferos do Brasil, publicado pela Universidade Estadual de Londrina (UEL),no Paraná. A tiragem do livro é limitada e foi quase totalmente distribuída entre pesquisadores.Para não privar dessa preciosidade aqueles que se interessam por bichos,os autores puseram o livro na internet (www.uel.br/ccb/pos/biologicas /index.php?arq=ARQ_livros). 32
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Resultado do trabalho de 32 especialistas de diversos estados brasileiros, a obra descreve 658 espécies de mamíferos e aborda sua biologia,ecologia, distribuição e grau de ameaça de extinção.
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> Perigo oculto na areia É só ver um monte de areia que as crianças começam a cavar e construir castelos ou fazer desenhos.Mas essa diversão inocente pode
guardar um risco oculto para a saúde.É que a areia pode conter ovos de parasitas de cães e gatos – entre eles, o Toxocara canis. Esse verme encontrado nos intestinos dos cachorros elimina milhares de ovos para o ambiente por
Vulnerável: encontrado da Guatemala à Argentina, tamanduábandeira corre risco de desaparecer
RAFAEL OLIVEIRA/ESALQ
Homens e mulheres: fatores socioeconômicos influenciam de modo distinto
No Brasil, calcula-se que 10% dos adolescentes fumem. São 2,7 milhões de consumidores de cigarro com idade entre 12 e 17 anos, que podem desenvolver problemas cardiovasculares e onerar mais a área da saúde. O que fazer? Especialistas acreditam que só é possível convencer os jovens a evitar o cigarro conhecendo o que os motiva a fumar. Pesquisadores da Universidade Federal de Pelotas, Rio Grande do Sul, podem ajudar na tarefa. Lá, Bernardo Horta acompanha a saúde de 5.914 crianças nascidas em 1982 em Pelotas. Recentemente ele, Ana Menezes e Pedro Hallal voltaram a entrevistar 2.245 homens e 473 mulheres com 18 anos e suas mães. Queriam saber quantos fumavam e o que os havia motivado a isso. Resultado: 15% dos jovens dos dois sexos consomem cigarros todos os dias. Mas razões distintas os influenciaram. Os filhos de mãe solteira ou de pai com baixa escolaridade tinham probabilidade maior de fumar que os demais. Já entre as moças pesou o fato de pertencer a família pobre, ser filha de mãe que fumou na gravidez ou de pai alcoolista. "Campanhas antifumo deveriam levar em conta essas diferenças", escreveu a equipe nos Cadernos de Saúde Pública.
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Fumo entre jovens
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> Comer muito envelhece Consumir poucas calorias pode não ser apenas uma questão de vaidade, mas de prolongar a própria vida – ao menos entre
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> O coração do brasileiro
Caju: usado contra inflamações no Nordeste
microorganismos e animais de laboratório. A bioquímica Alicia Kowaltowski e seu aluno Erich Tahara, da Universidade de São Paulo, ajudam a entender por quê. Estudando uma levedura, eles desvendaram uma parte do metabolismo associada à longevidade. Em um artigo publicado em janeiro no Faseb Journal, Alicia e Tahara mostram que a dihidrolipoil desidrogenase, enzima que atua na degradação de carboidratos, pode ser uma fonte de radicais livres, moléculas capazes de danificar componentes importantes das células e provocar o envelhecimento celular. Assim como níveis elevados da enzima, a ingestão de carboidratos em excesso leva à produção de radicais livres em uma quantidade maior do que o organismo consegue combater. Os experimentos foram feitos com levedura Saccharomyces cerevisiae, muitas vezes usada como modelo biológico para investigar fenômenos bioquímicos comuns a organismos mais complexos. Segundo Alicia, ainda não é possível garantir que esse mecanismo de produção de radicais livres também exista em seres humanos. Mas ela acha provável que sim.
> Contra gripe ou inflamação Os moradores do Nordeste rural não são afeitos a novidades no que diz respeito ao uso de plantas medicinais. Interessado em conhecer o que as pessoas dessa região – onde está metade da população rural brasileira – utilizam para tratar problemas de saúde, Ulysses de Albuquerque, da Universidade Federal de Pernambuco, entrevistou 31 pessoas em Alagoinha, agreste pernambucano. Quase todas conheciam 48 espécies de plantas medicinais: 25 nativas da Caatinga e 23 levadas para lá de outras regiões. Mas nem todas são de fato empregadas para esse fim. Albuquerque constatou que as preferidas são 15 das espécies nativas: as mais usadas são o caju, a aroeira, a quixaba e a imburana-de-cheiro – o chá da casca das três primeiras serve de antiinflamatório ou cicatrizante; o da última trata tosse ou gripe. Apenas três espécies de outras regiões são adotadas como medicamento (Journal of Ethnobiology and Ethnomedicine). Para Albuquerque, as espécies menos utilizadas são vistas como alternativa para quando não há nativas disponíveis.
Assim como o nível de renda, a probabilidade de morrer por doenças cardiovasculares é desigual nas diferentes regiões brasileiras. Entre 1980 e 1998, o risco de morrer por problemas cardiovasculares aumentou nos estados do Nordeste e do Centro-Oeste e diminuiu nas demais regiões, segundo estudo em que pesquisadores do Instituto do Coração, do Instituto Dante Pazzanese e do Ministério da Saúde avaliaram dados dos 13 estados das cinco regiões brasileiras. As conclusões do trabalho, publicado em novembro de 2006 nos Arquivos Brasileiros de Cardiologia, mostram que decisões de saúde pública devem ser tomadas a partir de análise da situação em nível local. Melhorias socioeconômicas e disponibilidade de serviços de saúde poderiam reverter essa tendência nas regiões mais pobres.
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meio das fezes dos cães. A criança que brinca na areia contaminada e põe a mão na boca pode acabar doente. No intestino, os ovos eclodem e liberam uma larva que migra para órgãos importantes como o fígado, o coração e os pulmões. Quando o sistema imunológico não consegue combater as larvas, surge a toxocaríase visceral, uma inflamação que se manifesta como anemia, inchaço do fígado, tosse ou asma, geralmente combatida com vermífugos e antiinflamatórios. Para ver se o risco de contaminação seria maior em alguns períodos do ano, Maisa Queiroz, do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, visitou durante 18 meses nove praças e terrenos da região sul de São Paulo freqüentados por crianças. Com a equipe de Pedro Chieffi, da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa, ela analisou as amostras e constatou que todas continham ovos no estágio em que infectam seres humanos. Havia ovos em maior quantidade entre fevereiro e julho, que inclui o período em que é mais freqüente o cio das cadelas (Revista do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo). Como evitar o problema? “Tratando os cachorros com vermífugos e impedindo o acesso de cães e gatos à areia em que as crianças brincam”, diz Maisa.
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Doenças cardiovasculares: mortes entre mais pobres
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Unidade mĂşltipla: grupo de cĂŠlulas nervosas interligadas compĂľe base funcional do sistema nervoso central
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CAPA
NEUROCIÊNCIA
Conexões sem fronteiras Experimentos de ponta com o cérebro viajam da Universidade Duke a Natal junto com o desejo de fazer a ciência ajudar a transformar comunidades carentes
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RITA SINIGAGLIA-COIMBRA/UNIFESP
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rata-se, sim, de um sonho. Ou melhor, de sua transposição para o mundo real. E nada parece mais afinado com o espírito de quem tem procurado insistentemente há duas décadas captar no cérebro e decodificar os sinais pouco visíveis das conexões entre pensamento e movimento, intenção e ação, desejo e realização. O nome desse sonho que começa a se materializar com tijolos, cimento e profissionais de alto nível no Nordeste brasileiro é Instituto Internacional de Neurociência de Natal (IINN). Seu sonhador-mor é Miguel Nicolelis, 45 anos, um respeitado neurobiólogo da Universidade Duke, nascido em São Paulo, formado médico pela Universidade de São Paulo (USP), em 1984, e conhecido sobretudo, apesar das importantes contribuições dadas à neurociência básica, por suas avançadas experiências com microeletrodos neurais implantados em macacos que, entre outros resultados, talvez possam levar ao desenvolvimento de próteses para seres humanos, tais como braços e pernas artificiais, ou seja, membros robóticos com moviPESQUISA FAPESP 132
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Ação a distância: Nicolelis treinou macacos-da-noite para moverem braço mecânico por meio do poder do cérebro
Equipe brasileira em Duke pensa a pesquisa de ponta articulada com ação social
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mentos comandados diretamente pelo cérebro. Quer dizer, pelo pensamento. Ou pela vontade (veja Pesquisa FAPESP, edição 116). Para evitar injustiças, contudo, inclua-se logo na categoria de co-sonhadores do instituto dois colegas de Nicolelis: Sidarta Ribeiro e Cláudio Mello. Imaginado a distância desde 2002, dentro de um laboratório que se expandia com fôlego até seus atuais 1.200 metros quadrados na Duke, em Durham, Carolina do Norte, o instituto brasileiro começou a funcionar em meados do ano passado. Ocupa nesse instante um prédio alugado de 1.500 metros quadrados numa rua simples da capital do Rio Grande do Norte, bem próxima à Favela Viasul, enquanto vão subindo as formas mais ambiciosas e sólidas de sua sede própria no campus da Escola Agrícola de Jundiaí, pertencente à Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em Macaíba, pequena cidade a uns 20 quilômetros de Natal. Observe-se que Macaíba não tem mais que uns 60 mil habitantes, enquanto Natal anda na faixa dos 800 mil. Em janeiro último, em meio à azáfama dos operários em três diferentes prédios do instiPESQUISA FAPESP 132
tuto em construção no campus, eram intensas as expectativas de que parte dessas instalações pudesse ser inaugurada durante o II Simpósio do Instituto Internacional de Neurociências de Natal, de 23 a 25 de fevereiro. São três prédios, explique-se, porque um é destinado ao centro de saúde materno-infantil do projeto, outro ao centro de pesquisa propriamente e um terceiro ao centro de educação comunitária. Por aí já se percebe que Nicolelis e seus companheiros mais próximos pensam a pesquisa de ponta articulada com ação social, e disso eles não fazem nenhum segredo. Tanto que na sala de espera da sede atual do IINN, que também abriga a Associação Alberto Santos Dumont para Apoio à Pesquisa (AASDAP), uma placa na parede informa aos visitantes que essa organização de sociedade civil de interesse público (Oscip), criada por eles em 17 de abril de 2004 justamente para viabilizar o instituto,“tem como objetivo a gestão de recursos próprios e de terceiros para a implantação de projetos sociais e de pesquisa científica”. Prossegue:“Fundamenta-se na concepção de que a ciência de ponta pode, em países em desenvolvimento como o Brasil, servir como um poderoso agente de transformação social e econômica de comunidades localizadas em regiões carentes do território nacional”. O primeiro dos prédios do instituto que o visitante vindo da capital potiguar vê em Macaíba, na rua de acesso ao campus, à direita, é o do centro de saúde. Uns 500 metros adiante, praticamente na entrada do campus, à esquerda, ergue-se o centro de pesquisa. E mais para dentro aparecem as futuras instalações do centro de educação comunitária. Placas em profusão diante das obras informam sobre os apoios políticos e financeiros ao empreendimento: o governo federal está representado pelo Ministério da Saúde e pelo Ministério da Educação, através da Fundação Coordenação de Apoio ao Pessoal do Ensino Superior (Capes). A Duke e a UFRN constam das placas, assim como a prefeitura de Macaíba. O que não aparece são os doadores individuais, como Lily Safra, viúva do banqueiro Edmond Safra, que no final de 2006 deu para o projeto uma quantia que, a seu pedido, ninguém revela, mas que, segundo Nicolelis, é a maior contribuição particular já destinada a um empreendimento de pesquisa no Brasil.
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D Em Durham, o grupo queria testar se o macaco aprendia a decodificar — a ler, digamos assim — a mensagem que lhe era enviada na forma de microestimulação elétrica e a associá-la com um movimento
eixemos temporariamente Macaíba para voltar ao bonito campus da Duke, que ocupa a quinta posição no ranking das mais respeitadas universidades de pesquisa dos Estados Unidos. É uma tarde um tanto fria de outono avançado essa de 17 de novembro de 2006. Num dos prédios da área biomédica do campus, em sua ampla sala razoavelmente organizada, dividida em dois ambientes, Nicolelis mostra-se feliz com a apresentação feita há algumas horas por seu orientando de doutorado Nathan Fitzsimmons para a qualificação de tese.“Em nossa especialidade, todo mundo até hoje tinha conseguido ler sinais que vêm das áreas motoras do cérebro. Só que quando você for mexer um braço robótico precisa receber sinais de volta para entender onde está pegando. E o que conseguimos, o que ele achou, foi basicamente a fórmula, um algoritmo para devolver sinais para o cérebro, num feedback sensorial! Foi uma apresentação muito boa”, comemora. Atenção: são desdobramentos muito recentes da pesquisa com implantes corticais de eletrodos em camundongos e macacos que ele comenta. Neste caso, o trabalho era com macacos-coruja ou macacos-da-noite – duas macaquinhas para ser mais exata, Thumper e Pocie, como Nicolelis conta com graça em seu blog no Globo on-line. São um modelo mais próximo do homem, e os resultados poderiam ser de suma importância, em termos de aplicação, justamente para as sonhadas futuras próteses comandadas pelo cérebro. Além disso, em termos de ciência básica, poderiam agregar novas informações a respeito de como o aprendizado efetivamente produz transformações microanatômicas do cérebro. “Em resumo, os mesmos eletrodos usados para registrar sinais elétricos das áreas motoras permitiram que passássemos uma mensagem digital diretamente no córtex somestésico, a região superficial do cérebro que identifica estímulos aplicados à superfície do corpo, para verificar se o cérebro aprende a entender o que está vindo”, explica o pesquisador. Em outros termos, Nicolelis e seu grupo queriam testar se o macaco aprendia a decodificar – a ler, digamos assim – a mensagem que lhe era enviada na forma de microestimulação elétrica e a associála com um movimento.“Fomos de uma
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trodos na experiência, em vez dos quatro utilizados até então. Na literatura neurocientífica, segundo Nicolelis, os comandos relativos ao movimento são atribuídos normalmente à introspecção, quando parar ou mover é determinado no interior do próprio cérebro, e, num padrão que o pesquisador chama de segundo grau, ao ambiente externo. Trata-se então de algo cultural, aprendido. Um exemplo é o impulso imediato de todos os motoristas para parar o carro quando acende a luz amarela do sinal de trânsito, a anunciar que a vermelha virá em seguida.“No Brasil, no entanto, acontece algo muito peculiar, diferente do resto do mundo, que é acelerar o carro para passar na luz amarela”, brinca o pesquisador. Entre os primatas, e talvez alguns outros mamíferos (os cachorros, por exemplo), parar ou mover pode ser determinado também por um comando verbal.“A partir disso, eu chamei de contato imediato de terceiro grau a resposta a uma mensagem que vem de um sistema artificial, de um comando digital diretamente no cérebro, que é arbitrário e passa a ter um significado”, diz.
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coisa muito simples, com padrão fixo, para outra mais complexa, móvel, com uma dimensão espaço-temporal.” Num primeiro experimento, os animais deveriam aprender a associar arbitrariamente o estímulo elétrico no córtex com um movimento à esquerda ou à direita que lhes permitiria encontrar a comida guardada em compartimentos de um lado ou outro. Por exemplo, se aparecesse o estímulo elétrico ele deveria ir para a esquerda e, se não, para a direita. Gastaram 40 dias para aprender. No experimento seguinte, com um padrão mais complexo, com variações temporais, surpreendentemente gastaram só dez dias. “Provavelmente porque generalizaram a informação e isso lhes deu mais facilidade de aprendizado”, observa Nicolelis. Depois, quando os pesquisadores reverteram o padrão aprendido, cada macaca mais rapidamente ainda aprendeu o novo padrão: primeiro, em quatro dias o padrão mais simples, e em três o mais complexo. As experiências prosseguem e, em novembro passado, os pesquisadores estavam passando a usar 16 ele-
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Sonho concreto: operários erguem centros de pesquisa (acima) e de educação comunitária
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o IINN no Rio Grande do Norte trabalham nesse momento 12 pesquisadores sob o comando de Sidarta, 35 anos, o coordenador científico do instituto, além de uma população flutuante de pesquisadores visitantes. Na tarde de 11 de janeiro passado, por exemplo, encontrava-se entre eles Eduardo Schenberg, aluno de Koichi Sameshima, neurologista do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, instituição com a qual o IINN mantém um convênio de colaboração que já apresenta resultados interessantes particularmente nos estudos sobre mal de Parkinson. As instalações da sede alugada do instituto, apesar da previsão de mudança de boa parte dos laboratórios para a nova sede em Macaíba no curto prazo, estão bem preparadas para parte importante das pesquisas com eletrodos – o biotério de roedores e o centro cirúrgico, por exemplo, parecem de primeira linha. E o prédio também tem salas adequadas para as experiências com seres humanos que fazem parte da linha de pesquisa de Sidarta sobre sono e memória. Considerados
também os funcionários da área administrativa, 20 pessoas se distribuem entre o prédio principal do instituto e um segundo prédio voltado à saúde comunitária da população local, bem próximo. Formado em biologia pela Universidade de Brasília (UnB) em 1993, com mestrado em biofísica na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um doutorado em neurobiologia cognitiva molecular pela Universidade Rockefeller (1995-2000), e finalmente integrado ao laboratório de Nicolelis na Duke em 2000, primeiro na condição de pós-doutorando e em seguida como pesquisador associado, Sidarta encara com bastante naturalidade seu trabalho de coordenador do IINN. Diga-se, a propósito, que entre as críticas de parte da comunidade neurocientífica brasileira ao empreendimento do IINN está justamente sua condução à coordenação, que seria para alguns um sinal de fechamento do grupo de Nicolelis, em lugar de uma esperada abertura e interação com vários outros grupos de neurologia no país.“Sidarta é um pesquisador brilhante, extremamente promisPESQUISA FAPESP 132
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Esse sonho começa no Juqueri na década de 1920 ou 1930 pelo menos. O Juqueri, em Franco da Rocha, São Paulo, tentou ser em seu início um centro de pesquisa de ponta
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sor, mas foi frustrante sua escolha como diretor científico porque não parece ter resultado de um processo de seleção com bases claras. Agora o instituto começa a selecionar pesquisadores, pós-doutorandos, mas tudo soava muito restrito de início, e essa foi uma das críticas levantadas no I Simpósio do IINN em 2005.” O comentário é de Luiz Eugênio Mello, próreitor de pós-graduação da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e especialista em neurofisiologia, com contribuições respeitadas na área de epilepsia. Mello, até recentemente assessor científico da FAPESP, deixa clara sua admiração ao trabalho de Nicolelis, que classifica como “um cientista brilhante, no front da ciência moderna que avança para a área de aplicação”. E admite que se expande agora a busca de interação da equipe com outros cientistas brasileiros. Tanto é assim que ele próprio participa de um projeto de cooperação com o IINN coordenado por Iván Izquierdo, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), que envolve também o grupo de Marco Antonio Máximo Prado, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Acho que mexeu muito com a comunidade no primeiro simpósio o fato de o grupo se apresentar como pioneiro e fundador da neurociência no país. Daí
cada um se perguntou se o que fizera nos últimos 30 ou 40 anos não valia nada”, comenta Mello.Aliás, para ele o empreendimento do IINN pôde acontecer em Natal também porque há cerca de 30 anos foi montado um grupo de neurociência na UFRN liderado por Elisaldo Carlini, da Unifesp. Sem isso, poderia ser, em seu entendimento, qualquer outra cidade. Na verdade, por trás das disputas e ciúmes compreensíveis na comunidade universitária parece haver um certo temor relativo à escassez das verbas para pesquisa no país.“Como os recursos são finitos, o grupo de Nicolelis é bem articulado politicamente e muito competente cientificamente, fica mesmo um certo receio no ar quando um empreendimento propalado como coletivo mostrase centralizado no processo de definição de quem vai para lá.” O que talvez poucos saibam é que Sidarta se considera, não sem razão, coresponsável pela idéia do instituto. E Nicolelis deixa espaço para que ele assuma essa condição. Assim, à indagação feita em sua sala em Natal sobre se o instituto é um sonho de Miguel Nicolelis com o qual ele contaminou muita gente, Sidarta responde que na verdade não é bem assim.“Esse sonho começa no Juqueri na década de 1920 ou 1930 pelo menos. O Juqueri, em Franco da Rocha, São Paulo, tentou ser em seu início um centro de pesquisa de ponta e para isso reuniu neurocientistas, médicos de influência psicanalítica... Durante a graduação recebi essa história do meu professor de neuroanatomia, Marcos Marcondes de Moura, que tinha chegado a ser diretor do Juqueri. Ele falava muito sobre isso, sobre o programa de pesquisa do Juqueri para entender doença mental, o banco de cérebro etc. Tanto teórica quanto experimentalmente, eles tinham grandes ambições”, conta Sidarta. E sua conclusão é que foi contaminado por Marcondes pela idéia de fazer ciência de ponta no Brasil nessa área neurológica. “Quando fui para os Estados Unidos tinha essa idéia na cabeça. E tratei de passá-la adiante. Passei para Cláudio Mello, que também era de Brasília e foi meu orientador na Rockefeller. Daí fomos criando um grupo de pessoas dentro da Rockefeller que pensavam essa idéia. E isso chegou até Torsten Wiesel, o presidente da universidade, que se em-
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polgou”, ele detalha. Quando conheceu Nicolelis, em 1998, e se entusiasmou com seu trabalho e seus métodos, Sidarta lhe falou sobre a idéia do instituto. “Miguel também se encantou, mas no início ele estava muito bem estabelecido na Duke. Era certamente o neurocientista brasileiro de maior impacto mundial, professor titular com um laboratório ótimo, aliás dois, com muito financiamento.” Daí sua reação, segundo Sidarta, foi positiva, achou a idéia muito boa. E até por conta de seu compromisso político (sua biografia inclui a militância nas lutas pela redemocratização do país na juventude e a presença entre os fundadores do Partido dos Trabalhadores, o PT), ele se propôs a ajudar. Naquele momento pensava-se em criar um instituto de ponta, num lugar bonito que atraísse gente do mundo todo, onde se fizesse pesquisa norteada pelos problemas, e não pelas técnicas.
“Era uma idéia muito romântica, inclusive com acesso à floresta para estudar os animais livres na natureza”, diz Sidarta. Dessa forma, no começo a ajuda de Nicolelis ao projeto foi emprestar seu prestígio para viabilizá-lo. “No entanto, ele próprio foi ficando mais e mais encantado com a idéia, e em determinado momento trouxe algo realmente novo ao projeto: dar-lhe uma missão social”, diz. Assim, a idéia, até então apenas científica, “com Miguel incorporou essa outra dimensão. Isso foi na virada de 2002 para 2003, numa madrugada logo após a vitória de Lula para presidente”. E com isso, continua Sidarta, “vem junto uma vontade de trazer os valores lúdicos, éticos, meritocráticos e até os disciplinares da ciência para a sociedade, dentro da visão de que o conhecimento é libertador mesmo”. Mas, acrescenta Sidarta, “sem a força do espírito empreendedor de Nicolelis nada disso iria à frente”.
Criador e criatura: idealizador do instituto de Natal, Sidarta analisa ação de neurônios durante o sono de roedores
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m frente ao computador no ambiente que ocupa à esquerda de sua sala, Nicolelis explica que os implantes utilizados nos animais de experimentos, feitos com tungstênio e resina, têm de 4 a 5 milímetros de comprimento, dos quais 2 milímetros ficam dentro do cérebro. Logo ele mostrará a sala de neuroengenharia do laboratório onde os eletrodos são construídos. Na verdade, é sempre problemático quando se põe algo estranho no corpo, com uma parte dentro e outra fora, porque isso facilita infecções. Mas um dos macacos do laboratório já está há seis anos com o eletrodo no cérebro sem nenhum problema. De todo modo, como é preciso pensar no futuro, engenheiros ligados a vários grupos de pesquisa trabalham no desenvolvimento de implantes sem fio, em neuropróteses mais eficazes,“e um dos principais laboratórios de robótica do Japão, o ATR, decidiu participar da colaboração internacional em busca de melhores braços robóticos e de uma veste capaz de funcionar como um exoesqueleto”. A conversa passa aos experimentos importantes ligados a Parkinson, que têm oferecido boas evidências a Nicolelis de que está certo um princípio que ele postula há anos, ou seja, que populações de neurônios, e não um único neurônio, constituem as unidades funcionais do cérebro. Por conta desses experimentos, recentemente neurocirurgiões de Duke estiveram com neurocirurgiões do hospital Sírio-Libanês, num workshop em São Paulo, para treiná-los numa técnica com eletrodos que dá indicações mais precisas e em tempo muito menor sobre que áreas devem ser removidas para evitar os desagradáveis sintomas da doença. Como tudo isso é feito com o paciente completamente acordado, é possível observar também respostas do paciente que conduzem a princípios completamente inesperados. “Por exemplo, sabemos agora que com 300 células apenas é possível produzir um comportamento motor complexo”, conta Nicolelis. É claro, diz ele, “que é preciso um determinado número de neurônios para sustentar qualquer comportamento, mas em vez de milhares é possível que centenas consigam dar conta da tarefa”. Na verdade, de forma simplificada, o que Nicolelis tem proposto é, primeiro, que a unidade fun-
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cional do cérebro não é o neurônio, mas uma população deles. Em segundo lugar, que essa população não tem sempre os mesmos elementos, sua constituição muda a cada momento, ou seja, determinados neurônios são convocados num momento para a tarefa de mexer o braço e, mais adiante, outros, e não os mesmos, podem ser chamados a repetir a tarefa. Por isso pode-se ter rastros do comportamento motor em áreas do cérebro que em princípio nada têm a ver com o movimento. “Em outras palavras, o sistema é distribuído, flexível e não rígido”, resume. De qualquer sorte, ele enfatiza,“o conceito de código distribuído não elimina o conceito de especialização. Não são excludentes”. Uma proposta que isso tudo levanta é que talvez o cérebro humano tenha milhões de neurônios como uma espécie de reservatório potencial para suprir a cada instante a necessidade dessas células para executar cada comportamento. E mais: na falta de células especializadas, outras podem dar conta da tarefa. Essa noção das populações de neurônios como unidade funcional do cérebro soa “muito sensata e muito inteligente” para o neurologista Iván Izquierdo, que, assim como Nicolelis, se encontra entre os brasileiros mais citados na literatura científica (veja reportagem à página 22). “Evidente que em alguns aspectos uma célula é uma unidade, mas não desse ponto de vista funcional”, diz. Muito respeitado por seus estudos da memória e mecanismos de sua consolidação, Izquierdo está nesse momento ultimando a análise da colaboração com o grupo do IINN, para estudos de neurofisiologia, neuroquímica e neurofarmacologia no idoso. “Estamos esperando recursos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e vamos trabalhar com modelo animal: camundongos transgênicos.” Ele afirma que torce para que o instituto de Natal dê certo e possa se transformar num pólo importante de atração de cientistas do sul e do centro do país. Luiz Eugênio Mello também acha muito interessante a idéia das populações neuronais.“Parece fazer sentido, mas as demonstrações cabais são difíceis, até pela própria questão das populações flutuantes.” Ele imagina um modelo onde existam esses neurônios flutuantes, mas
Um princípio que Nicolelis postula há anos é que grupos de neurônios, e não cada neurônio, constituem as unidades funcionais do cérebro
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RITA SINIGAGLIA-COIMBRA/UNIFESP
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Populações flutuantes: grupos distintos de células nervosas podem controlar uma mesma ação em momentos diferentes
ao mesmo tempo relacionados a um núcleo restrito, especializado e sempre atuante. Quanto à aplicação real de braços robóticos e outras próteses, ele diz que vê muito futuro “se se conseguir superar alguns entraves”. Por exemplo, se o implante for colocado totalmente dentro da cabeça, para evitar infecções. Se ele puder ser acionado sem fio,“com ondas de rádio, por exemplo, como se procura”. Miguel Ncolelis mostra um vídeo otimista sobre o instituto, bem próximo do rio Potengi, afluente do Jundiaí. À pergunta de por que em Natal, ele responde “porque se conseguíssemos fazer lá ficaria claro que institutos assim podem ser feitos em qualquer lugar do Brasil”. Nas paredes próximas a seu computador há muitas capas de revistas, de The Journal of Neuroscience à IstoÉ, das mais especializadas, científicas, às mais gerais. Na caminhada pelo campus para chegar ao outro laboratório, no meio do frio já intenso do fim da tarde, ele fala do livro mais para leigos sobre a história de suas experiências, que precisa terminar para publicação no começo de 2008, e de outros dois, mais científicos. “O que quero é apresentar uma teoria mais abrangente da interação do cérebro com a tecnologia que nossa cultura está criando. Isso talvez ajude a explicar uma série de fenômenos que não estão restritos a um cérebro, mas dizem respeito a múltiplos cérebros interagindo. E eu defendo que talvez alguns comportamentos sociais sejam definidos à imagem e semelhança de como os cérebros naturalmente funcionam.” É uma idéia audaciosa. Sobre investimentos em Duke, Nicolelis diz que estão investidos em seus dois laboratórios cerca de US$ 40 milhões. E em Natal? Certamente já passa dos US$ 25 milhões originalmente estimados. E, na direção de um dos 20 grupos internacionais na neurociência de ponta, ele sonha com um instituto virtual do cérebro, integrado por muitas unidades espalhadas pelo mundo, uma ciência horizontalmente feita em colaboração, alheia à geografia, baseada na interação dos talentos. Uma espécie de arquipélago do conhecimento, combatendo a pobreza em volta – a miséria neolítica, como diz Sidarta. Sonha com outros institutos de pesquisa no Nordeste. Sonhar mesmo, conforme a hipótese de pesquisa de Sidarta, talvez seja simular futuros possíveis com base no passado lembrado. ■ PESQUISA FAPESP 132
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C adeia de comando: o encéfalo e a medula espinhal (sistema nervoso central), que processam e transmitem informações aos nervos periféricos
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> P L A S T IN A Ç Ã O
LIÇÃO DE ANATOMIA M ARILUCE M OURA ,
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N OVA YORK
O que tem os ali? O corpo visível em sua com pleta m aterialidade,cam ada após cam ada,e perceptível nas adaptações ao m ovim ento,em suas funções, m uitas, um a após a outra até a com preensão de sua fantástica funcionalidade. O corpo insistentem ente reiterado, inteiro, depois dissecado em partes,em fatias,ossos,m úsculos,nervos,vasos e vísceras.N um a m ultiplicidade atordoante,ele se oferece ao olhar leigo nessa exposição pensada em cada detalhe para ilum inar um espetáculo fascinante, espan-
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toso talvez,e m inucioso da anatom ia hum ana. Estamos diante de Bodies... the exhibition num espaço de quase 3 mil metros quadrados no South Sea Port, em Manhattan, Nova York. Mas poderíamos estar igualmente em Miami, Seattle, Las Vegas, Londres, Berlim, Amsterdã ou Tóquio, e a exposição poderia se chamar Body worlds, Body exploration, The Universe within ou Bodies revealed que não faria diferença. Em todas essas exposições, popularizadas nos últimos anos a ponto de já terem atraído algumas dezenas de milhões de visitantes desde a pioneira delas – Body worlds, de 1996 –, o que permite pôr em cena esse corpo humano hiper-real é uma técnica chamada plastinação ou plastinização, criada pelo anatomista alemão Gunther von Hagens em 1975, patenteada em 1977 e refinada até se encontrar em condições de utilização em 1990. Foi ele mesmo o organizador da primeira exposição que, à plastinação, agregava um raro virtuosismo na dissecação, capaz de descerrar, sem dano à integridade do que se queria exibir, tudo o que se esconde embaixo da pele. Hagens diria que recuperara técnicas de dissecação da China e de outros países asiáticos. Já na mostra pioneira ficou patente o potencial de tais exposições para levantar polêmicas, éticas principalmente. Houve questionamentos sobre a origem dos cadáveres e a existência ou não de autorização prévia para seu uso, ainda que Hagens tenha sempre assegurado que os corpos lhe são doados voluntariamente, segundo os termos de um contrato rígido que rege as doações. Argumentou-se que a exibição feria
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Origem do movimento: as quatro camadas de músculos que recobrem ossos, vasos sangüíneos e nervos
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a dignidade humana e a ética do fazer científico. Mas, ancoradas no interesse crescente do público, as exposições se multiplicaram, configurando-se aos poucos como excelente negócio, com inegável valor educativo. Simultaneamente disseminava-se o uso da plastinação pelos laboratórios de anatomia do mundo todo, confirmando a excelência do método para a formação de estudantes de medicina e enfermagem, entre outros, tanto nos detalhes anatômicos do corpo humano quanto em seu conjunto integrado. A difusão da plastinação nos meios científicos começou antes das exposições, e no início dos anos 1990 alcançou a América Latina pelas mãos do professor Aldo Junqueira, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), que naquele ano fez um estágio de quatro meses com Hagens na Universidade de Heidelberg, na Alemanha. “Num congresso no Rio de Janeiro em 1988 eu conheci o trabalho de Gunther e percebi a importância que ele tinha para a atualização dos estudos de anatomia”, diz Junqueira. Inclusive da anatomia seccional, fundamental para a interpretação das imagens obtidas por tomografia, ressonância magnética e outras técnicas visuais que fatiam o cor-
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O corpo ao meio: corte sagital de 3 milímetros preparado na U S P preserva orgãos femininos na posição original
po.“É preciso notar”, continua ele,“que só 5% dos seres humanos têm total capacidade espacial, habilidade de intuir com clareza como os elementos se distribuem no espaço e formam volumes, a partir de imagens em duas dimensões ou de peças dispersas”. Esse porcentual vale também para os estudantes de medicina.“Ora, como tentar perceber a anatomia sem espacialidade é algo estéril, quanto mais próximos colocarmos os estudantes de medicina dessa anatomia real e espacializada, melhor os formamos”, diz. sa percepção que Junqueira começou um diálogo transoceânico com Hagens, falando com ele “uma vez por semana”, até o estágio em Heidelberg – antes que o anatomista alemão fosse desligado da universidade, entre outras coisas, por promover a dissecação pública de um cadáver, cobrando entradas para o espetáculo. Como titular de Anatomia Cirúrgica na Medicina da USP, Junqueira apresentou à FAPESP, em 1994, um primeiro pedido de financiamento para experiências com plastinação, dentro do Programa de Apoio à Infra-Estrutura de Pesquisa que naquele momento a Fundação iniciava. Outro financiamento se seguiria, perfazendo um total de R$ 187 mil. O resultado é hoje mensurável, não em corpos plastinados para exposições (embora algumas peças estejam na Estação Ciência, em São Paulo), mas em cerca de 2 mil placas de resinas com fatias finíssimas do corpo humano, úteis para as aulas de anatomia. “O recorde é uma peça com apenas 1 milímetro de espessura, muito difícil de obter. O feijão-com-arroz são peças de 2,5 a 3 milímetros”, comenta Junqueira. Com impecável concisão didática, aliás, ele explica os passos para a obtenção dessas placas e o método de plastinação de Hagens.“O método incide sobre duas questões fundamentais para a preservação do corpo após a morte: a desidratação e a criação de um meio adequado para impedir a proliferação de fungos e bactérias e, assim, assegurar a manutenção dos tecidos e das demais estruturas anatômicas”, diz. A desidratação, conhecida desde o Egito antigo, é obtida pela imersão em diferen-
EDUA RDO C ES A R
Experiência brasileira – Foi com es-
tes álcoois, e depois em acetona.“Em dois ou três banhos de acetona, pela pressão de vapor, onde havia água consegue-se colocar acetona. Se essa substituição chega perto de 99%, consideramos o corpo desidratado.” Feito isso, como a pressão de vapor da acetona é baixa, ou seja, ela evapora entre 18 e 22 graus Celsius, a substância tende naturalmente a sair do “espécime”, para usar a linguagem dos anatomistas, e ali fica o vácuo. Antes de prosseguir com a plastinação, vale observar que a gordura é outro inimigo da preservação do cadáver (ainda que na exposição Bodies encontrem-se nos corpos camadas de gordura plastinada). Daí por que em geral se trata de retirá-la após a desidratação. Como? Por meio de banhos em triclorometano, substância que precisa ser manipulada com cuidado porque pode afetar a medula e os nervos de quem lida com ela. Com as peças desidratadas e desengorduradas, chega-se à pedra de toque do método de Hagens: os espaços vazios serão preenchidos por resinas de silicone ou epóxi em forma de monômero, num trabalho mais meticuloso do que sua descrição linear pode fazer crer. Já em relação às placas com que trabalha nas aulas de anatomia, e em cuja preparação treinou técnicos e estudantes, Junqueira explica que as finas lâminas são feitas com serra circular no corpo congelado. “Sem isso não se poderia manter a sintopia, que é a correta contigüidade entre um órgão e outro”, ele diz. Há que se fazer em seguida todo o processo de desidratação e plastinização, nesse caso com a lâmina colocada entre placas de vidro, onde se jogará mais resina epóxi. E com o cuidado adicional de se retirar com varetinhas eventuais bolhas de ar da peça. No final o conjunto vai para uma estufa a 57 ou 58 graus Celsius por 24 a 36 horas para que o monômero de resina epóxi polimerize. O que espanta na técnica, seja para fins científicos, educativos ou de bons negócios, é o quanto o corpo humano, vivo ou morto, pode ser um objeto total e fascinantemente objetivado. ■ PESQUISA FAPESP 132
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> EPIDEMIOLOGIA
Bacilo na tribo Tuberculose é 20 vezes mais comum entre índios do que no restante da população M ARIA G UIMARÃES
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uinhentos anos após o descobrimento do Brasil,os índios continuam morrendo em decorrência das doenças que chegaram com os europeus ao país.Entre elas a tuberculose,uma das mais fatais.Levantamento concluído recentemente pela equipe de Carlos Coimbra Júnior,da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz),no Rio de Janeiro,mostra que o número de casos de tuberculose é cerca de 20 vezes mais alto entre os índios suruís,de Rondônia,do que na população brasileira:815 casos a cada 100 mil pessoas,ante aproximadamente 40 em 100 mil no restante da população. “No Brasil,o único grupo que se assemelha aos índios em termos de incidência de tuberculose é a população presidiária”, avalia Coimbra. Sanitarista e antropólogo,há 20 anos ele coordena uma equipe que inclui o médico Paulo César Basta e investiga a qualidade de vida e a saúde de povos indígenas em Rondônia e Mato Grosso.Nos últimos cinco séculos a tuberculose contribuiu para dizimar a população indígena,que já teve entre 1 milhão e 10 milhões de pessoas na época em que chegaram os europeus e hoje está por volta de 460 mil indivíduos,estima a Fundação Nacional do Índio (Funai). Possíveis causas – Há quem suspeite que
a proporção de casos de tuberculose seja mais alta entre os índios porque eles seriam mais suscetíveis à bactéria,em conseqüência de um sistema imunológico mais frágil.Para Coimbra,porém,não há dados suficientes que confirmem a hipótese. Para suprir a lacuna, sua equipe começou a investigar as características imunológicas e genéticas desses índios. Enquanto essa resposta não vem,é possível explicar ao menos em parte as causas do problema.Nas comunidades acompanhadas por Coimbra,a saúde sofre forte influência do contexto social e 48
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ambiental.A partir dos anos 1980,a economia de mercado levou comunidades indígenas a substituir suas roças de milho e mandioca pelo plantio comercial de café, do qual nem sempre conseguem extrair o suficiente para sobreviver. Com essa transformação e a chegada das madeireiras, conta Coimbra, a prática da caça,da pesca e da coleta de recursos da floresta praticamente desapareceu. Resultado:a comunidade tornou-se dependente de alimentos industrializados e aumentaram os casos de desnutrição entre as crianças suruís. Pobreza e desnutrição deterioram a saúde,mas mudanças no modo de vida também facilitam a transmissão de doenças.“Os suruís já não vivem naquelas grandes malocas de palha,hoje suas aldeias se parecem com a periferia de nossas cidades,com casas toscas de tábuas”, descreve Coimbra.Segundo o antropólogo,é possível que as malocas com grande espaço interno permitissem a circulação de ar,diminuindo a concentração da bactéria causadora da tuberculose.Por sua vez,as casas pequenas e abafadas e a alta taxa de natalidade,que resulta em famílias numerosas,podem facilitar a transmissão desse bacilo,que permanece no ar por longos períodos,em partículas produzidas quando um doente tosse. Mas não são apenas as condições insalubres de moradia as responsáveis pela alta prevalência de tuberculose nas aldeias indígenas,segundo trabalho publicado em setembro nas Memórias do Instituto Oswaldo Cruz.Análises genéticas das bactérias presentes no escarro de cinco índios com tuberculose revelaram quatro linhagens diferentes.Esses resultados mostram que casos novos vêm de fora da aldeia,nos contatos freqüentes que os suruís mantêm nas cidades próximas. A pouco mais de mil quilômetros de Rondônia,no Parque Indígena do Xingu, em Mato Grosso,há mais de 40 anos o De-
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partamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) fornece mais do que atendimento médico às 14 etnias que ali vivem. O Projeto Xingu também capacita agentes indígenas da saúde, que atuam dentro das tribos. Mesmo assim, segundo o relatório de 2002 do projeto, a proporção de casos novos de tuberculose por ano é alta: 263 por 100 mil habitantes. Fosso cultural – Além do isolamento das
Aldeia suruí: mudanças no estilo de vida favorecem transmissão de doenças
aldeias, outro entrave ao tratamento dos índios é a dificuldade de comunicação.“As populações indígenas têm uma noção de temporalidade diferente, não entendem o conceito de tomar um comprimido a cada oito horas. Por isso, os agentes indígenas da saúde são intermediários fundamentais”, explica o médico João Miraglia, do Ambulatório do Índio da Unifesp e colaborador do Projeto Xingu. Um exemplo da má comunicação entre médicos e índios é o caso de um suruí. Paciente exemplar, afirmava tomar sua medicação diária contra tuberculose e não perdia uma consulta no posto de saúde de Cacoal, a cidade de Rondônia mais próxima à aldeia.Apesar dos remédios, sua saúde piorou. Ao visitar sua casa, Basta descobriu que ele de fato tomava seu remédio, mas um único comprimido ao dia, e não os cinco receitados. O erro levou o paciente a desenvolver uma linhagem do bacilo resistente às drogas disponíveis, o que causou preocupação nos integrantes do Programa Nacional de Controle da Tuberculose. Esse caso, ressalta Coimbra, demonstra a urgência de alterar o sistema de atendimento. “O Brasil tem uma população indígena significativa, por isso tem que ser criativo”,afirma o antropólogo,que reforça a necessidade de ir além da pesquisa epidemiológica. As informações que seu grupo publicou a respeito da saúde dos suruís já representam um avanço.“Mas artigos científicos por si não promovem mudança. É preciso usar a informação para melhorar o atendimento e a qualidade dos serviços”, afirma o pesquisador. Segundo Coimbra, é essencial educar a população e os profissionais da saúde, sem deixar de lado a diversidade cultural do país. ■
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> BIOQUÍMICA
Veneno in vitro Equipe do Butantan desenvolve receita para cultivar glândulas de jararaca em laboratório
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os porões do prédio central do Instituto Butantan,em São Paulo,a equipe de Norma Yamanouye se atarefa em torno de placas com poços cilíndricos de 3 centímetros de diâmetro,cheios de um líquido cor-de-rosa.Suco artificial de cereja? Não,nada tão inocente:o líquido é uma sopa de nutrientes – meio de cultura,como chamam os bioquímicos – contendo células de glândula de veneno de jararaca em plena atividade.É a primeira vez que se produz veneno de jararaca em laboratório,e por isso a farmacologista foi convidada pela revista internacional Nature Protocols a mostrar ao mundo sua técnica inovadora.Desde 25 de janeiro,qualquer laboratório que queira usar a técnica pode consultar a publicação on-line, que reúne protocolos de laboratório,apresentados como receitas de bolo. O grupo tenta cultivar células da glândula de veneno de jararaca desde 2000,mas foram necessários cinco anos para descobrir as condições ideais – o tal meio de cultura – que as permitem viver e funcionar em condições artificiais. Norma extrai as glândulas de veneno da cabeça da cobra e separa as células com enzimas,para que possam ser espalhadas no meio de cultura.Uma vez instaladas,as células se organizam em unidades secretoras da glândula (ácinos) e passam a produzir veneno idêntico ao da cobra viva, que causa, por exemplo, efeito hemorrágico semelhante ao observado em quem leva uma picada de jararaca. Norma consegue obter uma boa quantidade de veneno,mas ainda está longe de ser suficiente para produzir soros antiofídicos sem os quais muitas picadas de cobra seriam letais.Atualmente, o Butantan mantém estantes reple-
EDUARDO CESAR
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Espalhadas no meio de cultura cor-de-rosa (página ao lado), as células das glândulas de jararaca se reúnem em estruturas que produzem veneno idêntico ao original
Engenharia genética - Produzir veneno em laboratório ainda é mais caro do que manter cobras em cativeiro, embora seja uma conta difícil de fazer. Apesar do custo alto de desenvolver técnicas de laboratório como essa, ela acredita que o valor cairá rapidamente depois que sua equipe obtiver culturas em que essas células consigam viver por mais tempo. Até o momento as glândulas in vitro funcionam, mas suas células ainda não se reproduzem. Por isso a produção de
O PROJETO Estudo molecular e da sinalização intracelular dos adrenoceptores envolvidos na síntese e secreção de veneno em glândula de veneno da serpente Bothrops jararaca MODALIDADE
Linha Regular de Auxílio à Pesquisa COORDENADORA
NORMA YAMANOUYE – Instituto Butantan INVESTIMENTO
veneno não dura mais de 21 dias, tempo máximo de vida dessas células, segundo mostrou até agora o trabalho de Norma. Uma vez capazes de se dividir, as culturas seriam duradouras e se transformariam em pequenas fábricas de veneno. O tempo ainda deve ser longo até que se consiga fazer as células se reproduzirem in vitro. Há muito de tentativa e erro no trabalho de bancada, e somente aos poucos vão se descobrindo quais reagentes são realmente necessários para manter essas células vivas e capazes de gerar novas células. A vantagem não está apenas no fato de os cilindros cor-de-rosa não terem dentes. No futuro próximo, Norma pretende inserir nas células o material genético de outra cobra – a chamada transfecção de DNA – dentro das mesmas células já afeitas à vida em recipientes de plástico, para produzir veneno de outras espécies de cobra. Isso permitiria produzir veneno de espécies raras, por exemplo, pelo menos para pesquisa.“Algumas espécies são difíceis de encontrar na natureza, e isso limita nosso conhecimento”, explica. A equipe de Norma avalia também a possibilidade de selecionar componentes – toxinas – específicos do veneno que possam interessar para pesquisa ou a produção de medicamentos. Dessa forma seria possível, por exemplo, produzir o composto químico específico que causa a hemorragia após uma picada de jararaca. Para isso é preciso estimular os genes responsáveis por produzir as proteínas desejadas. As técnicas para essa manipulação genética já existem, mas ainda falta fazer com que a estratégia funcione com as células em cultura. ■
NORMA YAMANOUYE/NATURE PROTOCOLS
tas de caixas mais ou menos do tamanho desta revista aberta, com uns 15 centímetros de altura. Dentro de cada uma delas vive uma jararaca ou outra serpente peçonhenta. O veneno retirado das cobras mantidas na Seção de Venenos do Butantan é a principal matéria-prima para produzir o soro e tratar as cerca de 20 mil vítimas de acidentes com cobras que acontecem no Brasil a cada ano – a maioria causada por jararacas. Mas, para a pesquisadora, substituir as estantes por plaquinhas cheias de líquido é ainda uma realidade distante.
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A mãe de todas as jararacas Ancestral das cobras que mais causam acidentes no Brasil era pequena e tinha dieta variada C ARLOS F IORAVANTI
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EDUARDO CESAR
serpente que originou todas as jararacas – a número 1 – deve ter chegado à América do Sul entre 11 milhões e 20 milhões de anos atrás.Provavelmente,veio da América Central,mudando-se de uma ilha para outra,antes de o istmo do Panamá ter se formado. A mãe de todas as jararacas era pequena – não devia passar de 1 metro de comprimento – e levemente gorda.Vivia rastejando nas florestas e tinha uma dieta variada:comia o que não a comesse primeiro.Os biólogos Marcio Martins, da Universidade de São Paulo, Otávio Marques, do Instituto Butantan,e Ivan Sazima,da Universidade Estadual de Campinas,chegaram a essa conclusão depois de ana-
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Prato do dia: a jararaca-de-alcatrazes (esquerda) come centopéias, enquanto a jararaca-comum prefere mamíferos
lisar o tamanho e os hábitos alimentares de quase 3 mil exemplares de jararacas capturados em todos os estados brasileiros e preservados em museus daqui e dos Estados Unidos. Por não ser seletiva é que essa jararaca número 1, na visão dos pesquisadores paulistas, deve ter colonizado os mais diferentes tipos de vegetação – dos desertos da costa do Peru à Amazônia – e originado as 40 outras espécies de jararacas atualmente encontradas na América do Sul, 26 delas só no Brasil, onde integram um grupo de serpentes que medem de 50 centímetros a quase 2 metros de comprimento, escondem-se em todo tipo de terreno e vegetação e são as que mais causam acidentes no país. A mãe de todas deixou descendentes semelhantes a ela, embora de hábitos diferentes, apresentados em detalhe pelos biólogos no livro Biology of vipers. Segundo Martins, suas prováveis características físicas se assemelham às de duas espécies atuais: a Bothrops cotiara, que vive nas matas de Araucária do sul do país, e a Bothrops fonsecai, das áreas altas da Mantiqueira e serra do Mar. Ambas têm o mesmo tamanho que a matriarca, mas adotaram uma dieta especializada: só comem mamíferos – sapos e lagartos, nunca mais. Essas duas espécies de Bothrops não foram as únicas a buscar caminhos próprios de sobrevivência e a se distanciarem das origens da estirpe – não por escolha, mas por imposição do ambiente.
Mudanças na paisagem do litoral paulista provavelmente contribuíram para o surgimento de outras duas espécies de jararacas brasileiras. Ilhadas – Há cerca de 18 mil anos o mar
estava mais de 100 metros abaixo dos níveis de hoje e uma extensa restinga cobria parte do que hoje é o litoral de São Paulo, então ainda fundido com as atuais ilhas de Alcatrazes e Queimada Grande. Tempos depois, o mar subiu e os antigos morros se transformaram em ilhas. Isoladas, as populações de jararacas de Alcatrazes e de Queimada Grande começaram a se diferenciar, como atestou o trio de biólogos. Atualmente essas cobras formam espécies bem diferentes da jararaca-comum, a Bothrops jararaca, que pode alcançar até 1,40 metro (os machos
O PROJETO História natural e evolução de hábitos em serpentes viperídeas do gênero Bothrops. MODALIDADE
Linha Regular de Auxílio à Pesquisa COORDENADOR
MARCIO COSTA MARTINS – USP INVESTIMENTO
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não passam de 1 metro), vive tanto no chão como nas árvores e se alimenta de anfíbios, lagartos e centopéias quando jovem e de roedores e outros pequenos mamíferos quando adulta. Os hábitos alimentares das espécies que começaram a surgir quando o mar subiu também são diferentes, já que os roedores desapareceram dessas ilhas há séculos. Nos 43 hectares de Queimada Grande – e só lá – vive a Bothrops insularis. Os adultos se alimentam exclusivamente de pássaros, que são mais difíceis de capturar que um sapo e oferecem um risco extra: podem bicar. Com cerca de 1 metro, a jararaca de Queimada Grande desenvolveu um veneno mais letal que lhe permite abocanhar e matar um passarinho antes de qualquer reação de defesa. Em Alcatrazes, a menos de 50 quilômetros dali, vive a Bothrops alcatraz, descrita em 2002 por Marques, Martins e Sazima em um artigo da revista Herpetologica. É bem diferente. Não passa de meio metro de comprimento e se alimenta quase exclusivamente das centopéias, que, por sua vez, se fartam com as baratas que cobrem o chão pegajoso por causa do excesso de guano de aves marinhas. “A jararaca-de-alcatrazes manteve a dieta juvenil, que fez dela uma cobra anã”, comenta Martins. A número 1 dificilmente a reconheceria como integrante da mesma linhagem que chegou ao continente sul-americano milhões de anos atrás. Talvez a visse como presa e a devorasse. ■ PESQUISA FAPESP 132
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Sementes voadoras: em forma de disco, comum no Cerrado, e alongadas (ao lado), tĂpicas das florestas Ăşmidas
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> BOTÂNICA
Texturas da floresta Classificação genética soluciona mistério evolutivo de cipós e pode orientar a preservação de matas tropicais
R I C A R D O Z O R Z E T TO
L
úcia Garcez Lohmann descobriu bem cedo o prazer de organizar o mundo ao seu redor. Aos 5 anos iniciou uma ordenada coleção de selos de plantas e flores e, aos 16, não teve dúvida sobre qual profissão seguir: faria biologia para se tornar sistemata, especialista na classificação dos seres vivos. Começou estudando uma família de fungos microscópicos que consomem escamas de peixes e répteis. Mas encantou-se mesmo foi com uma família de plantas com flores em forma de sino e um colorido intenso que vai do vermelho-sangue ao branco-reluzente: as bignoniáceas, cerca de 850 espécies com variadas formas e tamanhos que se distribuem pelas regiões tropicais do planeta. Lúcia viajou o mundo estudando essa família de plantas à qual pertence o ipê-amarelo, árvore símbolo do Brasil, e agora propõe uma classificação mais confiável para elas. Visitou coleções nos Estados Unidos e na Europa e embrenhou-se pelas florestas da América Latina para conhecer de perto onde estão e como são as bignoniáceas. Especializou-se em um grupo de quase 400 espécies dessa família que há décadas aguçam o interesse dos botânicos por três razões. A primeira é que esse grupo reúne a maior variedade das Américas de cipós ou lianas, trepadeiras de caule amadeirado que crescem enroscadas ao tronco das árvores, espalham-se por suas copas em busca da luz necessária para sobreviverem. O outro motivo é que várias dessas plantas, que tecem redes impenetráveis no interior das florestas e conectam a copa das árvores ao chão, servindo de ponte para macacos e preguiças, têm potencial medicinal.Alguns povos latino-americanos as usam contra diarréia, malária, hepatite, leishmaniose e câncer. Em alguns países, servem de tempero por terem aroma e sabor de alho ou cravo, além de serem úteis para a construção de móveis e casas. Mas Lú-
cia sentiu-se especialmente atraída por essas plantas porque formavam um grupo com uma intricada história evolutiva cujas relações de parentesco desafiam os botânicos há quase dois séculos. Além da aparência – Melhor, desafiavam. Em um
artigo publicado em 2006 no American Journal of Botanny, Lúcia apresentou a árvore genealógica que desvenda a história evolutiva desse grupo. Agora, em um artigo de 400 páginas a ser publicado nos Annals of the Missouri Botanical Garden, ela apresenta uma nova classificação que reorganiza esse grupo das bignoniáceas com base em critérios que vão além da semelhança de flores e frutos, como era feito até recentemente, e promete desatar os nós desse cipoal. A partir da análise do material genético dessas plantas, ela redistribuiu 400 espécies em 22 gêneros. O mais abrangente, Adenocalymma, compreende 78 espécies de cipós e arbustos das regiões tropicais das Américas. Com a nova classificação, alguns gêneros, como o Fridericia, passaram a abarcar um número maior de espécies – antes era uma, hoje são 69. Só os gêneros Callichlamys e Manaosella continuam com uma espécie cada um: a Callichlamys latifolia, trepadeira de flores amarelas, encontrada do Brasil ao México; e a Manaosella cordifolia, descrita em Manaus. É um avanço e tanto em relação à classificação anterior, em que havia 47 gêneros, 30 deles com até três espécies. Para quem trabalha com classificação, um sistema com muitos gêneros agrupando poucas espécies é de pouca utilidade: quase não fornece informação sobre o grau de parentesco, impedindo que se façam previsões sobre as espécies incluídas em cada gênero. Sem esse tipo de informação, pouco se descobre sobre quando e onde essas plantas surgiram ou como e por que se tornaram bem-sucedidas e se disseminaram por toda a região tropical das Américas, originando esPESQUISA FAPESP 132
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pécies tão distintas quanto a trepadeira da Caatinga Neojobertia brasiliensis, de flores amarelas, ou a Adenocalymma cladotrichum, cipó de caule grosso que produz um fruto em forma de vagem com meio metro de comprimento. No artigo dos Annals of the Missouri Botanical Garden, 180 espécies recebem um novo nome porque trocaram de gênero. Há ainda uma detalhada ilustração de cada gênero e mapas com a distribuição geográfica das 400 espécies. “Espero que não seja mais necessário refazer essa classificação e, a partir de agora, se consiga de fato avançar na investigação sobre a origem, a evolução e a diversificação desse grupo de plantas, o mais rico em variedades de cipós”, comenta a botânica, professora da Universidade de São Paulo e pesquisadora do Jardim Botânico de Missouri, Estados Unidos, onde trabalhou na coleção de outro estudioso dessas plantas, o botânico Alwyn Gentry, morto em 1993. Desde que o botânico inglês David Don propôs a primeira classificação desse grupo de bignoniáceas em 1838, foram 170 anos andando em círculos.“Cada um que se propunha a estudá-las criava um novo sistema de classificação baseado em critérios subjetivos e não saía do lugar”, explica Lúcia, que, aos 33 anos, vem se tornando referência internacional no assunto. A nova classificação promete ser duradoura porque se vale de uma ferramenta mais adequada, só disponível recentemente: a sistemática molecular. Esse método permite organizar as plantas por grau de parentesco com base em características genéticas, e não mais apenas pela comparação das formas de flores, frutos e sementes. “Essa nova classificação permitirá, por exemplo, a busca mais bem orientada de compostos com potencial farmacológico”, afirma Lúcia. Ela avaliou a proximidade entre as espécies do grupo comparando mutações de dois genes: o ndhF, associado ao armazenamento de energia solar na forma de açúcares, e o PepC, ligado à quebra desses açúcares e à liberação de energia. Esses genes desempenham um papel essencial à sobrevivência e permitem avaliar o parentesco entre as espécies em uma escala de tempo de até milhões de anos – chegam a ser idênticos em espécies evolutivamente próximas e apresentam diferenças à medida que o parentesco diminui.“Esses genes se encontram em regiões 56
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distintas do genoma e, ainda assim, contam uma história coincidente”, diz Lúcia. “Por isso é alta a probabilidade de que a nova árvore genealógica represente de fato o parentesco entre essas plantas.” Primeiras respostas – Nos 13 anos em que percorreu as matas do Brasil e de outros seis países latino-americanos (Costa Rica, Suriname, Guiana Francesa, Peru, Bolívia e Panamá), Lúcia caminhou durante dias, atravessou rios e, quando preciso, escalou árvores de até 40 metros à procura de suas lianas. Coletou amostras de quase mil exemplares, hoje armazenadas nos herbários da USP e do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e nos jardins botânicos do Rio de Janeiro, de Nova York e Missouri. Em um trabalho de formiguinha, marcou o ponto de cada coleta com um aparelho de GPS e aos seus dados acrescentou os de outras coleções, gerando mapas com a distribuição das espécies. Sobrepostos, esses mapas revelam um dado importante para a conservação dessas plantas: nem sempre as áreas de vegetação natural que deveriam ser preservadas por abrigarem espécies raras, de grande diversidade genética ou de importância evolutiva estão legalmente protegidas. Ao cruzar seus dados com os de fósseis, Lúcia conseguiu reconstituir a história evolutiva do grupo. Agora já se pode dizer quando e onde esses cipós surgiram: foi no Brasil, na região hoje ocupada pela Mata Atlântica, há 40 milhões de anos – quando os continentes já tinham a forma atual e os mamíferos começavam a se disseminar pela Terra. Mas não foi a única vez. Plantas com características de cipós apareceram em três outros momentos entre as bignoniáceas, nos Andes, na Áfria e na Ásia. Mas só o grupo da Mata Atlântica foi tão bemsucedido e se diversificou tanto, gerando as 400 espécies conhecidas. Os achados comprovaram ainda que o antigo método de classificação, baseado na cor das flores ou forma dos frutos, era de fato falho. Cipós ou arbustos com flores amarelas surgiram em seis momentos diferentes nesse grupo, em gêneros nãoaparentados. “Esse dado confirma que o uso exclusivo de critérios morfológicos pode levar a sistemas de classificação não confiáveis”, diz Lúcia. Outra dúvida que se desfaz é a de quem surgiu primeiro: os cipós, hoje a forma mais abundante, ou os
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FABIO COLOMBINI
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Em cascata: cipós buscam luz no alto das árvores
arbustos, atualmente raros? Segundo Lúcia, as primeiras espécies desse grupo se desenvolveram como cipós em florestas úmidas. Possivelmente, foram bem-sucedidos nesses ambientes de pouca luz por terem desenvolvido um caule com anatomia peculiar, mais flexível, e gavinhas, filamentos que se enroscam em outras árvores e lhes permitem alcançar as partes altas da floresta. Só entre 5 milhões e 10 milhões de anos depois de esses cipós também se espalharem por regiões de clima mais seco e quente como o atual Cerrado é que surgiram os arbustos. Mas a anatomia do caule e as gavinhas não explicam como essas plantas se diversificaram tanto e dominaram as regiões tropicais do globo. Parte da resposta pode estar ligada à forma das sementes. As espécies mais comuns nas florestas produzem sementes com uma fina membrana que se estende para lados opostos, como asas abertas. Para Lúcia, esse formato favorece a dispersão nos ambientes úmidos. Quando os frutos secam e se abrem, elas caem do alto girando como hélices de helicóptero. Já nas savanas são mais comuns as sementes arredondadas semelhantes a discos voadores, aparentemente mais adequadas à dispersão em áreas secas. “Quando sopra o vento, essas sementes devem voar como se fossem frisbees, os discos plásticos com que as pessoas brincam nas praias”, explica. Como esse grupo de bignoniáceas é muito diverso e abundante nas florestas tropicais, acredita-se que sirva de modelo para entender o que pode ocorrer com as 300 mil espécies de plantas com flores (angiospermas). Reunindo informações sobre a distribuição, a forma e a ecologia dessas 400 espécies aos dados de clima, solo e temperatura, Lúcia tenta agora prever o que acontecerá com a distribuição delas caso a temperatura do planeta aumente alguns graus. Ela ainda não tem a resposta, mas arrisca um palpite: é bem provável que as florestas que hoje abrigam a maior diversidade de plantas do planeta se transformem em imensos cipoais, uma vez que essas bignoniáceas crescem mais rapidamente do que algumas árvores e são as primeiras a ocupar áreas desmatadas. ■ PESQUISA FAPESP 132
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> FÍSICA
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ão apenas o ócio é criativo.O medo também pode gerar boas idéias,ainda que de modo indireto.Em 2000 os físicos Adalberto Fazzio e Antonio José Roque da Silva participaram de uma maratona de conferências científicas que os obrigou a cruzar o globo pelos ares.Como não se sente bem com os pés longe do chão,Fazzio às vezes procurava se tranqüilizar com uma dose de uísque on the rocks antes de entrar no avião.Enquanto aguardavam em uma das salas de embarque,o tilintar das pedras de gelo no copo despertou uma dúvida:“Do ponto de vista físico,o que sabemos sobre o gelo?”,perguntou Fazzio. Seis anos e alguns aeroportos mais tarde,a dupla de físicos da Universidade de São Paulo (USP) responde à pergunta com propriedade.E,em parceria com colaboradores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),o físico paulista Alex Antonelli e o físico holandês Maurice de Koning,apresenta em dois artigos científicos suas primeiras contribuições para ampliar o conhecimento sobre as propriedades microscópicas do gelo,um dos responsáveis por manter
o clima do planeta ameno e permitir a existência da vida. Publicado em fevereiro de 2006 na Physical Review Letters,o pr imeiro trabalho ajuda a compreender melhor propriedades elétricas do gelo identificadas há cerca de 70 anos que ainda não haviam sido bem explicadas.Na década de 1930,estudos químicos e físicos mostraram que o gelo era bem mais complexo do que aparentava,embora fosse formado por uma das moléculas mais simples da natureza – a água,resultado da união de dois átomos de hidrogênio com um de oxigênio (H2O),em uma estrutura espacial que lembra a letra V. À época na Universidade de Cambridge,Inglaterra,os físicos John Bernal e Ralph Fowler constataram em 1933 que o gelo era,na realidade,um cristal. Abaixo de zero grau Celsius as moléculas de água se unem em grupos de seis, formando hexágonos que se repetem sempre à mesma distância e com a mesma orientação.Usando uma técnica que permite identificar a posição de cada átomo no interior de uma molécula,notaram que nessa estrutura cristalina existia um padrão:há um átomo de hidrogênio
entre dois de oxigênio,enquanto um átomo de oxigênio sempre intercala dois de hidrogênio de moléculas distintas.Uma força bastante intensa – a ligação de hidrogênio – mantém as moléculas de água firmemente associadas umas às outras, impedindo-as de se movimentarem livremente como na água líquida. Um pouco antes dos experimentos de Cambridge,o físico holandês Peter Debye encontrou um efeito inesperado ao submeter um pedaço de gelo a um campo elétrico.As moléculas de água, com cargas negativas concentradas ao redor do átomo de oxigênio e positivas próximas aos de hidrogênio,alinhavamse com o campo elétrico.Seria natural que isso ocorresse na água,porque as moléculas estão mais livres.Mas não no gelo,em que se encontram presas nos anéis hexagonais por ligações de hidrogênio.A explicação só viria mais tarde. Como conhecia a dificuldade de romper ligações de hidrogênio em um cristal perfeito,em que as moléculas se ajustam umas às outras,o físico dinamarquês Niels Bjerrum propôs em 1952 que o gelo deveria apresentar falhas que permitiriam às moléculas de água se orien-
MIGUEL BOYAYAN
Abaixo de zero
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Simulações em computador explicam propriedades elétricas do gelo
tarem segundo o campo elétrico. Formado ao acaso ou pelo acréscimo de ácidos ao gelo, o defeito molecular que leva o nome de Bjerrum não passa de uma troca de posição de um átomo de hidrogênio no anel hexagonal. Essa mudança sutil cria, a um só tempo, duas ligações instáveis: uma entre dois átomos de hidrogênio de moléculas distintas, que se repelem por terem carga elétrica positiva; e outra entre dois átomos de oxigênio, de carga negativa. Cristal imperfeito - A conseqüência é
um efeito em cascata. “Depois que surgem”, explica Silva,“esses defeitos se deslocam como se caminhassem pelo gelo e facilitam a rotação de outras moléculas de água”. Por essa razão, quanto maior o número de defeitos no gelo mais facilmente suas moléculas se alinham ao campo elétrico. Esses defeitos contribuem ainda para que as moléculas se organizem de outras dez maneiras, mais estáveis que nos hexágonos, à medida que se reduz a temperatura ou aumenta a pressão. Outra conseqüência é o transporte de partículas eletricamente carregadas: no caso do gelo, íons de hidro-
gênio, de carga positiva, diferentemente do que ocorre nos fios de cobre, em que são as partículas de carga negativa (elétrons) que se deslocam. Embora o defeito Bjerrum seja bem conhecido, faltavam medições precisas da energia necessária para gerá-lo e permitir que se propague de uma molécula para outra. Com o auxílio de programas de computador que simulam o comportamento das partículas atômicas, De Koning obteve uma estimativa fiel desses valores. Ele criou uma rede cristalina em que os anéis hexagonais se repetiam 16 vezes e girou artificialmente a posição de um átomo de hidrogênio, criando um defeito de Bjerrum. Em seguida, aguardou o resultado. A energia necessária para torcer uma ligação de hidrogênio e criar o defeito de Bjerrum é até 73% maior do que se estimava. Já a energia para que essa torção passe de uma molécula a outra chega a ser 63% mais baixa. “Esses defeitos deveriam se deslocar mais facilmente do que de fato caminham”, afirma Silva.“Essa diferença de energia sugere que haja armadilhas que aprisionam os defeitos e os impedem de prosseguir”, explica.
Em outro experimento virtual, De Koning decidiu averiguar com que freqüência surgem no gelo dois outros tipos de defeitos, comuns em cristais de silício. São os chamados defeitos pontuais: a falta ou o excesso de um elemento na rede cristalina – no caso do gelo, uma molécula de água. Testes feitos em 1982 no Japão sugeriam que, dependendo da temperatura, haveria mais defeitos pontuais de um tipo ou de outro. De Koning, Antonelli, Silva e Fazzio constataram que quanto mais próximo do ponto de fusão do gelo (zero grau Celsius) maior a quantidade de moléculas de água intrusas na rede hexagonal, segundo artigo publicado em outubro na Physical Review Letters. Já abaixo de 43 graus Celsius negativos o defeito mais comum passa a ser a falta de uma molécula de água. “Nenhum desses defeitos altera a orientação das moléculas de água no gelo”, explica De Koning,“mas se acredita que eles alterem suas propriedades elétricas”.Ainda que de fato ocorram, não impediriam que se acrescentem ao uísque algumas pedras de gelo. ■
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Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org
Notícias
Ciências Agrárias Ciência e Agrotecnologia Ciências Biológicas Acta Paulista de Enfermagem, Jornal Brasileiro de Psiquiatria, Neotropical Ichthyology, Revista Brasileira de Farmacognosia, Revista CEFAC, Revista da Escola de Enfermagem da USP, Revista da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia, Texto & Contexto Enfermagem Ciências Humanas Avaliação (Campinas), Educar em Revista, Hypnos (São Paulo), Trabalhos em Lingüística Aplicada, Varia Historia, Interações (Campo Grande), Paidéia (Ribeirão Preto), Revista Katalysis
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Saúde
Mortalidade de mães negras No ano 2000 a Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro registrou um aumento 2,3 vezes maior na mortalidade materna de mulheres negras em relação à de mulheres brancas.Dentre elas,61,19% eram solteiras,60,5% tinham renda de 1 a 2 salários mínimos e a grande maioria das vítimas trabalhava como domésticas.Os principais problemas que levavam às mortes foram as doenças hipertensivas,seguidas de síndromes hemorrágicas,infecções puerperais e o aborto ou doenças cardiovasculares que se complicam com a gravidez.No entanto,o artigo “Mortalidade materna de mulheres negras no Brasil”,de Alaerte Leandro Martins,da Secretaria de Estado da Saúde do Paraná,mostra que o problema não é uma fatalidade.Por afetar em sua maioria a população negra e pobre do Brasil, resulta principalmente da falta de políticas públicas no setor.Ao traçar uma revisão dos estudos feitos sobre o tema,o trabalho flagra a precariedade dos registros dos casos de óbito que impedem uma compreensão mais ampla do problema e refletem o descaso diante dele.O perfil das vítimas é de mulheres que têm em média 28,6 anos,sendo que 3,6% delas são analfabetas.Para a redução da mortalidade,o estudo propõe uma humanização do atendimento hospitalar e prénatal, o fortalecimento dos processos via Ministério Público e da indenização individual,apresentada pelos familiares das vítimas. CADERNOS DE SAÚDE PÚBLICA – VOL. 22 – Nº 11 – RIO DE JANEIRO – NOV. 2006 www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102311X2006001100022&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
leiro de mercado em que a voz over, também conhecida como “a voz de Deus”,desempenha papel determinante: Cidade de Deus (Fernando Meirelles e Kátia Lund,2002), O homem que copiava (Jorge Furtado,2003) e Redentor (Cláudio Torres, 2004).O autor faz um histórico sobre o uso da voz over no cinema brasileiro,introduzida nos anos 1940,que ganhou força nas décadas de 1960 e 1970 com uma exploração mais criativa das relações da imagem e som,como fizeram Glauber Rocha, Leon Hirszman,Rogério Sganzerla,Arthur Omar e,mais recentemente,Júlio Bressane no filme Miramar (1997),Sérgio Bianchi em Cronicamente inviável (2000) e Ruy Guerra em Estorvo (2000). O estudo explica que a voz over é usada com mais freqüência como ferramenta pedagógica para facilitar o diálogo com o espectador e organizar as informações.O objetivo do trabalho é compreender o atual uso desse recurso nos três filmes que têm como protagonistas personagens que se equilibram entre as forças da lei ilegítimas e a marginalidade de destino trágico.“A fala como discurso do sujeito ‘em situação’é vista em relação com o contexto social,marcado por tensões ligadas à violência,expansão dos mercados ilícitos,delinqüência empresarial,hegemonia do consumo e crise da instituição familiar”,escreveu Xavier. DIVULGAÇÃO
O Comitê Consultivo SciELO Brasil aprovou o ingresso de 17 novos títulos na coleção SciELO Brasil, que em breve poderão ser acessados. São eles:
NOVOS ESTUDOS – CEBRAP – Nº 75 – SÃO PAULO – JUL. 2006 www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010133002006000200010&1 ■
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Cinema
A voz de Deus No artigo “Corrosão social,pragmatismo e ressentimento:vozes dissonantes no cinema brasileiro de resultados”,Ismail Xavier,da Escola de Comunicação e Arte (ECA) da Universidade de São Paulo (USP),analisa três filmes do cinema brasi-
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Comportamento
Alcoolismo na universidade O período de transição para a universidade tem sido apontado como uma fase de grande vulnerabilidade ao consumo exagerado de álcoole outras drogas.Para avaliar a dimensão desse uso, seus efeitos negativos e as expectativas dos universitários,uma equipe de pesquisadoras da Uni-
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versidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) analisou o relato de 165 estudantes, com média de 22 anos, que responderam aos inventários Audit (Alcohol Use Disorders Identification Test) e Iecpa (Inventário de Expectativas e Crenças Pessoais acerca do Álcool). O estudo “Expectativas e beber problemático entre universitários”, feito por Ana Carolina Peuker, Janaina Fogaça e Lisiane Bizarro, apontou que 44% dos participantes eram consumidores de risco. A conclusão foi comparada com outras pesquisas feitas em um hospital geral, no qual apenas 34 entre os 275 pacientes apresentavam um quadro de risco. O trabalho mostra que, em razão do consumo de álcool, 25,4% dos universitários deixaram de fazer o que era esperado, enquanto na população geral este porcentual é quase oito vezes menor. Ao chamar a atenção para o consumo entre estudantes de nível superior, a pesquisa cita outros estudos que relacionam a ingestão de álcool ao prejuízo no desempenho de tarefas cognitivas, associadas ao funcionamento do lobo frontal, como as funções executivas. “Muitos jovens ingressam na universidade em idade e circunstâncias propícias à aquisição de novas competências. Dessa forma, o ambiente acadêmico torna-se um espaço adequado para o desenvolvimento de programas preventivos, sendo recomendável a implantação de políticas nessa direção”, concluem as pesquisadoras em seu artigo. PSICOLOGIA: TEORIA E PESQUISA – VOL 22 – Nº 2 – BRASÍLIA – MAI./AGO. 2006 www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-37722006000200009&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
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Nutrição
Desempenho dos vegetarianos Para compreender o desempenho físico de semivegetarianos, de vegetarianos que não consomem leite, ovos e nenhum derivado animal (os vegans) e os lactovegetarianos, uma equipe de pesquisadores identificou quais os cuidados necessários na elaboração de cada dieta para evitar problemas à saúde. De acordo com o estudo “Dietas vegetarianas e desempenho esportivo”, de Lucas Guimarães Ferreira Roberto e Adriano Fortes Maia, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), e Carlos Burini, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu, a dieta vegetariana, que é rica em carboidratos, fibras dietéticas, magnésio, potássio, folato, antioxidantes e fitoquímicos, precisa ser incrementada com alimentos à base de cálcio, zinco, ferro e vitamina B12. O estudo indica que, para a mulher atleta, a deficiência de ferro na dieta alimentar pode causar anemia e, conseqüentemente, interferir no seu desempenho. Enquanto a falta de vitamina B12 aumenta o risco de desenvolvimento de doenças cardiovasculares. No
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que diz respeito aos exercícios de força física,o estudo aponta para a necessidade de maior investigação e indica que os baixos níveis de creatina intramusculares, substância encontrada na carne, podem afetar o desempenho do atleta. Mas o trabalho também explica que essa carência pode ser suprida pelo uso de um suplemento de creatina monoidratada capaz de diminuir os efeitos causadores da fadiga. O baixo índice de hormônios como a testosterona, androstenediona e IGF-1, comum em dietas vegans e vegetarianas, pode interferir no desenvolvimento da força e hipertrofia musculares. A reposição do conteúdo protéico, que pode ser feita através do consumo de alimentos à base de soja, é uma das principais recomendações da pesquisa. REVISTA NUTRIÇÃO – JUL./AGO. 2006
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Química
Mel bioindicador Além de produzir o mel comercial, as abelhas domésticas (Apis mellifera) são importantes porque realizam a polinização das colheitas agrícolas. Entre 10 mil e 25 mil abelhas operárias fazem a cada dia uma média de dez viagens nas quais exploram aproximadamente 7 quilômetros quadrados, coletando a água, o néctar e o pólen das flores. Nessa operação, diversos microorganismos, produtos químicos e partículas suspensas no ar ficam retidos nos pêlos de seu corpo ou são inalados e ficam em seu aparelho respiratório. Por isso, elas podem ser usadas como bioindicadores para monitoramento de impactos ambientais, como as contaminações industriais ou a presença de parasitas ou pesticidas. O trabalho “Método multirresíduo para monitoramento de contaminação ambiental de pesticidas na região de Bauru (SP) usando mel como bioindicador”, realizado por Sandra Regina Rissato, Mário Sérgio Galhiane e Fátima do Rosário Naschenveng Knoll, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Rita Mickaela Barros de Andrade, do Centro Federal de Educação Tecnológica do Ceará, e Marcos Vinícius de Almeida, da Universidade de São Paulo (USP), apresenta um rápido e simples método de análise multirresíduo para determinar e confirmar simultaneamente 48 pesticidas de diferentes classes que foram encontrados em amostras de mel.“O monitoramento de resíduos de pesticidas no mel auxilia na avaliação do potencial de risco desses produtos à saúde do consumidor e fornece informações sobre o uso de pesticidas nos campos de colheita e em suas vizinhanças”, escreveram os pesquisadores. QUÍMICA NOVA – 2006
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LINHA DE PRODUÇÃO
PLASTC LOGIC
MUNDO
> TECNOLOGIA
Telas flexíveis eletrônicas em escala industrial
na África do Sul O governo da África do Sul anunciou uma ambiciosa estratégia para consolidação de um pólo de biocombustíveis no país. A expectativa é que essa fonte energética corresponda a 75% da oferta de energias renováveis, atendendo às orientações do Protocolo de Kyoto, que prevê gradativa redução do uso de combustíveis fósseis. Segundo a revista sul-africana Engineering News, os biocombustíveis seriam gerados a partir de várias fontes. Plantações de milho e cana-de-açúcar integrariam a cadeia de produção de etanol, enquanto sementes de soja e de girassol seriam a matéria-prima para o biodiesel. A incorporação dos biocombustíveis à matriz energética do país teria capacidade para gerar 55 mil empregos apenas na agricultura. A companhia sul-africana Sasol (espécie de Petrobras da África do Sul) já anunciou sua participação no projeto e divulgou a intenção de construir uma fábrica de biodiesel a partir de sementes de soja. 62
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nicas que devem rivalizar, dentro de alguns anos, com as folhas de papel de livros, jornais e revistas. Depois de apresentar vários protótipos de papel eletrônico, a empresa se prepara para produzir em escala industrial seus circuitos eletrônicos impressos em substratos plásticos capazes de tornar os displays, as telas de leitura, extremamente finos, luminosos e robustos. O novo papel possui conexão sem fio, baterias recarregáveis para leitura de milhares de páginas e milhões de transistores de plástico, que são filmes finos, chamados de TFT, de Thin Film Transistor. Toda a base desses produ-
> Nanopartículas contra tumores Um novo método de direcionamento de nanopartículas para combater tumores acaba de ser descrito por uma equipe
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tic Logic foi fundada em 2000 pelos professores Henning Sirringhaus e Richard Friend. No início de suas atividades teve aportes financeiros da Amadeus, fundo inglês de capital de risco, e da Intel, entre outras grandes empresas, num total de US$ 50 milhões. Agora, com 90 funcionários, parte para a construção de uma fábrica em Dresden, na Alemanha, no chamado Vale do Silício da Saxônia, um dos estados alemães. A empresa está recebendo US$ 100 milhões dos fundos de investimento OaK e Tudor, dois grupos norte-americanos de capital de risco. A produção deve começar em 2008.
de cientistas de várias instituições norte-americanas lideradas pelo Instituto Burnham de Pesquisa Médica. As partículas mimetizariam a ação das plaquetas, células sangüíneas responsáveis, entre outras
coisas, pelo efeito de coagulação, e poderiam se dirigir a alvos específicos do organismo. Segundo os pesquisadores, o sistema é baseado em um peptídeo (pedaço de proteína) que reconhece as proteínas do
ILUSTRAÇÕES LAURABEATRIZ
> Biocombustíveis
Páginas com chips de plástico surgiu no Laboratório Cavendish, da UniA empresa inglesa Plastic Logic volta a trazer Título 20 tos toques versidade de Cambridge, na Inglaterra. A Plasnovidades para as futuras telas flexíveis eletrô-
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plasma coagulado e se dirige seletivamente aos tumores. Neles, as nanopartículas se ligariam aos vasos sangüíneos e agiriam na obstrução dos vasos sangüíneos do tumor, eliminando-o. Numa linha de pesquisa similar, pesquisadores de um centro de nanotecnologia ligado à Universidade Stanford, também nos Estados Unidos, demonstraram, no primeiro experimento do gênero, que um nanotubo de carbono de parede simples envolto numa cadeia de polietilenoglicol, um polímero biocompatível, pode atingir com sucesso tumores em animais vivos e deixar medicamentos no local.
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comunicado da IBM, a nova memória é formada, principalmente, por uma liga semicondutora de germânio e antimônio e deverá estar disponível para a produção industrial em 2015.
> Etileno armazena hidrogênio
do celular, com dados alimentados por sensores apropriados para medir nível de oxigênio, freqüência cardíaca e outros dados de avaliação clínica, as informações são transmitidas para um computador central que pode ser acessado a distância pelos médicos.
> Monitoramento via celular
> Processamento mais rápido No momento em que começam a se popularizar em todo o mundo, as memórias flash presentes em pen-drives, cartões de arquivo de máquinas fotográficas digitais e tocadores de MP3 já sentem
os ventos da mudança. O precursor dessa nova memória computacional é um protótipo desenvolvido em parceria por pesquisadores das empresas IBM, dos Estados Unidos, Macronix, de Taiwan, e Qimonda, da Alemanha. Ela é menor em tamanho, tem 3 nanômetros (nm) de largura e 20 nm de comprimento, e mais rápida no processamento dos dados, cerca de 500 vezes se comparada com a flash. Está sendo chamada de memória de mudança de fase, nome relacionado às alterações de amplitude e duração de um impulso elétrico no material. Segundo
Memórias flash em pen-drives e cartões digitais EDUARDO CESAR
Em Portugal, doentes com dificuldades respiratórias e que precisam ficar constantemente sob monitoramento agora não precisam mais ficar todo o período de recuperação no hospital. Um sistema criado pelo Serviço de Pneumologia da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e a empresa Ultraponto, de Lisboa, permite o acompanhamento do doente na própria casa por meio de um celular, informando a evolução do paciente para os médicos. Chamado de Vitalmobile, o sistema é indicado para pacientes que se enquadrem dentro das necessidades do procedimento médico conhecido como ventilação mecânica. Por meio
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Um dos grandes desafios a serem superados para a viabilidade econômica de gerar energia elétrica por meio do hidrogênio em equipamentos chamados de células a combustível é a descoberta de novos materiais que possam armazenar grandes quantidades desse gás. Uma descoberta feita por um grupo de pesquisadores do National Institute of Standards and Technology (Nist), órgão ligado ao Departamento de Comércio dos Estados Unidos, e da Universidade Bilkent, da Turquia, pode ser a solução para o problema. Eles perceberam que ao conectar um átomo de titânio em cada uma das extremidades de uma molécula de etileno, que é formada por quatro átomos de hidrogênio ligados a um par de átomos de carbono, a molécula é capaz de absorver até dez moléculas de hidrogênio. Essas moléculas representariam 14% de peso total do complexo etileno-titânio e, para liberá-las, bastaria expor o material a uma fonte de calor moderada. A revelação ganha peso porque o etileno é uma molécula comum e barata, utilizada para diversos fins, inclusive a produção da maioria dos plásticos comuns.
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LINHA DE PRODUÇÃO
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BRASIL
> Alternativas
Petróleo valioso Ao atingir o valor de R$ 230 bilhões (US$ 108 bilhões) no final de 2006 e entrar no seleto grupo das empresas que passaram a casa dos US$ 100 bilhões em valor de mercado no mundo, a Petrobras reafirma seu caráter emblemático principalmente pelos investimentos que faz em tecnologia própria. Por ano, a empresa investe R$ 1 bilhão em pesquisa e desenvolvimento (P&D) e se tornou líder mundial em exploração de petróleo em alto-mar atingindo a auto-suficiência em 2006. A valorização da companhia petrolífera, visualizada nas bolsas de valores, subiu de R$ 54 bilhões, em 2002, para R$ 230 bilhões, em dezembro do
ano passado, uma valorização de 601 % no período. Ano a ano, a empresa vem batendo recordes de processamento de petróleo. Em 2006, a produção foi de 1,784 milhão de barris por dia, um acréscimo de 1,5% sobre o volume processado nas refinarias do país em 2005. Para cada barril de óleo produzido foi reposto 1,739 barril de petróleo. As reservas de óleo e gás natural aumentaram 3,9%, em 2006, atingindo 13,753 bilhões de barris, sendo, desse total, 85% de petróleo e 15% de gás natural. Esses números são baseados em critérios da Agência Nacional de Petróleo (ANP) e da Society of Petroleum Engineers.
Exploração em alto-mar: Petrobras aumenta reservas
para resíduo Propostas para solucionar ou atenuar um dos resíduos produzidos em grande escala pela pecuária brasileira são abordadas no livro Usos alternativos da palhada residual da produção de sementes para pastagens, lançado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), unidades Pecuária Sudeste, da cidade de São Carlos, e Transferência de Tecnologia, de Brasília. Entre os usos indicados para a palhada que sobra da colheita de sementes de capim, que chega a 2,8 milhões de toneladas por ano, estão a cama para aviários (no chão dos galpões), a produção de compostos orgânicos e utilização no plantio direto, além de alimento para ruminantes. Atualmente, devido à baixa qualidade nutricional do material, com reduzido teor de proteína, apenas uma pequena parte é usada para alimentação de bovinos. O restante é quase sempre queimado, causando poluição atmosférica nas regiões produtoras de sementes de capim e, em alguns casos, queimadas acidentais de áreas próximas. O Brasil é o maior produtor, consumidor e exportador mundial dessas sementes tropicais, com produção de cerca de 100 mil toneladas por ano.
> DVD sobre nanocosméticos PETROBRAS
O DVD Nanotecnologias e cosméticos: inovações foi produzido pelo Centro Multidisciplinar para 64
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o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos (CMDMC), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP, para divulgar pesquisas que estão sendo realizadas na área, especialmente inovações nanotecnológicas em produtos para coloração, relaxamento e alisamento
Inovações tecnológicas em cosméticos
de cabelos. O documentário foi coordenado por pesquisadores do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara e da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Ele será distribuído gratuitamente em escolas de ensino médio e fundamental do interior de São Paulo, além de órgãos públicos da área de ciência e tecnologia. O DVD apresenta um panorama histórico sobre o uso de cosméticos e aborda os avanços da nanotecnologia nas futuras aplicações de coloração dos cabelos com o objetivo de evitar a degradação dos fios. Esse DVD é o segundo de uma série sobre nanotecnologia. O primeiro abordou o tema de forma geral e os seguintes vão tratar de nanofios, nanotubos e outros assuntos nanotecnológicos.
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> Produção orgânica
Gerador solar parabólico
A cebola orgânica superou a tradicional em testes de produtividade realizados durante dois anos por pesquisadores da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Semi-Árido, em Petrolina, Pernambuco, e da Universidade do Estado da Bahia. Com o manejo orgânico foram obtidas cerca de 38 toneladas por hectare do produto, quase o dobro das 20 toneladas por hectare registradas, em média, com os métodos tradicionais de cultivo na região do submédio São Francisco, que engloba os sertões pernambucano e baiano. Das 18 variedades de cebola avaliadas nos testes experimentais para produção orgânica, a brisa foi a mais produtiva. Foram avaliados ainda diversos procedimentos relacionados ao preparo do solo, com o plantio de leguminosas como mucuna-preta, guandu e crotalária. Para a adubação, foram utilizadas fontes alternativas em substituição aos insumos químicos, como fosfato natural em vez de fósforo. As pragas foram combatidas com produtos autorizados para aplicação em sistemas
> Inovações premiadas
EDUARDO CESAR
Testes com cebola no Nordeste
LAURABEATRIZ
orgânicos, como caldas bordalesa (mistura de sulfato de cobre, cal e água) e sulfocálcica (enxofre, cal virgem e água), além de aminoácidos.
Em sua segunda edição, o Prêmio Werner von Siemens de Inovação Tecnológica 2006 elegeu como vencedor na categoria Estudante Novas Idéias o projeto “Dispositivo para realização da manobra de valsalva”, de Felipe Prehn Falcão, Guilherme Haas e Seméia Corral, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Portátil, o equipamento permite a realização de um procedimento médico automatizado, associado ao tratamento e diagnóstico
de doenças cardiovasculares. Na categoria Ciência & Tecnologia Modalidade Pesquisador o primeiro lugar ficou com o trabalho
FEI
Um equipamento solar portátil com formato parabólico foi desenvolvido por alunos do Centro Universitário da Fundação Educacional Inaciana (FEI), de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, para ser utilizado em regiões remotas, como florestas e montanhas, locais desprovidos de energia elétrica. Chamado de Termosolar, o gerador, que tem 60 centímetros de diâmetro e pesa 20 quilos, possui um sistema mecânico ligado a dois eixos de movimentação independentes com coletores que captam o Sol. “Um sistema eletrônico comandado por sensores acompanha as diferenças de luminosidade, fazendo com que o foco dos coletores fique sempre apontado para a região com mais intensidade de luz”, explica Felippe Martins, um dos autores do projeto apresentado como conclusão do curso de engenharia mecânica, que contou ainda com a participação de Felipe Volles e Eduardo Welz. O equipamento foi concebido para convergir os raios solares em uma pequena área, atingindo temperaturas de até 800º Celsius em seu foco.
Coletores acompanham movimento do Sol
“Detecção de pneumotórax à beira do leito em tempo real”, de Eduardo Leite Vieira Costa, Harki Tanaka, Marcelo do Amaral Beraldo, Raul Gonzalez Lima e Susimeire Gomes, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Na mesma categoria, na modalidade Empresa Incubada, a vencedora foi a NibTec Inovações, de Santa Rita do Sapucaí (MG), com o projeto “Sistema de segurança e identificação por radiofreqüência para maternidades”, de Lucas Dias Mendes. Na Inclusão Social, o projeto “Luva funcional”, de Kátia Vanessa Pinto de Meneses e Daniel Neves Rocha, da Universidade Federal de Minas Gerais, capaz de restaurar os movimentos em pessoas com paralisia da mão e do punho, foi o vencedor. ■
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INSETOS
TECNOLOGIA
Em pequenas doses
Pesquisadores da Unesp desenvolvem iscas menos tóxicas e com ação lenta para controle de formigas Y URI VASCONCELOS FOTOS E DUARD O C ESAR
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Inseticida em forma de gel elimina formigas em residências
E
las não são repulsivas como as baratas nem incomodam tanto como os pernilongos ou as moscas, mas, como esses insetos, as formigas urbanas são uma praga. Vetores de fungos e bactérias, elas podem contaminar alimentos em casas e restaurantes e disseminar doenças em hospitais. Por isso, precisam ser prontamente controladas. A boa notícia para esse combate, levado em frente principalmente pelas donas-decasa e empresas de desinsetização, é que uma dupla de biólogos do Centro de Estudos de Insetos Sociais da Universidade Estadual Paulista (Ceis-Unesp), na cidade de Rio Claro, conseguiu desenvolver um eficiente sistema para o controle de formigas a partir dos conhecimentos adquiridos em mais de duas décadas de pesquisa básica. O inseticida é um mata-formiga na forma de isca, produto que o inseto leva para o interior do ninho como se fosse alimento. Lá dentro,
por conta do complexo sistema de trocas alimentares das formigas – umas fornecem comida às outras com alimentos regurgitados –, o veneno atinge grande número de indivíduos, aniquilando o formigueiro. O desafio dos cientistas foi produzir uma isca tóxica que imitasse com perfeição o alimento das formigas, porque elas são animais muito sensíveis e não se deixam “enganar” facilmente.“Por meio de um aprendizado adquirido ao longo do processo evolutivo, as formigas são muito especializadas na sua alimentação e sabem evitar aquilo que não faz bem para elas e sua colônia”, explica o biólogo Odair Correa Bueno, um dos autores do trabalho. Por isso, o elemento atrativo da isca, um de seus principais constituintes, teria que ser os próprios componentes da alimentação do inseto.“Um dos aspectos mais importantes do estudo foi identificar quais atrativos, que são o chamariz da isca, seriam os mais in-
dicados para a composição do inseticida”, diz o biólogo Osmar Malaspina, o outro integrante da dupla. Os pesquisadores concluíram que, para controlar as oito principais espécies de formigas urbanas existentes, responsáveis por mais de 85% das infestações no mundo, teriam que desenvolver diferentes iscas. A mais disseminada no Brasil é a formiga fantasma (Tapinoma melanocephalum), que é atraída por substâncias açucaradas. Minúscula, ela mede de 1 a 1,2 milímetro e ganhou esse nome devido a sua cabeça preta e parte do abdômen branco e translúcido na contraluz. Outras espécies, como a lavapés (Solenopsis saevissima) – que dá ferroada principalmente nos pés quando se pisa no formigueiro, causando ardor intenso só amenizado quando lavado com água –, preferem alimentos gordurosos. “Percebemos que uma única formulação não seria eficiente porque as várias espécies têm hábitos alimentaPESQUISA FAPESP 132
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res e comportamento distintos. Assim desenvolvemos cinco formulações com dois princípios ativos: um para iscas açucaradas e outro para as oleosas”, afirma Odair Bueno. O princípio ativo para as iscas doces foi o ácido bórico e para as gordurosas, a sulfluramida. As duas substâncias já são usadas em iscas vendidas no mercado, mas os inseticidas criados nos laboratórios do Ceis têm uma diferença: os princípios ativos estão numa concentração muito baixa, de cinco a dez vezes menor do que a existente nas iscas comerciais. Essa formulação faz as iscas serem menos tóxicas e terem ação mais lenta. “A baixa concentração é vantajosa porque reduz substancialmente o risco de acidentes domésticos, como a ingestão acidental por crianças ou animais, e de contaminação ambiental. E o fato de ser menos tóxica não torna a isca menos efetiva do que os formicidas comuns”, diz Malaspina. Os pesquisadores apontam ainda outra vantagem nos produtos desenvolvidos por eles.“Iscas com alta concentração de inseticidas ou com princípios ativos inadequados matam a formiga durante o seu transporte para a colônia, porque o inseto carrega o produto na boca ou papo, uma espécie de primeiro estômago existente nesses animais”, explica Bueno. Não é esse o objetivo. “Queremos que as formigas responsáveis pela coleta de alimentos, as operárias forrageiras, levem a isca para o interior do formigueiro e a distribuam para os demais indivíduos do ninho, como as larvas, os jovens e as rainhas.” Quebra do metabolismo – “O efeito len-
to das iscas faz as formigas serem envenenadas em doses pequenas ou mínimas, sem perceberem. Caso contrário, elas parariam de levar o ‘alimento’ para a colônia e a eficiência do produto seria zero.” Por terem princípios ativos distintos, as iscas da Unesp possuem mecanismos de ação diversos. No caso das açucaradas, o ácido bórico atinge o tubo de digestão da formiga, provocando a degeneração de seu estômago e levando o animal à morte. Nas iscas gordurosas, a sulfluramida é absorvida junto com o óleo usado na sua composição por uma glândula localizada na cabeça do inseto. Isso provoca a morte do animal, ao inibir a produção de energia nas mitocôndrias, que são as estruturas das células 68
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O PROJETO Desenvolvimento de um sistema para o controle de colônias de formigas em ambientes urbanos MODALIDADE
Programa Parceria para Inovação Tecnológica (Pite) COORDENADOR
ODAIR CORREA BUENO – Unesp INVESTIMENTO
R$ 114.800,00 (FAPESP) R$ 84.600,00 (Vitex)
responsáveis por essa função no organismo da formiga. Um terceiro tipo de isca, diferente de tudo que existe hoje, está sendo estudado pelo grupo. Sua composição substituirá os inseticidas atuais. “Pensamos em usar certos hormônios produzidos pelos próprios insetos que tenham potencial para inibir o desenvolvimento das larvas ou interferir na postura das rainhas. Essas são as iscas ideais. Já conseguimos desenvolver com sucesso o arcabouço teórico e experimental. Para iniciar a pesquisa aplicada, dependemos da parceria com os grandes fabricantes de formicidas”, diz Malaspina, que explica por que a dupla decidiu desenvolver novos tipos de isca: “Os métodos convencionais para controle de insetos, que utilizam pó ou líquido pulverizados, não funcionam bem em formigas porque Gel com veneno imita alimento da formiga e é levado para dentro do ninho
matam apenas os indivíduos visíveis, que tiveram contato com o veneno. A população restante da colônia fica ilesa. Quando percebem que alguns de seus membros estão morrendo, ocorre uma dispersão desordenada que acaba, muitas vezes, num reagrupamento em forma de vários outros ninhos”. Consórcio de empresas – A pesquisa para desenvolvimento das novas iscas contou com o apoio da FAPESP, que financiou os estudos por meio do programa Parceria para Inovação Tecnológica (Pite). A fim de colocar as iscas no mercado, os biólogos buscaram parceiros na iniciativa privada.“Nossa idéia inicial era terceirizar a produção. Durante um ano e meio, procuramos um sócio, mas não tivemos sucesso. Queríamos encontrar uma empresa a quem pudéssemos revelar os conhecimentos adquiridos em mais de 20 anos de estudo”, conta Bueno. A saída foi montar uma empresa própria para a fabricação do produto, a Tapinoma, que nasceu na Incubadora Tecnológica da Unesp de Rio Claro (Incunesp). Ela será a responsável pela produção das iscas formuladas com ácido bórico. Os produtos à base de sulfluramida serão feitos pela Dinagro, uma fabricante de inseticidas de Ribeirão Preto (SP) especializada na sintetização dessa substância. A comercialização ficará a cargo da paulistana Vitex Agricultura e Pecuária, uma distribuidora de produtos para controle de pragas urbanas que é a empresa parceira no projeto.
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Diferenças urbanas
Formigas lava-pés preferem alimentos gordurosos e são atraídas pela sulfluramida
Ao todo, o consórcio de empresas fabricará seis produtos que devem ser colocados no mercado a partir de março deste ano. Eles só aguardam o registro final da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), previsto para o final de fevereiro. A linha Formitap será vendida em quatro formulações: AB, de ácido bórico, na formulação pasta; AB-MAX, em gel, para as formigas que se alojam dentro de casas, empresas e hospitais; S, de sulfluramida, na forma farinácea, para formigas de jardim; e S-PLUS, microgranulada, também para formigas de jardim. As indicações de cada produto estarão na embalagem e na bula de cada um. Ninhos monitorados – O formicida Si-
misfor AB-MAX, na formulação gel, será oferecido em bisnagas de, no mínimo, 30 gramas e será dirigido às firmas especializadas em controle de pragas. O sexto produto, um líquido viscoso atóxico cujo nome comercial é Monitap, deverá ser empregado junto com o Simisfor pelas desinsetizadoras para monitorar se houve redução do número de formigas na área infestada. Num hospital, por exemplo, o Monitap pode ser colocado num berçário infantil ou outro lugar qualquer para atrair e localizar os ninhos de formigas. A vantagem de aplicá-lo é que, como não é tóxico, não há risco de contaminação em ambientes sensíveis. Confiantes no sucesso do negócio, os pesquisadores estimam que o mercado nacional de formicidas na área urbana
movimente algo em torno de US$ 4 milhões por ano. “Infelizmente, mais da metade do comércio é dominada por firmas clandestinas, que vendem produtos ilegais sem rótulos ou nome do princípio ativo e sem registro na Anvisa”, diz Bueno. Além disso, parte das iscas vendidas no país é fabricada a partir da adaptação de produtos estrangeiros, sem levar em conta a biologia e a diversidade de espécies que ocorrem no Brasil. Em seu primeiro ano de atividades, a Tapinoma terá capacidade de produção de mil unidades por dia da isca na formulação gel, a mais procurada no mercado, que deverá custar cerca de R$ 6 a bisnaga de 10 gramas, em torno do mesmo preço dos produtos já existentes. Conforme previsto no programa Pite, Unesp e Vitex ficarão, cada uma, com 49% dos rendimentos líquidos das vendas e a FAPESP com os 2% restantes. Além da produção e comercialização dos formicidas, o projeto prevê uma etapa de certificação das empresas especializadas em pragas que irão trabalhar com os produtos. “No lugar de uma só aplicação, como ocorre com a maioria dos produtos comerciais, nossas iscas requerem em torno de oito aplicações, no período de dois a três meses, bem como constante monitoramento. Assim, quanto maior for o conhecimento dessa metodologia por parte das empresas de desinsetização, maiores as chances de sucesso no controle dos formigueiros”, destaca o professor Bueno. ■
Os conhecimentos da biologia e do comportamento das diferentes formigas invasoras de ambientes urbanos foram essenciais para que os pesquisadores Odair Correa Bueno e Osmar Malaspina conseguissem criar o novo sistema de controle de formigas. “Quando começamos o projeto Pite, em 2002, toda a pesquisa básica já estava pronta”, diz Bueno. “Esses estudos foram importantes porque as formigas urbanas possuem particularidades que as tornam diferentes das demais espécies, como a existência de mais de uma rainha no mesmo ninho.” A rainha é o indivíduo responsável pela postura dos ovos na colônia. Outra peculiaridade está relacionada à forma de reprodução. A maioria das formigas acasala em pleno vôo, no chamado “vôo nupcial”, ao passo que o acasalamento das espécies urbanas acontece no interior do próprio ninho, muito provavelmente numa estratégia de defesa para evitar se expor a predadores. Essas formigas também não precisam construir seus ninhos. Elas usam frestas de madeira, tubulações elétricas e espaços ocos atrás de azulejos para formar suas colônias. Ao contrário da maioria das espécies, as urbanas formam populações unicoloniais. A característica multicolonial faz as formigas da mesma espécie, mas de ninhos diferentes, disputarem o território entre si. As urbanas perderam a defesa colonial e circulam livremente entre vários ninhos, que, na média, têm de 2 mil a 4 mil indivíduos, sem contar as formas imaturas (larvas e jovens). “Muitas vezes, os ninhos se comunicam entre si, deixando as colônias extremamente populosas”, diz Bueno. “Há publicações científicas sobre a existência de uma megacolônia na Europa, abrangendo Espanha, Portugal, França e Itália, que se estendia por mais de 6 mil quilômetros nas costas do oceano Atlântico e do mar Mediterrâneo.”
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Lentes em polテュmero: matriz テゥ feita com moldes de aテァo gravados com feixes de laser
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ENGENHARIA ELETRテ年ICA
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lho clínico
Sensores de segurança com filtro óptico identificam contornos de pessoas e animais D INORAH E RENO
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s falsos alarmes disparados pelos sistemas de segurança quando detectam um gato inofensivo, por exemplo, em vez de supostos ladrões, estão com os dias contados depois de uma inovação desenvolvida por uma pequena empresa da cidade de São Carlos. Os pesquisadores da Holophotonics desenvolveram lentes de pequenas dimensões, usadas em sensores de presença, capazes de identificar com precisão o que se move em ambientes comerciais e residenciais monitorados. Esses sensores podem ser usados também para controlar a iluminação. Eles reconhecem a presença de uma pessoa e acendem a luz. A geometria inovadora das lentes criadas pela empresa permite que os sensores funcionem como um filtro óptico, bloqueando, por exemplo, o sinal de gatos e cachorros que circulam nos ambientes. Apenas o sinal das pessoas é levado em conta pelo sistema que dispara o alarme de forma correta. “Os sensores que estão no mercado, a maioria importada, fazem essa filtragem apenas na etapa de processamento do sinal eletrônico, portanto, posterior à captação de radiação pelas lentes”, diz Giuseppe Antonio Cirino, diretor de pesquisa e desenvolvimento da empresa e coordenador do projeto, apoiado pela FAPESP na modalidade Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe), que resultou no produto. A área de segurança no Brasil tem
apresentado um crescimento constante. Desde 1995, tem crescido em média 12% ao ano, segundo a Associação Brasileira das Empresas de Sistemas Eletrônicos de Segurança (Abese). O número instalado de sensores no país, incluindo os de presença, de fumaça, de impacto, portas e janelas, passa de 1 milhão de unidades. Do tamanho de um mouse de computador, os sensores são colocados na parede, próximo ao teto dos ambientes para controle de segurança.As lentes funcionam em conjunto com um fotodetector, captando e transformando a radiação que o corpo emite em forma de calor em sinal elétrico, que é posteriormente processado por um circuito eletrônico. Toda a informação fica no âmbito de processamento eletrônico de sinais, já que o produto não trabalha com imagens. O sistema completo envolve cerca de um a dez sensores dependendo do tamanho do local monitorado, uma central que conecta todos eles e se comunica, via cabo telefônico ou comunicação sem fio, com a central de monitoramento.“O preço de venda do nosso sensor fica em torno de R$ 25, enquanto os importados custam acima de R$ 100”, diz Cirino. “Várias empresas brasileiras tentaram desenvolver a lente, sem sucesso”, relata Cirino.Algumas chegaram até a forma geométrica das lentes, mas esbarraram no desenvolvimento de materiais apropriados,capazes de captar o calor e transferi-lo para o pequeno detector instalado na parte interna do sensor. “A grande dificuldade é conseguir fazer a caracterização óptica do material, permitindo que ele capte a radiação eletromagnética de comprimento de onda específica, relativa ao calor emitido pela pessoa. Se isso não for feito, todo o calor é bloqueado pela lente”, explica o pesquisador. No caso do sensor da Holophotonics, as microlentes estão colocadas dentro de um pequeno retângulo de plástico branco leitoso.“Nós não enxergaPESQUISA FAPESP 132
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Sensor eletrônico de presença usado para monitorar ambientes residenciais e comerciais e também no controle inteligente de iluminação em prédios
mos do outro lado do material, mas para o calor que o sensor capta é como se fosse um vidro transparente”, diz Cirino. O primeiro passo do processo de fabricação das microlentes é gerar um modelo no computador, que posteriormente é reproduzido em um molde em aço, matriz para a produção da lente em larga escala. Parece simples, mas, como é preciso embutir um filtro óptico para o discernimento das silhuetas, o desenho da geometria das lentes tem várias nuances no computador que precisam ser traduzidas no processo de fabricação.
mentos ópticos, em 1998. Nessa época, seu co-orientador e hoje consultor da Holophotonics, o professor Luiz Gonçalves Neto, da Escola de Engenharia da USP de São Carlos, havia voltado do Canadá, onde realizou seu doutorado em um projeto na mesma linha de pesquisa. Em 2002, após a defesa de tese, Cirino deu entrada no projeto Pipe em parceria com a empresa PPA, com sede em Garça, no interior de São Paulo, que atua na área de automação de portões, para desenvolvimento de novos sensores de detecção de movimento para aplicações em segurança doméstica e corporativa.
Pedido de patente - O sistema de grava-
ção do molde foi feito com um feixe de laser pela empresa LaserTools, de São Paulo,que também nasceu de um projeto Pipe da FAPESP. Foram dois anos até chegar ao molde concebido no projeto computacional. No final, o sistema de fabricação das microlentes resultou em um pedido de patente.A Holophotonics também tem parcerias com o Laboratório de Sistemas Integráveis da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) e com o Departamento de Engenharia Elétrica da Escola de Engenharia da USP de São Carlos. A pesquisa que resultou nas inovadoras microlentes teve início com o projeto de doutorado de Cirino, na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, relacionado à fabricação de microele72
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O PROJETO Desenvolvimento de novos sensores infravermelhos de detecção de movimento para aplicações em segurança doméstica e corporativa MODALIDADE
Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe) COORDENADOR
GIUSEPPE ANTONIO CIRINO – Holophotonics INVESTIMENTO
R$ 154.007,28 (FAPESP)
A escolha da PPA foi estratégica, porque a empresa tem um braço de segurança eletrônica, a Eletroppar. Durante o desenvolvimento do projeto, Cirino passou a prestar serviços para a PPA e criou, junto com o engenheiro Robson Barcellos, a Holophotonics, inicialmente incubada na Fundação Parque de Alta Tecnologia (ParqTec), de São Carlos. Após quatro meses de incubação, novos sócios foram incorporados à empresa em abril de 2005. O aporte de capital propiciou à empresa a mudança para sede própria e o desenvolvimento, produção e comercialização de uma nova linha de produtos, com a marca Qualilux. Entre eles estão os sensores de presença dirigidos para o mercado de automação predial e indicados para controle de iluminação em ambientes internos. Eles podem ser colocados também em luminárias de casas com um temporizador, interruptor que liga ou desliga um circuito em momentos predeterminados e funciona como um controle inteligente de energia elétrica. O atendimento do segmento de segurança eletrônica é exclusivo da PPA.A Holophotonics, além dos sensores de controle de iluminação, produz ainda interruptores de parede que regulam a intensidade de luz no ambiente, os dimmers, e interruptores temporizados que desligam automaticamente após um tempo ajustado previamente, chamados de minuterias. ■
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> KEHL
ENGENHARIA DE MATERIAIS
Isopor
vegetal Espuma biodegradável pode substituir vários tipos de plástico
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esinas obtidas de plantas como milho, arroz, cana-de-açúcar, soja e mamona são a base de produtos biodegradáveis destinados a substituir o poliestireno expandido (EPS), um produto de difícil reciclagem derivado do petróleo conhecido popularmente como isopor, utilizado principalmente pelo mercado de embalagens. A Bioespuma, nome comercial e patenteado do material desenvolvido pela empresa Kehl, na cidade paulista de São Carlos, foi aplicada em vários produtos, como bandejas para comercialização de frutas e legumes, embalagens para aparelhos eletroeletrônicos, suportes para plantio de mudas e sementes com nutrientes agregados e tapetes absorventes para produtos químicos. “A formulação e o arranjo das moléculas permitem a obtenção de diferentes produtos”, diz Eduardo Murgel Kehl, químico e economista que criou a empresa em 1972 como um laboratório de ensaios e fábrica de artigos de borracha e silicone. Algumas linhas de produtos já estão no mercado, outras serão lançadas ainda no primeiro semestre deste ano pela empresa Synbeeosis, também de São Carlos, que se tornou parceira comercial da Kehl. As pesquisas que resultaram no material biodegradável começaram em 1992 nos laboratórios da Kehl e prosseguiram na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde foi realizado o primeiro estudo de biodegradação. Outros ensaios foram feitos na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e na Universidade de São Paulo (USP) na mesma cidade. A grande vantagem do biomaterial é o tempo de degradação na natureza. Na presença do oxigênio e no solo, ele degrada em dois anos – sem oxigênio pode levar até três anos. “Em ambientes como lixões, propícios ao desenvolvimento de microorganismos, o processo é bem mais rápido e pode ser de até seis meses”, diz
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Biomaterial em várias composições: espuma biodegradável, bandeja para sementes, tapete absorvente de óleo e martelo (abaixo)
o químico Ricardo Vicino, sócio da empresa, que coordenou as pesquisas na universidade. A Kehl tem um convênio com a Unicamp que permite a realização de testes de produtos em desenvolvimento. A Bioespuma é produzida pela combinação de biomassa das resinas vegetais e de derivados de petróleo, que entram em até 50% da composição. A mistura é tratada por vias químicas tradicionais e transformada na matéria-prima que dá origem ao material biodegradável. Os testes para avaliar a biodegradação do produto foram feitos no laboratório do Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas (CPQBA), da Unicamp, segundo as normas da American Society for Testing and Materials, aceitas mundialmente. A Bioespuma pode substituir o isopor, que não é biodegradável e constitui um sério problema ambiental quando descartado nos lixões. Além disso, produz gases tóxicos ao ser incinerado. A reciclagem do isopor é possível, mas a baixa densidade do material constitui um empecilho para o seu reaproveitamento. Para ser economicamente viável, seria necessário coletar uma quantidade muito grande do material.Até o momento são tímidas as iniciativas para conter o descarte de EPS nos aterros sanitários ou mesmo na natureza. Inicialmente, a Bioespuma foi produzida com mamona, mas hoje tem a so-
ja e o milho como duas das principais fontes de matéria-prima porque obtiveram melhores resultados técnicos e menor preço. Um dos produtos derivados desse polímero vegetal que tem conquistado consumidores é uma tinta especial à base de milho usada na construção civil como impermeabilizante de lajes de concreto e de pisos industriais, comerciais e residenciais.“Além de não ter cheiro durante a aplicação, o produto é bastante resistente”, diz Kehl. A tinta, produzida em várias cores, é indicada ainda para a sinalização de estradas e construção naval, como impermeabilizante para casco de navios. O polímero vegetal, também chamado de poliuretano, é utilizado na fabricação das pontas de martelos, que apresentam aspecto semelhante ao da borracha, indicados para aplicações de impacto, mas sem causar danos e manchas nas peças, como nas linhas de montagem automobilística.“Duas concessionárias da BMW usam nossos martelos”, diz Kehl. Quando a ponta fica gasta, ela pode ser substituída, já que é parafusada em um suporte de alumínio. Embalagens resistentes – A versatilidade do polímero tem levado vários grupos empresariais a propor parcerias com a Kehl e atraído clientes de áreas diversas. A empresa Rytpak, de São Paulo, por
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exemplo, compra o produto bruto para produzir embalagens para diversos segmentos da indústria. Como é biodegradável, interessa a empresas multinacionais que procuram substitutos para as embalagens de EPS, rejeitadas por vários países europeus por conta dos resíduos. A Caterpillar, fabricante de máquinas como retroescavadeiras, tratores de esteira e geradores, usa tapetes feitos com a Bioespuma para absorver o óleo lubrificante nas oficinas de manutenção de suas concessionárias. O produto funciona, ainda, como barreira nos vazamentos de óleo em rios e oceanos. O óleo é absorvido pela espuma, que não afunda mesmo muito encharcada. Para retirar o óleo, basta passar a espuma por um equipamento semelhante a um rolo compressor que ela imediatamente retorna à forma original e pode ser usada novamente. Algumas empresas procuram a Kehl em busca de soluções pontuais. Um desses clientes, um grupo japonês do setor de alimentação, que pelo acordo de sigilo não pode ser identificado, queria uma espuma natural para ser colocada no sistema de tratamento de efluentes dentro de tanques com capacidade para processar 10 mil metros cúbicos. “Desenvolvemos uma espuma natural e renovável, mas não biodegradável, senão ela seria consumida pelos microorganismos du-
rante o tratamento de efluentes, que está sendo testada em escala piloto”, diz Vicino. Com isso, a capacidade de tratamento dos efluentes da empresa vai praticamente dobrar sem a necessidade de construir um novo tanque ou investir em obras para aumentar a planta industrial. Plantio de rosas - Um produtor de flores de Holambra, no interior de São Paulo, por exemplo, encomendou bandejas de Bioespuma para o plantio de rosas. Como o substrato é biodegradável, as mudas podem ser transplantadas diretamente para os canteiros de terra. As bandejas para mudas de plantas levam em sua composição nitrogênio, fósforo e potássio (NPK), uma formulação básica de adubo, além de micronutrientes. Conforme a espuma degrada no solo, libera os nutrientes para as plantas. O produto já está pronto, mas a encomenda, de 5 mil caixas de bandejas, só poderá ser atendida quando a Synbeeosis estiver com a planta industrial pronta. Outro produtor de Holambra quer 80 mil vasos por mês para substituir os de plástico. Nesse caso, a Bioespuma ganha outra configuração para poder ter vida útil de cerca de dez anos. A Kehl já produziu protótipos para serem usados no cultivo hidropônico e em arranjos florais, em substituição à espuma sintética, que também serão fabricados pela
empresa parceira. A decisão de passar a produção do biomaterial para outra empresa foi tomada porque a Kehl já fabrica vários produtos. Na área de borrachas industriais produz amortecedores, revestimentos, pisos e rodas, além de cânulas para uso veterinário, feitas com borracha atóxica, e uma linha de produtos feitos com silicone. “Depois de anos investindo em pesquisa de novos produtos, decidimos centrar nossos esforços para colocá-los no mercado”, diz Kehl. A Synbeeosis está pronta para atender à demanda. Inicialmente vai produzir mantas para absorção de óleo em oficinas mecânicas e nas indústrias, além de bandejas para a agricultura. Para a construção civil, estão prontas placas de Nutrispuma, outro nome do biomaterial para aplicações específicas, em substituição aos plásticos utilizados como moldes para concreto, por exemplo. A empresa se prepara também para concorrer em um novo nicho, o mercado de produtos para animais de estimação. Tapetes para absorção de urina de gatos e cachorros, que se degradam rapidamente quando jogados no lixo, e sacos plásticos biodegradáveis para recolher fezes são os primeiros lançamentos programados nessa área. ■
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> INDÚSTRIA QUÍMICA
Duro na queda Braskem produz resinas com nanotecnologia que resultam em plásticos mais resistentes
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m plástico mais rígido e resistente a impactos deverá estar em breve disponível para compor painéis e pára-choques de automóveis,gabinetes de aparelhos eletrônicos,embalagens e uma infinidade de utensílios domésticos.A matéria-prima para a produção dessas peças é um novo tipo de polipropileno (PP) que está sendo fabricado em escala piloto pela Braskem,uma gigante da indústria petroquímica do país.A diferença da nova resina polimérica com as já ofertadas no mercado é que ela possui estrutura nanométrica e resulta em maior resistência a impactos e a quebras.Utilizando recursos da nanotecnologia,uma nova área multidisciplinar que lida e produz estruturas no nível dos nanômetros,medidas representadas por 1 milímetro dividido por 1 milhão de vezes,a empresa obteve esse novo material por meio de uma parceria com o Instituto de Química da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).“Utilizamos um tipo de argila na forma nanométrica que se dispersa e se liga nas moléculas do polipropileno e confere maior rigidez ao produto final”,diz a professora Raquel Santos Mauler,coordenadora da pesquisa. A argila utilizada é formada por minerais,chamados de betonitas e montmorilonitas,dispostos em camadas.No processo desenvolvido pelos pesquisadores da UFRGS e da empresa,as folhas empilhadas da argila se dispersam,com espessuras de 1 nanômetro,pelo polipropileno,se fixando nas moléculas da resina e formando um material chamado de nanocompósito.“O novo material melhora o produto final com 30% a mais de rigidez e quatro vezes mais resistência a impactos”,diz o gerente de nanotecnologia da Braskem,Manoel Lisboa da Silva Neto,que trabalha junto com um gru-
po de oito pesquisadores,sendo quatro doutores e quatro técnicos dedicados a essa área no Centro de Tecnologia e Inovação da empresa na cidade de Triunfo,próxima a Porto Alegre.Eles fazem parte de um grupo de 170 pessoas que atuam no mesmo centro. O primeiro produto a ser testado com a resina nanocomposta foi a estrutura externa de uma garrafa térmica produzida pela empresa Termolar,também de Porto Alegre.“Os resultados foram muito bons”,diz Silva Neto.Também já foram produzidos baldes de 10 litros que comprovaram a maior resistência.“Repassamos a resina para outros fabricantes de produtos plásticos,mas ainda não podemos dizer quais são por acordos de confidencialidade”,diz a pesquisadora da Braskem,Susana Liberman.“Com as características melhoradas do polipropileno ampliam-se os usos dessa resina como na substituição de outro polímero de custo maior,o acrilonitrila-butadienoestireno (ABS) na estrutura de gabinetes de eletroeletrônicos ou de máquinas de lavar roupa.” Patentes nano – A aposta na nanotec-
nologia como fator de impulso à inovação começou na empresa em 2003. “Uma das nossas funções é acompanhar o que acontece no mundo na área de resinas plásticas.Em 2002 já percebíamos as novas tendências das resinas,principalmente em relação ao polipropileno. No ano seguinte fizemos uma parceria com a UFRGS e,em 2005,depositamos a primeira patente sobre o nanocompósito e já em dezembro de 2006 foi a vez da quarta patente,sendo uma delas no exterior”,explica Susana.“Já mantínhamos uma relação estreita com a Braskem, que tinha mestrandos e doutorandos no nosso instituto.Com essa interação eles ficaram sabendo que trabalhávamos
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Garrafa térmica e imagens de outras peças que também receberão o novo polipropileno sobre fotos de microscopia mostrando folhas de argila entre as moléculas do polímero
rado pela empresa como o potencial para essas novas resinas. A empresa produz atualmente 1,3 milhão de t/ano de polipropileno e polietileno e é líder nesse mercado na América Latina. Argila BR – Um dos pontos que a em-
presa deverá resolver nos próximos anos é a viabilização de uma argila nacional porque a usada até aqui é importada. Há possibilidades de uma mina desses minerais no estado da Paraíba e existem estudos de argilas nacionais sendo desenvolvidos pelo Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos (CMDMC), coordenado pelo professor Elson Longo, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), de Araraquara. Colaborações desse centro e de outros grupos da UFRGS, além do coordenado pela professora Raquel, e da Embrapa Instrumentação Agropecuária, de São Carlos, fortalecem a intenção da Braskem em investir nos estudos com nanotecnologia. Depois dos bons resultados tecnológicos com os novos produtos, a empresa pesquisa a adoção de outros nanocompósitos em um outro tipo de polímero, o policloreto de vinila (PVC), também para melhorar a resistência. Outra linha de pesquisa é adicionar nanotubos de carbono ao polipropileno. Esses nanotubos são folhas enroladas de carbono com a finura de um átomo que apresentam alta resistência a rompimentos, maior até que o aço. Elas também podem carregar, por exemplo, enzimas em seu interior e indicar, no caso de uma embalagem de alimentos, o que está dentro dela e se há alterações na consistência e validade do produto. “É uma linha de embalagens inteligentes que ainda necessitam de muitos testes e verificação da viabilidade econômica”, diz Susana. ■
M ARCOS
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O LIVEIRA
BRASKEM E UFRGS
com nanocompósitos, mas ainda em outros polímeros”, diz a professora Raquel. O sistema de incorporação de argila ao polipropileno também está dando certo com o polietileno (PE), outra resina polimérica igualmente usada em utensílios domésticos e aparelhos eletrônicos e peças de automóveis. Ao contrário do PP, em que a argila é adicionada após ele estar pronto e diluído, a produção do PE formando nanocompósitos acontece durante o processo de polimerização. “Desenvolvemos um processo em que produzimos o PE com eteno, argila e um catalisador (substância que acelera a reação química) dentro de um reator de polimerização”, diz o Osvaldo de Lázaro Casagrande Júnior, pesquisador da UFRGS. O processo de produção do polietileno acontece em escala laboratorial e ainda não foi testado em produtos finais, prontos para o consumo. A maior resistência mecânica poderá melhorar o tanque de combustível dos veículos automotores e substituir algumas peças e engrenagens, tornando-os também mais leves. Para Casagrande, o PE mais rígido poderá ter usos mais nobres como a substituição do titânio em próteses, deixando mais baratas essas peças, além de usos mais específicos como revestimento de caçambas, que transportam terra e pedra, e coberturas de cais de porto, no local da atracação de navios. A empresa investiu R$ 5 milhões no desenvolvimento da nova tecnologia e prevê que no início das vendas os preços girem em torno de 30% a mais que a resina tradicional. Os principais consumidores são as indústrias de transformação de plásticos. Ainda em 2007, a Braskem espera produzir 10 mil toneladas (t) de PP com nanocompósito, volume que deverá dobrar a cada seis meses até atingir as 100 mil t/ano, montante conside-
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HISTÓRIA
Retrato em branco e preto Imagem do negro no Brasil foi forjada com chegada da fotografia no século XIX C A R LO S H A AG
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HUMANIDADES
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REPRODUÇÃO/ALBERTO HENSCHEL, RETRATO, C. 1870
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e, referindo-se à escravidão, Castro Alves pergunta a Deus, em O navio negreiro, “se é verdade tanto horror perante os céus”, não é de se estranhar que o sociólogo Muniz Sodré, no artigo Uma genealogia das imagens do racismo, use um personagem de terror para ilustrar sua visão da visão do negro na nossa sociedade: “Drácula não se reflete no espelho, logo, é sem imagem. Ele é o inverso da identidade normalizada pela cultura pequeno-burguesa. Na sociedade da imagem (anagrama de magia), dos dispositivos de visão, o sujeito só existe se aparece no ‘espelho’, isto é, se tem condições socioculturais de ter imagem publicamente reconhecível”. Vale lembrar que o conde, assim como a fotografia, são “filhos” do século XIX. “A percepção daquele tempo sobre a fotografia é de que ela não é apenas uma forma de ‘representar’ o mundo, mas de ‘tornar o mundo visível’”, analisa Maurício Lissovsky, historiador da fotografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em meados da década de 1860, no Brasil, o retrato fotográfico se tornara um objeto de desejo para brancos e negros. “No caso destes últimos, se nascidos livres ou libertos, ao se fazerem retratar como os brancos, à moda européia e com códigos e comportamentos emprestados do outro, era uma tentativa de trilhar um caminho dentro de uma sociedade racista e exigente”, observa Sandra Koutsoukos, autora da tese de doutorado “No estúdio do fotógrafo: representação e auto-representação de negros livres, forros e escravos no Brasil da segunda metade do século XIX”, defendida em outubro, na Unicamp, orientada por Iara Lis Schiavinatto. A pesquisa “desvela o invisível” presente em imagens de negros com cartolas e suas mulheres com sombrinha, amas e seus “filhos” brancos, assim como os polêmicos “tipos de pretos”, como as imagens do fotógrafo Christiano Júnior, que se anunciava no Almanaque Lammert como dono de “uma variada coleção de costumes e tipos de pretos, cousa muito própria para quem se retira para a Europa”. Exibindo negros e negras seminus (adorados pelos etnólogos racistas), catalogados por sua origem africana, ou em encenações feitas no estúdio de seu trabalho nas ruas e nas fazendas, as imagens chamaram a atenção de Sandra que viu ser “necessário olhar o que estava enquadrado nas fotos, assim como descobrir o que ficara de fora”. Mas “Drácula” não aparece no espelho. Então, ver o quê? Afinal, como observa a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, em Olhar escravo, ser olhado, “num retrato, pode-se ser visto e pode-se dar a ver, alternativas ligadas à relação entre retratado e retratante: se o retrato do senhor é uma forma de cartão de visita, o do escravo é um cartão-postal, onde o escravo é visto, não dá a ver”. Num, se tem a preservação da imagem de uma pessoa digna e singular, alguém que, ao encomendar uma fotografia, dá-se a conhecer, esparrama-se pelo papel como gostaria de ser visto, como se vê a si mesmo no espelho; no outro, um personagem PESQUISA FAPESP 132
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REPRODUÇÃO/CHRISTIANO JÚNIOR, SIMULAÇÃO ENTRE VENDEDORA E COMPRADOR, C. 1865
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pitoresco e genérico, continua a professora.“Em meu estudo, descobri que, apesar de ser levado ao estúdio do fotógrafo e posar, seja trabalhando, seja como pano de fundo de seu senhor, o escravo e o liberto ‘se davam a ver’, se ‘mostravam’ e que foram, talvez tanto quanto os brancos que posaram para suas fotos em estúdios particulares, os sujeitos daqueles retratos”, analisa Sandra. Para a pesquisadora, em quase todas as imagens há o olhar fixo na objetiva, direto para o fotógrafo, dando voz à imagem. “Muitos não se intimidavam diante da máquina esquisita e davam sua contribuição pessoal por meio da expressão, do olhar sofrido que nos encara e parece contar suas histórias. O luxo ou a encenação não mascaravam a condição do escravo ou do liberto. Se o corpo do escravo era uma propriedade, sua personalidade não era.” “A fotografia é uma arte maravilhosa, uma arte que excita as mentes mais astutas. E uma arte que pode ser praticada por qualquer imbecil”, reclamou o grande retratista francês Nadar. Sorte da posteridade. Se demorou a ser descoberta (apenas em 1839), chegou rápido ao Brasil, no ano seguinte, trazida pelo abade Compte, aluno de Louis Daguerre, o
inventor da fotografia. Antes do Rio, o francês teria passado pela Bahia, cujo pioneirismo está bem apresentado no recém-lançado A fotografia na Bahia, organizado por Aristides Alves, e que traz 215 imagens feitas, de meados do século XIX até 2006, por 107 profissionais baianos e estrangeiros. (Outra fonte excelente é O negro na fotografia brasileira do século XIX, da G. Ermakoff Casa Editorial, 306 págs., R$ 130.) Aliás, até a chegada da fotografia, o olhar oitocentista era um olhar estrangeiro, ligado à tradição de Franz Post, e, mais tarde, de franceses, alemães e suíços que pintaram o cotidiano da corte tropical, preferindo sempre o coté exótico de índios ou de negros em eterna alegria e andanças pelas ruas cariocas, como vemos em Debret e Rugendas. O daguerreótipo era caro e exiga poses demoradas de até 60 minutos. Analfabetos – Em 1854, o francês André
Disdéri criou um processo de retratos de tamanho pequeno (9,5 cm por 6 cm), elaborados sobre papel albuminado, que, baratos e de pose rápida, foram uma revolução num país de analfabetos de poucas posses que gostariam se ver imortalizados como os nobres donos das pintu-
ras. O custo de uma dúzia desses cartes de visite, como eram chamados, era o mesmo de um único daguerreótipo e se podia oferecer como mimo para amigos e parentes, fazer álbuns familiares. “Era a democratização da auto-imagem para grupos sociais menos favorecidos. Com o carte de visite, a fotografia se tornaria uma técnica a serviço de todos, um objeto de desejo e status, uma mercadoria de troca”, lembra Sandra. Os jornais estavam repletos de anúncios de estúdios que disputavam sua clientela nos preços e na capacidade de “dar nobreza” ao retratado, seja pela sua técnica, seja pelos apetrechos que possuíam no salão e que enfeitavam o entorno do fotografado.“A fotografia dá ao negro pobre a oportunidade de se distanciar da realidade, de se projetar segundo uma imagem idealizada, fazer a sua representação.A necessidade de registrar uma ascensão social requer a assimilação dos códigos vigentes. Daí a repetição e a uniformização nas poses e acessórios nos retratos.” O estúdio funcionaria, diz a professora, como um camarim e palco, onde o fotógrafo era o diretor e o cliente, mesmo participando da construção de sua cena, o personagem. Uma foto, mesmo PESQUISA FAPESP 132
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à custa da privação de itens importantes à sobrevivência, era a prova visual para eles, para amigos e parentes de que a sua luta estava valendo a pena. “O momento exigia que, além de ser livre, a pessoa nascida livre ou alforriada parecesse livre para os outros, usando, para tanto, símbolos que indicassem essa sua condição.” Detalhes como estar de sapatos eram indicativos do novo status de liberdade. Gilberto Freyre, em Sobrados e mucambos, conta como os negros,“vestidos à européia”, eram atacados e ridicularizados nas ruas pela “ousadia”. Da mesma forma, muitos escravos eram levados para o estúdio para fazer figuração no retrato de senhores e, com sua humilhação (“mas não com sua atitude”, ressalta a pesquisadora), garantir o registro do poder do senhor. As fotos encenadas, com negros reproduzindo seu labor no estúdio, eram suvenires (cuja organização cênica asséptica, lembra Sandra, servia para tentar passar uma idéia de “escravidão civilizada”) e objetos etnográficos, feitos sob encomenda para sustentar teorias racistas. Nessas, se procuravam “evidências” da inferioridade dos negros e igualmen84
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te serviam como base para referendar o ideal da “escravidão civilizada”, nota a pesquisadora.“Apesar da assepsia e da ordem retratadas, a condição de escravo não era mascarada; antes, sua essência era exposta.” Havia também um mercado para fotos de amas, trazendo ao colo a criança branca que amamentara. “Nesse tipo de foto, tentava-se passar uma idéia de harmonia e afeto, num período em que o uso de amas estava sendo condenado pela medicina”, observa Sandra. Humores – Num anúncio do Jornal do
Commercio, de 1875, fazia-se a apologia da Farinha Láctea Nestlé, “a verdadeira ama-de-leite”, que, afirmava o reclame, livrava o filho do contágio de enfermidades enoculadas pelo leite estranho, corrompido pelos maus humores de qualquer ama-de-leite”. A modernidade exigia mudanças, mas as mães relutavam em abrir mão do privilégio de “usar” a negra para alimentar o filho. As fotos foram uma tentativa de “segurar” o relógio dos novos tempos. Nessas fotos, avalia a pesquisadora, é ainda mais gritante a força de expressão no olhar da retratada, obrigada a se vestir com luxo forçado.
“Elas são lembranças de que, para haver uma ama negra, houve um bebê negro que, muitas vezes, era separado da mãe para que ela pudesse criar o filho senhorial.” O invisível se torna visível. “O uso social da servidão dos povos africanos criou no Brasil uma estética da exterioridade útil do corpo do negro. O senhor de escravos, como os profissionais do ramo, conheciam melhor os detalhes dos dentes de seus servos do que os de suas filhas, como acontece com os criadores de cavalo de raça atuais. De certos desvios de olhar não ficamos livres até hoje”, analisa o antropólogo da Unicamp Carlos Rodrigues Brandão, em seu artigo O negro olhar. “Nos jornais e revistas, negros são mais o corpo do que o rosto, mais o tipo e mais ainda a função do que a pessoa. Num país onde negros ‘puros’ são milhões, é o rosto branco, qualquer que seja, que se dá a ver. Os negros e mestiços são quase todos os criminosos do país, pois eis que quase todas as fotografias de criminosos são de mestiços e negros.” É forte, no Brasil, a imagem do negro como máquina corpórea, algo complexo num país que aprendeu a desprezar o trabalho braçal. Negros são os que trabalham, os que são sensuais (mesmo quando revelados como esportistas), os que adoram festas, observa Paulo Bernardo Vaz, professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais e autor de um estudo sobre a imagem do negro. “O fluxo imagético que mostra o negro sofrendo, apanhando, roubando ou exibindo seu corpo sensual reatualiza significados construídos sócio-historicamente e que sugerem cristalizações que tipificam o negro em uma forma que não favorece uma auto-estima positiva. É o olhar externo que in-forma o negro numa representação pejorativa que pode afetar a sua construção identitária. Afinal, quem quer se identificar com um sujeito que vive sofrendo?” Para Vaz, os meios de comunicação oferecem ao negro a oportunidade contraditória de ser outro e não ele mesmo.“O ‘outro’ representa a ameaça fantasmática de dividir o espaço a partir do qual falamos e pensamos, é o medo de perder o espaço próprio. Medo primitivo, análogo ao terror noturno das crianças. O ‘outro’ acaba virando Drácula, sem imagem legítima”, analisa Muniz Sodré. A Transilvânia, como o Haiti, também pode ser aqui. ■
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Estudos desmistificam preconceitos sobre famílias de pais homossexuais
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amília: almoça, janta e vive junto todo dia, nunca perde essa mania. Simples, a definição dada pelos Titãs é melhor do que a crença complexa numa “união sacrossanta que se estabelece entre família, nação, estado, tradição e moral”, como observa Marilena Chaui em Repressão sexual.“Considere-se que o eixo que sustenta a sociedade ocidental é o casamento monogâmico-família heterossexual-filhos, para se ter uma noção da opressão de quem sai desse padrão”, observa Claudiene Santos, autora da tese de doutorado em psicologia “A parentalidade em famílias homossexuais com filhos”, orientada por Maria de Toledo Bruns e defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências da USP. “Esta família cristã, idealizada sobre os pilares do casamento indissolúvel e a procriação, estabeleceu a visão sacralizada da família e a idéia de que a mulher se completa na maternidade e o homem na paternidade, instalando assim o preconceito contra pessoas estéreis e homossexuais devido à impossibilidade biológica de reproduzir-se.” Segundo pesquisas empíricas, Claudiene afirma que poucas são as diferenças entre casais hetero e homossexuais na criação dos filhos.“O preconceito só irá desaparecer quando a sociedade conseguir entender que a orientação sexual dos parceiros não exclui a capacidade de ser bom pai ou boa mãe”, adverte. Não será fácil: estudo recente realizado pela Universidade Federal Fluminense mostrou que 89% dos brasileiros são contra a homossexualidade masculina. Não só por aqui.“A união de um homem e uma mulher no casamento é a instituição humana mais duradoura e importante. Mudar essa definição abalaria a estrutura familiar”, profetiza o presidente George W. Bush, em cujo país 27% das famílias homossexuais têm filhos. No Brasil, onde a lei não permite a adoção de uma criança por duas pessoas do mesmo sexo (o pedido é feito em nome de um dos compa-
Um é pouco. Dois é bom.
COMPORTAMENTO
nheiros), não há pesquisas, apenas desinformação.“Acreditar que a orientação sexual seja o fator preponderante para o exercício da parentalidade só reforça uma visão reducionista da vasta dimensão que engloba a família.” “A condenação generalizada da homossexualidade que persiste nas sociedades contemporâneas, ainda influenciadas pelas leis religiosas, é a principal resistência à visibilidade dessas famílias, percebidas como atentatórias ao caráter sagrado adquirido pela família. Essa sacralidade torna impensável qualquer outra configuração familiar. Mas essa ‘sagrada família’ desconsidera o fato de que ela é apenas uma construção histórica muito recente”, avalia a antropóloga Elizabeth Zambrano, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no artigo Parentalidades impensáveis. A família, tal a concebemos, só foi consolidada no século XIX. Até o século XVI, ela existia como linhagem, como instituição política, mas não como espaço doméstico. Pater – Na Roma antiga, família desig-
nava o “servidor”, o lugar onde havia um chefe, o pater, e todos a seu redor o obedeciam. Aos poucos, o termo se restringiu aos descendentes e, na Idade Média, com a Igreja, a família virou a união de duas pessoas pelo casamento. Misturaram-se, então, a noção de vida conjugal e filiação, sendo considerados cada vez mais importantes os vínculos biológicos e afetivos que uniam os indivíduos. A família se torna o “centro da estruturação da sociedade” no século XIX, com contornos morais, uma feição psicologizada e afetiva, com o modelo nuclear monogâmico e heterossexual. “Só no final do século é que surge a família nuclear como a conhecemos”, diz Elizabeth. Sem falar em outras culturas. Para Lévi-Strauss, a família não é uma entidade fixa em si, mas onde se desenvolvem normas de filiação e parentesco, elo de ligação entre indivíduos e sociedade.
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MONTAGEM SOBRE O QUADRO ELEONORA DE TOLEDO, DE BRONZINO
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MONTAGEM SOBRE O QUADRO JAMES PRINCE E SEU FILHO, DE JOHN BREWSTER
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“As pessoas precisam entender que as normas mudam, têm uma história, e seu conteúdo varia de acordo com o tempo e o lugar”
“A antropologia nos mostra que, partindo de um fato biológico simples, a necessidade de um homem e uma mulher para conceber uma criança, as diferentes sociedades não tiram daí as mesmas conseqüências nem postulam uma adequação natural entre pai e genitor, mãe e genitora.” Desses questionamentos nasceu a homoparentalidade: um adulto homossexual é ou pretende ser pai ou mãe de uma ou mais crianças. O neologismo, criado em 1997 pela Associação de Pais e Futuros Pais Gays e Lésbicas, em Paris, é polêmico ao reunir a orientação sexual paterna com a criação de filhos, mas, observa a pesquisadora,“ao nomear um tipo de família até então sem nome, permite-se que ela adquira uma existência, indispensável para indicar uma realidade, possibilitando sua problematização”. Por isso, entenda-se: segundo alguns, a falta da presença dos dois sexos faria as crianças crescerem sem referências do masculino e do feminino. Psicóticas e discriminadas, ao final se transformariam em homossexuais, colocando em risco a civilização. Na cartilha O direito à homoparentalidade (www.homoparentalidade.blogspot.com), Elizabeth dá acesso a pesquisas internacionais sobre o tema, trazendo tudo aquilo que você queria saber, mas tinha preconceito de perguntar. “O resultado das pesquisas empíricas realizadas por diversos autores indica a inexistência de diferenças em relação à habilidade para o cuidado de filhos e à capacidade parental de pessoas heterossexuais e homossexuais, bem como demonstra não haver diferenças significativas entre o desenvolvimento de crianças criadas por famílias hetero quando comparadas àquelas de homossexuais.” Há um dado notável: independentemente da orientação sexual, é melhor para a criança que ela seja criada por mais de uma pessoa.“É importante ressaltar que a socialização dos filhos em ambientes homoparentais faz com que
crianças e adolescentes transitem melhor entre as diferentes possibilidades de relações afetivo-sexuais, embora o estudo de Michael Bailey revele que 90% dos filhos adultos de pais gays se consideravam heterossexuais.” Logo, não há bases empíricas para se impedir a custódia de uma criança por pais gays ou mães lésbicas usando como justificativa os efeitos na orientação sexual do filho. Abuso – O mesmo vale para o suposto
perigo do abuso das crianças: “Nenhum trabalho revisado coloca o abuso como característica das famílias homoparentais. Ao contrário, ressaltam que o risco de abuso é o mesmo das famílias heterossexuais. Os dados evidenciam que, nessas novas configurações familiares, assim como na família tradicional, há uma separação moral entre a esfera da família e da sexualidade”. A parentalidade, segundo pesquisas, promove uma moralização das relações sociais, de forma que os pais homossexuais passam a selecionar as pessoas com quem se relacionam, a fim de proteger os filhos. “A idéia de que a família homoparental poderia contribuir para a destruição da família e da sociedade é um contra-senso, pois, justamente, o que essas famílias desejam é seu reconhecimento social e jurídico, de forma a fazerem parte, legitimamente, da sociedade à qual pertencem. Ela não só não vai contra a família como tenta se incluir no conceito, dando continuidade a essa instituição através dos filhos desejados.” Para ela, psicólogos e psiquiatras sabem o que faz mal a uma criança: falta de cuidado, de amor, de tolerância, de limites, pais deprimidos ou violentos. Mesmo a necessidade do contato com os dois sexos não precisaria ocorrer só dentro da célula familiar. Para isso, dizem os Titãs, há “vovô e vovó, tia, sobrinha, gato, cachorro e galinha”. “Não há um tipo de família específico que possa garantir a felicidade e bom desenvol-
vimento dos filhos. O que podemos afirmar é que parceiros/as capazes de estabelecer entre si e seus filhos vínculos afetivos bons têm mais possibilidades de favorecer um desenvolvimento psíquico e social satisfatório. O que importa, então, é a capacidade parental dos indivíduos mais do que como decidiram construir sua família.” Há, no estudo, pesquisas com resultados diferentes, como a do Family Research Institute, de Paul Cameron, apontando prejuízos para as crianças pela convivência numa família homoparental. Para esse contraditório basta acreditar que “a homossexualidade é uma doença de caráter contagioso (associada a uma propensão à criminalidade), o que acarretaria danos aos filhos”. O nosso Código Civil não prevê a complexidade de alianças e filiações decorrentes da co-parentalidade homossexual. “Dessa forma, não pode garantir à criança nem a estabilidade nem a memória de seus vínculos parentais, pois, ao reconhecer a existência legal de apenas um pai e uma mãe, deixa fora da proteção do Estado os outros participantes dessa nova configuração, juntamente com os direitos e deveres que lhe são inerentes”, analisa Elizabeth. Há, porém, um padrão de escolha: gays preferem adotar, enquanto lésbicas preferem filhos que sejam frutos biológicos de um dos parceiros. No caso da adoção, o Estatuto da Criança e do Adolescente não traz ressalvas sobre a orientação sexual do adotante, embora muitos gays queixem-se de que as exigências de psicólogos e assistentes sociais são maiores com eles. “As pessoas precisam entender que as normas mudam, têm uma história, e seu conteúdo varia de acordo com o tempo e o lugar. Não reconhecer isso é rejeitar as pesquisas, as normas democráticas e os direitos humanos.” Embora feminina, a família não tem gênero. O difícil mesmo é viver junto todo dia sem perder essa mania. ■
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CAIO GUATELLI
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PERSONALIDADE
Filósofo do diálogo possível Bento Prado Jr. aproximou a filosofia da literatura e de outras ciências humanas, redimensionou-a no Brasil e se tornou respeitado em todo o mundo G ONÇALO J ÚNIOR
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discrição intelectual, proporcional ao talento, distinguia Bento Prado Jr., um dos mais importantes filósofos brasileiros, morto no dia 12 de janeiro, aos 69 anos. Conta-se que, por causa do comedimento, teria se refugiado, a partir de 1977 e até o fim da vida, no interior de São Paulo, precisamente na Universidade de São Carlos, onde lecionava. A rigor, desde 1969, estava privado de ensinar na Universidade de São Paulo (USP) pela ditadura militar, que forjara sua aposentadoria, aos 31 anos de idade, como fizera com outros 29 professores. A discrição extrema justificaria também o fato de só em 1985 ter decidido publicar seu primeiro livro. E foi assim, do mesmo modo reservado, que passou o último réveillon, ao lado de Paulo Eduardo Arantes, ex-aluno, discípulo e, principalmente, amigo havia 40 anos. Estavam com as respectivas esposas e outro casal de amigos. À vontade em casa, Prado Jr. brincou, contou algumas piadas, sorriu. Todos sabiam que seu estado de saúde era precário.
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Prado Jr. tornou-se um modelo de interlocutor filosófico, capaz de ouvir, procurar compreender, pensar, indicar caminhos
Mas se notava nele apenas certo cansaço, alguma dificuldade para respirar. De Arantes, ganhou a edição comemorativa de 50 anos de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, um de seus livros prediletos e a quem dedicou um importante artigo em 1967. Juntos, antes da virada do calendário, assistiram ao DVD que acompanhava o livro, que traz, entre outros depoimentos, o de Antonio Candido. Com certa nostalgia, Prado Jr. disse que pretendia escrever novamente sobre o escritor mineiro. E comentou de uma viagem que desejava fazer em breve. Arantes não o viu mais pessoalmente. Ambos, no entanto, falaram-se todos os dias. Quase duas semanas depois, num rápido aceleramento da doença, o mestre desaparecia para sempre, deixando seu legado único na filosofia do país. Deixou também três filhos – Raquel, Cristina e Bento Prado Neto – e a mulher, Lúcia.
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ormado pela USP, Prado Jr. escreveu poucos porém fundamentais artigos, ensaios e livros sobre suas paixões: a literatura e a filosofia. Foi também tradutor. Possuía o dom raro de olhar o todo para compreender, destrinchar e se fazer entender. Como filósofo, atuava como um articulista do saber sem jamais soar arrogante ou prepotente. Propunha diálogos, buscava caminhos. Tornou-se conhecido pela escrita que combinava estilo próprio e refinada ironia. Tudo isso, sem deixar de ser um palmeirense dedicado e tendo acumulado lembranças de um passado de boemia nos bares do centro de São Paulo nos anos de 1950 e 1960. Se os militares tiraram seu cargo na USP, a capacidade de produção não arrefeceu. Na livre-docência, Prado Jr. escreveu uma tese sobre o filósofo francês Henri Bergson (1859-1941), Presença e campo transcendental: consciência e negatividade na filosofia de Bergson, defendida em 1965, que permanece como referência internacional sobre o tema. O livro só seria lançado em 1988, pela Edusp, com edição do colega Renato Janine Ribeiro – em 2002, foi traduzido e publicado na França. Sua bibliografia seria de apenas mais três volumes: Alguns ensaios (Max Limonad, 1985) e Erro, ilusão, loucura (Editora 34, 2004). Organizou ainda Filosofia da psicanálise (Brasiliense, 1991). Para o filósofo Oswaldo Porchat, professor aposentado da USP e fundador do Centro de Lógica e
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Epistemologia (CLE) da Unicamp, Prado Jr. era um caso raro de alguém que vivia a filosofia 24 horas por dia. Os dois foram grandes amigos e vizinhos na década de 1960, no bairro de Higienópolis, quando se falavam praticamente todos os dias.“Nossa convivência foi uma das experiências mais marcantes de minha vida ligada à filosofia”, observa. A ida do colega para São Carlos dificultou o contato pessoal, mas conversavam por telefone regularmente. “A filosofia era o alimento de sua vida. A tal ponto que, a qualquer momento, situação ou lugar, sob qualquer pretexto, ele começava a investigar filosoficamente os fatos e as coisas.” Prado Jr., acrescentou, tornou-se um modelo de interlocutor filosófico, alguém capaz de ouvir, interagir, procurar compreender, refletir, pensar, propor caminhos e, a partir do diálogo, ouvir o que a outra parte tinha a dizer. Sabia também ser elegante no trato com o pensamento de outros filósofos.“Os encontros com ele eram extremamente fecundos do ponto de vista filosófico, algo pouco comum de acontecer.” Outro aspecto destacado por Porchat era a capacidade de mobilização do colega para discutir a filosofia a partir de temas provenientes de outras áreas.“Era uma pessoa de grande cultura, capaz de fazê-la reverberar sobre seu pensamento filosófico.”
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enato Janine Ribeiro observou em um artigo logo depois da morte do filósofo que muitas das idéias e conceitos de Prado Jr., transmitidos de forma oral, poderiam ser resgatados a partir de anotações de aulas, trechos de conversas e de seus escritos – provavelmente, uma parte do material é inédita. Às vezes, presenteava alunos com artigos nunca publicados, depois de longas conversas. Descreveu-o como um grande conversador, que tinha facilidade para imaginar novas idéias. Ribeiro lembrou a identificação do filósofo brasileiro com o francês – este, um dos mais afeitos à literatura e às artes, que ajudou a estabelecer ou a reforçar os laços entre o filosofar e o criar artístico. Não por acaso, Paulo Arantes dedicou ao mestre seu imprescindível Um departamento francês de Ultramar – Estudos sobre a formação da cultura filosófica uspiana (Paz e Terra, 1994). Prado Jr. é destacado em três capítulos do livro – que, além de reconstituir his-
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O filósofo (segundo da esquerda para direita) recebe no Brasil o casal Sartre e Simone de Beauvoir
toricamente a implantação da filosofia universitária na USP, procura elucidar o lugar ocupado pela filosofia na formação e no funcionamento do sistema cultural brasileiro. O filósofo aparece como um dos expoentes da geração surgida nos anos 1960 que, inspirada em técnicas e métodos franceses, veio a filosofar por própria conta e risco. Fizeram parte desse grupo Oswaldo Porchat, José Arthur Gianotti e Ruy Fausto.
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m O bonde da filosofia, Arantes conta dos três anos de ensino de filosofia na rua Maria Antonia (1965 a 1968) e destaca a importância de Prado Jr. nesse período. Em A timidez da filosofia, faz considerações sobre um ensaio do professor, publicado pela revista Discurso em 1988, depois de permanecer inédito por 21 anos – Romance, moral e política no século das luzes: o caso de Rousseau.“Parece mentira, mas ainda há filósofos tímidos no Brasil. Bento Prado é o mais eminente deles”, observou. “A musa do departamento” o relaciona com a filosofia uspiana da literatura dos anos 1960.
Sem esconder sua admiração, Arantes o define como alguém que, em meados daquela década, era “uma ilha de literatura cercada de filosofia por todos os lados”. Não que lhe faltasse o indispensável apetite profissional pelos problemas técnicos; muito pelo contrário, cumpria à risca os mandamentos do modesto porém eficiente figurino universitário francês, que naquela mesma década acabara por se firmar na maior universidade paulista.“Ora, veremos que Bento armara um sistema particular de vasos comunicantes entre esses dois compartimentos.” Mesmo doente, Prado Jr. trabalhou até concluir o último semestre de 2006, como professor e orientador. Estava empenhado numa pesquisa para mostrar pontos de contato e raízes comuns entre a fenomenologia francesa do século passado e a filosofia analítica anglo-saxônica. Num artigo de 2003, sua ex-aluna e ex-orientanda de mestrado (1967) Marilena Chaui escreveu que, com ele, aprendeu o sentido de uma existência filosófica docente formadora: “Com ele aprendi que há ensino filosófico quando o professor não se interpõe entre o estudante e o saber”. Se há ensino filosófico quando o estudante também se torna professor, diz Chaui, isso ocorre porque o professor não é senão o signo de uma busca infinita, aberta a todos. Em outras palavras, acrescenta, com Prado Jr. descobriu o sentido da liberdade que preside ensinar e aprender. ■ PESQUISA FAPESP 132
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RESENHA
Surfando nas ondas da praia de São Paulo Estudo analisa a transformação dos shopping centers em “novas cidades”
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aio da estamparia,não de casa.Da vitrine me tiram,me recolocam.Objeto pulsante,mas objeto,que se oferece como signo de outros objetos estáticos,tarifados (...) Peço que meu nome retifiquem. Já não me convém o título de homem.Meu novo nome é coisa.Eu sou a coisa, coisamente”, escreveu Carlos Drummond de Andrade em Eu, etiqueta. Bem,à exceção do trecho que fala dos objetos tarifados (alguns templos do consumo não se dão a esse luxo),nada mais atual do que essa antiga preocupação com o consumismo.Antigo,porém mutante.Esse é o espírito que permeia a pesquisa da socióloga Valquíria Padilha,professora no Departamento de Administração da Faculdade de Economia,Administração e Contabilidade (FEA) da Universidade de São Paulo, Shopping Center: a catedral das mercadorias, sua tese de doutorado editada em livro pela Boitempo. Segundo a autora,o shopping center é a expressão máxima desse consumo pautado pela emotividade,já que se trata de um espaço urbano privado que se traveste de público,um não-lugar,uma arquitetura idealizada para ser, na cabeça dos compradores,um substituto da cidade real. Essa “nova cidade”é mais limpa,mais bonita,mais prática e,acima de tudo,mais segura (bem como só reúne “habitantes” do mesmo extrato social em seu interior, ainda que as portas do edifício estejam, teoricamente, abertas a qualquer um).“Eles são a expressão máxima da sociedade do entretenimento, um templo de consumo do capital capaz de acalmar e confortar as angústias,os estranhamentos e os fetiches que florescem no espaço real e imaginário do admirável mundo do consumo”,afirma Valquíria. Quase como a mágica metafísica do chocolate,os gestores dos shopping centers, continua a pesquisadora, redesenham cidades e suas praças públicas,recriando-as mais modernas e mais seguras,de forma que as pessoas sintam mais prazer no mundo artificial “de dentro” do que na realidade “de fora”. “Esse prazer provocado artificialmente,mesmo ilusório,acaba por dificultar a tomada de consciência dos conflitos sociais e econômicos,dos riscos da globalização,da manipulação do
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tempo livre pela via do consumo,já que,hoje,confundimos centro de compras com centro de lazer”,avalia.Para Valquíria Padilha Valquíria,isso é sintoma do Boitempo Editorial capitalismo atual,que impo224 páginas ria à classe média uma ditaR$ 34,00 dura do lazer (os consumidores tenderiam a procurar um lugar de compra que ofereça opções de divertimento),ou seja,é preciso ocupar o tempo livre de qualquer maneira,na medida em que o ócio (no sentido de não fazer nada ou apenas contemplar) é condenado num sistema que depende da produtividade acelerada.“Gera-se um círculo fechado na lógica do capital do qual não escapam nem o tempo de trabalho nem o tempo do não-trabalho.”Na raiz de tudo,a competição capitalista. No século XIX,com o surgimento das primeiras lojas de departamentos nos Estados Unidos,os pequenos comércios,para se defender,começaram a diversificar suas vendas,continuando a merecer a confiança dos clientes pelo atendimento personalizado.Esse movimento obrigou os magazines,por sua vez,a se defenderem e eles começaram a instalar em seus amplos espaços construções modernas,serviços especializados como correio,restaurantes,salões,auditórios,agências de viagens.“Os shoppings foram se transformando em novas cidades e seus freqüentadores em novos cidadãos, cujos direitos e deveres vinculavam-se ao consumo de bens,serviços e imagens”,observa a autora.O primeiro shopping brasileiro só apareceu em 1966,em São Paulo,e dobra seu número a cada cinco anos.Como nos EUA,aqui também o lazer aparece agora como uma das mercadorias à venda:“As salas de cinema,jogos eletrônicos,praça de alimentação etc.,os diversos equipamentos levam as pessoas a encontrar diversão em torno da celebração do objeto,de modo que,mesmo no lazer,o ser permanece subjugado ao ter”. Uma inovação nacional, segundo Valquíria,é o shopping-bunker, como a famigerada loja Daslu,em São Paulo,onde a segurança é um dos atrativos. Shoppings comuns,como o Iguatemi ou o Villa-Lobos,ficaram “democráticos”demais para a parcela rica da população,que não tem medo de ser signo de objeto,ainda que nem sempre ele seja tarifado. Shopping Center: a catedral das mercadorias
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LIVROS
O legado de Foucault Lucila Scavone, Marcos César Alvarez e Richard Miskolci (org.) Editora Unesp/FAPESP 304 páginas, R$ 32,00
Através do Legado de Foucault,o leitor tem a possibilidade de entrar em contato com o pensamento do filósofo francês em relação a diversos temas que o livro aborda em blocos temáticos, como feminismo,violência,controle social,loucura, amizade e sexualidade.O pensamento de Foucault permite refletir o tempo presente e contribuir para diagnosticar os problemas sociais contemporâneos. Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br
Benjamin, Brasil: a recepção de Walter Benjamin, de 1960 a 2005 Gunter Karl Pressler Annablume Editora 408 páginas, R$ 60,00
Somente depois do movimento estudantil,na segunda metade e no final da década de 1960,pode-se falar de uma recepção internacional à obra de Walter Benjamin.No Brasil,esse período coincide com a oposição política ao regime militar;através desse percurso o livro aborda a recepção de Benjamin nos debates intelectuais dessa época,traçando um estudo sobre a formação da intelectualidade brasileira. Annablume Editora (11) 3031-9727 www.annablume.com.br
Por um novo Machado de Assis John Gledson Companhia das Letras 456 páginas, R$ 58,50
Eni P. Orlandi, Suzy Lagazzi-Rodrigues (orgs.) Pontes Editores 216 páginas, R$ 39,00
John Gledson reúne 14 ensaios escritos ao longo de 20 anos sobre Machado de Assis.Apesar de reconhecer a impossibilidade de explicá-lo pela sua grandeza como escritor e pelo seu constante fascínio,o professor inglês aborda como são tratados,na obra de Machado,temas como a história brasileira,o homossexualismo,a religião e os costumes da sociedade do século XIX.
Discurso e textualidade traz textos de introdução que podem servir de referência para disciplinas relativas às ciências da linguagem na graduação e pós-graduação.O livro faz parte da coleção Introdução às Ciências da Linguagem,de três volumes,e possibilita ao leitor encontrar conceitos,noções e procedimentos que os cientistas da linguagem e das línguas devem dominar.
Companhia das Letras (11) 3707-3500 www.companhiadasletras.com.br
Pontes Editores (19) 3252-6011 www.ponteseditores.com.br
Subordinação consentida: capital multinacional no processo de acumulação da América Latina e Brasil Rubens Sawaya Annablume Editora/FAPESP 266 páginas, R$ 35,00
FOTOS EDUARDO CESAR
Discurso e textualidade
Vida e esperanças: esterilização feminina no Nordeste Anne Line Dalsgaard Editora Unesp 320 páginas, R$ 38,00
Rubens Sawaya procura demonstrar através de seu livro como a periferia latino-americana,quando se subordina ao processo de acumulação mundial de capital liberado pelos países centrais,dando total liberdade ao grande capital multinacional,não encontra o desenvolvimento,mas a vulnerabilidade e a perda do controle sobre seu destino.
A antropóloga dinamarquesa Anne Dalsgaard conta em seu livro o cotidiano de mulheres de uma região metropolitana do Recife (PE),onde a esterilização feminina é prática freqüente.O livro contribui para a compreensão dos que se interessam em estudar aspectos da vida brasileira, principalmente a organização desigual da sociedade e a condição das mulheres no país.
Annablume Editora (11) 3031-9727 www.annablume.com.br
Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br
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FICÇÃO
As mãos, Doutor
W ILSON B UENO
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entado ao meu lado no sofá,aproximou-se mais,e pôs a sua grande mão sobre a minha.Senti a palma da minha mão tocando uma saliência do joelho,premida agora pela mão dele – o volume assim alheado de sua mão que parecia pesar muito,sobretudo depois de algum tempo,décimos infinitesimais de segundo,em que ela se deixara cair sobre as costas da minha,desinterditada,permissiva,concedendo-se à volúpia do silêncio de minha mão embaixo cuja imobilidade era,de susto,uma imobilidade de cera. Aí foi que ele baixou os olhos longa e tristemente sobre as costas de sua própria mão,esta que continuava sobre a minha,pressionando-a e obrigando-me a premer a esquiza protuberância no joelho.Do mesmo modo que ele,baixei os olhos para as próprias pernas:era a minha mão direita que, frouxa,largava-se sobre a minha perna direita e era a mão esquerda dele,agora dona de um peso em todos os sentidos enigmático,que pesava sobre ela.Assim como se ele detivesse um poder paranormal,mediúnico,capaz mesmo de comandar a migração da energia que acumulava em algum lugar secreto do corpo (seria o coração?) direto a algo que pensei ser um olho bem no centro das costas da minha mão,sobre a qual ele deixava cair todo o peso de sua mão esquerda,e em razão do que novamente eu sentia uma estranha saliência no joelho,alguma coisa que lembrava um nascente furúnculo ainda que dura matéria óssea ou um quisto ou ainda um aterrorizante tumor,hipótese tão sombria quanto facilmente descartada,já que tumorações doem e nem são duras como um osso;parte integrante do joelho aquilo não era. Confesso que minha curiosidade tem sido bem maior que o meu pânico e foi por isso que continuei imóvel,como se nada estivesse acontecendo,só pelo gosto de saber aonde iria dar aquela mão sobre a minha,forçando esta para baixo onde eu comprimia o estranho calombo no exato interstício onde a rótula parecia se inserir ao osso do fêmur.Relevem-me o parco saber anatômico,mas considerem a intranqüila situação de um homem,mais curioso que covarde,moralista,ou coisa que o valha,às três horas da tarde,na sala acanhada de um dentista de subúrbio,tendo ao seu la do no sofá um homem apenas,
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como tantos,de meia-idade e jaqueta amarela demasiado juvenil para um homem de meia-idade,mas nada além disso – alguém provavelmente atrás de um orçamento mais em conta para uma prótese ou a banalíssima extração daquele molar que com os anos acabou ficando assim meio mole.Ao pensar no seu molar,lembrei-me logo que certamente tinha dois caninos – um em cada canto da boca.Aterrorizaram-me a súbita consciência de ambas as coisas – a da boca e a dos caninos... Mas preferi continuar seguindo a curiosidade,melhor conselheira que o medo:o homem cruzou as pernas e num movimento nervoso,ritmado,começou a balançar o pé da perna que acabara de cruzar,olhando agora nitidamente para um pequeno quadro no lado oposto da parede e que representava o Amigo da Onça vestido de branco e segurando um boticão nas finas mãos matreiras.Nosso dentista do subúrbio era homem que ria do próprio ofício e mais de uma vez foi pego, meio bêbado,contando piada ou fofocando sobre colegas. O quadrinho ali,na sala de espera modesta,era um jeito de, rindo de si próprio,ajudar os clientes,afastando,de todo,o fantasma do medo – vício e virtude de quem precisa dos dentistas, e nem só dos dentistas. Tive pena do homem e até me solidarizei com ele – claro,fácil,como não pudera perceber até então? –,a mão,pesada,sobre a minha,e o olhar fixo no quadro deveriam bastar para me comunicar o terror que sentia na espera ansiosa de nosso fiel Dr.Nildo.A mão presa embaixo da dele,mexi com ela,assim num movimento cordial, como quem diz deixa isto pra lá,não há razão para temores, o Nildo é a fina flor da odontologia moderna e,depois,estamos à beira do terceiro milênio,os anestésicos continuam operando milagres e se alguém ainda sente dor na cadeira de um dentista deveria simplesmente procurar outro dentista,não mais que isso.Ele pareceu não haver entendido a mensagem – a grande mão em garra deu-me dois súbitos e precisos apertões um de cada lado de minha mão sob a dele.Estremeci,mesmo porque agora ele tinha descruzado as pernas mas batia, ainda ritmado,ambos os pés sobre o assoalho de madeira,com um ruído capaz de ser ouvido até,não duvidem,pelo dentista e seu cliente,nos intervalos da broca enervante.E se fos-
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MANU MALTEZ
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se um maníaco? Um serial killer? Mas o diabo era que ele, em hipótese alguma, se mostrava misterioso ou sombrio, o que me pareciam condições inextricáveis para a existência de maníacos ou serial killers. Prossegui dando razão ao meu impulso primeiro, que é sempre o mais nobre e o mais fino e o mais delicado e que me parece protegido de todo o mal, porque é ele sempre quem determina, autoriza e, por fina instância poética, acaba instaurando a ordem na atmosfera nem sempre serena do meu cotidiano. Não me ocorre quanto tempo já passara, até aí, mas calculando em retrospecto, creio não ter transcorrido além de cinco, no máximo dez minutos, instante em que fui tomado por uma decisão quando principiava a me sentir desconfortável – muito mais a mão – que, a esta altura, já sentia no dorso o meloso suor do homem (seria diabético?). A decisão consistia em não seguir adiante no que eu chamava de curiosidade, caso ele, o homem, encostasse a sua perna na minha. Mas como não era essa espécie de intimidade que o animava, ele continuou perfeitamente sentado, os pés agora ritmados no assoalho, mas de modo intermitente – coincidindo o estalar da ponta dos sapatos com a broca do dentista, uma vez que ambos os ruídos atravessavam o frágil tabique separando a ante-sala do consultório propriamente dito. De novo senti piedade de nós – a broca do Dr. Nildo Arantes como que riscava a tarde, levantando o pó feito só de osso queimado. Os pés ritmados no chão faziam sentido – não suportava o barulho da broca, como se fosse uma coisa assim, para além de toda força humana. Dois ou três minutos se seguiram a estas considerações e devaneios, quando, sentindo que o dentista, para variar, estava de novo atrasado, ameacei apanhar uma revista na mesinha de centro, o que, claro, eu deveria fazer com a mão que o homem premia contra o meu próprio joelho. E foi aí que sofri a trágica consciência de que a protuberância, fosse o que fosse, tinha desaparecido e o que eu tocava era, acreditem, arrepiante – nem o tecido do jeans eu tocava mais... Sem coragem de baixar os olhos e muito menos deitá-los ao vizinho de sofá, senti nitidamente que o que a palma de minha mão aper-
tava era o puro osso do fêmur, esqueletizado, no exato interstício do joelho, esse engenho admirável. Debitando tudo ao inaudito daquela mão sobre a minha, não desisti de apanhar a revista e quando tentei libertar a minha mão de sob a sua grande mão (assassina?) observei que o homem aproximava de meu rosto o seu rosto. Jamais esquecerei o arrepio que me percorreu do cóccix ao cerebelo, uma espécie assim de imprevista epifania, que não era, aceitem, do desdobramento de qualquer erotismo. A rigor nem erotismo era. Desistindo da revista, tentei lhe entrever, com o canto do olho, a sombra bigoduda e só lhe enxerguei os olhos aterrorizados e tomei da outra mão, a esquerda, até então inútil, e levando-a ao dorso da mão dele, ficamos uma mão sobre outra, três, assim juntas, as mãos, estoicamente amigas e solidárias. Em retribuição, o homem não teve medo e pôs sobre o dorso, agora de minha mão esquerda, como um triunfo, também a sua outra mão – e percebi, antes da vertigem da qual só acordei mais tarde, assistido pelo dentista e um seu vizinho farmacêutico, dois dedos apenas, o médio e o indicador, numa mão curva e escura e magra, de pêlos ríspidos como espinhos, agarrando-se ao dorso de minha mão fatigada feito uma pinça ou a cola do escorpião, sendo que as unhas, de ambos os dedos – longas e afiadas –, constituíam duas garras de resplendente esmalte incolor. Ainda perguntei por ele, mas o velho dentista só me respondeu com outra pergunta, se eu me referia ao homem de jaqueta amarela, e se era aquele lá, ó, que vai ali, já longe, e, a passos lentos acaba de dobrar a esquina em direção à estaçãotubo onde tomará o expresso de Santa Cândida? Digo que sim, corro à rua e chamo por ele, inutilmente chamo por ele; mas por mais que eu chame, já é tarde, não adianta, ele não vai me ouvir jamais. WILSON BUENO, escritor, autor, entre outros livros, da reunião de contos-blues Bolero’s Bar e dos bestiários Manual de zoofilia, Jardim zoológico e Cachorros do céu. PESQUISA FAPESP 132 FEVEREIRO DE 2007 97 ■
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Pré-lançamento de Edital para Seleção de Pesquisadores em Programa de Pós-Doutoramento A Diretoria da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas, através da Câmara de Pesquisa, faz saber que estarão abertas as inscrições para Seleção de Pesquisadores em Programa de Pós-Doutoramento para atuar nas seguintes áreas do conhecimento: Modelos experimentais de imunomodulação; Terapia gênica para correções de defeitos hereditários e adquiridos; Estudo de vias metabólicas de carboidratos, lipídios e proteínas; Epidemiologia clínica; Bases fisiopatológicas e alterações moleculares em doenças humanas; Patologia analítica celular; Genoma humano - Clonagem e caracterização de novos genes e de novas proteínas; Cultivo, expansão e diferenciação de células totipotentes; Mecanismo molecular envolvido nos danos oxidativos mitocondriais; Mecanotransdução e mecanismos celulares/moleculares e farmacológicos envolvidos na hipertrofia e remodelamento cardiovascular, hipertensão arterial e resistência à insulina; Neurogenética, neuroimagem e epilepsia. 04 (quatro) bolsas, sendo apenas 1 (uma) bolsa por área.
CONCURSO PÚBLICO - PROFESSOR DOUTOR (MS-3) Calendário Lançamento do Edital – 01/02/2007 Data-limite para submissão das propostas – 28/02/2007 Divulgação dos resultados – 15/03/2007 Início da vigência das bolsas – 01/04/2007
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FEVEREIRO DE 2007
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ÁREA: “Sistemática, filogenia, biologia e diversidade de Protistas e de Invertebrados Marinhos (exceto Cnidaria e Echinodermata)” PERÍODO DE INSCRIÇÕES: 15/1 A 15/3/2007 INFORMAÇÕES: http://www.usp.br/cbm ou (12) 3862-7149 r. 220
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