A busca patológica da beleza

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Ciência e Tecnologia

VENDA PROÍBIDA

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EXEMPLAR DE

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ASSINANTE

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no Brasil

Setembro 2004 Nº 103 ■

A busca

patológica da beleza


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PATRICK RYAN WILLIAMS/THE FIELD MUSEUM

A IMAGEM DO MÊS

Arqueólogos norte-americanos encontraram os resquícios de uma fábrica de bebidas alcoólicas construída há 1000 anos, em Cerro Baúl, no Peru. O sítio fora ocupado pelo império Wari, anterior aos incas.

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VICENTE DO REGO MONTEIRO 1899-1970/MAM-SP

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CAPA

REPORTAGENS

A busca obsessiva da beleza, cada vez mais comum entre os jovens, está associada a distúrbios alimentares

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ENTREVISTA MIGUEL BOYAYAN

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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

O Instituto Nacional do Câncer implanta um banco de tumores para dar suporte à busca de tratamentos

GENÔMICA

Programa Genoma Café abre banco de dados para pesquisadores

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INDICADORES

Parceria ibero-americana vai avaliar o impacto social das novas tecnologias

GESTÃO

CIÊNCIA

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AGRONOMIA PAULO ROBERTO GAGLIARDI E ELLIOT KITAJIMA/ESALQ-USP

EDUARDO CESAR

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MEDICINA

O farmacologista Gilberto De Nucci explica por que dois terços dos medicamentos não funcionam 4

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José Fernando Perez anuncia que deixará a Diretoria Científica da FAPESP para criar empresa

Genoma da bactéria Leifsonia xyli fornece pistas sobre o raquitismo da cana-de-açúcar


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REPORTAGENS

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ZOOTECNIA

JOSHUA LEDERBERG/PROFILES IN SCIENCE/NATIONAL LIBRARY OF MEDICINE

HOMENAGEM

Criadores de avestruz no Brasil já podem contar com teste de DNA e programa para a gestão do negócio

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AMBIENTE

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BIOINFORMÁTICA

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ENERGIA

SEÇÕES

BIOTECNOLOGIA

A IMAGEM DO MÊS . . . . . . . . . . . . . . 3 CARTAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6 CARTA DO EDITOR . . . . . . . . . . . . . . . 9

HUMANIDADES

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MEMÓRIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10

URBANISMO

ESTRATÉGIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . 18 VANDERLEI ALMEIDA/AFP

FOTO EDUARDO CESAR - ARQUIVO FACULDADE DE CIÊNCIAS FARMACÊUTICAS DA USP

USP 70 ANOS

CINEMA

As múltiplas imagens do país que o cineasta Humberto Mauro legou à historiografia

Plantas das florestas brasileiras com potencial medicinal estão disponíveis em banco de extratos

Começa a operar programa que detecta desmatamentos na Amazônia quase em tempo real

HISTÓRIA

Pesquisa mostra como profecias em forma de sonhos ajudaram a cristalizar a identidade portuguesa

Empresa desenvolve célula a combustível capaz de abastecer uma casa com eletricidade

Pesquisadores provocam queimada controlada na Amazônia para medir o impacto sobre a fauna e a flora

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Tese que desconstrói o estereótipo do baiano preguiçoso vai sair em livro

Complexa estrutura das proteínas é desvendada por softwares da Embrapa de Campinas

A morte de Francis Crick, um homem que explorou ao máximo a liberdade de fazer ciência

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ANTROPOLOGIA

MIGUEL BOYAYAN

Livro de 1.200 páginas, escrito por uma centena de pesquisadores do país, é referência sobre genômica

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TECNOLOGIA

BIOLOGIA MOLECULAR

OLAVO RUFINO/AJB

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LABORATÓRIO . . . . . . . . . . . . . . . . . 30 SCIELO NOTÍCIAS . . . . . . . . . . . . . . 58 LINHA DE PRODUÇÃO . . . . . . . . . . . 60 RESENHA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96 LIVROS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97

Como a Faculdade de Ciências Farmacêuticas venceu crises e se tornou referência em pesquisa

Projetos de recuperação de áreas verdes e da porosidade do solo amenizam o impacto das enchentes

Capa e ilustração: Hélio de Almeida

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CARTAS cartas@fapesp.br

Amazônia

expressa bem meu pensamento. Parabéns e obrigada.

Gostei muito da entrevista com Bertha Becker e do posicionamento dela para conciliar a preservação e o desenvolvimento da Amazônia (edição nº 102). É importante difundir a idéia de agregação de valores aos recursos naturais da Amazônia naquela região. É triste ver diariamente toneladas de minério de ferro, madeira e metais preciosos saírem da Amazônia sem nenhum beneficiamento, deixando para os moradores apenas a destruição ambiental. O incentivo às reservas extrativistas é importante para a preservação do ambiente, porém é necessário incentivar o plantio consorciado, nas áreas já desmatadas, dos recursos vegetais tais como: andiroba, copaíba, castanha-do-pará, cupuaçu, açaí, pupunha e outros. Penso que o plantio consorciado é uma forma de vencer as dificuldades agrícolas da região e garantir preço competitivo quando essas culturas forem levadas para outras regiões do país. Hoje São Paulo é o maior produtor de látex do país, com um preço que torna a exploração extrativista pouco atraente. Quem garante que aquelas empresas que hoje incentivam a exploração extrativista não estejam fazendo o plantio dessas culturas, em larga escala, em outras regiões? Quando esses plantios se tornarem produtivos, elas continuarão adquirindo esses produtos das reservas extrativistas? ANTONIO MOREIRA DOS SANTOS Escola de Engenharia de São Carlos/USP São Carlos, SP

Desejo agradecer imensamente a bela e cuidadosa entrevista que Carlos Fioravanti e o fotógrafo Leo Ramos fizeram comigo sobre a Amazônia. O título foi muito oportuno – 6

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BERTHA K. BECKER Rio de Janeiro, RJ

Laboratórios privados Em relação à reportagem “Diagnóstico antecipado” (edição nº 101) de Pesquisa FAPESP, gostaríamos de informar que há três anos o Fleury de-

o laboratório tem parcerias com centros de excelência para oferecer o que há de melhor em medicina diagnóstica. Toda a avaliação pré e pós-teste,além do aconselhamento genético, é realizada pela equipe do Fleury. Cumpre ressaltar que não estão previstas etapas de transferência de tecnologia. EWALDO M. K. RUSSO Diretor presidente do Fleury São Paulo, SP

Reposição hormonal EMPRESA QUE APÓIA APESQUISABRASILEIRA

Excelente a reportagem sobre reposição hormonal (edição nº 101) pela qualidade e atualidade. Esse assunto muito nos interessa em razão dos resultados das pesquisas de 2002, que realmente trouxeram muita preocupação para quem está sendo tratada com a reposição hormonal. LÚCIA HELENA DE GODOY Brasília, DF

Revista senvolve testes com a tecnologia de PCR em tempo real (real-time PCR) e há mais de um ano oferece as cargas virais plasmáticas de EBV e CMV. Em relação à quantificação de EBV, esses resultados já fizeram parte de uma tese de doutorado com pacientes imunossuprimidos da disciplina de Nefrologia da FMUSP, concluída em 2003. Atualmente o Fleury ainda oferece as cargas virais do vírus da hepatite B, detecção do vírus da dengue e do HLAB27 e quantificação do transcrito BCRABL para monitoração de pacientes com leucemia mielóide crônica, todos desenvolvidos por sua equipe de Biologia Molecular, com a metodologia de PCR em tempo real. Essa mesma reportagem refere-se ao acordo comercial entre o Fleury e o Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo. Há muitos anos,

Parabéns pela iniciativa de produzir uma edição extraordinária da revista Pesquisa FAPESP, com o propósito de difundir ainda mais o nome de revista tão importante e diferenciada. A população carece de informações precisas e verdadeiras, principalmente em relação aos órgãos governamentais, onde o descrédito sobre os acontecimentos que geram o crescimento do nosso país têm tomado conta. Muito provavelmente mais pessoas tomarão conhecimento das produções científicas dos “cérebros privilegiados” que aqui habitam. Por tabela, saberão exatamente que o desenvolvimento coeso de um povo só é possível graças às pesquisas feitas pelos cientistas. A FAPESP é uma das pouquíssimas entidades governamentais que até hoje consegue nos passar idoneidade, credibilidade e isonomia em assuntos polêmicos. Espe-


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ra-se apenas que a leitura possa ser de fácil entendimento para que a extensão à comunidade não-científica possa surtir efeito. No meu programa diário de rádio sobre ambiente tenho feito uso da revista para melhor elucidar meus ouvintes. A credibilidade que tenho alcançado muito se deve às informações contidas em Pesquisa FAPESP, que repasso na íntegra, apenas esclarecendo temas mais complexos e de difícil entendimento. Aproveito então para agradecer o esforço da entidade na produção de material digno e elucidativo. NICETE CAMPOS São Carlos, SP

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O que a ciência brasileira produz, você encontra aqui.

NASA, J. BELL (CORNELL U.) AND M. WOLFF (SSI)

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NASA

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As reportagens de Pesquisa FAPESP retratam a construção do conhecimento que será fundamental para o desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução sem perder nenhum movimento.

Livro Gostaria de informar o registro do conselheiro Luís Henrique Dias Tavares, do Conselho Estadual da Cultura da Secretaria da Cultura e Turismo da Bahia, na sessão plenária do colegiado, dia 20 de julho, inserido na ata de seus trabalhos e aprovado por unanimidade: “Registro a publicação do livro Prazer em conhecer, editado pela FAPESP. A obra reúne 26 entrevistas com personalidades das ciências humanas, ciências biológicas e da física, todos brasileiros de conceito nacional e internacional. Cito o baiano Muniz Sodré, o filósofo Leandro Konder, o pensador José Arthur Giannotti, o grande estudioso da literatura brasileira Alfredo Bosi e os físicos José Leite Lopes e Roberto Salmeron. Também registro o nº 100 da revista Pesquisa FAPESP, bonita em sua apresentação gráfica e rica no que publica. Destaco que essa edição nº 100 publica contos de sete escritores brasileiros, dentre os quais o gaúcho Moacyr Scliar”.

Preço atual de capa da revista acrescido do valor de postagem. Tel. (11) 3038-1438 ■

Assinaturas, renovação e mudança de endereço Ligue: (11) 3038-1434 Mande um fax: (11) 3038-1418 Ou envie um e-mail: fapesp@teletarget.com.br

Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação de Pesquisa FAPESP Rua Pio XI, 1.500 São Paulo, SP 05468-901 pelo fax (11) 3838-4181 ou pelo e-mail: cartas@fapesp.br

Site da revista No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis as reportagens em inglês e espanhol.

ISA MARIA SILVA DE OLIVEIRA Secretária do Plenário Salvador, BA ■ Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br, pelo fax (11) 3838-4181 ou para a Rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

Números atrasados

Para anunciar Ligue para: (11) 3838-4008

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CARTA DO EDITOR

ISSN 1519-8774

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Tristes imagens ideais

FAPESP CARLOS VOGT PRESIDENTE CONSELHO SUPERIOR ADILSON AVANSI DE ABREU, CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, CARLOS VOGT, CELSO LAFER, HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, JOSÉ ARANA VARELA, MARCOS MACARI, NILSON DIAS VIEIRA JUNIOR, RICARDO RENZO BRENTANI, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO E DIRETOR PRESIDENTE (INTERINO) JOSÉ FERNANDO PEREZ DIRETOR CIENTÍFICO

PESQUISA FAPESP CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR CIENTÍFICO), EDGAR DUTRA ZANOTTO, FRANCISCO ANTONIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, JOSÉ FERNANDO PEREZ, LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO, PAULA MONTERO, WALTER COLLI DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS DIRETOR DE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA EDITORES CARLOS FIORAVANTI (CIÊNCIA), CARLOS HAAG (HUMANIDADES), CLAUDIA IZIQUE (POLÍTICA C&T), HEITOR SHIMIZU (VERSÃO ON-LINE), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA) EDITORES ESPECIAIS FABRÍCIO MARQUES, MARCOS PIVETTA EDITORES ASSISTENTES DINORAH ERENO, RICARDO ZORZETTO CHEFE DE ARTE TÂNIA MARIA DOS SANTOS DIAGRAMAÇÃO JOSÉ ROBERTO MEDDA, MAYUMI OKUYAMA FOTÓGRAFOS EDUARDO CESAR, MIGUEL BOYAYAN COLABORADORES ANA MARIA FERRAZ, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE IMAGENS), BRAZ, EDUARDO GERAQUE (ON-LINE), JOANA MONTELEONE, JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI, LAURABEATRIZ, MARCELO HONÓRIO (ON-LINE), MARCELO LEITE , MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO, MARILI RIBEIRO, NEGREIROS, RENATA PAIVA, RENATA SARAIVA, SABRINA DURAN, SAMUEL ANTENOR, THIAGO ROMERO (ON-LINE) ASSINATURAS TELETARGET TEL. (11) 3038-1434 – FAX: (11) 3038-1418

e-mail: fapesp@teletarget.com.br APOIO DE MARKETING SINGULAR ARQUITETURA DE MÍDIA singular@sing.com.br PUBLICIDADE TEL: (11) 3838-4008 e-mail: publicidade@fapesp.br (PAULA ILIADIS) PRÉ-IMPRESSÃO GRAPHBOX-CARAN IMPRESSÃO PLURAL EDITORA E GRÁFICA TIRAGEM: 44.000 EXEMPLARES DISTRIBUIÇÃO DINAP CIRCULAÇÃO E ATENDIMENTO AO JORNALEIRO LMX (ALESSANDRA MACHADO) TEL: (11) 3865-4949 atendimento@lmx.com.br GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP FAPESP RUA PIO XI, Nº 1.500, CEP 05468-901 ALTO DA LAPA – SÃO PAULO – SP TEL. (11) 3838-4000 – FAX: (11) 3838-4181

http://www.revistapesquisa.fapesp.br cartas@fapesp.br NÚMEROS ATRASADOS TEL. (11) 3038-1438

Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO SECRETARIA DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E TURISMO GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

A

lógica de funcionamento da sociedade contemporânea, alguns pensadores vêm alertando e demonstrando há alguns anos, é dominada em grande parte pela imagem como mercadoria e, simultaneamente, como uma espécie de valor absoluto. A produção incessante de imagens parece destinada a preencher e a recobrir todos os setores da vida social, a se imiscuir em todos os planos da atividade humana, mesmo aqueles mais recônditos, mais privados e secretos, que aparentemente deveriam permanecer infensos a essa invasão da imagem fabricada muito ao largo da imaginação do indivíduo. E o corpo humano, claro, não escapa ao domínio dessa lógica – ao contrário, a ela, ele é em larga escala submetido, no confronto tantas vezes brutal, doloroso, absurdo, entre corpo real e imagem ideal. Nesse ambiente da valorização hiperbólica da imagem, algumas respostas francamente patológicas à insatisfação profunda com a forma do próprio corpo, que, rebelde às fôrmas da indústria, teima em apresentar características individualizadas fora do padrão, já nem parecem causar tanto espanto – mas deveriam. E é exatamente nos lançar um convite nesse sentido um mérito entre vários outros da reportagem de capa desta edição, publicada a partir da página 34. Elaborada pelos jornalistas Marili Ribeiro, colaboradora de Pesquisa FAPESP, e Ricardo Zorzetto, editor assistente de ciência da revista, a reportagem centra-se num estudo que tomou por base uma amostra de 700 moças e rapazes na faixa de 17 a 26 anos, todos estudantes da área de saúde ligados a 11 universidades espalhadas pelos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Goiás. Extremamente reveladora sobre esse problema da insatisfação profunda com o físico e algumas nefastas conseqüências daí decorrentes, a pesquisa, entre outros resultados, mostra que 80% dos jovens entrevistados mudariam características do corpo para melhorar a aparência e, muito pior, que 13% deles afirmaram provocar vômitos, tomar laxantes ou usar diuréticos, após comer, com o objetivo de não engordar

– registre-se que quase 90% dos integrantes da amostra não eram gordos ou obesos. Ora, tais procedimentos são indicativos de risco de bulimia nervosa num índice muito mais alto do que os pesquisadores esperavam encontrar. E a disseminação desse distúrbio, sinal de uma certa patologia social, pode lançar algumas luzes mais duras, bem pouco glamourosas, sobre o segundo lugar que hoje o Brasil ocupa em número de cirurgias estéticas por ano no mundo, com cerca de 500 mil pessoas submetendo-se a plásticas. Essa é uma medalha de prata do país, no mínimo, questionável em seu mérito. Em campo bem diverso, a reportagem que começa na página 78 a seção de humanidades, aliás, elaborada pelo editor de ciência, Carlos Fioravanti, mostra que estudos recentes comprovam que, em lugar da canalização dos rios, é a recuperação de áreas verdes, capaz de reduzir a impermeabilização do solo, que mais oferece uma saída real para o problema das enchentes nas grandes cidades brasileiras. Ou seja, são soluções muito mais simples do que aquelas em que nos últimos tempos se apostava e essa é uma questão sobre a qual valeria a pena os candidatos a prefeito de nossas metrópoles meditar, nesse momento pré-eleitoral. Merece destaque também nesta edição a entrevista feita por Marcos Pivetta e Ricardo Zorzetto com Gilberto De Nucci (página 12). O pesquisador que entre outros projetos nesse momento desenvolve um similar nacional do Viagra,a par de ser um dos mais respeitados e citados cientistas brasileiros, é com certeza um dos personagens mais polêmicos da comunidade científica nacional. Leitura atenta também merece a reportagem de Marcelo Leite (página 46), até recentemente editor de ciência da Folha de S.Paulo e um dos jornalistas brasileiros mais respeitados nesse campo, em que ele narra com muito estilo a experiência de uma queimada controlada na Amazônia, levada a efeito por uma equipe de pesquisadores, para entender mais o impacto do fogo sobre a fauna e a flora da floresta. MARILUCE MOURA - DIRETORA DE REDAÇÃO PESQUISA FAPESP 103

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MEMÓRIA Em 1846, o éter começou a ser usado oficialmente em anestesia

N ELDSON M ARCOLIN

Aderrota

da dor

A

dor foi oficialmente vencida em 16 de outubro de 1846. Às 10 horas daquele dia, no Massachusetts General Hospital, em Boston, Estados Unidos, o dentista William Thomas Green Morton anestesiou com éter o impressor Gilbert Abbot, de 17 anos, para que o cirurgião John Collins Warren extraísse um tumor de seu pescoço. Com o sucesso do procedimento, o médico dirigiu-se à platéia 10

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de médicos, estudantes de medicina e a um repórter do Boston Daily Journal e declarou: “Senhores, isto não é uma fraude”. Fora a primeira demonstração pública do uso da anestesia, que só não foi fotografada porque o fotógrafo passou mal – em 1882, Robert Hinckley pintou o quadro que ilustra esta página reconstituindo o momento histórico. “Até a demonstração de Morton, havia uma compartimentalização das informações”, conta

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José Luiz Gomes do Amaral, professor titular de Anestesiologia, Dor e Medicina Intensiva da Universidade Federal de São Paulo. “Os árabes, por exemplo, tinham muita informação sobre substâncias anestésicas já por volta do século 10, mas os textos eram todos em árabe ou grego e só se tornaram mais conhecidos em torno do século 16.” A questão histórica de quem descobriu e usou a anestesia pela primeira vez esteve

longe de ser encerrada em 1846. Antes dessa data, para fazer cirurgias sem dor tentou-se tudo: acupuntura, hipnose, ação sedativa de algumas plantas e álcool. Apenas em 1773 o inglês Joseph Priestley descobriu o dióxido de nitrogênio (NO2, conhecido como gás hilariante), embora o também inglês Humphry Davy tenha sido o primeiro a descobrir suas propriedades anestésicas ao aspirar o gás e perceber que a sua então dor de dente desaparecia. O reverenciado


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O quadro de Robert Hinckley e o inalador de Morton: disputa judicial

físico e químico Michael Faraday foi quem notou que os vapores do éter tinham efeito semelhante ao gás hilariante. Em 1841 – cinco anos antes da apresentação pública de Morton e Warren –, um médico de Jefferson, Estados Unidos, Crawford Williamson Long, participava de sessões de inalação de éter com outros jovens, em noitadas conhecidas como ether parties ou ether frolics. Mais de uma vez, sob efeito da substância, ele se feriu sem sentir e teve a idéia de utilizar o éter em pequenas intervenções cirúrgicas. Utilizando éter, extirpou dois tumores da nuca de um amigo na presença de várias pessoas. No total, operou oito pacientes nas mesmas condições, mas autoridades de sua cidade o obrigaram a parar temendo que algum paciente morresse nas suas mãos. Long desistiu das cirurgias sob a ação do éter e seu trabalho pioneiro só se tornou conhecido anos depois da demonstração de 1846. Um ano após as experiências de Long, Horace Wells, dentista de Hartford, Estados Unidos, aspirou ele mesmo gás hilariante e pediu a um colega para extrair-lhe um dente, com sucesso. Ao tentar fazer duas demonstrações públicas com o gás, Wells fracassou – e, desanimado, abandonou suas

experiências e a profissão. Nessa mesma época, o dentista Morton, conhecedor das experiências com NO2 e éter, começou a fazer suas próprias tentativas com animais, em si mesmo e com dois estudantes de odontologia. Como conseguiu sucesso apenas parcial, decidiu consultar um conhecido professor de química na época, Charles Thomas Jackson, que o aconselhou a abandonar o NO2 e experimentar o éter sulfúrico puro. Morton, que não havia citado seu trabalho com éter para Jackson, entendeu a razão de ter fracassado em algumas experiências e convenceu Warren a fazer a demonstração pública. Pouco depois criou um inalador para anestesia geral e pediu patente do produto usando o nome de letheon, do grego lethes (esquecimento), mas foi obrigado pelos médicos a revelar que usava éter. Daí para a frente houve uma grande disputa judicial entre Jackson e Morton pela primazia da descoberta. Nos anos seguintes, outros anestésicos surgiram, assim como vários métodos para induzir à anestesia, além da inalação. No Brasil, a primeira anestesia geral pelo éter foi praticada no Hospital Militar do Rio de Janeiro pelo médico Roberto Jorge Haddock Lobo, em 25 de maio de 1847, conforme informa Lycurgo Santos Filho, em sua História geral da medicina brasileira.

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AMERICAN SURGERY. AN ILLUSTRATED HISTORY/ LIPPINCOTTI-RAVEN

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REPRODUÇÃO

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ENTREVISTA: GILBERTO DE NUCCI M ARCOS P IVET TA

N

inguém permanece indiferente à presença do farmacologista Gilberto De Nucci. Alto, corpulento e de andar acelerado, De Nucci é dono de uma voz grave e um ar bonachão que o ajudam a fazer amigos quase com a mesma facilidade com que arruma desafetos. É que esse médico de 46 anos tem opiniões tão sólidas quanto polêmicas e não teme dizer o que pensa. “Ao menos dois terços dos medicamentos não produzem o efeito desejado”, afirma. De modo mais claro, teriam uma ação mais psicológica que farmacológica. Mesmo assim, ele defende o uso dos remédios: os maiores avanços da medicina se devem à adoção de novas drogas. Atualmente De Nucci desenvolve três medicamentos. O primeiro a chegar ao mercado – possivelmente já em 2005 – é o lilafil, destinado a tratar a dificuldade de manter a ereção. Produzida por ele para o laboratório nacional Cristália, a molécula do lilafil é semelhante à do Viagra e começou a ser testada em seres humanos em agosto. O pesquisador trabalha ainda na síntese de um antiinflamatório e de uma nova classe de anti-hipertensivos. Se suas idéias são controversas, sua competência é inegável: De Nucci é um dos pesquisadores mais produtivos do

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E

R ICARD O Z ORZET TO

país. Desde 1985, publicou 217 artigos científicos em revistas internacionais. Hoje ele está entre os três pesquisadores brasileiros mais influentes, cujos trabalhos aparecem entre os mais citados por outros estudos, segundo levantamento da base de dados ISI Highly Cited, que inclui os 4.800 pesquisadores mais influentes de um total de 5 milhões de cientistas. De Nucci já registrou 22 patentes no Instituto Nacional da Propriedade Industrial e 8 na World Intellectual Property Organization. Também foi alvo de 12 processos judiciais, administrativos ou éticos. Segundo ele, o único que perdeu, em primeira instância, foi o movido por uma das instituições em que dá aulas – a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – por usar funcionários da universidade como voluntários em estudos clínicos. “Posteriormente ganhei a disputa no Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo”, diz. Formado pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP), foi estudar farmacologia na Inglaterra por identificação pessoal com um de seus professores, o farmacologista Sergio Henrique Ferreira. Em 1986, De Nucci concluiu o doutorado no Royal College of Surgeons of England e, dois anos depois, publicou nos Proceedings of the National Academy of Sciences um de seus mais importantes artigos científicos

sobre o papel da endotelina, hormônio vasodilatador liberado pela parede interna dos vasos sangüíneos. Além de ensinar farmacologia na Unicamp, De Nucci dá aulas na Universidade de São Paulo (USP), onde ajudou a criar a Unidade Analítica Cartesius, responsável por 60% dos estudos de bioequivalência realizados no país. Como se fosse pouco, há dois anos abriu seu próprio laboratório de pesquisas em Campinas: o Galeno, no qual são feitos testes de bioequivalência de medicamentos e a análise de substâncias tóxicas em frangos e crustáceos destinados à exportação. Há alguns meses, o senhor declarou numa entrevista que 80% dos medicamentos não funcionavam. Em dezembro passado, um dos vice-presidentes do laboratório GlaxoSmithKline, Allen Roses, disse ao jornal inglês The Independent que a maior parte dos remédios produzidos por sua empresa não atuava como se esperava em mais da metade das pessoas. O senhor poderia explicar melhor essa questão? — Pelo menos dois terços dos remédios atuam como placebo [substância inócua]. Não produzem efeito. Ou não há evidências científicas de que funcionem, pois não é possível avaliar a sua ação contra uma série de patologias. Imagine uma pessoa que sofreu derrame cerebral. Nesse caso, o efeito do me■


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O radical

Entre remédios e polêmicas: criador do Viagra brasileiro critica a produção de medicamentos pelo governo

FOTOS MIGUEL BOYAYAN

dos fármacos


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dicamento depende de diversos fatores, como o tipo de derrame e a área afetada. Como não dá para saber como eram o comportamento e a memória antes do problema, é difícil saber se o remédio está auxiliando a recuperação. O mesmo acontece com o mal de Alzheimer. Dá-se o medicamento acreditando que a pessoa vá melhorar, mas não se tem certeza. Afinal, não sabemos como essa patologia surge. Sabemos como ela evolui, e medir se a evolução é melhor ou pior com o remédio é complexo. Não há evidência de que o remédio funcione contra a doença. Na verdade, nesse caso, isso nem é necessário. ■ Não

é necessário? — Como no mal de Alzheimer há acúmulo de determinadas proteínas, basta mostrar que o medicamento diminui esse acúmulo [para que seja considerado útil]. Às vezes, nem se sabe se esse problema é realmente importante para o surgimento da doença. Mas, como não há modo de descobrir isso, o melhor é colocar a droga no mercado e verificar o que ocorre. Quando não se sabe se um remédio funciona é porque ainda não temos meios de verificar isso. ■ Mas não é preciso saber que o remédio ao menos não faz mal antes de receitá-lo? — Supostamente. São feitos testes clínicos para verificar se o medicamento, a priori, não faz mal. Agora isso não quer dizer que não surgirão efeitos indesejados quando administrado para seres humanos. Aceita-se esse risco. ■ Faz

sentido receitar remédios assim? — Faz. E o pessoal receita assim mesmo. Há uma frase interessante sobre essa questão dita por Sir William Osler [médico canadense autor de The principles and practice of medicine, de 1892, referência na área de saúde no início do século 20]. Ele diz que a vontade de tomar medicamentos é talvez a principal característica que diferencia o ser humanos dos outros animais. ■ Mas

há remédios que funcionam, cuja ação extrapola o efeito placebo. — Hoje existem medicamentos que realmente agem contra determinadas doenças. Com isso, ficam todos contentes: o paciente, que compra o remédio, e o médico, porque os estudos clínicos mostram que o efeito do medicamento é al14

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tamente significativo. Um exemplo é o uso da aspirina na prevenção do infarto. Diversos estudos mostram que, em certa dose, a aspirina reduz em quase três vezes a reincidência do problema. Mas é um benefício relativo, uma vez que 80% dos pacientes não sofreriam um novo infarto mesmo que não tomassem aspirina. Nessa situação, é melhor consumir o remédio ou deixar de tomar? — Toda a lógica do sistema está justamente voltada para que se tomem medicamentos. Não estou dizendo que os remédios não sejam efetivos. Mas os melhores estudos clínicos mostram que, para 90% da população, os remédios não produzem benefício nenhum ou que raramente há benefício. Isso não significa que os medicamentos não tenham utilidade, mas que a porcentagem dos pacientes que se beneficiam é muito pequena, às vezes 2% ou 3%. Um exemplo? Um remédio conhecido para tratar diabetes, a acarbose, que não é absorvido pelo organismo e compete com a absorção de açúcar. De fato, com o remédio, a glicemia da pessoa não aumenta, mas estudos feitos na Alemanha – na Europa o pessoal é mais cuidadoso com isso – mostram que as pessoas morrem do mesmo jeito. O remédio não altera a evolução da doença. ■

■ Em

tese, os médicos acompanham publicações específicas da área deles e têm de estar atualizados, saber o que é eficaz antes de dar para o paciente, não? — Na verdade, não. Os médicos são muito pouco científicos. A avaliação médica é subjetiva, apesar de as pessoas terem a fantasia de que os médicos apresentam uma atitude científica. A história mostra que não. ■ Mas

o senhor não é médico? — Sou médico. ■ Quer dizer que os médicos fazem diagnóstico e receitam com base apenas nos resultados que vêem no consultório? — É difícil aplicar os métodos científicos usados em laboratório na prática da medicina. Em congressos se vê muita conduta baseada em critérios subjetivos, os médicos dizendo “como eu trato, como eu faço”. São decisões pessoais, sem nenhum tipo de raciocínio científico nem controle metodológico.

■ Eles não levam em consideração os trabalhos de medicina baseada em evidências, revisões que mostram se uma certa droga serve para tratar uma doença? — As pessoas chamam de medicina baseada em evidências ou evidence based medicine. Eu chamo de evidence biased medicine [medicina baseada em resultados tendenciosos]. As condutas da medicina baseada em evidências são definidas a partir de metaanálises: juntam-se os trabalhos sobre efeitos positivos e negativos de uma droga, na tentativa de descobrir sua eficácia real. Mas, é sabido, a probabilidade de estudos com resultados favoráveis serem publicados é maior que a de trabalhos com resultados desfavoráveis. Isso contamina as conclusões derivadas das metaanálises, daí a expressão evidence biased medicine. ■ Essa é uma questão importante. No exterior há um debate cada vez mais intenso sobre a obrigatoriedade de as empresas farmacêuticas tornarem públicos todos os resultados, inclusive os ruins. — Há uma confusão aqui. Tornar os dados públicos não implica divulgá-los em uma publicação científica. Os laboratórios têm de informar o resultado de todas as suas pesquisas, sejam favoráveis ou não ao seu produto, ao órgão regulatório, que, então, decide autorizar a venda do medicamento ou não. ■ Não é pouco? Não seria melhor publicar os estudos numa revista científica? Assim o médico que prescreve um remédio poderia ver esses dados. — Avalio trabalhos científicos e estudos clínicos e há uma diferença entre ambos. O órgão regulatório faz uma revisão do estudo clínico porque ali estão todos os dados brutos. No artigo científico não, aparecem só as tabelinhas e os gráficos, e se questiona isso. Mas no ideário das pessoas a indústria farmacêutica é bad boy, é gente que quer ganhar dinheiro. Como se todos trabalhássemos de graça... ■ Sem querer satanizar nem santificar ninguém, sabe-se que há procedimentos da indústria farmacêutica altamente condenáveis, como o pagamento de viagens e benefícios a médicos para que receitem os seus remédios. Na Itália, 4 mil médicos foram processados recentemente por isso. — Não estou santificando...


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■ O modelo atual de trabalho da indústria farmacêutica não é ineficiente? Os laboratórios dizem que desenvolver uma droga pode custar US$ 800 milhões, pois é necessário criar centenas de moléculas antes que uma vire um produto comercial. É correto manter esse modelo? — É o modelo capitalista. A indústria farmacêutica visa ao lucro e seus produtos têm alto valor agregado. Ela só não cobra mais porque as pessoas não conseguem pagar. ■É

■ Os procedimentos clínicos, a conversa com o paciente, não contam? — Bobagem. Medicamento é que realmente faz a diferença. E temos grandes medicamentos. Talvez o preço seja absurdo, mas representam grandes avanços. Além desses medicamentos importantes, há uma faixa enorme cujo valor é dúbio, a avaliação é complexa ou a prescrição é inadequada. Mas um terço é eficaz. Na verdade, ainda assim há dúvidas. São eficazes porque seguimos um determinado modelo de avaliação. Em outros modelos talvez não precisassem ser eficazes. ■ Na Inglaterra e nos Estados Unidos, al-

guns antidepressivos estão sendo acusados de induzir ao suicídio e há quem diga que a indústria farmacêutica ocultou alguns dados sobre os seus produtos. Como um órgão público que zela pela qualidade dos remédios deve proceder num caso desses? — A preocupação fundamental do órgão não é que o medicamento funcione – acho que até perderam a esperança disso –, mas que ele não faça mal. Para a cultura americana, se uma droga não funciona é uma questão debatível. Mas, quando se prova que é nociva, o órgão regulatório passa a ser co-responsável ao lado da indústria farmacêutica. Então existe uma preocupação de fato com a segurança do medicamento. A

a lógica do mercado. — Exato. Por que a diária em um hospital privado de ponta é muito mais cara que a de outro não tão bem conceituado? Porque o primeiro tem seus custos, seu valor agregado e pronto. Sem entrar na questão do preço, o fato é que existem medicamentos bons, que ajudam a medicina avançar. Aliás, a medicina só progride com medicamento. O resto não conta muito.

O sr. acha que a especialização em cirurgia está com os anos contados? — Em algumas especialidades, as cirurgias quase terminaram, pois houve uma redução drástica no número de procedimentos. Há cada vez menos cirurgias na urologia e na gastroenterologia. As cirurgias oncológicas ainda existem, mas eventualmente podem ser abandonadas. Hoje se trata tumor de próstata com calor, radioterapia ou medicamentos. Com exceção da área estética, cirurgia é algo pouco sofisticado. ■

Para 90% das pessoas, os remédios raramente trazem benefícios

eficácia, o mercado pode eventualmente ajudar a esclarecer. ■ Por que as pessoas deveriam tomar remédios de efeito duvidoso? Essa não é a lógica dos laboratórios? As pessoas não usam mais remédio que o necessário? — Sim, mas, como falei, existe um efeito placebo. Isso não significa que esse efeito não seja bom. Veja o caso dos anti-histamínicos. Se a pessoa é picada por pernilongo e está com coceira, você diz: “Toma logo o remédio senão não faz efeito”. A coceira passa antes de o medicamento ser absorvido, perde-se o remédio. Isso é complexo. Existe a noção de que medicamento é algo bom, mas, quando se procuram as evidências, poucas classes de drogas são eficazes.

Poderia dar exemplos de drogas realmente eficazes? — Quando eu era estudante de medicina, cirurgia de úlcera duodenal era freqüente. Havia várias técnicas de operação. Hoje toma-se Tagamet (cimetidina) ou Antak (ranitidina) e a úlcera cicatriza em três semanas. Ninguém mais sabe operar úlcera, é muito raro. Além disso, cirurgia nunca foi uma especialidade médica. Ela surgiu no século 19 e deve desaparecer no século 21. ■

■ Quanto custa desenvolver um remédio no Brasil? Não é mais barato que lá fora? — Com US$ 5 milhões é possível chegar a um me-too [cópia de um medicamento existente]. O me-too é um análogo estrutural, que permite escapar da lei de patentes no Brasil e em alguns países, mas não nos Estados Unidos. Lá são muito elevados os custos dos processos judiciais movidos pelo laboratório fabricante de um medicamento inovador, sob a alegação de similaridade da droga análoga. Aqui não. Estou fazendo isso com um produto do laboratório Cristália, o lilafil, que vem sendo chamado de Viagra brasileiro. ■ Quais tipos de medicamento o país poderia fazer com essa verba? — Aqueles que apresentam química pouco complexa e cuja síntese não é complicada. Se a obtenção da molécula for complexa, o preço será alto.Além disso, poderíamos fazer medicamentos cuja avaliação clínica não é cara, como o análogo do Viagra, em que se deseja saber se a pessoa tem ereção. É diferente de um tratamento para Alzheimer, em que é preciso tratar pacientes por um ano e fazer uma série de exames. ■ É comum pesquisadores brasileiros identificarem moléculas, mas não chegarem ao medicamento por falta de quem o financie. Por que isso ocorre? — Falta de interesse. Sou farmacologista. Minha formação foi na indústria farmacêutica e quero fazer medicamento, que é a forma que tenho de controlar um fenômeno biológico. Mas é necessário ver a viabilidade de se fazer isso. Aqui não há química de medicamentos, não se sintetizam remédios. ■ Por

que isso não existe? — Perdemos o bonde. Nunca tivemos PESQUISA FAPESP 103

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pessoal preparado. Como não tínhamos uma lei de patentes, a troco de que haveria interesse em sintetizar remédio se era possível copiar. E para copiar não se consegue competir em preço com países como a Índia e a China. Nesses países o custo da mão-de-obra é muito baixo e há o que chamo de subsídio ecológico. ■ Subsídio

ecológico? — Exato. Veja o caso do rio Tietê. Por que o rio está desse jeito, poluído? Porque há um certo nível de prejuízo que se aceita. Para o Tietê ficar como o Tâmisa, de Londres, as indústrias terão de sair daqui e será necessário tratar o esgoto. Há um custo. Na Europa não se consegue sintetizar uma molécula de medicamento. O custo é tão absurdo que não vale a pena. Vocês acham que, na Inglaterra, vão querer uma fábrica jogando dejetos químicos ali ao lado? A síntese de remédios para a Europa e os Estados Unidos é feita na Índia e na China. Cubatão, por exemplo, é do jeito que é porque existe um subsídio: “Pode produzir nesse local, fazer o que bem entender que a gente não liga.” É uma opção da sociedade. Não seria, então, o caso de o Brasil também usar a China e a Índia para a síntese de remédio? — Não tem valor nenhum sintetizar medicamento. O problema não é a síntese, mas a propriedade intelectual que se gera. O knowledge é que tem valor. Mas acho complicado pegarmos esse bonde de novo. No Canadá, 80% das pessoas com idade entre 18 e 25 anos estão na universidade. No Brasil, esse número chega a 8%. O bonde vai passar mais longe. Somos muito mais subdesenvolvidos hoje do que há 20 anos. ■

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■ Seria interessante produzir um medicamento inteiramente nacional, da descoberta da molécula até a pílula? — Não. Acho uma burrice. O fundamental é o valor agregado, o conceito, a idéia da molécula. A segunda coisa mais importante na vida, depois da sua existência, o que é? Tempo. Quem faz isso bem? França, Itália, Hong Kong? Então vou produzir onde fazem bem e rápido. ■ Mas, nesse aspecto, o da idéia de novas moléculas, o Brasil não estaria bem? Afinal, os pesquisadores nacionais já publicaram diversos trabalhos sobre moléculas eficazes contra algumas doenças. Ou seja, o passo mais difícil, o fundamental, já não teria sido dado? — Creio que não. Provavelmente não terei mais emprego depois dessa resposta... Existe certo ufanismo em dizer que a produção científica brasileira é 1% dos trabalhos publicados. ■ Mas esse é o dado do ISI (Institute of Scientific Information), que, na verdade, estima que 1,5% dos artigos publicados em periódicos internacionas sejam de brasileiros. O senhor é um dos pesquisadores brasileiros mais citados, segundo o ISI. — Há uma lista de cientistas mais citados. Nela há três brasileiros: Boris Vargafgit, que morou a vida toda na França. O outro é um colega da Unicamp, Jorge Stolfi. Parte da minha produção também não é do Brasil, mas de quando eu estava na Inglaterra.

uma fonte de moléculas e extratos que seriam a base de novos remédios? — Essa é uma visão romântica.

■ Analisando bem, grande parte da ciência norte-americana é feita por estrangeiros. — Sim, mas são estrangeiros que geram conhecimento lá. Essa questão é difícil. O salto que o Terceiro Mundo precisa dar é muito grande. No Brasil ainda persiste a visão de que tem de se fazer tudo aqui. Não funciona. Não é assim que se faz medicamento.

■O

■ Como

■ A biodiversidade nacional não pode ser

senhor não está subestimando o papel e o peso do país? A atuação internacional do Brasil não ajudou a baixar o preço de alguns remédios contra a Aids? — Não sei. Se fosse em futebol, estaria subestimando. Exceto isso, não vejo nada de excepcional aqui. Commodities? Talvez o Brasil tenha o maior rebanho de gado, talvez seja um dos maiores produtores de frango no mundo. 16

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se deve fazer? — Há dois aspectos: um é desenvolver medicamento, o outro é preço. Uma coisa é querer desenvolver um medicamento porque é um investimento interessante do ponto de vista econômico e decidir como fazer isso. A segunda é viabilizar idéias para chegarem ao mercado e saber como se pode conseguir isso. Quando se consegue investir e criar o

fato novo, seguramente haverá capital, seja do país, seja externo. ■ Para

o produto chegar ao mercado... — Idéias boas e viáveis são poucas. Nesse aspecto, acho que a função do cientista que quer chegar lá é correr atrás. Se ele está vendendo o produto que criou, tem de saber quem pode comprá-lo. ■ Falta empreendedorismo na universidade? — Escritório de patentes em universidade é uma gelada, uma pá de cal sobre as universidades públicas. Passo longe para não brigar. Hoje esses escritórios estimulam a redação de patentes. Como menos de 0,01% das patentes é comercialmente viável, isso deve gerar uma grande despesa sem a necessária contrapartida. Nesse tipo de escritório, quem vai negociar com o laboratório é o economista, que não tem idéia de qual é a finalidade daquilo que foi criado. O cientista que deseja que sua descoberta chegue ao mercado é quem tem de saber quem procurar. ■ Para negociar com uma grande empresa é preciso ter noções de mercado e marketing. O escritório de patentes não teria um papel nisso tudo? — Tenho a impressão de que nosso sistema universitário ficou muito polarizado a respeito da questão do que é público e do que é privado. Acham que a indústria vai roubar. Em uma entrevista sobre o Viagra brasileiro, me perguntaram: “A universidade ficou com que parcela dos royalties?” Falei: “Com zero por cento”. “O senhor ficou com quanto?” “Também fiquei com nada, mas fui contratado como consultor para desenvolver o medicamento.” Foi o laboratório Cristália que fez a síntese da droga. Eles estão negociando o desenvolvimento. Ganhei como profissional para desenvolver o produto. A universidade não ganhou nada? Ganhou: não teve ônus e permitiu a criação de um medicamento. ■ Mas o senhor não usou nada da universidade? — Usei o meu tempo, sou pago também pela universidade. ■ Mais

nada? — Fiz alguns experimentos na universidade.


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■ A nova Lei de Inovação prevê que o pro-

fessor de universidade pública também possa ter vínculo com empresas privadas. — Isso significa criar lei para tirar entraves de outras leis. É a visão de quem acha que a universidade está sendo prejudicada. Nunca geramos nada, essa é a grande verdade. E temos medo de criar algo porque vão roubar. Assim, é melhor fechar. ■ Não

é necessário ter regras claras? — Não. É preciso ter resultados, não regras. Em vez de criar lei a toda hora, as pessoas devem deixar as coisas fluírem. Se a universidade não tem mecanismo legal para cobrar os royalties, não tem importância, porque a venda do novo remédio movimenta a economia do país. Alguma coisa entra na forma de ICMS para o Estado. Depois que houver resultados, a gente aprende a lidar com essa questão.

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■ Como

isso aconteceria? — Pode haver políticas de saúde em relação à indústria farmacêutica. Há vários modelos. Na França, o governo fala: “Vou pagar tanto por esse medicamento. Se vender por esse preço, compro e ofereço para a população”. ■ Joga-se com o poder de compra para bai-

xar o preço. — Na Europa, as seguradoras de saúde pagam medicamentos genéricos para seus clientes. Se a pessoa não gosta de genérico e quer o de marca, paga a diferença. O governo pode organizar o mercado e parar de fornecer medicamentos que já deveriam ter sido proibidos porque fazem mal para o paciente. Costumo falar: “Função de médico é fazer diagnóstico e prescrever remédio. Indicar o tratamento correto”. Se o paciente pode ou não comprar o medicamento, nunca foi problema médico. Isso cabe a outro profissional.

■ Então teria de haver alguma regra num

■O

senhor é a favor da existência de laboratórios públicos para a produção de remédios, como Far-Manguinhos? — Far-Manguinhos [Instituto de Tecnologia em Fármacos da Fiocruz, no Rio de Janeiro], Furp [Fundação para o Remédio Popular, no Estado de São Paulo], tudo isso deveria ser fechado o mais rápido possível. Acho um absurdo e já disse a eles. O laboratório Bristol-Myers Squibb produz o captopril em um ou dois lugares no mundo. No Brasil há uns 20 laboratórios oficiais fabricando esse medicamento. Economicamente não sai barato. Há mecanismos para um país modular o preço do medicamento. Mas não haverá remédio de graça. Há um erro estratégico do governo: não é função do governo produzir medicamentos. ■É

um problema de gestão? — A função do governo é assegurar à população o acesso aos medicamentos.

■A

qual profissional? — Ao político, àquele que vai gerir sistemas de saúde, aos administradores hospitalares. ■E

se o paciente disser: “Custa R$ 100 e não tenho dinheiro”?

segundo momento? — Num segundo momento. Certa vez fiz uma proposta à FAPESP. Por que não podemos vender para a indústria privada equipamentos caros que se tornam ultrapassados para fazer pesquisa? O laboratório da universidade ficaria com 50% da venda e a FAPESP, com os outros 50%. Mas isso não pode ser feito porque se trata de patrimônio público.

Os médicos são muito pouco científicos, sua avaliação é subjetiva

— A função médica é diagnóstico e tratamento. Pára por aí. ■ É um problema de distribuição de renda e de ter um sistema que proteja as pessoas mais pobres. — Sim, mas não é função do médico proteger o doente. É aí que se fazem as maiores barbaridades. ■O

senhor acredita em homeopatia? — Não tenho evidências científicas de que funcione. Mas não trabalho com homeopatia. Quando o bioquímico francês Jacques Benveniste publicou aquele trabalho na Nature [em 1988, mostrando que a molécula de água seria capaz de armazenar informações sobre compostos nela diluídos], eu estava na Inglaterra. Perguntei a James Black, prêmio Nobel de Medicina em 1988, o que ele achava do estudo. Black comentou que outros trabalhos mostravam evidências sobre essa questão das alterações na molécula da água. Ele é um prêmio Nobel e não falou que era impossível. Conheço bem o Jacques. É um excelente cientista, descobridor, antes dessa história da homeopatia, de um composto importante: o PAF-aceter, um fator de ativação de plaquetas. Mas Jacques é um cara de esquerda, comunista, com idéias políticas contrárias ao establishment. ■ Ou

seja, seu perfil desagradava muitos. — A esse respeito, há uma história engraçada. Na Inglaterra, Sir Cyril Burt [psicólogo morto em 1971] exerceu grande influência por alterar o sistema de educação do país. Com base em estudos com gêmeos idênticos, afirmava que a inteligência era determinada pela genética. Burt ganhou prêmios e morreu em glória, com colaboradores no exterior. Um estatístico norte-americano viu que era impossível chegar àqueles dados. Publicou um artigo e foi escorraçado. O que falava foi considerado um crime, como falar mal de Jesus Cristo? Foram ouvir os colaboradores de Burt. Mas eles não existiam. As pessoas acreditam nas personalidades e não na ciência? — Acreditam no que querem acreditar. Depois que se descobre que um conceito está furado, todo mundo demonstra a mesma coisa. Mesmo que antes tivessem provado o contrário. • ■

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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

E STRATÉGIAS

vai durar um ano. Estão envolvidos especialistas do Instituto de Genética Humana da Universidade Newcastle e do Centro de Fertilidade de Newcastle. “Estamos emocionados”, diz a pesquisado-

ra Alison Murdoch. “Temos cinco anos de trabalho pela frente antes dos primeiros testes clínicos, tempo que poderá ser reduzido se recebermos mais verbas e aumentarmos a equipe.” Mui-

tos países, Estados Unidos à frente, colocaram entraves à pesquisa da clonagem terapêutica. O Reino Unido e a Coréia do Sul são exceções. (British Information Services, 11 de agosto)

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Cientistas britânicos receberam uma inédita autorização no país para clonar embriões humanos com finalidades terapêuticas. O objetivo da experiência é obter células-tronco e transformálas em células produtoras de insulina, numa pesquisa em busca de novas terapias contra o diabetes. O precedente é promissor. Capazes de se converter em células e tecidos de todo tipo, as célulastronco, acredita-se, irão gerar tratamentos contra doenças degenerativas, tumores e lesões. A permissão, concedida ao Centro Internacional para a Vida, em Newcastle,

LAURABEATRIZ

Clonagem com chancela do governo

MUNDO

Vorazes saqueadores Já vai longe o tempo em que os ecologistas da África do Sul preocupavam-se só com o comércio ilegal de presas de elefante e de chifres de rinoceronte. Os saqueadores da rica biodiversidade do país ampliaram significativamente seus alvos. “Eles parecem aspiradores de pó, carregam o que encontram”, diz Paul Gildenhuys, diretor da divisão de crimes ambientais da instituição Cape Nature Conservation Board.“Tartarugas, lagartos, cobras, aranhas, pássaros, borboletas, orquídeas, samambaias, a lista de material vivo comercializado ilegalmente é gigantesca.” Piratas oriundos da Alemanha, do Japão e da República Checa foram flagrados nos últimos anos com plan18

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tas e répteis ameaçados de extinção roubados da África do Sul. As prisões revelaram a notável retaguarda logística e tecnológica de que eles dispõem. Muitos estavam munidos de equipamentos de monitoramento por satélite e livros sobre as espécies animais. Sabiam exatamente o que queriam e onde procurar. Os répteis têm sido os alvos mais freqüentes, talvez porque sobrevivam mais tempo sem comida e sejam mais quietos, levantando menos suspeitas. É certo que sua popularidade como animais de estimação tem crescido. As plantas raras também são vítimas preferenciais. Recentemente, a polícia florestal apreendeu um caminhão carregado com 90 mil

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mudas de flores exóticas roubadas.“Os saqueadores desembarcam na África do Sul trazendo na bagagem uma ‘lista dos sonhos’ dos colecionadores de animais”, acusa Mike Tyldesley, da Cites (Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Fauna e da Flora Selvagens Ameaçadas de Extinção). Dois alemães

foram detidos com 56 cobras exóticas escondidas em sacos abrigados na bagagem. A muda de uma palmeira extinta na vida selvagem foi arrematada legalmente num leilão por US$ 65 mil – para se ter uma idéia do valor que colecionadores pagam pelo produto dos saques. (Pretoria News, 19 de julho)


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■ De mãos dadas

cedidas indiscriminadamente. Arqueólogos com reputação internacional são os alvos da iniciativa. (Payvand’s Iran News, 13 de agosto)

contra a meningite

■ Um grito contra

a ineficiência

LAURABEATRIZ

■ Estrangeiros são

bem-vindos O governo do Irã anunciou que abrirá seus sítios arqueológicos para estudiosos estrangeiros, numa tentativa de melhorar a qualidade da pesquisa local. O anúncio foi fei-

to por Hussein Marashi, presidente da Organização Iraniana de Turismo e Herança Cultural (CHTO). “Expandir projetos arqueológicos também ajudará a deter os saques em nossos milhares de sítios históricos”, disse. As licenças para escavações não serão con-

Pesquisadores chineses tentaram, em vão, convencer o governo central a reformar o ineficiente sistema de distribuição de verbas para a ciência. Quase todo o dinheiro é repassado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, alvo de críticas há anos por inépcia e falta de transparência. Como o governo demitiu burocratas da saúde acusados de incompetência na epidemia de pneumonia asiática, os pesquisadores se animaram a pedir mudanças em sua seara. A proposta do grupo, denominado Ray Wu Society, era criar uma instituição nos moldes dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos. O governo disse não. (Nature, 29 de julho)

Ciência para ler no jornal A cobertura jornalística de assuntos científicos no Malawi, país da África Oriental, é bastante limitada. Preocupados com essa lacuna, um grupo de profissionais da imprensa do país acaba de fundar a Coalizão de Jornalistas de Ambiente e Agricultura (Cojea). A instituição, disse o dirigente Raphael Mweninguwe, dará treinamento a repórteres e editores, realizará fóruns e promoverá intercâmbio com outros países. “É fundamental que os jornalistas estejam mais familiarizados com assuntos científicos”, afirmou Mweninguwe. O

país não contava até agora com nenhuma publicação científica produzida por profissionais. Por isso, a Cojea decidiu lançar a revista The Green Environment, sobre

ecologia e ciência.“É hora de levar os temas científicos às massas”, diz Gray Munthali, diretor dos serviços meteorológicos de Malawi. (SciDev.Net, 13 de agosto)

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Está a caminho a vacina dos sonhos para o combate à meningite que assola a África Subsaariana – área que compreende de Gâmbia ao Senegal, na costa atlântica, à Etiópia e Somália, a leste. O imunizante, contra a meningite tipo A, vai ajudar a controlar a doença que infecta 200 mil africanos por ano e mata um terço deles. Confere longa proteção, pode ser aplicada em pacientes de qualquer idade e quebra a corrente de transmissão. E o mais importante: o preço é acessível a países pobres. A vacina será produzida por um consórcio que uniu três cantos do globo. Para desenvolver o medicamento, o Instituto do Soro da Índia assinou um convênio com o Projeto Vacina contra a Meningite, da Organização Mundial da Saúde (OMS) e a instituição internacional Programa para Tecnologia Apropriada em Saúde (Path). A vacina está em desenvolvimento na Índia, com tecnologia fornecida pela Administração de Drogas e Alimentos (FDA) dos EUA. A matéria-prima, por sua vez, vem da SynCo Bio Partners, da Holanda. A joint venture produzirá 25 milhões de vacinas por ano, a US$ 0,40 a dose. “Esse acordo pode criar um paradigma para a produção de vacinas ou drogas destinados a países pobres”, disse o cientista da FDA Carl Frasch. “Mostra que é possível, com cooperação internacional, resolver problemas crônicos do continente.” A meningite não é o principal flagelo da região – a Aids, a tuberculose e a malária matam mais. Mas é um mal persistente, que há mais de um século atemoriza os africanos. (Science in Africa, agosto)

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MUNDO

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Ciência na web

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E STRATÉGIAS

Envie sua sugestão de site científico para cienweb@trieste.fapesp.br

http://www.fieldmuseum.org/expeditions/

México na era genômica Foram cinco anos de planejamento e três de discussões políticas envolvendo uma controversa lei acerca de clonagem e pesquisa com embriões. Agora, finalmente, o presidente do México, Vicente Fox, deu o sinal verde para a criação do Instituto Nacional de Medicina Genômica (Inmegen). A instituição vai dedicar-se à pesquisa das doenças genéticas que afligem os mexicanos, como o diabetes, a obesidade e moléstias cardiovasculares, e à busca de novos tratamentos. Os mexicanos têm um perfil genético bastante peculiar, resultante da miscigenação de mais de 65 grupos indígenas com os colonizadores mexicanos, como evidenciou um artigo publicado no ano passado na revista Science por Gerardo Jimenez Sanchez, diretor do novo instituto.“Não podemos nos dar ao luxo de não recorrer a esta revolução do conhecimento porque a saúde e o bem-estar das gerações futuras estão em jogo”, disse o presidente Fox. A lei que criou o instituto não inclui veto a clonagem terapêutica ou pesquisa com embriões humanos. 20

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Mas já se sabe que o Inmegen não realizará investigações nessa área. Para erguer o prédio que sediará o instituto na Cidade do México serão necessários US$ 220 milhões. (Sci. Dev.Net, 26 de julho)

O site do Field Museum de Chicago exibe as ruínas de Cerro Baúl, no Peru, de 1.400 anos, onde existiu a mais antiga fábrica de cerveja do mundo.

■ Pesquisa renasce

na Argentina A Argentina vai injetar ânimo em sua pesquisa científica e tecnológica. O governo anunciou que vai recrutar centenas de novos pesquisadores. A boa notícia já está sendo posta em prática pelo Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Tecnológica (Conicet), que vai criar 300 cargos ainda em 2004. O número de cientistas nos institutos de pesquisa crescerá dos atuais 4.224 para 5.200 até 2008. O Conicet também dará 1.500 novas bolsas de pós-graduação por ano. Essa movimentação é parte de um programa que será implantado nos próximos quatro anos.“Sob o sistema anterior, o futuro da pesquisa no país estava ameaçado”, disse o presidente do Conicet, Eduardo Charreau. (SciDev. Net, 6 de agosto)

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http://www.ufrgs.br/nupac/

O portal brasileiro reúne bibliografia sobre a Antártida. Dispõe de um curioso glossário com termos técnicos usados por pesquisadores na neve.

http://emys.geo.orst.edu/

Criado para ajudar ecologistas e pesquisadores, o site reúne dados sobre a taxonomia e a distribuição dos mais de 200 tipos de tartarugas do planeta.


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E STRATÉGIAS

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BRASIL

■ Todos à rua

pela ciência O Ministério da Ciência e Tecnologia organiza a primeira Semana Nacional de Ciência e Tecnologia, programada para os dias 18 a 24 de outubro. Diversos eventos voltados para a popularização da ciência estão previstos: festivais, feiras, oficinas de arte, debates públicos, exibição de vídeo. Universidades, museus e centros culturais deverão abrir suas portas. A FAPESP, a Associação Brasileira para o Progresso da Ciência, o Instituto de Pesquisas Tecnológicas e a Associação Brasileira de Jornalismo Científico serão responsáveis pela preparação do evento em São Paulo. Na esteira da mobilização, o ministério vai organizar, na

Fundação amplia produção de fármacos

ção. O vínculo da Fiocruz com a GlaxoSmithKline é mais profundo. Meses atrás, a fundação estabeleceu um acordo com a multinacional para receber tecnologia de fabricação da vacina tríplice

noite do dia 27 de outubro e madrugada do dia 28, o evento de observação astronômica “O Brasil olha para o céu”, para acompanhar um eclipse total da Lua. A Semana foi instituída por um decreto da Presidência da República e deverá repetir-se todos os anos, no mês de outubro.

■ Vizinhos unidos

no espaço Um antigo projeto de cooperação espacial entre Brasil e Argentina deve finalmente sair do papel. É o Satélite Argentino-Brasileiro de Informações sobre Alimentos, Água e Ambiente (Sabia3), voltado para o monitoramento de recursos hídricos, a produção agrícola e a ecologia – uma iniciativa discutida des-

viral (contra sarampo, rubéola e caxumba). O termo de posse da planta industrial foi assinado numa solenidade com a presença do presidente Lula, no início de agosto. No mesmo evento foi lança-

da a pedra fundamental do prédio de Protótipos, Reativos e Biofármacos e também foi inaugurado o Centro de Produção de Antígenos Bacterianos Charles Mérieux, nova unidade da fundação. Trata-se do mais moderno laboratório de vacinas bacterianas da América Latina, que produzirá anualmente 45 milhões de doses de imunizantes. Com a inauguração das instalações, duas vacinas passam a integrar a linha de produção da Fiocruz: a tetravalente (contra difteria, tétano, coqueluche, meningite por Haemophilus influenzae do tipo B e outras infecções) e a meningococo B.

LAURABEATRIZ

A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) incorporou a seu Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos) um parque industrial que pertencia ao laboratório multinacional GlaxoSmithKline, em Jacarepaguá, Zona Oeste do Rio de Janeiro. O governo federal gastou US$ 6 milhões no negócio, que permitirá à Fiocruz multiplicar por cinco sua capacidade produtiva. A prioridade será abastecer os programas de distribuição de medicamentos do Ministério da Saúde. Em 2005, a unidade começará a produzir antibióticos, itens que até hoje não faziam parte da relação de fármacos fabricados da institui-

AE

A vigorosa expansão da Fiocruz

de 1998. Ainda neste mês, técnicos da Agência Espacial Brasileira devem apresentar um documento com os termos da retomada do projeto. A volta do Sabia3 foi decidida numa reunião em Buenos Aires entre autoridades dos dois países. Também foram acertadas a realização de testes dos satélites argentinos SAC-C e Saocom nas instalações do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e o lançamento de experimentos científicos argentinos no foguete de sondagem VS-30, desenvolvido pelo Centro Técnico Espacial. O VS-30 irá voar no ano que vem, carregando material científico de universidades e instituições de pesquisa brasileiras para experiências em microgravidade.

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E STRATÉGIAS

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BRASIL

saem do forno Está chegando uma fornada de publicações voltadas para a produção científica e o debate acadêmico. O Instituto de Pesquisa Econômica (Ipea) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) lançaram a revista mensal Desafios do Desenvolvimento. Com tiragem de 30 mil exemplares, a revista é vendida em bancas e traz reportagens sobre economia, ciência e tecnologia e boas práticas de gestão, além da produção acadêmica do próprio Ipea. A Atlântica Editora lança a revista Neurociências, com artigos de pesquisadores em linguagem acessível ao público leigo. O objetivo é dar espaço à 22

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Nogueira Neto (à esq.) e Salzano: biografias homenageadas

tor público. Realizou pesquisas nas áreas de conservação, ecologia e comportamento animal. Preside uma pioneira sociedade conservacionista, a Associação de Defesa do Meio Ambiente. E, entre 1976 e 1986, esteve à

comunidade de mais de 20 mil médicos, biólogos, pedagogos, fisioterapeutas, entre outras áreas, com trabalhos publicados na área de neurociências. “Somos muitos e nos conhecemos pouco”, diz a neurocientista Suzana Herculano-Houzel, editora da revista. A Embrapa Instrumen-

frente da Secretaria Especial do Meio Ambiente do governo federal. Também foram divulgados os vencedores do Prêmio Moinho Santista Juventude, para pesquisadores com até 35 anos de idade. Os agraciados fo-

tação Agropecuária, uma das unidades da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), criou a revista em quadrinhos Papo-Cabeça, publicação de ciência e tecnologia distribuída em escolas. O primeiro número do gibi aborda a fossa séptica biodigestora, opção de saneamento básico

ram Anamaria Aranha Camargo, do Instituto Ludwig – uma das coordenadoras do Projeto Genoma Câncer –, e Adriel Ferreira da Fonseca, que pesquisa a utilização de esgoto tratado na irrigação de plantas.

para a zona rural. A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), por sua vez, começa a publicar uma revista quadrimestral, a Revista Brasileira de Pós-Graduação. Destina-se à comunidade de 100 mil pesquisadores e estudantes brasileiros da área.

REPRODUÇÃO

■ Revistas que

CLÓVIS FERREIRA / DIGNA IMAGENS

Os professores Francisco Salzano e Paulo Nogueira Neto foram agraciados com a edição 2004 do Prêmio Moinho Santista, que neste ano contemplou as áreas de genética e desenvolvimento sustentável. Salzano, de 76 anos, é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Suas principais contribuições estão no campo da genética humana: ao estudar o DNA de membros de cinco tribos indígenas, descobriu um gene associado à obesidade. O ecologista Paulo Nogueira Neto, de 82 anos, é professor aposentado da Universidade de São Paulo. Em sua biografia convivem os perfis de pesquisador, militante e ges-

EDUARDO CESAR

Os laureados com o Prêmio Moinho Santista

As novas revistas: produção científica e debate acadêmico

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LAURABEATRIZ

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a violência As diversas faces da violência, de sua gênese sociológica ao impacto na economia, passando pela organização do atendimento hospitalar, serão alvo de uma mobilização acadêmica patrocinada pelos ministérios da Ciência e Tecnologia (MCT) e da Saúde. As duas pastas lançaram um edital de âmbito nacional, que irá selecionar projetos de pesquisa sobre temas relacionados à violência, acidentes e traumas, como organização e avaliação de políticas, programas e serviços; atendimento hospitalar; estudos quantitativos de base populacional e estudos qualitativos; economia em violência, acidentes e trauma e suas repercussões; e engenharia biomédica voltada ao atendimento na área de trauma. Serão aplicados R$ 3 milhões – R$ 1,5 milhão do fundo setorial de Saúde do MCT e R$ 1,5 milhão do Departamento de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde. Poderão participar pesquisadores ou especialistas de instituições de ensino superior, institutos e centros de pesquisa e desenvolvimento. As inscrições estão abertas até o dia 20 de setembro e os projetos serão analisados e julgados pelo comitê técnico até o dia 5 de novembro. Cada projeto receberá até R$ 300 mil e deverá ser executado em, no

máximo, dois anos. Mais informações estão disponíveis no endereço eletrônico www. saude.gov. br/sctie/decit.

■ Uma estatal para

a pesquisa O governo federal criou uma estatal encarregada de catalisar os esforços de pesquisas no setor de energia. A Empresa de Pesquisa Energética (EPE) terá sede em Brasília e escritório no Rio. Caberá a ela

contratar estudos de licenciamento ambiental para a construção de usinas, fazer estudos necessários para expansão de geração e transmissão de energia elétrica e desenvolver estudos para aumentar a utilização de carvão mineral. A receita da empresa de pesquisa virá de duas fontes: royalties do petróleo e uma fatia do percentual descontado na conta de luz, hoje destinada à Agência Nacional de Energia Elétrica.

Viagem fantástica Luiz de Castro Faria, pioneiro da antropologia brasileira, morreu no Rio de Janeiro, no dia 16 de agosto, aos 91 anos. Professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e ex-diretor do Museu Nacional, Faria iniciou a carreira em grande estilo. Participou, em 1938, da célebre expedição à serra do Norte, liderada pelo etnólogo francês Claude Lévi-Strauss, que seria registrada no livro Tristes trópicos, publicado em 1955. Castro Faria, que tinha à época 24 anos, registrou a viagem em diários e 800 fotografias, que só mostrou ao público numa expedição em 1998. Também se destacou na

AG. O GLOBO

■ Para compreender

Luiz de Castro Faria: pioneiro da antropologia

defesa do patrimônio arqueológico brasileiro. Fundador e primeiro presidente da Associação Brasileira de Antropologia, lecionou na Universidade de Paris e no London College.

■ Articulação

em Sergipe A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Sergipe (FAP/SE) e a Rede Brasil de Tecnologia, do governo federal, lançaram a Rede Sergipe de Tecnologia, com a missão de estimular pesquisadores e organizações públicas e privadas locais a desenvolver produtos e novas competências. O projeto engloba nove redes de pesquisa de temas distintos, nas áreas de agrometeorologia e recursos hídricos, biotecnologia, design, econegócios e produção mais limpa, energias renováveis, fruticultura, geotecnologia, tecnologias da informação e petróleo e gás. O projeto, que tem o apoio do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), integrou-se ao banco de dados da Rede Brasil de Tecnologia, que desde o início do ano se dedica a articular parcerias entre pesquisadores e empresas em âmbito nacional para substituir importações e, em âmbito internacional, para estimular exportações. “Vamos planejar ações conjuntas para o desenvolvimento tecnológico de Sergipe e acompanhar o desempenho das redes temáticas”, diz Marcos Wandir Nery Lobão, diretor presidente da FAP/SE. Mais informações estão disponíveis no site www.redeser gipe.se.gov.br.

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ROGERIO PALLATTA/ VALOR/FOLHA IMAGEM

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

GESTÃO

Vôos de um empreendedor Diretor científico deixará FAPESP para criar novo projeto no setor privado

D

epois de mais de dez anos à frente da Diretoria Científica da FAPESP, José Fernando Perez, 59 anos, físico, professor titular de física matemática da Universidade de São Paulo (USP), anunciou em reunião do Conselho Superior da Fundação, em 11 de agosto passado, sua decisão de deixar o cargo para se dedicar a um projeto pessoal, desvinculado do ambiente acadêmico, no início de 2005. Ele está estruturando a Perez Pesquisa e Desenvolvimento, uma empresa voltada para a criação de novas empresas de base tecnológica. “Pretendo dar uma contribuição que, acredito, será importante para o país”, disse.“É um sonho que tenho há alguns anos. Vou fazer 60 anos. Se não fizer isso agora, não faço mais.” Perez planejava deixar o cargo em 2002, mas adiou a decisão devido à crise cambial daquele ano, que teve impacto significativo nos programas da FAPESP. Ele é o sétimo diretor científico na história da instituição, cargo ocupado sucessivamente por Warwick Kerr, William Saad Hossne, Alberto Carvalho da Silva, Oscar Sala, Ruy Carlos de Camargo Vieira e Flávio Fava de Moraes. Na mensagem que leu aos conselheiros, o diretor científico fez um balanço de seus quase 11 anos de gestão (ele

está no quarto mandato), período em que a rotina da FAPESP foi fortemente marcada pelo dinamismo, entusiasmo e espírito empreendedor característicos da personalidade de Perez. “Com o estímulo e a aprovação do Conselho Superior, e a colaboração dos parceiros da Diretoria Executiva, uma ampla gama de programas e iniciativas foi implementada, passando a Fundação a desempenhar um papel mais ativo na identificação de oportunidades e desafios para o desenvolvimento do sistema de pesquisa do estado, sempre em estreita colaboração com a comunidade científica”, disse ele. “Conseguimos superar a antiquada visão dicotômica que opõe pesquisa espontânea e pesquisa induzida.” O ciclo de realizações compreendeu esforços como a introdução de programas de inovação tecnológica com participação direta de empresas, a formação de redes de pesquisa, como a que serviu de base ao Programa Genoma da FAPESP, liderada pelo audacioso projeto pioneiro de seqüenciamento da Xylella fastidiosa, lançado em 1997, que mudou completamente o panorama da pesquisa em biologia molecular no país; um ambicioso programa de restauração e modernização da infra-estrutura de pesquisa das instituições do estado; e o advento dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids), entre

vários outros, incluindo a transformação de Pesquisa FAPESP numa revista preparada para o mercado editorial brasileiro, com vendas em bancas e por assinatura. Listas tríplices - A decisão de Perez

criou uma situação inusitada para a FAPESP – a vacância simultânea de dois importantes cargos diretivos. Além da Diretoria Científica, a função de diretor presidente do Conselho Técnico-Administrativo ficou vaga em abril, com a morte inesperada do professor Francisco Romeu Landi. Os dois cargos são da escolha do governador do estado, com base em listas tríplices que serão elaboradas pelo Conselho Superior, assessorado por um Comitê de Busca e Seleção, presidido pelo professor Carlos Vogt, presidente da FAPESP, e composto pelos conselheiros Hermann Heinemann Wever, Marcos Macari e Vahan Agopyan. Até o dia 30 de setembro, o comitê examinará sugestões de possíveis candidatos com perfil muito bem definido. Devem ser profissionais de reputação nacional e internacional, com experiência em gestão de pesquisa científica e tecnológica; habilitados a liderar complexos processos de decisão e desejosos de elevar a qualidade da ciência, educação e cultura em São Paulo e no Brasil. • PESQUISA FAPESP 103

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Papo cabeça à venda Humanidades Pablo Rubén Mariconda Leopoldo De Meis Muniz Sodré Leandro Konder Alfredo Bosi José Arthur Giannotti Ismail Xavier Otavio Frias Filho Roberto Schwarz

Ciências biológicas

Conheça o que pensam alguns dos melhores pesquisadores e intelectuais brasileiros (e, de quebra, alguns cientistas do exterior) em textos reunidos em um único livro, Prazer em conhecer. A obra traz 26 grandes entrevistas, originalmente publicadas em edições de Pesquisa FAPESP, que compõem uma amostra do conhecimento e das contribuições dadas à ciência e à cultura por eminentes professores e cientistas.

Craig Venter Bob Waterston José Fernando Perez Andrew Simpson André Goffeau Warwick Estevam Kerr Walter Gilbert Carlos Alfredo Joly e Vanderlei Perez Canhos Chana Malogolowkin João Carlos Setúbal Carmen Martin Iván Izquierdo Fernando Reinach

Física José Leite Lopes Luiz Davidovich Marcello Damy Roberto Salmeron

www.revistapesquisa.fapesp.br

pesquisa o Brasil

Lançamento no Rio de Janeiro Livraria Argumento

Onde encontrar

Leblon

FNAC: São Paulo / Rio de Janeiro / Curitiba / Campinas ■ Livraria Cultura: São Paulo / Porto Alegre ou pelo site www.livcultura.com.br ■ Livraria da Vila: São Paulo ■ Livraria Belas Artes: São Paulo Livraria Letras e Expressões: Rio de Janeiro ■ Livraria Argumento: Rio de Janeiro Livraria Civilização Brasileira: Salvador ■ Livraria Siciliano: somente pelo site www.siciliano.com.br Livraria Patão: Mogi das Cruzes - tel: (11) 4799-8718 Distribuidora Unesp: Rio de Janeiro - tel: (21) 2252.6834 / 3852.5067 / 2507.5141

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BRAZ

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

MEDICINA

Diagnóstico em rede Instituto Nacional do Câncer cria banco de tumores

O

Instituto Nacional do Câncer (Inca) está implantando um Banco Nacional de Tumores e de DNA que poderá ser utilizado em pesquisas sobre o perfil genético de tumores. O projeto conta com US$ 4 milhões da Fundação Swiss Bridge, que financiarão a criação de uma rede de colheita e processamento de amostras de tecidos, sangue e dados clínicos, e recursos da Financiadora de Projetos (Finep) para os investimentos em infra-estrutura. O Programa Genoma Clínico, financiado pela FAPESP – que desenvolve novas formas de diagnóstico e tratamento do câncer –, mantém um banco de tumores ao qual têm acesso os pesquisadores de 18 grupos de trabalho afiliados. O Hospital do Câncer A. C. Camargo, em São Paulo, também já dispõe de mais de 2 mil amostras de tumores armazenadas em seu banco de tumores, utilizado em pesquisa. A rede do Inca será formada por 20 centros médicos universitários de todo o país. Serão selecionados com base no

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seu potencial de recrutamento de pacientes e na disponibilidade de pessoal para diagnóstico, colheita e processamento de dados. “Uma parte do centro de pesquisas do Inca já está sendo reformada para abrigar o banco de tumores e de DNA”, conta Eloiza Helena Tajara, da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto e da equipe do Inca. As equipes desses centros de pesquisa serão treinadas pelo Inca para assegurar a execução adequada de todos os protocolos. Todos os pacientes que concordarem em participar do projeto assinarão um termo de consentimento informado. O Banco Nacional de Tumores e de DNA, Eloiza explica, vai permitir o desenvolvimento de estudos na área de marcadores de diagnósticos e terapêuticos em amostras representativas da população brasileira, já que os centros de pesquisa que integrarão a rede estão espalhados pelas cinco regiões brasileiras. Além disso, padronizará e informatizará procedimentos de colheita de amostra, de dados clínicos e de acompanhamento de pacientes que poderão servir

de modelo para condutas hospitalares de rotina. Terão acesso ao banco de tumores pesquisadores cujos projetos de pesquisa tenham sido avaliados e aprovados por um comitê externo, ainda em fase de constituição. O banco estará aberto aos pesquisadores nos próximos 12 meses. O câncer é a segunda causa mais importante de morte no Brasil. Os pesquisadores do Inca consideram que os fatores genéticos e ambientais devem influenciar não apenas as diferenças em taxas de incidência, como também as características genéticas dos vários tipos de neoplasia. Muitos eventos relacionados ao aparecimento de tumores cancerosos, no entanto, permanecem desconhecidos e, de uma maneira geral, poucos marcadores moleculares associados a um grupo de neoplasias são utilizados na prática médica. “O conhecimento sobre as causas destes tumores é fundamental para a melhoria do atendimento do paciente e tem grande potencial de impacto em programas de prevenção e avaliação de risco”, explica Eloiza. •


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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA GENÔMICA

saborosa

Bebida mais

Programa Genoma Café abre banco de dados para pesquisadores

A

conclusão do seqüenciamento do genoma do café arábica, anunciado oficialmente pelo ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, no dia 10 de agosto, abre novas perspectivas para melhorar a qualidade do grão, aumentar a produtividade das lavouras e ampliar as exportações do país. O Brasil é, historicamente, líder nas pesquisas cafeeiras, mas por tratar-se de uma cultura perene o processo de introdução de novas variedades leva entre 25 e 30 anos. “Conhecendo os genes envolvidos na resistência da planta à água, doenças ou qualidade da bebida, por exemplo, será possível realizar melhoramentos num período curto de tempo”, prevê Carlos Colombo, pesquisador do Instituto Agronômico de Campinas (IAC) e coordenador do Programa Genoma Café em São Paulo. O programa, orçado em R$ 1,9 milhão, foi financiado pelo Consórcio Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento do Café, formado pela FAPESP, pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e por outras 20 instituições de pesquisa. Os pesquisadores optaram por usar a técnica de etiquetas de seqüência expressa (ESTs) – pedaços de genes que a planta de fato usa durante o metabolismo para produzir proteínas – e não por seqüenciar o genoma inteiro. As pesquisas resultaram no seqüenciamento de 32 mil genes, de um total de 40 mil ou 50 mil, e

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155 mil seqüências de DNA. Essas informações estão reunidas num banco de dados, gerenciado pela FAPESP e pela Embrapa, ao qual terão acesso 23 institutos nacionais de pesquisa. “Pelo acordo, os pesquisadores brasileiros terão prioridade em vasculhar e analisar esses dados. Por tratar-se de informação pública, em 2006 o banco de dados será aberto aos pesquisadores estrangeiros e a entidades privadas para consulta”, conta Colombo. Nesse caso haverá cobrança de royalties. “Temos que acelerar as pesquisas”, recomenda o coordenador do programa em São Paulo. O consórcio já está analisando projetos de análise funcional do café apresentada pelos diversos institutos de pesquisas credenciados. A idéia é investir algo em torno de R$ 3 milhões no financiamento de 10 a 15 projetos de investigação que, conforme se prevê, permitirão, por exemplo, produzir café

mais tolerante à seca, resistente ao ataque de pragas, com mais sabor e aroma, ou com teores controlados de cafeína, vitaminas e sais minerais. A FAPESP e a Embrapa dividirão a titularidade das patentes que vierem a ser geradas nos projetos. As duas entidades compartilharão os royalties com o Centro Nacional de Recursos Genéticos (Cenargen) e a instituição à qual pertencer o pesquisador responsável pelo projeto. “O café já foi o carro-chefe da nossa economia. Agora mostramos que o café brasileiro continua na vanguarda”, disse o ministro Roberto Rodrigues, que participou da cerimônia em que foi anunciada a conclusão do Programa Genoma Café e firmado o convênio que permite o acesso das instituições de pesquisa ao banco de dados. “Esperamos que novos mercados sejam abertos para os cafés brasileiros. Essa pesquisa vai beneficiar toda a cadeia produtiva, especialmente os produtores.” O Brasil produz anualmente cerca de 31 milhões de sacas de café beneficiado, é responsável por 30% da produção mundial e é o maior exportador do grão. O café é responsável por 2% das exportações brasileiras em 2003. A produção nacional perde em qualidade para a Colômbia, que colhe um grão de melhor qualidade e maior preço. A expectativa é que as pesquisas resultem no desenvolvimento de variedades produtivas superiores que permitam disputar o mercado com o café colombiano. •


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LAURABEATRIZ

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

INDICADORES

Benefíciosmedidos Parceria ibero-americana vai avaliar impacto social de novas tecnologias

A

Rede Ibero-Americana de Indicadores de Ciência e Tecnologia (Rycit), a FAPESP e o Laboratório de Jornalismo (Labjor) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) criaram uma rede de pesquisa para medir e avaliar os benefícios sociais dos investimentos em pesquisa, desenvolvimento e inovação nos países em desenvolvimento. O projeto inicia-se com a definição de metodologia de pesquisa, a construção de um conjunto de indicadores e a delimitação de uma área-piloto para análise. Para integrar a rede foi criado um fórum virtual de debates que contará com o suporte tecnológico do Centro Latino-Americano e do Caribe de Informações em Ciências da Saúde (Bireme). A parceria entre a Rycit, FAPESP e Labjor foi formalizada no seminário internacional “Estratégias metodológicas y experiencias recientes de medición del impacto social de la ciencia e la tecnologia – Taller San Pablo”, realizado na FAPESP nos dias 3 e 4 de agosto. Participaram do encontro especialistas e pesquisado28

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res da Argentina, Colômbia, Espanha, Cuba, Panamá e Brasil. A metodologia de pesquisa terá como base projetos de avaliação do impacto social da ciência e tecnologia já realizados na Colômbia, Panamá e Cuba e o modelo de análise elaborado pela Divisão de Inovação Empresarial do Centro de Automatización, Robótica y Tecnologías de la Información y de la Fabricación (Cartif), de Valladolid, na Espanha. O Observatório de Ciência e Tecnologia da Colômbia, por exemplo, analisou os resultados dos investimentos do Programa Nacional de Biotecnologia. Constatou que o programa, além de estimular um número significativo de artigos, teses, registros de patentes e consolidar uma comunidade nacional de pesquisa, permitiu o desenvolvimento de métodos diagnósticos e de novas plantas, apenas para citar alguns exemplos, como disse José Villaveces Cardozo, diretor executivo do Observatório. O Panamá também desenvolve metodologia para avaliar a apropriação do conhecimento científico e tecnológico gerado nas diversas áreas do conheci-

mento. No setor agropecuário, por exemplo, identificou-se um “divórcio entre a política e o desenvolvimento agropecuário”, de acordo com Lourdes Palmas, do Departamento de Indicadores de C&T da Secretaria Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação. “As pesquisas beneficiaram apenas os grandes e médios produtores, com maior capacidade de aproveitar os conhecimentos tecnológicos”, disse. Cuba realizou um esforço ainda mais abrangente de avaliação dos resultados sociais dos investimentos em ciência e tecnologia, avaliando as áreas de educação, saúde, trabalho, alimentação, cultura, esporte e recreação. “Também foi considerado o impacto da inovação na balança comercial do país”, diz Armando Rodriguez, representante do Ministério de Ciência, Tecnologia e Meio Ambiente de Cuba. Rodriguez cita o caso da vacina contra a bactéria Haemophilus influenzae, desenvolvida no país, que, além de imunizar 99,7% das lactantes cubanas, resultou numa economia de US$ 1,7 milhão com importação do medicamento. •


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CIÊNCIA

L ABORATÓRIO

MUNDO

Estranho no ninho A já excêntrica família dos mésons – partículas subatômicas formadas por um quark e um antiquark – ganhou um novo e estranho membro, que quebra as regras. Foi descoberto no Laboratório Acelerador Nacional Fermi (Fermilab), Estados Unidos, por uma equipe com 125 físicos de 21 instituições de todo o mundo, incluindo seis brasileiros, de quatro instituições: Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (Rio de Janeiro), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal da Paraíba. Diferentemente de seus parentes, que quanto mais massa têm menos tempo vivem, o méson recém-descoberto é pesado e vive três vezes mais

■ Medo e esperança na

luta contra a malária

FERMILAB

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Colisão atômica: quando os mésons se formam ou se transformam em outras partículas

Numa vila ao sul de Camarões, na África, foi descoberta uma nova forma do mosquito transmissor da malária, batizada de Oveng, em referência ao local onde foi detectada (Journal of Medical Entomology). A descoberta torna ainda mais difícil a luta contra a doença: com essa, são quatro as espécies conhecidas em território africano, todas resistentes aos medicamentos capazes de deter a malária, que na África causa cerca de 300 milhões de casos graves e 1 milhão de mortes por

antes de se transformar em outras partículas. A vida média de um méson é de 10-24 segundos, equivalente ao tempo que a luz demora para atravessar um próton, um dos tipos de partícula do núcleo atômico. O novo méson decai seis vezes mais rapidamente que o esperado, transformando-se numa partícula eta (outro raro integrante da família), chamada méson K. “É como observar um balde de água com um pequeno furo no fundo”, comparou o porta-voz do projeto, James Russ. “Por alguma razão, a água sai pelo buraco pequeno seis vezes mais rápido do que a velocidade com que entra pelo buraco grande. Algo muito estranho deve estar acontecendo dentro do balde.”

ano. Em contrapartida, na Guiné, um levantamento sobre o impacto da educação sanitária na prevenção da malária mostrou a importância da procura por tratamento em locais como hospitais, e não curandeiros. O estudo, publicado no Proceedings of the National Academy of Science (PNAS), deixa claro: o fato de receber orientação formal sobre a doença é crucial para a prevenção. Mesmo entre os moradores que não contam sequer com banheiro, a opção pelo tratamento convencional facilita a prevenção e reduz as mortes.


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O futuro cheio de furos deriam ser usados para filtrar água potável do mar, para carregar moléculas es-

Milhares de unidades como esta formam poros artificiais: filtros ou canais sob medida

■ Vantagens do

■ Um afrodisíaco

banho de sol

bem guardado Pesquisadores dos Estados Unidos e da Nova Zelândia descobriram a molécula que transporta e protege o feromônio – hormônio sexual – das fêmeas dos elefantes asiáticos, uma espécie em perigo, da qual restam poucos milhares de indivíduos. Já se sabia que as fêmeas liberam o feromônio pela urina, que o ma-

mos agora criar uma variedade quase ilimitada de poros, de diferentes formas e tamanhos, usando aminoácidos naturais ou sintéticos”, comentou o químico Virgil Percec, coordenador do estudo, publicado na edição de 12 de agosto da Nature. As células não existiriam sem os poros, por meio dos quais entram nutrientes e saem resíduos ou substâncias para outras células.

cho toca com a ponta da tromba e leva à boca, acionando o comportamento reprodutivo. Mas como o feromônio resiste a tantos ambientes diferentes, da urina ao interior do nariz, até ocorrer o acasalamento? Uma equipe coordenada por Josef Lazar, da Universidade de Columbia, Estados Unidos, verificou que boa parte do hormônio sexual liberado na urina está ligados à albumina, uma pro-

teína encontrada no soro sangüíneo. Especificamente, de acordo com o estudo publicado em agosto na Chemistry & Biology, é a albumina de soro de elefante (ESA) que transporta o feromônio do soro à urina e estende seu tempo de vida, facilitando sua detecção pelos machos. O complexo ESA-feromônio se desfaz com a acidez da tromba, em um mecanismo ainda sem similar entre os mamíferos.

Preliminares: fêmea libera na urina feromônio que chega à tromba do macho

EDUARDO CESAR

Não se sabe bem por que os peixes primitivos decidiram se arrastar dos pântanos para a terra seca, em um movimento que teria originado todos os outros vertebrados. Já se disse que poderia ser uma forma de escapar de predadores, mas agora Robert Carroll, da Universidade McGill, do Canadá, associa essa transição a banhos de sol: muito antes dos crocodilos, os ancestrais dos peixes de 365 milhões de anos já se refestelavam ao sol, conseguindo energia que os tornava mais ágeis – e assim teriam se tornado predadores mais astutos (New Scientist, 4 de agosto). Carroll calculou a energia solar que os tetrápodes – animais semelhantes a peixes que rastejaram até terra firme – poderiam absorver: em duas ou três horas, podiam se aquecer a até 35ºC. “Eles não tinham de comer para obter energia, bastava ficar lá, estendidos”, diz.“Ao sol, os processos metabólicos dobram.” Essa a mesma estratégia usada hoje pelos crocodilos antes de mergulhar.

pecíficas através das membranas das células ou em novos medicamentos.“Pode-

UNIVERSIDADE DE PENSILVÂNIA

Químicos e físicos da Universidade da Pensilvânia, Estados Unidos, anunciaram a criação de uma biblioteca de moléculas que podem se unir e formar estruturas ocas capazes de imitar os poros das estruturas dos seres vivos. Formados por pequenas cadeias de aminoácidos chamadas peptídeos, que se unem por meio de projeções semelhantes a braços, os tubos ou canais po-

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BRASIL

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O mar de água doce que todo ano cobre a bacia Amazônica, o maior reservatório de água doce do planeta, modifica a força gravitacional da Terra. Em época de cheia, especialmente de fevereiro a maio, há mais água, portanto mais massa, e a força da gravidade é maior. Nos outros meses do ano, quando a água se espalha, a força gravitacional diminui, demonstrando o efeito direto da água sobre o campo de gravidade da Terra. Com base nas informações colhidas pelos satélites gêmeos Grace (Gravity Recovery and Climate Experiment), em órbita há dois anos, engenheiros da Universidade do Texas, em Austin, Estados Unidos, mediram as sutis variações da gravidade do planeta e descreveram mês a mês as variações desse campo ao longo da bacia do Amazonas (Science, 23 de julho). O trabalho deve ajudar a avaliar mudanças do clima e a mapear depósitos de água, que evaporam, condensam, congelam e derretem, atraindo ou afastando a mais tênue das forças da natureza.

SETEMBRO DE 2004

cessárias são um problema de saúde pública, porque o custo do parto cesariana é muito maior do que o do parto normal”, diz José Guilherme Cecatti, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e um dos autores do estudo, publicado em The Lancet. Foram analisados 149.276 partos, realizados em 18 hospitais da Argentina, oito do Brasil, quatro de Cuba, dois da Guatemala e um do México. No Brasil, segundo Cecatti, a redução

Quando um médico considera a opinião de outro médico há menos cesáreas. Em cinco países da América Latina, incluindo o Brasil, diminuiu em 7,3% o total de partos desse tipo após a implantação de uma política que incentiva os médicos a ouvirem uma segunda opinião sempre que uma cesárea não emergencial fosse indicada. Embora pequena, essa redução demonstra a possibilidade de aplicação dessa proposta em conjunto com outras medidas que visem ao maior controle desse procedimento, que representa de 25% a 30% de todos os partos na América Latina. “As cesáreas desne-

foi maior do que nos outros países, mas “os resultados provavelmente não têm poder estatístico suficiente”, já que a amostra foi calculada para o total de hospitais, não para cada um, isoladamente. Segundo ele, os médicos “avaliaram cada caso mais detalhadamente” ao saberem que havia um guia que poderiam consultar para verificar as situações que indicassem cesárea e por saberem que um segundo obstetra daria a opinião.

Aleijadinho, Nossa Senhora do Rosário MIGUEL BOYAYAN

L ABORATÓRIO altera gravidade

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Menos cesáreas nos hospitais

■ Água da Amazônia

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■ Coral precioso em

águas profundas Biólogos do Rio de Janeiro identificaram um novo tipo de coral nas águas profundas do litoral brasileiro: é o Corallium medea, uma espécie do gênero conhecido como coral precioso ou coral vermelho, bastante empregado na fabricação de anéis, pulseiras e colares, encontrado em profundidades de 380 a 500 metros

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no banco oceânico Almirante Saldanha, entre o Espírito Santo e o Rio de Janeiro. É o primeiro registro dessa espécie no Atlântico Sul, abundante no litoral da Flórida, Estados Unidos, parcialmente dominado por outra espécie, a Lophelia pertusa. Sua descoberta, relatada na revista Zootaxa, resulta das expedições realizadas no âmbito do projeto Recursos Vivos da Zona Econômica Exclusiva (Revizee),

um amplo levantamento dos recursos marinhos da costa brasileira. Amostras de colônias e fragmentos trazidas dessas viagens – as maiores com quase 30 centímetros de altura, 15 de largura e 5 de profundidade – foram identificadas pela equipe de Clovis Castro, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Segundo ele, a coloração branca da C. medea diminui seu potencial


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MUSEU NACIONAL UFRJ

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Estruturas de sustentação (escleritos) do coral precioso, em microscopia eletrônica: raridade nas profundezas do mar brasileiro

■ As causas da

rebeldia infantil Quem tem filhos ou trabalha com estudantes sabe o quanto é difícil lidar com crianças e adolescentes com idade entre 7 e 14 anos. No entanto, desatenção, desobediência, falta de interesse e de educação, que tantas vezes tiram os adultos do sério, podem ser produto não da irreverência e rebeldia, comuns à idade, mas de algum transtorno psiquiátrico. Um em cada oito estudantes de 7 a 14 anos apresenta ao menos um distúrbio emocional – os mais comuns são os transtornos de conduta, ansiedade, fobias, déficit de atenção ou hiperatividade e depressão – de acordo com um levantamento feito com 1.251 estudantes de 22 escolas pú-

blicas (urbanas e rurais) e de quatro escolas privadas de Taubaté, São Paulo. O estudo, publicado no Journal of the American Academy of Child and Adolescent, indica que a maior incidência de transtornos ocorreu entre os estudantes das escolas públicas. “Ainda não se sabe exatamente o motivo, mas populações mais carentes têm mais risco de desenvolver transtornos mentais”, diz a psiquiatra infantil Bacy Fleitlich Bilyk, pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) e co-autora do trabalho, feito em conjunto com Robert Goodman, do King’s College, de Londres. Se esse estudo chegou a uma proporção de 12,7% de crianças e adolescentes com algum problema psiquiátrico, levantamentos similares feitos no Reino Unido indicam que por lá a taxa é menor (9,7%). “A baixa escolaridade dos pais, com a conseqüente dificuldade de detectar problemas dos filhos, e a falta de apoio de uma rede social podem ser alguns dos fatores que expliquem essa situação.” Para Bacy, o estudo alerta para a urgência em estruturar uma rede de atendimento psiquiátrico a crianças e adolescentes. “Hoje não existe no Brasil

um planejamento para a saúde mental infantil”, comenta a pesquisadora.“Crianças consideradas chatas ou mal-educadas às vezes precisam de tratamento, e custaria pouco ao governo treinar agentes de saúde e mesmo pais e professores para ao menos detectar esses problemas.”

■ Perigo, vermes

em cima do sofá Que tal ficar um pouquinho mais longe de seu bichano predileto? Quase nove em cada dez gatos têm pelo menos MIGUEL BOYAYAN

de comércio.“Os corais preciosos possuem esqueletos internos geralmente na cor vermelha, rosa, cor coral ou branca”, diz Castro. “As espécies mais valorizadas são as de esqueleto avermelhado”. Os bancos de corais de profundidade – no Brasil pode haver outros, além desse no litoral sudeste – podem se estender por centenas de quilômetros, com 10 a 15 metros de altura.

Nove em dez têm parasitas: crianças, lavem as mãos

um parasita gastrointestinal e, “quanto mais jovem o gato e maior a carga parasitária, maiores riscos de doenças graves e fatais”, diz Norma Labarthe, da Universidade Federal Fluminense (UFF), uma das instituições que participaram desse estudo, publicado na Veterinary Parasitology. Até chegarem a essas conclusões, os pesquisadores da UFF, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e da Universidade da Pensilvânia, Estados Unidos, fizeram a necropsia de 135 gatos da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, 99 deles capturados em áreas públicas e 36 em abrigos de animais. Outro problema – talvez o mais importante – é que não só os felinos perdem por alojarem vermes como o Dipylidium caninum e o Ancylostoma braziliense: as fezes contaminadas podem causar problemas nos intestinos, nos olhos e na pele principalmente de crianças. Para amenizar o problema, Norma recomenda limpeza das casas e dos abrigos de gatos e o controle das populações de animais sem dono nas ruas, que facilitam a transmissão dos parasitas. Estima-se que no Brasil haja de 10 milhões a 14 milhões de gatos.

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CAPA SAÚDE MENTAL

OavessodeNarciso Mais comum entre jovens, a preocupação excessiva com o corpo pode levar à bulimia e à anorexia

E

R ICARD O Z ORZET TO

A

estonteante perfeição física do deus grego Apolo não lhe garantiu uma vida amorosa feliz: esse galã mitológico era sistematicamente rejeitado por outras divindades ou mesmo pelos mortais comuns. Mesmo sem a garantia implícita de que as formas harmoniosas assegurem a aceitação social, homens e mulheres, tão logo aprendem a reconhecer a própria imagem no espelho, perseguem o ideal de beleza física do momento – hoje marcado pela cintura fina, as pernas esguias e o corpo quase esquálido das modelos Gisele Bündchen e Ana Hickmann ou o tronco musculoso à la Brad Pitt ou, entre os nacionais, Reynaldo Gianecchini. Mais comum entre as mulheres, a insatisfação com o corpo real – e a busca da forma idealizada – começa a ser mapeada por uma equipe do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP). Os pesquisadores investigaram o que 700 estudantes de ambos os sexos da área de saúde, com idade entre 17 e 26 anos, pensavam a respeito do próprio corpo. Resultado: três de cada quatro deles desaprovavam sua aparência física e se incomodavam muito com detalhes, como o excesso de gordura na cintura, a celulite no bumbum ou o nariz adunco. Realizado com alunos de 11 uni34

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versidades distribuídas por São Paulo, Goiás, Rio de Janeiro e Minas Gerais, o estudo revelou ainda que 80% mudariam características do corpo para melhorar a aparência. Até aí, nada de extraordinário em uma época na qual os outdoors alardeiam as cirurgias plásticas, que podem até mesmo ser pagas em parcelas. Seria normal não fossem dois detalhes. Primeiro: de cada dez alunos, nove estavam longe de ser obesos – o peso de 65% deles era considerado saudável para a idade e a altura e 22% eram magros. Segundo, e mais grave: 13% dos entrevistados afirmaram provocar vômitos, tomar laxantes ou usar diuréticos após comer com o objetivo de não engordar. Embora não permitam o diagnóstico final, essas constatações indicam que essas pessoas correm sério risco de desenvolver um distúrbio alimentar grave: a bulimia nervosa, a ingestão incontrolável de comida em exagero, seguida da tentativa de se livrar do excesso de alimento. “Esperávamos encontrar um índice de sinais de bulimia muito menor nesse grupo, em tese formado por pessoas que sabem cuidar melhor da própria saúde e que correm risco menor de desenvolver distúrbios alimentares”, afirma a psicóloga Mara Cristina Souza de Lucia, coordenadora do estudo, parte do projeto Distúrbios Alimentares e Obesidade do Hospital das Clínicas,

REPRODUÇÃO: VICENTE DO REGO MONTEIRO 1899-1970 / MAM-SP

M ARILI R IBEIRO


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Mulher diante do espelho, Vicente do Rego Monteiro, 1922


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REPRODUÇÃO: O MUNDO DOS MUSEUS

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As Banhistas, Auguste Renoir, 1918-1919

que há seis anos investiga a relação das pessoas com a alimentação e a autoimagem. “Se é assim na área de saúde, pode ser ainda pior entre os jovens estudantes de outras áreas.” Da bulimia à depressão - Não se sabe ao certo quantos portadores de bulimia há hoje no país. Mas calcula-se que 2,4% das mulheres adultas – e uma parcela oito vezes menor de homens, apenas 0,3% – desenvolvam bulimia ao longo da vida, de acordo com o estudo de Laura Andrade, Valentim Gentil e Ruy Laurenti, todos da USP, publicado em 2002 na Social Psychiatry and Psychiatric Epidemiology. “É difícil conhecer a prevalência nacional desse distúrbio porque existem microcosmos distintos nas diferentes regiões brasileiras”, diz Táki Cordás, do Instituto de Psiquiatria da USP. “Como pode ser desencadeada ou sustentada por fatores sociais e culturais, a bulimia aparece em freqüências distintas nas diferentes populações”, diz o psiquiatra, coordenador do Am36

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bulatório de Bulimia e Transtorno Alimentares (Ambulim), o maior centro de estudos e tratamento de transtornos alimentares da América Latina. A insatisfação com o corpo, embora seja mais elevada entre os adolescentes e os jovens adultos, surgindo por volta dos 15 anos, também é comum entre as pessoas mais maduras. Em uma pesquisa anterior, publicada em 2003, a equipe de Mara Cristina avaliou 346 pessoas de diferentes regiões do Estado de São Paulo com o objetivo de identificar sintomas de insatisfação com o corpo e os prejuízos que esse incômodo provocava. Todos os participantes – metade homens e metade mulheres – eram saudáveis e tinham de 18 a 74 anos de idade. A conclusão, porém, não foi muito diferente da do trabalho anterior: embora a maior parte estivesse com o peso dentro dos limites aceitáveis, 80% delas se incomodavam com alguma parte do corpo, queixa compartilhada por 57% dos homens. Para pouco mais da metade dessas pessoas, a

preocupação com a aparência gera frustração, ansiedade e depressão. Há também uma perda social. Quase um em cada cinco entrevistados afirmou perder eventos sociais, atrasar-se no trabalho ou não comparecer a aulas por se sentir pouco atraente. Parcela semelhante disse que a aparência causava problemas no trabalho ou em relacionamentos. O arsenal de métodos para controle de peso inclui, nos últimos anos, frenética atividade física, chegando até a provocar prejuízos sociais e psiquiátricos, como demonstra o estudo de Sheila Assumpção, Táki Cordás e Luiz Armando Araújo, publicado na Revista de Psiquiatria Clínica. Os pesquisadores avaliaram 47 adultos de ambos os sexos, inscritos no Ambulim para tratar distúrbios alimentares. Cerca de 34% dos voluntários exageravam nos exercícios e passavam mais de duas horas por dia na academia. Longe dos tempos em que era alardeada com espanto – e até mesmo creditada aos problemas com o marido in-


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REPRODUÇÃO: THE BOOK OF ART, VOLUME 7

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A Sunday Afternoon on the Island of La Grande Jatte, Georges Seurat, 1885

fiel, como no caso de Lady Di, a princesa de Gales, morta em 1997 em um acidente de carro em Paris –, a bulimia parece ser diagnosticada hoje com mais freqüência nos consultórios médicos. “Há indícios de que os transtornos alimentares associados à insatisfação com o corpo sejam crescentes não só no Brasil, mas no mundo todo”, diz Cordás. Um registro da naturalidade com que as pessoas, em especial as adolescentes, provocam vômitos após se alimentarem em excesso aparece no premiado documentário Elefante, do cineasta Gus Van Sant, vencedor da Palma de Ouro de 2003 em Cannes. Em uma das cenas do filme, sobre a violência no cotidiano de uma escola norte-americana de classe média, garotas fartam-se de hambúrgueres e batatas fritas no refeitório da escola e, tão logo tomam consciência do ato, correm para o banheiro na tentativa de evitar as conseqüências do abuso. Disparado por uma conjunção de quatro fatores – genéticos, sociais, culturais e psicológicos –, esse distúrbio

alimentar provavelmente tem origem orgânica no mau funcionamento de áreas cerebrais relacionadas à imagem mental que cada pessoa tem de si mesma, ainda não mapeadas por psiquiatras e neurologistas. De modo também não completamente compreendido, os distúrbios alimentares como a bulimia e a anorexia nervosa – esta mais rara que a primeira e caracterizada por uma espécie de aversão à comida por receio de engordar – aparecem associados à insatisfação com o corpo, alimentada no último século pela exposição contínua aos padrões de beleza estampados em jornais, revistas e programas de televisão ou mesmo em anúncios de medicamentos e cosméticos. No primeiro semestre deste ano, a exposição O preço da sedução exibiu no Itaú Cultural, em São Paulo, as variadas formas de sacrifício a que as mulheres recorreram ao longo do século 20 para se adequarem ao padrão de beleza de cada década. Utilizado há cerca de cem anos para deixar a silhueta feminina em forma de S, o

espartilho, uma cinta de tecido que ia dos quadris aos seios e comprimia a cintura a ponto de causar falta de ar, cedeu lugar recentemente às cirurgias plásticas estéticas, que esculpem o corpo com bisturi e implantes de silicone ou pela retirada de gorduras localizadas. Beleza à venda - A ânsia pelo físico ideal, hoje bem menos roliço do que os corpos das musas de pintores e escultores da Renascença, continua amplamente difundida pelos meios de comunicação. Não há no país levantamentos do número de publicações voltadas ao culto ao corpo, mas basta uma visita à banca de jornal mais próxima para se perceber o domínio de revistas e livros sobre dietas, forma física e cirurgias plásticas. Apenas no primeiro semestre deste ano, as principais revistas semanais de interesse geral dedicaram diversas reportagens de capa ao potencial transformador das operações que remodelam o corpo. Há por trás do culto ao físico bem definido, seja esculpido com PESQUISA FAPESP 103

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FOTO EDUARDO CESAR

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Como se alimenta o desejo de emagrecer Meios de comunicação reforçam ideal de beleza que nutre os transtornos alimentares

3 Receitas prontas

2 Emagrecer, a solução Perder peso continuamente – e ter um corpo mais belo – significa aceitação social e felicidade

1 Problemas preexistentes e vulnerabilidades

Jornais, revistas e televisão apresentam soluções da moda – manuais, cirurgias e dietas – para moldar o corpo rapidamente

Frustrações e cobranças sociais acionam os mecanismos que levam à anorexia e à bulimia

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5

Efeito fugaz

Desilusão Apesar do esforço, os problemas mais profundos persistem. Como resultado, afloram o fracasso, a vergonha e a culpa

Num primeiro momento, perde-se peso e, com o corpo refeito, acredita-se que as insatisfações e frustrações desaparecerão

Adaptado de Marleen Williams, Eating Behavior, Looking for an accurate Mirror

dietas à base de remédios e muita malhação, seja por bisturis em salas cirúrgicas, toda uma complexa rede de lucros capaz de movimentar bilhões de reais por ano. Envolve em graus diversos desde os meios de comunicação e as academias de ginástica até a indústria farmacêutica, as clínicas e os médicos especializados em plásticas estéticas. Afinal, nunca tantos tiveram tanto acesso a recursos para moldar seus corpos a seu bel-prazer em condições 38

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tão atraentes, em alguns casos com pagamentos parcelados. Dados da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) indicam que a cada ano cerca de 500 mil pessoas se submetem a plásticas no Brasil, numa espécie de Narciso às avessas, em que, em vez de adorar o corpo que se tem, vêem nele apenas os defeitos. O país só perde para os Estados Unidos, líder em número de cirurgias estéticas. Segundo Osvaldo Saldanha, secretário-geral da

SBCP, estima-se que o número de cirurgias aumente de 20% a 30% por ano – ou cinco vezes mais, nos últimos cinco anos, tratando-se do implante de silicone nos seios. Nos Estados Unidos, a Sociedade Americana de Cirurgiões Plásticos (ASPS, na sigla em inglês) contabilizava 400 mil cirurgias estéticas no país em 1992. Dez anos mais tarde, esse número saltou para 6,6 milhões – um crescimento astronômico de 1.600% ou 16 vezes.


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Abadogu, Gustavo Rosa, 2003

REPRODUÇÃO

Pôr silicone para aumentar o volume dos seios, das nádegas ou da batata da perna. Extrair por meio de lipoaspiração as gordurinhas indesejadas da cintura ou das coxas mais rechonchudas. Apagar do rosto os vincos dos anos vividos. Enfim, esculpir o próprio corpo, dando-lhe os contornos sonhados, já virou assunto de programa popular de televisão em horário nobre. Na segunda semana de julho, o Programa do Ratinho, no SBT, expôs mulheres, ao vivo, na mesa de cirurgia, enquanto médicos falavam dos benefícios dessas operações. Mas esse não é fenômeno apenas nacional. Na tradicional rede norte-americana ABC, desde o final de 2002 o programa Extreme makeover mostra a transformação de pessoas antes pouco glamourosas em deuses esculturais – sem se privar de exibir o período seguinte à operação, repleto de inchaços, hematomas e queixas de dor. Na opinião de Cordás, é incontestável a influência dos meios de comunicação sobre o descontentamento com o próprio corpo e o desejo de consertar os pequenos defeitos. Mas os mecanismos exatos de como a mídia estimula o comportamento que conduz aos transtornos alimentares ainda não estão definidos. Em um estudo publicado em 2003 na Eating Behavior, a equipe coordenada por Marleen Williams, da Brigham Young University, nos Estados Unidos, entrevistou 28 mulheres na tentativa de compreender a influência dos meios de comunicação no desenvolvimento da anorexia e propôs o seguinte modelo: disparado por vulnerabilidades preexistentes, inicia-se um processo cíclico em que os distúrbios alimentares levam à busca do controle do peso. Atormentada por pensamentos desagradáveis, a pessoa busca informações nos meios de

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O PROJETO Exercício físico e sua relação com os transtornos alimentares: síndrome ou sintoma? MODALIDADE

Linha Regular de Auxílio à Pesquisa (FAPESP) COORDENADOR

TÁKI ATHANÁSSIOS CORDÁS – Instituto de Psiquiatria (USP) INVESTIMENTO

R$ 8.838,13

comunicação para resolver o problema e neles encontra a ilusão de controle da situação. Mas a incapacidade de resolver o problema real gera sentimentos de culpa e vergonha, que realimentam a expectativa de perder peso. Em uma pesquisa anterior, publicada em 2002 no British Journal of Psychiatry, a equipe de Anne Becker, da Escola Médica da Universidade Harvard, Estados Unidos, analisou como a televisão interfere nos hábitos alimentares de adolescentes. Descobriram o ambiente ideal para esse estudo nas ilhas Fidji, onde os primeiros canais de televisão surgiram em 1995, trazendo a essa comunidade do Oriente os hábitos ocidentais. Dividido em duas etapas, o trabalho investigou, entre outros aspectos, a prática de dieta entre as garotas da comunidade – elas tinham cerca de 16 anos na época dos levantamentos – com o objetivo de emagrecer. Praticamente inexistentes antes de 1995, os regimes haviam sido praticados três anos após a introdução da tevê no arquipélago por sete de cada dez adolescentes que participaram da pesquisa – a maior parte delas com peso considerado saudável para a idade e a altura. “A busca do corpo idealizado pela moda pode ter um sentido de proteção, pode ser uma forma de buscar amor e aceitação”, diz o psicólogo Niraldo de Oliveira Santos, da equipe do Hospital das Clínicas. “Acredita-se que o olhar do outro só vai nos apreciar se estivermos atendendo às especificações do momento”, comenta. O problema é que nem mesmo Apolo conseguiu, talvez porque o amor não esteja intrinsecamente relacionado às medidas de uma Miss Universo. • PESQUISA FAPESP 103

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CIÊNCIA

AGRONOMIA

Degenes

e plantas

anã s

Genoma da bactéria Leifsonia xyli fornece pistas sobre o raquitismo da cana-de-açúcar

E

m época de seca, quando há pouca água disponível, a cana-de-açúcar, como a maioria das plantas, lança mão de um expediente para garantir sua sobrevivência: pára de crescer. Para minimizar os efeitos do estresse hídrico, permanece quase dormente e desencadeia uma série de mecanismos de autodefesa. Fecham-se, por exemplo, os estômatos de suas folhas, que funcionam como poros responsáveis pela entrada e saída de gases e água da planta. Um dos principais hormônios envolvidos nesse processo de adaptação à estiagem é o ácido abscísico (ABA), produzido naturalmente pela cana. Estudos recentes indicam que o ABA também inibe a expressão de genes de defesa da planta, tornando-a mais suscetível a patógenos. Tudo isso é sabido, está nos livros e artigos científicos de fisiologia vegetal. Novidade é descobrir que uma bactéria nociva à cana, a Leifsonia xyli da subespécie xyli, também parece ser capaz de produzir esse hormônio e talvez usá-lo para provocar uma doença conhecida como raquitismo-das-soqueiras, para a qual não há cura. A suspeita surgiu depois que pesquisadores de São Paulo terminaram de seqüenciar o genoma integral da bactéria – que gerou um artigo científico publicado em agosto com destaque de capa na revista norteamericana Molecular Plant-Microbe Interactions – e começaram a analisar a função de alguns de seus 2.351 genes. Há indícios de que a ação de um gene, denominado desA, leve a Leifsonia a produzir ácido abscísico no interior da cana. Se essa hipótese estiver correta, o raquitismo-das-soqueiras, que redunda em plantas de porte reduzido e com peso até 50% menor, pode ser desencadeado pelas altas concentrações do hormônio produzido pela bactéria no interior da cana. É como se o ácido abscísico sintetizado pelo fitopatógeno mandasse permanentemente um sinal para a planta de que há pouca água disponível no ambiente e o melhor a fazer é parar de crescer. De quebra, o ABA ainda desativa os genes de defesa da cana, criando condições ideais para a bactéria se multiplicar. “Até agora não há registro de uma bactéria de planta que produza esse hormônio”, afirma o pesquisador Luis Eduardo Aranha Camargo, da Escola Superior de Agricultura

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Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), um dos coordenadores do projeto que seqüenciou o genoma da bactéria.“Mas testes in vitro indicam que a Leifsonia produz o ácido abscísico e esse dado pode ser importante para entendermos a sua patogenicidade.” O passo seguinte é comprovar se, dentro da cana, a bactéria realmente produz o hormônio e estabelecer uma ligação entre o ácido e a doença na planta. Feita no âmbito da rede de Genomas Agronômicos e Ambientais, mantida pela FAPESP, a iniciativa que mapeou o genoma do fitopatógeno custou US$ 700 mil. A FAPESP entrou com US$ 650 mil e a cooperativa Copersucar com US$ 50 mil. Além de levantar a questão do ácido abscísico, o seqüenciamento do genoma da Leifsonia – composto de um cromossomo circular com 2,6 milhões de pares de bases, as unidades químicas que formam o DNA – produziu outras informações importantes para entender o comportamento do fitopatógeno. Os pesquisadores constataram que 13% dos genes da bactéria são, na verdade, pseudogenes: 307 dos 2.351 genes estão truncados, incompletos.“Essas alterações podem fazer os genes perderem a sua função”, diz a pesquisadora Claudia Barros Monteiro Vitorello, da Esalq-USP, outra coordenadora do projeto. Nenhum outro fitopatógeno apresenta quantida-


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LUIS EDUARDO ARANHA CAMARGO

FOTOS PAULO ROBERTO GAGLIARDI E ELLIOT KITAJIMA/ESALQ-USP

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A Leifsonia xyli (acima) infecta os vasos do xilema da cana (foto maior): hormônio da bactéria pode ser a causa da doença

Efeitos do raquitismo: cana infectada (à esq.) tem distância menor entre os nós do caule e pode pesar apenas a metade de uma planta sadia (à dir.)

de tão elevada de genes aparentemente não-funcionais. De tamanho semelhante ao da Leifsonia, o genoma da Xylella fastidiosa – bactéria que causa a clorose variegada dos citros (CVC), doença conhecida como amarelinho nos laranjais – apresenta apenas 2% de pseudogenes.

P

ode até ser que os 307 genes incompletos da Leifsonia não sirvam mais para nada, sejam um entulho genético, mas os cientistas acreditam que eles tenham um significado. São um indício de que a bactéria passa por um processo chamado decaimento genômico. Genes que já foram úteis – e agora não são mais – perdem progressivamente a sua integridade e funcionalidade. Por que isso ocorre? Possivelmente porque a bactéria, ao longo de sua evolução biológica, mudou a sua forma de viver e hoje não precisa manter intactos tantos genes como no passado. A Leifsonia xyli da subespécie xyli é um microorganismo que se especializou em viver num único lugar: nos vasos do xilema da cana, a parte da planta encarregada do transporte de água e sais minerais das raízes para a copa. Fora desse hábitat, não se encontra o patógeno. Portanto, genes fundamentais para a preservação de

bactérias que vivem ao ar livre não são um item de primeira necessidade para a bactéria da cana. “Ela não precisa mais de muitos de seus genes”, comenta Aranha. Essa hipótese também está sendo testada por meio da comparação da Leifsonia xyli subespécie xyli com espécies próximas que são de vida livre. Para se defender do ataque de outros microorganismos que habitam o xilema da cana, a Leifsonia parece dispor de um mecanismo capaz de ejetar de seu organismo toxinas produzidas por outros organismos que colonizam a cana, como a bactéria patogênica Xanthomonas albilineans. Aliás, a própria Xanthomonas tem uma “bomba” que expulsa venenos lançados por outros seres. Esse traço comum pode explicar a convivência das duas bactérias no interior da planta. A longo prazo, a meta dos pesquisadores é entender como o sistema de proteção presente na Leifsonia e na Xanthomonas funciona – e quais genes estão envolvidos nesse mecanismo.“No futuro, talvez possamos alterar geneticamente a cana e dotála de uma bomba bacteriana que expulse toxinas produzidas por microorganismos que a atacam”, diz o engenheiro agrônomo Reinaldo Montrazi Barata, da Esalq. Assim, poderia surgir uma variedade da planta mais resistente a doenças. • PESQUISA FAPESP 103

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CIÊNCIA

BIOLOGIA MOLECULAR

Enciclopédia de genômica Obra de 1.200 páginas, escrita por uma centena de cientistas do Brasil, é referência sobre o tema

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scrito ao longo de dois anos por um conjunto de 113 cientistas, quase todos brasileiros, um catatau de 1.200 páginas chega às livrarias para se tornar uma obra de referência técnica quando o assunto for o vasto mundo da genômica, ramo da genética molecular que, como um polvo de incontáveis tentáculos, estende seus inúmeros braços por múltiplas áreas da biologia. Simplesmente intitulado Genômica, o livro, que custa cerca de R$ 200,00 e foi publicado pela editora Atheneu, faz uma revisão de tudo o que, desde os anos 1950 até hoje, diz respeito ao tema. É o que se costuma chamar uma obra de peso – e isso não tem nada a ver com seus 3,7 quilos. “É um trabalho enciclopédico, inédito, que integra a genômica

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a questões básicas de natureza médica, agrária e ambiental”, afirma o veterano geneticista Francisco Mauro Salzano, professor emérito da Universidade do Rio Grande do Sul (UFRGS), autor do prefácio do livro e um de seus editores. “Em português, é o livro mais completo sobre o tema.” Como salienta Salzano, a obra não se limita a temas relacionados ao genoma do homem e à utilização desse conhecimento na pesquisa em saúde ou na clínica médica. Técnicas e conceitos da biologia molecular empregadas para o estudo de plantas e animais também encontram farto espaço no livro. Qualquer metodologia ou tema que tenha surgido nas últimas décadas é esmiuçado em Genômica, um trabalho feito por pesquisadores de dez esco-


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ILUSTRAÇÃO HELIO DE ALMEIDA

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las médicas e 12 institutos de pesquisa de todo o país. “Médicos, biólogos, farmacêuticos, nutricionistas, engenheiros agrônomos, geneticistas clínicos, todos foram agregados à obra em torno de um eixo comum – genômica – como nova fronteira do conhecimento humano”, afirma Luís Mir, pesquisador da área de saúde e organizador do livro. “Foi um esforço coletivo. Sabíamos que estávamos quebrando um paradigma, como autores de um novo tipo de livro científico, como massa crítica multiprofissional e multidisciplinar.” Nada de relevante escapou aos olhos dos editores. Clonagem, biotecnologia, transgênicos, células-tronco, bioinformática, proteômica, terapia celular, esses e muitos outros tópicos são abordados em um dos mais de 50 capítulos do livro. Quer saber o que são vacinas gênicas? Leia o capítulo 23, que começa na página 463. Interessado em farmacogenômica? Capítulo 32, página 663. A história dos projetos Genoma no Brasil é contada por José Fernando Perez, diretor científico da FAPESP, e dois cientistas do Instituto Ludwig de Pesquisa so-

Livro Genômica: biologia molecular integrada a questões básicas de natureza médica, agrária e ambiental

bre o Câncer, Andrew Simpson e Juçara Parra no capítulo 54. No final de Genômica há ainda um glossário que explica de forma sucinta o significado de conceitos comumente utilizados por profissionais da área de biologia molecular. Pelo seu caráter de obra técnica de consulta, Genômica não é um produto editorial destinado ao público em geral. “O livro é dirigido para estudantes da área de ciências biológicas e medi-

cina”, opina Mayana Zatz, coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP). Sozinha, Mayana escreveu um capítulo do livro dedicado à genômica das doenças neuromusculares e neurodegenerativas. Em conjunto com Luís Mir, redigiu ainda dois textos sobre ética entre os geneticistas, na medicina, na ciência e na política científica. Para a pesquisadora, o fato de a obra ter sido feita por cientistas nacionais deve ser ressaltado. “Isso dá uma idéia da abrangência das pesquisas hoje em curso no Brasil”, afirma Mayana. Devido à sua contribuição para o desenvolvimento de alguns ramos da genômica, como os estudos sobre a biologia molecular de fitopatógenos e sobre genética e câncer, o país passou a ser respeitado internacionalmente nessa competitiva área do conhecimento humano. • PESQUISA FAPESP 103

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CIÊNCIA

HOMENAGEM

O físico da

biologia Francis Crick, um dos descobridores da estrutura do DNA e do código genético, explorou ao máximo a liberdade de fazer ciência

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ronia ou não, o autor de algumas das mais importantes contribuições para a biologia no último século não era originalmente biólogo. Francis Harry Compton Crick nasceu em 8 de junho de 1916 em Northampton, região central da Inglaterra, e graduou-se em física no University College, em Londres, em 1937. Nos anos seguintes, Crick realizou pesquisas em hidrodinâmica e, durante a Segunda Guerra Mundial, projetou minas acústicas e magnéticas no Laboratório de Pesquisas do Almirantado, da Marinha Real Britânica. Mas o mesmo interesse profundo pelos mistérios da natureza que levou Crick a estudar física o faria dar uma guinada em sua carreira científica rumo à biologia.

Olhar amigo: o pesquisador, fotografado pelo geneticista Joshua Lederberg


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Ao longo de sua vida, Crick mostrou-se um pesquisador muito pouco ortodoxo no que diz respeito à forma de escolher as investigações a que se dedicaria. Após a guerra, o físico britânico começou a se questionar sobre qual caminho seguir e concluiu que deveria se dedicar à biologia. A justificativa para a mudança só viria mais tarde, ao confessar: “O que realmente nos interessa é aquilo sobre o que gostamos de prosear”. No final da década de 1940, o interesse pela física começou a arrefecer. Crick andava mais interessado nos recentes avanços da biologia, área que, acreditava, poderia se tornar tão importante nos anos seguintes quanto a física havia sido no início do século 20. “Convencido de que o teste da prosa conduzira-o à sua verdadeira vocação, ele se tornou um dos raros físicos aventureiros do pós-guerra a cruzar a fronteira e adentrar na biologia”, afirmam David Brody e Arnold Brody no livro As sete maiores descobertas científicas da história. Ortodoxos ou não, seus métodos o colocaram no caminho da descoberta que o tornaria conhecido no mundo todo: a identificação da estrutura da molécula de DNA (ácido desoxirribonucléico), o material genético das células. Já de início, Crick decidiu se dedicar à fronteira entre o vivo e o não-vivo, a fim de desvendar como átomos e moléculas sem vida eram capazes de originar um ser vivo e também qual o mecanismo da transmissão de informações hereditárias. Crick começou investigando as características físicas do citoplasma, a porção gelatinosa que envolve o núcleo da célula, e em pouco tempo percebeu que olhava na direção errada. Na década de 1940, experimentos como os realizados por Oswald Avery nos Estados Unidos com a patogenicidade de bactérias, além de obras de divulgação científica como a série de palestras do físico austríaco Erwin Schroedinger, reunidas no livro O que é vida?, reforçavam a idéia de que o DNA seria a molécula responsável pela transmissão das características hereditárias nos seres vivos. Não demorou muito para Crick compreender que era necessário primeiro desvendar a estrutura molecular dos genes, cuja função imaginava – cor-

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retamente, como se descobriria mais tarde – ser o controle da síntese de proteínas por meio de uma molécula intermediária, o RNA (ácido ribonucléico). Crick passaria a investigar a estrutura dessa molécula com afinco apenas depois de conhecer o jovem biólogo norte-americano James Watson, em 1951. Dois anos antes, Crick havia trocado os Laboratórios de Pesquisa Strangeways, na Universidade de Cambridge, pelos recém-inaugurados Laboratórios Cavendish, na mesma instituição, onde se dedicaria a estudar a estrutura de proteínas por meio de uma técnica chamada difração de raios X – ao incidir sobre uma molécula, os raios X se espalham de maneira característica, indicando a posição dos átomos que a constituem.

N

essa mesma época, outro físico que migrara para a biologia, o neozelandês Maurice Wilkins, colega de Crick, já utilizava os raios X para estudar o DNA em um laboratório do King’s College, em Londres. Após assistir a uma palestra de Wilkins, Watson, que estudava bioquímica em Copenhague, Dinamarca, percebeu que aquela técnica poderia realmente revelar a estrutura da molécula de ácido desoxirribonucléico. Interessado em estudar difração de raios X, Watson partiu para os Laboratórios Cavendish, em Cambridge, antes mesmo que a instituição norte-americana que financiava seus estudos na Europa aprovasse. Watson chegou a Cambridge sem conhecer nada de difração de raios X, mas encontrou em Crick o parceiro ideal. Unidos pelo interesse na forma do DNA, ambos trabalharam em sintonia ao longo de quase 18 meses, muitas vezes escondidos, pois nenhum dos dois oficialmente desenvolvia pesquisas com a molécula de DNA – na Inglaterra, não era de bom tom Crick investigar o DNA por difração de raios X, trabalho desenvolvido por Wilkins e sua colega de laboratório, Rosalind Franklin. Muito esforço e boa dose de sorte – Watson encontrou uma pista essencial sobre a estrutura do DNA em imagens de raios X feitas por Rosalind e Wilkins durante uma visita ao King’s College – permitiram que Watson e Crick desvendassem a forma tridimensional da

molécula de DNA. Composta por dois longos filamentos paralelos, que se torcem ao redor de um eixo, a molécula de DNA tinha o aspecto de uma escada em caracol, como descreveram os pesquisadores no estudo publicado na Nature de 25 de abril de 1953 – o primeiro de uma série de quatro artigos. A separação - Essa descoberta, que va-

leu a Watson, Crick e Wilkins o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1962 – Rosalind morreu antes, em 1958, e não obteve o merecido reconhecimento –, a idéia abstrata de gene ganhou uma forma concreta. Mais do que isso, a identificação da estrutura do DNA tornou possível compreender como os genes se duplicam: normalmente espiralada, a molécula se desenrola e cada filamento serve de modelo para um outro, que o complementa. Apesar do sucesso, a colaboração entre Watson e Crick não durou. Enquanto Watson retornou para os Estados Unidos, Crick permaneceu na Inglaterra, atuando no campo que ajudara a criar, a biologia molecular. Nos anos seguintes, o garoto de Northampton iniciou uma colaboração com o pesquisador sul-africano Sydney Brenner, que levou à descoberta de que cada seqüência de três das quatro bases que formam o DNA (adenina, timina, citosina e guanina) corresponde a um aminoácido, a unidade fundamental das proteínas. O trabalho de Crick auxiliou ainda na elucidação de como a informação contida no DNA é transformada em proteína, com o auxílio do RNA. Em meados da década de 1970, Crick acreditava não ser capaz de contribuir mais para a biologia molecular. E, como já ocorrera antes, novamente redirecionou sua carreira, desta vez para a neurobiologia. Em 1976, Crick mudou-se para o Instituto Salk, nos Estados Unidos, onde se dedicou a investigar as bases neurológicas da consciência humana – um desafio tão grande quanto aqueles que perseguiu a vida toda. A curiosidade pelos grandes mistérios da natureza guiou a vida de Crick até o fim. No dia 28 de julho deste ano, Crick ainda trabalhava em um artigo científico em seu leito, no Hospital Thornton, em San Diego, na Califórnia, horas antes de morrer, aos 88 anos, em decorrência de um câncer de intestino. • PESQUISA FAPESP 103

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F ogo fogo AMBIENTE

contra

Queimada controlada na Amazônia procura entender impacto sobre fauna e flora M ARCELO L EITE ,

DE

Q UERÊNCIA *

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ão 9h30 da manhã de 16 de agosto, e o sol que arde sobre a Fazenda Tanguro, em Querência, leste de Mato Grosso, esquenta a cabeça de três dezenas de pessoas na estrada entre o pasto e a mata. Para aqueles cientistas, bombeiros, estudantes, fazendeiros e técnicos de campo infestados de carrapatos, no entanto, vale a regra do quanto mais quente melhor: eles estão ali para atear fogo na floresta e dar início a um experimento científico paradoxal. A fim de entender como incêndios típicos da região ameaçam a mata de transição entre Cerrado e Floresta Amazônica, vão provocar mais um – mas com método. A queima está meia hora atrasada, mas ninguém parece se preocupar. Ela vai durar três dias, em sucessivas linhas de fogo, nesta primeira área de 100 hectares (ha). Nos anos seguintes, o fogo da ciência incinerará mais dois lotes de 100 ha, somando 300 ha, que serão comparados com outros 150 ha divididos em três lotes de controle. Ao longo de seis anos, fauna e flora serão recenseados para entender melhor como a mata reage ou sucumbe ao fogo sazonal, convertendo-se numa savana mais ao estilo do Cerrado. A mata de transição à qual o estado do Centro-Oeste deve seu nome é o pedaço da Amazônia Legal mais ameaçado pelo desmatamento oculto, que não aparece claramente no sistema de monitoramento por satélite por ficar escondido sob a copa das árvores, como mostrou uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) publicada em 1999 na Nature. Só no ano de 1998, quando a seca de um El Niño encheu as matas de folhas e galhos ressequidos, estima-se que foram vítimas de incêndios rasteiros, em geral acidentais, 40 mil quilômetros quadrados (km2) de florestas em pé, boa parte deles na mata de transição. Ao ritmo atual, até o ano 2050 sobrariam somente 15% desse bioma, segundo modelo desen* Marcelo Leite visitou a Fazenda Tanguro a convite do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e do Grupo André Maggi.

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Técnico incendeia mata em região de Mato Grosso, na Fazenda Tanguro, sob orientação de pesquisadores: experimento científico paradoxal


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volvido pelo Ipam e pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A temporada pirotécnica na Tanguro foi batizada como Experimento Savanização. É mais uma idéia heterodoxa do Ipam, que já havia coberto um hectare inteiro de Floresta Amazônica com painéis de plástico para simular uma seca ao estilo El Niño, na Floresta Nacional Tapajós, perto de Santarém, no Pará. Desta vez, a área da organização não-governamental de pesquisa fica dentro de uma fazenda do Grupo André Maggi, da família de Blairo Maggi, o “rei da soja” que se tornou gover-

nador de Mato Grosso. A fama de desmatador associada a Maggi e à soja não parece ter intimidado os pesquisadores do Ipam. Eles partem do princípio de que o motor de 80% do desflorestamento, hoje, é a extração predatória e ilegal de madeira combinada com a pecuária. A soja contribuiria mais indiretamente, na medida em que a conversão de pastagens em lavouras mecanizadas valoriza as terras e incentiva a abertura de novas áreas mais adiante. A Tanguro tem quase 82 mil ha, o equivalente a um retângulo de 10 km por 82 km. É terra que não acaba mais.

Cerca de 35 mil ha já haviam sido desmatados para a pecuária pelos proprietários anteriores, os bancos Santander e Noroeste. As áreas definidas como de preservação permanente, como as adjacentes a cursos d’água, somam 3.132 ha. A fazenda conta ainda com uma área de reserva legal de 46.569 ha, mais da metade do total. Com a progressiva conversão de pastagens em lavoura, no final deste ano o plantio de soja na Tanguro deve chegar a 25 mil ha, um investimento de R$ 44 milhões. Além de plantar, o grupo compra soja de outros 500 produtores no sistePESQUISA FAPESP 103

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ma de pré-financiamento, o que o põe numa posição privilegiada para incentivá-los a adotar práticas ambientalmente saudáveis na produção. É nesse potencial para alavancar a idéia de sustentabilidade que o Ipam está de olho. Há três vezes mais terras (coisa de 600 mil km2) nas reservas legais privadas do que nas unidades de conservação, como parques e florestas nacionais.

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uando tudo parece estar pronto e as equipes de ateadores e medidores a postos, o fogo começa em duas frentes de mil metros (m), separadas por 500 m, que adentram a mata perpendicularmente à estrada margeando a pastagem. A cena na mata tem algo de surreal, e não só pelo fogo que deixa as calças de todos pelando. “É bem divertido”, diz entre risos o coordenador científico do experimento, Daniel Nepstad, ecólogo do Ipam. A seu lado, o bombeiro Abadio José Cunha Jr., o major Cunha, propõe o emprego de um maçarico a gás, mas o cientista sai em defesa do querosene, que daria uma chama mais sustentável. Na Tanguro, só se fala em “queimada do bem”. A queimada se arrasta a 10 m/h, metade da velocidade inicialmente prevista. Já na parte da tarde, as chamas se animam. Numa clareira, onde a luz do sol ressecou o material sobre o solo, produzem um ruído ensurdecedor, vindo de labaredas com 10 m ou 20 m de altura – é difícil de avaliar, a uma distância prudente de 30 m. Mas as chamas medidas por equipes de dois estudantes em geral se acomodam na casa dos 5 ou 10 centímetros. Trata-se de buscar informações confiáveis sobre como se comporta, sob o estresse constante do fogo, a mata de transição ameaçada de savanização. No Brasil, a savana mais comum é o Cerrado, que cerca a Floresta Amazônica pelos flancos sul e leste. As divisas da Tanguro ficam a apenas 20 km do Cerrado e outros 20 km do Parque Nacional do Xingu. “A partir de que freqüência de incêndios a floresta deixa de ser floresta?” Esta é a questão principal a ser respondida pelo experimento, segundo Nepstad. Ele é um dos coordenadores do projeto pelo Ipam, ao lado da bióloga Claudia Azevedo-Ramos, além de uma

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equipe fixa que abrange outras cinco instituições: Universidade Federal do Pará e Universidade de Brasília, do lado brasileiro, mais o Centro de Pesquisa Woods Hole e as universidades Yale e Stanford, dos Estados Unidos. O fogo de incêndios não-intencionais, em geral provocado por fagulhas de áreas agrícolas vizinhas, corre pelo chão da mata em ritmo lento, 10m/h a 20 m/h. Deixa atrás árvores com menos folhas, que caem ao chão e ficam mais secas, sob a ação da maior quantidade de luz do sol que penetra pelo dossel rarefeito. Com a mudança climática global, podem ocorrer El Niños com freqüência maior, acelerando o círculo vicioso de ressecamento e inflamabilidade da mata de transição. Brasil exportador - Com a pujança da frente agropecuária, useira e vezeira em lançar mão do fogo no manejo de pastagens e na abertura de novas áreas para a agricultura, o resultado é uma pressão inevitável sobre a floresta de transição e o aumento vertiginoso do risco de savanização. Contar só com as armas da fiscalização não resolve, diante da penúria desse setor do Estado brasileiro. Fator mais forte e importante é a própria capitalização e lucratividade da agropecuária. Soja e carne alcançam preços cada vez mais altos no mercado internacional. O Brasil já desponta como principal exportador dessas mercadorias – o que faz do agronegócio uma fonte crucial de divisas para alimentar o serviço da dívida externa. Segundo estimativa do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, há 150 milhões de hectares (1,5 milhão de km2) de terras com potencial para agricultura mecanizada no Brasil. Uma das maiores regiões com perfil para expansão da soja fica justamente em Mato Grosso, segundo estudo de Maria del Carmen Vera Diaz, do Ipam. “É o maior tema ambiental da década”, diz Nepstad. No caminho do gado e da soja, porém, está a mata de transição, que partilha com a Floresta Amazônica mais densa grande parte de sua biodiversidade. O biólogo Oswaldo de Carvalho Júnior, do Ipam, informa que já foram observados na área do experimento 65% das 46 espécies de mamíferos que os manuais dizem ocorrer na região. Até um cachorro-do-mato-vinagre (Speo-

Vista aérea da fumaça da queimada: sucessivas linhas de fogo nesta primeira experiência

thos venaticus), que deveria viver mais ao sul, foi avistado. Carvalho Jr. é o responsável pelo módulo de fauna do experimento, ao lado de Lisa Curran, de Yale, que no primeiro dia só viu um bando de seis macacos. Um dos objetivos do experimento é precisamente descobrir quais os animais mais afetados pela repetição dos incêndios rasteiros. Animais dispersam sementes ou se alimentam delas, o que quer dizer que a composição e a densidade da fauna pós-incêndio influenciarão o perfil da mata. De outro lado, não se conhece ao certo nem mesmo quais são as árvores que mais padecem. Para cientistas, não basta saber que as mais vulneráveis serão as de casca fina, é preciso detalhar isso com muitos dados. Dito de outro modo, não basta pôr fogo na mata – é preciso muita instrumentação. Foi por isso que os pesquisadores levaram um mês preparando o experimento. Sem a parafernália e o método, seria uma queimada como qualquer outra. Mas nunca houve uma


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queimada como essa, a começar pelo custo, US$ 110 mil por ano.

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emperatura e umidade relativa do ar representam as medidas mais importantes. São registradas antes, durante e depois do fogo, em centenas de pontos predefinidos. Numa floresta densa, a umidade relativa é de pelo menos 65%. Na floresta de transição como a da Tanguro, que tem cerca de um terço da biomassa da vizinha robusta, ela chega no máximo a 45%, o que a torna muito mais propensa ao fogo. Uma dezena de sensores acoplados a computadores miniaturizados para pendurar nas árvores armazena os dois tipos de dados a cada 30 segundos durante as queimas (no restante do tempo, o intervalo é de 30 minutos). Jennifer Balch, de Yale, responsável pelos sensores, escolheu bem as árvores menos propensas a queimar para dependurá-los, a 5 m, 10 m e 15 m de altura.

Estava aliviada, no dia da primeira queima, com o fato de todos estarem intactos (cada um custa US$ 180). A montanha de dados vai alimentar um banco-matriz sobre a dinâmica do fogo, como sua velocidade e a quantidade de energia liberada. Comparando o que estiver no banco de dados com imagens de satélite já encomendadas, os cientistas vão tentar calibrar os instrumentos em órbita para que se tornem capazes de ler a assinatura desses incêndios nas matas de transição, que deixariam assim de ser ocultos. Se tudo der certo, isso resultará na imagem de um quadrado de 100 ha cheio de listras, correspondentes às diferentes linhas de fogo. Comparando intensidade e velocidade com outras variáveis, como horário do incêndio, tipo de vegetação, presença de clareiras e de ninhos de formigas saúvas, os pesquisadores do Experimento Savanização esperam se tornar capazes de prever, a partir das características de uma mata, qual o grau de vulnerabilidade ao

fogo e a probabilidade de se converter em savana num determinado prazo. Diante do porte da ameaça de savanização, os 300 ha incinerados pelo experimento não passam de um palito de fósforo queimado em meio ao incêndio de uma refinaria de petróleo. Os ateadores levam 100 minutos para incendiar o 1 m de sua linha, com várias paradas para reabastecimento. É mais tempo e mais combustível do que o previsto, e a segunda queima, marcada para as 11 horas, é adiada para as 14 horas. Logo chegam as 16 horas. O sol começa a baixar e algumas das queimas são adiadas: o fogo ameaça parcelas que não devem arder. Metade da equipe é liberada e se arrasta para as picapes, narinas e lábios cobertos de fuligem. Outros vão no trator, usado para abrir um aceiro de 5 m de largura no pasto vizinho, para garantir. Se chegasse ao capim ressecado por um mês sem chuvas, o fogo iniciaria a queimada que ninguém quer nem pensar em ter de apagar – uma queimada do mal. • PESQUISA FAPESP 103

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Vigia

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da floresta Inpe testa novos satélites para combater queimadas na Amazônia C LAUDIA I ZIQUE

Imagem do Modis registra fogo e fumaça sobre Mato Grosso

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Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) testa, há dois meses, o Sistema de Detecção de Desmatamento (Deter), que fornece informações sobre ações de devastação na Amazônia com periodicidade de até três dias. O Deter utiliza imagens do sensor Modis, a bordo dos satélites Terra e Aqua, da Nasa, e do WFI, do CBERS, sigla em inglês para Satélite Sino-Brasileiro de Recursos Terrestres, com resolução de 240 metros. E ainda minimiza os efeitos de pequenas nuvens, que comprometem a observação. “O programa já está pronto e está sendo utilizado em teste, via Internet. Até o final do ano poderá ser usado por órgãos de fiscalização e repressão para coibir queimadas e desmatamentos”, diz Cylon Gonçalves, secretário de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). As informações dos dois satélites, de acordo com Gonçalves, serão repassadas imediatamente ao Sistema de Pro-

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teção da Amazônia (Sipam) – programa vinculado à Casa Civil da Presidência da República –, que acionará helicópteros e aviões para rastrear a região e reprimir infratores. Até agora as informações eram obtidas por meio de imagens enviadas pelo satélite Landsat, com passagem a cada 16 dias, cujas imagens permitem visualização da área com 30 metros de resolução. O Deter representa um avanço significativo no sistema de avaliação das áreas desmatadas na Amazônia, segundo Paulo Artaxo, coordenador do Instituto do Milênio do Experimento em Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (LBA). Os pesquisadores do LBA – um megaprojeto internacional de US$ 80 milhões que reúne mais de 300 pequisadores da América Latina, da Europa e dos Estados Unidos – não têm dúvida de que as novas tecnologias são ferramentas fundamentais para preservar as florestas sem comprometer o desenvolvimento econômico da região. Elas têm efeito não apenas para coibir o desma-

tamento – facilitado pelo uso dos novos satélites –, mas também para pautar as atividades econômicas. Seu uso “em grande escala”, como diz Carlos Nobre, coordenador científico do LBA, possibilita a extração de mais valor econômico e social da “floresta em pé” do que de pastagens, por exemplo. “Os pecuaristas utilizam pouca tecnologia e têm baixo rendimento.” Ele cita o caso de comunidades da ilha de Marajó que substituíram as áreas de pastagens pelo plantio do açaí, quando a fruta ganhou o mercado. “Com isso, as áreas desmatadas voltaram a ser recuperadas”, ele conta. Artaxo prevê, no entanto, que ainda “vai levar um tempo” até que as propostas e sugestões apresentadas pelos pesquisadores do LBA para a preservação da Amazônia – entre elas, a de capacitação de produtores e coletores de plantas para realizar processo de bioprospecção e melhorar conhecimento sobre a biodiversidade, por exemplo – transformem-se em política pública. O cientista, argumenta, é um entre os vá-


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JACQUES DESCLOITRES/NASA/GSFC

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E as políticas públicas se fazem a partir desses atores”, diz. Inovação tecnológica - A idéia de va-

lorizar atividades de produção sustentável com inovação tecnológica é um dos objetivos do Plano Amazônia Sustentável (PAS), elaborado por sete ministérios – que já incorpora diagnósticos realizados pelo LBA –, e que começa a ser discutido com os governadores da região. O PAS pretende ainda implementar obras de infra-estrutura nos setores de transportes, energia e comunicações, considerados elementos cruciais para o desenvolvimento sustentável; estabelecer um novo padrão de financiamento na Amazônia; e promover a gestão ambiental e o ordenamento territorial. Ainda não existem recursos definidos para o financiamento do plano. Mas, como adianta Jorg Zimmermann, da Secretaria de Coordenação da Amazônia, do Ministério do Meio Ambiente (MMA), o Plano Amazônia Sustentável vai reorientar o Plano Plurianual (PPA), do governo federal.

No âmbito do PAS, o governo desenvolve três programas: um de prevenção e controle do desmatamento, outro para o desenvolvimento sustentável para as áreas de influência da BR163 – que liga Cuiabá, no Mato Grosso, a Santarém, no Pará – e um terceiro, conhecido com Programa Nacional de Florestas. Na avaliação de Artaxo, esses planos e programas mostram que o governo quer “tomar pé” do gerenciamento ambiental da Amazônia. Ele considera, no entanto, “perigosa” a intenção do governo de conceder à exploração privada áreas de terras públicas da região, a partir de 2007, por um período entre três e 30 anos, previsto no Programa Nacional de Florestas. “A capacidade do Estado de fiscalizar e gerir áreas públicas é limitada e o uso dessa modalidade de concessão pode ser problemática”, ele argumenta. O projeto de lei de concessões de terras públicas, elaborado pelo Ministério do Meio Ambiente, foi submetido à Casa Civil antes de ser enviado ao Con-

gresso Nacional. “A inovação não é a concessão. A novidade é que estamos invertendo a lógica histórica em que o setor público conserva sua área por meio de unidades de preservação ou então privatiza”, diz João Paulo Capobianco, secretário de Biodiversidade e Florestas do MMA. A concessão poderá conciliar a preservação ambiental e a exploração econômica As terras públicas representam algo em torno de 47% das áreas de floresta na região. Ao todo, são 2 milhões de quilômetros quadrados, sem contar as áreas de reservas indígenas e de conservação ambiental. Uma parcela desse território – excluídas as áreas sobre as quais existe demanda social ou conflitos, proteção ambiental ou que sejam consideradas frágeis – poderá ser utilizada para uso sustentável. A seleção dessas áreas será endossada em audiências públicas e vai integrar um plano de outorga, licitado de acordo com critérios que impedem a monopolização. Os maiores lotes terão, no máximo, 50 mil hectares. • PESQUISA FAPESP 103

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A receita da

qualidade Na série de reportagens sobre os 70 anos da Universidade de São Paulo, a movimentada trajetória da Faculdade de Ciências Farmacêuticas, que soube superar crises e consolidou-se como endereço de pesquisa F ABRÍCIO M ARQUES

A faculdade hoje: laboratórios renovados e 96% dos professores com dedicação integral


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FOTOS EDUARDO CESAR

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70 FOTOS ARQUIVO FACULDADE DE CIÊNCIAS FARMACÊUTICAS DA USP

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O prédio da rua Três Rios, na bucólica São Paulo de 1927: uma crise por pouco não fechou a escola

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ustiça se faça à Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo: em quase 106 anos de existência, a instituição exibiu uma inesgotável capacidade de superar dificuldades e responder a desafios. Fundada em 12 de outubro de 1898 como Escola Livre de Pharmacia de São Paulo, manteve-se de pé em seus primórdios graças à abnegação dos fundadores. Médicos ou membros da Sociedade Pharmacêutica Paulista, eles davam aulas de graça – ou recebendo quantias simbólicas – até que o orçamento da instituição saísse do vermelho. A criação da escola estava prevista havia mais de 20 anos, mas foi graças ao grupo, liderado pelo médico fluminense Bráulio Gomes e o farmacêutico Pedro Baptista de Andrade, que a idéia vicejou, fazendo surgir o quarto curso de farmácia do país e o primeiro de São Paulo. Logo apareceram novas demandas. O governo da província delegou à escola a tarefa de submeter a exames aspirantes a dentistas e parteiras “enquanto não existissem no estado cursos especiais de arte dentária e de partos”. Pois em 1902 a instituição chamou para si a tarefa de formar esses profissionais, tornando-

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se Escola de Pharmacia, Odontologia e Obstetrícia. As duas novas carreiras se desmembrariam ao longo do tempo – a Obstetrícia desgarrou-se em 1911 e a Odontologia em 1962. A excelência da Faculdade de Ciências Farmacêuticas se explica, de certo modo, por sua capacidade de se reinventar. Por muito pouco, o curso não fechou as portas na década de 1920. A concorrência com outras escolas de farmácia e um escândalo que cassou o credenciamento federal da faculdade fizeram com que os alunos debandassem e professores pedissem demissão, desinteressados de trabalhar numa instituição sem licença para funcionar. Os bens da escola foram seqüestrados, e, em 1932, o médico e anatomista Benedicto Montenegro foi designado interventor. No ano seguinte, o governo federal restabeleceu o credenciamento. Montenegro foi personagem-chave na reabilitação da faculdade. Colocou-a para funcionar e, algum tempo depois, convenceu o governo paulista a incorporá-la ao projeto da Universidade de São Paulo. Em 1934, a Faculdade de Pharmacia e Odontologia de São Paulo deixou de existir. Em seu lugar foi criada a Faculdade de Pharmacia e Odontologia da Universidade de São Paulo. Na prática, alunos e professores integraram-se aos


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Aula com o professor Henrique Tastaldi, na década de 1950: vinculada à USP, a faculdade floresceu

quadros da USP, assim como o prédio na rua Três Rios, no bairro do Bom Retiro, centro de São Paulo, foi desapropriado e incorporado ao patrimônio da universidade. Garantia-se a continuidade do projeto acalentado pela Sociedade Pharmacêutica Paulista de formar “moços capazes de trabalhar em química, habilitados para a indústria e com coragem e conhecimentos bastantes para se enfrentarem com as dificuldades de análises sérias e importantes”, como propôs um editorial de maio de 1895 da Revista Pharmacêutica, órgão oficial da entidade. Nos últimos 70 anos, período em que sua trajetória vinculou-se a à USP, a Faculdade de Ciências Farmacêuticas não se limitou a formar mão-de-obra. Consolidou-se como referência nacional em ensino, pesquisa e pós-graduação. Com 800 alunos de graduação, 250 de mestrado e 200 de doutorado, a instituição conta hoje com 80 docentes – 98% doutores e 96% em regime de dedicação integral à docência e à pesquisa. Em 2003 teve uma produção de 102 artigos em periódicos publicados no país e 91 no exterior. “O objetivo é publicar cada vez mais e formar recursos humanos. Muitos dos nossos mestres e doutores vão lecionar em outras universidades”, diz a professora Maria Inês Rocha

Miritello Santoro, presidente da Comissão de Pesquisa da faculdade. Os quatro departamentos dedicam-se a linhas de pesquisa inovadoras no país, cuja relevância também pode ser medida pela aplicação prática que terão na vida e na saúde dos brasileiros. A equipe do professor Jorge Mancini Filho, do Departamento de Alimentos e Nutrição Experimental, estuda desde o final dos anos 1980 substâncias antioxidantes naturais encontradas em alimentos como o dendê, a castanha do caju, a castanha-do-pará, o alecrim ou o orégano. O objetivo, a princípio, era testar a utilização dessa matéria-prima em substituição a antioxidantes sintéticos, usados para conservar alimentos e suspeitos de fazer mal à saúde humana. A pesquisa foi ganhando importância ao longo dos anos 1990, enquanto acumulavam-se evidências de que os antioxidantes podem ajudar a prevenir doenças. Mostrou-se, por exemplo, que é possível enriquecer alimentos, como o pescado, com substâncias antioxidantes – dependendo da dieta que se dê ao peixe. Com isso, a carne é enriquecida nutricionalmente e demora mais para deteriorar. O professor Franco Lajolo, estudioso dos alimentos funcionais, aqueles que têm propriedades terapêuticas PESQUISA FAPESP 103

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e preventivas, produziu contribuições importantes, por exemplo, para a compreensão do metabolismo das frutas depois de colhidas e ajudou a desvendar os processos bioquímicos que as tornam doces e macias. A professora Silvia Cozzolino lidera pesquisas sobre a disponibilidade de ferro em alimentos e seu uso nutricional. Uma delas foi um estudo sobre ingestão média diária de alguns minerais em dietas brasileiras, conforme região, faixa etária e condição social. Os menores valores de ingestão de ferro estavam nas dietas de idosos de casas de repouso de São Paulo, com 5,4 miligramas por dia (mg/dia), e na dieta de uma população de baixa renda de Santa Catarina, com 6,4 mg/dia. O ideal é o consumo diário por adulto de 15 mg/dia.

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o Departamento de Análises Clínicas e Tox i co l ó g i c a s , destacam-se trabalhos como os da professora Ana Campa, que, em parceria com o Instituto de Química da USP, ajudou a desenvolver uma tecnologia para diagnósticos clínicos baseados na utilização de reações que emitem luz e permitem mensurar o nível de várias enzimas de interesse laboratorial. A professora Maria Inês Rocha Miritello Santoro, do Departamento de Farmácia, pesquisa, há mais de uma década, a separação enantiomérica empregando a cromatografia líquida de alta eficiência com fase quiral. Trata-se de uma técnica de controle de qualidade de medicamentos capaz de separar moléculas que apresentam os mesmos grupamentos químicos como radicais de um átomo de carbono – porém com uma configuração em que uma é a imagem espelhada da outra. A distinção dos dois tipos de molécula é importante porque, normalmente, apenas uma delas apresenta efeito terapêutico. Em alguns casos, a outra molécula, além de não ter efeito farmacêutico, pode apresentar propriedades tóxicas. Com a técnica, pode-se separar e quantificar os dois tipos de compostos. Tais exemplos são apenas uma amostra das pesquisas feitas no conjunto de blocos de concreto, situado na avenida Linneu Prestes (ex-diretor da instituição), na Cidade Universitária. Há trabalhos em muitas outras

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áreas, como na de fármacos com atividade contra a doença de Chagas, no diagnóstico de cisticercose, uma parasitose, ou em marcadores genéticos de diagnóstico. “Nos últimos 15 anos, investimentos na renovação de laboratórios, feitos pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, a FAPESP e o CNPq, deram lastro ao salto qualitativo”, diz o professor Jorge Mancini, exdiretor da faculdade. A Faculdade de Ciências Farmacêuticas foi um exemplo de integração à Universidade de São Paulo. Ao contrário de outras unidades que já existiam antes do advento da USP, como as faculdades de Medicina e de Direito, trocou sem reclamações seu endereço tradicional, no bairro do Bom Retiro, por uma área de 80 mil metros quadrados na lamacenta Cidade Universitária do ano de 1966. “Apesar das dificuldades, o campus aparecia como o lugar ideal para o desenvolvimento de atividades, sem ruídos, contrastando com as salas de aula da rua Três Rios, constantemente perturbadas pelo tráfego pesado de caminhões”, registrou a professora catedrática Maria Aparecida Pourchet-Campos em seu li-


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Cenas da escola em 1908: exame oral num anfiteatro (acima), aula prática de química industrial (abaixo), laboratórios de odontologia e de física (à esq.).

vro A vida da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (1984). Essa época foi um divisor de águas na trajetória da instituição. A troca de endereços teve, é certo, um impacto simbólico. Ficou para trás o prédio erguido nas várzeas despovoadas do Bom Retiro no início do século 20. A construção original continua de pé e, tombada pelo patrimônio histórico, abriga oficinas culturais do governo do Estado de São Paulo. Os antigos alunos guardam memórias prosaicas do edifício de 136 janelas. Como a imagem solene do professor siciliano Quintino Mingoja. “Ele exigia que os alunos ficassem de pé quando entrava na sala de aula”, afirma Paulo Minami, professor aposentado do Departamento de Análises Clínicas e Toxicológicas, organizador do acervo histórico da faculdade. “Mingoja se aposentou e depois voltou à faculdade para dar aulas. Ficou muito magoado no primeiro dia de aula, quando uma turma desavisada permaneceu sentada quando ele entrou na sala.” No prédio da rua Três Rios os universitários cortejavam as moças do Colégio Santa Ignês, do outro lado da rua. A antiga

sede também foi palco de eventos históricos, como a premiação, com o título de doutor honoris causa, de Alexander Fleming, o pai da penicilina, em visita ao Brasil no ano de 1954. Os estudantes foram em comitiva à estação de trem no bairro do Brás recepcionar Fleming e ficaram surpresos com a concentração de populares. Mas o pai da penicilina passou despercebido – o povo aguardava a chegada da Seleção Brasileira de Futebol, liderada pelo craque Leônidas da Silva.

T

ambém nos anos 1960, aposentaram-se professores que haviam moldado a faculdade após o ingresso na USP. São nomes como Carlos Alberto Liberalli, Henrique Tastaldi, Aristóteles Orsini e Walter Leser. A transformação da instituição seria coroada na virada para a década de 1970, com a reforma universitária. A Faculdade de Farmácia e Bioquímica passou a denominar-se Faculdade de Ciências Farmacêuticas, e deflagrou-se uma reestruturação que deu origem aos quatro atuais departamentos: Farmácia, Alimentos e Nutrição Experimental, Análises Clínicas e Toxicológicas e Tecnologia Bioquímico-Farmacêutica. “A reforma permitiu uma necessária reorganização do currículo”, diz Jorge Mancini. “A pesquisa, antes da reforma, não era intensa como hoje”, afirma o professor. A imagem do farmacêutico como uma espécie de médico dos momentos de aflição tornou-se definitivamente coisa do passado. Se no início do século 20 o apelo da profissão firmava-se na profusão de anúncios de remédios nos bondes – “Salvou-o o Rhum creosotado” –, nos anos 1960 o mercado de trabalho expandiuse geometricamente, com a instalação do parque de indústrias de medicamentos no país. A maioria dos farmacêuticos-bioquímicos sai da faculdade para trabalhar em fábricas de remédios. As áreas de análises clínicas e da indústria de alimentos também atraem profissionais – num mercado de trabalho que continua a mudar. Nos últimos quatro anos, o currículo da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP ganhou 21 novas disciplinas – temas momentosos como Alimentos Geneticamente Modificados, Medicamentos Genéricos e Bioequivalência ou Toxicologia Forense. A instituição, como se vê, está sempre se reinventando. • PESQUISA FAPESP 103

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Biblioteca de Revistas Científicas disponível na Internet www.scielo.org

Notícias ■

BIOQUÍMICA

Revisar os mecanismos relacionados à modulação da serotonina cerebral, processo que pode afetar o rendimento dos atletas, é o objetivo do artigo “Implicações do sistema serotoninérgico no exercício físico”, de Luciana Rossi e Julio Tirapegui, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP). “Uma abordagem emergente e polêmica desses mecanismos está relacionada à fadiga durante atividade de curta e longa duração, além de sua relação com a função serotoninérgica cerebral”, afirmam os pesquisadores. “Os mecanismos propostos para o desenvolvimento de fadiga precoce durante o exercício se apresentam amplamente inexplorados.” O foco bioquímico do estudo é o aminoácido precursor da serotonina cerebral: o triptofano, aminoácido essencial tanto para humanos como animais. Porém sua importância não se restringe apenas à contribuição no crescimento e síntese protéica. “Como precursor da serotonina cerebral, o triptofano exerce papel fundamental em diversos mecanismos fisiológicos e comportamentais como sono, depressão, ingestão alimentar, fadiga, entre outros”, alertam os pesquisadores. Em relação à atividade física, há envolvimento do triptofano tanto em exercícios de longa como de curta duração. O estudo reflete ainda sobre os prováveis mecanismos envolvidos na “hipótese da fadiga central” e a oferta de carboidratos e aminoácidos como estratégia para alcançar melhora no rendimento esportivo. ARQUIVOS BRASILEIROS DE ENDOCRINOLOGIA & METABOLOGIA – VOL. 48 – Nº 2 – SÃO PAULO – ABR. 2004

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Rendimento esportivo

duto Interno Bruto (PIB) e o desempenho científico e tecnológico de países desenvolvidos como Estados Unidos, Japão, Alemanha e Inglaterra, e mostra como isso se realiza em países de médio desenvolvimento como México, Índia e Brasil. O estudo é de autoria de Jorge Guimarães, presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). “A comparação com os países de mais elevado desempenho possibilita melhor situar o desafio a ser vencido pela pesquisa brasileira na área de saúde, para colocála no patamar dos índices de citação que melhor qualifica a pesquisa feita na área”, justifica Guimarães. O estudo revela que no Brasil o complexo educacional universitário e o sistema de C&T foram estruturados muito tardiamente e estão ainda em processo de consolidação. “Nossos processos de ensino na educação fundamental e mesmo na graduação universitária, predominantemente informativos que privilegiam a memorização em detrimento do processo formativo, vêm se mostrando bastante deficitários e perigosamente defasados da demanda por um ensino qualificado”, disse. Porém, segundo Guimarães, nas últimas quatro décadas houve considerável avanço no segmento de ciência e tecnologia no Brasil, um desempenho claramente mostrado pelos indicadores internacionais. Os dados apresentados demonstram que a pesquisa médica e biomédica no Brasil, por exemplo, vem alcançando sucessivo progresso especialmente no componente quantitativo, com um crescimento extraordinário nas publicações científicas. O estudo alerta, todavia, que tanto o desempenho obtido como a capacidade instalada de pesquisa se situam ainda muito aquém dos índices necessários para o enfrentamento dos gigantescos desafios sociais e econômicos que o país apresenta nesta e em outras áreas. CIÊNCIA E SAÚDE COLETIVA – VOL. 9 – Nº 2 – RIO DE JANEIRO – ABR./JUN. 2004 http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141381232004000200009&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S000427302004000200004&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt ■ ■

POLÍTICA CIENTÍFICA

Avança Brasil O artigo “A pesquisa médica e biomédica no Brasil. Comparações com o desempenho científico brasileiro e mundial” evidencia elevada correlação entre o Pro-

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EMPREGO

Mercados imunes O propósito do artigo “Curva de rendimentos: uma análise no mercado de trabalho urbano e rural no Brasil” é analisar empiricamente o grau de flexibilidade dos rendimentos no país, enfatizando as diferenças entre os mercados de trabalho urbano e rural brasileiros.


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O estudo é de autoria dos economistas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Igor Viveiros de Souza e Ana Flávia Machado. No artigo são apresentados modelos sobre os diferenciais de rendimentos entre o campo e cidade e a relação existente entre desemprego de longo prazo e níveis salariais. “Historicamente, as áreas urbanas têm apresentado, em relação às áreas rurais, maiores níveis salariais, bem como melhor estrutura organizacional de seus trabalhadores e um maior acesso da legislação pertinente”, aponta o levantamento. Portanto, é de esperar que as regiões produtoras de bens agrícolas apresentem maior sensibilidade a variações na produtividade, alterando seu produto e os níveis de emprego mais rapidamente, o que caracterizaria uma maior flexibilidade de seus mercados. Porém, revela a pesquisa, a análise da curva de rendimentos para o Brasil, no período compreendido entre 1981 e 1999, mostra que, por não possuir relações trabalhistas típicas de um mercado capitalista, os níveis de desemprego nas áreas rurais pouco sofrem com as flutuações econômicas brasileiras em relação aos trabalhadores urbanos. Não é possível, portanto, aplicar o conceito de flexibilidade do mercado de trabalho em atividades localizadas no campo. Nas áreas urbanas, o mercado de trabalho no Brasil mostra ser mais flexível, conclui a pesquisa.

como se fosse um entre tantos outros pontos de encontro da cidade”, acredita Dornelles. “A vivência do indivíduo no ciberespaço é tão dramática, emotiva e complexa quanto a interação face a face.” Durante toda a pesquisa ficou clara uma propensão que os usuários têm de interagirem face a face em um segundo momento, a partir do encontro virtual em chat. “Esta experiência nos faz refletir sobre a estreita associação que atualmente se processa entre o computador e as condutas sociais”, diz Dornelles, que aponta como um dos aspectos mais claros do estudo o cultivo de um tipo de sociabilidade denominado como “sendo virtual”. HORIZONTES ANTROPOLÓGICOS – VOL. 10 – Nº 21 – PORTO ALEGRE – JAN./JUN. 2004 http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010471832004000100011&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

Modernização agrícola

REVISTA DE ECONOMIA E SOCIOLOGIA RURAL – VOL. 42 – Nº 1 – BRASÍLIA – JAN./MAR. 2004 http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010320032004000100002&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

SOCIEDADE

EDUARDO CESAR

Relacionamentos virtuais O artigo “Antropologia e Internet: quando o ‘campo’ é a cidade e o computador é a ‘rede’” apresenta uma reflexão sobre a estreita associação que atualmente se processa entre a Internet e as condutas sociais. “De um lado, temos a presença de práticas de sociabilidade ao modo clássico, sendo mantida pelo encontro face a face. De outro, está presente a especificidade gerada pela presença da interface gráfica como mediadora do encontro social”, diz o autor do estudo Jonatas Dornelles, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O cientista diz que a Internet atinge o senso comum da população, pois é cada vez mais compreensível que seja possível bater papo, conhecer pessoas, fazer amigos e namorar pela rede. O autor conduz o leitor em uma reflexão sobre a sociabilidade que está relacionada com o computador e a Internet, por meio de um estudo sobre as salas de bate-papo virtual (chat) da cidade de Porto Alegre. “O chat adquire o status de lugar,

TECNOLOGIA

O artigo “Intensidade e dinâmica da modernização agrícola no Brasil e nas unidades da Federação”, de Paulo Marcelo de Souza, da Universidade Estadual do Norte Fluminense, e João Eustáquio de Lima, da Universidade Federal de Viçosa, apresenta um estudo que caracteriza a evolução do processo de modernização agrícola ocorrido em cada estado, entre 1970 e 1995. A idéia foi fornecer evidências empíricas do processo de modernização da agricultura, buscando verificar sua magnitude e descrever sua dinâmica ao longo do tempo. Os resultados do estudo mostram que a intensidade do processo de modernização foi significativamente diferente entre as unidades da Federação. “Esse processo sofreu retração a partir de 1980, com a redução nos valores associados ao nível de financiamento e investimentos no setor”, revelam os pesquisadores. Eles observaram que a modernização agrícola foi mais lenta no grupo formado por Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Piauí e Rondônia. No grupo constituído por Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Roraima e Sergipe se observa maior intensidade de modernização do que a constatada para os estados do grupo anterior. Porém as taxas observadas nesse caso são inferiores ao que se verifica nos demais estados. Um terceiro grupo (Alagoas, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais e Rio de Janeiro) define as regiões onde o avanço da modernização é superior ao que ocorre nos dois primeiros grupos. Finalmente, Distrito Federal, Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo pertencem ao grupo que abriga as unidades da Federação onde a modernização foi mais intensa. REVISTA BRASILEIRA DE ECONOMIA – VOL. 57 – Nº 4 – RIO – OUT./DEZ. 2003

DE JANEIRO

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S003471402003000400007&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

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MUNDO

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Drogas, explosivos e substâncias químicas variadas, incluindo teoricamente uma única molécula, agora podem ser analisados com uma minúscula sonda, cuja tecnologia tem por base a dispersão de luz. A nanossonda (1 nanômetro equivale a 1 milímetro dividido por 1 milhão) é uma fibra óptica com uma ponta que mede 100 nanômetros, banhada por nanopartículas de prata. Essa característica induz o chamado efeito Sers. Trata-se de um fenômeno observado quando uma amostra é iluminada por feixe de laser em que há um pequeno reflexo de luz, conhecido como dispersão Raman. A luz revela energias vibratórias, que são únicas para cada composto, e essa informação permite aos cientistas analisar a substância. A diminuta sonda criada pelo Departamento de Energia do Laboratório Nacional de Oak Ridge, nos Estados Unidos, SETEMBRO DE 2004

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SGI

Sem retirar os tecidos que recobrem o corpo do sacerdote egípcio Nesperennub, que viveu há 3 mil anos, nem tirá-lo do sarcófago, é possível conhecer seu estilo de vida, sua aparência, as doenças que teve e como foi mumificado. Visitantes do Museu Britânico, em Londres, munidos de óculos 3-D (que permitem visualizar imagens produzidas em três dimensões), podem “dar um passeio” pelo corpo da múmia por meio de um Reality Center (Centro de Realidade Virtual) de tela curva, com 4 metros de altura e 14 metros de largura. A tecnologia, criada pela empresa norte-americana Silicon Graphics (SGI), permite reagrupar mais de 1.500 imagens escaneadas da

leva a luz do laser a criar rápidas oscilações dos elétrons presentes nas nanopartículas de prata, produzindo um enorme campo eletromagnético que aumenta o efeito Sers. “Isso significa que estamos aptos a fazer análise direta de amostras – mesmo secas –, sem que a superfície tenha de ser preparada”, explicou o chefe dos pesquisadores do laboratório, Tuan Vo-Dinh, em um informe do laboratório.

■ Bactérias restauram

prédios antigos De vilãs a salvadoras da pátria. Pelo menos é assim que os pesquisadores da Universidade de Portsmouth, da Inglaterra, esperam que algumas bactérias atuem. Microorganismos que até agora poluíam áreas urbanas, pondo em risco sítios culturais, vão come-

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Segredos de Nesperennub

Centro de realidade virtual:

múmia em um único conjunto de dados em três dimensões, que pode ser interativamente visualizado e explorado. A exibição tem 22 minutos. Em todo o mun-

do existem atualmente 670 ambientes desse tipo produzidos pela SGI para empresas, universidades e museus. A empresa também colabora num projeto cine-

çar a trabalhar a favor (London Press Service). A equipe liderada pelo professor Eric May integra o projeto Biobrush, sigla em inglês para

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Por dentro da múmia

■ Nanossonda analisa

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biorremédios para a restauração de edifícios da herança urbana em pedra. Trata-se de uma iniciativa européia coordenada a partir do Reino Unido que usa nova abordagem na conservação de prédios de importância histórica e cultural. A chave do processo está na biotecnologia, que permite o uso de processos de mineralização e remoção orgânica. Está provado que alguns microorganismos usam sulfato, nitrato e outros resíduos orgânicos para formar camadas de calcita sobre superfícies minerais. Seguros e eficazes, eles destroem as crostas formadas nos edifícios. Combinações diversas de tratamento estão sendo testadas em condições de laboratório, e também nos prédios históricos, sob variadas condições climáticas no norte e sul da Europa, o que inclui um cas-


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SGI

BRASIL

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Teste mais barato detecta catapora

imagens em três dimensões

matográfico que tem a participação do físico britânico Stephen Hawking. O objetivo é trabalhar em um filme em animação feito especialmente para uma te-

la em formato especial, que trata da criação do Universo. A tecnologia SGI será usada para criar um link direto entre o público e o telescópio Hubble.

Elisa: exame mais barato e fácil de preparar

telo medieval na Letônia, um muro de uma cidade na Alemanha, uma catedral na Itália e um antigo povoado na Grécia. Os processos mecânicos de remoção de crostas podem danificar a superfície original e a limpeza físicoquímica pode alterar a cor da rocha. A nova tecnologia promete ser facilmente controlável e mais barata que as práticas habituais.

■ Samambaia

contra arsênico As samambaias têm custo baixo, são bonitas, fáceis de plantar e de cuidar e, de quebra, retiram arsênico do solo e da água. A singular característica de remover essa substância venenosa do ambiente foi descoberta há seis anos na Flórida, num solo contaminado de uma madeireira. O

arsênico é venenoso para os seres humanos, mas não para esse tipo de samambaia (Pteris vittata ou samambaia brake). “Foi estranho identificar uma planta com características tão úteis que ainda não haviam sido descobertas”, conta Bruce Ferguson, diretor da Edenspace, companhia norteamericana que detém a patente das samambaias, vendidas com o nome de “edenfern”(samambaias Eden), conforme o site AlphaGalileo. Hoje essas plantas funcionais estão em uso em todo o território dos Estados Unidos para remover arsênico. Só em Washington, 2.800 mudas foram plantadas, num esforço de retirar a substância numa área em Spring Valley. A região foi usada pelo governo norte-americano para testar armas químicas durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918).

A dificuldade para cultivar em laboratório o vírus varicela-zoster (VVZ) – causador da catapora – fez com que a professora Maria Isabel de Moraes-Pinto, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e a pós-graduanda Erika Ono chegassem a um exame para diagnóstico de varicela mais barato e prático. O Elisa indireto (sigla em inglês para ensaio imunoenzimático) é um dos exames mais utilizados para detectar no sangue, por exemplo, a presença ou ausência de anticorpos contra determinados vírus – como a varicela e o HIV. No caso do Elisa indireto para varicela, é necessário cultivar o vírus em laboratório, colocá-lo em contato com o soro do paciente e outras substâncias que, ao final do teste, produzirão uma coloração indicando a existência ou não dos anticorpos. “Como tínhamos dificuldade para cultivar o VVZ, pensamos: por que não utilizar o vírus vivo atenuado presente

na vacina contra a varicela? Nós testamos e deu certo”, conta Maria Isabel. O teste feito pelas pesquisadoras é o chamado Elisa in house (desenvolvido no próprio laboratório), que dispensa a compra do kit comercial, geralmente mais caro que o teste “caseiro”. Um kit comercial indireto para varicela custa em média US$ 2,70 por paciente. Ao pular a etapa da cultura do vírus as pesquisadoras chegaram a um custo de US$ 0,99 por paciente com o Elisa in house. “A idéia era simplificar o procedimento e permitir aos laboratórios que não têm condições de fazer uma cultura de células, mas utilizam o Elisa, se beneficiassem com esse método. É preciso ter apenas uma geladeira, uma incubadora e um leitor de Elisa”, afirma Erika Ono. O teste é importante em berçários para detectar funcionários que não sabem se tiveram catapora e, se apresentarem a doença, podem contaminar os bebês.

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A casca do cupuaçu está sendo usada em uma pequena comunidade amazônica no município de Manacapuru, a 90 quilômetros de Manaus, como biomassa para gerar 20 quilowatts (kW) de energia elétrica, suficientes para garantir o funcionamento de uma agroindústria de extração e venda da polpa do fruto, hoje vendida in natura. A produção da energia elétrica ocorre quando a casca é queimada dentro de um equipamento, chamado de gaseificador, com pouco oxigênio. A combustão incompleta produz um gás com poder calorífico comparado a cerca de 25% do gás natural, que é adicionado a um motor a diesel. “O gás reduz em até 80% o consumo de diesel”, diz a pesquisadora Sandra Apolinário, do Centro Nacional de Referência em Biomassa da Universidade de São Paulo. O projeto é da Financiadora de Estudos e Projetos. SETEMBRO DE 2004

Painel frontal simplifica tarefa de operador

■ Energia solar

para refrigerar Muito sol para produzir frio, climatização de ambientes e gelo. Esse é o princípio do sistema de refrigeração solar que está sendo desenvolvido na Universidade Federal do Ceará (UFC) em parceria com o Instituto Solar da Alemanha. O sistema funciona baseado em um ciclo térmico, com

são analisados pelo software e processados por dois microcontroladores, possibilitando melhor desempenho do equipamento. O Vidda 2.0, nome comercial do aparelho, já recebeu registro da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O acesso aos principais parâmetros do paciente é feito diretamente em um painel frontal, o que simplifica a tarefa dos operadores. “Além disso, as dimensões compactas do equipamento permitem que ele seja usado em dois tipos diferentes de suporte ou em bancadas de UTIs”, diz o engenheiro eletricista Carlos Eduardo de Araújo, diretor técnico e um dos sócios da empresa.

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uma fase de aquecimento e outra de resfriamento.“Na fase de aquecimento, a radiação solar aquece o equipamento (adsorvedor), que contém em sua superfície um material sólido, como carvão ativado. Esse material libera água e amônia na forma de vapor, que se condensam ao ceder calor pa-

ra o ambiente e escoar para o evaporador (congelador)”, descreve a pesquisadora Maria Eugênia Vieira da Silva, da UFC. Na fase seguinte, o equipamento é resfriado em contato com o ambiente, produzindo gelo ou água gelada no evaporador. Além de mais econômico, o refrigerador solar não polui o ambiente. Por enquanto, o equipamento ainda não está à venda.

LAURABEATRIZ

casca do cupuaçu

Um respirador artificial eletrônico desenvolvido pela Viddatech Eletromédica, empresa abrigada na Incubadora Tecnológica de Curitiba (Intec), no Paraná, traz como inovação a possibilidade de fazer o monitoramento a distância, via Internet, de um ou mais pacientes, internados em unidades de terapia intensiva (UTIs) de diferentes hospitais. Com isso, os médicos podem acompanhar o tratamento de seus pacientes de qualquer lugar e fazer os acertos necessários. Sensores, hardware e software simplificam e aceleram o controle de diversos indicadores do tratamento, como monitoramento da respiração do paciente e fluxo de gases (ar comprimido e oxigênio). Os dados coletados

VIDDATECH

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Respirador controlado via rede

■ Eletricidade da

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Patente

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UNICAMP

Inovação financiada pelo Núcleo de Patenteamento e Licenciamento de Tecnologia (Nuplitec) da FAPESP. Contato: nuplitec@fapesp.br

Software identifica partes do cérebro

Programa analisa estrutura cerebral

Vidros: novas formulações ■ Equação prevê

bilhões de vidros Uma parte considerável da comunidade científica e tecnológica acredita que estão esgotadas as novas formulações de vidros, materiais também chamados de não-cristalinos. Mas um trabalho dos professores Edgar Dutra Zanotto e Francisco Antônio Bezerra Coutinho, coordenadores adjuntos das áreas de ciências exatas e tecnologia da diretoria científica da FAPESP, mostra, de forma teórica, que ainda há bilhões de possibilidades para o desenvolvimento de novos materiais vítreos. A partir de 80 elementos químicos registrados na tabela periódica, que podem ser manipulados para a formulação de vidros, eles elaboraram uma equação que prevê o número fantástico de 1058 possíveis formulações. “Isso se considerarmos composições que apresentem apenas variações de 1% em 1%, como por exemplo um vidro com 1% de sódio e 99% de silício e, na seqüência, 2% de

sódio, 98% de silício etc.”, explica Zanotto, professor do Departamento de Engenharia de Materiais da Universidade Federal de São Carlos. “Se usarmos variações de 0,1%, teremos um número de composições maior que 10300”, diz Coutinho, do Departamento de Informática da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. O trabalho foi aceito para publicação na revista Journal of Non-Crystalline Solids. “Comecei a pensar nessa pesquisa depois de participar de recentes congressos sobre materiais não-cristalinos”, conta Zanotto. “Apesar de existirem mais de 200 mil materiais desse tipo registrados e outros milhares que são sigilosos em empresas e laboratórios pelo mundo, mostramos que o assunto está muito longe de ser esgotado. Com isso, sugerimos um amplo uso de simulações computacionais, em vez de experimentações puras que testam pequenas parcelas entre todas as possíveis formulações”, diz o professor Zanotto.

Software desenvolvido pela Faculdade de Engenharia Elétrica e Computação, em colaboração com o Laboratório de Neuroimagem da Faculdade de Ciências Médicas, ambos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), utiliza uma técnica de processamento matemático para segmentar estruturas cerebrais em exames de ressonância magnética que automatiza determinados procedimentos feitos pelo operador. Chamado de NeuroLine, o programa mede ou quantifica também outras estruturas do corpo humano, como, por exemplo, o volume de músculos ou de qualquer órgão. O operador faz marcações em vários pontos da imagem do cérebro ou outro órgão para obter parâmetros de volume, distância e conformação. Automaticamente a estrutura analisada é delineada pelo software sem a interferência do

operador de forma mais rápida e precisa. Por enquanto, o software está sendo utilizado por vários grupos de pesquisa da Unicamp, principalmente pelo Laboratório de Neuroimagem. Experimentalmente, o software está recebendo modificações para outras aplicações. Ele deverá em breve ser colocado na rede à disposição dos interessados fora da universidade, mas quem baixá-lo terá de preencher um formulário, para os pesquisadores poderem ter um controle de como será usado e até para implementar melhorias e receber sugestões. Título: Registro do Software Neuroline Desenvolvido em Projeto de Capacitação Inventores: Jane Maryam Rondina, Fernando Cendes e Roberto Alencar Lotufo Titularidade: Unicamp/FAPESP

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TECNOLOGIA ZOOTECNIA

Anavestruz cabeça Criação de ave africana no Brasil ganha teste de DNA e software para a gestão do negócio R ENATA PAIVA

Presente em propriedades rurais desde o século 19 na África do Sul, a avestruz chegou ao Brasil como ave de criação na década de 1990


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strutiocultura ainda é uma palavra desconhecida da maior parte dos brasileiros. Poucos sabem que ela trata da exploração comercial da avestruz, um animal nativo das savanas africanas que cada vez mais é visto nos pastos do Brasil. A atividade, que rende carne, couro e plumas, é nova no país, porque o rebanho só começou a ser de fato formado a partir da segunda metade dos anos 1990 e já apresenta uma expansão admirável. A Associação dos Criadores de Avestruzes do Brasil (Acab), entidade fundada no final de 1996, conta hoje com cerca de 260 membros e estima um plantel de 120 mil aves. Essa população faz o país ocupar a 5ª posição no ranking mundial de número de aves, atrás da África do Sul, país pioneiro na criação desses animais ainda no século 19, dos Estados Unidos, da União Européia e da China. Com tamanha concorrência, os empresários brasileiros já se mobilizam para disputar mercado em pé de igualdade com esses países. No interior de São Paulo, estado que ainda concentra a maior parte dos criadouros de avestruzes do país, há dois exemplos do quanto investir em tecnologia pode auxiliar no melhor desempenho desse novo tipo de criação. Um deles, na área de biologia molecular, desenvolveu uma técnica para identificação, em larga escala, do sexo dos filhotes de avestruzes nos primeiros dias de vida por meio de análise de DNA. O outro resultou num software de gestão para empreendimentos em estrutiocultura. Ambos receberam financiamento da FAPESP por meio do Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE). A importância da diferenciação sexual dos filhotes de avestruz é um dos principais fatores para a rentabilidade do setor


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que hoje está baseado na compra e venda de animais para a formação de plantéis porque o mercado para a carne e para o couro no país ainda é pequeno. Assim, quem quer aumentar o plantel ou pretende se iniciar na atividade precisa ter a garantia de que os animais têm boa origem. Ou, pelo menos, saber se os filhotes que está comprando são machos ou fêmeas. Em avestruzes, a diferenciação sexual entre machos e fêmeas ocorre somente a partir dos 6 meses de idade. Existe uma forma muito comum de identificar o sexo de aves em geral: o toque cloacal. Mas esse método é problemático por ser de difícil interpretação e, em se tratando de avestruzes, apresenta uma margem de erro que chega a até 40%. A prática também é estressante para o animal e pode ainda provocar infecções ou ferimentos, o que compromete a sua comercialização. “Percebemos que a sexagem precoce em avestruzes era uma necessidade dos criadores brasileiros”, conta Euclides Matheucci Júnior, pesquisador do Departamento de Genética e Evolução da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e sócio da empresa DNA Consult Genética e Biotecnologia, localizada também em São Carlos.

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atheucci descobriu que a identificação do sexo de avestruzes era um problema para os criadores e que sua empresa poderia oferecer a solução. A idéia apareceu quando ele pesquisava possibilidades de aplicação da biologia molecular em produção animal, numa tentativa de ampliar e diversificar o campo de ação da DNA Consult, até então especializada na investigação de paternidade em seres humanos. Investir no desenvolvimento de tecnologias voltadas para a criação de avestruzes lhe pareceu um bom caminho porque a atividade estava se expandindo rapidamente no país. Mas a sexagem de aves por meio da análise do DNA, embora fosse totalmente possível, exigiria o desenvolvimento de uma tecnologia que permitisse testes em larga escala. O projeto para a verificação da sexagem das avestruzes, iniciado em 2001, tem na coordenação a biomédica Adriana Medaglia. “Fizemos todos os testes e ajustes necessários para a aplicação da

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Filhote (acima): teste de DNA para detectar o sexo. Ao lado, a diferença de tamanho entre ovos de avestruz, ema, galinha e codorna

metodologia, com o objetivo de provar a sua viabilidade”, diz Adriana. O produto que a DNA Consult já comercializa é o teste que certifica o sexo das avestruzes ainda nos primeiros dias de vida. Esse teste é realizado a partir da extração do DNA contido nas células do bulbo das penas dos animais recém-nascidos. Com esse material, os pesquisadores conseguem analisar a molécula e isolar segmentos que poderão revelar, com muita precisão, se as seqüências de cromossomos analisadas pertencem à célula de um macho ou de uma fêmea. “Optamos por coletar o DNA da pena das aves e não do sangue porque, além de ser indolor e provocar menos estresse no animal, é muito mais simples e prático e pode ser feito, sem problemas, pelo próprio tratador, dispensando a presença do pesquisador no momento dessa coleta”, justifica Adriana. Para a realização de cada sexagem, o criador recebe um kit que contém um tubo onde ele deverá colocar as penas.

Esse recipiente, devidamente identificado, é encaminhado para o laboratório (até mesmo pelo correio) juntamente com informações sobre a ave, como idade, número de identificação etc. “O laudo sai em três dias”, diz Matheucci. Em avestruzes, assim como em humanos, existem os cromossomos chamados sexuais, aqueles que contêm os genes que determinarão o sexo da ave. Essas informações genéticas são diferentes nos indivíduos do sexo masculino e feminino. No caso dos humanos, esses cromossomos são chamados XX (mulher) e XY (homem). Além de ter um número de


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Teste para sexagem (acima). Couro da avestruz (ao lado) atinge o preço de US$ 250 o metro quadrado no mercado internacional

pares de cromossomos diferentes da espécie humana, nas avestruzes os cromossomos sexuais são denominados pelas letras ZZ (macho) e ZW (fêmea). Reação genética - Após extrair o DNA

genômico, presente nos cromossomos sexuais da ave, é feito a sua amplificação pela técnica denominada PCR (reação de polimerização em cadeia, do inglês Polymerase Chain Reaction), um processo enzimático por meio do qual se consegue amplificar milhares de vezes um determinado segmento do DNA. A técnica permite a amplificação de um

segmento de um cromossomo não-sexual (usado para comparação) e de um segmento do cromossomo sexual. Assim, o segmento de 648 pares de bases refere-se à amplificação do cromossomo W, presente apenas nas fêmeas, enquanto o segmento de 209 a 245 pares de bases é a banda controle que aparece tanto nos machos quanto nas fêmeas. Assim, cada vez que for possível visualizar dois segmentos de DNA é certeza de que se trata de um indivíduo do sexo feminino. Quando não se reconhece no material que foi amplificado a seqüência associada ao cromossomo W, podem-se supor duas coisas: ou se trata de um material genético de um indivíduo do sexo masculino, ou houve um erro no processo.“Por isso é que amplificamos também parte de um cromossomo não-sexual. Então, quando for um macho, aparecerá uma linha amplificada específica não-sexual e, se for fêmea, aparecerão duas linhas: uma do cromossomo sexual W e outra do controle”, conclui Matheucci.

A técnica de identificação do sexo de avestruzes por PCR mostrou-se bastante precisa e o laboratório já oferece esse tipo de serviço a criadouros de várias regiões do país. “Nós já temos condições de realizar os testes em grande escala, e esse é o mérito do nosso projeto porque os nascimentos das aves são sazonais, o que exige prontidão e rapidez de nossa parte”, esclarece Matheucci. Por enquanto, o preço do serviço ainda é alto, em torno de R$ 25,00 por animal. “Em breve, o laboratório terá seu próprio seqüenciador de DNA automático e os custos ficarão bem menores”, promete o pesquisador. Nos planos da DNA Consult ainda está o lançamento de um outro produto voltado exclusivamente para avestruzes. Trata-se de um teste para investigação da paternidade das aves. Valendo-se da mesma técnica de amplificação do DNA, a PCR, e comparando o material genético a ser estudado com os cromossomos da mãe e dos possíveis pais, os pesquisadores conseguem ter certeza sobre quais são os pais de determinados filhotes. “A identificação da paternidade, no caso das avestruzes, é de extrema importância para se evitar a consangüinidade. Pode-se com ela selecionar matrizes e reprodutores para aumentar a diversidade genética”, lembra Adriana. O serviço também será muito útil para os estabelecimentos que prestam serviços de incubação de ovos. “É uma garantia para o criador saber que os filhotes entregues vieram mesmo dos ovos deixados por ele no incubatório”, diz Matheucci. Gestão racional - Com o avanço da es-

trutiocultura no Brasil e a melhor visualização de suas especificidades, a empresa Brasil Ostrich, com sede na cidade de Pirassununga, em São Paulo, resolveu criar um software para a gestão das criações. Sob a coordenação do zootecnista Ricardo Firetti, o objetivo do projeto foi desenvolver um produto fácil de operar e que pudesse auxiliar o criador a administrar seu negócio de maneira racional. Desse modo, pensou-se num sistema para centralizar no computador todas as informações técnicas e econômicas que dizem respeito à atividade, além dos dados referentes à origem e ao histórico do rebanho. “Não havia no mercado nenhum software voltado exclusivamente para a criação PESQUISA FAPESP 103

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Não voa, mas corre muito Muito antes de se tornar mais um animal de fazenda, a avestruz (Struthio camelus) dificilmente passaria despercebida. Além de ser a maior ave do planeta, tem outras particularidades: não é capaz de voar, apesar de suas exuberantes penas, mas possui pernas longas e fortes que lhe permitem correr numa velocidade de até 60 quilômetros por hora. Animal típico das savanas da África, tem uma visão apuradíssima, o que lhe garante a sobrevivência num ambiente tão hostil, com muitos predadores e alimentação escassa. Consegue sobreviver, aliás, em ambientes com os mais diferentes climas, sob temperaturas que variam de abaixo de zero até 45ºC. Alimenta-se de gramíneas em geral, raízes, sementes, além de pequenos animais vertebrados e invertebrados. No cativeiro, um dos alimentos mais apreciados pela ave é a alfafa, embora tenha a fama de comer tudo que apareça pela frente. Outro mito da avestruz é o seu comportamento de colocar a cabeça em buracos para se esconder. Na verdade, trata-se de uma atitude de curiosidade do bicho em busca de pedregulhos, areia ou alimentos. A origem da história é ainda atribuída ao fato de a ave manter o pescoço abaixado enquanto come e mastiga. A distância, a impressão é que fica que sua cabeça está no chão. de avestruzes, que exige um manejo completamente diferente daquele praticado pela pecuária tradicional”, explica Firetti. As especificidades da criação de avestruzes começam pela própria natureza dessa ave que não voa.“É um grande animal que bota ovos como toda ave, mas se alimenta de capim como bois e cavalos”, resume o pesquisador. Apesar do tamanho e da fama de ser um animal rústico, a verdade é que fora do seu hábitat natural a ave se torna mais frágil, especialmente antes de alcançar a fase adulta. Os cuidados com os filhotes devem, portanto, ser redobrados. Os ovos passam por um rígido controle, desde o momento da postura até serem incubados, especialmente porque a incubação em geral é feita fora da propriedade, em estabelecimentos apropriados para esse fim, chamados de incubadoras. Uma vez constatada a viabilidade do projeto, partiu-se para o desenvolvimento de um protótipo que foi testado inicialmente na Brasil Ostrich e, numa segunda etapa, em empresas ligadas a ela.“Nosso objetivo era detectar os erros 68

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A avestruz pesa até 150 quilos e atinge 3 metros de altura

e eventuais problemas que o sistema pudesse apresentar”, diz Firetti. Depois de três meses de testes, o modelo foi consolidado e está no mercado desde o início de 2004. “Além das empresas que atualmente compõem o grupo, outras 20 já usam o sistema”, revela o zootecnista e empresário Celso da Costa Carrer, presidente da Brasil Ostrich. O sistema, denominado Data Ostrich, foi elaborado para suprir todas as necessidades reais que dizem respeito à estrutiocultura. Além de acompanhar as etapas do processo produtivo, do ovo à reprodução, ele permite que o usuário administre as mais diferentes tarefas diárias de manejo, como vacinações, troca de instalações, rodízio de piquetes, e tudo mais que aconteça com o animal até a sua comercialização. Firetti ressalta também a versatilidade do produto. “Para atender às necessidades dos mais diferentes perfis de usuários, o

Data Ostrich está disponível em duas versões: mono e multiusuário.” A primeira é recomendada a criadores que não possuem incubadora ou incubam apenas os ovos do próprio rebanho. Já a segunda, mais complexa, é adequada às empresas que usam sua estrutura ociosa para incubar ovos de terceiros ou que são especializadas em incubação e, portanto, necessitam monitorar ao mesmo tempo ovos e filhotes de procedências variadas. Em agosto último, as versões mono e multiusuário do Data Ostrich custavam, respectivamente, R$ 990,00 e R$ 2.790,00. Carne nobre - Investir no melhoramen-

to genético e no controle profissional do rebanho é um caminho sem volta para os criadores brasileiros, isso se realmente eles quiserem se firmar como grandes produtores mundiais de avestruzes e de seus produtos, que ainda


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FABIO COLOMBINI

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O macho adulto se diferencia da fêmea pelo tamanho e coloração da plumagem: branca e preta, enquanto as fêmeas são pardas. A ave pode atingir até 3 metros de altura e pesar 150 quilos. As fêmeas tornam-se sexualmente maduras por volta de 2 anos, põem cerca de 60 ovos por ano e desses nascem, em média, 20 filhotes. Os ovos pesam de 1 a 2 quilos e medem em torno de 15 a 20 centímetros de altura. O período de incubação é de 42 dias e os filhotes pesam por volta de 1 quilo ao nascerem. Os animais criados para corte são abatidos aos 15 meses, mas, na natureza, a ave vive em média 65 anos. Junto com as criações comerciais de avestruzes, tem aumentado também o interesse pela exploração econômica da ema (Rhea americana), ave pertencente à fauna silvestre da América do Sul. Ela é menor que sua prima africana, podendo atingir até 2 metros de altura, e é mais leve, pesando até 36 quilos. Apesar de fazerem parte de famílias e até ordens diferentes (a avestruz, que possui as patas segmentadas em duas partes, pertence à ordem estrucioniforme, enquanto a ema, com três segmentos, é reiforme), essas duas aves são as maiores de seus continentes, possuem visão aguçada, não voam e são muito velozes, além de serem onívoras. Por ser um animal exótico à fauna brasileira, o registro das criações comerciais de avestruzes é feito pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, enquanto a regulamentação dos criadouros de ema deve ser feita pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

A ema é menor, chega a 2 metros e 36 quilos e também é onívora

não ganharam mercado no Brasil. A carne que possui cor vermelha, com características nutricionais e físicas semelhantes às dos mais nobres cortes bovinos, com menos gordura e índices baixos de colesterol, ainda não caiu no gosto do brasileiro devido, principal-

mente, ao preço, R$ 66,00 o quilo. O couro que possui grande durabilidade e resistência e, ao mesmo tempo, é dotado de maciez atinge no mercado mundial preços de US$ 250 o metro quadrado. O terceiro produto, que são as plumas, foi o primeiro acessório de

OS PROJETOS Biologia molecular aplicada ao manejo racional de avestruzes MODALIDADE

Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE) COORDENADORA

ADRIANA MEDAGLIA - DNA Consult INVESTIMENTO

R$ 362.610,00

Desenvolvimento de sistema integrado de gestão para empreendimentos em estrutiocultura MODALIDADE

Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE) COORDENADOR

RICARDO FIRETTI - Brasil Ostrich INVESTIMENTO

R$ 178.539,00

avestruz a ser comercializado em larga escala, na África, ainda no século 19, e deve encontrar mercado no país, principalmente nas fantasias de Carnaval – o mercado é mantido atualmente por importações. Os criadores brasileiros, obviamente, almejam esses mercados. Mas ainda estão voltados para a formação de plantéis. Segundo Celso Carrer, que é também presidente da Acab, em torno de 80% dos animais produzidos pela Brasil Ostrich são vendidos para se tornarem matrizes ou reprodutores em outros criadouros. Atualmente, quem comanda o mercado de avestruzes e seus produtos é a África do Sul, com um rebanho de quase 1 milhão de cabeças. Estados Unidos e União Européia vêm atrás, com 300 mil e 200 mil animais, respectivamente. O couro é ainda o produto mais valorizado internacionalmente e o Japão é o principal país comprador. O maior mercado para a carne de avestruz é a Europa, com destaque para a Alemanha, que é quem mais consome esse tipo de carne no mundo. E o Brasil, o maior importador de plumas que são usadas nas avenidas, em dias de Carnaval. • PESQUISA FAPESP 103

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TECNOLOGIA

BIOINFORMÁTICA

Estruturas sem segredos Sistema desenvolvido pela Embrapa ajuda a compreender as funções das proteínas S AMUEL A NTENOR

D

esvendar a complexa estrutura das proteínas é uma tarefa essencial tanto no estudo dos processos biológicos quanto na indústria farmacêutica e, de forma mais específica, na análise dos resultados pósseqüenciamento de DNA de qualquer genoma. Para conhecer e interpretar melhor a complexidade dessas moléculas, muitos dos pesquisadores da área já estão usando um conjunto de softwares desenvolvido pelo Núcleo de Bioinformática Estrutural (NBI) da Embrapa In-

formática Agropecuária, de Campinas, uma das unidades da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. O novo conjunto de ferramentas, chamado de Gold Sting Suite (sequence to and within graphics ou seqüência dentro de gráficos-GSS), faz uma análise tridimensional das proteínas que ajuda os pesquisadores a compreender todo o engenhoso funcionamento molecular, incluindo aspectos como a formação de substâncias candidatas aos principais componentes na preparação de novos fármacos e defensivos agrícolas. Região de interface (em vermelho) do complexo entre a enzima tripsina (azul) e um inibidor (amarelo), formação útil para a criação de fármacos

“O produto está disponível no Protein Data Bank (PDB), ou Banco de Dados de Proteínas, no San Diego Supercomputer Center (SDSC), o maior banco de dados de estruturas de proteínas do mundo, na Universidade de San Diego, e na Universidade de Columbia, ambas nos Estados Unidos. Ele está disponível também em laboratórios públicos na Europa, Ásia e América Latina, assim como nos da Embrapa em Campinas e em Brasília”, diz o pesquisador Goran Neshich, líder do NBI. A reunião de todas as informações conhecidas sobre as estruturas das proteínas e o nível de detalhamento em um mesmo aplicativo favoreceram a aceitação mundial do Gold Sting. O conjunto de programas surgiu da necessidade de integrar as ferramentas de análise dessas estruturas que, antes, exigiam a utilização de vários softwares para as análises moleculares. Totalmente baseado em estudos biológicos disponíveis em bancos de dados públicos, o sistema da Embrapa é diferente dos demais direcionados a esse tipo de pesquisa por possibilitar a coleta detalhada de informações sobre a seqüência e a estrutura das proteínas, a natureza dos contatos atômicos entre os aminoácidos, além de informações sobre cavidades e superfícies da proteína e suas ligações. De acordo com Goran, são realizados por dia, pela Internet, entre 2 mil e 5 mil acessos ao aplicativo. Com o software e o banco de dados, os pesquisadores podem analisar, por exemplo, o funcionamento de atividades específicas de cada aminoácido nas proteínas. Essa análise, com todos os parâmetros atribuídos a eles, permite a


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Dados e parâmetros - Atualmente, grande parte das pesquisas em biologia molecular envolve a estrutura das proteínas porque os pesquisadores buscam conhecer suas funções e como elas podem ser modificadas. A versão mais recente do conjunto de softwares funciona, simultaneamente, como interface para a visualização de todas as informações demonstradas pelo sistema e como banco de dados das características das estruturas das proteínas.“O NBI é o único laboratório em âmbito mundial a oferecer produtos desse tipo. São 125 diferentes parâmetros que descrevem cada aminoácido dentro de uma estrutura protéica”, diz o pesquisador. O trabalho de pesquisa no NBI recebeu mais de R$ 2,8 milhões em investimentos, incluindo a participação da FAPESP, da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). As pesquisas no laboratório de Campinas envolvem estruturas protéicas de animais e de vegetais e representam um potencial de mercado mundial estimado por uma consultoria norte-americana em US$ 3 milhões. “Não comercializamos o software porque ele se insere na troca de informações entre pesquisadores de entidades públicas internacionais. O software é público porque os dados utilizados também são públicos”, esclarece. Desde 1998, já foram feitos mais de 12 milhões de acessos mundiais aos aplicativos do Gold Sting e das suas versões anteriores. As empresas do setor farmacêutico também utilizam o produto, mas apenas para treinamento e avaliação de potencialidades do próprio software e do banco de dados. “Embora tenham grande interesse nas pesquisas, as empresas não as fazem por vias públicas, para não correrem o risco de ter seus estudos privados conhecidos publicamente. Por isso, a melhor opção para elas seria a aquisi-

Representação do alinhamento de várias estruturas de serinoproteinases (família de enzimas digestivas)

ção do software para trabalhar em seus próprios computadores, fora da rede pública”, conclui. Novas versões - Com equipamentos de última geração, os dados colhidos pelo NBI são processados, calculados e armazenados, antes de serem disponibilizados. Para isso, o núcleo conta com seis pesquisadores permanentes em um grupo multidisciplinar formado por um matemático, dois engenheiros elétricos com especialização em software, uma física especializada em cristalografia de

O PROJETO Criação de um centro para a pesquisa e oferta de serviços em bioinformática (CB) MODALIDADE

Linha Regular de Auxílio à Pesquisa COORDENADOR

GORAN NESHICH – Embrapa Informática INVESTIMENTO

R$ 185.731,72 e US$ 285.741,10 (Projeto FAPESP) R$ 488.669,03 (CNPq) R$ 762.884,16 (Finep)

proteínas, um bioinformata e um biofísico. Eles têm como perspectiva novas atualizações do software em 2005, com o lançamento da versão Diamond Sting, e em 2006, com a Star Sting. Nesse ponto, o NBI deverá finalizar a criação de interfaces de softwares, voltando-se para o gerenciamento de informações, análises e agrupamento de dados. Ainda que comparativamente menores em relação às dos grandes centros mundiais de bioinformática, as pesquisas brasileiras nessa área têm crescido de forma considerável, tanto que o país foi escolhido para sediar, em 2006, a 14ª Conferência Internacional de Sistemas Inteligentes em Biologia Molecular, organizada pela International Society for Computational Biology e que pela primeira vez sairá do eixo Europa-Estados Unidos. Goran aposta no impacto que a discussão com pesquisadores internacionais trará às pesquisas brasileiras (mais informações no site: http:// www.iscb.org/ismb_2006). Para isso, está sendo articulada a criação da Sociedade Brasileira de Bioinformática e Biologia Computacional para congregar os pesquisadores em nível nacional. A intenção também é fortalecer o Gold Sting até 2006, possibilitando que o produto seja cada vez mais utilizado. • PESQUISA FAPESP 103

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IMAGENS EMBRAPA

aplicação do conhecimento obtido em sistemas que necessitam de dados experimentais. Na prática, isso significa que é possível aumentar ou diminuir a atividade de uma proteína, inclusive eliminando ações danosas ao organismo, como por exemplo irritações na pele ou qualquer outro efeito colateral do coquetel de proteases (componentes dos medicamentos) contra o vírus HIV.


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TECNOLOGIA

ENERGIA

Eletricidade do

hidrogênio Pequena empresa produz célula a combustível para suprir equipamentos eletrônicos domésticos

M ARCOS

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O LIVEIRA

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nergia elétrica para manter uma casa de classe média com televisão, computador, geladeira, microondas e um pequeno aparelho de ar-condicionado, além de outros equipamentos eletrônicos, de som até secador de cabelo, e lâmpadas para todos os cômodos. Essa é a função da mais nova célula a combustível produzida pela empresa UniTech, sediada na cidade de Cajobi, a 450 quilômetros da capital paulista. O equipamento produz energia a partir do hidrogênio e possui a capacidade de gerar 5 quilowatts (kW) de potência máxima em eletricidade. É o primeiro modelo da empresa adaptado para uso comercial, que deverá servir de base para uma produção em escala. Antes, a UniTech havia produzido vários protótipos com menos capacidade e colaborado numa célula de 1,5 kW produzida pela Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) (veja Pesquisa FAPESP nº 70). A nova célula é um gerador estacionário de energia elétrica montada dentro de um rack que mede 1 metro e 30 centímetros (cm) de comprimento por 84 cm de largura e 1,10 metro de altura. O coração do equipamento, que é a própria célula, mede 47 cm de comprimento por 30 cm de largura e 30 cm de altura. Ela será destinada a uma empresa da área de energia que financiou o equipamento. O nome da empresa ainda não pode ser divulgado devido a um acordo de confi-

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NEGREIROS

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tituir qualquer gerador de produção de energia elétrica”, diz Antônio César. As células a combustível fornecem uma energia limpa que não tem flutuação, portanto ideal para manter computadores e equipamentos eletrônicos, inclusive centros cirúrgicos, eliminando estabilizadores de voltagem e no breaks. “Os Estados Unidos recentemente instalaram cinco células a combustível de 200 kW para manter um sistema de segurança de cartão de crédito, justamente porque ele proporciona um maior grau de confiabilidade com menor queda de energia.”

M dencialidade. A célula está preparada para utilizar o hidrogênio obtido da reforma do gás natural ou do etanol. Para isso, a empresa que vai operar a célula já comprou um reformador, aparelho que quebra as moléculas do gás natural (possui moléculas com um átomo de carbono e quatro de hidrogênio, CH4), separando o hidrogênio e liberando o carbono que se liga com o oxigênio atmosférico e se transforma em dióxido de carbono (CO2). “A quantidade desse gás poluente emitida pela célula é muito inferior aos padrões estabelecidos para motores a combustão, por exemplo”, diz o químico Antônio César Ferreira, dono e idealizador da UniTech. A célula atinge zero de poluição quando é alimentada apenas com hidrogênio. Esse gás também pode ser extraído da gasolina, do metanol e do etanol, o álcool usado nos automóveis no Brasil. Pesquisas realizadas em todo o mundo testam protótipos de reformadores

para esse tipo de combustível, inclusive no Instituto de Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O hidrogênio também pode ser obtido da eletrólise da água, quando por descarga elétrica são separados o hidrogênio e o oxigênio. Mas esse processo ainda é considerado muito caro por exigir o gasto com energia elétrica. Além da total ausência ou de diminutas frações de poluentes, as células fazem também um trabalho silencioso, ao contrário dos geradores que funcionam com diesel ou gasolina, ou ainda as termoelétricas, todos excessivamente barulhentos. Silenciosas e não-poluentes, as células a combustível poderão ser implementadas em vários ambientes que necessitem de energia elétrica. “No início, principalmente em hospitais e shopping centers, elas devem ser utilizadas para aliviar a carga da rede. Quando a produção atingir larga escala e os custos baixarem, as células poderão subs-

esmo em áreas distantes dos grandes centros urbanos, a célula a combustível mostra-se uma alternativa confiável e importante. “As populações isoladas das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil que hoje utilizam geradores movidos a diesel (combustível transportado por caminhões e até barcos) poderiam estocar e fazer funcionar as células com hidrogênio extraído da água por meio da eletrólise produzida com energia solar. “Uma área de 100 metros quadrados (m2) produziria hidrogênio suficiente para uma casa porque é possível estocar hidrogênio em cilindros e usálo à noite ou quando não houver captação de energia solar suficiente, em dias nublados ou no inverno. Isso evitaria o custoso e difícil processo de armazenar energia elétrica obtida da energia solar ou eólica, tradicionalmente feito com uso de baterias.” O custo do quilowatt hora (kWh) de energia elétrica produzida com o sistema energia solar, eletrólise e célula a combustível deve ficar em torno de R$ 0,41. Esse sistema completo de geração de energia elétrica também está sendo desenvolvido pela UniTech. É claro que o preço de uma célula a combustível ainda é superior se comparado com os tradicionais geradores de energia. Antônio César calcula que o preço de uma célula tipicamente residencial com 5 kW custe cerca de US$ 4,5 mil (quase R$ 13.500,00). Para o consumidor, com células saindo de uma linha de produção, o kW instalado custaria entre US$ 1 mil e US$ 1,5 mil, mesmo custo da instalação de uma termoelétrica. Espera-se que o preço baixe

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EDUARDO CESAR

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Célula a combustível da UniTech: gerador silencioso e não-poluente ao custo de R$ 13 mil

quando as poucas empresas produtoras desse tipo de equipamento no mundo atingirem grandes escalas de produção. “Na operação da célula, a opção mais barata é o gás natural, que custa, no mínimo, R$ 0,76 o metro cúbico (1 m3), porção suficiente para produzir 4 m3 de hidrogênio e, conseqüentemente, 4 kWh de energia elétrica. Dessa forma, o kWh da energia seria de R$ 0,19.” Esse valor aumentaria para R$ 0,65 caso o consumo subisse para mais de 40 m3 por mês. Como comparação, o preço do kWh da energia elétrica fornecida pelas empresas energéticas em São Paulo, para residências, é de R$ 0,30. Atualmente, a opção de comprar hidrogênio é mais cara porque o m3 desse gás custa cerca de R$ 0,60, preço que varia conforme o volume utilizado. Outro fator que conta a favor da célula é o fornecimento de água quente. Como esse equipamento funciona em temperaturas ao redor de 70ºC , é preciso utilizar água para resfriá-lo. Desse processo sobra, então, a água quente, que pode ser usada em chuveiros e torneiras, eliminando o consumo de energia elétrica com esses aparelhos. “O uso da água para gerar calor eleva o rendimento energético da célula para 70 a 80%. Sem o uso da água cai para um 74

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nível entre 45 e 55%”, diz Antônio César. Esse rendimento é o resultado da transformação eletroquímica do hidrogênio em energia elétrica, e as perdas em geração de calor. Como comparação, o aproveitamento da gasolina em um motor de automóvel, por exemplo, é de 21%. Com diesel, sobe para 30,35%. O restante é perdido. Embora com tantos atributos, as células a combustível ainda estão num processo de evolução e testes pelo mundo. Um dos resultados estabelecidos é a manutenção periódica da célula, que deve ter seus eletrodos trocados a cada oito anos. Isso para o caso do tipo da célu-

O PROJETO Materiais avançados para fabricação de separadores bipolares para células a combustível de polímero condutor iônico MODALIDADE

Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE) COORDENADOR

ANTÔNIO CÉSAR FERREIRA – UniTech INVESTIMENTO

R$ 197.184,64 e US$ 77.482,00

la produzida pela UniTech, chamada de membrana de troca de prótons, conhecida pela sigla em inglês como PEM, em que a membrana é um polímero conhecido também como polímero condutor de prótons (politetrafluoretileno sufonado). A PEM está dentro de um sanduíche cercada por catalisadores e eletrodos de grafite com pólos positivo e negativo, como uma bateria usada nos automóveis, que funcionam como placas separadoras conduzindo os elétrons para fora das placas, gerando energia elétrica. Os prótons de hidrogênio, por sua vez, que são produzidos em um dos eletrodos (ânodos) atravessam a membrana e se juntam com o oxigênio atmosférico no outro eletrodo (cátodo), formando água. Produção em série - Os eletrodos e os catalisadores são os principais componentes a ser fabricados por uma empresa que se destina à produção de células a combustível. A membrana já é encontrada no mercado para compra como um insumo. Por isso a fabricação dos eletrodos em forma automatizada e em escala é agora um dos objetivos da UniTech. “Já temos a tecnologia de componentes e de montagem, agora falta automatizar a fábrica”, diz o empresário. A idéia inicial é produzir pelo menos mil unidades de 5 kW por ano. Antônio César, por enquanto, trabalha com mais dois engenheiros e três técnicos. Ele começou em 1998 por meio de um projeto do Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE) depois de ter passado nove anos nos Estados Unidos trabalhando como pesquisador na Universidade do Texas e em empresas que executavam projetos para a Agência Espacial dos Estados Unidos e para o Exército norte-americano. “Voltei definitivamente para o Brasil e para a minha cidade natal porque obtive a bolsa e o projeto da FAPESP”, conta Antônio César. “Eu tinha convites para continuar trabalhando lá, mas preferi vir para o Brasil. Se não fosse o PIPE, eu não teria voltado.” Posteriormente, a UniTech também recebeu financiamento de R$ 400 mil para a produção dos moldes das placas separadoras do Fundo Setorial de Energia (CT-Energ), administrado pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) do Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT). •


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TECNOLOGIA

BIOTECNOLOGIA

Arquivo

natural

Banco de extratos de plantas brasileiras vai ajudar na busca de novos medicamentos D INORAH E RENO

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Extracta Moléculas Naturais, do Rio de Janeiro, tornou-se a primeira empresa privada a conseguir autorização especial para extrair plantas das matas brasileiras com potencial medicinal, dada no final de junho pelo Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (Cgen), do Ministério do Meio Ambiente. “A apreciável coleção de extratos de vegetais que já tínhamos acumulado ganha nova legitimidade a partir do reconhecimento do conselho de que a maneira pela qual foi obtida é tecnicamente e eticamente correta”, diz Antônio Paes de Carvalho, fundador e presidente da Extracta. Com a autorização a empresa, criada em 1998 na Fundação Pólo Bio-Rio, a incubadora de empreendimentos em biotecnologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), poderá ampliar seu banco de extratos primários obtidos de várias partes das plantas (raiz, caule, folhas e frutos). Hoje eles somam 12 mil e têm como origem cerca de 5 mil espécies diferentes de plantas provenientes da Mata Atlântica e da Floresta Amazônica, que correspondem a quase 10% de toda a flora brasileira, estimada entre 55 mil e 60 mil espécies. Esses extratos primários já deram origem a 40 mil compostos, disponíveis para clientes interessados em usar substâncias, com potencial para se transformar em novos medicamentos, encontradas na rica biodiversidade brasileira. Um desses clientes é a multinacional de origem britânica GlaxoSmithKline, que em 1999 fechou um contrato com a empresa de biotecnologia, no valor de US$ 3,2 milhões. A primeira parte do acordo, encerrada em 2002, envolveu a busca de substâncias capazes de reagir contra oito alvos biológicos definidos pela multinacional. Na atual fase, as escolhas foram direcionadas para o desenvolvimento de dois medicamentos com atividade antibiótica, um para combater o Staphylococcus aureus, bactéria de grande agressividade na infecção hospitalar, e outro para inibir a elastase, uma enzima que nas doenças pulmonares obstrutivas crônicas age nas fibras elásticas, enfraquecendo-as e destruindo-as. A empresa tem ainda contratos com mais quatro clientes industriais, dois nacionais e dois internacionais, que, segundo Carvalho, não podem ser revelados por conta de cláusula de sigilo. “O contrato com a multinacional britânica tornou-se público du76

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MIGUEL BOYAYAN

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Mata Atlântica: reservatório de novos extratos de plantas

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rante a CPI dos medicamentos, quando a Glaxo se defendeu da acusação de fazer apenas comércio em território nacional, e nenhuma pesquisa, mostrando o acordo com a Extracta”, diz Carvalho, ex-diretor do Instituto de Biofísica da UFRJ e hoje professor emérito da universidade. Acertos prévios - O processo para obter os extratos primários começa com incursões feitas por botânicos e engenheiros florestais em propriedades privadas situadas em áreas ainda preservadas. A busca é feita sem nenhuma escolha prévia. Mas antes de começar a ser efetuada a empresa faz acertos prévios com os proprietários das terras, necessários para definir, no caso de algum princípio ativo interessar a laboratórios da indústria farmacêutica, a forma mais adequada de remuneração. Desde a criação da empresa até agosto deste ano, as equipes de pesquisa já fizeram 179 expedições, das quais cerca de 80% a terras situadas principalmente no Estado do Rio de Janeiro. Minas Gerais, São Paulo, Espírito Santo e sul da Bahia colaboraram com pequena parcela das amostras retiradas da Mata Atlântica. Já a contribuição da Amazônia no banco de extratos é da ordem de 20%. A análise das plantas retiradas da Floresta Amazônica é feita pela Universidade Federal do Pará (UFPA), que possui uma central de extração idêntica à da Extracta, montada pela empresa como um adiantamento do retorno de benefícios e que já foi incorporada ao patrimônio da instituição. A prospecção e a extração de amostras são feitas pelos pesquisadores da universidade. Cada extrato vegetal depositado no banco de biodiversidade química da empresa possui um registro da exata localização geográfica da planta, determinada, no local, pelo sistema GPS (Global Positioning System) de identificação por satélite. Todos os vegetais estão registrados com imagens digitais feitas na própria área de coleta. Atendendo às exigências da Convenção da Diversidade Biológica, de 1992, e da legislação brasileira, uma amostra de cada espécie colhida pela Extracta é depositada no herbário do Instituto de Biologia da UFRJ. O herbário presta serviços de identificação botânica para a empresa e também tem participação nos direitos de propriedade intelectual sobre o material identificado.

As plantas coletadas são encaminhadas para a empresa, onde passam por um processo de secagem e seguem para a central de extração, que conta com 24 evaporadores rotatórios. Os extratos ganham código de barras e passam por ensaios de cromatografia de camada fina e gasosa e espectrometria de massas, técnicas que servem para a identificação dos componentes isolados das plantas. A seleção das substâncias ativas candidatas a gerar moléculas de interesse da indústria farmacêutica começa com uma triagem robotizada, chamada de screening, ou ensaio biológico de alta velocidade, que permite fazer 24 mil testes por dia. “O número de candidatos a gerar moléculas é muito grande, porque a natureza brasileira é riquíssima”, diz Carvalho. “Colhemos apenas 2,5 quilos de cada planta e conseguimos chegar a uma molécula nova.” Feita a triagem inicial, começa o trabalho dos químicos, que levam de quatro a seis meses para obter os compostos ativos. Cada ensaio em busca de uma molécula nova custa entre US$ 300 mil e US$ 400 mil. Atividade antibiótica - Em 2000 a Ex-

tracta saiu da incubadora e alugou um terreno de 200 mil metros quadrados, dentro do campus da UFRJ, no espaço da Pólo Bio-Rio destinado a lotes industriais, onde construiu 700 metros quadrados de laboratórios e investiu US$ 5 milhões. Atualmente são quatro os acionistas responsáveis por todas as decisões tomadas na empresa. Os sócios fundadores detêm 38% das ações, um fundo administrado pelo Banco Pactual tem outros 32%, a empresa Oxiteno, do Grupo Ultra, 19%, e a Fundação Biominas, instituição privada sem fins lucrativos, 9%. Um resíduo menor que 2% pertence ainda à empresa inglesa Xenova, que colaborou na organização inicial da Extracta em 1998. A empresa, que tem duas patentes de substâncias com propriedades antibióticas depositadas em 14 países, está apostando em uma área nova, a de fitoterápicos. “Antes estávamos direcionados somente na busca de moléculas finais. Agora queremos usar os recursos de que dispomos em nosso banco de extratos”, diz Carvalho. Apenas com atividade antibiótica, a empresa possui 59 extratos já testados in vitro, dos quais só três estão ligados à Glaxo. • PESQUISA FAPESP 103

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HUMANIDADES URBANISMO

Enchentes

As águas encontram saídas Projetos de recuperação de áreas verdes e da porosidade do solo amenizam o impacto das chuvas C ARLOS F IORAVANTI

A

cearense Maria Gonçalves, de 46 anos, a maranhense Ivoneide Palmeira, de 44, e George Duner, paulista de 35 anos, colhem couve, beterraba e milho da horta que ocupa um terreno antes abandonado ao lado de um viaduto da principal avenida da Zona Leste da cidade de São Paulo. Os três fazem parte de um grupo de nove homens e 12 mulheres cujo trabalho de cultivar a terra, ainda que pontual, ajuda a evitar o triste espetáculo que acompanha as chuvas de final de ano: rios transbordando, avenidas inundadas, carros boiando, pessoas segurando-se em postes para não serem levadas pela correnteza, casas cobertas pelas águas e o trânsito parado durante horas em cidades transformadas em lagos. Reflexo do desmatamento e da construção de avenidas, casas e indústrias nas planícies às margens dos rios, por onde o excesso de água das chuvas se infiltraria naturalmente, as enchentes são um tormento nacional: em 1998 e 1999, 1.235 municípios, correspondente a 22% do total, sofreram com rios que transbordaram e invadiram ruas e casas. No início deste ano, 338 municípios de 15 estados viram-se em situação de emergência, 84 pessoas morreram e 104 mil perderam as casas por causa das chuvas fortes, que recomeçam agora em setembro e seguem até março com intensidade crescente. Mas algumas experiências recentes indicam que as enchentes não são necessariamente fenômenos inevitáveis como um terremoto. Com a participação da população ou por meio de novas leis, em cidades perseguidas pelas enchentes como São Paulo, Porto Alegre e Recife, procura-se agora recuperar áreas verdes, criando hortas ou restaurando praças, e assim reduzir a impermeabilização do solo, um dos agravantes das enchentes. Quando o solo está coberto por asfalto e concreto, o volume de água das chuvas em circulação aumenta em até sete vezes em relação ao solo descoberto. Sem ter onde se infiltrar, a água segue rapidamente para os terrenos mais baixos, ocupados em geral pelos moradores mais pobres, as habituais vítimas das inundações. Em paralelo ao esforço de oferecer espaços para a água se infiltrar, a freqüência dos ala78

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Vale do Ribeira, sudeste de São Paulo, 1985: chuvas correm para os terrenos mais baixos, onde moram os mais pobres


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JUCA MARTINS/OLHAR IMAGEM

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Os lagos de todo ano

gamentos levou a uma revisão conceitual: já não se pensa mais que somente a construção de grandes reservatórios de retenção temporária de água, os piscinões, e a canalização de rios vão acabar com o suplício dos finais e começos de ano.

O

mesmo estudo que alertou para a necessidade de ações paliativas na Zona Leste, o Atlas ambiental do município de São Paulo, feito por uma equipe da prefeitura em colaboração com geólogos, geógrafos, ecólogos e engenheiros da Universidade de São Paulo (USP), fundamentou a proposta de transformar em área de proteção ambiental os trechos iniciais do córrego Aricanduva, um dos afluentes do Tietê – a maior cidade do país, com cerca de 10 milhões de habitantes, é cortada por 3.200 quilômetros de rios e córregos, dos quais 400 quilômetros já canalizados. “Se essa área for ocupada, as obras de rebaixamento da calha do rio Tietê e os piscinões não serão suficientes para conter as enchentes nos próximos anos”, assegura Patrícia Sepe, geóloga da Secretaria do Verde e Meio Ambiente (SVMA) de São Paulo e uma das coordenadoras do Atlas. Segundo ela, a preservação dessa área de 22,7 quilômetros quadrados, um dos últimos remanescentes de vegetação natural da Zona Leste, foi uma reivindicação dos próprios moradores do bairro de São Mateus, nos debates para a elaboração

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VANDERLEI ALMEIDA/AFP

Em março de 2004, moradores de Marabá, no Pará, enfrentaram as chuvas, que em janeiro já haviam inundado as ruas do Rio de Janeiro. Todo ano, um em cada cinco municípios brasileiros vive o drama dos rios que transbordam e cobrem quase 500 quilômetros quadrados em todo o país

do Plano Diretor Regional, em 2002 e 2003. Em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, o Plano de Drenagem Urbana, aprovado em 2000, condiciona a liberação dos projetos de novos loteamentos a estratégias para contenção da água de chuva, por meio de reservatórios ou gramados: os condomínios a ser construídos não podem soltar para os terrenos vizinhos mais água do que antes da construção. As estratégias de combate às enchentes às vezes constam dos planos diretores das cidades, aprovados de dois anos para cá, com a perspectiva de direcionarem a ocupação urbana com um pouco mais de atenção às áreas verdes e ao relevo do que os planos anteriores, concebidos três décadas atrás com ênfase na busca de novas áreas para residências ou indústrias. Em alguns casos, como na Região Metropolitana de Curitiba, no Paraná, na cidade gaúcha de Caxias do Sul ou em Santo André, no ABC paulista, e em Penápolis, interior de São Paulo, há planos integrados das redes de drenagem, de abastecimento de água e de esgotos, normalmente construídas em separado. São táticas que prometem custos menores e evitam os erros do passado. “O planejamento territorial não pode mais levar em conta apenas as potencialidades dos recursos naturais, como relevo, água e clima”, comenta o geógrafo Jurandyr Ross, da USP. “Deve dar atenção também para as fragilidades ambientais, que afetam não só a natureza, mas principalmente a sociedade.”

Leis é que não faltam. Nunca faltaram. Luiz Roberto Jacintho, engenheiro agrônomo da Secretaria do Verde de São Paulo, comenta que as chuvas não seriam inimigas dos moradores das cidades se ao menos duas leis federais tivessem sido respeitadas: o Código Florestal, de 1965, segundo o qual deve ser deixada intocada uma faixa de 30 metros nas margens dos rios e de 50 metros nas bordas das nascentes; e a Lei de Parcelamento (ou Lei Lehmann), de 1979, que estabelece as áreas das cidades a serem ou não ocupadas. “Mas nas últimas décadas, por causa da pressão demográfica, os loteamentos clandestinos ocuparam a maior parte das áreas que deveriam ser mantidas livres.” Em 2002, o Ministério Público ordenou a aplicação do Código Florestal em Recife, capital de Pernambuco, com 1,5 milhão de moradores, situada na foz de três grandes rios e permeada por mais de 60 canais, com cheias seculares. A prefeitura acatou a decisão do Ministério Público, mas a população protestou: dos 217 quilômetros quadrados da cidade, 70 estavam sob influência do código e, desses, mais da metade já ocupada por residências. Seguiram-se debates públicos e, em dezembro de 2003, após 41 rascunhos, a Câmara Municipal aprovou uma solução conciliadora: haveria faixas maiores, de 40 a 120 metros, acima do estabelecido no Código Florestal, ao longo das margens ainda preservadas dos rios, e se permitiriam algumas exceções, nos loteamentos já estabelecidos ou aprovados às margens


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ANTONIO SCORZA/AFP

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dos rios, em que não havia mais vegetação natural. Recife adotou também um mecanismo de compensação: quem construir nas margens dos rios terá de recuperar uma área verde equivalente ao dobro da área do lote – construir uma casa em um lote de 300 metros quadrados implica plantar árvores ou criar jardins em 600 metros quadrados de uma praça, um parque ou bordas de cursos d’água.“Já temos 40 projetos em fase de aprovação sob a nova lei, cada um deles implicando a recuperação de mil metros quadrados, em média”, conta Mauro Buarque, diretor-geral da Secretaria de Planejamento, Urbanismo e Meio Ambiente. “Em dois anos, quando essas áreas já tiverem sido implantadas, temos a expectativa de bem menos problemas com enchentes.” Paradigma invertido - Estão mudando também as bases conceituais com que se procura resolver as enchentes: não mais fazendo a água correr o mais rapidamente possível para os rios por meio de canais – uma estratégia que, hoje se reconhece, apenas transfere o problema para as regiões vizinhas –, mas retardando a vazão, por meio de reservatórios e de áreas permeáveis. “A estratégia de fazer a água escoar rapidamente é totalmente errada, por concentrar a inundação em poucos pontos das cidades”, comenta o engenheiro civil Carlos Tucci, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).“Boa parte dos problemas atuais”, acrescenta o enge-

nheiro civil Ricardo Bernardes, da Universidade de Brasília (UnB), “deve-se à visão distorcida de que as obras resolveriam tudo.”

O

antigo paradigma começou a afundar diante de seus próprios limites. Vinte anos atrás, por mais que se canalizassem córregos e rios, não havia como evitar as enchentes da região central da cidade de São Paulo, a maior cidade do país, cuja prefeitura gasta cerca de R$ 200 milhões por ano para amenizar o impacto das enchentes. Naquela época, os engenheiros não encontraram outra saída a não ser construir um reservatório gigantesco para segurar as águas das chuvas – e assim nasceu o piscinão do Pacaembu, o primeiro do país, inaugurado em 1995. Hoje há piscinões também em Porto Alegre, Curitiba, Natal, Maceió e Teresina. Mas, por mais que se protejam, as cidades sempre estarão vulneráveis aos efeitos das chuvas intensas. “Em algum momento, qualquer barreira será superada, porque as chuvas sempre podem ser mais intensas do que as consideradas nos projetos de engenharia”, diz Bernardes. No início de 2004, o córrego Aricanduva mais uma vez transbordou, resultado do excesso de chuvas: choveu mais nos primeiros quatro dias de fevereiro do que durante todo o mês de fevereiro em cada um dos dois anos anteriores. No Nordeste, o Rio São Francisco encheu como não se via há 18

anos, e suas águas ocuparam as ruas e casas de 104 municípios. Rios tranqüilos durante anos seguidos às vezes também são perigosos, por sugerirem que não vai acontecer nada de anormal. Em Santa Catarina, 70 anos de relativa tranqüilidade deram à população confiança para ocupar as bordas dos rios Itajaí e Açu. Na grande cheia de 1983, Blumenau ficou sob as águas. Hoje, os custos pesam contra o velho paradigma.“A canalização custa de três a dez vezes mais que a construção de reservatórios para resolver o mesmo problema”, diz Tucci. De acordo com o estudo de um de seus alunos de doutorado, Marcos Cruz, apresentado em junho na Câmara Municipal de Porto Alegre, os custos para controle das enchentes na capital gaúcha por meio de canais chegam a R$ 1,4 bilhão, enquanto com medidas sustentáveis – piscinões, trincheiras, áreas de infiltração e pavimentos permeáveis – seriam de R$ 221 milhões. “Enquanto os países ricos verificaram que os custos de canalização e de condutos eram muito altos e abandonaram esse tipo de solução há 30 anos, países pobres adotam sistematicamente essas medidas, perdendo duas vezes, com os custos maiores e o aumento do prejuízo”, diz Tucci. Segundo ele, o custo de canalização por quilômetro foi de US$ 50 milhões no rio Tamanduateí, na cidade de São Paulo, e de US$ 25 milhões no rio Arrudas, em Belo Horizonte.“Nos dois casos, as enchentes voltaram logo após as obras terminarem.” O ladrão da poupança - Anos atrás,

Paulo Canedo, engenheiro civil da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), conduziu as obras contra as inundações causadas por três rios nos municípios da Baixada Fluminense, Região Metropolitana do Rio de Janeiro. “Por causa de uma urbanização absolutamente predatória, era enchente atrás de enchente”, conta. Ao assumir como presidente da Superintendência Estadual de Rios e Lagoas (Serla), em março de 1991, Canedo paralisou as obras de canalização que já haviam sido iniciadas e pôs-se a estudar os mapas da região, em busca de alternativas. Canedo chama de sorte o fato de ter descoberto uma área desabitada próxima às nascentes de um dos rios, o Sarapuí, que funcionava como campo de testes de artilharia do Exército. Após alPESQUISA FAPESP 103

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Menos concreto, menos problemas

gumas negociações, conseguiu a autorização dos militares para usar esse espaço como área de amortecimento das cheias. Mais adiante, construiu uma barragem de 7 quilômetros de extensão, que reteve o excesso de águas do Sarapuí e parte das que vinham de outro rio, o Pavuna, antes de chegarem às cidades. Custo da obra: US$ 12 milhões, dez vezes menos que o previsto inicialmente. Houve ainda outro ganho, mais sutil e profundo. “Resolvendo as enchentes”, diz ele,“conseguimos quebrar o ciclo perverso de empobrecimento crônico: a cada ano os moradores da baixada ficavam mais pobres, porque tinham de gastar a pequena poupança do ano para repor, ainda que parcialmente, os prejuízos causados pelas inundações. A enchente era o ladrão que levava a poupança.” Com as águas contidas, ele conta, os moradores começaram a usar as economias em reformas ou em construções, agora feitas com tijolos novos e vermelhos, não mais com tijolos velhos e cinza como antes. A geóloga Harmi Takiya – desde 2002 à frente de uma das 31 subprefeituras da cidade de São Paulo, a da Mooca, uma área de 35 quilômetros quadrados com 308 mil habitantes na Zona Leste – abre sobre sua mesa o mapa geológico do município e mostra: enquanto as bordas da cidade estão em áreas altas, de terrenos antigos, pouco habitadas e cobertas por vegetação natural, esta região da Zona Leste encontra-se em uma planície inundável, entre os córregos Aricanduva e Tamanduateí, afluentes do Tietê. Em seguida, ela se 82

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CARLOS TUCCI/UFRGS

Pesquisadores da UFRGS demonstraram que pisos e calçadas feitos com paralelepípedos e blocos reduzem o escoamento de água em 40% a 65%, enquanto um gramado detém pelo menos 95%. Em um piso de concreto ou asfalto a relação é inversa: só 5% da água é que se infiltra

volta às fotos de satélite fixadas na parede. Notam-se os vastos condomínios horizontais de casas, dezenas de galpões industriais, hoje em boa parte abandonados, na avenida Presidente Wilson, próximo ao rio Tamanduateí, e apenas uma mancha verde, o Parque do Carmo, em Itaquera, a cerca de 25 quilômetros da Mooca. “É um cenário extremamente árido”, diz.

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or lá, há realmente muito pouco verde. No Atlas ambiental, que Harmi coordenou quando estava na Secretaria do Verde, os distritos do Brás, da Água Rasa e da Mooca, que formam a subprefeitura, aparecem com zero, 0,4 e 2,2 metros de área verde por habitante, enquanto no Morumbi, um bairro alto do outro lado da cidade, há 239 metros de vegetação natural por morador. Por causa da escassez de árvores e do excesso de concreto, a temperatura da Zona Leste é uma das mais altas da cidade: 32oC no Brás e 31,5o na Mooca, ao passo que no Morumbi a média anual é 27,5oC. Harmi valeu-se do Atlas, dos estudos da Secretaria de Planejamento e de outras bases de dados para implantar, em conjunto com a população, uma série de medidas que aumentam a permeabilidade do solo – algumas com nítido impacto social. À limpeza de 20 mil bueiros de rua e da rede de galerias de águas pluviais, para a chuva escoar em vez de atrapalhar a vida de todos, somou-se a recuperação dos espaços

públicos: 51 das 197 praças já foram reformadas e agora, com mais terra e árvores e menos concreto, funcionam como áreas de retenção da chuva – em todo o município, de 1.500 quilômetros quadrados, segundo a Secretaria de Infra-Estrutura Urbana (Siurb), nos últimos três anos foram recuperados cerca de 800 mil metros quadrados de área verde, por meio do replantio de árvores ou restauração de praças. Na Zona Leste, ao menos duas medidas saíram do comum: a transformação de uma área abandonada de 7 mil metros quadrados ao lado de um viaduto em uma horta mantida por 21 chefes de família, que recebem uma ajuda de custo de R$ 315 por mês; e o Ecoponto, uma central de recolhimento de entulhos, à qual convergem cerca de 2 mil toneladas por mês de sobras das reformas domésticas, restos de madeira e móveis velhos que antes ficavam pelas ruas, entupiam os bueiros e contribuíam para os alagamentos – hoje vão diretamente para os aterros da cidade. Nas reuniões para a elaboração do Plano Diretor Regional, “a maior reivindicação dos moradores foi justamente por mais áreas verdes e de lazer”, diz Harmi. “As intervenções pontuais, como as calçadas verdes, propostas pelos moradores de Tatuapé, com 40% de gramado em vez de cimento, ajudam muito a deter as enchentes.” Segundo Bernardes, da UnB, transformar em gramado um terço de uma área cimentada – em uma simples calçada, em um lote ou em uma parte da área urbanizada da


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EDUARDO CESAR

vereiro de 2004, o próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com seis ministros, visitou Petrolina, em Pernambuco, com 2.300 pessoas desabrigadas e 134 casas destruídas, e se disse comovido como o estrago causado pela cheia monumental do São Francisco.

cidade – permite reduzir em um quarto a vazão de água que haveria se toda a área permanecesse impermeável. Briga de bairros - Ações pontuais, entretanto, não são suficientes, alerta Tucci. Segundo ele, é fundamental administrar o fluxo de água dentro de compartimentos das bacias hidrográficas – as sub-bacias –, como começa a ser feito em Curitiba e em Porto Alegre. Mas, como as sub-bacias podem abrigar mais de um bairro, nem sempre é fácil administrar os conflitos que surgem. Até pouco tempo atrás, os moradores dos bairros de Chácara das Pedras, Três Figueiras e Bela Vista, na porção leste da capital gaúcha, recusavam-se a aceitar a transformação de algumas praças em reservatórios para as águas que transbordassem do rio Areia. Em primeiro lugar, temiam que se tornassem depósitos de lixo. Além disso, não eram eles que sofriam com as enchentes, preocu-

pação somente dos bairros vizinhos, situados em terrenos mais baixos. “Não há incentivo à prevenção contra enchentes porque há um ganho político”, dispara Tucci, que estuda o impacto das chuvas no país há 30 anos. “Quando os municípios entram em estado de calamidade pública por causa das enchentes, os prefeitos recebem dinheiro a fundo perdido que podem usar sem licitação.” As ações de emergência predominam também no âmbito federal, embora a Constituição atribua à União a responsabilidade de agir de modo preventivo contra secas e enchentes. Em janeiro de 2001, após as enchentes do início do ano terem atingido quase 82 mil pessoas em Minas Gerais, 8,2 mil no Rio de Janeiro e 9,1 mil em São Paulo, o então ministro da Integração Nacional, Fernando Bezerra, reconheceu: o governo deveria ter se preparado para enfrentar um problema que se repete. Três anos depois, em fe-

OS PROJETOS Atlas ambiental do município de São Paulo MODALIDADE

Biota/FAPESP COORDENADORA

HARMI TAKIYA – SVMA INVESTIMENTO

R$ 148.845,00 (FAPESP)

Planejamento integrado de sistemas de saneamento MODALIDADE

Linha Regular de Pesquisa COORDENADOR

RICARDO SILVEIRA BERNARDES – UnB INVESTIMENTO

R$ 100.000,00 (UnB)

Idéias do campo - As soluções contra as enchentes passam também por uma revisão do papel dos moradores das cidades. “Deixando a água da chuva que cai nos telhados e quintais correr para a rua, transferimos o problema para o poder público, como fazemos com o lixo e o esgoto”, afirma Ross, da USP. Para ele, os proprietários dos espaços públicos e privados – e não só os novos construtores – deveriam ajudar a reter as águas pluviais, instalando mais gramados ou reservatórios. Esses artifícios de aplacar as chuvas metro por metro, gota a gota, por meio do que os engenheiros chamam de medidas não-estruturais, antes eram inaceitáveis. Ross trabalhava como assessor voluntário da Empresa de Planejamento Urbano de São Paulo (Emplasa) em 1985 quando participou de um estudo piloto para conter as enchentes do rio Cabuçu de Cima, na divisa de São Paulo com Guarulhos. Mapeou o relevo, analisou as formas de uso da terra, identificou áreas inundáveis e pontos de estrangulamento de vazão da água e sugeriu que os donos dos prédios, casas e indústrias construíssem pequenos reservatórios que segurassem o fluxo das chuvas. “Fui chamado de louco”, conta ele. Sugestão abandonada, claro. Ao expor suas idéias, Ross havia se lembrado dos tempos em que era garoto, em um sítio no interior do Paraná, e via seu avô Thomaz Sanchez e seu pai, Dionizio Hernandez, fazendo caixas escavadas na terra para conter a água das chuvas, que depois se espalhava naturalmente pela plantação de café. Bem mais tarde descobriu que a mesma técnica faz parte do plantio direto, em que se procura revolver a terra o mínimo possível e aproveitar ao máximo a água, induzindo sua infiltração, que ao mesmo tempo melhora a umidade do solo e evita a erosão.“Temos de interagir com o que acontece no campo”, diz ele. “Os engenheiros e moradores da cidade poderiam aprender um pouco mais com os agricultores e engenheiros rurais.” • PESQUISA FAPESP 103

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Caymmi divertia-se cultivando a imagem de preguiรงoso


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HUMANIDADES

ANTROPOLOGIA

A invenção

daindolência Tese que denuncia o racismo embutido no mito da preguiça baiana vai sair em livro F ABRÍCIO M ARQUES

C OLAVO RUFINO/AJB

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ertos baianos, quando são chamados de preguiçosos, tomam até como elogio. Dorival Caymmi e Gilberto Gil, por exemplo, assumiram com galhardia a malemolência que lhes é atribuída. A proverbial preguiça, argumentam, é um traço de identidade cultural da Bahia, expressão de um modo de vida em que o trabalho não precisa opor-se ao lazer. Segundo a tese O mito da preguiça baiana, defendida na Universidade de São Paulo (USP) em 1998 pela antropóloga Elisete Zanlorenzi, a origem desse estereótipo nada tem de benigno. Foi engendrado pela elite da Bahia com o objetivo de depreciar os negros, a maioria esmagadora da população local. Isso remonta aos tempos da escravidão e ganhou fôlego em reação à Lei Áurea. Defendida em1998, a tese teve repercussão dentro e fora do ambiente acadêmico, mas só agora será publicada na forma de livro, com lançamento programado para o final do ano. A obra sustenta que a vida tranqüila e a famosa aversão ao trabalho atribuídas aos baianos não têm base na realidade. Elisete foi pesquisar, por exemplo, a relação entre o calendário de festas na Bahia e o comparecimento ao trabalho. Fez descobertas curiosas. Uma empresa com sede no Pólo Petroquímico de Camaçari, a 41 quilômetros de Salvador, registrou menos faltas de funcionários durante o Carnaval de 1994 do que sua filial de São Paulo. Outro dado eloqüente: no final dos anos 1980, entre as pessoas ocupadas na Região Metropolitana de Salvador, 50,4% trabalhavam mais de 48 horas semanais e 35,8% de 38 a 47 horas por semana. Não trabalham mais provavelmente porque não há mais trabalho. Entre as seis maiores regiões metropolitanas do país, Salvador é recordista em desemprego e em trabalho informal, fenômeno que atinge, com vigor especial, os 80% da população que são afro-descendentes. De acordo com a antropóloga, a ladeira da Preguiça, no centro de Salvador, é símbolo do preconceito. Nos tempos da escravidão, e também depois dela, quem reclamava da íngreme travessia, carregando nas costas as mercadorias desembarcadas no PESQUISA FAPESP 103

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porto, eram os negros – “preguiçosos” na visão desdenhosa dos brancos que, das janelas de seus sobrados, gritavam: “Sobe, preguiça!”. A intensa imigração nordestina nos últimos 50 anos fez o racismo vicejar no Sul e no Sudeste. Fora da Bahia, o termo “baiano”, segundo o Dicionário Houaiss, significa tolo, negro, mulato, ignorante e fanfarrão. E se refere a trabalhadores desqualificados oriundos de todos os estados do Nordeste. Como a estrada que conduziu o êxodo foi a Rio–Bahia, os imigrantes nordestinos foram em São Paulo e na região Sul indistintamente chamados de “baianos” – assim como muitos norte-americanos, desinteressados sobre o que acontece ao sul do Equador, confundem a capital do Brasil com Buenos Aires. “Depreciar os imigrantes nordestinos como preguiçosos era uma forma de excluí-los”, diz Elisete. Ela aponta dois grandes motores do preconceito: o descaso do governo com a capacitação dessa força de trabalho e a intolerância dos imigrantes europeus, que não queriam ser equiparados aos brasileiros pobres com quem disputavam o mercado de trabalho e o espaço urbano.

A

tese de Elisete Zanlorenzi, professora da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, é mais festejada do que conhecida – daí a importância de sua publicação. Ela repercutiu bastante no final dos anos 1990. Até hoje resumos circulam em correntes na Internet, propagadas provavelmente por baianos briosos. Os textos de alguns e-mails foram reforçados com dados que nem sequer constam da tese, numa curiosa anônima colaboração com a pesquisa. “Há dados e até declarações entre aspas que não são minhas”, diz Elisete. “Todos os meses recebo e-mails de pesquisadores interessados em estudar o tema, por isso decidi cuidar da publicação”, diz. O sociólogo Octavio Ianni (1925-2004) – que participou da banca examinadora em 1998 – apontou, à época, a principal contribuição do trabalho: sugerir a atribuição de preguiça como uma forma sutil e escamoteada – porque risível e folclorizada – de racismo. Descendente de italianos e alemães, a paulista Elisete mudou-se para o Nordeste no final dos anos 1970 e viveu em

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Salvador entre os anos de 1980 e 1984. Na capital baiana desenvolveu sua dissertação de mestrado, sobre o movimento popular do bairro do Calabar, uma antiga invasão de 8 mil habitantes que a especulação imobiliária tentava, em vão, banir de uma região nobre da cidade. Foi nessa época que o preconceito embutido na questão da preguiça lhe chamou a atenção pela primeira vez. Numa tarde de domingo, ficou impressionada com o que viu numa festa freqüentada por gente da elite de Salvador, políticos, advogados e empresários. “Eles começaram a reclamar da preguiça dos empregados negros, enquanto eram servidos por eles. Os negros eram os únicos que estavam trabalhando ali”, lembra.

REPRODUÇÃO DO LIVRO O BRASIL NA VISÃO DO ARTISTA

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Candomblé - Ela foi levantar as razões

históricas do fenômeno. “Nem a Abolição da escravatura nem a industrialização foram capazes de inserir grandes contingentes afro-descendentes de Salvador no mercado de trabalho formal”, diz a antropóloga. Até recentemente, os negros permaneceram alijados dos melhores empregos e das atividades mais bem remuneradas da Bahia. Trabalhavam, em sua maioria, no mercado informal, a exemplo do pequeno comércio, da prestação de serviços, de atividades desqualificadas. “Salvador vivia mergulhada em relações tradicionais e muitos de seus bairros tinham vida quase independente”, afirma. Isso só começou a mudar a partir dos anos 1960, com a instalação do Centro Industrial de Aratu e, mais acentuadamente, nos anos 1970 com a instalação do Pólo Petroquímico de Camaçari, que absorveu a mão-de-obra local, ajudando a forjar uma pioneira classe média afro-brasileira. “Mas a visão capitalista sobre o valor do tempo e o significado do trabalho, estampada na imagem do tempo é dinheiro, não conseguiu modificar as relações cotidianas nem retirar dos espaços das relações de trabalho uma dosagem de afetividade”, afirma a antropóloga. Paralelamente, tomou corpo a face simpática da preguiça. Ary Barroso e Dorival Caymmi, ao descreverem uma Salvador das primeiras décadas do século 20, ajudaram a construir uma imagem exótica e paradisíaca, que ganhou o mundo no filme Você já foi à Bahia? (1945), de Walt Disney. Não era uma imagem inventada. O valor que o tem-

po e o trabalho têm para os baianos, diz a tese, é fortemente influenciado pelo candomblé. “As obrigações, na filosofia do candomblé, são algo que se escolhe, que não se faz forçado”, afirma Elisete. “No fundo, vem da tradição africana o conceito de que o trabalho não é o foco principal da vida, que trabalho e lazer não se opõem. O que não significa que as pessoas não trabalhem. Ao contrário, trabalham muito, mas sem colocarem o trabalho como objetivo central da existência e cuidando muito das relações que ocorrem fora da esfera do trabalho”, comenta. A tese se debruça sobre o conceito de tempo na Bahia. Afirma que, embora as relações formais sejam pautadas pelo relógio, ou seja, respondam à lógica capitalista do tempo, as relações informais seguem um tempo maleável. “Muitas pessoas em Salvador não usam


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Cena de rua, de Emil Bauch (1858): só os “preguiçosos” escravos trabalhavam pesado

ções, foi um batalhador pela legislação dos direitos autorais, mas gostava de cultivar a fama de preguiçoso. Para recusar compromissos que não tinha tempo para prestigiar, respondia simplesmente que não podia ir porque era preguiçoso. Numa das primeiras propagandas de que fez, de um rum, em 1957, Caymmi já aparecia tocando violão aboletado numa rede. Nada mais falso. Caymmi, conta a neta Stella, nunca gostou de redes. Apreciava, isso sim, cadeiras de balanço, como na foto que ilustra a abertura desta reportagem. Especiaria - Os tropicalistas Gal Costa,

relógio”, observa Elisete. “Esse fato poderia ser justificado pelo baixo poder aquisitivo da população, mas a questão vai além desse aspecto, porque não é um bem que custe caro. Se fosse imprescindível, o relógio certamente seria mais usado.” Entre um encontro e outro, observa a tese, pode ocorrer um terceiro, e as pessoas que marcaram o encontro sabem que a rigidez dos horários está exposta ao imprevisto.“O que a mentalidade utilitária e rígida concebe como atraso, na visão afro-descendente baiana aparece como uma possibilidade de ocorrência”, afirma a antropóloga. A cigarra e a formiga - O estudo é pon-

tilhado por entrevistas com personagens da Bahia, como João Jorge, diretor do grupo Olodum, Vovô, diretor do IlêAyê, Normando, diretor do Centro de Cultura Popular, e Júlio Braga, antro-

pólogo da Universidade Federal da Bahia. “Todos afirmaram que o trabalho é uma esfera importante da vida, mas que a vida não se resume ao trabalho, já que o lazer, a família e os amigos são importantes”, lembra Elisete. “Normando disse que a fábula da cigarra e da formiga é uma invenção da mentalidade ocidental, sem nenhum vínculo com a matriz africana.” Como ninguém, o compositor Dorival Caymmi encarnou a imagem do baiano malemolente. Não há dúvidas de que seu temperamento tranqüilo e maroto condiz com a imagem – daí a chamá-lo de preguiçoso vai uma distância imensa. “Ele sempre acordou cedo e, mesmo quando trabalhava à noite, fazia questão de sentar-se à mesa do café da manhã com os filhos”, diz a biógrafa e neta do compositor, Stella Caymmi. Forjou mais de uma centena de can-

Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gilberto Gil incorporariam, mais tarde, a imagem da preguiça baiana. “Era um jeito de dizer que eram diferentes, que não pertenciam àquele mundo urbano aonde estavam chegando”, diz Elisete. Entrevistado pela pesquisadora, Gilberto Gil explicou: “A preguiça é uma especiaria que a Bahia oferece ao Brasil. A preguiça produz de forma inusitada, ela produz benefícios inimagináveis. Ela vence os obstáculos pela capacidade de contorná-los e não de atravessá-los diretamente... é a água, é o feminino, é o obscuro. Eu sou adepto dessa visão, porque isso é a salvação do mundo”. Gilberto Gil, diga-se, nunca teve vida mansa. Quando se mudou para São Paulo, no início dos anos 1960, trabalhava numa empresa de dia e cantava à noite. Hoje, aos 62 anos, concilia os compromissos de ministro com a agenda de shows. A indústria do turismo aprendeu a explorar esse filão para atrair multidões de estressados de todos os cantos do país. Quer descansar, vá à Bahia, a terra onde a festa nunca termina e ninguém se preocupa com o relógio. Isso começou nos anos 1960. Foi nessa época que a capital baiana passou por uma grande cirurgia urbana, com o objetivo de incrementar o turismo – e se descobriu que o mito da preguiça tinha apelo delicioso para os forasteiros. Desde então os baianos trabalham duro para criar uma ilusão capaz de entreter milhares de incautos. A ilusão de que, naquelas paragens, ninguém gosta de trabalhar. • PESQUISA FAPESP 103

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HISTÓRIA

Pesquisa revela como a dimensão política das profecias ajudaram Portugal a criar sua identidade

J OANA M ONTELEONE

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os vinte e um dias do mês de julho de 1663 em Coimbra na casa do oratório da Santa Inquisição estando aí em audiência da manhã o senhor inquisidor Alexandre da Silva mandou vir perante si ao padre Antônio Vieira conteúdo nestes autos e sendo presente lhe foi dado juramento dos Santos Evangelhos em que pôs a mão sob cargo do qual lhe foi mandado dizer verdade e ter segredo o que ele prometeu cumprir. E disse ser de idade de cinqüenta e cinco anos natural da cidade de Lisboa religioso professo da Companhia de Jesus assistente no colégio desta cidade.” O padre Antônio Vieira (1608-1697) estava sendo julgado, entre outras razões, por interpretar as profecias heterodoxas de Bandarra, profecias em sonhos, que, para ele, mostravam que Portugal iria conquistar e converter o mundo num império cristão. Durante os interrogatórios, muitas foram as acusações dos inquisidores, e entre elas estavam, como de praxe, as de judaísmo e heresia. Mas Vieira também era acusado de ser autor de um livro, jamais escrito, em que as profecias referentes ao Quinto Império seriam expostas. O pesquisador da Cátedra Jaime Cortesão, na Universidade de São Paulo (USP), Luís Filipe Silvério Lima, em seu projeto de doutoramento, estuda esse tempo em Portugal. Ao debruçar-se sobre a época moderna, Silvério Lima percebeu que os movimentos e crenças profético-políticos, como o sebastianismo, estavam fundamentados em sonhos. “A base ou as fontes que justificavam essas esperanças e projetos, as profecias, eram descritas ou apresentadas, na maior parte das vezes, em forma de sonho”, explica o pesquisador. Sonhos que começavam,

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Oimpério dos sentidos

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Possível representação de Vieira, no livro de Frei Diego de Valades: sonhos de um Portugal poderoso

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por exemplo, na Bíblia, com a visão de Nabucodonosor sobre os cinco impérios, interpretada pelo profeta Daniel, no qual o Quinto Império seria o último, antecedido pelos impérios romano, grego, persa e caldeu. “Quinto e último império, como na visão da estátua monumental, símbolo dos quatro impérios citados, formada por uma cabeça de ouro, peito e braços de prata, ventre e coxas de bronze, pés de ferro e argila, esmagada por uma pedra gigantesca, que ocupou o lugar da estátua”, diz Silvério Lima. Para Antônio Vieira padre da Companhia de Jesus não havia dúvida que Portugal, sob o reinado de d. João IV, viveria o Quinto Império.

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ieira começou a dar forma definitiva às suas teorias sobre o futuro heróico de Portugal durante o processo da Inquisição. Ao responder aos argumentos dos inquisidores, ele se viu obrigado a articular seu projeto profético e dar a ele uma forma organizada. Para defender suas proposições, o jesuíta escreveu a Apologia das coisas profetizadas e as duas Representações que compuseram sua defesa perante o tribunal do Santo Ofício. Junto à Apologia, começou a redigir a História do futuro, da qual tinha um desenho de 40 anos. E depois do processo pôs-se a escrever a Clavis prophetarum. “Nesses textos”, diz o pesquisador Silvério Lima, “Vieira articulava os sonhos de Bandarra, Daniel, Nabucodonosor, Esdras, José, Xavier e o Milagre de Ourique para mostrar a fundamentação do Quinto Império, que, até então, era uma proposta mais alimentada pela causa restauracionista do que por uma construção própria.” A Restauração, em 1640, encerrava a União das Coroas Ibéricas com a entronização de um rei português. A dinastia bragantina foi sustentada pelo movimento restauracionista, cuja ideologia fundava-se em concepções proféticas de império. O pesquisador vai analisar a interpretação que Vieira fez dos sonhos de são Francisco Xavier nos três sermões intitulados Xavier dormindo (1694). Para cada um desses três sermões, Vieira tratou de um sonho. O primeiro mostrava Xavier lutando contra “um 90

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índio agigantado e robustíssimo”, que o esmagava entre o braço e quase o matava por asfixia. Tão real era a dimensão onírica que Xavier acabara realmente asfixiado. Depois, no mesmo sonho, Xavier trazia o imenso índio aos ombros. Do mesmo modo, ele, ao acordar, estava dolorido e cansado. Esse índio era a Ásia que Xavier viria a converter. No segundo, Xavier dormia em um hospital de Roma e gritava no meio da noite: “Mais, mais, mais”. Deus revelara a Xavier, por meio de um sonho, as desgraças que o santo “havia de padecer por seu amor por Deus”. E por ser o amor de Xavier por Cristo tão grande, “e serem tão grandes, tão excessivos, tão inumeráveis, era tão generoso o ânimo de Xavier, e a sede de padecer por Cristo tão fervorosa, tão ardente, tão insaciável, que nada o intimidava, nada o satisfazia, nada o fartava, tudo lhe parecia pouco (as desgraças, os trabalhos, as doenças, as perseguições, os combates); e assim pedia mais”. No último sonho, o Diabo, vendo Xavier cansado, pensou que o santo estaria descuidado. Assim,

mostrou a ele “uma representação menos decente que sua virginal pureza lhe permitia”, e tão fervorosos foram os sentimentos de repúdio de Xavier que suas veias estouraram e ele “acordou com o rosto todo banhado em sangue”. Foi assim que, segundo Silvério Lima, Vieira introduziu dois assuntos essenciais para entender o seu tempo: a profecia e os cuidados. Quinto Império - As obras escritas por Antônio Vieira durante o processo inquisitorial ficaram inacabadas, mas circularam em versões manuscritas incompletas ou foram impressas em pedaços, como escritos que justificaram as esperanças de Portugal como sendo o Quinto Império. “É interessante perceber como a ação inquisitorial teria, ironicamente, feito com que o jesuíta, na sua última fase da vida, começasse a construção dos ‘altos palácios’ do Quinto Império”. Para Vieira, o Quinto Império seria Portugal e se iniciaria no ano de 1666. Seu líder temporal seria d. João IV, enquanto na esfera espiritual


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D. Afonso Henriques invoca Cristo na Batalha de Ourique: visão provou poderio do reino Viagem de são Francisco Xavier para Kogoshima, no Japão: delírios com a Ásia e pedidos de “mais, mais”

reinaria Cristo. O Quinto Império representaria a unificação do mundo, com a redenção do povo hebreu, a conversão dos indígenas americanos e a aniquilação dos mouros e protestantes. Seria, finalmente, um império católico, universal, unido “sob um só rebanho, um só pastor”. Silvério Lima começou seu projeto de doutorado ao estudar, no mestrado, a questão dos sonhos na obra do padre Antônio Vieira. O trabalho agora é publicado pela editora Humanitas sob o título Padre Vieira: sonhos proféticos, profecias oníricas. A pesquisa acabou tomando dimensões muito maiores. Silvério Lima percebeu que também no restante da Europa, àquela época, o sonho instruiu movimentos messiânicomilenaristas, assim como considerações políticas. Padre Vieira, portanto, não estava sozinho ao tentar entender politicamente seus sonhos proféticos. O pesquisador elenca exemplos como o caso de Lucrécia de Leon, cujos sonhos envolvendo Filipe II de Espanha e a derrota da Invencível Armada movi-

mentaram diversos setores da sociedade e da Corte espanhola e acabaram com a condenação da donzela castelhana pelo Santo Ofício da Inquisição. “Ou então podemos analisar a questão da Inglaterra revolucionária e puritana com os ‘homens da Quinta Monarquia’ e suas idéias de uma nova igreja, elaboradas a partir da interpretação da visão do sonho das bestas de Daniel.” Na Holanda,

O PROJETO Sonhos proféticos em Portugal (1595-1750): narrativas oníricas, sebastianismo e messianismo brigantino MODALIDADE

Bolsa de Doutorado ORIENTADOR

JOSÉ CARLOS SEBE BOM MEIHY – FFLCH/USP PESQUISADOR

LUÍS FILIPE SILVÉRIO LIMA – FFLCH/USP

o rabino de Amsterdã, Menasseh Bem Isreal, interpretou o sonho da estátua de Nabucodonosor prevendo a vinda do Messias e a instalação da Quinta Monarquia também para o emblemático ano de 1666. Na França, Luís XIV anunciou em uma gazeta que recompensaria quem lhe interpretasse um sonho, assim como Nabucodonosor. “Podemos mesmo pensar am alguns tratados políticos, nos quais era aconselhado aos príncipes não desprezar por completo os prodígios, prognósticos e mesmo sonhos, ‘pois Deus revela o que está por acontecer por estes meios’. ” Milagre - A documentação levantada pelo pesquisador inclui cerca de 130 fontes, muitas das quais arroladas durante os meses de pesquisa nos arquivos de Lisboa. Entre os papéis relacionados estão a narrativa do Milagre de Ourique, que, desde a divulgação do Juramento de Afonso Henriques em 1597, foi a principal prova da legitimidade do reino português e sua eleição como império. “Adicionada de um sonho que confirma a estrutura especular da visão, a narrativa do milagre foi cristalizada e estabelecida na virada do século 16 para o 17 em diversos textos, que têm em comum o fato de usar Ourique para explicar o passado, o presente e o futuro da monarquia portuguesa.” Sendo assim, é na apropriação dos sonhos, presente nas fontes encontradas durante a pesquisa, que estariam traçados os projetos políticos que explicam e justificam o reino português. Silvério Lima afirma que esses episódios apontam para uma atenção e uma preocupação mais geral em relação aos sonhos enquanto fenômenos proféticos políticos. Os sonhos proféticos transformaram-se em um dos fundamentos para explicar e justificar a especificidade portuguesa diante das nações cristãs . “Por isso é interessante notar como, na época moderna, a idéia de Portugal foi concebida a partir de sonhos”, diz ele. No resto da Europa, a interpretação de sonhos podia até ter dimensões políticas, mas não embutia um projeto de monarquia nacional tão claro quanto em Portugal.“E isso é algo único”, avalia o pesquisador. • PESQUISA FAPESP 103

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CINEMA

Retratista doBrasil As muitas faces do país presentes na cinematografia do diretor Humberto Mauro

R ENATA S ARAIVA

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estemunha de praticamente metade da história do cinema brasileiro, Humberto Mauro (1897-1983) deixou para a historiografia bons motivos para figurar entre as principais fontes de quem se ocupa das relações entre cinema e história. Não somente pela extensão de sua obra – produziu filmes de 1925 a 1974 –, mas pelo teor de suas fitas, todas voltadas para as coisas do país. A mais conhecida delas, O descobrimento do Brasil (1937), com música de Villa-Lobos, foi definido pelo próprio diretor como uma “ilustração detalhada da carta de Pero Vaz de Caminha”. Um estudo completo sobre as imagens do Brasil na obra de Humberto Mauro acaba de chegar às livrarias, pela Editora da Unesp. Humberto Mauro e as imagens do Brasil, de Sheila Schvarzman (399 páginas, R$ 49,00), é resultado de uma tese de doutorado defendida (no Departamento


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Dois momentos de Humberto Mauro: em cena de Engenhos e usinas (à esq.) e (ao lado) cozinhando numa fazenda

de História da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp) após seis anos de intensa e árdua pesquisa, devido à inexistência de um acervo Humberto Mauro e ao desaparecimento da documentação escrita do Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince), onde o cineasta trabalhou entre 1936 e 1964. Dos 357 filmes dirigidos por Mauro no Ince, Sheila pôde ver 90 – entre a Cinemateca Brasileira em São Paulo e o acervo do Centro Técnico Áudio Visual no Rio de Janeiro (CTAV) –, e a análise dessas obras lhe permitiu fazer uma revisão historiográfica sobre os motivos que levaram Humberto Mauro a ser considerado o mais nacionalista dos cineastas brasileiros. O trabalho deu origem a um pós-doutorado, em andamento na Unicamp, com o tema Octá-

vio Gabus Mendes e as imagens da modernidade nos anos 20, no qual o trabalho conjunto com Mauro se insere. Alimentos - “Quando pela primeira vez assisti a alguns filmes da época do Ince, logo percebi na cinematografia de Mauro questões que me interessavam como historiadora”, conta Sheila.“Paulo Emílio Salles Gomes já tinha escrito Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte, sobre a primeira fase cinematográfica de Mauro, então eu resolvi me ater ao período do Ince, em que o cineasta fez desde filmes sobre os bandeirantes até roteiros sobre preparo e conservação de alimentos.” Conforme avançou em suas pesquisas, Sheila percebeu, no entanto, que seria difícil compreender a fundo o ró-

tulo de autenticidade nacional atribuído a Humberto Mauro se não estudasse toda sua trajetória cinematográfica e, sobretudo, a construção crítica e historiográfica feita sobre o autor. Assim retrocedeu aos primeiros anos de atuação do cineasta, no chamado Ciclo Regional (1925-1930), para depois lançar-se aos anos de Getúlio Vargas e do Ince e, finalmente, à convivência de Humberto Mauro com o Cinema Novo. Em cada uma dessas três fases do cinema maureano Sheila identificou a construção de utopias em que se buscava fazer do cinema um agente de mudanças no país e no qual o diretor contribuía com seu trabalho. Durante o ciclo de Cataguases, no interior de Minas Gerais, o cineasta, junto com Adhemar Gonzaga, procuPESQUISA FAPESP 103

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O criador na repartição: usar o cinema para poder construir utopias

ra garantir a implantação e aceitação do cinema brasileiro pelo público, por possíveis investidores e pelo Estado. O cinema deveria ser um veículo de exibição da modernidade, a partir dos modelos bem-sucedidos dos estúdios norte-americanos. Crítico carioca e fundador da revista Cinearte, Gonzaga partilhou com Mauro a vontade de criar um cinema nacional moderno, fruto de um país que abandonava o paradigma rural em busca dos ideais urbanos.

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ara tanto, a Cinearte criou a “Campanha pelo cinema brasileiro”. Aproveitando-se do interesse de intelectuais, políticos e eventualmente do próprio Estado e de parcelas do público, além do vácuo causado pela instabilidade temporária na exibição de filmes norte-americanos com os problemas colocados pelo cinema sonoro, a Cinearte procurava contribuir para a realização de filmes, tentando fazer do cinema brasileiro, definitivamente, uma expressão artística e uma atividade econômica possível e desejável. Adhemar Gonzaga foi figura central nas ficções Lábios sem beijos (argumento), Voz do Carnaval (produção) e Ganga bruta (produção), feitos por Mauro

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já na Cinédia, no Rio de Janeiro. Também esteve nos documentários Ameba (produção) e Como se faz um jornal moderno (produção). A parceria mantevese entre 1930 e 1933, e o rompimento se deu após o fracasso do longa-metragem Ganga bruta, cuja produção foi tão arrastada que o som se tornou indispensável, sob o risco de tornar o filme anacrônico. Adhemar Gonzaga já tomara contato com a inovação em Hollywood, em 1929, onde percebera que, com o uso de discos, seria possível fazer uma adaptação. Em 1936, Humberto Mauro viu-se desempregado no Rio de Janeiro. Foi quando surgiu a oportunidade de trabalhar como diretor técnico do Ince, dirigido por Roquette-Pinto (1888-1954). Figura de destaque na gestão de Gustavo Capanema no Ministério da Educação, Roquette-Pinto formou-se em medicina, mas transitava tranqüilamente por áreas como antropologia, etnografia e história. Foi presidente do 1º Congresso Brasileiro de Eugenia, em 1929, embora não tenha compartilhado de idéias racistas como as do advogado paulista Renato Kehl, que fundou a Sociedade Eugênica Paulista. “Ser médico no Brasil no início do século 20 significava participar do debate em que se encontrava a elite nacional,

dividida sobre os destinos e a identidade de uma nação marcada pela diversidade étnica”, explica Sheila. Roquette-Pinto, um mendeliano convicto, se recusava a ver nos cruzamentos entre brancos e negros fator de degeneração de raça, como muitos de seus contemporâneos. Ciência - “Imerso nesse ideário e no próprio evolucionismo então vigente, Roquette-Pinto queria apressar o tempo histórico, chegar rápido e longe com suas mensagens de iluminação da ciência e do saber”, diz a pesquisadora. Daí seu empenho em ajudar a desenvolver, no país, o telégrafo, o rádio e o cinema. Pois foi nesse ambiente que Humberto Mauro dirigiu grande parte dos 357 filmes do Ince. “A filmografia do Ince pode ser dividida em duas fases”, explica Sheila. “Num primeiro momento, de 1936 a 1947, os filmes têm claramente o objetivo de construir a imagem de um país extraordinário”, diz. Trata-se do período do Estado Novo e, segundo a autora, Vargas sabia e pretendia usar o poder do cinema para a educação. “Nessa fase, o homem comum não existe no cinema de Mauro. Estamos imersos no universo do positivismo, do cientificismo de uma noção romântica de nação. Tudo é grandioso, a natureza é portentosa e a ciência


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Mauro na moviola, no Ince, nos anos 1940: educar o povo pelo saber da história e da ciência

funciona como âncora da nação”, complementa Sheila.

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ão desse período documentários como Prática de taxidermia, O telégrafo no Brasil, Preparação da vacina contra a raiva e Os Lusíadas, títulos que mostram claramente alguns objetivos do Ince: divulgação técnica e científica, prevenção e sanitarismo, conteúdo escolar. Mas Mauro também era encarregado, muitas vezes, de registrar cenas nacionais, como paradas militares, corridas de automóveis e inaugurações de espaços públicos. “Quando comparamos esses filmes de ‘reportagem’ da vida nacional com os científicos, percebemos a verdadeira vocação de Humberto Mauro”, comenta Sheila. “Mauro registra uma parada militar como qualquer um de nós registraria, a câmera usada de maneira simples, sem nenhum entusiasmo ou intervenção mais contundente”, analisa a pesquisadora. “Em compensação, quando o assunto é o corpo humano, a natureza, a vitória-régia – temas que o desafiavam –, Mauro mostra que o seu interesse era antes de tudo filmar, o que fazia com maestria.” Terminado o Estado Novo, a produção cinematográfica do Ince tomou ou-

tros rumos. No Estado democrático, o país extraordinário dá lugar a expressões do homem comum, mostra-se um “país ordinário” na escala dos homens. É o tempo de filmes como O preparo e conservação de alimentos, o primeiro a chamar a atenção de Sheila Schvarzman, antes mesmo do início de seus estudos. “Esse filme tem uma linguagem simples e coloquial”, diz a historiadora. Pois foi essa simplicidade e a imensa capacidade de produzir um cinema realista, apesar das dificuldades do cinema nacional, que levaram Humberto Mauro a ter um papel significativo na terceira utopia de transformação nacional empreendida pelo cinema, descrita por Sheila. Sujeito - Se no ciclo de Cataguases

Humberto Mauro produziu um cinema que buscava expressar a modernidade no país e, nos anos do Ince, um cinema que pretendia educar e transformar as populações através do saber que viria da ciência ou da história, no terceiro momento, a partir do fim dos anos 1950, Humberto Mauro deixou de ser sujeito para ser objeto. “Humberto Mauro exerceu fascínio sobre os cineastas do Cinema Novo e se tornou um modelo de como fazer cinema nacional: um cinema realista, artesanal, de

baixo custo, em oposição aos gastos do cinema de estúdio”, diz Sheila. “Embora politicamente os cinemanovistas discordassem de Mauro.” Quanto a um projeto de nação, a pesquisadora define cada uma das fases da seguinte forma: “Com Adhemar Gonzaga e a ‘Campanha do cinema brasileiro’ da Cinearte, tratava-se de definir como o Brasil deveria aparecer para si mesmo. A trajetória de Humberto Mauro pode ser comparada também às aparentes contradições da modernidade mutante dos 50 anos em que atuou como cineasta”. Vindo do interior de Minas Gerais, Mauro viveu a opulência do Rio de Janeiro moderno de Getúlio Vargas e fez sua obra cinematográfica servir de registro e instrumento desse universo. Nos anos 1950, porém, ele apostou na possibilidade de realizar um cinema rural. Voltou para Minas, onde abriu o Estúdio Rancho Alegre, com o qual levou às últimas conseqüências seu cinema artesanal e onde realizou seu último longa-metragem, a que chamou de Canto da saudade. “Esse retorno às origens mostra um homem que viveu de perto a modernidade, mas que ao fim percebeu que talvez o caminho fosse outro”, afima a pesquisadora. • PESQUISA FAPESP 103

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RESENHA Uma comédia política Quarto volume sobre regime militar relata crise que levou à demissão de Frota J OSÉ A RTHUR G IANNOT TI

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este quarto volume (A ditadura encurralada), agora publicado pela Companhia das Letras, Elio Gaspari historia mais uma etapa da ditadura instalada em 1964, acompanhando os acontecimentos que vão da crise de 1975 até a demissão do ministro general Sylvio Frota, em outubro de 1977. Como nos livros anteriores, o texto é da melhor qualidade, armando um labirinto de fatos reconstruídos com todo o cuidado e elegância. Às vezes, temos a impressão de folhear um arquivo, tantos são os pormenores narrados, mas a repetição passa a fazer sentido quando notamos que os dois últimos volumes desenham um círculo. Ambos contam as vidas de Geisel e Golbery, assim como as vicissitudes que fazem do primeiro um presidente da República e, do segundo, a sombra de um governo. Nos dois volumes os títulos são revertidos a subtítulos, para salientar a importância do tema principal: “O sacerdote e o feiticeiro”. Mas o círculo continua, já que o quarto volume termina retomando e reconstruindo, obviamente de novo ponto de vista, a demissão do general Frota, já narrada na introdução do terceiro. Não creio que Elio Gaspari se tenha convertido ao tempo circular dos gregos ou aderido à idéia do eterno retorno proclamada pelo Zaratustra de Nietzsche. Parece-me que a reconstrução em filigrana do período Geisel, hoje considerado o mais frutífero do governo militar, tem como plano a monotonia da ditadura, de um sistema normativo que se esgota ao ser exercitado. Mais do que a continuidade declinante do milagre econômico, importa o retorno forçado dos mesmos mecanismos de repressão que terminam por encurralar uma ditadura entre as crenças indiscutíveis de um sacerdote autoritário e um feiticeiro também autoritário, cujas bruxarias, contudo, se assemelham às intrigas de um jesuíta. Mais do que numa comédia humana, os quatro volumes me fazem pensar numa comédia política. Um período tão rico como foi o governo Geisel é projetado para as areias movediças em que o jogo dos adversários tinha como limite o instrumento radical do AI-5. Vale a pena refletir sobre o sentido da política numa ditadura que vai perdendo o apoio da população, conforme deixa de cumprir as promessas de um Brasil grande e de um desenvolvimento sustentável, de sorte que só perdura enquanto mantém seus mecanismos de repressão. Não é porque a guerra é a continuação da política que esta se resolve naquela. Ao ocuparem o terreno da política, os militares passam a tomar seus adversários como inimigos a serem liquidados ou, pelo menos, a serem definitivamente expulsos do

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jogo. Em vista disso, um mecanismo como o AI-5 termina por produzir efeitos opostos àqueles visados no momento de sua instalação. Se no início Elio Gaspari serve para mandar os “casacas” para casa e reprimir violentamente os movimentos de esquerda, aos poucos vem Cia. das Letras a ser arma da luta interna entre os militares, entre aqueles que acreditam ou 560 páginas / não acreditam na perenidade da ditaR$ 56,00 dura. Não que eles se cassem entre si, mas o ato de exceção se torna arma política na medida em que um grupo acusa o outro de não aplicá-lo com a violência devida. E, nessa luta, o inimigo comunista e subversivo é ressuscitado, mesmo quando já está à beira do esgotamento. Geisel e Golbery alimentavam o sonho de – a longo prazo, quando a população soubesse efetivamente votar – conduzir o país a uma democracia. Para isso, mais do que enfrentar as manobras da oposição alinhavada no MDB, precisavam lidar com a “tigrada” radical, cuja sobrevivência dependia da repressão direta, às vezes assassina. Não pensavam em abrir mão do AI-5 enquanto não estivessem seguros da manutenção do poder, sobretudo do controle da sucessão, mas não podiam usá-lo além do limite a partir do qual eles mesmos seriam confundidos com seus próprios adversários militares. Fechada nessa redoma, que o voto popular só poderia corroer pelas bordas, a política se resolvia na luta pelo controle da repressão legítima, vale dizer, das posições estratégicas ocupadas pelas Forças Armadas. Cada general, cada almirante, cada brigadeiro carregava em si mesmo a semente de um partido político, capaz de aglutinar militares e civis. Durante 1977, esse conflito se tornou mais agudo, diante do perigo de que as eleições gerais programadas resultassem num desastre maior do que aquele de 1974. Não havia mais a possibilidade de aceitá-lo sem trauma, sem retornar aos dilemas de 1964. Ou o Congresso seria fechado, as eleições adiadas etc., o que implicaria a derrota do projeto de Geisel, a ditadura reiniciando seu círculo vicioso, ou era mister afastar os adversários dos mecanismos repressivos do Estado. Depois de isolados todos os focos de resistência, o general Sylvio Frota foi demitido sumariamente, visto que se negara a pedir ele mesmo sua demissão. Com isso, conclui Elio Gaspari, “Ernesto Geisel restabelecera a autoridade constitucional do presidente da República sobre as Forças Armadas”. Falta agora explicar como a ditadura pôde ainda sobreviver nas mãos do bronco Figueiredo. A ditadura encurralada

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI, filósofo, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap)


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LIVROS Estação Ecológica Juréia-Itatins: ambiente físico, flora e fauna Otavio A.V. Marques e Wânia Duleba Holos, Editora / FAPESP 384 páginas / R$ 60,00

Com 80 mil hectares, a Estação Ecológica Juréia-Itatins, reserva que está localizada no litoral sul do Estado de São Paulo, foi formada ao longo de 80 milhões de anos e, hoje, é uma das mais importantes unidades de conservação da região Sudeste. Infelizmente, poucas décadas de contato humano colocam esse tesouro em risco. Este livro traz toda a riqueza a ser preservada. Holos, Editora (16) 639-9609 www.holoseditora.com.br

Métodos quantitativos em medicina Eduardo Massad, Renée Menezes, Paulo Silveira, Neli Regina Ortega Editora Manole 562 páginas / R$ 89,00

Um livro de escopo amplo que disseca todos os elementos das técnicas quantitativas aplicáveis na área de saúde. Reunindo um grupo de especialistas das áreas de medicina, física, matemática, estatística e engenharia, o estudo emprega conceitos de modelagem matemática aplicados à biomedicina, discute questões ligadas aos problemas de probabilidade e apresenta estudos sobre a propagação de epidemias no espaço geográfico. Editora Manole (11) 4196-6000 www.manole.com.br

Descobrindo o Universo Sueli Viegas e Fabíola de Oliveira Edusp 384 páginas / R$ 55,OO

O estudo é uma reunião de artigos escritos por pesquisadores do Núcleo de Excelência Galáxias: Formação, Evolução e Atividade (NexGal), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, do IAG-USP e do Observatório Nacional, entre outros. O tema é dos mais abrangentes: a história do Universo, de sua gênese até o presente da nossa galáxia. Para tanto, os vários artigos apresentam, de forma compreensível ainda que aprofundada, o trabalho feito por pesquisadores nacionais sobre esse campo complexo, em si um bom motivo para a leitura do estudo. Edusp – Editora da Universidade de São Paulo (11) 3091-4150 www.usp.br/edusp

Cidades turísticas: identidades e cenários de lazer Maria da Glória Lanci da Silva Editora Aleph 192 páginas / R$ 37,00

Poucos param para pensar o que faz uma cidade ganhar o epíteto de “turística”, visto quase como um dado natural. Essa obra mostra que a pergunta para a questão é bem mais complicada e tem contornos sutis. A grande problemática abordada pela autora é o como e em que medida os valores estéticos tornam uma cidade turística em particular, partindo da análise de casos. Editora Aleph (11) 3743-3202 www.editoraaleph.com.br

Estudando o invisível: William Crookes e a nova força

Planejamento ambiental: teoria e prática

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Se hoje os chamados fenômenos paranormais povoam os programas populares da TV, no século 19 eles inflamaram e muito a imaginação dos cientistas. Entre os vários sábios que se dispuseram a verificar a suposta veracidade desses elementos está William Crookes, aqui descrito neste livro fascinante. Da mesma editora, temos Conceitos e fontes do Tratado da Esfera, de Walmir Cardoso.

Indo da teoria à prática com precisão, este volume trata de todos os vários assuntos pertinentes ao exercício do planejamento ambiental: organização, escalas, áreas, temas, avaliação de impactos, cenários, indicadores ambientais, bem como informa aos leitores como se pode integrar informações, tomar decisões e inserir a participação pública em todo esse processo delicado.

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