Dinossauros e outros bichos do Brasil

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NASA

A IMAGEM DO MÊS

E O DISCOVERY POUSOU... O ônibus espacial Discovery pousou na base aérea Edwards, na Califórnia, às 5h15 da manhã do dia 9 de agosto, encerrando um período de apreensão que durou os 15 dias de missão. Danos na fuselagem produzidos durante a decolagem obrigaram dois astronautas a realizar um inédito conserto em órbita. Problema semelhante havia causado a explosão da nave Columbia na reentrada da atmosfera em fevereiro de 2003, que matou sete astronautas e paralisou por dois anos e meio as missões dos ônibus espaciais. PESQUISA FAPESP 115 SETEMBRO DE 2005 3 ■


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CIÊNCIAS DA TERRA, CIÊNCIA DA VIDA – CHAPADA DO ARARIPE/ FAAP

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CAPA

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Aves, répteis e mamíferos recém-descobertos ampliam a diversidade da fauna do Brasil e da América do Sul de milhões de anos atrás

REPORTAGENS

CIÊNCIA

42

Diferença de tamanho entre os genomas de cem árvores brasileiras varia até 20 vezes

Estados da Região Sudeste articulam agenda comum para o desenvolvimento 4

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45

FÍSICA Elétrons podem mudar de comportamento em conexões de nanofios

Microsoft amplia cooperação com pesquisadores brasileiros e já se fala até na criação de um grande laboratório no país

MEDICINA

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ONCOLOGIA

54

NEUROLOGIA

56

VIROLOGIA

BRAZ

INOVAÇÃO

INFORMÁTICA

46

BOTÂNICA MARCELO DORNELAS

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

28

ENTREVISTA José Murilo de Carvalho fala sobre os dilemas antigos e atuais do Estado brasileiro

HÉLIO DE ALMEIDA

LÉO RAMOS

FOTO EDUARDO CESAR

www.revistapesquisa.fapesp.br

Ação de genes esclarece a origem e indica a evolução de tumores

Pesquisadores brasileiros criam no Texas tecnologia para matar células de tumores

Equipe de Minas Gerais observa como proteínas defeituosas atacam neurônios

Pesquisadores descobrem como o agente causador da febre amarela destrói as células do fígado


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EDUARDO CESAR

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78

Comportamento de macacos brasileiros indica a existência de quatro padrões de visão das cores

76 EDUARDO CESAR

ENGENHARIA FLORESTAL

Móveis e resinas derivadas de pínus conquistam mercado externo graças a técnicas de plantio

72

Instituto Butantan desenvolve vacina contra a raiva humana, mais segura e eficaz

ZOOLOGIA

TECNOLOGIA

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IMUNOLOGIA

ENGENHARIA DE ALIMENTOS Pequena empresa desenvolve complexo mineral orgânico usando proteínas presentes em levedura

Novo aditivo misturado à borracha sintética melhora a aparência dos solados de calçados

CINEMA

88

LITERATURA

3 CARTAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6 CARTA DO EDITOR . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 MEMÓRIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8 ESTRATÉGIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18 LABORATÓRIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30 SCIELO NOTÍCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58 LINHA DE PRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . 60 RESENHA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92 LIVROS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93 FICÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94 CLASSIFICADOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97

Como o filme O triunfo da vontade ajudou a construir o imaginário nazista

O livro das 1001 noites ganha tradução direta do árabe

Estudos buscam entender o que faz um rico ser rico no Brasil

A IMAGEM DO MÊS . . . . . . . . . . . . . . . . . .

HUMANIDADES

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ECONOMIA

SEÇÕES

QUÍMICA

J. CARELMAN

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K.LIXTO, C. 1905

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EDUARDO CESAR

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Capa: Hélio de Almeida Imagem: Obra de artesão do Centro de Cultura Popular do Mestre Noza reproduzida do livro Ciências da terra, Ciência da vida – Chapada do Araripe/FAAP

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CARTAS cartas@fapesp.br

Números atrasados Preço atual de capa da revista acrescido do valor de postagem. Tel. (11) 3038-1438

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Site da revista No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis as reportagens em inglês e espanhol.

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EDUARDO CESAR

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Oque a ciência brasileira produz você encontraaqui.

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ridas no conhecimento de biodiversidade vegetal para a conservação e recuperação do meio ambiente,viO professor Oswaldo Frota-Pessoa sando subsidiar a política ambiental cometeu tremenda injustiça no dedo Estado de São Paulo.Esta insticorrer da entrevista à Pesquisa FAtuição sempre incentivou e irá incenPESP (edição 114).Contra ele mesmo. tivar a participação de pesquisadores Luminoso como sempre, esparramou em congressos, merecidas citasimpósios etc. ções,contou depois reconhece liciosas aventuras EMPRESA QUE APóIA sua importância e desenhou um A PESQUISA BRASILEIRA para a elevação dos melhores quado nível das pesdros que já vi da quisas realizadas biologia no Brasil e divulgação dos nos últimos 80 resultados obtianos. Única coisa dos dentro das lique não fez – nhas de pesquisa olharno espelho em que atua.Ene contar o que titretanto, sendo vesse visto:ele,o subordinado à mestre cativante. Secretaria de EsTudo aquilo que tado do Meio atribuiu à ciênAmbiente, segue cia,ao m étodo as “normas para científico etc.e tal a candidatura a é conversa mole: bolsas e afastamentos do país”, contipode ser encontrado na maioria das das na resolução SMA nº 10/97,de 23 publicações e falações sobre a ditade janeiro de 1997,e,entre as exig êncuja.Sem a introdu ção à entrevista, cias para pleitear o afastamento,o que funcionou como retrato muito candidato deverá ser funcionário do bom,ela ficaria capenga.Mesmo assistema há mais de dois anos,condisim,quem n ão conhece Frota-Pessoa ção não preenchida pelo pesquisador nem imagina o que está perdendo. Milton Groppo.Como a FAPESP exiRevi prazerosamente minhas coisas ge carta comprovando o afastamento de ciências e de ensino de ciências oficial do candidato para a liberação desde os tempos do ginásio. À autodos recursos,seria l ógico que ele se ra da entrevista,Mariluce Moura, informasse previamente sobre as norparabéns.Ao professor,minha eterna mas que regem seu vínculo empregaadmiração,respeito e gratid ão. tício para só então pleitear um auxíLUIZ ALBERTO DE LIMA NASSIF lio para afastamento do país. Dessa São Paulo forma,causa estranheza o tratamento do assunto pelo pesquisador. Divulgação científica

Frota-Pessoa

NASA

As reportagens de Pesquisa FAPESP retratam a construção do conhecimento que será fundamental para o desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução.

Em esclarecimento à carta sob o título “Divulgação científica”, publicada em Pesquisa FAPESP (edição 113),informamos que o Instituto de Botânica é uma instituição de pesquisas científicas na área da botânica. Sua missão institucional compreende o desenvolvimento de pesquisas inse-

LUIZ MAURO BARBOSA Diretor técnico de departamento Instituto de Botânica São Paulo,SP Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br, pelo fax (11) 3838-4181 ou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.


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CARTA DO EDITOR

ISSN 1519-8774

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FAPESP

Dinossauros, raiva e ricos

CARLOS VOGT PRESIDENTE MARCOS MACARI VICE-PRESIDENTE CONSELHO SUPERIOR ADILSON AVANSI DE ABREU, CARLOS VOGT, CELSO LAFER, HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, HUGO AGUIRRE ARMELIN, JOSÉ ARANA VARELA, MARCOS MACARI, NILSON DIAS VIEIRA JUNIOR, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO RICARDO RENZO BRENTANI DIRETOR PRESIDENTE JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ DIRETOR CIENTÍFICO

PESQUISA FAPESP CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR CIENTÍFICO), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTONIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO, PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLLI DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS DIRETOR DE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA EDITORES CARLOS FIORAVANTI (CIÊNCIA), CARLOS HAAG( HUMANIDADES), CLAUDIA IZIQUE (POLÍTICA C&T), HEITOR SHIMIZU( VERSÃO ON-LINE), MARCOS DE OLIVEIRA( TECNOLOGIA) EDITORES ESPECIAIS FABRÍCIO MARQUES, MARCOS PIVETTA EDITORES ASSISTENTES DINORAH ERENO, RICARDO ZORZETTO CHEFE DE ARTE TÂNIA MARIA DOS SANTOS DIAGRAMAÇÃO JOSÉ ROBERTO MEDDA, MAYUMI OKUYAMA FOTÓGRAFOS EDUARDO CESAR, MIGUELBOYAYAN COLABORADORES ANA LIMA, ANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), BRAZ, DANIELA MACIELPINTO, EDUARDO GERAQUE (ON-LINE), EVANDRO AFFONSO FERREIRA, GONÇALO JUNIOR, LAURABEATRIZ, MARCELO LEITE, MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO, MAYRA LAMY, THIAGO ROMERO (ON-LINE) E YURI VASCONCELOS ASSINATURAS TELETARGET TEL. (11) 3038-1434 – FAX: (11) 3038-1418

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Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTALOU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO SECRETARIA DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E TURISMO GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

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inossauros,com as fantasias que imediatamente suscitam de um mundo inteiramente outro,primitivo e selvagem,vazio de homens e pensamentos na mesma terra que hoje povoamos,são extremamente excitantes para a imaginação – Steven Spielberg e seu insuportável Parque dos dinossaurosà parte.Sempre queremos saber mais e mais sobre eles e sobre o passado remoto desse lugar onde só chegamos uns 60 milhões de anos depois.No Brasil,infelizmente, os rastros da passagem dos dinossauros são um tanto escassos,pr incipalmente se comparados à abundância de fósseis desses animais encontrados nos Estados Unidos.Por uma raz ão que até pode parecer um pouco estranha,lembra o editor de ci ência, Carlos Fioravanti,na reportagem de capa desta edição,a partir da p ágina 34,ou seja, não há desertos no território brasileiro.E f ósseis de todo tipo conservam-se muito melhor na aridez do deserto do que sob florestas que,ali ás, ainda cobrem a maior parte do território nacional – acreditem,cerca de 60% do total,segundo o Minist ério do Meio Ambiente.Mesmo assim,mais de uma dezena de novas espécies de animais que viveram milhões ou milhares de anos atrás em terras do país foram apresentadas no mês passado no II Congresso Latino-Americano de Paleontologia de Vertebrados,o que mostra,no m ínimo,que como atividade científica a paleontologia brasileira está bastante viva,apesar de seu modesto acervo de mais ou menos 250 espécies de fósseisde vertebrados descobertos até hoje.

Mas passemos ao mundo contemporâneo.E se nele a raiva que um imenso número de brasileiros vem

sentindo nos dois ou três últimos meses se mistura a um doloroso sentimento de impotência,porque contra ela não se vislumbra remédio a curto prazo,contra uma outra raiva,virose que atinge o homem mais freqüentemente através de cães,gatos e morcegos infectados,logo estar á disponível no país uma nova vacina,segura,eficaz e barata,desenvolvida pelo Instituto Butantan.A produ ção em escala comercial desta vacina muito pura, conforme relata o editor especial Marcos Pivetta a partir da página 64,deve ter início ainda no final deste ano ou começo do próximo,o que é uma boa notícia neste momento.

S

eja como for,uma pergunta simples e persistente se reapresenta com força a cada nova crise política que o país enfrenta:por que,afinal,o Brasil é como é? Trata-se em certa medida de um claro enigma. E uma das vias possíveis para decifrálo,sem a menor pretens ão de esgotar a questão, é claro, é o estudo sistemático das elites deste país.Nesse campo é que se desenrola a reportagem do editor de humanidades,Carlos Haag,a partir da página 78,sobre novos estudos que procuram entender por que são ricos os brasileiros ricos.A prop ósito,na bela entrevista pingue-pongue desta edição (página 10) com o historiador José Murilo de Carvalho,que também lança luzes sobre a crise do momento,ele observa que falar em elites no Brasil dos anos 1970 não lhe angariou grande popularidade entre os meios acadêmicos,mais envolvidos em discussões sobre as classes populares.Boa leitura!

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THE ROYAL SOCIETY

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Para alegria de historiadores, manuscritos de Isaac Newton sobre alquimia são redescobertos

N ELDSON M ARCOLIN

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TELA DE GODFREY KNELLER/ FARLEIGH HOUSE

Aquímica esotérica

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egistros contábeis do físico e matemático inglês Isaac Newton (1642-1727) indicavam, em 1669, compras em Cambridge e Londres de alguns produtos inusitados: aqua fortis (ácido nítrico), óleo, prata pura, antimônio, branco de chumbo, nitro, sal de tártaro e mercúrio. Também adquiriu duas fornalhas, cola de madeira e uma grande compilação de tratados de alquimia chamada Theatrum chemicum. Para alguém que tinha quase toda espécie de aptidão intelectual, como escreveu o economista John Maynard Keynes, estudioso da vida e da obra do físico, esse interesse não causa estranheza. Além das especialidades


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FOTOS THE ROYAL SOCIETY

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Textos de Newton em latim e inglês (à dir.): idéias próprias sobre alquimia

já mencionadas, Newton conhecia em profundidade direito, história, teologia e astronomia. Também debruçou sobre a química quando essa área do conhecimento, de certa forma, confundia-se com a alquimia no século 17. Em julho deste ano, a academia nacional de ciência da Grã-Bretanha, The Royal Society, anunciou a descoberta de uma coleção de papéis do físico inglês sobre alquimia dados como perdidos desde 1936. Naquele ano, a casa de leilão Sotheby’s vendeu esse material e por 69 anos não se soube onde

estava. Agora, durante uma ampla catalogação de manuscritos feita pela Royal Society em seus arquivos, os papéis foram redescobertos. Muitos deles são notas sobre o trabalho de um outro alquimista do século 17, o francês Pierre Jean Fabre. Mas há uma parte, escrita em inglês, com idéias próprias de Newton sobre alquimia. “É um achado imensamente importante para os estudiosos da obra do cientista e historiadores da ciência em geral”, disse o secretário executivo da academia, Stephen Cox. A alquimia era uma espécie

de química da Idade Média, que combinava elementos de química, física, astrologia, metalurgia, medicina e também misticismo. Entre seus objetivos estava obter a pedra filosofal, uma substância mítica que permitiria a transmutação dos metais inferiores em ouro, e a panacéia universal, remédio contra todos os males físicos e morais. Richard S. Westfall (1924-1996), autor de uma das melhores biografias do físico inglês, A vida de Isaac Newton (Nova Fronteira, 328 páginas),

afirmava que ele “cortejou a alquimia ardorosamente por 30 anos” e, ao que se sabe, a produção de ouro jamais dominou seu interesse. “A tradição filosófica da alquimia sempre encarou seu saber como uma propriedade secreta de um seleto grupo que se distinguia da horda comum por sua sabedoria e pureza de coração”, escreveu Westfall. Para ele, as motivações do grande cientista passaram pela busca da “verdade” de todas as coisas. Algo que Newton, um dia, acreditou poder alcançar pela alquimia.

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ENTREVISTA: JOSÉ MURILO DE CARVALHO

Um antídoto contra a bestialização republicana C ARLOS H AAG

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ranqüilo com sua imortalidade (ele foi eleito no ano passado para a Academia Brasileira de Letras), José Murilo de Carvalho, que completa 66 anos neste mês, é um historiador com tempo e energia para escarafunchar o passado, analisar o presente e pensar o futuro. Como bom mineiro, tem até uma anedota verídica para explicar a sua profissão de fé acadêmica, cuja ambição é a produção de conhecimento novo. Ele conta que, numa palestra em São João del Rei, alguns morcegos se puseram a dar rasantes sobre o conferencista e seu público. “Só mais tarde, revivendo a emoção com calma, como aconselhava Wordsworth aos poetas, conselho extensível aos historiadores, é que me dei conta que se tratava de gentileza da cidade colonial”, lembra. “Os morcegos queriam ilustrar minha palestra. O historiador tem que possuir a agilidade, a leveza e a sensibilidade ultra-sônica dos morcegos para detectar, configurar e decifrar seu objeto.” Professor titular de História do Brasil, ligado ao Núcleo de Pesquisas e Estudos Históricos da UFRJ, José Murilo começou seus estudos na Universidade Federal de Minas Gerais, mas como economista. Foi, longe do Brasil, nos Estados Unidos, quando foi tirar o seu Ph.D. na Universidade de Stanford, que se descobriu um apaixonado pelas evoluções políticas e sociais de seu país. “Chegando lá, passei a me preocupar com o Brasil como um todo. Foi lá que enfrentei o meu primeiro tema maior: como se construiu o Estado nacional do ponto de vista da estratégia dos grupos no poder.” Daí resultaram os livros A construção da ordem (1980) e Teatro de sombras (1990). Mas falar em elites no Brasil dos anos 1970 não angariou a ele grande popularida-

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A reforma política não é panacéia e não pode ser feita à custa da participação democrática

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de entre os meios acadêmicos, envolvidos em discussões sobre as classes populares. Para os colegas, tinha virado “elitista”. Mas o engano era só de desafetos desinformados. Num tempo em que não se pensava nas elites, José Murilo teve coragem de estudar aqueles que mais influenciavam a vida das massas empobrecidas. Depois da tese, mudou seu foco de atuação. “Em Os bestializados (1987), à preocupação com a construção do Estado agregou-se o problema da construção da nação. Quando se percebeu, com a mudança de regime, que não houve muitas alterações nas práticas políticas e eleitorais, muitos autores começaram a trabalhar com uma idéia mais ampla de construção da nação”, explica. Em Os bestializados, o historiador dissecou a atitude da população diante do poder, enfocando a perplexidade geral com o advento, da noite para o dia, da República. A partir de A formação das almas, a inflexão se ressalta: “Nele, falo sobre a tentativa do novo governo de recriar o imaginário nacional e da reação popular à tentativa”. Inquieto, agora não é mais a idéia de nação ou Estado que mobiliza seus neurônios, mas a construção do cidadão, da cidadania. “Meus trabalhos começaram com a questão da construção do Estado e passou para a construção do Estado-nação”, diz. Como os quirópteros, José Murilo está atento a qualquer novo movimento. Daí os comentários preciosos sobre o momento atual, suas raízes e conseqüências, expostos na entrevista a seguir. Na apresentação e na conclusão de seu último livro, Forças Armadas e política no Brasil, percebe-se que o senhor vê na desigualdade social nacional a grande ameaça para a democracia. No último parágrafo, aliás, o senhor observa que “corremos o risco de ser surpreendidos como em 1964”. A situação atual de profunda crise o surpreendeu? Como avalia os desdobramentos dessa nova surpresa, seja em termos do que esperar no futuro, seja na incapacidade de prever que isso poderia ocorrer? Como entender que, apesar de tão estudado, o PT ainda pôde surpreender a sociedade? — Touché! Comecei a estudar os militares porque achei que a surpresa desagradável, para dizer o mínimo, que mi■

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nha geração sofreu em 1964 com o golpe e o estabelecimento do governo militar se devia, em parte pelo menos, ao descuido dos intelectuais no estudo de um ator político muito relevante desde 1889. Agora tivemos outra grande surpresa desagradável, também para dizer o mínimo, relativa às denúncias de corrupção no governo do PT. Mas hoje não se pode atribuir a causa da surpresa à ausência de estudos sobre esse ator, pois há muitos deles. A pergunta perturbadora para cientistas sociais é se sua pesquisa é inútil, se não serve para fazer previsões. Em outros termos, se sua pesquisa não é ciência. Uma coisa é certa, nos domínios do humano, onde reina a liberdade, a previsão é, de fato, sempre precária. Comte considerava as leis sociais equivalentes às da astronomia no poder de previsão. Um positivista, claro. As previsões no campo das ciências sociais são no máximo probabilísticas, sempre sujeitas a surpresas, agradáveis ou não. No caso atual, operaram outros fatores perturbadores da análise. Os alertas em relação ao que se passava dentro do PT não faltaram. Críticos pertencentes a correntes discordantes do Campo Majoritário já tinham alertado para os descaminhos em curso, tanto os referentes à política econômica como à política de alianças. Mas os alertas eram atribuídos à disputa ideológica e bloqueados, também ideologicamente, pelo campo hegemônico. Observadores externos deixaram-se levar. Quanto aos riscos atuais para a manutenção do governo civil, mencionei alguns em meu livro, mas não me ocorreu o que desabou sobre nossas cabeças, mesmo tendo escrito a conclusão há meses. Há, sem dúvida, inquietação entre os comandantes das Forças Armadas com relação ao que se passa. Mas não creio que a inquietação evolua para qualquer inclinação à intervenção, a não ser que a crise assuma dimensões catastróficas, o que é pouco provável. O senhor já afirmou que houve uma estranha evolução no Brasil e, até 1881, o país estava à frente mesmo da Inglaterra em termos de direito de voto. Ao longo do tempo, as massas foram incorporadas ao processo. Por que, então, temos essa cidadania tão incipiente, sempre ameaçada ou não totalmente exercida?

— O Brasil, de 1881 a 1945, deu para trás em matéria de incorporação política da população via processo eleitoral. A Primeira República foi, literalmente, um regime sem povo, pois votava menos de 5% da população. Paralelamente, a educação fundamental continuou a ser negligenciada. Incorporação significativa só começou em 1945. A partir daí, seu ritmo foi intenso. Em 1930 votou 5,6% da população, a metade de 1881. Em 1945 já votou 13% e, em 1960, 18%. O ritmo de crescimento, peculiaridade brasileira, não se abateu durante o regime militar, quando cerca de 60 milhões de cidadãos começaram a votar, número maior do que a população total do país em 1950. Ao mesmo tempo, a educação fundamental cresceu, mas em ritmo muito mais lento. Só no final do século 20 é que ela se generalizou, mesmo assim padecendo de má qualidade. Tivemos assim três fatores negativos: entrada tardia do povo no processo eleitoral; entrada em boa parte sob regime de ditadura, quando o sentido do voto era deturpado pelo estupro de outras instituições democráticas; lento avanço da educação fundamental. Até hoje 60% dos eleitores não completaram o primeiro grau. ■A

incorporação das massas, com maiores demandas, algumas quase impossíveis de ser atendidas, é vista por alguns como fonte de problemas para a chamada governabilidade nacional. Daí o desejo de uma reforma política, que deixe partidos mais fortes etc. mas que, no fundo, deixa o eleitor mais distante do processo decisório. Como o senhor vê essa situação e qual a sua compreensão de uma reforma política: precisamos de uma e de que tipo, em especial diante do contexto atual, em que ela é vista como panacéia para qualquer crise? — O sistema político entrou em colapso em 1964 porque não foi capaz de absorver o rápido crescimento da participação, eleitoral e não-eleitoral. Culpa da participação ou do sistema que só a admitiu tão tarde? No debate de 1881, a reforma apresentada pelos liberais pretendia combater a manipulação do eleitor pelo governo. A solução adotada foi reduzir drasticamente o número dos que podiam votar. Os críticos diziam que se cometia um erro de sintaxe polí-


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tica, criava-se uma oração sem sujeito, isto é, um regime representativo sem povo. A conseqüência do erro foi duradoura e desastrosa. A engenharia política deve cuidar sem dúvida da governabilidade, mas não o pode fazer à custa da democracia política. Esta só se consolida na prática. Nenhum eleitorado amadurece na exclusão. Não posso discutir aqui as reformas que seriam, a meu ver, necessárias e adequadas. É tema muito controvertido. Proponho apenas dois parâmetros: a reforma política não é panacéia; a reforma política não pode ser feita à custa da participação democrática. Toda a crise de hoje parece passar ao largo da população, vista, como no artigo recente do professor Bresser Pereira, em oposição à chamada sociedade civil, essa, sim, que leva o país. Como o senhor avalia essa dicotomia e esse distanciamento do povo? Antes, com a capital no Rio de Janeiro, as massas podiam mobilizar-se diante do poder, mas Brasília parece estar “fora do Brasil”e dessa forma o povo parece ainda mais alijado da participação e do poder de pressão junto aos governantes e aos políticos. Como vê isso? — São dois pontos relacionados, o da distinção entre sociedade civil e povo e o do efeito Brasília. Acho correta a distinção. Em artigo sobre a Primeira República, falei sobre a existência, então, de três povos, o povo do Censo, o povo das eleições e o povo da rua. Os dois últimos povos constituíam parcela mínima do primeiro. Apesar de todos os avanços na urbanização, na educação, nos meios de comunicação de massa, ainda temos hoje a distinção entre um povo político, que se pode pedantemente chamar de pólis, organizado ou não, mas bem-informado e alerta, e outro povo que, com o mesmo pedantismo, se pode chamar de demos, ou, sem pedantismo, de povão. O povão ainda tem baixa escolaridade e sobrevive no mundo da necessidade. Para ele, democracia política ainda é um luxo. A crise atual revela os dois povos. A pólis fica indignada e se revolta com as denúncias de corrupção. O demos talvez o faça em menor escala, pois tem que se preocupar com o destino do Bolsa Escola. Brasília trouxe benefícios, sobretudo o da ocupação efetiva do território nacional. Mas gerou um grande mal político:

O povão ainda sobrevive no mundo da necessidades, e democracia política, para ele, ainda é um luxo

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isolou geograficamente o governo, Executivo e Legislativo. O controle direto que sobre ambos era exercido pela população da antiga capital, com passeatas, vaias e aplausos nos plenários da Câmara e Senado, desapareceu na solidão do Planalto, onde o povo político se reduziu ao empregado público e seu estreito horizonte corporativo. Esse ambiente é terreno fértil para o cultivo de intrigas de corte, conchavos, expectativas de impunidade. É terreno fértil, em resumo, para medrar a bandalheira do andar de cima, para usar expressão de Elio Gaspari. ■ O senhor já afirmou que temos grandes

dificuldades em acertar contas com o passado escravista e colonial. De que forma as mazelas do presente têm a ver com esse não enfrentamento do nosso passado? Sentimos que o povo brasileiro mudou ao longo do processo histórico. O mesmo pode ser dito das chamadas elites: elas mudaram na sua essência? — Quatro séculos de prática escravista e três séculos de colônia não passam em vão. Não se trata de dizer que somos prisioneiros do passado, que o passado nos condena e que, portanto, não temos responsabilidade pelo presente. Trata-se de reconhecer a força de tradições, a persistência de valores, a reprodução de práticas de sociabilidade. Essas tradições, valores e práticas sobrevivem até mesmo a mudanças estruturais na demografia, na economia, na educação. Ou, o que é mais grave, afetam a natureza mesma dessas mudanças no sentido de desvirtuar seu efeito transformador. É nesse sentido que

digo persistirem até hoje as conseqüências da experiência colonial e escravista. Não gosto de jogar a culpa nas elites exclusivamente. Essa atitude equivale a desqualificar o povo, pois o coloca em posição de vítima indefesa. Como já dizia Nabuco, o grande mal da escravidão no Brasil foi que seus valores permearam a sociedade de alto a baixo e que o cidadão brasileiro traz dentro de si a dialética do senhor e do escravo. O povo sempre parece acalentar, por um lado, a esperança de um líder messiânico que resolva todos os problemas da nação, ao mesmo tempo que tende a ser tomado por um pessimismo em tempos de crise, achando que estamos “num mar de lama”. Como o senhor vê essa “paixão” de extremos e quais os fatores positivos e negativos que decorrem desse sentimento “edênico” do Brasil (o país visto como Éden)? — A expectativa do messias e a frustração são lados da mesma moeda. Revelam ambas a ausência de um senso de eficácia política, isto é, a ausência da convicção da capacidade do cidadão de se autogovernar. Espera-se a salvação de fora, do messias, chame-se ele Antônio Conselheiro, Padre Cícero, Getúlio Vargas, Fernando Collor, Lula. Diante do inevitável fracasso do esperado, sobrevém a frustração. Escapam da condenação histórica apenas os messias que expiam seu fracasso com um destino trágico, destino esse que lhes é imposto ou que elegem por vontade própria. Foi o caso de Tiradentes, do Conselheiro, de Getúlio. Não vejo nada positivo nessa tradição messiânica. Até hoje ela re■

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presenta um obstáculo à democracia. Um dos bons resultados que podem sobrevir da crise atual será exatamente desacreditar os salvadores da pátria e reforçar a convicção de que só a ação do cidadão constrói a cidadania. Edenismo é outra coisa. Ele não atribui à natureza o papel de salvador. Mas é também uma forma de escapismo porque coloca fora do âmbito da construção humana os motivos de orgulho nacional. Ele tem a mesma origem do messianismo: a ausência do sentido do indivíduo como agente da sociedade e do cidadão como construtor da política. A corrupção parece ser vista no Brasil como parte de nossa cultura e não erradicável. O próprio presidente afirmou na celebrada entrevista parisiense que “isso de caixa dois sempre houve”, com total normalidade? Quais as origens dessa corrupção endêmica e quando e por que ela se transforma, como o senhor preconizou em uma entrevista, em corrupção epidêmica? Como mudar esse quadro desolador que traz tanto cinismo político à população? — A corrupção está enraizada e não é erradicável. Mas é redutível a níveis compatíveis com a prática de países democráticos. Ela atinge altos níveis no Brasil (e em outros países) em boa parte devido a nossas origens patrimoniais. O patrimonialismo significa pelo menos três coisas: a predominância do Estado e de sua burocracia; a tendência das pessoas de buscar o Estado como fonte de emprego (nepotismo, clientelismo) e de favorecimentos (contratos, benesses, mensalões), o que uma vez chamei de estadania; e a indistinção entre o público e o privado, isto é, a ausência da noção da coisa pública, substituída pela da coisa estatal. A endemia pode transformar-se em epidemia por circunstâncias fortuitas, como a ação de pessoas e grupos mais afoitos. Mas não estamos condenados à corrupção. A história não condena nenhum país a penas perpétuas. Ela é dinamismo. Assim é que a intolerância à corrupção tem crescido muito à medida que o caráter injusto da distribuição ilegal de benefícios públicos se torna óbvia para os muitos que são dela excluídos. Reações como a que se dá hoje, mudanças nas leis e em sua aplicação, alterações nas instituições, podem, e creio que ■

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irão, aos poucos reduzir o nível escandaloso da corrupção, embora não acabem com ela. Quais as origens históricas dessa promiscuidade entre público e privado no governo brasileiro e quais as conseqüências disso? Como mudar? O governo “rouba” e a população também não obedece às leis. Ou, nas palavras do presidente Lula: “O brasileiro quer cadeia para os outros, não para ele. Quer que todos sejam honestos, não ele”, e assim por diante. De que forma esse mal institucional também se repete na esfera individual, no cotidiano nacional, e de que forma uma corrupção se liga à outra? — As origens e possíveis remédios foram discutidos acima. O problema da relação entre o comportamento individual e o público é complexo. Em primeiro lugar, é preciso distinguir a moral privada da ética pública. O comportamento privado não precisa necessariamente, certamente não em nosso mundo liberal, condicionar o comportamento na arena pública. Um cafajeste na vida privada pode ser um bom estadista. Há exemplos abundantes. Pode acontecer também que o que é positivo na moral privada se torne negativo quando transferido para o mundo público. Por exemplo, ajudar parentes e amigos é norma básica de nossa moral privada. Quando aplicada essa norma ao mundo público, transforma-se em clientelismo e nepotismo. Pesquisa que fizemos no Rio de Janeiro há algum tempo revelou que muitos entrevistados achavam que deputados tinham que ajudar parentes e amigos. Outra coisa é o comportamento individual diante da lei. Aqui funciona entre nós o mesmo mecanismo do patrimonialismo, da indistinção entre o estatal, o público e o privado. Se não existe o público, se o estatal é da sogra, não há obrigações cívicas. Paga-se imposto a contragosto, quando não se pode sonegar, e aproveita-se o quanto possível do Estado. Outra pesquisa no Rio de Janeiro, feita em 1997, mostrou que 41% dos entrevistados achavam que em alguns casos era justificável sonegar imposto. O que é mais grave é que a porcentagem crescia com o aumento da escolaridade. Gera-se aí um círculo vicioso: o contribuinte sonega porque não vê o Estado como público; ao sonegar, re-

duz os recursos do Estado; ao ter os recursos reduzidos, o Estado aumenta os impostos; ao ver os impostos aumentados, o contribuinte sonega mais.

■ Qual a percepção que o brasileiro tem das leis? Aqui tudo parece querer ser resolvido com uma nova lei, como se bastasse legislar no papel para o problema acabar na realidade. Quais as origens desse bacharelismo e quais os problemas que ele traz? Pode-se mudar essa cultura ancestral? — Já no século 19 foi feito o diagnóstico da distância entre o Brasil legal e o Brasil real. Guerreiro Ramos achava que no Brasil a função da lei é pedagógica, e não coercitiva. Ela é inaplicável, mas aponta para um ideal de civilização. Oliveira Viana achava o contrário. A distância entre a lei e a realidade era, segundo ele, a própria corrupção do sistema. Análises mais recentes, como as de Roberto da Matta, mostram o jeito como estratégia brasileira de aceitar a lei sem cumpri-la. Seja como for, nosso bacharelismo vem de longa data. Nosso sistema jurídico é tributário da tradição romano-germânica do direito codificado, e não da tradição do direito costumeiro anglo-saxônico. Nossa elite política, desde a independência, é composta predominantemente de bacharéis. São os bacharéis que fazem as leis como parlamentares e as aplicam como delegados, advogados, juízes. A conseqüência disso é a convicção de que tudo se pode resolver a golpes de leis, sem preocupação com as condições de sua aplicação. Dois exemplos recentes foram o código de trânsito e a lei de doação de órgãos. No primeiro caso, fez-se uma lei para cidadãos e estradas da Suécia. O fracasso era previsível. No segundo, a lei previa o transplante de órgãos sem consulta à família. Desrespeitou-se uma das poucas instituições ainda respeitadas no país. A reação foi imediata e pelo menos houve bom senso suficiente para se fazer a correção. Outro exemplo clássico foi a lei da vacinação obrigatória que provocou uma das maiores revoltas urbanas do país. Aqui também se gera um círculo vicioso: o Estado faz leis rigorosas; o cidadão desrespeita as leis; o Estado faz leis mais rigorosas para evitar o desrespeito; o cidadão desrespeita mais as leis mais rigorosas (ou aperfeiçoa o jeito de burlá-las).


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Desde 1985 houve um incremento nas liberdades individuais e na participação política da sociedade. Esperava-se que isso fosse ajudar a acabar com as desigualdades sociais, o que não ocorreu. O que houve e as razões históricas para isso? Qual é o nível atual de nossa democracia? Ela é resolução de problemas? O senhor já sugeriu em um de seus livros que é preciso encontrar um outro caminho para a cidadania no Brasil. Qual seria esse novo caminho e as razões dessa peculiaridade nacional? — A cidadania política não produziu até agora cidadania social, a liberdade não produziu igualdade. Isso significa que o sistema representativo não tem funcionado adequadamente. Algumas razões do mau funcionamento já foram apontadas: entrada recente do povo na política, curto período de prática representativa, interrupções autoritárias, baixa escolaridade, altos níveis de pobreza. A tentação é dizer que o modelo faliu e que se devem buscar alternativas. De fato, cheguei a mencionar a necessidade de se pensar em alternativas. Mas nunca tentei formulá-las porque no fundo não tinha e não tenho certeza sobre se é o modelo que não presta ou se não tivemos tempo de colocá-lo adequadamente em prática. Lembre-se de que ele demandou séculos para se implantar no Ocidente. Daí que talvez fosse mais eficaz fazer ajustes tópicos em vez de tentar mudanças radicais. Dou um exemplo simples, tendo em vista a crise atual. Acabar com o privilégio de prisão especial para portadores de diplomas universitários levaria os senhores doutores a pensarem duas vezes antes de praticar qualquer crime. No campo político, a introdução da possibilidade de revogação de mandatos pelos eleitores, na vigência do mandato, também poderia melhorar o comportamento de parlamentares. Pode-se também, e devese, ampliar a participação política para além do ato de votar. Há dispositivos constitucionais importantes que são pouco usados, como a ação civil pública, a ação popular, o mandado de injunção. São armas poderosas que, se mobilizadas, aperfeiçoariam o sistema representativo.

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to e melhor educação não são suficientes para resolver o problema da desigualda-

■ Alguns estudos sugerem que crescimen-

A cidadania política não produziu até agora cidadania social e a liberdade ainda não produziu igualdade

de e da exclusão e que seria necessária a participação das elites num processo de distribuição de riquezas. As elites, por sua vez, colocam todo o ônus do processo no Estado e não querem modelos em que percam sua soberania. Como resolver esse dilema da desigualdade nesses termos? Qual a real parte que cabe ao Estado e qual cabe às elites? As elites de outros países desenvolvidos perceberam no passado que era necessário reformas: agrária, distributiva etc. para a implementação de um Estado de bem-estar social. A nossa elite ainda não percebeu isso e vive com medo da violência: como entender esse caráter “suicida” ou “predatório” das elites? O que esperar no futuro? — Pesquisas indicam que a educação é o fator que mais afeta positivamente a consciência cívica e a mobilização política. Enquanto a escolaridade no Brasil não atingir níveis decentes (universalização do ensino médio e uns 30% da população com educação superior), não cabe falar em insuficiência da educação. Não cabe também, creio eu, esperar das elites a solução do problema da desigualdade. Nos países que o resolveram houve algum tipo de revolu-

ção, seja econômica (Inglaterra), seja política (França), seja social (Rússia). Revoluções não são feitas por elites. Nós não tivemos revolução alguma e não creio que a culpa seja apenas das elites que, obviamente, em todos os países defendem seus interesses. Tratase de um processo histórico em que o Estado nacional que aqui se construiu – liberal, note-se – não cumpriu a tarefa executada por outros Estados nacionais de reduzir a desigualdade a níveis toleráveis. Não me parece realista esperar que, no mundo de hoje, ainda possamos fazer a mudança por métodos revolucionários. Tampouco é realista esperar que as elites o façam espontaneamente. Ela só pode ser realizada por pressão de baixo sobre o Estado no sentido de forçá-lo a alterar políticas públicas, usando, se necessário, seu poder constitucional e legal de coerção, inclusive sobre as elites. ■ Vivemos na chamada “Estadodania”: o

Estado é visto como fonte de tudo. Por quê? Qual a história disso e os enganos dessa visão? Ao mesmo tempo que as elites exigem que o Estado controle a desigualdade e a violência, quer o Estado longe da economia: essa dicotomia tem solução? O povo sabe o que é e como funciona o Estado: é comum se reclamar do governo federal a falta de polícia nas ruas, atributos dos governos estaduais ou municipais, só para citar um exemplo. Se pode ser cidadão se não se conhece o Estado? — A pergunta me permite ampliar a resposta anterior sobre patrimonialismo. O impacto do patrimonialismo na sociedade não se limita à visão do Estado como alheio ao cidadão. Em nossa tradição ibérica há uma justificativa mais elaborada do papel do Estado. Ele se justificaria como promotor da felicidade dos súditos e seria visto pelos súditos como um benfeitor. Nosso patrimonialismo é também um paternalismo. Exame de dezenas de cartas enviadas a governantes em vários momentos de nossa história, desde o Império até os governos militares, confirma esse ponto. A concepção de contrato social embutida nessas cartas é a seguinte: o cidadão (na realidade, o súdito) deve cumprir sua obrigação de trabalhar e cuidar da família. Em contrapartida, o Estado deve cuidar do cidadão (ou do súdito). PESQUISA FAPESP 115 SETEMBRO DE 2005 15 ■


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Não há direitos políticos e civis envolvidos nesse pacto, apenas direitos sociais, que são passivos. Essa visão é também corroborada por pesquisas de opinião pública que indicam o predomínio total dos direitos sociais na percepção que os brasileiros possuem de direitos. O lado paternalista da ação do Estado é bem conhecido pelo público. A grande busca da Justiça do trabalho, dos postos do INSS e de saúde é uma prova disso. Ficam de fora do pacto os direitos de briga, os civis e políticos que definem o cidadão ativo. A grande pergunta que me faço é se o ingresso no sistema pela porta do direito social fortalece ou enfraquece ainda mais os direitos civis e políticos. O senhor defendeu em artigo recente, escrito para o jornal O Globo, a universidade pública das acusações de elitismo. Como é isso? O que acha da situação atual da universidade? Qual sua opinião sobre a polêmica reforma universitária proposta? Concorda com o sistema de cotas para minorias? — Chamei a atenção para simplificações na condenação da universidade pública como elitista. Creio ter ficado demonstrado com estatísticas que o elitismo se prende, sobretudo, a certos cursos e à ausência de horário noturno. Na maioria dos cursos, sobretudo no turno da noite, a população universitária corresponde razoavelmente ao todo da população. O que me preocupa no debate são posições demagógicas que querem abrir indiscriminadamente a universidade passando por cima de qualquer preocupação com qualidade. A universidade pública – falo, sobretudo, das federais – está cheia de mazelas, e, entre outras coisas, tem a obrigação de fazer um grande esforço para incorporar alunos pobres. Trata-se de ação afirmativa legítima e necessária. Mas a incorporação não pode ser demagógica, nem comprometer a qualidade do ensino. Para incorporar corretamente alunos pobres, a universidade deve investir pesadamente na preparação dos candidatos para que não entrem à custa de rebaixamento dos critérios de qualificação. Além disso, terá que acompanhá-los e lhes dar assistência durante todo o curso, inclusive auxílio financeiro. Do contrário, teremos desistências, frustrações, ou formação de ■

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profissionais de baixa qualidade. Nesse último caso, apenas se adiará a discriminação para o momento de entrada no mercado de trabalho. As cotas são modalidade inadequada de ação afirmativa. Elas são rígidas, artificiais, ameaçam a qualidade do ensino, e são equivocadas quando adotam classificações raciais que equiparam o Brasil à África do Sul. ■ Como o senhor vê a atuação da mídia, em especial a política e a econômica. Após o affair Collor, a imprensa passou a ser vista como fonte de revelações e uma espécie de mecanismo de controle da República. Por um lado, isso é bom, porque é uma das funções sociais da mídia. Por outro, há o problema do “believe in everything you read in papers”: o que está escrito é verdadeiro. Há, no momento, uma onda de denuncismo, parte real, mas parte sem fundamentos, para vender jornal ou atacar o governo. Como vê isso? A mídia não é diferente de uma empresa qualquer, no geral, e “vende” um produto chamado notícia. Qual o perigo disso num país em que se tem pouca reflexão crítica sobre o que se é divulgado? — Admitindo todos os problemas citados, que são reais, creio que o balanço da atuação da mídia tem sido positivo. A análise de seu impacto, no entanto, deve distinguir os tipos de mídia. Devido ao grande número de semi-analfabetos, a televisão possui um peso extraordinário sobre as classes D e E, para usar a classificação das pesquisas de marketing. Por outro lado, há um enorme avanço na comunicação via internet nas classes A e B. A internet é um domínio livre do controle dos donos da mídia. O estudo de sua influência na presente crise está por ser feito. ■ O país, em especial as elites, rejeita a reforma agrária e demoniza o MST. Como entender um país em que os pobres toleram a desigualdade? Qual a origem histórica disso e o que se pode esperar no futuro: uma onda de violência ou apenas mais tolerância com a miséria crescente? — Por que a tolerância dos pobres à desigualdade? Por que os pobres brasileiros não se revoltam? O verdadeiro milagre brasileiro não seria a honestidade dos pobres? São questões perturbadoras, que não podem ser respondidas apenas pelo recurso a teorias de

conspiração das elites. Em nossa história, quando o pobre se revoltou, ele o fez fora do sistema político, sem gerar mudanças institucionais. Voltamos ao problema da representatividade do sistema. Perspectivas? O único movimento popular eficaz que temos hoje é o MST. Mas o MST mobiliza uma parcela da população cujo peso demográfico decresce sistematicamente. A população pobre das cidades, em constante crescimento, continua politicamente desmobilizada. Pior ainda. Em cidades como o Rio de Janeiro, sua mobilização se vê bloqueada pela ação dos traficantes de drogas. Nem mesmo as associações de moradores podem funcionar sem o beneplácito dos traficantes. Por outro lado, se é verdade que a desigualdade, medida pela renda, não se tem reduzido de maneira significativa, há outras mudanças em curso. Os indicadores sociais como escolaridade, esperança de vida, mortalidade infantil, coleta de lixo, abastecimento de água e outros têm melhorado muito nos últimos dez anos. Está havendo, por assim dizer, uma distribuição indireta de renda. É aí que está, creio, parte da explicação da tolerância dos pobres: a renda não aumenta, mas a vida melhora. Isso é positivo, indica adequada ação social do Estado. Mas veja nosso dilema: a ação social reforça a visão paternalista do Estado, além de alimentar o clientelismo. ■ Numa entrevista à Folha, logo após a eleição de Lula, o senhor afirmou: “As dificuldades são proporcionais às esperanças que sua candidatura despertou. Terá que evitar o perigo do abraço mortal do apoio conservador que, ao lhe dar base de governo, pode lhe descaracterizar o programa. Terá que lidar com a cobrança de setores mais militantes que o apóiam, que exigirão mudanças rápidas. Terá que haver-se com armadilha criada pela grande expectativa de mudança que gerou na população, desproporcional em relação às possibilidades de atendimento. Esses serão os fantasmas a perseguir o governo”. O senhor foi preciso no diagnóstico. Como avalia essa percepção diante do desenvolvimento real do governo Lula? Havia outro caminho a ser seguido? O que ele ainda pode fazer para mudar a situação? Lula é, palavras suas, ainda o “estranho no ninho da elite” e vítima dessa situação, como ele mesmo quer fazer crer?


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— Eu disse isso? Não está mal, ainda que a avaliação fosse evidente para quem, embora simpático aos resultados eleitorais, não se tivesse deixado levar por romantismos. Creio que a previsão se realizou. Acuado pela necessidade de não causar pânico na economia e nos mercados internacionais, o governo manteve religiosamente a política econômica anterior, alienando boa parte de seu partido e de seus eleitores. Não tenho competência para dizer se havia alternativa viável. Mas creio que o cálculo dos estrategistas do governo era fazer mudanças no segundo mandato, quando a confiança do mercado se tivesse consolidado. Aí veio o que nem eu nem ninguém mais previu: a emergência dos fantasmas do Marcos Valério e do Delúbio Soares. Ironicamente, Fernando Henrique parece ter feito o mesmo cálculo e foi atropelado entre um mandato e outro por uma crise vinda de fora. Lula foi atropelado por uma crise interna, quando o cenário externo é muito amigável. Uma crise causada pela cúpula do partido e na qual ele não é exatamente uma vítima. É artificial e inútil buscar culpados em outro lugar. A elite social deve ter ficado feliz com a desgraça do presidente-operário, um estranho no ninho. Mas a elite econômica, sobretudo seu setor financeiro, está feliz com os lucros propiciados pelas políticas ortodoxas do Banco Central. Perspectivas? Minha hipótese otimista não é muito otimista. O presidente que, em suas reações, não se mostrou à altura da crise conseguirá levar o governo até o final do mandato e transmitir o cargo ao sucessor, seja ele quem for. ■ O que restará da esquerda após essa crise do PT, que, deixando de lado o exagero, parece o desalento que tomou conta dos admiradores de Stalin após a Primavera de Praga? Como vê o papel dos intelectuais nessa situação de crise: os intelectuais de esquerda sumiram do cenário do PT com corrupção. É o fim de um ciclo de esquerdas no Brasil? O desmonte do PT: como ficará o cenário com o partido enfraquecido? — A esquerda irá se reconstituir de algum modo. O PT também, de algum modo, se refará. Ele se partiu em dois grupos, o dos que quiseram fazer do partido um instrumento de governo e caíram na armadilha, não dos adver-

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O papel dos intelectuais nessa conjuntura é não se acovardar e enfrentar os fatos, por mais desconcertantes que eles possam ser

sários ou da elite, mas do próprio poder, e outro que, em parte já fora do partido, quer manter a pureza dos princípios, ao custo de renunciar ao poder. O primeiro grupo, enfraquecido, poderá recompor-se reconstruindo o partido sem a arrogância de antes, em bases mais próximas do estilo dos outros partidos. O segundo continuará representando a consciência cívica, sem alternativa de poder. O dano para a democracia brasileira foi grande, sobretudo pelo desencanto provocado pelo estelionato eleitoral do PT no que se refere à moralidade pública, vendida como produto de campanha. A frustração dos 53 milhões de eleitores entusiastas foi grande e poderá estender-se ao sistema representativo como um todo. O papel dos intelectuais nessa conjuntura é, a meu ver, não se acovardar e enfrentar os fatos, por mais desconcertantes e constrangedores que sejam. Para alguns a tarefa poderá ser mais dolorosa e é compreensível que prefiram o silêncio. Mas se alguém tem obrigação profissional de falar, sobretudo em momentos de crise, são os intelectuais. Muitos deles são pagos pelos cofres públicos para isso. ■ Lula vem falando muito em Vargas, em elites etc. Essa retomada de um espírito nacionalista, desenvolvimentista, clientelista, é bom ou necessário? Que outro modelo seria melhor ao Brasil? — Há várias coisas envolvidas aí. Começaria substituindo clientelista por populista, para dar mais coerência à lista de adjetivos. Lula quer recuperar o Vargas do segundo governo, o Vargas

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que interpelava o povo, que dizia defender os interesses do povo contra os interesses das elites, brasileiras e estrangeiras. É uma recuperação arriscada porque Vargas, com a tática da confrontação, cavou sua própria ruína política e, na medida em que levada à frente, a comparação poderá dar de cara com o mar de lama que jorrou de dentro do Palácio do Catete. É também uma recuperação infeliz, pois retoma uma postura populista contra a qual o PT se insurgiu desde o início. Equivale a uma renúncia a outro marco do PT, é outro passo atrás. A tentativa só se justifica pela persistência no país das amplas camadas populares mencionadas acima, ainda prisioneiras do reino da necessidade. ■ A corrupção pode provocar rupturas reais? Pode ser benéfica ao ser revelada em sua extensão? Qual é a relação entre corrupção e desigualdade? — Não creio que corrupção provoque ruptura. A ser assim o Brasil seria um país de rupturas, quando é um país de continuidades, um país sem revolução. De positivo, o que crises como a atual, gerada pela revelação de um esquema amplo e elaborado de práticas ilegais, podem fazer é provocar reações que levem ao amadurecimento cívico da sociedade e ao aperfeiçoamento institucional de mecanismos de controle e de redução da impunidade. Assim como nunca acreditei na eleição de Lula como possibilidade de recriação do país, também não vejo a crise atual como catástrofe, como o fim do mundo. O mundo continuará, o Brasil continuará, talvez mais sábio e mais maduro. •

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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

E STRATÉGIAS

MUNDO

Cingapura: dinheiro e liberdade para os pesquisadores fazem a diferença

Universos paralelos Quando Cingapura e Malásia separaram-se politicamente, em 1965, um fosso logo se abriu entre os indicadores científicos dos dois países. Esse fosso nunca parou de crescer. Nas últimas duas décadas, Cingapura estabeleceu-se como importante centro regional de biomedicina, com destaque para a genômica e a pesquisa do câncer. Mais recentemente, sob o hábil comando de Philip Yeo, um misto de engenheiro e superexecutivo, o país criou um dos mais dinâmicos ambientes para pesquisa do mundo, capaz de atrair cientistas e

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investimentos de fora. Desde 1999 Yeo é o responsável pela Agência para Ciência, Tecnologia e Pesquisa, principal organização de fomento do país. Nos últimos anos, a agência investiu US$ 300 milhões construindo a Biópolis, complexo futurista que abriga institutos especializados em genômica, bioinformática e bioengenharia. O complexo faz parte de um multibilionário investimento em biomedicina. Yeo é famoso pela paciência que emprega para contratar nomes das melhores universidades do mundo. “É um homem de

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tanta energia que poderia iluminar uma pequena cidade”, diz o biólogo alemão Axel Ullrich, recrutado do Instituto Max Planck de Bioquímica. “Ele tem uma personalidade magnética”, diz David Lane, novo chefe do Instituto de Biologia Celular e Molecular de Biópolis, recrutado na Escócia. O êxito de Cingapura reside na estratégia de oferecer generosos contratos de trabalho de cinco anos e dar liberdade de trabalho. “Não digo aos cientistas o que eles devem fazer. Ninguém melhor do que eles para decidir”, afirma. Já os esforços

da Malásia, mais calcados na construção de laboratórios do que no investimento em recursos humanos, renderam recompensas escassas. O país fracassou na tentativa de criar um pólo de pesquisa biotecnológica perto de Kuala Lumpur e, embora tenha fundado novas universidades, não conseguiu torná-las competitivas. Em parte o problema é atribuído às políticas que favorecem um grupo majoritário da população, os malaios. Esse favorecimento, dizem os críticos, tornou o ambiente acadêmico do país pouco meritocrático. (Nature, 11 de agosto)


■ Esforço para

reduzir a desnutrição

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bem-sucedido nos próximos 20 anos, diz um estudo do International Food Policy Research Institute (IFPRI). O instituto baseado nos Estados Unidos recomendou uma série de políticas para melhorar a segurança alimentar no continente. É preciso atacar simultaneamente várias frentes de pesquisa, apostando no melhoramento das culturas convencionais e em biotecnologia. Como alguns países relutam em plantar transgênicos, valeria a pena investir, por exemplo, no uso de técnicas moleculares para acelerar o crescimento das plantas. Para calcular como o número de crianças malnutridas pode evoluir até 2025, o IFPRI projetou diferentes cenários. No mais pessimista, com investimento em declínio, o número de crianças afetadas subiria para 55,1 milhões, em comparação aos 32,7 milhões de 1997. Num outro cenário, que prevê a manutenção das políticas atuais, o número de crianças desnutridas subiria para 39,3 milhões. Num quadro mais otimista, a desnutrição poderia cair para 9,4 milhões de crianças. Isso se os US$ 15 bilhões em pesquisa estiverem disponíveis. (SciDev.Net, 12 de agosto)

Adão e Eva, de Albrecht Dürer: criacionistas têm nova tese ■ As origens,

segundo Harvard Num momento em que o debate entre evolucionistas e criacionistas ganha novos contornos nos Estados Unidos, a Universidade Harvard decidiu investir US$ 1 milhão numa grande pesquisa em REPRODUÇÃO

É necessário um investimento de US$ 15 bilhões em pesquisa agrícola na África para que o combate à desnutrição seja

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PIERRE VIROT/OMS

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DIVULGAÇÃO

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Campo na Etiópia: África precisa de US$ 15 bilhões em pesquisa agrícola

busca de respostas científicas sobre as origens da vida. “Conseguiremos reduzir esse tema a uma seqüência de eventos lógicos que podem ter ocorrido sem intervenção divina”, disse David Liu, professor de química de Harvard. O porta-voz da universidade, B.D. Colen, negou que o projeto seja uma resposta ao fôlego político conquistado por uma variante da teoria criacionista. Segundo a Teoria do Design Inteligente, a natureza é tão complexa que não pode ser o resultado da seleção natural, como propõe o darwinismo, mas o trabalho de uma “força inteligente”. O presidente norte-americano George W. Bush entrou na polêmica, ao dizer que concorda que o “design inteligente” seja ensinado nas escolas, para que os estudantes possam inteirarse do debate.

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E STRATÉGIAS

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MUNDO

Ciência na web Envie sua sugestão de site científico para cienweb@trieste.fapesp.br LAURABEATRIZ

Cada empresa, um pesquisador

http://www.microbeworld.org/

A Comissão Nacional de Pesquisa Científica e Tecnológica do Chile (Conicyt) vai ampliar seu programa de subsídios para empresas que contratam pesquisadores. No ano passado, a parceria entre governo e iniciativa privada atingiu 17 empresas das áreas de biotecnologia e de computação. O sucesso da iniciativa levou a comissão a expandir o subsídio para outros setores, como a criação de salmão e a indústria florestal. O Conicyt agora está oferecendo ajuda a outras 25 companhias, que serão selecionadas em setembro. Cada empresa recebe ajuda por até três anos e é obrigada a contratar pelo menos um pesquisador. Durante o primeiro ano o governo banca 80% do salário do pesquisador. A participação é reduzida para 50% no segundo ano e para 30% no terceiro. Podem concorrer pesquisadores que concluíram o doutoramento nos últimos cinco anos. Rodrigo Vidal, biólogo da Universidade de Santiago, é um dos 17 pesquisadores que participaram da iniciativa em 2004. Desde fe20

vereiro, trabalha na companhia biotecnológica Diagnotec. “Para mim, é mais fácil desenvolver um produto tecnológico com a retaguarda de uma empresa”, afirma. (SciDev.Net, 19 de agosto)

■ Para conter a

fuga de cérebros Os salários de 10 mil pesquisadores e técnicos que trabalham em instituições do governo argentino receberam um aumento de 23%, num esforço para reduzir a fuga de cérebros que afeta mais os portenhos do que qualquer outro país latino-americano. “Estamos criando condições para impedir que nossos melhores profissionais deixem o país”, disse Daniel Filmus, secretário de Educação, Ciência e Tecnologia do governo. O salário de um cientista sênior vai subir de 3.649 pesos mensais (US$ 1.263) para 4.497 pesos (US$ 1.559). “A iniciativa faz crer que será possível voltar a fazer pesquisa na Argentina”, diz o pesquisador Osvaldo Podhajcer. (SciDev.Net, 19 de agosto)

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O site da Sociedade Americana de Microbiologia põe no ar um programa de rádio diário de 90 segundos com as novidades desse campo do conhecimento.

http://www.cea.inpe.br/webdge/elat/

A novidade no site do Elat, Grupo de Eletricidade Atmosférica do INPE, é um mapa dos raios que caíram no Brasil nos últimos 60 minutos.

http://www.ivdn.ufrj.br

O site do Instituto Virtual de Doenças Neurovegetativas reúne referências de pesquisadores na área, de trabalhos científicos e de grupos de apoio.


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Aposta na nanotecnologia G.MEDEIROS RIBEIRO/LNLS

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E STRATÉGIAS

Verba de R$ 71 milhões para redes de pesquisa

■ Professor

emérito

O governo federal anunciou a destinação de R$ 71 milhões ainda em 2005 para o Programa Nacional de Nanotecnologia. Os recursos serão aplicados em projetos, na implantação de laboratórios e na criação de redes de pesquisa nos moldes das quatro que já estão em funcionamento, sob o comando do Conselho Na-

rou-se, dois anos mais tarde, ao quadro docente da instituição. Em 1964 foi demitido por razões políticas e emigrou para os Estados Unidos, onde

cional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O anúncio foi feito pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em visita ao Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), em Campinas. O laboratório receberá R$ 12 milhões do total e vai abrigar parte dos projetos. Também participam o Centro Brasileiro

permaneceu por cinco anos, retornando em seguida ao Brasil, quando apresentou sua tese de doutorado à Faculdade de Medicina de Ribeirão

Erney: biologia de parasitas e epidemiologia da malária CARLOS CRUZ/CNPQ

O médico e pesquisador Erney Plessmann Camargo, de 70 anos, recebeu no dia 22 de agosto o título de professor emérito do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo. Atual presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Erney tem forte atuação na área de biologia molecular de parasitas e epidemiologia da malária.“Entendo que o título de professor emérito reflete a apreciação que uma instituição tem sobre o desempenho acadêmico de um docente/ pesquisador ao longo de sua carreira”, disse Erney. “Além disso, o título reflete sobretudo a generosidade de meus colegas”, afirmou. Seu primeiro trabalho independente, publicado em 1964 sobre o crescimento e diferenciação do Trypanosoma cruzi, ainda hoje é bastante citado na literatura científica internacional. Formado em 1959 na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), incorpo-

de Pesquisas Físicas, o Centro de Pesquisas Renato Archer, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Laboratório Nacional de Computação Científica, 70 universidades e dezenas de empresas. O programa foi criado em 2003 com dotação mais modesta. Previa investimentos de R$ 70 milhões em quatro anos

Preto. Em 1985 retornou à USP como professor titular do Departamento de Parasitologia do Instituto de Ciências Biomédicas, onde permaneceu até a aposentadoria, em abril deste ano. Erney Camargo foi também presidente da Sociedade Brasileira de Protozoologia e é membro das Sociedades Brasileiras de Bioquímica e Parasitologia, da Linnean Society of London e da Academia Brasileira de Ciências. Antes de ser convidado a presidir o CNPq, em 2003, ele era diretor do Instituto Butantan, em São Paulo.

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E STRATÉGIAS

LAURABEATRIZ

Transparência premiada

■ Projetos

interdisciplinares O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) lançaram um edital de R$ 500 mil para seleção de projetos de pesquisa interdisciplinares. As propostas devem envolver estudos sobre ações capazes de reduzir a contaminação microbiológica e química de alimentos e promover a informação ao consumidor sobre rotulagem nutricional. O edital está disponível no site www.cnpq.br. As inscrições podem ser encaminhadas até o dia 30 de setembro.

■ Brasil e Cuba

se entendem

Foi uma rara ocasião em que o crescente avanço das queimadas na Amazônia vinculou-se a uma boa notícia para a tecnologia brasileira. O trabalho de monitoramento de queimadas e incêndios florestais por meio de imagens de satélites, promovido pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) foi incluído em agosto entre os Global 100 EcoTech Awards, num evento

as inscrições no final de julho com a apresentação de 29 propostas. Em 2004, apenas quatro grupos chegaram a se candidatar. Os selecionados serão conhecidos em novembro. A parceria entre a

O programa de cooperação entre universidades brasileiras e cubanas começou a deslanchar. Organizada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), órgão vinculado ao Ministério da Educação, a iniciativa encerrou 22

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organizado pela Associação Japonesa para a Expo 2005, em Nagoya, Japão. O programa venceu na categoria Tecnologias para novos desenvolvimentos em uma sociedade sustentável. Além de acompanhar as queimadas, o trabalho faz estimativas de risco de queima da vegetação e do transporte de fumaça. Mapas diários de previsão de perigo de fogo são gerados pelos modelos de previsão numérica de tempo. Modelos numéricos calculam as trajetórias das emissões

Capes e o Ministério da Educação Superior (MES), de Cuba, financia projetos de dois anos de duração, com pagamento de bolsas de estudo e missões de trabalho, incluindo passagens aéreas,

das queimadas e permitem antever as regiões onde a poluição será intensa. Oito vezes por dia as unidades de conservação federais recebem informação sobre os focos de calor e potenciais incêndios florestais. “É o reconhecimento de que o Brasil está utilizando tecnologia de ponta, que permite o monitoramento do desmatamento pelo governo, comunidade científica e organizações ambientais”, disse o presidente do Ibama, Marcus Barros.

diárias e outros gastos dos pesquisadores. As propostas obrigatoriamente são vinculadas a um programa de pósgraduação brasileiro avaliado pela Capes com conceitos entre 5 e 7.


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■ Acesso sem

entraves

Getúlio por inteiro na internet CPDOC/FGV

O seminário de Consórcios de Bibliotecas Ítalo-Ibero-Latino-Americanas (SCBIILA), realizado na sede da FAPESP em meados de agosto, reuniu representantes da Argentina, Chile, Colômbia, Venezuela, México, Espanha e Portugal. Um dos desafios levantados no encontro foi a necessidade de democratizar o acesso às informações científicas dos acervos on-line. Segundo os participantes, trata-se de um problema que aparece, em graus variáveis, em diversos países. “As instituições envolvidas em consórcios de bibliotecas precisam ter como objetivo final a adoção de metodologias eficazes que consigam levar o conhecimento produzido pela elite intelectual ao domínio do grande público”, disse Âmbar de Barros, representante da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). Rosaly Krzyzanowski, coordenadora da Biblioteca Virtual do Centro de Documentação e Informação da FAPESP (BVCDi), acredita que não basta apenas garantir o acesso às informações. Também é preciso torná-lo mais dinâmico. Ela destacou a importância dos repositórios de acesso livre, que permitem aos pesquisadores divulgar seus trabalhos ao grande público de forma gratuita.

Getúlio na campanha presidencial de 1950, que o levaria de volta ao poder

Os arquivos pessoais do expresidente Getúlio Vargas (1883-1954) foram digitalizados e estão disponíveis para consulta pela internet no portal do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV). Os documentos foram doados pela família Vargas ao CPDOC e há tempos vêm abastecendo a pesquisa historiográfica sobre o ex-

presidente. Uma pequena parte estava disponível no portal, criado há quatro anos. Em 2004, na celebração dos 50 anos da morte do ex-presidente, surgiu a idéia de digitalizar o acervo. São 55 mil páginas de documentos, entre os quais os 13 cadernos que compõem os diários do presidente entre 1930 e 1942, discursos de campanha, além de 60 mil fotografias. “Os documentos de Vargas

do terawatt

LAURABEATRIZ

O Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) inaugurou um laboratório de raios laser único no hemisfério Sul, capaz de obter potência de 1 trilhão de watts, o terawatt. O Laboratório de Lasers Compactos de Altíssima Potência abre espaço para novas pesquisas com aplicações práticas nas áreas da saúde, meio ambiente e nanotecnologia. “Uma das promessas é na área de abrasão

MARCELLO VITORINO/FULLPRESS

■ Na fronteira

ainda hoje são os mais procurados em nossos arquivos”, diz Suely Braga, coordenadora do setor de documentação do CPDOC, que mantém acervos de dezenas de personalidades históricas, entre elas os presidentes Juscelino Kubitschek, João Goulart e Ernesto Geisel. Os interessados em fazer pesquisas devem primeiro obter um software disponível no portal www.cpdoc.fgv.br.

Laboratório do Ipen: laser

de tecidos biológicos, como o dente”, diz Nilson Dias Vieira Júnior, gerente do Centro de Lasers e Aplicações (CLA) do Ipen. O laser na potência terawatt também pode conseguir identificar, entre outras coisas, a constituição de poluentes atmosféricos presentes seja a 1, 2 ou 10 quilômetros de altura. A Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) destinou R$ 1,25 milhão ao laboratório. E mais R$ 1 milhão foi investido pela FAPESP, por meio de um projeto temático.

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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA INFORMÁTICA

Laços estreitos Microsoft amplia cooperação com pesquisadores brasileiros e já se fala até na criação de um grande laboratório no país F ABRÍCIO M ARQUES

S

ete pesquisadores brasileiros participaram, entre os dias 18 e 19 de julho, em Redmond, no Estado norte-americano de Washington, de um grande fórum acadêmico promovido pela Microsoft, o maior fabricante de softwares do planeta. O Microsoft Research Faculty Summit reuniu estudiosos de várias partes do mundo para discutir o futuro da computação, conhecer as linhas de pesquisa desenvolvidas pela empresa, assistir a palestras e mesas-redondas com autoridades mundiais em diversos campos da informática e tomar contato com o trabalho de colegas de outros países. “Fiz pelo menos três contatos com professores interessados em receber alunos de pós-graduação meus”, diz Claudia Bauzer Medeiros, professora do Instituto de Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e presidente da Sociedade Brasileira de Computação. “Num evento paralelo participei de um encontro com 30 dos principais pesquisadores em bancos de dados do mundo, onde cada um pôde relatar o que anda fazendo. Foi uma oportunidade rara”, afirma Claudia. O diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz, fez uma apresentação sobre o Brasil num painel oficial no Summit e participou de uma mesa-redonda de cooperação entre a América Latina


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ILUSTRAÇÕES HÉLIO DE ALMEIDA

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e a Índia. Max Costa, da Unicamp, Junior Barrera, Flávio Soares Correa da Silva e Carlos Morimoto, ambos da USP, e Roberto Ierusalimschy, da PUC do Rio, também estiveram em Redmond. Embora o objetivo primordial da Microsoft seja criar e vender produtos – e, para isso, ela investe US$ 5,2 bilhões em pesquisa e desenvolvimento a cada ano –, a empresa tradicionalmente mantém colaborações com universidades mesmo em temas que não prometem inovações num curto prazo. Reza uma das máximas da companhia que, se 90% de determinada linha de pesquisa é incorporada a um produto, é porque a empresa parou de pensar no futuro. O ideal é investir também em pesquisa pura, que tem potencial para manter a empresa oxigenada e ajudá-la a permanecer na vanguarda do mercado. É por isso que ela patrocina eventos como o Faculty Summit, onde trata a academia como aliada estratégica. Também é por isso que criou o Microsoft Research, seu braço de pesquisas, que mantém um orçamento independente da área de desenvolvimento de produtos e cooperação com estudiosos de vá-

rias instituições. Ao investir em pesquisa científica em mais de 55 áreas da informática, a Microsoft é hoje um raro exemplo de empresa que promove pesquisa básica, espaço que no passado pertenceu à IBM e aos laboratórios Bell. Emprega mais de 700 pessoas em seis grandes laboratórios: três nos Estados Unidos e os outros três no Reino Unido, na China e na Índia. Resposta diplomática - Num evento do

Summit que reuniu pesquisadores da América Latina, a pesquisa brasileira em computação teve destaque. A produtividade dos programas de pós-graduação do país nessa área, que no ano passado formaram cem doutores e mil mestres, foi elogiada numa mesa-redonda que reuniu professores de outros países. Ricardo Baeza Yates, diretor do Centro de Pesquisa da Web da Universidade do Chile, admitiu que a pesquisa no Chile tem outra escala: para competir com um programa brasileiro de primeira linha, precisaria unir-se a outro importante grupo de pesquisa de seu país. Coube a Max Costa, professor da Faculdade de Engenharia Elétrica e

de Computação da Unicamp, fazer uma pergunta que já passara pela cabeça de muitos brasileiros. Por que a Microsoft não abre na América Latina um centro de pesquisas nos moldes dos que criou recentemente na China e na Índia? O diretor da Microsoft Research em Redmond, o brasileiro Henrique Malvar, a quem a pergunta foi endereçada, deu uma resposta diplomática. Disse que a instalação de um laboratório desse tipo seria conseqüência natural do peso que a pesquisa da América Latina acumula, mas ressalvou que não há planos concretos nesse sentido. Malvar ressalta que o Brasil teria credenciais para sediar esse laboratório. “Não acredito que haja nenhum requerimento adicional. A comunidade acadêmica brasileira é muito boa, especialmente em escolas de topo como a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Há vários indicadores que comprovam isso, como livros técnicos de nível internacional cujos autores são brasileiros, qualidade dos artigos publicados etc.”, afirma Malvar, que completa: “À medida que o ecossistema de tecnologia de informaPESQUISA FAPESP 115 SETEMBRO DE 2005 25 ■


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ção, com o envolvimento da Microsoft, empresas brasileiras e a comunidade acadêmica, continuar a crescer, e naturalmente levar a um crescimento dos negócios da Microsoft no Brasil, aumentará a probabilidade de que um dia possamos abrir um laboratório no Brasil. Mas é bom ressaltar que não há planos concretos”.

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Henrique Malvar é um dos artífices do estreitamento de laços entre a Microsoft e a academia brasileira. Em maio, esteve no Brasil participando do primeiro Congresso de Pesquisa Acadêmica na América Latina do Microsoft Research, que reuniu dezenas de pesquisadores na cidade de Embu, na Região Metropolitana de São Paulo. As colaborações andam

cada vez mais freqüentes. Junior Barrera, professor do Instituto de Matemática e Estatística da USP, foi convidado a ir ao Microsoft Research Faculty Summit depois que um grupo da Microsoft o visitou na USP e se interessou por seu trabalho na área de processamento digital de imagens. Também foi estimulado a apresentar um projeto no próximo edi-

Ponta-de-lança na América Latina O Google, líder mundial em tecnologia de sites de busca, comprou a empresa mineira Akwan Information Technologies, criada por um grupo de professores do Departamento de Ciência da Computação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Com a aquisição, a Akwan transforma-se no Centro de Pesquisa e Desenvolvimento do Google na América Latina, ponta-de-lança da empresa norte-americana no continente. A Akwan foi criada em 2000, fornecia serviços para empresas e

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portais da internet e era responsável pelo site de busca todobr.com.br. “As negociações permitem que a empresa norte-americana incorpore todos os engenheiros e as tecnologias de busca desenvolvidas pela Akwan”, disse Nívio Ziviani, um dos fundadores da empresa mineira. Os outros dois criadores são Alberto Laender e Berthier Ribeiro Neto. Caberá a Ribeiro Neto a direção executiva do centro de pesquisa brasileiro. O Google, sediado no Vale do Silício, na Califórnia, tem ampliado o número de

centros de pesquisa espalhados pelo mundo. Além de Belo Horizonte, estabeleceu-se em Tóquio (Japão), Zurique (Suíça), Bangalore (Índia), Nova York e Mountain View (Estados Unidos). Com a criação da filial brasileira, a expectativa é que sejam gerados novos empregos com as contratações de técnicos brasileiros. “Os centros internacionais do Google têm uma meta de contratação que inclui 200 pessoas. Creio que o centro de pesquisa brasileiro não será muito diferente”, disse Ziviani.


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tal de parcerias com a Microsoft. “Meu trabalho e o de pesquisadores da Microsoft têm pontos em comum”, afirma Barrera. Em 2003, o professor Max Costa, da Unicamp, passou um período de três meses no Centro de Pesquisas de Redmond como pesquisador visitante e ficou impressionado. “Era possível assistir a três palestras por dia com expoentes da matemática ou da engenharia. Era até difícil administrar a agenda”, lembra. Há dois anos, a Microsoft celebrou convênios com a Escola Politécnica da USP e a Unicamp, que resultaram na criação, em ambas as instituições, de laboratórios com equipamentos doados pela empresa.“Eles vieram conhecer nosso trabalho e nos ofereceram essa oportunidade”, diz Rodolfo Azevedo, professor do Instituto de Computação da Unicamp e coordenador do laboratório, abastecido com mais de 13 máquinas, 1 servidor e 15 Tablet PC (computador pessoal em forma de prancheta). “O laboratório serve de plataforma de pesquisa na área de computação. E também é usado por estudantes de graduação que vêm ter contato com novas tecnologias”, afirma Azevedo.

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Existem outras iniciativas, como os Centros de Tecnologia XML em cidades como São Paulo, Curitiba, Petrópolis, Recife, Fortaleza e Porto Alegre. Esses núcleos buscam capacitar profissionais de tecnologia para a realidade proporcionada pelo padrão aberto XML (eXtensible Markup Language), que permite a comunicação entre diferentes computadores e aparelhos portáteis. “Há espaço para expandirmos o relacionamento com a comunidade acadêmica no Brasil. A Microsoft deverá abrir mais centros de tecnologia, que incluem bolsas para estudantes”, diz Henrique Malvar. Campeonato mundial - Em 2005 teve

início o primeiro programa de estágios na Microsoft Research para alunos de pós-graduação da América Latina. Dos quatro candidatos selecionados, dois são do Brasil. A participação brasileira na Imagine Cup, campeonato mundial de soluções para softwares promovido pela Microsoft e disputado por 17 mil estudantes de graduação de 90 países, é outro exemplo de cooperação. Além de haverem participado com o maior número de equipes, venceram na catego-

ria Solução para Microsoft Office, com um grupo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Um recente protocolo de intenções firmado entre a Unicamp e o Massachusetts Institute of Technology (MIT) tem certa inspiração do Microsoft Research. O protocolo busca aprofundar colaborações entre as duas instituições para o uso de tecnologias em educação. O acordo foi assinado por Phillip Long, coordenador dos i-Labs do MIT – projeto que inspirou a idéia dos WebLabs (laboratórios interligados pela web) do projeto KyaTera, que conecta dezenas de instituições de pesquisa do Estado de São Paulo por meio de fibras ópticas. As plataformas e os softwares que abastecem o MIT foram criados pelos pesquisadores do Microsoft Research. O KyaTera faz parte do programa Tidia (Tecnologia da Informação no Desenvolvimento da Internet Avançada) da FAPESP. “Ainda não há uma parceria, mas as ferramentas desenvolvidas pela Microsoft para o MIT poderão nos ajudar nas pesquisas do Tidia”, diz Hugo Fragnito, professor da Unicamp e coordenador do projeto KyaTera. • PESQUISA FAPESP 115 SETEMBRO DE 2005 27 ■


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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

INOVAÇÃO

Ensaio

de orquestra Estados da Região Sudeste articulam agenda comum para o desenvolvimento

S

ão Paulo,Minas Gerais,Rio de Janeiro e Espírito Santo vão elaborar um plano unificado de investimentos em ciência,tecnologia e inovação (C,T&I) para a região.A idéia é firmar acordos de cooperação entre as secretarias de Ciência e Tecnologia para fomentar a pesquisa e o desenvolvimento de novos produtos em áreas consideradas estratégicas,como a de biotecnologia e de agronegócios. A idéia de unificação da agenda para o desenvolvimento tecnológico começou a ser arquitetada durante a Conferência Sudeste de C,T&I realizada entre os dias 3 e 4 de agosto em Belo Horizonte,quando cerca de 400 representantes dos quatro estados elaboraram propostas para a 3ª Conferência Nacional de Ciência,Tecnologia e Inovação agendada para o mês de novembro,em Brasília.A idéia foi defendida por Lourival Carmo Mônaco,secretário executivo da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico de São Paulo,encampada pelos

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secretários de Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro,Minas Gerais e Esp írito Santo e apoiada pelo secretário executivo da 3ª Conferência Nacional, Carlos Aragão.A expectativa é que,at é outubro,a proposta da Regi ão Sudeste esteja detalhada e chancelada pelos governos estaduais. Os quatro estados do Sudeste registram,em conjunto,os maiores porcentuais de gastos em C&T entre as demais regiões do país.Em 2002,por exemplo, os dispêndios dos governos estaduais – ainda que fortemente concentrados em São Paulo – somaram R$ 937 milhões, sem contar o R$ 1,3 bilhão repassado por meio dos diversos programas do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT).A regi ão reúne mais da metade dos grupos de pesquisa em atuação no país e é responsável por 65% dos pedidos de patentes depositados no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) entre 2000 e 2002. Agenda para o desenvolvimento - A 3ª Conferência Nacional de C,T&I tem como tema central o desenvolvimento do país subdividido em cinco grandes áreas:

geração de riqueza,inclus ão social, áreas de interesse nacional,presen ça internacional e gestão e regulamentação do conhecimento.Esse tem ário pautou os debates dos encontros regionais. Em Belo Horizonte,as estrat égias para o desenvolvimento tecnológico tiveram lugar de destaque.Houve consenso de que a Lei de Inovação, quando regulamentada, deverá contribuir para a criação de um ambiente cooperativo entre as universidades,os institutos de pesquisa e as empresas – preservadas as vocações distintas – e resultar no desenvolvimento de novos produtos.Entre os participantes do encontro também eram positivas as expectativas em relação aos incentivos previstos na Medida Provisória nº 252,conhecida como MP do Bem,que desonerou,por meio de subvenção,a contrata ção de pesquisadores por empresa e que entra em vigor no próximo ano. O baixo nível de investimentos das empresas em pesquisa e desenvolvimento (P&D),no entanto,poder á restringir o impacto da Lei de Inovação e da MP do Bem a alguns setores da atividade econômica.“É mais fácil a universidade


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BRAZ

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ajudar a empresa que já desenvolve P&D do que aquela que não o faz”, afirmou Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP. Avaliado dessa perspectiva,o agronegócio deverá ser um dos maiores beneficiários da Lei de Inovação, constatou Alberto Portugal,ex-presidente da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Nessa área, o Brasil tem liderança internacional,mas, para manter a posição de destaque,ter á que consolidar a P&D. “O desafio será enorme”,lembrou Evaldo Vilela, reitor da Universidade Federal de Viçosa (UFV). “Hoje temos a melhor tecnologia de agricultura tropical,mas no futuro teremos uma brutal competição no mercado mundial de fibras,alimentos e madeiras,isso sem falar nas perspectivas de barreiras crescentes para os produtores.” O sucesso de qualquer parceria entre as universidades e o setor privado exigirá que as escolas reavaliem o currículo e incentivem o empreendedorismo. “Formamos doutores para serem professores, não formamos pesquisadores com a visão de tecnologia e,so-

bretudo, não protegemos o nosso conhecimento.Precisamos de uma mudança radical”,diagnosticou Jos é Arana Varela, pró-reitor de pesquisa da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Ainda no âmbito acadêmico, foi apontada a necessidade de uma maior integração entre as universidades e as escolas técnicas,a redefini ção do trabalho do tecnólogo,cujo papel é considerado primordial na produção e difusão de tecnologias,e a libera ção de verbas específicas para o aparelhamento de laboratórios para aprimorar a formação de profissionais nas áreas tecnológicas. Institutos de pesquisa - No encontro de Belo Horizonte,foi sugerida tamb ém a “rediscussão e reavaliação” do papel dos institutos de pesquisas tecnológicas. O objetivo é buscar novas formas de financiamento para modernizar a infraestrutura,criar alternativas para a “reposição” dos recursos humanos e alocar verbas para a cooperação internacional. “Precisamos,ainda,de apoio jur ídico para negociar contratos e de avaliação econômica e tecnologias”, afirmou Sergio Almeida Cunha Filgueiras,di-

retor do Centro de Desenvolvimento de Tecnologia Nuclear (CDTN),instituto vinculado ao MCT. Para as universidades e institutos de pesquisa,a aproxima ção com o setor privado colocará novos temas para a pesquisa e,para as empresas,ajudará na inovação. “Mas,para a inova ção crescer,ainda falta estimular a parceria com investidores,a associa ção com empreendedores e o apoio do Estado”, lembrou Brito Cruz. Evando Mirra,presidente do Centro de Gestão de Estudos Estratégicos (CGEE), anunciou que o MCT prepara o lançamento do portal Inovação para facilitar a relação entre universidades e empresas.O portal vai operar com o mesmo modelo da Plataforma Lattes – um sistema de informações,bases de dados e portais web voltados para a gestão de Ciência e Tecnologia (C&T) – e terá como objetivo ampliar a adesão de mais empresas ao processo de inovação.“Dos 4 milhões de pequenas e médias empresas no país, só 5 mil têm esforço inovador”,contabilizou Mirra. •

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MUNDO

Elas também vão à praia

L ABORATÓRIO

Em junho e julho, auge do verão europeu, quem buscou o sol nas praias do Mediterrâneo teve de se preocupar em evitar as medusas. Levadas pelas correntes marinhas, chegam ao litoral e causam problemas: em dez dias, em Costa Brava, no litoral da Espanha, houve 11 mil banhistas com queimaduras, que causam ardência, enjôos e febre. Medusas como a Pelagia noctiluca proliferam em razão do aumento da temperatura das águas ou da escassez de predadores como peixes e tartarugas. “Há explosões

■ Um cérebro

na barriga Um cérebro no alto da medula espinhal e outro, o sistema nervoso entérico, escondido entre as vísceras. Por que não? Segundo Michael Gershon, coordenador do departamento de anatomia da Universidade de Columbia, Estados Unidos, a conexão entre os dois é bastante clara (New York Times, 23 de agosto). Quem já sentiu um frio na barriga antes de falar em público ou o intestino solto antes de uma prova difícil concordará com ele. Sinais de ansiedade, depressão, úlceras e mal de Parkinson surgem tanto na mente quanto no intestino. Medicamentos para um dos cérebros podem atingir o outro: antidepressivos, por exemplo, causam problemas gástricos em um quarto das pessoas tratadas. O também chamado pequeno cérebro também se vale, como o grande, de uma rede própria de circuitos neurais, neurotransmissores e proteínas para cumprir seu papel: administrar a digestão, do esôfago até o intestino.

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KIP EVANS/NOAA

CIÊNCIA

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Uma medusa do gênero Pelagia: perigo flutuante no Mediterrâneo

populacionais de medusas também no litoral do Brasil, com a agravante de que algumas espécies daqui são mais perigosas”, comenta o biólogo Antonio Marques, da Universidade de São Paulo (USP), que testemunhou a aflição dos moradores da Catalunha com o ataque desses invertebrados de corpo gelatinoso. Segundo ele, a hipótese de que a pesca excessiva cause um aumento da população de medusas deve servir como alerta. “Empresas pesqueiras de outros países gostariam de

atuar em nossas águas, alegando que o Brasil pesca pouco, mas uma expansão sem planejamento poderia ter altos custos ambientais, ainda que traga algumas divisas imediatas.” Entrevistada pelo El Periódico de Catalunya, a bióloga Sarah Frías-Torres aponta duas saídas. A primeira é reduzir a pesca e adotar outras formas de explorar os recursos marinhos. A segunda: “Começar a comer sopa de medusas”, graceja. São um tanto insípidas, mas tostadas passam como um bom petisco.


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LAURABEATRIZ

■ Antidepressivo e

suicídio de adultos Adultos que tomavam antidepressivos à base de paroxetina apresentaram um risco maior de tentar suicídio do que aqueles que não tomavam esse fármaco, atualmente indicado para cerca de 20 milhões de pessoas no mundo todo. Com base nessa conclusão, pesquisadores noruegueses sugerem que a recomendação de restringir o uso desse fármaco em crianças e adolescentes inclua também adultos. Ivar Aursnes e sua equipe da Universidade de Oslo analisaram os testes feitos com paroxetina e encontraram sete tentativas de suicídio no grupo de 916 adultos que tomavam esse antidepressivo e uma entre os 550 que haviam tomado placebo. Em fevereiro, David Grunnell, da Universidade de Bristol, Inglaterra, havia alertado sobre o risco mais elevado de comportamento suicida entre as pessoas que tomavam antidepressivos inibidores de recaptação de serotonina (SSRIs), o mesmo grupo da fluoxetina, do Prozac, mas sem avaliar especificamente a paroxetina. O grupo de Oslo confirmou: todos os antidepressivos do tipo SSRI aumentam as tentativas de suicídio em adultos deprimidos.

nefrina, e aumenta a de oxitocina, o hormônio associado ao amor maternal, concluiu a psiquiatra Karen Grewen, da Universidade de Carolina do Norte, Estados Unidos. Participaram desse estudo 28 casais, dos quais foram medi-

dos a pressão sangüínea e os níveis de oxitocina e cortisol antes e depois de conversarem sobre momentos felizes que viveram juntos, de assistirem a cinco minutos de um filme romântico e de se abraçarem por 20 segundos. Esses achados, publicados na Psychosomatic Medicine, ajudam a explicar por que as pessoas casadas geralmente têm uma vida mais saudável que as solteiras. Outros estudos já haviam sugerido que o divórcio, a perda dos pais ou do parceiro e o isolamen-

■ Os benefícios de

O segredo da longevidade e da boa saúde pode estar em algo que vem naturalmente às mães de todo o mundo, mas que geralmente os filhos renegam: um caloroso abraço. Ser acolhido entre os braços de outra pessoa reduz a quantidade de dois hormônios do estresse, o cortisol e a norepi-

Esbelta, sim, mas com quase 1 tonelada: perigo de extinção nas alturas

EDUARDO CESAR

um longo abraço

to social prejudicam a saúde, mas só agora se consegue explicar os efeitos benéficos do casamento: o toque dispara a produção de oxitocina, que acalma e alivia o estresse e, por sua vez, alimenta o desejo de tocar e ser tocado. Mas a qualidade do contato é crucial. Abraços com tapas fortes realizados sob holofotes, como os vistos entre os políticos de Brasília, não valem; para alimentar o bem-estar, têm de expressar carinho e apoio.

■ Quanto maior, maior

o risco de extinção Atenção, grandalhões, não confiem tanto na sorte. Biólogos ingleses e norte-americanos demonstraram em um estudo publicado na Science (19 de agosto) que o risco de extinção depende essencialmente da massa corporal: quanto maior, maior a chance de os herdeiros não verem mais a luz do sol. Uma equipe coordenada por Marcel Cardillo, do Imperial College London, examinou 4 mil espécies de mamíferos terrestres, cuja massa corporal variava de 2 g de uma espécie de morcego até os 400 kg do elefante africano. O risco de extinção mostrou-se maior entre os animais de maior porte porque a densidade populacional é menor – e a taxa de crescimento populacional cai à medida que cresce a massa corporal. Esse trabalho ajuda a identificar as espécies mais suscetíveis ao declínio, podendo levar a planos de conservação mais efetivos. De acordo com o modelo proposto nesse estudo, a taxa de risco de extinção para uma espécie de 300 kg seria de 1,00, comparado com uma de 0,38 para espécies de 300 g.

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L ABORATÓRIO

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BRASIL

Mauritsstad e Recife, de Frans Post, 1653: quando casas e ruas eram mais silenciosas ■ O preço

Entre paredes mais estreitas Não reclame do vizinho que liga o aspirador de pó ou toca bateria à noite. Pelo menos, não só dele. O ruído que vem de fora e incomoda tanto deve-se principalmente à densidade do material e à espessura da parede, atestam as arquitetas Elvira Medeiros da Silva e Elisabeth Cavalcanti Duarte, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Durante três anos elas estudaram as plantas de casas brasileiras construídas desde o século 16 para avaliar a capacidade que elas tinham de filtrar o barulho da rua. A resposta estava nas paredes, que se tornavam – e se tornam – cada vez mais estreitas e leves. Nesses 500 anos, de acordo com as duas arquitetas, houve duas fases distintas na construção das

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paredes das casas. Do século 16 ao 19 eram bem mais espessas – com até 70 centímetros de largura. Eram feitas geralmente com taipa de pilão, pau-a-pique ou alvenaria de pedras, como em Parati, no Rio de Janeiro. Já no Nordeste havia quase exclusivamente casas com paredes feitas de tijolos maciços. Com a expansão e o adensamento das cidades, as técnicas de construção e os materiais foram sendo substituídos. A maior parte das paredes atuais têm em torno de 11 centímetros de espessura e são feitas de blocos cerâmicos – os tijolos furados. Em conseqüência, perdeu-se a capacidade de isolar o som. As paredes antigas retinham cerca de 35 decibéis a mais que as de hoje, equivalente à

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da pressa

diferença entre o nível de ruído de uma avenida com trânsito intenso e o do som de duas pessoas conversando. Como as próprias cidades se tornaram mais barulhentas, gerou-se o que Elvira chama de “incoerência absoluta”. “Quando o ruído externo não era um agressor, as residências tinham um ótimo desempenho acústico”, comenta ela. Paradoxalmente, chega mais barulho da rua, causando irritação e às vezes tirando o sono, mas não há uma legislação nacional que regule o conforto acústico das residências. De acordo com esse estudo das arquitetas, nenhuma residência brasileira construída no século 20 atinge o padrão mínimo de conforto acústico exigido pelas leis européias.

Um estudo do International Stress Management (Isma) com mil brasileiros economicamente ativos revelou que 30% sofriam da doença da pressa. Tinham sintomas físicos como hipertensão e problemas vasculares ou comportamentais, como o abuso de álcool. Só 8% dos entrevistados tinham consciência de que deveriam reduzir o ritmo de vida e 13% achavam que deveriam ir mais devagar, mesmo sem saber como. “Na cultura da velocidade, quem decide que precisa negociar horários no trabalho para ter mais tempo livre esbarra em resistência”, diz Ana Maria Rossi, presidente da Isma no Brasil. Ela espera que o movimento de desaceleração contamine as corporações. “As empresas já notaram que a margem de erro de quem faz tudo ao mesmo tempo é maior. Isso poderá valorizar o trabalho feito com calma.”


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gos com uma versão defeituosa da enzima polimerase gama, que repara as lesões no DNA das mitocôndrias, as usinas de força das células. Surgiram sinais de envelhecimento (queda de pêlos, curvamento da coluna ou perda de audição) por volta dos 9 meses de idade – e aos 14 esses roedores já estavam mortos. Imaginava-se que esses danos fossem causados por moléculas chamadas radicais livres, mas Prolla relatou algo diferente na Science. Quando lesadas, as mitocôndrias liberam um sinal químico que indica à célula que é hora de morrer.

Em extinção, sim, mas nem tanto Biólogos brasileiros estão contestando o levantamento mundial sobre o declínio e a extinção de anfíbios, realizado por especialistas pela União Internacional de Conservação da Natureza (IUCN) com a Conservation International. De acordo com esse estudo, publica-

Célio Haddad, da Unesp. “Isso não se deve aos critérios em si, mas a decorrências de nossa ignorância sobre a distribuição geográfica e tamanhos das populações de anfíbios brasileiros.” Segundo ele, o Global Amphibian Assessment (Avaliação Global de Anfíbios ou CÉLIO HADDAD/UNESP

REPRODUÇÃO/O BRASIL DOS VIAJANTES

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■ Muito acima

do horizonte ■A

enzima dos cabelos brancos

A Scinax trapicheiroi: abundante ou ameaçada?

JEFF MILLER / UNIVERSIDADE DE WISCONSIN

Está um pouco mais claro como o corpo envelhece. Não é só porque as células se tornam incapazes de se multiplicar, fazendo os cabelos embranquecerem e a memória se esvanecer. O geneticista brasileiro Tomás Prolla, atualmente na Universidade de Wisconsin, Estados Unidos, descobriu que o acúmulo de lesões no DNA faz as células acionarem o processo de apoptose ou morte programada. Ele criou camundon-

Dois livros escritos por jornalistas demonstram que é mesmo possível falar de ciência em linguagem simples. Em Rumo ao infinito – Passado e futuro da aventura humana na conquista do espaço (Ed. Globo, 448 págs.), Salvador Nogueira relata os esforços dos norte-americanos, principalmente, em chegar cada vez mais longe. Em No reino dos astrônomos cegos – uma história da radioastronomia (Ed. Record, 336 págs.), Ulisses Capozzoli conta como a radioastronomia se desenvolveu no país.

do em outubro de 2004 na Science, estariam no Brasil 110 das 1.856 espécies de sapos, pererecas e rãs sob o risco de desaparecer. Especialistas do Museu Nacional do Rio de Janeiro, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Minas Gerais examinaram a metodologia adotada e concluíram que no Brasil não haveria 110 espécies ameaçadas de anfíbios, mas apenas 24. Um artigo com esses novos resultados saiu neste mês também na Science.“Consideramos os critérios da IUCN inadequados aos anfíbios brasileiros”, diz

GAA) teria aplicado friamente os critérios da IUCN, sem levar em conta que a falta de dados geraria uma distorção nos resultados. “Além de considerar espécies deficientes em dados (DD) como ameaçadas, o GAA incluiu espécies amplamente distribuídas e abundantes como ameaçadas”, diz ele. Em alto risco de extinção haveria nove espécies de anfíbios brasileiros de acordo com uma lista do governo federal, seis de acordo com um levantamento feito por especialistas e 20 segundo o GAA; como ameaçados haveria, respectivamente, 3, 6 e 38.

Contrastes: tão diferentes, mas com a mesma idade

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CAPA PALEONTOLOGIA

Bichos antigos da

Terra Brasilis

Aves, répteis e mamíferos recém-descobertos ampliam a diversidade da fauna da América do Sul de milhões de anos atrás C ARLOS F IORAVANTI , D O R IO DE J ANEIRO

Feras de madeira: nesta e nas próximas páginas, obras dos artesãos do Centro de Cultura Popular do Mestre Noza, de Juazeiro do Norte, Ceará


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ificilmente o acervo de espécies da fauna brasileira de milhões ou de milhares de anos atrás será maior que o dos Estados Unidos. Não se trata apenas de uma conseqüência do orçamento para pesquisa – em nosso caso, 22 vezes menor. A principal razão, que pode soar um pouco estranha, é outra: o Brasil não tem desertos, nos quais os fósseis se conservam muito mais facilmente do que sob as florestas que cobrem a maior parte das terras do país. Os paleontólogos brasileiros não têm muito onde cavar, embora não percam a oportunidade de pôr o chapéu com a surrada roupa de trabalho de campo e de mais uma vez arriscar a sorte em algum ponto da Bacia Bauru ou da Chapada do Araripe. A Bacia Bauru, vasto campo de sedimentos que se espraia pelos estados de São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Goiás e Mato Grosso, abriga resquícios de animais que viveram há 80 milhões de anos, no final do tempo dos dinossauros. O problema é que nem sempre estão acessíveis. Regiões como o noroeste paulista, comprovadamente rico em diversidade de espécies de milhões de anos atrás, quase não podem mais ser remexidas: estão tomadas por plantações de canade-açúcar. Uma das poucas outras alternativas de regressar com algo valioso na mochila é a Chapada do Araripe, um dos mais férteis territórios de fósseis de peixes e répteis do país, que se estende pelos estados do Ceará, de Pernambuco e do Piauí. Por ali, fósseis de 110 milhões de anos são comuns a ponto de inspirarem até mesmo o artesanato local, resultando em peças como as que ilustram estas páginas. Já os paleontólogos argentinos não escondem mais o orgulho ao contarem que no país deles foram identificadas cerca de mil espécies de fósseis de vertebrados, o equivalente a pelo menos quatro vezes o acervo brasileiro. O júbilo se deve, em parte, aos benefícios do clima seco, que ajuda a preservar os restos de animais que antes ocupavam o atual deserto da Patagônia. Mas há outro motivo: “A paleontologia na Argentina tem uma tradição de 150 anos”, explica a zoóloga Zulma Gasparini, professora da Universidade de La Plata que trabalha nessa área há quase 35 anos. “Começou antes da física e da medicina e há 40 anos é considerada uma profissão.” PESQUISA FAPESP 115 SETEMBRO DE 2005 35 ■

CIÊNCIAS DA TERRA, CIÊNCIA DA VIDA – CHAPADA DO ARARIPE/ FAAP

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Mesmo com essas desvantagens, a paleontologia nacional está viva. No II Congresso Latino-Americano de Paleontologia de Vertebrados, realizado no mês passado no Rio de Janeiro, foram apresentadas cerca de 30 novas espécies de fósseis de animais da América do Sul – pelo menos metade do Brasil. Ainda que sujeitas à confirmação por meio da publicação de artigos em revistas especializadas, tais descobertas atestam a maturidade dessa área no país e acentuam a importância da América Latina como um centro de irradiação de novas espécies de animais. Por sinal, uma das espécies mais antigas de dinossauros, o Staurikosaurus pricei, foi encontrada no Rio Grande do Sul, onde viveu há 230 milhões de anos, evidentemente sem suspeitar de que, do alto de seu 1,8 metro e dos modestos 30 quilogramas, milhões de anos mais tarde sairiam grandalhões como o Tyrannossaurus rex, um dos símbolos da paleontologia no hemisfério Norte. Sobre a mesma Terra - Embora imbatíveis em popularidade, provavelmente por atiçarem nossos medos atávicos de monstros, os dinossauros não viveram sozinhos sobre a Terra antiga. Foram, é verdade, os maiores, mais abundantes e mais bem-sucedidos animais durante a maior parte do tempo em que viveram, entre 230 milhões e 65 milhões de anos atrás. Mas havia outros répteis, aves e mamíferos, cujos fósseis, à medida que saem das rochas, não só revelam uma diversidade e uma distribuição geográfica além do imaginado, como também evidenciam as transformações por que passou a paisagem brasileira. Um milhão de anos atrás, nas terras então ocupadas apenas por uma vegetação rala entremeada por pequenos bosques, vagavam mamíferos semelhantes aos elefantes. Eram os mastodontes, pelo menos três vezes maiores que as antas, os maiores mamíferos terrestres brasileiros de hoje, com quase 2 metros de comprimento. Espalhavam-se de norte a sul, mas não se sabia que poderiam ter ocupado também o que seria o Estado de Rondônia, como indica a descoberta de dois crânios quase completos de mastodontes. Havia também outros mamíferos tão

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grandes quanto os mastodontes – os Pirotheria. Na região de Taubaté, entre as cidades de São Paulo e Rio, viveu o primeiro Pirotheria brasileiro, com um focinho mais comprido que o dos elefantes, ainda que as trombas sejam menores. O animal desenterrado por paulistas e cariocas impressiona pelo jeitão, pelo tamanho e pela época em que viveu: cerca de 30 milhões de anos atrás. Já nas pequenas cavernas do oeste do Rio Grande do Norte vivia um réptil semelhante ao atual jacaré-de-papo-amarelo, numa indicação de que o clima era bastante diferente e provavelmente havia muito mais água nessa região hoje tão seca. “Havia um mosaico de vegetações diferentes no atual semi-árido brasileiro”, atesta Gisele Lessa, pesquisadora da Universidade Federal de Viçosa (UFV), após estudar outro grupo de animais: os morcegos. Com imensa dificuldade, lidando com ossos extremamente frágeis de 1 ou 2 centímetros e dentes de 1,5 milímetro, os especialis-

tas identificaram 27 espécies de morcegos de até 20 mil anos atrás, principalmente na Bahia, Minas e Goiás. A mais recente foi encontrada por Patrícia Hadler Rodrigues, doutoranda da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em um sítio arqueológico a nordeste do Rio Grande do Sul. É o primeiro exemplar de um morcego de cerca de 30 centímetros de envergadura, o Eptesicus fuscus, que hoje vive em um vasto território, do sul do Canadá até a Amazônia, mas há mais ou menos 9 mil anos viveu também nas terras do Sul – e ninguém arrisca dizer por que as deixou. Também no Rio Grande do Sul foi encontrado pela primeira vez nesse estado o fóssil de um lagarto conhecido como teiú ou Tupinambis sp., o maior do continente, com uma cauda de 60 centímetros que toma metade da extensão de seu corpo. Há 1,5 milhão de anos era pelo menos um palmo maior. As dúvidas emergiram com a mesma generosidade que os achados. Ain-

Com as mãos no passado: a paleontologia reinterpretada pelo imaginário popular


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da não se sabe ao certo como surgiu a maioria dos grupos de animais nem como alguns se sobrepunham a outros, às vezes bastante próximos. Entre 57 milhões e 38 milhões de anos atrás, lagartos do grupo das atuais iguanas ocupavam sozinhos duas ilhas Seichelles e Reunião, do sudeste da África, enquanto outro grupo, os lacertídeos, era exclusivo da quase vizinha Madagascar. Em tempos intercalados, segundo Marc Auge, do Museu Nacional de História Natural da França, esses dois grupos desaparecem, reaparecem e tornam a desaparecer – um fenômeno conhecido como substituição competitiva que provavelmente deve ter ocorrido também deste lado do Atlântico, já que a América do Sul estava unida à África, à Europa e à Índia há cerca de 100 milhões de anos. Formavam então um só supercontinente, o chamado Gondwana.

competição, é certo, sempre foi intensa, embora ainda não seja o bastante para explicar por que algumas espécies deram certo e outras não – ou por que algumas só evoluíram depois que outras se apagaram. “Os mamíferos ficaram obscurecidos pelos dinossauros, embora os dois grupos tenham surgido aproximadamente na mesma época”, exemplifica Lílian Bergqvist, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), uma das descobridoras do primeiro Pirotheria brasileiro, ao lado de seu aluno Leonardo Avilla, de Herculano Alvarenga, do Museu de História Natural de Taubaté, e de Ricardo Mendonça, da Universidade de São Paulo (USP). “Foi a extinção dos dinossauros que abriu caminho para a irradiação dos mamíferos”, diz Lílian. Antes escondi-

dos, pequenos e noturnos, os mamíferos então saíram das tocas e ganharam a luz do dia. Não há muitas notícias dessa época, mas Marcelo Tejedor, da Universidade Nacional da Patagônia San Juan Bosco, apresentou o dente molar de um pequeno marsupial herbívoro que deve ser o mamífero cenozóico mais antigo da América do Sul, com 65 milhões de anos. É uma indicação de que nessa época houve uma intensa substituição das espécies de animais. “A América do Sul teve uma fauna própria, já que muitos fósseis daqui não são encontrados nos Estados Unidos ou no Canadá”, diz Marcelo Reguero, do Museo de La Plata, Argentina. Mas a sorte não durou muito. Por meio do istmo do Panamá, que há 2,5 milhões de anos uniu as duas Américas, chegaram muitas espécies do norte, em um número provavelmente superior ao das espécies que saíram do sul. Resultado: a luta por abrigo e alimento eliminou a maioria dos grandes mamíferos da América

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CIÊNCIAS DA TERRA, CIÊNCIA DA VIDA – CHAPADA DO ARARIPE/ FAAP

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do Sul. Um dos grupos que não ganhou um pingo de compaixão foram os notoungulados, alguns deles semelhantes aos atuais hipopótamos, com um osso nasal curto e levantado para cima. Surgiram há 65 milhões, mas 10 mil anos atrás não havia mais sinal de nenhuma das dezenas de espécies de notoungulados já descritas. Provavelmente esses animais viviam parte do tempo na água e parte na terra, como os hipopótamos, de acordo com os estudos conduzidos por Ana Maria Ribeiro, da Fundação Zoobotânica de Porto Alegre. Durante os três dias de debates realizados em um hotel em frente à praia de Copacabana, não faltaram empolgantes relatos de prováveis novas espécies de animais que viveram há muitos milhões de anos, embora ainda sujeitas à tradicional confirmação científica, por meio de artigos a serem publicados em revistas especializadas. Alvarenga, do Museu de História Natural de Taubaté, apresentou o que devem ser os fósseis de duas ou três prováveis novas espécies de aves, estudadas em conjunto com William Nava, do Museu de Paleontologia de Marília. Encontradas há dois meses em Presidente Prudente, no oeste paulista, os ossos – alguns menores que o diâmetro de uma moeda de 10 centavos – indi-

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cam que essas aves do tamanho aproximado de um pardal teriam vivido entre 70 milhões e 80 milhões de anos atrás. Antes dessa descoberta, as espécies mais antigas, também descritas por Alvarenga, tinham cerca de 50 milhões de anos.

E

Dinossauros com penas e asas? Enquanto os cientistas debatem, os artesãos criam

sses novos exemplares representam os enantiornites, um grupoirmão das aves modernas. Dessas linhagens já extintas, que provavelmente tinham um bico cheio de dentes, algo estranhíssimo se comparado com uma galinha, havia apenas registros de penas na Chapada do Araripe. Enantiornites pequenos como os do Brasil viveram também na China, mas no norte da Argentina eram pelo menos três vezes maiores, do tamanho de um gavião atual. Em alguns momentos, a sucessão de relatos científicos parecia um torneio, ainda que elegante, para ver quem exibia o fóssil mais antigo, mais completo ou mais surpreendente. Jorge Calvo e Juan Porfiri, da Universidade Nacional de Conahue, Argentina, anunciaram um

dinossauro herbívoro de 35 metros de comprimento, que teria vivido entre 125 milhões e 130 milhões de anos atrás e talvez seja o maior representante da família dos saurópodes já encontrados no mundo. Mas um dos lances mais altos – ou mais antigos – partiu de Max Langer, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, com um dinossauro do grupo dos ornitísquios, que viveu há cerca de 230 milhões de anos. Seria, portanto, um dos mais primitivos da América do Sul. Se confirmado, essa será a décima terceira espécie de dinossauro encontrada no país, que lentamente reforça o acervo mundial, já por volta de mil espécies descritas. O problema é que, à medida que os paleontólogos tiram das rochas o que devem ser as espécies mais antigas, torna-se mais difícil diferenciar os verdadeiros dinossauros dos demais répteis: esse novo dinossauro herbívoro de 1,5 metro de altura, por exemplo, tinha bico. O próprio Langer mostrou-se surpreso, ao expor o conjunto de ossos que escavou em Agudo, no Rio Grande do Sul, e, diante de uma platéia de cerca de 300 pessoas, indagar-se: “Que diabos é isso?” Os momentos mais emocionantes do congresso foram justamente aqueles em que as idéias antigas ruíram, desarvorando até mesmo os especialistas. “Estamos em um momento de profundas revisões conceituais”, comenta Sér-


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dentes dos dinossauros? Terry Jones, da Universidade Estadual da Califórnia, nos Estados Unidos, não acredita que possa existir uma relação direta entre os dois grupos. Segundo ele, ter penas não é, necessariamente, um sinal de parentesco. “Pouquíssimos dinossauros, se é que algum, têm penas”, afirma. “O que parece penas na maioria dos casos não são penas, que não quebram quando fossilizam, mas formas de bactérias fossilizadas.” Alexander Vargas, da Universidade do Chile, obteve algumas evidências para defender a hipótese oposta: as aves descendem especificamente, segundo ele, de dinossauros carnívoros como o tiranossauro. Serpentes - Lidando com um grupo de animais que literalmente rastejavam aos pés dos dinossauros, Hussam Zaher, do Museu de Zoologia da USP, talvez desfaça outra idéia, um tanto mais sutil: com base na análise molecular de cinco genes de espécies atuais, as cobras macrostomatas, como a jibóia, que formam o grupo das que se alimentam de presas grandes, não teriam surgido apenas uma vez, mas pelo menos duas, ao longo da evolução das serpentes, surgidas há ao menos 110 milhões de anos. “Esse estudo alerta para o fato de que os dados moleculares devem ser interpretados com cautela e reforça a importância da inclusão dos

fósseis e de dados morfológicos, criando assim análises mais completas”, comenta ele. O caos da história evolutiva das cobras vem da base: ainda não se sabe de qual grupo de lagartos elas teriam se originado. “Se encontrarmos, poderemos resolver as dúvidas essenciais a respeito da origem das cobras”, acredita Zaher. Mas há dois problemas que atrapalham bastante essa busca: as cobras são muito diferentes entre si, sem apresentarem transições, que facilitariam bastante essa intrincada reconstituição histórica, e as espécies atuais representam só uma amostra pequena dos grupos que surgiram praticamente na época dos dinossauros. Também não se sabe se teriam uma origem terrestre, na qual Zaher aposta, ou marinha. Nesse caso, teriam derivado dos lagartos marinhos, chamados mosassauros, como pretende provar Michael Caldwell, da Universidade de Alberta, no Canadá, ao revirar o litoral do mar Adriático em busca de fósseis que comprovem sua idéia. Talvez seja possível saber em dez anos quem está com a razão, diante das evidências que cada um tenha a sorte de encontar. •

FOTOS EDUARDO CESAR

gio Azevedo, diretor do Museu Nacional. Ele atribui a abundância dos achados e a empolgação dos debates ao trabalho intensivo de lideranças científicas relativamente jovens – com idade próxima dos 40 anos – que vão a campo atrás de fósseis, defendem propostas ousadas e formam alunos, principalmente no Rio de Janeiro, São Paulo, Minas e Rio Grande do Sul. Ter penas, por exemplo, deixou de ser um privilégio das aves: dinossauros também podiam ter penas e asas – e também voavam. Logo no primeiro dia do congresso, Alexander Kellner, paleontólogo do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro que descobriu cinco das 12 espécies de dinossauros brasileiros, apresentou duas réplicas, ambas produzidas no próprio Museu Nacional. Uma delas, feita por Maurílio Oliveira, era de um Archaeopteryx, uma das aves mais primitivas já encontradas. Com cerca de 40 centímetros de comprimento, está deixando de ser vista como um animal de transição entre as aves e os dinossauros. A outra réplica, exibida pela primeira vez no Brasil, é uma obra de Orlando Grillo: o Microraptor gui, uma espécie de dinossauro da China. Com quase 60 centímetros de comprimento, parece uma ave: tinha penas nos braços e nas pernas, embora não voasse. O Microraptor reacende uma polêmica: as aves seriam realmente descen-

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CIÊNCIA

ZOOLOGIA

O arco-íris dos

micos e sagüis Comportamento de macacos brasileiros indica a existência de quatro padrões de visão das cores

Mico-leão-da-cara-dourada: fêmeas e machos podem ver de forma distinta

U

m estudo realizado durante os últimos três anos no Centro de Primatologia da Universidade de Brasília (UnB)com 15 sagüis e micos brasileiros sugere que esses primatas apresentam pelo menos quatro formas distintas de perceber as cores.Duas fêmeas conseguiram discriminar todas as cores,mais ou menos como um ser humano normal.Outros dois animais do sexo feminino tinham limitada capacidade de distinguir os tons de verde, como se tivessem um tipo de daltonismo.Uma terceira fêmea exibiu problemas no reconhecimento dos matizes de vermelho,como se sofresse de outra forma de daltonismo.Umquarto conjunto de dez bichos,que incluía oito machos e duas fêmeas,falhou em divisar o espectro visível de cores entre o vermelho e o verde,que ainda insere o laranja e o amarelo.“Imaginamos que, em seu ambiente natural,os animais desse último grupo tenham dificuldade de reconhecer um fruto vermelho ou alaranjado entre folhagens verdes”,diz Valdir Pessoa,da UnB,coordenador do experimento,que envolveu seis micosleão-da-cara-dourada (Leontopithecus chrysomelas),cinco sag üis-dos-tufospretos (Callithrix penicillata) e quatro sagüis-una (Saguinus midas niger). A maior parte dos trabalhos sobre a visão dos chamados macacos do Novo Mundo,grupo de primatas superiores


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com nariz achatado que surgiu na América do Sul e Central aproximadamente 30 milhões de anos atrás, parte do estudo da biologia de micos e sagüis. Nesses trabalhos, medem-se, em geral, quantos tipos de células receptoras de cor (os cones) existem na retina dos animais. Se, como um homem normal, o mico ou sagüi dispõe de três fotopigmentos (um para o azul, outro para o verde e outro para o vermelho), esse animal é chamado tricromata. Quando apresenta células receptoras de somente duas das cores fundamentais, é denominado dicromata. Às vezes, as pesquisas também incluem a análise do DNA dos macacos, onde podem ser encontradas mutações que levam a distintas formas de tricromatismo ou dicromatismo. Ao estudar a visão dos pequenos primatas brasileiros, Pessoa e seus colegas escolheram outro caminho: ancoraram seu trabalho na análise do comportamento dos animais.“Esse é o nosso diferencial”, afirma o pesquisador da UnB. Como os cientistas brasileiros deduziram que um animal era capaz de reconhecer uma cor e não outra? Foram, literalmente, observar os micos e os sagüis nas matas para ver se eles comiam frutas dos mais variados matizes? Nada disso. Primeiro, os cientistas ensinaram os primatas, que são mantidos em viveiros integrados à paisagem natural da Fazenda Água Limpa, onde fica o Centro de Primatologia, a associar uma cor à presença de um alimento. Toda vez que retiravam uma ficha laranja, que

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tampava um orifício, encontravam um pedaço de fruta escondido no buraco. Uma vez aprendido esse padrão de comportamento, os bichinhos eram submetidos a uma escolha: tinham de optar entre duas fichas, uma sempre em tons laranja e a outra de uma cor distinta. Era de esperar que, se o mico ou o sagüi conseguisse diferenciar as duas cores, ele optaria, na maioria das vezes, por mover a ficha laranja, e não a outra, a fim de obter o prêmio. No total, os primatas foram apresentados a 96 distintos pares de fichas, cada uma delas com cor, brilho e saturação específicos. Vantagem adaptativa - Discriminar o

azul do laranja foi uma barbada. Todos os primatas, independentemente do sexo e da espécie a que pertenciam, conseguiram diferenciar as duas cores em pelo menos 65% dos casos, grau mínimo de acerto considerado suficiente para validar o reconhecimento de uma tonalidade. “Um valor menor do que esse pode derivar de uma escolha de cor aleatória por parte dos animais”, afirma o biólogo Daniel Pessoa, outro autor do trabalho com as três espécies de símios brasileiros, que vai ser publicado em breve na revista científica American Journal of Primatology. Como era esperado, nenhum dos bichinhos obteve sucesso em distinguir pares de fichas que opunham dois tons distintos de laranja. No final do experimento, os pesquisadores concluíram que o comportamento dos micos e sagüis eviden-

ciava quatro padrões distintos de percepção de cores. “Mas ainda não sabemos precisar quais vantagens adaptativas esses padrões de visão podem proporcionar aos animais no meio natural”, pondera Daniel. Estudos de biologia molecular feitos no exterior com outras espécies de sagüis e micos chegaram a encontrar até seis padrões de visão derivados de alterações genéticas. Os pesquisadores brasileiros não analisaram o DNA dos animais do Centro de Primatologia. Por isso não sabem dizer se essas mutações estão relacionadas a alguma das quatro formas de reconhecimento de cores que identificaram no comportamento dos primatas. Há 20 anos a ciência coleciona evidências de que os macacos do Novo Mundo, grupo de símios que, evolutivamente, está mais distante do homem e dos grandes primatas antropóides, apresentam alguns padrões de visão de cores muito particulares. A maioria dos primatas, inclusive o homem, é sempre tricromata – ou seja, enxerga todas as misturas de tonalidades em torno das três cores primárias (verde, azul e vermelho). Já os sagüis e os micos sul e centro-americanos podem ser tricromatas ou dicromatas. Em geral, os machos percebem apenas os matizes ao redor de duas cores. As fêmeas podem ser tricromatas ou dicromatas, com aparente predominância da primeira situação. •

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CIÊNCIA

BOTÂNICA

Da quaresmeira ao jerivá

Q

Tamanho do genoma de 100 árvores brasileiras varia até 20 vezes M ARCOS P IVET TA

ue tal seqüenciar o genoma de uma árvore brasileira? A idéia era boa, ainda mais num país que costuma ser apontado como o campeão mundial da biodiversidade. Só havia um problema: ninguém sabia qual era o tamanho aproximado de todo o material genético presente nos cromossomos de uma espécie arbórea. Se fosse muito grande, o genoma de uma árvore seria um desestímulo a um projeto de seqüenciamento integral. Essa era a situação em 2001, quando a proposta surgiu e, por falta de informação, não foi adiante. Agora o quadro mudou – e muito. O tamanho do genoma de mais de uma centena de árvores nativas do Brasil acaba de ser determinado pelo engenheiro agrônomo Marcelo Carnier Dornelas, um dos pesquisadores que participaram das discussões quatro anos atrás. Os resultados do trabalho indicam que não há um tamanho padrão para o genoma de uma árvore. A quantidade de pares de bases no DNA de uma espécie pode ser até 20 vezes maior do que em outra. O genoma compreende o conjunto de genes de um organismo e as informações moleculares que controlam o funcionamento desses genes. Com suas típicas flores roxas, que colorem as cidades entre o Carnaval e a Páscoa, a quaresmeira (Thibouchina granulosa) apresenta o menor genoma. Tem 340 milhões de pares de bases nitrogenadas, as unidades químicas do DNA. O maior é o do jerivá (Syagrus romanzoffiana), um tipo de palmeira, também facilmente encontrada no meio urbano, cujo fruto carnoso e alaranjado serve de repasto para animais em áreas silvestres. O material genético dessa planta exibe 6,2 bilhões de pares de bases, o dobro da quantidade de “letras químicas” encontradas no DNA humano. O estudo, que será publicado em breve na revista Annals of Botany, também sugere que não existe

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uma relação clara entre o porte de uma árvore e o do seu genoma, a exemplo do que já foi demonstrado em espécies animais e em outros tipos de vegetais. Originários da Mata Atlântica, a quaresmeira e o jerivá exibem copas de altura mais ou menos equivalente, cerca de 10 metros, e o diâmetro de seu tronco gira em torno de 40 centímetros. Apesar do talhe biológico semelhante, ambas as árvores apresentam material genético de tamanho pra lá de distinto. Para dar maior segurança a seus dados, Dornelas determinou o tamanho dos genomas presentes no núcleo das células das árvores por dois métodos distintos, a citometria de fluxo e a microdensitometria de imagem. Ambas as técnicas foram originalmente concebidas para o diagnóstico de câncer. Letras químicas - Não se deve confundir o estudo do engenheiro agrônomo, que mediu o tamanho do genoma de 118 espécies de árvores, com o trabalho de seqüenciamento do material genético dessas plantas, tarefa ainda mais complexa. São duas coisas diferentes. O pesquisador estimou quantas “letras químicas” existem no DNA de cada uma das espécies, mas não determinou em que ordem essas bases nitrogenadas aparecem em cada um dos genomas. As informações produzidas servem de referência para eventuais projetos de seqüenciamento. Mostram que árvores apresentam DNA de menor tamanho e, portanto, mais fácil de ser seqüenciado. Esse não é o caso do famoso e hoje pouco abundante pau-brasil (Caesalpinia echinata), que exibe um DNA enorme, com 3,8 bilhões de pares de bases. “Se um dia quisermos seqüenciar o genoma completo de uma árvore, o pau-brasil não seria uma das mais indicadas”, afirma Dornelas, que terminou o pós-doutorado no Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da Universidade de São Paulo, em Piracicaba, e assumiu em julho o cargo de professor no Departamento de Fisio-


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Palmeira jerivá: o maior genoma, com 6,2 bilhões de pares

logia Vegetal do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Já o do mogno, quem sabe?” Das árvores com madeira nobre, a Swietenia macrophyla, nome científico do mogno, é uma das que têm um dos menores genomas. Seu material genético é composto de 513 milhões de pares de bases. Até agora, o genoma de apenas uma árvore, a Populus trichocarpa, um álamo (ou choupo) típico do hemisfério Norte e de grande importância econômica, foi totalmente seqüenciado. Um consórcio internacional terminou esse trabalho em setembro do ano passado. O material genético dessa forma de álamo é ligeiramente maior que o do mogno e dispõe de cerca de 50 mil genes, um quinto deles provavelmente típicos das árvores e não encontrados em outros tipos de vegetais, como a Arabidopsis thaliana, uma erva daninha de clima temperado, parente da mostarda, que funciona como planta-modelo para a biologia. Confrontar o tamanho de genomas de distintas espécies ajuda a desmistificar a idéia de que seres com maior quantidade de DNA são sempre mais complexos que organismos dotados de material genético de dimensões reduzidas. Se isso fosse verdade, algumas amebas, que têm centenas de bilhões de pares de bases em seu genona, seriam a forma de vida mais sofisticada da Terra. “Ter um genoma grande não é sinônimo de maior complexidade para um PESQUISA FAPESP 115 SETEMBRO DE 2005 43 ■

MONTAGEM DE FOTOS DE MARCELO DORNELAS E EDUARDO CESAR

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FOTOS MARCELO DORNELAS

organismo”, diz o biólogo Fernando Reinach, presidente da empresa de biotecnologia Alellyx e diretor-executivo da Votorantim Novos Negócios. “É como achar que a complexidade de um país tem alguma relação com seu número de habitantes.” Do mesmo modo, seria incorreto pensar que a palmeira jerivá é mais complexa que a quaresmeira só porque tem um DNA 20 vezes maior. Genoma encolhido - Em alguns

grupos de árvores com características comuns, o tamanho do genoma parece ser mais ou menos similar, embora seja arriscado fazer generalizações a partir de dados de apenas uma centena de espécies. O genoma de quatro espécies arbóreas da família das Anacardiaceae, cuja marca registrada é possuir frutos com formato de coração, não apresenta grande variação de tamanho: o menor, da aroeira-salsa (Shinus molle), conta com 410 milhões de pares de bases; o maior, do cajueiro (Anacardium occidentale), tem 50% a mais de “letras químicas”. Em outros casos, talvez devido ao maior número de espécies analisadas, as discrepâncias aparentemente são mais gritantes. Duas espécies da família das Annonaceae exibem genomas de tamanho bem distinto: o material genético da pimenta-de-macaco (Xylopia aromatica) é cinco vez menor que o do araticum (Annona coriacea). Do ponto de vista evolutivo, algumas teses circulam no meio acadêmico sobre o possível significado do tamanho de um genoma. Uma delas é a de que o material genético de plantas angiospermas (que produzem flores) com origem mais remota no tempo seria menor que o de vegetais mais novos desse mesmo grupo. Se isso fizer sentido, o pesquisador paulista pode ter encontrado uma exceção à regra entre as Myrtoidae, ramo da família das Myrtaceae que compreende as árvores com frutos carnosos, como a goiabeira (Psidium guajava) e a jabuticabeira (Myrciaria cauliflora). Dornelas estimou o tamanho do DNA de 20 espécies de Myrtoidae e percebeu que todos eram menores que os de plantas da subfamília Leptospermoideae, outro ramo da 44

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Quaresmeira: o menor genoma, com 340 milhões de pares de bases

família das Myrtaceae, composto por árvores que dão frutos secos, cujo aparecimento na natureza é considerado anterior ao de suas congêneres de fruto carnoso. “Parece que no interior das Myrtaceae houve, ao longo do processo evolutivo, um encolhimento no tamanho dos genomas, afirma o pesquisador paulista. Outro dado comparativo interessante: árvores do gênero Tabebuia, popularmente conhecidas como ipês, com flores amarelas, tendem a apresentar um genoma maior que as com flores roxas ou brancas. Pelo menos é o que se depreende da análise do tamanho do ge-

O PROJETO Perfil genômico de árvores brasileiras – da biodiversidade à genômica: Uma ponte entre o Biota e o AEG MODALIDADE

Auxílio à Pesquisa COORDENADOR

MARCELO CARNIER DORNELAS – Cena/USP INVESTIMENTO

R$ 3.000,00 e US$ 32.033,00 (FAPESP)

noma de dez espécies do gênero. Os ipês-amarelos exibem DNA com mais de 2 bilhões de pares de bases; os roxos, com mais de 1 bilhão de pares de bases; e os brancos, em torno dos 900 milhões de pares de bases. Uma possível explicação para esse fenômeno seria o maior número de cromossomos nos ipês-amarelos. Essas árvores apresentam dois pares de 40 cromossomos, 80 no total, o dobro do encontrado nas espécies de ipê-roxo e branco. Por essa linha de raciocínio, ao longo de gerações, o aumento (ou a diminuição) no número de cromossomos levaria a alterações em traços externos das várias espécies conhecidas de ipês, provocando a troca de cor em suas flores.

Estudos comparativos - Como se vê, conhecer o tamanho do genoma de um organismo não serve apenas para apontar eventuais candidatos à fila do seqüenciamento. É também um dado importante para futuros estudos comparativos na área da botânica. Segundo um trabalho de janeiro deste ano feito pelos pesquisadores Michael Bennett e Ilia Leitch, dos Jardins Botânicos Reais de Kew, Inglaterra, existem dados sobre o tamanho do genoma de cerca de 4.100 plantas do grupo das angiospermas, que inclui as ervas, os arbustos e as árvores que produzem flores. “Com algumas exceções, essa amostra é dominada por plantas de importância comercial e seus parentes selvagens, espécies-modelos cultivadas para uso experimental, e outras espécies que crescem perto dos laboratórios de regiões temperadas, sobretudo da Europa Ocidental e América do Norte”, escreveu a dupla num artigo publicado na Annals of Botany. O estudo de Dornelas é o primeiro registro sobre o tamanho do material genético de plantas pertencentes a 60 gêneros e nove famílias de árvores. “É um trabalho importante, ainda mais porque enfoca espécies brasileiras”, opina Carlos Alberto Labate, do Departamento de Genética da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP. “E deve atrair o interesse de outros pesquisadores da área de conservação e evolução.” •


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CIÊNCIA

FÍSICA

Ponte delicada Elétrons podem mudar de comportamento em conexões de nanofios

neira matemática de incluir a correlação eletrônica no cálculo do transporte eletrônico e a aplicaram à nanojunção de platina.A representação da passagem dos elétrons pela junção (condutância ou transmitância) é diferente quando se utiliza o novo cálculo.O diagrama apresenta formas de patamares largos no caso do campo médio,o que indicaria boa condutância.Mas quando a repulsão de cada par de elétrons é incluída os patamares se deformam,com perda drástica da condutância. O trabalho de Marília Caldas é um exemplo entre vários da expertise do Instituto de Física na pesquisa teórica sobre as propriedades de novos materiais.No final de 2001,estudo liderado por outro professor da instituição, Adalberto Fazzio,estampou a capa da mesma Physical Review Letters.O artigo descrevia descobertas sobre o comportamento dos átomos de nanofios de ouro,material estrat égico para a fabricação de componentes para futuras gerações de computadores.O desafio é transformar os achados em inovações práticas, missão para a qual outros países estão mais preparados que o Brasil. “Nossa pesquisa tem importância teórica e na formação de recursos humanos, mas é preocupante que não haja uma política industrial capaz de garantir a transformação da riqueza em produtos”,diz Fazzio. • A. CALZOLARI

N

ão basta proem que a existência de um estreitamenduzir fios de to ou confinamento – caso típico da dimensões ínnanojunção – pode afetar a passagem fimas,com a de corrente.Esses metais estão na base espessura de 1 de muitas propostas para eletrônica momilionésimo lecular.O trabalho levou em conta uma de milímetro,para pavimentar a pronanojunção de platina,metal com elémessa da nanotecnologia de miniaturitrons muito localizados numa mesma zar dispositivos eletrônicos. Também é subcamada atômica.Na falta de espapreciso aprender a emendar esses fios ço,os elétrons conduzidos são obrigacom conexões do tamanho de uma simdos a evitar os elétrons hospedados no ples molécula,tarefa que come ça a ser átomo.Em vez do efeito médio,domicompreendida pelos físicos.Um artigo na a repulsão entre cada par de elétrons, recente da revista Physical Review Letfenômeno conhecido como “correlação ters lançou luzes sobre um fenômeno eletrônica”. essencial no comportamento dos elé“Ou esse efeito é considerado,ou se trons nessas emendas,as nanojun ções. vai calcular tudo errado”,diz Marília O trabalho,assinado por pesquisadores Caldas,professora do Instituto de Físido Brasil,da It ália e dos Estados Unica da Universidade de São Paulo,que dos,mostra que as leis que regem o assina o artigo em parceria com Andrea comportamento do transporte de eléFerretti,Arrigo Calzolari,Rosa Di Fetrons em circuitos,mesmo nos da milice,Franca Manghi e Elisa Molinari,da croeletrônica,podem n ão se aplicar a Universidade de Modena,na Itália,e novos problemas da nanoeletrônica. Marco Buongiorno Nardelli,da UniComo exemplo,uma nanojun ção, sisversidade da Carolina do Norte.No artema metálico estreitíssimo, até da lartigo,os autores propuseram uma magura de um átomo,que conecte dois condutores,tem características novas. Tanto em materiais de dimensões normais quanto em fios nanoscópicos pode-se considerar que o comportamento de um elétron transportado na corrente sofre influência do “efeito médio” de todos os elétrons nos arredores.Mas h á metais especiais, Nanojunção: uma molécula liga dois fios de ouro

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CIÊNCIA

MEDICINA

Os primeiros sinais

de alerta Ação de genes esclarece a origem e indica a evolução de tumores R ICARD O Z ORZET TO

À

primeira vista as lâminas de vidro cuidadosamente guardadas em uma sala do Instituto Ludwig para a Pesquisa do Câncer, em São Paulo, parecem iguais a quaisquer outras lâminas de microscópio, como as usadas por alunos de colégio à procura de micróbios em uma gota d’água. Mas, observadas com o auxílio de um laser ou uma luz ultravioleta, essas placas de vidro retangulares um pouco maiores que uma pedra de dominó revelam informações preciosas que estão aprimorando a compreensão e o tratamento do câncer. É que essas pequenas lâminas conhecidas como microarranjos de DNA, ou DNA microarrays, permitem identificar a um só tempo quais dos quase 30 mil genes humanos encontram-se ativos em determinado grupo de células ou tecido do corpo. Essa é uma propriedade essencial na investigação de doenças complexas como o câncer, porque permite comparar os genes em funcionamento nas células sadias com os acionados nas células cancerosas, revelando uma espécie de impressão digital do tumor. Usando microarranjos de DNA desenvolvidos nos laboratórios do Instituto Ludwig e da


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Pontos preciosos: chip de DNA revela os genes mais ativos (em vermelho) e os menos ativos (em verde) em células de câncer de mama

Universidade de São Paulo (USP), pesquisadores paulistas analisaram a atividade dos genes em quatro tipos de câncer – mama, próstata, estômago e esôfago – e fizeram descobertas capazes de alterar o tratamento de alguns tumores. Em uma das pesquisas, identificaram uma combinação de três genes que permite saber com antecedência se o medicamento doxorrubicina, o quimioterápico mais usado na rede pública de saúde contra o câncer de mama, surtirá ou não o efeito desejado. Com relação ao câncer de próstata, o segundo que mais mata homens no país, constataram que há uma relação entre o funcionamento de certos grupos de genes e a gravidade do tumor. Essa mesma técnica permitiu ainda entender melhor como se origina o adenocarcinoma de esôfago, o tipo de câncer que mais cresceu no Ocidente nas últimas três décadas e hoje atinge cerca de 1% da população dos países desenvolvidos. Esse tumor parece surgir inicialmente no estômago e só depois invade o esôfago, e não o contrário, como se acreditava. A partir da comparação da atividade gênica de células do estô-

mago, também foi possível distinguir as que originarão um câncer daquelas que devem permanecer saudáveis ou daquelas que são características de quem sofre de gastrite. São resultados promissores porque podem auxiliar na detecção precoce desses tumores, geralmente descobertos em estágio avançado. Benefícios às mulheres - Dessas quatro

descobertas, a que ajuda a redirecionar o tratamento do câncer de mama é a de maior impacto sobre a saúde das pessoas. Principal causa de morte por câncer entre as mulheres, o tumor de mama deve atingir 467 mil brasileiras – e matar quase 50 mil – apenas neste ano, segundo estimativas do Instituto Nacional de Câncer (Inca). Na tentativa de minimizar as marcas físicas e psicológicas provocadas pela doença, os médicos indicam um tratamento à base de medicamentos para reduzir o tamanho do tumor – e, conseqüentemente, o volume da mama a ser retirado. O problema é que nem sempre o tratamento pré-operatório mais adotado no Sistema Único de Saúde funciona. Em aproximadamente 20% das mulheres, a ad-

ministração endovenosa dos medicamentos doxorrubicina e ciclofosfamida não produz o efeito desejado de reduzir o tamanho do tumor, algo que só se descobre depois que as pacientes já passaram pelo tratamento, que em geral provoca queda de cabelo, além de intensas náuseas e mal-estar geral. Diante dessa situação, Maria Mitzi Brentani e Maria Aparecida Koike Folgueira, professoras associadas da Oncologia da Faculdade de Medicina da USP, decidiram buscar um teste que revelasse para quais mulheres esses medicamentos funcionariam, antes que elas recebessem a medicação. Assim, ganha-se tempo, poupa-se dinheiro público e reduz-se o desconforto para as pessoas.“Se a doxorrubicina não funciona para uma mulher, o médico pode tentar outros medicamentos ou antecipar a realização da cirurgia”, explica Maria Mitzi. Em colaboração com equipes do Instituto Brasileiro de Controle do Câncer, Hospital das Clínicas e do Hospital do Câncer, em São Paulo, e do Hospital Amaral Carvalho, em Jaú, interior do estado, Maria Mitzi e Maria PESQUISA FAPESP 115 SETEMBRO DE 2005 47 ■


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Aparecida coletaram amostras de tumor de mama de 51 mulheres com idade entre 31 e 67 anos, extraíram o material genético das células e analisaram a expressão gênica com microarranjos cedidos pelo Instituto Ludwig. Também conhecidos como chips de DNA, esses microarranjos – lâminas de vidro tratadas quimicamente sobre as quais um robô deposita um gene em cada ponto – foram elaborados com 4.608 genes identificados no Genoma Humano do Câncer, projeto financiado pela FAPESP e pelo Instituto Ludwig que seqüenciou genes de 20 tipos de tumor. De todos os genes avaliados, 228 se comportavam de maneira diferente – alguns estavam mais expressos que outros – nas mulheres em que o tratamento havia sido eficaz e reduzido o volume do tumor em pelo menos 30%. Em parceria com Dirce Carraro, do Laboratório de Análise de Expressão Gênica do Ludwig, Helena Brentani, do Laboratório de Bioinformática do Hospital do Câncer, e de Paulo José da Silva e Silva, do Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP, as pesquisadoras identificaram um trio de genes – PRSS11, CLPTM1 e MTSS1 – capaz de apontar em quem o tratamento seria eficaz. Para saber se essa combinação de genes funcionaria na prática como um teste preditivo, utilizaram-no na avaliação de amostras de câncer de outras 14 mulheres. O trio de genes permitiu separar com 85% de acerto aquelas mulheres em que a doxorrubicina e a ciclofosfamida funcionariam das que não se beneficiariam da terapia, de acordo com os resultados do estudo a ser publicado em breve na Clinical Cancer Research. Atualmente a equipe da Faculdade de Medicina da USP testa um número maior de amostras de tumor de mama na tentativa de comprovar a eficácia desse método.“Aproximar o resultado das pesquisas científicas da atividade clínica diária é o que busco há 20 anos”, afirma Ricardo Renzo Brentani, professor titular de Oncologia da Faculdade de Medicina da USP e diretor do Instituto Ludwig. Considerado uma das maiores autoridades nacionais no estudo de câncer, Brentani também é diretor presidente da FAPESP e coordenador do Centro Antônio Prudente para a Pesquisa e o Tratamento do Câncer, financiado pela FAPESP. 48

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Não foi a primeira vez que os microarranjos desenvolvidos no Instituto Ludwig mostraram sua utilidade. Desde 2001, a equipe do bioquímico Luiz Fernando Lima Reis, também do Ludwig, adota essa ferramenta no estudo da origem e evolução de tumores de esôfago e estômago. Em um artigo que mereceu a capa da edição de agosto da Cancer Research, Lima Reis e Luciana Gomes apresentam a mais provável origem do adenocarcinoma de esôfago, um dos dois tipos de câncer típicos des-

O PROJETO Marcadores Marcadores Moleculares da Resposta à Quimioterapia Neoadjuvante do Câncer de Mama MODALIDADE

Linha Regular de Auxílio à Pesquisa COORDENADORA

MARIA MITZI BRENTANI – Faculdade de Medicina da USP INVESTIMENTO

R$ 515.088,21 (FAPESP)

se tubo muscular que conduz o alimento da boca ao estômago. Em geral esse tumor se desenvolve na região em que o esôfago se conecta ao estômago, a cárdia, e afeta os dois órgãos. Até a publicação desse artigo, acreditava-se que as células cancerosas surgissem no esôfago – em decorrência do refluxo das secreções ácidas do estômago, que causa irritação crônica das células – e em seguida se espalhasse em direção à entrada do estômago. Os resultados colocaram essa idéia em xeque. Lima Reis descobriu que o padrão de expressão dos genes no adenocarcinoma de esôfago é muito semelhante ao do adenocarcinoma de estômago, a forma mais comum de câncer gástrico. “É um sinal de que, na realidade, esse câncer deve surgir no estômago e, nas fases mais avançadas, subir para o esôfago”, explica o pesquisador. Pode parecer óbvio, uma vez que a classificação do tumor é a mesma – adenocarcinoma, tumor maligno no tecido de revestimento de uma glândula ou cuja forma se assemelha à de uma glândula – e provoca alterações semelhantes na forma das células. Mas a indicação de


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Visão de conjunto: análise em computador compara a atividade de 66 genes em 14 amostras de tecidos com e sem tumor

que a origem pode estar em outro órgão faz toda a diferença quando o objetivo é detectar precocemente o tumor no esôfago, em geral identificado nos estágios mais avançados, quando a única saída é a extração completa do órgão. “Passamos muito tempo procurando o adenocarcinoma de esôfago em estágios iniciais no lugar errado”, diz Lima Reis. “Talvez se deva buscar os sinais precoces desse tumor também no estômago, próximo à cárdia.” Em fevereiro do ano passado, outro estudo da equipe de Lima Reis já havia conquistado a capa dessa mesma revista, uma das mais importantes publicações sobre câncer. Os pesquisadores investigaram a expressão de 376 genes em 99 amostras da mucosa do estômago – havia tecido saudável, de gastrite, de um estágio prétumoral e de adenocarcinoma – e encontraram cem trios de genes que, com maior ou menor precisão, prediziam a que tipo de tecido a amostra pertencia. Se esses resultados forem confirmados em estudos de longa duração, nos quais

se acompanham as pessoas desde as primeiras alterações na mucosa gástrica até o surgimento do tumor, essas combinações de genes poderão ser usadas em testes para predizer a evolução dos tumores gástricos que, supõe-se, surgem a partir de inflamações crônicas provocadas pela bactéria Helicobacter pylori.

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ergio Verjovski-Almeida, do Instituto de Química da USP, optou por uma estratégia diferente. Aos microarranjos comuns – que contêm apenas genes ou trechos de genes, os chamados éxons, segmentos da molécula de DNA que armazenam informação para a produção de proteínas –, o pesquisador incorporou novos elementos: adicionou os chamados íntrons, trechos do DNA que não orientam a fabricação de proteínas, mas geram outra forma de

material genético, um tipo de RNA capaz de controlar a atividade de outros genes. Usando um chip de DNA composto por 2 mil íntrons e 2 mil éxons, Verjovski-Almeida e sua equipe avaliaram a expressão gênica de 27 amostras de câncer de próstata e constataram que os íntrons foram capazes de predizer o grau de malignidade do tumor melhor que os éxons, de acordo com estudo publicado no ano passado na revista Oncogene. Somados aos de outros países, esses resultados começam a aproximar os microarranjos do tratamento clínico das pessoas. Ainda que de modo tímido, empresas farmacêuticas iniciam a produção dos primeiros testes laboratoriais usando a tecnologia dos chips de DNA. Nos Estados Unidos, seis testes de microarranjos destinados a identificar cânceres de mama, ovário e leucemia – ou predizer como esses tumores devem evoluir – ainda aguardam a aprovação da FDA, a agência reguladora de alimentos e medicamentos. Antes que cheguem ao mercado, porém, esses testes terão de mostrar que realmente são confiáveis. • PESQUISA FAPESP 115 SETEMBRO DE 2005 49 ■


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CIÊNCIA

ONCOLOGIA

Endereço exato Pesquisadores brasileiros criam no Texas tecnologia para matar células de tumores de próstata, mama e pulmão

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capaz de reconhecer e de matar preferencialmente as células tumorais. Se alguma coisa produzida no Texas merecer de fato o nome de “arma inteligente”, esta tecnologia deverá estar entre elas, caso os resultados obtidos até agora nas células em cultura e em modelos animais se repitam com pacientes humanos. A equipe tem esperança, se tudo continuar dando certo, de iniciar no final de 2006 um teste clínico de fase I, tipo de estudo em que participam poucos pacientes, apenas para definir se a nova droga pode ser usada com segurança em seres humanos. Estresse tumoral - Na base do componente principal do artefato está a proteína 78 regulada por glucose, ou GRP-78 (abreviação derivada do nome em inglês). Esta molécula é produzida em grandes quantidades nas células que se encontram sob estresse, como aquelas que por qualquer motivo ficam privadas de oxigênio (hipóxia) ou de glucose. Tal é o caso das células tumorais, que proliferam em ambientes hipóxicos – daí a importância da vascularização para sustentar seu crescimento desenfreado – e apresentam montes de GRP-78. Segundo Renata, essa relação específica entre níveis da proteína e tumores foi demonstrada primeiramente por Amy Lee, da Universidade da Califórnia em Davis. Lee marcou uma seqüência de DNA que atua como promotora da expressão (leitura) do gene correspondente à proteína GRP-78 com outro gene que, lido em conjunto, produz uma proteína azul (lacZ), tingindo e denunciando, assim, tecidos com níveis altos de expressão da GRP-78. Verificouse que só tumores ficavam azuis, com níveis baixos de expressão em tecidos normais. Além da alta especificidade para delatar células cancerosas, a GRP-78 tem uma característica que se revelou de grande interesse para o desenvolvimento

ILUSTRAÇÕES HÉLIO DE ALMEIDA

A

dificuldade vivida por pesquisadores como Renata Pasqualini e Wadih Arap, que investigam novos medicamentos contra o câncer, pode ser comparada com a de alguém que precisa enviar uma carta, mas desconhece o nome da rua e o código de endereçamento postal (CEP) do destinatário. Para ter certeza de que a droga alcançará as células tumorais, eles poderiam remeter milhares de cartas para todos os habitantes da cidade – o paciente, pela analogia –, na esperança de que alguma delas chegasse às mãos de fulano, quer dizer, do tecido canceroso. O que no universo postal representaria um desperdício de papel, ou o precursor do spam no correio eletrônico, na fisiologia do doente se manifesta como toxicidade, o dano causado pelo remédio em células e tecidos que nada têm a ver com a moléstia. Em seu trabalho no Centro de Câncer M.D. Anderson da Universidade do Texas, porém, Renata e Arap acreditam ter descoberto o CEP de alguns fulanos que rondam a próstata, as mamas e os pulmões, e se preparam agora para combatê-los com... cartasbomba. A analogia com o CEP não é nova e vem sendo empregada pelo menos desde 2002 para descrever o trabalho pioneiro desse casal de brasileiros que só foi se conhecer nos Estados Unidos, mesmo tendo ambos estudado em São Paulo com o oncologista Ricardo Brentani. Como estratégia, também, a idéia de mirar no tumor (targeted therapy) vem sendo empregada em vários laboratórios do mundo, com diversas armas, munições e calibres. A inovação de Arap e Renata está na carta-bomba que confeccionaram e ganhou destaque no periódico Cancer Cell em setembro de 2004, uma junção engenhosa de duas moléculas


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de uma terapia teleguiada: produzida na célula sob estresse, ela não fica confinada ao seu interior, mas sim ancorada na membrana. Em outras palavras, ela está visível para reconhecimento de outras moléculas no meio extracelular. “Essa foi uma descoberta importante, porque significava que a proteína poderia estar acessível a um medicamento projetado para se grudar nela”, afirmou Arap num comunicado do M.D. Anderson.“É muito mais fácil mirar numa proteína no exterior da célula do que enviar medicamentos para dentro dela.” Não se sabe ainda ao certo qual a função exata da GRP-78 na célula sob estresse, mas uma das hipóteses é que ela cumpra o papel de alertar o sistema imune do organismo sobre a necessidade de socorro, provavelmente como integrante de uma maquinaria encarregada de levar antígenos (partículas capazes de deflagrar a produção de anticorpos) até a superfície da célula. Parentesco fatal - O outro componente do dispositi-

vo aniquilador de células tumorais é uma molécula em forma de saca-rolhas batizada como klaklak, que faz o papel de carga explosiva. Ela foi descoberta vários anos atrás como um antibiótico, graças à sua capacidade de demolir membranas de bactérias. Quando Renata e Arap ainda se encontravam na Califórnia, no Instituto Burnham (a mudança para o Texas se deu em 1999), outros pesquisadores lhes sugeriram a possibilidade de que o veneno fosse eficaz também em tecidos humanos, atacando mitocôndrias, as organelas celulares envolvidas na geração de energia e por isso freqüentemente descritas como “usinas” das células. Na explicação de Renata, a hipótese surgiu porque as membranas de bactérias e de mitocôndrias têm alguma semelhança – um provável resquício da origem dessas organelas. Segundo a teoria da endossimbiose


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(proposta no início do século 20 e considerada uma espécie de desvario mesmo depois de revivida e popularizada por Lynn Margulis, nos anos 1980), mitocôndrias são bactérias ancestrais que em algum ponto da evolução teriam sido incorporadas por células mais complexas.

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klaklak revelou-se fatal para as mitocôndrias. E, quando alguém perturba as usinas de uma célula, o resultado costuma ser catastrófico: desencadeia-se uma sucessão de eventos programados conhecida como apoptose, que resulta na morte celular. “Então nos ocorreu a idéia de teleguiar a klaklak usando um CEP que era não só específico como ainda poderia transportá-la para dentro da célula-alvo”, explicou Renata em entrevista por e-mail. “Ganhamos assim dois níveis de especificidade. O primeiro é o CEP e o segundo é o fato de que a klaklak não fará nada a não ser que chegue a uma mitocôndria, e para isso ela precisa ser internalizada.” Se você pensou na GRP-78 como o zip code – Renata costuma responder questões sobre seu trabalho em inglês, seu idioma de pesquisa – entronizador, acertou na mosca. Nesse ponto, porém, a analogia postal se torna menos frutífera, por dificultar a visualização de um elemento importante da estratégia, que é a interação entre as moléculas. Enquanto os algarismos de um CEP e as letras de um endereço são símbolos associados por convenção com uma rua ou um prédio, o endereço que consta da carta-bomba antitumoral precisa encaixar-se, literalmente, no destinatário, ou seja, na parte da proteína GRP-78 que se projeta pela superfície da célula. A metáfora clássica desse tipo de reconhecimento molecular é a da chave na fechadura, mas uma fechadura que tem a peculiaridade de sugar a chave e quem a estiver segurando para o outro lado da porta em que está fixada, quando a chave correta se encaixa nela. Dito de outro modo, quando a molécula complementar da GRP-78 acoplada à klaklak se engata no receptor exposto pela célula estressada (ou tumoral), a GRP-78 move as engrenagens moleculares que efetuam a internalização da klaklak, que por sua vez ataca as membranas das mitocôndrias e com isso deslancha a apoptose. Catálogo molecular - O grupo de Arap e Renata tem grande reputação como chaveiros celulares. Em 2002 eles publicaram na revista Nature Medicine um trabalho de repercussão, fruto de uma parceria com o Instituto Max Planck de Genética Molecular de Ber-

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lim. Era uma espécie de microcatálogo com CEPs moleculares de cinco tecidos: medula óssea, gordura (tecido adiposo), músculo esqueletal, próstata e pele. Ele foi compilado com auxílio de uma técnica chamada de phage display (algo como exibição por fagos), na qual vírus bacteriófagos – parasitas de bactérias muito usados em experimentos de biologia molecular – são induzidos a exibir na sua capa pedaços de proteínas da escolha do pesquisador. O grupo de Renata e Arap trabalhou com tripeptídeos, que são grupos de três aminoácidos, as unidades estruturais das proteínas. Criou uma biblioteca – ou virusteca – com 47.160 tipos de fagos, cada um deles ostentando na carapaça um tripeptídeo diferente, que no experimento fariam as vezes de batedores, bilhões deles. O território cujos CEPs seriam recenseados pelos batedores eram os vasos sangüíneos de um homem de 48 anos com câncer terminal e em coma, após hemorragia cerebral, cuja família concordou em colaborar com o teste antes de ser desligada a aparelhagem que o mantinha vivo. A legião de fagos recenseadores foi injetada no paciente e, 15 minutos após a morte, iniciou-se a análise das amostras colhidas de seus tecidos, para determinar a distribuição dos tripeptídeos (aqueles que se encaixassem nas fechaduras expostas pelas células dos vasos sangüíneos apareceriam em maior número no órgão irrigado pelos vasos em questão). Assim foram descobertos os cinco conjuntos de CEPs. Uma prova de princípio de que esses CEPs moleculares de tecidos poderiam ser usados em terapias teleguiadas foi obtida em 2004, num trabalho com camundongos publicado na Nature. Usando os códigos de endereçamento moleculares para tecido adiposo, os pesquisadores brasileiros dispararam a klaklak sobre ele, matando as células dos vasos sangüíneos que o irrigavam. Sem essa fonte de suprimento, as células de gordura começaram a morrer e a ser reabsorvidas. As fotos dos camundongos antes e depois do tratamento milagroso contra obesidade ganharam destaque em publicações dos EUA e do Brasil. Como a idéia original era aplicar a arma contra tumores, as atenções recaíram a seguir sobre o CEP GRP-78, que outro trabalho do grupo – este publicado em 2003 na Nature Biotechnology – indicou ser não só altamente específico para tumores de próstata como ainda altamente correlacionado com casos avançados e de prognóstico ruim. O alvo da carta-bomba estava eleito. Os resultados do ataque são os que saíram na Cancer Cell. Arap e Renata não só reconfirmaram a GRP-78 como um CEP válido para localizar tumores como o fizeram usando três tipos de vítimas amostrais: linhagens de células de tumores de próstata e mama, amostras de tumores retirados de pacientes e modelos animais de tumores humanos (camundongos transplantados com células tumorais humanas). “Foi muito eficaz até agora e achamos que mirar nessa proteína poderia também funcionar em outros tipos de tumores”, disse Renata em comunicado do


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M.D. Anderson divulgado na época. Desde então, ela confirma que resultados similares foram obtidos com amostras de câncer de pulmão. No caminho da pureza - Há um longo percurso pela frente antes de chegar à fase de testes clínicos com seres humanos, com autorização da FDA, a agência de alimentos e fármacos dos Estados Unidos. Primeiro, o grupo tem de obter amostras puríssimas da cartabomba, quer dizer, dos compostos que acoplarão os grupos de peptídeos capazes de reconhecer a GRP-78 com o indutor de apoptose klaklak. Com essas substâncias no grau de pureza exigido, eles poderão então iniciar outros testes pré-clínicos requeridos pela FDA. “Se tudo correr muito bem e nós dermos sorte, 2006 será o ano em que veremos a chegada disso a um ensaio de fase 1”, afirma Pasqualini. “Certamente o [centro] M.D. Anderson, os médicos e os cientistas envolvidos estão fazendo todo o possível para que isso aconteça logo.” Um obstáculo para essa estratégia alcançar a condição de terapia inteligente contra o câncer é a questão da toxicidade, ou seja, a possibilidade de que a klaklak detone também as mitocôndrias de células estranhas aos tumores. Apesar da especificidade alta da GRP-78 e da necessidade de ela estar projetada na superfície da célula (o que só ocorre sob estresse), nada garante que as cartas-bomba nunca chegarão às células de tecidos inocentes e vitais. Nos experimentos, elas aniquilaram células cultivadas de tecidos normais. Renata ressalva que, nesse tipo de cultura in vitro, as células se encontram num estado de estresse crônico, enquanto no corpo haveria muito pouca GRP-78 exposta para os peptídeos batedores em circulação. “Não prevemos toxicidade significativa com essa abordagem. Não saberemos, no entanto, até que ampliemos nossos estudos pré-clínicos além do que foi feito com camundongos e com doses terapêuticas, que não parecem ser tóxicas.” Renata e Arap mantêm uma ativa colaboração com pesquisadores do Brasil. Dos sete autores do artigo na Cancer Cell, quatro são brasileiros: além do casal, contribuíram Marco Arap, primo de Wadih incorporado ao time do M.D. Anderson, e Álvaro Sarkis, da Faculdade de Medicina da USP (FMU/USP), que providenciou “amostras humanas valiosas para a validação da expressão de GRP-78”, nas palavras de Renata. A pesquisadora brasileira radicada no Texas diz também que está entusiasmada com o reforço que vai receber do CEP 05403-010, da FM/USP: Emmanuel Dias-Neto, do Laboratório de Neurociências do Instituto de Psiquiatria, acompanhado da mulher, Diana Nunes, ela também especialista em genômica. A partir de janeiro, o inventor da metodologia Orestes – principal inovação técnica surgida com os projetos genoma da FAPESP – poderá ser encontrado no zip code 77030 de Houston, Texas. •

M ARCELO L EITE


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CIÊNCIA

NEUROLOGIA

Ocupar, resistir e conquistar Equipe de Minas Gerais observa como príons infectam neurônios

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omo se soubessem que só unidas conseguirão sobreviver, versões defeituosas de uma proteína conhecida como príon – abreviação de partícula infecciosa proteinácea – formam aglomerados semelhantes a um novelo de lã e se instalam em neurônios que formam o cérebro e os nervos que se estendem por todo o corpo.Lá dentro seqüestram as moléculas conhecidas como proteínas príon celular – a forma normal dos príons –,fazendo-as aderir ao bloco.Escapam das enzimas que as destruiriam se estivessem sozinhas,acumulam-se e são enfim liberadas.Começam então a infectar outras células e,em cada uma delas,mudam a estrutura da proteína príon celular.E até morrerem as células produzem esses príons alterados,que assim se propagam continuamente,como se fossem vírus. O passo-a-passo desse processo de infecção foi agora descrito pela primeira vez por uma equipe da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em um estudo realizado com um grupo de uma das unidades dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos.Os resultados,publicados no Journal ofNeuroscience ,ajudam a entender melhor,a detectar e talvez a deter as doenças causadas por essas proteínas defeituosas,cujos movimentos dentro da célula permaneciam desconhecidos. Anos atrás,milhares de bois foram sacrificados na Europa por terem con-

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C ARLOS F IORAVANTI

traído uma doença transmissível,a encefalopatia espongiforme bovina,ou malda vaca louca.S ó foi controlada a partir do momento em que se descobriu que era causada por variantes de príons.Em ovelhas,essas part ículas causam uma doença similar,que tamb ém deixa o cérebro semelhante a uma esponja,conhecida como scrapie. Uma versão próxima em seres humanos chama-se doença de Creutzfeldt-Jakob,enfermidade neurodegenerativa rara,mas igualmente fatal. Os pesquisadores trabalharam com linhagens de células derivadas de neurônios de camundongo,escolhidas por resistirem à invasão e acumulação dos príons – nos experimentos foram acompanhadas por duas semanas,mas podem sobreviver muito mais.Os neur ônios são bem mais frágeis e morreriam logo no início do processo de infecção, acredita Marco Antonio Prado,biólogo celular da UFMG e um dos coordenadores desse trabalho. “Além dos danos da própria infecção”,diz ele, “a proteína príon celular pode se tornar tóxica ou deixar de exercer tarefas importantes para a célula quando é convertida em príons”.Acredita-se que as formas saudáveis dessas proteínas estejam ligadas à manutenção da memória e ao crescimento das células nervosas,de acordo com estudos recentes conduzidos por um grupo do Instituto Ludwig de Pesquisas sobre o Câncer,de S ão Paulo. Na fronteira com o Canadá - Ana Cris-

tina Magalhães,que desenvolveu seu doutoramento sob a orientação de Pra-

do,trabalhou por um ano com bolsasanduíche da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) no Laboratório das Montanhas Rochosas,uma das unidades NIH, até desvendar os movimentos do príon dentro da célula.Ana Cristina foi para lá convidada por Byron Caughey,o l íder de um grupo que se especializara na pesquisa desse tipo de proteína, para pilotar um equipamento diante do qual já se sentia à vontade:um microscópio confocal,que permite a observação do movimento de proteínas em células vivas.Ela j á havia trabalhado em Belo Horizonte em um desses aparelhos para descrever o comportamento da proteína príon celular nas células. Ana Cristina teve,antes de aprender a conviver comos caprichos das células de camundongo,que nem sempre cresciam como ela esperava,al ém de se adaptar ao frio e à calma de Hamilton,uma cidade de 3 mil habitantes próxima à divisa com o Canadá. Em paralelo,ela tratava dos príons alterados, adicionando-lhes um corante fluorescente,para que depois pudessem ser identificadossob o microsc ópio. Após meses de preparativos,sentou-se à frente do microscópio e se pôs a examinar as finas camadas de células atravessadas por um feixe de laser.Fez cerca de mil imagens tridimensionais e, analisando-as, pôde reconstituir os movimentos do príon no interior da célula nervosa. Forma-se inicialmente um aglomerado de príons fluorescentes sobre a superfície das células.Em seguida,cada


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KIL SUN LEE

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Em ação: príons (em vermelho) invadem células neuronais

célula incorpora as proteínas anormais como um minúsculo peixe mordiscando uma bolota de pão. “Os detalhes ainda não estão muito claros”, diz Prado. Não se sabe ao certo quais moléculas conduzem os príons para o interior da célula nervosa, mas é certo: lá dentro, essas proteínas começam a se unir e a constituir aglomerados que circulam de um lado a outro – e assim podem chegar aos dois tipos de prolongamento dos neurônios, tanto os mais curtos, os dendritos, quanto os mais longos, os axônios, responsáveis pela comunicação entre as células. Os príons encontram as proteínas príon celular e as convertem em anormais, fazendo-as aderir ao bloco que cresce como uma bola de neve. Pouco a pouco, porém, os aglomerados são retidos em dois tipos de compartimento especializados na destruição de proteínas, conhecidos como endossomos tardios e lisossomos. É onde deveriam ser destruídos, por causa do ataque das enzimas. No entanto, os príons sobrevivem, possivelmente porque as enzimas não conseguem penetrar a massa de proteína e ligar-se aos possíveis pontos de ruptura, que as desmontariam. A célula trata então de eliminar a carga indesejada que, por não ser degradada pelas enzimas, vai se acumulando. “Provavelmente os lisossomos se fundem com a membrana externa e liberam os agregados no meio extracelular, permitindo assim a infecção de outras células”, cogita Prado. Mas as cé-

lulas nervosas não encontram a paz mesmo depois de expelirem os blocos de proteínas defeituosas. Antes de partir, os príons deixam algo que pode ser visto como suas sementes – por meio delas é que modificam a arquitetura de príon celular. Em conseqüência, as células que haviam sido infectadas continuam a fabricar proteínas alteradas a partir de suas versões saudáveis, até que seu funcionamento seja alterado a ponto de perder por completo a habilidade de sobrevivência. Discreta e bem-comportada - A proteína príon celular – a forma normal do príon – costuma se comportar de modo diferente. Em vez de formar blocos, vive ancorada na superfície celular. É uma proteína abundante, que se movimenta da superfície para o interior da célula, cumpre suas tarefas e sai sem causar problemas, como Ana Cristina havia verificado antes, também por meio da microscopia confocal, em um estudo feito com Kil Sue Lee, aluna de doutoramento de Vilma Martins, do Instituto Ludwig, e publicado no Journal of Neurochemistry e no Journal of Biological Chemistry. Essas pesquisas estão gerando também ganhos indiretos, à medida que se descrevem processos de adensamento de aglomerados de proteínas

semelhantes aos que se formam no cérebro de portadores do mal de Alzheimer – mesmo que neste caso as proteínas sejam outras e os blocos que formam não sejam infecciosos, o resultado é o mesmo: a morte dos neurônios. Em junho, outra equipe do Laboratório das Montanhas Rochosas publicou na Science um estudo com camundongos alterados geneticamente capazes de produzir variantes da proteína príon celular que são liberados para fora da célula, em vez de ficarem presos a ela. Quando esses animais foram infectados com príon, formaram-se aglomerados e lesões cerebrais similares às vistas no Alzheimer. No entanto, apesar de infectados, os camundongos não manifestaram os sintomas esperados, como os tremores e a perda de coordenação motora, observados no outro grupo de camundongos sem alteração genética, nos quais também se aplicaram os príons. A partir desses indícios, começa-se a repensar as formas de tratar as doenças causadas por príons, não mais combatendo os aglomerados, mas bloqueando os príons, retendo-se, por exemplo, a produção de príon celular. Está emergindo também um novo paradigma de transmissão de informações, não mais por meio do material genético, o DNA, mas através da habilidade de uma proteína defeituosa em tornar também defeituosas suas versões normais, como um mau aluno que chega em uma classe e corrompe o comportamento de todos os outros. • PESQUISA FAPESP 115 SETEMBRO DE 2005 55 ■


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CIÊNCIA

VIROLOGIA

Morte antecipada Virologistas descobrem como o agente causador da febre amarela destrói as células do fígado

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o interior da Floresta Amazônica, um mosquito azul-escuro de 4 milímetros mantém em circulação um vírus bastante letal:o da febre amarela, infecção que a cada ano atinge cerca de 200 mil pessoas nos países tropicais e mata em 10% dos casos.Inofensivo a esse inseto,o Haemagogus janthinomys, esse vírus é capaz de matar em poucos dias os seres humanos que se aventuram pela mata. Há tempos se sabe que esse vírus danifica gravemente o fígado,que p ára de funcionar.Um achado recente,porém,abre caminho para terapias capazes de evitar essa situação.Ao analisar amostras de fígado de 53 pessoas que morreram em conseqüência da febre amarela,pesquisadores do Par á e de São Paulo identificaram e contabilizaram o tipo de dano que o vírus causador dessa enfermidade provoca nas células do fígado.Acreditava-se que sofressem necrose,um proc esso violento em que a célula se rompe e libera com-

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postos tóxicos que matam suas vizinhas,numa rea ção que se amplia em cadeia.Agora uma equipe da Universidade Federal do Pará (UFPA),do Instituto Evandro Chagas (IEC) e Universidade de São Paulo (USP) mostrou que a necrose não é o fenômeno mais importante.O v írus da febre amarela até produz necrose no fígado,mas muito pouco. Pode parecer excesso de detalhe, mas entre as células também há mortes e mortes.Exames bioqu ímicos e a análise por microscópio eletrônico revelaram que o vírus libera sinalizadores químicos que causam morte por apoptose, descrevem Juarez Quaresma,da UFPA, e Maria Irma Seixas Duarte,da USP, em dois estudos recentes,um deles publicado em maio na Acta Tropica. A apoptose – ou morte celular programada – é um processo natural de eliminação de células velhas ou doentes.Em vez de provocar um desequilíbrio químico que faz as células incharem até explodir,a apoptose leva as c élulas a murcharem sem liberar seu conteúdo, antes de serem digeridas por células do sistema de defesa.O problema no caso da

febre amarela é que a apoptose ocorre numa proporção exagerada,como se o vírus fizesse os ponteiros do relógio avançarem rapidamente,antecipando a morte das células do fígado. Bloqueios - Com essas descobertas,sur-

ge a possibilidade de se testarem compostos capazes de frear a apoptose e proteger o fígado nos casos graves de febre amarela,cuja taxa de mortalidade chega a 50%. “Agora se pode pensar em mecanismos que protejam o fígado”,diz Maria Irma,que coordenou esse estudo,realizado em colabora ção com Pedro da Costa Vasconcelos e Vera Barros,ambos do Evandro Chagas, em Belém. A importância desse resultado é maior do que se pode supor.Desde 1942 a febre amarela está restrita às áreas de floresta dos 11 estados do Norte e do Centro-Oeste,al ém do Maranhão,onde vivem 30 milh ões de pessoas.Mesmo assim,n ão se pode descartar o risco de que a infecção volte a se espalhar pelo país. Nos últimos dez anos cresceu o número de casos registrados em seres humanos,atingindo


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FOTOS CDC

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um pico de 85 casos apenas em 2000. O vírus da febre amarela passou a ser encontrado também em parte do Piauí, da Bahia, de Minas Gerais, de São Paulo e dos estados da Região Sul. Caso o vírus continue a se dispersar rumo aos estados mais a leste, pode alcançar uma área habitada por 120 milhões de pessoas, na qual a taxa de vacinação contra a febre amarela é praticamente nula. Há outro motivo de preocupação. Nas áreas urbanas, o vírus da febre amarela não é transmitido pelos mosquitos do gênero Haemagogus, de hábitos silvestres, e sim pelo Aedes aegypti, o mosquito urbano que também transmite o vírus da dengue e é encontrado de norte a sul do país. Uma agravante: muitos casos de febre amarela só são confirmados depois da morte do doente. Como os sintomas – febre, dores musculares, sangramentos, vômitos e amarelamento da pele – são comuns a outras doenças virais que afetam o fígado, muitas vezes a febre amarela passa despercebida mesmo nas áreas em que a infecção é endêmica. Como o organismo se encarrega de combater o vírus na forma branda da doença, há o risco

O vírus da febre amarela e o Aedes aegypti, seu transmissor nas áreas urbanas: rumo ao sul do país

de a disseminação ser sorrateira, auxiliada pelo próprio ser humano. “É provável que as formas leves sejam mais comuns do que se imagina e passem despercebidas dos médicos e das autoridades de saúde”, diz Vasconcelos. Recentemente ele estudou como evoluiu no Brasil e na América Latina esse vírus originário da África. Comparou 117 amostras coletadas em sete países latinos com 19 de países africanos. Apresentados em março deste ano no Journal of Virology, os resultados mostram que o vírus da febre amarela evoluiu desde que chegou à América há quase quatro séculos. Mas não se tornou mais agressivo nem perdeu a capacidade de infectar mosquitos e causar doença, segundo esse estudo, financiado pelo Lancet International Fellowship Award.

Em outro trabalho, Vasconcelos avaliou as características genéticas de 79 amostras do vírus coletadas em 12 estados entre 1935 e 2001. Conclusão: o vírus em circulação no país pertence a um único tipo, o América do Sul 1, formado por cinco grupos (A, B, C, D e Velho Pará). Os vírus detectados nos últimos sete anos são do grupo D, que vêm se dispersando rumo ao sul: em 1998 foram encontrados no Pará; em 1999 e em 2000, na Bahia, em Tocantins e em Goiás; e em 2001, em Minas Gerais. Vasconcelos atribui essa disseminação em parte à migração de portadores assintomáticos do vírus para o Sudeste e o Sul. Ele desconfia também de outro fator: o tráfico de animais silvestres, em especial de macacos. •

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Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org

Notícias

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Papel social dos museus

Agricultura

Impulso para o tomate

Refletir sobre como o fazer científico e tecnológico,as demandas da sociedade e as questões educacionais influem no papel social dos museus de ciência,sobretudo na negociação com seus públicos,é o objetivo do artigo “Museus,ciência e educação:novos desafios”,assinado por Maria Valente,Sibele Cazelli e Fátima Alves,pesquisadoras do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast).O estudo analisa a trajetória de consolidação dos museus de ciência no Brasil e as modificações dessas instituições impostas pela sociedade atual.“Os museus de ciência acompanham a sociedade por mais de três séculos e,ultimamente,vêm sofrendo mudanças marcantes e profundas na suaconcepção de acessibilidade pública:anteriormente meros armazéns de objetos,são considerados hoje lugares de aprendizagem ativa”,dizem as pesquisadoras.No Brasil,o movimento de criação dos museus de ciência não tem sido o foco de investigações de historiadores da área,apesar de os estudos evidenciarem a rica contribuição dos museus para a consolidação das ciências naturais no país.Os primeiros museus brasileiros possuíam temática científica,uma decorrência da exuberância da natureza brasileira.O Museu Nacional do Rio de Janeiro,criado em 1818,foi a primeira instituição brasileira dedicada primordialmente à história natural.O Museu Paraense Emílio Goeldi,em Belém,no Pará,criado em 1866,e o Museu Paulista,de São Paulo (1894),são exemplos de instituições dedicadas às ciências naturais e consolidadas no século 19.“Ao longo dos anos intensificam-se pesquisas e práticas comunicacionais relacionadas às atividades em museus,configurando cada vez mais um campo específico de produção de conhecimento”, ressaltam.“Estudos e estratégias são empregados para disponibilizar aos visitantes conhecimento científico de qualidade e de forma acessível”, concluem.

Discutir meios para melhorar em muito a eficiência técnica e econômica da produção de tomate para a indústria é a proposta do estudo “Desafios e perspectivas para a cadeia brasileira do tomate para processamento industrial”.O artigo foi escrito por Paulo César de Melo,da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq),e Nirlene Junqueira Vilela,da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa Hortaliças).A pesquisa est á baseada em uma série de visitas técnicas às áreas de produção de tomate para processamento industrial e às agroindústrias de processamento localizadas no Estado de Goiás. Além das entrevistas com produtoras e observações in loco,foram feitas infer ências a partir de material fornecido pelas agroindústrias processadoras e artigos técnico-científicos registrados sobre o assunto em publicações de referência. “Na América do Sul,o Brasil lidera a produ ção de tomate para processamento industrial,sendo o maior mercado consumidor de seus derivados industrializados”,dizem os autores. “Entretanto,no contexto mundial,o pa ís tem uma participação de apenas 5,5% da produção total de tomate para processamento industrial e a exportação de derivados industrializados não é significativa”,acrescentam.O estudo mostra que,na d écada de 1990,observou-se um expressivo desempenho do setor.Entretanto,no âmbito dos sistemas de produção, notou-se uma série de fatores limitantes à otimização da produção. “Dentre esses limitantes estão cultivares inadequadas à colheita mecanizada e suscetíveis às doenças e pragas que depreciam a qualidade industrial dos frutos.”

HISTÓRIA, CIÊNCIAS, SAÚDE-MANGUINHOS – VOL. 12 – SUPLEMENTO 0 – RIO DE JANEIRO 2005

HORTICULTURA BRASILEIRA – BRASÍLIA – JAN./MAR. 2005

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010459702005000400010&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010205362005000100032&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

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Divulgação científica

VOL.

23 – Nº 1 –

EDUARDO CESAR

Duas revistas latino-americanas indexadas na SciELO foram recentemente selecionadas para catalogação nas bases de dados do Institute for Scientific Information (ISI). A Revista Brasileira de Psiquiatria, da coleção SciELO Brasil, e a Chungara: Revista de Antropología Chilena, da SciELO Chile, acabam de ser selecionadas para o Social Science Citation Index. O aumento da visibilidade das revistas latino-americanas proporcionado pela SciELO tem se refletido na ampliação de citações, permitindo que cada vez mais essas revistas possam ser submetidas a processos de seleção de bases de dados internacionais. Atualmente são 26 revistas brasileiras e 11 chilenas que estão representadas nos Science Citation Index do ISI, das quais 14 são das áreas de ciências biológicas e da saúde (11 brasileiras e 3 chilenas).


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Construção civil

Trabalho arriscado

Descompasso sanitário EDUARDO CESAR

Apesar dos esforços governamentais, empresariais e sindicais, a indústria da construção civil é uma das que apresentam as piores condições de segurança, em nível mundial. Essa é a premissa que sustenta o estudo realizado por quatro pesquisadoras da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP), campus de Ribeirão Preto: Cristiane Aparecida Silveira, Maria Lúcia do Carmo Cruz Robazzi, Elisabeth Valle Walter e Maria Helena Palucci Marziale. Elas decidiram fazer um levantamento no Hospital Universitário de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, sobre os acidentes ocorridos entre os operários do setor. Para isso, analisaram prontuários hospitalares e anotações de profissionais da saúde. Os resultados da pesquisa estão no artigo “Acidentes de trabalho na construção civil identificados por meio de prontuários hospitalares”. Foram analisadas 6.122 fichas com características pessoais dos acidentados, causas do acidente e partes do corpo atingidas. Do total de prontuários hospitalares em questão, 150 referiam-se aos trabalhadores da indústria da construção civil. A faixa etária predominante foi a compreendida entre 31 e 40 anos e todos eram do sexo masculino. As causas predominantes foram as quedas (37%) e as partes do corpo mais lesadas foram os membros superiores (30%). “Os trabalhadores da construção civil constituem um grupo de pessoas que realiza sua atividade profissional em ambiente insalubre e de modo arriscado”, apontam as pesquisadoras no artigo. “Geralmente são atendidos inadequadamente em relação aos salários, alimentação e transporte, possuem pequena capacidade reivindicatória e, possivelmente, reduzida conscientização sobre os riscos aos quais estão submetidos”, afirmam. O estudo sugere um maior esforço coletivo tanto das empresas como dos sindicatos e do estado, que garanta um aumento dos investimentos no setor visando diminuir os acidentes no trabalho. “Recomenda-se também às equipes do serviço público de atenção à saúde que questionem os pacientes sobre a sua ocupação, procurando-se estabelecer nexo entre o acidente ocorrido e o trabalho realizado pelos acidentados”, dizem as pesquisadoras. Dessa forma, conforme o artigo, os acidentes poderiam ser notificados à Previdência Social, o que colaboraria para a diminuição da subnotificação acidentária no país.

Saúde

No artigo “Vigilância sanitária: uma proposta de análise dos contextos locais” foram publicados os resultados de uma pesquisa realizada em oito municípios do Estado da Paraíba. Os autores analisaram a relação entre os serviços de vigilância da área de saúde e os contextos sanitário, epidemiológico, político, social e econômico desses territórios. O estudo foi desenvolvido pela Assessoria de Descentralização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e integra a Rede Descentralizada de Vigilância Sanitária (Projeto Redevisa), que tem como missão identificar as prioridades sanitárias e epidemiológicas locais para o repasse de recursos financeiros pela Anvisa. As informações sobre os municípios foram analisadas visando ao desempenho dos Serviços de Vigilância Sanitária sob os aspectos relacionados à estrutura, processos de trabalho, gestão, contexto político e recursos financeiros. Os pesquisadores constataram a deficiente articulação entre o trabalho das vigilâncias pesquisadas e o espaço onde eles atuam, além de identificar fatores restritivos para a ação de controle sanitário local. “Entre os fatores que reduzem a efetividade das ações de controle sanitário são citados, com freqüência: atribuições pouco definidas das instâncias de governo, abordagem fragmentada do campo de atuação, pouca articulação intra e interinstitucional, insuficiência de recursos humanos, baixa qualificação técnica dos profissionais, sistema de informações insuficiente e despreparo para a utilização dos dados existentes.” Outro dado reforça a tese do descompasso entre os atores do processo. “Em 100% das equipes havia um desconhecimento dos dados socioeconômicos e epidemiológicos dos seus municípios e, por conseguinte, os fatores de risco por eles delineados”, mostram os autores do trabalho Márcia Franke Piovesan, da diretoria de Desenvolvimento Setorial da Agência Nacional de Saúde Suplementar, Maria Valéria Vasconcelos Padrão, Maria Umbelina Dumont e Luiz Felipe Moreira Lima, da Anvisa, Gracia Maria Gondim, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Oviromar Flores, da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília (UnB), e José Ivo Pedrosa, da Secretaria do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde. Os pesquisadores propõem um método de reconhecimento e sistematização das informações que consideram indispensáveis para o planejamento em vigilância sanitária. O artigo apresenta também, como conclusão, um conjunto de necessidades específicas, estruturadas a partir da própria população em conjunto com técnicos e gestores de saúde, com a intenção de propor a intervenção crítica sobre o território por meio do planejamento participativo.

REVISTA ESCOLA DE MINAS – VOL. 58 – Nº 1 – OURO PRETO – JAN./MAR. 2005

REVISTA BRASILEIRA DE EPIDEMIOLOGIA – VOL. 8 – Nº 1 – SÃO PAULO – MAR. 2005

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ar ttext&pid=S037044672005000100007&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ar ttext&pid=S1415790X2005000100010&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

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TECNOLOGIA

L INHA DE P RODUÇÃO

MUNDO

Bionanotubo entrega remédios e genes abrir ou fechar portas, dependendo de como os pesquisadores manipulam a carga elétrica dos dois componentes. Em princípio, o nanotubo poderá encapsular a droga ou o gene, que seriam transportados até o local onde teriam melhor efeito no organismo. Os componentes do tubo têm papel semelhante ao da pele

e do osso. A “pele” é um arranjo de moléculas, parecido com uma bolha de sabão, conhecido como bicamada de lipídios, similar à dupla camada que forma a membrana externa de proteção da célula. O “osso” é uma estrutura cilíndrica, oca, parecida com os microtubos presentes na membrana de uma célula – o sistema formado

por uma rede de fibras de suporte em nanoescala usado para transporte interno, estabilidade estrutural e muitas outras finalidades. Os pesquisadores descobriram que, quando eles combinam os dois componentes e controlam as condições de maneira propícia, os bionanotubos abertos ou fechados se juntam espontaneamente.

PETER ALLEN/UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA

Pesquisadores da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, nos Estados Unidos, desenvolveram um “bionanotubo inteligente”: uma inédita estrutura que poderá se tornar um veículo para transportar uma droga ultraprecisa ou inserir genes terapêuticos no organismo. Os nanotubos são “inteligentes” porque eles podem

Lipídios e proteínas controlados abrem e fecham as portas para os nanotubos

■ Sensor óptico

avalia estruturas Usando peças de vidro e um laser de femtossegundo – medida que equivale a 1 segundo dividido por 1 quatrilhão de vezes –, pesquisadores da Universidade de Keio, no Japão, e Harvard, nos Estados Unidos, fizeram um sensor que poderá detectar vibrações estruturais em máquinas, veículos e edifícios, mesmo em condições extremas encontradas em satélites, reatores atô60

micos e usinas elétricas. O aparelho é imune à interferência eletromagnética, e as medições são insensíveis às variações de temperatura. O sensor possui uma única guia de onda de luz que atravessa as três peças de vidro. Montado sobre um feixe de vigas, o vidro central se move em resposta à vibração mecânica,

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que interrompe a continuidade da guia de onda. Ao acoplar o aparelho a uma fonte de luz, como um diodo de laser, os pesquisadores podem monitorar a vibração por meio da perda de transmissão.

■ Bomba inteligente

contra o câncer Imagine uma droga para combater o câncer que pode se infiltrar dentro do tumor, vedar as saídas e detonar uma dose letal de toxinas anticâncer,

preservando as células sadias. Pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) desenvolveram uma nanopartícula que faz isso. Uma nanocélula com câmara dupla, que empacota a droga, mostrou-se efetiva e segura, com prolongamento da sobrevida, contra câncer de pulmão e de pele (melanoma). “Nós juntamos três elementos: biologia do câncer, farmacologia e engenharia”, disse Ram Sasisekharan, professor da Divisão de Enge-


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quimioterápicos. As nanocélulas são pequenas para passar pelas veias do tumor, mas grandes para romper os poros nos vasos. Uma vez dentro do tumor, a membrana externa se desintegra, soltando a droga antiangiogênica.

BRASIL Limpeza em área contaminada LAURABEATRIZ

■ Técnicas combinadas

LAURABEATRIZ

para combater vírus

MIGUEL BOYAYAN

nharia Biológica do MIT e coordenador do grupo de pesquisa, em comunicado do instituto. O desafio na quimioterapia usada para combater o câncer é sua toxicidade para as células sadias. A saída encontrada foi juntar a quimioterapia à antiangiogênese, o método que corta o suprimento de sangue e pode matar as células de fome. As duas drogas comportam-se de forma diferente e em horários distintos: os antiangiogênicos atuam sobre um período prolongado e a quimioterapia em ciclos. Usando drogas prontas e outras substâncias, os pesquisadores criaram um balão dentro de um balão, que lembra uma célula verdadeira. A membrana externa da nanomolécula foi carregada com uma droga antiangiogênica e o balão inteiro com agentes

Uma combinação de modificação genética e técnicas de enxerto tradicional de plantas pode ajudar culturas de melancia a resistir a um potente vírus que provoca a doença chamada de mosaico. Isso sem introduzir genes estranhos dentro da fruta. Em vez de modificar a planta inteira, uma equipe formada por pesquisadores do Centro de Biotecnologia da Coréia do Sul e da Universidade de Seul modificou somente o rizoma, uma espécie de tronco subterrâneo em que as mudas de variedades comerciais de melancia são modificadas. Para criar uma planta resistente, eles inseriram um gene viral no rizoma. Os pesquisadores disseram que não está claro como a inserção do gene viral protege a melancia. Um potencial mecanismo é o “silenciamento do gene”, no qual a produção de uma proteína vital para o vírus se reproduzir é eliminada.

Melancia modificada fica mais resistente a doenças

Um novo reagente à base de ferro consegue acelerar em até 50 vezes a destruição dos produtos tóxicos derivados da gasolina. O produto, que recebeu o nome de Fentox, foi desenvolvido no Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) para ser usado junto com o peróxido de hidrogênio, substância mais conhecida como água oxigenada, na descontaminação de áreas atingidas por derivados de petróleo, como postos de gasolina. Desde o início da década de 1990, o peróxido de hidrogênio tem sido bastante utilizado na indústria brasileira por atender a demandas diversificadas. Na indústria de papel e celulose, por exemplo, é usado como branqueador. Nas áreas contaminadas, o peróxido associa-se ao reagente tradicional chamado Fenton, também à base de ferro, mas que tem como desvantagem o fato de só funcionar em meio ácido. “A adição de substâncias ácidas à mistura acaba

gerando muito calor e, por isso, é preciso ter um controle rígido da reação química”, diz o professor Wilson Jardim, um dos autores da invenção, já patenteada, que teve a participação do mestrando Juliano Andrade. “A eficácia do peróxido de hidrogênio na destruição de derivados de petróleo deve-se ao fato de que no final do processo só sobra água e oxigênio.” A grande vantagem do Fentox em substituição ao reagente tradicional, além da rapidez com que destrói os principais produtos tóxicos derivados da gasolina, é que ele não precisa de pH ácido para funcionar nem libera calor quando reage com os contaminantes de interesse. O nome do novo produto também é uma homenagem ao químico Fenton, pioneiro na publicação de trabalhos que tratavam do uso do peróxido de hidrogênio como oxidante em 1894. Na década de 1980, os estudos foram retomados e deram origem a novas tecnologias.

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BRASIL

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Parceria para fornecer embriões 14 empresas, nos estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rondônia, Paraná, Bahia, Minas Gerais, São Paulo e Distrito Federal, que participam da Rede de Produção in Vitro de Embriões (Pive). As parcerias são firmadas por

meio de contratos em que a Embrapa oferece assistência técnica, com infraestrutura e recursos humanos preparados para desenvolver as tecnologias, e as empresas pagam taxas pelos embriões produzidos e transferidos.

EDUARDO CESAR

L INHA DE P RODUÇÃO

A rede criada para produzir embriões de bovinos in vitro, coordenada pela Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, em Brasília, ganhou a adesão da Gênesis Biotecnologia e Reprodução Animal, do Distrito Federal. Agora são

■ Nanotecnologia para

produtos cosméticos

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Rebanho: tecnologia para produzir embriões será repassada a empresas

(Cepid) da FAPESP. “Com essa técnica é possível selecionar componentes químicos, como silicones, polímeros e proteínas, mais eficazes para tratamento de cabelos”, diz Pinheiro.

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■ Aço resistente

à corrosão Uma nova liga de aço com adição de nióbio, que poderá ser utilizada em carcaças de bombas d’água, caixas de LAURABEATRIZ

A empresa KosmoScience, que trabalha com foco na nanotecnologia para desenvolver metodologias para avaliação de produtos cosméticos, foi convidada a apresentar em setembro um trabalho em um dos principais eventos internacionais da área, um congresso anual realizado pela Federação Internacional das Sociedades de Químicos Cosméticos (IFSCC, da sigla em inglês). O estudo “Alterações na densidade de carga superficial em fibras de cabelo humano: uma investigação usando microscopia de força atômica” será apresentado em Florença, na Itália, por Adriano Pinheiro, um dos sócios da empresa e ex-aluno do Laboratório Interdisciplinar de Eletroquímica e Cerâmica (Liec), que integra o Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão

câmbio e de motores, peças fabricadas pela indústria de máquinas e motores, mostrou em testes ser mais resistente à tração, ao desgaste e à corrosão que o aço fundido nodular, empregado tradicionalmente para essas aplicações. Chamado de aço fundido grafítico ao nióbio, o novo material resulta de uma tese de doutorado do professor Carlos Alberto Soufen, do Departamento de Engenharia Mecânica da Faculdade de Engenharia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Bauru. “Quando surgiu a idéia de produzir aço, procuramos uma empresa que fizesse a fundição”, conta Sou-


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CARLOS ALBERTO SOUFEN/UNESP

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Fundição de lingotes de aço grafítico para testes de resistência e corrosão

Patentes Inovações financiadas pelo Núcleo de Patenteamento e Licenciamento de Tecnologia (Nuplitec) da FAPESP. Contato: nuplitec@fapesp.br

Luz ultravioleta para curativo

■ Embalagem plástica

como isolante térmico Um material composto por bandejas plásticas utilizadas para conservar alimentos e embalagens para ovos mostrou em testes ser um bom isolante térmico para paredes e tetos.“Dessa forma, aproveita-se um material descartado para reduzir a troca de calor entre o interior de edificações e o ambiente externo, contribuindo para diminuir os gastos com energia elétrica utilizada pelos condicionadores de ar”, diz a pesquisadora Dorivalda Medeiros Neira, do Departamento de Engenharia Mecânica da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), autora do projeto coordenado pelo profes-

sor George Marinho. O estudo avaliou o uso de embalagens de poliestireno expandido (EPS) pós-consumo como isolantes. Para testar a eficácia das placas foram realizados testes em duas câmaras. As câmaras foram cobertas por chapas de aço pintadas de preto, apoiadas sobre um painel de madeira compensada. Em uma delas, a placa foi colocada entre a chapa de aço e o compensado. A outra câmara foi utilizada como referência. O uso da placa reciclada resultou em uma redução média de 5,9°C no interior do cômodo, em comparação com a câmara sem isolamento.

■ Produção nacional

para máquina braille A máquina braille será totalmente fabricada no Brasil. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) firmaram parceria com a Laramara – Associação Brasileira de Assistência ao Deficiente Visual para produzir o aparelho que atualmente é feito apenas nos Estados Unidos. A associação pretende distribuir pelo menos uma máquina a cada um dos 654 municípios paulistas.

rato, simples e acessível, porque o uso da luz ultravioleta diminui o custo da produção. O uso da água oxigenada acelera o processo e o torna viável. Além disso, permite que os hidrogéis sejam produzidos sem necessidade de equipamentos de grande porte e alto custo. Todas as características originais do gel produzido atualmente, como maciez, nãotoxicidade, permeabilidade a líquidos e gases e barreira contra microorganismos, são preservadas. Título: Processo de obtenção de gel hidrofílico por reticulação de solução aquosa de um ou mais polímeros hidrofílicos, gel hidrofílico, curativo, microesfera, método de tratamento de queimaduras, método de tratamento de pele, método de embolização e uso do gel hidrofílico ou curativo Inventor: Luiz Henrique Catalani Titularidade: USP e FAPESP MIGUEL BOYAYAN

fen. A KSB Bombas fez a fundição dos lingotes. E a Villares Metals os testes para avaliar quanto o material contrai ou dilata. Os ensaios apontaram que a nova liga possui maior resistência porque apresenta menor quantidade de grafita livre, responsável pelo desgaste do material. Outra vantagem é que, como o processo de adição do nióbio tem menor temperatura de fusão, o gasto energético para produzir o aço é menor que o atual.

Novo processo utiliza a radiação ultravioleta e água oxigenada para produzir membranas de hidrogel destinadas a curativos para lesões de pele, como queimaduras e úlceras. Pelo sistema convencional, a solução formada por polímeros em estado líquido, usada para produzir as membranas, precisa ser exposta a uma radiação de alta energia, por feixe de elétrons ou radiação gama, para adquirir a consistência de gel. Esse método é altamente eficaz porque promove a reticulação – formação de reações cruzadas entre as cadeias poliméricas que transformam a solução aquosa em gel – e a esterilização do curativo simultaneamente. Mas são poucas as empresas que possuem os equipamentos necessários para executar essa tarefa. O novo processo é bem mais ba-

Gel para lesões na pele feito com água oxigenada

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FOTOS EDUARDO CESAR

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TECNOLOGIA

IMUNOLOGIA

Nova vacina contra a raiva Instituto Butantan cria alternativa mais segura, barata e eficaz para uso em seres humanos M ARCOS P IVET TA

S Ampolas do imunizante: mais anticorpos e menos reações alérgicas e nervosas

egura, eficaz e barata, uma nova vacina contra a raiva humana deverá ser lançada pelo Instituto Butantan nos próximos meses. Totalmente desenvolvido na instituição paulista, o produto, que já tinha sido testado com sucesso em camundongos e macacos, passou por sua prova final: foi injetado em mais de 200 seres humanos num estudo feito pelo Instituto Pasteur de São Paulo e os resultados, ainda preliminares, foram bons. Não houve reações significativas de ordem alérgica ou nervosa e, na média dos pacientes, a vacina estimulou níveis de anticorpos 30 vezes maiores que os considerados suficientes pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para neutralizar a ação do vírus da raiva. A quantidade de resíduos celulares encontrados nas doses do imunizante foi muito baixa, cerca de cinco vezes menor que a recomendada. A raiva é uma doença fatal ao homem quando não tratada logo após ter ocorrido a infecção pelo patógeno. A autorização para a venda da vacina, cuja propriedade intelectual está protegida por patentes desde o ano 2000,

vai ser pedida neste mês à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Nos próximos meses, toda a documentação necessária para a aprovação do medicamento será enviada para Brasília. “Até o final do ano, ou no início de 2006, vamos começar a produção da vacina em escala comercial”, afirma Neuza Maria Frazatti Gallina, chefe da seção de raiva do Butantan, responsável pelo desenvolvimento do produto. Inicialmente, a meta é fabricar cerca de 3 milhões de doses anuais da vacina, suficientes para atender a demanda nacional. Num segundo momento, o volume de produção poderá ser elevado, com vistas à exportação. O custo estimado de cada dose é de US$ 5, dois dólares a menos que o preço pago pelo governo federal pela vacina de raiva usada atualmente no país, importada da França e aqui rotulada e testada pelo Butantan. A qualidade do produto deriva do domínio de uma forma inédita de cultivo do vírus da raiva, agente infeccioso do gênero Lyssavirus. Matéria-prima para a confecção da vacina, onde está presente numa forma inativada, o vírus cresce num substrato composto pelas chamadas células Vero, retiradas dos rins do macaco-verde-africano Cercopithecus PESQUISA FAPESP 115 SETEMBRO DE 2005 65 ■


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aethiops. Trata-se de um tipo de material biológico muito estável, sem risco de provocar problemas de saúde no homem, que pode ser obtido num banco internacional de células Vero. Em razão dessas características, e também da possibilidade de crescerem em altas concentrações no interior de grandes biorreatores, essas células são altamente recomendadas pela OMS na produção de vacinas. Elas são capazes de se multiplicar em meios de cultura para crescimento de células que dispensam a necessidade de soros de origem bovina ou humana. Portanto, há menos traços de DNA animal na composição final da vacina. Por esse processo, a chance de se fabricar uma vacina contaminada, por exemplo, com a forma degenerada do príon, uma proteína bovina que causa o mal da vaca louca, é nula. “Somos os primeiros no mundo a fazer uma vacina contra a raiva com células Vero num meio livre de soro, uma técnica normalmente muito cara”, assegura Neuza, que, em seu trabalho, contou com financiamentos da FAPESP, da Fundação Butantan e do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico (CNPq). “Mas, como nosso método

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de produção é cinco vezes mais eficiente que os demais, o caro se tornou barato.” Feita no exterior, a vacina de raiva humana hoje disponível no Brasil também usa células Vero em seu método de produção, mas é obtida a partir do cultivo do vírus da raiva em meio que ainda necessita de soro animal.

A

adoção da vacina importada foi uma solução-tampão para remediar a situação em que o país se encontrava no fim da década de 1990. Na época havia uma versão nacional da vacina de raiva, feita pelo Butantan e pelo Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar), só que derivada de uma tecnologia de produção mais antiga. Era uma vacina cujo processo de fabricação utilizava o cérebro de camundongos recém-nascidos. Cerca de 2% de seu contéudo final era tecido cerebral de roedores. “A antiga formulação da

vacina nacional era boa e conferia imunidade, mas o risco de efeitos adversos não era desprezível”, comenta Neuza. No fim dos anos 1990, uma pessoa no país apresentou reações neurológicas graves e morreu depois de tomar a antiga vacina. No ano 2000, o Estado de São Paulo proibiu a fabricação do produto a partir de tecido nervoso de camundongos. Dois anos mais tarde, o governo federal fez o mesmo. Como ninguém no Brasil dispunha então de tecnologia para fazer vacinas mais puras contra a raiva, a saída foi trazer do exterior um medicamento mais seguro. A nova vacina do Butantan, ainda mais segura que a atual, deverá pôr fim à necessidade temporária de importar o imunizante, garantindo de novo independência tecnológica ao país nessa área. De quebra, os estudos de mais de uma década que levaram à nova vacina anti-rábica de uso humano também permitiram o desenvolvimento de uma linhagem mais moderna de imunizantes contra a raiva destinada a cães, gatos e bovinos (veja quadro abaixo).

Para cães e gatos A nova vacina anti-rábica de uso veterinário desenvolvida pelo Instituto Butantan não é tão purificada quanto a versão humana do produto. Mas será mais eficaz e custará menos que o produto hoje usado no programa público de imunização de cães e gatos, feita com cérebro de camundongos lactentes. A nova vacina, cujo processo de produção será transferido para uma empresa paulista, é elaborada num tipo de célula renal de hamster denominada BHK, que necessita de um meio de cultura com soro para crescer. Porém, esse material de cultivo provém de linhagens celulares estabelecidas há anos e seu processo de reprodução em laboratório já é dominado pelo Butantan. Ou seja, não é necessário matar no-

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vos animais para obter mais células BHK. Para confeccionar os 33 milhões de doses anuais de vacina anti-rábica de uso animal que fornece para o Programa Nacional de Profilaxia da Raiva, do Ministério da Saúde, o Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar) sacrifica toda semana 120 mil camundongos lactentes. Isso porque a empresa necessita de tecido nervoso dos roedores para ser usado na fabricação de sua formulação da vacina. “A vacina em células BHK vai evitar a morte de

Vacina de uso veterinário: sem cérebro de camundongo

todos esses animais”, afirma Neuza Maria Frazatti Gallina, do Butantan. Testes feitos em cães e gatos na Universidade Estadual Paulista (Unesp), de Araçatuba, e em bovinos na Universidade do Oeste Paulista (Unoeste), de Presidente Prudente, mostram que a vacina do Butantan é eficaz em conferir imunidade aos animais.


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O Tecpar também pretende desenvolver uma vacina anti-rábica humana a partir de um meio de cultivo com células Vero, mas as pesquisas estão num estágio mais atrasado que as do Butantan.“Ainda não conseguimos produzir a vacina no meio livre de soro em escala industrial”, diz o bioquímico Renato Rau, diretor de produção do Tecpar, que se associou recentemente a uma empresa argentina na esperança de dominar o processo. O controle da tecnologia de cultivo de meios celulares livres de soro também será útil ao Butantan na criação de outros produtos farmacêuticos, como uma versão nacional da vacina contra o rotavírus, causa comum de diarréia em crianças. “Esse é o nosso próximo desafio”, diz Neuza. O processo de produção de um lote industrial com 120 mil doses da vacina anti-rábica do Butantan é rápido: consome nove dias. Num biorreator com capacidade para abrigar 30 litros, que agita seu conteúdo líquido a uma velocidade de 60 rotações por minuto, o vírus da raiva se reproduz em contato com as células Vero cultivadas em meio livre de soro em condições controladas para uma série de parâmetros, como temperatura, quantidade de oxigênio e acidez (pH). Periodicamente, coletas são feitas: retira-se um pouco de solução rica em vírus da raiva do biorreator, ao qual se adiciona mais meio de cultura. Tal procedimento é repetido seis vezes até o final do processo de fabricação de um lote da vacina. Por fim, a suspensão viral é concentrada, purificada e o patógeno nela presente é inativado. Depois de pronta, a nova vacina pode ser estocada por 14 meses a temperaturas entre 2º e 8ºC. Mais detalhes sobre o novo imunizante podem ser obtidos num artigo publicado pelos pesquisadores do Butantan em dezembro passado na revista científica Vaccine. A raiva é uma zoonose, doença transmitida por animais ao homem (e a outros animais). Qualquer mamífero pode carregar uma cepa do vírus da

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Biorreator onde é feita a vacina: 120 mil doses a cada nove dias

raiva e passar, por meio da saliva contaminada pelo patógeno, a enfermidade ao ser humano. Não é necessário que a pessoa tenha sido mordida por um bicho doente. Às vezes, basta ter havido contato da pele ou mucosa do indivíduo com a saliva do animal enfermo. “Mas o risco de se adquirir a raiva é 50 vezes maior por meio de uma mordida do que por uma arranhão”, diz Neuza. Na prática, os principais propagadores da raiva no meio

O PROJETO Estudo da imunidade humoral e celular induzida pela vacina contra raiva em células Vero MODALIDADE

Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa COORDENADORA

NEUZA MARIA FRAZATTI GALLINA – Instituto Butantan INVESTIMENTO

US$ 85 000,00 (FAPESP)

urbano são cães e gatos e, em zonas rurais, os morcegos que se alimentam de sangue. Como o vírus da raiva apresenta um longo período de incubação no ser humano, em geral de um ou dois meses, a vacina anti-rábica deve ser aplicada assim que houver contato com um animal potencialmente infectado. Funciona como se fosse um remédio após ter havido a contaminação. O esquema mais comum de imunização prescreve cinco doses da vacina, aplicadas ao longo de um período de 28 dias. Além de pessoas que entraram em contato com animais com suspeita de infecção, profissionais que apresentam risco maior de contrair a raiva, como veterinários e zootecnistas, tomam a vacina de forma preventiva. Responsável por até 70 mil mortes por ano no mundo, a raiva humana está sob controle no Brasil, em especial nos centros urbanos. Historicamente, o número de casos da doença apresenta tendência de queda. No início dos anos 1980, a raiva matava no país anualmente mais de 160 pessoas. Vinte anos mais tarde, o número de óbitos girava em torno de dez pessoas ao ano.“Mas, como se trata de uma zoonose, é impossível erradicá-la por completo”, comenta o médico Wagner Augusto Costa, do Instituto Pasteur, que coordenou os testes em seres humanos com a nova vacina do Butantan. No ano passado, a quantidade de mortes voltou a aumentar, embora em níveis menos alarmantes que os do passado. Houve cerca de 30 mortes, dois terços das quais decorrentes de dois surtos no Pará de raiva contraída de morcegos. Esses mamíferos voadores tomaram o lugar dos cães e gatos como o principal vetor da doença entre os brasileiros. Neste ano, a situação se repete. De janeiro a julho de 2005, a doença matou 15 pessoas no Pará e três no Maranhão. Todas pegaram a raiva de morcegos. “O desmatamento está empurrando os morcegos silvestres para as pequenas cidades, aumentando o risco de transmissão da doença ao homem”, afirma Neuza. • PESQUISA FAPESP 115 SETEMBRO DE 2005 67 ■


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TECNOLOGIA

ENGENHARIA FLORESTAL

Madeira valiosa Plantio e exploração do pínus abre novos mercados e reduz a extração de espécies nativas M ARCOS

DE

O LIVEIRA

E

m 1990, os móveis produzidos com a madeira extraída das espécies de pinheiro conhecidas como pínus renderam ao país US$ 40 milhões em exportações. No ano passado, esses mesmos produtos atingiram a marca de US$ 1 bilhão de vendas ao mercado externo. Florestas cultivadas com espécies do gênero botânico Pinus também são responsáveis por colocar o Brasil no segundo lugar, atrás da China, na produção da resina extraída do tronco dessas árvores. Essa goma ao ser processada industrialmente resulta num resíduo sólido, chamado de breu, e num líquido, a terebintina, matérias-primas usadas na fabricação de solventes, tintas, colas, adesivos, cosméticos e perfumes. Até 1989 o Brasil era importador da resina de pínus, hoje a situação é outra. Agora, ao produzir para o mercado interno e para exportação, esse setor fatura US$ 30 milhões por ano. São conquistas em grande parte obtidas com a pesquisa de técnicas de plantio e adaptação ao clima e solo brasileiros, na seleção de sementes e na obtenção de mudas. Muitos desses avanços surgiram no Instituto Florestal (IF) de São Paulo, ligado à Secretaria de Estado do Meio Ambiente. Desde 1936, o instituto realiza estudos para a adaptação e formas de cultivo comercial das espécies de pínus originárias dos Estados Unidos e da América Central. Um dos registros primordiais desse tipo de árvore no Brasil foi feito em 1906 quando o primeiro diretor do IF, o sueco Albert Löfgren, publicou um trabalho em que relacionava a introdução de algumas espécies de pínus no Horto Florestal de São Paulo. “No início, a introdução de espécies exóticas com fins comerciais”, diz o engenheiro agrônomo Francisco José do Nascimento Kronka, pesquisador do IF, “aconteceu pelo aumento da demanda de celulose para

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a fabricação de papel e de madeira para serraria, em razão da diminuição de espécies nativas no Estado de São Paulo e no sul do país”. Kronka e os engenheiros florestais Francisco Bertolani, consultor e empresário florestal, e Reinaldo Herrero Ponce, diretor da Fundação para a Conservação e a Produção Florestal do Estado de São Paulo, são autores do livro A cultura do pínus no Brasil, editado pela Sociedade Brasileira de Silvicultura (SBS) e lançado em março deste ano. Nesse trabalho são mostrados de forma didática as características das espécies e os atuais sistemas de produção agrícola e industrial adotados no Brasil. Devastação da araucária - O incremento da industrialização no início do século 20 exigia muita madeira. A preferência naquela época recaía sobre uma árvore da Mata Atlântica, a araucária (Araucaria angustifolia). Presente do Paraná até o Rio Grande do Sul e em áreas mais altas e frias de São Paulo e Minas Gerais, as araucárias quase foram erradicadas, sobrando hoje cerca de 2% da população original. Da mesma ordem botânica das coníferas, o pínus substituiu com vantagens o chamado pinheiro-brasileiro ou pinheiro-do-paraná. “Cultivar a araucária é muito difícil porque ela exige solo bom em nutrientes, precisa de bastante chuva e umidade, além de crescer muito devagar”, diz Kronka. “O pínus, ao contrário, cresce rápido em solos pobres e com pouca chuva, embora a maior parte das espécies exija épocas bem definidas de frio.” São árvores que atingem o tamanho para o corte final aos 25 anos, mas é possível utilizá-las para a produção de madeira e de celulose com 12 ou 15 anos, na forma de desbaste, com a retirada de árvores menores. Até o final da década de 1950, 55 espécies de pínus, das 111 catalogadas no mundo, foram plantadas em extensas áreas administradas pelo IF. Vários outros


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FOTOS EDUARDO CESAR

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A escolha dos melhores espécimes de pínus levou à formação de pomares produtores de sementes com árvores selecionadas e clonadas

plantios empresariais, ainda pequenos, e de órgãos de pesquisa estatais foram realizados em São Paulo, no Paraná e no Rio Grande do Sul. Apenas nove se adaptaram bem ao clima e ao solo brasileiro. Duas espécies são norte-americanas, Pinus elliottii e Pinus taeda, ainda hoje as principais representantes desse gênero cultivadas comercialmente no sul e em parte do sudeste do país. As outras são os pinheiros P. caribaea, P. oocarpa, P. kesiya, P. pseudostrobus, P. strobus e P. tecunumanii, originários de países como Nicarágua, Honduras, Bahamas, Cuba, Guatemala e El Salvador, na América Central. Chamados de pínus tropicais, alguns podem ser plantados no Brasil desde o norte do Paraná até a Amazônia. Mas as plantações comerciais só floresceram como negócio a partir de 1966, quando o governo federal instituiu incentivos fiscais para reflorestamento com bons descontos no imposto de renda. Nessa época, além do Pinus, também começou no Brasil a plantação massiva de eucalipto (Eucalyptus sp.). Assim, pínus e eucalipto se transformaram nas madeiras principais de reflorestamento do país, abrangendo 99% da área plantada. São duas espécies de rápido crescimento para fornecimento de madeira e celulose.“Elas tiveram duas grandes funções para o país. A primeira foi evitar o corte de mais árvores nativas e a segunda, a criação de uma base florestal que permitiu a exportação de PESQUISA FAPESP 115 SETEMBRO DE 2005 69 ■


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chapas, aglomerados, compensados e móveis”, diz Francisco Bertolani. Segundo dados da SBS, dos US$ 21 bilhões referentes à produção de madeira, celulose e carvão no Brasil, em 2004, US$ 17,5 bilhões são de florestas plantadas – 61% de eucalipto e 39% de pínus –, os restantes US$ 3,5 bilhões são oriundos do extrativismo legal. Nesses números não estão incluídas, é claro, as árvores retiradas irregularmente da Amazônia, por exemplo. As exportações do setor florestal foram, em 2004, de US$ 5,8 bilhões, a segunda receita agrícola atrás apenas da soja, com US$ 10 bilhões. Do total produzido no país no setor de reflorestamento, 45% (US$ 9,4 bilhões) são relativos à madeira e móveis, 35% (US$ 7,3 bilhões) a papel e celulose e 20% (US$ 4,2 bilhões) à madeira que é transformada em carvão para uso nos fornos das siderúrgicas. Na área de papel e celulose, que só trabalha com árvores de reflorestamento, o pínus representa 30% das plantações. Ele é importante porque contribui com as fibras longas, imprescindíveis na fabricação de papéis, que exigem mais resistência e melhor absorção de tinta. Em relação aos móveis, a madeira de pínus domina a preferência das indústrias.

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balhado no IF, Bertolani começou a fazer experimentos com manejo, principalmente de pínus tropicais, inclusive para produção de sementes selecionadas. Em meados dos anos 1970, o IF iniciou um trabalho pioneiro de melhoramento. “Foi um grupo que reuniu agrônomos, engenheiros florestais e biólogos para desenvolver técnicas de melhoramento da qualidade de espécies produtivas voltadas para o aproveitamento de madeira para serraria e produção de resina”, lembra Araci Aparecida da Silva, pesquisadora do IF desde 1977, na Estação Experimental de Tupi, no município de Piracicaba. “Começamos pela seleção dos melhores indivíduos pelo volume, forma, resistência a pragas e doenças, dentro das técnicas de selecionamento clássico.”

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Florestas plantadas - O plantio em

larga escala aconteceu entre 1970 e 80. Nessa década que se caracterizou pela formação da base florestal, também se intensificaram as parcerias entre empresas, universidades e institutos de pesquisa para aprimorar a adaptação das espécies de reflorestamento. “Os incentivos fiscais distorceram um pouco a cultura do pínus porque começou uma corrida empresarial para iniciar as plantações e importar sementes de vários pontos do mundo. Começaram a plantar pínus subtropical em áreas quentes e pínus tropicais em áreas frias, por exemplo. Aí os pesquisadores tiveram que correr atrás dos problemas”, diz Bertolani, que em 1967 foi contratado como engenheiro florestal pelo grupo Freudenberg, para fazer estudos de manejo e melhoramento de árvores de pínus na plantação que a empresa iniciava em Agudos (SP), uma das primeiras do país. Sob a coordenação do engenheiro florestal Horst Schuckar, que havia tra70

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seleção dos melhores espécimes chegou na escolha de uma em cada 10 mil árvores. “Mesmo árvores retas, sem bifurcação, mas que apresentavam crescimento lento, foram eliminadas”, conta Alexandre Magno Sebbenn, pesquisador e coordenador do programa de melhoramento florestal do IF. “Fizemos um levantamento climático e implantamos testes de progênies e pomares clonais”, diz Araci. Teste de progênies é o que avalia se a constituição genética dos pais é boa ou ruim, a partir das características dos filhos. No pínus essas características são conhecidas quando ele atinge os 10 anos de vida. Já pomares clonais são usados para produzir sementes melhoradas de árvores selecionadas aprovadas nos testes de progênies. Desde os anos 1980 os pesquisadores utilizam a clonagem em laboratório para implantação de pomares. “Nós temos pomares com 3.590 clones para produção de sementes”, diz Araci. “Elas estão agora na segunda geração, coletadas de plantas que já vieram de sementes de pomares selecionados”, diz Sebbenn. Num pomar clonal evita-se plantar clones idênticos próximos para que não ocorra a polinização entre in-

divíduos iguais, o que causaria uma degeneração dos descendentes. Os reflexos da evolução comercial da cultura de pínus começaram a aparecer no final dos anos 1970, quando aconteceram os primeiros cortes. Embora o plantio ainda se aprimorasse, já existia a preocupação em melhorar os produtos resultantes do pinheiro exótico. O principal problema era com a madeira ainda juvenil. Os móveis feitos com esses pínus eram considerados ruins. Um trabalho realizado nessa época pelo IF e pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) desenvolveu vários estudos para a melhora do processamento da madeira com tecnologia para a fabricação de painéis recobertos com resinas usados em móveis e também para a construção de casas. Na década de 1980 várias empresas, tanto reflorestadoras como moveleiras, se estabeleceram em vários pontos da Região Sul, formando pólos industriais importantes em São Bento do Sul (SC) e Bento Gonçalves (RS). O domínio da tecnologia na produção de aglomerados, chapas e painéis de madeira de pínus levou o Brasil a iniciar as exportações de móveis nas décadas de 1990 e 2000. Essa foi a época em que as empresas passaram a utilizar a madeira de melhor qualidade oriunda das árvores que estavam completando 20 anos de cultivo. Breu da resina - Outro ganho econômico, que aconteceu no final dos anos 1980, foi o aumento da produção e a exportação de resina. Atualmente o país produz 95 mil toneladas de resina por ano, segundo a Associação dos Resinadores do Brasil (Aresb), que congrega 60 produtores. Do faturamento de US$ 30 milhões previsto para este ano estão inclusos tanto o produto in natura como os derivados originários da destilação da resina, o breu e a terebintina. O maior produtor brasileiro de resina é o Instituto Florestal, que possui uma área total de 25 mil hectares (ha) com pínus espalhados por várias unidades do estado. Todo ano o instituto faz uma concorrência por meio de edital e vende a resina. A produção na safra 2004-2005 foi de 18 mil toneladas. “Cada árvore dá cerca de 3 quilos de resina por ano”, diz Kronka. “Mas nós temos árvores que produzem até 12 quilos.” Esses exemplares são clonados, mas


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INSTITUTO FLORESTAL

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Plantação de Pinus elliottii do Instituto Florestal no município de Itapetininga, acima. Ao lado, extração da resina do tronco do pínus

nem sempre são garantia de perpetuação das mesmas qualidades. “Sempre aparecem grandes variações nos descendentes, porque a constituição genética é responsável por apenas uma parte da produção de resina, a outra parte é o resultado de aspectos ambientais como temperatura, solo, umidade e altitude”, diz Sebbenn. “Nessa segunda geração já conseguimos ganhos de até 40% em relação à produção original de resina.” Os resultados levaram a uma parceria entre o IF, a Aresb e a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP) em um projeto para a sistematização da clonagem de pínus para resina. “O objetivo é a formulação de um protocolo que possa ser usado pelos produtores para produção e uso do mate-

rial clonado”, diz Eduardo Monteiro Fagundes, diretor executivo da Aresb. A produção de resina começa quando as árvores atingem a idade de 10 anos e seguem até os 30. É feita uma espécie de raspagem, chamada de face, que retira uma parte da casca da árvore. No local é aplicada uma substância ácida que desencadeia uma série de estímulos nas paredes da árvore facilitando o escorrimento da resina. Resina, madeira e celulose fizeram a demanda de pínus crescer 10% ao ano. É 1,8 milhão de ha plantados, sendo o Paraná o maior produtor com um terço do total. Mas ainda é pouco. No início dos anos 2000 já aconteceram os primeiros sinais de escassez de madeira de pínus. “É o começo de um possível apagão florestal”, diz Kronka. Como é

um produto agrícola que precisa de muitos anos para ser explorado, os especialistas já projetam cenários futuros para o país. Eles indicam que até 2020 deverá estar plantado mais 1,9 milhão de ha de pínus para não faltar essa madeira no país. No Brasil, apenas 0,6% do território é usado hoje para reflorestamento comercial, totalizando 5 milhões de ha. O Chile tem 2,6% e a China, 4,7% de florestas plantadas. Dados da Secretaria da Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo indicam que cerca de 10 milhões de ha são oriundos de pastagens e podem ser usados para reflorestamento. É uma forma de aproveitamento que vai causar menos impacto nas florestas nativas e outras culturas agrícolas, que, ao contrário do pínus, exigem solos bem férteis. • PESQUISA FAPESP 115 SETEMBRO DE 2005 71 ■


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TECNOLOGIA

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roduzir suplementos minerais orgânicos que podem ser mais bem absorvidos pelo organismo humano é a perspectiva para 2006 de uma pequena indústria farmacêutica da cidade paulista de Jaboticabal, a Biofarm Química e Farmacêutica. Ao desenvolver os suplementos, ela deverá ser a primeira fabricante nacional desses produtos usados na formulação de medicamentos e na preparação de alimentos industrializados como leite, iogurte, farinha e biscoitos. Atualmente no Brasil são fabricados apenas os suplementos inorgânicos, como sulfato de ferro, cloreto de zinco e sulfato de cobre. Os novos produtos que a Biofarm vai tornar disponível para as indústrias serão produzidos por meio de uma substância chamada quelato, nome dado a um complexo orgânico formado pela reação química entre moléculas, como os aminoácidos de proteínas provenientes da levedura Saccharomyces cerevisiae, e metais, como ferro, cromo, magnésio, cobre, zinco e cálcio. “Acredito que conseguiremos comercializar nosso produto por um preço cerca de 30% mais barato do que os quelatos importados”, diz o químico Ricardo da Silva Sercheli, responsável pelas pesquisas que resultaram no desenvolvimento do novo produto na Biofarm. “No primeiro ano, queremos conquistar 25% do mercado e no segundo, 30%.” O preço do quilo do quelato importado varia de R$ 40 a R$ 100 conforme o mineral utilizado. A fabricação dos inorgânicos é feita no Brasil há

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Suplemento para a saúde

ENGENHARIA DE ALIMENTOS

Empresa desenvolve complexo mineral orgânico usando proteínas presentes em levedura

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Ao lado, preparação de quelato de cobre para ser utilizado na forma de pó (acima), na formulação de medicamentos e na preparação de alimentos industrializados

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muitos anos, misturandose simplesmente o mineral com alguns ácidos. A produção de quelatos, por sua vez, é bem mais complexa. É um sistema que obtém os aminoácidos da proteína e provoca uma reação com os minerais metálicos em reatores. “Até concluirmos nossas pesquisas, não existia tecnologia nacional para produção industrial de quelatos de minerais com as especificações exigidas para uso na indústria farmacêutica e na alimentícia”, diz Sercheli. Para ele, os quelatos apresentam duas grandes vantagens sobre seus similares inorgânicos. A primeira é que a biodisponibilidade de um mineral na forma de quelato é muito maior, até quatro vezes mais. Isso significa que o nosso organismo absorve melhor esse tipo de suplemento do que os metais na forma de sais inorgânicos. A segunda é a redução dos efeitos colaterais causados em algumas pessoas pela ingestão dos suplementos tradicionais, como diarréia, constipação, problemas gástricos e intestinais. Entre os benefícios dos minerais, por exemplo, o cálcio combate a osteoporose, o ferro previne quadros de anemia, o zinco atua como agente antioxidante e o cromo modula a atividade da insulina produzida pelo pâncreas. O problema é que nem sempre se obtém a dose necessária desses minerais nos alimentos consumidos diariamente. A solução são os suplementos minerais, que podem ser administrados como se fossem um remédio. É o caso, por exemplo, das crianças recém-nascidas que possuem um quadro de anemia e precisam tomar doses diárias de ferro. No Brasil existe desde 2002 a obrigatoriedade de adição de ferro biodisponível em farinhas de trigo e de milho. Dessa forma, os produtos derivados como macarrão, pão, doces e bolos possuem suplemento de ferro. “Os suplementos minerais à base de quelatos são evidentemente mais vantajosos, mas a importação tem impedi74

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Preparo de complexo mineral orgânico de ferro e aminoácidos de levedura. Útil na prevenção de anemia

do que eles sejam consumidos pela indústria farmacêutica nacional”, diz Sercheli. Com mestrado e doutorado no Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ele fez pós-doutorado na Universidade da Califórnia, em Berkeley, nos Estados Unidos, onde dedicou sua pesquisa à produção de compostos organometálicos, exatamente a classificação na qual se enquadram os quelatos. De acordo com o pesquisador, não existem estatísticas seguras sobre o volume de suplementos minerais consumidos no país, mas estima-se que apenas uma pequena parcela, da ordem de 15 toneladas por mês – menos de 20% do total –, é orgânica e importada. Para o desenvolvimento dos quelatos de aminoácidos provenientes de levedura, a Biofarm contou com o auxílio financeiro da FAPESP, por meio do Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE). No final do ano passado, a empresa foi uma das 20 selecionadas para receber recursos do Programa de Apoio à Pesquisa em Empresas (Pappe), implantado em vários estados pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) do Ministério da

Ciência e Tecnologia (MCT). Em São Paulo, o programa federal está sendo implementado de forma cooperada com o PIPE, visando ao financiamento a partir da terceira fase, quando o protótipo está prestes a entrar em linha de produção. Nos outros estados, o investimento é usado desde a formulação do produto. No PIPE, a primeira fase é destinada ao desenvolvimento da idéia e a segunda à sua comprovação em laboratório. “Com os recursos do Pappe, de R$ 430 mil, iremos adquirir equipamentos, como reatores industriais vitrificados e construídos com aço inox, para montar uma nova linha de produção”, afirma Naur Bellusci Filho, sócio diretor da Biofarm. “Estamos ampliando a fábrica e construindo uma unidade exclusiva para a produção de quelatos minerais de aminoácidos de levedura. Esse novo setor ficará pronto no início de 2006 e terá capacidade para produzir 11,5 toneladas por mês.” Levedura da cana - Um dos fatores do preço baixo dos quelatos que serão produzidos pela Biofarm é a facilidade na obtenção da matéria-prima para a fabricação do suplemento: a levedura Saccharomyces cerevisiae. Ela é muito utilizada em outros processos industriais, como uma espécie de fermento, como acontece na fabricação de cerveja. A Biofarm vai aproveitar o preço baixo que essa levedura possui quando se torna um resíduo da produção de álcool e açúcar. Em diversos países, como Estados Unidos e China, os maiores fabricantes mundiais de quelato, a produção da levedura é normalmente feita em unidades industriais construídas exclusivamente para esse propósito, o que faz o preço do produto final ser muito mais elevado.


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“Nossa fábrica está situada na região sucroalcooleira paulista, onde existe abundância da Saccharomyces cerevisiae. Essa é uma importante vantagem competitiva para nós”, diz Sercheli. Segundo o pesquisador, a primeira etapa de produção do quelato desses aminoácidos consiste em fazer o isolamento da proteína, uma vez que a levedura apresenta em torno de 40% de material protéico. Depois que a proteína é separada, ela passa por um processo de hidrólise (quebra pela água), que tem como objetivo romper a cadeia de aminoácidos presente na sua molécula. A hidrólise é feita por meio de reações químicas e enzimáticas, cujos detalhes não são revelados pelo pesquisador por se tratarem de segredo industrial. Com a “sopa” de aminoácidos resultante da hidrólise, chamado de hidrolisado protéico, são preparados os diferentes quelatos de minerais. “Já conseguimos fazer quelatos de cálcio, zinco, cobre, magnésio, ferro, manganês e selênio. Esse último foi preparado na forma de complexo, porque não é um metal”, afirma Sercheli. As moléculas do suplemento têm, em média, 80% de aminoácido e 20% de mineral. Todos os quelatos desenvolvidos na Biofarm foram caracterizados em laboratórios da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), da Universidade de São Paulo (USP), em Ribeirão Preto, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), de Jaboticabal, e na Bioagri Laboratórios, um centro de re-

O PROJETO Produção de quelatos de aminoácidos a partir de hidrolisado protéico de Saccharomyces cerevisiae para serem utilizados como suplementos alimentares minerais de alta biodisponibilidade MODALIDADE

1. Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (PIPE) 2. Programa de Apoio à Pesquisa em Empresas (Pappe) COORDENADOR

RICARDO DA SILVA SERCHELI – Biofarm INVESTIMENTO

R$ 272.395,68 (FAPESP) R$ 430.000,00 (Finep)

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ferência privado em análises químicas e toxicológicas, com sede em Piracicaba. Os testes comprovaram que o quelato de aminoácido, cuja forma final é um pó, está dentro das especificações exigidas pela legislação e desejadas pelo mercado. Divisor de águas - O início de produ-

ção dos quelatos de aminoácidos derivado de levedura são um divisor de águas na história da Biofarm. Criada há dez anos, até então ela se dedicava exclusivamente à produção e comercialização de suplementos minerais e medicamentos para a área de saúde animal e à prestação de serviço para outras companhias do setor. A empresa fabrica produtos farmacêuticos em vários formatos: líquido, pó, pomada e injetáveis. São, ao todo, cerca de 50 produtos, como vermífugos, larvicidas, anti-helmínticos, promotores de crescimento e suplementos minerais, destinados a animais de grande porte, como bovinos, caprinos, suínos, eqüinos, e de companhia, gatos e cachorros. Os produtos são vendidos para distribuidores de medicamentos veterinários e diretamente para criadores. A partir do primeiro semestre de 2006, a empresa também vai iniciar a venda de produtos veterinários para países da América Latina. Com uma estrutura empresarial enxuta e um quadro de colaboradores qualificados, com 18 funcionários, a empresa projeta um crescimento de cerca de 40% neste ano. Em 2004 seu faturamento aumentou 33%, mas, se consideradas apenas as vendas dos produtos fabricados, a evolução das receitas foi de 70%. “Estamos muito otimistas com o início de operação da nova unidade de fabricação de quelatos de levedura. Quando ela estiver funcionando para valer, acreditamos que será o nosso carro-chefe. Isso porque os quelatos têm valor agregado mais alto do que os produtos que fabricamos atualmente e nós não teremos concorrentes nacionais”, diz Bellusci Filho, sócio diretor da empresa. Segundo o executivo, já existem negociações com indústrias farmacêuticas e alimentícias nacionais visando ao fornecimento de quelatos minerais de aminoácidos derivados de proteína a partir do primeiro semestre de 2006. •


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TECNOLOGIA

QUÍMICA

Beleza fosca Novo aditivo misturado à borracha sintética garante solados de calçados mais bonitos D INORAH E RENO

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xclusivo de calçados rústicos usados para tarefas pesadas,o solado de borracha ganhou as ruas há alguns anos em modelos masculinos e femininos sofisticados,de conhecidas marcas nacionais e internacionais.Se inicialmente ele era muito brilhante,e identificado com materiais sintéticos como o plástico,hoje é fosco e confunde-se com o couro,uma matéria-prima mais nobre.Para chegar a esse quase mimetismo,um aditivo misturado ao elastômero,também conhecido como borracha sintética,tem papel fundamental.O produto fornecido ao mercado brasileiro provém basicamente de duas empresas,uma norteamericana e outra japonesa.Isso acontece por enquanto,porque a Rhodia Brasil planeja lançar até 2007 um novo aditivo para concorrer com os importados,resultante de um projeto de pesquisa apoiado pela FAPESP na modalidade Parceria para Inovação Tecnológica (PITE) junto com a Faculdade de Engenharia Química de Lorena (Faenquil). O produto está sendo fabricado em escala piloto e testado por empresas clientes da Rhodia,sob a condição de confidencialidade.“Alguns clientes aprovaram o produto e querem saber quando estará no mercado”,relata o químico Leo dos Santos,que participou do

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projeto com bolsa de pós-doutorado da FAPESP e hoje,contratado pela empresa,cuida dos ajustes finais da formulação.O interesse pelo novo aditivo se justifica.Afinal,como o produto será fabricado aqui,terá um preço competitivo em relação aos importados. Gasto energético - A idéia de desenvolver um aditivo para ser misturado a elastômeros surgiu na própria Rhodia para dar um destino mais nobre a um subproduto do fenol,o mon ômero alfametilestireno,uma das mol éculas que formam o polímero do qual se fazem as solas de tênis e sapatos.O fenol é um composto químico que dá início à cadeia da produção da poliamida,mais

O PROJETO Síntese e caracterização de copolímeros de metil-estireno-estireno visando à sua aplicação no encapsulamento de partículas de sílica MODALIDADE

Parceria para Inovação Tecnológica (PITE) COORDENADOR

AMILTON MARTINS DOS SANTOS – Faenquil INVESTIMENTO

R$ 35.850,00 e US$ 1.120,00 (FAPESP) e R$ 64.997,00 (Rhodia)

conhecida como náilon,aplicada em carpetes, roupas íntimas femininas, roupas esportivas,gabinetes de aparelhos eletroeletrônicos e vários outros produtos.Uma parte do alfametilestireno é vendida pura para ser aplicada em adesivos e resinas.O que sobra,e isso representa uma grande quantidade, volta como matéria-prima para a produção do fenol,depois de passar por umprocesso de reciclagem que envolve um grande gasto energético. Além do fenol,a Rhodia tamb ém produz a sílica que é utilizada pela indústria de elastômero como reforço para melhorar as propriedades mecânicas da borracha,garantir a resist ência à abrasão, à tração e ao rasgamento. “Mas,ao incorporar a s ílica à borracha sintética,ocorre um aumento elevado na viscosidade do material,o que dificulta o seu processamento.Por isso é necessário colocar um aditivo para melhorar a fluidez do elastômero”,diz o professor Amilton Martins dos Santos, da Faenquil e coordenador do projeto. Como alguns desses aditivos têm em sua composição o alfametilestireno,Kenneth Wong,um qu ímico que trabalhava na Rhodia em 2001, época em que o projeto começou a tomar forma,sugeriu o aproveitamento integral do subproduto do fenol. Martins dos Santos foi escolhido como coordenador do projeto na faculdade porque,al ém de atuar como con-


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FOTOS MIGUEL BOYAYAN

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Testes avaliam a resistência da borracha dos corpos-de-prova (acima), feitos com um novo aditivo (à esq.)

sultor da empresa, é especialista em uma técnica chamada polimerização em emulsão, a mais indicada para incorporar o monômero alfametilestireno à cadeia de polímero. “O processo de polimerização por emulsão foi originalmente desenvolvido como uma tentativa do homem de imitar o látex de borracha natural”, diz Martins dos Santos. O látex sintético, resultante da dispersão aquosa de partículas de polímero estabilizadas por surfactantes, substâncias químicas que atuam como detergentes, é empregado em diversos setores industriais para fabricar tintas, adesivos, aditivos e outros produtos. No início a proposta era fazer uma partícula de sílica recoberta com o alfametilestireno. Como esse é um estudo que demanda um longo tempo, os pesquisadores decidiram em um primeiro

momento concentrar-se em determinar uma formulação para o aditivo e as melhores proporções das matérias-primas que entram em sua composição. “Na formulação, além das condições de processo, como temperatura e porcentagem da matéria-prima, são os surfactantes corretos, responsáveis por estabilizar o polímero, que fazem a diferença”, diz Richard Macret, diretor de Pesquisa e Desenvolvimento da Rhodia para a América Latina. Escala piloto - Inicialmente, em escala de laboratório, foram produzidos alguns gramas do aditivo. Hoje, eleitas algumas formulações mais indicadas, estão sendo fornecidas para os clientes amostras com 20 quilos do produto, que pode ser misturado a vários tipos de borracha e outros polímeros. De-

pendendo do mercado a que se destina – solas de calçados, pneus para bicicletas e empilhadeiras, esteiras, correias e outras aplicações ainda em estudo –, a formulação tem uma composição diferente. “Temos que ver o impacto desses produtos nos vários mercados”, diz Macret. “E esse é um trabalho relativamente longo.” O setor calçadista é o primeiro da lista. “Já temos a formulação apropriada e agora estamos pesquisando para saber qual o processo mais vantajoso economicamente”, diz Leo dos Santos. A escolha justifica-se porque para a Rhodia esse é um mercado para o qual ela fornece uma gama variada de produtos, que vão desde o tratamento de couro, cola para sapatos, até a sílica para a borracha. No ano passado, as vendas da empresa para o setor chegaram a cerca de US$ 60 milhões, correspondendo a 8% do faturamento total da Rhodia Brasil no ano, que foi de US$ 750 milhões. A meta é crescer 10% nas vendas nos próximos dois anos. A aposta da empresa é que o aditivo poderá ajudar a aumentar ainda mais a participação nesse mercado. Sem contar que o subproduto da produção de fenol, reciclado com um grande gasto energético ou enviado para descarte dentro das normas ambientais, mostrou que pode transformar-se em um novo produto comercial à altura dos importados. • PESQUISA FAPESP 115 SETEMBRO DE 2005 77 ■


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HUMANIDADES

ECONOMIA

REVERSO DA FORTUNA Estudos tentam entender o que faz um rico ser rico

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m um de seus contos de juventude, The rich boy, o escritor americano F. Scott Fitzgerald escreveu que “os ricos são diferentes de mim e de você”. “São mesmo”, alfinetou numa carta seu amigo, o também romancista Ernest Hemingway,“eles têm mais dinheiro”. Esses dois “predicados” dão a eles um terceiro privilégio: os ricos “se escondem” e são muito pouco pesquisados. “Há uma extensa literatura sobre a pobreza no Brasil, mas existem poucos estudos sobre os ricos. Estudá-los é relevante porque eles detêm poder e suas ações afetam uma grande massa de pessoas, inclusive os pobres; por outro lado, eles possuem a maior parte da riqueza do país e uma das formas de melhorar as condições de vida da população mais pobre é a redistribuição das riquezas na sociedade”, explica Marcelo Medeiros, coordenador de pesquisa aplicada do Instituto de Pesquisa Econômica aplicada (Ipea) no International Poverty Centre da ONU e autor da tese de doutorado O que faz os Ricos ricos: um estudo sobre os fatores que determinam a pobreza.A pesquisa será publicada em livro em outubro pela Editora UnB. Para o autor, se conhecemos o grupo que deve receber recursos, pouco sabemos dos que vão cedê-los. Não faltam, no entanto, estatísticas para mostrar que, como diz Medeiros, a pobreza de muitos está diretamente conectada à riqueza de poucos. Basta ler o estudo Atlas da exclusão social no Brasil: os ricos, feito por professores da USP, Unicamp e PUC-SP, que revela que a renda dos 10% mais ricos corresponde a 45% do PIB nacional. A situação piora


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BELMONTE, 1925

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se incluímos nesse cálculo dados sobre o patrimônio: nesse caso o porcentual chega a 75,4% da riqueza total brasileira. Em outros parâmetros, 5 mil famílias (ou seja, 0,001% do total) detêm 3% da renda nacional. Entre os anos 1980 e 1990, o Brasil registrou um aumento no número de ricos, embora tenha havido uma redução no crescimento do país: de 1,8% da população eles saltaram para 2,4%. Mas quem são os ricos? Em seu estudo, Medeiros criou uma linha de riqueza, definida a partir da pobreza e da desigualdade, que estaria em torno de R$ 3,5 mil per capita. Uma família típica de quatro pessoas teria uma renda total de R$ 14 mil. Leve-se em consideração que esses não são os “muito ricos”, mas compõem o grupo de 1% da população que detém 11% da renda. Detalhe terrível: o pobre gasta 32,79% da sua renda com comida e o rico apenas 10,26%, o que mostra que ele paga mais tributos proporcionalmente do que os ricos que vivem com conforto. Milagre - Os dados assustam qualquer corrente econômica.“A péssima

distribuição de renda parece ser uma praga perpétua no Brasil. Ela resistiu aos surtos de crescimento do ‘milagre brasileiro’ e aos efeitos positivos da queda drástica da inflação desde o Plano Real”, observou o ex-ministro e professor da USP Delfim Netto em artigo recente. Os juros altos castigam ainda mais os pobres: toda vez que a taxa se eleva em 1%, a renda do trabalhador cai 1,09%, enquanto os ricos perdem 0,72% dos seus rendimentos. “A política de juros altos tem um efeito devastador sobre a distribuição de renda, mas é menos visível do que os provocados pela inflação”, analisa Márcio Pochmann, economista PESQUISA FAPESP 115 SETEMBRO DE 2005 79 ■


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da Unicamp. Além disso, ele avisa que o pagamento de juros elevados da dívida pública compromete os investimentos na economia real, gerando desemprego e afetando ainda mais os pobres. O dinheiro, então, mais uma vez migra para os ricos. “É importante lembrar que há uma clara interseção entre as elites econômicas e as elites de poder: dessa forma, além de orientar os destinos da economia, eles também influenciam as decisões de Estado e a formação da opinião pública”, nota Medeiros.

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elfim foi preciso: essa é uma “praga” perene. “Mudanças de regime político, fases de euforia e depressão da economia, modernização de valores e costumes, nada disso foi capaz de alterar expressivamente essa segmentação entre uma massa grande de pobres e uma pequena, porém rica, elite”, avalia Medeiros. Em seu trabalho, o pesquisador do Ipea, baseado em dados do IBGE, põe abaixo antigas e arraigadas explicações para a desigualdade social. Algumas dentre elas, inclusive, são aventadas como hipóteses para se acabar com a pobreza. Como o controle da população, a idéia de que os pobres só são pobres porque têm mais filhos do que os ricos. “Apenas 3% das famílias brasileiras têm mais do que três filhos com menos de 10 anos. As taxas de fecundidade estão em patamares baixos. Dizer que o controle da população é solução da pobreza é jogar para os menos privilegiados a culpa por sua situação.” Medeiros observou em suas simulações o que ocorreria se os ricos tivessem mais filhos e os pobres, menos. “O fato de uma família ser metade da família do outro não explica o fato de os ricos terem uma renda 27 vezes maior do que a dos pobres”, alerta. “Não existe nenhuma razão para crer que o tamanho das famílias é o que faz as pessoas serem ricas. A riqueza não é o resultado de um maior controle do número de filhos dos ricos. Justificar a desigualdade nesses termos é dizer que pobre é irresponsável, rico é disciplinado e isso explica toda a diferença entre eles.” Outro mito recorrente, segundo Medeiros, seria o ideal do crescimento econômico puro (ou seja, aquele que aumenta o nível do produto da economia sem mudar sua distribuição) como panacéia para a desigualdade. “Mesmo que o país fosse capaz de manter, por duas décadas, taxas estáveis de crescimento de 4% ao ano, isto é, crescer em mais do que o dobro da velocidade das duas últimas décadas e duplicando o PIB atual, a pobreza ainda incidiria sobre 12% da população.” Assim, para o pesquisador, o crescimento pode ser bom, mas é insuficiente para reduzir a desigualdade entre ricos e pobres. O que os diferencia então? “A forma desigual como os trabalhadores de cada grupo são remunera-

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dos. A média da remuneração por hora trabalhada dos ricos é 9,2 vezes maior que a dos não-ricos. Isso indica que, mesmo que os não-ricos tivessem a mesma composição e organização familiar dos ricos, as desigualdades entre os estratos persistiriam”, diz Medeiros. “Também carece de fundamento a idéia de que muito da riqueza pode ser explicada por jornadas de trabalho mais extensas. Mesmo que os trabalhadores não-ricos aumentassem suas jornadas de trabalho para o nível médio dos ricos, pouquíssimos se tornariam ricos.” Outro mito a ser derrubado é o da educação como forma de abrir as oportunidades de ser rico para todos por meio do trabalho. “As simulações mostram que um nível elevado de educação dos trabalhadores, um alto investimento e de longo prazo, é condição necessária, mas não suficiente para que uma família seja rica”, diz. “Mesmo supondo um aumento significativo do nível educacional dos trabalhadores, não é de esperar grande mobilidade ascendente para o estrato rico.” Relações - Em sua tese, Medeiros ressalta a importância de se levar em consideração fatores externos como a inserção em redes de relações sociais, a posse de capital cultural e a propriedade de recursos produtivos, todos elementos que elevam a remuneração de seu trabalho. Medeiros lembra que, para pobres ou ricos, a renda provém mesmo do trabalho, embora “trabalho” signifique coisas diversas para os dois grupos. Dessa forma, afirma, os ricos têm características que os fazem ser ricos por terem nascido ricos e, com boa chance, continuarem ricos. Eles são mesmo diferentes.“Ainda assim, não devemos ser pessimistas em relação ao futuro, mas enfrentar o fato de que a erradicação da pobreza e a redução da desigualdade só ocorrerão com a redistribuição da renda, ou seja, da transferência de recursos dos mais ricos aos mais pobres”, afirma o pesquisador. “Muitas das pessoas que vão ler esta reportagem fazem parte da elite do 1%, mesmo que não gostem de admitir a idéia. Quase todos os leitores vão fazer parte dos 10% mais ricos. Isso não é um julgamento de valor, mas um fato da nossa distribuição de renda”, avalia. “Medeiros argumenta com razão que para entender a pobreza é indispensável analisar a ponta da pirâmide, os ricos, uma vez que a pobreza no país é resultado da péssima distribuição de renda”, observa Celi Scalon, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), em comentário ao trabalho do pesquisador.“Rejeitando alternativas mais ‘fáceis’ e ‘digestivas’, como controle populacional e crescimento econômico, o autor escolhe um caminho árduo e pouco simpático à elite, que detém não só o poder econômico como o político e o simbólico.” Rafael Guerreiro Osório, do Centro Internacional de Pobreza do Programa da ONU para o Desenvolvimento, concorda. “As soluções viáveis para a redução da pobreza terão que envolver alguma forma de deixar os ricos menos ricos”, nota em análise às hipóteses de Medei-


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Os ricos não se vêem como parte de um todo social

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ros. Flavio Comim, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Universidade de Cambridge, outro analista da tese do pesquisador, ressalta a idéia de que “o envolvimento dos ricos é engrenagem fundamental para a harmonização de interesses sociais e provisão de um Estado de bem-estar social mínimo. Dependemos tanto do Estado quanto do ‘sentimento moral’ dos ricos para progredir na direção de uma sociedade menos injusta e moralmente mais aceitável”. Ameaça - No mesmo conto em que mostra como os

ricos são diversos, Scott Fitzgerald revela o reverso da fortuna: “Eles acreditam, no fundo de seus corações, que são melhores do que os outros, justamente porque as compensações e refúgios da vida foram coisas que nós descobrimos por nós mesmos. Mesmo quando chegam a penetrar em nosso mundo, continuam a pensar que são melhores que o resto do mundo”. Assim, a tarefa proposta por Medeiros não é fácil de ser alcançada. “As elites acreditam que os problemas sociais são as maiores ameaças à democracia brasileira”, observou Elisa Reis em sua pesquisa Percepções da elite sobre pobreza e desigualdade. Fruto de várias entrevistas, o survey de Elisa, feito para o Iuperj, revelou que a educação é apontada pelos ricos como o caminho mais adequado para dotar os desprivilegiados de recursos. Com melhor educação, os pobres teriam chances de competir por um lugar melhor na estrutura social, sem que houvesse necessidade de custos para os não-pobres. O trabalho de Medeiros já mostrou a falácia dessa idéia. Seja como for, para os ricos, a culpa da miséria é do Estado. Segundo o estudo de Elisa, as elites “acre82

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ditam que as coisas poderiam mudar se houvesse vontade política e se o Estado cumprisse o seu papel”. A pesquisadora ressalta que os resultados poderiam fazer crer numa consciência social elevada dos ricos, já que os problemas sociais estariam no topo de suas preocupações. O que poderia, segundo ela, levar a uma avaliação errônea de que a nossa elite desejaria repetir aqui o que os ricos dos países desenvolvidos fizeram na forma de soluções coletivas públicas (reforma agrária, educacional etc.) para a resolução da pobreza na Europa e a consolidação do Welfare State. “No entanto, isso não procede. Falta uma noção de responsabilidade social entre os ricos. Aparentemente, eles não se vêem como parte de um todo e nem percebem o Estado como parte da sociedade, pois, ao responsabilizá-lo pela pobreza, as elites se eximem da responsabilidade coletiva”, avalia. “É quase um consenso entre os ricos que o Estado é e deve ser o responsável pelo combate à pobreza. Essa percepção é tão difundida nesses grupos quanto a idéia de que a liberação do comércio, a privatização das empresas estatais e o encolhimento do Estado são transformações extremamente positivas”, conclui o estudo de Elisa. Os pobres brasileiros, por sua vez, reforçam a “boa vida” dos ricos e a consideram justa, como nota o estudo de Celi Scalon sobre o “jeitinho brasileiro” de conviver com as desigualdades de renda. “Os brasileiros têm grande apreço pelas credenciais e atribuem um peso importante às qualificações profissionais como recurso para aquisição de status”, analisa a professora. “Nesse sentido, altos salários são justificáveis quando vinculados ao mérito indi-


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Na sua história o Brasil só cresceu com desigualdade social

vidual (esforço, qualificação, inteligência, educação) e, portanto, a desigualdade de renda é moralmente ou eticamente legitimada”, observa Celi. Na mesma pesquisa, a autora descobriu que os brasileiros justificam as desigualdades de renda quando as reconhecem como necessárias para a prosperidade do país. “Esse tipo de legitimação das desigualdades faz lembrar a lógica que imperou no Brasil no período da ditadura militar, quando se afirmava que era necessário primeiro fazer o ‘bolo’ crescer para depois dividi-lo. Tudo indica que essa crença permanece ainda nos dias atuais.” Os mitos descritos por Medeiros ainda sobrevivem. Declínio - Nem todos, porém, concordam com o

pesquisador. Cláudio Dedecca, economista do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do trabalho (Cesit) e professor livre-docente do Instituto de Economia da Unicamp, em comentário ao estudo dos ricos, argumenta que nos últimos 25 anos a economia nacional vem sofrendo um declínio do produto per capita gerado pelos trabalhadores brasileiros economicamente ativos, ou seja, há uma queda na produtividade social média. “Portanto, distribuir renda nas condições atuais da economia brasileira permitirá, no máximo, reduzir o grau de pobreza e diminuir a defasagem em termos de bem-estar da população pobre brasileira, mas não permitirá o seu ingresso no padrão de bem-estar que a população de menor renda de outros países alcançou, como, por exemplo, na Coréia, Cingapura, Taiwan ou Tai-

lândia”, afirma. Para Dedecca, é preciso reconhecer que o Brasil de hoje é um país pobre e que se houve um tempo em que podíamos falar em distribuição de renda essa discussão ficou nos anos 1970, quando a economia brasileira vivia um momento de crescimento econômico e de elevação da produtividade. “Mesmo considerando a relevância das políticas distributivas por ele mencionadas, elas tenderiam à inviabilidade em um contexto de queda de produtividade média social como do Brasil de hoje”, nota o economista. Mas há ressalvas, mesmo para quem também preconiza a importância do “aumento do bolo”. Para Luiz Gonzaga Belluzzo, titular do Departamento de Economia da Unicamp e vencedor do Prêmio Juca Pato deste ano, é preciso tomar cuidado com o tipo de crescimento por que se vai optar. “Em toda a sua história, o Brasil cresceu com aumento de desigualdade social. Isso não é tolerável hoje. Se o país vai crescer, há a exigência de que esse padrão não se repita”, alerta. Levando-se ou não em conta o crescimento, a distribuição de renda, para além dos mecanismos tributários, precisa de mudanças não apenas entre as elites, mas, principalmente, entre a massa trabalhadora. “Mudanças ocorrem como fruto de pressão. Trata-se também de pensar como estimular a organização política da população mais pobre para que ela exija as alterações que julgar necessárias”, avisa Medeiros.“Um governo que se interessa por ações distributivas é um governo pressionado para isso, um governo que sabe que, sem isso, não existirá um próximo mandato.” • PESQUISA FAPESP 115 SETEMBRO DE 2005 83 ■


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Filme de Leni Riefenstahl ajudou a construir imaginário nazista com suas imagens de felicidade

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az parte do mecanismo de dominação impedir o conhecimento dos sofrimentos que ela acarreta, e há uma linha reta que conduz do evangelho da alegria da vida à construção de matadouros humanos tão longínquos na Polônia que qualquer Volksgenosse pode se persuadir de que não ouve os gritos de dor das vítimas”, escreveu o filósofo alemão Adorno em Mínima moralia. Ninguém rezou melhor por esse evangelho do que a cineasta Leni Riefenstahl (1902-2003), em especial em O triunfo da vontade (1935), “documentário” sobre o VI Congresso do Partido Nacional-Socialista, de 1934. Nele, Hitler é o grande “ator”, o herói de uma massa agora disciplinada e feliz, renascida das cinzas, “16 anos após o início do nosso sofrimento, 19 meses após o início do renascimento alemão (Hitler ascendeu ao poder em 1933)”, como escreve a cineasta nos créditos iniciais do filme, dedicados por Leni Riefenstahl “ao meu amado Führer, com grande admiração e devoção”. “O que chamou minha atenção nas imagens de O triunfo da vontade foi a íntima relação que se podia estabelecer entre certos aspectos do mundo moderno (a produção em larga escala de imagens), entre uma concepção de beleza (em que ordem, harmonia e falta de conflito se misturam), entre o desejo de retorno ao passado (como uma busca de certo sentimento de pertencimento a um todo) e, por fim, entre tudo isso com a barbárie”, explica Mauro Rovai em Imagem, tempo e movimento: os afetos alegres no filme O triunfo da vontade, uma notável análise da obra de Riefensthal pelo prisma da geração incessante de clichês de felicidade e alegria, em que Hitler aparece como o líder político transmutado, pelas lentes da cineasta, em ator no papel de herói. “O cinema será o mais forte pioneiro e o mais moderno porta-voz de nossa era, capaz de capturar o espírito da época e levar a Alemanha a tomar consciência de sua identidade”, disse Goebbels, o ministro da Propaganda do Reich, em discurso em 1933. Dançarina, atriz de poucos dotes (além dos físicos, é claro), diretora de seis filmes e, no fim da vida, fotógrafa de comunidades africanas (que mostrou com a mesma estética fascista de Olympia, seu filme sobre as Olimpíadas de 1936, em Berlim), mergulhadora, Riefensthal, como ela mesma se proclamou em sua

autobiografia, foi mulher de várias vidas. Mas, infelizmente, de uma coerência notável. “A realidade não me interessa. Sou espontaneamente atraída pelo que é belo, harmônico, forte, saudável, vivo. Eu busco a harmonia sempre e quando a encontro fico feliz”, afirmava. Não foi por acaso que o próprio Hitler a escolheu para filmar o VI Congresso do partido na cidade medieval, cara aos nazistas, de Nuremberg, berço da “verdadeira cultura germânica”. E dos seus piores valores: foi lá que foram proclamadas as infames leis raciais contra os judeus. É num dia ensolarado que o avião do Führer chega à cidade, após furar as nuvens e descer como um deux ex machina. “Riefensthal apresenta o VI Congresso como uma fábula, em que o herói, após ter triunfado sobre os inimigos, vem para relembrar e festejar a vitória no local sagrado em que ficaram preservadas as tradições”, diz Rovai. O filme mostra a chegada de Hitler a Nuremberg, saudado por multidões sorridentes e gratas, os desfiles noturnos com tochas das tropas SA, o cotidiano de união das multidões que acorreram para a reunião, os discursos sobre “paz” e “ordem” do ditador para operários, soldados e a Juventude Hitlerista. O talento de Riefensthal, intuitivo (ao contrário, por exemplo, do teórico contraponto socialista Eisenstein, lembra Rovai), foi justamente transformar um encontro político em espetáculo. “O filme é um marco cinematográfico de outra ordem. Por meio de O triunfo da vontade é possível ver a incômoda aproximação entre, de um lado, a celebração da força de liderança de Hitler e a lealdade de seus seguidores, elementos que remetem ao período histórico marcado pelo ódio ao diferente e pelo genocídio, e, de outro, a felicidade de uma população que o recebe em festa”, nota o autor. “Não há uma cena ensaiada. Tudo é verdadeiro. É a história pura”, dizia Riefenstahl de seu “documentário”. “O triunfo representa em si uma transformação radical da realidade: a história se transforma em teatro. O Congresso de 1934 foi organizado em parte pela decisão de se filmar O triunfo e, assim, o evento histórico passou a servir como um set da filmagem de algo que assumiria o caráter de um documentário autêntico. O filme não documenta o real, mas é a razão pela qual a realidade foi construída e, eventualmente, a supera”, observou Susan Sontag em artigo sobre a cineasta. Nesse contexto, a cidade de Nuremberg pode ser vista como a cidade ideal de um conto de fadas.“Pode-se assistir ao filme de Riefensthal como PESQUISA FAPESP 115 SETEMBRO DE 2005 85 ■


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a parte final de uma história infantil em que o príncipe vem selar a sua aliança com a tradição numa cidade protegida por nuvens e repleta de torres”, concorda Rovai. “A forma como a cidade é filmada daria a Nuremberg, na tela do cinema, uma atmosfera de celebração da harmonia e da ordem,diversa da arquitetura assustadora sugerida por alguns filmes das décadas passadas, como os chamados “expressionistas”. Em lugar de Caligari, Hitler. “As reuniões com massas causavam forte impressão sobre as pessoas, pois a visão de homens uniformizados marchando disciplinadamente poderia oferecer o refúgio no grupo ante as ameaças de instabilidade social e insegurança. Naquele momento, o que interessava era divulgar a ‘mensagem’ da Alemanha pacífica e pacificada sob Hitler”, explica o pesquisador. Segundo ele, nesse mundo criado por Riefenstahl, bem a gosto do nazismo, tudo era inocência e não havia conflitos (afinal, o herói já triunfara), numa combinação perfeita com “a visão de mundo anticapitalista romântica, que investia as concepções nacional-socialistas.” O caráter é sempre reacionário e regressivo, como um conto de fadas em que a aposta era: com Hitler os problemas e conflitos da República de Weimar terminariam. “O Triunfo é um evento encenado como espetáculo e com uma dramaturgia que promete um final feliz. Afinal, era a celebração da negação da própria subjetividade em troca da segurança oferecida pela obediência”, nota o autor. “Além disso, o filme toca também na incapacidade de as pessoas lidarem com a própria angústia, em boa medida relacionada ao fato de a so86

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ciedade produzir riqueza, mas igualmente desigualdade e exclusão. Sem falar nas explicações simplificadas que apontam no outro, na diferença, a razão das mazelas do presente e na aposta no entretenimento como substituto do sonho de felicidade ou no comprometimento com a participação dos eventos de massa como sinônimo de alegria.” Nisso, aliás, se pode ver o talento estético e nada ético de Riefensthal. Suas filmagens das massas, uniformes, formando figuras geométricas de grande precisão e em profusão, nunca deixam de lado o rosto anônimo, enquadrado em close. “Dessa maneira, o ‘anônimo’, no cinema, poderia observar a si mesmo em meio à multidão”, analisa Rovai. Para ele, é impressionante como a cineasta conseguiu, ao contrapor a massa e o rosto de Hitler, destacar a nação que a ele se entrega.

Para tanto, foram 30 câmeras e 120 assistentes, entre eles 16 cinegrafistas, muitos vestidos em uniformes das SA para “desaparecer” em meio à multidão. Além disso, Riefensthal contou com a ajuda do arquiteto favorito de Hitler, Albert Speer, que não apenas construiu cenários e armações para que ela pudesse filmar (como, por exemplo, uma enorme edificação vertical que permitiu a ela retratar o desfile das tropas diante de Hitler no Luitpoldstadium), como também participou da encenação de vários dos desfiles, incluindo-se a célebre “catedral de luz”, de onde o Führer faz seu discurso mais importante para os membros do partido. “Nesse ponto percebe-se como Hitler deixou nas mãos de Riefensthal a tarefa de adequar a sua imagem ao aparelho e à tela. Os planos em que ele aparece só vieram a ganhar significado no


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pela cidade, mostrando torres, velhos telhados, chaminés fumegantes, construindo uma idéia de calma e felicidade imemoriais”, lembra o autor. No plano final, continua, duas torres vão sendo substituídas, aos poucos, por imagens de um acampamento de militantes que suscita a idéia de precariedade, de algo a ainda ser construído e acabado. “Na junção desses dois planos, Riefensthal mostra uma concepção de futuro em que o tempo presente, marcado pela precariedade, mas também pelo triunfo do líder, está justaposto à imagem do passado imemorial, um passado sem história que se localiza em Nuremberg.” “Ao fundir as imagens do passado imemorial e o presente em construção, o filme parece atualizar uma imagem na qual o futuro, que não se conhece, mas se espera, é produto de um pretérito seguro justaposto ao presente no qual as pessoas estão inseridas e do qual nada esperam, pois ele é assustadoramente precário e incerto”, analisa o pesquisador. Se essa é a imagem do futuro ideal, Hitler é o guia para ele. “No cinema, esse vínculo é construído pela imagem, tempo e movimento”, diz Rovai. Como diz um personagem de Parsifal, ópera de Wagner, tão amado pelo Führer, “o tempo se transforma em espaço”. Pouco anos mais tarde, o espaço gerado por esse tempo teria outros nome e objetivo: o lebensraum, o “espaço vital” que, dizia o ditador, os arianos germânicos necessitavam. Para conquistá-lo era preciso a guerra. Basta dos tempos de paz. A vontade que triunfou foi outra. Muito mais funesta. • REPRODUÇÃO

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momento da montagem, tarefa exclusiva de Riefenstahl. Daí, então, a onipresença da diretora.” Ou, nas palavras da cineasta: “Fascinava-me que eu podia tudo com a edição. A sala de montagem se transformou para mim num laboratório mágico”, escreveu em sua autobiografia. Sontag alerta para o fato, terrível, de como O triunfo ainda conserva a sua magia negra em funcionamento, por mais que se abominem os resultados do trabalho dos que estão em cena na tela. “Não se trata apenas da brutalidade e do terror, mas de ideais que persistem ainda hoje sob outras bandeiras, como o de vida como arte, culto à beleza, fetichismo da coragem, dissolução da alienação em sentimentos extáticos de comunidade, repúdio ao intelecto e amor à família do homem.” Fascinante fascismo. “Tais valores são capazes de comover

muitos ainda hoje, pois, como nota Sontag, há nas obras de Riefensthal menos gênio e mais a presença desses elementos”, avalia Rovai. O outro ingrediente nesse caldeirão de bruxas é a mistura imagem, movimento e tempo.“Num momento do filme, a câmera passeia

O PROJETO Imagem, tempo e movimento: os afetos alegres no filme O triunfo da vontade MODALIDADE

Auxílio-Publicação PESQUISADOR

MAURO ROVAI – USP INVESTIMENTO

R$ 5.000,00 (FAPESP)

C ARLOS H AAG PESQUISA FAPESP 115 SETEMBRO DE 2005 87 ■


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O livro das mil e uma noites ganha tradução direta do árabe

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ILUSTRAÇÕES REPRODUÇÃO DO LIVRO AS MIL E UMA NOITES/ J. CARELMAN, COLAGENS, 1958

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unca será contada provavelmente uma das mais incríveis histórias do mundo da literatura. E, se isso acontecer, não passará de mera criação ou invenção. Trata-se de relatar qual a origem, o(s) autor(es) e quando exatamente foi escrito O livro das mil e uma noites, a mais popular e influente obra de ficção da humanidade em todos os tempos. E uma das mais antigas – os registros mais distantes no tempo são do século 3 d.C. Quase da mesma idade do Novo Testamento da Bíblia. A verdade se perdeu no tempo. A curiosidade, no entanto, não se restringe à autoria e ao contexto de sua criação. Ao longo de mais de um século, somente no Brasil foram editadas próximo de cem edições diferentes do livro das mais diversas formas: mutiladas, censuradas, resumidas, modificadas ou adaptadas, por exemplo, para o universo infantil. Sem contar os problemas mais ou menos graves de tradução. Uma curiosidade data de 1882, quando Machado de Assis prefaciou uma edição de Contos seletos das mil e uma noites, com tradução de Carlos Jansen, a partir da edição em alemão de Franz Hoffmann. Nunca, entretanto, a obra foi traduzida diretamente do árabe no Brasil. Problemas que acontecem em todo o Ocidente por causa de inúmeras dificuldades – culturais, históricas etc. Nos últimos anos, porém, tem ocorrido na Europa um esforço para buscar os textos mais antigos e originais possíveis. Nesse sentido, o leitor


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brasileiro pode se sentir um privilegiado. Graças ao empenho pessoal do tradutor Mamede Mustafa Jarouche, acaba de sair em português (Ed. Globo, 424 págs., R$ 55,00) o primeiro de cinco volumes traduzidos a partir dos três tomos do manuscrito árabe arquivado na Biblioteca Nacional de Paris, considerada a fonte mais valiosa para a edição do livro. À semelhança dos contos de fadas para crianças, com o O livro das mil e uma noites o leitor adulto aprende o caminho exemplar da vida por meio do terror, da piedade, do amor e do ódio. Como todo mundo sabe, trata-se da história do rei Shahriyár que, depois de descobrir que sua mulher o traía com um escravo, decidiu casar toda noite com uma nova mulher e matá-la no dia seguinte. O terrível ritual só é interrompido com a chegada de Shahrazád, filha do vizir mais importante do reino. Culta e inteligente, ela passa a contar centenas de histórias que prendem a atenção do marido até a noite seguinte, o que evita sua morte. Faz isso durante 1.001 noites. Nesse período, seduz o soberano até que ele se apaixona por ela. O primeiro volume reúne as 170 primeiras noites. Jarouche comparou os manuscritos usados com quatro das principais edições árabes do livro, com o propósito de suprimir lacunas dos textos originais e apontar variantes de interesse para a história das modificações operadas no livro. São elas: a de Breislau (1825-1843), de Bulaq (1835), a segunda edição de Calcutá (18391842) e a de Leiden (1984). Utilizou ainda quatro manuscritos do chamado ramo egípcio antigo. Se não bastasse, escreveu uma saborosa e detalhada introdução que conduz o leitor à fascinante história do livro. Um trabalho de paixão, empenho e competência que bem poderia ser exportado para outras línguas ocidentais. A intrincada história das supostas fontes em persa e sânscrito que teriam sido a base para o livro é tratada no ensaio também. O tradutor teve o cuidado de fazer centenas de notas com aspectos lingüísticos, referências aos manuscritos e edições árabes e anexos com traduções de passagens que possuem mais de uma redação. Influência - Tudo isso ajuda a compreen-

der melhor a influência do livro na lite90

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ratura popular ao longo dos séculos tanto no Oriente quanto no Ocidente, cuja dimensão ainda espera voluntários para ser iniciada. “Isso se deve também às limitações de conhecimento, pois um tal repertório exigiria um saber muito vasto, que certamente poucos detêm, de muitas literaturas em muitas épocas”, avalia Jarouche. Algumas pistas podem ser apontadas nesse sentido. Leon Kossovitch, professor do curso de filosofia da USP, observa que, na ficção dos iluministas, por exemplo, muitas coisas que parecem ser apropriação de As mil e uma noites podem ser efeito da leitura de textos mais antigos que circulavam naquela época. “Eis aí um assunto que exigiria formação de equipes”, acrescenta Jarouche. Apesar de ressaltar que a expressão “influência” pode ser entendida como uma reivindicação de precedência, de prioridade, que seria difícil sustentar, a arte de contar histórias tem relações diretas

com o O livro das mil e uma noites. “Não saberia, contudo, precisar tais relações ou se suas histórias são resultado dessa habilidade ou se contribuíram para desenvolvê-la.” Pela pesquisa de Jarouche, existem em inglês quatro traduções do livro – Lane, Payne, Burton e Haddawi. E pelo menos duas em espanhol – Vernet e Cansinos-Aséns. Foi a partir do século 18 que as histórias do livro começaram a ser traduzidas para inúmeros idiomas e se tornaram tão populares que Jorge Luis Borges as considerava ‘‘parte prévia de nossa memória’’. “E com razão, pois quem não conhece Ali Babá, Aladim, ou Sindbad (melhor transcrição do que Simbad), o marujo, personagens da memória de todas as crianças?”, pergunta o tradutor. Desde o século 18, vários escritores importantes e distintos entre si inspiraram-se no O livro das mil e uma noites. Como Voltaire, Macaulay, Edgar Allan Poe, Marcel Proust, Borges, Jonathan Swift e Naguib Mahfuz. “É difícil encontrar boas narrativas que não tenham, de um modo ou outro, sofrido a influência dessa obra.” Embora Machado de Assis tenha saudado o livro, sabe-se que letrados brasileiros consumiram a obra desde muito antes, a partir da tradução de Galland. Circulou em português inicialmente a versão do texto de Mardrus, do final do século 19, publicada na década de 1960 pela Saraiva, com ilustrações de Aldemir Martins. Outra que se tornou popular foi a do Clube do Livro na década de 1950. Por fim, saiu a do arabista René Khawam, pela Brasiliense, em 1990. Pela sua pesquisa, entre as versões infantis, algumas são assinadas por escritores como Ferreira Gullar, Carlos Hei-

O PROJETO A retórica nas transformações narrativas do Livro das mil e uma noites MODALIDADE

Bolsa no Exterior COORDENADOR

MAMEDE MUSTAFA JAROUCHE – USP INVESTIMENTO

R$ 71.366,00 (FAPESP)


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tor Cony e Sabá Gervásio. As “adultas”, sem exceção, foram feitas do francês. É fácil perceber essa influência ainda em Raduan Nassar, Milton Hatoum, Nélida Piñon, Lima Barreto etc. Isso sem falar do “efeito dominó”, como no caso de Machado de Assis, que teria tirado a idéia inicial de Dom Casmurro de uma obra do abade Prevost, a qual por sua vez lhe fora sugerida pela tradução de Galland de As mil e uma noites – que, por sua vez, não existiria sem o original árabe, como observa Gilberto Pinheiro Passos, professor do curso de francês da USP. O tradutor lembra que a versão de Galland não esclarece qual o texto serviu de base, uma vez que o trabalho, datado do início do século 18, foi sofrendo modificações perpetradas por editores. “A de Mardrus nem se dá o trabalho de esclarecer qual a sua fonte. E na de R. Khawam faltam trechos, como pude comprovar, e as notas, poucas, foram eliminadas, numa mesquinharia característica de certa espécie de editor brasileiro, que felizmente está fadada ao desaparecimento.” Problemas - Até então a edição mais próxima do original tinha oito volumes. Era a da Brasiliense, baseada na versão francesa de Khawam, sírio de Alepo. Jarouche considera esse um trabalho meritório, mas incompleto e cheio de problemas. Como ter suprimido a divisão do livro em noites. “Ainda que a partir de certo ponto as falas dessa divisão se tornem absolutamente estereotipadas, quase mecânicas, e mesmo que se leve em consideração que alguns manuscritos apresentam numeração caótica, não me parece correto suprimir uma das principais características do livro.” Não se trata, porém, de um procedimento inovador, pois o primeiro tradutor do francês, Galland, já havia adotado tal critério. Outra deficiência de Khawam teria sido a adoção de critérios temáticos um tanto quanto discutíveis. Em francês, seu trabalho foi organizado em quatro volumes e os três primeiros correspondem ao manuscrito mais antigo e o último inclui histórias de fonte diversa, que ele decidiu que constituem as noites “originais”. Além disso, o leitor não encontra na coleção as histórias de Ali Babá, Aladim e Sindbad.

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Jarouche explica que os dois primeiros heróis não possuem original árabe anterior ao texto de Galland. E não constam de nenhuma edição árabe das Noites. Galland os teria ouvido de um sírio, fez a tradução e os incorporou a seu trabalho. A história de Sindbad está presente nos manuscritos tardios das Noites e foi acrescentada às edições impressas. Faz parte hoje do cânone do livro. “Não direi que a tradução de Khawam é incompleta, porque isso seria injusto. Lembro apenas que, de acordo com os critérios que ele estabeleceu, somente entraram ali os textos ‘mais antigos’, os do ramo sírio, mais três ou quatro outras histórias que ele considerou serem também antigas.” Além de tradutor, Jarouche é doutor em letras e professor de língua e literatura árabes da Universidade de São

Paulo (USP). Estudou e trabalhou na Arábia Saudita, Iraque, Líbia e Egito, onde fez pós-doutorado. Do árabe, além de textos esparsos, já traduziu As cento e uma noites e O livro de Kalila e Dimna. Somente os dois primeiros volumes de O livro das mil e uma noites consumiram dois anos de intensa dedicação. A expectativa é de que os outros três sejam concluídos até 2007. Embora a tradução de fato tenha começado em 2003, faz já alguns anos que ele pesquisava sobre o livro. Em 2000 passou temporada de um ano no Cairo como bolsista de pós-doutorado da FAPESP. “Acho importante destacar isso para não parecer que se trata somente de uma tradução a seco.” Durante essa experiência encontrou um manuscrito, cuja data corresponde ao ano de 1808, que tinha 1007 noites. •


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RESENHA O advogado da verdade desinteressada Em coletânea de ensaios, biólogo da Universidade de Oxford analisa temas da atualidade sob o ponto de vista científico R ICARD O Z ORZET TO

R

ichard Dawkins não é, de fato,advogado.Nem mesmo parece ter apreço pela profissão,como dá a entender em uma coletânea de ensaios escritos por ele nos últimos 25 anos e recém-publicada no Brasil sob o título de O capelão do Diabo.Mas ele próprio se denomina advogado da verdade desinteressada quando define seu papel de professor de Compreensão Pública da Ciência,a c átedra que assumiu em 1995 na Universidade de Oxford, Inglaterra,como resultado da carreira de divulgador de ciência erigida em paralelo à de biólogo evolucionista. E a defesa da verdade científica e racional é o que Dawkins faz com estilo mordaz,quase agressivo,em seus comentários sobre temas da atualidade. É assim quando trata da polêmica sobre os organismos geneticamente modificados ou quando justifica a ineficiência e a crueldade da seleção natural no capítulo que dá nome ao livro,uma express ão que tomou emprestada do próprio naturalista inglês Charles Darwin,autor da Teoria da Evolução das Espécies. Em uma carta escrita em 1856 a um amigo próximo, o botânico Joseph Hooker,Darwin afirma: “Um livro e tanto escreveria um capelão do Diabo sobre os trabalhos desastrados,esbanjadores,ineficientes e terrivelmente cruéis da natureza!” Para Dawkins, é compreensível que seja mesmo assim quando se leva em consideração o gigantesco processo de tentativa e erro da seleção natural que levou à existência dos seres vivos atuais.Mas,cr ê, há uma compensação.A felicidade da seguran ça do mundo proposto pelas diferentes religiões é substituída pela felicidade de saber que a existência é “temporária e,por essa razão,ainda mais preciosa ”. Na vasta gama de assuntos que aborda no livro – das terapias alternativas à influência obscurantista das religiões ou o especiecismo,atribui ção de status diferentes às diferentes espécies animais do planeta –,Dawkins chega a ser ainda mais ácido em textos, às vezes,tortuosos. Mas esse tom não prevalece nos 32 ensaios do livro.Os artigos da seção “Toda a África e seus prodígios estão dentro de nós”,em que comenta livros sobre comunidades no continente africano e relembra sua própria infância no Quênia, são mais delicados e contemplativos.Seu estilo provocativo é aplacado também no texto em que

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relata a troca de correspondências com o biólogo evolucionista norRichard Dawkins te-americano Stephen Jay Gould, da Universidade Harvard. Cia. das Letras Apesar da rivalidade entre os 464 páginas / R$ 53,00 dois evolucionistas,motivada por interpretações diferentes da Teoria da Evolução,Dawkins escreveu a Gould em 2001 propondo que assinassem em conjunto uma carta destinada ao editor da New York Review ofBooks na qual explicariam por que se recusavam a participar de debates com os defensores do criacionismo,a doutrina segundo a qual o mundo e seus seres vivos foram criados do nada por um Deus.Nessa carta – que não chegou a ser concluída nem publicada,em conseq üência da morte de Gould em 2002 –,eles justificavam:a presen ça de cientistas sérios nesses debates seria explorada como uma forma de reconhecimento à importância das idéias criacionistas. A filosofia que acompanha o biólogo de Oxford na busca da verdade científica torna-se evidente no último ensaio do livro, “Boas e más razões para acreditar”, carta que o biólogo endereça a sua filha,Juliet,na data de seu décimo aniversário,em 1995.Em uma exposi ção de rara clareza,ele apresenta o m étodo científico e o principal aspecto que o distingue do que considera obscurantismo religioso:a observa ção de evidências que qualquer pessoa tem a liberdade de examinar e reexaminar sempre que o desejar. Na mensagem de tom paternal e delicado,Dawkins indaga a sua Juliet: “Você já se perguntou alguma vez como é que sabemos as coisas que sabemos? Como é que sabemos,por exemplo,que as estrelas,que parecem minúsculos furinhos de alfinete no céu, são na verdade enormes bolas de fogo como o Sol e se encontram muito,muito distantes? ” E afirma: “A resposta a essas perguntas se dá ‘pelas evidências’”. Após breve detalhamento sobre o que são evidências e como os pesquisadores chegam a elas,Dawkins adverte a filha: “Mas agora que já lhe falei das evidências,que s ão uma boa razão para acreditarmos em alguma coisa,quero alert á-la contra três razões indevidas para acreditar no que quer que seja. Elas são chamadas de ‘tradição’, ‘autoridade’ e ‘revelação’”.Esses tr ês elementos encontrados em toda e qualquer religião contribuem para a doutrinação do pensamento que se inicia na infância e,segundo o bi ólogo de Oxford, é “responsável,no final das contas,por boa parte dos males que há no mundo”. O capelão do Diabo


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LIVROS O Museu Paulista

Memórias

Ana Claudia Fonseca Brefe Unesp 336 páginas, R$ 48,00

Visconde de Taunay Iluminuras 592 páginas, R$ 62,00

Situado próximo do lugar onde teria se dado o celebrado grito da Independência,o MuseuPaulista, conhecido como Museu do Ipiranga, nasceu para ser um marco da importância paulista na história brasileira.Mas,muito mais do que um monumento,ele é um grande museu e sua atual conformação se deve ao trabalho de Affonso d’Escragnolle Taunay,que foi diretor da instituição entre 1917 e 1945.Foi durante a sua gest ão que o lugar passou de museu naturalista a museu histórico.

Um panorama esplendoroso e preciso do Império,escrito pelo autor de Inocência.Destaque para a edição caprichada de Sergio Medeiros, um especialista em Visconde de Taunay.Escritas entre 1890 e 1899,anos que antecederam sua morte,t êm o frescor de um diário,onde n ão faltam “fofocas” elegantes sobre a Corte.Mas as mem órias são mesmo uma história do incipiente Exército brasileiro e de seus comandantes. Iluminuras (11) 3068-9433 www.iluminuras.com.br

Editora Unesp (11) 3242-7171 www.edutoraunesp.com.br

Estado e oposição no Brasil (1964-1984)

A civilização do Ocidente medieval Jacques Le Goff Edusc 400 páginas, R$ 55,00

Maria Helena Moreira Alves Edusc 424 páginas, R$ 53,00

Um dos mais notáveis medievalistas ainda em atividade,o franc ês Jacques Le Goffmostra como a Idade M édia, “período em que nosso tempo prefere reconhecer nossa infância,foi o verdadeiro come ço do Ocidente atual, qualquer que tenha sido a importância da herança judaico-cristã, greco-romana, bárbara e tradicional que a sociedade medieval escolheu”,numa mistura de rara intelectualidade e sabor literário.

O estudo,denso e bem documentado, analisa o desenvolvimento da democracia brasileira entre os períodos críticos de 1964,ano do golpe,e 1984,quando se encerrou o ciclo do regime militar.A pergunta que a pesquisadora responde,a partir da perspectiva do momento presente,é “o que conseguimos,o quanto avançamos,quais são as seqüelas que permaneceram em nossa sociedade desse longo período de ditadura”. No centro da análise de Maria Helena,a Doutrina de Segurança Nacional.

Edusc (14) 3235-7111 www.edusc.com.br

Edusc (14) 3235-7111 www.edusc.com.br

Nem do morro nem da cidade: as transformações do samba e a indústria cultural (1920-1945) José Adriano Fenerick Annablume/FAPESP 282 páginas, R$ 35,00

Joaquim Nabuco:diários (volumes 1 e 2) Prefácio e notas de Evaldo Cabral de Mello Bem-Te-Vi Produções Literárias e Editora Massangana 872 páginas, R$ 185,00

Apesar do molejo e da alegria, o samba precisou lutar para se estabelecer como música comercial no Brasil.Oestudo mostra como se deu essa passagem,do morro para o Municipal, e de como,aos poucos,ele deixou as fronteiras locais para virar uma paixão nacional,usada mesmo por Vargas em sua propaganda do Estado Novo.

Um tesouro que esteve “escondido” por várias décadas,os di ários trazem as impressões e a intimidade de um de nossos mais notáveis pensadores,o diplomata Joaquim Nabuco. Seja falando da política,de livros,de costumes ou de nações estrangeiras,como os Estados Unidos, é leitura obrigatória para quem quiser entender melhor o Brasil.

Editora Annablume (11) 33812-6764 www.annablume.com.br

Editora Bem-te-vi (21) 3804-8678 www.editorabemtevi.com.br

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FICÇÃO Arre lá! EVANDRO AFFONSO FERREIRA

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pre dane-se o misticismo aritmológico do pensamento pitagórico hã estou preocupado coisa nenhuma se Bentinho sambanga brocoió aquele tem a fronte guarnecida por chavelos chifres que tais eh-eh dane-se Esaú alambazado que renunciou à primogenitura por um prato de lentilha ou Simão que quis comprar de São Pedro o dom de fazer milagres fiau! dane-se Prometeu lavadraz encavacado enconchado olímpico que roubou para os homens o fogo do céu hã punfas! pouco se me dá as teorias modernas da expansão e da contração do universo ixe dane-se a tese da origem lógica das figuras abstratas e da geração física das realidades concretas de Filolau canzoal coisa-e-tal puh dane-se a violação dos direitos de hospitalidade dele papangu pastrana Páris arre lá! estou me lixando para o astucioso Hamlet que se faz de zuruó-zoropitó pra garantir a própria segurança hã idem pra ele o zabaneiro-zamboa Édipo que é assassino do homem cujo assassino procura ixe apre aie flat ubi vult danem-se as cinco virtudes as cinco faculdades as dez forças as dezoito substâncias dele bocório boleima Buda ufa xô Salambô aquela que cresceu em abstinências jejuns purificações cousalousa hã interessa nada neca neres saber que o nome do desmangolado David aparece mais de mil vezes na Bíblia eheh que o Evangelho dele labrusco lambaio Lucas tem o maior número de parábolas de Jesus pufdanem-se as revelações apocalípticas fiau se as coisas da criação são contrárias ao homem e vice-versa arre lá! agüento mais não senhor ouvir que a teoria da relatividade de Einstein se formula num âmbito de uma geometria não-euclidiana pois descreve melhor o universo em que vivemos ixe xô seres brocoiós duma figa tartamudeando ad nauseam sons ininteligíveis apre dane-se a sabedoria campesina dos Erga de Hesíodo hã danem-se os mistérios da transubstanciação arre estou interessado coisa nenhuma nela verdadeira significação da isotopia xô inúteis escaramuças xô sacerdotes sem deus xô seres arrepanhados arreminados fiau jamais souberam abstrair eh-eh xô idéias abstrusas xô esperanças que se esvaem no nada xô a acídia o tédio o torpor aie xô dias frios pobres enfadonhos pufquero saber neca neres de jeito nenhum se a alma é um sopro de Deus se o amor mantém unido os quatro elementos se os anjos são criaturas incorpóreas se a semente vem antes da planta se obliterar significa extinguir apagar fazer desaparecer cousalousa se Hiroxima a propósito não deixa obliterar o poder destrutivo do homem se é possível explicar uma cor a um cego se vale a pena o recolhimento em si mesmo aconselhado pelos estóicos se nada pode ser e não ser simultaneamente se a morte apre arre lá! é tão certa como a bílis é produto do fígado se o crítico é de fato aquele que aprendeu a nadar fora da água eh-eh se o homem de espírito aberto é mesmo livre apre ixe puh sei que ela paixão é uma excogitação diabólica hã estou me lixando pra ela soma dos ângulos dele triângulo que é igual a dois retos oxe xô povaréu cheio dele chove-não-molha fobó quejandos hã xô lucubrações metafísicas apre xô memória razão imaginação aie sei que o ser humano é sim senhor uma só massa condenada eh-eh sabichões aí (pasme) dizem que qualquer coisa que realmente exista existe por absoluta necessidade apre o homem é mesmo um junco pensante quá quá quá humanos todos carecem dela humildade aquela que tempera e freia o ânimo aie pena ixe duas coisas no universo não podem ser absolutamente iguais hã catrâmbias! entendo jeito nenhum linguagem apofântica deles doutores todos aí aie meu Deus ele sim que é a substância das substâncias a idéia das

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MAYRA LAMY

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idéias huifa livre-me deles brocoiós todos querido Âmico inventor mítico do pugilato ixe oxe apre acho que não convém viver outra vida que não esta a-hã tudo o que se move é movido por alguma coisa oigalê! ah todos eles aí chibantes cochambrosos chinchorros serão certamente condenados ao nada eterno eh-eh ufa calor dantesco senegalesco cousalousa apre sim senhor sei a-hã os corpos se atraem proporcionalmente ao produto das massas a-hã lei newtoniana a-hã entendi ufa apre xô arre lá! cansei deles enigmas e quebra-cabeças joycianos hã há alguém que está vivendo minha vida diacho e nada sei sobre ele ixe refunfunou o zaragateiro Pirandello eh-eh mestres todos aí modo geral puh ectoplasmáticos fiau não temos claro a alma seráfica dela huifa santa Teresa de Ávila ixe apre puh careca ali eh-eh leitor de Platão Políbio Tácito huummm plus ça change plus cest la même chose eh-eh curioso lembrar agora dele Lichtenberg: um dia será tão ridículo crer em Deus como hoje acreditar em fantasmas aie cruz-credo doutorzinho ali parece eh-eh decorou todos eles 250 mil versos dele Mahabharata hã tudo é um ui calor dantesco ixe impossível alcançar neste forno a ataraxia hã esse est percipere et percipi puf doutorazinha aquela de rabiosque enxundioso hã delírios persecutórios rousseaunianos talvez apre ufa chega dela dialética hegeliana do senhor e do escravo fiau quero imitar nunca-jamais Empédocles aquele que se atirou ao vulcão Etna ixe é o jogo de oferta e procura que equilibra a economia sim senhor hã dane-se a exploração do homem pelo homem quá quá quá estou pouco me lixando para as inquietações e angústias kierkegardianas puf doutora cambanganza ali desde sempre um ser aforismático eh-eh outro ali sim moço candoroso como ele só huifa tempo todo flertando com idealismos delirantes apre xô quero saber neca neres coisa nenhuma se o homem nada é enquanto não fizer de si alguma coisa se Schlemihl perdeu mesmo a própria sombra se in nid beguzarad ou trocando em miúdos se isto também passará se Catão aquecia sua virtude no vinho se a vespa ao picar perde realmente o ferrão para sempre se jamais acorda quem uma vez adormeceu no frio repouso da morte se o polvo colora-se de fato da cor que bem entende segundo as circunstâncias se o homem foi mesmo de forma esférica e logo dividido em duas partes e desde sempre tentando se tornar outra vez redondo e perfeito se devemos acreditar nelas utopias satíricas de Aristófanes se vale a pena viver nas regiões crepusculares do anonimato se eles homens são (au fond) fracos pecaminosos insensatos demais se a variedade é mesmo sintoma de vitalidade se devemos ficar entre a luz de Voltaire e as trevas de De Maistre se Confúcio e Lao-Tsé nasceram na China e Upanishad e Buda na Índia e Zaratustra na Pérsia ixe quero não senhor ver as trevas ouvir o silêncio hã tudo sofismas e ilusões que tais mas diacho convenhamos a vida tem lá o seu não-sei-quê eh-eh mas seja como for danem-se as moléculas os átomos os prótons os nêutrons os elétrons os quarks tudo todos inclusive este revestimento interno calorífico sobre esta sala de reunião de professores desta universidade chavascal em que me encontro purutacotataco preso há mais de um mês diacho. EVANDRO AFFONSO FERREIRA é livreiro e escritor, autor dos livros Grogotó! (Top Books), Arãa! (Hedra), Erefuê! e Zaratempô! (Editora 34). PESQUISA FAPESP 115 SETEMBRO DE 2005 95 ■


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Pesquisa Brasil A ciência está no ar Rádio Eldorado AM Sintonize 700 kHz Toda semana, em meia hora, você tem: ■

Novidades de ciência e tecnologia

Entrevistas com pesquisadores

Profissão Pesquisa

Memória dos grandes momentos da ciência

E o que não poderia faltar: sua participação nas seções ■

Pesquisa Responde

Promoção da Semana

Apresentação Tatiana Ferraz Comentários Mariluce Moura Diretora de redação de Pesquisa fapesp

Sábados, às 12h30 Reprise aos sábados às 19h30 e aos domingos às 14h Ciência e Tecnologia

no Brasil

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• Anuncie você também: tel. (11) 3838-4008

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CLASSIFICADOS

Processo Seletivo para Docentes Área: Urologia Feminina Faculdade de Ciências Médicas Departamento de Cirurgia Inscrições: 25/8/2005 a 16/11/2005, publicação DOE, 24/8/2005, pág. 72 Disciplinas: Clínica Cirúrgica Cargo: Prof. Titular Regime RTP Edital: Arquivo em PDF Processo: 01-P-27209/2004 Contato: Carmen Sílvia do Santos - ATU Telefone: 19-3788-8933 Área: Farmacologia, Anestesiologia e Terapêutica Faculdade de Odontologia de Piracicaba Departamento de Ciências Fisiológicas Inscrições: 18/7/2005 a 17/10/2005, publicação DOE, 15/7/2005, pág. 109 Disciplinas: Farmacologia, Pré-Clínica IV, Pré-Clínica VI Cargo: Prof. Titular Regime RTP Edital: Arquivo em PDF Processo: 01-P-13883/2005 Informações: Patrícia Aparecida Tomaz: atu@fop.unicamp.br e (19) 3412-5204

CONCURSO/PROFESSORES Escola de Engenharia de São Carlos - EESC academica@eesc.usp.br 01 Professor Titular, referência MS-6, em RDIDP (dedicação exclusiva), junto ao Departamento de Geotecnia, para a Área de Conhecimento “Geologia de Engenharia e Meio Ambiente”. Inscrições abertas no período de 07/04 a 03/10/2005. Diário Oficial de 06/04/2005.

Anuncie nos Classificados

(Publicação na íntegra) 01 Professor Titular, referência MS-6, em RDIDP (dedicação exclusiva), junto ao Departamento de Engenharia de Materiais, Aeronáutica e Automobilística, Área de Conhecimento Engenharia de Materiais. Inscrições abertas no período de 16/06 a 12/12/2005. Diário Oficial de 15/06/2005. (Publicação na íntegra) 01 Professor Titular, referência MS-6, em RDIDP (dedicação exclusiva), junto ao Departamento de Geotecnia, para a Área de Conhecimento “Geossintéticos”. Inscrições abertas no período de 11/07/2005 a 06/01/2006. Diário Oficial de 06/07/2005. (Publicação na íntegra) Universidade Federal do Pará Concurso público para professor adjunto I Universidade Federal do Pará São duas vagas para fisiologia/farmacologia Regime de trabalho: Dedicação Exclusiva Inscrições até 13/9, de segunda a sexta-feira, das 8h às 14h na Secretaria do Centro de Ciências Biológicas. Fone: (91) 3183-1102

Ligue 3838-4008 ou acesse www.revistapesquisa.fapesp.br

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