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Ciência eTecnologia
VENDA PROIBIDA
ASSINANTE
EXEMPLAR DE
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no Brasil
Dezembro 2006 Nº 130 ■
ENTREVISTA
´ PAULO SERGIO PINHEIRO
A INFANCIA VIOLENTADA URNAS GANHAM IDENTIFICADOR DIGITAL POR QUE A ECONOMIA NAO CRESCE?
´ MUDANCAS CLIMATICAS
DO DEBATE `A ACAO
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do Mês
MASSACHUSETTS GENERAL HOSPITAL-WELLMAN CENTER FOR PHOTOMEDICINE
Imagem
Biópsia virtual Um novo tipo de exame não invasivo foi desenvolvido no Wellman Center for Photomedicine do Massachusetts General Hospital, em Boston, Estados Unidos. Trata-se de uma técnica de imagem que mostra visões tridimensionais e detalhes internos de artérias e órgãos gastrointestinais. Na imagem acima é possível ver parte de uma artéria coronária de porco vivo, já com stent implantado (em azul). A técnica é um avanço significativo sobre outras tecnologias também não invasivas e será útil para identificar lesões pré-cancerosas ou perigosos depósitos de placas de gordura nas coronárias.
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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
ENGENHARIA FLORESTAL
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PARCERIA FAPESP e Oxiteno convocam pesquisadores para buscar soluções que reduzam custos do álcool
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Biólogos encontram em média oito novas espécies de mamíferos por ano na América do Sul
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FOMENTO Com recursos e estratégia, Amazonas viabilizou em apenas quatro anos seu sistema estadual de ciência e tecnologia
BOTÂNICA Bactérias disputam com plantas controle dos poros das folhas
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CIÊNCIA
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ANTROPOLOGIA
SAÚDE PÚBLICA Estudo mostra como identificar e tratar fumantes de alto risco
Genoma do homem de Neandertal traz pistas sobre nossa origem TECNOLOGIA
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46 FARMACOLOGIA Composto inibe efeito da cocaína e ajuda a elucidar sua ação no cérebro
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ENGENHARIA ELETRÔNICA Urnas eletrônicas com identificador digital devem começar a ser usadas nas eleições municipais de 2008
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GENÉTICA
EDUARDO CESAR
DIVERSIDADE
Biólogos começam a entender como os genes agem para diferenciar abelhas rainhas das plebéias
ESPAÇO Programa desenvolve inovações tecnológicas para projetos de foguetes e satélites
Parceria entre a USP e a Suzano resulta em árvores com potencial para produzir papel de melhor qualidade
76 FERROVIA Sistema de pulverização elimina ervas daninhas que atrapalham a locomoção de trens
78 ENGENHARIA TÊXTIL Empresa lança tecidos com propriedades nanotecnológicas para roupas profissionais
HUMANIDADES
80 ECONOMIA Os dilemas do crescimento econômico brasileiro são bem mais antigos e complexos do que supõe a nossa vã filosofia
86 CIÊNCIA POLÍTICA Crise dos aeroportos põe no ar as fragilidades do Ministério da Defesa
90 TECNOARTE Tese de doutorado com DVD cria conceito sobre qualidade de vida na era virtual
SEÇÕES
3 CARTAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8 CARTA DO EDITOR . . . . . . . . . . . . . 9 MEMÓRIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10 ESTRATÉGIAS . . . . . . . . . . . . . . . 20 LABORATÓRIO . . . . . . . . . . . . . . . 38 SCIELO NOTÍCIAS . . . . . . . . . . . . 58 LINHA DE PRODUÇÃO . . . . . . . . . 60 RESENHA . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94 LIVROS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95 FICÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96 CLASSIFICADOS . . . . . . . . . . . . . 98
IMAGEM DO MÊS . . . . . . . . . . . . . .
Capa: Mayumi Okuyama Foto: Miguel Boyayan
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ENTREVISTA
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RICARDO AZOURY
MIGUEL BOYAYAN
O sociólogo Paulo Sérgio Pinheiro fala sobre o estudo da ONU sobre violência infantil que coordenou e mostra que crianças são vítimas de maus-tratos e agressões no mundo inteiro
26 CAPA
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A reunião COP 12, em Nairóbi, aprova a criação de um fundo para financiar países mais vulneráveis ao aquecimento global
Primeiros cenários utilizando modelos regionais apontam para secas e inundações mais severas no Brasil
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Rádio Eldorado AM Sintonize 700 kHz Sábados, às 12h Reprise aos sábados às 19 e aos domingos às 14h ■
Se preferir, ouça o programa no site da revista
Apresentação Tatiana Ferraz Comentários Mariluce Moura Diretora de redação de Pesquisa FAPESP
Pesquisa Brasil ciência e Toda semana, em meia hora, você tem: ■
Novidades de ciência e tecnologia
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Entrevistas com pesquisadores
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Profissão Pesquisa
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Memória dos grandes momentos da ciência
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Veja aqui alguns destaques dos programas que foram ao ar entre os dias 18 e 25 de novembro
PROFISSÃO PESQUISA 25.11.06
Marisa Lajolo, professora de literatura da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) — Estudo a obra de Monteiro Lobato. É um trabalho maravilhoso, de documentação, feito com um grupo muito grande de alunos. Recebemos o arquivo pessoal de Lobato, cartas originais, fotografias, quadros e desenhos. Com esse material, estamos descortinando novas vertentes ■
homeopáticos acredita-se que os compostos utilizados criam uma organização especial na água. Esses compostos são tantas vezes diluídos que não existe virtualmente uma única molécula inteira deles dentro daquele frasquinho do remédio. Mas se acredita que a estrutura da água modificada por aquele soluto se mantém dentro do frasquinho. E é isso que leva à cura daquela patologia específica por meio da homeopatia. Esse é só um aspecto que não se conhece da química da água, mas talvez um dos mais interessantes.
tos de vista. A água é talvez um dos compostos mais estudados no mundo da química. No entanto, existe pelo menos um aspecto muito interessante que continua sem resposta. Na medicina homeopática, a maioria dos remédios em forma líquida tem como solvente a água ou uma mistura de água mais etanol. Conhecemos a estrutura da água pura, que tem uma organização típica de sua composição e das forças que existem entre as moléculas. Quando dissolvemos o soluto em água, ela se reorganiza. A água, o solvente, se
pandir esse trabalho e repassar nossa experiência para outras instituições do Brasil. ■ Vocês estão agora criando uma rede de troca de informações? — Exatamente. Nossa intenção é montar uma rede em que hospitais com bancos semelhantes ao nosso possam trocar informações para aumentar o nível de pesquisa em câncer no Brasil. ■ Qual
a utilidade dessa troca de informações? — Somos um hospital de referência para onde são manda-
tecnologia nas ondas do rádio
PESQUISA RESPONDE 25.11.06 ■ Pedro
Moretti O que ainda não sabemos sobre a estrutura da água?
■ Heloise de Oliveira Pastore, do Instituto de Química da Unicamp — Essa questão é muito interessante sobre diversos pon-
MIGUEL BOYAYAN
do modernismo brasileiro, novas formas de a cultura brasileira se inserir na América Latina. É um trabalho com resultados muito promissores. E uma parte desse resultado pode ser consultada por qualquer pessoa que tenha internet no site www.unicamp.br/iel/monteirolobato. Nesse endereço há várias cartas manuscritas de Lobato, além de fotografias, pinturas. É um site com uma navegação muito boa para quem se interessa por esse tema. Para alguns, homeopatia altera estrutura da água reorganiza de forma a acolher esse soluto. Existem solutos que fazem com que a água crie uma bolsa, um espaço, onde ela vai abrigar esse soluto, mas vai tentar não interagir com ele. Existem outros solutos, de outro tipo, que interagem com a água diretamente e, portanto, influenciam a sua organização. Nos remédios
ENTREVISTA 18.11.06 O projeto da Rede Nacional de Biorrepositórios, empreendido pelo Hospital do Câncer A.C. Camargo, de São Paulo, pretende integrar informações de bancos de tumores de 11 estados, facilitando projetos cooperativos com enfoque em estudos em oncologia. Quem está coordenando o projeto de implantação do banco de tumores é o oncologista do Hospital do Câncer Antonio Hugo Campos. O senhor poderia explicar o que é exatamente esse banco de tumores? — Há nove anos o Hospital A.C. Camargo tem esse banco de tumores, um projeto que visa coletar material proveniente de cirurgias dos pacientes para posterior uso em pesquisa em câncer. Com o tempo, vimos que havia necessidade de ex-
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dos pacientes do Brasil inteiro, mas só temos determinados tipos de tumores em nosso banco. Alguns tipos, que precisam ser mais bem estudados, são mais comuns em outras regiões do país. Por isso, um dos objetivos da rede é aumentar a troca de informações e de material para que possamos pesquisar também tumores dos quais quase não temos amostras. ■ Como evoluem as pesquisas em câncer? — Elas avançaram muito a partir de 2000, depois do seqüenciamento do genoma humano, que criou uma ampla gama de potencial de pesquisa para a comunidade médica, em especial na área de genética dos pacientes e de genética dos tumores. De uns cinco ou seis anos pra cá temos novas ferramentas de pesquisa e hoje entendemos mais de câncer do que no fim do século passado.
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Cartas cartas@fapesp.br
Cérebro estressado As reportagens de Pesquisa FAPESP retratam a construção do conhecimento que será fundamental para o desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução.
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Números atrasados Preço atual de capa da revista acrescido do valor de postagem. Tel. (11) 3038-1438
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Assinaturas, renovação e mudança de endereço Ligue: (11) 3038-1434 Mande um fax: (11) 3038-1418 Ou envie um e-mail: fapesp@teletarget.com.br
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Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação de Pesquisa FAPESP Rua Pio XI, 1.500 São Paulo, SP 05468-901 pelo fax (11) 3838-4181 ou pelo e-mail: cartas@fapesp.br
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Site da revista No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis as reportagens em inglês e espanhol.
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Para anunciar Ligue para: (11) 3838-4008
Parabéns pela reportagem “Viver é muito perigoso”(edição 130),muito interessante.Mas parabéns,mesmo, pelo título saboroso escolhido neste cinqüentenário do Grande sertão: veredas, de nosso precioso Guimarães Rosa.Melhormente (para também lembrar José Cândido de Carvalho), não o parabenizo, agradeço-o. JÚLIO C. R. PEREIRA Faculdade de Saúde Pública da USP São Paulo,SP
Sebastião Uchoa
Ficção MIGUEL BOYAYAN
Excelente o conto de Flora Fajardo “Nós quem,cara pálida?”(edição 128).Boa síntese da dinâmica de vida de uma considerável fatia da classe ■
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FELIPE RUDGE Faculdade de Engenharia Elétrica/Unicamp Campinas, SP
Que alento extraordinário o espaço concedido,nesta prestigiosa revista,ao polígrafo SeÁtomos bastião Uchoa Leite Leio assidua(edição 129).GostaEMPRESA QUE APÓIA mente e com muito ria de fazer apenas A PESQUISA BRASILEIRA interesse a revista duas observações Pesquisa FAPESP e oportunas.Do mequero cumprimenmorável, sofisticatá-los pela excelendo,idealista e artesate qualidade desse nal gráfico amador, informativo. Aproalém de Luís Costa veito para indicar Lima e Ariano Suasuma,a meu ver,insuna,vive,em Recicorreção relativa à fe,o professor aponota “Mais pesado, sentado (UFPE) Gacom vida curta”, pudiel Perruci.Para os blicada na seção Lainteressados em traboratório (edição 129).O valor 118 é balhos sobre Sebastião,recomendo a o número atômico,que corresponde ao tese de doutorado O poeta-espião: número de prótons contido no núcleo configuração do sujeito em Sebastião do átomo,e não o número de nêuUchoa Leite, de autoria do jovem protrons,como está publicado.Além disfessor de literatura Paulo César Anso,o que está relacionado com o peso drade da Silva,defendida em 2005,na (massa) do átomo é a soma dos próUnesp,sob orientação de Laura Beatons e nêutrons,ou seja,o número de triz Fonseca de Almeida. partículas nucleares,e não o número GUACIRA WALDECK, de prótons (ou nêutrons) somente. viúva de Sebastião Uchoa Leite Rio de Janeiro,RJ
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dominante.Uma bandeira que chama atenção a coisas que facilmente aceitamos,mas que dificultam uma sociedade mais igualitária (ainda que permaneçam as individualidades).Aproveito o ensejo para sugerir uma página em Pesquisa FAPESP onde se abra espaço para poesia.A grande afinidade da poesia moderna com a ciência e inovação é que ela é em si também um questionamento de estruturas estabelecidas,segundo regras definidas,e um processo criativo,com resultados claros.Saudações e parabéns pela revista.
DORIVAL ROBERTO RODRIGUES Universidade do Sagrado Coração Bauru, SP Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br, pelo fax (11) 3838-4181 ou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.
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Carta ISSN 1519-8774
do Editor
Menos discussão, mais ação
FAPESP CARLOS VOGT
PRESIDENTE MARCOS MACARI
VICE-PRESIDENTE CONSELHO SUPERIOR CARLOS VOGT, CELSO LAFER, GIOVANNI GUIDO CERRI, HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, JOSÉ ARANA VARELA, JOSÉ TADEU JORGE, MARCOS MACARI, SEDI HIRANO, SUELY VILELA SAMPAIO, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO RICARDO RENZO BRENTANI
DIRETOR PRESIDENTE CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ
DIRETOR CIENTÍFICO JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER
DIRETOR ADMINISTRATIVO
PESQUISA FAPESP CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR CIENTÍFICO), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTONIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO, PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLLI
DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA
EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN
EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS
EDITORES EXECUTIVOS CARLOS FIORAVANTI (CIÊNCIA), CARLOS HAAG (HUMANIDADES), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA)
EDITORES ESPECIAIS FABRÍCIO MARQUES, MARCOS PIVETTA (EDIÇÃO ON-LINE), RICARDO ZORZETTO
EDITORA ASSISTENTE DINORAH ERENO
REVISÃO MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO
EDITORA DE ARTE MAYUMI OKUYAMA
CHEFE DE ARTE JOSÉ ROBERTO MEDDA
DIAGRAMADORES ARTUR VOLTOLINI, MARIA CECILIA FELLI
CONSULTORIA DE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA
FOTÓGRAFOS EDUARDO CESAR, MIGUEL BOYAYAN
SECRETARIA DA REDAÇÃO ANDRESSA MATIAS TEL: (11) 3838-4201
COLABORADORES ABIURO, ANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), ANDRÉS SANDOVAL, BRAZ, DANIEL KON (ESTAGIÁRIO), DANIELLE MACIEL (ESTAGIÁRIA), GREGORY ANCOSQUI (ESTAGIÁRIO), IRACEMA CORSO, FÁBIO DE CASTRO (ON-LINE), FERNANDO VILELA, GONÇALO JÚNIOR, LAURABEATRIZ, LUANA GEIGER, MARCELO CIPIS, THIAGO ROMERO (ON-LINE) VALÉRIA JATOBÁ E YURI VASCONCELOS.
COORDENAÇÃO DE MARKETING E PROJETOS ESPECIAIS CLAUDIA IZIQUE (COORDENADORA) TEL. (11) 3838-4272 PAULA ILIADIS( ASSISTENTE) TEL: (11) 3838-4008 e-mail: publicidade@fapesp.br
ASSINATURAS TELETARGET TEL. (11) 3038-1434 – FAX: (11) 3038-1418 e-mail: fapesp@teletarget.com.br
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DISTRIBUIÇÃO DINAP
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Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO
FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO SECRETARIA DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E TURISMO GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO
O
debate sobre o aquecimento global provocado pela emissão de gases vem se fazendo ouvir em tons cada vez maisaltos d esde a Rio-92.Naquela ocasião houve uma gigantesca reunião com delegações de 175 países para discutir e propor soluções para questões como mudanças climáticas e biodiversidade.De lá para cá esses encontros vêm ocorrendo em menor escala,mas com importância cada vez maior.O aumento da temperatura registrada no planeta nas últimas décadas deixou de ser atribuído à imaginação delirante de ambientalistas radicais.Agora podese afirmar que a visão de um mundo mais quente causada pelo efeito estufa é soberana entre especialistas. A última rodada de discussão e negociação entre países sobre o tema ocorreu em Nairóbi,no Quênia,no mês passado. Decorridos 14 anos desde o encontro na Rio-92,nota-se mais uma mudança importante:passou-se do debate para algo concreto.Os países presentes à reunião aprovaram a criação de um fundo para financiar a adaptação dos países mais vulneráveis aos efeitos das mudanças climáticas. Esse foi um passo importante para ajudar nações da África e do Pacífico,que terão suas atividades econômicas altamente comprometidas nas próximas décadas.Este foi um dos motivos que levou tema tão candente para a capa de Pesquisa FAPESP, apurado e escrito com rigor por Claudia Izique e Fabrício Marques (página 26). A outra razão são as pesquisas direcionadas para essa área,que se tornam mais e mais importantes a cada ano que passa. Nesse quesito o Brasil ainda anda devagar, atrás de outros países latino-americanos. Mas está consciente de que precisa correr. Prova disso foram os primeiros modelos climáticos regionais desenvolvidos pelos pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).As estimativas anteriores eram feitas com base em modelos globais.O editor Carlos Fioravanti mostra que a previsão do Inpe é mais precisa e reforça com detalhes inéditos o desenho de um Brasil menos tropical e úmido e mais quente e seco (página 30). Nos últimos três anos,o sociólogo Paulo Sérgio Pinheiro também esteve com sua atenção voltada para todo o mundo.
Coordenador do Centro de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP),um dos dez Centros de Pesquisa,Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP,ele foi encarregado pelo secretário-geral da Organização das Nações Unidas,Kofi Annan,de preparar um relatório mundial sobre violência contra a criança.O resultado,um livro de 384 páginas, é um estudo magistral que envolveu cerca de 180 pessoas que trabalharam diretamente na pesquisa e,no total,por volta de 1.500 indivíduos de todos os continentes que tiveram alguma responsabilidade pelas informações repassadas a ele.É importante dizer que Pinheiro não foi apenas o coordenador do projeto,mas fez muito mais que isso:foi a campo e ouviu pessoalmente o relato de crianças em mais de 50 viagens pelo mundo.Ressalte-se a participação da FAPESP em tão valioso documento:não fosse o apoio da Fundação,o Centro de Estudos da Violência talvez não existisse hoje e Pinheiro não estaria associado ao projeto da ONU.A esclarecedora entrevista com o sociólogo e sua gigantesca tarefa foi feita com maestria pela diretora de redação, Mariluce Moura (página 12). Maestria é também como se pode qualificar o desenvolvimento das urnas eletrônicas brasileiras.Nas eleições presidenciais deste ano,o resultado da participação de quase 102 milhões de eleitores saiu duas horas e meia após o encerramento da votação.Nas eleições de 2008 haverá mais novidades.As urnas terão um identificador digital,dispositivo de leitura biométrica que permite o reconhecimento automático do eleitor por meio de sua impressão dos dedos.O objetivo é garantir mais segurança na identificação.A editora assistente,Dinorah Ereno,explica como se chegou a esse modelo de sucesso que está sempre se renovando em busca de melhorias (página 64). Por fim,o editor de humanidades, Carlos Haag,traz à tona a opinião de especialistas sobre os dilemas do crescimento econômico brasileiro,que vêm de longa data (página 80).Vale a pena conhecer as raízes do problema. NELDSON MARCOLIN – EDITOR CHEFE PESQUISA FAPESP 130
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MAPA ETNO-HISTÓRICO DE CURT NIMUENDAJU (IBGE)
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Há 62 anos Curt Nimuendaju completava seu Mapa Etno-Histórico N ELDSON M ARCOLIN
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ebruçado sobre uma enorme folha de papel, o alemão naturalizado brasileiro Curt Nimuendaju deu o último retoque, em meados de dezembro de 1944, no mapa traçado pacientemente a nanquim durante quatro meses. Não era um trabalho qualquer, mas o Mapa Etno-Histórico com milhares de símbolos, cores e nomes representando 1.400 grupos de índios. Inédita, a empreitada reunia em um quadrado de 2 metros por 2 metros a primeira grande síntese do conhecimento etnológico disponível até aquele ano, boa parte dele recolhida pessoalmente. Trazia informações sobre localização, filiação lingüística e movimentos de migração de tribos extintas e existentes no Brasil. Aquele foi o terceiro exemplar do mesmo mapa fabricado por ele, dessa vez para o Museu Nacional, do Rio de Janeiro. Outros dois haviam sido feitos para o Museu Paraense Emílio Goeldi (1943) e para o Smithsonian Institution (1942). Detalhe: um não era mera cópia do outro. A cada novo mapa cresciam o número de dados e a bibliografia usada. O último veio acompanhado de três índices, o bibliográfico (com mais de 950 indicações), tribos e autores.
GÖTEBORGS ETNOGRAFISKA MUSEUM
Cartografia indígena
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emória
MUSEU DE DRESDEN
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Nimuendaju paramentado numa aldeia apinajé (acima) e detalhe de seu mapa (ao lado): identificação com o objeto de estudo
Curt Nimuendaju (1883-1945) é figura fundamental da etnografia e etnologia brasileira. “Seu Mapa Etno-Histórico é um feito histórico-cartográfico de enorme fôlego e um documento precioso”, atesta o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autor de A inconstância da alma selvagem, e outros ensaios de antropologia (Cosac & Naify, 2002). “Nimuendaju foi um grande etnógrafo e quem mais entrou em contato e viveu entre índios”, afirma Luís Donisete Benzi Grupioni, antropólogo da Universidade de São Paulo e autor de Coleções
e expedições vigiadas (Hucitec/Anpocs, 1998). O mapa foi seu último grande trabalho – ele morreu em 1945 entre os ticunas, de modo nunca esclarecido. No começo de sua atuação entre os índios, Nimuendaju primeiro coletava artefatos de tribos brasileiras para compor coleções dos museus de Gotemburgo, Hamburgo, Leipzig e Dresden, na Europa, e para os museus Paulista, Nacional e Goeldi, no Brasil. Numa segunda fase, tornou-se pesquisador de fato ao escrever notas sociológicas sobre grupos indígenas estudados que eram utilizadas por Robert Lowie, da Universidade da Califórnia, com a devida
citação. Nimuendaju sempre publicou artigos e monografias sobre o modo de vida e as línguas utilizadas pelos muitos grupos com os quais conviveu.“Como quase sempre escrevia em alemão, ainda há textos inéditos em português”, diz Grupioni. Sua história é mais surpreendente quando se sabe que ele fez apenas o curso secundário e jamais freqüentou universidade. Natural de Jena, cidade da Turíngia, aos 16 anos foi aprendiz de mecânico ótico na empresa Zeiss, onde era assíduo na biblioteca da fábrica. Lá gostava de ler sobre a América Latina e estudar seus mapas. Veio para São Paulo em 1903 e dois anos depois, quando
ainda se chamava Curt Unkel, embrenhou-se nas matas paulistas contratado como ajudante de cozinha da Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo. O objetivo era explorar o rio Aguapeí e contatar os índios guaranis e caingangues, no oeste de São Paulo. Aos 22 anos, o jovem foi completamente seduzido por aquelas civilizações primitivas. Um ano depois passou a conviver com os apapokuvaguaranis e recebeu o nome de Nimuendaju – “o ser que cria ou faz o seu próprio lar”. Sua identificação com os índios era tanta que o levou a adotar sempre esse nome, inclusive na assinatura de todos os textos que escrevia.
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Paulo Sérgio Pinheiro
Entrevista
V iolência sem lim ites M ARILUCE M OURA ,
N OVA YORK
Estudo da ONU coordenado por sociólogo brasileiro revela que crianças são vítim as de m aus-tratos e agressões no m undo inteiro, em todas as classes e am bientes, enquanto a sociedade aceita o fenôm eno com com placência
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m 20 de novembro passado, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Kofi Annan, lançou em Genebra, Suíça, um alentado volume de quase 400 páginas – 384, diga-se em favor da precisão – no qual dados aterradores de toda espécie de violência contra a criança, praticada no mundo inteiro, encontraram uma abrangência, articulação e consistência metodológica até então inéditas. Seu título é direto e simples: Relatório mundial sobre violência contra crianças e ele está disponível na internet (www.violencestudy.org). Pode-se compreender com clareza cristalina, depois de ler o texto e refletir por entre imagens e tabelas do livro, por que Annan, em seu prefácio, disse que a violência contra as crianças, que não respeita barreiras geográficas, de raça, classe, religião e cultura, e ocorre em casa, na escola, na rua, no trabalho ou em instituições de correção e prisões, pode ter conseqüências devastadoras. “Acima de tudo ela pode resultar em mortes precoces”, observou. De fato, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 53 mil crianças foram assassinadas em 2002 no mundo inteiro. E esse é apenas um dos infindáveis números acachapantes que emergem página após página do alentado trabalho, que, entretanto, não quer só mostrá-los, mas também insistentemente demonstrar que “nenhuma violência contra a criança é justificável, e nenhuma é inevitável”. Outros desses números chocantes, destacados nas páginas 11 e 12: no mesmo ano, cerca de 150 milhões de meninas e 73 mi-
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lhões de meninos foram forçados a manter relações sexuais ou foram submetidos a outras formas de violência sexual envolvendo contato físico, de acordo também com a OMS. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) estima que na África Subsaariana, Egito e Sudão 3 milhões de meninas e mulheres são submetidas a cada ano a mutilação genital. A Organização Internacional do Trabalho (OIT), por sua vez, informa que, em 2004, 218 milhões de crianças estavam envolvidas em trabalho infantil, das quais 126 milhões ligadas a trabalhos perigosos. Estimativas anteriores, de 2000, mostravam 5,7 milhões dessas crianças em trabalhos forçados, 1,8 milhão na prostituição e pornografia e 1,2 milhão de crianças vítimas do trabalho no tráfico de drogas. Ao mesmo tempo, num ranking dos países em desenvolvimento, variou de 20% a 65% o porcentual de crianças em idade escolar que relataram ter sido molestadas verbal ou fisicamente na escola no primeiro mês de aulas – taxas similares têm sido encontradas nos países desenvolvidos, conforme os dados do Global School-Based Student Health Survey. E, para finalizar, por ora, apenas 2,4% das crianças do mundo – isso mesmo, menos de 3% – estão legalmente protegidas de castigos corporais em todos os lugares em que transitam em suas vidas. As taxas para cada ambiente variam muito: se dentro da escola a proteção legal contra esse tipo de punição atinge 42% delas, em casa apenas 2% de todas as crianças do planeta estão legalmente protegidas contra eventuais maus-tratos dos pais e outros parentes (tabela na página 11), o que certamente indica que a sociedade em geral ainda está precisando descobrir que isto é uma forma real e extremamente dolorosa de violência. O livro, que deverá se tornar uma peça fundamental no imenso esforço a ser desenvolvido nos próximos anos contra a prática generalizada da violênPESQUISA FAPESP 130 DEZEMBRO DE 2006 13 ■
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cia contra a criança, e é dez vezes maior do que os relatórios padrão da ONU, tem a assinatura de um brasileiro: o sociólogo Paulo Sérgio Pinheiro. Desde fevereiro de 2003, quando foi nomeado expert independente das Nações Unidas por Kofi Annan, para preparar esse estudo em profundidade sobre o tema, Pinheiro mal tem encontrado tempo para outra coisa, envolvido que se encontra em viagens por todo o mundo para conseguir trazer à luz, num retrato cru, ainda que muito longe de desesperado, essa até aqui velada realidade da violência contra as crianças. Violência, na verdade, ainda que não especificamente contra crianças, tem sido há mais de duas décadas o tema das reflexões, da pesquisa acadêmica e da prática política de Paulo Sérgio Pinheiro, um carioca nascido em janeiro de 1944 que aos poucos se fez paulista. Exprofessor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor titular de ciência política aposentado da Universidade de São Paulo (USP), professor visitante de Relações Internacionais no Instituto de Estudos Internacionais da Brown University, em Providence, Rhode Island (EUA) – neste momento afastado da função por conta do trabalho na ONU –, ele criou em 1987, junto com Sérgio Adorno, o Núcleo de Estudos da Violência da USP. Era simultaneamente uma nova empreitada científica e o desdobramento natural de seu trabalho na Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos, da qual foi um dos fundadores em 1983, quando se esgotava a ditadura militar no país, e na Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, criada sob os auspícios do arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, em 1984. O Núcleo em 2002 se transformaria no Centro de Estudos da Violência (NEV/USP/Cepid, no endereço www. nevusp.org), um dos dez Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados de forma especial num programa da FAPESP por um prazo de até 11 anos. Nesse período, Paulo Sérgio, a par de sua intensa produção acadêmica, que inclui 25 livros de pesquisas a continuidade do trabalho de professor visitante (universidades de Columbia, Notre Dame, Oxford e École des Hautes Études em Sciences Sociales) e a participação como conselheiro em dezenas de 14 DEZEMBRO DE 2006 PESQUISA FAPESP 130 ■
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instituições, foi assessor especial do governo do estado de São Paulo na gestão de Franco Montoro e secretário de Direitos Humanos no governo Fernando Henrique Cardoso entre 2001 e 2002 (com status de ministro). Tudo isso sem deixar de se envolver com dezenas de instituições da sociedade civil preocupadas com o tema dos direitos humanos no mundo inteiro. Nesta entrevista à Pesquisa FAPESP Paulo Sérgio Pinheiro, que além daquele no NEV tem outro escritório também em Genebra, vivendo assim entre as duas cidades, com sua mulher Ana Luiza e os filhos Daniela, André e Marina, faz uma série de considerações sobre o belo trabalho de coordenar uma pesquisa em ciências sociais que, “como é necessário”, pretende ser instrumento de mudança no quadro intolerável de violência mundial contra as crianças.
também na Comissão Teotônio Vilela. Talvez eu tenha sido escolhido para o estudo por causa dessa experiência no Núcleo. De qualquer sorte, o estudo mesmo foi proposto pelo comitê dos Direitos da Criança, que é o órgão do tratado que segue a Convenção dos Direitos da Criança. ■ Logo no começo do livro você explica es-
sa encomenda... — Aquele comitê propõe, a Assembléia Geral faz uma resolução dos estados membros a qual pede ao secretário-geral para fazer o estudo e nomear um expert. Eu fui nomeado pelo secretário-geral em fevereiro de 2003. E aí começou a preparação... na verdade comecei a trabalhar só em março de 2004, portanto esse foi um trabalho mais de dois anos do que de três. ■ Foi então que você começou efetivamen-
■ Vamos
começar pelo seguinte: este livro resulta de um trabalho quase oceânico, digamos assim, a respeito da violência contra a infância. Como ele se enraíza nas pesquisas que há quase duas décadas você desenvolve sobre a violência de uma forma mais geral? — Então... No outro dia houve um comentário do The Guardian, achei muito engraçado, em que se dizia “num desses notáveis exercícios magisteriais que só a ONU consegue fazer”, e aí a pessoa falava do relatório... Enfim, são duas vertentes diferentes... Uma, a do Núcleo de Estudos da Violência, já comemorou 20 anos, desde que o Sérgio Adorno e eu o fundamos na USP em 1987, ao qual três anos depois se somou Nancy Cardia. E aí uma questão sempre presente foi o assassinato de crianças e adolescentes. Talvez esse tenha sido um dos nossos primeiros temas. Acho que fomos os primeiros a chamar atenção para execuções sumárias de adolescentes em São Paulo e no Rio de Janeiro, isso no final do governo Maluf [Paulo Maluf, governador de São Paulo, 19781982], antes do governador Franco Montoro. Durante todo esse tempo lidamos com isso e também com alguns dos temas que são preocupações do estudo, como a questão da violência física. Quer dizer, ainda que não tenhamos nos dedicado a todos os contextos, a questão das instituições correcionais foi uma com que sempre lidamos. E isso
te a reunir todas as fontes de dados, todos os dados... — Aliás, não estava na resolução esse livrão. Só o relatório de 35 páginas, tamanho padrão na ONU, que eu apresentei na Assembléia Geral em 10 de outubro passado. Mas como antes eu já tinha sido envolvido no Relatório mundial sobre violência e saúde, que a Organização Mundial da Saúde preparou, sob a coordenação de Etienne Krug – e que até, quando eu estava no governo, traduzimos e publicamos –, achei que depois de uma trabalheira desse tamanho seria desperdício de recursos não fazer um livro. Então... Foi uma montagem supercomplexa, olhando para trás, agora, eu posso contar. Primeiro contamos com um comitê assessor das ONGs. ■ É sempre complicado trabalhar com as diferentes linguagens das ONGs, não é? — É, mas não só as ONGs. Mandamos um questionário para os Estados, tivemos um número recorde de respostas. É um questionário de pesquisa científica, está no site, você pode olhar... Muita gente acha que ciências humanas não fazem pesquisa... Esse é um relatório metodologicamente controlado. Então, mandamos para os Estados e tivemos 139 respostas, um recorde, porque, na ONU, os governos não agüentam mais questionário, então uns 30 países em média respondem. Isso é um bom sinal. E as respostas são muito boas. A americana tem
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400 páginas, a resposta brasileira tem umas 200, vários países apresentaram relatórios muito transparentes, as pessoas pensam, “ah, no governo ninguém vai contar nada”. Não, muitos relatórios são bastante transparentes. Além disso, tinha um comitê editorial de 30 pessoas, especialistas, experts, cientistas... no qual tinha gente de todas as partes do mundo. — Tinha, inclusive uma brasileira, a professora Nancy Cardia, que é a coordenadora de pesquisa do NEV/USP/Cepid. Ela foi uma das líderes do capítulo sobre violência na comunidade. Tentamos, como sempre na ONU, fazer um balanço de disciplinas e geográfico. Estavam representados todos os grupos regionais: Ásia, África, Europa Central, América Latina e países do Ocidente. Além disso, a principal decisão estratégica, a meu ver, foi realizar nove consultas regionais no mundo. O que foram essas consultas?
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■ Mas
se contar todo mundo envolvido... — Ah, chegamos a umas 1.500 pessoas que participaram em todos os continentes, que tiveram alguma responsabilidade. Os agradecimentos ocupam umas quatro páginas, o que dá mais ou menos a dimensão da coisa. Por que isso? Porque o que o secretário-geral pediu foi um relatório em profundidade global. E se você olhá-lo, vai ver que não é um relatório por país. Não tem nenhuma classificação nem ranking. Jornalista gosta de perguntar: “Qual é o país mais violento do mundo?”. Eu não sei.
MARIEL L A FURRER/UNICEF
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■ Comitê
■ Sim, o que foram? E por que você acha que constituíram a principal decisão estratégica? — Ah, porque elas foram um achado. Primeiro, foi preciso um processo de preparação para trabalhar com as várias regiões em que o Unicef divide o mundo. O Unicef tem 140 escritórios, está em todo lugar do mundo, tem uma estrutura para apoiar esses esforços. Então, primeiro teve um desk-review, quer dizer, um levantamento dos dados existentes por um comitê local que coordenava cada consulta. Para dar uma idéia, as consultas regionais foram em Buenos Aires, Toronto, Trinidad e Tobago, Islamabad, Bamako (no Mali), Bangcoc, Liubliana (na Eslovênia) e Cairo. Cada uma dessas teve, em média, 600 pessoas. Quem eram essas pessoas? Representantes de governos, ONGs, especialistas e, o mais importante, crianças e adolescentes. Em todas as reuniões houve dezenas de crianças e adolescentes. Todo esse papo meu com as crianças, as conversas informais com elas, está num site do Child Rights Information Network, Crin (www.crin.org/), um centro de informações sobre direitos da criança. ■ Isso foi muito interessante dentro da pes-
quisa, não? — Foi básico, porque um dos problemas das políticas públicas em relação à
■E
C rianças fora da escola na cidade de R um bek, no sul do Sudão
criança e ao adolescente é que eles não são ouvidos. São tratados como minicidadãos, minisseres humanos, que não precisam ser consultados. E essa é uma das falências que apontamos. Não demagogicamente, mas você precisa consultá-los. Lembro que na consulta em Islamabad, num dos grupos de trabalho, a relatora foi uma criança que devia ter uns 14 anos. E ela se houve magnificamente. E eles tinham o direito de intervir nas discussões igualzinho aos adultos, isso foi fascinante. ■ Quantas pessoas na verdade participaram da elaboração da pesquisa? — Num grupo mais restrito, 150 pessoas, entre os comitês, o secretariado, as ONGs, mais 30 pessoas do comitê editorial e o suporte das três agências... Essa foi uma outra novidade, a combinação de três agências e três perspectivas. A saber: o Alto Comissariado de Direitos Humanos, da perspectiva de direitos humanos; a Organização Mundial da Saúde, vendo a violência como problema de saúde pública; e a perspectiva do Unicef, tratando do ponto de vista da proteção da criança, no sentido da saúde e de sua existência. Isso também foi um mix interessante e inovador. Eu digo que não foi fácil.
o livro aponta exatamente isso, a violência contra a criança como uma prática generalizada, independentemente de situação socioeconômica e cultural dos países. — É. Norte e Sul. Cultura, nível econômico... As modalidades diferem. Por exemplo, a mutilação genital feminina não é praticada na América Latina, mas é alguma coisa presente na África e na Ásia. O nível de homicídios de jovens na América Latina não se compara ao de outros lugares, você não encontra na Ásia números iguais. Então cada região tem problemas específicos, mas hoje você tem presente no Norte problemas do Sul. E, apesar de 14 países terem proibido o castigo corporal de toda espécie, isso não quer dizer que ele tenha sumido.
■ Esses países estão mais concentrados na Europa? — Mais ou menos, são os países desenvolvidos do Norte. Países escandinavos e Alemanha, Suécia... E o que é interessante é que já houve pesquisa na Suécia mostrando, uma década depois da implantação, que realmente diminuiu o número de pais que usam castigo corporal. Há um número maior de Estados que proíbem castigo nas escolas. Agora, esse não é o único problema. ■ Antes
de voltarmos à questão da metodologia, eu queria justamente saber que formas de violência contra a criança você pessoalmente destaca como as mais nocivas e mais freqüentes. — As campeãs de terem os seus direitos violados são as meninas. Em termos de violência sexual, em termos de tráfico, exploração, trabalho doméstico. Mas os meninos, que às vezes não estão tão visíveis no debate público, também são explorados. PESQUISA FAPESP 130 DEZEMBRO DE 2006 15 ■
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GIACOMO PIROZZI/UNICEF
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Crianças no meio do lixo em Quetta, no Paquistão. Moradoras de rua, vendem objetos encontrados no lixão da cidade
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■ Inclusive
sexualmente. — Sim, e são traficados em algumas regiões. O trabalho doméstico é uma praga em várias regiões, como América Latina, Ásia ou África. Sabe a velha prática brasileira, em que as famílias tradicionais pegavam crianças negras para criar? Na verdade era para serem escravas... Mal dormiam, tinham que atender a família o tempo inteiro, e isso continua vivo em várias partes do mundo, o relatório dá muita atenção a isso. Outro aspecto é o do trabalho infantil perigoso, presente em muitas regiões. Você chama de trabalho infantil perigoso aquelas práticas do tipo desfibrar sisal, no Brasil, cortar mandioca... — Sim, sisal, cortar madeira, carregar pedras, tecelagem etc. As crianças são desprovidas do acesso à escola e trabalham 12 horas por dia.
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■ É possível dizer que o porcentual das crianças do mundo, até, digamos, 15, 16 anos, é atingido por formas diversas de violência? — São números impressionantes. [Paulo Sérgio Pinheiro faz aqui referência aos números que estão na abertura da entrevista.] E tem outros números incríveis de crianças que viram cenas... conflitos violentos. São conflitos domésticos, violência doméstica e tudo isso... Mais terrível ainda são as conseqüências da violência. Exemplo dos números: os cálculos da OMS indicam que em 2002 a taxa de homicídios de meninos foi o dobro nos países mais pobres em relação aos de renda mais alta (2,58 ante 1,21 por 100 mil habitantes). As taxas mais altas de homicídio infantil ocorrem entre adolescentes, especialmente os meninos de 15 a 17 anos (3,28 no caso das meninas e 9,06 entre os meninos) e entre as crianças de 0 a 4 anos (1,99 no caso das meninas e 2,09 no caso dos meninos).
No livro, no final do primeiro capítulo, você já fala de conseqüências da violência. — Sim, são conseqüências para a saúde mental, física, é um desastre total. E isso é importante para o Estado, porque ele vai gastar com isso, com o tratamento de cidadãos totalmente lesados. No resumo do relatório está dito que a violência pode provocar maior suscetibilidade a problemas sociais, emocionais e cognitivos durante toda a vida. Quanto ao cus-
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to disso para o Estado, embora não haja bons dados nos países em desenvolvimento, nos Estados Unidos se calcula que em 1996 os custos financeiros ligados a maus-tratos e abandono de crianças foram de US$ 12,4 bilhões. ■A
violência contra as crianças, como fica muito claro no livro, é praticada por vários agentes sociais. Começa pela família, passa pela escola, por instituições do tipo da Febem, de tal modo que se torna uma prática que se generaliza pelas várias instâncias da sociedade. — Sim, nós resolvemos captar esse contexto da violência. E devo dizer que toda afirmação é baseada em alguma pesquisa. Veja-se o número de notas de rodapé, é tudo pesquisa hard, e é importante ressaltar isso pela dúvida que às vezes existe sobre o caráter da pesquisa em ciências humanas. Tudo está baseado em surveys, em questionários, enfim, em tudo também que se pode usar em termos das ciências médicas, amostragens, exames médicos... Então, o bonito desse livrão é que ele é um concentrado de abordagens das ciências médicas e das ciências humanas.
■ Mas você abordou cinco contextos em que se dá a violência contra a criança. Seria bom lembrá-los. Temos então... — ... a família, a escola, as instituições do gênero asilos, orfanatos ou mesmo prisões, o lugar de trabalho e a comunidade. Agora, se existe uma lista de grandes desastres no mundo inteiro, o grande desastre, o maior deles, é o das crianças e adolescentes em conflito com a lei. Aí é a tragédia, realmente a tragédia. Os Estados não sabem quantos são os adolescentes que estão detidos, tem países em que as crianças estão praticamente enjauladas – eu não quero dizer os países, mas as crianças vivem em jaula, acredite. Em relação à comunidade, é a rua, é a cidade, são os espaços comuns, a praça, são os transportes, enfim, todos lugares onde as crianças estão expostas. ■ Então, desses cinco contextos, qual apresenta o tipo de violência mais nefasta a longo prazo, e qual deve ser mexido primeiro, num esforço de prevenção dessa violência generalizada? — Quando falamos em direitos humanos, hoje, estamos sempre invocando o Estado, que é o responsável. Ele é respon-
sável por assegurar os direitos da criança, então acho que a coisa mais básica é que atue onde pode. E ao dizer Estado não falo só do Executivo, mas do Parlamento, que tem que fazer leis. As leis não são varinha mágica, mas sem lei você não muda a realidade. Sem leis você não mobiliza, a sociedade civil não se organiza, você não defende direitos sem leis. É impossível defender direitos sem leis, não adianta só convenção internacional. Então, isso não custa dinheiro.Os parlamentares são pagos para isso, para fazer leis. E precisamos em alguns países da América Latina “domesticar”,quer dizer,transferir para o âmbito nacional as convenções internacionais. A convenção dos direitos da criança tem 15 anos, e tem um gap enorme para sua aplicação no Brasil. Temos um estatuto maravilhoso no país, mas entre o estatuto e sua aplicação há um abismo. Então o Estado precisa fazer seu dever de casa. Não dá para continuar tolerando criança e adolescente em conflito com a lei, vivendo em jaula, vivendo em condições subumanas, sendo mais maltratados do que cachorros e gatos da Sociedade Protetora de Animais. E isso é responsabilidade direta do Estado. Está na responsabilidade do Executivo, do Parlamento, do Judiciário e do Ministério Público. Esses são os atores principais. Quanto à família... toda revolução cultural é complicada, mas o Estado tem um papel pedagógico, de demonstrar para as famílias que a violência não compensa. Já que você falou em revolução cultural, de onde vem essa cultura mundial da violência contra a criança? Quais são as bases disso? — Sem ser pedante, não sou eu quem diz isso, mas uma pensadora chamada Hannah Arendt: o século XIX foi a caminhada da emancipação dos direitos dos trabalhadores. Os sindicatos, os partidos socialistas, a organização internacional do trabalho, que na verdade é do iniciozinho do século XX, 1919, mas, enfim, o processo de lutas dos direitos dos trabalhadores é do século XIX. Depois, no século XX, é a conquista do direito da mulher. Hoje não dá para os maridos baterem em mulher. Mas em criança se pode bater na rua, à vista de todos. Tem algumas cidades do mundo, que eu não vou nomear, em que se eu der um chute num gato ou num cachorro vou para a polícia, vou preso, vou causar uma co■
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moção popular. Agora, as mães podem puxar a orelha, dar chute, beliscão, em criança, em público, no metrô ou no ônibus, no trem ou no bonde... Ninguém faz nada. Por quê? Acho que as crianças, primeiro, não são consideradas sujeitos de direito, cidadãos, elas são consideradas propriedades dos pais – não devem ser ouvidas, acham que elas não pensam, assim como as mulheres antigamente, que se achava que não tinham racionalidade suficiente para votar, por exemplo. É o mesmo raciocínio. Quando, no Brasil, se propôs o voto para os jovens de 16 anos foi um deus-nos-acuda. Depois foi uma beleza. É um exemplo que o Brasil dá ao mundo. Então, a origem é que a emancipação das crianças ainda está por vir – apesar da convenção, apesar de estar na agenda internacional alguns tipos de violência, por exemplo, o tráfico, a violência sexual, o envolvimento de crianças em conflitos armados... Há um representante especial do secretário-geral da ONU para esse tema que se reporta para o Conselho de Segurança. Então esses temas estão públicos. Agora, o que se chama em inglês bullying, quer dizer, a provocação entre coleguinhas na escola, terrível, a estigmatização, a ostracização, a discriminação, isso não está na agenda do debate. Os professores, muitas vezes, nem querem se meter nisso. São coisas parecidas com o trote universitário, que acontece na escola, enfim, e ninguém protege as crianças disso. ■ O curioso é que a gente não tem relatos históricos dessa violência como uma prática contínua, com raízes profundas... É como se sequer se prestasse muita atenção a isso historicamente, não é? — Acho que é verdade. A Comissão de Direitos Humanos da ONU foi criada em 1948 e nós estamos fazendo esse relatório em 2006. O único relatório que houve antes foi em 1996, o da senhora Graça Machel sobre meninos soldados. Portanto, na ONU nunca houve antes um relatório sobre violência contra criança, ainda que as agências como o Unicef e a OIT estejam trabalhando com a noção de trabalho infantil e trabalho forçado há um tempão. ■ Você
acredita que a sociedade só começa a descobrir que essa violência não é algo natural em... 18 DEZEMBRO DE 2006 PESQUISA FAPESP 130 ■
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— Ah, na última década. Nos últimos 20 anos. Mas ainda dentro da noção de que as crianças não são sujeitos de direito, e sim propriedade dos pais, por que a escassez de estudos? — O que se sabe, aquilo em que se tem muito estudo histórico é a dominação, por exemplo, dos pais sobre as filhas. A intervenção no casamento, a escolha do marido, o casamento precoce... Isso, historicamente, tem estudo à vontade. Mas não percebido como violência, e sim como uma prática tradicional, o não-exercício do direito da mulher. Mas eu queria destacar, nessa questão de quando a sociedade começou a descobrir que não é natural, e sim intolerável, a violência contra criança, que não encontrei nenhum presidente,nenhum primeiro-ministro ou ministro, nenhum Estado – e eu viajei bastante pelo mundo – que negasse apoio a esse trabalho. E o bonito, modestamente, porque o trabalho não é só meu, foi ver no debate do 3º comitê, da Assembléia Geral, um arco alargadíssimo de apoio. Quer dizer, tivemos intervenções de apoio do Senegal, Egito, Tailândia , Sudão, Arábia Saudita, dos países latinoamericanos, dos países europeus, evidentemente, e dos Estados Unidos, por meio do secretário assistente de Estado para a família. Até mesmo um Estado que defende o castigo corporal apoiou todas as recomendações do estudo. Houve 45 discursos no total, todos de apoio, e com perguntas muito concretas. Isso também foi muito emocionante.
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■ Isso foi quando? — Em 11 de outubro. Isso, para nós, foi fundamental, porque a Assembléia Geral é geralmente muito fria. E essa foi uma sessão muito vibrante. Penso que isso também foi produto de muito diálogo, uma conversa incessante, com grande ajuda do Marcelo Daher, também antigo pesquisador do NEV/USP, meu assistente principal, nesses dois anos em que eu revirei o mundo, me reunindo, falando, num diálogo com especialistas, mas ao mesmo tempo com os governos. ■ Você diria então que podemos estar no limiar de uma nova percepção sobre o absurdo que é praticar violência contra crianças?
— No limiar, sim. Ainda não estamos na via de emancipação, mas estou convencido de que os Estados estão preparados. Por exemplo, quando vemos a China realizando uma pesquisa – tem um box sobre isso no livro –, em seis províncias, sobre abuso sexual na memória dos adolescentes, quando na Índia se faz uma amostra de 16 mil entrevistas sobre abuso sexual também, e os governos apresentam isso com grande transparência, algo está sendo preparado. Eu fui à Indonésia e o país tem um plano de ação baseado nas recomendações do trabalho. A Síria tem plano de ação... Não importa o regime, não importa o país, isso está ocorrendo. Tivemos a reunião de seguimento no Cairo, o apoio completo da Liga Árabe... Quer dizer, para nós foi uma coisa muito recompensadora, porque não é só o apoio dos países desenvolvidos do Norte, mas o Sul assumiu a temática. A consulta de Buenos Aires foi uma maravilha, houve uma declaração dos ministros se comprometendo a introduzir legislação para acabar com a violência, contra o castigo corporal, que foi magnífica... Então, acho que tivemos boas surpresas. E o livro não é um catálogo de horrores, você vai ver. Na verdade é um retrato, acho que razoável e com esperança. E tem muito boas práticas. Do Norte e do Sul. ■ Quando você mergulhou no trabalho de escrever propriamente o livro, a sua percepção tinha mudado, de alguma forma, sobre a violência contra a criança? Qual era a sua principal noção desse tema quando você sentou e disse “agora posso escrever”? — Primeiro tinha que escrever porque eu tinha que acabar, não é? É bem a ótica de jornalista, tem que entregar, não tem conversa, o fechamento é amanhã. O fechamento do relatório era em agosto. Eu já tinha adiado a entrega, era para apresentar em 2005, ganhei um ano extra de prazo. Mas aí havia a boa surpresa de que falei: os Estados estão preparados para darem o salto. Segundo, as crianças e os adolescentes, considerando que eu não tinha grande experiência em participação de crianças e adolescentes, são os melhores experts. Se nos não os ouvirmos, se os governos não os ouvirem, não será possível caminhar na emancipação deles. Temos que ouvi-los e integrá-los no processo. Mas, em ter-
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ceiro lugar, o quadro era e é muito pior do que tudo o que eu podia imaginar. ■ E quando você dizia exatamente essa úl-
tima frase, o que martelava mais sua cabeça? O trabalho forçado? Os castigos? — O que mais me chocava e choca é a situação das crianças em conflito com a lei. As crianças que estão atrás das grades no mundo inteiro. Crianças cumprindo pena, às vezes misturadas com adultos. E meninas misturadas com meninos e com adultos.
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para as crianças. A Alemanha, por exemplo, vai traduzir e distribuir a versão do relatório para crianças, para 10 mil escolas em todo o país. A França também. ■ O livro em português deve estar pronto já no começo do próximo ano. E a idéia é que ele vá para as livrarias? — Na verdade, as coisas da ONU não são vendidas, então tem que se contar com uma distribuição de bibliotecas, agências. Por ora não pensamos numa edição comercial. Mais adiante podemos fazer um livro que conte um pouco a história do processo e talvez com uma síntese do material obtido.
■ Você
chegou a ver isso de perto? — Ah, claro, eu visito tudo, todo lugar. É o que eu mais faço nos últimos 30 anos. Para mim é penoso, mas tenho que ir. Se você não vai, você não vê, não é?
■ Desde 2003, foram quantas viagens correndo o mundo? — Ah, não sei, umas 50, por aí. Pela Europa, Ásia, África, América... Não que eu goste de viajar. Eu detesto viajar, atualmente o lugar em que mais me sinto mal é aeroporto. Mas se você não viaja não tem contato, e é preciso ter contato com as realidades concretas. Não adianta ficar trocando e-mail com colega, você precisa participar de debates, reuniões... As pessoas precisam se sentir participantes.Acho que conseguimos fazer um processo altamente participatório. E eu agradeço o apoio da FAPESP, porque se ela não tivesse mantido o Núcleo de Estudos da Violência, depois o Centro, esse livrão não existiria, porque eu não estaria associado a esse projeto. Então isso é que vale a pena... ■ O relatório da Assembléia Geral da ONU
até poderia existir, mas não o livro. — Talvez eu possa dizer que o livro não existiria, nos termos em que foi feito. Porque, na verdade, a nossa experiência no Brasil e na América Latina ajudou muito a sua configuração. Não digo, claro, que foi isso só que determinou. Mas é importante destacar nossa experiência para reafirmar que se o país não investe na pesquisa universitária não consegue ter relevância no debate internacional. A coisa que se deve entender é que as ciências sociais estão diretamente ligadas às políticas públicas. E por causa da globalização, por causa da interdependência, se não interferimos hoje nas políticas públicas, no debate públi-
C rianças brasileiras vítim as de violência em centro de recuperação de São Paulo
co internacional, ficaremos à margem. De certa maneira, esse relatório é a inserção da pesquisa brasileira, latinoamericana, de todo mundo, num grande e fundamental debate. Mas, no laço com a FAPESP, digo que é a inserção de um investimento de 20 anos da Fundação numa intervenção com repercussão internacional. Global. Um debate fundamental que propõe também formas de atuar. — Sim, ele não é só, como se diz, para fazer bonito, mas para contribuir para a modificação dessa situação, através desse enorme diálogo, dessa conversa permanente com os Estados. A coisa vai continuar, vai ter prosseguimento. No último capítulo, “The way forward”, está o que propomos.
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■ O livro sai em
inglês. Mas será publicado em outras línguas? — Sim, será traduzido para o francês, espanhol, árabe e português. A Secretaria Especial de Direitos Humanos, do ministro Paulo Vannuchi, vai publicar em português, no Brasil. Quanto ao relatório da Assembléia Geral, ele está nas seis línguas oficiais da ONU, além de alemão e português. Já está traduzido em português pelo Unicef. Além disso, tem uma versão
■ Feito o estudo, tomado o Estado como o agente que primeiro tem que se mobilizar, há algum âmbito da violência que você tenha a expectativa de que seja extinto primeiro? — Não. Eu acho que temos um kit básico que esperamos que se faça já no próximo ano. Primeiro, a tradução da legislação internacional para o âmbito interno. E uma legislação adequada em cada país, inspirada pelas recomendações da ONU. Depois, melhorar os dados, porque tem muitos países, por exemplo, que não têm a mais pálida idéia nem de quantos adolescentes estão encarcerados. E não é possível ter uma política de mudança dessa situação sem os números claros. Há a possibilidade de melhorar também os serviços de atendimento direto, para recebimento de queixas via, por exemplo, as child help line, como o SOS Criança em São Paulo, que hoje existem em uns cem países. Também sugerimos a criação dos ombundsmen, os ombundsperson, para concentrar a defesa dos direitos das crianças e funcionar como canal de acesso para o tratamento desses temas. A França, por exemplo, tem um défenseur, na Noruega também existe, e outros países. Outra proposta do kit básico é caminhar no sentido de os governos assumirem seu papel pedagógico de transformação de práticas, em todos os espaços. A começar pelo apoio aos pais para que aprendam como educar e disciplinar seus filhos sem fazer uso da violência. Ah, a última coisa, muito na linha do que a OMS já está fazendo, e aliás ela acabou de publicar um guia: prevenção da violência. É melhor prevenir do que tentar consertar as lesões depois. •
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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
Darwin no corredor polonês Biologia Celular e Molecular, se diz chocado.“Nós não esperávamos que um movimento criacionista surgisse na Polônia”, afirmou à revista Nature. “É uma catástrofe”, acrescenta Bartosz Borczyk, que está concluindo PhD em zoologia na Universidade de Wroclaw. “As pessoas podem ter a impressão de que há alguma controvérsia acerca do evolucionismo entre os cientistas.” Micha Seweryski, ministro da Ciência, criticou a posição da LPR. “A opinião de uma minoria não vai mudar o currículo escolar.” Membros da Academia Polonesa de Ciências publicaram a carta de protesto em vários jornais do país. “O que merece discussão não é a teoria de Darwin, mas como um vice-ministro pode dizer coisas estúpidas como essas”, disse Ylicz, signatário da carta.
Cinqüenta cientistas da Polônia assinaram uma carta aberta em protesto contra a campanha antievolucionismo lançada pela Liga das Famílias Polonesas (LPR), partido católico ultraconservador que integra a coalizão que governa o país. A gota d’água foi uma entrevista que o vice-ministro da Educação, Mirosaw Orzechowski, indicado pela LPR, concedeu ao jornal Gazeta Wyborcza no dia 14 de outubro. Entre outras frases de efeito, afirmou que “a teoria da evolução é uma mentira, um erro que consagramos como senso comum” e defendeu sua retirada do currículo escolar. A LPR ingressou na coalizão em maio de 2006. Pesquisadores estão apreensivos com o risco de infiltração da campanha criacionista nas escolas. Maciej Ylicz, do Instituto Internacional de
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Estratégias
Mundo
■ Megadoação
salva universidade Às portas da falência, a Universidade Internacional de Bremen foi salva pela maior doação filantrópica já feita a uma instituição de ensino superior da Alemanha. O bilionário Klaus J. Jacobs, nascido em Bremen mas radicado na Inglaterra, doou US$ 250 milhões à instituição. Em reconhecimento, a instituição adotará o nome do benfeitor. Passará a denominar-se Universidade Jacobs de Bremen.“Espero que meu gesto seja seguido. Há muita riqueza em mãos privadas na Alemanha e seria dese20
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jável que parte dela fosse canalizada para universidades”, disse Jacobs, segundo o jornal The New York Times. O hábito de fazer doações a universidades, comum nos Estados Unidos, ainda é raro na Alemanha, em parte devido a regras fiscais que taxam doações.A Universidade de Bremen é uma instituição particular fundada em 1999 graças a um convênio de cooperação entre a Universidade de Rice, nos Estados Unidos, e a Universidade Estadual de Bremen. Funciona no terreno de uma antiga base militar. Atualmente tem 600 alunos de graduação e 300 de pós-graduação.
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■ Caminho
livre para a inovação
Um projeto de lei encaminhado à Câmara dos Deputados da Argentina muda os estatutos do Conselho Nacional de
Investigações Científicas e Técnicas (Conicet), órgão máximo da ciência no país. A grande novidade do projeto é a criação da carreira de tecnólogo, separada da de pesquisador. Tulio del Bono, secretário de
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Ciência, Tecnologia e Inovação produtiva, disse à agência de notícias SciDev.Net que a idéia do projeto é evitar que o pessoal dedicado a desenvolvimentos tecnológicos dispute verbas e espaço com os pesquisadores de ciência básica. “O sistema existente praticamente desestimula a atividade tecnológica. Agora vai haver carreiras distintas, com critérios diferentes de avaliação”,afirmou.“Queremos um crescimento harmônico de ambos os setores.” O projeto deverá ser avaliado pela comissão de ciência da Câmara ainda neste ano.
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■ OMS
sob nova direção
A médica chinesa Margaret Chan foi eleita nova diretorageral da Organização Mundial da Saúde (OMS), em substituição ao sul-coreano Lee JongWook, morto em maio. A escolha causou surpresa. Ocorre que Chan era a diretora de saúde pública de Hong Kong durante a eclosão da epidemia da síndrome respiratória aguda, a Sars, que em 2003 matou 299 pessoas em Hong Kong e 349 na China. O governo chinês, na ocasião, foi criticado por falhar na prevenção e tentar esconder o espectro da epidemia. Chan prometeu, segundo o serviço de notícias da OMS, que exigirá da China “mais cooperação e informações”.
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■ Lucy
vai à América
Lucy, o famoso fóssil encontrado na Etiópia em 1974, deve fazer em breve sua primeira viagem. Irá aos Estados Unidos.A exibição inaugural do hominídeo de 3,2 milhões de anos acontecerá no Museu de Ciências Naturais de Houston em setembro de 2007, junto com outros 200 artefatos do patrimônio etíope. O evento gera controvérsia. A Smithsonian Institution recusou a oferta de exibir o fóssil e ainda divulgou uma nota condenando a viagem. “Achamos que Lucy não deveria sair da Etiópia”, disse o porta-voz do museu, Randall Kremer, à agência Associated Press. Pouca gente já viu de perto os restos de Lucy. O fóssil do ancestral, que reúne 40% dos ossos, está no porão do Museu Nacional da Etiópia, em Addis Ababa. Uma resolução da Associação Internacional para o Estudo da Paleontologia Humana estabelece que fósseis raros devem ser transportados apenas “por forçosas razões científicas”. Moldes costumam ser exibidos no lugar dos originais. Satisfazer o apetite do público traz dinheiro para os países que mantêm relíquias.A exposição Tutankhamun, visitada por multidões nos Estados Unidos, amealhou milhões de dólares que estão ajudando o Egito a preservar
outras antiguidades. Jara Haile Mariam, do Ministério da Cultura da Etiópia, disse à revista Nature que o país espera receber pelo menos US$ 5 milhões com a viagem, com vários museus norte-americanos pagando cada um US$ 300 mil por exibição, além de uma porcentagem da bilheteria.
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■A
parceria China-África
Autoridades de mais de 40 países africanos estiveram em Pequim no início de novembro para celebrar acordos de co-
mércio e investimentos com a China. No encontro de cúpula, que celebrou 50 anos de relações diplomáticas entre chineses e africanos, o vice-primeiro-ministro Wu Yi assumiu uma série de compromissos com os parceiros comerciais, dos quais a China depende para importar petróleo, minério de ferro e cobre. Irá, por exemplo, destinar 300 milhões de yuans (US$ 37,5 milhões) para comprar remédios e bancar tratamentos contra a malária na África. Os chineses vão ajudar os africanos a construir dez centros de ciências agrárias e a criar cem novos hospitais. O número de bolsas para jovens africanos na China deve dobrar para 4 mil até 2009. Um fundo instituído pelo governo de Pequim irá oferecer US$ 5 bilhões em empréstimos e créditos com juros baixos nos próximos três anos. Empresas chinesas com negócios na África poderão usar o dinheiro. “Temos orgulho das relações que a China mantém com a África”, disse Wu Yi, segundo a BBC. O comércio entre China e África multiplicou-se por dez desde 1995. John Page, economista do Banco Mundial, aplaudiu as medidas, mas disse à imprensa chinesa que, como a realidade varia bastante de país para país no continente africano, serão necessários planos detalhados para tornar eficiente a assistência.
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Estratégias
Ciência na web LAURABEATRIZ
Mundo
Envie sua sugestão de site científico para cienweb@trieste.fapesp.br
http://www.ipt.br/areas/ctfloresta/lmpd/madeiras/
O endereço, criado pelo Instituto de Pequisas Tecnológicas (IPT), traz informações técnicas sobre madeiras comerciais brasileiras.
Fôlego para o Hubble A Nasa, agência espacial norte-americana, anunciou que enviará uma nova missão para fazer reparos e levar instrumentos ao telescópio espacial Hubble. A decisão de Michael Griffin, administrador da Nasa, revê decisão de seu antecessor, Sean O'Keefe, que decretara a aposentadoria do telescópio. Os astronautas da Test Servicing Mission 4 (SM4), prevista para 2008, levarão novas baterias e giroscópios para substituir dispositivos que estavam quebrados ou no limite de funcionamento. Sem a troca, a estimativa é que o Hubble deixaria de operar em 2009 ou 2010, podendo até mesmo reentrar na atmosfera por conta da falta de estabilidade provocada pelos giroscópios quebrados. Novos instrumentos também estarão na bagagem do shuttle, como um espectrógrafo para estudo da estrutura e composição de galáxias e gases intergalácticos e uma nova câmera para ampliar a capacidade de observação do Universo. Lançado em 1990, o telescópio espacial, em órbita a 600 quilômetros de altitude, tornou-se 22
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um dos mais importantes instrumentos da história da astronomia. Acumula feitos como a medição da idade do Universo e a descoberta de buracos negros no centro de galáxias.
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■ Teoria
conspiratória Steven Jones, professor de física norte-americano conhecido por sua teoria de que explosivos de demolição destruíram as torres do World Trade Center, aceitou aposentar-se de seu cargo na Brigham Young University. O pesquisador sustenta a teoria com base em análise de solo e de metais retirados dos escombros, mas seus colegas questionaram o rigor de sua pesquisa. Segundo a revista Nature, a direção da universidade forçou Jones a entrar em licença em outubro, enquanto analisava seu trabalho. Antes que a revisão fosse concluída, Jones aceitou aposentar-se. A Associação Americana de Professores Universitários saiu em defesa de Jones, argumentando que a aposentadoria infringe a liberdade acadêmica.
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http://www.thew2o.net/oceanForum.html
O portal World Ocean Observatory, de Nova York, compila notícias sobre recursos marinhos publicados na imprensa internacional.
http://www.ibin.co.in/
O governo da Índia lançou um banco de dados sobre a biodiversidade do país, que reúne milhares de espécies aquáticas, animais, vegetais e microorganismos.
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Fusão sob controle
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■ De volta ao
Grande sertão A edição nº 58 da revista Estudos Avançados, da Universidade de São Paulo (USP), homenageia os 50 anos da obra-prima de Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas. Além de textos de análise literária, a revista traz uma grande reportagem realizada ao longo de uma viagem pelo circuito Guimarães Rosa, também conhecido como sertão “roseano”, em Minas Gerais. O roteiro inclui 13 municípios na região do rio da Velhas – como Codisburgo, morro da Garça e Curvelo, entre outros –, cenários das histórias contadas por Rosa, com direito a visita a capelas e reunião com contadores de histórias que declamam trechos da obra do autor.“Foi uma caminhada ecoliterária”, conta o editor da revista, Marco Antônio Coelho. Acompanha a edição o CD Sons do grande sertão, que reúne músicas e canções inspiradas na obra de Guimarães Rosa. O CD, organizado por Ivan Vilella, professor na USP de Ribeirão Preto, tem viola, violão, caxixi, berrante, roncador – também conhecido como tambor de onça – e rabeca. Traz na sua faixa 2
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Setenta pesquisadores de 17 instituições brasileiras vão integrar a Rede Nacional de Fusão (RNF), criada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) para estimular os estudos em fusão nuclear no país. A coordenação caberá à Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen). Uma das metas da rede, que receberá R$ 1 milhão na fase de implantação, é viabilizar o ingresso de cientistas brasileiros nos estudos com o
um registro inusitado: a “Canção de Siruiz” é interpretada pelo professor da USP e crítico literário Antonio Cândido. O próprio Cândido conta que a “Canção de Siruiz” é a transposição para os versos de Rosa, da melodia de uma velha canção mineira, cantada por um lavador de assoalhos, que sua mãe ouvia quando menina, na cidade de Barbacena.
Reator Termonuclear Experimental Internacional (Iter, na sigla em inglês), que será construído na França com colaboração de países da Comunidade Européia, Estados Unidos, Japão, Rússia, China, Índia e Coréia do Sul.“É fundamental que o Brasil participe desse projeto”, disse o ministro da Ciência e Tecnologia Sérgio Rezende. A fusão nuclear controlada é uma técnica em desenvolvimento que encarna a pro-
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to, professor emérito da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). A honraria é conferida todos
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■ Contribuição
reconhecida A American Thyroid Association (ATA) outorgou o prêmio Sidney Ingbar Distinguished Lectureship Award 2006 ao médico Geraldo Medeiros-Ne-
messa de uma fonte inesgotável de energia. Por meio dela, busca-se fundir dois átomos considerados leves (deutério e trítio, isótopos do hidrogênio), produzindo grande quantidade de energia. Para obter tais reações, é necessário alcançar temperaturas superiores a 100 milhões de graus Celsius. Os desafios tecnológicos para controlar a reação são gigantescos. Mas os benefícios são extremamente atraentes.
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Geraldo Medeiros: conferência em Phoenix
os anos a pesquisadores que fizeram contribuições à compreensão de doenças da tireóide. A entrega do prêmio aconteceu em Phoenix, estado do Arizona, onde o professor proferiu uma conferência no dia 13 de outubro, no 7º Congresso Anual da ATA. É a primeira vez que um pesquisador latino-americano recebe o prêmio. Professor de endocrinologia da FMUSP, Medeiros-Neto, de 70 anos, é presidente do Instituto da Tireóide. É autor de mais de 200 trabalhos científicos e escreveu 15 livros – Tudo o que você gostaria de saber sobre câncer de tireóide é o último deles, lançado em 2005.
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As melhores teses ■ Produtividade
acadêmica O Prêmio Scopus 2006, entregue em Brasília no dia 9 de novembro, homenageou 16 pesquisadores de produção acadêmica destacada. Os nomes foram escolhidos pelo número de artigos publicados, citações recebidas e número de orientandos. Dos premiados, metade atua em instituições no estado de São Paulo. A lista dos vencedores reúne os professores Cesar Victora, da Universidade Federal de Pelotas, Edson Leite, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Claudio Airoldi e Fernando Costa, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); Francisco Salzano, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); Ivan Izquierdo, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; João Lúcio de Azevedo,das universidades de Mogi das Cruzes
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Foram anunciados os ganhadores da primeira edição do Prêmio Capes de Teses. Concedido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), o prêmio reconhece as melhores teses de doutorado aprovadas no país em 38 áreas. No rol dos premiados, 13 são do estado de São Paulo – desses, seis têm ou tiveram bolsas concedidas pela FAPESP. No rol dos 38 premiados, três receberam o Grande Prêmio
e de Caxias do Sul; Leopoldo de Meis e Wanderley de Souza, da Universidade Federal do Rio de Janeiro(UFRJ); Marcia Begalli, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj); Marco Antonio Zago, Osvaldo Novais de Oliveira Junior e Sergio Ferreira, da Universidade de São Paulo (USP); Otto Gottlieb, da Universidade Federal Fluminense (UFF); Elson Longo e José Arana Varela, da Universidade Estadual
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Capes de Teses, um em cada grande área do conhecimento. Claudio Teodoro de Souza foi o vencedor em Ciências Biológicas, da Saúde e Agrárias. Sua tese, defendida na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), descreve a identificação das características da proteína PGC-1alfa, envolvida com a secreção de insulina. O químico Cláudio Ribeiro Júnior, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
Paulista (Unesp). O prêmio é concedido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e pela Editora Elsevier.
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■O
tamanho do bloqueio
Levantamento publicado pelo jornal Folha de S. Paulo, com base em pesquisa no Sistema de Acompanhamento dos Gastos Federais (Siafi), mostrou
criou um sistema capaz de concentrar o suco de laranja com menos alterações de sabor e aroma.A pesquisa lhe rendeu o prêmio em Engenharia, Ciências Exatas e da Terra. A historiadora Maraliz de Castro Vieira, da Unicamp, venceu na categoria Ciências Humanas. A partir da obra Tiradentes esquartejado, de Pedro Américo, a tese analisa a representação que se faz de um fato histórico a partir da arte.
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que estão bloqueados para investimentos em pesquisa R$ 3,9 bilhões provenientes do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, que reúne 15 fundos setoriais. Tais recursos foram bloqueados para que o governo pudesse pagar dívidas. Mas o porcentual de dinheiro retido nos fundos de ciência e tecnologia vem caindo. Em 2002 o contingenciamento chegou a 70% do valor arrecadado. Em 2004 caiu para
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57%.A expectativa é de que represente 39% da arrecadação em 2006 e caia para 36% em 2007. Questionado pelo jornal sobre o que deixou de ser feito em pesquisa tecnológica por conta do contingenciamento, o ministro da Ciência e Tecnologia, Sérgio Rezende, respondeu: “Com certeza, é possível dizer o que não teríamos feito se o nível de contingenciamento fosse os 68% que encontramos em 2003”. Referia-se à modernização de laboratórios que ajudam a prevenir a febre aftosa e à criação da Rede Nacional de Pesquisa de Alta Velocidade,entre outros projetos viabilizados com a liberação de recursos nos últimos anos. Segundo o MCT, o governo promete acabar com o bloqueio em 2010.
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■ Projetos
inovadores A FAPESP e o Instituto Fleury abriram inscrições para a chamada de desenvolvimento de projetos cujos resultados pode-
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rão ser aplicados à prática da medicina diagnóstica, prognóstica e terapêutica. A apresentação de propostas ocorrerá em duas fases. Na primeira, o Instituto Fleury receberá pré-projetos até 16 de fevereiro de 2007 e divulgará os pré-qualificados em 5 de março. Na segunda etapa, os contemplados deverão apresentar à FAPESP, até 9 de abril, uma proposta contendo projeto científico e documentação. O resultado final da análise e seleção será divulgado em 22 de junho. Os projetos terão prazo de execução de, no máximo, 36 meses. A chamada é resultado de um convênio assinado entre a FAPESP e o Instituto Fleury, cujo objetivo é procurar formar competências e financiar projetos inovadores nas áreas de biologia celular, farmacogenômica, proteômica, imagem diagnóstica e intervencionista e medicina baseada em evidências.“Com esse convênio, a FAPESP espera criar mais opor-
tunidades para que a excelente pesquisa existente em São Paulo tenha impacto ainda maior, associando pesquisadores acadêmicos e ligados ao setor empresarial no estudo cooperativo de problemas desafiantes em pesquisa científica e tecnológica”, afirmou o diretor científico da Fundação, Carlos Henrique de Brito Cruz.
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■ Canal
ganha mais agilidade
O Converse com a FAPESP (www.fapesp.br/converse), canal eletrônico de comunicação com os usuários da Fundação, acaba de ganhar uma nova apresentação. O sistema foi aperfeiçoado para oferecer um atendimento mais ágil e eficiente. Ele organiza a comunicação com a FAPESP e evita que pesquisadores, bolsistas e o público tenham de mandar mensagens a e-mails de setores diferentes da Fundação. As solicitações receberão um número de protocolo para facilitar o encaminhamento. Outra mudança importante é que a consulta é feita por assunto e não mais por setor – o que garante o envio direto da consulta ao responsável por sua solução. A primeira tela traz cinco opções de consulta: Informações, com acesso para público geral e bolsistas; Para pesquisadores, destinado a pesquisadores cadastrados como responsáveis por projetos; Canal do assessor, reservado a pesquisadores assessores; Dúvidas; e Ouvidoria.
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Glossário científico Especialistas de dez museus científicos do Brasil e de Portugal vão trabalhar juntos nos próximos dois anos para produzir um thesaurus (vocabulário que cobre de forma extensiva um ramo específico de conhecimento) de instrumentos científicos encontrados em acervos de museus de ciência. A rede será coordenada pelo Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), no Rio de Janeiro, e pelo Museu de Ciência da Universidade de Lisboa (Mcul). O projeto vai catalogar os instrumentos destas instituições, produzindo uma terminologia comum e um glossário capaz de informar para que cada um deles serve.“Instrumentos denominados bússola de marinha e agulha de marear são denominações diferentes que podem se referir ao mesmo tipo de objeto”, diz Marcus Granato, coordenador de museologia do Mast. A padronização facilitará a comunicação entre instituições e contribuirá para a recuperação de dados para a pesquisa.
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CAPA CLIMA
Caminhos da mudança A compreensão de que a emissão de gases de efeito estufa é responsável pelo aquecimento global já é hegemônica. Agora, os países se preparam para enfrentar cenários até recentemente considerados catastrofistas. A reunião COP 12, em Nairóbi, aprovou a criação de um fundo para financiar a adaptação dos países mais vulneráveis. No Brasil, o primeiro modelo climático regional indica que o país estará sujeito a secas e inundações mais severas nas próximas décadas. Pesquisa FAPESP mostra a seguir como os países estão se mobili-
RICARDO AZOURY
zando para enfrentar as mudanças e os resultados do primeiro modelo climático brasileiro. 26
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Angola, África: região deverá ter recursos para adaptar-se às mudanças climáticas
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> C LAUDIA I ZIQUE
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F ABRÍCIO M ARQUES
A 12a Convenção das Partes na Convenção Marco das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 12), realizada em Nairóbi,no Quênia,entre os dias 6 e 17 de novembro, aprovou a criação de um fundo para financiar a adaptação de países pobres aos efeitos das mudanças climáticas. “Algumas nações da África e do Pacífico, como Samoa, por exemplo, correm o risco de ter sua atividade econômica seriamente comprometida”, diz Luis Fernandes, secretário executivo do Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT) que chefiou a delegação brasileira em Nairóbi. O fundo de adaptação será formado com uma parcela dos recursos gerados no âmbito do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), previsto pelo Protocolo de Kyoto, que permite que os países desenvolvidos – comprometidos com metas de redução de 5% de emissões entre 2008 e 2012 – compensem déficits por meio da aquisição de créditos de carbono gerados em projetos de tecnologia limpa implementados por países em desenvolvimento. O MDL entrou em funcionamento em 2005 e, já no ano passado, movimentou algo em torno de US$ 11 bilhões. Neste ano, a expectativa é que esse mercado atinja a casa dos US$ 30 bilhões. “O fundo será uma espécie de CPMF (a contribuição sobre movimentação financeiro brasileira) dessas transações”, resume Luiz Gylvan Meira, do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, um dos idealizadores desse mecanismo. O funcionamento do fundo de adaptação será definido em 2007, na COP 13, na Indonésia. “A adaptação revela a dimensão mais perversa do aquecimento, já que os países menos responsáveis pelas emissões de gases de efeito estufa são os mais afetados”, comenta Fernandes. Mercado de carbono - A COP 12 acabou com o que ainda havia de ceticismo em relação ao sucesso do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo como ferramenta para redução de emissões: em pouco mais de um ano de funcionamento, 1.293 projetos de MDL estavam em andamento em todo o mundo, a grande maioria deles concentrada na Índia (460), Brasil (193) e China (175). Tanto que durante o encontro em Nairóbi, o secretário-geral das Nações Unidas (ONU), 28
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Kofi Annan, anunciou a disposição de seis organismos da ONU em ajudar nações em desenvolvimento, em particular a África, a ingressar no mercado de crédito de carbono. A tendência, de acordo com Fernandes, é que, nos próximos anos, Índia e China assumam a liderança do MDL, já que estes países, diferentemente do Brasil, têm matriz energética considerada “suja” e buscam implementar o uso de energias renováveis. “O grande problema brasileiro é o desmatamento”, analisa Fernandes.“Somos responsáveis por 4% das emissões mundiais de gases de efeito estufa. Deste total, 3% é desmatamento.” O país já conseguiu resultados positivos com a ampliação de ações de fiscalização e com a criação de unidades de conservação, homologação de terras indígenas e projetos de assentamentos sustentáveis, entre outros.“No ano passado registramos redução de 32% no desmatamento”, garante Fernandes. Esse porcentual, no entanto, ainda está longe de ser satisfatório e muito menos sustentável. Ação contra o desmatamento - No en-
contro de ministros, em Nairóbi, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, apresentou a proposta de criação de um mecanismo de incentivos positivos para países em desenvolvimento que efetivamente reduzirem suas emissões de gases de efeito estufa por meio do combate ao desmatamento. A proposta brasileira prevê que estas nações recebam recursos e tecnologias internacionais para aprimorar o combate ao desmatamento.A idéia é que a redução de emissões seja contabilizada a partir de uma taxa média de desmatamento de referência e de parâmetros definidos de toneladas de carbono por bioma ou por tipo de vegetação, num determinado período de tempo. No caso brasileiro, o cumprimento das metas seria monitorado pelo Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter), baseado em imagens de satélite. A adesão dos países em desenvolvimento ao programa de metas seria voluntária, assim como os investimentos das nações desenvolvidas. A diferença registrada entre as metas e queda de emissões se converteria em incentivo financeiro,
ou seja, créditos a receber. Se, ao contrário, as emissões por desmatamento ampliassem, o país teria um débito a ser descontado no futuro. Para alguns observadores presentes ao encontro, a proposta brasileira foi recebida com frieza. Mas, na visão de Fernandes, a idéia deve ser levada em frente.“O grande desafio será incluí-la na pauta da próxima reunião, na Indonésia”, afirmou. Cenários pessimistas - O encontro de Nairóbi foi marcado por alguma tensão entre representantes das nações em desenvolvimento e de países desenvolvidos, notadamente os da União Européia, que apresentaram proposta de revisão da agenda do Protocolo de Kyoto para 2008. O acordo prevê, de fato, avaliação (review) periódica dos compromissos. “O problema foi que o termo review foi interpretado como revisão”, ele esclarece. Em 2008 haverá nova avaliação do protocolo que, no entanto, não resultará em novas obrigações para nenhuma das partes.Qualquer mudança de agenda só ocorrerá em 2012, quando encerra o primeiro período de compromissos estabelecido pelo acordo. Ninguém arrisca qualquer palpite sobre os rumos das negociações para a segunda fase de Kyoto. A compreensão de que a emissão dos gases de efeito estufa está diretamente relacionada com o aquecimento global é, a cada ano, mais hegemônica. A cada nova pesquisa sobre o tema surgem novas evidências. A análise de um novo núcleo de gelo extraído da Antártida, segundo estudo recente publicado pela revista Nature, as bruscas variações climáticas ocorridas nos últimos 150 anos estão estreitamente inter-relacionadas em ambos os hemisférios. Os resultados parecem demonstrar que essas mudanças resultam de uma redução na circulação termo-halina, provocada por diferenças de temperatura e salinidade nas águas do mar e que as grandes oscilações de temperatura na Groenlândia não é um fenômeno isolado: os cientistas apontam a circulação oceânica atlântica como o mecanismo de ligação com o hemisfério Sul. Outro estudo sobre efeitos das mudanças climáticas na economia, encomendado pelo governo britânico a Nicholas Stern, economista do Banco Mun-
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dial, divulgado em outubro, faz previsões catastróficas: se não se investir 1% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial na redução de emissões, o aquecimento global devastará a economia mundial numa escala comparável à das duas guerras mundiais e da grande depressão de 1929. Nas contas de Stern, o custo final de uma mudança climática descontrolada ficará entre 5% e 20% do PIB mundial, nos próximos 50 anos. A pesquisa no Brasil - Evidências e cenários contagiam os debates. Há dois anos, a Convenção das Partes discutia medidas mitigadoras do aquecimento global. Neste ano, como se viu, os debates se centraram na preocupação com a adaptação dos países potencialmente mais afetados pelas mudanças climáticas. O Brasil, a exemplo de outros países, começa a construir modelos mais precisos para avaliar os efeitos das variações climáticas, como o que foi realizado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe (veja página 30). O país também se preocupa em identificar as suas áreas mais vulneráveis: com o patrocínio do MCT, um grupo de pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) criou o Índice de Vulnerabilidade Geral (IVG), composto pela ponderação de 11 indica-
dores que medem a incidência de doenças, condições de vida e oscilações do clima, entre outros, para avaliar o grau de vulnerabilidade de determinada região às transformações climáticas. A principal conclusão do estudo coordenado pelo epidemiologista Ulisses Confalonieri, da Escola Nacional da Saúde Pública da Fiocruz, é que o Nordeste, sobretudo o estado de Alagoas, tem baixa capacidade de suportar os efeitos do aquecimento. Na escala de 0 a 1 do IVG, Rio Grande do Sul é o estado mais seguro, com pontuação de 0,13 e Alagoas, o mais ameaçado, com 0,64 (veja Pesquisa FAPESP, edição 121). As pesquisas sobre os efeitos do aquecimento, no entanto, ainda são pontuais, na avaliação de Carlos Nobre, pesquisador do Inpe, falta-lhes articulação e foco.“Gastamos muito tempo fazendo inventário de emissões e discutindo a questão da mitigação, para manter a competitividade da indústria brasileira, mas investimos muito pouco em adaptação”, diz, qualificando a posição brasileira de “terceiro-mundista”. Para Nobre, o país focou sua atenção no aproveitamento econômico de oportunidades como o MDL. “Faltou a visão para o essencial: nossa economia é baseada em recursos naturais. Dependemos muito da água e do clima. Somos o lado perdedor das
Cordilheira dos Andes, Peru: aquecimento global provoca derretimento acelerado de geleiras
mudanças climáticas.” O MCT, ele diz, investiu pouco nesse tipo de pesquisa.“A Argentina, Uruguai e Chile estão melhores do que o Brasil nos estudos de impacto”, compara. Paulo Artaxo, pesquisador do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do Instituto do Milênio do experimento Large Scale Biosphere – Atmosphere Experiment in Amazônia (LBA), tem uma visão mais otimista do estado da arte das pesquisas brasileiras.“Estamos em pé de igualdade com a maioria dos países europeus”, avalia. O que falta, na sua opinião, é uma política nacional que oriente o trabalho dos cientistas.“Não existe uma linha de pesquisa em mudanças globais no país. Só há iniciativas individuais”, diz. Para ele, é necessário definir áreas prioritárias. “Todos os modelos apontam para uma maior incidência de eventos extremos, como secas e inundações, mas ainda não conhecemos os mecanismos que vão produzir essas mudanças.” • PESQUISA FAPESP 130
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Um Brasil mais quente Primeiros cenários usando modelos climáticos regionais apontam para secas
e inundações mais severas sob temperaturas mais altas e umidade mais baixa,
com impactos sobre a saúde humana e a produção de alimentos | C ARLOS F IORAVANTI
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nomia”, diz José Antonio Marengo Orsini, meteorologista do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC) do Inpe e coordenador desse trabalho. “Podem também embasar políticas públicas que procurem reduzir os prejuízos associados às mudanças do clima, por meio da redução de desmatamentos e da emissão de gases do efeito estufa.” Até agora só era possível imaginar os impactos das mudanças climáticas no Brasil por meio das projeções dos modelos globais. Feitos por instituições dos Estados Unidos ou da Europa, fornecem uma visão panorâmica de grande escala, com as médias das temperaturas continentais, não muito úteis para as avaliações de impactos climáticos regionais. Por lidarem com uma escala bem menor, os modelos regionais indicam, por exemplo, se pode haver variação no volume de água das bacias hidrográficas e assim prever problemas no abastecimento de cidades ou para a navegação. “É como se agora olhássemos o Brasil com uma lupa”, diz Marengo. Segundo Pedro Leite da Silva Dias, professor da Universidade de São Paulo (USP), modelos regionais como o do Inpe podem ser bastante úteis para entender processos climáticos específicos e tentar descobrir se a brisa marinha continuará chegando à cidade de São Paulo ou se vai mudar a freqüência de tempestades do Paraguai para o sul do Brasil. Vulnerabilidade – Os gráficos e os mapas com as projeções de mudanças climáticas, que saem dos supercomputadores do CPTEC, indicam uma elevação de 2° a 3° Celsius (C) na temperatura média anual de quase toda a faixa litorânea e boa parte do interior do Brasil, enquanto em uma área ao
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Cidades que desaparecem sob o mar e a Amazônia transformada em deserto não é o que nos espera no futuro imediato. Mas existem, sim, riscos de elevação da temperatura média anual nas próximas décadas em toda a América do Sul. Podem até mesmo surgir áreas quase desérticas no interior do Nordeste, de acordo com os cenários sobre o clima do futuro usando pela primeira vez modelos climáticos regionais, desenvolvidos no Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe). Desenha-se um Brasil menos tropical e úmido e mais quente e mais seco. Essas transformações podem afetar a produção de energia elétrica, na medida em que a água dos rios e das represas evaporar mais rapidamente, e a saúde humana: doenças como malária e dengue poderiam se propagar mais intensamente sob um clima mais quente e úmido; já num clima mais quente e seco as doenças respiratórias é que poderiam se tornar mais comuns. A economia brasileira, em especial a agricultura, pode ganhar outro perfil. Estimativas anteriores, feitas com base em modelos globais, já haviam apontado para reduções progressivas nas safras de culturas agrícolas básicas como trigo, milho e café, cujas áreas de plantio tenderiam a deslocar-se para o sul do país à medida que o calor aumentasse. Ao mesmo tempo ganha força uma vertente de pesquisa que alerta para a necessidade de ações preventivas e para a urgência de sementes adaptadas a climas mais quentes como forma de evitar o desabastecimento da população. “Os cenários climáticos futuros devem ser vistos como matéria-prima para estudos mais aprofundados sobre os impactos das mudanças climáticas sobre a biodiversidade, a saúde, a agricultura e a eco-
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Afluente seco do S達o Francisco: interior do Nordeste pode se tornar ainda mais seco
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de eventos climáticos extremos mais freqüentes, já indicados pelos modelos globais, embora não com tantos detalhes. Na prática: chuvas mais fortes e curtas que resultariam em temporais mais intensos que os de hoje ou, contrariamente, secas mais longas, que poderiam transformar o semi-árido do interior do Nordeste em uma região quase árida. Uma média de 16 modelos globais do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), por sinal, já havia indicado uma redução de 40% na precipitação da Região Nordeste do Brasil. Chuvas atrasadas - De acordo com
Sob as águas: perspectiva de enchentes mais intensas nas próximas décadas
norte do Amazonas equivalente ao estado de São Paulo o aquecimento pode chegar a 6°C. Essas projeções referem-se ao cenário otimista, que pressupõe o cumprimento integral das metas de redução de poluição do Protocolo de Kyoto. Nesse caso, tudo seria feito para evitar os danos do aquecimento global. No outro extremo, o cenário pessimista pressupõe que nada seja feito ou nada funcione para deter o aquecimento global – e as emissões de gás carbônico, um dos principais agentes do aquecimento global, permaneceriam altas. Sob essa perspectiva mais sombria, de acordo com as projeções do Inpe, uma larga faixa que abrange as principais capitais do Brasil estaria sujeita a temperaturas médias anuais até 4°C mais altas. A maior parte do país estaria sujeita a uma temperatura média anual até 6°C mais alta e uma pequena faixa de terra ao nor32
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te do Amazonas poderia ir além e apresentar uma elevação de até 8°C em relação ao período de 1961 a 1990, adotado no mundo inteiro como ponto de partida dos modelos climáticos. A quantidade e distribuição de chuva também devem se modificar, segundo as projeções do CPTEC/Inpe. Os dois cenários extremos – de baixa e de alta emissão de gás carbônico – sugerem que poderá chover menos tanto na Amazônia e no Centro-Oeste, prejudicando a sobrevivência da Floresta Amazônica e do Pantanal, que dependem da umidade, quanto na Região Nordeste. No Sul e Sudeste do Brasil e em pelo menos metade da Argentina a pluviosidade tenderia a aumentar, embora com uma menor contribuição da umidade vinda da Amazônia. As primeiras projeções de clima futuro no Brasil usando modelos climáticos regionais sugerem a possibilidade
esse novo estudo, as chuvas poderiam se tornar mais raras especialmente no inverno, quando a Amazônia estaria sujeita a temperaturas médias 4°C mais altas e o Sudeste, de 2° a 3°C, no cenário otimista. “Essa constatação é preocupante”, diz Marengo, “porque a primavera é o início da estação chuvosa em todo o Brasil”. Se de fato chover menos na primavera, as chuvas de verão, que começam no final de outubro no Sudeste e em dezembro no Norte, poderão atrasar dois a três meses e prejudicar a oferta de alimentos, já que são exatamente as primeiras águas do final de ano que marcam a hora de plantar arroz, feijão, milho, soja e trigo. A estiagem que deixou encalhados barcos no meio dos leitos dos rios secos e isolou quase 300 mil pessoas nos estados do Amazonas e do Pará no ano passado foi causada justamente por um atraso de dois meses na chegada das chuvas. “A seca da Amazônia em 2005 representa um tipo de episódio climático extremo que pode se tornar mais freqüente na segunda metade do século XXI”, diz Marengo. Um estudo recente de que ele é um dos autores mostra que a mais grave seca da Amazônia no último século não deve ter sido causada pelo aquecimento global ou pelo desmatamento, como a princípio se alardeou, mas provavelmente resultou da sobreposição de águas e ventos mais quentes do oceano Atlântico ao norte e ao sul do equador – um raro fenômeno climático que ajuda a explicar também o furacão Katrina no sul dos Estados Unidos. “Os cenários dos modelos regionais que elaboramos podem estar no caminho certo, porque indicou a possi-
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Menos chuva e mais sol Os cenários e os possíveis impactos das mudanças de clima no Brasil na segunda metade do século XXI REGIÃO NORTE Cenário otimista (baixas emissões de poluentes): Temperatura média anual de 3° a 5°C mais alta, umidade do ar até 15% mais baixa e atraso no início da estação chuvosa. Mais incêndios e redução no nível dos rios e no transporte de umidade para as regiões Sudeste e Sul. Cenário pessimista (altas emissões de poluentes): De 4° a 8°C mais quente, 15% a 20% mais seco e atraso da estação chuvosa. REGIÃO NORDESTE Cenário otimista: Até 3°C mais quente e 15% mais seco. Redução no nível de água dos açudes e na produção agrícola. Cenário pessimista: De 2° a 4°C mais quente e até 20% mais seco. REGIÃO CENTRO-OESTE Cenário otimista: De 2° a 4°C mais quente, com impactos sobre
a biodiversidade, a agricultura e a saúde da população. Cenário pessimista: De 3° a 6°C mais quente. REGIÃO SUDESTE Cenário otimista: De 2° a 3°C mais quente. Extremos de chuvas, de enchentes e de temperaturas mais intensos, com impactos na agricultura, na saúde da população e na geração de energia elétrica. Cenário pessimista: De 3° a 6°C mais quente. Chuvas e enchentes mais fortes. REGIÃO SUL Cenário otimista: De 1° a 3°C mais quente, com extremos de chuva, enchentes e de temperatura. Cenário pessimista: De 2° a 4°C mais quente e de 5% a 10% mais chuvoso, com extremos de chuva, enchentes e temperaturas mais intensos. FONTE: JOSÉ MARENGO - CPTEC/INPE
bilidade de ocorrerem outros fenômenos similares a essa seca, que já aconteceu”, diz o pesquisador do Inpe, que trabalhou com as equipes de Tércio Ambrizzi, da USP, e Eneas Salati, da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS), em colaboração com pesquisadores do Hadley Centre, Inglaterra. “Temos de nos preparar para essas situações extremas.” Mas nada deverá mudar da noite para o dia. De acordo com os cálculos preliminares da equipe do Inpe, a temperatura média deverá se alterar de modo lento e gradual até 2030, acompanhando uma curva suave – mais precisamente, o início de uma parábola, que representa o acúmulo de gás carbônico na atmosfera e deve refletir também o ritmo de aquecimento global. Só então é que devem começar as mudanças mais acentuadas, que devem culminar nesse quadro mais seve-
ro, de secas mais intensas no Norte e Nordeste e chuvas mais fortes no Sudeste e Sul, por volta de 2070 a 2100. Até lá, pode-se ter apenas uma noção dos impactos das mudanças climáticas, com base nas projeções feitas por meio de modelos climáticos globais, que oferecem uma visão menos detalhada que as abordagens regionais – tanto a Argentina quanto o Peru já fizeram seus próprios modelos, apresentados em uma conferência realizada em 2005 em São Paulo, ainda que aplicado a áreas menores que o brasileiro. O derretimento das geleiras dos Andes deve acelerar e reduzir a quantidade de água nas casas dos moradores das capitais e das cidades mais altas do Peru e do Chile. Um dos modelos do IPCC sugere que a Floresta Amazônica possa se tornar uma vegetação mais baixa e menos densa – uma savana – por volta de 2040. Uma eleva-
ção de meio metro no nível do mar já bastaria para causar ressacas mais fortes e agravar a erosão costeira. “Os holandeses já estão reforçando os diques”, afirma Dias. Claro: é impossível prever com exatidão o comportamento da temperatura, da pressão atmosférica, da umidade,da radiação solar e dos ventos de superfície e de altitude por meio das equações matemáticas que integram os modelos climáticos. Mesmo os cálculos sobre a variação da temperatura global passam por ajustes. O terceiro relatório do IPCC, elaborado a partir de imagens com uma resolução gráfica de 400 quilômetros quadrados, previa em 2001 que a temperatura média do Brasil subiria 1,6°C no cenário otimista e até 5,8°C no pessimista. O próximo relatório, a ser publicado em 2007, indica que o aquecimento pode ir de 2°C até 4,5°C, respectivamente, nos cenários de baixa ou de alta poluição. Soja, mata e ventos - “Não pode-
mos dizer se a precipitação na região Amazônica diminuirá 50% ou 80%, mas com certeza será menor”, diz. Só que mesmo mudanças sutis podem ser fatais. Dois estudos publicados este ano, um no Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) e outro na Earth Interactions, mostraram que as plantações mecanizadas de soja, ao transformarem a floresta em imensas áreas abertas, contribuem para deixar o clima da região mais quente por ampliar a quantidade de radiação solar absorvida pela terra e reduzir a circulação de água pelo solo e pela atmosfera. Monitoradas por meio de imagens de satélite, áreas desmatadas apresentam uma temperatura 3°C mais alta que a das florestas próximas. “Além de o clima se tornar mais quente”, diz Alexandre Oliveira, biólogo da USP, “o ciclo da água pode mudar, tornando o ambiente mais seco e diminuindo a circulação de umidade na atmosfera”. Nesse caso, os ventos da Amazônia que chegam ao Sul e Sudeste chegarão com menos umidade, agravando os efeitos da seca sobre o campo e as cidades. “Agora precisamos aplicar os resultados”, diz Marengo, que contou com financiamentos do Projeto de Conservação e Utilização Sustentável da DiversiPESQUISA FAPESP 130
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Risco no campo: produção de café pode cair mesmo com sutis elevações de temperatura
dade Biológica Brasileira (Probio) do Ministério do Meio Ambiente (MMA), do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) e do Global Opportunity Fund (GOF) do governo inglês. Marco Aurélio Machado, do Inpe, começou a aplicar esse modelo regional para prever o impacto das mudanças climáticas sobre a agricultura brasileira.As conclusões a que está chegando apenas detalham as obtidas por meio dos modelos climáticos planetários. “As perdas serão inevitáveis”, conclui Hilton Silveira Pinto,diretor-associado do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura (Cepagri) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pesquisas do Cepagri e da Embrapa Informática com base nas projeções dos modelos climáticos globais sugerem que o Brasil pode perder cerca de 25% da área com potencial para plantio de cafezais em Goiás, Minas Gerais e São Paulo, com perdas estimadas em US$ 500 milhões por ano, se a temperatura subir 1°C. Três graus a mais e a área para plantio cairia para um terço da atual. Seis graus a mais na temperatura média anual, de acordo com as mais pessimistas projeções tanto dos modelos globais quanto, agora, dos regionais, implicam praticamente a extinção dos cafezais das terras paulistas e dos atuais estados produtores. O café ganharia então as terras hoje mais frias do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, até chegar à Argentina. Por sua vez, as plantações de trigo e de girassol do Sul tenderiam a se tor34
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nar inviáveis à medida que as temperaturas subissem.Nos últimos dois anos a produção de trigo já caiu 50% – em conseqüência o preço da farinha de trigo deve subir 25% em 2007. Ovos sem casca - “Nos próximos 15 anos haverá alterações razoáveis no cenário agrícola do país”, afirma Hilton Pinto, cuja equipe elaborou simulações também para outras culturas agrícolas: as plantações de arroz sofreriam perdas de 30% em São Paulo e na Bahia, as de feijão poderiam cair de 21% em São Paulo a 41% no Nordeste, e as de milho 16% em São Paulo e 71% no Nordeste apenas com 1°C a mais na temperatura média anual.
OS PROJETOS 1. Caracterização do clima atual e definição das alterações climáticas para o território brasileiro ao longo do século XXI. 2. Using regional climate change scenarios for studies on vulnerability and adaptation in Brazil and South America. COORDENADOR
JOSÉ ANTONIO MARENGO ORSINI – CPTEC/Inpe INVESTIMENTO
1. R$ 260.000,00 (Ministério do Meio Ambiente-Probio) 2. R$ 520.000,00 (Global Opportunity Fund)
Os animais também preocupam, porque igualmente se deixam abater quando o tempo esquenta: galinhas botam ovos sem casca ou morrem, leitoas abortam, leitões mais jovens morrem e as vacas produzem menos leite. Em uma amostra do que se pretende evitar, em uma onda de calor em setembro de 2004 a temperatura esteve 4°C acima do habitual durante alguns dias e causou prejuízos estimados em US$ 50 milhões somente no estado de São Paulo. A perspectiva de tomarmos café da Argentina pode não ser apenas um desejo de vingança dos argentinos depois de perderem da seleção brasileira.“Definitivamente”, diz Hilton Pinto,“já está havendo um aumento da temperatura”. Segundo ele, desde 1890 até hoje as temperaturas mínimas subiram 2,7°C e as máximas 1,3°C em São Paulo, estado que gera 35% da receita agrícola nacional. Outra indicação de que o tempo pode não estar disposto a esperar: por quatro anos seguidos, de 2001 a 2004, a produção de café no sul de Minas Gerais sofreu um baque porque a temperatura máxima passou dos 34°C. O calor mais intenso chegou em outubro e matou boa parte dos jovens e frágeis botões florais que dariam origem aos frutos. “É muito pouco provável que eventos climáticos como esse sejam devidos apenas à variabilidade climática natural”, comenta Dias, da USP. “Pode já ser um tênue sinal de aquecimento global no Brasil e dos impactos que possa causar.” •
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PARCERIA
A corrida do etanol FAPESP e Oxiteno convocam pesquisadores para buscar soluções que reduzam custos do álcool
FERNANDO VILELA
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FAPESP e a Oxiteno, uma das maiores indústrias químicas do país, lançaram uma chamada pública de propostas para projetos de pesquisa na área de tecnologia para produção de açúcares,álcool e derivados.O objetivo é envolver pesquisadores de instituições paulistas na busca de soluções tecnológicas que ajudem a reduzir os custos de produção de álcool combustível,o etanol. A Oxiteno,empresa do grupo Ultra,tem interesse em produzir produtos químicos com preços competitivos usando insumos naturais,como álcool e açúcar.Hoje a produção com matéria-prima sintética é mais barata.“Nossa expectativa é que a comunidade acadêmica responda rápida e enfaticamente a essa parceria importante para o desenvolvimento de uma área fundamental para a economia brasileira”,disse Pedro Wongtschowski,diretor superintendente da Oxiteno.“Por meio dessa parceria com a FAPESP,pretendemos transformar boas idéias em inovações,tecnologias e produtos de elevada importância.” Trinta e cinco por cento do etanol fabricado no mundo provém do Brasil e, destes 35%,60% vêm do estado de São Paulo.Em 2005,pela primeira vez,os Estados Unidos empataram com o Brasil na liderança mundial da produção,ambos com 16 bilhões de litros de álcool.Enquanto o etanol norte-americano,extraído do milho,é fortemente subsidiado pe-
lo governo,o brasileiro,obtido por meio da cana-de-açúcar,é o mais barato do mundo.Na corrida tecnológica para garantir a liderança,um dos desafios é conseguir ampliar ainda mais a produtividade da cana sem precisar aumentar demasiadamente a área de cultura.Apenas um terço da biomassa da planta – a sacarose extraída da cana – transforma-se em etanol.Os outros dois terços,compostos por bagaço e palha,são desperdiçados ou queimados.Uma das tarefas que serão enfrentadas pelos pesquisadores paulistas é a busca de soluções para aproveitar esses insumos descartados.Para a FAPESP, o programa é importante porque está vinculado a um produto de importância econômica fundamental para a economia do estado de São Paulo e do Brasil. Um dos objetivos da Fundação é estimular o trabalho dos pesquisadores envolvidos com estudos de etanol e também atrair para essa linha de investigação bons pesquisadores hoje dedicados a outros interesses.“Novas tecnologias,especialmente em hidrólise,que é a conversão da celulose em etanol,são um foco importante de pesquisas em outros países”,disse Carlos Henrique de Brito Cruz,diretor científico da FAPESP.“É importante destacar que se trata de uma associação com uma empresa como a Oxiteno,que tem forte atividade de pesquisa e uma cultura que valoriza essa área.” Serão investidos R$ 6 milhões,sendo a metade bancada pela Oxiteno e a outra metade pela FAPESP e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).Os pesquisadores deverão enviar seus pré-projetos até o dia 5 de janeiro de 2007.As propostas devem se enquadrar em alguma das 16 áreas temáticas de pesquisa descritas na chamada pública.A Oxiteno fará uma primeira avaliação das propostas,selecionando as que combinarem melhor com os propósitos da empresa.Num segundo momento,os coordenadores das propostas selecionadas na primeira fase deverão apresentar a versão completa dos projetos,que serão avaliados por consultores ad hoc e coordenações da FAPESP,seguindo as normas para o Programa de Inovação Tecnológica (Pite).“Essa é uma grande contribuição que a FAPESP pode dar para o programa,que é usar sua experiência em avaliação de projetos para garantir a qualidade das propostas selecionadas”,disse Brito Cruz. • PESQUISA FAPESP 130
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FOMENTO
Um norte para o
Amazonas Estado viabilizou, em apenas quatro anos, sistema estadual de ciência e tecnologia
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pesquisa no estado do Amazonas limitava-se, até pouco tempo atrás, a iniciativas isoladas de instituições como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa),o Instituto Nacional de Pesquisas Amazônicas (Inpa) e as universidades federal e estadual.Essa realidade mudou.Com a criação,em 2003, da Secretaria de Ciência e Tecnologia (Sect),o Amazonas consolidou uma estrutura que hoje apóia 4 mil bolsistas – boa parte deles trabalhando em cidades do interior –,patrocina dezenas de programas de pesquisa e está levando as entidades acadêmicas a trabalhar em temas prioritários para o desenvolvimento regional,como o tratamento de doenças infecciosas,desenvolvimento de cadeias produtivas de produtos da floresta,etnoconhecimento, biotecnologia, microeletrônica,entre outros. Quem liderou essa mudança foi a socióloga Marilene Corrêa da Silva Freitas, 56 anos,secretária estadual de Ciência e Tecnologia.“Atualmente o Amazonas já participa de diversos programas que
envolvem parcerias federais,o que requer não apenas contrapartidas financeiras como a criação de uma estrutura de avaliação e acompanhamento”,reconhece Jorge Bounassar,presidente do Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa e da Fundação Araucária de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Paraná. Foi o seu trabalho no campo de políticas públicas – consolidado no pósdoutorado em sociologia na universidade de Caen,na França,e na divisão de pesquisa e ensino superior da Unesco, em Paris – que viabilizou o seu nome para a Sect.“Se não houver compreensão das prioridades da região pelo gestor público,as iniciativas tendem a fracassar ou a ficar restritas às experiências de campos disciplinares,sem conexão com as realidades da Amazônia”,afirma a secretária.Em outubro,Marilene Corrêa foi uma das três finalistas na categoria Políticas Públicas do Prêmio Claudia,conferido pela Editora Abril. Reforço estratégico – Além de formar
recursos humanos e interiorizar a pesquisa,a ação do governo busca fortalecer a infra-estrutura das instituições acadêmicas e dar cobertura às empresas do
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ABIURO
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pólo industrial de Manaus. Uma das principais ferramentas da mudança foi a implantação, também no início de 2003, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam). O orçamento de R$ 53 milhões em 2006 – R$ 5 milhões superior ao de 2005 – equivale a 1% da arrecadação de impostos do estado mais uma porcentagem que o Amazonas recebe dos fundos setoriais. Com tais recursos, a Fapeam já lançou 28 editais que tratam de questões-chave como programas de financiamento à formação de recursos humanos, principalmente mestres e doutores, e de ciência e tecnologia para o Amazonas verde tendo como meta a sustentabilidade da economia regional e do meio ambiente. É neste sentido que a Sect, em convênio com o governo federal, formulou um programa de apoio à implementação de um centro de biotecnologia no Amazonas. Outra dimensão do mesmo propósito são os programas em empresas que desenvolvem produtos com os recursos naturais da Amazônia e que consolidam a base tecnológica local. A formação de pesquisadores indígenas e caboclos vai no mesmo sentido de inclusão de populações amazônicas nas cadeias de conhecimento de instituições de pes-
quisa.“A criação da Fapeam estava prevista desde o final dos anos 1980, com orçamento de 3% da arrecadação tributária do estado, mas não saía do papel. Mais tarde mudou-se o porcentual para 0,3% e nem assim começou a funcionar”, lembra Marilene. Com a retaguarda da fundação, o Amazonas investe em várias frentes. Patrocina, hoje, cerca de 4 mil bolsistas, sendo 500 de mestrado e doutorado, além de apoiar, com financiamento direto, as coordenações dos cursos de pósgraduação. Para reforçar a massa crítica nas instituições de pesquisa, foi criado o programa Jovem Doutor Amazônida, que busca fixar doutores em linhas de pesquisa no interior do Amazonas. Ou o Jovem Cientista Amazônida, de iniciação científica, que conta hoje com mais de 350 bolsistas índios e interioranos, do ensino médio e fundamental, desenvolvendo projetos em áreas indígenas ou localidades isoladas. Outro programa busca atrair professores doutores de outros estados, oferecendo um “enxoval” mensal de até R$ 50 mil, caso de pesquisadores com pelo menos 25 anos de carreira, para atender às exigências de pesquisa de ponta nos laboratórios já implantados do Centro de Biotec-
nologia e de outras instituições. Esse valor inclui o salário do pesquisador, de R$ 8 mil a R$ 10 mil, bolsas para doutorandos e mestrandos e o custeio da pesquisa. O objetivo é que eles fiquem no Amazonas quando a bolsa terminar. Há a preocupação em induzir pesquisas sobre a sustentabilidade da exploração da floresta ou sobre doenças infecciosas, mas as políticas públicas buscam exorcizar o mito de que é só isso que os pesquisadores e as instituições do estado têm a oferecer. “Na definição da política industrial brasileira há três grandes setores que são potenciais para o desenvolvimento local: semicondutores, fitofármacos e software, mas toda a opinião pública nacional pensa o Amazonas como extrativismo”, diz Marilene Corrêa. Ela se refere ao apoio do governo à atividade de oito institutos de pesquisa e desenvolvimentos da área privada, vinculados a empresas da Zona Franca de Manaus.“Só o Instituto Genius, da Gradiente, tem cerca de 15 pesquisas de alto nível em desenvolvimento. Outras empresas, como a Nokia, a Samsung e a Honda, também mantêm aqui os seus institutos de pesquisa.” •
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CIÊNCIA
Laboratório
Mundo
A cizânia da fortuna
EDUARDO CESAR
Há quem diga que fortuna gera egoísmo.A psicóloga Kathleen Vohs,da Universidade do Minnesota (Estados Unidos),mostrou que nem precisa haver riqueza real em jogo para emergirem sentimentos ocultos. Kathleen e sua equipe testaram a disposição para cooperar em voluntários induzidos ou não a pensar em dinheiro.Para encher o pensamento de cifrões,bastou que os participantes do estudo vissem fotografias de dinheiro,manuseassem uma pilha de dinheiro de um jogo como banco imobiliário ou lessem um texto sobre riqueza,por exemplo.Os testes mostraram um comportamento diferente entre os voluntários com e sem dinheiro na cabeça:os primeiros custavam mais a pedir ajuda para resolver um problema,gastavam menos tempo socorrendo um companheiro e recolhiam menos lápis derrubados por um passante desastrado. Esse estudo,publicado na revista Science de 17 de novembro, alerta para o perigo que a riqueza pode representar para relações sociais e comunitárias.
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■ Tuberculose
reaparece
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país isoladamente.Para uma ala mais crítica do atual Ministério da Saúde,a situação de hoje sugere que o governo falha ao lidar com uma doença que constitui um problema de saúde pública e pode ser prevenida e tratada.
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■ Causa
potencial da morte súbita
A mãe vai dar a habitual olhadinha no berço e de repente descobre que o bebê não está
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mais respirando.Até hoje misteriosa,a morte súbita,que apresenta uma prevalência de 0,67 caso para cada mil crianças recém-nascidas,ga nhou uma potencial causa biológica: falhas no processamento do neurotransmissor serotonina no cérebro.Na edição de 1º de novembro da revista JAMA, médicos do Hospital deCrianças de Boston descrevem anormalidades no tronco cerebral – uma parte do cérebro que regula respiração,pressão sanCDC
A tuberculose voltou a preocupar os moradores do Reino Unido.No ano passado o número de casos cresceu 11%, com 8.115 pessoas contaminadas.Foi a taxa mais alta dos últimos 20 anos (The Independent,3 de novembro).A doença,que se pensava controlada com o uso de potentes antibióticos,expandiu-se principalmente entre imigrantes (72% do total de casos),que possivelmente chegaram no país com a infecção latente – a tuberculose pode permanecer assintomática por décadas e manifestar-se somente quando o sistema de defesa do organismo estiver debilitado.Os hospitais de Londres registram dez novos casos por dia,e mais de 600 diagnosticados no ano passado eram resistentes aos atuais medicamentos.“Não podemos ser complacentes com esse problema”,disse Caroline Flint,ministra de Saúde Pública.Segundo ela,a tuberculose é um desafio mundial e não pode ser resolvida por cada
Desafio mundial: elevação no número de casos de tuberculose (ao lado, o genoma do bacilo) está associada à migração entre os países
güínea e controle da temperatura corporal – em bebês que morreram da síndrome da morte súbita infantil (SIDS, na sigla em inglês).A equipe coordenada pelo neuropatologista Hannah Kinney e pelo neurologista David Paterson examinou 31 bebês que tinham morrido de SIDS e 10 de outras causas.Observando a parte mais inferior do tronco cerebral,conhecida como medulla oblongata, os pesquisadores encontraram anormalidades nas células nervosas que produzem e usam serotonina,um dos mais de cem compostos químicos do cérebro que transmitem mensagens de uma célula nervosa a outra.Com base nesses achados,Kinney,Paterson e colaboradores esperam desenvolver um teste para identificar os recém-nascidos de maior risco. Eles também imaginam um medicamento ou outro tipo de tratamento que possa proteger os bebês com deficiência de serotonina.
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ILUSTRAÇÕES LAURABEATRIZ
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elefante no espelho
Elefantes asiáticos são capazes de compreender sua imagem no espelho como uma reflexão de si. Mais do que inteligência, a faculdade sugere capacidade de empatia. O animal parece ser capaz de compreender os conceitos de eu e de outro e quem sabe se pôr no lugar dos outros – o que transparece quando um elefante tenta ajudar um companheiro ferido a levantar-se, de acordo com um experimento coordenado por Joshua Plotnik, da Universidade Emory, nos Estados Unidos. O teste foi feito com três fêmeas adultas no zoológico do Bronx, em Nova York. Após um período de habituação ao espelho, elas ganharam duas cruzes pintadas na testa: uma branca e uma invisível. Uma das elefantas, Happy, deu sinais de ter entendido e ao olhar-se no espelho tocou com a tromba na cruz branca – em sua própria testa, não no espelho. A marca invisível ficou intocada. Só uma das três elefantas passou na prova, mas já é o suficiente para comprovar a capacidade de reconhecimento desses grandalhões. Publicado na revista PNAS de 7 de novembro, o resultado é marcante porque até agora essa habilidade só havia sido encontrada em seres humanos, grandes primatas e golfinhos (Tursiops truncatus).
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■ Um
pedaço dos EUA no México
Um pedaço dos Apalaches, cadeia montanhosa no leste dos Estados Unidos, foi encontrado no sul do México. O quebra-cabeça embaralhado surgiu da pesquisa de um grupo de geólogos liderado por Damian Nance, da Universidade de Ohio (Estados Unidos), na região mexicana chamada Complexo de Acatlán. A descoberta pode mudar a história de quando o mundo era composto pelos continentes Gondwana (ao sul) e Laurássia (norte), há 420 milhões de anos. A visão antiga dizia que Acatlán se destacou de Gondwana há 500 milhões de anos e se chocou contra a América do Norte. A colisão teria soerguido os Apalaches e jogado o fundo do oceano Iapetus para o alto das montanhas. As novas evidências indicam que o Complexo de Acatlán ainda era par-
te de Gondwana quando colidiu com Laurássia e formou os Apalaches. Os sedimentos no topo das montanhas já estiveram no fundo do oceano Rheic, não do Iapetus. O mapa da Terra entre 500 milhões e 300 milhões de anos atrás terá que ser redesenhado.
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■ Outra
lupa para o genoma
A diversidade genética entre as pessoas era medida apenas por diferenças nas seqüências do DNA – entre ATAC e AATC, por exemplo. Agora há outra forma de dimensionar essa diversidade: por meio do número de repetições de cada um desses trechos, que podem representar uma diferença considerável no tamanho de pelo menos 10% dos genes humanos (Nature, 23 de novembro). E o tamanho dos genes pode influir na suscetibilidade a doenças.
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Verde volta ao deserto As dunas do Saara começam a se tornar verdejantes. Numa região ao sul de Níger, fazendeiros estão outra vez tomando posse do solo arenoso. Árvores Faidherbia albida já fizeram parte da paisagem, mas ao longo dos anos 1970 e 1980 foram gradualmente derrubadas e usadas como lenha (NewScientist, 14 de outubro). Em meados dos anos 1980 elas passaram a ser protegidas por fazendeiros e agora, de acordo com imagens de satélite, o deserto está recuando – graças às árvores. Não é só reflorestamento: a terra passa a ser cultivável. As árvores são fonte de sombra e matéria orgânica para as plantações e suas folhas e frutos servem de alimento para animais. E a vegetação também aumenta em 10% a 20% as chuvas na região. Chris Reij, da Universidade Livre em Amsterdã (Holanda), pretende ampliar a iniciativa para países vizinhos, como Mali, Senegal e Burkina Fasso.
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Laboratório
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dose dupla Duas proteínas identificadas no Instituto Butantan estimulam as defesas do organismo e podem melhorar a eficácia da vacina contra a tosse comprida e servir de base para medicamentos contra o câncer e doenças infecciosas.Injetadas em camundongos,a BrkA e a Cpn60 estimularam a produção de anticorpos que protegeram da bactéria Bordetella
pertussis, causadora da tosse comprida,comum em crianças.Outro resultado que chamou a atenção da equipe de Vera Cristina Gebara é que as proteínas também induziram a produção de um grupo especial de anticorpos, as imunoglobulinas IgG1 e IgG2a. “As proteínas BrkA e Cpn 60 são promissoras como antígenos vacinais e como adjuvantes”, diz.Ambas foram extraídas da parede celular da B. pertussis. A BrkA confere re-
sistência à bactéria enquanto a Cpn60,mais versátil,ativa o sistema imune e modula a resposta inflamatória,entre outras funções.
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■ Os mares antigos
da Amazônia Embora gordo e lerdo,o rio Amazonas é poderoso a ponto de não deixar a água do Atlântico avançar mais do que uns poucos quilômetros.Entre 100 milhões e 120 milhões
de anos atrás,porém,um mar espalhou-se por onde hoje é Manaus e por alguns municípios mais próximos.São os registros mais antigos da invasão marinha no coração da Amazônia,estudados pela geóloga Dilce Rossetti,pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).A descoberta de invertebrados marinhos a até 100 km longe do mar,detalhada na revista Cretaceous Research, levou à proposição da presença de
MIGUEL BOYAYAN
■ Reforço em
Os perigos de ensinar Professores da educação básica estão mais sujeitos a distúrbios psíquicos do que o resto da população.A conclusão está em trabalho de outubro na Revista de Saúde Pública, que analisou questionários respondidos em 2001 por 808 professores da rede municipal e 216 de escolas particulares,em Vitória da Conquista (BA).O censo constatou que 44% dos professores sofrem de distúrbios que podem afastá-los da sala de aula:ansiedade,depressão e somatiza-
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ções.Comparação com estudos anteriores sugere que outros setores da sociedade gozam de melhor saúde mental.Os professores,com carga horária média de 30 horas semanais,apontam trabalho repetitivo, ambiente estressante,ritmo acelerado,fiscalização contínua e pressão da direção como as principais fontes do problema.Os próprios mestres já batizaram a síndrome:é a outubrite, que ataca sobretudo no final dos trimestres ou semestres do ano escolar.
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Mesmo com alunos comportados, a sala de aula pode causar distúrbios psicológicos nos professores
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REPRODUÇÃO: DESAFIO DE VOAR/METALIVROS
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Mais perto do céu: os primeiros aparelhos que permitiram à espécie humana levantar vôo
um mar antigo que teria ocupado o interior do continente brasileiro. Ainda não se sabe se essa água com invertebrados marinhos vinha do Atlântico, do Pacífico ou do Caribe, nem por quanto tempo permaneceu por lá – porque de lá para cá houve grandes transformações: o rio Amazonas corria para oeste antes de os Andes soerguerem e fecharem as saídas para o Pacífico, forçando as águas a seguir para leste, como hoje.
■ Mais calor e mais
frio nas favelas
LAURABEATRIZ
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Quem mora em favelas – cerca de 1 milhão de pessoas só na cidade de São Paulo – vive desconfortos térmicos freqüentes. A temperatura lá é mais alta no período do dia e mais baixa durante a noite, principalmente no inverno, concluíram Edelci Nunes da Silva e Helena Ribeiro, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). Nesse trabalho, publicado na Revista de Saúde Pública de agosto, elas avaliaram microclimas na favela de Paraisópolis, no sudoeste de São Paulo, com 11.823 domicílios. Em seguida compararam com uma rua arborizada próxima. Na favela, as temperaturas foram até 3º Celsius mais altas durante o dia e em média 1º mais baixa à noite. Segundo as pesquisadoras, os contrastes térmicos – maior aquecimento diurno e maior resfriamento noturno – expõem os moradores das favelas a maiores riscos à saúde, facilitando a propagação de doenças. Em Paraisópolis, a densidade é de 520 habitantes por hectare, enquanto em um bairro como o Morumbi é de 30.
Brasileiros no ar Desafio de voar – brasileiros e a conquista do ar (Metalivros, 214 páginas, R$ 74,00) foi um dos livros lançados este ano na esteira das comemorações do centenário do vôo do 14-Bis.A diferença deste é que seu autor, o físico carioca Henrique Lins de Barros, não se limita a fazer mais uma biografia de Alberto Santos-Dumont, nem a desfiar seus numerosos sucessos e fracassos. Ele aproveita para falar de outros brasileiros que tentaram resolver o problema do vôo de uma máquina mais pesada que o ar. Além de Dumont, o livro conta as experiências e tentativas de Bartholomeu Lourenço de
Gusmão, Júlio Cezar Ribeiro de Souza, Augusto Severo e João d’Alvear, e do francês radicado em Osasco (SP) Demetrie Sensaud de Lavaud. O físico usou um critério claro para escolher esses entre os brasileiros que desenvolveram inventos aeronáuticos:“Focalizei somente aqueles que chegaram ao patamar da realização concreta dos projetos”, escreveu. Com foco nos brasileiros, o físico narra a história do vôo humano e experiências de pioneiros importantes da aviação de outros países.“O vôo só foi possível depois que pessoas de sólida formação técnica e científica puderam entender os elementos que atuavam sobre os aparelhos projetados”, diz Barros na introdução da obra. A edição primorosa é repleta de imagens, escrita com segurança e uma certa liberdade – no primeiro capítulo, Barros imagina um diálogo entre três dos principais pioneiros da aeronáutica, Dumont, Gabriel Voisin e Louis Blériot, para falar sobre o passado e o futuro da aviação.
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CIÊNCIA SAÚDE PÚBLICA
Por trás da fumaça Estudo mostra como identificar e tratar fumantes de alto risco É fato conhecido que só força de vontade não basta para parar de fumar. De cada cem pessoas que tentam largar o cigarro apenas por vontade própria, só cinco conseguem. Pesam muito o estado de saúde — quanto mais danificado o organismo, maiores as chances de êxito de um tratamento antitabagismo — e o apoio familiar, de acordo com um estudo coordenado por Andrea Cotait Ayoub no Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, um dos maiores centros de pesquisa e tratamento médico especializado em doenças cardiovasculares, vinculado à rede pública de saúde do estado de São Paulo. Depois de acompanhar por seis meses 124 fumantes que participaram do programa antitabagista – alguns tentavam pela quarta vez se livrar do hábito – apenas com terapia comportamental, um dos recursos do tratamento antitabaco, Andrea criou uma equação com cinco variáveis que identifica os fumantes por risco de insucesso e antecipa a probabilidade de o tratamento dar certo ou não. Essa forma de classificação de fumantes em alta e baixa probabilidade de insucesso, uma vez validada em testes com um número mais elevado de participantes, poderá se tornar um instrumento de avaliação similar aos adotados para medir a dependência de álcool ou de cocaína, ao identificar quem necessitará de cuidados mais intensivos. Nos casos mais graves, segundo Andrea, que dirige a divisão de enfermagem do instituto, pode ser necessário reforçar o aconselhamento psicológico, desde o início do tratamento, com a utilização de antidepressivos e adesivos ou chicletes de nicotina – tais medicamentos, porém, nem sempre são fornecidos pela rede pública de saúde. Outra estratégia a ser utilizada seria trazer ao hospital os familiares mais próximos do fumante, para que também se convençam dos riscos de doenças que se ampliam a cada tragada. De acordo com essa classificação de risco, desenvolvida sob a orientação de Riad Naim Younes, diretor do departamento de cirurgia torácica do Hospital do Câncer de São Paulo, se um fumante apresenta enfisema, bronquite ou qualquer outra forma da chamada doença pulmonar obstrutiva crônica, a chance de se esforçar a ponto de se livrar do hábito é 26,4 vezes maior que a de uma pessoa com os pulmões em ordem. Se o fumante vive com alguém – marido, esposa, filho, pai ou mãe – que abomina seu hábito de espalhar fumaça pela casa toda, a chance de sucesso é 19,5 vezes maior que a de outro que não é criticado em casa. Participar de um grupo de apoio ao tabagista eleva 11,3 vezes a probabilidade de sucesso do traPESQUISA FAPESP 130
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tamento e ter chiado no peito, sinal de que o hábito de fumar é antigo ou danoso, em 3,3 vezes. A soma desses quatro valores deve ser subtraída da dependência de nicotina – medida pelo chamado teste de Fagerström, cujo valor varia de 2 a 8 pontos para os menos dependentes e de 9 ou mais para os mais dependentes – multiplicada por 5,3. Feitas as contas, o subgrupo de fumantes que obtiver uma pontuação final menor ou igual a 49 será classificado como de alta probabilidade de insucesso, enquanto o que conseguir uma soma maior que 49 terá mais chance de sucesso no tratamento. A aritmética reflete a realidade: as pessoas com doença pulmonar obstrutiva crônica, chiado e pouca dependência de nicotina que participam dos programas de apoio ao tabagista e vivem com alguém que abomina seu hábito têm mais chance de se livrar do cigarro do que quem se encontra em situações opostas. DIÁLOGO ESSENCIAL
Graduada em enfermagem pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e doutora pelo Hospital do Câncer, ela conversava sobre os riscos do tabagismo, mostrava a diferença entre uma afirmação genérica e impessoal como o cigarro mata para uma mais contundente e pessoal, o cigarro está matando você, e encorajava os participantes desse estudo a enfrentarem sem nenhuma medicação a revolta do corpo à escassez de nicotina. “A dedicação, o acolhimento e o diálogo são essenciais para o tratamento dar certo”, afirma. Somente com reuniões de grupo e acompanhamento psicológico durante dois meses 40% dos fumantes de alto risco pararam de fumar e, seis meses depois de encerrado o tratamento, conseguiam manter-se longe do velho hábito sem ter de roer as unhas. “As taxas de sucesso certamente seriam mais altas se os participantes desse estudo também tivessem recebido os medicamentos”, diz ela. No Hospital do Câncer, também em São Paulo, 47,5% dos 237 participantes de um programa de apoio ao tabagista deixaram de fumar valendo-se de dois recursos, a terapia comportamental e de reposição de nicotina. Essa experiência facilitou a implantação de um modelo de atendimento mais personalizado no Dante Pazzanese.“Quanto mais atenção for oferecida ao fumante, melhor a resposta ao tratamento.” Só o uso de antidepressivos já ajuda muito. Por meio de um estudo com 144 pessoas publicado em 2002 na revista Chest, uma equipe do Hospital do Câncer coordenada por Célia Costa concluiu que o antidepressivo nortriptilina (conhecido no Brasil pelas marcas Pamelor ou Aventil) – de custo menor que o bupropiona (Zyban ou Wellbutrin), até 44
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então adotado como primeira escolha – pode ser bastante útil para tratar fumantes, em especial aqueles com alta dependência de nicotina. Das 68 pessoas desse estudo que tomaram nortriptilina, 51% pararam de fumar por pelo menos uma semana, enquanto só 24% das 76 que tomaram placebo conseguiram se manter longe do cigarro. Seis meses depois, 26% das que tinham tomado antidepressivo e 5% das que tinham tomado placebo se mantinham na total abstinência, forte indicação de que o antigo hábito havia sido deixado de lado. Ampliar ou induzir o acesso a tratamentos de modo a levar metade dos atuais fumantes a deixar de fumar poderia evitar de 20 milhões a 50 milhões de mortes prematuras nos próximos 25 anos, já que os fumantes tendem a morrer em média dez anos mais cedo que os não-fumantes, de acordo com um estudo que saiu no British Medical Journal. Mesmo os não-fumantes seriam beneficiados. Koon Teo, da Universidade de Hamilton, Canadá, coordenou um levantamento recente feito com 27 mil pessoas em 52 países que estabelece uma relação direta entre a quantidade de fumaça de cigarro ingerida e os níveis de risco para o infarto agudo de miocárdio. De acordo com esse estudo, publicado em 18 de agosto na revista Lancet, quem apenas respira a fumaça alheia está sujeito a riscos mais altos do que se imaginava. Uma a sete horas por semana de exposição à fumaça dos outros aumenta o risco de infarto em 24%; mais de 21 horas por semana engolindo fumaça alheia faz essa probabilidade chegar a 60%. Quem fuma está sujeito a um risco até três vezes maior de um ataque cardíaco que um não-fumante – e o risco aumenta 5,6% para cada cigarro consumido. Mesmo mastigar tabaco, algo aparentemente menos nocivo, mais que duplica o risco de ataque cardíaco. SOB A NÉVOA
“Com mais tratamento e prevenção”, afirma Younes, do Hospital do Câncer, com base em uma série de estudos, “os casos de câncer, principalmente os de pulmão, poderiam cair 70%, já que se trata de uma doença decorrente de um hábito que pode ser evitado”. O tabagismo é apontado como a principal causa de mortes prematuras evitáveis: todo ano cerca de 5 milhões de pessoas morrem no mundo inteiro devido às mais de 50 doenças associadas ao hábito de fumar cigarros, visto hoje como uma forma de dependência química e psicológica. Estimase que a névoa esbranquiçada que ajudou a compor o estilo de Humphrey Bogart em Casablanca e de tantos outros personagens no cinema resulte da combinação de cerca de 4.700 substâncias tóxicas, das quais 60 estão associadas ao surgimento ou desenvolvimento do câncer, não só de pul-
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mão, mas também de boca, laringe, esôfago, estômago e bexiga, além de infartos e outros problemas ligados à circulação do sangue e ao coração e, de modo cada vez mais consistente, a danos à visão (veja quadro ao lado). Segundo Younes, o atendimento aos fumantes deveria ser ainda mais descentralizado e envolver até mesmo os agentes comunitários de saúde, já que os hospitais raramente conseguem atender mais de cem pessoas por ano. Em um artigo publicado na revista Salud Pública de México, Tânia Cavalcante, coordenadora do Programa Nacional de Controle do Tabagismo do Instituto Nacional do Câncer (Inca), descreve alguns avanços do país na luta contra o fumo, como a proibição do uso de classificações de cigarros como light, ultralight ou suaves, para que não transmitam a impressão de que são menos danosos, a divulgação de mensagens e de imagens contundentes sobre os prejuízos do cigarro à saúde e a progressiva instalação de ambulatórios especializados no atendimento a fumantes, no país inteiro. No embalo desse movimento internacional, a prevalência de fumantes com mais de 15 anos de idade no Brasil passou de 32,6% em 1989 para 19% em 2003. Um levantamento do Inca mostrou uma redução maior entre os homens do que entre as mulheres. No entanto, ainda há barreiras, como o número crescente de adolescentes que começam a fumar e o preço do maço do cigarro no Brasil, um dos mais baixos do mundo – a mesma marca vendida no país custa quatro vezes mais no Canadá e 4,7 vezes mais na Dinamarca, de acordo um levantamento da Organização Mundial da Saúde (OMS). Só a elevação do preço em 10%, também de acordo com a OMS, faria com que 3% dos fumantes deixassem de fumar – algo equivalente a quase 2 milhões de brasileiros. Para o governo, o tabaco é ao mesmo tempo uma fonte de receita contínua e imediata, já que 75% do preço de cada maço é retido na forma de impostos, e de gastos, na medida em que cada real que sai do bolso do consumidor para comprar cigarros implica R$ 2,6 gastos no tratamento médico de pessoas que contraem câncer ou problemas cardíacos por causa do hábito de fumar. Mesmo com tantos danos e riscos, que as campanhas de prevenção tentam conter, 1,3 bilhão de pessoas no mundo inteiro atualmente ainda fuma e 700 milhões de crianças estão expostas em casa à fumaça de cigarros, também com perdas da saúde. A maioria dos fumantes (82%) vive em países em desenvolvimento como o Brasil – por aqui, 33,8% da população, o equivalente a 60 milhões de pessoas, não vive sem o cigarro. •
Olhar apurado Os danos da fumaça do cigarro à visão, pouco estudados por falta de uma demonstração direta de causa e efeito, tornaram-se mais claros. Um experimento realizado na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo mostrou que a retina de ratos pode se tornar menos espessa após duas horas de exposição à fumaça de cigarro, em uma concentração equivalente à que as pessoas se submetem quando passam oito horas em uma danceteria com muita gente fumando. Vitor Cortizo da Fonseca colocou 24 ratos em câmaras de inalação. Metade dos animais respirou ar e metade fumaça. Duas das três camadas da retina dos animais submetidos à fumaça sofreram uma redução de 17% a 23%. A camada que mais encolheu foi a que abriga os fotorreceptores, neurônios que convertem luz em estímulos bioquímicos transmitidos ao sistema nervoso central.“As alterações anatômicas são evidentes, mas ainda não é possível fazer uma extrapolação segura e direta para o olho humano”, alerta Walter Takahashi, professor da USP e um dos orientadores do estudo. O mais importante desse trabalho é a criação de um modelo experimental, um dos primeiros a ser desenvolvido no Brasil.“Podemos agora investigar melhor as causas da morte celular e os eventuais mecanismos de proteção contra a fumaça de cigarro”, diz Fonseca. “Um modelo experimental como esse, em que a única variável é o tabaco, nos interessa muito”, comenta Paulo Augusto Mello, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Até agora só havia associações indiretas dos danos do tabaco à visão. Em comparação com quem não fuma, os fumantes apresentam um risco duas vezes maior de catarata e de duas a três vezes maior de desenvolver uma doença ocular chamada degeneração macular relacionada à idade, que pode levar à cegueira, embora não se possa dizer que se trata de efeitos do tabagismo ou da má alimentação ou do consumo de bebidas alcoólicas ou de outros hábitos. •
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CIÊNCIA
FARMACOLOGIA
Composto inibe efeito da cocaína e ajuda a elucidar sua ação no cérebro
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xperimentos recentes feitos no Brasil e na Alemanha apontam uma possível aplicação para o composto sintético conhecido pela sigla SR142801. Desenvolvido pelo laboratório francês Sanofi-Aventis, a terceira maior indústria de medicamentos do mundo,o composto permaneceu quase dez anos sem uso médico definido.Agora testes com ratos e macacos sugerem que o SR142801 – que age sobre o sistema nervoso central e interrompe uma forma específica de comunicação entre células nervosas – pode ser eficaz no combate à agitação extrema e ao alerta exagerado causados pelo consumo da cocaína. Na Universidade de Dusseldorf,Alemanha,a equipe de Joseph Huston tratou ratos com SR142801 antes de lhes dar uma injeção de cocaína.Os roedores que receberam o composto não caminhavam de um lado a outro sem objetivo específico nem realizavam movimentos repetitivos para inspecionar o ambiente como se houvesse alguma ameaça por perto,comportamento apresentado pelos animais que haviam recebido apenas cocaína,droga que 1 milhão de brasileiros com mais de 12 anos já provou,segundo estimativa do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas.Em testes semelhantes realizados com macacos,Carlos Tomaz,da Universidade de Brasília (UnB),obteve resultados parecidos.“No mundo todo buscam-se compostos que impeçam a chegada da cocaína ao sistema nervoso central ou bloqueiem sua ação no cérebro”,diz Arthur Guerra de Andrade, coordenador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas da Universidade de São Paulo.
MIGUEL BOYAYAN
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As trilhas do pó Apesar de bloquear a agitação e o alerta provocados pelo uso da cocaína, o SR142801 provavelmente não é o tão esperado medicamento para combater a dependência, capaz de transformar bem-estar e euforia na busca compulsiva por mais e mais droga, capaz de desestruturar a vida do usuário e a de sua família. “Não creio que o SR142801 tenha potencial para tratar a dependência da cocaína, uma vez que essa molécula bloqueia apenas a movimentação excessiva, mas não interfere no mecanismo de recompensa associado ao consumo da droga”, afirma Huston, um dos coordenadores da pesquisa. E é justamente esse mecanismo de recompensa que causa a dependência e torna o abandono da droga um desafio quase insuperável para boa parte dos usuários. Segundos depois de penetrar nas narinas, a cocaína dissolvida no sangue alcança o sistema nervoso central e aumenta os níveis de dopamina, mensageiro químico que ativa as células nervosas em regiões do cérebro associadas à sensação de prazer e bem-estar. É quando a pessoa passa a falar sem parar e fica com um ânimo que parece interminável. Mas, quase tão rápido quanto surgem, esses efeitos desaparecem minutos depois e dão lugar à ansiedade e à depressão, que levam a pessoa a procurar mais droga em busca de mais prazer. Até pouco tempo atrás acreditava-se que os efeitos desse alcalóide extraído das folhas ovaladas da coca (Erythroxylum coca), arbusto comum na Bolívia, no Peru e no Equador, se devessem apenas a sua interferência no mecanismo de ação da dopamina, uma das moléculas naturalmente produzidas pelo organismo responsáveis pela comunicação entre células nervosas (neurônios). Aquele contentamento que surge com um aumento de salário há muito esperado é, em grande parte, efeito da descarga de
dopamina no cérebro. A conquista dispara uma tempestade química no sistema nervoso central em que a percepção afetiva da informação está associada à liberação de dopamina, que carrega informação de uma célula nervosa a outra. Tanto a liberação da dopamina quanto sua recaptura ocorrem por meio de transportadores localizados na membrana dos neurônios que a produziram. Mas ao chegar ao cérebro a cocaína causa um curto-circuito. Como uma comporta que barra um rio e faz as águas transbordarem, a cocaína impede a recuperação da dopamina liberada e provoca uma espécie de inundação cerebral. Enquanto dura o efeito da cocaína, é como se o cérebro sofresse uma sobrecarga de dopamina por receber uma boa notícia, seguida de outra e mais outra, até que o efeito da droga passe. Labirinto – Na última década descobriu-
se que a cocaína também afeta a ação de outros neurotransmissores, como a serotonina e a noradrenalina – mensageiros químicos da família das monoaminas, substâncias derivadas da amônia com um único átomo de nitrogênio em sua composição. Mais recentemente, no Instituto de Psicologia Fisiológica da Universidade de Dusseldorf, a equipe de Huston e da farmacologista brasileira Maria Angélica de Souza Silva demonstrou que a cocaína interfere também na ação de um quarto grupo de neurotransmissores: as neurocininas, de ação ainda pouco conhecida. Huston e Maria Angélica suspeitaram dessa interação quando encontraram determinado tipo de receptor de neurocininas em regiões envolvidas no processamento da cocaína no cérebro de ratos. “Até pouco tempo não se investigava a ação das neurocininas porque nem se imaginava que havia receptores para essas moléculas no cérebro humano”, diz Maria Angélica.
Ao saber que o Sanofi desenvolvera uma molécula que se liga a esses receptores de neurocinina, impedindo a ação do neurotransmissor, a equipe de Dusseldorf decidiu testá-la em seus roedores. Em uma série de experimentos Maria Angélica e Huston deram três doses diferentes de SR142801 a ratos, meia hora antes de os roedores receberem uma injeção de cocaína. Publicados na edição de setembro deste ano do European Journal of Neuroscience, os resultados mostram que o SR142801 eliminou a agitação excessiva associada ao consumo da coca, mas não alterou o bem-estar experimentado. Estava claro que, ao menos em roedores, a cocaína alterava também a ação das neurocininas. Faltava descobrir se o mesmo acontecia com macacos, animais evolutivamente mais próximos dos seres humanos. Foi então que os neurocientistas Carlos Tomaz e Marilia Barros e o biólogo Eldon Mello Júnior, da UnB, repetiram esses experimentos com oito micos-estrela (Callithrix penicillata), um sagüi de 20 centímetros e tufos negros nas orelhas, natural do Cerrado. Novamente o SR142801 inibiu a agitação e o alerta causados pelo consumo da cocaína. Mas os pesquisadores da UnB verificaram algo inesperado. Quando deram aos micosestrela outro composto conhecido como senktide, que deveria amplificar os efeitos da cocaína e deixar os sagüis ainda mais agitados, observaram que nada se alterou com os macacos, como descrevem na Peptides de setembro. Esse resultado inesperado indica, segundo Marilia, que a interação da cocaína com as neurocininas deve ser mais complexa do que se imaginava. Diante de efeitos tão variados, será difícil chegar a um medicamento capaz de combater com eficiência a dependência à cocaína. •
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GENÉTICA
Segredos da nobreza
Hora de sair do ninho: em resposta à vitelogenina, a operária se especializa em campeira e sai em busca de alimento para a colméia
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M ARIA G UIMARÃES | F OTOS E DUARDO C ESAR
Biólogos começam a entender como os genes agem para diferenciar abelhas rainhas das plebéias
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vida das abelhas é como um poço mágico. Quanto mais se tira, mais há para tirar.” A frase é de Karl von Frisch (1886-1982), o austríaco que decifrou a comunicação entre as abelhas e por isso dividiu com dois colegas o Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina, em 1973, e o título de pai da etologia, o estudo do comportamento animal. Os biólogos Zilá Simões, Klaus Hartfelder e Márcia Bitondi, do Laboratório de Biologia do Desenvolvimento de Abelhas (LBDA) no campus de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), há mais de duas décadas tiram preciosidades desse poço. Eles investigam como genes e hormônios interagem com o ambiente e determinam as castas de abelhas, um dos grandes mistérios da biologia.A equipe brasileira faz parte do consórcio internacional de grupos de pesquisa que em outubro anunciou o seqüenciamento do genoma da abelha, primeiro inseto social a ser estudado dessa forma. O que veio dentro desse balde içado do poço mostra que a declaração de Von Frisch está mais atual do que nunca. Numa sociedade de abelhas só a rainha se reproduz. As operárias cuidam das larvas e garantem a manutenção da colônia. Charles Darwin chegou a temer que a existência de uma casta estéril pusesse em risco sua teoria da seleção natural — que diz que só vencem o jogo da evolução aqueles que deixam descendentes férteis. O enigma foi estudado de diversos ângulos ao longo do último século, e agora a genômica vem dar uma mãozinha. Como participantes do Projeto Genoma, os geneticistas de Ribeirão Preto são responsáveis por investigar a genética da formação das castas. Com base em experimentos ao longo da última década eles agora anotaram 51 genes decisivos em diferenciar rainhas e operárias e estão desvendando um complexo sistema de regulação gênica protagonista na evolução do sistema social das abelhas. Logo após nascer – Quem acredita na supremacia
dos genes poderá se surpreender ao descobrir que abelhas de castas diferentes sejam iguais do ponto de vista genético. “Já se sabe disso há décadas”, afirma Zilá. Nas primeiras 48 horas de vida, conta Márcia, basta alimentar qualquer larva com geléia real que ela dará origem a uma nova rainha. Os apicultores, que criam abelhas para produção comercial de mel e própolis, usam esse conhecimento para multiplicar suas colméias. Apesar da homogeneidade genética, as diferenças entre as castas são marcantes. Uma rainha vive entre um e dois anos. Durante esse tempo ela põe até 2 mil ovos por dia, a partir de espermatozóides armazenados em uma única ocasião. As operárias parecem ser de certa forma descartáveis. Elas vivem enPESQUISA FAPESP 130
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O destino após sair do ovo: dosagem de hormônio juvenil define se as larvas serão rainhas ou operárias como estas
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tre 30 dias e seis meses, e ao se tornarem campeiras têm um sistema imunológico pouco ativo e comem menos, praticamente só carboidratos. Existem às dezenas de milhares em cada colônia e, ao morrer, são substituídas por outras. Durante sua vida de labuta, essencial à sobrevivência e ao crescimento da colméia, a função das operárias adultas varia conforme a idade: limpar e construir a colméia, alimentar e cuidar das larvas em desenvolvimento, defender a colônia e recolher alimento. Neste último posto elas são chamadas de campeiras. Para monitorar o comportamento dos insetos ao longo desses estágios, no Laboratório de Abelhas os pesquisadores observam colméias envidraçadas, onde as operárias são marcadas com plaquinhas coloridas numeradas grudadas às costas. As abelhas paramentadas não parecem incomodar-se: continuam a voar e, de volta à colônia, a dançar para indicar às companheiras onde a comida está. Explicar a orquestração de toda essa variedade comportamental e fisiológica move há mais de duas décadas a curiosidade de Zilá, Hartfelder e Márcia. Para entender como se faz uma rainha ou uma operária, eles empreenderam uma extensa investigação do funcionamento genético e hormonal das abelhas. O esforço deu frutos: antes que se iniciasse o Projeto Genoma, o grupo já havia identificado e seqüenciado um gene central na diferenciação de castas. É o responsável pela síntese da vitelogenina (VG), uma proteína essencial para a reprodução, pois representa boa parte do alimento (vitelo) que nutre o embrião dentro dos ovos. Além de sua função reprodutiva, a vitelogenina influi na longevidade e no sistema imunológico do inseto, tanto em rainhas como em operárias. O projeto de pesquisa conduzido no LBDA indicou que a alimentação das larvas com geléia real tem influência direta sobre seu sistema hormonal, que aumenta a síntese do hormônio juvenil. Essas larvas então se tornam rainhas, que produzem mais vitelogenina. “É possível produzir rainhas sem geléia real”, conta Zilá. “O hormônio juvenil aplicado experimentalmente já leva à sua formação.” Segundo Hartfelder, está programada nas células dos ovários das operárias uma morte celular acen-
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tuada. Mais hormônio juvenil na larva da rainha impede a degeneração dos órgãos reprodutivos. As operárias, que escaparam da dose maciça de hormônio juvenil durante o desenvolvimento embrionário, não estão livres de sua influência. Em certo ponto de sua vida a produção do hormônio aumenta, a síntese de vitelogenina cai e elas começam a voar em busca de alimento: viram campeiras. Cuidado: não é o caso de chamar o gene VG de gene das castas. As interações gênicas são muito complexas e ainda longe de ser completamente compreendidas. Com o genoma completo, agora será possível investigar de forma mais geral a influência dos genes no organismo e no comportamento das abelhas. No caso do LBDA, a equipe identificou no genoma 51 genes ligados ao desenvolvimento de castas. Os pesquisadores acreditam que esses não sejam os únicos genes envolvidos no processo, mas parecem estar entre os mais importantes.
monal das abelhas que os leva a integrar o consórcio internacional que reúne 170 pesquisadores de 65 instituições para decifrar o DNA da abelha. A estimativa é que seu genoma seja composto por cerca de 10 mil genes, menos que os outros insetos já seqüenciados: a mosca-das-frutas (Drosophila melanogaster), o mosquito que transmite a malária (Anopheles gambiae) e o bicho-da-seda (Bombyx mori).
C
Trabalho acelerado – Os geneticistas acreditam que os resultados sobre o genoma proporcionarão um grande progresso no conhecimento sobre insetos sociais. Trabalhar com um gene de cada vez é muito lento. Zilá estima que leve cerca de um ano para seqüenciar cada um deles. Por isso, o método dez vezes mais rápido empregado nos projetos de seqüenciamento de genomas permite um avanço incomparável. Mas é a experiência laboriosa de Zilá, Márcia e Hartfelder com os sistemas genético e hor-
OS PROJETOS 1. Genômica funcional de Apis mellifera — busca de novos genes e redes funcionais no contexto do desenvolvimento, da diferenciação de castas e da reprodução. 2. Modelagem com equações diferenciais do desenvolvimento sexual de Apis mellifera. COORDENADORA
ZILÁ LUZ PAULINO SIMÕES — USP INVESTIMENTO
R$ 830.083,39 (FAPESP) e R$ 99.000 (CNPq)
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om o seqüenciamento do genoma, surgem fatos que antes não podiam ser estudados. Neste caso questões típicas de insetos sociais, como a divisão de trabalho, as castas reprodutivas ou os sistemas de comunicação. Um processo simplificado, que já foi usado em outros projetos como o do boi e do eucalipto, permite seqüenciar somente os genes ativos – os que levam à produção de proteínas. Mas o DNA contém uma imensidade de outros trechos que não produzem substâncias diretamente e por isso eram chamados de DNA lixo. Porém cada vez mais pesquisas têm mostrado que essas regiões do genoma têm uma importância imensa. “O genoma completo traz informação sobre seqüências reguladoras”, diz Hartfelder. O sistema de regulação permite entender como o organismo funciona, e pode estar na origem de diferenças marcantes entre animais geneticamente parecidos. A análise do genoma da abelha já trouxe pistas importantes sobre mecanismos de regulação dos genes – o sistema de metilação e os microRNAs. São moléculas capazes de desligar genes e por isso determinam as partes do genoma ativas conforme o indivíduo e o momento. As interações dentro do genoma e a atividade dos genes são conhecidas como redes gênicas. Esse tipo de sistema pode ser responsável por boa parte das diferenças entre a casta reprodutiva e não-reprodutiva, além de determinar as sucessivas funções das abelhas plebéias ao longo de sua vida. A diferença entre rainhas e operárias, por exemplo, fica evidente quando se estudam as redes gênicas das duas castas. Essas redes são representadas como pequenos círculos que indicam os genes superexpressos (mais ativos), com
linhas entre eles que mostram ligações funcionais – um gene ativa ou inativa outro, por exemplo. Zilá mostra dois desses esquemas, um deles tão intrincado que as linhas se embaralham nos olhos: “Esta é uma operária”, aponta. O mais simples mostra uma rainha. Para a geneticista, é como olhar fotografias de abelhas das duas castas. As operárias têm o cérebro maior, com mais neurônios, e sua rede de genes é mais complexa. Além de representar um avanço importante na compreensão de um inseto social, o Projeto Genoma da abelha pode ter aplicações práticas. Zilá destaca a possibilidade de melhoramento genético de abelhas para produção comercial de mel, pois agora se sabe quais são os genes que conferem características desejáveis. Mas o pesquisador em apicultura Mendelson Guerreiro de Lima, da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), vê o avanço com cautela:“Resultados de pesquisa de ponta demoram a ser aplicados no campo”. O Brasil é um dos maiores produtores mundiais, pois foi aqui que se formou a abelha híbrida entre a variedade européia e a africana, muito mais produtiva e resistente, mas também extremamente agressiva – ou defensiva, como diz Hartfelder. Mas, explica Lima, por causa do caráter extrativista da apicultura brasileira, a produção por colméia é cerca de cinco vezes menor do que no Canadá, por exemplo, onde as condições climáticas limitam o tempo de produção a menos da metade do ano e obrigam os apicultores a otimizar a produtividade. De sua janela no campus da USP em Ribeirão Preto, Zilá e seus colegas observam colméias onde as abelhas que estudam convivem com cutias, teiús e jibóias. Esse cenário tão brasileiro já fazia parte da paisagem internacional, como prova a presença de Klaus Hartfelder: ele fez seu doutorado na Alemanha em colaboração com o grupo brasileiro e acabou trocando a carreira acadêmica em seu país natal pela USP no interior paulista. Zilá afirma que o Projeto Genoma tem também esse mérito: levou a comunidade internacional dos pesquisadores de insetos sociais a interagir de forma muito mais ativa. Com esse time entrosado, o poço mágico não terá sossego. • PESQUISA FAPESP 130
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YURI LEITE/UFES
CIÊNCIA
Mamíferos à tona DIVERSIDADE
Biólogos encontram em média oito novas espécies de mamíferos por ano na América do Sul
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m macaquinho (sem a cauda não chega a 20 centímetros) de pêlos escuros nas costas e alaranjados na frente,com uma coroa triangular escura,encontrado na Amazônia,foi batizado de sagüi-anão-da-coroa-preta (Callibella humilis).Um tuco-tuco malhado pode representar uma nova espécie do gênero Ctenomys, já que esses roedores subterrâneos comuns no Rio Grande do Sul são em geral cor de areia ou marrons.Esses são exemplos de mamíferos descobertos de norte a sul do país nos últimos dez anos.De acordo com Yuri Leite,biólogo da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes),o destaque do I Congresso SulAmericano de Mastozoologia (estudo dos mamíferos),realizado em outubro na cidade gaúcha de Gramado,foi “a constatação de que o número de espécies (e gêneros) de mamíferos sul-americanos aumentou absurdamente”.
No Brasil,o país com maior diversidade biológica no mundo,até hoje foram descritos cerca de 530 mamíferos, em geral pequenos.Nossos marsupiais não são cangurus boxeadores de desenho animado:podem ser do tamanho de um dedo,como a catita (Gracilinanus microtarsus),um dos menores desse grupo.A destruição de florestas ameaça a existência desses animais,com 66 espécies em risco de extinção na lista vermelha do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em 2003.Apesar disso,mais trabalho de campo e novas técnicas de trabalho têm aumentado rapidamente o número de espécies conhecidas. Leite,Leonora Costa e outros biólogos da Ufes relatam na revista Megadiversidade que são descobertos por ano em média um novo gênero e oito novas espécies de mamíferos.A estimativa é de que nos próximos 20 anos mais do que dobrará o número de mamíferos catalogados na América do Sul.Muitos deles são novos nos registros científicos,mas a maior parte vem de revisões da classifi-
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PEDRO PELOSO/UFES
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Exclusivos da Mata Atlântica: a catita (ao lado), um dos menores marsupiais do mundo, e uma nova espécie do roedor silvestre Juliomys
cação. No American Museum Novitates de 19 de outubro, Marcelo Weksler, biólogo brasileiro na Universidade do Alasca,Alexandre Percequillo, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), e Robert Voss, do Museu Americano de História Natural de Nova York, acrescentaram dez gêneros de roedores à América do Sul. Para um grupo de animais estudado há séculos, é surpreendente que ainda reste tanto por descobrir. Nos últimos 12 anos surgiram no mundo três novas ordens, 94 gêneros (a maioria de reclassificações e 29 novos para a ciência) e 815 espécies (298 novas e 125 da América do Sul). Essa avaliação foi feita pelo norteamericano Jim Patton, da Universidade da Califórnia em Berkeley, que comparou a segunda (1993) e a terceira (2005) edições do livro Mammal Species of the World, de Wilson & Reeder, que lista as espécies de mamíferos conhecidas. Surgem tantos animais novos porque técnicas de análise mais refinadas distinguem detalhes que antes passavam despercebidos. Animais podem parecer diferentes entre si e pertencer à mesma
espécie. Um gato peludo cinzento e outro malhado de pêlo curto são igualmente gatos. Por outro lado, espécies à primeira vista iguais podem ter diferenças invisíveis a olho nu que fazem com que não possam procriar entre si, o que as separa do ponto de vista biológico. Segundo Leonora, a proliferação do número de espécies deriva sobretudo do impacto da análise de diferenças no DNA entre grupos de animais. Além disso, novas técnicas de medição, como a morfometria geométrica, começam a ser mais utilizadas e devem ampliar o conhecimento sobre a biodiversidade. Régua digital - Tradicionalmente, par-
te da distinção entre espécies se baseia em medidas tomadas do crânio. O instrumento mais utilizado é o paquímetro, uma régua com dois braços dos quais um desliza para medir distâncias em superfícies curvas ou irregulares. Mas técnicas modernas permitem análises muito mais refinadas e precisas. O grupo de Gabriel Marroig, da Universidade de São Paulo (USP), usa um aparelho parecido
com uma caneta que pende de um braço articulado. O equipamento tem um ponto de repouso e traduz qualquer movimento em coordenadas tridimensionais. A caneta, encostando em pontos específicos de cada crânio estudado, transmite essa informação a um computador. Forma-se uma imagem digital que pode ser usada para tirar medidas ou comparar o crânio com o de outras espécies. Marroig usa essa técnica para compreender a evolução dos primatas sul-americanos. Para atingir uma classificação mais precisa, os pesquisadores somam informações de diversos tipos. Durante seu doutorado Leonora analisou o DNA de marsupiais brasileiros para compreender suas origens e sua diversidade. Para refinar suas conclusões ela agora complementa os dados com observações da morfologia dos animais. Esses resultados ajudaram a aumentar em 70% o número de espécies de marsupiais sul-americanos nos últimos 13 anos. Além das novas técnicas, o que tem contribuído para o avanço do conhecimento sobre mamíferos é a integração de áreas, promovida por profissionais dispostos a colaborar. Os sistematas, que analisam os dados para pôr ordem nas árvores genealógicas e dão nome aos novos bichos, muitas vezes não são os mesmos que fazem os estudos genéticos ou morfométricos. Por isso, pouco se faria sem esforços conjuntos. Segundo Leonora, a preocupação com o meio ambiente se tornou mais forte após a Conferência do Rio em 1992 e aumentou o interesse em estudar a diversidade biológica. Iniciativas de conservação como a da União Mundial para a Conservação da Natureza (IUCN) consistem em reunir informações para elaborar listas globais de espécies ameaçadas, alteradas conforme as pesquisas avançam. Pode ser o caso do rato-do-mato-laranja (Rhagomys rufescens), que Yuri Leite e colaboradores mostraram não ser tão raro quanto se pensava. Para encontrá-lo, bastou inovar no método de captura: o que funciona é a antiga técnica chamada pitfall, que não passa de um balde enterrado no chão.“Com base nos dados mais recentes”, diz Leonora, “o Rhagomys deveria ser retirado da lista da fauna ameaçada de extinção”. •
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CIÊNCIA
BOTÂNICA
Abre-te, Sésamo! Bactérias disputam com plantas controle dos poros das folhas
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uando chegam às plantas, as bactérias Pseudomonas syringae logo procuram portas abertas por onde possam entrar e causar lesões nas folhas e nos ramos. As portas são os estômatos, poros microscópicos que têm a capacidade de se abrir ou fechar. Mas a planta detecta o inimigo e rapidamente bloqueia suas entradas. Com as portas fechadas as bactérias não têm como entrar, mas não desistem. Elas descobrem a chave para abri-las e atacar sua vítima. Parece uma batalha de ficção científica, mas é real. Fechar os estômatos é uma resposta inata das plantas que restringe a invasão por bactérias. A função imunológica era desconhecida para essas estruturas responsáveis por trocas gasosas e transpiração das plantas. A descoberta foi feita pela bióloga brasileira Maeli Melotto, atualmente contratada como pesquisadora associada na Michigan State University (MSU), Estados Unidos. “Os estômatos representam a primeira barreira contra a infecção bacteriana, e uma substância liberada pelas bactérias, a coronatina, bloqueia essa defesa”, resume Maeli, primeira autora do artigo publicado na edição de setembro da revista científica Cell com esses resultados. O achado é um passo importante no conhecimento sobre os estômatos. O mecanismo de defesa na superfície das folhas era até desconhecido em grande parte por causa do método de inoculação, o mais comum nos laboratórios. Para estudar o sistema imunológico vegetal, pesquisadores injetam o agente infeccioso (vírus ou bactérias) diretamente dentro da folha. A busca de Maeli foi impulsionada pelas observações de outros pesquisadores feitas há dez anos, que mostraram a ineficácia de algumas bactérias em causar infecção quando inoculadas na superfície das folhas, em vez de em seu interior. “Como em condições de laboratório as bactérias só entram nas folhas pelo estômato, comecei a estudar se eram eles que protegiam as folhas contra a invasão”, conta.
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A equipe do laboratório coordenado por Sheng Yang He usou a planta Arabidopsis, uma espécie de versão vegetal do rato de laboratório, para estudar os mecanismos moleculares e de bloqueio que permitem às plantas evitar infecções bacterianas. O grupo expôs folhas de Arabidopsis a uma linhagem de P. syringae nociva às plantas.As plantas tinham entre 70% e 80% de seus estômatos abertos, uma situação típica de condições de luz propícias à fotossíntese. Mas as bactérias não ficaram à toa: elas distinguiram os estômatos fechados dos abertos e se aglomeraram à sua volta como passageiros que se empurram para entrar no metrô antes que a campainha toque, em horário de pico. A planta não avisa com uma campainha, mas ao detectar os invasores as folhas do experimento reagiram fechando os estômatos: em duas horas, só 30% deles ficaram abertos. A reação de defesa foi transitória. Três horas depois, apesar de as bactérias continuarem ali, havia outra vez tantos estômatos abertos como antes do ataque. O que as leva a abrir-se é uma substância liberada pelas bactérias chamada coronatina, que tem nas folhas o efeito de “Abre-te, Sésamo”, as palavras mágicas que Ali Babá usou para entrar na caverna dos 40 ladrões. Os pesquisadores demonstraram também que a reação a bactérias é um reflexo generalizado que independe dos danos causados pelo invasor. Os estômatos também se fecham quando expostos à Escherichia coli, bactéria que ataca seres humanos mas é inofensiva para plantas. Porém, ao contrário do que descobriram com P. syringae, Maeli e seus colegas observaram que a E. coli não tem um mecanismo que induza à reabertura das portas. Como não é especialista em atacar plantas, essa bactéria não descobriu a senha que lhe garante a entrada. Protagonistas discretos – Apesar de essenciais para a
vida das plantas, ainda se sabe pouco sobre como os estômatos funcionam. Os livros escolares dizem que eles se abrem durante o dia para absorver gás carbônico, que será transformado em energia pelo processo da fotossíntese. Mas o problema enfrentado pelas plantas é que elas perdem água através dos poros abertos, fenômeno conhecido como transpiração. Por isso, o perigo de ressecamento obriga a planta a fechá-los nas horas mais quentes. O mesmo valeria para quando não é possível fazer fotossíntese, que requer luz solar, mas novos dados põem em dúvida essa visão. “Havia um dogma de que as plantas fecham os estômatos durante a noite, mas agora estamos vendo que a história é outra”, diz Rafael Oliveira, botânico do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da Universidade de São Paulo (USP) em Piracicaba. Estudos recentes sugerem que os estômatos podem ser uma alternativa às raízes na absorção de água. Stephen Burgess e Todd Dawson, da Universidade da Califórnia em Berkeley, Estados Unidos, demonstraram em 2004 que Superfície de uma folha vista ao microscópio: estômatos cumprem funções vitais para as plantas
REVISTA NATURE
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ADELINE FABRE E TODD DAWSON/UC BERKELEY
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As sequóias californianas absorvem água da neblina pelos estômatos
as sequóias californianas bebem água pelas folhas. Ainda não está provado que os estômatos sejam os sorvedouros nesse caso, mas Rafael Oliveira, da USP, acredita que essa é a hipótese mais plausível. Os outros mecanismos considerados seriam, segundo diz, mais lentos do que ele e seus colegas observaram. Oliveira fez seu doutorado no laboratório de Dawson, e investiga se no Brasil acontece o mesmo que foi descoberto nas sequóias. Seus estudos têm mostrado que as plantas do Cerrado e da Amazônia também absorvem água pelas folhas. O botânico acredita que o mecanismo seja uma resposta generalizada das plantas à disponibilidade de água no ambiente. O caso das sequóias é exemplar, pois são árvores de grande porte que vivem numa região com meses seguidos de estiagem, com uma neblina espessa diária durante esse período. Há mais água no ar do que no chão, portanto. Para verificar como a água entra nas folhas, será preciso fazer experimentos em laboratório,como usar substâncias que induzam o fechamento dos estômatos e comparar a absorção de água foliar com a de plantas não manipuladas. Mistério vegetal – Ainda não se sabe como as plantas
detectam as condições ambientais nem como equacionam as indicações contraditórias que o sol, a umidade do ar, o sistema imunológico e as bactérias fornecem para fechar ou abrir os estômatos. Mas a reação de defesa parece ter um peso grande na decisão: Maeli realizou seus experimentos em plena luz, quando as plantas fazem fotossíntese e por isso têm os estômatos abertos. Mesmo assim cerca de 80% dos estômatos abertos se fecharam na presença das bactérias. “Esse fato sugere que a planta diminui a fotossíntese quando atacada por patógenos”, con56
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clui. Em um trabalho anterior com feijão, publicado na revista Genome em 2005, ela observou que genes ligados à fotossíntese reduzem sua atividade quando as plantas são atacadas por algum agente infeccioso. Esses resultados indicam que o fechamento dos estômatos não é um fenômeno isolado, mas parte de um sistema que coordena as funções vitais da planta com sua defesa. Feita a descoberta em Arabidopsis, é preciso demonstrar que o mesmo vale para outros sistemas. O uso de modelos biológicos, como Arabidopsis para plantas, ratos de laboratório para mamíferos ou drosófilas para insetos, permite um avanço mais rápido da pesquisa. Após descobrir um mecanismo em uma dessas espécies, é possível direcionar os estudos em busca de propriedades específicas de outros organismos. Maeli examinou também tomateiros e plantas de tabaco, que apresentaram a mesmo tipo de resposta. Por enquanto, o grupo da Universidade de Michigan vai investir em compreender melhor o mecanismo que descobriu. “Pretendemos estudar com maior detalhe os componentes moleculares envolvidos na defesa estomatal e como a coronatina age para desarmá-la. Queremos também entender se essa defesa é efetiva contra outras bactérias patogênicas que entram na folha, principalmente pelo estômato”, diz Maeli. Em uma floresta tropical as folhas abrigam uma imensa diversidade de microorganismos (até 600 espécies numa única folha) e processos complexos de interação (veja edição de julho deste ano de Pesquisa FAPESP). O mundo das folhas chega a ter um nome entre os especialistas, filosfera. Ainda há muito a desbravar nesse universo. •
M ARIA G UIMARÃES
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CIÊNCIA
ANTROPOLOGIA
O DNA das cavernas Genoma do homem de Neandertal traz pistas sobre nossa origem A equipe alemã,coordenada por Svante Päabo,do Instituto Max Planck para Antropologia Evolutiva,analisou mais DNA,1 milhão de pares de bases, e calculou uma data mais distante para a separação entre as duas espécies:516 mil anos atrás.Mas,como há uma grande margem de erro,ainda não se sabe se a diferença entre as duas estimativas é relevante.Os dados não indicam mistura de genes das duas espécies;se houve cruzamento,ele foi limitado e envolveu sobretudo homens sapiens e fêmeas neandertais. Competição - O trabalho dos dois gru-
pos é um feito técnico.Sujeito por milhares de anos a intempéries,o material genético degradado é extraído dos fósseis em minúsculos fragmentos.O quebracabeça só pode ser montado usando como arcabouço o genoma do humano
moderno.Além disso,o DNA antigo vem misturado com o de intrusos,como bactérias e humanos atuais.Apesar dos desafios,os pesquisadores envolvidos no projeto afirmam que têm a tecnologia para completar o seqüenciamento. Os neandertais viveram na Europa e no oeste da Ásia entre 400 mil e 30 mil anos atrás.De acordo com o registro fóssil,eles foram extintos depois da chegada do Homo sapiens à região,a partir da África.Artefatos arqueológicos indicam que pode ter havido troca cultural entre os dois hominídeos,embora a convivência possa não ter sido pacífica.Muitos pesquisadores acreditam que a competição entre as duas espécies tenha causado a extinção do homem de Neandertal.A espécie vitoriosa não só viveu como se espalhou pelo mundo,e deu origem ao homem que hoje ocupa de desertos a megalópoles. • JOHANNES KRAUSE, MAX-PLANCK-INSTITUTE OF EVOLUTIONARY ANTHROPOLOGY
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á 38 mil anos viveu no atual leste da Europa um homem que nem remotamente imaginava como entraria para a história.Em 1980 arqueólogos encontraram na caverna Vindija,na Croácia,um de seus fêmures,cujo genoma agora está sendo seqüenciado por duas equipes de geneticistas,uma nos Estados Unidos e outra na Alemanha.Os primeiros resultados dos dois grupos estão,respectivamente,nas revistas científicas Science e Nature (16 e 17 de novembro).Está pronta somente uma fração do trabalho,mas já basta para estimar quando as duas espécies irmãs – Homo sapiens e Homo neanderthalensis – se tornaram distintas e quão semelhantes são seus DNAs.A seqüência completa do genoma neandertal está prometida para daqui a dois anos.Pesquisadores acreditam que ela pode esclarecer a origem de características anatômicas e de comportamento que definem o homem moderno. A equipe liderada por Edward Rubin trabalha no Laboratório Nacional Lawrence Berkeley,na Califórnia,Estados Unidos.O grupo decodificou 65 mil pares de bases,as unidades que compõem o DNA. Falta muito,o genoma do homem moderno tem por volta de 3 bilhões de pares de bases.E os dois humanos são geneticamente muito parecidos:a amostra de Rubin indica uma semelhança de 99,5%. O grupo não vê evidências de cruzamento entre as duas espécies – hipótese recentemente aventada por outros pesquisadores,como Bruce Lahn e colegas em artigo publicado na PNAS também em novembro – e calcula que as duas espécies se separaram há 370 mil anos.
A caverna Vindija abrigou por 38 mil anos o fóssil agora seqüenciado PESQUISA FAPESP 130
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Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org
Depois de um ano em preparação, a SciELO Argentina terminou com êxito a primeira etapa de sua implantação: foi certificada como site de operação regular pela rede ibero-americana SciELO. Agora está integrada à coleção do portal regional junto com as coleções do Brasil, Chile, Cuba, Espanha e Venezuela. Os 22 títulos com mais de 1.500 artigos que integram a coleção argentina se somam ao portal regional, formando uma biblioteca de revistas científicas previamente avaliadas por sua qualidade editorial e acadêmica. A SciELO Argentina pode ser consultada no endereço www.scielo.org.ar.
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Agricultura
Modelo para a cana A colheita da cana-de-açúcar (Saccharum spp) pode ser realizada 12 ou 18 meses após o plantio.Com o decorrer dos anos e dependendo dos tratos culturais,do controle do tráfego e da compactação do solo,a produtividade diminui em proporções diferentes,sendo fatores interferentes o tipo de solo,as condições climáticas e as cultivares utilizadas.O objetivo do trabalho “Desenvolvimento de um programa computacional para implantação econômica de lavouras canavieiras”foi criar um projeto para a otimização da implantação de canaviais,de modo racional e econômico,sem se esquecer de levar em consideração a necessidade de fornecimento da matéria-prima para a indústria.A intenção é permitir a implantação com a finalidade de proporcionar produções,em toneladas,iguais nos anos subseqüentes à plantação.Os autores do estudo são Tadeu Marques,da Universidade Estadual do Oeste do Paraná,Gil Serra,da Universidade Estadual de Campinas,e Patrícia Marques,da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz,da Universidade de São Paulo.“Os resultados apontam que,apesar do maior investimento inicial, os métodos inovadores sempre proporcionam maiores lucratividades reais com o passar do tempo”,revelam os autores. REVISTA BRASILEIRA DE ENGENHARIA AGRÍCOLA E AMBIENTAL – VOL. 10 – Nº 2 – CAMPINA GRANDE – ABR./JUN. 2006 www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141543662006000200007&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt ■
Ciências sociais
Estudos de C&T Uma ampla revisão das transformações pelas quais está passando o ambiente da pesquisa e do ensino superior no que diz respeito à relação entre ciência,tecnologia e sociedade é a proposta do trabalho “A comunidade de pesquisa dos países avançados e a elaboração da política de ciência e tecnologia”,de Renato Dagnino,do Departamento de Política Científica e Tecnológica
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da Universidade Estadual de Campinas.Com base na análise de trabalhos de pesquisadores de países avançados sobre a participação da comunidade de pesquisa na Política Científica e Tecnológica (PCT),o autor apresenta a visão desses estudiosos sobre o contexto de mudança que engloba o processo de elaboração da PCT,mostrando como os três atores que participam desse processo – comunidade de pesquisa,burocratas e empresários – estão se reposicionando em razão das modificações.“A ‘cientifização’da sociedade não minimizou o papel da comunidade científica no mundo.Embora reconheçam o fato de a ciência ter penetrado e ter sido penetrada pela sociedade,isso não implicou aceitar a existência de uma mão invisível guiando a evolução da ciência e da sociedade em paralelo”,escreveu.O artigo levanta causas que explicariam a afirmação contida nos trabalhos revisados quanto à baixa probabilidade de que a comunidade de pesquisa venha a perder seu papel dominante.A comunidade de pesquisadores estaria,por um lado,aceitando delegar uma parte de seu poder de definição da agenda a outros atores,como empresários,políticos e movimentos sociais.“Essa é uma tendência compreensível tendo em vista a crescente densidade do tecido social dos países avançados.”Por outro lado,os cientistas estariam pleiteando um lugar ainda mais privilegiado em outro espaço institucional distinto daquele onde se dá o processo decisório que origina a alocação de recursos. REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS – VOL. 21 – Nº 61 – SÃO PAULO – JUN. 2006 www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010269092006000200011&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt ■
Lingüística
Mestria da escrita De um lado,na escola,a criança usa um código abreviado em sua escritura inicial,para construir seu discurso,pelo fato de ainda não ter do-
EDUARDO CESAR
Notícias
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mínio do sistema de escrita. De outro lado, nos chats informais da internet, os adolescentes usam abreviações e alongamentos semelhantes à forma da escrita escolar inicial, como recursos para a construção de um novo gênero textual.“Parece tratar-se de uma nova forma de escrita, tanto como tecnologia quanto como processo discursivo escrito, embora com marcas discursivas semelhantes às da conversação face a face oral”, descreve o artigo “A construção/apropriação da escrita nas salas de aula da escola fundamental e nas salas de bate-papo na internet”, de Sérgio Roberto Costa, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora. O trabalho analisa tais fenômenos de modo a explicar as possíveis semelhanças e diferenças dos dados coletados em circunstâncias e espaços enunciativos diversos, o que pode contribuir com a compreensão dos processos cognitivos de apropriação e uso da escrita por crianças e adolescentes, destacandose como esses fenômenos se aproximam ou divergem. Embora ocorram em espaços e tempos diferentes, o escolar inicial de crianças na faixa de 7 anos, aprendendo a escrever, e o ciberespacial, de adolescentes entre 12 e 17 anos, já com mestria da escrita, discurso e linguagem são objetos de reflexão e análise por parte das crianças e dos adolescentes, ou seja, a escrita transforma o discurso dos sujeitos em objeto da atenção e da consciência. “Nesse sentido, tanto o escritor iniciante, na escola, quanto o adolescente, no ciberespaço, criam um novo modelo para pensar sobre a fala e a linguagem como atividade consciente numa perspectiva em que a escrita não é uma mera transcrição do discurso”, explica Costa.“Eles se apropriam de uma ferramenta cultural e intelectual que lhes dá recursos para produzir coisas novas, isto é, criar novos sistemas representativos e simbólicos da cultura em que estão inseridos.”
trabalho identifica os setores-chave no que concerne às emissões e o efeito sobre a produção e o emprego de eventuais restrições à emissão de CO2. Também mostra, para seis regiões estudadas, a ligação entre o nível de atividade e as emissões de CO2, detalhando para cada um dos energéticos considerados a parcela das emissões totais em razão da demanda final, do consumo interindustrial e do consumo das famílias. Também são realizadas simulações para avaliar os efeitos de uma eventual restrição de emissões sobre os vários setores da economia, bem como os efeitos de um imposto sobre emissões. As regiões analisadas são Norte, Nordeste, Centro-Oeste, São Paulo, resto do Sudeste e Sul. “O Brasil vem apresentando taxas de crescimento de emissões significativas, as quais parecem estar ligadas ao aumento do uso do gás natural e à queda relativa na utilização do álcool”, aponta o estudo. “A melhor compreensão da relação entre os problemas das emissões e a atividade econômica são importantes para a formulação de políticas ambientais que caminhem para controlar o efeito estufa.” NOVA ECONOMIA – VOL. 16 – Nº 1 – BELO HORIZONTE – JAN./ABR. 2006
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010363512006000100002&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
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Sociedade de risco
DELTA: DOCUMENTAÇÃO DE ESTUDOS EM LINGÜÍSTICA TEÓRICA E APLICADA – VOL. 22 – Nº 1 – SÃO PAULO – 2006 www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010244502006000100006&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
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Economia
EDUARDO CESAR
Políticas de emissões Quantificar as emissões de CO2 decorrentes do uso energético de gás natural, álcool e derivados de petróleo, em seis regiões brasileiras, e avaliar os impactos de eventuais políticas de controle de emissões. Esse é o objetivo do artigo “Uso de combustíveis e emissões de CO2 no Brasil: um modelo inter-regional de insumo-produto”, de Emerson Hilgemberg, professor do Departamento de Economia da Universidade Estadual de Ponta Grossa, e Joaquim Guilhoto, da Faculdade de Economia, Administração e Ciências Contábeis da Universidade de São Paulo. O
Saúde pública
A discussão sobre a concepção de risco é ampla e permeia desde uma perspectiva mais geral, que busca contextualizá-lo na dinâmica da mudança da sociedade, até a abordagem mais específica na área da saúde, particularmente nos estudos associativos da epidemiologia. “A palavra risco tem sido cada vez mais freqüente nas revistas médicas nas últimas três décadas. Esse fenômeno, no entanto, não é exclusivo da área da saúde e é permeado pela diversidade de uma noção que esconde uma lacuna conceitual”, segundo o artigo “Sociedade de risco e risco epidemiológico”. A partir de revisão bibliográfica sobre o assunto, o trabalho procura sistematizar a discussão sobre risco. As autoras são Olinda do Carmo Luiz, da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, e Amélia Cohn, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Segundo elas, a incorporação da noção de risco foi fruto de transformações sociais e tecnológicas. No entanto, é a epidemiologia que informa sobre quais são os fatores de risco: as tentações ricas em colesterol, a fumaça de cigarro etc. Portanto, é ela que diz quais são as portas que devem ser obstruídas à entrada da morte. CADERNOS DE SAÚDE PÚBLICA – VOL. 22 – Nº 11 – RIO DE JANEIRO – NOV. 2006 www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102311X2006001100008&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
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DEUTSCHE ZENTRUM FÜR LUFT - UND RAUMFAHRT (DLR)
TECNOLOGIA
Do deserto para a Europa
Grandes espelhos para gerar energia elétrica
Usar a energia solar gerada em regiões desérticas do Oriente Médio e norte da África pode ser a solução para a Europa reduzir o consumo de petróleo e carvão mineral e adotar uma fonte de energia limpa e renovável. É o que sugerem dois estudos alemães apoiados pela Cooperação Transmediterrânea de Energias Renováveis (da sigla Trec, em inglês). Eles mostram que usinas de energia solar ocupando menos de 0,3% da área de deserto dessas regiões poderia prover 15% da eletricidade a ser consumida na Europa em 2050.Nesse ano,os europeus poderiam cortar até 70% das emissões de dióxido de carbono,gás relacionado ao efeito estufa,se além da energia solar
importada também adotassem energia renovável de outras fontes.Os autores do estudo acreditam que levaria de 10 a 15 anos para os países da região gerarem energia suficiente para consumo interno e que,apenas em 30 anos,o excedente começaria a ser exportado para a Europa por meio de cabos.A geração de eletricidade no deserto utilizaria grandes espelhos para concentrar energia solar e gerar energia elétrica.Mas os investimentos necessários podem se tornar um sério obstáculo para essas usinas.Estudos para a construção de uma usina piloto no Iêmen mostraram custo de cerca de US$ 7,5 bilhões.O valor total do projeto é estimado em US$ 500 bilhões (SciDev).
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Linha de Produção
Mundo
■ Diagnóstico
em um minuto Recursos nanotecnológicos permitiram a um grupo de pesquisadores da Universidade da Geórgia,nos Estados Unidos, criar um teste capaz de detectar,em um minuto ou menos, a presença de vírus causadores de diversas doenças,como gripe e Aids.Chamado de Efeito Raman intensificado por superfícies (da sigla Sers,em inglês),o método funciona medindo-se a mudança na freqüência de um feixe de laser na faixa do infravermelho quando ele é refletido pelos RNA ou DNA virais.O fenômeno não é novo,mas,segundo Ralph Tripp,autor do estudo,em comunicado da universidade, 60
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tentativas anteriores fracassaram porque os sinais gerados eram muito fracos. A alternativa foi encontrar um método de amplificar o sinal,o que foi obtido com o uso de nanobastões de prata 10 mil vezes mais
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finos que um fio de cabelo no recipiente que contém a amostra.Os pesquisadores fizeram um trabalho parecido ao de um técnico de tevê,que vai posicionando a antena para obter a melhor recepção.Eles
perceberam que a maior amplificação dos sinais é obtida quando os nanobastões ficam inclinados em 86º.O dispositivo só foi testado em amostras isoladas de vírus e o próximo passo será usá-lo em amostras biológicas,como fezes,sangue e urina.
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■ DNA produz
nanopartículas A velocidade da montagem de nanopartículaspode acelerar com a ajuda da molécula que leva as instruções genéticas da vida,o DNA,como comprovou uma equipe de pesquisadores do Departamento de Energia do Laboratório Nacional de Brookhaven,nos Estados Unidos.As nanopartículas,que
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têm dimensões da ordem do bilionésimo do metro, poderiam ser usadas em geradores de energia elétrica, armazenamento de dados e para melhorar os métodos de diagnóstico e tratamento de doenças muito mais facilmente. Os pesquisadores encontraram uma maneira de controlar a reunião de nanopartículas de ouro usando a dupla hélice rígida do DNA. Ao empregar materiais biológicos como o DNA pode-se desenvolver melhores métodos para embutir os nanoobjetos inorgânicos que se queira utilizar.
tiplicar a resistência do plástico por um fator de 3 mil. O uso de celulose em substituição ao vidro – material normalmente empregado pela indústria – apresenta uma série de vantagens. O vidro é mais difícil de ser processado, mais caro de ser trabalhado e não é biodegradável. Os nanocristais de celulose também poderão ser usados em cerâmicas e aplicações biomédicas.
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■ Eletricidade
cria tecidos
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em raios X Uma nova técnica em microscopia de raios X, cuja resolução da imagem atinge a escala nanométrica, foi anunciada por cientistas do Laboratório Nacional Argonne, do governo norte-americano, e da Xradia, fabricante de microscópios de raios X. Combinando a reflexão de raios X com a alta resolução da microscopia nos mesmos raios X, os pesquisadores podem estudar interações na escala nanométrica em que os materiais são visualizados no nível atômico. O método será importante no entendimento de reações ocorridas na superfície dos materiais, como corrosão, reações catalíticas e adsorção (presos na superfície) de
íons. Uma melhor compreensão dessas interações é vital para diversos campos da ciência e poderá, entre outras coisas, ajudar a curar doenças e proteger o meio ambiente. Outra descoberta significativa na área foi feita no Laboratório Nacional Lawrence Livermore, também nos Estados Unidos. Pesquisadores validaram, pela primeira vez, a idéia de usar pulsos de raios X altamente curtos e intensos para capturar imagem de objetos (como proteínas) antes que a radiação destruísse a amostra. O novo método será aplicável em imagem de resolução atômica de complexos de biomoléculas mesmo quando lasers de raios X mais potentes, em desenvolvimento, estiverem prontos.
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■ Celulose reforça
o plástico Um material plástico 3 mil vezes mais resistente do que os atuais e com a vantagem de ser biodegradável e muito leve foi desenvolvido por cientistas do Suny College of Environmental Science and Forestry, especializado em ciências ambientais e florestal, nos Estados Unidos. A chave para a criação do novo material foi a adição de nanocristais de celulose extraída de madeira de reflorestamento, polpa de laranja ou restos de processamento de outros vegetais. Para William Winter, coordenador da pesquisa, a adição de 3 gramas de nanocristais em 450 gramas de plástico é suficiente para mul-
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ILUSTRAÇÕES LAURABEATRIZ
■ Microscopia
Uma nova técnica que usa eletricidade para construir tecidos humanos foi desenvolvida na Universidade de Manchester, Inglaterra. Os pesquisadores acreditam que o método tem potencial para a fabricação de medula óssea fora do corpo e de qualquer tipo sangüíneo. Para produzir os tecidos, utilizou-se uma série de lâminas de vidro com eletrodos. Em seguida, uma solução contendo células foi colocada nas lâminas. Um campo elétrico é então criado entre os eletrodos por uma pequena corrente alternada que passa através deles, atraindo as células. Elas se aglomeram em camadas sucessivas até formar o tecido biológico. Por enquanto foram criados tecidos com 200 micrômetros de espessura, muito finos ainda para serem utilizados em cirurgias (London Press).
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Linha de Produção
Brasil
Perfume francês A Linax,uma pequena empresa de Votuporanga,no interior de São Paulo,se apresentou em Paris, França,no início de novembro, durante a Conferência de Investimentos Sustentáveis, TBLI na sigla em inglês, mostrando seu principal produto,o linalol,um óleo extraído do manjericão que serve para produzir perfumes.O produto é resultado de uma pesquisa do Instituto Agronômico (IAC) de Campinas e a Linax foi criada para comercializá-lo
dos.”O uso do linalol,produzido com manjericão plantado por pequenos agricultores de Votuporanga,é útil para produzir perfumes finos sem a necessidade de substâncias sintéticas.A Linax foi escolhida pelo World Resources Institute (WRI) para representar o Brasil em Paris depois que a empresa venceu o New Venture Brasil em 2004,fórum de investidores e empresários realizado em conjunto com a Fundação Getúlio Vargas (FGV).
(veja Pesquisa FAPESPnº 120). “Na França,nos apresentamos para bancos e fundos de investimentos de várias partes do mundo.Eles estão interessados em empreendimentos sustentáveis do ponto de vista econômico,ambiental e social”,explica Nilson Borlina Maia,pesquisador do IACe coordenador das pesquisas na empresa. “Estamos conversando com representantes de vários fun-
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Manjericão: das folhas é extraído o linalol
■ USP no
Top 500
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meteorologia e demais atividades que exigem a realização de cálculos complexos.O supercomputador é composto por 448 processadores e será instalado no Laboratório de Computação Científica Avançada do Centro de Computação
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Eletrônica na Cidade Universitária em São Paulo.
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■ Hidrogênio
com gás natural Abastecer veículos que funcionam a gás natural com uma ILUSTRAÇÕES LAURABEATRIZ
Ao adquirir um supercomputador com poder de realizar 2,9 trilhões de operações por segundo,a Universidade de São Paulo (USP) passou a fazer parte da relação dos 500 mais poderosos aglomerados computacionais do mundo,ocupando o 363°lugar no ranking Top 500,do qual,no Brasil, apenas mais três computadores da Petrobras fazem parte.O primeiro lugar dessa lista,feita pelas universidades de Mannheim,na Alemanha,e do Tennessee,nos Estados Unidos,é do Departamento Nacional de Energia Nuclear de Segurança Administrativa,dos Estados Unidos.A USP é a primeira universidade brasileira a participar do ranking. A máquina comprada da IBM custou US$ 650 mil e foi financiada pela FAPESP.Ela facilitará os estudos em astronomia,engenharia elétrica,na variação de cálculo de propriedades de sistemas eletrônicos,genômica, 62
MIGUEL BOYAYAN
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porcentagem de hidrogênio é o objetivo inicial da primeira estação experimental de abastecimento veicular de hidrogênio (H) do país,inaugurada em novembro e instalada no Laboratório de Hidrogênio (LH2) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).“Vamos estudar a mistura dos dois gases em proporções de 5% a 25% de H extraído do etanol (o álcool utilizado nos carros) e verificar sua viabilidade econômica com a utilização de créditos de carbono porque a presença de H é muito mais vantajosa para o ambiente”,diz o professor Ennio Peres,coordenador do LH2.A mistura dos dois gases já tem nome regis-
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trado e vai se chamar hidrano. “A estação estará voltada inicialmente para os experimentos com o hidrano e para abastecer com H o Vega II (veja Pesquisa FAPESP nº 126) e depois de 2010 para atender aos primeiros veículos com célula a combustível rodando exclusivamente com H.”
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■ Parceria
do tempo As atividades de monitoramento e previsão do tempo e do clima do Brasil agora terão o aval dos dois principais órgãos de meteorologia do país: o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, e o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), que faz parte do Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Para aprofundar e fortalecer suas atividades, um grupo de trabalho permanente com membros das duas instituições vai decidir a solicitação de recursos e a formulação de políticas nessa área.
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■ Pomada para
diabéticos As feridas que surgem na região das mãos, dedos, pernas e pés de diabéticos e podem provocar sérios problemas, inclusive a gangrena, ganharam mais uma arma para combatê-las. Um medicamento, em forma de gel ou pomada, criado em parceria por pesquisadores da Universidade Federal de Viçosa (UFV) e da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), ambas em Minas Gerais, atua como antiinflamatório e ajuda na circulação sangüínea. O composto fitoterapêutico testado em ratos e coelhos mostrou uma cicatrização mais rápida (entre 15 e
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20 dias) em comparação com outros medicamentos que promoveram a cura em até seis meses. Em seres humanos a cicatrização depende do tamanho do ferimento e do metabolismo da pessoa. Segundo a professora Tânia Toledo de Oliveira, coordenadora da pesquisa na UFV, a empresa Profarma, da cidade mineira de Muriaé, já se mostrou interessada em comercializar o produto. Ele é composto por quatro plantas recolhidas na região da Zona da Mata de Minas Gerais e da região Nordeste do país, cujos nomes estão em sigilo porque ainda está em fase de patenteamento. “O fitoterápico não ajuda apenas quem tem diabetes, ele também atua na cicatrização de feridas de maneira geral”, diz.
■ Proteção para
alimentos Um filme comestível aplicado diretamente sobre os alimentos protege frutas e legumes, prolongando seu tempo de vida. A cobertura extremamente fina, invisível a olho nu, atua como barreira à perda de umidade. Para produzir esses filmes,os pesquisadores da Embrapa Instrumentação Agropecuária usaram materiais biodegradáveis de origem vegetal e animal, entre os quais polisEDUARDO CESAR
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■ Decifrando
a tuberculose Para ajudar na cura da tuberculose, enfermidade causada pela bactéria Mycobacterium tuberculosis (conhecida como bacilo de Koch), pesquisadores da Fiocruz e da Fundação Ataulpho de Paiva (FAP) seqüenciaram o genoma da linhagem da bactéria BCG Moreau RDJ, utilizada para a produção de vacina contra a doença.A tuberculose atinge principalmente as classes mais pobres e no Brasil chega a afetar mais de 85 mil pessoas por ano. A vantagem do seqüenciamento é que a vacina contra a doença será muito mais controlada e qualificada, evitando os antigos efeitos colaterais como a cistite. O trabalho também torna possível a elaboração de uma vacina BCG recombinante que permita a inserção de genes que não estão na BCG comum, capazes de defender o organismo de outras doenças, como o tétano e a catapora.
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Película comestível preserva frutas
sacarídeos como a quitina e a quitosana, encontradas na carapaça de crustáceos e insetos. Essas substâncias foram dissolvidas em soluções apropriadas levando à formação de moléculas ordenadas em escala nanométrica. Estudos conduzidos pelo pesquisador Odílio Assis mostram que o potencial do emprego de produtos naturais com características dos hidrogéis, que são materiais de base polimérica com alta afinidade com a água, representa uma alternativa de baixo custo para a preservação de alimentos in natura.Alguns hidrogéis são bactericidas, antifungicidas e aderem facilmente, além de serem biodegradáveis.
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TECNOLOGIA ENGENHARIA ELETRÔNICA
Inovação constante Urnas eletrônicas com identificador digital devem começar a ser usadas nas eleições municipais de 2008 D INORAH E RENO
BRAZ
N
o segundo turno das eleições presidenciais deste ano, exatamente duas horas e meia após o término da votação, os eleitores foram informados oficialmente pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de que o candidato Luiz Inácio Lula da Silva havia sido reeleito.A rapidez na apuração em uma votação que teve a participação de quase 102 milhões de eleitores deve-se às urnas eletrônicas, que, após dez anos de uso, tornaram-se parte da cultura eleitoral brasileira. “Até em aldeias indígenas que nem possuem telefone e televisão os eleitores sabem votar na urna eletrônica”, diz Giuseppe Janino, secretário de Tecnologia da Informação do TSE. Terminada a votação, já está em andamento uma outra inovação que deverá aprimorar as próximas eleições. São as urnas dotadas de um dispositivo de leitura biométrica que permite o reconhecimento automático do eleitor por meio da sua impressão digital. Os leitores biométricos já foram colocados em 25.538 urnas compradas para as eleições de 2006 e encaminhadas para os estados de Mato Grosso do Sul, Rondônia e Santa Catarina. Desta vez elas foram utilizadas como urnas eletrônicas tradicionais. A expectativa é que nas eleições municipais de 2008 os eleitores desses três estados, em vez de assinar a lista de presença, coloquem os dedos em um leitor de identificação (veja reportagem sobre o assunto na página 67). Para que isso ocorra, é preciso antes fazer um cadastro das impressões digitais dos eleitores nos computadores do TSE e ajustes no software do banco de dados. “A tecnologia de PESQUISA FAPESP 130
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reconhecimento digital tem como objetivo garantir mais segurança na identificação do eleitor”, diz Janino. A tendência é que todas as urnas, em um futuro próximo, tenham leitores biométricos. A inovação será incorporada por etapas, como ocorreu com as urnas eletrônicas, que em 1996, quando teve início o processo informatizado de votação, contemplavam apenas municípios com mais de 200 mil eleitores. Na segunda fase, em 1998, foi a vez das cidades com mais de 40.500 eleitores aderirem à novidade, que chegou a todo o eleitorado em 2000.
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ra concorrência pública para aquisição de urnas eletrônicas teve início no final de 1995. Três empresas participaram e a vencedora foi a Unisys, que entregou ao TSE as primeiras 77 mil urnas eletrônicas fabricadas no Brasil.
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Conhecimento transferido - O sucesso do processo eleitoral brasileiro resultou em vários acordos de colaboração com alguns países, principalmente da América Latina e Central.“O Brasil já fez acordos de transferência de conhecimento e de tecnologia com Argentina, Equador, Costa Rica, República Dominicana e México”, diz Janino. Nas eleições municipais realizadas pelo Paraguai no mês de novembro deste ano a tecnologia utilizada era integralmente brasileira. O TSE cedeu 17 mil urnas, que estavam fora de uso, e deu todo o apoio para o desenvolvimento do software, proporcionando a 3 milhões de eleitores paraguaios escolherem seus novos prefeitos por meio de urnas eletrônicas. Nas eleições presidenciais de 2003 o país vizinho já havia utilizado a tecnologia brasileira, realizando um pleito 50% informatizado. Mas não só os países vizinhos estão interessados no processo eleitoral brasileiro. O Tribunal Eleitoral já recebeu a visita de representantes de cerca de 30 países que vieram conhecer a tecnologia aqui desenvolvida, entre eles Alemanha, Japão, Itália, França, Coréia do Sul e Estados Unidos. O processo de informatização do voto no Brasil começou em 1983, quando a Justiça Eleitoral organizou a infra-estrutura computacional que interligou todos os Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) e cartórios eleitorais do país. O sistema foi utilizado no recadastramento eletrônico do eleitorado brasileiro em 1986, na totalização dos resultados da eleição presidencial em 1989, no plebiscito nacional sobre forma de governo em 1993 e na eleição geral de 1994.A primei66
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sistema eletrônico de votação é um conjunto de hardware e software composto por dois módulos: o terminal do eleitor, ou urna eletrônica, que inclui toda a capacidade de processamento e armazenamento da informação, e o microterminal utilizado pelos mesários. A ligação entre os dois módulos é feita por meio de um cabo ligado diretamente às placas internas. A urna eletrônica, que pesa pouco mais de 8 quilos, tem um teclado numérico e um pequeno monitor de cristal líquido. Sua arquitetura é parecida com a de um computador de uso pessoal, mas o projeto contempla um hardware bastante diferenciado que inclui, por exemplo, sensores para verificação da bateria interna, da impressora e um microcontrolador utilizado para controle dos sensores e do teclado do terminal do eleitor. O produto contém uma série de princípios que garantem segurança ao processo, como senhas, informações criptografadas e métodos de segurança utilizados em automação bancária que reduzem ao mínimo a possibilidade de fraude eletrônica. Em 2002, uma equipe de especialistas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) fez uma avaliação sobre a segurança das urnas eletrônicas a pedido do TSE. Na conclusão do estudo foram feitas algumas recomendações para melhorar a segurança, mas não foi apontado nenhum item que questionasse a confiabilidade do sistema. Licitação pública - Desde 1995 foram feitas seis licitações públicas para fornecimento das urnas eletrônicas, duas vencidas pela Unisys e quatro pela Procomp. “Temos basicamente um modelo de urna a cada eleição”, diz Janino. Isso ocorre porque as urnas são constantemente atualizadas e aperfeiçoadas. No modelo de 2000, por exemplo, as urnas receberam um dispositivo de áudio por meio do qual, usando fones de ouvido, deficientes visuais podem ouvir a confirmação dos números digitados no teclado, que
também tem identificação em braille. E também ganharam autonomia para funcionar mais de 12 horas sem energia externa. Atualmente a Justiça Eleitoral brasileira conta com mais de cem computadores de grande porte instalados no TSE e nos 27 TREs, cerca de 18 mil microcomputadores nas 3.009 zonas eleitorais e 407.089 urnas eletrônicas. A tranqüilidade da votação eletrônica brasileira que reelegeu Lula em outubro de 2006 contrastou com vários incidentes registrados uma semana depois nas eleições dos Estados Unidos. Na votação realizada no início de novembro para renovação de cargos legislativos e a escolha de 36 governadores, eleitores de seções dos estados de Indiana e Ohio e de algumas na Flórida tiveram de votar com cédulas de papel em vez de usar a urna eletrônica. Especialistas apontam que faltou experiência à população, já que um em cada três eleitores usava a máquina pela primeira vez.Além disso, em alguns condados os mesários não estavam preparados para utilizar os equipamentos. Lá cada condado é responsável pela eleição sob sua jurisdição, enquanto no Brasil ela é centralizada e unificada para todo o território nacional. São duas realidades bem distintas. Aqui há uma estrutura organizacional da Justiça Eleitoral, com o TSE como maior autoridade e atribuições bem definidas. Assim que as eleições terminam é feita uma avaliação do processo baseada nos registros de dificuldades encontradas. E imediatamente é iniciado o planejamento para as próximas eleições. “Trabalhamos em um processo de melhoria contínua, não só em relação a equipamentos, mas principalmente quanto aos procedimentos”, explica Janino. “O grande sucesso do nosso processo informatizado, que hoje é referência mundial, não está simplesmente focado na ferramenta urna eletrônica, mas sim dentro de um processo bem elaborado e concatenado que visa garantir a segurança e a transparência do processo”, diz. O interessante é que o primeiro Código Eleitoral Brasileiro, de 1930, já previa uma máquina de votar como recurso para sanar os vícios eleitorais e garantir pleitos sem fraudes, uma intenção que demorou, esperando o avanço tecnológico, algumas décadas para se tornar realidade. •
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Reconhecimento digital Sistema desenvolvido pela empresa Griaule está entre os melhores do mundo
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ontrolar a entrada e a saída de funcionários na empresa, acessar caixas eletrônicos de bancos e proteger o computador doméstico ou profissional contra olhares indiscretos são algumas das aplicações de um software de reconhecimento de impressões digitais desenvolvido pela empresa Griaule, de Campinas, que já conquistou clientes nos Estados Unidos, México, Chile,Venezuela e Israel. Recentemente a tecnologia da empresa para a emissão de passaportes foi comprada pela Costa Rica, por meio da empresa francesa Oberthur, que produz esse tipo de documento para 80 países. Este ano a tecnologia da Griaule foi incorporada às 25 mil urnas eletrônicas com leitores de impressão digital entregues ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) pela Procomp, uma das empresas parceiras, previstas para serem utilizadas nas próximas eleições. O programa foi considerado o oitavo melhor do mundo em um teste de grande escala – 1 bilhão de comparações de impressões digitais – realizado em 2003 pelo Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia (Nist, na sigla PESQUISA FAPESP 130
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Leitor de digitais substitui senhas e crachás
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em inglês), nos Estados Unidos. Uma posição invejável para uma pequena empresa que disputou com gigantes do setor como Motorola e NEC. Algumas grandes, como a Raytheon, ficaram atrás da Griaule, a única empresa do hemisfério Sul a participar do teste. Os participantes selecionados tinham 21 dias para completar a prova. A classificação foi feita com base na qualidade do reconhecimento da impressão digital. Em outubro deste ano a Griaule participou de um teste semelhante realizado pela Universidade de Bolonha, na Itália. Segundo os pesquisadores da empresa, o programa deve ficar em terceiro lugar. No Brasil, o sistema de identificação digital está sendo utilizado pelas secretarias de Segurança Pública do Tocantins, Rondônia e Goiás para a emissão de carteiras de identidade e pelo Departamento Estadual de Trânsito (Detran) de Per68
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nambuco para evitar fraudes na emissão de carteiras de habilitação. O estado do Tocantins foi o primeiro cliente a adotar o software da empresa, quando a Secretaria de Segurança Pública decidiu substituir a tecnologia importada utilizada na identificação civil e criminal, por conta do alto custo para expandir e manter a base de dados. O sistema utilizado atualmente captura eletronicamente as impressões digitais dos dez dedos, a foto e a assinatura de cada pessoa, ou permite a digitalização dessas informações colhidas em papel. Após a comparação no sistema da Griaule é emitida a carteira de identidade, processo que leva apenas dez minutos. Hoje já são cerca de 1 milhão de impressões digitais cadastradas no banco de dados da secretaria estadual. A Univer-
sidade Estadual de Campinas (Unicamp) também adotou o sistema de reconhecimento digital da empresa para verificar a identidade dos candidatos aos exames vestibulares, realizados duas vezes por ano pela instituição e com cerca de 50 mil concorrentes cada um.
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conquista de tantos nichos de mercado impressiona pelo pouco tempo de existência da empresa, criada em 2002. Ela foi uma das primeiras a ser abrigada na Incubadora de Empresas de Base Tecnológica da Unicamp (Incamp). Antes disso, em 1999, os dois sócios da Griaule, o engenheiro eletricista Iron Calil Daher e o engenheiro de computação Alberto Fernandes Canedo, na época estudantes da Universidade Federal de Goiás, começaram a trabalhar jun-
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tos no desenvolvimento de componentes de software para reconhecimento digital, um dos métodos de identificação mais utilizados mundialmente nos sistemas biométricos, que substituem as tradicionais senhas pela análise de partes do corpo humano, como íris, face, mãos, voz e até assinatura. Acesso liberado – A autenticação bio-
métrica envolve duas fases. A primeira de registro da impressão digital, da imagem da íris ou da face, gravação de voz e outras particularidades pessoais. As características-chave são então convertidas por meio de algoritmos (conjunto de soluções e operações matemáticas construídas para resolver um problema) em um padrão único, armazenado como um dado numérico criptografado. Na prática isso significa que o sistema não grava a foto do rosto ou da impressão digital, mas o valor que representa a identidade biométrica do usuário. Na segunda fase, para poder ter o acesso liberado, o usuário deve apresentar ao sistema sua característica biométrica, que será comparada ao padrão registrado no banco de dados. Para aprimorar os algoritmos e aperfeiçoar o processamento das informações nos computadores, a Griaule obteve financiamento da FAPESP na modalidade Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe). A empresa recebeu também aporte financeiro da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), do Ministério da Ciência e Tecnologia, no valor de R$ 250 mil, para um projeto aprovado no âmbito do CT-Info, Fundo Setorial para Tecnologia da Informação. O faturamento anual, que era de R$ 100 mil em 2003, hoje está na casa dos R$ 3 milhões. As exportações correspondem a 80% desse total, sendo os Estados Unidos o principal mercado, o que levou a empresa a abrir em fevereiro deste ano uma filial em San José, no estado da Califórnia, no Vale do Silício, sob o comando direto de Daher. A Griaule possui seis certificações do Federal Bureau of Investigation (FBI), a polícia federal norte-americana, o que a habilita a participar de licitações realizadas nos Estados Unidos. “O nosso software não é um produto final”, explica André Nascimento de Paula, gerente de Cooperação Institucional da empresa. A Griaule desenvolve
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componentes de software para empresas que integram os componentes em um produto. Chamadas de integradoras, essas empresas se encarregam da formatação final do produto, de acordo com as necessidades dos seus clientes, que englobam pequenos estabelecimentos, grandes corporações e governos. No ano passado a Griaule deixou a incubadora e foi para uma casa alugada próxima à Unicamp. Na entrada, um leitor de digitais instalado na parede ao lado da porta identifica os 20 funcionários, metade dos quais tem mestrado ou doutorado. A identificação funciona em duas etapas e não demora mais do que dois segundos. A primeira fase, chamada de captura, tem início quando o dedo é colocado no equipamento de identificação e leva um segundo. A segunda etapa, de pesquisa, avalia 30 mil digitais em um segundo. Versão gratuita – O foco comercial da
Griaule é amplo, abrangendo os clientes corporativos e os governamentais. Para os clientes corporativos e consumidores finais, a empresa desenvolveu o Desktop Login, que substitui a senha pela impressão digital para acessar o computador, o Desktop Identity, para pontos-de-venda e controle de ponto, e o Rex 2006, controle de acesso com leitor de identificação digital que funciona em rede e permite fácil integração com fechaduras elétricas e catracas. O Desktop Identity, que tem uma versão para distribuição gratuita pela internet, pode ser instalado em qualquer instituição para aperfeiçoar o controle e o tráfego de pessoal. A versão gratuita também traz um kit de desenvolvimento
O PROJETO Melhoramento da qualidade do reconhecimento e da disponibilidade (Speed Cluster) do Griaule Afis MODALIDADE
Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe) COORDENADOR
IRON CALIL DAHER – Griaule INVESTIMENTO
R$ 301.800,00 (FAPESP)
destinado aos engenheiros de computação interessados em criar novas aplicações sobre as tecnologias de reconhecimento digital da empresa. Os clientes governamentais contam com o programa chamado Afis (Automated Fingerprint Identification System), que faz o reconhecimento digital em grande escala e permite a identificação civil e criminal, o controle de fronteiras e presídios, além da emissão de documentos como carteira de identidade, carteira nacional de habilitação, passaporte, título eleitoral e outros. Mesmo em gigantescas bases de dados, com centenas de milhões de impressões digitais cadastradas, o reconhecimento pode ser feito em poucos segundos. Como qualquer estado brasileiro tem milhões de impressões digitais, já que são dez impressões digitais por pessoa, a empresa desenvolveu o Speed Cluster, uma tecnologia em que dezenas de computadores trabalham paralelamente para processar o banco de dados, acelerando a resposta da pesquisa efetuada. No ano passado a empresa recebeu o Prêmio Finep de Inovação Tecnológica na categoria pequena empresa, concedido pela Financiadora de Estudos e Projetos. Atualmente a Griaule trabalha em outro projeto de biometria, de detecção e reconhecimento digital da face humana. “Queremos fazer até 2008 um produto de multibiometria, o que engloba o reconhecimento de assinatura e voz”, diz Daher. Estudo realizado pelo International Biometric Group (IBG), empresa de consultoria do setor dos Estados Unidos, aponta que as vendas globais dos equipamentos de biometria vão saltar de US$ 2,1 bilhões em 2006 para US$ 5,7 bilhões em 2010. O reconhecimento de impressões digitais, o mais difundido e barato dos sistemas biométricos, deve responder por 44% do mercado global do setor neste ano, enquanto a autenticação da face aparece em segundo lugar, com 19%. O mercado para os sistemas biométricos está em crescimento contínuo, mas ainda não atingiu um pico e também não tem uma empresa líder, o que coloca a Griaule em uma situação privilegiada. “Estamos no mercado há algum tempo, temos um algoritmo bem desenvolvido, clientes, cadeia de distribuição bem definida e uma estrutura de pesquisa e desenvolvimento organizada”, diz Daher. • PESQUISA FAPESP 130
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TECNOLOGIA
ESPAÇO
Conquistas siderais Programa Uniespaço desenvolve inovações tecnológicas para projetos de foguetes e satélites Y URI VASCONCELOS
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té o fim do ano, se tudo correr bem, o protótipo de um novo foguete de alumínio, totalmente projetado e construído no Brasil, estará pronto para ser lançado ao espaço do Centro de Lançamento da Barreira do Inferno, em Natal, no Rio Grande do Norte. O veículo, com 3,2 metros de comprimento, está sendo finalizado por pesquisadores do Departamento de Engenharia Mecânica da Universidade de Brasília (UnB). Ele faz parte de um dos 15 projetos integrantes do Programa Uniespaço, mantido pela Agência Espacial Brasileira (AEB), que tem como objetivo promover a inserção da comunidade científica nacional no Programa Espacial Brasileiro e fomentar o desenvolvimento de novas tecnologias para o setor. Depois de quase três anos de pesquisas – e o envolvimento de cerca de 50 pesquisadores de diversas universidades 70
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e institutos de pesquisa –, os resultados estão aparecendo. “Os 15 projetos têm grande aplicabilidade em atividades da AEB em áreas como lançamentos de veículos espaciais e satélites, computadores de bordo para aplicação espacial, sensores e atuadores para sistemas de controle de atitude em satélites e materiais destinados a suportar altas temperaturas”, diz José Bezerra Pessoa Filho, chefe da Divisão de Sistemas Espaciais do Instituto de Aeronáutica e Espaço (IAE), de São José dos Campos, e membro da Comissão Técnico-científica do Uniespaço. Além do desenvolvimento dessas novas tecnologias, os projetos também contribuem para formar mão-de-obra especializada para o programa espacial, que conta com uma ousada agenda de missões para os próximos anos. O país pretende promover, até 2014, o lançamento de três versões do Veículo Lançador de Satélites (VLS), além de colocar em órbita ou participar de trabalhos conjuntos em mais de uma dezena de satélites científicos, meteorológicos, de
telecomunicações e de observação da Terra. Um desses macroprojetos é a segunda geração dos Satélites Sino-Brasileiros de Recursos Terrestres (Cbers-3 e 4), previstos para serem lançados em 2008 e 2011, respectivamente, levando a bordo câmeras totalmente produzidas no país (veja quadro na página 71). Antes disso, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) espera lançar, em maio de 2007, o Cbers-2B em substituição ao segundo satélite da série, que foi para o espaço em 2003. O foguete projetado pela UnB é um bom exemplo do sucesso do Uniespaço, que recebeu verba de R$ 1 milhão do governo federal para financiar os projetos. O veículo, projetado para ultrapassar 10 mil metros de altitude, dispõe de uma tecnologia inédita na América Latina: seu propulsor é dotado de um sistema híbrido que funciona a partir da mistura de um oxidante líquido, o óxido nitroso (N2O), e um combustível sólido, a parafina, semelhante à usada na fabricação de velas. A principal vantagem desse tipo de combustível é que ele é mais barato e sim-
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ples de ser operado.“Graças a uma válvula que controla a injeção do oxidante líquido, a combustão pode ser interrompida a qualquer momento e, por isso, sua manipulação é mais segura”, diz o professor Carlos Alberto Gurgel, coordenador do projeto. Sem falar que o combustível híbrido não é tóxico nem poluente. O trabalho começou a ser desenvolvido por alunos de graduação de engenharia mecânica da UnB, em 2000, no âmbito do Programa Uniespaço, e foi liderado pelo engenheiro Ricardo Contaifer. Os resultados podem, no futuro, ajudar o país a adquirir tecnologia para uso de combustíveis líquidos em foguetes, a mais utilizada em veículos espaciais. A pesquisa conduzida pelo engenheiro mecânico Carlos Henrique Marchi, coordenador do programa de pós-graduação em engenharia mecânica da Universidade Federal do Paraná (UFPR),também está associada ao desenvolvimento de foguetes de grande porte, maiores do que o VLS, que usam oxigênio e hidrogênio líquidos como propelentes.A finalidade principal desse projeto é criar apli-
cativos (softwares) que permitam projetar esses motores, usados atualmente pelo foguete francês Ariane e pelos ônibus espaciais norte-americanos, entre outros. “São objetivos da pesquisa prever o empuxo (ou força) produzido pelo motor, a temperatura máxima atingida pelas paredes desse mecanismo e a queda de pressão de escoamento do líquido refrigerante ao longo dos canais em torno do motor-foguete”, destaca Marchi. De acordo com o pesquisador,são poucos os grupos de pesquisa em nível mundial que se debruçam sobre os três subsistemas: escoamento do motor junto com a condução de calor para a parede e o escoamento nos canais. “E mesmo esses grupos não realizam a estimativa dos erros numéricos envolvidos na solução do problema”, ressalta. “É preciso estimar o erro numérico de uma simulação.Assim, é possível comparar de forma adequada resultados experimentais com numéricos e verificar se o modelo de simulação reproduz o fenômeno real.” Outra pesquisa importante para o país avançar na exploração espacial es-
tá se desenrolando nos laboratórios da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Lá, o engenheiro elétrico Francisco das Chagas Mota coordena um grupo que desenvolve um receptor de GPS (sigla em inglês para Sistema de Posicionamento Global por Satélites) para ser usado em veículos espaciais como foguetes de sondagem e satélites.“O equipamento serve para determinar com precisão a velocidade e a posição do foguete ou do satélite no espaço. Sua principal inovação é a incorporação de certas características, principalmente de software, que não estão presentes em receptores disponíveis comercialmente, como a capacidade de funcionar em elevadas altitudes e em alta velocidade sem perder o sincronismo com o sinal do satélite”, afirma Mota. O projeto está na fase final de montagem da máquina e, caso não ocorram imprevistos, o receptor será instalado em um foguete de sondagem a ser enviado ao espaço no próximo ano, a partir da Barreira do Inferno.“Atualmente os foguetes de sondagem lançados no país empregam PESQUISA FAPESP 130
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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
Foguete projetado na UnB: alternativa de combustível
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UFMG
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Microscopia de resina polimérica pura (à esquerda) e reforçada com nanotubos de carbono (ao lado)
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receptores de GPS importados. Com esse projeto, dominaremos a tecnologia de GPS adequada a esses veículos e, futuramente, para utilização em satélites.” O físico Marcelo Carvalho Tosin, do Departamento de Engenharia Elétrica da Universidade Estadual de Londrina (UEL), e o professor Francisco Granziera Júnior trabalham no desenvolvimento de um artefato com potencial para ser embarcado em veículos aeroespaciais. Trata-se de um aparelho capaz de calcular em tempo real a atitude a partir de sinais digitalizados de sensores microelétrico-mecânicos ou MEMS (Micro-Electro-Mechanical Systems).“A atitude de um objeto é a orientação que este apresenta em relação a um eixo de coordenadas fixas (latitude, longitude e altitude)”, explica o pesquisador. Saber a atitude e o movimento de um objeto é importante em diversas aplicações, como, por exemplo, para um piloto reconhecer e prever a sua trajetória durante o vôo. 72
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m determinador de atitude é normalmente composto por sensores e uma unidade para o processamento dos sinais desses sensores. No caso do aparelho desenvolvido em Londrina, o sistema utiliza informações em 3D sobre o campo magnético terrestre, o campo gravitacional e a velocidade angular para o cálculo da atitude.Para isso,um conjunto de magnetômetros, instrumento destinado à medição de intensidade do campo magnético, acelerômetros, usados para medir acelerações, e girômetros, que fornecem informações sobre a velocidade angular em uma dada direção, são empregados em conjunto com um sistema de digitalização e processamento de dados. Um protótipo já está pronto e o projeto será finalizado com a implementação de algoritmos de calibração e alinhamento de sensores. Segundo Marcelo Tosin, embora possua aplicações aeroespaciais, o determinador de atitude que está desenvolvendo também é voltado para uso terrestre e
pessoal como sistemas de navegação pessoal, sistemas de segurança para monitoramento de cargas, dispositivos para interação com jogos de computador e brinquedos. “O setor aeroespacial é um dos que mais contribuíram para agregar novas tecnologias a produtos de consumo em massa, tais como eletrodomésticos, carros e vestuário, entre outros. O uso de sensores MEMS de baixo custo em um determinador de atitude e a possibilidade de empregá-lo em produtos do cotidiano das pessoas são duas grandes inovações desse projeto”, diz Tosin Estruturas cilíndricas -Um dos proje-
tos mais inovadores do Uniespaço é realizado numa parceria entre a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e o Centro de Desenvolvimento da Tecnologia Nuclear da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CDTN/CNEN) e trata do desenvolvimento de materiais compósitos (constituídos pela mistura de materiais de natureza distinta) de interesse do setor aeroespacial, sendo os nanotubos de carbono um dos constituintes.
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Nanotubos de carbono são estruturas cilíndricas formadas por átomos de carbono, com diâmetro de cerca de 1 nanômetro (1 milímetro dividido por 1 milhão de vezes) e comprimento ilimitado. Eles podem ter características metálicas ou de semicondutores e são ótimos condutores térmicos e elétricos, além de possuírem extrema resistência à tração e poderem ser torcidos e dobrados sem que aconteça um rompimento. Todas essas propriedades fazem dos nanotubos de carbono candidatos a reforço em compósitos poliméricos para setores estratégicos, como os nanocompósitos de resina epóxi ou resina fenólica utilizados na fuselagem de foguetes e outros veículos aeroespaciais. A resistência da estrutura das aeronaves é importante principalmente na reentrada dos veículos na atmosfera terrestre. “O uso de materiais compósitos de resina polimérica e nanotubos de carbono, inicialmente em lugares estratégicos da estrutura de veículos espaciais, poderia trazer ganhos em propriedades mecânicas e na dissipação de calor e carga eletrostática, minimizando os danos causados pelo bombardeio de íons”, diz a pesquisadora do CDTN, Clascídia Furtado, uma das coordenadoras do projeto junto com a professora Glaura Silva, da UFMG. Os benefícios do uso de uma cobertura de nanotubos na estrutura das aeronaves representam também uma barreira funcional de baixo peso para evitar interferências eletromagnéticas. Os nanotubos também podem resolver os danos estruturais e de alteração de dispositivos eletrônicos em aeronaves devido ao fenômeno de lightning (descargas elétricas ocorridas em tempestades de raios). Materiais altamente condutores baseados em nanotubos de carbono poderiam dissipar as cargas oriundas de uma descarga elétrica. “O grande desafio é justamente transferir o conjunto de propriedades dos nanotubos para um sistema compósito, o que depende principalmente do grau de dispersão dos nanotubos e das interações interfaciais entre eles e a matriz polimérica”, diz Clascídia.“Estamos trabalhando no que é chamado pesquisa ‘pré-competitiva’, em que a tecnologia está sendo desenvolvida ao mesmo tempo que a pesquisa fundamental.”Segundo a pesquisadora, o Brasil não está defasado em relação a outros países na busca de tais tecnologias. •
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INPE
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Fotografia espacial Os Satélites Sino-Brasileiros de Recursos Terrestres (Cbers), versões 3 e 4, desenvolvidos em cooperação com a China, vão subir ao espaço com duas das quatro câmeras imageadoras projetadas e construídas exclusivamente no Brasil. Uma delas, a Câmera Multi-Espectral (MUX), já passou no meio deste ano pelos primeiros testes no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Desenvolvida pela Opto Eletrônica, uma empresa de base tecnológica da cidade paulista de São Carlos, a nova câmera gera imagens em quatro bandas do espectro eletromagnético, do azul ao infravermelho próximo. Com resolução de 20 metros de resolução, ela é destinada ao monitoramento ambiental e gerenciamento de recursos naturais. Seu campo de visada, a faixa do solo visualizada pela câmera, é de 120 quilômetros de largura. “É a primeira câmera com essas características inteiramente desenvolvida e produzida no Brasil”, afirma o engenheiro do Inpe Mário Luiz Selingardi, gerente-técnico do Projeto MUX.
A segunda câmera será uma atualização da Câmera Imageadora de Amplo Campo de Visada (WFI, sigla em inglês de Wide Field Imager). Ela está sendo desenvolvida em conjunto pela Opto Eletrônica, responsável pela parte óptica, e pela Equatorial Sistemas, empresa de São José dos Campos especializada na fabricação de artefatos espaciais e que foi adquirida recentemente pela companhia francesa EADS. É uma câmera de média resolução, com 64 metros, e alta abrangência de cobertura. Ela funciona como uma câmera de lente grande angular e tem um campo de visada de 866 quilômetros. O valor investido no desenvolvimento das duas câmeras chega a R$ 90 milhões. “A fabricação desses equipamentos no Brasil representa um ganho tecnológico importante. As empresas envolvidas se capacitam em áreas de ponta, o que impulsiona o desenvolvimento de outros produtos”, destaca o engenheiro do Inpe Marcos Bertolino, responsável-técnico pelo projeto da WFI. • PESQUISA FAPESP 130
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ENGENHARIA FLORESTAL
TECNOLOGIA
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Eucaliptos
fortificados Parceria entre a USP e a Suzano obtém madeira que pode resultar em papel de melhor qualidade M ARCOS
DE
O LIVEIRA
o utilizar recursos biotecnológicos para alterar algumas características bioquímicas da madeira do eucalipto, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), em Piracicaba, estão desenvolvendo árvores que no futuro vão gerar celulose e, depois, papel com mais qualidade. Eles já obtiveram, em laboratório, plantas com genes da própria espécie Eucalyptus grandis e de outras plantas que produzem enzimas responsáveis pela biossíntese das hemiceluloses, um
composto do grupo químico dos açúcares presente entre as fibras de celulose. “Quanto mais hemiceluloses na madeira, melhor será a qualidade da celulose que se tornará mais resistente no processo de fabricação das bobinas de papel, sem rasgos e com maior brancura. No consumo final, um papel com essas características deve garantir a melhor qualidade de impressão e também resultar em um material com mais resistência e adaptabilidade para o setor de embalagens”, explica Carlos Alberto Labate, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da USP, coordenador do projeto realizado em parceria com a Suzano Papel e Celulose, umas das
maiores produtoras de celulose e papel do país, com unidades nos estados de São Paulo e da Bahia. O projeto foi elaborado dentro do programa Parceria para Inovação Tecnológica (Pite) que recebe financiamento tanto da FAPESP como da empresa. O grupo de 27 pesquisadores, inclusive dez com bolsas de capacitação tecnológica da empresa, conseguiu inicialmente superexpressar genes responsáveis pela biossíntese das hemiceluloses no código genético (DNA) do tabaco (Nicotiana tabacum), planta modelo para esse tipo de experimento. Depois foi a vez de exemplares do próprio eucalipto, transformando-os em plantas transgênicas. Alguns dos genes introduzidos nas duas plantas, encontrados em bancos mundiais de genomas, vieram de plantas como soja, batata, ervilha e de outra planta modelo, a arabidopsis. Dentre as possibilidades analisadas para uso e expressão dos vários genes, dois deles se mostraram mais interessantes, o de nome ugdh (também encontrado no eucalipto) foi o campeão na produção de xilanas, um tipo de hemicelulose, em três linhagens transgênicas de tabaco. Outro fator importante em algumas plantas foi o aumento de lignina solúvel, um tipo de polímero vegetal que funciona como um cimento entre as hemiceluloses e as fibras de celulose. Mais
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lignina solúvel implica menor gasto de compostos químicos no processo de branqueamento do papel na indústria. Assim, a menor quantidade de lignina pode levar ao aumento do rendimento na fabricação do papel branco. Aprovação e patente - O próximo pas-
so do experimento é testar as plantas no campo e esperar de quatro a cinco anos para que o eucalipto se transforme em árvore e demonstre a viabilidade do experimento. Para isso os pesquisadores terão que requerer a aprovação do plantio no campo pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). Enquanto isso, os pesquisadores e a empresa depositaram no Brasil, no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), e no exterior a patente do processo desenvolvido por eles para obter a rota metabólica que aumenta a produção das hemiceluloses com o intuito de melhorar a qualidade da madeira. Labate acredita que a confirmação da nova tecnologia para o setor produtivo ainda vai demorar um pouco, enquanto isso finaliza alguns trabalhos para publicar em revistas científicas. Para a empresa é uma aposta no futuro. “Nossa perspectiva é que tenhamos matéria-prima diferenciada e produtos finais também diferenciados, com variabilidade, em alguns anos”, prevê o en-
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O PROJETO Alteração da qualidade da madeira do eucalipto MODALIDADE
Parceria para Inovação Tecnológica (Pite) COORDENADOR
CARLOS ALBERTO LABATE - USP INVESTIMENTO
R$ 242.216,00 e US$ 925.350,62 (FAPESP) R$ 937.141,15 (Suzano Papel e Celulose)
genheiro agrônomo Shinitiro Oda, responsável pela área de biotecnologia de plantas da Suzano. “Poucas empresas estão trabalhando com hemicelulose atualmente, as pesquisas recaem mais sobre celulose e lignina”, diz ele. Oda lembra que, além do desenvolvimento científico e tecnológico, um dos fatores importantes no projeto é a formação de profissionais para a área. Ao todo, o projeto finalizado em setembro deste ano no âmbito do Pite e que continua com o apoio da Suzano colaborou para uma tese de mestrado, quatro de doutorado, além de vários trabalhos de ini-
ciação científica. O projeto também contou com quatro pós-doutores. O interesse pela biotecnologia na área de papel e celulose pode ser medido pelo projeto conhecido como Forests, o consórcio de seqüenciamento do genoma do eucalipto – iniciado em 2001 e finalizado em 2004 – formado por quatro empresas do setor: Suzano,Votorantim, Duratex e Ripasa, empresa comprada pela Suzano e pela Votorantim em 2005. Labate, que também participou desse projeto, acredita em novas perspectivas para a madeira do eucalipto.“O estudo das proteínas que formam a madeira do eucalipto junto com o conhecimento de novos genes pode resultar no uso dessa árvore como matéria-prima na produção de álcool (etanol) e de biopolímeros”, acredita. Empresas da América do Norte e da Europa estão interessadas nesses dois produtos. Para a produção desses biopolímeros, que são polímeros biodegradáveis, como plásticos, por exemplo, e possuem um grande apelo ambiental, é preciso, a partir de madeira de qualquer árvore, mais celulose e mais hemiceluloses na matéria-prima. Assim, as pesquisas realizadas em Piracicaba, inicialmente para a produção de celulose e papel, têm uma grande perspectiva futura até no ponto de substituir ou conter a produção de petróleo. •
EDUARDO CESAR
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Limpa-trilhos Sistema de pulverização elimina ervas que atrapalham a locomoção de trens
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arecem inofensivas mas as ervas que crescem ao lado ou entre os trilhos de trem podem causar muitos problemas.Essas plantas,chamadas de daninhas ou invasoras,quando ficam bem secas se transformam em material inflamável,provocando incêndios com muita facilidade.E,nos períodos de maior intensidade de chuva sobre os trilhos,elas causam o patinamento das rodas,impedindo o trem de sair do lugar,além de aumentar a dificuldade de drenagem da via.Esse acúmulo de água também leva ao apodrecimento precoce dos dormentes – aquelas peças de madeira que ficam sob os trilhos.As plantas invasoras escondem os dormentes, não permitindo que se perceba se eles estão podres e,portanto,se é hora de trocar.Falhas na manutenção podem provocar acidentes mais sérios como o descarrilhamento dos trens.Esse problema sempre inquietou o engenheiro Hamilton Cardoso Nogueira durante os 25 anos em que trabalhou na Ferrovia Paulista S/A,a antiga Fepasa.Agora ele já possui uma solução. 76
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“Desde 1988 estamos aperfeiçoando um sistema de pulverização de herbicidas para eliminar apenas as plantas que realmente atrapalham a locomoção dos trens,sem deixar as encostas desprovidas de proteção vegetal (o solo instável e assoreado) nas épocas de chuva”,diz Nogueira.A solução do problema surgiu na empresa Infrajato,da cidade paulista de Botucatu,da qual ele é sócio.O novo sistema é resultado de uma parceria com a Faculdade de Ciências Agronômicas da Universidade Estadual Paulista (Unesp), da mesma cidade,em um projeto que recebeu financiamento do Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP.O projeto foi coordenado pelo professor Ulisses Rocha Antuniassi e utiliza princípios da chamada “agricultura de precisão”,em que são usados vários recursos tecnológicos para resolver problemas no campo. A estrutura básica para o funcionamento do sistema é composta por uma locomotiva e quatro vagões.O primeiro deles serve de dormitório para os quatro operadores técnicos da máquina.Os dois vagões seguintes possuem,respectivamente,herbicida,oficina e água.No último vagão fica o pulverizador ferroviá-
rio, com cabine climatizada onde estão os quatro computadores de bordo que controlam a pulverização,junto ao equipamento GPS (Sistema de Posicionamento Global) que indica os locais exatos para a aplicação do herbicida. Antes da primeira aplicação,a locomotiva faz uma viagem pelo trajeto para mapear todo o percurso.Nos computadores de bordo,que coordenam o sistema,a aplicação fica programada de acordo com a legislação ambiental correspondente a cada estado pelo qual o trem vai passar.Por exemplo:se no estado do Mato Grosso não é permitida a aplicação de herbicida em regiões com até 100 metros de distância de algum rio,o sistema obedece a essa legislação e faz uma pausa nas regiões proibidas. Como o mato que cresce no lastro de pedras é mais rasteiro em comparação ao que invade a região lateral dos trilhos, os pesquisadores desenvolveram um sistema com três barras pulverizadoras.Cada uma delas aplica a quantidade estritamente necessária de herbicida nas três regiões dos trilhos.Uma barra distribui herbicida entre os trilhos e as outras duas ficam nos lados esquerdo e direito do trem.Com o mesmo intuito de obter
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FOTOS INFRAJATO
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O último vagão distribui herbicida e elimina o matagal, comum nos trilhos brasileiros
uma pulverização controlada, a equipe desenvolveu um sistema que só mistura o herbicida no momento da aplicação. O uso de técnicas para o controle do crescimento de ervas daninhas no lugar dos trilhos de trem é um trabalho tão antigo quanto a difusão e uso desse meio de transporte que remonta ao século XIX. Ao longo do tempo, a capina foi feita manualmente e demandava muita mão-deobra com um custo bastante alto. O controle químico do crescimento dessas plantas, que passou a existir na década de 1950, foi um recurso adotado para tornar esse serviço mais barato. Nogueira recorda que na década de 1970 aconteceu uma evolução dos herbicidas. Esses produtos deixaram de ter um efeito residual muito grande, capaz de contaminar o ambiente em volta da linha férrea devido também às altas doses utilizadas. No fim da década de 1980, por meio de um convênio de desenvolvimento tecnológico entre Fepasa, Unesp e Monsanto, foi desenvolvido um carro de linha (um pequeno vagão) para aplicar herbicida. A medida provocou uma economia enorme na ferrovia. Os recursos necessários para realizar o mesmo trabalho passaram a representar apenas 2% do que
se gastava com a capina manual do mato. Junto com as mobilizações em favor da preservação do ambiente, que aconteceram mais intensivamente na década de 1990, passou a existir uma exigência maior de controle do uso de herbicidas. Foi por volta de 1998 que a equipe coordenada pelo professor Antuniassi começou a buscar alternativas para uma pulverização controlada. “A vantagem do pulverizador para o ambiente é que ele realiza uma aplicação mais segura”, ex-
O PROJETO Desenvolvimento de sistemas para aplicação localizada e racionalização da tecnologia de aplicação de herbicidas em ferrovias MODALIDADE
Programa de Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe) COORDENADOR
ULISSES ROCHA ANTUNIASSI – Infrajato/Unesp INVESTIMENTO
R$ 88.919,00 e US$ 39.553,50 (FAPESP)
plica o engenheiro. O novo sistema é capaz de realizar em um dia o trabalho que o seu protótipo anterior demorava até um mês para fazer. “No sistema de distribuição antigo, o carro parava para abastecer. Isso atrapalhava o tráfego ferroviário e tornava o trabalho mais demorado. Agora a composição roda mais de 300 quilometros sem pausa”, diz. Como a aplicação só é realizada nos locais realmente necessários, o sistema economiza herbicida e em algumas regiões há uma diminuição de até 30% do produto. O pulverizador desenvolvido entre 2001 e 2004 foi entregue para a empresa Brasil Ferrovias por meio de um contrato de dois anos e foi utilizado em 14% da malha ferroviária nacional. Com a recente compra dessa empresa pela ALL Logística, o engenheiro ainda não sabe se haverá uma renovação do contrato que garantirá a continuidade do serviço. Enquanto isso, a Infrajato prepara um segundo pulverizador que pretende oferecer para outras ferrovias. Para o professor Antuniassi, o novo sistema tem grande potencial de aplicabilidade no Brasil. “São mais de 30 mil quilômetros de ferrovia que são utilizados, principalmente para o transporte de cargas.” • PESQUISA FAPESP 130
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TECNOLOGIA
ENGENHARIA TÊXTIL
Tecidos
funcionais Santista lança produtos para roupas profissionais com propriedades nanotecnológicas
Tecido Technopolo: mais absorção e secagem rápida da transpiração, além de ser antimicrobiano
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EDUARDO CESAR
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nanotecnologia chega ao vestuário no Brasil. Dois tecidos com acabamento nanotecnológico, destinados à confecção de roupas profissionais, foram colocados recentemente no mercado pela Santista Têxtil, com sede em São Paulo.Os produtos,chamados de Technopolo e Image, são os primeiros lançamentos da empresa com a etiqueta NanoComfort, que identifica tecidos com incorporação de nanotecnologia e propriedades funcionais, como absorção e secagem rápida da transpiração, propriedades antimicrobianas, resistência a manchas, à tração e ao rasgo e facilidade para limpar e passar a ferro. No exterior, tecidos que repelem água e sujeira e outros com propriedades microbianas já estão no mercado há algum tempo. “Conseguimos que esses resultados permanecessem nos tecidos entre 50 e 60 lavagens, bem acima das 20 operações indicadas pelas normas técnicas”, diz Manoel Areias, gerente de Inovação da Santista Têxtil. Detalhes sobre a obtenção dos novos materiais não são divulgados por conta da exclusividade que garante diferenciação no mercado. “Um dos produtos colocados na etapa final, de acabamento do tecido, tem partículas nanométricas”, diz Areias. Além das propriedades funcionais, os novos produtos são bastante macios. O Image, tecido com fibra de poliéster, tem uma textura bem semelhante ao fabricado com a lã natural. E uma grande vantagem em relação ao poliéster comum com a mesma estrutura de fibra, mas sem a incorporação da nanotecnologia. Quando uma gota é colocada sobre o tecido, ela é absorvida instantaneamente por causa da interação entre o produto nanotecnológico e a roupa. A água se espalha com facilidade e seca em frações de segundos, enquanto no poliéster normal o processo demora muito mais tempo. Da mesma forma, o tecido absorve rapidamente a transpiração, característica interessante para a composição de roupas profissionais,como ternos,conjuntos masculinos e femininos usados por companhias aéreas, empresas de ônibus e bancos,entre outros setores.O Technopolo, feito em algodão, tem as mesmas proprie-
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dades e indicações do Image, mas é indicado para a confecção de camisas. Outra vantagem dos tecidos nanotecnológicos é o tempo de secagem quando lavados. Eles demoram 25 minutos para secar em comparação com os 35 dos convencionais. E como absorvem água mais rapidamente utilizam menos líquido nas lavagens. Efeito lótus - As pesquisas conduzidas pela Santista Têxtil na área nanotecnológica resultaram ainda em um terceiro produto, totalmente finalizado, mas que ainda não chegou ao mercado. Trata-se do Lotus Effekt, um tecido autolimpante que, em contato com a água, limpa as partículas de sujeira presentes no tecido. “Conseguimos colocar esse efeito somente de um lado do tecido, mantendo o toque de maciez”, diz Areias. O nome é uma referência à flor de lótus, planta que nasce no lodo e só se abre ao atingir a superfície, quando suas pétalas estão completamente limpas. A flor, símbolo da pureza no budismo, se mantém sempre limpa porque a inclinação de suas pétalas, ao receber as gotas de orvalho que caem durante a noite, ficam livres de microorganismos e sujeiras. Por enquanto ainda não há data de lançamento prevista para o produto porque a empresa está estudando qual o nicho de mercado mais adequado para a inovação. O investimento em produtos com nanotecnologia é o desdobramento de um projeto que teve início há quatro anos, quando a empresa começou a estudar e a produzir tecidos modificados com fibras recobertas com nanocompostos de prata, acabamentos de microcápsulas com matéria ativa hidratante e antimicrobial. Paralelamente às pesquisas em nanotecnologia realizadas no Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da empresa, em Tatuí, no interior de São Paulo, outras estão sendo desenvolvidas em conjunto com o Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da Universidade de São Paulo. Em junho do ano passado, a empresa e a universidade assinaram uma carta de intenções para desenvolver aditivos nanoestruturados destinados a melhorar produtos da indústria têxtil. Entre esses aditivos estão desde agentes que eliminam a necessidade de passar a roupa até produtos antialérgicos e antibacterianos. O acordo com a universidade prevê um investimento de R$ 94,5 mil por meio de bolsas do Conselho Nacional de De-
senvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), além de R$ 52,5 mil da empresa, durante dois anos. O Grupo de Polímeros do IFSC está pesquisando materiais para os aditivos e a interação com as fibras dos tecidos. A empresa mantém ainda um acordo de parceria com o ITV, sigla do Instituto para Têxteis e Processos de Engenharia Denkendorf, um dos principais institutos de pesquisa e desenvolvimento têxtil da Alemanha.Ainda em 2005 a empresa teve aprovado o Programa de Desenvolvimento Tecnológico Industrial pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, que permite aproveitar os benefícios previstos na Lei de Inovação para a compra de equipamentos e a contratação de mestres e doutores. Fundada em 1929, a Santista Têxtil tem como principais acionistas a Camargo Corrêa e a São Paulo Alpargartas e faz parte também, desde março deste ano, do grupo espanhol Tavex. Com a fusão, o grupo garantiu a liderança mundial de produção de tecidos jeans, com capacidade para produzir 150 milhões de metros por ano desses produtos e receita superior a US$ 500 milhões anuais. No ano passado, o orçamento da empresa para pesquisa e desenvolvimento na área têxtil atingiu cerca de R$ 4,5 milhões, correspondentes a 0,5% do faturamento líquido de R$ 900 milhões. Levantamento feito pela empresa apontou que, na média dos últimos anos, 27,4% da receita teve origem em produtos novos. A aposta em tecidos nanotecnológicos acompanha uma tendência que está em franca expansão, como mostram os números divulgados pela Lux Research, empresa norte-americana que presta consultoria em pesquisas de mercado na área, durante a Nanotec Expo 2006, feira internacional de nanotecnologia realizada em novembro em São Paulo. Somente nos Estados Unidos, segundo a Lux, os investimentos em pesquisa e desenvolvimento de materiais e produtos nanoestruturados atingem cerca de US$ 10 bilhões por ano. O mercado mundial de produtos que incorporam nanotecnologia movimentou, no ano passado, US$ 32 bilhões e a expectativa é que chegue a US$ 2,6 trilhões em 2014. A estimativa é baseada no levantamento dos projetos das 50 maiores empresas de vários setores econômicos com atuação mundial. •
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o início do livro de Lewis Carroll, a entrada de Alice no País das Maravilhas era, essencialmente, uma questão de crescer ou não. Diante de um frasco, com o aviso “Beba-me”, a menina toma o conteúdo e percebe que está “encolhendo como um telescópio”, o que lhe garantiria passar por uma pequena porta e chegar ao jardim encantado. Mas a situação muda e ela precisa crescer. Aparece, então, um bolo com a inscrição “Coma-me”. Ela obedece e cresce a ponto de bater com a cabeça no teto da sala. Ela se põe a chorar. Que lição os economistas brasileiros podem tirar de Alice? Bem, acima de tudo, que, infelizmente e por mais que o ex-ministro Delfim Netto acredite nisso, um bolo não faz um país crescer. Segundo, que diminuir e crescer com tanta rapidez
não leva ninguém ao País das Maravilhas sem a ajuda de um coelho mágico. “O crescimento econômico brasileiro está estagnado há 25 anos, à mercê dos humores do mercado e de possíveis situações de desequilíbrio. É uma questão complexa, porque são dois os conjuntos de políticas importantes numa economia: a macroeconômica, que lida com a estabilidade, e as de desenvolvimento, responsáveis pelo crescimento econômico de longo prazo. Não houve no Brasil modificação significativa em nenhum desses conjuntos a longo prazo”, observa o economista da Unicamp Ricardo Carneiro, organizador do recém-lançado estudo Supremacia dos mercados (Editora Unesp/FAPESP). Bem mais intrincado do que o sobe-e-desce de Alice, o crescimento do PIB nacional é igualmente errante. “O crescimento recente não fugiu ao padrão stop and go das últimas décadas, o que fica evidente na volatilidade do PIB, mas sobretudo na do investimento.” Ou, nas palavras do economista da
Coma-me ou beba-me? Os dilemas do crescimento econômico brasileiro são bem mais antigos e complexos do que supõe a nossa vã filosofia C ARLOS H AAG
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UFRJ Carlos Lessa, ex-presidente do BNDES, em entrevista recente, “o máximo que o país consegue é um ‘vôo de galinha’: um ano a taxa melhora um pouquinho, a galinha dá um pulinho, mas ela não tem sustentação, então volta de novo para o chão do galinheiro”. Vamos aos números.A economia brasileira cresce, há dez anos, a um ritmo inferior ao da média internacional. O fenômeno não é recente. O PIB nacional ampliou-se 2,3% em 2005, enquanto no resto o mundo, segundo o FMI, ampliouse 4,3%. Por 19 vezes nos últimos 25 anos a economia brasileira cresceu menos do que a mundial. Cada centésimo importa: se o Brasil crescer, como afirma o governo, 3,5% em vez de 4,5% em 2006, significará que R$ 19,7 bilhões deixaram de ser gerados como riqueza. O país perde importância relativa na economia mundial e fica mais pobre em comparação com as outras nações. Um estudo que acaba de ser divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), vinculado ao Ministério do Planejamento, o chamado Agenda para o crescimento econômico e a redução da pobreza, o país só conseguirá crescer a taxas de 5% ao ano em 2017. Ainda assim, se fizer um pesado reajuste fiscal e tributário, bem como reduzir a carga tributária e aumentar o nível dos investimentos, em especial em obras de infra-estrutura para evitar gargalos energéticos e logísticos, que impedem o crescimento. “Beba-me” ou “Coma-me”? “A idéia do stop and go pode ser tomada a partir do seguinte sentido: há um processo, em geral de baixo crescimento, e além de ele ser baixo, é volátil. A caracterização empírica do stop and go é justamente o baixo crescimento do produto e do investimento com alta volatilidade.Isso demonstra que não temos um modelo de crescimento implementado na economia,que se move em função tanto do cenário internacional, mais ou menos favorável, quanto do manejo da política macroeconômica de juros e câmbio”, analisa Carneiro. Embora o baixo desenvolvimento brasileiro seja particularmente preocupante, segundo o estudo América Latina y el Caribe: proyecciones 2006-2007, da Cepal, que revela “uma relativa homogenei-
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dade nas taxas de crescimento em 2006 dos países da América Latina, entre 3 e 6%, com exceção da Argentina e da Venezuela, que crescerão a taxas maiores do que 6%”. O sucesso portenho pode ser uma chave para entender o nosso “insucesso”. “O exemplo argentino é emblemático.Kirchner,mais conservador do que Lula, foi obrigado a promover mudanças, porque o quadro chegou à ruptura. Eventualmente, poderá haver uma reversão no Brasil que leve ao ponto de ruptura. Um aprofundamento do quadro pode abrir campo para que o modelo atual seja sepultado, como foi o caso da Argentina”, avalia Carneiro. Que modelo? Entre os anos 1930 e os anos 70, o Brasil e demais países da América Latina cresceram a taxas extraordinariamente elevadas. O modelo desenvolvimentista ou nacional-desenvolvimentista aproveitou-se do enfraquecimento do centro para formular estratégias nacionais de desenvolvimento que implicavam a proteção à indústria nacional nascente e a
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promoção forçada por meio do Estado. “A nação foi capaz de usar o seu Estado como instrumento para definir e implementar uma estratégia nacional de desenvolvimento. Não se tratava de substituir o mercado pelo Estado, mas de fortalecer o último para que ele conseguisse criar condições para que as empresas pudessem investir, para que os empresários pudessem inovar”, observa Luiz Carlos Bresser-Pereira em seu mais recente artigo, “O novo desenvolvimentismo”. Segundo ele, a partir dos anos 1980, houve a chamada “crise da dívida externa”, que induziu um forte viés político na economia. Com a alta dos juros americanos, o Brasil viuse obrigado a gerar superávits comerciais significativos para enfrentar a retração das fontes externas de financiamento e colocou como prioridades a contenção de importações e o aumento das exportações. O contexto internacional não era favorável e essas ações fracassaram, gerando a chamada “década perdida”.
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ssa frustração foi fundamental, nos anos 1990, para que a estratégia neoliberal de estabilização e desenvolvimento ganhasse o Brasil, seja sob o nome de Consenso de Washington, seja como “ortodoxia convencional”. “Fora do modelo liberal de gestão da economia nada parecia possível ou viável. Os postulados estão aí: a estabilidade econômica com controle da inflação é condição necessária e suficiente para o crescimento, a abertura ao exterior, independentemente de timing ou extensão, é sempre virtuosa, a intervenção do Estado é no mais das vezes negativa e deve ser minimizada, restringindo-se à criação de um ambiente de segurança jurídico-institucional para a operação das forças de mercado”, observa o economista Luiz Gonzaga Belluzzo em seu “Bloqueios ao crescimento”. “A incapacidade dessa política em promover o crescimento sustentado é indisfarçá-
vel. A despeito disso, as propostas de mudança têm sido desqualificadas.” Derrotada a inflação, acreditava-se que a nova estratégia daria início a uma onda de intensa modernização produtiva, em especial na indústria. As empresas mais aptas sobreviveriam ao desafio da competitividade e os interesses corporativos, vistos como responsáveis pela estagnação, seriam desmontados. O Brasil poderia contar com o apoio generoso do capital estrangeiro, com aportes financeiros e tecnológicos vindos da economia globalizada. “Foi o fim do desenvolvimentismo e a aceitação de que os Estados-nação haviam perdido relevância. Os mercados livres, inclusive os financeiros, iriam se encarregar de promover o desenvolvimento econômico de todos”, escreve Bresser-Pereira. Com um detalhe fundamental e sintomático. “Enquanto os países latino-americanos perdiam o controle da taxa de câmbio, através da abertura das contas financeiras, e viam suas taxas se apreciar ao aceitarem a estratégia do crescimento com poupança externa, proposta por Washington, os países asiáticos mantinham superávits e controle de suas taxas de câmbio.” Mais: enquanto os países latino-americanos aceitaram indiscriminadamente as reformas liberalizantes, realizando, nota Bresser,“privatizações irresponsáveis de serviços monopolistas e abrindo sua conta capital”, os asiáticos foram mais prudentes. Hoje os economistas invejam o crescimento do PIB de nações como Coréia e China. “Era fundamental promover a competitividade através dos mecanismos de mercado. A escolha a priori de setores e empresas estratégicas tornou-se anátema. No lugar de políticas setoriais, políticas horizontais que estimulassem simultaneamente todos os setores a produzir em condições de preço e qualidade do mercado mundial”, observam Mariano Laplane e Fernando Sarti, ambos da Unicamp, no seu estudo “Prometeu acorrentado”, parte de A supremacia dos mercados. “Acorrentado, como Prometeu, na peça de Ésquilo, pela própria incapacidade de retomar o desenvolvimento industrial, o Brasil desperdiçou e desperdiça oportunidades disponíveis num contexto internacional favorável”, avaliam. Para intensificar, a crise fiscal dos anos 1980, que era um subproduto da
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crise externa, fez com que, no imaginário do cidadão, a distorção se associasse diretamente à ineficiência do Estado, transformado em vilão. “As elites locais deixam de pensar com a própria cabeça, aceitam os conselhos e as pressões vindas do Norte, e os países, sem estratégia nacional de desenvolvimento, vêem seu desenvolvimento estancar. Era uma proposta negativa, que supunha a possibilidade de os mercados coordenarem tudo automaticamente e o Estado deixasse de realizar o papel econômico que sempre teve nos países desenvolvidos: complementar a coordenação do mercado para promover o desenvolvimento e a eqüidade”, nota Bresser-Pereira. O resultado neoliberal não foi melhor do que a “década perdida”. Fracasso - “Se o sucesso de qualquer estratégia de desenvolvimento deve ser a redução da distância que nos separa de outros países em desenvolvimento, que têm aproveitado as oportunidades, a estratégia neoliberal deve ser avaliada como um fracasso estrondoso”, observam Laplane e Sarti. Desde fins dos anos 1980, as empresas brasileiras reorientaram seu crescimento para o mercado externo, realizando investimentos localizados e defensivos (racionalização e modernização da capacidade existente), em detrimento dos investimentos em expansão ou instalação de novas unidades de produção. O ajuste dos anos 1990 piorou o quadro. As empresas reagiram à abertura externa aumentando a especialização e racionalização, com forte redução do emprego. Tudo ocorreu com baixo investimento e pela busca de parceiros estrangeiros, num intenso processo de desnacionalização. “Os produtores ficaram restritos aos avanços anteriores feitos no exterior e não houve esforços internos inovadores. Era a adoção da tecnologia incorporada, o que levou ao aumento da importação, visto como caminho mais barato e curto para se ter acesso às inovações externas e ganhar competitividade”, observam os pesquisadores. A opção foi pelo “beba-me”, que levou, notam, a uma “especialização regressiva” da produção industrial brasileira e, como conseqüência, a expansão industrial só se deu com aumento na demanda de divisas. Os autores rejeitam a batida tese dos fatores “exógenos”(crises do PESQUISA FAPESP 130
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México, Ásia, Rússia etc.) como atenuantes explicativas do fracasso do modelo. “Os resultados insatisfatórios foram conseqüência das próprias transformações produtivas ocorridas, independentemente dos choques externos”, avisam. Afinal, por mais que exportássemos, importávamos bem mais. A chamada obsessão pela estabilidade inflacionária, marco do modelo neoliberal, observam Bresser e Carneiro, tornou-se objetivo central da política macroeconômica, obtido por meio da gestão cambial, monetária e fiscal.“A tão louvada estabilidade de preços, a custo de um crescimento pífio, ao assentar-se num primeiro momento na sobreutilização da âncora cambial e, num segundo, numa precária política de metas de inflação, demandantes de taxas reais de juros elevadas, terminou por produzir a instabilidade macroeconômica ao ampliar a dívida pública interna e impulsionar a um novo ciclo de endividamente externo, em parte pela atração de capitais externos de curto prazo”, avalia Belluzzo. O dinheiro externo chegava, mas ficava pouco tempo no Brasil.
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flação baixas e permitiu o consumo no exterior, sacrificou o aumento das reservas internacionais, obtido com a melhora das exportações, e uma maior competitividade das exportações de manufaturados”, nota Belluzzo.
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China - Enquanto isso, na Ásia, países
como a China investiam num programa de reformas que combinava uma estratégia exportadora agressiva, a atração de investimentos diretos estrangeiros nas zonas liberadas, tudo isso regulado com forte intervenção do Estado. Assim, os chineses, com competitividade crescente (embora já se possa temer um freio nesse crescimento de 10% anual, visto como insustentável pelos economistas), tornam-se o maior receptor do investimento direto americano, ao mesmo tempo ganhando participação crescente no mercado dos Estados Unidos. A via de mão dupla não adotada pelo Brasil (que só se preocupava com a entrada de capitais externos) foi fatal para o nosso modelo de crescimento.Ainda, a “desconcentração concentrada” do PIB mundial beneficiou a China e os asiáticos em desenvolvimento. Pegamos outro caminho e continuamos nele. “Diante de uma forte ampliação da liquidez e do comércio internacional, em 2003, a opção escolhida foi a de alargar os ganhos imediatos por meio da apreciação da moeda nacional. Se isso manteve as taxas de in84
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pesquisador coloca como atenuante, num primeiro momento, o desejo de construção de uma esfera de credibilidade pelo atual governo.“A inflexibilidade do regime brasileiro ante a característica da formação de preços tem implicado um uso abusivo da taxa de juros e sacrifício do crescimento do produto e do emprego para lograr as metas”, avisa. Para Carneiro, a situação é ainda mais precária. “A manutenção de políticas passadas gerou uma vulnerabilidade externa. Os ganhos vieram das exportações e, assim, o crescimento não se deu por causa de uma política específica praticada pelo governo. Ao contrário. A valorização do real vai contra a corrente do aumento de exportações, e logo chegaremos a um dilema para sustentar esse crescimento, bem como estimula importações.” Logo, pode-se crescer 4% num ano e, em outro, nada. “O governo não delineou um horizonte de longo prazo para o desenvolvimento. O Estado precisa ter uma atuação mais decisiva, sinalizar quais os setores prioritários, criar incentivos de crédito, tarifários e fiscais. Precisa também manter políticas de desenvolvimento social. Se não houver política de crescimento acelerado, a política social, individualmente, não se sustenta.” Os juros, elevados, tampouco ajudam. “Taxas de juro em patamares elevados são poderoso desestímulo ao crescimento. Basta destacar a noção de custo de oportunidade presente na taxa. No caso brasileiro, oferecem-se taxas de juro elevadas, em títulos de alta liquidez e baixo risco, que oferecem uma alternativa ao investimento produtivo”, analisa Belluzzo. Além disso, é preciso ampliar a infra-estrutura do país. “Dificilmente a ampliação de investimentos será realizada sem uma decisiva participação do setor público, o que é contraditório com a atual magnitude do saldo primário.” Bresser-Pereira propõe a adoção do novo-desenvolvimentismo, que rejeita a idéia de que países de desenvolvimento médio necessitem de poupança ex-
terna para crescer, como prega a ortodoxia liberal. “A história ensina que os países se desenvolvem quase exclusivamente com recursos internos. Os asiáticos têm recorrido muito parcimoniosamente à poupança externa, em geral, crescendo com superávit em conta corrente.” O novo-desenvolvimentismo, continua, acredita na administração da taxa cambial, o que implica uma taxa de juros moderada, que permita a compra de reservas quando os influxos de capitais são muito elevados. “Para assegurar a continuidade do crescimento, em particular a retomada do crescimento, seria necessário contrapor, ao Estado regulador, o Estado desenvolvimentista. Sua missão central seria viabilizar a elevação da taxa de investimento, mas não necessária nem prioritariamente por meio da minimização do risco jurisdicional (como no caso da Lei de Falências, as Agências ou a independência do Banco Central)”, ponderam Belluzzo e Carneiro. “O papel crucial do Estado seria a criação de mecanismos de coordenação e apoio que permitissem ao investimento privado uma menor insegurança quanto à trajetória de longo prazo da economia. A superação desse constrangimento é mais um desafio para a superação da insustentável leveza do crescimento.”Será possível? Para Laplane e Sarti, se “o desperdício de oportunidades para o crescimento é resultado do viés anticrescimento da política macroeconômica e da ausência de estratégia industrial da era FHC, o governo Lula não foi capaz de reverter esse quadro.” Ou, segundo o economista Eduardo Gianetti, do Ibmec, “não é a golpe de política monetária e cambial que retomaremos o crescimento sustentado; vamos ter de mexer em coisas estruturais que até agora não foram objeto de atenção do governo”. “Não farei mágicas na economia”, afirmou o presidente recém-eleito. Certamente não chegaremos ao País das Maravilhas com poções ou bolos encantados.“Mesmo com o vendaval a favor, só um simpósio de magia negra será capaz de produzir um crescimento sustentado de 5% ao ano com os preços-chave da economia, câmbio e juros, completamente fora do lugar”, escreveu Belluzzo na revista Carta Capital. Infelizmente, há mais chapeleiros malucos do que coelhos mágicos na nossa economia. •
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Quem guarda os guardiões? Crise dos aeroportos põe no ar as fragilidades do Ministério da Defesa
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avião, no ar, ainda é o meio de transporte mais seguro do mundo. Na terra, isso nem sempre é verdade. Aviões batendo em duas torres levaram os EUA à guerra. No Brasil, outro conflito, mais velado, mas nem por isso menos bélico, está sendo travado nos aeroportos. Ainda não há tiros, apenas as baixas do Boeing da Gol, cuja queda, inusitadamente, revelou que o antagonismo entre civis e militares permanece no Brasil pós-democratização. Foi após o acidente do 1907 que os controladores de vôo adotaram uma “operação padrão”, que, pela lei, é direito restrito a civis, já que militares são proibidos de fazer greve (e apenas um quarto desses profissionais não vem das casernas). O comandante da Aeronáutica acusou o Ministério da Defesa de “incentivar a anarquia e provocar um grave precedente” ao negociar com os “grevistas” para pôr fim ao caos nos aeroportos. O ministro civil Waldir Pires não se deu por vencido e chegou a propor a desmilitarização dos controladores, gerando mais ira entre os militares. O temor destes é que a quebra hierárquica no controle dos vôos acabe colocando toda a organização militar em xeque por causa da intervenção da Defesa. “A existência desse ministério é um indicador básico importante da situação das relações civis-militares em um país. Essa estrutura, segundo alguns, seria a solução ao clássico dilema de ‘quem guarda os guardiões?’.” Se a resposta correta é que os civis democraticamente eleitos é que guardam os guardiões, então um Mi-
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ILUSTRAÇÕES MARCELO CIPIS
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nistério da Defesa é o veículo fundamental para esse controle”, observa Luís Alexandre Fucille, autor de “Democracia e questão militar: a criação do Ministério da Defesa no Brasil”, tese de doutorado defendida na Unicamp em fevereiro, com orientação de Eliézer Rizzo de Oliveira. “A democracia só pode funcionar se os que têm as armas obedecem aos que não as têm”, analisa. Para o pesquisador, ainda falta conteúdo ao órgão governamental, criado em 1999 durante o governo FHC, e engana-se quem pensa que a “ameaça” da autonomia militar é coisa do passado.“O controle civil pleno é condição necessária, ainda que não suficiente, para a consolidação e o aprofundamento do regime democrático brasileiro”, avalia o pesquisador. O maior desastre da aviação nacional pode estar expondo um dos maiores enganos do Brasil pós-ditadura: que as Forças Armadas foram milagrosamente “enquadradas”.“Uma mentalidade tão arraigada e conservadora como a militar não se transmuta por uma simples ‘troca da guarda’.” A contrariedade do brigadeiro não é exceção, mas mostra-se quase como regra. Desde o nascimento do ministério
não houve titular da pasta ou presidente da República ileso a desacatos militares, de FHC, execrado pelas Forças Armadas, a Lula, cujo ministro, o diplomata José Viegas, caiu após ser afrontado pelo comandante do Exército. O militar, em nota oficial, após a publicação na imprensa de fotos que supostamente mostravam o jornalista Vladimir Herzog submetido a torturas, reafirmou as convicções militares sobre os anos de chumbo.“Em vez de demitir o general, Lula tratou-o com luvas de pelica e considerou o incidente como fruto da inabilidade política de Viegas”, lembra o cientista político Jorge Zaverucha, da Universidade Federal de Pernambuco, no artigo “A fragilidade do Ministério da Defesa brasileiro”. Fragilidade – “Com medo de exercer sua autoridade, Lula fragilizou-se. As Forças Armadas continuam a atuar autonomamente e passam, freqüentemente, por cima da autoridade do ministro da Defesa, arranhando a autoridade do presidente da República e em clara insubordinação à cadeia de comando político e militar”, analisa. Para Zaverucha, o ministério, com suas limitadas atribuições, reflete o equilíbrio instável nas relações
civis-militares do país. “O arranjo institucional que criou o ministério faz do seu titular muito mais uma espécie de despachante institucional das Forças Armadas diante do presidente do que um representante do governo perante os quartéis. A saída de Viegas deixou isso cristalino.” A nomeação temporária do vice- presidente José Alencar, em substituição a Viegas, deu fôlego aos militares, que se sentiram prestigiados com o novo “patrão”. O namoro duraria pouco: a indicação de Waldir Pires, exilado durante a ditadura, não teria sido bem deglutida pelas Forças Armadas. As razões remontam à Guerra do Paraguai, quando as Forças observaram a necessidade de dispor de novas técnicas a fim de conseguir maior eficiência em seu desempenho. “Percebeu-se então a relação existente entre a organização militar e o grau de desenvolvimento econômico de um país com bases industriais tão incipientes.A corporação passou a assumir uma progressiva influência política na medida em que teve uma noção mais crítica de seu papel, como a mais ‘nacional’ das instituições, sem que a mesma contrapartida e preocupação se desse por parte dos civis”, analisa FucilPESQUISA FAPESP 130
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le. Salta aos olhos a proeminência militar ao longo da nossa história independente, mas, observa o pesquisador, isso não gerou uma contrapartida analítica do fenômeno.“Houve uma aceitação do ideário da questão militar como um problema que não demandaria maiores considerações no contexto pós-autoritário pela sociedade.” O pesquisador observa ainda que o fim do ciclo militar/autoritário decorreu menos das pressões da sociedade civil do que de um projeto distensionista elaborado pelas Forças. Os militares brasileiros teriam saído do poder com razoável autonomia, um alto grau de coesão institucional, além de terem mantido prerrogativas que possibilitam um papel político relevante, ainda que em outros moldes. “Houve uma autonomia reduzida, mas ascendente e nem por isso menos significativa em relação ao poder civil. As Forças guardam ainda completa independência na definição de como empregar o seu orçamento”, avalia Suzeley Mathias, pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa da Unesp e autora do livro Militarização da burocracia (Unesp/FAPESP). A continuidade teria sido a principal marca da passagem do governo militar para o pri88
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meiro governo civil. Com um agravante: manteve-se o emprego dos militares na garantia da “lei e da ordem”.“Empregar a Força para a defesa da lei significa que ela pode ser usada para atribuições de polícia, como reprimir o tráfico. Na garantia da ordem, por outro lado, abre-se espaço para que os militares possam ser chamados para reprimir greves ou movimentos sociais”, nota Fucille. Esse foi um precedente perigoso, em especial com o fim da Guerra Fria, durante o governo Collor, que levou as instituições militares a uma “crise de identidade”. Para que serve a Força? Era uma pergunta incômoda, mas feita com freqüência no Brasil. Após a Operação Rio, série de ações de combate ao tráfico carioca feitas entre 1994 e 1995, essa crise foi superada.“Foi um turning point. Com FHC, o meio militar resolveu o impasse através do perigoso expediente de lançar mão da Força Armada para resolução de conflitos, sobretudo os sociais, na superação dos obstáculos rumo às reformas estruturais postas pela agenda neoliberal”, observa o pesquisador. Segundo Fucille, a criação do mi-
nistério se deu no esteio da globalização. “O que se buscava era mais uma modernização e racionalização do sistema de defesa nos marcos de um programa de reforma do Estado que desejava implodir um dos pilares fundamentais que ainda restavam da era Vargas, que era o contato direto do aparato militar com a instância decisória do poder, tolerado dentro dos moldes do Estado burocrático, mas inadequado na instituição de um Estado gerencial.”
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asta lembrar que FHC designou o ministro-chefe do EstadoMaior das Forças Armadas para delinear a nova pasta, deixando claro, nota Zaverucha, que “ele teria uma percepção militar, embora fosse criado como instância de poder civil”. Durante o primeiro mandato presidencial, o projeto não avançou e, por fim, Cardoso viu-se obrigado a criar, na marra, o ministério, no bojo da campanha governamental para garantir um assento permanente para o Brasil no Conselho de Segurança da ONU. “Ao longo de todo o processo de criação da pasta foi pífia a participação
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dos civis em geral (tanto da classe política como da sociedade civil), descaso, aliás, que infelizmente se mantém até hoje”, diz. “O Legislativo, em particular, tem se caracterizado no Brasil por uma atuação pouco destacada no tocante às questões da defesa, apenas dizendo sim ou não às demandas orçamentárias das Forças, em vez de perguntar por que e para que, como lhe competeria, o que só reforça a crônica autonomia militar brasileira, remetendo a problemas futuros (e presentes) no plano político, na medida em que aponta para uma hipertrofia do Executivo.” A criação do Ministério da Defesa é sintomática disso, já que nasce de uma Medida Provisória e com tímida participação do Congresso. Ou, nas palavras de Walter Bräuer, então ministro da Aeronáutica: “O Ministério da Defesa não partiu de nós e nem do povo. Partiu de uma determinação de governo”. Apesar das críticas, o governo aceitou o pleito militar para que o modelo americano de defesa, em que a posição do titular é fortalecida, fosse deixado de lado, sob a alegação de “termos peculiaridades”. O presidente do Clube da Aeronáutica, em 1999, Ércio Braga, deixou-as claras:“Não se pode fa-
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lar da legalidade de um governo que, por sua ação, se torna ilegítimo, dado que o compromisso do militar é com a nação, e não com o governo”. Houve quem, como o deputado Jair Bolsonaro, declarasse, no mesmo encontro: “Ele (FHC), para mim, tinha que ser fuzilado”. Tudo isso, não obstante o fato de Cardoso, de uma família de militares, ter feito todo o processo com zelo absoluto, sem preocupação com o tempo. “Cada Força singular desenvolve suas atividades desvinculada das demais. Não se percebe um projeto integrado que vincule a capacidade bélica desejada ou possível com recursos orçamentários pertinentes. Nos falta um ‘livro branco da defesa’, em que se assinale qual é a política de defesa do país, quais as missões das Forças”, acredita Zaverucha. “É imperativo que o Ministério da Defesa cumpra a função de interlocutor entre as Forças e a sociedade, para que esta possa se interessar e influir num tema decisivo para os destinos do país, que é a definição do papel dos militares”, analisa Eliézer Rizzo de Oliveira, pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp. “O ministério é adequado ao país. O que falta a ele é conteúdo”,
nota. Para o pesquisador, é preciso estimular as universidades ao intercâmbio com as Forças para a produção de conhecimento sobre defesa nacional. Um grande passo foi dado pela Unicamp, que implantou o Laboratório de Desenvolvimento de Tecnologia para o Ministério da Defesa, durante a gestão do reitor Carlos Henrique de Brito Cruz. Esses estudos podem ajudar a evitar confusões perigosas, como a feita por deputados e senadores, que, observa Rizzo, confundem os conceitos de segurança pública com defesa nacional.“O presidente Lula precisa resistir às pressões pela transformação das Forças em auxiliares das polícias ou usá-las para recuperar estradas em lugar das empreiteiras, ignorando o estado de desatualização do maquinário militar.” Tampouco resolve só trocar a farda pelo terno. “O Ministério da Defesa, com atribuições limitadas, reflete o equilíbrio instável nas relações civis-militares”, avisa Zaverucha. Bastam as 154 vítimas do vôo 1907 da Gol. A democracia não pode ser mais uma baixa nessa briga tão recente quanto antiga. •
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HUMANIDADES
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TECNOARTE
da máquina,
Dança
do corpo e da mente Tese de doutorado com DVD cria conceito sobre qualidade de vida na era virtual DIVULGAÇÃO
G ONÇALO J UNIOR
esde muito pequena, a paulistana Analívia Cordeiro se acostumou a sentar-se à mesa com amigos de seu pai, o artista plástico Waldemar Cordeiro (1925-1973). Dentre eles, nomes como Pierre Boulez (1925) e Federico Fellini (19201993). A primeira paixão pela arte, no entanto, manifestou-se nela pela dança. Aos 11 anos, já era bailarina. Ao mesmo tempo que cursava arquitetura na FAUUSP, virou coreógrafa, dançarina e pesquisadora corporal. Depois de se formar no Brasil pelo método Laban – com Maria Duschenes – tornou-se pioneira internacional em computer-dance e em videoarte no país, com experiências realizadas em 1973. Posteriormente, estudou dança moderna americana nos estúdios de Alvin Nikolais e Merce Cunningham (Nova York), entre 1977 e 1979, e formou-se em eutonia em 2002. Em 1975, com auxílio da FAPESP, Analívia filmou em Super-8 a cerimônia ritual Kuarup na tribo kamaiurá, no Parque Nacional do Xingu. Teve suas obras apresentadas em importantes mostras internacionais em todo o mundo nos últimos 30 anos. Incansável, criou vários vídeos, espetáculos multimídia e um software de notação de movimento, publicado no livro/vídeo Nota-Anna – Uma notação eletrônica dos movimentos do corpo humano baseada no método Laban (editora Annablume). Também produziu o CD-ROM Waldemar Cordeiro (2001) e o DVD duCorpo em versão em português, inglês e espanhol. Trabalhou como professora de dança moderna do método Laban e de eutonia em escolas infantis, academias de dança e faculdades de psicologia (USP) e moda (Santa Marcelina). Por fim, fez mestrado em multimeios na Unicamp. Tudo o que Analívia viveu, aprendeu e acumulou em experiência e conhecimento direcionou para produzir o doutorado em comunicação “Ciber-Harmonia: um diálogo entre a consciência corporal e os meios eletrônicos”, que defendeu na PUC-SP, em 2004, sob orientação de Arlindo Machado. A tese foi composta de quatro itens complementares: os sites www.ducorpo.com.br e www.notaanna.com.br, o DVD duCorpo e a teoria PESQUISA FAPESP 130
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escrita. Para absorver seu conteúdo, a artista convenceu antes a banca examinadora da necessidade de fazer previamente tanto a leitura dos textos escrito e imagético quanto uma prática corporal para que sua pesquisa fosse mais bem compreendida. E todos os participantes gentilmente se dispuseram a isso. O que pode parecer apenas um método de relaxamento e condicionamento corporal aplicável em qualquer academia de ginástica ou num desses manuais de livraria é um laborioso e complexo processo de autoconhecimento e das descobertas a partir do estímulo ao respeito pela organicidade intrínseca aos movimentos do corpo. Um trabalho que resultou de três décadas de estudos, que inclui uma forma desenvolvida pela autora para descrever o movimento do corpo, denominado de Nota-Anna. Sua característica principal é visualizar o rastro do movimento para mostrar “a essência de sua expressão emocional em nuanças”. O programa foi escrito em linguagem Java e pode ser utilizado em qual92
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quer computador. Em seu estágio atual, é um instrumento que permite o registro e a visualização do movimento, de forma direta e natural. Com a sua evolução, pela incorporação de técnicas de visão computacional e inteligência artificial, Nota-Anna tem chance de se tornar também uma ferramenta de análise e concepção do movimento. “Quem sabe, até vir a ser utilizada amplamente por todos aqueles que cultivam essa arte”, observou Luiz Velho, pesquisador associado do Instituto de Matemática Pura e Aplicada.A autora explica que o projeto de doutorado nasceu da observação de que atualmente milhões de pessoas são afetadas diariamente pelo uso contínuo de instrumentos eletrônicos, que interfere nas relações humanas. Daí a necessidade de uma reflexão a respeito. Esses instrumentos, prossegue ela, ditam comportamentos físicos e emocionais que moldam o corpo, transformam-se em hábitos cotidianos e podem causar sofrimento e dor física (como a síndrome do carpo, por exemplo).
A pesquisadora observa que, se levar em conta que o corpo é uma estrutura óssea recoberta de pele e com diversos tipos de tecidos, é possível afirmar que suas características se alteram com seu uso diário.“Os tecidos, apesar de resistirem naturalmente a esforços mecânicos de dobrar, torcer, rasgar, comprimir, correm o risco de ficar comprometidos definitivamente em sua estrutura e funcionamento, se solicitados em excesso, por esforços repetitivos.”Como terapias para se buscar um equilíbrio no plano da movimentação corporal tem-se desde tratamentos médicos até rituais místicos ou religiosos. “Ainda não existem,porém,propostas para uma atuação nova e saudável do usuário das novas tecnologias em seu próprio meio de ação. Por isso, considero útil, necessária e significativa esta tese”, justifica. Como ferramenta, a bailarina criou e produziu duCorpo, cujo DVD foi escolhido como o meio eletrônico para a solução dos problemas causados por ele próprio.Ela sugere procedimentos corporais integrados com a linguagem eletrônica, atitude que pode possibilitar uma vivência completa do organismo, incluindo aspectos físicos, mentais, sensitivos e emocionais de caráter criativo e envolvente. As ferramentas téorico-práticas são a endobiophilia, a eutonia, os métodos Feldenkrais e Laban, no campo da consciência corporal; e, em nova tecnologia, o aplicativo Nota-Anna para escrita, leitura e aprendizagem do movimento. “Creio que, dentro deste tema, o discurso verbal é insuficiente e incompleto, visto que, na parte não-verbal, a linguagem do comportamento é freqüentemente mais importante do que aquilo que é dito.” Unidade - Sua tese foi composta de duas
partes complementares: a teórica (verbal) e a prática (não-verbal), de modo a compor uma unidade completa. Analívia explica que, para os usuários, os instrumentos eletrônicos podem ser considerados intermediários ou filtros semânticos no seu contato com a realidade.“Assim, percebo que uma proposta para superar esses limites deve estar dentro do universo contido em sua própria ação porque é muito difícil que a pessoa deixe de usálos para procurar uma atividade em outro universo, a não ser em casos extremos e excepcionais, como um problema de saúde. Mas por que não prevenir e cuidar do corpo antes que ele adoeça?”
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Essa atitude, escreve a autora, abre espaço para o surgimento de novos conteúdos na interação usuário-instrumentos eletrônicos.“Essa concepção tradicional de comunhão entre as pessoas é muito verdadeira, assim como as considerações sobre o atual uso da tecnologia. Existem evidências, no entanto, de que a tecnologia está entrando na esfera do afetivo, pessoal e íntimo de modo positivo e construtivo.” O DVD duCorpo pretende ser um recurso nessa direção. Dentre outros objetivos, quer equilibrar o diaa-dia do usuário com a integração de dois tipos de atividade: interação com a tecnologia e procedimentos de introspecção, que poderiam possibilitar uma detecção mais integrada do mundo. Ou, pelo menos, mais rica em experiências mentais, sensitivas e emocionais. “Acredito que a nova geração, que, por um lado, conhece, mesmo que de forma superficial, práticas de meditação ou ‘filosofia oriental’ e, por outro lado, convive tão intimamente com videogames, computadores, realidade virtual etc., não teria dificuldade em unir estas duas práticas, desde que orientada com propriedade.” Ao ligar o DVD, o usuário é estimulado a entrar num mundo novo de seu corpo e de sua mente. Analívia propõe uma redução nas áreas de tensão do corpo através do relaxamento baseado na redução do tônus das áreas tensas, que leva a um realinhamento postural. A seguir, são dados três minutos para dormir e fazer o rearranjo neurológico. Numa segunda etapa, fazer a tonificação geral do corpo a partir de movimentos ativos, como empurrar o chão ou algo que permita levantar aos poucos, até ficar de pé, de modo a ampliar a força e a flexibilidade do corpo. Depois dar risada e se divertir, para que a pessoa tenha a liberdade total de descobrir o que quer fazer. Por último, parar para pensar e sentir o que aconteceu depois das atividades. Deve-se exercitar o que tem vontade. Essa atitude, afirma a bailarina, pode vir a compor uma nova forma de cultura universal, como mais um passo na história da afetividade e do autoconhecimento humanos. Uma postura que engatinha hoje em outras esferas da nova tecnologia. Fora dos limites do meio acadêmico, a tese pretende dirigir-se tam-
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bém às crianças, aos pré-adolescentes e aos adolescentes, uma vez que a internet está mudando a natureza da infância porque abre o mundo para todos. A partir de depoimentos colhidos por ela ou pesquisados, Analívia observa que o papel fundamental da tecnologia na vida dos jovens é algo inquestionável.
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o ponto de vista teórico, um hábito diário marcante na vida destes jovens é não mover seu corpo com freqüência. Durante horas, todos os dias, eles jogam, pesquisam, namoram ou trabalham na frente de um monitor, onde os olhos seguem movimentos de um boneco (ou carro, ou informação etc.) na tela e os dedos movem botões acionando este mundo virtual. “Para todas as faixas de idade, constatamos que, com a cultura virtual, a mobilidade física perdeu a força em prol da mobilidade virtual da informação. Essa tendência originou-se da pós-modernidade e com o advento de novas características urbanas.” Analívia observa que o ambiente urbano, somado aos aparatos da nova tecnologia, estimula constantemente a visão em detrimento da atividade física e dos outros sentidos do corpo. “duCorpo é uma prática corporal com caráter pedagógico, dentre outros. Seu objetivo nesse âmbito é amplo, mas gostaria de enfatizar especificamente o nosso país.” No Brasil, diz ela, os planos pedagógicos são formulados em diversos níveis da sociedade, dentro de perspectivas amplas e difundidas. Com as novas tecnologias, quer-se a geração de inovações importantes nos processos educativos,“que pos-
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sam permitir que a educação atenda mais claramente às aspirações e necessidades das sociedades humanas, onde o conhecimento e a capacidade de aprender e criar soluções são aspectos essenciais para o desenvolvimento e o bem-estar”. Em sua fundamentação, a autora conclui que existem duas questões básicas. Primeiro, o desenvolvimento tecnológico, que vai continuar a gerar produtos cada vez mais baratos e mais sofisticados, com ampliação do acesso a uma parcela maior da população. Depois, a demanda por educação, formação, treinamento, capacitação, que já é grande e vai continuar a crescer. Nesse contexto, seu programa desenvolve uma função educativa e construtiva.“Outro objetivo é o lazer, abrir a possibilidade de uma atuação puramente lúdica, livre e leve com um aparato eletrônico; abandonando, por um pouco que seja, a atitude de conquista obstinada para assumir uma atitude de prazer e autoconfiança interna, deixando fluir, com simplicidade, nossos desejos, necessidades e curiosidades, independentemente de obrigações físicas e mentais impostas.” Nessa busca por qualidade de vida na era digital, com a proposta de diálogo entre corpo, mente e computador, Analívia quer democratizar ao máximo seu programa, sem a preocupação em transformar seus estudos num lucrativo negócio. “Por trás de tudo isso existe um conhecimento profundo, uma experiência de vida que permitiu desenvolver um trabalho minucioso, com elaboração científica, que faz da dança um meio de tornar a vida das pessoas melhor. O desafio está em despertar na pessoa a disposição para pegar o DVD e praticar.” •
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Resenha
Travessias Estudo analisa cuidados em saúde a partir da análise de seus fundamentos e possibilidades
C YNTHIA A NDERSEN S ARTI
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ontrapondo-se fundamentalmente ao “biologicismo”e à ilusão de objetividade do paradigma biomédico na área da saúde e ao excesso tecnológico em suas práticas e saberes, a noção de “humanização”dos cuidados tornou-se tema central no campo da saúde coletiva.Múltiplas dimensões estão envolvidas neste ideário, concebido como valor,saber,diretriz de ações em saúde e políticas públicas na área,o que contribui para a polissemia da noção,tal a diversidade conceitual e prática em torno das noções que a atravessam,como as de humano, saúde,doença e cuidado.Seu uso corrente no campo da saúde esconde a imprecisão das categorias que a sustentam como suporte do cuidado.É bem-vinda,assim,uma coletânea de artigos que busca precisar a noção e refletir sobre este projeto de cuidado em saúde,a partir da análise de seus fundamentos e condições de possibilidade. Articulando reflexões teóricas com experiências de assistência,são 21 os autores dos 16 artigos que compõem a coletânea,profissionais da saúde e cientistas sociais. Sem “a expectativa de produzir consensos”(pág.16),tal número de textos permitiu abordar o problema da humanização e do cuidado sob distintos ângulos e considerar diversas facetas e atores sociais envolvidos:profissionais,usuários e seus familiares,em hospitais,na atenção básica e outros âmbitos.O livro está dividido em três partes.A primeira é conceitual,sem deixar de analisar situações concretas;as outras duas focalizam o cuidado à saúde da mulher e da criança. Atravessa os textos o problema da relação entre tecnologia e cuidado,diante do qual se rompem polaridades ingênuas,escapando-se tanto do tecnicismo quanto de um humanismo abstrato,ao se assumir a humanização também como uma forma de intervenção,portanto, potencialmente impositiva.Daí a necessidade de uma cuidadosa e criteriosa discussão de seus fundamentos e práticas.Ante a crítica da “desumanização”nas ações de saúde baseadas em critérios supostamente técnicos e objetivos,a “humanização”é pensada a partir do necessário encontro (ou confronto?) entre subjetividades que se instaura na atenção à saúde humana.Assim,os temas das
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Humanização dos cuidados em saúde: conceitos, dilemas e práticas
relações e da intersubjetividade emergem,por definição,permeando todos os artigos,ao lado da questão da Editora Fiocruz ética que surge do postula416 páginas do de uma assistência fundaR$ 49,00 da na alteridade. Ao lado de revisões dos conceitos de humanização e de cuidado,incluindo a análise das bases epistemológicas da política de humanização do Ministério da Saúde,no Brasil,são também destacadas dimensões,tais como o problema da organização do trabalho em saúde,em face do esgotamento físico e emocional do profissional,que compromete,ao mesmo tempo,sua saúde e a qualidade da atenção prestada; e as redes sociais de suporte ao cuidado em saúde,com base na idéia de que o fortalecimento dessas redes,que situe o sujeito em suas múltiplas vinculações,possibilita reverter posições vulneráveis,a partir da correlação entre desenraizamento social e condições de saúde. O livro,nas duas últimas partes,recorta o campo da assistência “humanizada”,pela análise de significativas experiências de atenção à mulher e à criança,em diferentes situações de vulnerabilidade.No que se refere à mulher, problematiza-se a questão de gênero.O destaque dado aos discursos e práticas neste campo explica-se,em parte, pelo fato de a coletânea integrar a Coleção Criança, Mulher e Saúde,da editora que a publica,mas se justifica,segundo a organizadora,“em função do significativo espaço que têm ocupado na organização do cuidado neste setor”(pág.16).Diante deste fato e das importantes questões e iniciativas,descritas e analisadas neste livro, que transcendem a condição de mulheres e crianças,entre os muitos desafios dos projetos de humanização está um dilema básico da saúde:como pensar ações que concretizem universalmente este ideário,para além de recortes identitários que priorizam grupos sociais,e apenas eles,na assistência,com base nas noções de risco e vulnerabilidade,que são construções sociais e históricas? • Suely Ferreira Deslandes (organizadora)
CYNTHIA ANDERSEN SARTI é antropóloga,professora livredocente do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da Unifesp.
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Livros
A música e o risco Rose Satiko Gitirana Hikiji Edusp / FAPESP 256 páginas, R$ 40,00
O livro percorre os significados do fazer musical entre crianças e jovens de baixa renda participantes de um projeto social de ensino de música.Rose Hikiji aborda aspectos observados como as possibilidades que esse fazer introduz no cotidiano desses jovens descrevendo as relações entre a prática social e a construção da noção de corporalidade, temporalidade e alteridade entre seus sujeitos. Edusp (11) 3091-4151 www.usp.br/edusp
Nelson Werneck Sodré: entre o sabre e a pena Paulo da Cunha e Fátima Cabral (orgs.) Editora Unesp 358 páginas, R$ 46,00
Um “militar marxista”,Nelson Werneck Sodré desenvolveu uma carreira de historiador em paralelo à vida militar,onde chegou à patente de coronel.O livro traz textos de historiadores,intelectuais e críticos de várias áreas sobre o pensamento desse entusiasta do movimento marxista, a fim de resgatar e difundir sua visão crítica e apaixonada, voltada para a transformação democrática do país. Editora Unesp (11) 3242-7172 www.editoraunesp.com.br
Do corpo à alma: missionários da Consolata e índios macuxi em Roraima Melvina Araújo Associação Editorial Humanitas/FAPESP 248 páginas, R$ 25,00
A antropóloga Melvina Araújo traz temas esclarecedores sobre o contexto das relações entre missionários da Consolata e índios macuxi,em que aborda diversas questões como as agências religiosas e os povos indígenas,analisando os processos implícitos nas relações interculturais,buscando compreender o que os move e quais são os elementos que permitem sua existência. Associação Editorial Humanitas (11) 3091-4593 www.fflch.usp.br/humanitas
Marcas da diferença: as literaturas africanas de língua portuguesa Rita Chaves e Tania Macêdo (orgs.) Alameda Casa Editorial 380 páginas, R$ 58,00
Marcas da diferença apresenta uma reflexão sobre as obras literárias produzidas em língua portuguesa nos países africanos.O livro reúne textos de diversos estudiosos dessa área,abordando as características essenciais da produção de escritores africanos e a compreensão da dinâmica das relações culturais que se estabeleceram entre o continente africano e o Brasil. Alameda Casa Editorial (11) 3862-0850 www.alamedaeditorial.com.br
A casa do santo & o santo de casa: um estudo sobre a devoção a São Judas Tadeu, do Jabaquara
Caminhos da identidade: ensaios sobre etnicidade e multiculturalismo
Rodolfo Witzig Guttilla Landy Editora 224 páginas, R$ 15,00
Roberto Cardoso de Oliveira Editora Unesp / Paralelo 15 258 páginas, R$ 37,00
Através de extensa pesquisa apoiada em estudos antropológicos,o autor desvenda as relações entre o catolicismo popular e o institucional analisando a devoção por São Judas Tadeu no Brasil.O livro aborda a dura contenda entre padres,agentes de pastoral e devotos empenhados em fazer prevalecer um significado para o santo e para a devoção,de acordo com a visão de mundo e interesses de cada grupo.
Roberto de Oliveira reuniu seus ensaios sobre etnicidade e multiculturalismo com a expectativa de que sempre haverá espaço para a diversidade étnica e cultural mesmo num mundo globalizado.O livro adiciona novos temas a questões tradicionais,além de contribuir para o desenvolvimento e a renovação de estudos sobre essa temática.
Landy Editora (11) 3361-5380 www.landy.com.br
Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br
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Ficção
Consciência negra
VALÉRIA JATOBÁ
Homem Negro:alto,magro,retilíneo,ainda que pesasse sobre si um volume de tristeza sem tamanho,de preguiça de vida,de desânimo,de lentidão. O sol a pino laranja vermelho amarelo,escaldante, fazia miragens no asfalto,entortava o chão e deixavaa impressão de que o mundo,sob um sol daqueles,só podia ser um tanto torto mesmo.O asfalto derretido evoca uma savana muito antiga,um passado esquecido por uma dúzia de décadas passadas.A memória fraca.A vontade,baça. Pele sobre ossos,uns pedacinhos de músculos que ainda sustentam o movimento.Uns olhos muito mansos,quase tristes,de quem pergunta e pergunta de novo,descrente da fome,do sol,do sono,da pressa do estômago que insiste em pelejar na vida,uma vida meio besta que ninguém sabe de quê, pra quê.Uma fome que não é de comida.E a outra,bandida. O Homem Negro na esquina,o asfalto quente,o sol alto. Invisível na inexistência dos que ninguém consegue ver, apolítico na sua bulimia compulsória,desnutrido,desdentado,grudado na calçada na ausência de pressa dos que não têm nada a perder.O Homem Negro na inércia,na molíssima malemolência inata,a fome já atávica,o ronco no estômago herdado em cada partícula de DNA.O Homem Negro com fome.Pele sobre ossos no asfalto,na falta de carne,o osso:manter-se de pé.O pé,no chão. O Homem Negro calmo,que para haver raiva é preciso sustança.Umas mãos mansas,de quem não faz mal a ninguém.Ele não machuca nem passarinho.Porque,se machucasse,já seria uma refeição.O Homem Negro,não.O Homem Negro,nada.Contra os que o julgam mal,o Homem Negro, nada.Contra nojo,repulsa,medo,o Homem Negro, nada.Que o Homem Negro nem se mexe mais,nadificado do mundo,anestesiado de nada,amortecido de fome.
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O Homem Negro não lembra seu próprio nome.Não lembra sua idade.Não lembra onde nasceu.Flor negra do asfalto,não sabe a que se deu a mãe,irmãos,família.O Homem Negro é uma ilha.Formiga na avenida lotada de gente, as pernas formigam,passam os dias e ele na lida cruel da consciência nula de não ser ninguém. Não pede emprego,porque não há,não pra ele,sem camisa.Os pés descalços guardam remotamente o desespero de um navio antigo.E por mais que no vazio negro do estômago ressoe o eco de cantigas familiares,o Homem Negro já não se lembra,já não pode lembrar. Pessoas passam com pressa pelas pernas podres do Homem Negro.Em cada ponte,em cada parte da cidade grande,apodrecem as pernas negras do Homem Negro.Pernas que sobram nas calças em frangalhos,pouco pano surrado,suado,sujo,manchado de noite,de medo,de morte. O sangue do Homem Negro é estancado e maduro.Se ralo,vasa dos poros.Se grosso,coagula no pulso.Os punhos macios se fecham num grito doído,que morre franzino na voz rouca e sem coragem de ser voz.A voz do Homem Negro cala centenas de anos e delata milhares de danos,cicatrizes febris de ferros sem donos:ninguém responde por eles,ninguém atende,ninguém entende. É quando,em silêncio,os olhos sombrios,levanta-se em prumo um resto de orgulho.Nas mãos,uma pedra.No peito, um gemido.Nos olhos insanos,a fome,o cansaço.A fúria vontade,a vontade,a vontade. Então,seu caminho. O branco vadio que dorme na esquina perdeu seu sossego:é dele,do Homem Negro,a garrafa de pinga,a garrafa troféu,agarrada no peito,derramada no corpo.E a pinga que mata o sossego franzino faz quente no corpo,faz tonto
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LUANA GEIGER
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o caminho, engana, consola, faz menos sozinho o homem, farrapo, garrafa vazia. É pouco a garrafa. E segue o caminho. E anda a mulata, que volta pra casa no balanço lento do dia de lida. Saia amarela e a bolsa sob o braço, apertada, como quem esconde os trunfos do dia. O Homem Negro, mirando a saia, nem vê a bolsa, e doce delira sobre cada prega, e solta a praga: é dele a anca larga, é dele a maçã do rosto e o gosto de prata do sangue que escorre dos peitos macios.É dele a mulata. É dele a mulata. É pouca a mulata. E segue o caminho. E parada na esquina, desenha a madame. O cachorro minúsculo, de pêlo tratado, bem alimentado. O mundo, a seu lado. O Homem Negro desdenha do bicho – se não é gato, se não é rato, se não é cão, que outra coisa esquisita é aquela coisinha que late, faz barulho, arrancando os pensamentos do Homem Negro que já não vê a madame, assustada, encolhida, que chama a polícia, protegendo seu cão? É dele o bichinho. E a madame, nervosa, gasta a prosa provando inútil a inegável existência: Homem Negro ladrão. É pouco o bichinho. E segue o caminho. É quando parado, na larga avenida, pensando na vida, o garoto montado na bicicleta.Os dedos em pinça, pulmão trabalhando a fumaça cheirosa, o riso de lado, os olhos quase fechados, olhar distraído. O Homem Negro quase que inveja a doce moleza do garoto moreno de blusa florida. E se chega, simpático, pedindo com os olhos, bem manso bem calmo, um trago de paz. O garoto se assusta, não dá a bicicleta: dá coice, pancada, dá tapa, machuca. O Homem Negro, sem nunca entender, dá tudo de volta. Mas em cada dedo do Homem Negro há uma raiva, revolta de décadas e a pancada dói mais. E o garoto caído já não vê bicicleta, e também não entende e só amanhã vai sentir a falta do dente e, indignado, pensa na vida e culpa o prefeito, a política internacio-
nal e a falta de educação. O Homem Negro, que não leva nada, só leva o susto e segue o caminho. É pouco o caminho. É quando o Homem Negro estanca aflito. Quem é, do outro lado, magro, alto, retilíneo? Quem é que atravessa seu próprio caminho, fazendo da rua um espelho sombrio? O Homem Negro encontra nos olhos do outro ameaça, espera, promessa ou vazio? O Homem Negro encontra a si mesmo e faz da avenida estranhíssimo espelho. Pro outro caminha, querendo saber, querendo encontrar seu traço de fome, seu traço de homem num outro caminho. E se pudesse matar a fome do outro, talvez a sua própria aplacasse, num caminho invertido dos que procuram juntar nadas pra fazer positivo. Ali, Homens Negros não juntam é nada. E o outro, e a faca, e a dura peleja, e a faca, e o grito e o tapa e o pão. E o nada e o nada e o sangue na mão e o sangue nos olhos e o furo e o corte e os dois Homens Negros brigando, vazios. E o pouco caminho que os dois encontraram agora é um só: também é alívio a chuva lavando o sangue escorrendo, calçada tingida. Também é alívio a fome estancada e a noite gelada abrindo caminho. No silêncio da morte ninguém entendeu, ninguém pressentiu o mudo pedido de socorro aflito que brota, bandido, do ato impensado. Ninguém entendeu a não ser um menino que viu, no Homem Negro, mais que um bandido: viu negro, viu homem, viu raça e história, viu luta, viu morte, viu vida, viu vida. VALÉRIA JATOBÁ, mineira, tem 35 anos e é bibliotecária e trabalha com alfabetização de adultos entre as populações dos países de colonização portuguesa. Atualmente vive em Moçambique. PESQUISA FAPESP 130
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Área: Política, Planejamento e Gestão em Saúde FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS — DEPARTAMENTO DE MEDICINA PREVENTIVA E SOCIAL Inscrições 6/10/2006 a 3/1/2007, publicação DOE, 5/10/2006, pág.: 79 Disciplinas: Ações de Saúde Pública I, Ações de Saúde Pública II, Atenção à Saúde no Brasil Cargo: Professor Titular Regime RTP Processo: 01-P-24613/2005 Contato (e-mail): secgeral@fcm.unicamp.br e carmen@fcm.unicamp.br Telefone: (19) 3521-8933 Área: Cirurgia Pediátrica FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS — DEPARTAMENTO DE CIRURGIA Inscrições 28/9/2006 a 2/1/2007, publicação DOE, 27/9/2006, pág.: 73 Disciplinas: Atenção Integral à Saúde da Criança e do Adolescente I, Cirurgia Pediátrica Geral e Gastroenterologia I, Cirurgia Pediátrica Geral e Gastroenterologia II, Cirurgia Pediátrica Geral e Gastroenterologia III Cargo: Professor Titular Regime RTP Processo: 01-P-12716/2006 Contato (e-mail): secgeral@fcm.unicamp.br e carmen@fcm.unicamp.br Telefone: (19) 3521-8933
USP LESTE CONTRATA DOCENTES Estão abertas as inscrições para os processos seletivos de docentes para a Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo (USP). São 71 vagas, em 56 disciplinas de 10 cursos — Gestão Ambiental, Sistemas de Informação, Gestão de Políticas Públicas, Marketing, Licenciatura em Ciências da Natureza, Lazer e Turismo, Tecnologia Têxtil e da Indumentária, Ciências da Atividade Física, Gerontologia e Obstetrícia. Mais informações podem ser obtidas na Seção de Pessoal da EACH, através do telefone (11) 3091-1006, pelo site www.each.usp.br ou pelo e-mail pessoaluspleste@usp.br.
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DEZEMBRO DE 2006
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