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Ciência eTecnologia
VENDA PROIBIDA
ASSINANTE
EXEMPLAR DE
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no Brasil
Janeiro 2007 Nº 131 ■
LAPTOPS GRATUITOS PARA CRIANCAS A FABRICACAO DA ANOREXIA UM CONSERVADOR MODERNIZOU A BAHIA
GUERRA `A DENGUE novas tecnologias contra o Aedes
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Mais ciencia na web_ A nova versão do site da revista Pesquisa FAPESP está no ar Mais bonita, mais funcional e mais informativa
Onze anos de conteúdo integral da revista Pesquisa FAPESP Áudio do programa semanal de rádio Pesquisa Brasil Notas sobre os principais artigos publicados nas revistas Nature e Science Chamadas para as matérias da Agência FAPESP
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NASA
IMAGEM DO MÊS
Linha de montagem O astronauta Christer Fuglesang (foto), primeiro sueco a viajar ao espaço, pegou no pesado na missão de 12 dias do ônibus Discovery na Estação Espacial Internacional (ISS), que está em órbita a quase 400 quilômetros da superfície terrestre. Fuglesang, de 49 anos, participou de três das quatro caminhadas espaciais para a instalação de uma viga, de um novo módulo de armazenamento e de uma nova rede elétrica na ISS. Segundo a Nasa, serão necessárias mais 13 missões para completar a estação.
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ANTONIO BRANCAGLION
GENILTON VIEIRA/INSTITUTO OSWALDO CRUZ
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> ENTR EV ISTA 12 Thomaz Farkas fala
de sua rica vida como fotógrafo, produtor de cinema, professor e empresário
EDUARDO CESAR
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33 D ESENV OLV IMENTO
Receita para ingressar na sociedade do conhecimento tem mais ingredientes do que se imagina, diz relatório europeu
66 CA PA
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36 POLÍTICAS PÚ BLICAS
São Paulo prepara novas regras para o reflorestamento de áreas degradadas
35 INOV AÇ Ã O
E TECNOLÓ GICA 28 INCLUSÃ O D IGITAL
Governo define até abril qual será o modelo de laptop de baixo custo destinado a alunos de escolas públicas
> SEÇÕES
Seminário avalia legislação e reivindica novos paradigmas para a pesquisa
52 EPID EMIOLOGIA
Cultura machista de caminhoneiros contribui para disseminar vírus da Aids 54 F ÍSICA
> CIÊNCIA > POLÍTICA CIENTÍFICA
EDUARDO CESAR
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42 MED ICINA
Técnica experimental mostra-se eficaz para tratar distúrbios psiquiátricos graves
Observada pela primeira vez na menor escala possível, liga de ouro e prata revela comportamento inesperado dos átomos
48 NUTRIÇ Ã O
Ginastas e atrizes sofrem dos mesmos dramas que as modelos
3 IMAGEM DO MÊS 8 CARTAS 9 CARTA DA EDITORA 10 MEMÓRIA 22 ESTRATÉGIAS 38 LABORATÓRIO 60 SCIELO NOTÍCIAS .......................
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EDUARDO CESAR
LUCIANO DA MATTA/JORNAL A TARDE
WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR
76 LUCIANO DA MATTA/JORNAL A TARDE
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FUNDAÇÃO IBERÊ CAMARGO
54
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58 METEOROLOGIA
Modelo matemático analisa os impactos das mudanças climáticas sobre crescimento econômico
72 BIOQUÍMICA
Anticorpos produzidos por empresa brasileira facilitarão a produção de novos medicamentos 76 ENERGIA
> TECNOLOGIA 66 CAPA
Monitoramento com armadilha que atrai mosquito é uma das inovações, junto com insetos transgênicos, para o controle da dengue
Ipen desenvolve célula a combustível que gera energia elétrica com etanol 79 ENGENHARIA
Máquina inovadora que alisa até 12 peças de roupa em uma hora vai ser lançada no mercado
> HUMANIDADES
90 COMPORTAMENTO
80 CIÊNCIA POLÍTICA
Ao contrário do que diz o senso comum, o carlismo representa o empenho das elites de modernizar a Bahia
Mudanças em conceito tradicional de família geram crise na educação de crianças e adolescentes
86 SOCIOLOGIA
Estudos reiteram que a invisível desigualdade brasileira não se resolverá só com crescimento econômico
...................... 62 LINHA DE PRODUÇÃO 94 RESENHA 95 LIVROS 96 FICÇÃO 98 CLASSIFICADOS
CAPA MAYUMI OKUYAMA FOTOS MIGUEL BOYAYAN E GENILTON VIEIRA/INSTITUTO OSWALDO CRUZ
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Rádio Eldorado AM Sintonize 700 kHz Sábados, às 12h Reprise aos sábados às 19h e aos domingos às 14h ■
Se preferir, ouça o programa no site da revista
Apresentação Tatiana Ferraz Comentários Mariluce Moura Diretora de redação de Pesquisa FAPESP
Pesquisa Brasil ciência e Toda semana, em meia hora, você tem: ■
Novidades de ciência e tecnologia
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Entrevistas com pesquisadores
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Profissão Pesquisa
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Memória dos grandes momentos da ciência
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Veja aqui alguns destaques dos programas que foram ao ar entre os dias 2 e 9 de dezembro
temente, ative essas redes neuronais em espelho. Por que isso ocorre é uma questão ainda muito discutida. Esse comportamento, que temos desde a vida intra-uterina, pode ter propiciado algum benefício no passado, durante nossa evolução.
PESQUISA RESPONDE 09.12.06 ■ Felipe Dourado, de Campinas
Por que bocejamos quando vemos outra pessoa bocejar? Gilmar Fernandes do Prado, neurologista da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) — Não há uma explicação definitiva para esse fenômeno. Mas algumas questões já estão sendo esclarecidas, como a existência em nosso cérebro das chamadas redes neuronais ou neurônios em espelho, ■
PROFISSÃO PESQUISA 09.12.06 ■ Psicóloga Katia Rúbio, professora associada da Escola de Educação Física e Esporte
participação na competição. Se pensarmos em campeonatos mundiais e Olimpíadas, em que se atribuem medalhas de ouro, de prata e de bronze, aquilo que mais se valoriza é o primeiro lugar. É como se o segundo e terceiro postos não existissem. Essa questão me chamou a atenção durante minha tese de doutorado, quando estudei o imaginário esportivo contemporâneo e entrevistei alguns atletas. Pude observar que, para alguns esportistas detentores de uma medalha de prata, esse prêmio não representava uma vitória, mas uma derrota. O es-
doping, de substâncias que fazem o atleta render mais e buscar posições que apenas com o treinamento físico não seria capaz de alcançar. Então é possível dizer que hoje a derrota é uma sombra social tanto no esporte como na vida em sociedade de uma forma geral.
NOTA 02.12.06 Apresentadora — Personagem polivalente nos últimos anos no âmbito cientí-
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tecnologia nas ondas do rádio fico e tecnológico do país, Cylon Gonçalves da Silva tem hoje uma bagagem de conhecimento e vivências que poucos possuem. Passou pela academia, pelo governo federal, criou e dirigiu um instituto de pesquisa e agora trabalha diretamente com a iniciativa privada. Com tanta experiência, Cylon pode ser considerado um especialista nos rumos da ciência e da tecnologia do país. E ele conta o que enxerga nesse âmbito hoje.
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que servem a vários propósitos. Um deles é o aprendizado. Ao ouvirmos uma determinada palavra ou som, estamos propensos a repeti-lo e, portanto, a aprendê-lo. Esses neurônios em espelho no cérebro, situados principalmente no lado frontal, também têm a finalidade de reconhecer o que está acontecendo com outra pessoa. Se, por exemplo, alguém está sentindo dor, a pessoa que presencia essa cena logo sente algo semelhante. Nessa situação, os neurônios ativados pela pessoa que presencia a cena de dor estão no mesmo local do cérebro que os neurônios acionados pela pessoa que realmente está sentindo a dor. Essa seria uma forma de tentar entender o que acontece com as pessoas que estão bocejando. Trata-se de um comportamento inconsciente. Basta uma rápida visão de um bocejo para que um indivíduo, inconscien-
No Brasil, ganhar medalha de prata é sinônimo de derrota Cylon Gonçalves da Silva — As condições hoje são muito favoráveis. Na área de nanotecnologia, acho que há recursos tanto do setor privado quanto do público. Nos últimos anos o Ministério da Ciência e Tecnologia investiu perto de R$ 90 milhões em pesquisa em desenvolvimento no setor. Acho que, nessa área, o Brasil está bem posicionado em relação ao tamanho de sua comunidade científica.
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da Universidade de São Paulo (USP) —No momento, pesquiso as questões relacionadas à derrota no esporte contemporâneo, ou seja, o que significa a derrota no esporte contemporâneo. Essa linha de estudo tem uma razão de ser, visto que o esporte privilegia a vitória e tem como um dos seus princípios a busca do primeiro lugar no pódio, e não a
porte é uma dramatização da sociedade. O que se pode esperar no esporte contemporâneo é aquilo que ele projeta da sociedade. Hoje não há espaço para o perdedor, para o segundo colocado. Existe apenas a expectativa de uma vitória independentemente dos meios. Nesse contexto, é possível entender, por exemplo, o desenvolvimento assustador do uso do
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CARTAS cartas@fapesp.br
Abelhas
As reportagens de Pesquisa FAPESP retratam a construção do conhecimento que será fundamental para o desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução.
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Números atrasados Preço atual de capa da revista acrescido do valor de postagem. Tel. (11) 3038-1438
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Assinaturas, renovação e mudança de endereço Ligue: (11) 3038-1434 Mande um fax: (11) 3038-1418 Ou envie um e-mail: fapesp@teletarget.com.br
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Site da revista No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis as reportagens em inglês e espanhol.
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Para anunciar
MIGUEL BOYAYAN
Ligue para: (11) 3838-4008
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tação térmica,a estrutura da água retorna,rapidamente,a sua forma origiParabéns a Maria Guimarães e a nal,ou seja,a anterior à introdução do Eduardo César pelo belíssimo trabasoluto (estrutura determinada sobrelho relatando os resultados das nossas tudo pelas ligações de hidrogênio).Inpesquisas sobre expressão gênica no sistindo na idéia da permanência das desenvolvimento das abelhas rainhas modificações estruturais após a remoe operárias (“Segredos da nobreza”, ção do soluto,houve quem formulasedição 131).As imagens falam por si se o conceito ad hoc de “memória da mesmas e o texto ilustra com clareza água”.Bastam conhecimentos rudios aspectos essenciais desse problema mentares do método científico para da biologia de desenvolvimento.O arentender que a idéia da permanência tigo tem algo a mais,um certo grau de das modificações estruturais após a poesia,que nós,cientistas,costumaremoção do soluto mediante sucesmos deixar de lado nas nossas “produsivas diluições é anticientífica, pois ções literárias”.É este elemento que faz supõe a existência de um efeito sem a diferença.Vejo nesses momentos clauma causa.Ademais,também é imramente os nossos déficits em capaplausível que a água no meio estocidade comunicativa,fora das revismacal fortemente iônico mantenha tas científicas,e ena “organização esxergo o valor e as dipecial criada”pelo ficuldades do bom remédio homeopáEMPRESA QUE APÓIA jornalismo científitico.A plausibiliA PESQUISA BRASILEIRA co em manter o badade é um princílanço entre os secos pio fundamental do resultados científipensamento cientícos e a beleza intrínfico,enquanto as hiseca dos nossos obpóteses ad hoc são jetos de pesquisa. rejeitadas.A “cientificidade”da homeoKLAUS HARTFELDER patia baseada em FMRP/USP diluições sucessivas, Ribeirão Preto,SP portanto,deve ser procurada alhures – Água talvez no efeito plaA resposta dada por cientista da cebo.O efeito placebo,porém,dispenUniversidade Estadual de Campinas à sa a homeopatia e suas diluições. pergunta do ouvinte Pedro Moretti no TIBOR RABÓCZKAY, programa de rádio Pesquisa Brasil, reInstituto de Química/USP produzida em Pesquisa FAPESP (ediSão Paulo,SP ção 130) “O que ainda não sabemos sobre a estrutura da água?”,merece alCorreção gumas considerações.Solutos constituídos por substância iônica ou por Na edição 127,na nota da seção moléculas com distribuição assimétriLinha de Produção,“Oscilações do ca de carga elétrica interagem com as transgênico”,onde se lê “resistente às moléculas de água e,obviamente,inchamadas larvas Bt”,leia-se “contendo fluenciam a organização dessas.Ada toxina Bt”. mitir,porém,que a “nova”organização permaneça após tais solutos serem Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br, pelo fax (11) 3838-4181 removidos vai de encontro ao princíou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, pio da plausibilidade.Uma vez pura CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza. – removido o soluto – devido à agi-
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ISSN 1519-8774
CARTA DA EDITORA
Várias faces da modernização
FAPESP CARLOS VOGT
MARILUCE MOURA – DIRETORA DE REDAÇÃO
PRESIDENTE MARCOS MACARI
VICE-PRESIDENTE CONSELHO SUPERIOR CARLOS VOGT, CELSO LAFER, GIOVANNI GUIDO CERRI, HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, JOSÉ ARANA VARELA, JOSÉ TADEU JORGE, MARCOS MACARI, SEDI HIRANO, SUELY VILELA SAMPAIO, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO RICARDO RENZO BRENTANI
DIRETOR PRESIDENTE CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ
DIRETOR CIENTÍFICO JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER
DIRETOR ADMINISTRATIVO
PESQUISA FAPESP CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR CIENTÍFICO), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTONIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO, PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLLI
DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA
EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN
EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS
EDITORES EXECUTIVOS CARLOS FIORAVANTI (CIÊNCIA), CARLOS HAAG (HUMANIDADES), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA)
EDITORES ESPECIAIS FABRÍCIO MARQUES, MARCOS PIVETTA (EDIÇÃO ON-LINE), RICARDO ZORZETTO
EDITORAS ASSISTENTES DINORAH ERENO, MARIA GUIMARÃES
REVISÃO MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO
EDITORA DE ARTE MAYUMI OKUYAMA
CHEFE DE ARTE JOSÉ ROBERTO MEDDA
DIAGRAMADORES ARTUR VOLTOLINI, MARIA CECILIA FELLI
CONSULTORIA DE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA
FOTÓGRAFOS EDUARDO CESAR, MIGUEL BOYAYAN
SECRETARIA DA REDAÇÃO ANDRESSA MATIAS TEL: (11) 3838-4201
COLABORADORES ANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), AZEITE DE LEOS, BRAZ, DANIEL KON (ESTAGIÁRIO), DANIELLE MACIEL (ESTAGIÁRIA), GREGORY ANCOSQUI (ESTAGIÁRIO); IRACEMA CORSO, GONÇALO CÁRCAMO, GONÇALO JÚNIOR, LAURABEATRIZ, LUIZ ROBERTO GUEDES, MARCIO LEVYMAN E YURI VASCONCELOS.
COORDENAÇÃO DE MARKETING E PROJETOS ESPECIAIS CLAUDIA IZIQUE (COORDENADORA) TEL. (11) 3838-4272 PAULA ILIADIS( ASSISTENTE) TEL: (11) 3838-4008 e-mail: publicidade@fapesp.br
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A
té quase o final dos anos 1980 a dengue era uma doença muito distante do cotidiano das classes médias e alta no Brasil.No Rio,notícias esporádicas sobre a contaminação de alguma personagem conhecida costumavam surpreender – causar espanto, mesmo.Como ela conseguira se deixar picar pelo ridículo Aedes? Desde então,as coisas mudaram muito,até o ponto de o país conhecer uma séria epidemia da doença em 2002, com quase 800 mil casos notificados.Nos anos subseqüentes,campanhas educativas ajudaram a derrubar esses números.Mas 2006,com quase 300 mil casos registrados até outubro – e 61 mortes resultantes da doença –,trouxe o temor de uma nova epidemia e,pior,o medo da entrada de um novo sorotipo do vírus no país, o 4, considerado o mais letal. No entanto,como relata na reportagem de capa a partir da página 66 a editora assistente de tecnologia,Dinorah Ereno,2006 chegou ao final também com excelentes notícias para o controle futuro e o combate frontal da dengue.Para começar,um sistema de monitoramento do mosquito transmissor,articulado com uma armadilha orientada para atrair fêmeas grávidas,e mais alguns mecanismos para controle da infestação nas áreas críticas. Para completar,o desenvolvimento de mosquitos transgênicos,mirando em especial a criação de Aedes estéreis.É possível que dentro de mais algum tempo essas novas tecnologias ajudem o Brasil a desfrutar da situação privilegiada que teve em relação à dengue durante uns bons anos no meio do século XX. De fato,o país passou por uma tão bem-sucedida campanha de combate ao mosquito causador da doença na década de 1950 que observadores internacionais concluíram que ele havia sido erradicado.Mas em 1967 ele estava de volta. Não resta muita dúvida entre os estudiosos da sociedade contemporânea de que o verdadeiro desenvolvimento científico e tecnológico de um país se articula em muitas frentes.E uma delas,ao que tudo indica com peso fundamental nessa equação,é o nível de educação formal do conjunto da sociedade. Nesse sentido,o ousado projeto,em curso no Brasil,de tornar acessível às crianças das escolas públicas – e às suas famílias – laptops muito baratos,que de chofre as situa na contemporaneidade do mundo,pode produzir uma revolução cultural de larguíssimo alcance neste país.E é sobre esse projeto,suas ba-
ses políticas e tecnológicas,que se debruça a reportagem assinada por nosso colaborador Yuri Vasconcelos e pelo editor especial Fabrício Marques, a partir da página 28. Incentivar a entrada do que é mais contemporâneo em determinado território,romper com o atraso,modernizar,parecem imperativos dos espíritos movidos pelo desejo da transformação – revolucionários,no limite. Será verdade? Nem sempre.Como na grande lição de Tomasi di Lampedusa em Il gattopardo, traduzida em imagens geniais pelo aristocrata comunista Luchino Visconti,a modernização com uma certa freqüência é levada a efeito por personagens absolutamente conservadoras.E nem sempre detentoras daquela inequívoca grandeza do Principe di Salina evidenciada no cinema por Burt Lancaster.Essas lembranças me vêm a propósito da reportagem assinada pelo editor de humanidades,Carlos Haag,a partir da página 80, que mostra,com base nas evidências e reflexões da tese de doutorado de um cientista político da Universidade Federal da Bahia e outros estudos,como o senador Antonio Carlos Magalhães pode ter se tornado a figura perfeita para concretizar o projeto de modernização em que se empenhavam na década de 1960 as elites conservadoras da Bahia. A referência ao cinema abre aqui a oportunidade para destacar a entrevista,à página 12, de Thomaz Farkas,um homem multimeios que contribuiu decisivamente,de 1964 a 1980, para a produção de quase quatro dezenas de documentários altamente reveladores sobre nosso país.São curtas,alguns médias e longasmetragens que pouco a pouco voltam à cena nessa busca das novas gerações por responder a uma pergunta que na boca do conservador Francelino Pereira,político mineiro já falecido,pareceu nos anos do autoritarismo militar uma espantosa ironia:afinal – ele indagou como se ecoasse a nação inteira –,que país é este? Para finalizar,o destaque da ciência nesta edição vai para a entrevista do editor de ciência,Carlos Fioravanti,e do editor especial Ricardo Zorzetto com o médico Mauro Fisberg, sobre a anorexia e outras doenças fabricadas pelo desejo de um corpo cujo desenho foi originalmente determinado pela indústria da moda.É assunto a exigir ações urgentes e coordenadas contra uma ditadura que também mata – a da moda. Meus votos de que tenhamos todos belas notícias e grandes experiências em 2007. PESQUISA FAPESP 131
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() MEMÓRIA
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Os imperadores e as múmias Detentor do maior acervo egípcio da América Latina, Brasil busca recursos para escavar em Tânis N ELDSON M ARCOLIN
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rqueólogos argentinos lamentam até hoje a passagem do comerciante italiano Nicolau Fiengo pelo Rio de Janeiro na década de 1820. Naquela ocasião, ele trazia de Marselha, França, uma coleção de antiguidades descobertas por Giovanni Battista Belzoni.O explorador italiano havia escavado na necrópole Tebana, atual Luxor, no Templo de Karnak.Algo comum naquele tempo,ele negociou as antiguidades com Fiengo que iria vender na Argentina.Mas quando estava no Rio, de passagem para Buenos Aires,as notícias sobre o clima político no país vizinho o desanimaram a seguir viagem. Provavelmente aconselhado por José Bonifácio de Andrada e Silva, em 1826 o imperador dom Pedro I comprou os objetos em um leilão – e deu origem a provavelmente mais antiga coleção egípcia das Américas. Ainda no século XIX, a coleção ganhou um incremento inesperado graças a dom Pedro II, o verdadeiro interessado pelo Egito Antigo.“Ele conhecia hebraico e árabe, numa época em que a egiptologia era mais ligada ao orientalismo e às línguas antigas”,conta o egiptólogo Antonio Brancaglion, pesquisador do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ) e professor do Departamento de Línguas Orientais da Universidade de São Paulo (USP). Em 1876, na sua terceira visita ao Egito, dom Pedro II ganhou do quediva Ismail (o soberano do país) um magnífico esquife pintado
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IMAGENS ANTONIO BRANCAGLION
Dom Pedro II (dentro do círculo) e sua comitiva em frente à esfinge, em 1876, e o esquife pintado da “Cantora de Amon” (alto, à esq.). Ao lado, fases da reconstituição do rosto da “Bela de Tebas” e, acima, sua cabeça mumificada
da “Cantora de Amon” ShaAmun-em-su. O imperador manteve a peça em seu gabinete até 1889, quando foi incluída na coleção do MN. No acervo existem 700 objetos entre múmias humanas inteiras e em partes – como cabeças, mãos e pés, como era usual em determinado período no Egito –, e de animais. Equipes do MN investigam esse riquíssimo acervo há muitos anos. Hoje esse trabalho se tornou multidisciplinar: contempla da arqueologia à anatomopatologia. “São analisadas amostras de pólen, resinas, pigmentos e DNA com o objetivo de obter informações para uso
científico, histórico, cultural e como base para uma estratégia de conservação e apresentação, além de divulgação para o público”, diz Brancaglion. A equipe reconstituiu o rosto da múmia conhecida como “A Bela de Tebas”, reprodução da face de uma mulher entre 19 e 25 anos, que viveu em Tebas, 600 anos antes da era cristã. A reconstituição resultou da parceria entre o MN, o Instituto Nacional de Tecnologia, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Centro de Pesquisas Renato Archer. O trabalho foi pioneiro no Brasil, mas não agradou a Brancaglion: “Faltou textura na pele, ficou com cara de
manequim”. A mesma equipe trabalha na face de outra múmia, desta vez com mais recursos. Sheila Mendonça, especialista da Fiocruz, foi recentemente à Inglaterra para desenvolver detalhes da técnica e trazer novos materiais. A competência adquirida em egiptologia credencia o Brasil a ter uma equipe própria escavando no Egito, algo já alcançado pela Argentina e pelo Uruguai. Até agora os brasileiros apenas integraram equipes estrangeiras, em trajetórias individuais, para o pesquisador fazer mestrado ou doutorado, por exemplo. No momento,
porém, está em fase de captação um projeto a ser desenvolvido junto com os franceses. “Em Tânis, uma área enorme com muito para ser revelado, existe uma Missão Francesa de Escavação e nosso objetivo é transformá-la na Missão Franco-Brasileira de Escavação”, diz. Os franceses são financiados pelo CNRS, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) deles. “Nós estamos procurando o patrocínio de empresas para um projeto que é até barato: cerca de R$ 300 mil.” Brancaglion aposta que a Missão Franco-Brasileira vai virar realidade este ano.
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ENTREVISTA
Thomaz Farkas
FOTOS EDUARDO CESAR
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Otimista e delirante, mas nem tanto M ARILUCE M OURA
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Num documentário de 15 minutos feito por Walter Lima Júnior em 2004, a certa altura Thomaz Farkas, 82 anos, conta que deveria ter nascido no Brasil, porque em 1924 seus pais já viviam por aqui. Sem muitos recursos, aproximando-se o momento do parto, eles pediram uma ajuda financeira ao avô materno de Farkas, que era “meio muquirana”e ainda por cima não gostava muito do genro. Resultado: o avô mandou só uma passagem de navio para a filha, e Farkas nasceu na Hungria. Só aos 5 anos chegaria a São Paulo – para nesta cidade permanecer por toda a sua vida. Anos depois Farkas se tornaria figura fundamental na história do cinema brasileiro, com seu empenho em produzir ou co-produzir com recursos próprios quase quatro dezenas de documentários, em diferentes metragens, que tinham a intenção de mostrar aos brasileiros as várias e mais verdadeiras caras do Brasil. Essa penca de filmes,que hoje voltam a circular principalmente nos canais de cinema de TV a cabo, está dentro de um original empreendimento que justificadamente tomou o nome de Caravana Farkas. O que era isso? De São Paulo partiam pequenas equipes lideradas por diferentes cineastas dispostas a desbravar o país. Seguiam rumo ao Norte, ao Nordeste, ao Sul e ao Centro-Oeste, cavoucavam o Sudeste, a própria São Paulo, numa ânsia impressionante de revelação de quem somos, afinal. Mas Thomaz Farkas não foi só o produtor de tantos filmes. Fotógrafo de belas imagens, preocupado com a mesmice supostamente clássica do enquadramento que dominava a fotografia brasileira na década de 1940, por isso um renovador de linguagem,ele foi ensinar fotojornalismo por algumas décadas na Escola de Comunicação da Universidade de São Paulo (USP). E já que estava na USP, viu-se impelido a fazer um doutorado. Em sua tese, que será transformada em livro pela Cosac Naify, tratou da produção dos documentários no Brasil. Formado em engenharia pela Politécnica da USP,fez muito pouco com esse diploma,porque afinal ainda tinha que dar conta de seu trabalho de empresário: Farkas era dono da Fotoptica. Na entrevista a seguir ele fala um pouco e com muito humor, quase sempre, sobre essas várias facetas. E oferece de presente para os leitores de Pesquisa FAPESP as maravilhosas fotos de sua autoria que estão nas quatro páginas centrais do espaço dedicado à entrevista. Ah, em tempo: no filme de Walter Lima Júnior, cujo título é Thomaz Farkas, brasileiro, ele confessa que “teria escolhido a Bahia”se lhe fosse dado o direito de escolher um lugar para nascer.
■ O senhor é que foi apanhá-los. — É, porque você sabe como é, o cara que foge por razões políticas de um lugar vem com uma mão na frente, a outra atrás. Eu conheço isso, esse negócio de refugiado... A minha família é judaica, eu saí da Hungria em 1930.
■ Você leu a entrevista de Fernando Birri[em Pesquisa FAPESP edição 127]? Ele faz uma referência a você no começo... — É porque somos muito amigos, e desde que ele veio para o Brasil,na primeira vez,era para nos ajudar. Alguns argentinos chegaram aqui fugidos. O Maurício Berú, que era também cineasta, chegou e me telefonou do aeroporto,“Olha, estamos aqui, eu, minha mulher e dois filhos”.
■ Antes de falarmos de fotografia, falemos da sua experiência com o documentário. — Nós fizemos uma viagem exploratória pelo país, o Geraldo [Sarno], Paulo Rufino e eu em 1967 e 1968. Fomos de jipe. Eu tinha algumas idéias, eles também, e a primeira era filmar a revolução do Julião em Pernambuco.
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■ Mas o seu pai veio fugido também? — Não, papai veio desempregado. Ele era desenhista numa fábrica de armas na Hungria. A Hungria perdeu a guerra, a fábrica fechou e ele saiu da Hungria. Foi para vários lugares. Meu tio, irmão dele, já conhecia o Brasil. Ele foi buscar o papai e mandou ele para cá, para fundar a Fotoptica, em 1920. Acho que nessa época, no setor, só tinha a Lutz Ferrando, se não me engano. ■ A Conrado Wessel não existia ainda? — A fábrica? Sim, existia. Eu tenho uma carta ótima do seu Conrado. Ele era uma pessoa maravilhosa. Bom, o papai veio, fundou a Fotoptica, aí voltou para a Hungria, casou com a minha mãe e eu nasci em 1924. E vim para cá em 1930.Ah, queria contar de uma primeira filmagem. Do Pixinguinha. Eu filmei o Pixinguinha em 1954, na inauguração do Ibirapuera. Li no jornal que Pixinguinha ia tocar com sua banda, e naquela época tinha pouca música regional brasileira, tinha muita música americana, européia...Vi aquilo, peguei meu filmador, 16 milímetros, mudo, e um tripé. ■ Era uma maquininha importada dos Estados
Unidos. — Kodak. Uma máquina muito boa. Tenho até hoje guardada. Eles tocavam e dançavam ao mesmo tempo, todos, e era um espetáculo maravilhoso. Filmei acho que oito minutos, eram dois rolinhos de 100 pés, quatro minutos cada um, e o que sobrou de filme eu filmei em casa, os meus filhos na banheira, coisa familiar. Isso faz 52 anos. O filme ficou perdido lá no meu escritório. E um dia, há uns quatro, cinco anos, eu começo a arrumar um pouco as coisas e, de repente, acho um filmezinho. O que era? O Pixinguinha em negativo! O filme era mudo. Revelei e achei uma maravilha.Tinha sete,oito minutos.Aí ampliei para 35 milímetros e fui ao Instituto Moreira Salles para ver se descobriam a música que estavam tocando. Descobriram, tudo bem. E agora, um ano, dois anos atrás, eu falei com o Ricardo Dias,que é meu amigo – ele fez o filme Fé –, e ele fez o filme comigo. Dá dez minutos. É uma maravilha, eles tocando e dançando. Você vê a faca no prato, vê o pandeiro... E eu comemorei isso.
■ As Ligas Camponesas de Francisco Julião.
— É, mas acontece que o [Eduardo] Coutinho nessa época estava lá, e a repressão caiu em cima dele. Resolvemos não ir, e como eu tinha um equipamento que acabara de chegar, ficamos pensando o que iríamos fazer. Fomos até o Ceará, Maranhão, Paraíba... Fomos olhar. E Sérgio Muniz, mais tarde, também foi olhar. Quer dizer, teve gente que percorreu várias regiões com a idéia de mostrar o Brasil aos brasileiros.Achei que essa era a maior revolução que podíamos fazer, porque os brasileiros não conheciam o Brasil, não existia a televisão para mostrar tudo. Então eu achava que mostrar o gaúcho para o paulista,para o nordestino,e vice-versa,era uma novidade que poderia eventualmente provocar uma revolução,pelo menos de cabeça.Levei até a TV Cultura os quatro primeiros filmes para ver se eles queriam passar, mas como era época de ditadura, alguém me falou, “Olha, tem muita miséria”. E aí eu expliquei, “Isso não é miséria, isso é como as pessoas vivem”.E ele,“É,mas nessa época de ditadura eles vão pensar que eu estou querendo mostrar uma coisa feia...” Então nada se passou na televisão naquela época. ■ Como eram feitas essas viagens, Nordeste aden-
tro, depois um pouco pelo Sul etc.? — Eu tinha uma C-14 [caminhonete Chevrolet]. Antes disso tinha um jipe e a filmagem toda foi feita usando esses carros. O Sérgio Muniz foi para o Sul. ■ Aconteceram as viagens exploratórias e depois vocês voltavam para fazer os documentários? — Alguns filmes já haviam sido feitos antes, a partir de 1964. Fizemos essa exploratória e depois nos reunimos com a questão: “O que vamos fazer?” Eu tinha em mãos um estudo feito por um professor de geografia dizendo o que tinha em cada lugar do Brasil, o que era cultivado etc. Naquele momento o Glauber [Rocha] pediu para Geraldo Sarno vir para cá, porque ele estava atrapalhado lá em cima. Você sabe, Glauber era baiano,Geraldo é baiano de Poções, tudo baiano... O Geraldo veio para se juntar ao grupo. No início dos anos 1960, o professor [Vilanovas] Artigas me disse, “Olha, tem um pessoal aí que estava mexendo com cinema, você não quer se juntar a eles?” Era o Capô [Maurice Capovilla] e o Vlado [Vladimir Herzog], que tinham vindo acho que da escola. ■ Tinham vindo da Escola de Cinema de Santa Fé. Eles tinham passado antes de 1963 por lá, com Fernando Birri. — Exatamente. Então eles traziam uma experiência, Geraldo trouxe outra experiência, e ele indicou Paulo Gil [Soares], que era uma pessoa maravilhosa, e nasceu o plano: pegar a C-14, o equipamento que eu tinha e subir. Um cinegrafista, um diretor, eu dirigindo o carro. Eram poucas pessoas, mas muito competentes, começando a filmar os projetos que tínhamos feito. ■ E o seu papel era de uma espécie de coordenador, de produtor geral desse projeto? — Era produtor.Eu tinha que arranjar o dinhei-
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ro,tinha que pagá-los,tinha que comprar material, mandar revelar. ■E
como é que se levantavam os recursos naquele momento? — Não se levantavam, era eu diretamente que colocava o dinheiro.
■ Você foi, portanto, o grande financiador do documentário brasileiro. — Eu tinha essa possibilidade, na Fotoptica. Tinha um dinheiro que eu ganhava, mesada, enfim, e tinha juntado. Também não eram os salários de hoje, eram salários normais. Hoje os preços estão lá em cima. Mas as coisas começaram a andar. Por exemplo, tinha um plano de ir para o Crato. Fomos e filmamos o que tinha de interessante. Depois fomos até uma cidade próxima,onde descobrimos uma porção de outras coisas: casa de farinha, fábrica de bomba... O que tinha na região nós filmamos. ■ A idéia era filmar como vive o brasileiro de cada lugar, qual era a sua produção real. — Como ele vivia. Então a gente fez, em vez de 10, 20 filmes, 30 filmes. No total, contando os que foram feitos antes e depois dessas viagens, dá 39 filmes,entre 1964 e 1980.Também há longa-metragem, tem filmes produzidos em São Paulo. Viramundo, por exemplo, foi feito aqui, em 1965.Fizemos filmes no Sul,como Andiamo In’mérica [1977-78], que é sobre os imigrantes italianos. Enfim, fizemos um monte de coisas. ■ A maioria dos filmes tinha de 10 a 15 minutos? — Digamos de 10 a 40 minutos. Alguns davam longa. Por exemplo, Sérgio Muniz filmou Andiamo In’mérica como um programa que a Embrafilme queria financiar para passar na TV. Mas ele viu que tinha material para dois filmes de 40 minutos. Fez também o Rastejador, s.m. [1970], que é sobre um cara que ajudava a encontrar rastros de cangaceiros na caatinga. Ao mesmo tempo, fez Beste [1970], sobre esse mesmo rastejador fazendo uma beste para matar bichinho. A beste é um arco-e-flecha pequenininho. A montagem era em minha casa, no Pacaembu. Eu tinha tudo: mesa de montagem, câmera e gravador.
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■ É algo que juntou pedaços de Viramundo, Memórias do cangaço, Nossa escola de samba [1965] e Subterrâneos do futebol [1970]? — Não, esse foi o Brasil verdade. O Pierre veio porque eu tinha um amigo que era amigo do Glauber, Claude Antoine. Bem, quando Pierre Kast quis fazer uma série aqui para a televisão francesa, Claude Antoine trouxe o produtor francês, eu me juntei a ele, e cada um de nós entrou com um dinheiro para financiar esse Carnets brésiliens,que é uma maravilha,narrado em francês, exibido na televisão francesa. ■ E nesse Carnets brésiliens se juntam muitos pedaços dos documentários? — É um filme sobre a cultura geral do Brasil, algo mais urbano. Na verdade Pierre trabalhou bastante, fez tudo sozinho. Por exemplo: o filme sobre o Vinicius de Morais, que saiu agora em DVD,tem dois trechos que estão no Carnets: a turminha da favela dançando e a filmagem colorida na casa de Vinicius. ■ Como era a sua ligação com a Associação Bra-
sileira de Documentaristas, criada em 1975, se não estou enganada? — Os documentaristas brasileiros éramos nós. Quer dizer,antes de nós tinha o León Hirszman, que fez um filme sobre Brasília. ■ Ainda assim, a sua vontade era desenvolver um
pólo de documentários em São Paulo? — Olha, éramos um grupo. Eu não ia fundar nada, nem ia fazer grupo, mas ali estava a turma que trabalhava comigo naquela época. ■ Como era para você conciliar a produção de do-
cumentário com a fotografia e ainda cuidar da Fotoptica? — Na Fotoptica eu tinha sócios e eles tocavam a empresa. Eu passava por lá, voltava para casa para cuidar de algumas coisas, cuidar da revelação. De vez em quando ia ver como é que o pessoal estava filmando. A fotografia, nessa época, ficou meio abandonada. Outro dia fui na casa da minha filha, Beatriz, ver os destroços arquivados da minha vida e vi os negativos das fotografias feitas nas filmagens. Tem muitos.
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Na nossa área éramos muito unidos politicamente. D e certa forma, penso que a nossa visão política era uma só, era uma visão de transformar as coisas, melhorar as coisas. Até hoje eu tenho isso.
■ Fotos de cena? ■ E todos os documentários foram filmados em 16
milímetros ou já em 35? — A maior parte deles era em 16.Mas tinha também em 35,como o Memória do cangaço [1965], de Paulo Gil. Exibíamos no circuito universitário, circuito paralelo. Lembro quando veio para cá o Joris Ivens, um documentarista holandês maravilhoso, ele trouxe O céu e a terra, um filme que tinha feito no Vietnã. Projetei esse filme em casa, e alguém levantou e disse,“Isso é coisa de comunista”,e foi embora.E eu fui parar na polícia, preso, por causa disso e outras besteiras. ■ Foi já nos anos 1970 que você fez um acordo com
o cineasta francês Pierre Kast, não é? — Não lembro. Eu tenho aqui o filme que se chamava Les carnets brésiliens.
— Fotos de cena e de ambientação. Birri e Edgardo Pallero, argentinos, tinham muito a mania de fotodocumental. Quer dizer, eles tiravam fotografia do que queriam fazer,montavam, trabalhavam com a fotografia antes de filmar, porque era caro filmar e fotografar era mais barato.Aí formou-se o grupo de que falei e eu ajudei a financiar os documentários naquele momento porque podia. Hoje não poderia mais. ■ Mas eu sou testemunha de que seu empenho em apoiar a produção de documentários no Brasil que lhe parecessem importantes permaneceu para muito além. Em 1978, às vésperas do I Congresso Brasileiro da Anistia, Agnaldo Siri Azevedo, Rino Marconi e Timo Andrade (mais adiante, Roman Stulbach se juntou ao grupo) estavam bus-
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A foto à esquerda e na página ao lado fazem parte da série surrealista que fiz com colegas da Politécnica e amigos. Naquele tempo estávamos impressionados com esse movimento
e decidimos fazer experiências.
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Fotografei esta barragem durante uma excursão com colegas da Politécnica ao interior de São Paulo, também na década de 1940.
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Juscelino Kubitschek desce do carro na inauguração de Brasília, dia 21 de abril de 1960. Note que não há militares impedindo as pessoas de se aproximar do presidente.
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Também na inauguração da nova capital as pessoas chegaram às portas do Palácio do Planalto com toda a liberdade, sem impedimento. Isso é algo impossível hoje.
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As telhas foram fotografadas na década de 1940. Não teve um motivo especial para fazer, não. São coisas que eu vejo e fotografo.
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cando recursos para viabilizar o projeto de um curta, posteriormente batizado de Anistia 1978 d.C., sobre o assassinato pela ditadura, em 1973, de dois militantes da Ação Popular: Gildo Macedo Lacerda e José Carlos Novaes da Matta Machado.Aliás, em 2005, eles foram alvo, junto com três outros estudantes da instituição naquela época, de uma bela homenagem da Universidade Federal de Minas Gerais. Bem, o fato é que o grupo foi procurálo e você simplesmente deu todos os negativos necessários para viabilizar a filmagem. — Eu nem lembrava. Mas em nossa área éramos muito unidos politicamente. De certa forma penso que a nossa visão política era uma só, era uma visão de transformar as coisas, melhorar as coisas. Até hoje eu tenho isso. Eu sou um otimista delirante.
O que sempre me interessou foi gente, usos, costumes, o que é o Brasil. Eu gostava muito, ainda gosto. Q uando viajo sempre levo a máquina e vejo o que tem. ■ Você era ligado ao Partido Comunista Brasi-
leiro (PCB), o Partidão? — Não, eu era simpatizante. Eu contribuía para essas coisas que entendia como importantes, mas não me vinculava ao partido. Para ser do partido tinha que ter disciplina, estudar Marx, Engels. Nunca me liguei a nenhum partido. ■ Então, tratava-se de contribuir para produções que lhe parecessem carregar uma idéia de transformação? — Era isso. Dei para um filme sobre Lula as imagens que tinha dos primeiros comícios dele. Filmar em película hoje é muito caro, mas de certo modo tudo mudou porque se faz em digital. Então isso é uma revolução muito interessante. Nós filmávamos 3 metros para aprovei-
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tar 1. Hoje, com o digital, você filma 100, 150 metros, para 1. Quer dizer, o pensamento de pesquisa antigamente era feito na cabeça. Hoje você filma e depois vê o que deu, o que é muito diferente.Pode ser ótimo e pode ser uma besteira. Fotografia moderna é a mesma coisa no digital. Você tira mil fotografias para aproveitar 10 ou 20.Antigamente você aproveitava quase tudo porque custava caro revelar e copiar. ■ Esse era um problema bem sério para as primei-
ras décadas do cinema brasileiro, não? — Compra de filmes, revelação, depois tinha a equipe que já era cara, a máquina era alugada. De qualquer jeito eu acho que, para mim, a coisa principal sempre foi isso daqui, que eu vou mostrar para vocês. Isso aqui era a coisa mais importante... ■ Ah, a máscara.
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... que eu tinha porque, como fotógrafo, e como pessoa, vejo sempre as coisas assim [Farkas olha através da moldura de papelão, enquadra literalmente o que está olhando]. ■ Aí entra em cena toda a noção de enquadra-
mento que você desenvolveu... — A gente vê isso que enquadra, entende? É o que me interessa que estou vendo, eu não estou vendo tudo. Embora minha visão vá de um lado a outro, estou sempre concentrando. E mesmo a fotografia depois de ampliada eu corto um pedaço, decido: não vou ampliar tudo. Então, para mim, fotografia é visão.A realidade não está na fotografia. ■ Essa sua compreensão sobre enquadramento na fotografia, que vem dos anos 1940, influenciou bastante, décadas depois, o ensino de fotografia nas escolas de comunicação. — Penso que sim. Mas cada um, cada cineasta, cada fotógrafo, tem a sua maneira de ver. A minha era essa. ■ Qual era o problema com a fotografia feita an-
terior aos anos 1940? — Era cópia fora de época de coisas antigas, clássicas. Eu fugi disso. ■ Que máquinas fotográficas você continua usando? — Eu tinha Nikon, mas ficou pesada e meu médico falou, “Se você continuar a trabalhar com essa máquina vai ficar corcunda”. Comprei uma Leica, que é levezinha, mas eu tenho ainda a Rolleyflex. ■ Usa câmera digital?
— Não. Tenho tanto material acumulado para organizar que não sobra tempo. ■ Vamos falar de sua vida de professor: a sua ida para a Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP foi para ensinar fotojornalismo? — Quando eu vi que ia se formar a ECA, eu pensei,“Isso me interessa porque eu faço cinema, e eles podem querer um professor de ci-
nema”. Fui lá, procurei o Rudá [de Andrade], que era meu amigo, e o professor [José] Marques de Melo, e me ofereci, “Quem sabe vocês precisam de mim no departamento de cinema”. Mas esse departamento já tinha um professor de fotografia e Rudá propôs que eu ensinasse fotojornalismo. Então eu ensinei muitos anos o pessoal da escola de jornalismo a tirar umas fotografias, porque muitas vezes o repórter vai sozinho a campo, não tem fotógrafo junto, e assim ele mesmo pode fazer a foto. Tive alunos muito bons, alguns maravilhosos. Já com os professores era mais difícil. ■ Qual era o problema com os professores? — Muita inveja,muita disputa,e eu sempre quis ficar fora disso. ■ E por que você fez doutorado? — Eu tinha que fazer para permanecer na escola. O tema foram os filmes. E as coisas terminaram sendo muito interessantes porque a primeira banca proposta não foi aceita pelo diretor da escola. Faziam parte dela Paulo Emílio Salles Gomes e Maria Isaura Pereira de Queiroz. ■ Qual foi o argumento usado contra a banca? — Inventaram que o Paulo Emílio e a Maria Isaura eram doutores novos. O meu orientador, o Flávio Motta, que era um gênio, fez uma resposta maravilhosa para o diretor, o reitor, estraçalhando as alegações. Mas eu só pude defender a tese muito depois. Escrevi em 1972 e defendi acho que em 1974,1975,com outra banca.Agora a editora Cosac Naify quer editar um livro porque é a primeira tese sobre documentário feita no Brasil. Espero que o livro saia enquanto estou vivo. ■ Temos aqui no anexo de fotos da tese o Paulo Gil
com a equipe em Taperoá, o fotógrafo Afonso Beato, hoje muito premiado... — Ele trabalhou conosco. É um fotógrafo maravilhoso. E aqui estão Lauro Escorel, Geraldo Sarno,Edgardo Pallero,que veio de Santa Fé e ficou aqui no Brasil.Aliás,eu sempre conto a mesma história: ele ficou porque tinha um jeito particular de lidar com o pessoal daqui. Fernando Birri, por exemplo, marcava encontro com os cineastas às 10 horas,em algum lugar no Rio.Ele ia, os cineastas não apareciam. Ele ficava louco. Pallero marcava às 10h,os cineastas não estavam, ele ia na praia e encontrava todo mundo.Era essa uma grande diferença entre os dois. O Pallero, que já morreu, era um grande professor. ■ Você disse que nunca trabalhou com fotojornalismo e ia falar alguma coisa sobre seu trabalho como fotógrafo. — É que eu sou um fotógrafo marginal – não sou amador, mas também não sou um profissional, não vivo disso. Gostaria, mas não vivo. ■ Você nunca ganhou dinheiro com seu traba-
lho fotográfico? — É, nem com o cinema. Aliás, com o cinema agora está entrando um dinheirinho.A TV
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Senado comprou um lote de mais de 20 filmes, o Canal Brasil comprou... E, embora eu tenha os direitos, distribuo uma pequena parte para todos os diretores. Todos recebem uma parte correspondente à minutagem. Eu não devo a ninguém. ■ Como foi a proposta que César Lattes lhe fez
de fotografar experiências que ele estava realizando com raios cósmicos? — Ele era meu amigo. Quando teve um problema de fotografar suas experiências, ele me chamou,“Quero fotografar o raio passando por aqui”. Eu disse,“Como é que eu vou fazer isso?” Aí inventei um sistema de botar a máquina num local fixo e abrir o obturador até passar o tal do raio. Parece que deu certo, mas não tenho certeza. ■ Você chegou a acompanhar essa experiência dele?
— Só essa. Aquilo era muito avançado para mim. As coisas que ele falava eram muito complicadas. ■ Ele certamente queria detectar raios cósmicos
que se chocam com partículas da atmosfera terrestre e dão origem a outras partículas difíceis de serem detectadas e registradas nas placas fotográficas daquela época. — É, quando passavam em algum lugar se tornavam visíveis. E justamente aí precisava fotografar. ■ Onde vocês fizeram essas experiências? — Na Poli, se não me engano. Saí da Poli em 1946, 1947, engenheiro formado em mecânica e eletricidade.E praticamente nunca exerci a engenharia. Projetei o laboratório da Fotoptica e depois o laboratório de fotografia da ECA.Acho que foi destruído. Era um laboratório muito interessante, com dez ampliadores, para dez fotografarem e revelarem as suas fotos, um negócio muito bonito. ■ O que levou você à engenharia?
— Eu sou de 1924. Quando cheguei à idade de cursar universidade,estávamos em guerra.Nessa época ainda era húngaro e a Hungria estava do outro lado. E não podia estudar cinema, que eu adorava. Queria estudar fora, nos Estados Unidos ou na Europa,mas com a guerra não podia ir. Reunimos a família para discutir.“O que você quer estudar? Porque vai ter que estudar agora,não vai parar.Quer ser advogado?”Eu não queria. “Quer ser médico?” Não queria. “Quer ser filósofo?”Nem sabia o que era isso, não passava pela minha cabeça.“Você quer fazer engenharia?” Decidi,“Está bom, vou fazer engenharia”. E assim entrei no pré da Politécnica. ■ Por exclusão. — Sim, era uma coisa mais palpável. Fiz dois anos de pré na Politécnica. A gente entrava por concurso. Depois do concurso sobraram sete alunos,eu entre eles.Porque tinha 50 vagas,mas 57 passaram.Fizemos uma campanha para deixar entrar os sete excedentes. E conseguimos.
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■ Saiu da Poli e caiu na Fotoptica? — Sou filho único. Minha mãe trabalhava no caixa, o papai na loja, com os empregados. E eu ajudava a atender no balcão. Sempre trabalhei na Fotoptica enquanto podia. ■ Como se deu a expansão da Fotoptica? — Depois da minha formatura, veio gente de outros lugares,veio um cara da Mesbla,abrimos a loja na rua Conselheiro Crispiniano e fomos abrindo outras filiais. A última etapa foi quando tomamos dinheiro emprestado de banco para reformar tudo, colocar laboratório e equipamentos modernos de ótica, para transformar tudo numa maravilha. Já tinha umas 20 e tantas lojas. Acontece que os juros do banco, de repente, se tornaram impossíveis de pagar. E nesse momento vendemos para um banco. ■ Quando? — Faz sete ou oito anos. A gente dividiu o dinheiro entre meus quatro filhos, minha ex-mulher e eu. Ficou um pouquinho para cada um. ■ Como você se vê? Como fotógrafo, uma espécie de mecenas do cinema documentário brasileiro, como empresário ou como professor? — Nunca me entendi como mecenas. Era uma ambição política fazer aqueles filmes. E evidentemente era a época para isso. A minha vida é imagem. Meus filhos quase todos trabalham com imagem. O Pedro é fotógrafo, o João foi fotógrafo, o Kiko é arquiteto... A Beatriz é pedagoga, não mexe com imagem. Agora, eu tenho uma neta, a Maria, filha do Pedro, que já é assistente de cinema. É a quinta geração. Meu avô tinha loja de fotografia na Hungria.Então era meu avô, meu pai, eu, o Pedro e agora a Maria. São cinco gerações. Tenho uma outra neta que estuda na Faap [Fundação Armando Álvares Penteado] e já está fazendo filme também. ■ Por falar em ambição política, você foi preso nos
anos 1970? — Já nem lembro exatamente em que ano foi. Sei que foi depois de uma denúncia. Alguém disse que eu tinha vendido binóculos militares para a guerrilha. Binóculo militar é feito especialmente para o Exército, não se vende ao público. Fui preso, me interrogaram... ■ Foram até sua casa para prendê-lo? — Foram na Fotoptica. Sentei no meio de dois caras,não sabia o que era,e me perguntaram uma porção de coisas.Eu dizia,“Olha,não é nada disso”.E fiquei lá na rua Tutóia [sede do II Exército de São Paulo] uma semana. E o pessoal começou a se mexer. Não fui maltratado, mas vi o pessoal saindo da maltratação. O meu filho Pedro era menor de idade e ficou preso alguns meses. ■ Por quê? — Porque ele fazia reuniões na casa do Guarujá. Então ele tinha uns amigos... Era a juventude que participava disso, que fazia planos. Eu não sabia. Não tinha conhecimento de tudo. Eles tinham independência.
■ Você pensa que a maneira como a cultura e a
política foram tratadas nos anos da ditadura ainda projetam reflexos hoje? — Eu acho que se interrompeu um processo natural de desenvolvimento brasileiro. Quer dizer, houve um corte. E para você refazer o corte da árvore... Eu não sei até hoje qual é o efeito disso,não,mas teve efeito.Mudou a cabeça das pessoas, tudo mudou. ■ Havia uma certa noção de como se criava um tipo de desenvolvimento de um país a partir dessa atividade cultural? — Era uma coisa de levantar idéias. Levanta, turma, pensa, pensa o que é o Brasil, como é o Brasil, como é a grandeza dessa terra, a variedade, as pessoas mais diversas... É um negócio fantástico. E houve interrupção, que dura até quase hoje. ■ As possibilidades de ligação cultural que tínha-
mos com a América Latina foram abortadas naquele momento? — Não, pode esquecer a idéia de ligação entre o Brasil e o resto da América Latina. Existia talvez com a Argentina,um pouco com o Uruguai. O Chile era muito longe e para o resto da América não tínhamos nem avião. Hoje você tem ligação com tudo.Antigamente tínhamos ligação com Europa e Estados Unidos. Só. ■ Não havia um movimento latino-americano? — Não tinha. Depois é que se começou a estudar o movimento para tentar fazer. Fomos a uma reunião em Viña del Mar, mas isso foi depois. A convergência latino-americana foi mais tarde. Guido [Araújo] tentou fazer primeiro a brasileira, depois a latino-americana e agora é jornada internacional. ■ Como é que você vê as linhas de desenvolvimen-
to do cinema brasileiro hoje? — Acho que tem um progresso muito grande. Tanto de idéias como de realização. Tem coisas muito boas. Não sei onde vai parar, onde vai bater. Mas acho que vai bem. ■ Isso permite uma nova reflexão sobre nós mesmos, que país nós construímos? — Provavelmente. Você vê os gaúchos, por exemplo, fazendo filmes muito interessantes. São diferentes dos filmes feitos aqui em São Paulo. O pessoal também vai para o Norte e Nordeste filmar coisas interessantíssimas. O Zelito [Viana] vai lá para o interior, mexe com os índios... Então há um começo de conhecimento, sim. ■ Você sempre fotografou os temas que quis? — O que sempre me interessou foi gente, usos, costumes, o que é o Brasil. Eu gostava muito, ainda gosto e faço o que eu posso. Quando viajo sempre levo máquina e vejo o que tem. ■ E você fica mais aqui ou em Paraty? — Aqui. Porque minha vida social e cultural é aqui. Paraty é um paraíso.
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> POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA ESTRATÉGIAS
MUNDO
> Instituto Pasteur vai ao Uruguai O presidente do Uruguai, Tabaré Vázquez, inaugurou em dezembro a primeira sede na América Latina do prestigiado Instituto Pasteur. O Instituto Pasteur de Montevidéu, construído numa área de 3 mil metros quadrados e fruto de um investimento de US$ 8 milhões, vai especializar-se no estudo do câncer e do envelhecimento, e na área farmacêutica humana e animal.“O centro tem uma função muito clara em nosso país, que é dotar de instrumentos o mundo acadêmico e industrial que nos permitam passar para uma nova etapa”, disse à rádio El Espectador o diretor executivo do instituto, Guillermo Dighiero. Outro objetivo é formar jovens pesquisadores e propiciar a volta de cientistas uruguaios que foram morar nos Estados Unidos e na Europa. Num primeiro momento, 50 pesquisadores trabalham no centro, mas o número deve subir para 150 até o final de 2007.
Artigos quentes na malha fina Numa nova estratégia para prevenir fraudes, a revista Science anunciou que promoverá uma aferição extra de artigos científicos considerados de “alto risco”. A iniciativa segue a orientação de um comitê externo convocado para avaliar as fraudes praticadas pelo sul-coreano Woo Suk Hwang. Em artigos publicados na Science em 2004 e 2005, o pesquisador descreveu, pela primeira vez, a clonagem de embriões humanos. E afirmou que, a partir deles, obteve li-
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nhagens de células-tronco embrionárias, o que comprovaria a validade da clonagem terapêutica. No final de 2005, a proeza virou escândalo: os resultados foram fabricados. A decisão da Science revoga a presunção de que pesquisadores são pessoas honestas. “Agora, pelo menos para alguns artigos, a tarefa será provar que os cientistas não estão mentindo”, disse à revista Nature Sheldon Krimsky, especialista em bioética da Universidade Tufts. O comitê isentou a
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Science de responsabilidade no episódio, mas sugeriu a criação da malha fina. O editor chefe da Science, Donald Kennedy, está desenvolvendo critérios para definir que tipo de artigo será rechecado. “Devem entrar nessa categoria artigos de grande interesse público, que apresentem resultados inesperados ou se refiram a áreas que despertam controvérsias políticas”, disse. Eles receberão atenção especial, como a análise intensiva de dados primários e de imagens.
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> Confissão de culpa Pivô de uma crise entre deputados norte-americanos e os Institutos Nacionais de Saúde (NIH), o especialista em Alzheimer Trey Sunderland declarou-se culpado de crime de conflito de interesses. Ele admitiu ter recebido US$ 285 mil como consultor da empresa farmacêutica Pfizer e é suspeito de partilhar dados de suas pesquisas com a empresa. Sunderland administrou uma unidade de
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> A geografia
> O brado
da malária
•
> Sinal verde na Austrália Parlamentares australianos desafiaram o primeiro-ministro John Howard e deram sinal verde para pesquisas com célulastronco embrionárias.A decisão, recomendada em 2005 por um comitê científico convocado
pelo Parlamento, coloca um ponto final num período de quatro anos em que esse tipo de pesquisa permaneceu proibido no país. O pesquisador Alan Trounson, da Universidade Monash, em Melbourne, disse ao site da revista Science que os cientistas estão “orgulhosos” com a votação de 6 de dezembro na Câmara Baixa. A lei foi aprovada com 82 votos a favor e 62 contra. O Senado já havia aprovado o projeto em uma votação realizada em 7 de novembro. A nova lei começa a vigorar dentro de seis meses, o que coincidirá com o encontro anual da Sociedade Internacional para a Pesquisa de Células-Tronco, que acontecerá em junho em Cairns, na Austrália. “O moral da comunidade científica australiana elevou-se dramaticamente com a nova lei”, disse o australiano Martin Pêra, que hoje dirige o centro de células-tronco da Universidade da Califórnia, Los Angeles.
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Pesquisadores da Universidade Oxford, da Inglaterra, e do Centro de Medicina Geográfica do Quênia lançaram um mapa on-line que aponta as regiões no mundo submetidas a alto risco de malária. O objetivo do Projeto Atlas da Malária (MAP, na sigla em inglês) é orientar políticas públicas de combate à doença que infecta cerca de 400 milhões de pessoas, matando 1 milhão por ano. A ferramenta associa dados coletados por pesquisas regionais aos mapas do serviço Google Earth, feitos a partir de imagens fotográficas de satélites. De acordo com os coordenadores do projeto, Simon Hay e Robert Snow, os dados sobre a malária no mundo são incompletos e pouco confiáveis. O Quênia, por exemplo, teria registrado apenas 135 casos de morte por malária em 2002. A missão do MAP, segundo eles, é desenvolver um modelo detalhado de limites espaciais da doença em escala mundial. O site é publicado em inglês, com traduções em espanhol e francês. Os pesquisadores publicaram artigo sobre a nova ferramenta na PLoS Medicine, periódico da Public Library of Science. O MAP é financiado pelo fundo Wellcome Trust, do Reino Unido.
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Aos 91 anos de idade, a Nobel de Medicina italiana Rita LeviMontalcini liderou uma campanha que evitou um corte drástico no orçamento de ciência e tecnologia de seu país. No posto de senadora vitalícia da Itália, Rita insurgiu-se contra os cortes indiscriminados e ga-
Rita: apelo emocionado
rantiu a manutenção de recursos para a contratação de 2 mil jovens pesquisadores nos próximos três anos.“A Itália é pobre em recursos naturais mas rica em capital humano.Se perdermos isso, vamos naufragar”, disse, num apelo emocionado. Salvaram-se os cargos da nova geração de pesquisadores, mas os cortes chegarão a 13% no orçamento de algumas instituições. O premiê Romano Prodi enfrenta pressões da União Européia para cortar o déficit público do país.
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ILUSTRAÇÕES LAURABEATRIZ
pesquisa geriátrica para o Instituto Nacional de Saúde Mental. Segundo a agência Associated Press, a admissão de culpa fez parte de um acordo do cientista com procuradores federais para livrar-se da cadeia. Ele foi condenado a dois anos de liberdade condicional, 400 horas de serviços comunitários, perda de US$ 300 mil e multa ainda não definida. Em meados de 2006,uma comissão do Congresso norte-americano havia interpelado duramente o NIH por não ter afastado Sunderland de seus quadros.
da senadora
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> POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA ESTRATÉGIAS
MUNDO
CIÊNCIA NA WEB
LAURABEATRIZ
Envie sua sugestão de site científico para cienweb@trieste.fapesp.br
Informação socializada Um novo sistema de informações ajudará países pobres a se prevenir contra desastres naturais. Segundo a agência de notícias SciDev.Net, o GeonetCast dará a nações em desenvolvimento acesso a dados obtidos por satélites e estações climáticas lançados por países desenvolvidos. Para receber as informações, os usuários terão de comprar um equipamento e gastar US$ 1,5 mil a título de taxa de adesão. O sistema combina dados de satélites operados pela China, Europa e Estados Unidos, e foi apresentado em novembro numa conferência do Grupo de Observações da Terra em Bonn, na Alemanha. Dados sobre a velocidade e a direção do vento e a temperatura da superfície ajudarão a conter incêndios florestais. Informações sobre umidade do solo, chuvas e cobertura vegetal podem auxiliar a prever estiagens. “Decisões rápidas requerem dados atualizados e a maioria dos países pobres não tem a estrutura necessária”, disse Philemon Mjwara,diretor do Departamento de Ciência e Tecnologia da África do Sul. O grupo do projeto GeonetCast é organizado pela China, Es24
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www.museus.gov.br
tados Unidos, a Organização Meteorológica Mundial e a Eumetsat, que opera satélites climatológicos europeus.
O portal do Sistema Brasileiro de Museus traz um cadastro das instituições e a legislação do setor, além de informações sobre eventos.
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> Tesouro devolvido O governo da Grécia obteve uma vitória em seu esforço para reaver patrimônio histórico roubado. O J. Paul Getty Museum, de Los Angeles, aceitou devolver uma coroa funerária macedônia de ouro, do século IV a.C., e uma estátua de mármore de uma mulher, do século VI a.C., após uma década de disputa com as autoridades gregas. Duas outras esculturas já haviam sido devolvidas no começo do ano. O museu de Los Angeles foi o alvo principal da investida dos governos da Grécia e da Itália para reaver relíquias. A antiga curadora do museu, Marion True, foi acusada de comprar 35 artefatos roubados da Europa entre as décadas de 1980 e 1990. Segundo o ministro da Cultura da Grécia, Giorgos Voulgarakis, o acordo não interromperá a investigação sobre o roubo das peças.
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circumscribere.incubadora.fapesp.br
A primeira revista eletrônica de acesso aberto especializada em história da ciência foi lançada pelo Centro Simão Mathias, da PUC-SP.
www.sbpcnet.org.br/
O site da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência ganhou novos layout e seções, como a de memória, que conta a história da instituição.
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O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) concluiu a coleta de dados do sétimo censo de grupos de pesquisa no Brasil. Foram levantados cerca 21 mil grupos em atividade no país. Os resultados completos serão divulgados em 2007. O censo anterior, realizado em 2004, identificou 19.470 grupos e 77.649 pesquisadores, sendo 47.973 doutores.
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> De politécnico para politécnico O estudante de engenharia de transportes Moisés Ribeiro Abdou foi agraciado com o 1º Prêmio AEP - Poli de Iniciação Científica, concedido pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e pela Associação dos Engenheiros Politécnicos. Ele vai dividir com sua orientadora o prêmio de R$ 12 mil, que será utilizado em uma viagem para conhecer a Escola Politécnica de Paris. A novidade do prêmio é que o dinheiro não veio de nenhuma agência de fomento nem do orçamento da universidade, mas sim do bolso dos ex-alunos da Escola
Politécnica, entre eles empresários e executivos, ligados à AEP. O trabalho vencedor,“Pavimento ecológico: uma opção para a pavimentação de vias das grandes cidades”, propõe a utilização de resíduos da construção civil em camadas de pavimentos. O projeto analisou a utilização de agregado reciclado de entulho no sistema viário do campus da USP na Zona Leste de São Paulo.
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em 2002”, disse. Quase 90% das mortes ocorreram na faixa etária dos 15 aos 19 anos, com predominância do uso de armas de fogo (59%). A situação é mais grave em São Paulo (36,8% dos homicídios no país) e no Rio de Janeiro (17%), com predomínio em grandes regiões metropolitanas. Em São Paulo a maior parte dos homicídios corresponde à execução sumária ligada à vingança, ao acerto de contas e à queima de arquivo. No Rio de Janeiro e no conjunto do país predomina a violência policial. “Esse estudo é um diagnóstico inicial. A idéia é que funcione como instrumento para a formulação de políticas públicas, de programas de prevenção e de aprofundamento de pesquisas”, disse Maria Fernanda. É possível fazer o download do relatório no site www.nevusp.org.br.
rinho Peres, uma das coordenadoras da pesquisa, há um quadro de crescimento dos homicídios em todos os estados, em todas as faixas etárias e em ambos os sexos. Os números, diz o relatório, são os maiores do mundo em países que não enfrentam guerra interna. “No período estudado, a taxa passou de 3,1 mortes por 100 mil jovens para 12,6 por 100 mil. Em números absolutos, os assassinatos aumentaram de 1.825 em 1980 para 8.817
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> As primeiras mil teses Com 52 anos de existência, o Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa) comemorou a marca de mil dissertações e teses defendidas por alunos ligados aos cursos de pós-graduação oferecidos pela instituição. “Analisando os programas de mestrado e doutorado que se instalam nas
LAURABEATRIZ
> Crescem grupos de pesquisa
Os assassinatos de crianças e adolescentes no país quadruplicaram no período de 1980 a 2002, de acordo com o estudo Homicídios de crianças e jovens no Brasil, lançado no final de novembro pelo Centro de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo — um dos dez Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP, também conhecido como Núcleo de Estudos da Violência (NEV). O objetivo do trabalho é preencher lacunas no conhecimento sobre violência contra brasileiros de 0 a 19 anos. A obra traz levantamentos que subsidiaram o Relatório mundial sobre violência contra a criança, coordenado pelo professor Paulo Sergio Pinheiro, expert independente do secretário-geral da ONU sobre a violência contra a criança. Segundo Maria Fernanda Tou-
MIGUEL BOYAYAN
ESTRATÉGIAS
O holocausto dos jovens
universidades da região, notamos que uma parcela significativa de seus núcleos de docentes passou pelo Programa de Pós-Graduação do Inpa, que tem papel importante na consolidação da pesquisa científica na Amazônia”, disse Adalberto Luis Val, diretor do instituto. A defesa de número mil aconteceu no dia 5 de dezembro. O doutorando Domingos Rodrigues, vinculado ao curso de ecologia, apresentou a tese intitulada “Influência de fatores bióticos e abióticos na distribuição temporal e espacial das comunidades de girinos em poças temporárias em 64 quilômetros quadrados de floresta de terra firme na Amazônia Central”.
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> Aventura premiada
ESTRATÉGIAS
Um vídeo sobre a NanoAventura, projeto de divulgação científica do Museu Exploratório de Ciências de Campinas, foi agraciado com menção honrosa pelo júri do Festival de Cine e Vídeo Científico do Mercosul (Cinecien 2006), que aconteceu no Rio de Janeiro no início de dezembro. O júri, presidido pelo professor Fernando Sallis, da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), justificou a premiação do vídeo “por sua importância como instrumento de divulgação científica e por estimular o gosto pela ciência e a experimentação junto ao público jovem”. Mais de 180 audiovisuais concorreram em quatro categorias. Os ganhadores dos primeiros prêmios foram os diretores Luz Rapoport,
O projeto “Integração serviços de saúde e universidade: estratégia para melhoria da gestão em saúde”, da Faculdade de Odontologia da Unesp, campus de Araçatuba, foi um dos dez vencedores do Prêmio Mário Covas 2006 – Inovações na Gestão Pública no Estado de São Paulo, sendo agraciado na categoria gestão em recursos humanos. O projeto, financiado pela FAPESP, foi coordenado pela professora Nemre Adas Saliba e analisou o sistema público de saúde em cinco municípios da região noroeste do estado de São Paulo: Clementina, Gabriel Monteiro, Piacatu, Bilac, Santópolis do Aguapeí. Após a avaliação, Nemre e sua equipe propuseram alterações para que os serviços de saúde oferecidos se adequassem à legislação federal. O Prêmio Mário Covas é uma iniciativa do governo de São Paulo e da Fundação do Desenvolvimento Administrativo (Fundap).
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> Novidade em Minas Gerais A Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (Fape26
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NanoAventura: vídeo recebeu menção honrosa
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> Projeto premiado
(Plantas silvestres comestibles - Argentina), Cristian Pacheco (Amigo salvaje - Chile), Fernando de Moraes (Arquipélago de São Pedro e São Paulo, os penedos do Atlântico - Brasil ) e Luciano Delion (Sambaqui, 10 mil anos de história - Brasil). O festival é uma iniciativa da Rede Especializada de Ciência e Tecnologia (RECyT) e do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). A NanoAventura foi desenvolvida por professores e pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), em parceria com o Instituto Sangari, e apoio da Fundação Vitae e da FAPESP, com o objetivo de apresentar conceitos de nanociência e nanotecnologia de maneira divertida e educativa.
mig) vai criar cinco novos programas em 2007. A previsão é de um investimento extra de cerca de R$ 16 milhões. Um dos programas vai aumentar, por prazo determinado, a cota de bolsas para cursos de pós-graduação recém-lançados e ainda em consolidação, aqueles que receberam notas 3 e 4 da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Outro programa busca reforçar o su-
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porte financeiro para custeio de programas de pós-graduação. O terceiro é o Programa Pesquisador Mineiro (PPM), de estudos voltados para o desenvolvimento do estado. O quarto é o Programa Estadual de Cooperação Acadêmica (Procad-MG), que propõe a implantação de redes de cooperação. Também foi definida a criação do Programa de Apoio a Grupos de Pesquisa Emergentes, com a meta de fi-
xar pesquisadores em Minas e criar núcleos de pesquisa.
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> Investimento inteligente Os recursos públicos investidos em inovação costumam ter um retorno rápido, na forma de impostos arrecadados sobre os novos produtos e serviços tecnológicos. Indicadores dessa equação foram apre-
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do para o Veículo Lançador de Satélites (VLS).
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> Nova versão do Manual de Oslo
anos em projetos de 75 empresas ligadas à incubadora.
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> Parceria consolidada Os chanceleres do Brasil, Celso Amorim, e da Rússia, Serguei Lavrov, assinaram em Brasília o Acordo de Proteção Mútua de Tecnologias Associadas à Cooperação na Exploração e Uso do Espaço Exterior para Fins Pacíficos. O documento assegura a proteção de todos os equipamentos e tecnologias que estejam presentes no intercâmbio entre os dois países.“Este acordo cobre todas as fases da cooperação e foi objeto de diversas rodadas de negociações tanto na Rússia quanto no Brasil”, disse o chefe da Assessoria de Cooperação Internacional da Agência Espacial Brasileira (AEB), embaixador Carlos Campelo. As relações entre Brasil e Rússia na área espacial envolvem primordialmente o setor de foguetes e se referem, hoje, a ações visando ao desenvolvimento de um estágio a combustível líqui-
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> Contra o efeito estufa A Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) vai destinar até
do fomento a projetos de tecnologia limpa implementados por países em desenvolvimento.O MDL entrou em funcionamento em 2005, quando movimentou algo em torno de US$ 11 bilhões. O Brasil tem grande vocação para desenvolver esse tipo de iniciativa. Dos quase 1,3 mil projetos de MDL que estão em andamento em todo o mundo, a grande maioria se concentra na Índia (460), Brasil (193) e China (175).
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ILUSTRAÇÕES LAURABEATRIZ
sentados no Café Tecnológico FAPESP, que aconteceu no dia 5 de dezembro no Centro Incubador de Empresas Tecnológicas (Cietec), em São Paulo.“As empresas incubadas no Cietec terão um faturamento de R$ 28,7 milhões em 2006. Muitas delas foram criadas há menos de três anos e pagarão este ano cerca de R$ 6 milhões de impostos ao governo”, disse Cláudio Rodrigues, presidente do Conselho Deliberativo do Cietec e superintendente do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen). Rodrigues fez uma comparação entre os gastos anuais do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae-SP) no Cietec e os impostos pagos pelas 116 empresas vinculadas à incubadora. “Os R$ 6 milhões em impostos superam em mais de seis vezes os investimentos anuais do Sebrae para o custeio das atividades administrativas do Cietec, de R$ 970 mil em 2006”, afirmou. A FAPESP foi homenageada no evento por conta dos investimentos da ordem de R$ 12,2 milhões nos últimos cinco
Está disponível no site da Financiadora de Estudos e Projetos, Finep (www.finep.gov.br), uma nova versão em português do Manual de Oslo.A obra, que integra uma coleção da Organização para Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OCDE), apresenta parâmetros para a coleta de dados sobre inovação e diretrizes para aferir e comparar as atividades tecnológicas em indústrias de diferentes países.A primeira edição do Manual de Oslo data de 1990. A primeira tradução para o português foi produzida e divulgada pela Finep em meio eletrônico,em 2004.Esta nova edição do Manual de Oslo agrega as atualizações apresentadas na terceira edição, de 2005. “O Manual de Oslo é abrangente e flexível quanto a suas definições e metodologias de inovação tecnológica e,por isso mesmo,tem sido uma das principais referências para as atividades de inovação na indústria brasileira, que se quer cada vez mais competitiva”, diz Odilon Marcuzzo do Canto, presidente da Finep.
2009 cerca de US$ 80 milhões a projetos voltados para amenizar o aquecimento global. O Programa de Apoio a Projetos do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (Pró-MDL) terá duas categorias de financiamento: reembolsáveis,para projetos de desenvolvimento tecnológico, e não-reembolsáveis, voltada para a cooperação entre empresas e instituições de pesquisa.O MDL,previsto pelo Protocolo de Kyoto,permite que os países desenvolvidos – comprometidos com metas de redução de 5% de emissões entre 2008 e 2012 – compensem suas dívidas por meio da aquisição
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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
EDUARDO CESAR
O brasileiro Cowboy (abaixo) poderá rivalizar com os protótipos da organização One Laptop Per Child (demais imagens)
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Governo define até abril qual será o modelo de laptop destinado a alunos de escolas públicas
governo federal vai decidir até abril se irá comprar 1 milhão de computadores portáteis educacionais da empresa taiwanesa Quantas, uma das maiores produtoras mundiais de notebooks, ao custo total de cerca de R$ 325 milhões. Não são laptops convencionais, mas os modelos idealizados pela organização não-governamental One Laptop Per Child (OLPC – Um laptop por criança), criada pelo pesquisador Nicholas Negroponte, co-fundador do Media Lab, do Massachusetts Institute of Technology (MIT). A entidade concebeu essas máquinas como uma revolucionária ferramenta de aprendizagem talhada para iniciar no mundo digital as crianças de escolas públicas de países pobres. Numa estratégia de marketing para atrair parceiros – empresas como AMD, Brighstar, Google, Marvell, News Corp. e Nortel investiram, cada uma, US$ 2 milhões no programa – Negroponte batizou os protótipos de laptops de US$ 100. É certo que o custo ainda é mais alto do que o esperado – está em torno de US$ 150 cada computador –, mas Negroponte acredita que o patamar poderá ser alcançado em 2008. A entidade encomendou uma primeira leva de 5 milhões de laptops à
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Y URI VASCONCELOS F ABRÍCIO M ARQUES
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Revolução na sala de aula
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Quantas, para ser entregue neste ano. O quinhão destinado ao Brasil, conforme conversas com o governo federal, seria de 1 milhão de máquinas. Os outros 4 milhões destinam-se a outros países simpáticos ao programa, como a Argentina, a Líbia, a Nigéria e a Tailândia. o dia 24 de novembro, Negroponte esteve no Brasil e entregou pessoalmente ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva um protótipo do laptop.“Não assinamos nenhum contrato, mas, no meu ponto de vista, não há nenhuma possibilidade de o Brasil ficar fora desta iniciativa”, afirmou Negroponte ao portal de notícias G1.“Pelos nossos planos, o país deve receber cerca de 1 milhão de máquinas em 12 meses, a partir da chegada dos primeiros laptops.” Nos próximos meses, técnicos do Ministério da Educação vão se dedicar à tarefa de testar os computadores em escolas públicas selecionadas para avaliar as possibilidades de uso pedagógico da tecnologia. Em breve, cerca de 1,8 mil laptops devem chegar ao Brasil. “Eles serão distribuídos para escolas de várias cidades, que expressem a variedade da realidade educacional do país”, diz Cezar Alvarez, assessor especial da Presidência da República responsável pelo projeto. Numa situação ideal, cada estudante ganhará seu laptop, que estará conectado a uma
rede de banda larga de baixo custo, podendo usá-lo em casa ou na escola como uma espécie de caderno digital capaz de auxiliar no aprendizado. Para se ter uma idéia do impacto dessa estratégia, hoje apenas 4% dos brasileiros da classe D e 10% da classe C têm acesso à internet, diante de 70% na classe A e 35% na classe B, de acordo com dados da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). As possibilidades no campo da educação são imensas.“Vão desde o acesso aos conteúdos de bibliotecas digitais do mundo inteiro até a possibilidade de fazer atividades em grupo por meio do computador. E isso sem falar na chance de levar o computador para casa e incluir as famílias no processo”, disse Negroponte. É previsível o surgimento de softwares pedagógicos talhados para esta nova plataforma. Paradigmas - Na prática, há uma série
de questões que precisam ser testadas. “Não sabemos ainda, por exemplo, se os laptops poderão ser levados para Nononono para mesmo um casa aqui no Brasil. É preciso resolver grupo de animais questões tecnológicas há séculos para um e avaliar se é seguro o estudante andar com essa máquina grupo de animais nonono na rua”, diz Cezar Alvarez.“O computaestudado dor rompeséculos vários paradigmas e é essenanimais estudado cial que não seja visto como um corpo séculos para estranho na sala de aula. Mas não é ingrupo de tenção doanimais governo federal determinar nonon estudado
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A tela do laptop escolar poderá ser usada como uma espécie de livro eletrônico
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como os computadores serão usados. Estados e municípios terão autonomia para apresentar seus projetos.”
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decisão do governo não dependerá apenas das avaliações técnicas e pedagógicas. O Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio está sondando empresas brasileiras do setor de informática sobre a possibilidade de produzir os computadores no Brasil.“O projeto é pedagógico, e não de política industrial. Mas, se tivermos competência e escala para fabricar os laptops no Brasil a preços competitivos, não haveria razão para encomendá-los no exterior”, diz Alvarez. Com isso, o governo deverá escolher uma entre três opções: a compra dos computadores da Quantas, a abertura de uma licitação internacional ou a encomenda a fabricantes nacionais. A gigante dos semicondutores Intel anunciou no mês passado que duas empresas brasileiras – a Positivo Informática e a CCE – irão fabricar o Classmate PC, laptop criado para concorrer com o de Negroponte. Ao se associar a fabricantes nacionais, a Intel torna o programa de Negroponte mais vulnerável à crítica de que ele seria prejudicial à indústria local. O problema é que o computador da Intel é bem mais caro. Custa cerca de US$ 400. Para definir qual o modelo de notebook é tecnicamente mais adequado, o governo está testando três modelos diferentes: o laptop de US$ 150 de Negroponte, o Classmate PC, da Intel, e também o computador portátil Mobilis, do grupo indiano Encore Software. Para fazer a avaliação, foi criado, em julho de 2005, um grupo formado por profissionais de três centros nacionais de pesquisa: o Laboratório de Sistemas Integráveis da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), o Centro de Pesquisas Renato Archer (CenPRA), ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), e a Fundação Centro de Referência em Tecnologias Inovadoras (Certi), um órgão independente e sem fins lucrativos de pesquisa e desenvolvimento tecnológico de Santa Catarina. “As três equipes estão encarregadas de fazer a avaliação técnica e econômica dos equipamentos, bem como uma análise dos aspectos de aplicabilidade pedagógica de cada um deles”, explica a engenheira eletrônica Roseli de Deus Lo-
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pes, do Laboratório de Sistemas Integráveis (LSI) da USP. Nos próximos três meses, os equipamentos, que já passaram por avaliações preliminares, serão submetidos a uma série de testes de engenharia de produto. Para Roseli Lopes, algumas características tecnológicas são essenciais para que um ou outro modelo venha a ser adotado pelo governo. A mais importante delas talvez seja o baixo consumo energético. Nicholas Negroponte costuma dizer que, mais difícil do que chegar ao custo de US$ 100, é alcançar o patamar de consumo de 2 watts. Para atingir esse objetivo, além do aperfeiçoamento do display (um dos componentes do computador que mais gasta energia), o modelo deve dispor de um sistema operacional adaptado para gastar menos eletricidade. Ao mesmo tempo, a vida útil das baterias deve ser ampliada, evitando problemas ambientais com o descarte delas, já que o programa governamental prevê a aquisição de milhares (ou milhões) de laptops.“O baixo consumo energético também é importante para permitir a inclusão digital de pessoas de baixa renda que nem sempre têm acesso à rede elétrica”, destaca a pesquisadora do LSI. utro aspecto relevante do portátil está relacionado à conectividade. É importante que os laptops sejam dotados de sistema de conexão sem fio e possam se comunicar entre si, por meio de
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uma tecnologia conhecida como rede mesh. Nela, cada máquina ligada à conexão torna-se também uma transmissora, cujo sinal é recebido pela máquina mais próxima, e assim por diante, criando uma malha de computadores sem fio. Pressupondo que os alunos levem o laptop para casa (o que ainda não foi definido pelo governo), em comunidades isoladas, onde só exista uma antena, os próprios notebooks formariam uma rede de comunicação sem fio independentemente da distância do computador para a antena ou o servidor central. Para isso, os aparelhos precisariam permanecer continuamente ligados no modo stand-by, o que reforça a necessidade de o laptop ter um baixo consumo de energia.“Naturalmente, o ideal é que existam mais pontos para dar sustentação à rede. Mas, caso seja impossível, o mais importante é ter algum tipo de conexão, embora lenta, do que nenhuma”, afirma Roseli Lopes.“Em alguns dos protótipos existentes hoje não vemos essa preocupação de redução de consumo,embora seja perfeitamente possível de ser incorporada.” Resistente e robusto - Para a pesquisadora, o laptop popular também deverá ser um equipamento robusto e durável. “Imaginando que ele será manuseado por crianças, é razoável supor que o dispositivo deva ser resistente a quedas, por exemplo. Esta questão ainda está sendo desenvolvida e não está presente nas soluções que temos hoje em mãos. Talvez eles precisem ter um revestimento emborrachado ou com outro material para protegê-los contra choques”, afirma. Esse é um dos motivos que faz o aparelho ter uma tela reduzida, em torno de 7 polegadas, e não ser equipado com disco rígido, que é o componente mais frágil do sistema. No lugar dele, os modelos em avaliação dispõem de memória flash, um dispositivo semelhante, em forma de cartão rígido, ao que está nos pen-drives e nas máquinas fotográficas digitais. Ela é embutida no próprio computador, tornando-o bem mais resistente. O fato de não ter uma capacidade de armazenamento tão grande não é problema, já que as informações de cada computador deverão ficar guardadas no servidor da escola, da Secretaria de Educação ou do Ministério da Educação. Mas, para compensar essa limitação, é essencial a conexão de banda larga.“Sem
banda larga o projeto não se sustentaria”, diz Cezar Alvarez, assessor da Presidência da República. Quanto à tela, o ideal é que permita ao aluno operar o notebook não apenas na sala de aula, mas também em ambientes externos, sob a luz do sol, durante os trabalhos de campo. Para os pesquisadores que avaliam os laptops populares, esse também é um aspecto fundamental num equipamento destinado a atividades educacionais. s modelos atualmente em teste possuem algumas características em comum. Os três são leves, compactos e equipados com o sistema operacional Linux – embora uma versão do Classmate PC também seja produzido com o Windows XP. Medem cerca de 23 x 20 x 3 centímetros (cm), tamanho de um caderno escolar mais grosso. Essas características permitem que sejam facilmente transportados e caibam na mesa do aluno, deixando espaço para livros e material escolar. O aparelho da One Laptop Per Child, batizado de XO, é o único que vem com câmera colorida para fotos e filmes. Ele utiliza processador AMD Geode de 366 MHz e tem tela de 7,5 polegadas de 1.200 x 900 pixels, três portas USB para conexão de outros equipamentos, memória de 128 MB e capacidade de armazenamento de 512 MB Flash, que pode ser expandida.
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taladas, respectivamente, em São Paulo e Bauru. A Microsoft entrou com o treinamento no sistema operacional Windows CE, escolhido para equipar o computador. Segundo o pesquisador Eduardo Morgado, coordenador do LTIA, a escolha desse sistema deu-se “porque ele oferece a melhor relação entre custo de desenvolvimento e experiência do usuário”.
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O preço de US$ 100 só deverá ser alcançado em 2008. Cada unidade custa cerca de US$ 150 atualmente
O notebook da Intel será produzido no país pelas empresas Positivo Informática, de Curitiba (PR), e CCE, de Manaus (AM). Com preço estimado em US$ 400, ele terá processador de 900 MHz, tela colorida LCD de 7 polegadas, 256 MB de memória, 1 GB de memória flash e duas portas USB. O teclado, à prova d’água, tem teclas pequenas e é compacto, com 6,5 cm de largura por 18 cm de comprimento, mas isso talvez não se torne um problema porque, afinal, será usado por crianças. Um diferencial do equipamento é um sistema antifurto, que impede seu funcionamento depois de um número predeterminado de dias longe da escola. “Vamos ver como funciona esse dispositivo, mas é uma preocupação que precisamos levar em conta”, afirma Roseli Lopes. Outra característica do Classmate PC, antes conhecido como Edu-Wise, é uma aplicação de gestão de aula que permite ao professor acompanhar em sala o que os alunos estão fazendo com suas máquinas. O computador móvel indiano Mobilis tem uma característica que o distingue dos concorrentes: é um tablet PC, um computador portátil com tela sensível ao toque, que pode ser explorada com os dedos ou com uma “caneta”acoplada. Com isso, o notebook dispensa o uso do teclado, assim como ocorre com os computadores de mão, os palmtops. Um dos aspectos positivos do equipamento é exatamente sua tela, de 7 polegadas e reso32
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B lução de 800 x 480 pixels. Segundo a fabricante Encore, o Mobilis possui uma bateria de longa duração, de cerca de seis horas, e de rápido carregamento. Dos três modelos, o portátil da Encore é o mais leve, com 900 gramas, contra 1,3 quilo do Classemate PC e 1,5 quilo do XO. Ele foi projetado com duas portas USB, processador Xscale de 400 MHz, memória de 128 MB e capacidade de armazenamento flash de 128 MB, expansível até 2 GB. O aparelho deve chegar ao mercado por um valor próximo a US$ 230. A Encore é a única das três fabricantes que ainda não sinalizou quantos laptops serão disponibilizados ao governo para a realização de testes em 2007. A Intel já acertou o envio de 800 Classmate PC para escolas públicas no primeiro trimestre deste ano e a OLCP vai doar mil unidades de seu portátil. lém dos três concorrentes “oficiais”, corre por fora um produto desenvolvido no Brasil pelo Laboratório de Tecnologia da Informação Aplicada (LTIA) do Departamento de Computação da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Bauru. O projeto, iniciado em novembro de 2005, consumiu cerca de R$ 80 mil e contou com o envolvimento das empresas de tecnologia Tecnequip (como fornecedora das placas-mãe e de assistência técnica) e a MSTech (assessoria técnica e doação de bolsas para alunos do laboratório), ins-
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atizado de Cowboy – “é um nome simpático e uma versão livre de ‘caipira’, que foi o primeiro nome do projeto”, diz Morgado –, o aparelho é um meio-termo entre um notebook ou computador pessoal e um PDA (Personal Digital Assistant ou computador de bolso). Segundo Daniel Igarashi, mestrando do LTIA e um dos coordenadores do projeto, ele foi criado com base no conceito de “computação confortável”, que permite uma navegação mais simples, organizada e intuitiva. O Cowboy tem um painel LCD que desliza sobre o teclado para que seja usado como um livro eletrônico e possui entre seus aplicativos MP3 Player, leitor de e-book e acesso a terminal remoto. O protótipo foi configurado com microprocessador com tecnologia RISC de 400 MHz, 128 MB de memória RAM, display colorido de alta resolução de 7 ou 10 polegadas, 1 GB de capacidade interna e conectividade wireless e por cabo. O custo de produção da versão mais simples é de US$ 250 a unidade, mas esse preço poderá ser reduzido caso o modelo vingue no mercado e o fabricante obtenha ganhos de escala. Embora não negue o interesse em participar da “concorrência”, Morgado acha difícil conseguir cumprir os prazos estipulados pelo governo, que pretende adquirir as primeiras unidades ainda este ano (2007).“Temos um protótipo, mas ainda falta arranjar um parceiro na iniciativa privada que conclua conosco o projeto industrial do Cowboy”, afirma Morgado. A pesquisadora Roseli Lopes, do Laboratório de Sistemas Integráveis, vê com bons olhos o surgimento de novos projetos de baixo custo, como o protótipo da Unesp. “Precisamos ter alternativas diferentes”, diz ela. “Não se trata de escolher apenas um laptop. Temos que dar liberdade para que as escolas escolham as soluções mais adequadas aos seus projetos pedagógicos.” •
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BRAZ
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DESENVOLVIMENTO
Equação complexa Receita para ingressar na sociedade do conhecimento tem mais ingredientes do que se imagina, de acordo com relatório europeu
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ual é a receita para construir uma sociedade em que a inovação é parte inseparável do ambiente econômico e do cotidiano das pessoas? O economista alemão Peer Ederer,professor da Universidade Zeppelin e diretor dos grupos de pesquisa Conselho de Lisboa e Deutschland Denken,desenvolveu uma metodologia que tenta organizar uma resposta para essa pergunta.Na sua avaliação,os ingredientes nem de longe se restringem a altos níveis de escolaridade,à destinação de recursos para ciência e tecnologia ou ao esforço das empresas em ganhar competitividade.Ederer sustenta que a equação é muito mais complexa e depende de outros requisitos fundamentais,que vão desde a participação dos pais na educação dos filhos até a capacidade de dar empregos para o capital humano em cuja formação uma nação PESQUISA FAPESP 131
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investiu. O estudo, intitulado Innovation at work: the european human capital index, aplicou a metodologia aos 13 países da União Européia e estabeleceu o ranking de nações do bloco segundo sua capacidade de participar da chamada sociedade do conhecimento, aquela na qual mudanças e inovações tecnológicas ocorrem em ritmo tão acelerado que, além dos fatores tradicionais de produção, como o capital, a terra e o trabalho, é fundamental gerir de forma inteligente o conhecimento das pessoas. O índice de Ederer tem quatro componentes principais. “Cada um deles representa um aspecto de como o capital humano contribui para gerar atividade econômica”, ele explica. O primeiro deles leva em conta todos os esforços de uma nação em formar seus cidadãos ou aperfeiçoar a qualidade da mão-de-obra, o que engloba desde o alcance da escolaridade formal, que vai do primeiro grau ao ensino superior, até o treinamento que as empresas dão aos funcionários e a participação dos pais na educação das crianças. Esse conjunto de esforços corresponde ao capital humano, que sofre um processo de obsolescência, o qual também é contabilizado. O segundo componente mede o efetivo aproveitamento do capital humano. De nada adianta formar cérebros e vê-los migrar para países vizinhos que oferecem melhores chan-
Embora a União Européia tenha estabelecido oficialmente a meta de se tornar “a mais dinâmica e competitiva economia baseada no conhecimento em todo o mundo”, o estudo de Ederer mostra que a situação é desigual e a balança de poder está em movimento no continente. No topo do ranking figuram a Suécia, seguida por Dinamarca, Reino Unido, Áustria e Holanda. Num segundo pelotão estão Finlândia, Irlanda, França e Bélgica. Em último lugar: Espanha, Portugal, Alemanha e Itália. A dianteira dos países nórdicos se explica pelo bom desempenho em todos os quesitos – acrescido de legislações que impõem uma participação maior da família na educação dos filhos. Na Suécia, por exemplo, pais e mães se dividem no gozo de uma licença que pode durar até um ano e meio após o nascimento do filho. O governo paga 80% do salário. Também é possível tirar licença para cuidar do filho doente. A Finlândia tem o melhor sistema educacional da Europa. Mas é superada pela Suécia e Dinamarca na atenção à infância. Os dois países, aliás, são pródigos em aproveitar seu capital humano: 63% da base nacional de conhecimento está em atividade na Dinamarca, diante de 55% na França e 52% na Itália. A França exibe bom desempenho em alguns quesitos, como a produtividade de capital humano, mas sofre com uma dotação de capital
A dianteira dos países nórdicos se explica pelo bom desempenho em todos os quesitos, acrescido de legislações que impõem uma participação maior da família na educação dos filhos ces de trabalho – um conhecido problema das nações em desenvolvimento que também se aplica em países menos competitivos da União Européia. Médicos alemães que migraram para países nórdicos e profissionais franceses da área de finanças atraídos para instituições do Reino Unido são alguns dos exemplos citados por Ederer. Outro componente avalia a produtividade do conhecimento, medida pela razão entre o produto interno bruto do país e o estoque de capital humano. Por fim, leva em conta as mudanças demográficas. Nações com crescimento populacional negativo teriam problemas em se manter competitivas nas próximas gerações. Para Andre Tosi Furtado, professor do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o estudo divulgado pelo Conselho de Lisboa peca pela ausência de um detalhamento metodológico mais aprofundado.“Faltam explicações mais claras sobre alguns componentes. Por exemplo, qual interpretação deve ser dada à queda da produtividade do capital humano? O trabalho é lacônico a esse respeito. O segundo componente do índice sobre a ocupação do capital humano é obscuro. Não há uma explicação clara”, diz. Ainda assim, Furtado vê relevância na proposta. “A utilidade de um indicador como esse é de realizar comparações internacionais. Um índice semelhante, também com vários componentes, é usado pela Comunidade Européia para medir a inovação”, afirma. 34
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humano per capita relativamente baixa e aproveita de modo incompleto o potencial existente. Irlanda e Espanha, embora distantes do primeiro pelotão, destacam-se pelo aumento da utilização da mão-de-obra qualificada nas últimas duas décadas, o que, segundo Ederer, é ao mesmo tempo causa e efeito do rápido crescimento econômico que vem experimentando. Os patinhos feios do levantamento são a Itália e a Alemanha. Com taxas de crescimento demográfico pífias, flertam com a estagnação: serão responsáveis por 70% do declínio da força de trabalho da Europa nos próximos 25 anos. A Alemanha tem dotação de capital humano, mas cuja produtividade tem caído mais do que nos vizinhos. Os alemães demoram a ingressar no mercado de trabalho. Em média, eles atingem o nível de mestrado aos 28 anos, um dos patamares mais altos da Europa.“Se a Itália e a Alemanha continuarem a ignorar as dimensões do capital humano em suas políticas públicas, seu poder econômico irá inexoravelmente mover-se do centro para a periferia, revertendo uma hierarquia que vigora há séculos na Europa”, diz Ederer. “A União Européia trava uma corrida contra a China e a Índia na qual a nossa capacidade de desenvolver produtos e serviços inovadores vai determinar nossa habilidade de gerar a riqueza necessária para preservar nosso bem-estar social para as novas gerações”, afirma o pesquisador. •
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INOVAÇÃO
Parceria (des)afinada Seminário avalia legislação e reivindica novos paradigmas para a pesquisa
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niversidades,institutos de pesquisa e empresas começam a testar,na prática,os benefícios das leis de Inovação e do Bem que criaram estímulos a parcerias e benefícios fiscais para investimentos em desenvolvimento de novas tecnologias.Estas dificuldades foram analisadas no seminário Inovação Tecnológica e Segurança Jurídica,promovido pelo Centro de Gestão de Estudos Estratégicos (CGEE) e a Agência Brasileira para o Desenvolvimento Industrial (ABDI),realizado em São Paulo,no dia 13 de dezembro. Representantes de empresas inovadoras,agências de fomento e de instituições científicas presentes ao encontro foram unânimes em apontar a incompatibilidade da nova política de inovação com a política econômica que desde 2003 já contingenciou US$ 3,4 bilhões dos Fundos Setoriais.“Sofremos de miopia de longo prazo e há discordância de objetivos”, sublinhou Glauco Arbix, do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP). Eles identificaram,ainda,incongruências do novo marco legal com outras leis federais – sobretudo com a draconiana Lei 8.666,de licitação de compras públicas – e com o que qualificaram de falta de preparo dos organismos de controle – como o Tribunal de Contas da União
(TCU) e a Advocacia Geral da União (AGU) – para “compreender”essa nova institucionalidade.“Para a procuradoria, o pesquisador não pode constituir uma empresa para explorar ou licenciar tecnologia depois de depositar a patente”, afirmou Angel Uller,diretora do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia (Coppe), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),que desde 1994 trabalha em parceria com empresas.“Alguns contratos exigem cláusula de parceria com o setor privado proibidos pela lei”,acrescentou Maria Celeste Emerick,coordenadora de Gestão Tecnológica da Fiocruz. Conflito – Existem ainda problemas no próprio texto da lei.Exemplo disso é a exigência de divulgação do processo de licenciamento de tecnologia com exclusividade que,de acordo com Maria Celeste e Ângela,tem criado problemas com empresas parceiras. “O conflito é de legislação ou de cultura?”,indagou Maria Celeste.Para o advogado Rubens Nave,especialista em direito administrativo,o problema é que o novo marco legal estabelece parcerias entre a administração pública,que tem um regime jurídico de direito público,e a sociedade civil,regida pelo regime jurídico de direito privado.Ele lembrou que a reforma do Estado constituiu algu-
mas pontes entre esses dois sistemas,como foi o caso da criação das agências reguladoras,organizações sociais,organizações da sociedade civil de interesse público (Oscip) e Sociedades de Propósito Específico (SPE),que ainda têm grande dificuldade de prestação de contas quando usam recursos públicos. Na avaliação de Carlos Américo Pacheco,do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp),a inovação dependerá do aprofundamento da reforma do Estado.“O padrão internacional é o da cooperação entre o setor público e o privado”,sublinhou.O formato de parceria mais próximo do desejado é o das SPE.Esse,aliás,é o modelo escolhido pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) que articula a criação de uma SPE formada por capital privado e público para se manter na liderança das pesquisas agropecuárias.A Embrapa elegeu algumas áreas mais atrativas para o setor privado:agroenergia,biotecnologia e nanotecnologia.Na área de agroenergia,já existe interesse da BR Distribuidora,da Itaipu Binacional,do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e do Banco do Brasil.Mas ainda há gargalos jurídicos para que os projetos avancem.“Se a SPE da Embrapa sair do papel,será uma ruptura no modelo brasileiro de pesquisa”,reforça Pacheco. • PESQUISA FAPESP 131
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Tempo de replantar São Paulo prepara novas regras para o reflorestamento de áreas degradadas
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cimento neste campo.Em meados dos anos 1980 e início dos anos 90,apesar de já existir a recomendação para plantio com alta diversidade de espécies,isso raramente era atendido.Dificuldades operacionais para produção de mudas e a falta de uma orientação e cobrança efetiva podem ser apontadas como as principais causas do problema.Um levantamento feito pelo Instituto de Botânica,entre 1999 e 2000,em projetos de políticas públicas financiados pela FAPESP,revelou mazelas decorrentes da não observância desta recomendação.Das 98 áreas reflorestadas no estado nos dez anos anteriores,num total de 2,5 mil hectares,apenas duas estavam em condição satisfatória.Em mais de 80% dos casos as árvores tinham simplesmente morrido.Isso porque as áreas haviam sido povoados por algumas poucas espécies de árvores de crescimento rápido,as chamadas “pioneiras”,que têm ciclo de vida curto. Nos primeiros anos tudo parecia bem,com um rápido adensamento florestal.Mas cerca de dez anos depois de plantadas a maioria delas desapareceu, abrindo espaço para a invasão do popular matagal.Também foram detectados problemas em áreas nas quais houve a preocupação de combinar espécies pioneiras com as chamadas “climáceas”ou “tardias”,de ciclo de vida mais longo.São elas que conquistam espaço depois que as primeiras morrem.Acontece que a escassa variedade de espécies plantadas deixava as áreas suscetíveis a pragas.Em boa parte das áreas de reflorestamento estudadas o número de espécies arbóreas mal chegava a 30.Em regiões de mata natural de floresta atlântica bem conservada a variedade encontrada é de 100 a 350 espécies em apenas 1 hectare.
Ato contínuo,os pesquisadores do Instituto de Botânica saíram a campo para traçar os primeiros parâmetros para o reflorestamento,num projeto também financiado pela FAPESP previsto para terminar em março de 2007.O primeiro fruto desse esforço foi o advento da Resolução SMA-21,publicada em 2001, que passou a exigir uma diversidade maior de árvores nativas,misturando-se espécies pioneiras e tardias.“Na época houve muita reclamação dos viveiristas,que não tinham variedade de mudas para vender”,diz Barbosa.“Mas a resolução foi fundamental para modificar o mercado e forçá-los a produzir um marco diferenciado de árvores”,afirma o pesquisador.Segundo a norma,o número de espécies plantadas dependeria do tamanho da área (quanto maior,mais espécies diferentes de árvores deveriam ser utilizadas) e da presença de remanescentes florestais nas áreas vizinhas,o que, por si só,já ajuda a espalhar espécies de forma diversificada.O texto da resolução também previa uma revisão dos parâmetros a cada dois anos. Ameaçadas - A nova versão da legisla-
ção surgiu dois anos mais tarde.A Resolução SMA -47,de 2003,aumentou a lista de espécies para cerca de 500,número que deverá ser ampliado ainda mais na nova versão da resolução a ser proposta. Passou-se a orientar que áreas maiores que 1 hectare utilizassem pelo menos 80 espécies nativas diferentes.Também se determinou um porcentual de pelo menos 40% tanto de espécies de ciclo curto quanto de ciclo longo.“Estabelecemos assim parâmetros para os dois casos,com margens de manobra de até 20% para as duas categorias”,diz Barbosa.
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recuperação florestal de áreas degradadas no estado de São Paulo deverá ganhar parâmetros mais detalhados e eficazes. Um workshop com mais de cem especialistas,realizado no final de novembro no Instituto de Botânica da Secretaria de Estado do Meio Ambiente (SMA),colheu subsídios para a reformulação de uma resolução lançada pela SMA em 2003.Entre as novidades apresentadas destacam-se a inclusão de informações sobre espécies arbóreas ameaçadas de extinção ou que atraem a fauna,além da sugestão de um elenco de medidas específicas,que estarão disponíveis e sempre atualizadas no site do Instituto de Botânica da SMA e podem ser adotadas em diferentes situações,em áreas degradadas ou em recuperação.Os critérios servirão de base para uma nova resolução da SMA,a ser editada ainda no final de 2006 ou início de 2007. “Conseguimos aperfeiçoar os parâmetros,de modo que agora eles só precisarão ser revistos novamente dentro de três anos”,diz Luiz Mauro Barbosa,diretor do Instituto de Botânica e organizador do workshop. “Os pesquisadores paulistas estão servindo aos interesses nacionais. Nossa intenção é que os estudos em São Paulo possam servir de base para a criação de uma política nacional de preservação do meio ambiente”,disse o então secretário do Meio Ambiente José Goldemberg,que participou de um simpósio sobre recuperação de áreas degradadas,realizado paralelamente ao workshop. As resoluções paulistas sobre o resgate de florestas vêm despertando interesse de outros estados e também de autoridades ambientais federais.Sua evolução é emblemática do avanço do conhe-
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Parâmetros para a recuperação de florestas serão atualizados em nova resolução
Ao longo de 2006, oito grupos de pesquisadores discutiram novas contribuições para a legislação. A futura resolução deve corrigir um certo engessamento criado pela norma anterior – em vez de publicar um elenco de árvores nativas, apenas remeterá a uma lista no site do Instituto de Botânica (www.ibot.sp.gov.br), com inicialmente 700 espécies que serão periodicamente atualizadas. Um outro problema detectado é que, em algumas regiões do estado, há poucas pesquisas sobre a ocorrência das espécies nativas. A solução encontrada foi determinar que, onde há carência de informações, os projetos de reflorestamento devem promover levantamentos regionais de espécies, que terão prioridade para plantio. Espera-se que a nova norma vigore por pelo menos três anos, mas quem determinará esse limite será o avanço no conhecimento. Uma série de novos estudos promete trazer contribuições. Um desses estudos testa o comportamento de espécies quando plantadas em covas adubadas, no meio dos projetos de reflorestamento. “Também é preciso avançar em questões como a diversidade genética das mudas, o credenciamento de viveiros e a certificação de sementes e mudas”,diz Barbosa. Os desafios são enormes. Estudos indicam a necessidade de recuperar 1,3 milhão de hectares de matas ciliares – a vegetação que ocorre nas margens de rios. O Programa Matas Ciliares, uma prioridade para a SMA, tem apoio do Banco Mundial. “Essa tarefa levaria mais de cem anos. Precisaremos plantar, no mínimo, 26 milhões de mudas por ano e garantir a sustentabilidade das espécies nativas de cada região”, afirma Barbosa. •
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MUNDO
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LABORATÓRIO
Gargalhadas contagiantes Os produtores de comédias que usam gravações de risadas para fazer o público rir provavelmente não sabem,mas com essa artimanha estimulam regiões do córtex pré-motor cerebral e contagiam os espectadores.O mecanismo foi desvendado por um grupo de neurocientistas britânicos,que expôs voluntários a sons evocando emoções positivas – comemorações ou risadas – ou negativas – gritos ou barulho de vômito.Medida por ressonância magnética, a atividade da área do cérebro que também conduz a movimentos faciais foi mais intensa em resposta a sons positivos.Publicados na revista Journal ofNeuroscience de 13 de dezembro,os resultados indicam a participação de um mecanismo neurológico auditivo-motor nas relações sociais.
> Pássaros urbanos A poluição sonora não perturba apenas as pessoas.Também os pássaros modificam seus cantos,aparentemente em resposta ao barulho de carros e buzinas,concluíram Hans Slabbekoom e Ardie den BoerVisser,da Universidade de Leiden,na Holanda.Eles compararam os cantos de chapinsreais (Parus major) encontrados em dez grandes cidades européias aos de representantes da mesma espécie que vivem em florestas próximas.E observaram que as melodias usadas pelas aves urbanas para atrair parceiros e defender territórios são mais curtas.Viram que os pássaros urbanos,tal qual as pessoas,parecem ter pressa: cantam mais rápido do que os parentes das matas.Os cantos são também mais agudos – e assim se sobrepõem aos ruídos de baixa freqüência como o do trânsito.Um estudo anterior desse grupo já havia mostrado que as aves urbanas usam menos notas graves em regiões da cidade em que o nível de barulho é maior.Essa versatilidade pode explicar o sucesso do chapim-real em se adaptar às cidades.A descoberta fortalece a hipótese de que a variedade de sons dos animais pode ser moldada pelo ambiente.
ILUSTRAÇÕES LAURABEATRIZ
cantam diferente
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> A química dos violinos A fama dos violinos Stradivarius transcende a esfera dos entendidos em música.Os sons dos instrumentos confeccionados no século XVIII pelo italiano Antonio Stradivari e por seu conterrâneo Guarnieri del Gesù são tidos como inigualáveis.Especialistas tentaram durante séculos descobrir o segredo nas cordas e no corpo de madeira desses violinos,violoncelos e violas.Agora um trio norte-americano liderado por
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Joseph Nagyvary,da Universidade Texas A&M,pode estar perto de desvendar o mistério. O grupo comparou amostras de madeira atual e de lascas de instrumentos fabricados entre 1717 e 1840,submetidas a análise por ressonância magnética nuclear e espectroscopia por infravermelho.Os resultados mostram que o que dá origem aos sons que encantaram ouvidos nos últimos 300 anos não é a madeira em si,mas o tratamento químico para protegêla de ataques por insetos e das agruras do tempo.Quando os
detalhes dessa química forem desvendados,quem sabe não poderá surgir uma nova geração de Stradivarius?
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> Pioneirismo reconhecido Em razão dos estudos sobre o hormônio feminino estrógeno,que ajudaram a direcionar novas pesquisas sobre as origens e o desenvolvimento de câncer de mama,Evan Simpson,diretor do Instituto de Pesquisa Médica Príncipe Henry,
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na Austrália, foi o vencedor na categoria ciência básica do Prêmio Brinker por Distinção Científica da Fundação de Câncer da Mama Susan G. Komen, dos Estados Unidos. Na categoria pesquisa clínica o vencedor foi George Sledge Jr., da Universidade de Indiana, Estados Unidos, um dos primeiros a valorizar a formação de vasos sangüíneos do câncer de mama. Sledge tem sido um dos líderes na aplicação de terapias e medicamentos para prevenir o desenvolvimento de vasos sangüíneos nos tumores. Cada um deles receberá US$ 20 mil. Mantida por meio de doações, a Fundação Komen investiu em 2006 US$ 780 milhões em programas de pesquisa, educação, diagnóstico e tratamento de câncer de mama.
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> As marcas da criação animal Os animais de criação emitem mais gás carbônico que os carros ou aviões, qualificando-se como os principais transformadores do ambiente, de acordo com um estudo de 400 páginas elaborado pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). No mundo inteiro, segundo esse trabalho, a pecuária é a maior ameaça ao clima, às florestas e à biodiversidade. Bois, ovelhas, galinhas e cabras liberam 18% da emissão de gás carbônico e dois terços da quantidade de
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amônia, um dos causadores da chuva ácida. O estudo da FAO também associa a criação de animais a um consumo intenso de água (cada litro de leite exige 990 de água) e à degradação de metade das terras cultivadas nos Estados Unidos. Samuel Jutzi, diretor da divisão de saúde e produção animal da FAO, alerta para a urgência de conter os impactos ambientais, que tendem a crescer, acompanhando a produção de carne e leite, que deve dobrar em 50 anos. Os amantes do churrasco não devem se zangar: não se deixou de lado o valor da pecuária, que ocupa um terço das terras cultiváveis do planeta, gera 40% do PIB e emprega 1,3 bilhão de pessoas. Ao lado da China e da Índia, o Brasil é um dos destaques desse estudo, por ser um dos maiores produtores mundiais, com 207 milhões de bois e vacas, 186 milhões de galinhas e 34 milhões de suínos.
medidas de saúde pública para monitorar e tratar a depressão pós-parto, que pode causar estragos sérios na saúde e no bemestar de crianças recém-nascidas e de suas mães.
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> A gramática dos sexos Meninos e meninas processam e usam regras gramaticais de modo diferente. Segundo um estudo da Universidade de Georgetown, Estados Unidos, erros na conjugação de verbos, por exemplo, ocorrem por causa de estruturas distintas nos cérebros masculino e feminino. Michael Ullman e Joshua Hartshorne partiram de algo que eles já sabiam: meninas usam um sistema que memoriza palavras e associações entre elas, enquanto meninos se
baseiam em um sistema regido pelas regras da língua. Eles observaram como um grupo de 10 meninos e 15 meninas, entre 2 e 5 anos de idade, conjugava verbos ao falar. Previam que os meninos fariam mais erros conjugando verbos irregulares como se fossem regulares, seguindo as regras da gramática inglesa. Mas esses erros foram muito mais comuns entre as meninas – e seriam causados por associações entre as formas conjugadas de verbos regulares e irregulares que rimam. Como o passado de fold, por exemplo, é folded, as meninas associavam ao verbo hold a forma holded – o correto seria held. Algumas áreas do cérebro não são responsáveis só pela linguagem, o que sugere que homens e mulheres abordam uma série de tarefas de forma diferenciada.
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ALTE PINAKOTHEK
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> A depressão das mães Mães de primeira viagem correm maiores riscos de ser acometidas por depressão pósparto nos primeiros três meses após o nascimento de sua criança, de acordo com o estudo epidemiológico de ampla escala publicado na edição de 6 de dezembro da revista científica Journal of the American Medical Association (Jama). O trabalho analisou dados médicos de todos os dinamarqueses que se tornaram pais e mães entre 1973 e 2005 e mostra que distúrbios psiquiátricos poupam os homens mas rondam também as mulheres que acabam de ter o segundo filho. Com base no alerta dinamarquês, o editorial dessa edição da revista chama a atenção para a importância de se implementar
Madonna de Da Vinci: perigos ocultos PESQUISA FAPESP 131
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EDUARDO CESAR
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Um copo de medos Definiu-se uma clara ligação entre o alcoolismo e os distúrbios psiquiátricos, em especial as fobias sociais. Um em cada três alcoolistas (o termo agora recomendado, em vez de alcoólatras) apresentou transtorno depressivo grave, a mesma proporção de portadores de fobias específicas, de acordo com um trabalho coordenado por Mauro Barbosa Terra, da Fundação Faculdade de Ciências Médicas de Porto Alegre, e publicado na Comprehensive Psychiatry. Em uma amostra de 300 alcoolistas internados em três hospitais de Porto Alegre, um em cada quatro tinha fobia social, quase o mesmo tanto sofria de transtorno de ansiedade induzi-
mais acidentes O risco de sofrer acidente de trabalho é quase duas vezes maior entre trabalhadores expostos a ruídos intensos e contínuos,concluíram Adriano Dias,da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),Ricardo Cordeiro,da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e Cláudia Gonçalves,da Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep).Eles se basearam em entrevistas feitas com 600 pessoas que sofreram acidentes de trabalho e foram atendidas em um hospital de Piracicaba,interior paulista. Depois compararam os resultados com os obtidos por meio de entrevistas com outras 822 pessoas que não haviam sofrido acidentes relacionados ao trabalho.Segundo esse estudo, publicado no Cadernos de Saúde Pública, o ruído excessivo 40
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> Pai vira onça no Cerrado
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dificulta a comunicação e a concentração,levando a contusões (47%),entorses (15%), cortes e contusões (10%) e fraturas (9%),principalmente nas mãos e nos pés.
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> Uma chave para entrar na laranja Agora se conhecem melhor a estrutura e o funcionamento de uma proteína possivelmente importante para a bactéria
Xylella fastidiosa, causadora do amarelinho,penetrar nas laranjeiras.Usando uma técnica chamada cristalografia de raios X,pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) conseguiram definir em detalhes a estrutura tridimensional da Ohr, proteína que confere à Xylella resistência a hidroperóxidos orgânicos,compostos capazes de originar radicais livres e outras substâncias tóxiLUIS EDUARDO SOARES NETTO / USP
> Mais barulho,
do pelo álcool e um em cada cinco de transtorno de ansiedade generalizada — e só um em cada quatro estava sob tratamento. Outros estudos já haviam mostrado que os alcoolistas apresentam uma prevalência de fobia social duas vezes mais alta do que na população em geral. O trabalho de Terra, além de levantar indicações que podem ajudar a explicar a abstinência, a recaída e a adesão ao tratamento, dá uma idéia clara da dimensão do casamento entre os dois problemas. Os entrevistados contaram que melhoram dos sintomas fóbicos quando bebem e pioram durante a abstinência; portanto, o álcool pode servir como automedicação.
Contra-ataque: Ohr, acima, neutraliza defesas da planta
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cas.Composta de duas partes iguais que se unem firmemente e originam uma molécula em forma de bola de futebol americano,a Ohr não tem similares em plantas e animais, segundo Luis Eduardo Soares Netto, da USP,que integrou a equipe que descreveu a forma tridimensional da Ohr no Journal ofMolecular Biology . Essa é a primeira proteína da Xylella cuja estrutura está depositada no Protein Data Bank,a base de dados mundial que armazena informações sobre a forma espacial de quase 40 mil proteínas.
Uma onça percorria seu território com os dois filhotes de 9 meses no Parque Nacional das Emas (Goiás),em 2001,até que um macho adulto seguiu a família por dias e matou os jovens,sob os olhos de biólogos do Fundo para a Conservação da Onça-Pintada.Depois outro macho adulto foi capturado,sugerindo que o animal matou os filhotes para eliminar a prole do rival,ter acesso à fêmea e produzir descendentes próprios,como acontece com leões.Para examinar a hipótese,biólogos de várias instituições usaram amostras de DNApara determinar a paternidade dos jovens mortos.Eis a resposta,recém-publicada na Genetics and Molecular Biology: os filhotes foram mortos pelo próprio pai.A descoberta torna improvável a hipótese inicial e atribui esse comportamento anômalo a estresse ecológico.No parque vivem cerca de dez onças.Essa densidade intensifica a competição por alimento e por fêmeas.
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> Enchente espalha metais pesados Metais pesados despejados na bacia do Rio das Velhas, no Quadrilátero Ferrífero de Minas Gerais, podem contaminar plantas e peixes a até 400 quilômetros a partir do ponto em que são lançados. Substâncias como alumínio, arsênio, cromo e mercúrio são levadas pelas enchentes regulares dos rios para a região plana das fazendas, concluíram pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e do Centro de Desenvolvimento de Tecnologia Nuclear (CDTN). “Partimos da mortandade de peixes e do gado, trazida até nós pela Escola de Veterinária da UFMG”, explica Maria Adelaide Veado, uma das autoras do trabalho. Ela pretende ampliar as análises:“Queremos dimensionar o impacto dessa contaminação na saúde da população”.
FABIO COLOMBINI/NATUREZA BRASILEIRA EM DETALHE
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> Sinais visíveis do consumo de drogas Usuários de cocaína podem ficar com cicatrizes nas mãos em razão das injeções constantes. Fumantes de crack apresentam lesões nas palmas das mãos e dos dedos devido às queimaduras deixadas pelo cachimbo em que consomem a droga. Consumidores de heroína podem ficar com manchas escuras na língua. Um estudo coordenado por Bernardo Gontijo, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), descreve os efeitos colaterais na pele do consumo de drogas e recomenda que os médicos dermatologistas se familiarizem com essas alterações.
Chegue mais perto Fabio Colombini não se importa em caminhar durante dias no meio da mata para fotografar uma planta ou um animal de que apenas ouvira falar. Tanto ele quanto o agrônomo Evaristo Eduardo de Miranda raramente pensam duas vezes antes de observar de perto os olhos de formigas ou de corujas e de sentir a textura das folhas e da pele das cobras. Colombini fez as fotos e Miranda o texto do deslumbrante livro Natureza brasileira em detalhe (Ed. Metalivros). Com a calma dos viajantes que contagia os lei-
tores, essa obra abre o olhar para os detalhes que normalmente nos escapam: a lagarta de mariposa que parece um pedaço de pau, o louva-deus que se confunde com os espinhos do cacto, a mariposa de asas amarelas que repousa entre folhas igualmente amarelas ou a esperança acima, quase a se fundir com a folhagem. Para os essencialmente urbanos esse livro é uma forma de usufruir o prazer de andar pelas matas sem o desconforto das camisas empapadas de suor, que às vezes atraem formigas.
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CIÊNCIA
MEDICINA
Magnetismo
contra a depressão
Técnica experimental mostra-se eficiente para tratar distúrbios psiquiátricos severos R ICARD O Z ORZET TO
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na Paula custa a se lembrar da última vez em que viu a mãe sorrir. Desde que sofreu sua primeira crise de depressão há quase 20 anos, Maria passa os dias triste, deitada no sofá remoendo pensamentos que brotam de um mundo sempre cinza. Já experimentou todos os tipos de antidepressivos conhecidos, mas nenhum foi capaz de pôr fim à apatia que ainda hoje a acompanha e a fez abandonar o trabalho na empresa da família na Região Metropolitana de São Paulo. Úteis na maioria das vezes, os remédios, no caso de Maria, no máximo adiavam a próxima recaída. Na última, há seis meses, os médicos tiveram de recorrer à aplicação de descargas elétricas no cérebro do paciente sob anestesia ge-
ral, a eletroconvulsoterapia, mais conhecida como eletrochoque – tratamento considerado como um dos mais eficazes para os casos mais graves, ainda que estigmatizado por já ter sido aplicado de modo cruel e usado até mesmo como técnica de tortura contra presos. Esse tratamento pode ajudar a restabelecer o funcionamento normal das células nervosas, ainda que geralmente cause uma perda de memória passageira, que pode durar de alguns dias até meses. Como nem as descargas elétricas funcionaram, em novembro Maria iniciou no Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (IPq/USP) uma terapia contra a depressão que nos últimos anos vem despertando o interesse de psiquiatras e neurologistas do mundo todo: a estimulação magnética transcraniana repetitiva (EMTr), uma seqüência de pulsos magnéticos intensos capazes de estimular ou inibir a atividade do tecido nervoso. Até bem pouco tempo atrás restrita exclusivamente a experimentos científicos, a EMTr parece produzir os mesmos efeitos que a eletroconvulsoterapia no tratamento da depressão: reajusta o funcionamento de determinadas regiões do sistema nervoso central, mas com menos efeitos inde-
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IMAGENS FUNDAÇÃO IBERÊ CAMARGO
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Ciclistas, 1989, óleo sobre tela de Iberê Camargo: autonomia e movimento
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Estudos da série Ciclistas, de 1990, Iberê Camargo
sejados. O Instituto de Psiquiatria da USP liberou o uso da EMTr para o tratamento da depressão em outubro de 2006, após a equipe do psiquiatra Marco Antonio Marcolin testá-la experimentalmente por quase seis anos contra a depressão e também no tratamento de dores crônicas, de algumas formas de alucinação comuns na esquizofrenia e na recuperação do acidente vascular cerebral. Atualmente o instituto analisa como pedir a inclusão da EMTr na lista de procedimentos pagos pelo Sistema Único de Saúde para tratar a depressão, a fim de oferecê-la gratuitamente a um maior número de pessoas. Aprovada para essa finalidade apenas no Canadá, na Austrália, na Nova Zelândia, em Israel e em alguns países da Europa, essa terapia ainda é cara: custa R$ 300 cada uma das 20 aplicações necessárias para o tratamento agudo da depressão, problema que uma em cada dez pessoas pode apresentar ao longo da vida. Em geral é feita uma sessão por dia durante um mês. Quinze dias após o início do tratamento, Ana Paula já notava os primeiros sinais de recuperação da mãe. A dose do antidepressivo que Maria ainda toma baixou para um quarto da inicial e a equipe de Marcolin começava a retirar o sedativo que ela usava para dormir. A aplicação é realmente tranqüila. Na manhã de 6 de dezembro, 44
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em uma pequena sala no primeiro andar do instituto, a psiquiatra Maria do Carmo Sartorelli aproxima uma bobina em forma de 8, do tamanho de uma mão espalmada, do lado esquerdo da cabeça de Maria, sentada em uma cadeira reclinada. Em seguida ouve-se uma série de estalos rápidos durante dez segundos. Seguem-se 20 segundos de silêncio e dispara-se uma nova seqüência de pulsos, repetida mais 23 vezes.“Minha mãe sai das aplicações conversando, e não calada como antes”, diz Ana Paula.“Fiquei surpresa com a mudança de humor.” A cada estalo, uma corrente elétrica de alguns milissegundos e intensidade altíssima (até 5 mil amperes) passa pela bobina. A rápida seqüência de liga-desliga produz flutuações em um campo magnético que atravessa o crânio e gera uma corrente elétrica de baixíssima intensidade em uma área específica do córtex, a camada mais externa do cérebro. Apesar de baixa, essa corrente elétrica é suficiente para disparar a transmissão do impulso nervoso de uma célula a outra, explica o físico Oswaldo Baffa Filho, da USP em Ribeirão Preto, que faz pesquisas nessa área. Reprogramando neurônios - Tanto a
EMTr como o eletrochoque funcionam com base no mesmo princípio físico – a passagem de corrente elétrica pelo encéfalo, o conjunto de estruturas do sistema nervoso central que inclui o cérebro. Mas há também diferenças importantes entre esses dois recursos. As principais são a intensidade e a abrangência da corrente elétrica aplicada ao sistema nervoso central. Enquanto a EMTr gera correntes de uns poucos miliamperes em uma área restrita do cérebro, a eletroconvulsoterapia produz correntes cerca de mil vezes mais altas, de até 2 amperes, que atravessam todo o encéfalo e originam convulsões semelhantes às observadas na epilepsia – o paciente não sente as convulsões nem se lembra delas porque passa o tempo todo anestesiado. Independentemente da técnica usada, acredita-se que essa passagem de corrente elétrica reprograme alguns genes das células nervosas, fazendo-as retomar o funcionamento adequado, assim como os medicamentos antidepressivos. No tratamento da depressão o alvo da EMTr é uma região do cérebro localizada no lado esquerdo da cabeça, ao la-
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do da testa e acima dos olhos. Ali fica o chamado córtex pré-frontal dorso lateral, uma região do tamanho de uma moeda de dez centavos associada à memória de curto prazo, ao raciocínio lógico e à avaliação de metas que se deseja atingir. Em geral, essa região encontrase menos ativa nos portadores de depressão do que nas demais pessoas, independentemente da origem do problema – seja a depressão decorrente de fatores genéticos, hormonais ou ambientais. Segundo Marcolin, quem passa pelas sessões de EMTr em geral não sente nada, embora possa apresentar uma leve dor de cabeça ou contrações no couro cabeludo, que geralmente terminam assim que o aparelho é desligado. Foi essa quase ausência de efeitos indesejados que chamou a atenção de Marcolin há quase dez anos e o motivou a dar uma guinada em sua linha de pesquisa. Ao ver os resultados dos primeiros experimentos,ele abandonou sua especialidade, as interações entre as drogas psiquiátricas com outros medicamentos, para investigar se a EMTr seria mesmo eficiente no combate à depressão e outras enfermidades que costumam tirar das pessoas o controle sobre a razão e suas próprias vidas. Além dos estudos internacionais, dois experimentos conduzidos na USP atestam esses benefícios e ajudam a embasar a decisão do Instituto de Psiquiatria de liberar a EMTr para o tratamento da
depressão – em especial, os casos em que nem os medicamentos nem as terapias psicológicas produzem mais o efeito desejado. O mais recente desses trabalhos, publicado em dezembro no International Journal of Neuropsychopharmacology, mostra que a EMTr é tão eficiente quanto a eletroconvulsoterapia para amenizar os sinais da depressão que insiste em não ceder, chamada de depressão refratária. O psiquiatra Moacyr Rosa, da equipe de Marcolin, selecionou 42 pessoas com idade entre 18 e 65 anos, todas com depressão refratária, para receber um de dois possíveis tratamentos: EMTr ou eletroconvulsoterapia. De maneira aleatória, Rosa tratou metade desse grupo com cinco sessões semanais de EMTr durante um mês, enquanto a outra metade passou por 12 aplicações de eletroconvulsoterapia no mesmo período. Ao longo do estudo, Rosa mediu o grau de depressão em três ocasiões por meio de uma escala que vai de 0 a 40 pontos – a pontuação inferior a 7 indica ausência de depressão e a superior a 22 confirma depressão severa, estágio em que geralmente surgem mudanças brutais de comportamento: perde-se o sono ou, contrariamente, dorme-se demais com freqüência; come-se
exageradamente ou se perde a fome quase por completo; o desejo sexual desaparece e é comum surgir o desejo de tirar a própria vida. Outros benefícios - Depois da segunda semana de tratamento, a pontuação dos participantes dos dois grupos havia baixado de 32, em média, para próximo a 25. Quinze dias mais tarde a severidade era ainda menor, perto de 15, depressão considerada de moderada a leve. De modo geral, 40% das pessoas que receberam eletroconvulsoterapia e metade das que passaram por sessões de estimulação magnética responderam bem à terapia – para os médicos, isso significa que haviam reduzido ao menos à metade os sinais de depressão que apresentavam no início do estudo. No final da pesquisa, 20% das pessoas do primeiro grupo e 10% do segundo já não eram mais consideradas deprimidas. “A proporção de participantes que melhorou é considerada pequena, mas é preciso lembrar que os casos que chegam ao Instituto de Psiquiatria da USP são sempre de extrema gravidade”, diz Marcolin. O mais importante, como esse trabalho demonstrou, é que a EMTr produziu uma melhora semelhante à eletroconvulsoterapia, que exige a aplicação de
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Aplicação: bobina dispara corrente elétrica de intensidade alta por milissegundos
anestesia geral em cada uma das três sessões realizadas por semana. Foi um efeito relevante, mas não o único. Dois anos antes a equipe de Marcolin havia descoberto outro benefício da EMTr: a excitação de determinadas regiões do cérebro por meio de pulsos magnéticos rápidos e intensos acelera a ação dos medicamentos antidepressivos. O psiquiatra Demetrio Ortega Rumi, da USP, receitou para 46 pessoas com depressão profunda uma terapia de cinco semanas à base de amitriptilina, um dos antidepressivos mais eficientes para restabelecer o equilíbrio dos mensageiros químicos do sistema nervoso central, que, acredita-se, se encontram em níveis inferiores ao desejado na depressão. No início da segunda semana, Rumi separou os participantes do estudo em dois grupos: metade recebeu 20 sessões de EMTr e o restante passou por um número igual de sessões de estimulação inativa, em que a bobina posicionada sobre a cabeça fazia os mesmos estalos, mas não gerava campo magnético algum – durante o experimento nenhum dos grupos sabia qual tratamento havia recebido. O efeito da estimulação verdadeira foi evidente. Rumi observou que já na primeira semana a intensidade da depressão havia baixado: passou de 32 para cerca de 20 pontos, em média, entre aqueles tratados com a bobina ativa, enquanto no outro grupo a escala ainda marcava depressão profunda – cerca de 46
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30 pontos. Ao final da quarta semana quase todos os integrantes que receberam a estimulação verdadeira haviam melhorado bastante: metade já não estava mais deprimida e o restante tinha depressão leve. Apenas 12% dos pacientes submetidos à estimulação simulada se livraram do problema com o medicamento, segundo resultados publicados em 2005 na Biological Psychiatry. Antes dos antidepressivos - Na Universidade Vita-Salute, em Milão, Itália, a equipe de Raffaella Zanardi observou efeitos semelhantes da EMTr em pessoas tratadas com três outros antidepressivos mais modernos: escitalopram e sertralina, que inibem a recaptação do neurotransmissor serotonina, e venlafaxina, que impede a recaptação da serotonina e da noradrenalina. Nesse estudo, detalhado em artigo do Journal of Clinical Psychiatry de dezembro de 2005, os participantes que receberam aplicações de pulsos magnéticos verdadeiros melhoraram mais rapidamente do que os tratados com estimulação inativa, embora ao final do estudo todos não apresentassem mais depressão. “Esses dados sugerem que a estimulação magnética antecipa a ação do antidepressivo, que em geral leva de duas a quatro semanas para produzir o efeito desejado”, diz Marcolin. Nem todos concordam com Marcolin. Os mais cautelosos acreditam que ainda pode ser cedo para se liberar a EMTr
para tratar depressão.Quem prefere aguardar mais lembra que, até o momento, os estudos incluíram um número relativamente pequeno de participantes, de 40 a 60 pessoas, e duraram apenas umas poucas semanas. Mas essa situação começa a mudar com a conclusão de estudos com maior número de pacientes. No início de dezembro a psiquiatra Sarah Lisanby, da Universidade de Columbia e do Instituto Psiquiátrico Estadual de Nova York, apresentou no encontro anual do Colégio Americano de Neuropsicofarmacologia a conclusão de um estudo com 301 portadores de depressão acompanhados em 24 centros dos Estados Unidos, Canadá e Austrália. Nesse ensaio financiado pela Neuronetics, uma das empresas que fabricam equipamentos de EMTr, os participantes não receberam antidepressivos por quatro semanas e metade foi tratada com estimulação magnética transcraniana, enquanto a outra parte recebeu estimulação falsa. Os índices de melhora foram mais expressivos no primeiro grupo. Na opinião de Sarah, esses dados corroboram os efeitos antidepressivos da EMTr, comparáveis aos obtidos com os medicamentos antidepressivos no tratamento de pessoas com depressão moderada e certa resistência aos medicamentos.“Mas essa eficácia ainda é menor que a obtida com a eletroconvulsoterapia”, diz a psiquiatra, chefe da Divisão de Estimulação Cerebral e Modulação Terapêutica da Universidade de Columbia, em Nova York. O resultado desse estudo fundamentou um pedido de reavaliação da EMTr enviado à Food and Drug Administration (FDA), a agência norteamericana reguladora de alimentos e medicamentos. No final deste mês de janeiro especialistas da FDA deverão se reunir para avaliar as evidências mais recentes de segurança e eficácia da EMTr, antes de decidir se aprovam o uso amplo nos Estados Unidos, onde é utilizada ainda de modo experimental. Ainda há muito que se investigar sobre a EMTr. Os primeiros experimentos indicando sua ação antidepressiva foram publicados pelo neurologista Alvaro Pascual-Leone, da Universidade Harvard, Estados Unidos, apenas em 1996, um século depois do médico e físico francês Jacques-Arsène D’Arsonval ter tentado pela primeira vez usar o magnetismo para mudar o estado de humor de
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uma pessoa. Por ora, não se sabe ao certo se o córtex pré-frontal dorso lateral é a região mais indicada para as aplicações de EMTr ou se outras áreas do cérebro produziriam melhor resultado. Também se questionam a intensidade e freqüência de pulsos mais adequadas. No início a aplicação dessa técnica causou algumas crises epilépticas em pessoas com depressão e saudáveis, que participaram dos experimentos. Adriana Conforto, do Departamento de Neurologia da USP, investigou na Universidade de Berna, Suíça, o efeito de diferentes técnicas para definir a sensibilidade individual a esse tipo de tratamento, com o propósito de determinar a dosagem específica, eficaz e segura para cada pessoa. A freqüência e a intensidade da estimulação são outros dois parâmetros que definem o uso seguro dessa terapia. “A associação de técnicas de neuronavegação e neuroimagem funcional tem um grande potencial para o uso terapêutico da estimulação magnética transcraniana de forma segura e mais eficaz”, comenta Adriana. Em Ribeirão Preto, os físicos Oswaldo Baffa, Dráulio Araújo e André Cunha Perez trabalham com o neurologista João Leite para solucionar outro problema: como encontrar a localização mais adequada para posicionar a bobina de EMTr sobre a cabeça. Eles tentam criar um programa de computador que leia imagens de ressonância nuclear magnética do cérebro e auxilie no posicionamento da bobina de forma precisa em áreas como o córtex pré-frontal. “É crucial que as coisas sejam bem feitas”, comenta Pascual-Leone, de Harvard.“Tomamos muito cuidado no controle da qualidade, da segurança e da indicação de uso.”A equipe do IPq, em São Paulo, trabalha no desenvolvimento de diretrizes que orientem as aplicações da EMTr para fazer a manutenção do tratamento, depois que a depressão foi inicialmente debelada. O caminho é longo, mas promissor, lembra a equipe do neurologista espanhol Jaime Kulisevsky, em artigo de 2003 avaliando o uso da EMTr contra a depressão: “Muitos tratamentos clínicos hoje usados na psiquiatria foram desenvolvidos lentamente, por meio de um processo de aprovação entusiástica inicial seguido de seu quase desaparecimento e, de novo, de uso clínico amplo e sensato”. •
O polêmico eletrochoque Quando aplicaram o primeiro eletrochoque em 1938, bem antes de surgirem os medicamentos psiquiátricos, os médicos italianos Ugo Cerletti e Lucio Bini acreditavam que a indução de convulsões cerebrais semelhantes às observadas na epilepsia curariam os transtornos mentais porque uma pessoa com epilepsia não poderia sofrer também de esquizofrenia. Mais tarde descobriu-se que essa idéia era falsa, mas se comprovou que o eletrochoque, usado sob condições adequadas, pode tratar a depressão profunda e outros transtornos como a esquizofrenia. Quase 70 anos depois de ter sido aplicado pela primeira vez, o eletrochoque continua sendo uma das terapias médicas mais polêmicas de todos os tempos. Mas comparar o eletrochoque aplicado hoje nos hospitais ao que era feito até o início da década de 1980 é o mesmo que igualar as cirurgias atuais àquelas
em que os bons cirurgiões eram os que cortavam o mais rápido possível para que não se sentisse dor. As sessões de eletrochoque de hoje estão longe das cenas de filmes como Um estranho no ninho, em que os personagens saem completamente inutilizados após tomarem choques muito mais intensos que os de hoje — e sem anestesia. Atualmente os médicos dão anestesia geral e relaxantes musculares antes de iniciar o tratamento: uma seqüência de brevíssimas descargas elétricas, com 1 a 2 milésimos de segundo de duração, provoca uma convulsão registrada por meio de um eletroencefalograma. A anestesia impede que se sinta dor e o relaxante evita a contração dos músculos durante a convulsão, evitando possíveis ferimentos. Além desses cuidados, quem passa por um eletrochoque recebe oxigênio e permanece sob monitoração cardíaca. PESQUISA FAPESP 131
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NUTRIÇÃO
C orpos sob pressão G inastas e atrizes sofrem dos mesmos dramas que as modelos
O pediatra Mauro Fisberg assistiu a um desfile de moda pela primeira vez há dez anos. Não para ver as novidades, mas para acompanhar as adolescentes que trabalhavam como modelos e começavam a ser atendidas no ambulatório que havia acabado de criar na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Em vista da escassez de atendimento à saúde das adolescentes que sonham em ser uma Gisele Bündchen, Fisberg começou há alguns anos a discutir o que fazer com as agências de modelos. Antes era pouco ouvido. Agora, depois da morte da modelo brasileira Ana Carolina Reston e da estudante de moda Carla Casalle, ele tem observado maior disposição para o diálogo e a busca conjunta de soluções.As modelos, porém, não são as únicas vítimas da pressão por um corpo perfeito, que persegue também ginastas, bailarinos e atores. Fisberg sabe que não conseguirá evitar que meninas e
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meninos de 12 ou 13 anos entrem nessas profissões de alto risco para a saúde, mas defende uma supervisão mais intensiva para os mais novos, com idade mínima para ingresso no trabalho e a continuidade dos estudos. ■ Como o senhor avalia a atenção que se deu à morte de duas modelos brasileiras por anorexia? — É transitória. Não acredito que se vá discutir uma mudança de imagem corporal das modelos. Quem define o padrão é o mercado. Não o nacional, mas o internacional, que movimenta bilhões e bilhões de dólares e não se guia pela saúde. Hoje o manequim procurado é 38, há dez anos era 40 ou 42. Daqui a alguns anos talvez seja 43, 44, 45, não importa. Essa preocupação atual com a saúde é, infelizmente, passageira. Daqui a pouco será esquecida pela mídia. Mais do que pela gravidade, as duas mortes ganharam visibilidade por a mídia ser formadora de opinião e porque a moda atualmente está associada à magreza, uma situação
chamativa e complexa. Infelizmente, há padrão de consumo estético.Assim como os meninos querem ser jogadores de futebol, uma profissão glamorosa e que teoricamente traz altas recompensas, as meninas querem ser Gisele Bündchen. É uma visão absolutamente distorcida. Só um menino ou menina entre milhões da mesma idade consegue ser modelo ou jogador de futebol. O problema é que essas profissões representam uma oportunidade de ascensão social tremenda, que, ao menos em princípio, não depende de trabalho físico, mas da característica física da pessoa. Existe um grupo de meninas que têm o biotipo adequado para ser modelo, mas nosso medo é que a menina normal busque uma característica que não pode atender porque não tem o corpo de que precisa para ser modelo. Ela vai fazer o máximo para chegar perto desse corpo, e aí há riscos grandes de saúde. Temos visto que mães e pais são grandes incentivadores e aceitam qualquer sacrifício em nome dessa possibilidade de ascensão social. Em setembro, os organizadores da Semana de Moda de Madri disseram que as modelos com índice de massa corporal (IMC) inferior a 18 não entrariam na passarela. Que lhe parece? — Foi uma proposta para uma única semana, não é uma lei nacional. Foi adotada pela
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Rússia e por Israel, mas França, Estados Unidos e todo o Oriente a rejeitaram. Paris tem um outro tipo de restrição mais interessante: não aceita meninas menores de 16 anos. Temos de pensar nessas propostas porque ainda não houve uma discussão científica. De onde apareceu o índice de massa corporal 18? É um índice arbitrário, de gente que não trabalha com adolescência. Teoricamente para considerar uma mulher saudável o IMC é 18,4. Além disso,o IMC é uma medida de distribuição populacional. A probabilidade de uma garota com IMC inferior a 18,5 estar desnutrida é de 95%. Mas 5% delas não são desnutridas. Outro ponto é que uma característica puramente antropométrica, por si só, não serve para nada. Temos de avaliar outras características para ver se uma pessoa é saudável, como idade e sexo. Uma parte das meninas com IMC baixo se encontra na faixa de normalidade. São magras e saudáveis, sejam modelos ou não. As modelos brasileiras mais velhas, de nível internacional, têm o IMC médio de 17 ou 17,5. Nas modelos mais jovens varia muito. Uma menina de 13 anos com IMC de 15,6 pode ser saudável, mesmo que não seja modelo. Se determinarmos arbitrariamente o IMC 18, haverá um universo grande de meninas, de 16 a 18 anos, com IMC menor que 18 que são absolutamente normais do ponto de vista clínico, pediátrico ou médico. ■ Não é bom que alguém tenha
lançado um valor inicial e aberto o debate? — Deveríamos fazer o mesmo com outras profissões. Há duas atividades que mereceriam mais atenção: a ginástica e o balé. Seus praticantes estão sujeitos a uma pressão intensa, vivem sob normas rígidas e se valem de subterfúgios para diminuir o peso e perder massa corporal. Há anos acompanhamos grupos de risco da ginástica rítmica, mas como o número de 50
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praticantes é pequeno os problemas não chamam a atenção. Só mais recentemente, depois que começaram a ganhar medalhas, as ginastas passaram a ser mais conhecidas. Qual é o risco de as pessoas desses dois grupos, balé e ginástica rítmica, desenvolverem problemas alimentares? — É maior do que o das modelos. Os transtornos alimentares incluem uma série de patologias psiquiátricas: anorexia,bulimia, compulsão e duas outras patologias cujos mecanismos ainda não estão determinados, mas que já são muito discutidas: a ortorexia e a vigorexia.
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■ O que são? — A ortorexia é a busca patológica pelo corpo perfeito ou pelo estilo de vida saudável. São pessoas que só fazem algo se for determinante para a saúde.Até seria interessante, se não fosse levado ao extremo. Já na vigorexia a pessoa não é capaz de ficar sentada um minuto simplesmente porque acha que não está gastando calorias. Mas é preciso tomar cuidado para não confundir transtornos alimentares com comportamentos alimentares alterados. Para determinar o diagnóstico, é necessária uma avaliação psiquiátrica. Fazer dieta é um dos critérios que se utiliza para determinar o diagnóstico. Mas fazer dieta pode ser normal ou patológico, do mesmo modo que vomitar depois de comer demais pode ser uma característica patológica ou representar uma fase de risco. Para se classificar como bulimia, é preciso que o comportamento seja repetitivo e existam outros sintomas, como a ingestão alimentar excessiva e culpa associada à tentativa de eliminação. ■ Qual a prevalência dos transtornos alimentares nos grupos de risco? — Na população mundial, a prevalência de transtornos alimentares é de 1 a 2%, e a bulimia é três vezes mais comum
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que a anorexia. Nos grupos de risco – em que há pressão para modificação corporal, como atletas, modelos, bailarinas, ginastas, jóqueis, atrizes e estudantes –, a probabilidade de desenvolver transtornos alimentares é de três a cinco vezes maior. A anorexia é uma doença do adolescente, mas nem todo adolescente apresenta risco de desenvolver anorexia. O risco de apresentar comportamentos inadequados é maior entre as modelos,mas isso não significa que elas terão mais doença que as outras adolescentes.Entre as meninas atendidas aqui no ambulatório a prevalência de transtornos alimentares não é maior que na população.Elas apresentam mais comportamentos de risco, mas não quer dizer que tenham mais doenças. As pessoas confundem: falam que toda modelo magra é anoréxica. É mentira. No concurso da Agência Ford,feito logo após a morte da Ana Carolina, a mídia compareceu em peso. Nunca vi tantos repórteres acompanhando as modelos, surpresos porque elas comiam mais do que eles. É lógico, elas são adolescentes, comem como loucas, mas são magras. Podem comer lixo que engordam zero. O problema é que o corpo delas está em transformação. Por isso acreditamos que, para começar a trabalhar como modelo, a menina deveria ser pelo menos púbere. ■ Por quê? — Porque aí o corpo delas já mudou e as medidas são mais estáveis. É diferente de uma menina de 12 ou 13 anos, que está entrando na carreira e tem o corpo perfeito para o biotipo de que precisa nesse momento. Mas dali a um ano o corpo dela muda: continua crescendo, ganhando novos contornos. As agências dizem para ela voltar a ter 88 ou 90 centímetros de quadril, mas ela já está com 92. Essa menina não tem gordura para perder. É essa característica arbitrária que estamos discutindo com os estilistas e as
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Para começar a trabalhar como modelos, as meninas deveriam ser pelo menos púberes, porque o corpo delas já mudou e as medidas são mais estáveis
agências. É comum eles mandarem as modelos voltarem só depois de perder 10 quilos. Algumas meninas podem perder 10 quilos e ficar perfeitas, mas outras não.Será que conseguem emagrecer de forma saudável? Ou só vão perder peso se fizerem uma plástica óssea? Como está esse diálogo com as agências? — Estamos discutindo bastante. Fizemos um desafio para as agências e para os estilistas: que seja o pessoal da área de saúde e o da área de moda, em conjunto, que definam o padrão de modificações corporais adequado.A morte da Ana Carolina abriu o diálogo com a indústria da moda. Pouco antes convocamos uma reunião e só apareceram representantes de quatro agências, nenhum diretor. Agora já consigo falar com os diretores.
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■ Qual é o papel de cada um para evitar os problemas de saúde com as modelos?
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— Todo mundo tem responsabilidade.A mídia tem uma culpa gigantesca porque exagera em várias coisas, na busca da modelo, da notícia. A família tem uma responsabilidade grande. Jamais deixaria uma filha de 12 ou 13 anos sair do interior do Brasil para morar sozinha numa cidade grande e depois ir para o exterior sem acompanhamento. Porque essa criança ou adolescente vai entrar num mundo competitivo e de rejeição constante.As modelos recebem nãos todos os dias, mesmo sendo perfeitas, porque os clientes querem características que elas não têm. E têm de ter uma estrutura muito legal para isso.Agora, com 12, 13, 14 anos, você se acha a pessoa legal, foi escolhida como modelo e é rejeitada. Lembre-se de que elas estão em transição, passando por mudanças corporais e com uma auto-estima baixíssima. Elas recebem acompanhamento psicológico? — Algumas agências oferecem acompanhamento psicológico. Mas há agências e agências.Algumas são absolutamente profissionais, outras falam muito e não fazem nada.
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■ Como surgiu a idéia de criar um ambulatório para adolescentes que queriam ser modelos? — Eram duas situações de muito interesse e alto risco: ser adolescente e ser modelo. Eu já tinha atendido em ambulatório algumas candidatas a modelo, esporadicamente, e vi que eram muito desprotegidas. Não tinham convênios médicos nem faziam exames de saúde.A primeira agência com que trabalhamos foi a Elite. Fizemos uma primeira avaliação das finalistas de um concurso nacional. Foram 100, 120 meninas, que vinham do Brasil inteiro. Não imaginávamos que fossem tão magras, tão altas e viessem de tantas regiões.
O senhor já foi a um desfile de moda?
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— Já, mas acompanhando, como profissional de saúde, as modelos. Elas desmaiam algumas vezes, pela tensão ou pelo período que ficam debaixo do calor dos holofotes. A pressão emocional é muito forte e elas podem ter um piripaque a qualquer momento, por causa de cansaço, tensão, alterações emocionais. A partir daí, começamos a trabalhar com outras agências que nos procuraram. Sempre foi um serviço gratuito, nosso objetivo sempre foi científico. ■ Que tipo de serviço vocês pres-
tam às agências? — Temos três tipos de acompanhamento de saúde das modelos. O primeiro é o acompanhamento dos concursos de ingresso de algumas agências. Temos também uma segunda forma de avaliação: recebemos aqui as new faces, que são as meninas novas, que estão entrando em carreira, para consulta e acompanhamento. Normalmente as atendemos até os 20 anos. Mas continuamos tratando algumas das que já estavam conosco, se precisar. Fazemos os exames e o acompanhamento clínico de todas as especialidades médicas. O terceiro programa de acompanhamento é a visita domiciliar.Visitamos os apartamentos das modelos.A grande maioria dessas meninas fica em apartamentos que podem ter de 5 a 15 modelos. É um grande risco, porque elas têm de cozinhar sozinhas e se cuidar sozinhas. Não vão fazer pratos sofisticados, mas o mais simples possível, um macarrão instantâneo ou uma salada, só se tiver dinheiro é que vai fazer um grelhado. O problema é que elas têm conceitos inadequados sobre alimentação, acham que não podem comer feijão com arroz, que não devem comer pão, que só podem comer até as 8 da noite. Como toda adolescente que está sozinha, não têm para quem perguntar. É o que estamos tentando mudar.
tem havido um maior entendimento. Mas tem agências que, apesar de estarem conveniadas conosco, nunca enviaram e nunca mandaram meninas e não têm nenhum interesse no que fazemos. ■ Quantas agências de modelos
vocês atendem? — Trabalhamos com todas as grandes agências de São Paulo e algumas pequenas também. São cerca de 12.
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Defendemos o estudo obrigatório das modelos até pelo menos o fim do ciclo básico
■ Que problemas mais aparecem?
— Menstruais, como em toda adolescente, constipação intestinal e dermatológicos, já que elas juntam adolescência com a necessidade de ter uma pele perfeita. Também se preocupam muito em fazer dietas, geralmente inadequadas. Oferecemos orientação geral sobre alimentação, esporte, recreação. E orientação emocional, que é nossa grande preocupação, para não deixá-las nem engordar nem emagrecer de forma inadequada. ■ O senhor conta com o apoio das famílias das adolescentes? — Quando necessário, chamamos a família. Temos o poder de veto e podemos mandar a menina para sua cidade de origem se ela não se adequar a um determinado padrão de saúde.
As agências consideram seu parecer? — Deveriam. Nos últimos anos, e principalmente agora, com a morte da Ana Carolina,
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■ Que problemas estão sendo es-
quecidos? — Um deles é o trabalho precoce. Modelo, assim como artista, é uma profissão de exceções, que reúne pessoas que teoricamente não poderiam trabalhar e estão trabalhando. Crianças e adolescentes trabalham como atrizes e como modelos, sujeitando-se ao mundo de egos, rejeições e interesses familiares. Vão continuar trabalhando como modelos ou artistas, mas acreditamos que deva existir acompanhamento médico intensivo. O segundo ponto que defendemos é que exista uma discussão da idade mínima de trabalho. Por exemplo, mesmo que se discuta uma idade, pode ser 15, 16, as meninas abaixo desse limite não vão deixar de ser modelos. Óbvio que elas vão continuar, mas que sejam consideradas aprendizes, como em outras profissões, e passem por uma supervisão maior que as mais velhas. Nesses casos, podemos pedir que as famílias estejam juntas com elas; claro que essas medidas ainda têm de ser discutidas por toda a sociedade.A terceira coisa que estamos propondo, que é o grande desafio para as agências, é a obrigatoriedade do estudo até pelo menos o final do ciclo básico. Elas param de estudar quando vão para o exterior. Muitas modelos estudam, mas de forma irregular. Infelizmente algumas escolas aceitam que elas sejam matriculadas, mas não cobram freqüência e dão atestado de escolarização.
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> EPIDEMIOLOGIA
Viagem de risco Cultura machista de caminhoneiros contribui para disseminar o vírus da Aids
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enfermeira Evely Pereira Koller já sabia que os motoristas de caminhão não se preocupam com a possibilidade de contrair o HIV, o vírus da Aids, duas vezes mais comum entre eles do que no restante da população. Quase metade jamais usa preservativo com a própria mulher e outro tanto só o usa às vezes com as namoradas ocasionais. Para entender por que adotam esse comportamento e se arriscam a contrair doenças sexualmente transmissíveis, ela e outras quatro pesquisadoras da Universidade do Vale do Itajaí (Univali), em Santa Catarina, conversaram longamente com os caminhoneiros que entram e saem do porto de Itajaí, um dos maiores do país, no litoral norte catarinense – são mais de 500 por dia. Em busca de uma visão mais completa, ouviram também funcionários de postos de combustíveis e garotas e garotos de programa. A equipe de Evely descobriu que parte do comportamento dos caminhoneiros de Itajaí pode ser explicada pela pressão do trabalho e pelos prazos curtos para percorrer longas distâncias, além da falta de unidades de atendimento médico preparadas para lidar com eles. Pesam também a cultura machista que predomina entre os caminhoneiros e a solidão das estradas, evidente em depoimentos como o deste motorista de 27 anos: Os caminhoneiros são uma espécie de soldado em guerra, sabe?, quero dizer, eles passam de duas semanas a seis ou oito meses sozinhos, fora de casa... Meu Deus, para um cara desses, qualquer mulher é gostosa. Apresentado na Aids Care de julho de 2006, o resultado dos três anos de andanças desse grupo da Univali alerta para a necessidade de novas medidas para reduzir o risco de contaminação pelo HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis.“Talvez seja preciso mais do que campanhas educativas tradicionais que explicam aos caminhoneiros por que é preciso usar camisinha nas relações sexuais fora de casa”, comenta Evely.“Talvez seja necessário criar campanhas educativas para as mulheres desses motoristas para que comecem a aceitar um casamento aberto e passem a colocar preservativos junto com as roupas do marido antes da viagem, protegendo, assim, a elas mesmas.” Monica Malta, epidemiologista da Fundação Oswaldo Cruz que participou desse estudo, acrescenta: “É difícil acreditar que, mais de duas décadas depois de identificados os primeiros casos de infecção pelo HIV, muitas pessoas ainda não se sintam vulneráveis, embora façam sexo desprotegido e usem drogas”.
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Talvez seja preciso criar campanhas para as mulheres desses motoristas
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De modo geral, quem vive ao volante de um caminhão mantém relações sexuais com mais de uma pessoa. Os próprios caminhoneiros atribuem esse comportamento às condições de trabalho e à cultura da própria profissão. Muitas vezes eles têm de esperar durante dias no porto até deixarem uma carga ou conseguirem outra. Sem ter o que fazer, já há semanas longe de casa, não é difícil arrumar uma companhia, uma vez que, dizem, o assédio de garotas de programa é intenso. É um motorista de 49 anos que conta: Há, digamos, uma espécie de perseguição, sabe? Essas mulheres vão atrás da gente. E nós somos seres humanos, meu Deus! Elas começam assim: “Ei, querido, quer se divertir?” O que você faria? A gente simplesmente não consegue resistir... O que mais preocupa Evely não é a questão moral de um homem ter amantes – mulheres, homens ou travestis – e trair sua mulher, mas o fato de seus hábitos sexuais os tornarem altamente vulneráveis a contrair doenças sexualmente transmissíveis e contaminar outras pessoas em regiões distantes. “Os caminhoneiros funcionam como uma população-ponte para os vírus”, observa Monica.
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Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, confirmando o que há quase dez anos as sanitaristas Regina Lacerda e Neide Gravato haviam observado no porto de Santos, o maior do país, por onde passam diariamente de 2 mil a 5 mil caminhões. “Os hábitos sexuais e de consumo de álcool e drogas são sempre os mesmos nas cidades portuárias”, conta Regina, técnica da Secretaria Municipal da Saúde de Santos e integrante da organização não-governamental Associação Santista de Pesquisa, Prevenção e Educação (Asppe), que trabalha com portadores de HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis. Durante três anos Regina e Neide reuniram agentes de saúde, mapearam o comportamento sexual dos caminhoneiros do porto de Santos e iniciaram campanhas de orientação sobre doenças sexualmente transmissíveis e outros problemas de saúde, em parceria com os sindicatos dos caminhoneiros e dos trabalhadores do porto. Tamanha mobilização andou um tanto e, depois, parou. “Nada mais foi feito de modo sistemático desde 2003”, lamenta Regina, que ainda tem razões para se preocupar com a situação. Ela aca-
E nós somos seres humanos, meu Deus! A gente simplesmente não consegue resistir A cultura machista se soma ao desprezo pelas possíveis conseqüências do sexo sem proteção – e assim os caminhoneiros se sentem menos vulneráveis. “Eles nunca pensam que também pode acontecer com eles”, diz Evely. Como conseqüência, os homens da estrada adotam critérios pouco confiáveis tanto para escolher as parceiras quanto para decidir se é seguro fazer sexo sem preservativo. Uma garota num restaurante, numa lanchonete, ela é meio que diferente. Você pode confiar nela..., afirmou um dos motoristas entrevistados. A falta de acesso aos serviços de saúde agrava esse quadro de desinformação sobre as doenças sexualmente transmissíveis e outras enfermidades comuns aos motoristas, como o diabetes e a hipertensão. “Esse comportamento não é exclusivo da região de Itajaí”, afirma Helena Lima, psicóloga com doutorado em saúde pública. De 2002 a 2005 ela coordenou um estudo nacional, financiado pelo Ministério da Saúde e pelos Centros de
ba de concluir um estudo com 175 garotas de programa do Porto de Santos mostrando que 5,7% carregam o HIV no sangue. É uma taxa semelhante à de quase 20 anos atrás, quando começaram os programas de prevenção às doenças sexualmente transmissíveis nos portos. “O porto é o centro de um grande corredor de transporte, que facilita a circulação de doenças”, diz ela. “Como ali não há tempo para preocupação com a saúde, o trabalho de prevenção deve ser constante, com oferta de informações, preservativos e de testes rápidos para detectar o HIV.” Em Itajaí, Evely insiste em reuniões com caminhoneiros e garotas de programa a fim de verificar se são capazes de, por conta própria, envolverem-se em campanhas para evitar a disseminação de doenças sexualmente transmissíveis e de exigirem a implantação de serviços de saúde nas estradas e nos portos. •
R ICARD O Z ORZET TO
LUIZ CARLOS MURAUSKAS/FOLHA IMAGEM
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> FÍSICA
A dança dos metais Observada pela primeira vez na menor escala possível, liga de ouro e prata revela comportamento inesperado dos átomos M ARIA G UIMARÃES IMAGENS F ERNAND O S ATO
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Ciência e arte: simulações mostram como se formam e se rompem ligações entre átomos
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ma finíssima lâmina de ouro e prata puxada pelas pontas se estica e afina no meio, até que não tem mais como estreitar e se rompe. Observada em um microscópio eletrônico, essa imagem em movimento, que lembra o queijo derretido que se estica entre a mordida e o misto-quente, não tem nada de banal. Ela revela o que acontece com a lâmina no nível dos átomos, as unidades que compõem a matéria. À medida que a lâmina se estica, ligações entre átomos se rompem e outras se formam, numa dança serpenteante, até que resta um fio de apenas um átomo de espessura. Esses átomos enfileirados um a um parecem um colar de pérolas – um colar efêmero e minúsculo, formado por três átomos, que dura só três segundos. Daniel Ugarte, físico experimental da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), em Campinas, é um dos poucos que já tiveram o privilégio de observar um fenômeno tão raro e fugaz. Sua colaboração com o grupo de físicos teóricos liderado por Douglas Galvão, também da Unicamp, é responsável por grandes avanços no estudo de como metais se comportam na escala nanométrica, do milionésimo do milímetro. Só depois de compreendido o funcio-
namento dos materiais nessa escala é que será possível utilizá-los para fins tecnológicos. Ugarte e Galvão já sabiam que ouro e prata em seu estado puro se comportam de forma distinta pouco antes de se romper. Ambos podem formar o fio com a espessura de um átomo – ou cadeias atômicas suspensas – quando tracionados em direções diferentes, específicas para cada metal. Recentemente, Galvão e seu doutorando Fernando Sato, em colaboração com Pablo Coura e Sócrates Dantas, da Universidade Federal de Juiz de Fora, exploraram novas fronteiras ao simular em computador o comportamento de ligas de ouro e prata, com proporções variadas dos dois metais. Ao ver os resultados, Ugarte percebeu algo intrigante: em boa parte dos casos, a liga se comportava como ouro puro. A equipe teórica voltou então a analisar suas animações e viu que os átomos de ouro migram para a região cada vez mais fina do metal esticado, em vez de se manterem espalhados de forma homogênea pela folha metálica. A cadeia atômica suspensa, portanto, quase só contém ouro.“Só quando constitui pelo menos 80% da liga é que a prata começa a expressar suas propriedades”, diz Ugarte, que com seus colegas relatou esses resultados inesperados na edição de dezembro da revista científica Nature Nanotechnology. PESQUISA FAPESP 131
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Moléculas em detalhes: computador revela o que escapa ao microscópio
Teoria e prática - A colaboração entre
Ugarte e Galvão começou em 2001 e envolve a rara conjunção de mentes teóricas e experimentais, além de ferramentas que permitem uma investigação completa, como simulações em computador, microscopia, cristalografia e medição do transporte de corrente elétrica. Cada uma dessas técnicas permite investigar um aspecto diferente dessas estruturas tão pequenas: a imagem no microscópio mostra os átomos em movimento, mas não distingue com certeza os de ouro dos de prata; a cristalografia descreve a conformação espacial dos átomos, mas não informa nada sobre as propriedades de transporte elétrico do material. É a concordância entre os resultados obtidos pelas áreas e instrumentos diferentes que dá força às descobertas da equipe e desvenda aquilo que um olhar isolado não consegue distinguir. omo as ligas metálicas não se comportam como metais puros (veja Pesquisa FAPESP nº 72), estudar misturas traz novidades que poderão, no futuro, ajudar a tornar a eletrônica na escala molecular uma realidade. O maior desafio à produção de ligas é imposto pelas propriedades atômicas dos materiais, que se forem muito diferentes impedem um encaixe harmonioso entre os átomos.
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Sato explica que o bom relacionamento entre metais depende da distância entre dois átomos no metal puro, que é específica para cada elemento. Como os átomos do ouro e da prata se organizam com distâncias parecidas, a liga que une esses dois metais é estável e mais fácil de criar, e em algumas proporções – como três átomos de ouro para um de prata – pode até existir espontaneamente na natureza. Outra observação inesperada nas simulações de Galvão e Sato foi a estrutura que aparece nas imagens destas páginas. Se a liga contém menos de 10% de ouro, átomos de prata se organizam em pentágonos em torno dos de ouro, formando um fio de ouro encapado por prata que funcionaria como um fio elétrico comum, numa escala milhões de vezes menor. Por ser melhor condutor de eletricidade que o cobre dos fios comuns, o ouro é usado em fios quando é necessário um transporte elétrico de alta qualidade. Por oferecer maior resistência ao transporte de elétrons, a prata funcionaria como isolante na estrutura descoberta pelos físicos teóricos. Por enquanto essa estrutura é apenas teórica, pois surgiu nas simulações em computador e ainda não foi observada na realidade, mas Galvão é otimista.“Como até agora os resultados experimentais têm confirmado as suposições teóricas, as chances de a estrutura em pentágonos existir de fato é de 95%.” Se a descoberta se confirmar, poderá ser um achado importante para a eletrônica molecular. Experimentos anteriores já haviam investigado o comportamento dos componentes atômicos de ligas metálicas, mas Jefferson Bettini, do LNLS, foi um dos primeiros a observá-lo no microscópio em tempo real. Outro avanço é que os experimentos foram feitos à temperatura ambiente, o que só se tornou possível nos últimos dez anos, quando o aluno de mestrado Varlei Rodrigues desenvolveu um aparelho que, por ultra-
alto vácuo, cria condições ultralimpas no ambiente onde se produzem quebras nas placas finíssimas de metal. O vácuo é importante porque o ambiente tem que estar perfeitamente limpo, já que qualquer átomo intruso pode alterar a composição do material estudado. Em geral esse grau de limpeza é atingido ao realizar experimentos a temperaturas entre 260 e 270º Celsius negativos, que, segundo Ugarte, não conduzem a resultados satisfatórios porque a temperatura também afeta as propriedades do metal.“Em temperaturas tão baixas os materiais parecem todos iguais”, explica. Vídeos que registram o rompimento de metal a temperatura ambiente e em nitrogênio líquido mostram que o metal frio não refaz suas ligações de forma tão dinâmica quanto à temperatura ambiente. Nessas condições, o processo é mais lento, menos fluido e menos representativo do cotidiano.“Se um telefone celular for feito com nanofios, ele terá que funcionar em temperatura ambiente”, argumenta. O caso dos nanofios metálicos é um bom exemplo de como a nanociência está ainda numa fase exploratória, pois a migração dos átomos de ouro para o ponto de quebra e as estruturas em pentágono que protegem o fio de ouro foram reações completamente inesperadas. Além disso, Ugarte explica, “na escala atômica os objetos são grudentos”. Um nanofio sofre uma atração espontânea pelo substrato em que está apoiado, como uma força da gravidade exacerbada, o que torna muito difícil a manipulação. Mas a aluna de doutorado Denise Nakabayashi desenvolveu um aparelho que permite manipular fios de 1 mícron (um milésimo de milímetro). maior parte das aplicações da nanotecnologia ainda está por vir. Segundo Galvão, 80% do que se faz nessa área ainda está em fase de entender como os metais funcionam na escala nanométrica, para em seguida pensar em aplicações práticas. Ele acredita que ainda faltam entre dez e 15 anos para que a nanotecnologia faça parte do cotidiano. Galvão presume que, mesmo que as cadeias atômicas suspensas normalmente não durem mais que poucos segundos, construir nanofios estáveis não será um problema: basta usar outro material como suporte. A dificuldade está em construir fios com composição conhecida, de
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forma eficaz e controlada. Uma opção é utilizar moléculas sintéticas como a Lander, construída em 2002 por pesquisadores dinamarqueses e franceses, e assim chamada por se parecer com um módulo de exploração lunar. Ela é composta por átomos de carbono e de hidrogênio – um eixo comprido com projeções laterais que funcionam como patas. Galvão e Sato explicaram, com simulações publicadas em 2004 na revista Nature Materials, como a molécula Lander passeia por entre átomos soltos e deixa atrás de si pequenos trechos de nanofios de cobre. Para construir outros nanomateriais, moléculas sob medida podem ser de grande utilidade. Mas Galvão ressalta que boa parte desse tipo de descoberta se dá por acaso. “A sorte favorece, mas o olhar tem que estar preparado para ver.” Mas quando – e se – forem vencidos os obstáculos técnicos e de conhecimento, nanocircuitos podem mudar bastante a eletrônica. Não só por seu tamanho, que permitiria a fabricação de aparelhos muito menores, mas também por suas propriedades. Na escala nanométrica, a condução de eletricidade não segue as mesmas regras do mundo macroscópico. Em nanofios a energia vem aos pacotes, em vez de ser contínua como nas tomadas de uma casa. Mas a transmissão é eficiente, apesar de inconstante. E não dissipa energia, segundo Ugarte, o que significaria circuitos elétricos que não aquecem. Apesar de se saber ainda relativamente pouco sobre o comportamento atômico dos materiais, o conhecimento que existe, aliado à imaginação humana, já permitiu criar uma grande quantidade de produtos que podem
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alegrar o Natal dos aficionados por tecnologia. A página na internet do Projeto sobre Nanotecnologias Emergentes (www.nanotechproject.org) traz uma lista de mais de 300 deles, que incluem desde nanotubos de carbono para telas planas de monitores até nanopartículas de prata que combatem bactérias e mofo em embalagens para alimentos.
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alta tecnologia necessária para estudar átomos custa caro, e por isso os projetos de Ugarte têm orçamentos astronômicos – um microscópio eletrônico pode custar de R$ 3 milhões a R$ 7 milhões. Esses trabalhos exigem instalações especiais que tornaram necessário um novo prédio – e cuja construção o físico está coordenando no LNLS. Mas, para ele, o que limita o avanço da nanociência experimental não são recursos financeiros, mas humanos. É comum que seus alunos tenham que usar o mestrado para construir ou aprender a usar um equipamento para, finalmente, aplicá-lo para pesquisa no doutorado, como fizeram Varlei Rodrigues e Denise Nakabayashi. “Não se conseguem pessoas que gostem de fazer bricolagem; é preciso entender, pensar, ter paciência, errar nas medidas. Os estudantes estão acostumados a encontrar respostas imediatas na internet”, observa Ugarte, que faz a sua parte para mudar esse quadro. Os mesmos princípios que o norteiam na formação acadêmica de seus alunos Ugarte adota em casa. Seus filhos Pedro e Maia, de 6 e 4 anos, fazem macarrão caseiro, descem ladeiras no carrinho de rolimã feito em casa e já construíram um telescópio em parceria com o pai. •
OS PROJETOS Estudo teórico multiescala de nanoestruturas puras e híbridas
Microscópio eletrônico de transmissão analítico para nanocaracterização espectroscópica de materiais
MODALIDADE
Projeto Temático
MODALIDADE
Auxílio à Pesquisa – Regular COORDENADORA
MARÍLIA J. CALDAS – USP
COORDENADOR
DANIEL UGARTE – Lnls INVESTIMENTO
US$ 85.268,00 e R$ 181.110,54 (FAPESP)
INVESTIMENTO
US$ 2.500.000 (FAPESP)
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> METEOROLOGIA
O PIB das nuvens
FOTOS EDUARDO CESAR
Modelo matemático analisa os impactos das mudanças climáticas sobre o crescimento econômico
O FÍSICO LUIS AÍMOLA SE PÔS HÁ SEIS ANOS A estudar climatologia, teorias econômicas e princípios de negociações internacionais. Seu propósito era reunir esses três universos em um só modelo matemático, indo além dos estudos acadêmicos desse gênero, que tratam apenas de duas dessas três áreas, e facilitar a tomada de decisões que evitem os impactos das mudanças climáticas. Por fim, ele propôs uma linguagem comum entre as ciências naturais e as sociais, algo muito raro, que trata as incertezas dos cenários de mudanças climáticas numa abordagem típica dos economistas. Em termos práticos: seu modelo matemático mostra o momento em que o crescimento econômico deve estagnar e começar a cair, de acordo com cenários mais amigáveis ou mais cruéis sobre o clima do futuro, e quando agir para evitar essa queda, levando em conta as incertezas sobre o comportamento do clima. Nem sempre os ventos estão a favor. “Se o clima mudar muito rapidamente”, diz Aímola,“pode não dar tempo de to-
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mar medidas que evitem a queda da atividade econômica e o desemprego”. É essa a situação de cinco das nove simulações que ele fez com o Proclin, sigla de Protótipo para Simular Cenários de Incertezas nas Negociações Climáticas, tomando como horizonte os próximos cem anos e apenas dois blocos de países – um do Norte, bastante industrializado, e outro do Sul, em desenvolvimento. Se a temperatura aumentar muito rapidamente, o crescimento econômico dos dois blocos de países poderia estacionar e começar a cair em 2015, 2022, 2037, 2043 e 2051, se não fossem tomadas medidas para reduzir a emissão de CO2, o principal responsável pelo aquecimento global. Segundo Aímola, ainda que as incertezas sobre o comportamento do clima futuro se reduzam rapidamente, as ações preventivas contribuiriam muito pouco para adiar a queda do Produto Interno Bruto (PIB), a soma de todas as riquezas produzidas pelo país. No cenário oposto, se o aquecimento global for mais lento, de acordo com as outras quatro simulações já realizadas, o crescimento econômico poderia estagnar e cair somente a partir de 2068, 2070, 2083 ou mesmo só no século 22 sem nenhuma medida paliativa; a adoção de medidas contra a elevação da temperatura adiaria essa queda em 20 ou 30 anos.“Um dos pressupostos desse modelo é que os danos climáticos são o
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TRIUNFO
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único problema capaz de deter o crescimento do PIB”, diz Aímola, “por meio da destruição de portos, da redução da produção agrícola e do aumento da mortalidade da população”. “A modelagem ajuda a entender o processo de negociação e a tomada de decisões”, comenta Pedro Leite da Silva Dias, professor da Universidade de São Paulo (USP), que orientou o doutorado de Aímola, do qual resultou o Proclin. “A análise está mais restrita ao uso de combustíveis fósseis e seus impactos sobre a mudança do clima”, observa o economista Eliezer Martins Diniz, professor da USP. “A análise das florestas, que representam um impacto de cerca de 75% das emissões de CO2 para o caso brasileiro, exigiria um enfoque distinto e produziria outro trabalho tão ambicioso quanto este.” Segundo Diniz, esse modelo, com as devidas adaptações, pode ser utilizado também em outros tipos de negociação ambiental dos quais o Brasil possa participar no futuro. Custos e benefícios – O Proclin ajuda a dissolver os impas-
ses dos negociadores. As decisões de cada país sobre adiar ou pôr em prática as medidas preventivas dependem de um raciocínio puramente econômico: se os custos estimados forem menores que os danos previstos, os países vão agir; caso contrário, não. Em outubro do ano passado, o primeiroministro inglês, Tony Blair, propôs no Parlamento a aprovação de medidas de redução da emissão de CO2 como forma de deter os efeitos do aquecimento global. Grupos políticos opostos travaram o andamento da proposta alegando que a atividade industrial também seria reduzida e não haveria ganhos claros imediatos. A Inglaterra é um país que apresenta custos relativamente baixos para reduzir os impactos das mudanças climáticas e, ao mesmo tempo, de alta vulnerabilidade. Portanto, deve se manter como protagonista ou promotor, de acordo com uma classificação de atitudes dos países em negociações internacionais aplicada inicialmente para analisar as medidas adotadas nos anos 1970 contra a emissão de poluentes causadores da chuva ácida e nos anos 1980 para o Protocolo de
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Montreal para gases que rarefazem a camada de ozônio. Formulada por dois sociólogos, o alemão Detlef Sprinz e o finlandês Tapani Vaahtoranta, essa classificação dos países em promotores, proteladores, intermediários ou expectadores é um dos 12 modelos vindos da economia, da climatologia, da teoria dos jogos e da ciência política, que constituem o Proclin. Os proteladores – países de custos altos e impactos baixos, como os Estados Unidos – tendem a adiar a ação, já que os benefícios seriam poucos. Os intermediários – de custos e vulnerabilidade alta, como o Brasil e a Austrália – são incertos: podem agir como promotores, como proteladores ou ainda acobertar-se pela ambigüidade. O Proclin administra três conjuntos de variáveis – o clima, as incertezas e a economia. O resultado final é a indicação de quando o PIB pode estagnar e começar a decrescer continuamente em virtude do aquecimento global. Essa data pode mudar de acordo com as rodadas de negociações, em que os países, em razão dos custos e benefícios previstos, decidem se é melhor agir ou contar com a sorte. As negociações internacionais sobre mudanças climáticas, transformadas em linguagem matemática, assumem a forma de um jogo nãocooperativo: os representantes de cada país sabem que precisam cooperar, caso contrário todos sairão perdendo, mas agirão com base apenas no auto-interesse, levando em conta seus próprios custos, danos e benefícios gerados pela redução de emissão de CO2, sem nenhuma visão altruísta. “Os ganhos de cada país não são transferidos para os outros, como no jogo cooperativo”, diz Aímola. “Os resultados das simulações sugerem que as decisões para evitar recessão devem se basear mais no princípio da precaução do que na certeza sobre o comportamento do clima”, comenta Aímola. O Proclin valoriza a precaução porque pressupõe a aversão ao risco – desta vez a contribuição veio das equações financeiras que procuram prever o comportamento de quem vive ganhando ou perdendo nas bolsas de valores em função do apego ao perigo.“Se um país assume a aversão ao risco, vai tomar medidas de precaução, como a redução de CO2, mesmo que as incertezas sobre o comportamento do clima caiam lentamente.” A aversão ao risco, lembra ele, pode oscilar de acordo com as circunstâncias e pressões internas ou externas.“Mesmo que o clima mude pouco”, diz Aímola,“furacões e secas podem ser interpretados pela população como sinais de mudanças climáticas, alimentar o medo, aumentar a aversão ao risco e apressar a tomada de decisões”. •
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Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org
Notícias
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Ambiente
respeito a uma realidade mais ampla porque o consumo do agrotóxico no Brasil cresceu mais de 160% entre os anos de 1992 e 1998.
Contaminação de rios Para investigar o efeito residual de agrotóxicos e a possibilidade de contaminação de rios,o estudo “Análise da contaminação dos sistemas hídricos por agrotóxicos numa pequena comunidade rural do Sudeste do Brasil”se concentrou na região de cultura do tomate do município de Paty Alferes,no Rio de Janeiro.Foram feitas cinco coletas mensais em 27 pontos do local e analisadas 135 amostras.O diagnóstico do teor de contaminação por agrotóxicos (organofosforados e carbamatos) nos sistemas hídricos foi feito pelo Laboratório de Toxicologia Enzimática (Enzitox),do Departamento de Biologia Celular e Genética,Instituto de Biologia,Universidade do Estado do Rio de Janeiro,que desenvolveu uma metodologia de monitoramento da contaminação de água e alimentos.O local da pesquisa foi escolhido porque a plantação é feita em encostas bastante inclinadas que,associadas a um solo pobre,contribuem para a contaminação dos sistemas hídricos.“A elevação da declividade favorece o processo de deflúvio superficial,enquanto a erosão do solo e a falta de cobertura vegetal favorecem o processo de lixiviação dos agrotóxicos”,escreveram os autores do estudo,Marcelo Motta Veiga e Dalton Marcondes Silva,da Fundação Oswaldo Cruz,Lilian Bechara Elabras Veiga,da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),e Mauro Velho de Castro Faria,da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).Os resultados comprovaram que há contaminação de 70% dos pontos de coleta selecionados e que a saúde da população local está em risco.O estudo isolado em uma região apontou para a necessidade de práticas educativas entre os agricultores,de políticas regulamentares e de uma produção e uso planejados do agrotóxico para reduzir os danos ao meio ambiente e à saúde humana.Mesmo que se concentre em um único exemplo,os resultados dizem
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FOTOS EDUARDO CESAR
A coleção SciELO Brasil encerrou 2006 com dois novos títulos: Perspectivas em ciências da educação, da área de ciência da informação e de biblioteconomia, e Mana, sobre antropologia social. As duas publicações somam-se a outras nove revistas incorporadas à coleção desde setembro.
CADERNOS DE SAÚDE PÚBLICA – VOL. 22 – Nº 11 – RIO DE JANEIRO – NOV. 2006 www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102311X2006001100013&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
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Administração
Ambiente de trabalho Através de uma revisão dos modelos administrativos existentes,o trabalho “Um novo modelo de pesquisa de clima organizacional”,de Carlos Alberto Ferreira Bispo,da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) da Universidade de São Paulo (USP),desenvolveu uma metodologia para levantar os problemas da empresa,levando em consideração as novas questões que passaram a influenciar as decisões e atitudes dos funcionários.“Esses novos fatores surgiram devido à evolução da sociedade através da globalização,das inovações tecnológicas,da grande difusão das informações e do aumento da concorrência entre as empresas,o que fez com que essas empresas exigissem mais de seus funcionários e esses,em contrapartida,mais cultos,mais informados e mais organizados,também passaram a exigir mais das empresas”,escreveu o autor.O artigo relata a experiência de análise do clima organizacional com profissionais da área de recursos humanos,assistência social e assistência médicohospitalar.Ao propor a elaboração de questionários abordando os possíveis fatores internos e externos que influenciam no trabalho,o estudo sugere uma adequação realista para resolver os pequenos problemas e encontrar caminhos para problemas de maior porte que,apesar de comprometer o bom andamento da empresa,costumam ser desconhecidos da alta administração. PRODUÇÃO – VOL. 16 – Nº 2 – SÃO PAULO – MAIO/AGO. 2006 www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010365132006000200007&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
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Economia
Desemprego e produtividade No esforço de compreender quais caminhos podem levar à conciliação entre o crescimento da produtividade e a oferta de emprego, o estudo “Mudanças no padrão de uso da mão-de-obra no Brasil entre 1949 e 2010”, do professor do Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Duilio de Avila Bêrni, faz uma análise estrutural por decomposições do modelo de insumo-produto, utilizando-se das matrizes decenais de 1959/2000 e aplicando-as para o período de 1949 e 2010. O trabalho partiu do exame das estatísticas do crescimento do emprego e do produto, observando a incorporação de 64,6 milhões de pessoas ao contingente de 15,8 milhões já empregadas em 1949, projetando-se um emprego total de 71,1 milhões de trabalhadores em 2010. De acordo com as projeções, apenas o setor de serviços foi capaz de aumentar o emprego em termos absolutos e com ganhos de produtividade. O estudo aponta para a possibilidade de continuidade da pesquisa com o acréscimo da produtividade setorial do capital e com o aprofundamento das investigações sobre as causas da virtuosidade do setor de serviços, desagregando-o em subsetores. O autor também indica que a análise ficaria mais enriquecida com o estudo da distribuição do produto social, e não apenas de sua geração.“Esses aspectos poderiam contribuir para o entendimento mais abrangente da associação do uso do trabalho social, aqui avaliado por meio do uso da mão-de-obra, com a geração de virtuosidade setorial na economia brasileira”, afirma. NOVA ECONOMIA – VOL. 16 – Nº 1 – BELO HORIZONTE – JAN./ABR. 2006 www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010363512006000100004&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
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Botânica
Plantas medicinais Doenças de origem broncorrespiratória, infecções urogenitais, problemas de coluna, verminose e até impotência sexual são tratadas na região do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros e da cidade do Alto Paraíso pela medicina popular elaborada à base de ervas nativas. O artigo “Uso de plantas medicinais na região do Alto Paraíso de Goiás”, de autoria de Cynthia Domingues de Souza, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), e Jeanine Maria Felfili, da Universidade de Brasília (UnB), relata o resultado de entrevistas com a comunidade local sobre o uso cotidiano dessas plantas. O trabalho concluiu que nas espécies arbóreas a entrecasca e as sementes são usadas com mais freqüência. E poucas são as espécies vegetais do Cerrado – entre os estratos, ervas, arbustos e árvores – que não têm aplicação para uso humano: 69%
das 103 espécies citadas pelos entrevistados como úteis pertencem à flora nativa. As dez espécies medicinais mais utilizadas foram citadas por todos os entrevistados: chapéu-de-couro (Echinodorus macrophyllus (Kunth) Micheli), arnica (Lychnophora ericoides Mart.), plantas nativas de porte herbáceo/arbustivo; as arbóreas nativas, jatobá (Hymenaea stigonocarpa Mart. ex Hayne), tingui (Magonia pubescens A. St.-Hil.) e o barbatimão (Stryphnodendron adstringens (Mart.) Coville) e duas ruderais, carrapicho (Acanthospermum australe (Loefl.) Kuntze) e mastruz (Chenopodium ambrosioides L.), de porte herbáceo/arbustivo. Apesar dos benefícios do conhecimento popular e uso medicinal das plantas, o estudo avalia que a exploração extrativista vegetal está sendo feita de maneira indiscriminada e aponta para a necessidade da elaboração de um programa eficiente de manejo sustentado. ACTA BOTANICA BRASÍLICA – VOL. 20 – Nº 1 – SÃO PAULO – JAN./MAR. 2006 www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010233062006000100013&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
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Lingüística
Maço de cigarros Ao observar semelhanças e diferenças no discurso de advertência dos maços de cigarro em vários países do globo, o estudo “As mensagens de advertência nos maços de cigarro: um olhar de lingüística discursiva comparativa” procurou identificar especificidades das condições de produção presentes em cada zona geográfica analisada. “As mensagens de advertência nos maços de cigarro são uma manifestação textual de uma relação que se estabelece entre as autoridades da saúde, os fabricantes e os consumidores dos produtos do tabaco”, explica o autor do trabalho, Omar Sabaj, da Pontificia Universidad Católica de Valparaíso, no Chile. Após a análise, o estudo conclui que 100% das advertências na América do Sul são impessoais e menos diretas. Enquanto isso, na Europa e América do Norte a mensagem é mais forte, direta e até apelativa. O estudo conclui que os países desenvolvidos consideram mais que os subdesenvolvidos os efeitos negativos do cigarro e foram os primeiros a apresentar demandas civis e estatais contra as companhias de tabaco. DELTA – VOL. 22 – Nº 1 – SÃO PAULO – 2006 www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010244502006000100004&lng=pt&nrm=iso&tlng=es
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MUNDO
> TECNOLOGIA Nas ruas, carros a hidrogênio lução no design e na célula a combustível, equipamento semelhante a uma bateria que transforma o gás hidrogênio e o oxigênio do ar em energia elétrica. O compartimento das células é 20% menor e 30% mais leve que o atual. A tração do carro é feita por um motor de 80 quilowatts (kW) na frente e dois outros, de 25 kW em cada roda traseira. A eficiência energética, ou o aproveitamento do combustível, é de 60%, quase três vezes mais que um motor semelhante a gasolina e 10% maior que o último modelo do FCX. Outra montadora, a BMW, apresentou também em Los An-
geles o Hydrogen 7, série luxuosa de um sedã, que também será alugado para futuros voluntários. Ao contrário do FCX e de outros protótipos de montadoras, o série 7 especial não emprega células a combustível. Ele utiliza o próprio motor 6.0 a combustão dos veículos convencionais de série, que, nesse caso, possui 12 cilindros e 260 cavalos de potência. O hidrogênio na forma líquida é resfriado a -250ºC em cilindros especiais e é suficiente para rodar 210 quilômetros (km). O mesmo motor funciona também com gasolina. Nesse caso a autonomia é de 482 km.
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HONDA
LINHA DE PRODUÇÃO
A nova geração do FCX, o carro da Honda movido a hidrogênio, deverá estar no mercado em 2009 conforme foi anunciado no Salão do Automóvel de Los Angeles, Estados Unidos, em novembro passado. O modelo é uma evolução do atual FCX disponível, em forma de aluguel e sob acompanhamento técnico do fabricante, no Japão e em alguns estados norte-americanos para órgãos governamentais e famílias (veja em Pesquisa FAPESP no 126). No estado da Califórnia, por exemplo, já existem vários postos de abastecimento de hidrogênio. O novo modelo é uma evo-
Novo FCX: chassi com cilindros de hidrogênio, em vermelho, o coração da célula no centro e o motor elétrico na frente
feitos com litografia Um novo processo de padronização química combinando um auto-arranjo molecular com a litografia convencional (antiga técnica de gravação) para criar superfícies multifuncionais em sensores e outros dispositivos que exijam precisão molecular foi desenvolvido por um grupo de pesquisadores da Universidade do Estado da Pensilvânia, nos Estados Unidos. O processo permite a criação de superfícies com diversas funcionalidades químicas e promete incorporar a litografia usada atualmente para a produção de semicondutores. A nova técnica, que 62
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poderá ter aplicações na química aplicada e na bioquímica, foi descrita na edição de 22 de dezembro de 2006 da revista Advanced Materials.A técnica usa monocamadas autoorganizadas – filmes químicos compostos por uma densa mo-
Funcionalidades químicas diferentes, em vermelho e azul
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lécula – para construir uma camada sobre uma superfície.Um revestimento fotolitográfico – impressão de um circuito eletrônico por meio de luz – funciona como uma barreira e impede interações das moléculas entre as monocamadas.
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> Futuro promissor das nanocerâmicas Nos últimos 20 anos pesquisadores de todo o mundo têm trabalhado para desenvolver cerâmicas avançadas para uso industrial em sensores, revestimentos, materiais eletrônicos e filtros. Ganharam recentemente a companhia das nanocerâmicas, estruturas manipuladas e funcionalizadas quase no nível atômico para as mesmas áreas. Esses materiais já são reconhecidos como um segmento industrial importante e bilionário. É o que mostra um recente estudo da empresa norte-americana BCC Research. Esse mercado totalizou US$ 2,2 bilhões em 2006, ape-
UNIVERSIDADE DA PENSILVÂNIA
> Filmes moleculares
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LAURABEATRIZ
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> Álcool a partir de gramíneas Os Estados Unidos estão cada vez mais interessados na produção de etanol para abastecer veículos no lugar da gasolina. Dois estudos divulgados no final de 2006 mostram a busca por melhores formas de produzir álcool combustível sem a cana-de-açúcar, que lá não é cultivada por fatores climáticos.A primeira solução vem de uma nova cepa de levedura capaz de produzir etanol mais rápido e com mais eficiência a partir de fermentação de milho e de outras plantas como um tipo de capim comum na América do Norte. O grupo coordenado por Hal Alper, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), modificou uma das proteínas responsáveis pela transcrição dos genes da levedura Saccharomyces cerevisiae provocando alterações genéticas no microorganismo. O estudo apresentado na revista Science (8 de dezem-
bro) também é assinado por pesquisadores da Universidade de Tecnologia de Berlim, na Alemanha. Na mesma publicação, outro estudo aponta vantagens na produção de etanol a partir de gramíneas existentes nos campos do mesmo continente. A biomassa resultante de várias espécies de plantas nativas pode, segundo os pesquisadores David Tilman, Jason Hill e Clarence Lehman, da Universidade de Minnesota, produzir mais etanol que a mesma área de milho, o vegetal usado para produzir esse combustível nos Estados Unidos. O estudo durou dez anos e mostrou também que pode haver uma significativa redução dos níveis de dióxido de carbono liberados na atmosfera pelos veículos, diminuindo a poluição e o efeito estufa sobre o planeta.
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> Análise rápida de
ta resolução de misturas complexas do material analisado, e um espectrômetro de massa usado para caracterizar cada variação de oligossacarídeo pela determinação precisa de sua massa em nível molecular. A combinação resultou na identificação da presença de OGs em amostras de cinco mulheres num único teste. O estudo foi publicado na versão on-line do Journal of Agricultural and Food Chemistry.
leite materno Uma nova técnica, que permite uma rápida e detalhada análise dos oligossacarídeos, o terceiro maior componente sólido presente no leite materno, depois da lactose e dos lipídeos, foi desenvolvida por uma equipe de pesquisadores da Universidade da CalifórniaDavis em parceria com a empresa Agilent. Mais de 200 oligossacarídeos (OGs), um grupo de moléculas bioativas do leite, foram identificados nas últimas décadas, mas até agora não havia nenhum instrumento capaz de medir sua presença numa amostra. O diferencial do novo método é a combinação de duas ferramentas analíticas, um chip de glicanas (polissacarídeos), desenvolvido para separações de al-
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> Semicondutores dentro da fibra
FÁBIO COLOMBINI
nas nos Estados Unidos, e as projeções indicam um valor de US$ 3,4 bilhões em 2011. O crescimento anual total deverá ser de 8,9% em relação ao faturamento do setor.As nanocerâmicas vão crescer mais, 23,4%, enquanto as cerâmicas avançadas, 6,9%, em dólares.
Levedura melhorada para a produção do etanol
A união de duas classes de tecnologia pode resultar em telecomunicações mais rápidas e de maior qualidade, inclusive a internet. É que pesquisadores da Universidade do Estado da Pensilvânia, dos Estados Unidos, e da Universidade de Southampton, da Inglaterra, reuniram materiais semicondutores, incluindo transistores, dentro de uma fibra óptica.A idéia foi combinar as funções ópticas e eletrônicas dentro da mesma fina estrutura de uma fibra. Dessa forma, os sinais fotônicos que levam as informações não precisariam sair das fibras, passando por dispositivos que transformam o sinal luminoso em elétrons, tornando, além de tudo, esses sistemas de transmissão mais baratos.
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LINHA DE PRODUÇÃO
BRASIL
NASA/BOEING
> TECNOLOGIA
Imagem da ISS simulando sobrevôo em Brasília: novos ensaios previstos
gravidade zero A Agência Espacial Brasileira está programando a realização de uma segunda fase de experimentos em ambiente de microgravidade, também chamado de gravidade zero. O projeto, incluído no Programa Microgravidade, selecionará estudos que irão a bordo do foguete suborbital brasileiro VSB-30, em agosto de 2008, e numa nave Soyuz, em setembro de 2009. Embora a opção do foguete VSB-30 saia bem mais em conta para a realização de experimentos sem a influência da gravidade, eles duram apenas alguns segundos. O ambiente de microgravidade nesse caso é proporcionado por uma plataforma, que fornece os serviços básicos aos experimentos nela embarcados, como suporte mecânico, energia, comunicação, estabiliza64
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ção, sistema de recuperação, entre outros. Já os experimentos que voarão na Soyuz poderão ser observados durante alguns dias e terão o suporte da Estação Espacial Internacional (ISS), em órbita da Terra a uma altitude entre 350 e 400 quilômetros. O prazo para envio de propostas termina no dia 20 de março de 2007.
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> Estrada ruim gera mais poluição A má conservação das estradas contribui para a emissão de dióxido de carbono (CO2) e para o aumento do consumo de combustível, aponta pesquisa realizada pela Escola de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo EDUARDO CESAR
> Experimentos com
(USP) de Piracicaba, que avaliou o estado de conservação de rodovias brasileiras e seu impacto econômico e ambiental por meio de análise de 48 viagens de caminhões, no interior de São Paulo e da capital em rotas para Cuiabá (MT), Goiânia (GO) e Feira de Santana (BA). Daniela Bacchi Bartholomeu, que realizou o estudo de doutorado, explica que se as rodovias em pior estado de conservação fossem recuperadas haveria uma redução de 4,8% no consumo de combustível e 4,5% na emissão de CO2, além de uma economia para o motorista de quase R$ 34,00 a cada 100 quilômetros rodados (Agência USP de Notícias).
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> Magnetismo para o cultivo de rosas Rodovia em péssimo estado aumenta gasto de combustível
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Rosas e ímãs, uma combinação que deu certo. Um estudo
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para software livre
ROGÉRIO COSTA/INSTITUTO MAUÁ
paulista. Ao final de 12 meses, o ciclo completo de floração da rosa, foi registrado aumento de produtividade de 23% na área de cultivo irrigada com a água tratada com um conjunto de ímãs fixos. A variedade de rosa escolhida,uma cultivar do Grupo Flora Reijers, produtor de Andradas, em Minas Gerais, é muito sensível às mudanças climáticas, de qualidade da água e de concentração de nutrientes. Os pesquisadores ainda não têm explicação científica para os resultados obtidos. Costa espera obter essa resposta com a sua tese de doutorado.
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> USP terá centro
realizado durante dois anos com água tratada magneticamente para irrigar as flores apresentou como resultado melhor qualidade da planta após o corte e aumento de produtividade. “Com a aplicação da técnica, a roseira passou a crescer mais rapidamente, ter hastes mais longas, botões e folhas maiores, qualidades bastante apreciadas no produto”, diz Rogério Costa, que fez a pesquisa como parte de sua dissertação de mestrado orientada pelo professor Luiz Alberto Jermolovicius, do Laboratório de Microondas do Instituto Mauá de Tecnologia, de São Caetano do Sul, no ABC
Botão maior após tratamento com ímã
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O Instituto de Matemática e Estatística (IME) da Universidade de São Paulo (USP) abrigará a partir de 2008 um centro dedicado exclusivamente a pesquisa e desenvolvimento de software com código aberto. O Centro de Competência em Software Livre (CCSL) terá laboratórios de pesquisa e um laboratório de extensão, que prestará assessoria a empresas, pessoas físicas, órgãos públicos e ONGs para uso, implantação e desenvolvimento de programas. O CCSL reunirá pesquisadores, alunos de pós-graduação e entusiastas do código aberto para troca de experiências. O Departamento de Ciência da Computação do IME já desenvolve programas para aplicações como gerenciamento de bibliotecas e informatização de programas de saúde. Com o novo projeto, o CCSL contribuirá com a indústria nacional de informática e ajudará a difundir as tecnologias livres entre os usuários. O prédio está orçado em cerca de R$ 1,2 milhão e será construído na Cidade Universitária em São Paulo com verbas da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e da própria USP.
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> Prêmios de categoria Depois da escolha de participantes nas cinco regiões brasileiras, o Prêmio Finep 2006 na sua etapa nacional realizada em dezembro, em Brasília, premiou os vencedores do ano em seis categorias. Promovido pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), do Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT), o prêmio teve os seguintes ganhadores: Vinibrasil Vinho, de Per-
nambuco, na categoria Processo, por produzir vinhos de qualidade na região do São Francisco, na cidade de Petrolina. O produto ganhador foi da empresa Pele Nova, do Mato Grosso do Sul (veja Pesquisa FAPESP no 88), um curativo biocompatível.Na categoria Pequena Empresa ganhou a empresa cearense Nuteral, produtora de suplementos alimentares (veja Pesquisa FAPESP nº 79) e a Grande Empresa, a Mectron, de São José dos Campos, em São Paulo, por seus projetos nas
áreas espacial e de defesa. A vencedora nas categorias Instituição de Ciência e Tecnologia e Inovação Social foi a Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias (Embrapa). Na primeira foi a unidade Embrapa Algodão, de Campina Grande, na Paraíba, pelo trabalho no semi-árido e a segunda a Embrapa Milho e Sorgo, de Sete Lagoas, Minas Gerais, pelo projeto Barraginhas que instala pequenas barragens com água da chuva nos municípios para amenizar os efeitos da seca.
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Energia solar na cadeira A instalação de dois painéis solares fotovoltaicos a uma cadeira de rodas motorizada aumentou em 40% o tempo em que ela tem autonomia para rodar e reduziu o tempo de carregamento das baterias. O projeto, desenvolvido na Faculdade de Engenharia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Guaratinguetá, prevê ainda que, para maior aproveitamento do sol, os módulos podem ser inclinados em três posições: horizontal, inclinada para cima ou para baixo. Em dias nublados, a estrutura, instalada na parte de cima da cadeira, poderá ser removida. “Quando o usuário não conseguir carregar as baterias pelo sistema fotovoltaico, ele poderá carregar do modo convencional”, diz o aluno Rafael Pimenta Mesquita, que desenvolveu o projeto durante dois anos, orientado pelo professor Teófilo Miguel de
Souza, coordenador do Centro de Energias Renováveis da universidade, que tem como objetivo desenvolver projetos usando energias alternativas. “O custo da montagem da cadeira projetada, com mão-deobra inclusa, fica em torno de R$ 2.258,00, enquanto uma cadeira de rodas movida a bateria encontrada no mercado custa cerca de R$ 5.750,00”, comenta Souza.
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RAFAEL PIMENTA MESQUITA/UNESP
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Módulos mudam de posição para receber a luz solar
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SAÚDE PÚBLICA
Novos ataques
Monitoramento com armadilha que atrai mosquito é uma das inovações, junto com insetos transgênicos, para controle da doença D INORAH E RENO
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CAPA
à dengue
Genes inseridos no genoma do Aedes funcionam como anticorpos contra a dengue, com interferência direta sobre o vírus
A
s chuvas abundantes de verão e a temperatura elevada formam uma perigosa combinação que contribui para a explosão populacional do mosquito Aedes aegypti e a conseqüente transmissão do vírus da dengue, doença caracterizada na sua forma clássica por febre alta, dor de cabeça e muita dor no corpo, mas que raramente mata. Mais grave é a dengue hemorrágica que, além dos sintomas clássicos, também provoca sangramentos, insuficiência circulatória e queda da pressão arterial, podendo levar o doente à morte. A doença atinge mais de uma centena de países em vários continentes e na forma de epidemias que se repetem. Estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam que entre 50 e 100 milhões de pessoas se infectam anualmente, com um saldo de 550 mil internações e 20 mil mortes em decorrência da doença. No Brasil, o quadro não é muito animador. Depois de enfrentar uma epidemia de dengue em 2002, com quase 800 mil casos notificados, os especialistas temem que ocorra um noPESQUISA FAPESP 131
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vo surto neste ano.“Há risco de introdução do sorotipo 4 (no país já existem os sorotipos 1, 2 e 3 do vírus), considerado o mais letal, que se encontra circulando em vários países das Américas”, diz Maria da Glória Teixeira, professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e autora de um estudo epidemiológico sobre a dengue. Até hoje não foi descoberto um remédio eficiente contra o vírus da doença. Ela exige acompanhamento médico e é tratada com remédios que atenuam os sintomas, além de repouso.Vacinas para combater a dengue estão sendo estudadas, mas ainda há um longo caminho pela frente, porque para serem eficientes elas terão que imunizar as pessoas, simultaneamente, para os quatro sorotipos do vírus, da família dos flavivirus.
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fusão preparada com a gramínea Panicum maximum”, diz o professor Álvaro Eduardo Eiras, do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), responsável pelo desenvolvimento do sistema chamado de Monitoramento Inteligente da Dengue. Ao serem atraídos pelo Atraedes, os insetos entram na armadilha e ficam presos a um cartão adesivo colocado na parede do recipiente. Depois de uma semana, é feita a contagem de quantos mosquitos foram capturados, trabalho realizado por agentes da saúde treinados para reconhecer o Aedes na sua forma adulta. Não é necessário levar o inseto ao laboratório para ser identificado, como ocorre atualmente com as larvas recolhidas em vasos e pneus cheios de água.“Ao atacar diretamente o mosquito, impe-
tores de saúde saibam onde concentrar as ações de combate à dengue. Com base no conhecimento do comportamento do vetor, a equipe da Ecovec, empresa criada para desenvolver e comercializar o produto surgido na universidade mineira, que tem Eiras como um dos sócios, elabora um projeto com diagnósticos locais, determinando o número e o posicionamento das armadilhas necessárias para garantir a eficácia do monitoramento. Os dados são atualizados semanalmente, o que representa 52 mapas por ano.“O custo é cerca de 90% inferior ao do sistema de monitoramento das larvas do Aedes usado por vários países, inclusive o Brasil, entre quatro e seis vezes ao ano”, diz Eiras. A análise das larvas coletadas pelos agentes de saúde nas visitas domiciliares é feita em labo-
Ciclo de vida do mosquito vetor da dengue: mutação do ovo em larva, diferenciação da larva em pupa e na etapa final o nascimento do Aedes aegypti
Com tantas dificuldades em derrotar o vírus, o jeito é o combate ao mosquito, que também é transmissor da febre amarela.Em 2006 foram apresentadas novas formas de controle do Aedes, capazes de evitar a proliferação do mosquito. Na linha de frente das novas tecnologias está um sistema de monitoramento do mosquito transmissor da dengue que utiliza armadilhas, software e computadores de mão (palmtops) para captura dos insetos e análise das áreas de risco. Dentro da armadilha chamada Mosquitrap, uma espécie de vaso preto com água no fundo que imita o criadouro do mosquito, é colocado o Atraedes, uma substância sintética que libera um odor para atrair e fazer as fêmeas grávidas do Aedes depositarem seus ovos no recipiente.“O produto aromático foi isolado a partir de uma in68
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dimos que a fêmea deposite os seus ovos. Trabalhamos no controle do inseto com as armadilhas, já que a transmissão do vírus da dengue é feita pela fêmea infectada”, diz Eiras. Quando a fêmea, que precisa do sangue para amadurecer os ovos e dar continuidade ao ciclo reprodutivo, pica uma pessoa infectada, o vírus se instala e se multiplica em suas glândulas salivares e intestino. A partir daí, o inseto permanece infectado pelo resto dos seus 30 a 40 dias de vida, em média. O Mosquitrap faz o controle da infestação por meio de um computador de mão. Os dados da quantidade de mosquitos capturados na armadilha são enviados a uma central que gera, em três horas, um mapa preciso sobre as áreas de risco de infestação da doença. Esse mapa fica disponível on-line para que os ges-
ratório, o que demanda tempo e custos extras. Sem contar que o uso de inseticidas para combater o Aedes não leva em conta a presença ou não do mosquito. Sistema premiado – O método da Eco-
vec consegue detectar a presença do mosquito mesmo na época da seca. Tanto que existe a possibilidade de que em 2007 o sistema comece a ser adotado oficialmente pelo Ministério da Saúde como parte do Programa Nacional de Controle da Dengue, que recebeu em 2006 R$ 540 milhões do governo federal para ações de combate e controle do vetor. Em novembro do ano passado, o sistema foi escolhido entre 280 iniciativas de 58 países para receber o prêmio Tech Museum Awards, na categoria Saúde, entregue em San José, na Califórnia. O prêmio é
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bém a economia feita ao combater o mosquito antes de a doença se instalar. E cita o caso da cidade de Uberaba, no Triângulo Mineiro, que para controlar uma epidemia de dengue gastou R$ 1,3 milhão só no combate ao mosquito, sem contar as internações.“Se a cidade tivesse usado a nossa tecnologia o custo seria muito menor”, compara o pesquisador. Levantamento do Sistema Único de Saúde, do Ministério da Saúde, indica que o tratamento da dengue custa R$ 250,00 por pessoa. Em caso de internação a despesa chega a R$ 3.500,00. Com as chuvas de verão – que começaram a cair forte em novembro do ano passado –, os especialistas temem um novo surto de dengue em 2007, semelhante ao ocorrido em 2002. “Temos que avançar na questão do controle da popu-
tadas para seu controle. No Brasil circulam três dos sorotipos do vírus da dengue, o 1, 2 e 3, sendo que o último foi introduzido no final da década de 1990 e em apenas três meses já havia se disseminado para oito estados, o que mostra a facilidade de circulação de novas cepas com as multidões que se deslocam diariamente. A infecção por um deles dá proteção permanente para o mesmo sorotipo e imunidade parcial e temporária contra os outros três. “Vários estudos feitos na UFBA mostram que a transmissão e circulação do vírus é muito mais rápida do que a capacidade atual de combater o vetor”, diz a pesquisadora. Enquanto o combate é feito à larva, as fêmeas do mosquito adulto podem estar no ambiente transmitindo o vírus. Por isso, Maria da Glória acre-
ra, Panamá, França e Itália. No final de novembro a Ecovec recebeu a visita de um representante do governo da Província de Queensland, na Austrália, interessado em adotar o sistema de monitoramento inteligente da dengue. O preço para implantar a tecnologia depende do tamanho da cidade e do grau de infestação do mosquito. Na cidade de Congonhas, por exemplo, com 45 mil habitantes, o sistema custa R$ 5.800,00 por mês. O contrato de prestação de serviços inclui cerca de 200 armadilhas instaladas, além das substâncias aromáticas, cartões adesivos, palmtops e todo o serviço de processamento dos dados e geração dos mapas de infestação, gráficos e tabelas, com livre acesso do gestor de saúde à internet. Eiras ressalta que no cálculo é preciso levar em conta tam-
lação de vetores e na tecnologia de que dispomos hoje, porque o tratamento dos focos mediante larvicidas não está sendo efetivo”, diz Maria da Glória Teixeira, da UFBA, principal autora de um estudo sobre a situação epidemiológica da dengue no Brasil e no mundo, publicado na revista Cadernos de Saúde Pública, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), do Rio de Janeiro. “Os grandes centros urbanos do país têm sido os mais afetados em função da elevada densidade populacional e condições deficientes de saneamento”, diz a pesquisadora. Segundo o estudo, a dengue é um dos maiores problemas de saúde pública do mundo, devido à sua grande expansão geográfica, complexas características clínicas e epidemiológicas e, principalmente, às dificuldades enfren-
dita que a tecnologia desenvolvida na UFMG pode ter grande impacto no controle da dengue. A pesquisadora trabalha com a hipótese de que ao reduzir a população de fêmeas adultas, capturadas nas armadilhas, há uma diminuição na transmissão do vírus. Para verificar se a premissa é correta, apresentou um projeto ao Ministério da Saúde, em parceria com Eiras, que será realizado em um grande centro urbano, como Salvador ou Rio de Janeiro. O projeto prevê a comparação de incidência de infecções pelo vírus da dengue em áreas com armadilhas instaladas com outras áreas na mesma cidade onde só é feito o tratamento tradicional. “O estudo envolve a condução de inquéritos soroepidemiológicos na população residente nas áreas selecionadas, o que
FOTOS GENILTON VIEIRA/INSTITUTO OSWALDO CRUZ
dado para tecnologias inovadoras que beneficiam a humanidade e tem o apoio de empresas como Intel, Accenture, Microsoft, Agilent, Applied e HP. Bill Gates, da Microsoft, foi homenageado no mesmo evento.“No discurso que fez durante a premiação, Gates disse que a tecnologia desenvolvida no Brasil para combater o vetor da dengue é simples e genial para resolver um problema complexo”, relata Eiras. A cidade de Congonhas, em Minas Gerais, foi a primeira a adotar o sistema inovador, há mais de um ano.“Desde então não foram mais registrados casos de dengue no município”, diz Eiras. Frutal, também em Minas, e Vitória, capital do Espírito Santo, seguem o mesmo caminho. A armadilha já foi vendida para alguns países, como Alemanha, Cingapu-
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vas se desenvolvam foi adicionado um larvicida biológico, fabriSistema cado pela empredesenvolvido sa Bthek Biotecna UFMG utiliza nologia, de Brasíarmadilha que lia, que tem como imita o criadouro principal compodo Aedes, com nente o Bacillus água no fundo thuringiensis israee uma substância lensis (veja Pesquisintética que atrai sa FAPESP nº 85). fêmeas grávidas do inseto. Essa bactéria proAo entrar na duz uma toxina armadilha, os que, ao ser ingemosquitos ficam rida pela larva, presos a um causa danos ao inadesivo e morrem testino do inseto, provocando sua morte. A adição do Bti, nome comercial do bioinseticida, mata as larvas e, ao mesmo tempermitirá avaliar se ocorrerá a redução po, funciona como estimulante para que da transmissão do vírus da dengue”, diz as fêmeas depositem ovos nas armadia pesquisadora. lhas. O larvicida também permite que a Outra frente de combate à dengue asovitrampa permaneça por mais de um socia uma armadilha tradicional conhemês no campo. cida como ovitrampa, um larvicida bioUma vez por mês agentes de saúde relógico e a utilização de GPS (localizador tiram os suportes onde os ovos ficam grugeográfico baseado em satélites) para modados, levam para contagem em labonitorar a população do Aedes. O projeratório e renovam a infusão de grama e to, que tem como objetivo desenvolver larvicida. Como as ovitrampas dispõem um modelo intensivo de controle do de referências geográficas, todas as informosquito sem a utilização de inseticimações coletadas são colocadas no mapa das químicos, é conduzido há dois anos da cidade.“É um instrumento sensível e no Recife e Região Metropolitana por eficaz para detectar e monitorar áreas uma equipe coordenada por Lêda Recom elevada intensidade do mosquito gis, do Centro de Pesquisa Aggeu MagaAedes”, diz Lêda. lhães, unidade da Fiocruz em PernamAs ovitrampas detectaram a presenbuco, em parceria com a Secretaria da ça de ovos, e conseqüentemente de fêSaúde. As ovitrampas são de plástico e dentro levam água e uma infusão de gramíneas. As tradicionais são recipientes Números da dengue muito pequenos, com capacidade para abrigar de 300 a 500 mililitros de líquido. Elas precisam ser esvaziadas a cada > De 50 a 100 milhões sete dias, sob risco de a infusão se converde pessoas são infectadas ter em criadouro de mosquitos.“Adaptano mundo por ano, com mos as ovitrampas para poder permane550 mil internações e cer mais tempo no campo e reduzir os 20 mil mortes (Organização custos operacionais”, diz Lêda. Mundial da Saúde).
Mosquito monitorado
Larvicida biológico – As armadilhas
adaptadas comportam 2 litros e meio da infusão de água e gramíneas e todas têm três suportes, onde os ovos são depositados, internamente em vez de apenas um. Além disso, para impedir que as lar70
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> No Brasil, entre janeiro e outubro de 2006, foram registrados 280.511 casos da doença, com 61 mortes.
meas adultas, em 88% a 96% dos imóveis em sete bairros do Recife. Para ilustrar a eficácia da armadilha, Lêda cita que em uma única ovitrampa foram recolhidos 8.900 ovos no período de um mês. Na mesma área, o índice de infestação predial, método tradicionalmente utilizado que se baseia na pesquisa visual das larvas, estava em torno de 1%. “Um dos experimentos realizados resultou no recolhimento e queima de mais de 10 milhões de ovos e redução da densidade populacional do mosquito em 60%”, diz Lêda. O projeto faz parte do Sistema de Apoio Unificado para Detecção e Acompanhamento em Vigilância Epidemiológica (Saudavel), que tem como parceiros, além da Fiocruz, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a Universidade Federal do Paraná e a UFMG. A busca por alternativas ao controle químico utilizado atualmente abre outras frentes de pesquisa, como a criação em laboratório de mosquitos geneticamente modificados. Um dos grupos de pesquisa, coordenado pela professora Margareth de Lara Capurro Guimarães, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP), construiu genes que funcionam como anticorpos contra a dengue, com interferência direta sobre o vírus da doença. “Eles reconhecem a partícula viral e tentam impedir que o vírus atinja a glândula salivar do mosquito”, diz Margareth. A primeira etapa para a criação dos mosquitos transgênicos é a montagem de seqüências de DNA, inseridas no genoma do inseto para torná-lo um vetor menos eficiente. Os genes de interesse são então injetados nos embriões dos mosquitos, que são os ovos colocados pelas fêmeas para obter as linhagens geneticamente modificadas. Só após o nascimento das larvas é que dá para saber se os mosquitos são efetivamente transgênicos. “Injetamos 2.500 embriões para conseguir 20 famílias”, diz Margareth. A prova da transgenia está no gene marcador, inserido junto com o gene de interesse escolhido para combater o mosquito da dengue. O gene marcador determina a produção de uma proteína fluorescente e só é visto com um microscópio. Se a larva apresentar olhos verdes ou vermelhos e pontos da mesma cor brilhantes em seu dorso, é transgênica. O grupo do Instituto de Ciências Biomédicas também pesquisa a esterilização
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Gene letal –Além da interferência dire-
ta sobre o vírus, outra linha de pesquisa realizada na USP tem como base um mecanismo de ação que consiste em colocar um gene letal nos mosquitos que é expresso só nas fêmeas.“No laboratório temos controle para que a expressão desse gene letal seja mantida desligada e assim podemos obter as famílias transgênicas”, diz o pesquisador Mauro Toledo Marrelli, da Faculdade de Saúde Pública. Esse controle é feito colocando um repressor químico, como o antibiótico tetraciclina, no meio das larvas. Na natureza, apenas os machos com o gene letal seriam soltos para cruzar com as fêmeas selvagens, que vão produzir linhagem cujas fêmeas não passam da fase de pupa, uma etapa intermediária entre a larva e o mosquito.“Esse é um tipo de controle para diminuir a população que funciona como se fosse um inseticida
LUCIANO ANDRADE MOREIRA
do macho por irradiação com cobalto. Esse controle biológico já é utilizado na agricultura para combater a mosca-dasfrutas.“Ao colocar machos estéreis na natureza há uma diminuição na população”, diz Margareth. A fêmea do Aedes tem um comportamento sexual semelhante ao da mosca-das-frutas. Ela é fiel a um único companheiro. Portanto, se cruzar com um macho estéril, será incapaz de procriar. As fêmeas do Aedes colocam, de cinco em cinco dias, ovos resultantes de uma única fecundação. Se ela estiver infectada com dengue, parte de sua prole também estará. Por isso quando começam a ser relatados casos de dengue em uma região eles aumentam exponencialmente de forma muito rápida. Linhagem transgênica do vetor da malária aviária
mais específico, que não polui o ambiente”, diz Marrelli. Os estudos estão sendo feitos com o Culex quinquefasciatus, mais conhecido pelo nome popular de pernilongo.A mesma construção genética pode ser usada com o Aedes aegypti e outros mosquitos, como o que transmite a malária.“O principal alvo da pesquisa com os mosquitos geneticamente modificados é a malária africana, que mata 2 milhões de crianças por ano”, diz Margareth. No Brasil,um grupo de pesquisa coordenado por Luciano Andrade Moreira, do Centro de Pesquisas René Rachou, de Belo Horizonte, pertencente à Fiocruz, obteve quatro linhagens transgênicas de mosquitos do gênero Aedes fluviatilis, vetor da malária aviária, transmitida pelo
OS PROJETOS Mosquitos geneticamente modificados: possíveis aplicações no controle da transmissão de malária e dengue MODALIDADE
Programa Jovem Pesquisador COORDENADORA
MARGARETH DE LARA CAPURRO – USP INVESTIMENTO
R$ 1.079.231,45 (FAPESP)
Desenvolvimento de metodologias alternativas no controle de mosquitos de importância epidemiológica: uso do método RIDL MODALIDADE
Programa Jovem Pesquisador COORDENADOR
MAURO TOLEDO MARRELLI – USP INVESTIMENTO
R$ 438.627,17 (FAPESP)
Plasmodium gallinaceum.A obtenção das linhagens significa que, quando estão na fase adulta, os mosquitos modificados cruzarão com outros da colônia e terão filhos que já nascerão com a alteração genética. O gene responsável por bloquear o parasita da malária é uma proteína chamada fosfolipase A2, presente no veneno de abelhas, capaz de bloquear o plasmódio, que é um protozoário (organismo unicelular) responsável pela infecção da malária, quando esse se encontra no intestino do mosquito. O estudo, que começou há dois anos e conta com o apoio da Organização Mundial da Saúde (OMS), foi iniciado com a malária em galinhas por ser mais fácil de obter o ciclo completo desse parasita e pela semelhança do P. gallinaceum com o Plasmodium falciparum, que infecta humanos. “O próximo passo é tentar transformar geneticamente o mosquito Anopheles aquasalis, um vetor de malária humana no Brasil”, diz Moreira. Embora a criação de insetos geneticamente modificados pareça uma alternativa promissora para enfrentar a resistência dos mosquitos a inseticidas químicos, não dá para prever em quanto tempo eles poderão ser soltos na natureza, mesmo porque são necessários estudos aprofundados para ter certeza de que eles não irão provocar um desequilíbrio ambiental. Depois disso, ainda será necessário obter autorização da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), entidade responsável pela liberação de organismos geneticamente modificados. Armadilhas biotecnológicas, inicialmente, e transgênicos daqui a alguns anos são as novas esperanças para minar a resistência do Aedes, conhecido de longa data no Brasil. Na década de 1950, depois de uma intensa campanha de combate ao mosquito, o Aedes foi considerado erradicado por observadores internacionais. A vitória teve vida curta. Em 1967, o Aedes foi detectado em Belém, trazido provavelmente em pneus contrabandeados do Caribe. Desde então, tem se mostrado bastante eficiente na capacidade de se adaptar ao ambiente, auxiliado pelo descarte sem os devidos cuidados de pneus, latas, copos e garrafas de plástico vazias, além de caixasd’água descobertas e pratos de vasos de plantas, locais preferidos como criadouros. Todo cuidado é pouco. • PESQUISA FAPESP 131
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Efeito visual provocado pela ação dos anticorpos nos receptores das células
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> BIOQUÍMICA
Anticorpos muito especiais Substâncias produzidas por empresa brasileira facilitarão a produção de novos medicamentos Y URI VASCONCELOS
IMAGENS PROTEIMAX
O
s bons resultados atingidos num trabalho de cooperação entre pesquisadores brasileiros da Proteimax, uma empresa de biotecnologia da cidade de Cotia, na Grande São Paulo, e da Escola de Medicina Monte Sinai, em Nova York, Estados Unidos, devem facilitar o desenvolvimento de novos medicamentos pela indústria farmacêutica como analgésicos, anti-hipertensivos e antidepressivos, entre outros. O grupo conseguiu, em laboratório, produzir uma série de anticorpos que são substâncias que se ligam a receptores existentes nas membranas das células e conhecidos pela sigla GPCR (do inglês G-Protein-Coupled Receptor ou receptores acoplados à proteína G). Por meio da ativação ou bloqueio desses receptores é que muitos fármacos agem. Essas proteínas fazem a comunicação entre o meio extracelular e o meio intracelular, permitindo ou não que uma droga tenha o seu efeito num determinado órgão do corpo. Além de ser uma ferramenta para o desenvolvimento de novos fármacos e para o estudo da ação desses produtos em testes laboratoriais com animais, os anticorpos servem para descobrir com exatidão quais receptores acoplados à proteína G estão relacionados a determinadas doenças. Sabendo os receptores afetados será possível criar e testar novos fármacos que tenham ação dirigida para esses receptores. Os novos anticorpos são destinados a pesquisadores de indústrias ou de instituições de
pesquisa que vão utilizar esses produtos em ensaios in vitro ou in vivo, em animais, durante o desenvolvimento de novos fármacos, para determinar a ação e a duração dos medicamentos no organismo ou identificar previamente possíveis efeitos colaterais, além de entender melhor o funcionamento bioquímico das doenças. A Proteimax já desenvolveu 11 tipos de anticorpos que reconhecem diferentes GPCRs na forma ativada e tem como alvo comercial instituições de todo o mundo. O mercado para esse tipo de anticorpos é muito grande e abrange toda a indústria farmacêutica mundial porque o uso desse insumo vai diminuir o tempo de desenvolvimento e aprovação de novos medicamentos, além de reduzir custos de produção e tornar o produto final mais barato para o mercado consumidor.“Já fomos procurados por pesquisadores e empresas de outros países, que querem mais informações sobre o produto”, conta Andrea Sterman Heimann, formada em ciências moleculares pela USP e diretora da Proteimax. Em meados de dezembro, ela comemorou com sua equipe a publicação de um artigo que detalha a utilização dos anticorpos na versão eletrônica do Journal of Biological Chemistry, um periódico científico de alto impacto na área biológica. Entre os 11 anticorpos está o receptor de angiotensina II, um composto protéico envolvido na hipertensão, que, entre outras funções, faz as artérias se contraírem levando a um auPESQUISA FAPESP 131
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mento da pressão arterial. O anticorpo anti-receptor de angiotensina II pode ser usado para examinar se determinado fármaco – um anti-hipertensivo ou outro medicamento que se quer testar – inibe ou ativa o receptor de angiotensina II nas células do coração e dos vasos sangüíneos, por exemplo. Então, no caso de um anti-hipertensivo, o teste serve para verificar se o medicamento realmente funciona. Se o experimento estiver sendo feito durante o desenvolvimento de um novo anti-histamínico, remédio contra alergias, e ele agir ativando o receptor de angiotensina II, a ação química desse medicamento pode não ser bem-vinda, porque o paciente poderá ter um aumento de pressão sem necessidade. Um outro anticorpo desenvolvido na Proteimax reconhece o receptor de dopamina ativado, uma substância neurotransmissora, cuja falta no organismo está relacionada ao mal de Parkinson, doença caracterizada por tremores, ou ao distúrbio bipolar, em que o paciente alterna sintomas de depressão e de euforia. Uma das aplicações dos anticorpos que reconhecem esses receptores ativados é a utilização como ferramenta nos trabalhos de desenvolvimento, por exemplo, de medicamentos antidepressivos, usando nesse caso o anticorpo para o receptor GPCR de serotonina, uma substância natural com a função neurotransmissora ligada a sensações de prazer. Com o anticorpo que reconhece o receptor de serotonina ativado, produzido na Proteimax, os pesquisadores poderão saber se as células que têm receptores de serotonina são afetadas seriamente por um antiinflamatório, identificando um efeito colateral não desejado. Outro anticorpo produzido pela empresa reconhece a ação do Delta-9-THC, princípio ativo da maconha, no receptor canabinóide, responsável pelos efeitos da droga no organismo. Na verdade, esse receptor recebeu o nome durante os estudos sobre os efeitos da maconha no organismo, mas outras drogas podem ativar ou inibir esse receptor, principalmente em medicamentos que atuam no controle da dor, sintoma também relacionado a ele. O anticorpo, no caso, servirá para testar se novos compostos com 74
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intuito medicamentoso podem agir sobre esse receptor, ativando-o ou inibindo-o. O objetivo é identificar um medicamento que ative esse receptor, no caso de diminuir a dor, mas que não provoque os efeitos psicotrópicos da maconha. O mesmo raciocínio vale com o anticorpo do receptor opióide, ativado por endorfinas, um hormônio liberado na corrente sangüínea quando nos exerci-
A cor verde, na membrana de uma célula de rato, mostra que o anticorpo reconheceu o receptor de angiotensina II, substância ligada à hipertensão. O núcleo da célula é identificado em vermelho
tamos. Ele também está ligado ao combate da dor, como o fármaco morfina (ativador de receptor opióide). “Com o anticorpo antiopióide será possível de forma mais fácil e rápida escolher melhor outros tipos de morfina, sem os efeitos colaterais, como o vício e a tolerância ao medicamento que ela apresenta”, diz Andrea. Atualmente cerca de 40% dos medicamentos mais utilizados no mundo atuam direta ou indiretamente ativando ou bloqueando os receptores do tipo GPCR. “Há tempos pesquisadores do mundo inteiro buscam melhores métodos de ensaio para verificar a atividade dos receptores acoplados à proteína G. E os anticorpos que conseguimos desen-
volver servem exatamente para isso”, diz Andrea Sterman Heimann. Os GPCRs são considerados a classe mais importante de receptores. Uma analogia possível para entender o funcionamento deles e a importância que têm no organismo é o uso de um interfone instalado na portaria de residências ou de prédios. Alguém dentro de casa se comunica, pelo interfone, com outra pessoa que está fora. Dependendo do que a pessoa de fora falar, a de dentro vai fazer alguma coisa, como abrir a porta, chamar alguém, receber algo, dispensar o estranho etc. Os receptores em geral correspondem ao interfone, ao passo que os receptores acoplados à proteína G equivaleriam à marca de um determinado interfone. E cada tipo desse último, o GPCR, seria um modelo diferente do interfone daquela marca. Ao todo, já existem cerca de 400 desses receptores conhecidos. E o que significa a ativação ou bloqueio de um GPCR? A ativação ocorre quando uma substância qualquer, por exemplo, um fármaco se liga nele e, a partir daí, envia um sinal para dentro da célula. Na comparação com o interfone, seria quando alguém pega o aparelho e fala, desencadeando uma resposta qualquer. Esse alguém é chamado de agonista, que faz a informação química atravessar a parede da célula. Já bloquear o receptor significa inibir a possibilidade de ele receber o estímulo do agonista. O bloqueio ocorreria, por exemplo, se o fio estivesse cortado, o que impediria qualquer possibilidade de comunicação entre quem está fora e quem está dentro da residência, ou da célula. A produção de anticorpos que reconhecem uma conformação específica dos GPCRs (ativa ou inativa) representa uma nova e poderosa técnica que pode ser usada para examinar a duração e a extensão de estímulos fisiopatológicos, como, por exemplo, a ação da morfina no sistema nervoso central. “Isso é importante para a pesquisa básica e clínica, além de criar uma nova ferramenta de screening (triagem) – um método de varredura normalmente empregado pelos laboratórios farmacêuticos para testar novas drogas e verificar seus efeitos e sua eficácia. Essa nova técnica é mais rápida e barata para o trabalho de iden-
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A técnica utilizada por laboratórios para testar novos fármacos é mais trabalhosa e é preciso usar uma droga marcada com moléculas radioativas. O novo processo, além de mais simples de aplicar, é dez vezes mais barato tificar novos fármacos que agem em determinado tipo de GPCR”, diz Andrea. A produção de anticorpos em si já é uma técnica conhecida e estabelecida em vários países. Os anticorpos existentes normalmente reconhecem a proteína independentemente do estado dela, se ativa ou inativa. A grande inovação do grupo foi conseguir fazer com que os anticorpos reconheçam o receptor em um estado específico, no caso, ativado. “Isso é difícil de fazer e envolve desde estudos no âmbito da bioinformática até a produção em si do anticorpo, que tem certo grau de complexidade”, explica Andrea. O pulo-do-gato, diz a pesquisadora, foi conseguir identificar a região do receptor GPCR, que sofre uma mudança de conformação (ou estrutural) quando ele está ativado. “O anticorpo que criamos se liga exatamente nessa região específica do receptor que é alterada. A totalidade dos anticorpos comerciais gruda em regiões do receptor que não se alteram, esteja ele na forma ativa ou inativa. Com isso, têm a função apenas de detectar a presença do receptor sem revelar seu estado de ativação em relação a um fármaco, por exemplo.” Novos anticorpos – Foi fundamental
para o êxito da pesquisa a parceria estabelecida com a pesquisadora Lakshmi Arehole Devi, da Escola de Medicina Monte Sinai, uma das maiores autoridades do mundo em GPCR. Tudo começou em 2003, quando ela veio ao país participar do congresso da Sociedade Brasileira de Farmacologia, a convite do professor Emer Suavinho Ferro, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB/USP), que também é sócio da Proteimax.“Em uma conversa com ela, contei que estava começando a produzir anticorpos para dar impulso à Proteimax e ela se interessou em colaborar. Fizemos um anticorpo para ela testar e foi tamanho o sucesso que a parceria não parou mais. No ano passado fiquei três meses em Nova York testando os novos anticorpos produzidos por nós no Brasil. Esses testes são necessários para verificar se eles de fato reconhecem a forma ativada do re-
ceptor tanto in vitro como in vivo”, diz a diretora da Proteimax. Além de testes de novos fármacos, os produtos da empresa também serão úteis na pesquisa básica. Com eles, pesquisadores de instituições de pesquisa, em institutos ou universidades, poderão avaliar quais receptores estão envolvidos no aparecimento de uma doença. “É possível, por exemplo, saber quais os receptores do cérebro são afetados pelo mal de Parkinson e testar possíveis fármacos que revertam os receptores danificados”, diz Andrea.
N
a prática, os experimentos com os anticorpos começam quando o pesquisador coloca as células ou apenas as membranas com os receptores numa placa de polietileno (placa de teste transparente) e as sensibiliza com a droga que deseja testar. Depois adiciona o anticorpo. Se ele se ligar ao receptor, é revelada uma cor amarela na amostra. O pesquisador sabe que o receptor foi ativado e a droga funcionou. Nos testes in vivo o processo é um pouco mais longo. Inicialmente, a nova droga é administrada em um animal. Aguarda-se um tempo para ela agir, sacrifica-se a cobaia e retira-se um tecido do corpo onde, supostamente, a droga agiu. Esse tecido é colocado em contato com os anticorpos. Se a droga funcionou, surgem na amostra pigmentos coloridos, normalmente verde ou vermelho. “A técnica padrão
O PROJETO Anticorpos conformação específicos: proposta para geração de anticorpos dirigidos e receptores acoplados à proteína G (GPCRS) MODALIDADE
Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe) COORDENADORA
ANDREA STERMAN HEIMANN – Proteimax INVESTIMENTO
R$ 111.922,02 e US$ 102.102,83 (FAPESP)
utilizada por laboratórios para testar a eficácia de novos fármacos, chamada binding (ligação), é mais trabalhosa e oferece certo perigo. É preciso usar uma droga marcada com moléculas radioativas, o que expõe os pesquisadores ao risco de contaminação. Sem falar que é cerca de dez vezes mais cara do que o processo que criamos”, diz Andrea. O método de fabricação dos anticorpos segue o protocolo padrão de produção dessas substâncias em coelhos. O primeiro passo é escolher a parte da proteína (peptídeo) que o anticorpo deve reconhecer. Em seguida, é preciso sintetizar essa parte da proteína e acoplá-la em uma proteína carregadora, conhecida pela sigla KLH (sigla, em inglês, de Keyhole Limpet Hemocyanin). Esse conjunto (peptídeo mais a proteína carregadora) recebe o nome de antígeno. O passo seguinte é injetar o antígeno no coelho e esperar que o animal produza o anticorpo contra ele. A última fase é a retirada de sangue do animal, que passa por um processo de purificação. “O segredo do processo é escolher a parte certa da proteína”, diz Andrea. Cada coelho produz, em sua vida útil, de cerca de 4 meses, 50 mililitros de anticorpos, que possuem a aparência de uma substância líquida viscosa e avermelhada. Essa quantidade é suficiente para a indústria farmacêutica realizar 500 mil ensaios. O projeto para desenvolvimento de anticorpos foi financiado pelo Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP que prevê a produção de 50 tipos diferentes dessas substâncias. O apoio financeiro da Fundação também permite que os testes para verificar a eficácia dos anticorpos feitos em Nova York sejam realizados na Proteimax. Por se tratarem de moléculas de domínio público, os anticorpos não são patenteáveis, mas a Proteimax pode patentear a idéia de utilizar anticorpos que reconhecem a conformação dos receptores para identificar ação de substâncias e estímulos, bem como no tratamento de doenças. Até o final de janeiro, o pedido de patente deverá ser depositado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). • PESQUISA FAPESP 131
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No Ipen, preparo, em forno, de eletr贸lito de cer芒mica
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> ENERGIA
Avanços na célula a
combustível Ipen desenvolve equipamento que gera energia elétrica com etanol
EDUARDO CESAR
M ARCOS
DE
O LIVEIRA
Um pequeno recipiente de vidro aquecido e contendo álcool borbulhante no seu interior é a fase inicial de um tipo de célula a combustível que está em desenvolvimento no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), em São Paulo. Esse equipamento produz energia elétrica por meio de uma reação química entre o hidrogênio e o oxigênio e usa o etanol, o álcool feito da cana-de-açúcar disponíveis nos postos de abastecimento brasileiros, de forma direta sem a necessidade de um outro aparelho, chamado de reformador. As células trabalham com hidrogênio puro de origem industrial, que custa caro para ser obtido, ou extraem esse gás de um combustível (etanol, gás natural, gasolina etc).“Pelo que sabemos é a primeira vez no país que o etanol é usado de forma direta em uma célula SOFC”, diz o pesquisador do Ipen, Reginaldo Muccillo, coordenador da pesquisa. A célula chamada de SOFC, sigla em inglês de Solid Oxide Fuel Cell ou célula a combustível de óxido sólido, é apontada como um gerador de eletricidade de grande potencialidade para um futuro próximo. Basta um suprimento de hidrogênio para transformar o equipamento num gerador autônomo e produzir até dezenas de megawatts (MW).
Como comparação, a Usina Hidrelétrica de Itaipu produz cerca de 12 mil MW. Grandes empresas multinacionais como Siemens, General Electric, Mitsubishi e Delphi estão se preparando para entrar nesse campo. O próprio grupo do Ipen está fechando um acordo com a Pirelli Labs, com sede em Milão, na Itália, para estudos em conjunto de células SOFC. “Muitos laboratórios e grandes empresas estão com protótipos sob análise em itens como durabilidade, eficiência e preço do quilowatt”, diz Fábio Coral Fonseca, pesquisador do grupo que esteve em 2006 num simpósio sobre células SOFC, em Honolulu, Estados Unidos, com a participação de pesquisadores de empresas e de institutos de pesquisa sob o patrocínio do Departamento de Energia dos Estados Unidos e do programa Solid State Energy Coversion Alliance (Seca), uma aliança entre indústria, governo e comunidade científica para o desenvolvimento de geradores a hidrogênio de óxido sólido. O objetivo do Seca é impulsionar a produção dessas células em formatos de 3 quilowatts (kW) a 10 kW para funcionar como geradores em residências, em indústrias e em aplicações militares. “O que nós estamos fazendo no Ipen é preparando o que poderíamos chamar
de uma terceira geração dessa célula”, diz Muccillo. As células SOFC são caracterizadas por possuírem o condutor de eletricidade, ou eletrólito, feito de material cerâmico, que quebra as moléculas do hidrogênio ou do oxigênio, permitindo a separação dos elétrons e a conseqüente geração de energia elétrica. “São equipamentos idealizados há mais de 30 anos que só agora encontram novos materiais, novas soluções de montagem e preço para se tornarem comerciais”, diz Daniel Zanetti de Florio, pesquisador do grupo que se tornou recentemente professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), em Santo André, na Região Metropolitana de São Paulo. A primeira geração das células SOFC, que está em testes em protótipos, possui o eletrólito feito com óxido de zircônio e óxido de ítrio, substâncias, como as de outras gerações, extraídas de minerais e processadas industrialmente. Esse tipo de célula já foi construído, de forma experimental, pelo mesmo grupo no Ipen (veja Pesquisa FAPESP nº 112). A segunda é feita com óxido de cério, em muitos experimentos pelo mundo, e a terceira produzida com cerato de bário e zirconato de bário. São eletrólitos desenvolvidos em instituições de pesquisa japonesas há dez anos e agora preparados pela própria equipe de pesquisadores do Ipen. “Outra diferença fundamental é que as duas primeiras gerações são de concepção iônica, enquanto aquela desenvolvida por nós para funcionar com etanol é protônica”, diz Muccillo. Quebra do oxigênio - Para entender es-
sas concepções é preciso saber que as células a combustível funcionam como baterias produtoras de energia elétrica enquanto existir fornecimento de combustível. Elas possuem eletrodos positivos (anodo) e negativos (catodo). Nas gerações prestes a se tornarem comerciais, a molécula de oxigênio (O2) é quebrada na superfície da cerâmica. Os elétrons, de carga negativa, saem do catodo cerâmico e geram eletricidade junto com os elétrons do hidrogênio, que é injetado e quebrado no lado do anodo. Os prótons (H+), de carga positiva, que sobram recebem os íons de oxigênio que atravessam o eletrólito para formar água (H2O), o “resíduo” das células a combustível. O caminho que leva a todas essas reações na SOFC acontece de forma inPESQUISA FAPESP 131
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Preparo do etanol para extração de hidrogênio e geração de energia elétrica
versa nas células PEM, sigla em inglês de Proton Exchange Membrane ou membrana de troca de prótons, em que o eletrólito é uma membrana polimérica condutora no lugar da cerâmica. Na PEM – atualmente de uso mais difundido e com protótipos pré-industriais, inclusive no Brasil, e indicada para equipar automóveis (veja Pesquisa FAPESP n° 126) – é o próton do hidrogênio (H+) que atravessa a membrana e encontra o oxigênio do outro lado formando água, sendo caracterizada como de concepção protônica. Outra diferença importante entre as duas é que a PEM trabalha em baixa temperatura, por volta dos 80 graus Celsius (C), enquanto a SOFC funciona em temperaturas de 600 a 900ºC. “O que nós conseguimos foi fazer uma célula de cerâmica em que os prótons de hidrogênio é que atravessam o eletrólito cerâmico”, explica Muccillo. Para fazer funcionar a célula, o álcool processado por ela é inicialmente volatilizado e sua molécula é quebrada em 670°C, gerando hidrogênio e dióxido de carbono (CO2). Esse último gás é eliminado na atmosfera, mas já há experimentos em que ele é aproveitado em sistemas de produção de álcool. O novo protótipo atinge a potência de 1,1 volt com tamanho de 20 milímetros de diâmetro por 78
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1 milímetro de espessura e está instalado dentro de um gabinete com 5 centímetros (cm) de altura e 5 cm de largura. Além do álcool, os pesquisadores do Ipen também fizeram a célula funcionar com gás metano.“Essa foi nossa primeira idéia porque imaginávamos colocar uma célula a combustível sobre um lixão para uso do metano, liberado na degradação do lixo, na geração de energia elétrica para as casas ao redor”, conta Muccillo. Mas ainda é preciso mais estudos para aprimorar uma célula em grande escala. Os pesquisadores vão apresentar a novidade no 10° Simpósio Internacio-
nal de SOFC que acontecerá na cidade de Nara, no Japão, em junho deste ano. “Queremos agora produzir placas (eletrólitos) ainda mais densas para que o gás (metano ou etanol) não passe na forma de molécula, e sim seja quebrado com mais eficiência”, diz Muccillo, que recebe financiamento do Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos (CMDMC), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP, além de um projeto temático da Fundação e do Fundo Setorial da Energia (CT-Energ) do Ministério da Ciência e Tecnologia. •
OS PROJETOS Estudo de fenômenos intergranulares em materiais cerâmicos
Cerâmicas para células a combustível SOFC MODALIDADE
MODALIDADE
Projeto Temático COORDENADOR
REGINALDO MUCCILLO – Ipen INVESTIMENTO
R$ 415.463,52 e US$ 163.933,14 (FAPESP)
Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) COORDENADOR
ELSON LONGO – Unesp/CMDMC INVESTIMENTO
R$ 1.200.000,00 anual para todo o CMDMC
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> ENGENHARIA
Mais tempo livre Máquina de passar roupa pretende aposentar o ferro
EDUARDO CESAR E MIGUEL BOYAYAN
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falta de tempo para os trabalhos domésticos foi o que motivou a arquiteta Célia Jaber de Oliveira a construir,com ajuda de seu irmão Lupércio Jaber de Oliveira,técnico em mecânica, uma máquina que passa roupas.A invenção caseira,feita para uso particular,foi tão bem-sucedida que ela procurou o apoio do Centro Incubador de Empresas Tecnológicas (Cietec) e da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) para transformar a “engenhoca”na Agillisa,um eletrodoméstico que alisa até 12 peças de roupa em cerca de uma hora.Em 2001 o projeto passou a fazer parte do Cietec e se transformou na empresa Coll Projetos. Cinco anos depois a empresa foi instalada em Guarulhos,na Grande São Paulo,e agora se prepara para iniciar a comercialização do produto. Antes de iniciar os estudos para a elaboração do eletrodoméstico,a arquiteta encomendou,em 1997,uma pesquisa para saber se havia demanda para o produto.A partir de entrevistas e da aplicação de questionários a 200 pessoas, comprovou-se que 97% dos entrevistados não gostavam de passar roupa e que a máquina tinha uma aceitação de 84%. Em 1999 Célia conseguiu a carta patente da invenção. Para alisar a roupa,o eletrodoméstico libera vapor que solta as fibras e torna as peças levemente úmidas e macias. Com um posterior ciclo de ar quente essa umidade é eliminada.“Funcionava muito bem.Todos os que viam a máquina em casa queriam uma também.Foi a partir daí que começamos a pensar em transformar o aparelho em produto para o mercado”,explica Célia.Mas a máquina ainda trabalhava de maneira muito empírica,embora os resultados fossem
Evolução: máquina que alisa até 12 roupas será lançada no mercado
satisfatórios.“Como a invenção é pioneira,não existia muita literatura sobre o assunto.A principal contribuição acadêmica foi a de estabelecer uma base científica para o entendimento de todo o processo,melhorando a confiabilidade e a eficiência do produto”,explicou o engenheiro mecânico Nicola Getschko,
O PROJETO Alisadora automática de roupas MODALIDADE
Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe) COORDENADOR
NICOLA GETSCHKO – USP/Coll INVESTIMENTO
R$ 211.144,00 (FAPESP)
professor da Poli-USP e coordenador do projeto financiado pela FAPESP no âmbito do Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe).“O protótipo alisava as roupas,mas não tinha um design bonito e precisava de um controle automático.Era preciso olhar quando o trabalho estava pronto”, acrescenta Célia. Com o aperfeiçoamento, a máquina adquiriu um sistema automático.Enquanto o eletrodoméstico alisa as roupas,sobra tempo para outras atividades sem se preocupar com a possibilidade de o tecido ficar queimado ou manchado.Para as partes mais complicadas,como colarinhos e barras de calça,a máquina vem com dispositivos para serem aplicados nessas regiões e facilitar o alisamento.A economia de energia elétrica é cerca de 50% em comparação com o ferro para alisar a mesma quantidade de roupas.Célia explica que a equipe também levou muito tempo tentando tornar o produto mais barato através da substituição de materiais. Mesmo assim,o preço de lançamento da Agillisa é de R$ 3.500,00. Após os melhoramentos técnicos,em março de 2006,a empresa fez uma nova pesquisa de mercado,de caráter qualitativo,e comprovou que 89% da amostra de 100 potenciais consumidores que presenciaram o funcionamento da máquina (80 mulheres e 20 homens) gostaria de comprar o eletrodoméstico.“O natural é que,com o tempo,o produto se torne mais barato e atinja uma faixa maior do mercado”, prevê Célia. • PESQUISA FAPESP 131
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O “H” DA BAIANIDADE AO CONTRÁRIO DO SENSO COMU M, ANTONIO CARLOS MAG ALHÃES REPRESENTARIA O LU C IANO DA MAT TA/JORNAL A TARDE
C IÊ N C IA PO L ÍT IC A
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EMPENHO CONSERVADOR DAS ELITES DE MODERNIZ AR A BAHIA
C ARLOS H AAG
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HU MANIDADES
esponda rápido: quando você vê o senador baiano Antonio Carlos Magalhães (ACM) vociferando na tribuna e se lembra de Gabriela, cravo e canela (tudo bem, pode ser a novela de TV), de Jorge Amado, que figura parece representar melhor o político alcunhado por seus desafetos como “Toninho Malvadeza”: o temível coronel Ramiro Bastos, autocrata do cacau, ou Mundinho Falcão, o bem-sucedido rival político do intendente de Itabuna, engenheiro que acaba por levar a modernidade e o progresso para a região? Já se pode adivinhar que você escolheu a resposta do senso comum, porém, errada – segundo o cientista político Paulo Fábio Dantas Neto, da Universidade Federal da Bahia.“É uma esterilidade política tratar o carlismo como persistência fantasmagórica de coronelismo ao falar de um personagem que sempre esteve do lado oposto ao do coronel, isto é, como encarnação do Estado que, cada vez mais, dava as cartas e subordinava, a seus desígnios, declinantes oligarquias tradicionais.” Dantas é autor da tese de doutorado (defendida em 2005 e agora publicada em livro pela Editora UFMG) Tradição, autocracia e carisma: a política de ACM na modernização da Bahia, orientada por Werneck Vianna. Assim, os métodos de ACM até podem lembrar os de Ramiro Bastos, mas a intenção, pasmem, era mesmo de ser um Mundinho Falcão, ainda que, de início, controlado pelas elites.“O chamado carlismo nunca foi mera obra do talento político ou do apetite pessoal de poder de ACM, mas a expressão política de interesses, valores e atitudes das elites baianas e nacionais que apostaram numa supressão autoritária do pluralismo para apressar, por cima, uma modernização que lhes preservasse dedos e anéis”, observa o pesquisador em seu trabalho. Logo, um porta-voz de reivindicações, como nota Dantas, endógenas, das elites locais, que demandavam um mix de
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continuidade e mudanças, ou seja, compromissos simultâneos com as pautas modernizantes nacionais de 1930 e 1964 e com modulações políticas regionais de liberalismo e populismo. “Seria este figurino de quatro dimensões que ACM e seu grupo iriam encarnar, aí agregando, à autocracia e à tradição, como terceiro elemento explicativo do seu êxito, o carisma de administrador dinâmico e de político despótico”, avalia. Portanto, observa o pesquisador, não se engane novamente ao usar o senso comum: não será a vitória do petista Jacques Wagner ao governo da Bahia que representará o “desmonte do carlismo”, como sonham alguns. As raízes do “enigma ACM” não estão no iracundo senador, mas num outro, anterior a ele: o “enigma baiano”, designação dada pela elite baiana à incapacidade de modernização e industrialização do estado, enfatizada pela comparação com o sucesso de vizinhos, em especial, Pernambuco. O desânimo dessa elite provinha do que acreditavam ser uma “involução industrial da Bahia”, pois, enquanto no século passado o estado contava com uma indústria de transformação diversificada, entre as décadas de 1940 e 50 notava-se uma impressionante estagnação. “A Revolução de 30 trouxe uma lógica perversa para a Bahia: o poder anterior privilegiava interesses regionais, como o café e a pecuária mineira, mas não excluía a burguesia mercantil dos benefícios da política econômica”, analisa Antonio Sérgio Alfredo Magalhães, da UFBA, em Formação e crise da hegemonia burguesa na Bahia. Segundo ele, a partir de 1930 passouse a privilegiar ramos e atividades que estavam fora do universo da burguesia baiana, que se enfraqueceu diante das facções sulistas e da burguesia baiana cacaueira, cujo poder será abalado com a criação do Instituto de Cacau da Bahia, que tira das mãos locais e coloca nas do Estado a comercialização do cacau. “A PESQUISA FAPESP 131
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burguesia mercantil e financeira conhece então um processo de concentração de capitais”, nota Magalhães.“Ao ‘atraso’ do enigma baiano, os governantes estaduais procuraram, entre 1947 e 1954, responder com iniciativas modernizantes de cunho liberal, que pretendiam fazer o progresso aflorar da dinâmica agromercantil e do capital bancário”, completa Dantas. A chegada da Petrobras à região de Salvador fez mudar de vez os planos da elite baiana, pois deixava claro que não se podia mais levar adiante a idéia de uma solução local. “Entre meados de 1955 e da década seguinte criou-se um consenso entre os vários ramos da elite baiana: a modernização local não seria feita nem apesar de e muito menos contra prioridades e interesses do Estado nacional. O problema era saber como arrancar do centro político as decisões e os recursos para viabilizar a nova alternativa.”
“FOI NECESSÁRIO ELEVAR O CARLISMO ` CONDIÇÃO A DE ATOR BAIANONACIONAL, PARA MANTER O PODER NA BAHIA”
JARBAS OLIVEIRA/FOLHA IMAGEM
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governo Goulart não lhes era nada favorável e o golpe de 1964 foi visto como uma bênção de Nosso Senhor do Bonfim. Dantas lembra que a ditadura militar trocou o apoio político baiano pela expansão econômica desejada, com espaços de influência nacional concedidos à sua liderança política e técnica. Era a versão baiana da modernização pelo alto, uma “revolução passiva”que se expressava por meio do conservantismo moderno. O golpe, observa o pesquisador, removeu obstáculos que, no plano nacional, se interpunham ao projeto daquela elite e abriu brecha ao protagonismo de grupos políticos regionais porta-vozes daqueles interesses modernizantes. Só faltava um Mundinho entrar em cena, necessário, inclusive, para fazer outros saírem. “Naquele momento, em nome da modernização econômica com tranqüilidade social, pregou-se a saída de cena de supostos inimigos, para abrir caminho a uma democracia átona, sem ‘irracionalidade sindicalista’ e ideologias ‘exóticas’”, analisa Dantas. Havia mesmo um discurso apologético pronto: o da bahianidade (ainda com o “h” aristocrático) que preconizava a idéia da Bahia una e cordial, sem conflitos sociais indesejáveis. Nascido em 1927, filho de um médico, professor da Faculdade de Medicina da Bahia, ACM seguiu as pegadas do pai e tornou-se assistente de cátedra de hi-
giene da mesma faculdade. Juntou-se, também por empatia paterna, à corrente udenista de Juraci Magalhães, um dos principais caciques baianos desde a Revolução de 30. Em 1954 elegeu-se deputado estadual e, em 1962, atuou ativamente na confecção do futuro golpe militar. O prêmio, a investidura, por indicação do regime, para a prefeitura de Salvador, em 1967, fez nascer o primeiro carlismo e chamou para ACM a atenção das elites baianas, que viram nele o executor das mudanças modernizantes à baiana. De 1967 a 1974, o carlismo se firma como a principal força da Arena na Bahia, mas o alcance do grupo ainda era apenas estadual. Como governador, ACM mudou a lógica da administração, introduzindo jovens técnicos, estranhos à tradição dos grupos políticos locais.“Já se insinuava um traço que marca o carlismo: a simultânea ação na política institucional, na estrutura da administração pública e na interface de ambas com o mundo do mercado, que pretendia o desmonte de valores e instituições poliárquicas e apoio à construção de um mercado capitalista nacional e internacionalmente conectado, ainda que sem alicerce local, e de um Estado autoritário, capaz de alavancá-lo.” Mas o “príncipe” não conseguiu fazer o seu sucessor ao governo em 1975. Foi preciso renovar a estratégia, para que o carlismo continuasse ser a alternativa ao enigma baiano.“Mostrou-se a necessidade de elevar o carlismo à condição de ator baiano-nacional, sem o que nenhuma supremacia seria obtida na Bahia. O salto foi dado, naquele ano, com a indicação de ACM para a presidência da Eletrobrás.” Ali ele pôde criar laços com o empresariado nacional e, assim, “nacionalizar” o movimento político estadual. Nessa dialética entre o nacional e o local, surgiu a práxis do grupo: aderência, no plano estadual, a um ambiente político marcado pela manutenção de lógicas paroquiais e avessas ao pluralismo político, e uma ética administrativa ajustada à modernização. “Nessas premissas, o carlismo se define como uma instituição política baiana e nacional, parte constitutiva e constituinte de um arranjo regionalmente peculiar de elementos da política brasileira do último meio século e, ao mesmo tempo, a projeção nacional dessa ‘síntese’ política regional, realizada em con-
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texto político autoritário e de fraca polarização ideológica.” A democratização do país obrigou o carlismo a rodar a baiana novamente. “Dá-se, sem cancelar a dicotomia, uma inflexão tática, sintonizando-a ao tempo neoliberal que se firmava, na qual cumpriu papel relevante o deputado Luís Eduardo Magalhães, filho de ACM.” Dantas salienta que isso não contradiz, mas ressalta a tendência baiano-nacional, deixando à Bahia um legado de “pensamento único”: afirmar o moderno enquanto trunca o pluralismo político. “O carlismo surge como demiurgo de uma ‘nova’ Bahia, imagem reforçada, ao longo dos anos 1990, pelo prestígio nacional do grupo e pela atualização midiática do tema da baianidade, já sem o ‘h’ aristocrático.” Essa nova baianidade seria o cimento ideológico que supostamente conectaria elite e povo, mantendo as desigualdades sociais, mas subtraindo qualquer contestação.“A miopia dos adversários facilitou o êxito carlista em cooptar quadros políticos, intelectuais, artísticos, empresariais e comunitários, convencidos por argumentos pragmáticos a compor ambiente aclamativo de uma hegemonia política exercida na Bahia mais moderna.” Isso explicaria, mais do que o preconceito regionalista (que o vê como um Ramiro Bastos), o apoio a ACM de segmentos do mercado do entretenimento baiano, que, nota Dantas, é lócus de uma absorvente racionalidade instrumental derivada do culto ao mercado. O mesmo erro foi cometido pelos anticarlistas, que insistiam em tratá-lo como fenômeno coronelista. Enquanto isso, ele gozava das benesses da mídia, em especial da amizade com Roberto Marinho. Além disso, com o senador a baianidade ganhou também foros de racionalidade religiosa.“Era uma ideologia que legitimava mudanças sem perda de elos com um passado onde a desigualdade e o despotismo político, realidades que a modernização preserva e produz, fincam suas raízes.” O que a oposição não conseguiu o destino selou: a morte de Luís Eduardo desorientou e trincou o carlismo, que começou a erodir. Ganhando inimigos em todos os cantos, ACM foi perdendo a mágica que o fazia “rei dos baianos”: o acesso direto ao poder nacional, capaz de atender as reivindicações estaduais. O carlismo acabou in-
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“O CARLISMO SU RG E COMO DEMIU RG O DE U MA NOVA BAHIA, IMAG EM REFORÇADA PELO TEMA DA BAIANIDADE ”
MÁ RC IA GOU T HIER/FOLHA IMAGEM
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ventando o seu próprio antídoto: “A cidade acreditou tanto que seu destino dependia não de uma liderança política bem dotada, mas de um governo politicamente dotado ‘de cima’ que o carlismo provou seu veneno e assistiu Lula decidir a eleição em Salvador”. A morte do filho também marca, nota Dantas, a fundação do carlismo póscarlista, no qual o elemento nacional do arranjo se mostra mais poroso, conduzindo a estratégias defensivas para manter a coesão do poder local. Sem ter mais o “corpo fechado”, ACM se vê cercado por escândalos: o caso dos US$ 10 milhões desaparecidos de um empréstimo do Banco Mundial em seu governo; a bravata dos dossiês contra políticos e mesmo contra o Banco Central, que nunca mostrou; acusações recorrentes de enriquecimento ilícito; de fraudes que o ligariam à Odebrecht com direito a contas-fantasmas e caixa dois de campanha; de tráfico de influência em benefício de uma empresa americana na implantação do projeto Sivam; de recebimento de doações ilegais de campanha de empresas; e, entre outros, o caso do “aperto” de botões no lugar de colegas do Senado ausentes, em fotos constrangedoras que o flagraram em delito. Mas é preciso separar fato de ficção.
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ara Dantas, entender a simbiose entre o político e a Bahia “modernizada” é “vê-lo plugado no capital e plantado na tradição, um olho no padre e outro na missa, ator e obra da modernização conservadora que teve para a Bahia o papel análogo da Revolução de 30 para São Paulo”. ACM, observa o pesquisador, é reflexo dessa revolução tardia que, a partir dos anos 1950, arquivou o incipiente projeto de modernização liberal que se esboçou ao fim dos governos Dutra e Octavio Mangabeira, com o retorno de Vargas ao poder pelo voto popular das urnas. O senador agora enfrenta, cada vez mais, a erosão de seu prestígio pessoal. “Privado desse anteparo mitológico, o grupo ficou à mercê da pura lógica dos interesses.” Perdendo seus “homens” no poder federal, ainda amargou a limitação da Rede Globo do uso político de sua repetidora na Bahia, propriedade da família Magalhães (política que cresceu com a morte de Roberto Marinho), a perda do controle sobre o TER PESQUISA FAPESP 131
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e a cúpula judiciária do estado. Se, hoje, seu “prestígio” se viu elevado um pouco graças às denúncias que envolveram o presidente Lula e lhe deram uma plataforma, como crítico feroz do atual governo, há também ameaças internas. “Como o deputado Aleluia. Hoje ACM ainda lidera a bancada, mas até quando isso continuará? É preciso levar em consideração que todos pensarão muito antes de destruir a base de onde surgiram, ainda que o carlismo pós-carlista se volte agora para a gramática do universalismo, aperfeiçoando um discurso liberal para forçar a entrada nos ambientes de grande política, colocando mesmo em segundo plano o tema da baianidade.” Para Dantas, o carlismo pós-carlista não consiste no cancelamento da herança ou mesmo da liderança presente de ACM, nem da vigência do carlismo como grupo político integrado, mas da superação da estrutura fundada numa personalidade por uma dinâmica ancorada numa competição política institucional, bipolar, onde PFL e PT tendem a disputar, cada vez mais, o lugar do protagonista. A vitória de Jacques Wagner revela, observa o pesquisador, o amadurecimento do PT baiano, que foi além da mera posição anticarlista. “Isso não significa que o eleitorado autorizou Wagner a destruir o que houve de construção positiva no estado durante o carlismo. Creio que se espera dele a substituição, com cuidado, da argamassa armada da razão tecnocrática por um cimento democrático e republicano, que tenha uma lucidez técnica, seriedade administrativa, pluralismo político e compromisso para maior igualdade social.” Dantas, tampouco, vê a vitória do petista como a mera derrota do pefelista. “Não foi derrotada a figura do senador ACM, politicamente declinante há mais de meia década, mas da política de ‘renovação por dentro’. O eleitorado baiano optou pelo choque na renovação política, em vez de confiar numa renovação passiva.” Assim, Wagner, diz Dantas,“não derrotou um adversário moribundo. Ao contrário: a partir do ano passado, com a erupção da crise política nacional que colocou o PT em defensiva, o carlismo ganhava fôlego e retomava um viés expansivo, prometendo auto-renovação e cooptando quadros do campo adversário, de que é 84
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PARA MU DAR O Q U ANTO PROMETEU , J ACQ U ES W AG NER PRECISA DE FORTE APOIO DO G OVERNO FEDERAL, O Q U E PODE SER DIFÍCIL
BETO BARATA/FOLHA IMAGEM
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sintoma o desembarque quase total do PSDB baiano na candidatura de Paulo Souto”. O carlismo ainda tem muito óleo de dendê para queimar. “O grupo deixou de ser o intermediário obrigatório dos pleitos. O fator federal foi fundamental nisso, pois o PT e Wagner passaram a substituir isso. É preciso considerar o papel que teve a perda, pelo carlismo, de suas posições no governo federal e o conseqüente arquivamento do seu papel de procurador político obrigatório das lideranças municipais na busca pelo atendimento dos pleitos de suas comunidades. Devemos esperar agora para ver como o carlismo se comporta na oposição, se haverá a manutenção da coesão do grupo nessas novas circunstâncias em que o carlismo pós-carlista se viu derrotado.” Se Wagner irá efetivamente pôr abaixo o edifício carlista é outra história.“Ele fez uma oposição inteligente, posto que abrangente e não ‘fulanizada’ na figura do senador. Mas o governo da Bahia está ocupado por um determinado grupo há 16 anos e isso demanda cautela dos novos. Há uma ‘neblina’ que pede ‘luz baixa’. Não se pode chegar na base da terra arrasada e talvez seja necessária a cooptação de carlistas, fazendo processos consolidados e o novo conviverem.”
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ara mudar o quanto prometeu,Wagner precisa de apoio do governo federal, que, pelo atual sistema federalista, centralizador, pode ser de difícil execução, por mais boa vontade que Lula possa ter. “Não se sabe como se dará o processo, mas haverá tensão entre os impulsos de afastamento do carlismo e sua cooptação. Isso não depende apenas do novo governo, mas de uma série de questões externas.” Não adianta celebrar a “morte do carlismo” antes do tempo. Afinal, não é a primeira vez que o carlismo teve reveses (ACM já perdeu para Roberto Santos e Waldir Pires). A diferença é que pela primeira vez não há, como no passado, a compensação na esfera nacional para essa quebra do monopólio estadual de poder. “Isso mostra o erro de ver o carlismo como episódio localizado e personalizado. A longevidade do grupo se deve mais às conexões nacionais do senador do que à aliança com as elites locais. ACM é mais um caso exemplar da estratégia política da elite brasileira, do
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que um fenômeno baiano exótico.” Para o pesquisador, guardadas as devidas proporções, o carlismo foi a “Fiesp” da Bahia e ACM não uma aberração política, mas um preposto da regra nacional de modernização conservadora.“Se Luís Eduardo não tivesse morrido, a família Magalhães teria feito um giro político total pela história política brasileira, de Vargas ao neoliberalismo de FHC, sem dores, uma sucessão dinástica.”Além da perda do filho, no segundo governo FHC, setores tucanos forçaram sua saída como um “incômodo”, quando, em verdade, ACM e Luís Eduardo foram fundamentais para viabilizar a política neoliberal daquele governo, lembra o pesquisador. “Não se pode falar do senador como o político de uma nota só, pois ele sempre soube se articular com precisão ao que se passava na esfera do Estado. Há alguns anos é que ele ‘descarrilhou’ (como no caso da desavença com Jader Barbalho).” Seria possível pensar numa outra Bahia sem a presença de ACM? “Ele foi um quadro político que veio preencher um vácuo. As elites baianas dos anos 1950, pragmáticas, optaram, sem problemas, por renunciar à liderança do processo de modernização, deixando-o nas mãos do governo federal”, analisa. ACM era apenas um preposto do Estado junto a essas elites, mas foi além do roteiro a ele destinado, montando um poder unipessoal. Para o pesquisador, porém, arremessar pedras em quem já declina há pelo menos seis anos, como se o futuro da Bahia dependesse do destino de uma só pessoa, é um ato redutor e que não ajuda a “democratização”baiana.“Sobre ressentimentos e escombros não se erguerá uma Bahia melhor. A modernização política do estado não requer revanche pessoal, mas atitude democrática. Há um passado e um presente de violência e omissão a superar, mas também conquistas e um novo mundo social baiano, que germinou em chão áspero e deve ser reconhecido para que a política não se converta em autópsia.” Inexistente no livro de Jorge Amado, há, na novela da Globo, uma cena exemplar disso: logo após a morte do coronel Ramiro, Mundinho, o moderno, é mostrado, nas ruas de Itabuna, recebendo o mesmo beijamão do autocrata vencido. Esse é o “h” da baianidade. •
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“SOBRE RESSENTIMENTOS NÃO SE ERG U ERÁ U MA BAHIA MELHOR. A MODERNIZ AÇÃO POLÍTICA DO ESTADO PEDE ATITU DE DEMOCRÁTICA, E NÃO U MA REVANCHE PESSOAL”
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FOTOS EDUARDO CESAR
“DE ONDE ESSA GENTE VEM?”
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Estudos reiteram que a invisível desigualdade brasileira não será resolvida apenas com crescimento econômico do país
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s pobres terão preferência no nosso governo. Eu tenho a convicção de que a solução para os problemas brasileiros não é mais fazer o povo sofrer com ajustes pesados, que terminam caindo em cima do povo; a solução está no crescimento da economia”, discursou o presidente Lula logo após se saber reeleito. “O conceito de classes, entre nós, ainda é percebido no registro economicista (que não percebe a construção cultural e simbólica da distinção social) do velho marxismo. O progresso econômico é visto como panacéia para resolver problemas como desigualdade, marginalização e subcidadania. É uma crença fetichista, que faz esperar do crescimento a resolução de nossas questões sociais”, diz Jessé Souza, titular de sociologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Curiosa armadilha ideológica, pois Lula, ao defender soluções economicistas como estas, mesmo afirmando que “se você conhecer uma pessoa muito idosa e esquerdista é porque ela está com problema”, mostra que continua embalado por ilusões marxistas. “O debate sobre a desigualdade brasileira tem sido travado sob o signo da fragmentação do conhecimento e da percepção da realidade. Criticar o economicismo, e o liberalismo que é a sua ideologia mais acabada, não significa não reconhecer a
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É uma crença fetichista esperar do crescimento a resolução de nossas questões sociais importância fundamental da economia e do mercado. Mas é preciso ir contra a leitura superficial e rasteira de um mundo complexo e desigual, como se a única variável fosse a econômica”, reitera o pesquisador, que acaba de publicar A invisibilidade da desigualdade brasileira e defender sua livre-docência sobre o tema na Universidade de Flensburg, na Alemanha. “O livro é o primeiro resultado para a elaboração de uma ‘teoria da ação social’ para uma interpretação mais adequada sobre o Brasil contemporâneo que não perceba o marginalizado como alguém com as mesmas capacidades disposicionais de um indivíduo da classe média. Se assim fosse, o miserável e sua miséria seriam fortuitos, mero acaso do destino, sendo sua situação de privação reversível, bastando ajuda passageira e tópica do Estado para que ele possa andar com suas pernas. Essa, aliás, é a lógica das políticas assistencialistas nacionais que estão condenadas ao curto prazo e à miopia”, avalia. Uma cegueira que atinge o olho esquerdo e o direito.
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“Os economicistas desconhecem que a reprodução de classes marginalizadas envolve a produção e a reprodução das precondições culturais e políticas da marginalidade. Por outro lado, a ‘glorificação do oprimido’ é a melhor maneira de reproduzir a miséria e o abandono indefinidamente”, critica. Em seus estudos, Jessé Souza vai na contramão do consagrado pensamento social brasileiro que sempre identificou as causas de nossas mazelas, em especial a desigualdade vista com total naturalidade, como um resíduo de nossas origens “prémodernas”.“A naturalização da desigualdade é mais adequadamente percebida como conseqüência, não de nossa herança pré-moderna e personalista, mas do fato contrário, como resultante de um efetivo processo de modernização ‘importado’ de fora para dentro”, nota. Logo, a desigualdade é invisível não porque é um resquício do passado, mas justamente por sua “impessoalidade”, típica dos valores e instituições modernos, o que, segundo o pesquisador, a faz opaca e de difícil percepção na vida cotidiana. Teorias culturalistas, como as de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e mesmo Roberto Da Matta, tendem, segundo o pesquisador, a interpretar o brasileiro como um tipo homogêneo, que nos mostraria “mais calorosos e humanos” do que os indivíduos das sociedades avançadas. Essa “teoria emocional da ação” seria uma “fantasia compensatória”que entenderia os brasileiros como uma sociedade “integrada emocionalmente”, sem nenhuma divisão de classe, apenas se diferenciando na renda ganha por cada um. Daí o progresso econômico tomado como a solução para todos os males.“Isso secundariza aspectos fundamentais e nãoeconômicos da desigualdade social, como a ausência de auto-estima, de reconhecimento social, de aprendizado familiar de papéis básicos, bem como a realidade da reprodução social de uma ‘ralé’, cujo substrato moral, político e social é diferente do da classe média”, observa. O pesquisador dá um exemplo prático: um europeu que atropela, por negligência, um cidadão pobre tem grandes chances de ser punido, inverso do que ocorre no Brasil.“Isso não significa que as pessoas não se importam. Mas o valor de um brasileiro pobre é comparável ao que se dá a um animal doméstico e o inquérito, mesmo aberto, daria em nada, por um acordo implícito entre os agentes envolvidos na situação.” Não se pretende ver europeus “melhores” que brasileiros, mas entender, histórica e filosoficamente, dois desenvolvimentos diferenciados. Na origem está o ascetismo protestante weberiano, que revela a valorização do trabalho, da disciplina e da razão, vistos como elementos constituintes da “dignida-
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de” cotidiana.“É o compartilhamento, no Ocidente, dessa determinada estrutura psicossocial o fundamento implícito do reconhecimento social que torna possível se falar em cidadania.” No caso brasileiro, o processo de “europeização” se dá pela importação, como artefatos prontos, das instituições do mundo moderno, como o mercado capitalista. “A chegada ao Brasil da verdadeira Europa moderna do individualismo moral e do capitalismo é tardia e irá se contrapor diametralmente a um conjunto diverso de potentados rurais com pouca unidade entre si, uma sociedade visceralmente antiindividualista e antiigualitária”, nota. Nesse contexto, Jessé Souza usa o conceito de habitus (componente afetivo e emocional inscrito no corpo e nas manifestações espontâneas dos indivíduos, um tipo específico de socialização), de Bourdieu, para explicar as diferenças. O “habitus primário”seria a capacidade de reconhecer o outro como igual pelo compartilhamento de uma mesma economia emocional e valorativa a partir do seu reconhecimento como membro útil da comunidade. Ao importar tardiamente a ideologia da Europa, o Brasil não consegue implantar aqui o “habitus primário” que permita o processo de equalização tanto da economia emocional como do processo de reconhecimento básico. Sem esse consenso intraclasses teríamos uma fragmentação interna do processo de reconhecimento social, que é fundamental para o exercício da cidadania. Cultivamos o “habitus precário”. Mais terrível: essa diferenciação se desenvolve sob o véu da modernidade, que lhe confere um aspecto “opaco”, invisível e incomodamente “natural”. No Brasil não temos cidadãos que, em condições de relativa igualdade, lutam por uma chance de classificação social nas diversas esferas sociais de atuação que constituem segmentações secundárias com base no desempenho diferencial, como nos países centrais. “Entre nós existe uma segmentação primária que se reproduz molecularmente na vida cotidiana de forma opaca e impessoal, que separa ‘gente’ de ‘não-gente’. Um processo ‘moderno’ e eficaz.” Diapasão – Esse mecanismo de naturalização da
inferioridade faz parecer à própria vítima do preconceito (seja de classe, gênero ou cor) que seu fracasso é pessoal, merecido e justificável, nota o pesquisador. Nesse mesmo diapasão é possível repensar a questão cor/raça, visto como fator definitivo para a desigualdade, ação que, segundo Jessé Souza, “simplifica e confunde causas múltiplas e complexas em uma única”. O pesquisador é cético com afirmações de que a cor da pele e o fenótipo classificam e hierarquizam, por si sós, o acesso seletivo aos bens. “Não seria talvez o processo resultante do abandono da população negra, de desestruturação da família, dificuldade de acesso à escola e à informação, o responsável pela efetiva desclassificação da população negra?” Ainda de acordo com ele, nesse caso, a cor
seria mais um índice suplementar a indicar a “nãoeuropeização”, em termos do “habitus primário”, do que a causa primeira da discriminação. “A cor da pele, nesse contexto, age como uma ferida adicional à auto-estima do sujeito, mas o núcleo do problema é a combinação de abandono e inadaptação que o atinge independentemente da cor da pele”, acredita. Assim, o “habitus precário”, embora o pesquisador ressalte a presença virulenta do preconcei-
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O dado secundário da cor jogaria água no moinho da explicação economicista e evolucionista
to racial, seria não “meramente a cor da pele”, mas certo tipo de “personalidade”, julgada como improdutiva e disruptiva para a sociedade como um todo. “Como não compreendemos, seja no senso comum, seja na reflexão metódica, como funciona o ‘racismo da classe’ entre nós é que a raça passa a ser o único aspecto visível de nossa extraordinária desigualdade. Isso não nos impede de reconhecer a realidade do racismo de cor/raça que exige que se crie uma consciência de sua ação virulenta e mecanismos para o seu combate”, observa Jessé Souza. Para ele, esse tipo de pensamento, que enfatiza o dado secundário da cor (que permitiria, supostamente, atribuir a “culpa” da marginalização apenas ao preconceito), joga água no moinho da explicação economicista e evolucionista de tipo simples, que supõe ser a marginalização algo temporário, modificável por altas taxas de crescimento econômico, as quais, por algum mecanismo obscuro, acabariam por incluir todos os setores marginalizados. “Da mesma forma a ‘escola’ pode ser a panacéia de dez entre dez economistas que escrevem sobre desigualdade, como se a ‘ralé’ já não chegasse perdedora na própria escola (quando tem escola) antes de começar. Diante da generalização geral liberal do economicismo, há que se compreender que a realidade social é estruturada em ‘classes sociais’, cujas chances são preestipuladas”, avalia. Como o “racialismo”. “Esse percebe o preconceito como a causa principal da desigualdade brasileira, repetindo, de modo invertido, o obscurecimento que sempre foi o núcleo da importância da raça no Brasil: servir como ícone de integração, obscurecendo todos os outros conflitos, especialmente os de classe. Isso não nega o caráter perverso de nosso preconceito racial, apenas o contextualiza”, adverte o pesquisador, para quem esse seria o típico exemplo em que “a inércia toma o lugar de uma explicação”. A questão importante não é feita, como bem observa Chico Buarque em Brejo da cruz: “Mas há milhões desses seres/ que se disfarçam tão bem/ que ninguém pergunta/ de onde essa gente vem”. •
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Mudanças em conceito tradicional de família geram crise na educação infanto-juvenil | G ONÇALO J UNIOR
família, como se estabeleceu ao longo dos últimos três séculos, está deitada no divã dos psicólogos e psicanalistas. Passa por uma crise de conceito ainda pouco discutida e que envolve valores morais e religiosos profundamente enraizados em praticamente todas as religiões do mundo. Uma transformação em andamento que, para muitos, fere até mesmo preceitos divinos. No dia-a-dia reflete em especial na falência do modelo tradicional de educação, que gera conflito nas três partes envolvidas: pais, filhos e educadores. Definir quais as responsabilidades dos três se tornou o maior desafio. E tem levado a atritos em sala de aula, muitas vezes com a reprodução da vivência doméstica, onde crianças e adolescentes parecem confundir regras, limites e autoridade. Um fenômeno que pode ser explicado pelo conflito entre o velho modelo e as novas possibilidades e perspectivas de educação – que precisam ser olhadas em função das transformações sociais. “O mundo muda rápido, as demandas e os papéis são muito dinâmicos e fica difícil encontrar equilíbrio. Acredito que é essa contradição que gera conseqüências para as práticas de educação de filhos”, avalia a psicóloga Maria Paula Panúncio-Pinto, autora do doutorado “O sentido do silêncio dos professores diante da violência doméstica sofrida por seus alunos: uma análise do discurso”, defendido na Universidade de São Paulo (USP) em maio de 2006. Para ela, o jeito antigo de pensar a educação é aquele em que educar é apenas “adestrar”, transmitir valores e verdades prontas, negando à criança sua condição de sujeito: os pais mandam, os filhos obedecem. Um sistema que funciona sem respostas. Ou seja, o pai dá uma ordem e o filho, ao perguntar “Por quê?”, ouve como resposta “Porque eu quero” ou “Porque sim, porque estou mandando”.“Este é um jeito fácil de o adulto impor sua vontade diante da criança, que nada sabe e depende dele para quase tudo. Não sei se é possível chamar isso de educação.” Dentro desse estilo autoritário os limites são colocados, para burlá-los os filhos mentem, não se mostram aos pais como são, nunca falam de seus desejos.
encruzilhada. Algumas distorções perceptíveis seriam, por exemplo, atribuir à escola a educação ética e moral dos filhos, algo que vai além do aprendizado escolar. Os pais costumam cobrar dos professores certas correções que deveriam ser feitas em casa. O desconhecimento de regras básicas de educação aponta para uma falta de clareza quanto às atribuições dos pais. Inconscientemente, estes largam mão do convívio pela necessidade de ganhar dinheiro para manter a família. Exemplos extremos são crianças educadas pela TV. Ao mesmo tempo, recai sobre as babás ter de assumir filhos dos outros – com valores sociais e culturais diferentes. A autoridade inquestionável do pai, ancorada na tradição religiosa e no poder econômico de quem sustenta a mulher e os filhos, passa, segundo especialistas, por uma transição. Há quem aponte um processo de dissolução da mesma, como observa o psicólogo Rubens de Aguiar Maciel, da Faculdade de Saúde Pública, da USP, autor da oportuna tese de mestrado “Sobre as circunstâncias em que transcorreu a infância de jovens que moraram nas ruas do município de São Paulo e os possíveis efeitos em suas personalidades”. Existe sim, afirma, um enfraquecimento da autorida-
Que relação é essa, pergunta a psicóloga. Se os pais não puderem ser guias confiáveis quando a dependência do cuidado é laço mais forte, observa ela, fica difícil saber que tipo de contato haverá entre pais e filhos, a partir do momento em que estes começarem a andar sozinhos e a olhar para o mundo pela sua perspectiva.“Se educar não é impor, mas conduzir, mediar, apresentar o mundo para a criança esse modelo tradicional há muito deixou de fazer sentido.” O principal desafio da educação atual parece ser o equilíbrio entre extremos: escolher entre a imposição de limites como mero exercício de poder dos pais ou sua total ausência seria essa
metros frouxos.“Eleger regras próprias precisa antes de maturidade e boa educação”, acrescenta. Maciel defende que o limite é fundamental no respeito tanto à conduta social quanto pessoal. É preciso, explica, que o jovem entenda que seguir regras faz bem e não significa viver com restrição. Se sempre existiu confusão quanto ao desenvolvimento de valores sobre
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como se relacionar, hoje esse aspecto parece ainda mais complexo.“Nem tudo é responsabilidade dos pais, existe uma mão dupla. A criança tem a sua própria constituição de temperamento e caráter.” Refletem nessa crise o ideal de consumo e o individualismo feroz, onde a preocupação com o outro ficaria encolhida. O psicólogo lembra que foram precisos muitos séculos para que a família se tornasse uma importante célula social. Com a força da religião, passou-se a usá-la para transmitir noções e valores religiosos. A partir da propriedade, veio a noção de transmissão de herança. Foi quando o grupo se reuniu e se fortaleceu para manter a posse e a riqueza. Até que, a partir do século XVII, começou a surgir a noção de paternidade moderna.
“Eleger regras próprias pre cisa antes de maturidad e e boa educação” Antes a criança era vista como um adulto em miniatura, vivia na promiscuidade, trabalhava e tinha vida sexual. Não havia a idéia de sua fragilidade emocional. No século de 1800 deu-se início a uma nova concepção da criança, do ser ingênuo que a sociedade corrompe. A Revolução Industrial levou à migração dos filhos e sua independência e autonomia e o pai deixou de ser inquestionável. Finalmente, após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a unidade da família que se sustentava pelo poder econômico começou a se romper com a inserção da mulher no mercado de trabalho.“Hoje tem-se a androgenia, quando a paternidade se confunde e valores antigos não se sustentam. Principalmente por causa do acesso dos filhos à informação. A criança tem como questionar e até saber mais que os pais.” Acontece, no momento, de acordo com Maciel, uma valorização da criança e um direcionamento para contato mais afetivo, enquanto antes era de indulgência, sem demonstração de emotividade. Dentre os aspectos positivos dessas transformações, os filhos menores podem se identificar mais com o pai, conviver com alguém mais carinhoso, num papel mais nivelado com a mulher. “Temos tipos diferentes de famílias – homossexuais, monoparentais, só com avós ou de adoção. Enquanto isso, vive-se uma revolução na educação, só não sabemos onde isso vai dar”, observa o psicólogo. 92
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Um dos aspectos mais estudados em universidades como a USP é a violência doméstica contra crianças. Camilla Soccio Martins, que defendeu “A compreensão de família sob a ótica de pais e filhos envolvidos na violência doméstica contra crianças e adolescentes” em sua tese de mestrado, acredita que o fato de os pais se ausentarem a maior parte do tempo não os impossibilita de participarem ativamente na educação de seus filhos. Importa, sim, que eles tenham de desenvolver algumas estratégias importantes e tomar decisões ponderadas sobre com quem ou onde deixar as crianças na sua ausência.“O envolvimento dos pais na educação dos filhos depende da qualidade do vínculo afetivo estabelecido entre eles.”
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or outro lado, pais e/ou mães podem estar presentes durante a maior parte do dia, mas podem não estar interessados em investir na qualidade da educação e não estar afetivamente disponíveis para isto. Nesse contexto, observam-se inúmeras dificuldades relacionadas à autoridade nas inter-relações familiares.“A figura da mãe não consegue impor autoridade e colocar limites, cabendo isto ao pai, que, por sua vez,pode não estar presente para exercê-la, fazendo com que o microssistema familiar da criança seja deficiente no que diz respeito à colocação de limites”, afir-
ma Camilla. Por isso, sentimentos de culpabilização e impotência são constantemente relatados quando a dificuldade em estabelecer obediência está presente. A criança e o adolescente, prossegue ela, necessitam dos adultos que exerçam sua autoridade de maneira segura, para que possam desenvolver recursos internos e externos que os habilitem a estabelecer relações solidárias no seu convívio social. No entanto, não precisa fazê-lo, necessariamente,por meio da constante presença física.“O que consideramos ser de fundamental importância é a qualidade do vínculo e o potencial de mudança que as práticas disciplinares desencadeiam.” Para Maíra Bonafé Sei, doutoranda em psicologia clínica pelo Instituto de Psicologia da USP sobre violência doméstica, afirmar que a duração dos casamentos causa problemas na educação infantil pode ser perigoso porque são encontradas crianças com problemas de comportamento seja em famílias intactas ,seja em separadas, bem como sem problemas nas duas esferas. “Problemas de comportamento são multideterminados, isto é, há diversos fatores de risco que atuam juntos, assim, a separação é considerada um fator de risco, mas não pode ser vista como o único e nem o mais preponderante. A psicóloga Alessandra Turini Bolsoni defendeu em 2003 o doutorado pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) “Habilidades sociais educativas, variá-
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veis contextuais e problemas de comportamento: comparando pais e mães de pré-escolares”. Ela cita exemplos do passado para explicar o presente. Nas gerações passadas a família sabia o que fazer para educar de forma autoritária, exemplo disso está em falas do tipo “no meu tempo a criança tinha respeito, bastava meu pai olhar que eu já sabia que estava errado”.“Não era respeito o que a criança sentia, mas medo.” Alessandra destaca que, com o avanço da ciência, muito se falou sobre não punir a criança. No entanto, pouco se ressaltou quanto ao que fazer então para educar, o que colaborou para que as famílias reduzissem a coerção por um lado e aumentasse a negligência por outro, deixando de estabelecer limites ou fazendo de maneira inconsistente.“Entretanto, também é um mito acreditar que as famílias de hoje não utilizam a coerção para educar, as minhas pesquisas apontam que quando as famílias estabelecem limites ainda o fazem de maneira coercitiva (por exemplo, batendo, gritando, castigando).” Autora do mestrado “Para uma educação da sensibilidade: a experiência da Casa Redonda Centro de Estudos”, apresentada na Escola de Comunicações e Artes (ECA), da USP, Maria Cristina Meirelles Toledo Cruz sugere que é preciso resgatar na educação valores essenciais, como solidariedade, cooperação, ética,
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respeito à diversidade etc. Quanto à questão familiar, enquanto uma instituição, ela concorda que a família está em crise e que tem sido reinventada com outras formas e padrões de relacionamentos. Mas o que se observa nas crianças pequenas, diz ela, é que, apesar dessas novas formas de relacionamento, elas sentem a necessidade de fazer as famílias, de brincar de casinha, com bichinhos, bonecas, representando a figura do pai, mãe e filho.“Esta é uma vivência arquetípica, que ajuda a criança a estabelecer suas relações e vínculos com o núcleo familiar, ampliando para novos grupos. Ela precisa destas referências enquanto polaridades e universos distintos para poder se integrar, tomando consciência de si, se diferenciando do outro, na construção do seu próprio eu.” A psicóloga e educadora afirma que o papel feminino tem mudado, transformando também o masculino, que então transforma o feminino, num processo contínuo de reajuste e adaptação destes papéis na sociedade atual. “A questão é o desempenho dos vários papéis femininos, como mãe, profissional, mulher, dona-de-casa, filha, esposa etc. e sua satisfação ou não, no sentido de poder integrá-los. Não raro é preciso delegar o papel de mãe para babás, avós, creches etc.” O fato de a mãe não estar presente muitas vezes tenta ser suprido com presentes, como compensação pela falta de
acolhimento do papel materno. “O vínculo materno é a matriz, é o que garante a auto-estima e a segurança, mesmo que vivenciado por poucas horas do dia, depende mais da qualidade e inteireza deste contato.”A criança pode estabelecer outros vínculos afetivos com outros adultos, que desempenhem este papel e estar bem resolvida.A educação, a justiça, é um trabalho do cotidiano, de detalhes, de referências, de modelos positivos, que a criança vai construindo no seu dia-a-dia, com todas as pessoas que se relaciona. Maria Cristina ressalta que muitas vezes a figura paterna fica mais omissa do que a materna, como sendo o provedor, delegando o papel de pai e mãe para a figura feminina, que vira mãe e madrasta dos próprios filhos. Pais ausentes, que convivem pouco com os filhos, perdem as pequenas conquistas e os saltos de desenvolvimento de seus filhos. Tanto os pais ausentes como omissos podem ser substituídos por outras figuras que representem este papel, como um avô, avó, tia, professora, babá etc. As crianças têm uma necessidade de sobrevivência e criam seus próprios personagens, quer seja um amigo fantasma ou um superherói, como referência para ocupar esta falta, esta ausência. É claro que o vínculo de mãe é diferente do da babá, pois é uma ligação visceral, umbilical. Nesse contexto aparece a figura da babá. O ideal, na sua opinião, seria a mãe
urança“ tima e a seg es ot u a a e o que garant a matriz, é é no er t a m poder ficar com a criança até uns 2 anos, “O vínculo até que questões básicas estejam assimiladas e que o filho possa sentir a necessidade de ampliar o universo, com a entrada numa escola, com o contato com outras crianças. “Muitas mães, quando acaba o período de amamentação, sofrem pelo fato de terem que deixar seus filhos em creches ou com babás. Parte delas sente uma competição com a babá, de disputa de afeto e carinho. Costuma acontecer de a babá superproteger estas crianças, o que impede seu crescimento, até para justificar o seu papel.“Tem dificuldade de dar limites,criando crianças tiranas, em vez de ensiná-las a lidar com a autoridade.” É importante investir na formação das babás como seres sensíveis, que possam acolher de forma afetiva a criança que está com ela. • PESQUISA FAPESP 131
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RESENHA
O modelo do ritmo A enunciação explicada de uma forma inovadora: a teoria dos sistemas dinâmicos entre o lingüístico e o motor S ANDRA M ADUREIRA
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m Incursões em torno do ritmo da fala, Barbosa propõe um modelo dinâmico de ritmo, doravante MDR,cujo poder explanatório e potencial de simulação são evidenciados por resultados de experimentos de descrição e de geração dos padrões rítmicos das línguas portuguesa e francesa conduzidos e relatados pelo referido autor.O modelo contempla a inter-relação entre estruturação e regularidade,pois simula o ritmo da fala a partir do acoplamento entre dois osciladores:o acentual,que estrutura as proeminências frasais, e o silábico, que organiza a seqüenciação do fluxo da fala em torno de unidades delimitadas a partir de um onset vocálico e que compreendem a vogal e todos os segmentos consonantais que a seguem – a unidade VV.O acoplamento dos dois osciladores especifica atratores cíclicos (os onsets das vogais acentuadas frasalmente) e define padrões de movimentação ideais (sinergias) para os quais o sistema dinâmico tende.Fenômenos prosódicos,como o deslocamento acentual e o acento secundário,são explicados pelo acoplamento entre os osciladores acentual e silábico e a caracterização dos ritmos das línguas,pela força de acoplamento do oscilador acentual sobre o silábico, gerando, dessa maneira, uma contribuição original para a consideração de como se organizam as durações dentro dos grupos acentuais.Diferentemente de outros modelos de geração de ritmo,apresenta um mecanismo de especificação do controle da taxa de elocução que permite simular as variações encontradas na fala. O MDR explica a relação entre o componente prosódico e os demais componentes lingüísticos (sintático, semântico,pragmático e discursivo) a partir de noções caracterizadamente dinâmicas:atrator,sinergia e acoplamento.Os atratores determinam os picos locais de duração ao longo dos enunciados,as sinergias explicam as estratégias de produção para a realização dessas culminâncias e as variações de força de acoplamento evidenciam a natureza de interação e dominância que se estabelecem entre os osciladores silábico e acentual ou entre o componente prosódico e os de nível hierárquico mais altos (sintaxe,semântica e pragmática). Na presente versão do modelo,a integração entre a sintaxe e a prosódia já se encontra implementada e apresenta a vantagem sobre outros modelos de simulação prosódica por contemplar as variações intra e intersujeitos na reestruturação dos grupos rítmicos. O livro estrutura-se em torno de sete capítulos que cumprem as funções de:1) apresentar o que caracteriza um mo-
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delo dinâmico;2) discutir o “modelo de referência”– que concebe o ritmo como regulaPlínio A. Barbosa ridade e estruturação – em reEditora Pontes/FAPESP lação a outras propostas de modelamento dinâmico de ritmo; 540 páginas 3) considerar aspectos que se reR$ 49,00 vestem de importância para a compreensão do ritmo enquanto fenômeno biológico e lingüístico;4) considerar as relações entre ritmo e sintaxe;5) contemplar as variáveis que interferem na produção e percepção das estruturas rítmicas: a eurritmia,a força da fronteira prosódica,a interação entre prosódia e segmento,o grupo acentual,os acentos lexical e frasal,a natureza dos segmentos especificados em termos de pautas gestuais,a taxa de elocução e a força de acoplamento entre o oscilador acentual e o silábico. No final dos seis primeiros capítulos há um sumário,que pode servir de guia ou recapitulação da leitura,em que o autor retoma os principais pontos explorados.O conjunto desses sumários,acrescido do sétimo capítulo,constitui uma resenha que cumpre plenamente a tarefa de situar os leitores sobre o conteúdo da obra. O livro inclui, ainda, anexos com scripts de programas desenvolvidos pelo autor,elementos de estatística descritiva e os corpora de análise. O autor afasta-se da forma dicotômica de abordar conceitos lingüísticos ao se alinhar com uma corrente de pensamento que enfatiza a auto-organização como um princípio das interações de natureza dinâmica que são as que se estabelecem entre fonética e fonologia,corpo e mente,discreto e contínuo,ritmos silábico e acentual,prosódia e segmento, variância e invariância,produção e percepção de fala. Com a publicação de Incursões em torno do ritmo da fala, Barbosa apresenta um modelo que alia simplicidade,originalidade,flexibilidade de aplicação ou adaptação a outras línguas e poder explanatório.O livro é de interesse a todos os profissionais que investigam a fala, seja para considerá-la sob o ponto de vista da descrição, da variação, da mudança,da teorização,da empiria ou do modelamento, e a todos aqueles que,em outras temáticas,abordam sistemas complexos,dinâmicos e auto-organizados.Em suma,o MDR é uma proposta inovadora que abre caminhos para a investigação dos usos lingüísticos. • Incursões em torno do ritmo da fala
SANDRA MADUREIRA é vice-coordenadora do Programa de Pós-graduação em Lingüística Aplicada ao Ensino de Línguas do Departamento de Lingüística da PUC/SP.
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LIVROS
A função social da guerra na sociedade tupinambá Florestan Fernandes Editora Globo 596 páginas, R$ 55,00
Política, nação e edição: o lugar dos impressos na construção da vida política Eliana de Freitas Dutra e Jean-Yves Mollier (org.) Annablume Editora 624 páginas, R$ 70,00
A guerra tupinambá,que tanto intrigou o imaginário europeu por entrelaçar vingança e canibalismo,torna-se um fato social à medida que Florestan Fernandes passa do plano da interpretação para o da explicação.O livro aborda a guerra,a magia e a religião articuladas como via de acesso para se entender como nessa sociedade de guerreiros o “inimigo”era essencial para a sua produção e reprodução.
O livro reúne textos de autores que refletem sobre o papel dos impressos como constituição e ampliação da esfera pública.Os impressos são analisados como canais de divulgação e mobilização política,contribuindo para a confrontação de idéias,tornando-se decisivos para os processos históricos de construção das identidades culturais.
Editora Globo (11) 3767-7880 www.globolivros.com.br
Annablume Editora (11) 3812-6764 www.annablume.com.br
Alexandre Magno: aspectos de um mito de longa duração
Políticas territoriais na Amazônia
Pedro Prado Custódio Annablume Editora 254 páginas, R$ 35,00
Neli Aparecida de Mello Annablume Editora 412 páginas, R$ 60,00
Quem foi Alexandre Magno? Talvez nunca encontremos resposta,mas Pedro Custódio tenta mostrar alguns aspectos desse herói mítico,destacando a riqueza do mito que podemos apreender desse personagem de todas as épocas.Embasado na psicologia analítica e no conceito de inconsciente coletivo,aplicados a fontes literárias,aborda as complexas interações entre os mitos e as sociedades medievais e modernas. Annablume Editora (11) 3812-6764 www.annablume.com.br
História da psicanálise – São Paulo (1920-1969) Carmen Lucia Montechi Valladares de Oliveira Editora Escuta/FAPESP 366 páginas, R$ 40,00
Neli Mello enfatiza a contradição das políticas públicas territoriais que integram os intensos debates sobre os conflitos entre desenvolvimento e conservação ambiental na Amazônia.A autora analisa as políticas públicas desde a década de 1970 até a transição para os anos 2000,esmiuçando as incoerências entre os discursos e a realidade prática dos investimentos públicos. Annablume Editora (11) 3812-6764 www.annablume.com.br
Comunicação e censura: o circo-teatro na produção cultural paulista de 1930 a 1970 Cristina Costa (org.) Terceira Margem Editora 244 páginas, R$ 30,00
O livro procura analisar as condições da implantação e as particularidades constitutivas da psicanálise na cidade de São Paulo que,de acordo com a autora,se introduziu no período entreguerras como um discurso susceptível de responder às práticas sociais.Através de entrevistas com diversos psicanalistas,examinando vasta literatura,constróise uma história a respeito de nossas tradições culturais.
O circo-teatro representou um apoio indispensável ao desenvolvimento da dramaturgia e da encenação em São Paulo.Companhias circenses encenavam no picadeiro e levavam para o interior do estado obras literárias nacionais e estrangeiras. O livro traz ensaios de diversos pesquisadores que analisam a produção cultural,associada à necessidade de reconstituir a história da censura à produção artística.
Editora Escuta (11) 3865-8950 www.editoraescuta.com.br
Terceira Margem Editora (11) 5573-8139 http://terceiramargem.sites.uol.com.br PESQUISA FAPESP 131
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… FICÇÃO
Como ser ninguém na cidade grande
LUIZ ROBERTO GUEDES
Dear sir or madam,will you read my book It took me years to write,will you take a look Paperback writer, Lennon & McCartney oi o último a desembarcar do ônibus.Fatigado,frágil como um esqueleto de vidro trincado.Em sua idade,qualquer viagem era um desconforto.Rebocando a mala com rodinhas,cruzou lentamente o terminal rodoviário. Desabou num táxi,mandou tocar para o mesmo hotel de sua última vez em São Paulo,doze anos antes.No rádio,um pastor explicava como era fácil para o fiel depositar seu dízimo na conta corrente da igreja,enquanto o passageiro se dava conta da multiplicação das manadas de automóveis,ônibus,caminhões. A abóbada cinza do céu parecia mais densa.De passagem, painéis eletrônicos eufemizavam:QUALIDADE DO AR:REGULAR.E os pedestres no compasso da metrópole,em marcha acelerada nas calçadas.No entanto,o velocímetro do táxi mantinhase abaixo de quarenta por hora. Atazanado pelo coro estridente, entregue sua cruz na mão de Jesus,o amor de Jesus vai curar sua dor , martelado por guitarras, buzinas,motores,sirenes,odores,o velho sentiu a dor de cabeça como um prego no crânio. No hotel,deitou-se pouco depois das dez da noite.Tentou não pensar na operação do dia seguinte.Mas a idéia de que um fantástico canhão ultra-sônico faria a mágica indolor de desintegrar os cálculos em seus rins o manteve acordado.Então,uma britadeira começou a fraturar asfalto ou cimento nas proximidades do hotel.Chapas de metal foram atiradas ao chão com fragor.Em contraponto,uma serra elétrica somou-se ao concerto diabólico. Um compressor trepidava sem pausa, basso profondo, obturando mínimos interstícios de silêncio. Agoniado,vedou os ouvidos com chumaços de algodão.Inútil.A tortura continuou até as três da manhã,enquanto ele amaldiçoava o antropóide administrativo que lhe propiciava aquele pandemônio,brutalizando o sono dos cidadãos contribuintes. Pela manhã,atordoado e em jejum,apresentou-se no hospital.Foi despido e vestido com uma túnica curta,que expunha
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suas pernas secas de ancião,nuas de pêlos,encordoadas de veias grossas.Foi perscrutado por máquinas de refulgente tecnologia e alojado num apartamento onde havia outro paciente. Apesar do mau presságio,o ultra-som realizou seu ato de magia tecnológica.Um bombardeio cruzado de energia ondulatória volatilizou os cristais em seus rins. O senhor está novo em folha,disse convencionalmente o médico. Clichê de filme B,doutor,o velho resmungou. No dia seguinte, sentiu-se bem o bastante para tratar de outro assunto.Carregando um grande envelope pardo,desceu do táxi diante do edifício que abrigava a nova sede da HB Editorial, um cubo de vidro de vinte andares,espelhando prédios distorcidos na outra margem do rio.Colocou os óculos escuros de grau e avançou para o balcão da portaria,onde uma placa de metal polido o deteve,taxativa:IDENTIFIQUE-SE:APRESENTE DOCUMENTO.Apresentado o documento,o velho viu seu rosto, baixo-relevo,em alta definição no monitor. A secretária recebeu com estranheza aquela figura anacrônica.Destoava do design futurista da recepção.Um velhote de crespa cabeleira branca,a cabeça parecendo grande demais para o tronco franzino,o jaquetão que já devia estar num museu,a gravata-borboleta que podia ser contemporânea do chapelão de Santos-Dumont. O senhor deseja?,inquiriu em tom isento de amabilidade. O velho repetiu sua fala,era autor “da casa”,em visita de cortesia,vinha apresentar um livro novo,ergueu o envelope,sorriu com dentes de porcelana. O senhor devia ter marcado antes com o doutor Brazão.Não sei se ele poderá lhe atender, está muito ocupado com os preparativos para a Bienal do Livro.Queira me acompanhar. Marchando à frente,conduziu-o ao interior da colméia devidro,indicou um sofá de couro negro e seguiu rumo à porta decorada com o logotipo da HB Editorial,no fundo do corredor.O visitante passeou os olhos pela galeria de fotos nas paredes:autores nacionais e estrangeiros,notáveis do catálogo da HB.
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MARCIO LEVYMAN
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Numa foto autografada, o canadense Thom Dykins exibia a edição brasileira de seu best-seller Chuva de fogo em Bagdá. Em outra, o editor HB posava ao lado de um rapaz branquelo, de rosto ossudo, com jaqueta de jeans e camiseta com os dizeres RAMONES Gabba Gabba Hey. Quem era mesmo aquele moço? A secretária retornou com um arremedo de sorriso. Heraldo Brazão, editor, já o esperava à porta da sala, efusivo conforme o protocolo. Salve, João Vitorino Cruz! O Faulkner do Brasil Central! Então, resolveu sair da toca? Você está ótimo, igualzinho da última vez, quando foi mesmo? Doze anos? Já? Sente aí. João Vitorino observou o novo look do editor — cabeça raspada, queixo duplo, um discreto brinco de brilhante no lóbulo da orelha esquerda. Mais pós-moderno do que doze anos antes. Ao fundo da sala, além da parede de vidro, via-se o horizonte denteado de edifícios reluzentes, aço e vidro refletindo nuvens. Abaixo, o rio morto, gelatinoso, mingau negro estagnado entre duas avenidas. Grande João Vitorino. Parece que você nos mandou alguns originais nos últimos anos, não foi? É lamentável, meu caro, mas este país não lê, não valoriza o autor nacional. O que você trouxe aí? Morto sem chão? Qual é o assunto? Hum. Interessante. É compreensível, você lida com a realidade que conhece. O tema é sempre o grande problema de um livro, meu caro. That’s the trouble. Atualmente ninguém quer ouvir falar desse tipo de regionalismo tardio: massacre de sem-terra, índio dizimado, grilagem de terras, assassinato de missionário, matador de aluguel etc. O Brasil urbano está de costas pra esse Brasil do fundão. É pena, mas that’s it. A missão de um editor hoje é uma verdadeira cruzada. It’s really hard, my dear. Temos que definir um produto que vá ao encontro do gosto, interesses e expectativas desse leitor moderno, sem tempo para uma literatura mais exigente. Hoje o livro tem que ter um apelo forte, uma trama intrigante, um desfecho impactante. Você tem acompanhado a nova geração de escritores ingleses? Veja esse rapaz, o Jake Lovejoy, que vamos lançar agora na Bienal do Livro. O romance dele, StarTrip, é a história estúpida de um motorista de caminhão que resolve reunir novamente os membros de sua antiga ban-
da de rock e, depois de várias peripécias, conseguem gravar um disco que acaba fazendo sucesso, tudo de modo acidental, porque ele se envolve com uma aristocrata, o caso vira assunto dos tablóides sensacionalistas, e aí, a cada reviravolta, o protagonista vai se dando bem, virando o instant darling da mídia e do povo, apesar de ser um pateta, de fazer tudo errado. É um livro divertidíssimo, very british, com o típico humor inglês. Vai ser filmado. Esse autor, de trinta e poucos anos, tem punch, sabe armar um plot que realmente agarra o leitor. Já vendeu oitocentos mil exemplares na Inglaterra. Vamos lançar aqui antes dos americanos. A parede de vidro vibrou agudamente ao som de um helicóptero. João Vitorino observou o engenho vermelho rumando para um edifício coroado com a marca de uma corporação global. O desenho estilizado de um raio amarelo riscava a porta do aparelho. Teve a impressão de ver encenada uma ilustração de algum livro antigo sobre “o mundo de amanhã”. Visão déjà vu. O futuro havia chegado, mas não tinha lugar para ele. Nem para todos. Well, deixe o seu livro com a gente, João, vamos ler com carinho. Daremos uma notícia em breve, fique sossegado. Então, quando é que volta pra Mato Grosso? Cedo assim? Pena. Você podia ficar pra Bienal do Livro, o Thom Dykins vem aí, o Jake Lovejoy também. É um puta cara bacana, muito divertido, very nice guy. Olha, leva este livro aqui: Como ser ninguém na cidade grande. É daquele humorista americano, Mel Feldman, daquela sitcom Suburbia, da tevê paga, você já viu? Um falso livro de auto-ajuda, não é genial? Pois é, meu caro. Grande prazer rever você.Você está ótimo. Tá com que idade? Setenta e sete? Maravilha. Queria eu chegar a essa idade em grande forma como você. Mas essa vida que a gente leva, essa pressão. Feliz é você que vive longe dessa loucura brava. Boa viagem, João. Dê notícias. Me mande alguma coisa ano que vem. Pode ser que o cenário mude, who knows? LUIZ ROBERTO GUEDES é poeta, escritor e tradutor. Publicou, entre outros, a novela O mamaluco voador (Travessa dos Editores, 2006). PESQUISA FAPESP 131
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USP LESTE CONTRATA DOCENTES Estão abertas as inscrições para os processos seletivos de docentes para a Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo (USP). 1 (uma) vaga para Professor Doutor, referência MS-3, em RDIDP (Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa) para o Curso de Obstetrícia, Área de Bases da Saúde Materna e Fetal. Período de inscrições: 13/11/2006 a 19/01/2007. Edital de Abertura - Edital EACH nº 144/2006 (Publicado no DOE de 10/11/2006). 2 (duas) vagas para Professor Doutor, referência MS-3, em RDIDP (Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa) para o Curso de Obstetrícia, Área de Saúde da Mulher. Período de inscrições: 13/11/2006 a 19/01/2007. Edital de Abertura - Edital EACH nº 145/2006 (Publicado no DOE de 10/11/2006).
CONCURSO PÚBLICO - PROFESSOR DOUTOR (MS-3) ÁREA: “Sistemática, filogenia, biologia e diversidade de Protistas e de Invertebrados Marinhos (exceto Cnidaria e Echinodermata)” PERÍODO DE INSCRIÇÕES: 15/1 A 15/3/2007
Mais informações podem ser obtidas no site www.each.usp.br ou e-mail pessoaluspleste@usp.br
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