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EXEMPLAR DE
ASSINANTE
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Ciência eTecnologia
no Brasil
Maio 2007 Nº 135 ■
LEVEDURAS REDUZEM ´ CUSTO DO ALCOOL OS PRISIONEIROS DA MAGIA DE HARRY POTTER
´ CELULAS-TRONCO
ATAQUE AO DIABETES
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IMAGEM DO MÊS
Descoberta cor-de-rosa Uma nova espécie de medusa foi encontrada no oceano Pacífico, próximo à Costa Rica, a 2,5 mil metros de profundidade. Pertence à ordem das stauromedusas e exibe uma cor rósea que, segundo a geóloga Karen von Damm, da Universidade New Hampshire, Estados Unidos, nunca foi registrada antes. A espécie foi encontrada perto de uma recém-descoberta fumarola submarina da qual emanam águas quentes e escurecidas. O respiradouro foi achado por um robô levado ao fundo do mar numa expedição que estuda a geologia do solo do Pacífico patrocinada pela National Science Foundation.
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> ENTREVISTA 10 Professora da Unicamp
e presidente da Sociedade Brasileira de Computação, Claudia Bauzer Medeiros, analisa os cinco grandes desafios brasileiros na área de tecnologia da informação
26 PARCERIAS
Embrapa e iniciativa privada querem empresa de tecnologia para o etanol
22 FOMENTO
Parceria com a Microsoft Research consolida novo modelo de apoio à pesquisa básica
> SEÇÕES
STF reúne especialistas antes de votar ação contra uso de célulastronco embrionárias
44 FISIOLOGIA
Inflamação bloqueia temporariamente a produção de hormônio que indica ao organismo que é hora de dormir
30 Carlos Américo
Pacheco, secretário adjunto de Desenvolvimento de São Paulo, avalia efeitos da Lei de Inovação
> POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
32 BIOSSEGURANÇA
31 FINANCIAMENTO
Ministério da Ciência e Tecnologia ampliará oferta de bolsas em áreas estratégicas
> CIÊNCIA 38 CAPA
Tratamento experimental com quimioterapia e transplante de células-tronco livra 14 pacientes de injeções de insulina
46 ETOLOGIA
Uso de ferramentas por macacos-prego movimenta debate sobre inteligência e tradições culturais de primatas 52 BOTÂNICA
Tomateiros mutantes ajudam a desvendar genes e hormônios que regulam a vida das plantas
3 IMAGEM DO MÊS 6 CARTAS 7 CARTA DA EDITORA 8 MEMÓRIA 16 ESTRATÉGIAS 34 LABORATÓRIO 60 SCIELO NOTÍCIAS .............................
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EDUARDO CESAR
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WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR
DIVULGAÇÃO
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REPRODUÇÃO
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CAPA
56 FÍSICA
Simulações de computador explicam como nascem e evoluem as dunas gigantes de Marte
> TECNOLOGIA 66 ENERGIA
Novas linhagens de levedura podem reduzir custo de produção de etanol das usinas de açúcar e álcool
70 AGRONOMIA
Inseticida biológico usa parceria entre bactéria e nematóide para combater o bicudo, praga nos canaviais 73 QUÍMICA
Pigmento feito com tecnologia em escala nanométrica muda de cor após ser exposto à luz de laser
> HUMANIDADES
74 ENGENHARIA AEROESPACIAL
Túnel de vento em São José dos Campos vai testar aeronaves muito mais rápidas que a velocidade do som
80 LITERATURA
Último livro da série Harry Potter é um bom motivo para discutir o desejo atual por encantamento
76 PLÁSTICO
Pesquisadores desenvolvem polímero reciclado feito com PET que não agride o meio ambiente
86 HISTÓRIA
Perfis mostram um imperador dom Pedro II mais interessado na essência do que na aparência do poder 90 EDUCAÇÃO
Levar internet para sala de aula ainda é um desafio para educadores e governos
........................... 62 LINHA DE PRODUÇÃO 94 RESENHA 95 LIVROS 96 FICÇÃO 98 CLASSIFICADOS
CAPA MAYUMI OKUYAMA FOTO MIGUEL BOYAYAN
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CARTAS cartas@fapesp.br
Laser na indústria As reportagens de Pesquisa FAPESP retratam a construção do conhecimento que será fundamental para o desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução.
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Números atrasados Preço atual de capa da revista acrescido do valor de postagem. Tel. (11) 3038-1438
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Assinaturas, renovação e mudança de endereço Ligue: (11) 3038-1434 Mande um fax: (11) 3038-1418 Ou envie um e-mail: fapesp@teletarget.com.br
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Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação de Pesquisa FAPESP Rua Pio XI, 1.500 São Paulo, SP 05468-901 pelo fax (11) 3838-4181 ou pelo e-mail: cartas@fapesp.br
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Site da revista No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra e um arquivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis as reportagens em inglês e espanhol.
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Para anunciar
MIGUEL BOYAYAN
Ligue para: (11) 3838-4008
Li com surpresa a reportagem “Laser nas fábricas”(edição 134).Na realidade,a LaserTools,da qual sou um dos sócios,também desenvolve,para a Fundição Tupy,o processo de usinagem a laser de blocos de motores para a GM americana como está descrito na reportagem.A LasertTools é uma empresa nacional financiada pelo Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP.O equipamento utilizado nesse desenvolvimento foi adquirido com recursos da fase III do Pipe intitulado Programa de Apoio à Pesquisa em Empresas (Pappe). Iniciamos o desenvolvimento do projeto em outubro de 2006 quando fomos procurados pela Tupy e acertamos o estabelecimento de uma parceria para desenvolver o processo de laser scribing (ranhura ou vinco a laser) nos blocos de motor.A utilização dessa técnica é uma novidade no país e está sendo introduzida pela Tupy em parceria com a LaserTools,principalmente em relação a um dispositivo,chamado de lança, desenhado pelo nosso sócio Wagner de Rossi para esse projeto. O desenvolvimento de laser scribing foi demonstrado recentemente para representantes da GM americana,que,junto com funcionários da Tupy,acompanharam os primeiros ensaios feitos em corpos-deprova fundidos.Não quero em nenhum momento diminuir o trabalho desenvolvido simultaneamente pelo IEAv,que qualifico de bom nível.Um dos pesquisadores do IEAv,o Milton Lima,citado na reportagem,já foi pesquisador contratado da LaserTools,a quem muito respeitamos e com quem realizamos vários trabalhos. SPERO MORATO - LASERTOOLS São Paulo,SP
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Para esclarecer qualquer dúvida,a Tupy desenvolveu o processo tanto com o IEAv,como está na reportagem,quanto com a empresa LaserTools.As duas instituições possuem equipamentos de laser com características diferentes e pretendíamos verificar qual a melhor tecnologia.Ambas apresentaram resultados satisfatórios e muito contribuíram para a aceitação da GM americana em realizar o desenvolvimento do trabalho no Brasil.Por se tratar de uma empresa e possuir um centro de usinagem com capacidade para receber obloco de motor,a LaserTools foi escolhida para continuar o processo.Agora,a participação dos pesquisadoresdo IEAv, neste projeto,está limitada à orientação tecnológica. Desde o início as duasinstituiçõessabiam do desenvolvimento paralelo que estávamos fazendo e as razões para esse tipo de trabalho. JOSÉ CLÁUDIO MACEDO CARDOSO DIRETOR DE USINAGEM DA TUPY Joinville, SC
Nota da redação: Durante o processo de entrevistas para a reportagem não nos foi informada a participação da LaserTools no processo de desenvolvimento do sistema.
Correção A primeira nota da seção SciELO da edição 134 não corresponde ao título “Formação policial”.A nota correta está publicada na atual edição. A edição de nº 133 de Pesquisa FAPESP apresenta na página 9 a foto do salto de Itapura no rio Tietê,e não Itapuna,como aparece escrito. Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br, pelo fax (11) 3838-4181 ou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.
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CARTA DA EDITORA
Frutos suculentos da pesquisa
FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO
CARLOS VOGT
PRESIDENTE
MARILUCE MOURA – DIRETORA DE REDAÇÃO
MARCOS MACARI
VICE-PRESIDENTE CONSELHO SUPERIOR CARLOS VOGT, CELSO LAFER, GIOVANNI GUIDO CERRI, HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, JOSÉ ARANA VARELA, JOSÉ TADEU JORGE, MARCOS MACARI, SEDI HIRANO, SUELY VILELA SAMPAIO, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO RICARDO RENZO BRENTANI
DIRETOR PRESIDENTE CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ
DIRETOR CIENTÍFICO JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER
DIRETOR ADMINISTRATIVO
ISSN 1519-8774
CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR CIENTÍFICO), CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTONIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, MÁRIO JOSÉ ABDALLA SAAD, PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLLI
DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA
EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN
EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS
EDITORES EXECUTIVOS CARLOS FIORAVANTI (LICENCIADO), CARLOS HAAG (HUMANIDADES), CLAUDIA IZIQUE (POLÍTICA),MARCOS DE OLIVEIRA ( TECNOLOGIA), RICARDO ZORZETTO (CIÊNCIA - INTERINO) EDITORES ESPECIAIS FABRÍCIO MARQUES, MARCOS PIVETTA (EDIÇÃO ON-LINE)
EDITORAS ASSISTENTES DINORAH ERENO, MARIA GUIMARÃES
REVISÃO MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO
EDITORA DE ARTE MAYUMI OKUYAMA
ARTE ARTUR VOLTOLINI, JOSÉ ROBERTO MEDDA, MARIA CECILIA FELLI
FOTÓGRAFOS EDUARDO CESAR, MIGUEL BOYAYAN
SECRETARIA DA REDAÇÃO ANDRESSA MATIAS TEL: (11) 3838-4201
COLABORADORES ANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), CLÁUDIO SOARES, DANIEL KON (ESTAGIÁRIO), DANIELLE MACIEL (ESTAGIÁRIA), DANILO VOLPATO, GREGORY ANCOSQUI (ESTAGIÁRIO), IGOR ZOLNERKEVIC, IRACEMA CORSO, JAIME PRADES, GONÇALO JUNIOR, LAURABEATRIZ E YURI VASCONCELOS.
OS ARTIGOS ASSINADOS NÃO REFLETEM NECESSARIAMENTE A OPINIÃO DA FAPESP É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO
GERÊNCIA DE OPERAÇÕES PAULA ILIADIS TEL: (11) 3838-4008 e-mail: publicidade@fapesp.br
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DISTRIBUIÇÃO DINAP
CIRCULAÇÃO E ATENDIMENTO AO JORNALEIRO LM&X (11) 3865-4949
GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP FAPESP RUA PIO XI, Nº 1.500, CEP 05468-901 ALTO DA LAPA – SÃO PAULO – SP
SECRETARIA DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E TURISMO GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO
A
notícia saiu ainda na primeira quinzena de abril:14 pacientes de diabetes juvenil,submetidos a uma agressiva combinação de quimioterapia e transplante de células-tronco previamente retiradas da medula de cada um,encontram-se há meses livres da necessidade de injeções diárias de insulina.Isso quer dizer que um ousado tratamento experimental levado a cabo pioneiramente no Brasil controlou,em níveis surpreendentes,uma doença que sempre constituiu um pesado fardo para seus jovens portadores.A palavra cura,é claro,não deve ainda ser aplicada ao caso.Os promissores resultados da experiência foram detalhados na edição de abril do Jama,o r espeitado Journal ofthe American Medical Association. Em meio ao júbilo que a notícia produziu na FAPESP – afinal,tratava-se de um belo resultado dos esforços de pesquisa do Centro de Terapia Celular (CTC), um dos Centros de Pesquisa,Inovação e Difusão criados em 2000 sob os auspícios da Fundação e solidamente apoiados por ela –,uma dúvida insinuou-se no espírito da equipe responsável pela produção de Pesquisa FAPESP: a notícia já não seria velha demais para figurar na capa da edição de maio da revista? Não,não seria,eu tinha convicção. Para uma publicação que,gerada das entranhas de um boletim de notícias relevantes da agência paulista de fomento à pesquisa,nasceu com o compromisso inarredável de trazer à luz os resultados mais significativos da produção científica brasileira – tantas vezes menosprezados e mal compreendidos –,nada havia nessa produção,neste exato momento, que ombreasse a experiência da equipe de Ribeirão Preto coordenada por Júlio Voltarelli.Objeto do relato do editor especial Marcos Pivetta,a partir da página 38,nenhum assunto estava a rivalizar com esse na disputa pela capa de maio de Pesquisa FAPESP. A novidade,o caráter inédito das coisas,mesmo no jornalismo, nem sempre constituem o critério absoluto para a escolha do que merece ocupar o espaço mais nobre de uma publicação.
Mas resta dizer que era por uma dessas imprevisíveis coincidências que um produto de um Cepid fornecia o tema da capa da revista no mesmo momento em que preparávamos um suplemento especial sobre o trabalho de difusão do conhecimento levado a efeito por esses centros.Já acertado há alguns meses,o suplemento deveria circular junto com a edição de maio.A reportagem tornava-se assim uma espécie de prova cabal,uma reiteração,de que os Cepids incluem-se entre os mais eficazes agentes institucionais de uma talvez ainda mal percebida transformação em curso na estrutura da produção de ciência e tecnologia neste país. Aliás,há evidências acumuladas nesse sentido pelo menos em duas outras reportagens na seção de política científica e tecnológica.Uma delas (página 26) trata da criação de uma primeira empresa de propósito específico (EPE) pela Embrapa,que permitirá a essa empresa pública associar-se com parceiros privados para realizar pesquisas.A outra ( página 22) faz um relato sobre novos modelos de associação entre empresas e universidades,articulados pela FAPESP, para a geração de conhecimentos de fronteira e sua aplicação em projetos que tenham efetivo impacto social e econômico e ligado a áreas tão decisivas como,por exemplo,a tecnologia da informação (TI).Os dois textos são da editora de política, Claudia Izique. Em tecnologia,o destaque desta edição são as novas linhagens de leveduras que,ao dispensar a etapa da centrifugação no processo de fabricação de açúcar e álcool,podem reduzir de forma significativa o custo de produção nas usinas do setor.O relato,a partir da página 66, é de Yuri Vasconcelos.E para finalizar, um convite ao leitor para que entre sem receio pelos reinos encantados da imaginação desenfreada:o editor de humanidades,Carlos Haag,dá pistas academicamente fundamentadas,a partir da página 80,sobre as razões de Harry Potter ter se transformado num incrível fenômeno da literatura infanto-juvenil. PESQUISA FAPESP 135
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MEMÓRIA
Primeira usina eólica, de Charles Brush, em 1888
Energia de cataventos Criada no século XIX, eletricidade gerada a partir do vento ganha impulso no mundo | N ELDSON M ARCOLIN
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energia eólica vai de vento em popa. Por tantos anos considerada apenas uma decoração na paisagem,com seus cataventos gigantes fincados na areia, esse tipo de energia ganha importância em tempos de procura frenética por fontes limpas. “É um mercado que cresce no mundo a uma taxa de 35% ao ano”,diz Everaldo Feitosa,diretor do Centro Brasileiro de Energia Eólica (CBEE) e pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco.“Hoje,para a aquisição de qualquer tipo de turbina,os clientes devem entrar em uma fila de espera de dois anos.” O Brasil começou a se interessar seriamente pelo tema em 1992,quando foram instaladas duas turbinas,uma em Olinda e outra em Fernando de Noronha.O objetivo era ter um laboratório de campo para testes de componentes, subsidiar estudos acadêmicos e alimentar os programas de pesquisa do CBEE.As duas turbinas foram financiadas pelos ministérios da Ciência e Tecnologia e do Meio Ambiente,pela Financiadora de Estudos e Projetos e pela Agência Nacional de Energia Elétrica. A turbina de Olinda foi a primeira de grande porte conectada ao sistema elétrico.A de Fernando de Noronha gera cerca de 10% da eletricidade da ilha, que tem uma população de 3 mil pessoas.Além
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de Pernambuco, agora há centrais eólicas no Ceará, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina e Minas Gerais. O Programa Institucional de Infraestrutura para Pesquisa e Pós-graduação (ProInfra) previu em 2002 a instalação de 1.423 megawatts (MW) de potência instalada até o final de 2008, num investimento total de US$ 1,5 bilhão. Todo esse interesse tem motivações ambientais e econômicas urgentes. Desde a Antiguidade, porém, a energia do vento é utilizada, de um modo ou de outro, para impulsionar barcos a vela, moer grãos ou bombear água. A transformação da energia mecânica em elétrica surgiu no século XIX. O inventor norte-americano Charles Francis Brush (1849-1929), um dos fundadores da indústria elétrica dos Estados Unidos, construiu um gigantesco moinho na sua propriedade, em Cleveland, o primeiro a operar uma turbina movida pelo vento para produzir eletricidade. O diâmetro do rotor (a parte giratória) era de 17 metros, com 144 lâminas feitas de cedro. A turbina funcionou por 20 anos e era usada para carregar baterias que ficavam no celeiro de sua mansão. Eram gerados apenas 12 quilowatts (kW). Poucos anos depois o professor e inventor dinamarquês Poul la Cour (1846-1908) demonstrou que o ideal é ter o menor
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Turbinas testadas em Askov, na Dinamarca, em 1897
número de lâminas possível para alcançar maior eficiência e mover a turbina. É dele a criação do primeiro túnel de vento, em que testava diversos tipos de lâminas para turbinas. La Cour também trabalhou em modelos que permitissem armazenar energia elétrica, de modo que pudesse ser usada em dias que não havia vento e nos longos períodos de inverno da Dinamarca.
Recebeu financiamento do governo e construiu sua própria turbina em 1897, posteriormente usada na usina do vilarejo de Askov. Dono de rara visão social no seu tempo, o inventor sabia que havia poucos trabalhadores capazes de trabalhar com eletricidade e fundou a Associação dos Eletricistas do Vento, em 1903, com o objetivo de ensinar e treinar pessoas no ofício.
Eles aprendiam não só a lidar com máquinas elétricas, mas também contabilidade, geometria, física e alemão. Com o petróleo barato, essas e muitas outras experiências com usinas de vento tiveram apenas breves espasmos. “Mas com a crise dos anos 1970 a Dinamarca, que nada produz de petróleo ou gás, incentivou fortemente a construção de usinas por pessoas comuns e pequenas empresas e garantiu a compra de toda a eletricidade produzida”, diz Everaldo Feitosa. Hoje a energia eólica representa 18% do total da energia elétrica produzida no país. Na Espanha a participação é de 9%; na Alemanha de 7%, por exemplo. A capacidade instalada no mundo é de 70 mil, suficientes para servir 150 mil residências com consumo mensal médio de 100 kWh por mês. CENTRO BRASILEIRO DE ENERGIA EÓLICA
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Usina em Fernando de Noronha, instalada em 1992, supre 10% da energia da ilha PESQUISA FAPESP 135
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Claudia Bauzer Medeiros Visões do futuro da computação F ABRÍCIO M ARQUES
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pesquisadora Claudia Bauzer Medeiros tem uma vida acadêmica bastante movimentada. Professora do Instituto de Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) há 20 anos, tem extensa produção acadêmica em mais de 30 projetos na área de bancos de dados científicos, com aplicações sobretudo em biodiversidade e planejamento agroambiental. “O ambiente da Unicamp é um celeiro de pesquisadores entusiasmados. Até hoje basta eu atravessar a rua do meu prédio para encontrar parceiros de pesquisa em outras áreas”, diz a professora, que reproduz o mesmo entusiasmo quando fala de seus alunos de iniciação científica e pós-graduação. Claudia também tem um lado militante. Presidente há quatro anos da Sociedade Brasileira de Computação (SBC), cuidou em sua gestão de um fenômeno preocupante: a redução, em nível mundial, do número de alunos interessados pela computação, principalmente as mulheres. O trabalho da SBC na busca de novas vocações, traduzido em iniciativas como a Olimpíada e a Maratona de Programação, que reúnem estudantes de todos os níveis, teve reconhecimento internacional no ano passado, quando Claudia foi laureada com o prêmio Agentes de Mudança, concedido pelo Instituto para Mulheres e Tecnologia Anita Borg e pela Sociedade Norte-Americana de Computação. A SBC, sob a batuta de Claudia, também se preocupou em traçar alguns grandes desafios de pesquisa a longo prazo que a área de tecnologia da informação terá de enfrentar no Brasil.“Várias agências de fomento nos procuravam para tentar definir áreas prioritárias em computação e nos faltava uma resposta articulada”, afirma. No ano passado, pesquisadores da área de computação reuniram-se com especialistas de outras áreas, indicados pela Academia Brasileira de Ciências. Do debate, emergiram cinco grandes desafios, que vão desde a busca de tecnologias pós-era do silício até o desenvolvimento de pesquisas capazes de garantir a confiabilidade da teia tecnológica que abraçou nossas vidas (celulares, câmeras de vigilância, sistemas automatizados em automóveis, elevadores, hospitais etc.). Um desses desafios, o da acessibilidade, serviu de base para um edital lançado no mês passado pelo Instituto Microsoft Research-FAPESP de Pesquisas em Tecnologia da Informação (leia reportagem na página 22). Nascida no Rio de Janeiro, Claudia Bauzer Medeiros formou-se em 1976 em engenharia elétrica pela PUC do Rio de Janeiro. Mais tarde, faria doutorado em ciência da computação na Universidade de Waterloo, no Canadá, pós-doutoramento no Institut National de Recherche en Informatique et en Automatique (Inria), na França, e a livre-docência e concurso para titular, defendidos na Unicamp. Solteira, tem dois irmãos – um é professor de engenharia mecânica da Universidade Federal de Minas Gerais e a outra, professora de matemática na Universidade Federal Fluminense. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida a Pesquisa FAPESP.
■ No lançamento do Instituto Microsoft Research-FAPESP de Pesquisa em TI, você apresentou uma visão da infra-estrutura de pesquisa na área de computação em São Paulo. Como é essa base paulista comparativamente ao Brasil?
— Na verdade, São Paulo é um estado privilegiado em termos de pesquisa em todas as áreas. Em números de pesquisadores, de projetos de pesquisa, de grupos de pesquisa e até de programas de pós-graduação, responde por 25 a 30% do total do Brasil. Eu me referia à produção científica de modo geral, não só na computação. Pelos dados que eu obtive, São Paulo é responsável por cerca de 50% da produção científica em termos de artigos publicados. Na computação, consegui dois indicadores. O primeiro é do CNPq. A computação tem atualmente cerca de 26 pesquisadores classificados no CNPq como pesquisador 2 ou 1. E São Paulo tem 26% desses pesquisadores. ■ É uma comunidade pequena? — A computação é uma comunidade nova. É nova em todo o mundo, e também no Brasil, comparativamente às outras ciências. Eu voltei agora do Chile e tenho conversado com gente de vários outros países sobre esse assunto. Cada vez mais se consolida a minha noção, embora eu não tenha números exatos para comprová-la, de que o Brasil produz mais na computação do que os demais países da América do Sul juntos, com toda a certeza, e talvez até mais do que o resto da América Latina inteira. Um segundo indicador são os alunos de pós-graduação. São Paulo forma 26% de todos os doutores e mestres em ciência de computação no Brasil. Um problema nessa estatística é que existem cursos de pós-graduação de computação associados não apenas à ciência da computação, mas também às engenharias e a uma área classificada pela Capes como multidisciplinar. E esses cursos eu não levei em conta. O interessante com relação à juventude da área é que temos no estado de São Paulo, por exemplo, o programa de graduação em computação mais antigo do Brasil e um dos mais antigos do mundo, que é o da Unicamp. Ele é de 1969. O curso da Universidade Federal da Bahia foi criado na mesma época, mas as primeiras turmas da Unicamp se formaram primeiro. É inegável o papel dos cursos de computação da Unicamp como pioneiros em termos de definição de currículos para o resto do Brasil. Outra coisa que preciso ressaltar sobre a liderança do estado de São Paulo é a atuação da FAPESP. É notório que a maioria das fundações de amparo à pesquisa de outros estados tem um esquema de financiamento muito irregular. A FAPESP garante a São Paulo uma estabilidade na pesquisa que certamente contribuiu de modo fundamental para o destaque dos pesquisadores do estado, inclusive os de computação. ■ Qual é o estoque de graduados em computação? — Existem cursos de computação associados às engenharias, outros à matemática e a diferentes outras áreas, e fica difícil quantificar os graduados. Os dados do censo do Ministério da Educação de 2005 mostram que há cerca de 30 mil formandos por ano, um número grande mas insuficiente para a demanda das empresas. Esses 30 mil recebem diplomas em ciência da computação, engenharia da computação, análise de sistemas, administração de sistemas, uma série de denominações diferentes de curso que precisam ser garimpadas nas estatísticas nacionais. Esses 30 mil correspondem a cerca de
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3,5% do total de formandos em todas as áreas no Brasil, o que não é muito. As várias denominações têm a ver com uma outra questão, que é a necessidade de reconhecer a área de computação como algo que permeia todas as áreas do conhecimento. Trata-se de uma discussão que os pesquisadores têm com os órgãos de fomento. O professor Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, de certa forma reconheceu esta característica da computação ao criar a coordenação de Ciência e Engenharia de Computação. ■ A questão da multidisciplinaridade atinge
todas as áreas, e não só a da computação... — Um dos grandes desafios no Brasil em qualquer área de pesquisa é a necessidade de pesquisa conjunta. Dificilmente você consegue progredir sozinho. E a computação é um dos alicerces para as outras áreas desenvolverem pesquisa. ■ Qual
é a sua visão desse cruzamento de áreas? — O resultado da pesquisa em computação serve para todos e, além do mais, é cada vez maior o leque de pesquisas desenvolvidas no mundo em que há necessidade de um pesquisador em computação para resolver algum problema. Por exemplo, como gerir os dados gerados pelas pesquisas, como desenvolver técnicas sofisticadas de análise. Outro aspecto é a cooperação a distância com outras equipes. Com as facilidades da internet, você pode trabalhar com muita gente. Mas como é que você maximiza a atividade de cooperação? Existe uma área de pesquisa em computação que se chama Computer Supported Cooperative Work, que é o trabalho cooperativo apoiado por computadores. Uma grande parte dessa pesquisa busca apoiar pessoas de qualquer área a trabalhar a distância. Esse cruzamento também beneficia a pesquisa na computação, abrindo novas frentes e criando desafios ■ Você mostrou na sua apresentação algo da base física da informática em São Paulo... — Eu só mencionei alguns programas FAPESP muito importantes, por exemplo o Tidia [Programa de Tecnologia da Informação no Desenvolvimento da Internet Avançada], que não está diretamente ligado à base física, mas que envolve uma parte de redes, por exemplo. A internet no Brasil, em grande parte, surgiu em São Paulo, com a rede ANSP. Infra-estrutura é uma palavra boa porque me lembra de mencionar o fato de que pesquisadores em outras áreas sentem a necessidade de coope-
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ração com a computação. Só que nos pedem trabalho de infra-estrutura, de montagem de rede, desenvolvimento de programas, não realmente de pesquisa. ■ Há uma diferença muito grande entre pesquisa e suporte técnico... — Para poder realmente interagir com pessoas de outras áreas, quem é da computação precisa primeiro convencê-las de que tem algo a contribuir. Existe sempre o problema do vocabulário. Você precisa, realmente, trabalhar junto para convencer os sociólogos ou os biólogos ou os ecólogos ou os filósofos, quem quer que seja, de que você entende o vocabulário deles e que pode cooperar em outro nível, não apenas como um prestador de serviços. ■ E o que é esse outro nível?
— É poder, de alguma forma, com a sua pesquisa, contribuir para a pesquisa dele – o que não envolve apenas o seu know-how de como instalar um software na máquina dele. ■ Como é o nível agregado de cooperação que
um pesquisador de computação precisa ter, por exemplo, com um engenheiro de tráfego que está debruçado sobre o drama de manejar o trânsito numa cidade como São Paulo? — Vou dar exemplos em vários níveis, falando numa linguagem leiga. O primeiro: pesquisadores da área de interfaces podem desenvolver telas que permitam ao engenheiro visualizar diferentes níveis do que está acontecendo. A área de interfaces está crescendo muito e a acessibilidade está associada a isso, que é pesquisa em computação sobre como tornar a informação acessível a quem a está usando. Num segundo nível, temos a construção de programas que facilitem simulações. O especialista em tráfego pode entender de otimização, mas a especificação de novos programas e a sua construção exigem conhecimento de algoritmos. Você pode criar algoritmos mais sofisticados, que acelerem a visualização em tempo real do que está acontecendo, por exemplo. Isso é pesquisa em computação. Depois há a parte de infra-estrutura de rede. De onde o engenheiro de tráfego está recebendo sinais? De sensores. É preciso ter especialistas em redes de computadores que vão dizer: “Eu vou fazer uma pesquisa de como é que os sinais podem chegar até a central de tráfego de uma forma mais eficiente, com menos ruído”. E também tem a minha área, que é banco de dados. Como é que você garante a confiabilidade daqueles dados? Se um sensor falha, como é que você sabe que ele está falhando? Como você armazena os da-
dos para fazer análise do passado para evitar que aquilo ocorra de novo no futuro? Se, por exemplo, uma curva descrevendo a oscilação do número de carros passando numa região está tendo um certo comportamento. Em que outras vezes aquele comportamento existiu? E, em existindo no passado, que isso indica para o futuro? Se aquele comportamento vai me dizer que em dez minutos acontecerá um engarrafamento monstro de cinco horas, está na hora de eu tomar uma decisão. Isso depende de pesquisa em banco de dados. Quantas são as subáreas da ciência da computação? — Existem classificações diferentes, por vários organismos internacionais , que as revêem permanentemente porque a computação é muito dinâmica. Há cerca de dois ou três anos foi formada uma grande comissão no CNPq para reestruturar a tabela das áreas de conhecimento usadas na classificação de pesquisas. Quando eles publicaram os resultados, houve uma reação muito forte de vários grupos (inclusive da computação) que não se sentiram adequadamente classificados ou reclassificados. A iniciativa parou. O que a computação fez na época? Tínhamos sido deslocados da atual situação, que é na grande área das ciências exatas e da terra, e colocados junto com as engenharias. A Sociedade Brasileira de Computação (SBC), apoiada por todos os programas de pós-graduação em computação no Brasil, fez um texto que foi enviado para essa comissão, dizendo o seguinte: nós não somos somente exatas, nem somente engenharias, somos as duas coisas. Nós também usamos como exemplos o modelo norte-americano, o modelo europeu, e dissemos: o que queremos é uma grande área chamada computação.
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■ Sem
muita discussão teórica sobre a epistemologia da computação, não é? — A SBC tem atualmente 20 Comissões Especiais. São grupos de pesquisadores em alguma área da computação que formam um volume suficiente para organizar ao menos um evento científico por ano e que têm já tradição no Brasil. A SBC organiza por ano 35 congressos. Aí você poderia perguntar: “São 35 as áreas da computação?”. A resposta é não.
■ E você não conseguiria chegar a, digamos,
algumas áreas prioritárias de ciência da computação? — É impossível. Todas as tentativas, inclusive mundiais, fracassaram. Considere por exemplo o critério de definir como área
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prioritária toda aquela que tem impacto social. Bom, será que alguém que vai propor um teorema produzirá impacto social? Se esse teorema mostrar que determinado tipo de trabalho em criptografia garante segurança dos dados médicos de alguém, ele tem impacto social. É muito difícil dizer:“Ah, isso não tem impacto social”. É difícil porque a computação permeia todas as áreas.
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bre o tema for apresentado, o relator precisa buscar os projetos associados àquele assunto, juntar todos e fazer uma proposta consensual. Quando surgir uma tentativa de regulamentar alguma profissão associada à computação, automaticamente vai ser puxado o nosso projeto e aí a gente acorda e aparece lá. ■A
■ Você
é graduada em engenharia elétrica. Ainda hoje a computação absorve profissionais de outras áreas? — A computação absorve muita gente de outras áreas e isso nos leva a um outro assunto, que é a questão da regulamentação da profissão. A SBC tem uma diretoria voltada exclusivamente a isso. Conseguimos levar um projeto de lei no congresso, há alguns anos, cujo grande mérito é ter como primeiro artigo uma frase que basicamente diz: “É livre o exercício das profissões de computação no Brasil, independente de registro em conselho”. O que isso significa? Que não é necessário um diploma em computação para você ser um bom profissional. Isso não tem a ver com a pesquisa obviamente, mas sim com a questão do profissional. Quem é responsável por contratar é a empresa. Ela vai distinguir o bom e o mau profissional, independentemente de ele ter ou não um diploma naquela área. Outros projetos de lei sobre o tema regulamentam o trabalho do programador, do analista, de cada categoria profissional de computação, associando cada diploma com as atividades que cada um pode fazer e cerceando enormemente o exercício da profissão. São baseados num cartorialismo excessivo que não se aplica à computação, inclusive porque, a cada três ou quatro anos, surgem novas profissões associadas à área.
■ Quem defende o cartorialismo?
— Alguns conselhos profissionais ou alguns alunos de escolas de má qualidade, que, obviamente, têm medo da competição e, às vezes, alunos até de boas escolas. Temos um trabalho constante de convencimento dos alunos, que o importante é você saber. O diploma certamente é importante, mas um diploma de boa qualidade, não é qualquer diploma. Então, a maioria se convence. ■ Quais as chances do projeto da SBC ?
— O projeto foi apresentado na Câmara dos Deputados pelo deputado Ronaldo Vasconcellos. Mas, a cada vez que muda a legislatura, volta tudo à estaca zero e os projetos são arquivados – foi o que aconteceu com o nosso. Quando um novo projeto so-
SBC organizou um evento que estabeleceu cinco desafios de pesquisa para o futuro do país no campo da computação. Como se chegou a eles? — Em vários países houve a necessidade de fazer um planejamento a longo prazo da área de tecnologia da informação. Órgãos equivalentes ao CNPq ou à FAPESP em países como a Coréia do Sul, a Inglaterra e os Estados Unidos vêm organizando, a partir de 2000, eventos chamados grandes desafios. Foram criadas comissões, selecionaram-se algumas visões, debatidas pelos pesquisadores envolvidos, que produziram propostas consensuais de desafios. Feito isso, estes países usaram os desafios para nortear a política de financiamento à pesquisa nas diferentes áreas – inclusive em computação. No Brasil, esse tipo de planejamento ainda não aconteceu. Até há vontade, mas tem tanta coisa para fazer que é difícil saber por onde começar. A SBC reconheceu essa necessidade. A cada três ou quatro meses surge para mim, como presidente, um pedido para auxiliar algum edital ou de responder quais são as várias prioridades. Não sou eu que vou dizer. Fizemos, então, uma chamada nacional, solicitando propostas de Visões de Futuro para a Computação. Isso aconteceu entre dezembro de 2005 e abril de 2006. Foram selecionadas 22 visões por uma comissão de cinco pesquisadores seniores da computação no Brasil. Eu era um deles. Essas pessoas se reuniram em São Paulo por dois dias e meio e debateram com pesquisadores convidados, fora da área de computação, indicados pela Academia Brasileira de Ciências. Saíram dessa reunião os cinco grandes desafios. O interessante foi reunir especialistas de um grande número de áreas da computação, tinha gente jovem, gente velha... Como a computação é uma área nova, há poucos pesquisadores 1A, na classificação do CNPq. Naquela época, maio de 2006, havia 12 pesquisadores 1A no Brasil. Dez participaram do evento.
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Dois fatores permeiam os desafios. Um é a multidisciplinaridade. O segundo é a formação de mãode-obra que esteja mais preparada para trabalhar num mundo em que é necessário cooperar com todos
■ Quais são os desafios?
— Dois fatores permeiam todos os desafios. Um deles é a multidisciplinaridade. E o segundo é a formação de pesquisadores e de mão-de-obra que esteja mais prePESQUISA FAPESP 135
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Como as crianças terão inserção digital se os professores não sabem ensiná-las a usar um computador de forma adequada? Dar um notebook de US$ 100 deve ajudar, mas ele não resolve sozinho
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parada para trabalhar nesse mundo multidisciplinar, em que é necessário cooperar com todos. Meu estilo para apresentar os desafios parte de uma visão mais de hardware, até chegar no usuário. A base do primeiro desafio é: o que acontece quando acabar a era do silício? Os chips hoje são feitos de silício. Só que o silício está chegando ao limite do que ele agüenta por causa da demanda por alto desempenho. O que está acontecendo? O chip aquece muito e derrete. O que se faz? Em vez de colocar um processador, coloca-se, digamos, dois em um mesmo chip. Já ouviu falar “computador dual core”? É que tem dois núcleos em vez de um só. Uma das soluções é o paralelismo, com processadores ou computadores trabalhando ao mesmo tempo. Mas há um limite. Que outras soluções existem? Um exemplo é a computação biológica. A idéia é a seguinte: o ser humano funciona na base de trilhões de células que se reproduzem e quando, digamos, 10% delas falham, as outras seguram o rojão. Por que não fazer então computadores baseados nesse tipo de conceito, vários computadores especializados, como as células? Outro exemplo: por que a gente não usa o modelo do DNA para armazenar dados? ■ Como seria isso? — Uma cadeia de DNA armazena milhões de informações. Se você conseguir reproduzir esse tipo de mecanismo, não vai mais precisar de grandes discos. Outro impacto que o novo hardware vai ter é na forma como nós ensinamos computação, porque os computadores vão funcionar de forma diferente.Vamos precisar criar novos programas, novos sistemas, novas redes de computadores. O mundo vai mudar. Quando vai mudar? Não sabemos, não temos a mínima idéia. Mas, se a gente não começar a se preparar agora, certamente daqui a dez anos estaremos atrás de outros que já estão pensando nisso. Esse é o desafio: a transição do silício para as novas tecnologias. ■ E o segundo desafio...
— O segundo tem a ver com dados, que é a minha área, com o gerenciamento de grandes volumes de dados multimeios.Vamos tomar como exemplo a gravação desta entrevista. Imagine, por exemplo, que ela já saia escrita. Suponha que alguém queira ter acesso a todas as entrevistas que discutiram os grandes desafios da computação. Quem discutiu? Quais as fotos tiradas durante a entrevista? Isso exige interligar vários tipos de dados. Existem várias máquinas de busca baseada em texto. Mas há cada vez mais necessidade de um conteú14
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do mais rico. Por exemplo, em vez de perguntar “quais os quadros pintados por Rembrandt?”, você faz um esboço e diz: “Que quadros têm esse jeito?”. A sua pergunta não é por texto, é por desenho. Imagine todas essas imagens de satélite que são geradas, ou dados de sensores ou, num hospital, os milhares de exames médicos de todos os pacientes que alguém pode querer estudar para fazer estudos de epidemiologia. Esses estudos teriam aplicações em jornalismo, no ensino, em ciências sociais. E o que torna esse desafio diferente é o fato de ser multimeios, envolve vídeo, som. Além disso, os dados estão na web. Isso de novo pode apoiar a pesquisa científica. ■ E o terceiro...
— É a modelagem computacional de fenômenos artificiais, naturais, sócioculturais, da interação do homem com a natureza. ■ Estamos falando de, traduzindo, fenômenos sociais, a multidão enlouquecida no Carnaval... — Adorei esse exemplo! Ou interações sociais na internet. Ou num país, ou numa comunidade. A internet exige um trabalho de pesquisa enorme em modelagem de fenômenos artificiais. São milhões de computadores que entram e saem da rede o tempo todo. Isso é modelagem também, modelagem de tráfego. O que há de comum a todos os problemas é a noção de que você precisa descobrir quais são as variáveis a estudar, quais são as equações que vão descrever aquilo, quais são as simulações a fazer, quais são as análises de dados, as amostragens. Nesse workshop dos grandes desafios eu aprendi algo muito interessante: o filme O senhor dos anéis mostra uma batalha entre monstros e um grupo dos “do bem”. Como é que esse pedaço do filme foi feito? Foi feito um programa incorporando algumas interações interpessoais reais em cada um dos personagens artificiais. O que isso gerou? Uma animação que fascinou os cientistas sociais. Eles nunca tinham tido um laboratório que mostrasse interações de milhares de seres humanos.A modelagem abre possibilidades para pesquisa em ciências sociais ou em psicologia. ■ E o quarto desafio?
— Esse é o que ajudou a construir o edital da FAPESP lançado pelo Instituto Virtual FAPESP-Microsoft. Esse primeiro edital utiliza um grande trecho do texto do quarto desafio. E isso me deixou muito feliz. Trata-se da questão da acessibilidade, do acesso universal e participativo do cidadão brasileiro ao conhecimento.
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■ Quando
você fez a apresentação, o presidente da FAPESP, Carlos Vogt, lembrou que a questão social entranhava-se no projeto de pesquisa científica. Porque aí se está tratando do acesso de toda a população brasileira... — Há a questão do acesso universal. Um segundo aspecto é o acesso participativo, algo que, de uma certa forma, tem que ser contrastado com a visão de vários órgãos do governo sobre a inclusão digital.
■ Significa que não basta você desenhar soluções para um determinado grupo? E esse grupo precisa falar para que você tenha mais clareza do que ele precisa... — Ele precisa participar da construção da solução e não só isso. De que adianta ter um programa sofisticado se ninguém vai usá-lo porque não atende às suas necessidades? Tem centenas de histórias de desastres de desenvolvimento de software ou hardware baseadas em concepção de sistemas sem a participação de quem vai usar. São bilhões de dólares perdidos. ■ Você poderia citar um exemplo?
— Tem um bastante famoso que é o sistema de automatização da rede de dados do FBI. O projeto foi descontinuado depois de o Congresso americano ter aumentado o orçamento várias vezes. A cada vez vinha um relatório de um grupo de especialistas independentes apontando os problemas, trocavam-se os gestores e o projeto continuava. Tudo porque não houve um envolvimento de quem ia usá-lo. O termo participativo significa a possibilidade de dizer a cada fase: “Olha, é isso o que eu quero”. O quarto desafio é também entender como o cidadão brasileiro pode contribuir para o crescimento do país. Estamos falando da necessidade de uma alfabetização digital e não apenas da inclusão digital. Alfabetização digital não é só você saber clicar. É, ao clicar, saber onde clicar, saber usar. Você não precisa ser um especialista em computação. E isso passa por outro assunto que é a questão de treinamento de professores. Como é que você pode querer que crianças tenham inserção digital se os professores não sabem ensinar a criança a usar um computador de forma adequada? Claro que dar um notebook de US$ 100 deve ajudar, mas ele não resolve sozinho. ■ O trabalho da SBC acabou por servir de suporte ao edital da FAPESP. A intenção era municiar a formulação de políticas? — Foi para isso que fizemos os grandes desafios, para dar subsídios às agências de fomento. Não foi para ficarem restritos à comunidade como desejos de um grupo de
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pesquisadores. Como foram abraçados pela Microsoft Research, me agrada saber que os desafios elaborados por pesquisadores brasileiros estão sendo utilizados nos Estados Unidos também. Havia, tanto do ponto de vista da FAPESP quanto da Microsoft, o desejo de pesquisa inovadora e a longo prazo que fosse socialmente interessante. Os outros desafios também são socialmente interessantes, mas a questão da acessibilidade atinge diretamente as necessidades brasileiras. Nesse ponto eu tenho que reconhecer o apoio que a FAPESP deu ao evento dos grandes desafios e ao reconhecimento que o professor Brito Cruz nos deu, participando da reunião final do evento. ■ Qual é a sua expectativa em relação ao impacto desse tipo de iniciativa? — Um dos méritos é mostrar que existe a possibilidade de uma agência de fomento fazer cooperação com entidades externas – que também desenvolvem pesquisa, note bem, porque foi com a Microsoft Research – e que isso não é feio, porque é uma visão que muito pesquisador no Brasil tem... ■ Ainda?
— Sem dúvida. Há quem ache que fazer acordos com multinacionais ou com com empresas é feio, que o dinheiro do governo é limpo e que o dinheiro de empresas é impuro. Existe essa visão um tanto antiga e pouco realista de que órgãos públicos não podem se associar a empresas para apoiar pesquisa séria. O instituto pode servir de modelo para outros órgãos públicos de fomento. Outro impacto do edital é atrair pesquisadores de outras áreas para cooperar com os de computação. ■ E o quinto desafio?
— É o desenvolvimento de sistemas confiáveis ubíquos. Cada vez mais artefatos da computação estão presentes onde quer que a gente vá. É sensor, é celular, é o Big Brother de 1984 [George Orwell]. E cada vez mais temos a necessidade dessas coisas para tocar a vida. É o elevador que tem computador dentro. É o sistema de trânsito. É o celular, que hoje em dia só eu não gosto de usar. Isso é ubiqüidade. Por outro lado, a nossa dependência gera a necessidade de confiabilidade. Nossas vidas dependem de muitos sistemas computacionais estarem funcionando. E também de crescimento em escala de tudo isso, quer software, quer hardware. Não existe em computação ainda teoria e técnica suficientemente abrangentes e comprováveis que garantam esse crescimento, essa ubiqüidade, essa confiabilidade.
■ Você está à frente da SBC, é professora da
Unicamp e, aqui na FAPESP, é um dos três coordenadores da área de computação. Como é que você faz para ordenar tudo isso sem um software gerenciador na sua vida? — Isso é muito complicado. Não, não tem software gerenciador [risos]. Todo pesquisador com múltiplas atividades vai dizer que lá se vão os fins de semana, as noites. Na verdade, a gente faz o que faz porque a gente gosta, mas, em compensação, existem sacrifícios associados. Eu tenho muita sorte de fazer o que eu gosto sempre, de ter alunos de maravilhosos, de graduação e de pós-graduação. A Unicamp tem esse grande mérito. Por ser uma boa universidade, atrai bons alunos, e os bons alunos atraem bons alunos. E os bons alunos puxam pelos professores. Tenho um enorme orgulho de ser professora da Unicamp. ■ A SBC promove olimpíadas e a maratona de programação. Qual é o impacto dessas iniciativas? — Considero a SBC um modelo porque consegue, com pouquíssima gente, fazer muitas coisas – se descabelando, é claro. Existe essa questão da inclusão digital, que a SBC está reforçando bastante via as olimpíadas e, num outro nível, via Maratona de Programação. As Olimpíadas de Programação ocorrem no Brasil inteiro, para crianças desde o primeiro ano do ensino fundamental até o último do ensino médio. São provas em quatro níveis, feitas com lápis e papel. São questões de lógica e, nos dois níveis mais avançados, para os mais velhos, já envolvem um pouco de programação. A escola se inscreve e é tudo gratuito. Após duas etapas de seleção, os melhores no Brasil inteiro vêm para uma universidade,atualmente a Unicamp, ter aulas com professores da área. Terminado um curso de uma semana, há uma prova para os mais velhos e os quatro melhores vão para as olimpíadas internacionais. O Brasil já ganhou muita medalha de bronze e de prata. Ainda não ganhamos ouro. ■ Qual é o objetivo?
— Atrair mais gente para a área de computação. Isso é estratégico para nós e é estratégico para o Brasil. No mundo inteiro está diminuindo assustadoramente o número de alunos interessados em computação.Aqui no Brasil, nós da SBC tivemos a grande sorte de contar com o apoio da Fundação Carlos Chagas, que nos patrocina. Ela nos dá, desde o ano passado, recursos para tocar adiante as olimpíadas e a maratona. A Fundação acha que essa é uma forma muito boa de inclusão digital e de formação de jovens. ■ PESQUISA FAPESP 135
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> POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA ESTRATÉGIAS
MUNDO
> Ironia e punição
em Pequim e contava ultimamente com dezenas de cientistas. A criação do novo laboratório foi sacramentada em Paris pela presidente do Centro Nacional de Pesquisas Científicas da França (CNRS), Catherine Bréchignac, e o presidente da Academia de Ciências da China, Lu Yongxiang, segundo o site da instituição. O CNRS quer estreitar relações com o Oriente – outros acordos foram assinados com Japão, Coréia do Sul e Vietnã.
em Caracas O físico venezuelano Claudio Mendoza foi exonerado da direção do Laboratório de Física Computacional do IVIC (Instituto de Pesquisa Científica da Venezuela), em Caracas, depois de ironizar as supostas aspirações nucleares do presidente Hugo Chávez. Num artigo Mendoza disse que os venezuelanos não devem temer a aliança entre a Venezuela e países com projetos atômicos, como o Irã. Como as autoridades não dão apoio aos pesquisadores do país, não saberiam desenvolver tecnologia nuclear, disse o físico. Juan Gallardo, da Sociedade Americana de Física, disse à revista Nature que há o temor de uma caça às bruxas contra pesquisadores e enviou uma carta a autoridades venezuelanas pedindo detalhes sobre o caso. O diretor do IVIC, Máximo Sucre, reclama que Mendoza se tornara um ativista. “Isso é incompatível com um cargo que exige afinidades com a política científica do país.” Mesmo afastado da direção, Mendoza segue como pesquisador do laboratório. Sucre nega a intenção de demiti-lo. “Ele deve começar a trabalhar em vez de se fazer de vítima para a imprensa.”
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> Viagem de acasalamento
> Ponte com o Oriente Os governos da França e da China celebraram um convênio que prevê a criação de um laboratório de física de partículas no qual trabalharão
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cooperativamente cerca de 250 pesquisadores dos dois países. Desde 1998 ambas as nações têm um intercâmbio na área, que começou com a colaboração do físico Michel Davier no desenvolvimento de um acelerador de partículas
Um espécime macho do tigre de Amoy, ou tigre-dosul-da- china, viajou de avião da província chinesa de Jiangsu rumo à África do Sul. Segundo a agência EFE, ele foi acasalar com a tigresa Cathay, que habita a Reserva do Vale dos Tigres, na província de Free State. Depois de cumprir a viagem de 40 horas, o tigre de 140 quilos vai passar um tempo adaptando-se ao novo ambiente, para então ser levado ao encontro da futura parceira. O casamento não vai durar. Espera-se que o casal gere filhotes em 2008 e já está acertada a volta do macho à China depois de cumprida
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sua missão. Os tigres de Amoy (Panthera tigris amoyensis) chegaram a ser dados como extintos. Sobrou apenas uma dezena de exemplares em liberdade. Cinqüenta anos atrás, havia mais de 4 mil deles no leste da China. O governo de Mao Tsé-tung decidiu exterminá-los pelos danos que causavam à agricultura.
> Fôlego para a ciência espacial O astrônomo John Mather, de 60 anos, foi indicado para o cargo de cientista chefe da Nasa, a agência espacial norte-americana. Um dos dois ganhadores do Nobel de Física de 2006, em reconhecimento à pesquisa que comprovou a existência da radiação cósmica de fundo, Mather vai emprestar sua reputação para um esforço de reabilitação da agência promovido por seu chefe, Alan Stern, administrador das missões científicas da Nasa. “Eu não precisava acrescentar esse cargo ao meu currículo. Mas tem gente demais dizendo que a Nasa não está fazendo a coisa certa e nós temos de mostrar que temos um bom time e uma boa estratégia”, disse Mather à revista Science. O cargo vai mudar de perfil para
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> Biotecnologia
abrigá-lo. Antes o cientista chefe era apenas uma espécie de consultor. Agora terá um corpo próprio de pesquisadores.
à moda indiana
> Laboratórios num só endereço A Argentina planeja criar um pólo de instituições de pesquisa para facilitar a colaboração e a discussão entre cientistas latinoamericanos. Segundo a agência de notícias SciDev.Net, o governo argentino pretende reunir todas as suas instituições científicas, alguns institutos de pesquisa e de ensino superior, um museu de ciência e um centro de convenções num mesmo endereço no bairro de Palermo, em Buenos Aires. A área de 48 mil metros quadrados vai abrigar as sedes da Secretaria de Ciência e Tecnologia, o Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Tecnológica (Conicet) e a Agência Nacional de Promoção Científica. Pelo menos outros três institutos devem ser transferidos para lá. Centros internacionais também serão convidados a tomar parte da iniciativa, estabelecendo seus laboratórios no complexo. Lino Barañao, presidente
da Agência Nacional de Promoção Científica, disse que o Instituto Max Planck, da Alemanha, já confirmou interesse em integrar-se ao pólo. O orçamento para o projeto ainda não foi definido. As obras devem começar no ano que vem.
As companhias da biotecnologia da Índia estão ganhando proeminência global, graças a seu know how de produzir remédios inovadores ou genéricos e vacinas de baixo custo. Um estudo sobre as 21 principais empresas indianas da área, publicado na revista Nature Biotechnology, mostra que elas estão conseguindo suprir demandas regionais. Em 1997 a empresa Shantha Biotechnics, de Hyderabad, iniciou a produção doméstica de uma vacina contra a hepatite B. O preço da dose caiu de US$ 15 para apenas US$ 0,50. O trabalho, de autoria de Peter Singer, da Universidade de Toronto, no Canadá, faz recomendações para os empresários, como evitar a todo custo que se associem a multinacionais. Ele alerta para o risco de que o canto da sereia do mercado internacional reduza o empenho na busca por terapias contra doenças de países pobres. O estudo constata que as empresas expandem-se no exterior. Cita a compra, em 2006, da norte-americana Nobex pela indiana Biocon por US$ 5 milhões. ILUSTRAÇÕES LAURABEATRIZ
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MUNDO DIVULGAÇÃO
ESTRATÉGIAS
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CIÊNCIA NA WEB Envie sua sugestão de site científico para cienweb@trieste.fapesp.br
Aves do arquipélago: pressão do turismo www.eco.unicamp.br/neit/boletim.htm
SOS Galápagos O governo do Equador decretou estado de emergência nas ilhas Galápagos e anunciou que restringirá a atividade turística no arquipélago, situado no Pacífico e considerado patrimônio da humanidade. O anúncio coincidiu com a visita às ilhas de uma missão da Unesco, braço das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, que apontou riscos à biodiversidade, como a crescente invasão de espécies de animais e plantas não-nativas, a pressão populacional, o turismo descontrolado e o fracasso do governo em gerenciar essa situação. O arquipélago tem grande riqueza biológica e é o hábitat de espécies raras de tartarugas-gigantes, iguanas e pássaros. O estudo da fauna de Galápagos em 1835 ajudou Charles Darwin a elaborar o conceito de seleção natural. Segundo o jornal El Comercio, o biólogo Gunter Reck, estudioso da biodiversidade do arquipélago, expressou 18
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ceticismo sobre o decreto presidencial. Disse que medidas idênticas já foram tomadas antes, em vão.
O boletim trimestral divulga dados e análises produzidos por pesquisadores da Unicamp vinculados ao Núcleo de Economia Industrial e da Tecnologia.
> A culpa é do e-mail Um pesquisador iraquiano que participou de um controverso estudo sobre as taxas de mortalidade após a ocupação do país por tropas norte-americanas não conseguiu viajar aos Estados Unidos. Riyadh Lafta, da Universidade Al-Mustansiriya, foi um dos autores do artigo publicado no jornal The Lancet segundo o qual entre 390 mil e 940 mil pessoas morreram após a invasão – o governo dos EUA admite 50 mil óbitos. Em julho, Lafta pediu o visto para visitar a Universidade de Washington. O Departamento de Estado dos Estados Unidos diz que ofereceu o visto por e-mail, mas não recebeu resposta – e a autorização acabou expirando. Lafta diz que não recebeu aviso nenhum.
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www.voicesforinnovation.org
Agora com versão em português, o portal idealizado pela Microsoft traz notícias e incentiva discussões sobre temas como inovação tecnológica e empreendedorismo.
sibea.mma.gov.br
O portal do Ministério do Meio Ambiente busca integrar educadores ambientais. Promove a criação de redes de profissionais e oferece material pedagógico.
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O desafio da competitividade
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ESTRATÉGIAS
BRASIL
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> Inscrições abertas Estão abertas até o dia 17 de agosto as inscrições para a 4ª edição do Curso de Especialização em Gestão Estratégica da Inovação Tecnológica, oferecido pelo Departamento de Política Científica e Tecnológica da Universidade Estadual de Campinas. Coordenado pelo professor Ruy Quadros, o curso é destinado a profissionais que atuam em funções críticas do gerenciamento da inovação. Mais informações em www.extecamp.unicamp.br/ gestaodainovacao
> Os ganhadores do Prêmio FCW A Fundação Conrado Wessel anunciou os ganhadores do Prêmio FCW de Ciência e Cultura 2006 concedido a seis categorias. O vencedor na categoria Medicina foi Ricardo Renzo Brentani, diretor-presidente do conselho técnicoadministrativo da FAPESP. Professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
Um abrangente mapeamento sobre as atividades e vocações da indústria de São Paulo foi publicado na internet pela Secretaria Estadual de Desenvolvimento. O Atlas da competitividade da indústria paulista reúne mais de 2 mil mapas e contempla um panorama de todos os 645 municípios paulistas. O material, baseado em dados coletados pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade), pelo Ministé-
(USP), é diretor-presidente do Hospital do Câncer A.C. Camargo e coordenou o Centro Antonio Prudente para Pesquisa e Tratamento do Câncer, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids). Na categoria Ciência Geral foi laureado o físico Sérgio Mascarenhas Oliveira, professor aposentado da USP e coordenador do Instituto de Estudos Avançados de São Carlos. O vencedor de Ciência Aplicada ao Meio Ambiente foi Carlos Nobre, do Instituto
rio do Trabalho e pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), foi organizado pelo Departamento de Competitividade e Tecnologia da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Reúne informações socioeconômicas de cidades e regiões paulistas, dados sobre infra-estrutura de apoio à competitividade, como estabelecimentos de ensino técnico e superior e institutos de pesquisa, e gráficos
O prêmio para seis categorias
com a evolução de investimentos, entre outros. A intenção é que o atlas sirva como ferramenta para a formulação de políticas em temas como o incentivo a vocações regionais, os investimentos em educação, tecnologia e recursos humanos e o monitoramento da capacidade das indústrias de inovar e manter a competitividade. O atlas está disponível no endereço www.seade.gov.br/ projetos/fiesp.
Nacional de Pesquisas Espaciais. Professor do Instituto de Geociências da USP, Aldo Rebouças foi premiado em Ciência Aplicada à Água. Em Ciência Aplicada ao Campo venceu Magno Ramalho, da Universidade Federal de Lavras. A vencedora em Literatura, Ruth Rocha, é uma das principais autoras de literatura infantil. O prêmio dado a cada um será de R$ 100 mil. A cerimônia de entrega acontecerá no dia 4 de junho, em São Paulo.
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ESTRATÉGIAS
BRASIL
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> Desempenho vertiginoso A Universidade de São Paulo (USP) inaugurou o supercomputador IBM PowerPC 970. Instalado no Centro de Computação Eletrônica, o sistema foi adquirido com apoio da FAPESP por meio do Programa Equipamentos Multiusuários, a partir de um projeto elaborado por um consórcio formado por 66 grupos de pesquisa da universidade. O supercomputador consiste em um cluster (aglomerado computacional) de 448 processadores que operam em conjunto. Juntos, atingem um desempenho de 2,9 trilhões de operações por segundo (teraflops). Ao lado de três equipamentos da Petrobras, o cluster entrou no Top 500, ranking dos computadores mais potentes do planeta – sendo o primeiro do país de uso acadêmico. Está na 363ª colocação, enquanto os da Petrobras ocupam as posições 273, 275 e 418 na lista. Será utilizado no desenvolvimento de projetos de diferentes áreas, com aplicações em economia, 20
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genômica, engenharia, meteorologia, astrofísica, física de materiais e mecânica de fluidos, entre outras.
> Por uma vida mais ativa O Programa Agita São Paulo, criado pela Secretaria de Estado da Saúde e coordenado pelo Centro de Estudos do Laboratório de Aptidão Física de São Caetano do Sul, desenvolve iniciativas para aumentar o nível de conhecimento da população sobre benefícios da atividade física. Para marcar os dez anos do programa, foi lançado o quarto volume da série Boas práticas do Programa
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Agita São Paulo. O livro reúne experiências de alguns dos 350 parceiros da iniciativa, entre instituições públicas, entidades de ensino e pesquisa, empresas e organizações nãogovernamentais. Ao todo são 150 relatos de intervenções que contribuíram para a promoção de um estilo de vida mais ativo. Entre os exemplos destacam-se a iniciativa de Sorocaba, que implantou 15 pistas de caminhada na cidade.
> Recursos para a Embrapa África A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) conseguiu reunir
apoio de organismos internacionais para financiar as atividades da Embrapa África, em Acra, capital de Gana. O Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (Fida) foi um dos órgãos de fomento que demonstraram interesse em investir em propostas de cooperação. Outra fonte de recursos são os projetos de cooperação técnica com países de língua portuguesa e a Guiné Equatorial. Eles serão encaminhados à Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO). A instalação da Embrapa África foi oficializada em julho de 2006 pelos presidentes do Brasil e de Gana.
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> A caminho
pesquisa estaduais e os recursos são aplicados diretamente nas empresas. Na Região Sudeste uma das propostas contempladas foi a da FAPESP, com R$ 45 milhões mais a contrapartida que será aplicada com recursos da fundação paulista.
da China
> Circulação de idéias Foram lançados os editais do Programa Cultura e Pensamento, que vai contemplar projetos que promovam debates ou produzam publicações
> Vida e ciência no gelo
calcados nos seguintes temas: Biopolítica e tecnologias: padrões de emancipação, propriedade, poder e controle; Populações e territórios: o global, o nacional e o local no agenciamento de identidades e na diversificação da cultura; e Lógicas e alternativas para as dinâmicas culturais. Promovido pelo Ministério da Cultura, o programa tem patrocínio da Petrobras. Serão financiados quatro ciclo de debates, seis publicações em periódicos impressos e cinco publicações on-line. Mais informações no endereço www.cultura.gov.br/culturae pensamento
> Inovação em pequenas empresas A Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) divulgou o resultado da chamada pública Pappe Subvenção. Das 22 propostas recebidas, 17 foram contempladas. O total de recursos é de R$ 150 milhões, além da contrapartida dos estados que pode chegar a R$ 115 milhões. O Pappe Subvenção foi lançado em 2006 para financiar projetos de pesquisa e desenvolvimento em micro e pequenas empresas. O Programa de Apoio à Pesquisa em Empresas (Pappe) é realizado em parceria com as fundações de amparo à
A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) lançou um concurso de trabalhos escritos e desenhos com o tema “Ciência e vida nas regiões polares: equilíbrio para o planeta”. Com inscrições abertas até 16 de julho, é destinado a estudantes do ensino médio de escolas públicas e privadas. Os dez melhores textos e os dez desenhos vencedores serão premiados no Dia Mundial da Ciência pela Paz e pelo Desenvolvimento, comemorado em 10 de novembro. Os professores orientadores também serão premiados. O concurso celebra o Ano Polar Internacional 2007-2008 e os 25 anos do Programa Antártico Brasileiro. Mais informações no endereço www.unesco.org.br/diadaciencia
ILUSTRAÇÕES LAURABEATRIZ
Foi embarcado para a China, de onde deverá ser lançado ao espaço no segundo semestre, o Cbers-2B, novo satélite Sino-Brasileiro de Recursos Terrestres. No Brasil, a missão de desenvolver e construir estes satélites é do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Na China, a responsabilidade é da Academia Chinesa de Tecnologia Espacial (Cast). Trinta técnicos da China estiveram no Inpe na fase de montagem e testes. Agora uma equipe de 12 brasileiros vai à China. O Cbers-2B é quase uma réplica do Cbers-2, que está em órbita há três anos. O satélite tem como objetivo garantir que o fornecimento de imagens iniciado em 1999 com o Cbers-1 não seja interrompido. A vida útil projetada dos satélites é de dois anos.
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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
FOMENTO
Na fronteira
do conhecimento Parceria com Microsoft Research consolida novo modelo de apoio à pesquisa básica C L AU D I A I Z I Q U E | I LU S T R A Ç Õ E S J A I M E P R A D E S
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Instituto Microsoft ResearchFAPESP de Pesquisas em TI (tecnologia da informação), criado no dia 10 de abril, vai formar uma rede de pesquisa básica em tecnologia da informação e comunicação (TIC) com o objetivo de criar novos conhecimentos que respondam aos desafios sociais e econômicos do país. O instituto contará com recursos iniciais de US$ 400 mil divididos entre os parceiros, para apoiar projetos direcionados para as áreas de ciências da saúde, psicologia, lingüística, antropologia, geografia e design. Os financiamentos se estenderão por um prazo de 36 meses. A primeira chamada de propostas, publicada no dia do lançamento do instituto, está disponível no site da Fundação. Os projetos serão recebidos até o dia 11 de junho. O modelo de parceria é inédito no Brasil: promove a interseção entre as universidades e institutos de pesquisa paulista com uma empresa do porte da Microsoft Research para a realização de pesquisa básica, com a intermediação da
FAPESP. “O nosso objetivo é avançar o conhecimento pensando nas aplicações futuras para a TIC”, explica Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP. Não se trata de resolver problemas tecnológicos da empresa, empreendimento que deve ficar a cargo de suas próprias áreas de pesquisa e desenvolvimento.“Isso ela mesma faz. Mas o que a empresa será em dez anos, será determinado pela relação que ela mantiver com a fronteira do conhecimento”, explica Brito. “O interesse de uma empresa em financiar projetos como esse é o de ter contato com essa fronteira.” De acordo com Tomasz Kowaltowski, do Instituto de Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), cresce entre as empresas a “consciência” de que sua atuação não pode ser apenas comercial. “Não se trata de uma necessidade econômica. Elas já enxergam a importância de pesquisar com universidades para ajudar na solução de problemas sociais.” Essa nova modalidade de colaboração universidade-empresa permitirá tam-
bém que os pesquisadores estabeleçam canais de comunicação com parceiros em outros países e trabalhem com temas de pesquisas relevantes. “O conhecimento só avança quando os cientistas se comunicam e debatem sobre suas descobertas”, sublinha Brito. A chamada de propostas para o desenvolvimento de pesquisas no âmbito do Instituto Microsoft Research-FAPESP de Pesquisas em TI, na avaliação de Brito, intensificará a conexão entre os cientistas de São Paulo e o resto do mundo. “E ainda trará um novo grau de reconhecimento internacional para a pesquisa que se faz no estado.” Nessa primeira chamada de propostas, a FAPESP está associando duas modalidades de financiamento, até então independentes. “Como contamos com recursos da Microsof Research, os pesquisadores poderão pleitear auxílios para custeio e para as bolsas necessárias ao andamento do projeto”, conta Brito. O incentivo, ele sublinha, é parte da estratégia da Fundação de criar “mais oportunidades” para a associação entre pesquisa acadêmica e empresarial. PESQUISA FAPESP 135
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A expectativa é selecionar, no primeiro edital, algo em torno de cinco projetos de pesquisa que devem ter como foco aumentar o acesso e os benefícios dos cidadãos às tecnologias da informação e comunicação. Deverá incluir, por exemplo, o desenvolvimento de tecnologias a serem utilizadas em serviços de saúde, educação, desenvolvimento econômico, entre outros. A FAPESP consolida assim a sua estratégia de atuação que se ampara em três pilares. O primeiro, explica Brito, é o apoio à formação de recursos humanos e de cientistas no estado de São Paulo. “A Fundação usa quase um terço de seu orçamento no pagamento de bolsas de estudo de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado. É isso que vai criar a base de competência científica e traçar o futuro da pesquisa em São Paulo”, afirma. O segundo pilar é o apoio à pesquisa básica, motivada e identificada pela curiosidade do cientista e do pesquisador. “Essa modalidade de apoio representa a enorme maioria dos projetos de pesquisa patrocinados pela Fundação. E é assim que deve ser, já que uma das funções mais importantes das universidades e institutos de pesquisa é explorar as idéias novas que, no futuro, vão constituir o acervo de conhecimento que fará desenvolver a humanidade”, acrescenta o diretor científico da FAPESP. “O terceiro pilar é um conjunto de iniciativas e de projetos de pesquisa noqual a Fundação busca associar a investigação de excelência com a sua aplicação ou, pelo menos, a visualização dessa aplicação em um prazo não muito longo”, descreve Brito. Esse tipo de pesquisa freqüentemente é financiado em parceria com empresas.“O Instituto Microsoft Research-FAPESP de Pesquisas em Tecnologia da Informação (TI) se insere nessa estratégia.” Parceria com a Telefônica - A parceria com a Microsoft Research não é o primeiro convênio de cooperação com empresas em projetos colaborativos. No ano passado a FAPESP e a Oxiteno, uma das maiores indústrias químicas do país, lançaram uma chamada pública de propostas para projetos de pesquisa na área de tecnologia de produção de açúcares, álcool e derivados. O objetivo é explorar a 24
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fronteira do conhecimento e buscar soluções inovadoras que ajudem a reduzir os custos de produção do etanol e permitam o seu uso competitivo na produção de produtos químicos. Os investimentos somam R$ 6 milhões, metade bancada pela Oxiteno e a outra metade dividida entre a FAPESP e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). No dia 27 de abril a Fundação anunciou um acordo com o Grupo Telefônica com o objetivo de incentivar pesquisas científicas e tecnológicas em tecnologia da informação e telecomunicações. No mesmo dia foi publicada a chamada de propostas. A exemplo dos convênios com a Microsoft Research e a Oxiteno, as pesquisas devem ser de natureza básica e aplicada, voltadas para novos produtos e serviços. O convênio FAPESP-Telefônica para Apoio à Pesquisa em Tecnologia da Informação e Telecomunicações vai garantir, por um período de três anos, o uso de uma rede dedicada de fibras ópticas com 3,3 mil quilômetros no estado de São Paulo – cedida integralmente pela empresa – para interligar pesquisadores numa plataforma experimental de alta velocidade, conhecida como testbed. Essa infra-estrutura de rede chegará até o interior dos laboratórios de todas as instituições participantes da plataforma. Além da cessão da rede de fibras ópticas, a Telefônica aplicará R$ 390 mil em bolsas em nível de mestrado e doutorado voltados para os temas elencados no convênio. A FAPESP, em contrapartida, investirá R$ 4 milhões anualmente para apoiar projetos de pesquisa sobre tecnologias, produtos e serviços de internet do futuro. Antonio Carlos Valente, presidente do Grupo Telefônica, sublinha que o valor estimado da rede dedicada que a empresa está oferecendo à comunidade científica tem valor estimado em R$ 30 milhões.“Para nós, porém, mais importante do que isso é que essa parceria promove a inovação científica e tecnológica, um dos princípios de atuação do Grupo Telefônica no Brasil e nos outros 22 países onde atua. Esse tipo de parceria pode ser, posteriormente, ampliado para todo o Brasil e demais países da América Latina”, afirma.
Parceria promove a interseção entre universidades e empresas para a realização de pesquisa básica que amplie as fronteiras do conhecimento e atenda a demandas sociais
A intermediação da FAPESP é crucial para consolidar bons negócios na área de pesquisa. “Na medida em que a FAPESP negocia, consegue melhores condições para questões como patentes e propriedade intelectual do que se os entendimentos estivessem sendo feitos por pesquisadores individuais. A pesquisa colaborativa pode ser boa para as empresas, que entendem de inovação, como para a universidade, que entende de pesquisa básica”, argumenta Brito. A Microsof Research também utiliza esse modelo de pesquisa colaborativa no desenvolvimento de projetos. A empresa investe US$ 7 bilhões anuais, cerca de 15% de seu faturamento, em pesquisa básica e desenvolvimento de novos produtos. “Temos 700 pesquisadores em cinco laboratórios em todo o mundo divididos em 55 grupos de investigação distintos”, explica Henrique Malvar, diretor-geral da Microsof Research. Investigam-se novas tecnologias em aprendizagem de máquinas, teoria matemática, análise de informações, entre outras.“Temos pesquisadores de padrão internacional, que buscam ampliar os limites do conhecimento na área da tecnologia da informação e, ao mesmo tempo, auxiliam no desenvolvimento de produtos da Microsoft”, ele diz. Apenas alguns projetos atingem o estado de produto.“O nosso horizonte é: como a vida pode estar melhor em dez anos.” O esforço da Microsoft Research inclui convênios com universidades e institutos de pesquisa, seja por meio da pu-
blicação de trabalhos conjuntos, seja por meio de apoio direto à pesquisa. “Cerca de 15% do orçamento da Microsoft Research é destinado a patrocinar parcerias com universidades”, conta Malvar. Isso sem falar nos 250 estagiários que a empresa recebe anualmente, muitos deles da América Latina.“A parceria com a FAPESP se insere nesse escopo e se apóia na qualidade da comunidade acadêmica de São Paulo, notadamente da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)”, sublinha Malvar. Quadrante de Pasteur - A Fundação e a Microsoft Research reproduzem assim o modelo sugerido por Donald E. Stoke no livro O quadrante de Pasteur – A ciência básica e a inovação tecnológica. Stoke propôs, em 1996, um novo modelo de classificação de pesquisa e inovação a partir de duas coordenadas: a primeira dimensiona o avanço do conhecimento e a segunda, a sua aplicação. Projetada num gráfico, a pesquisa básica sem nenhuma aplicação imediata – que tem seu melhor exemplo nas investigações do físico Niels Bohr sobre a estrutura do átomo – ocuparia o quadrante superior esquerdo. O quadrante inferior esquerdo, segundo classificação de Stoke, é ocupado pela pesquisa aplicada dirigida ao desenvolvimento tecnológico – é o exemplo, no caso, do sistema de iluminação elétrica desenvolvido por Thomas Edison. Stoke reservou o quadrante inferior direito para as pesquisas motivadas pela curiosidade do cientista e destacou, no quadrante superior direito, as pesquisas que podem contribuir para o avanço do conhecimento – qualidade inerente da pesquisa básica – paralelamente ao seu grande potencial de aplicação prática. Esse foi o caráter das investigações de Louis Pasteur, por exemplo, na área de microbiologia que fizeram avançar o conhecimento ao mesmo tempo que beneficiaram os produtores de álcool de beterraba. É aí, no quadrante de Pasteur, que Stoke inscreve a pesquisa básica inspirada pelo uso enquanto expande as fronteiras do conhecimento e atende a demandas sociais. É no quadrante de Pasteur que a FAPESP busca inspiração para o novo diálogo entre as comunidades científicas e as empresas. ■ PESQUISA FAPESP 135
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Pesquisa e inovação S.A. Em brapa e iniciativa privada querem criar em presa de tecnologia para o etanol
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A nova empresa, de acordo com Crestana, quer juntar duas expertises: a da Embrapa, que produz conhecimento, e a do setor privado, que sabe transformar a tecnologia em produto, multiplicá-lo em escala industrial e colocálo no mercado. Mas a grande vantagem, ele reconhece, está mesmo na agilidade e na flexibilidade de operar sob as regras do direito privado.“Temos que aproveitar as oportunidades de negócio e produzir pesquisas sem as amarras do setor público, como as da Lei de Licitação”, exemplifica Crestana. O anúncio da constituição da EPE dependerá da finalização de um complicado e inédito modelo de parceria entre os setores público e privado, que são regidos por regimes jurídicos distintos. “Temos pouca tradição em trabalhar em conjunto. É um arranjo novo e a nossa assessoria jurídica tem trabalhado bastante”, ressalva o presidente da Embrapa. Segurança jurídica - A criação da nova
EPE está prevista no artigo 5º da Lei de Inovação, que autoriza a União e suas entidades a “participar minoritariamente do capital de empresas privadas de propósito específico que vise ao desenvolvimento de projetos científicos ou tecnológicos para a obtenção de produto ou processos inovadores”. Os royalties ou lucro serão propriedade da empresa e sua distribuição será proporcional à participação acionária. No caso do parceiro pú-
EDUARDO C ES AR
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Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) se prepara para liderar um consórcio que vai desenvolver investigações na área de agroenergia em associação com a iniciativa privada. O modelo da parceria será o de uma Empresa de Propósito Específico (EPE), prevista na Lei de Inovação. “Trata-se de um novo arranjo para a pesquisa que tem como objetivo ampliar o volume de recursos para a investigação científica e aumentar a competitividade do agronegócio brasileiro, gerando emprego e renda”, explica Silvio Crestana, presidente da Embrapa. “E isso só vai acontecer se houver investimento no conhecimento.” O projeto está sendo desenvolvido com a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), com o propósito específico de fazer pesquisas e desenvolver tecnologias na área de etanol. A expectativa é de que o empreendimento seja anunciado no dia 6 de junho, durante o Ethanol Summit 2007, promovido pela União da Indústria de Cana-deAçúcar (Única), em São Paulo, de acordo com o ex-ministro da Agricultura e da Pecuária Roberto Rodrigues, presidente do Conselho Superior de Agronegócios da Fiesp e coordenador do Centro de Agronegócios da Fundação Getúlio Vargas (GVagro).“Por enquanto, o Brasil está na frente em relação ao resto do mundo. Mas em cinco ou dez anos podemos perder essa posição”, justifica Rodrigues.
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Tecnologia brasileira de álcool poderá ser replicada no C aribe PESQUISA FAPESP 135
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sa aos parceiros”, afirma Crestana. A diO terceiro desaficuldade é atribuir valor a esse ativo infio é o de gestão. A tangível.“É um cálculo difícil, já que não Embrapa, com 49% existe metodologia universal para isso.” do capital da emA inspiração veio a partir da experiênpresa, será o sócio cia da Agroceres, que, quando foi vendiminoritário com asda, também avaliou o seu capital intesento no conselho lectual. “Não podemos errar o cálculo administrativo da por falta, sob pena de sermos acusados EPE. “Temos que de entregar barato recursos do estado, ter resposta para ou por excesso, e aí não conseguirmos situações em que investidores.” existam interesses A expectativa de Roberto Rodrigues conflitantes. No seé que a EPE reúna recursos para fazer tor público as escofrente aos investimentos norte-amerilhas são feitas por canos em pesquisas com biocombustímeio de concorrênveis e contribua para consolidar a licia. Mas não será o derança do país no cenário internaciocaso na EPE. O sónal. “Os Estados Unidos vão destinar cio minoritário terá US$ 1,6 bilhão em pesquisa com o etamuita importância em situações como nol de milho”, adverte. essa.” Também está em debate o grau de autonomia do representante da Embrapa no conselho, assim como a sua estaDesbravando fronteiras - A Embrapa bilidade, no caso de mudanças de governão desenvolvia pesquisas com cana-deno. “Ele deverá ter estabilidade para toaçúcar até 2005, quando Roberto Rodrimar decisões num empreendimento que gues, então ministro da Agricultura e da é de longo prazo e prerrogativas garanPecuária, criou a Embrapa Agroenergia. tidas”, sublinha Crestana. “Entramos recentemente no ramo da Algumas dúvidas importantes já focana não para competir com empresas ram superadas, de acordo com Crestaprivadas, como a CanaVialis (empresa na.“Inicialmente pensávamos que, para de capital de risco do grupo Votorantim participar da empresa, precisaríamos que trabalha com o melhoramento da da aprovação do Congresso Nacional. cana-de-açúcar por meio da genética Hoje está claro que deve ser um ato do clássica), o Centro de Tecnologia Canapresidente da República”, explica. “Os vieira (CTC) ou ainda o Instituto Agrosócios estabelecem as condições de funnômico de Campinas”, sublinha Crestacionamento do ponto de vista de gesna.“Estamos trabalhando no sentido da tão, definem o plano de negócios e as complementaridade.” questões jurídicas, elaboram contratos De fato, o país tem registrado avane encaminham ao presidente, que tem ços importantes nas pesquisas sobre tecautoridade para decidir.” nologias da cana-de-açúcar. A CanaViOutro problema superado é o da constituição do capital da empresa. “Vamos entrar com o capital intelectual, e não com recursos financeiros. O ativo da Embrapa na EPE será a sua base de conhecimento, seus talentos, seus colaboradores, sua competência e sua rede nacional de pesquisa. Essa é uma vantagem que interesDendê: 5 mil litros de óleo por hectare
Soja: mil litros de óleo por hectare
blico, esses recursos poderão ser utilizados para apoiar pesquisas na forma de equipamentos, insumos, infra-estrutura de laboratórios, bolsas de produtividade tecnológica, entre outros. Apesar dos parâmetros estabelecidos pela Lei de Inovação para a criação da EPE, foi preciso escolher o modelo de associação a ser adotado.“Estamos trabalhando com o modelo de sociedade anônima, que, a nosso ver, protege melhor os interesses do sócio minoritário, no caso a Embrapa, que teria uma participação de 49% no capital da nova empresa”, explica Crestana. A escolha do modelo de parceria é fundamental para que a associação se consolide a partir de “um bom contrato”, como ele diz, que preserve a independência dos sócios.“A Embrapa não pode correr o risco de colocar o interesse público a serviço de interesses privados”, sublinha. A regra vale também no sentido contrário: os interesses privados não podem se submeter aos mesmos mecanismos de controle das instituições públicas, que são auditadas pelo Tribunal de Contas e pela Advocacia Geral da União.“Não vamos atrair nenhum parceiro se houver alguma insegurança jurídica”, diz Crestana. O segundo desafio está na confecção do plano de negócio que deve apontar o volume de recursos necessários para o investimento, definir o papel e responsabilidade dos sócios, entre outras medidas exigidas pelo contrato. “Os institutos de pesquisa não sabem fazer isso e estamos discutindo essa proposta com os parceiros”, adianta Crestana. 28
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alis, mencionada por Crestana, testa algo em torno de 2 milhões de clones por ano, de acordo com Fernando Reinach, presidente da Alellyx. O objetivo das investigações, ele sublinha, é obter maior teor de sacarose, variedades mais precoces e mais bem adaptadas a solos mais pobres. “Desde 2006, os melhores clones estão sendo plantados por nossos clientes”, diz Reinach, referindo-se a 43 usinas que somam 1 milhão de hectares. A Alellyx, outra empresa patrocinada pela Votorantim Ventures, desenvolve pesquisas com o genoma da cana. A
em dez anos. Temos que substituí-las por plantas perenes, como as palmáceas, que produzem o dendê.”
so incluiu uma política de subsídios que vigora até hoje e representa 34% do PIB agrícola europeu. No século XXI o desafio é a segurança energética”. Rodrigues não tem dúvidas de que os Estados Unidos – assim como fez a Europa no século XX – vão produzir álcool do milho,“não importa a que custo”. Dificilmente importarão álcool. Assim, caberá ao Brasil liderar um mercado produtor de matéria-prima e de etanol formado por países situados na faixa tropical, da América à África. “Vamos vender tecnologia, usinas de produção de etanol, carros flex, entre outros.” Mas é preciso recursos para a pesquisa. Para isso, em outra frente de batalha, a Comissão Interamericana de Etanol vai pedir ao presidente George W. Bush que use o dinheiro da sobretaxa cobrada na importação do álcool brasileiro para financiar pesquisas de biocombustíveis no país. “A soma dá US$ 250 milhões. Pode parecer pouco, mas é quatro vezes o orçamento da Embrapa, de US$ 40 milhões”, calcula. A liderança brasileira dependerá também de recursos humanos para gerir novos empreendimentos da economia do etanol. No mesmo seminário pretende anunciar a constituição da parceria da Embrapa com o setor privado, Rodrigues quer lançar também o curso de mestrado em agronegócios, promovido pela Embrapa, FGV e Universidade de São Paulo. A proposta de criação do curso está sendo avaliada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (Capes) e, se aprovada, deverá ser implantada no próximo ano. ■
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N ova commoditie - Ao mesmo tempo que mobiliza o setor privado nacional em torno da EPE, Roberto Rodrigues articula alternativas de mercado para o biocombustível brasileiro. Ele integra a Comissão Interamericana de Etanol, uma organização não-governamental privada criada em dezembro do ano passado, da qual também fazem parte John Ellis Bush, irmão do presidente norteamericano; Luiz Alberto Moreno, presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID); e o ex-primeiro-ministro japonês Homishiro Koyzumi. A comissão, explica Rodrigues,tem a missão de estimular a produção de etanol nos países da América Central e Caribe, transformando o combustível em commoditie. “Nessa empreiP inhão-manso: 4 0 0 litros de óleo por hectare tada, o BID terá um papel fundamental”, sublinha. O banco Alellyx desenvolveu uma planta com está concluindo um levantamento do esteor de sacarose por hectare 80% supetado-da-arte da produção de cana-derior à média que já está sendo testada em açúcar na América Latina e Caribe, para campo. “Em seis anos estará no mercaavaliar áreas disponíveis para plantio e do”, ele prevê. definir apoio para novos investimentos. A contribuição da Embrapa, de acorRodrigues tem uma visão ao mesdo com Crestana, será no sentido de desC L AU D I A I Z I Q U E mo tempo entusiasbravar fronteiras agrícolas e garantir o mada e pragmátiplantio em solos com problemas como ca sobre o futuro estresse hídrico, por exemplo. “Temos da agroenergia e as que criar condições de plantio nos esperspectivas de netados de Minas Gerais, Goiás, no Cerragócios para o Brado e até no Maranhão, regiões com losil. “A agroenergia gística interessante e onde o preço da tervai mudar de forma ra é mais barato do que o da região de dramática a geoRibeirão Preto”, compara. economia agrícola Se o modelo da EPE para o etanol mundial”, ele preder certo, Crestana espera replicá-los em vê. E explica: “No outras empresas, sempre com parceiséculo XX o desafio ros privados.“O biodiesel também pode da Europa era a sese tornar um grande negócio. O problegurança alimentar. ma é que as culturas anuais como a soEles tinham que ja, a mamona, o pinhão-manso, utiliproduzir comida a zadas para a produção de oleaginosas, qualquer custo e istêm ciclo curto e estarão em decadência M amona: 1.50 0 litros de óleo por hectare PESQUISA FAPESP 135
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Uma lei bem-intencionada Carlos Américo Pacheco avalia efeitos da Lei de Inovação
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Lei de Inovação foi uma tentativa de utilizar o modelo da Parceria Público-Privada (PPP) na área de Ciência e Tecnologia.O objetivo,entre outros, era enfrentar os desafios institucionais do sistema de inovação brasileiro,empreitada das mais difíceis.“Mexer nas instituições é um trabalho de risco”,afirma o secretário adjunto do Desenvolvimento de São Paulo,Carlos Américo Pacheco.Dois anos depois de promulgada,a lei não se revelou “eficaz”,como ele diz,para gerar novos modelos de parceria entre os setores públicos e privados,entre eles o de criação de Empresa de Propósito Específico (EPE).Essa constatação,para Pacheco,se traduz em frustração:ele, quando secretário executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia,foi um dos arquitetos da legislação. Nesta entrevista,Pacheco avalia os problemas da legislação. Quais os principais problemas institucionais que a Lei de Inovação pretendeu resolver? — O espírito da lei era exatamente ampliar a parceria público-privada.A interface entre os setores público e privado não se dá apenas no âmbito das redes de pesquisa,mas também na relação jurídica entre as partes.A propriedade intelectual,por exemplo,é um aspecto central da relação jurídica.Era preciso melhorar o relacionamento entre parceiros no que diz respeito ao licenciamento de patentes,ter clareza sobre como repartir os benefícios e flexibilizar o licenciamento de patentes para tornar mais ágil a parceria.
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■ Qual o maior obstáculo para essa modalidade de parceria? — O gargalo dessa parceria estava essencialmente no setor público,e não no pri-
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vado.Trata-se de um problema de direito administrativo:o setor público só pode fazer aquilo que está autorizado em lei e a empresa não pode se associar a uma instituição pública com as mesmas regras do mundo privado.Assim,a lei é uma lei de PPP para melhorar a performance do sistema de inovação.Foi nesse âmbito que a lei autorizou a criação de EPEs para desenvolver projetos em parceria com sócios privados. ■ Se a EPE está prevista na lei,por que tantas dificuldades? — A lei tem o espírito correto,mas desafortunadamente – e digo com pesar porque tive responsabilidade nisso – revelou-se de baixa eficácia jurídica.Ela foi mais importante como instrumento de propaganda da inovação e para chamar atenção para aspectos institucionais.É bem-intencionada,mas a sua redação criou algumas dificuldades.A previsão de um edital para licenciamento e para comercialização de patentes,por exemplo,acabou se transformando numa minilicitação.O problema mais crítico talvez seja a EPE,que deveria permitir que instituições públicas organizassem de maneira mais profissional os empreendimentos em parceria com o setor privado,viabilizando o aporte de recursos em projetos de pesquisa.As EPEs deveriam ser subsidiárias das instituiçõesde pesquisa e,no futuro,permitir que elas contassem com o rendimento proveniente desse tipo de inovação.O caso mais emblemático são as oportunidades em agroenergia e a tentativa da Embrapa de criar uma EPE com sócios do setor privado para realizar pesquisa de alto retorno e grande capacidade de mobilização de recursos.A Embrapa enfrenta um enorme desafio.
Qual a origem dessas dificuldades? — É um problema constitucional.O ca-
pítulo da Ordem Econômica diz que a criação de uma empresa precisa de lei específica.Toda vez que o Estado entra na órbita econômica,de empresa,precisa de lei.A Petrobras tem lei que lhe permite criar subsidiárias.O Banco do Brasil tem lei para subsidiárias.Quando a lei é genérica – como foi o caso da Lei de Inovação,que diz apenas que as instituições de pesquisa estão autorizadas a criar EPE para fins de pesquisa – fica uma dúvida se essa autorização,sendo genérica demais,tem eficácia jurídica.Essa divergência de interpretação gerou um debate jurídico:a lei seria tão abrangente que perde a eficácia jurídica. Sem falar no risco de ter a sua constitucionalidade contestada.Sem amparo legal,as áreas jurídicas das empresas e a Advocacia Geral da União (AGU) não têm como fazer,apesar de a lei dizer que precisa de autorização do presidente da República.Valeria a pena o Ministério da Ciência e Tecnologia fazer uma avaliação da eficácia disso. ■ Quais seriam os principais beneficiários dessa nova modalidade de parceria? — A EPE desenhada na Lei de Inovação deveria beneficiar três grandes instituições com qualidade de pesquisa para empreendimentos desse tipo:Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Fiocruz e Embrapa.Eram candidatos naturais a usar esse instrumento para ampliar o escopo da pesquisa com a iniciativa privada.Falta agressividade das agências de fomento em abrir linha para viabilizar.A Finep e o BNDES deveriam ser acionistas e entrar com aporte de capital em EPE em áreas centrais para o Brasil.É preciso rever a lei para que tenha eficácia jurídica e que as agências apóiem.A idéia de que a lei é auto-aplicável não existe. ■
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Orçamento consolidado
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ministro da Ciência e Tecnologia,Sérgio Rezende, vai apresentar, ao Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia,em maio, o plano de trabalho da sua pasta para o período 2007-2010.“Pela primeira vez na história do MCT fizemos um plano para quatro anos.Isso nunca tinha acontecido antes em função das incertezas de recursos e da descontinuidade administrativa”,explica o ministro.“Agora o planejamento de recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) está sendo cumprido.”Em 2007 o orçamento do FNDCT corresponderá a 70% da receita dos fundos setoriais,o que soma R$ 1,4 bilhão, “sem nenhuma disputa com a área econômica”,sublinha.No próximo ano esse porcentual cresce para Ultracentrífugas de urânio produzem 80%.“Em 2010 teremos 100% dos combustível para Angra I e II recursos dos fundos.Projetando um crescimento de 4% ao ano,é possível afirmar que entre 2007 e 2010 O número de bolsas oferecidas pelas teremos R$ 7,8 bilhões no FNDCT.” agências de fomento também será amO plano está em fase de finalização, pliado dos atuais 65 mil para 90 mil até mas já se sabe que terá quatro unidades 2010.“Queremos aumentar a participaestratégicas:Expansão e Consolidação do ção das áreas tecnológicas e dos setores Sistema; Inovação Tecnológica nas Emestratégicos,priorizando áreas como mipresas;Pesquisa e Desenvolvimento nas croeletrônica,energia nuclear,agroneÁreas Estratégicas;e Po pularização de gócios,entre outros.” Ciência e Tecnologia.“Para cada uma As questões relacionadas ao clima e dessas unidades estratégicas teremos às mudanças climáticas encabeçam a lisgrandes linhas de ação”,explica. ta de prioridades do MCT.“Já lançamos Para a expansão do Sistema Nacioa rede de pesquisa em mudanças climánal de Ciência e Tecnologia o plano preticas.Queremos fazer isso junto com a vê a regulamentação do FNDCT por FAPESP porque essa rede vai estar ancomeio de um projeto de lei enviado ao rada no Instituto Nacional de Pesquisas Congresso no dia 24 de abril.“Parte dos Espaciais (Inpe),que é em São Paulo.Esrecursos dos fundos setoriais será destamos discutindo a formação de um vinculada da fonte de receita para ser utiCentro de Pesquisa em Mudanças Climálizada de maneira mais abrangente”,aditicas no Inpe,que teria tarefa de cooranta o ministro. denar uma rede de universidades que for-
DIVULGAÇÃO CTMSP
MCT vai ampliar oferta de bolsas em áreas estratégicas
mam recursos humanos para essa área.”A expectativa é que essa rede trabalhe com estes temas:Ciência do Sistema Terrestre,Energia e Zonas Costeiras,Agricultura,Biodiversidade,Saúde,Políticas Públicas, Amazônia,Cidades,Recursos Hídricos,Negociações Internacionais e Mecanismo de Desenvolvimento Limpo”,detalha o ministro.Cada um dos temas será coordenado por uma instituição de pesquisa. Os biocombustíveis integram as ações de P&D em áreas estratégicas.“Já temos rede de pesquisa na área de biodiesel e,em breve,vamos anunciar outra na área de etanol.Estamos discutindo com a FAPESP a criação de um centro de referência que seria o núcleo e o elemento de coordenação dessa rede. Será um centro pequeno,com poucas pessoas e com alguma pesquisa.Vamos assinar alguns convênios com a FAPESP,sendo que os mais importantes serão os de biocombustível e etanol,e na área de mudanças climáticas.” Ainda nas áreas estratégicas,as ações do MCT prevêem a retomada do programa nuclear brasileiro.A intenção,afirma o ministro,é fortalecer institucionalmente a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN),recompondo seus quadros;completar a primeira fase da Planta de Enriquecimento de Urânio da Indústria Nuclear Brasileira,em Resende; e retomar a prospecção de urânio,entre outras medidas.“Pretendemos também implementar uma política nacional de rejeitos radioativos,por meio da criação da Empresa Brasileira de Gerência de Rejeitos,da construção de depósitos definitivos para rejeitos de média e baixa atividade e da construção do protótipo do depósito final de combustíveis usados nos reatores nucleares.” ■ PESQUISA FAPESP 135
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> BIOSSEGURANÇA
Quando começa a
vida? STF reúne 22 especialistas antes de votar ação contra o uso de células-tronco embrionárias
N
a primeira audiência pública de sua história,o Supremo Tribunal Federal (STF) perguntou a 22 cientistas:quando começa a vida? A iniciativa foi do ministro Carlos Ayres Britto,relator no julgamento de uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) movida pelo ex-procurador da República Claudio Fonteles,alegando que a Lei de Biossegurança,promulgada em março de 2005, ao autorizar o uso em pesquisa de embriões em estágio de blastocisto – com até cinco dias – fere o artigo 5º da Constituição Federal que garante o direito à vida.A audiência,ele explicou,tinha o caráter “instrutório”e deveria lhe fornecer argumentos para a elaboração de um relatório a serapresentado aos demais ministros,antes da votação da matéria no plenário daquela Corte,provavelmente no final de junho.“Queremos homenagear a sociedade civil organizada,que passa a contribuir para um julgamento que vai repercutir na vida das pessoas,já que o STF é Corte de fazer destino”,afirmou Ayres Britto. A audiência foi acompanhada por quatro dos 11 ministros:Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes e Ellen Gracie,presidente do STF,além de Ayres Britto.O ministro Ricardo Lewandowski acompanhou o debate pela internet.“O ato de julgar é exercício de humildade”,justificou a ministra.Os convidados foram organizados em dois grupos:o grupo A,assim denominado pelo ministro,formado por cien-
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tistas favoráveis à utilização em pesquisas de células-tronco embrionárias – extraídas de embriões fertilizados in vitro e mantidos congelados em clínicas de reprodução assistida,e o grupo B,constituído pelos que rejeitavam a autorização legal. O grupo A inaugurou a sessão matinal de três horas e meia,seguido pelo grupo B,que iniciou os debates vespertinos,com quatro horas de duração,antes do Grupo A,sempre acompanhados atentamente por uma platéia de cerca de 300 pessoas,entre elas dom Odilo Scherer, secretário-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).Os dois grupos se confrontavam pela segunda vez.A primeira foi em 2004 e início de 2005,durante o processo de votação da Lei de Biossegurança na Câmara dos Deputados e no Senado.Mas no STF as regras do embate eram claras e rígidas. “Não é debate contraditório.Cada grupo ouve o outro grupo.Precisamos de vocês para fazer juízo técnico e jurídico”, insistiu o ministro-relator. No grupo a favor,três eram membros da Academia Brasileira de Ciências (ABC), entidade que já se manifestou pelo uso das células-tronco embrionárias em pesquisas.A geneticista Mayana Zatz,diretora do Centro de Estudos do Genoma Humano e professora titular da Universidade de São Paulo (USP),ponderou que a ciência ainda não podia oferecer uma resposta definitiva à indagação do ministro,mas sugeriu que o início da vida talvez pudesse
ser definido por oposição à de morte,já reconhecida pela legislação brasileira como o momento em que cessam as atividades cerebrais,e a partir do qual fica autorizada a doação de órgãos.“O embrião congelado não tem atividade cerebral e pode doar células”,argumentou. Patricia Pranke,da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e presidente do Instituto de Pesquisa com CélulaTronco,contou que entre os embriões fecundados in vitro apenas uma pequena parcela se apresenta “simétrica e sem fragmentação”e pode ser transferida para o útero da mãe.“Ainda assim eles têm 25% de chance de ser gerados.É por isso que se implanta de quatro a cinco embriões”,sublinhou.Os demais embriões apresentam fragmentação e as suas chances de crescimento vão de 0,8% a 6% e ainda há o risco de má-formação do feto.“Se congelados,esse porcentual cai ainda mais e o risco é maior.Se esses embriões são inviáveis,por que não doá-los para pesquisa,antes de congelálos?”,desafia Patricia. Para Stevens Kastrup Rehen,presidente da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento,a admissão de que a vida começa no momento da fertilização pressupõe que o útero “é a essência”sem a qual o óvulo fecundado não se desenvolve.“E nós estamos falando de células que não tiveram contato com o útero materno porque a fecundação foi feita in vitro”, observou. Conflito X confronto - Diferentemen-
te dos embates no Congresso, os representantes do grupo contrário à utilização de células-tronco embrionárias nas pesquisas em nenhum momento usaram argumentos de caráter religioso, apesar de muitos deles terem sido indicados para o debate pela CNBB.A estratégia foi lançar mão de argumentos filosóficos ou enfatizar que as perspectivas de pesquisa com células-tronco adultas, além de apresentar resultados comprovados no tratamento de algumas doenças, já teriam demonstrado “plasticidade”suficiente para expressar-se em tecidos e músculos,o que tornaria desnecessário o uso de embriões congelados. Lenise Aparecida Martins,professora adjunta do Departamento de Biologia Celular da Universidade de Brasília, invocou os resultados das pesquisas com o genoma humano para lembrar que,na
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fecundação, já estão definidas as características genéticas.“Já é possível saber se será alto ou baixo, louro ou moreno e até se terá doenças genéticas”, afirmou. Exibiu um slide com uma pilha de CDs: “Quando se olha uma pilha de CDs, não se sabe o que está gravado, mas sabe-se que está lá”. A bióloga Claudia Batista, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), defendeu a idéia de que a vida humana é “progressiva e contínua”. “Do óvulo até a pessoa adulta há mudanças, mas é a mesma identidade. O zigoto é a primeira célula do homo sapiens que dispara o programa de desenvolvimento intrínseco do ser.” E Lílian Piñero Eça, doutora em biologia molecular e coordenadora do curso “Célulastronco adultas” do Centro de Estudos Universitários (CEU), da Universidade Sagrado Coração (USC), afirmou que, desde o momento da fecundação, o embrião trava “um diálogo químico com os 75 trilhões de células do corpo da mãe”. Já Alice Teixeira Ferreira, professora de biofísica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e Marcelo Paulo Vaccari, cirurgião-plástico e vice-presidente do Instituto de Pesquisa CélulaTronco da USC, preferiram sair em defesa do uso de células-tronco adultas em pesquisa. “Afirma-se que as células embrionárias, diferentemente das adultas, podem se diferenciar em qualquer tecido. Isso não é verdade. Temos evidências de que existe a possibilidade de as células adultas terem essas mesmas características. Isso já foi provado em animais”, garantiu Alice.“Temos 72 aplicações com células-tronco adultas com resultados positivos contra zero com células-tronco embrionárias”, contabilizou Vaccari.
Foi nesse clima que a biofísica Lygia da Veiga Pereira, doutora em genética humana e diretora do Laboratório de Genética Molecular da USP, retomou a argumentação a favor do uso das célulastronco embrionárias. Lembrou que as pesquisas com células-tronco adultas remontam à década de 1950, mas se restringem, basicamente, a transplantes de medula óssea, sem efeito no tratamento de outras doenças.“Qualquer outra aplicação está no âmbito de pesquisa e a ‘plasticidade’ dessas células ainda está em teste”, enfatizou. As pesquisas com célulastronco embrionárias são mais recentes, nos anos 1990.“Hoje já somos capazes de diferenciá-las em pele, sistema nervoso e músculo nas pesquisas com camundongos. O nosso esforço é adaptar os modelos animais para o modelo humano.” As pesquisas ainda não chegaram aos testes clínicos por razões de segurança. “Se pudermos fazer pesquisa, seremos capazes de chegar a isso”, sublinhou. Aula de ciência - Cláudio Fonteles, autor da ação direta de inconstitucionalidade que motivou a audiência, acompanhou atentamente as quase oito horas de debate.“Fomos brindados com uma aula de ciência”, comemorou. “Hoje caiu o mito de que fiz isso por ser católico. To-
do o meu trabalho foi feito com base em ciência. Eu defendo que a vida humana começa com a fecundação.” Para o ministro Ayres Britto,“do ponto de vista técnico”, a contribuição dos cientistas foi decisiva.“Poderemos agora formular um conceito operacional sobre a vida para tornarmos a Constituição mais eficaz. Esse é um tema ramificado, multidisciplinar”, afirmou numa concorridíssima entrevista no intervalo entre as duas sessões. Se a sentença da “Corte de fazer destino”, como ele diz, for favorável ao que já está previsto na Lei de Biossegurança, as pesquisas com células-tronco embrionárias seguirão seu curso. Se a decisão for contrária – o que significa que os ministros concluíram que a vida começa na fecundação e, a partir desse momento, deve ser protegida –, as pesquisas serão interrompidas. Mas o efeito desse julgamento vai muito mais longe e terá repercussão em áreas como a da saúde.“Se a Adin for acatada, será preciso rever, imediatamente, a legislação que autoriza a fertilização assistida”, exemplifica Luiz Eugênio Araújo de Mello, pró-reitor de Graduação da Unifesp e vice-presidente da Federação das Sociedades de Biologia Experimental. ■
C L AU D I A I Z I Q U E ,
DE
BRASÍLIA
REPRODUÇÃO DO LIVRO LEONARDO DA VINCI - ON THE HUMAN BODY
Sentença em junho - Esse não foi o úni-
co momento em que um murmúrio silencioso varreu a platéia contida apenas pelas regras de conduta estabelecidas por Ayres Britto. O ministro, algumas vezes, interrompeu suas anotações para lembrar aos apresentadores que eles deveriam ater-se aos argumentos científicos, filosóficos ou antropológicos – sem incursões no terreno do direito, território da Suprema Corte – e evitar a provocação. “Não se pode confundir o conflito, que é saudável, com o confronto, que é uma batalha campal”, advertiu. PESQUISA FAPESP 135
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> CIÊNCIA MUNDO
> Árvores do passado
Rotas de contaminação Desde que partiu da África para o resto do mundo entre 85 mil e 60 mil anos atrás, o ser humano levou consigo mais do que sua carga genética e sua cultura. Carregou também bactérias e outros seres vivos, provocando uma lenta e gradual introdução de diversas espécies em outros continentes. Já foi assim, mas recentemente tudo mudou com os avanços tecnológicos, que levam as pessoas cada vez mais longe em menos tempo. No mundo atual, interligado por uma complexa rede de aviação destinada ao transporte de passageiros e de carga, aumentou muito o risco de contaminação dos ambientes com espécies consideradas exóticas. Precupados com esse problema, Andrew Tatem, da Universidade de Oxford, na Inglaterra, e Simon Hay, do Centro de Medicina Geográfica, em Nairóbi, no Quênia, resolveram levantar, mês a mês, as informações sobre as 44.285 rotas aéreas existentes e
Um estudo recente dá aos botânicos uma boa idéia de como eram as primeiras árvores que cresceram sobre a Terra.Pesquisadores dos Estados Unidos e do País de Gales reconstruíram o fóssil de uma árvore que existiu há 385 milhões de anos na floresta fóssil de Gilboa, no estado de Nova York.A árvore tinha um tronco com 8 metros de comprimento e ramos largos com folhas semelhantes às das atuais samambaias.Prendia-se ao solo por raízes curtas.Antes desse estudo,publicado em abril na Nature, conhecia-se apenas a parte inferior do caule dessas plantas.Segundo Christopher Berry,da Universidade de Cardiff,no País de Gales,um dos autores do estudo,florestas formadas por essas árvores devem ter proporcionado um ambiente rico para outros organismos e contribuído para reduzir os níveis de gás carbônico na atmosfera.Recentemente outra equipe angloamericana descreveu uma floresta fóssil de 300 milhões de anos a 100 metros de profundidade em uma mina no estado de Illinois,que deverá permitir conhecer como diferentes espécies de plantas se distribuíam nas florestas tropicais (Geology).
o clima de 3.364 aeroportos no período entre 1º de maio de 2005 e 30 de abril de 2006. Cruzando os dados, os pesquisadores mapearam os aeroportos ligados por pelo menos uma rota aérea que apresentavam clima mais parecido em cada mês do ano. Assim, identificaram as rotas e as regiões mais suscetíveis à contaminação em um determinado período. Os resultados mostram que em junho e julho é maior o risco de contaminações. É verão no hemisfério Norte, clima ideal para a propagação de diversas pragas, e há um aumento no número de vôos por causa das férias. Esse período também é o de maior equivalência climática entre os aeroportos. Publicado nos Proceedings of the Royal Society, o estudo pode orientar a adoção de medidas que impeçam a propagação de pragas agrícolas e de doenças tropicais, que podem se tornar mais comuns com o aumento da temperatura no planeta.
Pelos ares: pragas e doenças pegam carona em vôos comerciais
> Quem tem medo
US AIR FORCE
do lobo mau?
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Os ratos e camundongos do experimento liderado por Ajai Vyas,da Universidade Stanford,nos Estados Unidos,não temem gatos. Mais:diante de urina de lince
(predador felino natural) e de coelho,se interessam pela primeira.E preferem uma coleira usada por um gato durante um mês a outra igual,mas sem cheiro. Esses roedores destemidos carregam o parasita Toxoplasma gondii, que vive em cerca de metade da população humana mundial. Ratos e camundongos não infectados se comportaram normalmente,com aversão a tudo o que remetia a felinos. A doença não afetou outros medos nem a capacidade de aprendizado.O ciclo de vida de T. gondii pode LAURABEATRIZ
LABORATÓRIO
passar por vários mamíferos, mas só se completa em gatos.É conveniente,então, que seu hospedeiro seja comido por um gato. Os pesquisadores verificaram que o parasita forma cistos em várias regiões do cérebro mas sobretudo na amígdala, região interconectada com diversas outras áreas (PNAS).
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NASA
> Picolé de alumínio
> Para todo tipo de sangue Talvez esteja próximo o fim da busca dos bancos de sangue por doadores do tipo O, considerado universal porque pode ser transfundido para pessoas de qualquer um dos quatro principais tipos sangüíneos (A, B, AB e O). Pesquisadores dos Estados Unidos, da França, da Suécia e da Dinamarca conseguiram uma forma eficiente de converter sangue dos tipos A, B e AB em O, determinados pela presença ou ausência de dois
Antártica: gelo preserva compostos de terras distantes
açúcares na superfície das hemácias. As hemácias de quem tem sangue tipo A ou B são recobertas por apenas um desses açúcares, enquanto as dos portadores de sangue AB apresentam ambos. O sangue O é desprovido desses açúcares, que permitem às células do sistema de defesa identificar e destruir um tipo sangüíneo incompatível. Usando duas enzimas que consomem esses açúcares, a equipe coordenada por Gerlind Sulzenbacher e Henrik Clausen limpou a superfície das hemácias, deixando-as como as do grupo sangüíneo O. Proposta na década de 1980, essa estratégia ainda não havia funcionado bem porque não se conheciam enzimas que destroem esses açúcares nas condições fisiológicas do sangue. O grande feito agora foi encontrar duas bactérias que fabricam enzimas específicas para consumir cada um dos açúcares (Nature Biotechnology). Funcionou em laboratório, mas ainda é preciso testar em seres vivos.
> Macaquices genômicas As criaturas peludas que passam parte do tempo catando parasitas em companheiros parecem bem diferentes de quem lê esta revista. Em termos genéticos, agora se sabe, humanos e macacos rhesus diferem em 7%. O número é resultado do trabalho de cerca de 200 pesquisadores, que seqüenciaram o genoma do rhesus, ou Macaca mulatta (Science). A fisiologia
NIKITA GOLOVANOV
Cilindros de gelo retirados de uma profundidade de 100 metros registram acontecimentos longínquos – no espaço e no tempo. É o caso de dois desses testemunhos da península Antártica, formados por neve que caiu entre 1832 e 1991. Ao analisar as substâncias impregnadas na geleira, pesquisadores verificaram que o teor de alumínio mais do que dobrou nesse período (PNAS). O alumínio se desprende de áreas expostas da crosta terrestre e não existe na água. Por isso, só podia vir de longe – da Patagônia, que passou por um processo de desertificação nesse período. “Áreas com menos vegetação, mais secas ou ventos mais fortes podem contribuir para o aumento da concentração de micropartículas na atmosfera”, explica Jefferson Simões, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, co-autor do estudo.
dos rhesus é muito parecida com a humana. Por isso são muito usados em pesquisa médica. O material genético seqüenciado veio de uma única fêmea, mas os pesquisadores usaram amostras de 47 outros indivíduos para avaliar a variação em genes com importância médica. Algumas alterações genéticas que causam problemas em humanos também existem em rhesus, mas não em chimpanzés – cujo genoma é 98% semelhante ao humano. Os pesquisadores acreditam que o mapa detalhado do DNA dos rhesus ajudará a identificar genes envolvidos em males como câncer, diabetes e doenças cardíacas. A importância dessa informação vai além da medicina. Por serem muito parecidos, comparar o genoma humano ao do chimpanzé é pouco esclarecedor em termos evolutivos. Cotejá-lo ao de uma espécie menos aparentada trouxe dados inéditos a respeito de quais alterações genéticas surgiram na linhagem humana e quais vieram de seus ancestrais.
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EDUARDO CESAR
BRASIL
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Amazônia: dieta leva a crescimento abaixo do normal
> DNA sem segredos Pôr o DNA ao alcance de todos.É esse o objetivo de DNA – Segredos & mistérios (Editora Sarvier),produto dos mais de 25 anos de carreira em genética médica de Solange Bento Farah. A rapidez dos avanços da biologia molecular tornou a primeira edição desatualizada em uma década.Por isso a segunda edição vem completamente revista e ampliada,inclusive com referências a sites relevantes e acessíveis ao público leigo.A disseminação da internet é um dos motivos que levou Solange a reformular o livro,pois “o leitor menos preparado pode afogar-se em um mar de fatos e dados e acabar formulando uma idéia errada do quadro geral”, afirma a autora no prefácio. Com mais de 500 páginas, é uma síntese valiosa que cobre conceitos básicos em genética,avanços que freqüentam a mídia diariamente como clonagem e transgênicos e aspectos éticos da biotecnologia molecular.O texto vem 36
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Farinha com peixe Eles vivem em casas sobre palafitas na Amazônia e se alimentam sobretudo de farinha de mandioca e peixe. Açaí só na época. Alguns homens têm emprego, mas a maior parte trabalha esporadicamente ou troca açaí por produtos industrializados. São os ribeirinhos das sete comunidades em torno da Floresta Nacional de Caxiuanã, no Pará, estudadas por Barbara Piperata, da Universidade Estadual de Ohio, nos Estados Unidos (American Journal of Physical Anthropology). Para investigar se a inserção na economia de mercado afetou sua nutrição, a antropóloga mediu 471 pessoas de todas as idades e entrevistou os chefes de 85 famílias. Encontrou poucos sinais de mudança: homens com emprego fixo tendem à obesidade, pois fazem três refeições no trabalho. Suas crianças são mais bem nutridas
salpicado de exemplos,como a idéia de produzir ovelhas transgênicas que soltem a lã em época determinada, e não precisem ser tosadas, e de um crime solucionado por um exame de DNA que comprovou que os pêlos na jaqueta da vítima pertenciam ao gato de seu namorado.
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que a média, mas o efeito não se estende para os outros adultos e jovens da família – que continuam a levar uma vida de subsistência. O resultado mais marcante foi uma taxa alta (por volta de 50%) de nanismo na população. São adultos que cresceram menos do que o normal, mas não mostram sinais de carência nutricional, sinal de uma alimentação deficiente em nutrientes durante o crescimento. Barbara atribui esse crescimento anormal à alimentação à base de farinha quando a criança é desmamada, por volta de 1 ano de idade. Além disso, os ribeirinhos estudados sofrem com diarréias, infecções respiratórias e parasitoses, que em geral não são tratadas. Para a pesquisadora a situação nutricional é preocupante e pode ser responsável por problemas crônicos de saúde.
> Parasitas que usam antioxidantes Os parasitas que causam a leishmaniose sobrevivem e se multiplicam dentro das células de defesa do hospedeiro,em vez de serem destruídos.Uma equipe que reúne pesquisadores
brasileiros e americanos acaba de revelar um dos mecanismos que garantem a sobrevivência dos microorganismos:é a resistência a óxido nítrico, que em geral mata por estresse oxidativo (BMC Infectious Diseases). O grupo retirou parasitas de
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RICARDO ZORZETTO
pacientes com leishmaniose, que cultivou em laboratório com ou sem óxido nítrico. Verificaram que alguns deles não só sobrevivem à substância, mas também causam formas mais graves de leishmaniose cutânea. O estudo não propõe uma terapia, mas dá pistas sobre o caminho a seguir.
> Jardineiras em miniatura
INARA LEAL/UFPE
Formigas da Caatinga ajudam a plantar sementes. É o que mostra o trabalho liderado por Inara Leal, da Universidade Federal de Pernambuco, em Xingó – entre Bahia, Sergipe e Alagoas (Annals of Botany). A equipe observou que 18 espécies de formiga carregam sementes e por vezes comem seu revestimento. Os insetos mostraram interesse por vários tipos de planta, mas a síndrome típica de dispersão de sementes por formigas, ou mirmecocoria, foi mais
Trabalho de fomiga: carregar sementes
freqüente na família das euforbiáceas, cujas sementes têm uma proeminência carnosa (carúncula). Na mirmecocoria verdadeira as formigas carregam a semente para o ninho, comem a carúncula e abandonam a semente intacta. Os experimentos feitos pela equipe de Inara mostraram
Itacaré: areia com elementos químicos radioativos
que as formigas espalham as sementes até um máximo de 11 metros da planta-mãe e que a terra do ninho é mais propícia à germinação do que o solo sem formigueiros.
> Sol, mar e radioatividade
A análise das amostras, feita pela equipe de Roberto Meigikos dos Anjos, da Universidade Federal Fluminense, mostrou concentração significativa desses elementos nas areias de Mambucaba e Buena Vista, no Rio; Anchieta, Meaípe, Guarapari, Vitória, Serra e São Mateus, no Espírito Santo; e em Porto Seguro e Itacaré, na Bahia (Radiation Mesurements). Aparentemente inofensivo para quem gosta de tomar sol ou banho de mar algumas vezes na semana, esse tipo de areia não deve ser usado na construção de casas, porque pode deixar seus moradores expostos a níveis de radiação superiores aos considerados seguros.
O trecho do litoral brasileiro que vai do sul de São Paulo ao norte da Bahia tem mais do que águas verdes cristalinas e coqueiros. Alguns dos paraísos freqüentados pelos banhistas têm também areias castanho-avermelhadas que são radioativas. Pesquisadores do Rio de Janeiro e de São Paulo coletaram amostras de areia de 43 praias ao longo de 2 mil quilômetros da costa brasileira e avaliaram o teor de três elementos químicos radioativos: potássio (40K), urânio (238U) e tório (232Th). Em geral instáveis, esses elementos tendem a originar outros mais estáveis e a emitir a forma mais Calango: energética de comunicação por radiação: os raios gama. feromônios
> Conversa de lagarto O calango-verde Ameiva ameiva de vez em quando interrompe sua caminhada, senta-se e libera, de glândulas localizadas na parte interna de suas coxas, pequenos cilindros sólidos. É por meio dessa secreção, que exala compostos (feromônios) atraentes para o lagarto, que esse réptil se comunica com companheiros de espécie sem emitir sons. A secreção é formada por células que, ao morrer, se acumulam num canal que liga as glândulas a poros que se abrem nas escamas. Como as glândulas são iguais no macho e na fêmea, devem ter a mesma função para ambos, supõem os biólogos. Pesquisadores do Instituto Butantan e da USP, coordenados por Carlos Jared, analisaram a secreção e concluíram que ela está relacionada com a comunicação entre esses calangos, que falam a língua dos feromônios, de acordo com artigo publicado no Journal of Morphology. Para se entenderem os lagartos recolhem do ar, com a língua bífida, as mensagens químicas contidas nas moléculas que evaporam da secreção sólida. Resta descobrir o recado que essas mensagens transmitem.
CARLOS JARED/BUTANTAN
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diabetes Aposta radical contra o
CAPA MEDICINA
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Tratamento experimental com quimioterapia e células-tronco livra 14 pacientes das injeções de insulina
M ARCOS P IVET TA
No dia 13 de maio do ano passado o dentista Jaider Furlan Abbud, morador do município paulista de Pontal, a 30 quilômetros de Ribeirão Preto, fez 31 anos. Era um sábado e, como quase sempre acontece nessas festas, o aniversariante exagerou um pouco na comida, sobretudo nos doces. No domingo, ao entrar no banheiro, teve uma surpresa: o vaso sanitário estava rodeado de formigas. Era um sinal clássico de que ali alguém, ele provavelmente, estava com excesso de açúcar na urina. Na segunda-feira foi ao médico e suas suspeitas se confirmaram. Tinha diabetes do tipo 1, também chamada de juvenil ou insulino-dependente. Ainda desconfiado do diagnóstico, procurou um segundo especialista. E a resposta foi a mesma do primeiro. Para controlar a doença, teria de tomar durante toda a vida injeções diárias de insulina, hormônio responsável por tirar a glicose do sangue, que seu pâncreas deixara de produzir em razão do ataque inflamatório característico desse tipo de diabetes. A desagradável rotina das picadas tinha de se incorporar imediatamente ao seu cotidiano. “Quase não acreditei”, recorda o dentista. No dia 29 de julho do ano passado, menos de dois meses depois de ter recebido o diagnóstico, Jaider deixou o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, 13 quilos mais magro. Mas estava muito feliz: já não precisava mais das duas ampolas diárias de insulina para controlar a doença. Ele se submetera a um agressivo e caro tratamento experimental contra o diabetes do tipo 1, que junta penosas sessões de quimioterapia com drogas que deprimem o sistema imunológico e um autotransplante de medula óssea, e seu pâncreas voltara a produzir insulina. Casado e sem filhos, o dentista agora está há mais de nove meses livre das injeções e é um dos 15 brasileiros com idade entre 14 e 31 anos que, de novembro de 2003 a julho de 2006, testaram a terapia, totalmente desenvolvida por uma equipe do Centro de Terapia Celular (CTC) da universidade. Todos os pacientes – com exceção de um, justamente o primeiro que se submeteu ao tratamento e usou um esquema terapêutico à base de corticóides, diferente do empregado nos demais – obtiveram resultados positivos. Voltaram a produzir insulina. “Não podemos falar em cura do diabetes. Ainda teremos de acompanhar os pacientes por muito tempo para ver se os efeitos se mantêm e fazer estudos com mais pessoas”, afirma o imunologista Júlio Cesar Voltarelli, principal idealizador dessa linha de pesquisa.“Mas nosso trabalho terá um impacto muito grande na área.” Foi esse aparente sucesso da inédita abordagem terapêutica – o adjetivo aparente se justifica porque ainda não se sabe se os benefícios são temporários ou duradouros – que fez uma equipe de pesquisadores do CTC, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) financiados pela FAPESP, emplacar um artigo científico de nove páginas na edição de 11 de abril do Journal of the American Medical Association (Jama), uma das revistas médicas de maior prestígio. O periódico reconhece a primazia do trabalho e o comenta em editorial.“O estudo de Voltarelli é o primeiro de muitas tentativas de terapia celular que provavelmente serão testadas para deter o avanço do diabetes do tipo 1”, afirma, no editorial do Jama, Jay S. Skyler, do Ins-
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tituto de Pesquisa em Diabetes da Universidade de Miami. Merece nota também a constatação de que o experimento foi essencialmente feito por brasileiros.“É uma contribuição nacional à pesquisa em diabetes”, comenta Marco Antonio Zago, coordenador do CTC. Dos 13 autores do artigo no Jama, 11 são da USP de Ribeirão Preto e apenas dois colaboradores do exterior. Há muitas questões em aberto no tratamento experimental em teste na USP de Ribeirão Preto – e os próprios pesquisadores não negam essas incertezas. O que faz a terapia combinada aparentemente funcionar? Os pacientes retomaram a produção de insulina em razão da quimioterapia ou do autotransplante de medula? Ou em decorrência da sinergia entre ambos os procedimentos? Ainda não se sabe. E é justamente por isso que os brasileiros querem continuar as pesquisas.“Esse primeiro estudo tem um caráter exploratório”, diz Voltarelli. Ou seja, o tratamento ainda está envolto em mistérios, a exemplo da própria gênese do diabetes do tipo 1. Apesar da existência de fatores genéticos favoráveis à sua ocorrência, a doença se manifesta no organismo em razão do contato com algum elemento externo que provoca a disfunção do sistema imunológico. O problema é que, até hoje, ninguém conseguiu descobrir o que faz as células de defesa do corpo humano agredir a região do pâncreas que fabrica insulina. E o pior é que pode haver mais de um elemento externo que detone todo o processo. Especula-se, ainda sem nenhuma prova, que a inflamação possa ser causada por vírus, radicais livres, leite de vaca, entre outros agentes. A procura por um tratamento contra o diabetes do tipo 1 que prescinda das incômodas injeções diárias de insulina é compreensível. Embora respondam por no máximo 10% da população total de diabéticos, estimada em 200 milhões de pessoas no mundo e uns 10 milhões no Brasil, os pacientes que dependem de insulina são os casos mais graves. Em indivíduos com diabetes do tipo 2 e no diabetes gestacional, que acomete temporariamente algumas mulheres durante a gravidez, a doença pode em geral ser controlada apenas com dietas e exercício físico. No diabetes juvenil, que costuma aparecer na infância ou no início da vida adulta, essas medidas não bas40
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tam. O combate da patologia requer necessariamente as doses externas de insulina. Caso contrário, o doente pode morrer rapidamente. A insulina é essencial para a vida, pois retira glicose do sangue e a joga para dentro de células, onde se transforma em energia. Os sintomas das três formas de diabetes são os mesmos, apesar de normalmente mais agudos nos pacientes do tipo 1: muita sede, vontade constante de urinar, perda de peso mesmo sem estar de dieta, visão embaçada, cansaço, dores nas pernas. Três anos sem insulina - Os números
que atestam o sucesso do experimento brasileiro são eloqüentes. Um dos doentes que fizeram o tratamento já está sem tomar insulina há 37 meses. Mais de três anos. Outros quatro não vêem as agulhas há pelo menos 23 meses e sete estão livres das injeções há oito meses. Em dois casos o tratamento experimental não produziu resultados imediatos. No entanto, mais de um ano depois de terem se submetido à terapia, esses diabéticos também deixaram de ser dependentes das doses externas do hormônio. Entre os 14 pacientes que responderam à terapia, apenas um apresentou uma recaída, teve uma virose e voltou a receber injeções de insulina. Os efeitos colaterais da nova abordagem terapêutica, embora agressiva, foram, por ora, brandos: um doente teve pneumonia e dois, disfunções endócrinas. Mas, para que a dobradinha quimioterapia e autotransplante de células-tronco tenha chance de funcionar, os pesquisadores acreditam que é preciso selecionar bem os pacientes que serão submetidos ao experimento. Todos os indivíduos que, de alguma forma, se beneficiaram do esquema terapêutico haviam recebido o diagnóstico formal de diabetes do tipo 1 no máximo seis semanas antes do começo do tratamento. Eram pessoas no início do diabetes. Esse tipo de triagem tem justificativa científica. Nos estágios iniciais da doença, os pesquisadores acreditam que ainda resta uma pequena quantidade de células beta nas ilhotas de Langerhans, do pâncreas, produtoras de insulina. Com o avanço da doença, essas células remanescentes terão o mesmo fim das demais: serão destruídas pela disfunção imunológica que causa o diabetes do tipo 1. As pessoas que participaram do experimento em Ribeirão Preto ainda ti-
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nham, por exemplo, entre 20% e 40% das células beta normalmente presentes num organismo sadio. Partindo desse pressuposto clínico, de que no início da doença ainda há células do pâncreas a serem salvas do ataque inflamatório típico do diabetes, os pesquisadores do CTC decidiram testar o tratamento apenas em pacientes recém-diagnosticados com a patologia. Dessa forma, dizem, a terapia terá mais chances de funcionar. O raciocínio é simples. Se as células beta ainda não destruídas forem preservadas, o organismo, uma vez livre da disfunção imunológica que agride o pâncreas, poderá multiplicá-las e, assim, retomar a produção normal de insulina. É o que pode ter acontecido com os doentes que responderam bem ao tratamento. Inédita no mundo, a abordagem terapêutica usada nos 15 pacientes lança mão de altas doses de quimioterápicos e imunoterápicos (ciclofosfamida e globulina antitimocitária), seguidas de um transplante de células-tronco hematopoéticas – capazes de se diferenciar e ge-
rar outros tipos de células, como as vermelhas do sangue, as plaquetas e as brancas do sistema de defesa do organismo – que previamente haviam sido retiradas da medula óssea do próprio indivíduo e conservadas em nitrogênio líquido. Esse segundo procedimento é conhecido como transplante autólogo de medula óssea (ou autotransplante), desprovido de qualquer risco de rejeição. Portanto, o tratamento experimental promove um ataque duplo ao diabetes, num esquema semelhante ao usado no combate a alguns tipos de câncer, como certas leucemias. Primeiro, a quimioterapia destrói praticamente todo o sistema imunológico do paciente, fonte do problema inflamatório que ataca e mata as células beta do pâncreas. Em seguida, a injeção intravenosa das células-tronco hematopoéticas tem como objetivo acelerar a reconstrução do sistema imunológico do paciente. Ou melhor, de um novo sistema imunológico que, por motivos ainda não conhecidos, parece não apresentar a disfunção inflamatória que ataca as
células beta. “É como se zerássemos as defesas do organismo e o paciente voltasse a ter o sistema imunológico de uma criança”, diz Voltarelli, que também testa terapias com células-tronco em outras doenças auto-imunes, como lúpus e esclerose sistêmica. Por isso, quem se submete ao tratamento, além de perder cabelos, ter vômitos e outros desconfortos, precisa tomar de novo todas as vacinas. Afinal, a “memória” de seu sistema imunológico foi aparentemente apagada ou se encontra ao menos dormente. Os resultados animadores, ainda que preliminares, do tratamento experimental contra o diabetes do tipo 1 foram notícia no mundo. Para o bem e para o mal. Reportagens e mais reportagens sobre o estudo foram feitas no Brasil e no exterior, algumas num tom beirando o sensacionalismo, como se os pesquisadores da USP tivessem anunciado a cura da doença, afirmação que nunca fizeram. Para ficar só em alguns exemplos da mídia impressa internacional, jornais como o francês Le Monde, o britânico Fi-
Detalhe das ilhotas de Langerhans no pâncreas: células beta (em verde e laranja) produzem insulina
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nancial Times e o norte-americano The Wall Street Journal noticiaram o estudo. Nessas reportagens surgiram alguns questionamentos a respeito dos resultados obtidos pela equipe de Ribeirão Preto. Talvez a matéria mais crítica tenha sido a publicada na edição de 21 de abril da revista britânica de divulgação cientítica New Scientist, semanário de grande repercussão. Com um título uma oitava acima da realidade descrita pela equipe do CTC, no qual usava a expressão “cura do diabetes com células-tronco”, o texto da publicação deu voz a pesquisadores do exterior que lançaram uma série de dúvidas, técnicas e até éticas, sobre o experimento brasileiro.
Células-tronco hematopoéticas (em amarelo): precursoras do sistema imune
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reportagem, que também deu espaço de defesa para Voltarelli, põe em xeque se o tratamento experimental produziu mesmo algum benefício aos pacientes. Insinua também que é mais fácil testar novas e arriscadas terapias com célulastronco na Ásia e na América Latina, onde haveria menos controles legais do que na Europa e nos Estados Unidos. Kevan Harold, da Universidade Yale (EUA), um dos pesquisadores ouvidos pela revista inglesa, diz que pacientes com diabetes do tipo 1 podem passar por uma fase chamada lua-de-mel, na qual voltam, apenas temporariamente, a produzir insulina. De acordo com esse raciocínio, a equipe brasileira estaria atribuindo a retomada de produção do hormônio no pâncreas aos efeitos do tratamento, mas tudo não passaria de uma reação passageira e natural do próprio organismo. Os pesquisadores do CTC rechaçam esse tipo de argumentação. “Não há período de lua-de-mel que explique o fato de 14 dos nossos 15 pacientes terem voltado a produzir insulina, alguns por mais de anos”, rebate o endocrinologista Carlos Eduardo Couri, outro autor do artigo no Jama.“Seria muita coincidência.” Umas das opiniões contrárias ao experimento brasileiro colhidas pela New Scientist, Lainie Ross Friedman, especialista em ética médica da Universidade de Chicago, também falou a Pesquisa FAPESP. Sua mais aguda restrição diz respeito à inclusão de crianças no estudo. “O Brasil é signatário da Declaração de Helsinque (carta de princípios éticos na pesquisa científica patrocinada pela Associação Médica Mundial), e os primei-
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Efeito lua-de-mel - Em linhas gerais, a
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ros testes com a terapia não deveriam ter incluído crianças, apenas adultos”, afirma Lainie. “Também deveria ter havido um grupo de controle (pacientes que recebem o tratamento convencional do diabetes tipo 1, cuja evolução clínica serviria de base para comparar a eficácia da terapia alternativa).” Oito dos 15 indivíduos que se submeteram ao tratamento tinham, na época da adoção do esquema terapêutico, menos de 18 anos. Essas crianças, a seu ver, só poderiam participar do experimento num segundo momento, quando ficasse demonstrado claramente em adultos que a terapia alternativa é melhor do que a convencional. Lainie ainda considera o experimento muito perigoso para seus participantes e faz a alusão aos riscos aumentados de câncer, infertilidade e até de morte em razão da adoção de um tratamento tão agressivo contra o diabetes. Também no Brasil há pesquisadores que, num tom mais ameno, e sem tirar o mérito do estudo, fazem ressalvas ao experimento do CTC. “Tenho profunda admiração pelo trabalho ousado e corajoso do doutor Júlio”, pondera Mari Cleide Sogayar, do Instituto de Química da USP, outra estudiosa do diabetes. “Mas o tratamento proposto representa um passo heterodoxo e é preciso avaliar bem a sua relação custo/benefício.” A equipe do CTC é a primeira a admitir os riscos e as limitações do esquema terapêutico em estudo. Faz isso inclusive no próprio texto do artigo publicado no Jama. Ainda assim, os cientistas não se eximem de responder às críticas e de defender a lisura ética do experimento. Segundo Voltarelli, o estudo clínico preencheu todos os requisitos morais e jurídicos exigidos no país e demorou mais de um ano para ser aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), instância do Ministério da Saúde que autoriza esse tipo de trabalho. “A Conep é mais rigorosa do que o FDA (órgão do governo dos Estados Unidos que zela pela qualidade dos alimentos e remédios e regula os estudos clínicos)”, opina o imunologista do CTC, dando a entender que parte das críticas dos pesquisadores estrangeiros se deve ao fato de o estudo ter sido feito por um grupo de fora dos grandes centros da ciência mundial. Para ele, o uso de menores de idade no experimento se justifica, pois a doença nas crianças e nos
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adultos se manifesta de formas distintas. Voltarelli também conta que tentou constituir um grupo de controle, mas não conseguiu interessados em número suficiente. “Mas vamos ter de formar um grupo de controle nos próximos estudos”, admite. Sobre a questão dos problemas de saúde que o tratamento experimental pode causar nos pacientes, a equipe do CTC mantém uma política de total transparência. “Falamos de tudo durante o processo de seleção dos candidatos ao experimento, até da possibilidade de morte”, diz Couri.“Ela é mínima, mas existe. Isso tanto é verdade que a maioria dos pacientes entrevistados preferiu não fazer a terapia.” Uma das grandes preocupações da equipe do CTC é não dar falsas esperanças de cura aos diabéticos do tipo 1. Desde que os resultados positivos do experimento foram divulgados na imprensa, Voltarelli recebe 200 e-mails por dia de pacientes interessados em se submeter ao esquema terapêutico. “Só dos Estados Unidos são dez por dia”, conta o imunologista. Os pesquisadores têm consciência de que o tratamento experimental não representará a solução definitiva para a doença. Além das dúvidas que pairam sobre o mecanismo de ação da terapia e por quanto tempo se estendem seus benefícios, Voltarelli lembra que o tratamento é muito caro e arriscado para ser proposto como procedimento padrão para os milhões de diabéticos do tipo 1 existentes no mundo. Hoje cada paciente tratado no estudo da USP de Ribeirão custa entre R$ 20 mil e R$ 30 mil e tem de ficar pelo menos 20 dias internado numa unidade de isolamento, sob cuidados intensivos no centro de transplante de medula óssea. Portanto os procedimentos necessários para realizar a terapia em teste no CTC só podem ser executados em hospitais altamente especializados. O sonho dos pesquisadores é chegar a um tratamento eficaz contra o diabetes, mas de caráter menos agressivo e dispendioso. Uma das esperanças da equipe do CTC são as células-tronco mesenquimais, um outro tipo de célula primitiva também encontrada na medula óssea. Essas células parecem ser capazes de deprimir o sistema imunológico. “Talvez com elas consigamos prescindir da quimioterapia, a etapa mais agressiva do tratamento”, diz Voltarelli. ■ PESQUISA FAPESP 135
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> FISIOLOGIA
Noites interrompidas Inflamação bloqueia temporariamente a produção de hormônio que indica ao organismo a hora de dormir | R ICARD O Z ORZET TO
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édicos e enfermeiros estão habituados ao desarranjo que uma temporada,ainda que curta, nos centros de terapia intensiva provoca na vida dos pacientes.Durante a recuperação de uma pneumonia aguda ou de uma cirurgia,dorme-se além do normal durante o dia ou se tem insônia à noite e a fome costuma surgir em horários diferentes dos habituais.Não é só.Também a temperatura do corpo, os batimentos cardíacos e a produção de hormônios passam a oscilar em um ritmo diferente do ciclo de 24 horas que regula a vida dos seres humanos e de diversos outros animais,como se o relógio interno parasse de funcionar de maneira adequada.Até recentemente se acreditava que essa dessincronização entre o funcionamento do organismo e o mundo externo fosse conseqüência da iluminação artificial dos centros de tratamento intensivo e, por essa razão,já se propôs a instalação de janelas nessas salas para que os pacientes pudessem perceber quando é dia ou noite.Mas essa estratégia se mostrou pouco eficaz e agora já é possível entender o porquê. Experimentos conduzidos pela equipe da farmacologista Regina Pekelmann Markus,da Universidade de São Paulo (USP),indicam que a causa dessa dessincronização não é a impossibilidade de identificar se fora do hospital está claro ou escuro.A origem desse desequilíbrio parece ser a própria inflamação provocada por um agente infeccioso ou pelas lesões de uma cirurgia,que interrompe temporariamente a produção do hormônio melatonina.Produzido pela
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glândula pineal, situada na base do cérebro,esse hormônio é uma espécie de senhor do tempo molecular,que ajusta os ponteiros do relógio biológico com os períodos de claro e escuro,indicando ao organismo se é dia ou noite,inverno ou verão. Quando o sol se põe e diminui a quantidade de luz que chega aos olhos, as células da retina enviam um comando para a pineal aumentar a produção de melatonina,que cresce continuamente até o início da madrugada.Tão logo é fabricada – sempre em doses baixíssimas,que nos seres humanos chegam a cerca de 150 picogramas por mililitro de sangue –,a melatonina cai na corrente sangüínea e se espalha pelo corpo. “Esse é o sinal para que as células se preparem para as tarefas que normalmente desempenham à noite”,explica Regina.Para os seres de hábito diurno como os humanos,o aumento dos níveis sangüíneos de melatonina desacelera o ritmo do organismo e o prepara para dormir:a temperatura baixa,o coração passa a bater mais lentamente e a filtração do sangue pelos rins diminui.Já entre os roedores de hábito noturno ocorre o inverso e a melatonina prepara o corpo para outras atividades essenciais à vida,como a busca de alimentos e a reprodução. Não foi da noite para o dia que Regina constatou o efeito da inflamação sobre as taxas de melatonina.Foram necessários dez anos de trabalho – e diversos experimentos com camundongos, ratos e seres humanos – para encaixar as peças desse complicado quebra-cabeça bioquímico que lhe foi apresentado em 1995 por uma de suas alunas de dou-
torado,Cristiane Lopes,interessada em descobrir se o nível de inflamação variava em um ritmo específico ao longo do dia,como acontece com outras funções do organismo a exemplo da produção de hormônios,os níveis da pressão sangüínea ou a digestão. A cada 24 horas - Regina e Cristiane planejaram,então,um teste que simulava uma inflamação crônica em camundongos.Um mês após a injeção de bacilos da tuberculose na pata dos roedores,Cristiane passou a medir o inchaço e o grau de permeabilidade vascular – alguns dos parâmetros que definem a inflamação e facilitam a chegada das células de defesa à lesão –,a cada quatro horas durante dois dias.Resultado:a inflamação era menos intensa à noite,período em que é alta a concentração no sangue de melatonina,cujas propriedades antiinflamatórias já eram conhecidas.Essa variação desapareceu quando Cristiane e Regina extraíram por meio de uma cirurgia a glândula pineal dos camundongos.E retornou quando elas passaram a administrar o hormônio à noite para os bichos,como registraram em um artigo publicado no Journal ofPineal Research em 1997.Era o primeiro sinal de que a inflamação também seguia os ciclos da melatonina,cuja produção oscila ao longo de períodos de 24 horas. O passo seguinte era saber se o efeito era determinado exclusivamente pela melatonina,uma vez que ao longo do dia também varia a taxa do hormônio corticosterona,outro potente antiinflamatório,produzido pela glândula supra-renal.Cristiane e Regina submete-
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ram camundongos com inflamação crônica a dois tipos de cirurgia. Extraíram a glândula pineal de um grupo de roedores e, como esperado, a inflamação tornou-se tão intensa durante o dia quanto à noite – sem a pineal, eles não fabricavam melatonina, mas ainda produziam corticosterona. Outro grupo foi submetido à extração da glândula supra-renal, situada sobre os rins, e também deixou de apresentar variação no nível da inflamação em um período de 24 horas. Tanto o inchaço quanto a permeabilidade vascular, porém, diminuíram à noite depois, quando os dois grupos de animais começaram a ser tratados com melatonina. “Mais do que indicar que o hormônio da supra-renal também influenciava o ritmo da inflamação”, conta Regina, “esse resultado sugeriu que a corticosterona estava regulando a produção da melatonina”. O raciocínio é menos complicado do que parece. Se o principal efeito antiinflamatório fosse produzido pela corticosterona, os camundongos de que foi extraída a glândula pineal – e, portanto, não produziam melatonina – deveriam apresentar inflamação menos intensa no período noturno, o que não ocorreu. A complementação dessa resposta veio dos testes com os roedores cuja fabricação de corticosterona foi interrompida pela retirada das supra-renais. Esses camundongos não fabricavam melatonina à noite, embora mantivessem a pineal intacta, como descreveram Cristiane e Regina em artigo de 2001 na Inflammation Research. O único fator que poderia estar influenciando nesse caso era a ausência da produção de corticosterona.
Estava claro como o ciclo de produção dos hormônios da pineal e da suprarenal modificava a resposta inflamatória do organismo, efeito que ajudaria a entender por que quem sofre um corte profundo ou pega uma gripe percebe os sintomas piorarem durante o dia e diminuírem à noite. Mas ainda era preciso descobrir como se dava no nível molecular a ordem para a produção da melatonina. Em colaboração com Jamil Assreuy, da Universidade Federal de Santa Catarina, e Maria Christina Avellar, da Universidade Federal de São Paulo, Regina e a fisiologista Zulma da Silva Ferreira, da USP, cultivaram in vitro a glândula pineal de ratos. Elas constataram que, em concentrações baixas como as que se observam durante o dia nesses roedores e à noite em humanos, a corticosterona aciona o neurotransmissor noradrenalina e dispara uma cascata química que leva à produção da melatonina. Mas em doses mais elevadas, semelhantes à que se verifica em processos inflamatórios intensos, a corticosterona bloqueia a atividade da pineal. No leite - Em outro estudo, conduzi-
do em parceria com a pediatra Magda Carneiro-Sampaio e a imunologista Gerlândia Pontes, ambas da USP, Regina analisou a concentração de melatonina no leite de mulheres que haviam recentemente dado à luz a bebês e desenvolveram mastite não-infecciosa, inflamação que deixa as mamas sensíveis e doloridas, provocada pelo acúmulo de leite logo após o parto. A medição de hormônios no leite feita duas vezes ao dia – ao meio-dia e à meia-noite – mostrou que nas mulheres com mastite a
concentração de melatonina era continuamente baixa, sinal de que a glândula pineal não estava funcionando como deveria. Entre as mães que não haviam desenvolvido a inflamação, porém, a taxa de melatonina se mostrou baixa durante o dia e alta à noite. O bloqueio da produção de melatonina está associado a níveis elevados no leite de uma proteína que as células de defesa lançam no sangue durante uma inflamação: o fator de necrose tumoral alfa. No local da inflamação essa proteína ajuda a combater microorganismos invasores, como bactérias e fungos, mas acaba desligando a glândula pineal, segundo resultados apresentados no final do ano passado em dois artigos do Journal of Pineal Research. Do ponto de vista orgânico, esse efeito faz todo o sentido. A diminuição da atividade da pineal e a conseqüente redução da taxa de melatonina, de ação antiinflamatória, permitem às células de defesa combater de maneira eficaz a inflamação seja de noite, seja de dia.“Se fosse produzida em altas doses sistêmicas, ela não deixaria a inflamação se desenvolver e solucionar o problema”, diz Regina. Como nos processos inflamatórios agudos – tal como a mastite ou outros mais graves, que exigem cuidados intensivos – a pessoa naturalmente não produz melatonina à noite, de nada adiantariam as janelas nas salas de terapia intensiva, explica a farmacologista, que de 2003 a 2004 esteve à frente da Secretaria de Ciência e Tecnologia do Ministério da Ciência e Tecnologia. Passada a fase aguda da inflamação, o organismo recupera o ritmo normal e volta a distinguir noite e dia. ■
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Com pedras e varetas Macaco-prego usa ferramentas para quebrar frutos ou caçar formigas
F ABRÍCIO M ARQUES
LUCIANO CANDISANI
O
s agitados macacos-prego movimentam um debate científico que busca esquadrinhar as condições necessárias para a constituição da inteligência e de tradições culturais no processo evolutivo de primatas. Habitantes da América do Sul, conhecidos pelo tamanho modesto (têm 60 centímetros de comprimento e pesam pouco mais de 3 quilos) e a pelagem densa e escura na cabeça, que lembra um capuz, os macacos-prego (Cebus apella) eram relegados até a década passada à periferia da investigação sobre o comportamento dos primatas, embora há muito se soubesse, por meio de observações em cativeiro, que eles são capazes de aprender a usar ferramentas para, por exemplo, quebrar frutos secos. Poucos pesquisadores, contudo, entusiasmavam-se com esse tipo de performance. “Ocorre que a habilidade poderia ter sido estimulada por condições específicas do cativeiro e pelo contato com os homens, o que desqualificaria a atividade como tradição cultural desenvolvida por conta própria e transmitida de geração em geração”, diz Eduardo Ottoni, pesquisador do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, que há mais de uma década estuda o comportamento dos macacos-prego. Nos últimos três anos estudos feitos por pesquisadores do Brasil, da Itália e dos Estados Unidos comprovaram que, em determinados lugares e circunstâncias, os macacos-prego usam ferramentas também na vida selvagem e transmitem a habilidade para gerações seguintes, em rituais, aliás, bastante peculiares. “O uso de ferramentas não pode mais ser visto como competência exclusiva de hominídeos, mas também pertence aos primatas neotropicais”, sustenta a italiana Elisabetta Visalberghi, do Instituto de Ciência e Tecnologia da Cognição de Roma, num artigo publicado em janeiro no American Journal of Physical Antropology, que relata esse tipo de habilidade em macacos-prego numa área em Boa Vista, no Piauí. Também assinam o artigo os pesquisadores Eduardo Ottoni e Patrícia Izar, da Universidade de São Paulo (USP), e Dorothy Fragaszy, da universidade norte-americana da Geórgia. Por razões que os pesquisadores ainda tentam definir com exatidão, nem todas as populações da espécie, encontradas da Argentina à Venezuela, usam ferramentas. No Brasil, os macacos-prego ocuPESQUISA FAPESP 135
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TIAGO FALÓTICO
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A pedra é usada como martelo e o tronco da árvore como bigorna: transmissão do uso de ferramentas pode ser um instrumento de coesão social
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pam ambientes tão variados quanto a Amazônia, o Cerrado, a Caatinga e a Mata Atlântica. Mas as imagens do símios em atividade no Piauí repetem o que se observara em cativeiro – e dessa vez não se pode dizer que eles aprenderam conosco ou que seu comportamento foi induzido por pesquisadores em busca de similaridades com a espécie humana. Os animais carregam por vários metros pedras com cerca de 1 quilo que usarão como “martelo” até sítios de quebra – rochas planas ou troncos usados como apoio, chamados de “bigornas”, numa referência à base sobre a qual se malham metais. O uso estereotipado de ferramentas já foi registrado em inúmeras espécies, de aranhas que ajeitam seixos ao redor de sua morada a abutres que utilizam pedras para perfurar ovos de avestruz, sem que isso pudesse ser comparado à destreza dos ancestrais humanos quando ganharam cérebros avantajados ou, desde os anos 1970, às evidências de que chimpanzés (Pan troglodytes) passam de geração em geração certos aprendizados, como o uso de varetas para coletar mel ou capturar formigas, como uma autêntica tradição transmitida culturalmente. Na década de 1990, constatou-se que o orangotango (Pongo pygmaeus) e o gorila (Gorilla gorilla) também são capazes em cativeiro de usar pedras e paus como ferramentas – para quebrar cocos e cas-
tanhas. O ceticismo em relação ao macaco-prego tinha explicação extra. “Enquanto os chimpanzés e gorilas estão próximos do homem na cadeia evolutiva, os macacos-prego pertencem a um tronco que divergiu há pelo menos 40 milhões de anos”, diz a pesquisadora Patrícia Izar. A evidência de que um parente tão distante do homem conseguiu desenvolver o uso de ferramentas põe à prova a idéia de que a nossa espécie seria a única a desenvolver essa habilidade, proposta por Kenneth Oakley em 1949 no livro Man, the toolmaker. No lugar, sugere-se que tal categoria de comportamento pode ser deflagrada por condições mais genéricas do que se imaginava. A se confirmar a teoria, o macaco-prego é candidato a se tornar um grande modelo para entender como a espécie humana evoluiu, por volta de 2,5 milhões de anos atrás, a ponto de conseguir usar machadinhas, martelos, arpões e outros instrumentos. Nos anos 1970, a célebre primatóloga Jane Goodall já colocara os chimpanzés no rol de espécies capazes de usar ferramentas – ainda que os pesquisadores sejam cuidadosos ao comparar essas habilidades com o salto cognitivo de nossos ancentrais. “Se a cultura pode ser definida como uma inovação seguida de transmissão social, estamos encontrando padrões sugestivos de que estamos, sim, diante de culturas”, propôs, numa conferência realizada em San Francisco, em 2003, o holandês Carel van Schaik, diretor do Instituto Antropológico e do Museu da Universidade de Zurique, na Suíça, e um estudioso do comportamento dos orangotangos. Singularidade -A constituição da cultu-
ra humana envolveu um conjunto de elementos muito mais complexos, como a linguagem e as expressões artísticas. Mas as pesquisas, como observou a antropóloga Eunice Durhan, da USP, em seu artigo “Chimpanzés possuem cultura? Questões para a antropologia sobre um tema bom para pensar”, publicado em 2005 na Revista de Antropologia, não buscam atribuir aos símios um lugar especial devido à sua semelhança com os humanos. “Pelo contrário, sua intenção é sobrepujar concepções pautadas na singularidade humana absoluta, aproximando-a, tanto quanto possível, dos grandes símios e de outros animais sociais inteli-
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gentes a partir do aprofundamento das pesquisas sobre seus comportamentos”, escreveu Eunice Durhan. Curiosamente, a imagem dos macacos-prego usando ferramentas na vida selvagem foi divulgada mundialmente graças a um golpe do acaso. Em 2004, um fotógrafo britânico visitou uma fazenda de ecoturismo em Gilbués, no Piauí, e ficou fascinado com o que viu: os macacos-prego levantavam uma pedra com as duas mãos no alto da cabeça e davam o golpe certeiro no coquinho colocado no chão, como um caçador que resolve matar uma cobra no meio da floresta. A cena foi registrada e divulgada pelo mundo pela rede britânica BBC. A americana Dorothy Fragaszy viu a foto do macaco piauiense e resolveu acionar seus contatos no Brasil. Mandou uma carta para Eduardo Ottoni e Patrícia Izar, que, ela sabia, há tempos já estudavam os macacos-prego. A carta, ao mesmo tempo que serviu de incentivo para os pesquisadores, pegou-os de surpresa. Acontece que membros da equipe da USP também estavam no Piauí, mas num local distante de Boa Vista, a pedregosa e árida serra da Capivara, justamente estudando o uso de ferramentas por macacos-prego selvagens. O interesse dos pesquisadores da USP despontara uma década antes desse episódio. Em 1994, Ottoni foi surpreendido pelo relato de uma aluna de iniciação científica que fora observar o comportamento dos pouco mais de 20 macacos-prego que habitam o Parque Eco-
ro, como Elisabetta Visalberghi já observara em zoológicos da Itália, o que desqualificaria a hipótese da tradição cultural. Por fim, não vivem em condições comparáveis às da natureza. Embora estejam soltos, não conseguem sair dos limites do parque, que é cercado pelo rio, e recebem provisões de alimentos. O estudo daqueles animais, porém, acendeu o pavio de uma linha de investigação no Brasil. No início desta década, o holandês Carel van Schaik, professor do Departamento de Antropologia Biológica e Anatomia da Universidade Duke, nos Estados Unidos, e um estudioso do comportamento dos orangotangos, propôs um modelo teórico capaz de explicar o advento de culturas associadas ao uso de ferramentas. Segundo ele, a eclosão desse comportamento dependeria de fatores como a predisposição genética (associada a cérebros grandes e destreza manual), fatores ambientais (como a dependência de alimentos de acesso complicado, como a mucilagem adocicada incrustada nos coquinhos) e o comportamento tolerante dos adultos, condição para que os mais novos tenham a chance de ficar por perto dos mais velhos e, assim, aprender a técnica.
O PROJETO Uso de ferramentas e forrageamento extrativo por macacos-prego (Cebus apella): socialidade, ecologia e transmissão social de informação MODALIDADE
Linha Regular de Auxílio a Pesquisa COORDENADOR
EDUARDO OTTONI – USP INVESTIMENTO
R$ 212.375,15 (FAPESP)
lógico do Tietê, na capital paulista. A estudante descreveu a mesma cena: os grupos de macaquinhos reuniam-se para quebrar cocos produzidos aos cachos por uma palmeira.“Naquele momento, percebi que estava diante de um grande desafio científico”, diz Ottoni, que é pesquisador do Laboratório de Etologia Cognitiva do Departamento de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da USP. O problema é que as condições de vida dos macacos-prego no Parque do Tietê são excepcionais. Foram apreendidos por fiscais do Ibama e instalados ali. Pertencem a uma mistura de subespécies e não se conhece ao certo seu passado. Podiam muito bem ter aprendido a usar ferramentas em situações prévias de cativei-
BRISEIDA RESENDE
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Fome - Tais premissas foram postas à prova pelos pesquisadores da USP e elevaram os estudos com os macacos-prego no Brasil a um novo patamar. A tese da dependência do alimento de difícil obtenção, por exemplo, enfrenta dificuldades para se encaixar no quebra-cabeça. Ela combina com a observação em alguns sítios, mas não em outros. No caso dos animais do Parque Ecológico do Tietê, o ritual de quebra dos cocos se dá apesar de os macacos receberem provisão de alimentos dos tratadores. Já numa área de Mata Atlântica, o Parque Estadual Carlos Botelho, em São Miguel Arcanjo, interior paulista, a pesquisadora Patrícia Izar observou o oposto. Tanto há escassez de alimentos na região que o ciclo reprodutivo dos macacos-prego é mais lento: as fêmeas reproduzem a cada três anos, ante um intervalo médio de dois anos na natureza. Mas ali ninguém parece ter tempo para quebrar coquinhos.A fome os obriga a dividirem-se em grupos menores, para buscar proteína na forma de insetos, reagrupando-se num segundo momento – em fenômenos conhecidos como fissão e fusão. PESQUISA FAPESP 135
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Macacos-prego também usam varetas para caçar formigas ou tirar lagartos da toca
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Num estudo publicado na revista Science em 2004, o brasileiro Antonio Christian de Moura, atualmente na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), e a primatóloga Phyllis Lee, da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, observavam que macacos-prego da serra da Capivara, no Piauí, utilizam varetas para capturar formigas e quebram frutos com pedras, como forma para garantir comida na aridez da Caatinga. Numa correspondência publicada em 2005 na mesma Science, Elisabetta Visalberghi, Patrícia Izar, Dorothy Fragaszy e Eduardo Ottoni colocaram em dúvida a hipótese da busca por comida, uma vez que parte dos macacos estudados recebia provisão de alimentos. “A comparação da vida dos macacos-prego na serra da Capivara e no Parque Carlos Botelho mostra que nem a Caatinga é tão pobre nem a Mata Atlântica é tão rica como se supõe”, diz Patrícia Izar. A hipótese do grupo explica a ocorrência ou não do uso de ferramentas em uma dada população mais em função do grau de terrestrialidade – na Caatinga ou no Cerrado os macacos passam mais tempo no solo do que quando vivem em florestas – do que da oferta de alimento no ambiente.“Isso não quer dizer que o comportamento não tenha evoluído em função das grandes vantagens de poder acessar estes recursos em ambientes em que há escassez de outras fontes”, afirma Eduardo Ottoni. Uma hipótese do grupo da USP para o comportamento corrobora uma outra premissa de Carel van Shaik: a da tolerância dos adultos com os aprendizes. Num artigo publicado na revista Animal Cognition em 2005, Ottoni, Patrícia e a pesquisadora da USP Briseida de Resende observaram uma correlação curiosa no ritual de uso de ferramentas: os macacos que quebram cocos com maior eficiência tendem a conquistar platéias maiores, composta por animais ainda pequenos. “Evidentemente, os mais jovens estão ali porque desejam comer o que sobra dos cocos quebrados”, diz Ottoni. Eles observam os mais velhos, aprendem o gestual e, aos poucos, começam a fazer tentativas, até tornarem-se adultos eficientes como seus mestres. “Uma possibilidade é que os machos adultos permitam a presença dos mais jovens e os deixem comer os restos como uma forma de chamar a atenção das fêmeas”, diz Ottoni. Outra hipótese, le-
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Teia de pesquisadores -A boa notícia é que, no afã de encontrar respostas a essas questões, cresce a teia de pesquisadores que estudam macacos-prego em outros lugares do Brasil. Em Goiás, Francisco Dyonísio Cardoso Mendes e Rogério Ferreira Marquezan, da Universidade Católica de Goiás, juntaram-se a Eduardo e Patrícia para mapear o uso de ferramentas por uma das espécies de macaco-prego Cebus libininosus no estado. O macaco-prego-de-peito-amarelo (Cebus xanthosternos), ameaçado de extinção, é alvo de pesquisas no sul da Bahia. “O responsável por essa pesquisa foi nosso estagiário e estudou os macacos-prego no Parque Ecológico do Tietê”, diz Ottoni. Massimo Mannu, aluno de doutorado de Ottoni, constatou que macacos-pregos da serra da Capivara, no Piauí, usam várias ferramentas ao mesmo tempo, como varetas para tirar lagartos da toca e pedras para retirar raízes, algo incomum até em chimpanzés.“É es-
sencial ampliar o panorama das pesquisas para poder afirmar que o uso de ferramentas constitui uma tradição cultural”, afirma Patrícia Izar. A ampliação desses estudos já mostra que as evidências de que macacosprego desenvolveram tradições culturais não se resume ao uso de ferramentas. Num estudo publicado em fevereiro na revista suíça Folia Primatologica, o brasileiro Antonio Christian de Moura, da UFPB, fez uma descoberta com os macacos-prego da serra da Capivara: para afastar a ameaça de predadores, eles promovem uma sinfonia de percussão, batendo pedras no chão. Segundo o pesquisador, a espécie é a única em que foi observado o comportamento.“Bater objetos em superfícies parece ser uma característica inata, mas que pode ser mol-
Algumas habilidades motoras dos macacos-prego lembram as dos chimpanzés
BRISEIDA RESENDE
vantada por Patrícia, é que em vez de simplesmente matar a fome a transmissão do uso de ferramentas seria uma forma de manter a coesão social do grupo. No passado, achava-se que os macacos-prego pertenciam todos a uma mesma espécie (Cebus apella), mas a nomenclatura mudou e hoje considera-se a existência de várias espécies. Uma possibilidade, na qual os pesquisadores da USP não crêem, é que a distinção de comportamento tenha origem genética. Outra dúvida diz respeito às evidências de que, embora os macacos-prego usem ferramentas, pode ser exagerada a comparação com a habilidade dos humanos. Em 2001, Euphly Jalles-Filho, Rogério Grassetto Teixeira da Cunha e Rodolfo Aureliano Salm, pesquisadores do Instituto de Biociências da USP, publicaram um artigo no Journal of Human Evolution mostrando que os macacos-prego não têm a habilidade de transportar as ferramentas em seus deslocamentos pelo ambiente como fazia o Homo habilis, 2,6 milhões de anos atrás, a primeira espécie de hominídeo a ser associada às lascas de pedras usadas como instrumentos (ver Pesquisa FAPESP nº 66). “Mas, quando são forçados a isso, eles transportam pedras e, quanto à bigorna, não é necessário, pois usam como base pedras fixas, o próprio chão ou troncos de árvore”, responde Eduardo Ottoni.
dada em comportamentos sociais para novas funções. Ao bater a pedra, o ruído torna-se um alarme eficiente”, afirmou. Nas observações feitas anteriormente, a batucada só havia se manifestado pelos macacos para vasculhar ou quebrar alimentos, principalmente em grupos em cativeiro. “Dessa vez foi constatado em um grupo selvagem. A falta do dispositivo em outras populações da mesma espécie, que têm acesso a pedras, sugere que bater pedras possa ser uma tradição social da população estudada”, disse. Os pesquisadores que tentem dormir com um barulho desses. ■ PESQUISA FAPESP 135
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Novo modelo Tomateiros mutantes ajudam a desvendar genes e hormônios que regulam a vida das plantas M ARIA G UIMARÃES | F OTOS E DUARD O C ESAR
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s tomates ao lado correspondem à imagem popular de um mutante: no mínimo esquisito. Uma alteração genética espontânea transformou os estames – que caem quando a flor seca – em órgãos reprodutivos femininos, a parte que dá origem ao fruto. O resultado são tomates múltiplos, como gêmeos siameses. Geralmente invisível aos olhos leigos, a maior parte das mutações não escapa aos especialistas, que descobriram nos mutantes uma ferramenta para entender a intimidade das plantas, em seus genes e hormônios.“Só entendemos realmente a função de um gene se conhecemos variações dele”, comenta Lázaro Peres, agrônomo da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP), em Piracicaba. Para entender como os genes e hormônios regulam as plantas, o pesquisador adotou uma variedade de tomateiro em miniatura, conhecida como MicroTom. São plantas pequenas e com ciclo de vida rápido. Numa estufa ele mantém por volta de 3 mil tomateiros, que com apenas 8 centímetros de altura e 70 dias de idade estão carregados de frutos e acumulam mutações para todos os gostos. Com a ajuda desses mutantes, o grupo da Esalq tem conseguido aprofundar o conhecimento sobre como as plantas resistem à seca, percebem luz e desenvolvem frutos com polpa mais concentrada. Em 2006 Peres descobriu um gene que regula a eficiência no uso de água pela planta, que batizou de Well. Significa “poço” em inglês, mas é também o
nome dado a cada furo da bandeja onde cultiva seus tomateiros; e é uma sigla, que traduzida significa “loco de economia de água em Lycopersicon”. A mutação do gene Well é uma variação genética natural que controla a diferenciação celular e permite sobreviver em condições áridas. Ela define, por exemplo, a proporção de células que darão origem a estômatos, os poros de respiração e transpiração localizados na superfície das folhas. Além de afetar o número de estômatos, a mutação Well produz estruturas anatômicas que permitem que a planta realize mais fotossíntese com menos água. O projeto continua nas mãos do pósdoutorando Ricardo Fornazier, que está fazendo medições para preencher os detalhes de como funciona esse processo, útil para reduzir o volume de água necessário no cultivo não só de tomateiros, mas da agricultura como um todo. Além das mutações, uma fonte importante de variação genética são espécies aparentadas. A equipe da Esalq foi buscar essas variações em Lycopersicon hirsutum, um parente próximo do tomateiro doméstico (L. esculentum). Suas folhas e frutos peludos (hirsutos, como diz o nome científico) permitem resistir a insetos, além de a planta ser afeita ao frio da cordilheira dos Andes, onde cresce naturalmente. Com cruzamentos entre as duas espécies, técnica usada desde que o homem é agricultor, Peres obteve microtomateiros resistentes ao frio. “Estamos interessados em estudar variações genéticas silvestres, pois elas surgiram como resposta à seleção natural”, explica. O sucesso do Micro-Tom como modelo vePESQUISA FAPESP 135
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getal põe o agrônomo da Esalq em posição de destaque: “Em lugar nenhum do mundo existe uma coleção de mutantes como a que temos”. Mas genes não bastam para entender a fisiologia das plantas. Peres explica que os responsáveis por moldar boa parte das características e das funções vitais são os hormônios, que até recentemente eram muito pouco conhecidos – até que pesquisadores começaram a usar mutantes. Para estudar os hormônios vegetais, ele cria tomateiros com mutações que os tornam insensíveis à ação dessas substâncias. Além dos genes - Alguns dos mutantes da Esalq ajudam a entender como plantas percebem luz. Quando há sol, é preciso avisar ao organismo que é hora de produzir clorofila para a fotossíntese, o processo que usa luz solar para converter o gás carbônico em açúcares, a reserva de energia das plantas. Os responsáveis por essa visão vegetal são pigmentos chamados fitocromos. Um mutante com deficiência de fitocromo percebe mal a luz, e mesmo que esteja em pleno sol fica amarelado e com ramos compridos, como se lhe faltasse luminosidade. O aluno de doutorado Rogério Carvalho conseguiu gerar duplos-mutantes, que combinam a mutação do fitocromo com outras que tornam a planta insensível a hormôni-
os específicos, para investigar quais deles o fitocromo usa para modular a resposta da planta à luz. Descobriu que uma alta resposta à luz envolve uma concentração baixa de giberelina e alta de citocinina. Peres explica que a descoberta tem aplicação direta, pois o nível desses hormônios pode ser manipulado adicionando substâncias químicas à planta. Hormônios são também usados na produção de mudas a partir de estacas. Para cada espécie os cultivadores aplicam os hormônios auxina e citocinina, por tentativa e erro, até chegar a uma combinação que induza um pedaço da planta a produzir raízes e caules. Para tornar esse processo menos empírico, o pesquisador busca entender como funciona a competência das plantas, que é a capacidade das células de dar origem a qualquer tipo de tecido. Ao contrário das células-tronco animais, que concentram sua versatilidade na fase embrionária, as plantas precisam de células competentes durante toda a sua vida – para a qualquer momento produzir raízes, folhas, frutos, flores e caule. No laboratório da Esalq, estudantes alinham pedacinhos de folhas em placas com uma gelatina nutritiva: daquelas retiradas de mutantes para o gene Rg1, nome derivado de regeneração, em dois dias brotam raízes da borda do fragmen-
to de folha. O gene Rg1 foi descoberto em um parente silvestre do tomateiro por um pesquisador holandês, que distribuiu sementes pelo mundo todo. Peres transferiu o gene para Micro-Tom para produzir e estudar duplos-mutantes. Assim, ele e sua aluna de doutorado Simone Lombardi verificaram que o gene da competência age em consonância com os hormônios auxina e giberelina. Um teor mais baixo de giberelina aumenta a competência da planta – que no meio de cultivo em laboratório produzirá mais caules a partir dos pedaços de folha. Além de facilitar a produção de mudas para uso agrícola, entender esses processos abre caminhos para gerar plantas transgênicas em grande escala. A relação entre competência e desenvolvimento é íntima e se manifesta em diversas situações da vida da planta. As células das folhas costumam ser pouco competentes: uma folha é um beco sem saída, nada brotará dali. A ponta dos ramos, ao contrário, tem células responsáveis pelo crescimento da planta e pela produção contínua de folhas, frutos, ramos e flores. Em plantas de competência aumentada as células das folhas têm maior propensão a dar origem a outras estruturas. Por isso se desenvolvem mais devagar e geram bordas serrilhadas, recortadas ou até subdivididas em folíolos, num crescendo que corresponde ao grau de competência.“Uma folha composta está a um passo de tornar-se um caule com crescimento aberto”, explica Peres, em contraposição ao crescimento fechado – o tal beco sem saída – que caracteriza as folhas. Para todos - A coleção de tomateiros mutantes permite que se investiguem mistérios das plantas até então inacessíveis. Mas Peres não tem intenção de monopolizar o tomatal: ele está à disposição de outros pesquisadores e melhoristas – aqueles que buscam aprimorar propriedades de plantas com valor comercial. Um dos genes encontrados na Esalq induz a planta a produzir frutos mais carnosos – um parâmetro conhecido como grau brix, que mede o teor de sólidos solúveis (ácidos orgânicos e açúcares) na polpa. O grau brix de um tomateiro normal não passa de 5, mas o grupo da Esalq conseguiu gerar um mutante com brix 10, um resultado sem precedentes. Além de ter uso direto para melhoristas, o resultado demonstra o va-
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Cruzamento com espécie silvestre gera tomate resistente ao frio
lor do tomateiro como modelo vegetal. O mesmo gene pode afetar o brix em outras espécies com frutos carnosos, como laranja e café. A planta Arabidopsis, modelo mais usado para estudos em botânica, tem frutos secos e por isso o que se vê nela não se aplica às espécies com frutos de importância econômica. Peres usa seus mutantes também como material didático. Em aulas práticas de cursos universitários de fisiologia vegetal estudantes são orientados a aplicar hormônios em plantas para ver quais são as alterações causadas.“Como os hormônios são muito caros”, explica o pesquisador,“cultivar plantas mutantes para determinados hormônios sai muito mais barato”. Numa disciplina de graduação no curso de biologia da Esalq, ele deu aos alunos sementes de tomateiros mutantes. Cada grupo ganhou um tipo diferente, não identificado. Ao longo do curso eles plantaram as sementes e acompanha-
ram o crescimento das plantas. Ao reunir o conhecimento adquirido nas aulas teóricas às próprias observações, até o fim do semestre os estudantes deviam descobrir qual função fora afetada pela alteração genética.“Deu muito certo, foi
O PROJETO Bases genéticas e bioquímicas da competência utilizando microtomateiro como modelo MODALIDADE
Linha Regular de Auxílio a Pesquisa – Jovem Pesquisador COORDENADOR
LÁZARO EUSTÁQUIO PEREIRA PERES – Esalq/USP INVESTIMENTO
R$ 224.126,65 (FAPESP)
um exercício estimulante que envolveu os alunos”, comemora o professor. O tomateiro percorreu um caminho aventuroso desde sua origem nos Andes até o Micro-Tom das salas de aula em Piracicaba. Foi domesticado pelos astecas, que viveram entre os séculos XIV e XVI no que agora é o México, onde tomateiros não nasciam espontaneamente. Ao colonizar o império asteca, os espanhóis levaram as plantas de frutos vermelhos para a Europa como ornamentais, por medo que fossem tóxicas. Foram os italianos que não resistiram à aparência apetitosa, incorporaram o tomate em sua culinária e desenvolveram variedades melhoradas que depois se espalharam pelo mundo. Hoje ele é um modelo promissor que abriu rotas de pesquisa que devem ajudar a desvendar o funcionamento genético e hormonal de várias espécies com valor econômico, e quem sabe das plantas em geral. ■ PESQUISA FAPESP 135
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> FÍSICA
Esculturas móveis Simulações de computador explicam como nascem e evoluem as dunas gigantes de Marte
I GOR Z OLNERKEVIC
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ais do que simples montes de areia, as dunas são esculturas talhadas pelo vento que preservam em suas curvas a história do clima de um planeta. No caso de Marte, um dos vizinhos da Terra no sistema solar que mais tem atraído a atenção dos pesquisadores nos últimos anos, as dunas revelam um passado com tempestades de vento fortes e rápidas, que se repetem em intervalos de cerca de cinco anos. Analisando as características da atmosfera e do solo do planeta vermelho e comparando-as com o que conhecem sobre as dunas terrestres, o físico pernambucano Eric Parteli e o alemão Hans Herrmann conseguiram reproduzir em computador as formas das dunas marcianas. Em um trabalho a ser publicado na Physical Review Letters, eles dão os primeiros passos para explicar como se formam e evoluem as dunas de Marte, contribuindo para desfazer um mistério que há quase três décadas intriga físicos e astrônomos: saber se elas estão de fato congeladas ou se movem. Até meados da década de 1990, físicos e astrônomos achavam improvável que a atmosfera atual do planeta vermelho, cem vezes mais rarefeita que a da Terra, permitisse o surgimento dos vastos campos de dunas marcianos, que estão entre os maiores do sistema solar. Se fosse verdade, as dunas de Marte seriam relíquias de bilhões
Nem sempre congeladas: parte das dunas marcianas pode ter surgido nos últimos milênios 56
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de anos atrás, quando a atmosfera do planeta era mais densa e os freqüentes impactos de meteoros ainda não haviam expulsado seus gases para o espaço. Só recentemente essa idéia começou a ser revista com as imagens mais nítidas e de maior resolução obtidas pela missão Mars Global Surveyor, da agência espacial norte-americana (Nasa), que entre 1997 e 2006 monitorou continuamente a atmosfera e a superfície marcianas. Passado e presente – As novas imagens
Campos de Marte: dunas em forma de lua crescente foram esculpidas por ventos vindos de uma só direção
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– algumas delas revelando formas de dunas não encontradas na Terra – chamaram a atenção de Herrmann, professor da Universidade Federal do Ceará e da Escola Politécnica de Zurique, na Suíça. Especialista na física de dunas terrestres, o físico alemão resolveu testar em Marte o modelo matemático que desenvolve desde 2000 e já havia reproduzido com boa precisão a maneira como surgem e se movem as dunas do deserto do Marrocos e de Jericoacoara, no litoral cearense. Com esse modelo, na realidade um programa de computador, Herrmann queria descobrir se seria possível as dunas marcianas surgirem sob as condições atmosféricas atuais. Em 2004 Herrmann e Parteli, então seu aluno de doutorado, começaram a analisar os dados da Mars Global Surveyor em busca de informações que permitissem simular o ambiente de Marte. Conseguiram descobrir a densidade do ar e o tamanho dos grãos de areia, mas faltava saber a força da interação do vento com esses grãos. Como não dispunha desse dado, a dupla de físicos simulou essa interação com a mesma magnitude que ela ocorre na Terra, mas nada apareceu na tela do computador. Só quando eles aumentaram dez vezes a intensidade da interação nasceram as dunas virtuais.“A partir desse resultado, começamos a procurar uma explicação para o palpite bem-sucedido”, diz Parteli, atualmente pesquisador visitante da Universidade de Stuttgart, na Alemanha. Usando as equações do modelo, Parteli e Herrmann conseguiram calcular como os grãos de areia são lançados ao ar pela ação do vento em Marte. E constataram que os ventos marcianos parecem ser mais eficientes que os terrestres. Uma ventania na Terra levanta os grãos de areia a poucos centímetros do chão e os carrega por uns 10 metros, enquan-
to em Marte ventos com a mesma intensidade são capazes de erguer os grãos a quase 1 metro de altura e levá-los dezenas de vezes mais longe, por causa do ar mais rarefeito e da baixa gravidade. Sob as condições marcianas, todo o efeito é multiplicado por dez. Os grãos viajam dez vezes mais rápido e, ao caírem, ejetam dez vezes mais grãos do solo, formando véus de areia rente ao chão como os que costumam castigar os pés e os tornozelos de quem visita as dunas do Nordeste brasileiro. Essas informações, porém, não garantiam que as condições atmosféricas recentes do planeta vermelho teriam permitido o surgimento de dunas nos últimos milhares de anos. Ainda era preciso descobrir com que velocidade os ventos sopram por lá. Parteli e o físico cubano Orencio Durán, também da Universidade de Stuttgart, demonstraram em um artigo publicado em janeiro deste ano na Physical Review E que a velocidade do vento fica gravada no formato das próprias dunas, determinando o tamanho mínimo que as dunas em forma de lua crescente – as chamadas barcanas – podem alcançar. Comuns tanto na Terra como em Marte, as barcanas se formam onde o vento sopra sempre na mesma direção e há relativamente pouca areia. Analisando imagens de barcanas de duas regiões vizinhas ao pólo norte marciano e as da cratera Arkhangelsky, no hemisfério sul, Durán e Parteli constataram que esses três grupos de dunas foram esculpidos por ventos de aproximadamente 125 quilômetros por hora. Ao inserir esses dados no programa de computador, Herrmann e Parteli viram se formar barcanas dez vezes mais altas que as encontradas na Terra, sinal de que Marte abriga as dunas gigantes. Era o indício que faltava de que realmente as dunas marcianas podem ter se erguido nos últimos milhares de anos. Ventos raros – Mas como teriam se for-
mado recentemente se parecem congeladas? Parteli pode ter encontrado a resposta quando analisou a freqüência com que ventos tão fortes sopram em Marte: possivelmente uma vez a cada cinco anos e durante apenas meio minuto. Com essa freqüência, uma barcana com 200 metros de extensão levaria 4 mil anos para se deslocar apenas 1 metro, uma velo-
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cidade de deslocamento extremamente baixa em comparação com a das dunas terrestres, que podem se mover de 5 a 20 metros ao ano. As imagens da Mars Global Surveyor parecem confirmar essa previsão. O geólogo Kenneth Edgett, da empresa norte-americana Malin Space Science Systems, analisou uma a uma as imagens registradas por essa sonda espacial e concluiu que apenas pequenos trechos de areia devem se mover atualmente em Marte. “Há boa evidência de que nem todas as dunas estão endurecidas”, afirma Mary Bourke, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, que recentemente constatou que pequenas dunas no pólo norte encolheram e desapareceram em menos de dois anos. A maior parte das dunas, no entando, estão mesmo congeladas como aquelas que Mary descobriu em 2005 no interior da cratera Kaiser. Depois de reproduzir as barcanas marcianas, Herrmann e Parteli tentaram modelar outros tipos de dunas, semelhantes às que se formam na Terra quando o vento vem de duas direções diferentes, que se alternam ciclicamente. Com ventos de 125 quilômetros por hora, eles conseguiram reproduzir outras três formas de dunas marcianas. Com base nessas simulações, os físicos calcularam que em Marte os ventos fortes que originam as dunas devem mudar de direção somente uma vez em algumas dezenas de milhares de anos. Esse longo intervalo sugere que a mudança na direção dos ventos esteja associada ao movimento de precessão do planeta, que oscila como um pião durante o percurso de 51 mil anos ao redor do Sol – ora expondo mais o hemisfério norte, ora o hemisfério sul, ao calor. O modelo matemático que Herrmann e Parteli desenvolveram a partir do estudo das dunas terrestres pode também ajudar a entender a atmosfera e algumas características da superfície de outros astros do sistema solar, como o planeta Vênus ou Titã, a maior lua de Saturno. “Podemos ajustar esse modelo para esses corpos”, diz Parteli. Mas talvez não seja muito simples.“A atmosfera de Vênus e de Titã é mais densa que a terrestre”, comenta o físico pernambucano, “e ainda não se compreende muito bem como ocorre o transporte dos grãos nessas circunstâncias”. ■ PESQUISA FAPESP 135
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Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org
Notícias ■
Esporte
Coração de atleta A prática esportiva traz muitos benefícios à saúde,no entanto o treinamento intenso pode expor o coração de alguns atletas a uma sobrecarga capaz de provocar alterações funcionais e estruturais no órgão.Foi o que aconteceu com os 162 corredores de longa distância avaliados pelos pesquisadores Antônio Carlos Pereira Barretto,Luciene Ferreira Azevedo,Patrícia Chakur Brum,Dudley Rosemblatt,Patrícia de Sá Perlingeiro,Carlos Eduardo Negrão e Luciana Diniz Nagem Janot de Matos,que trabalham no Instituto do Coração,do Hospital das Clínicas,e na Escola de Educação Física e Esporte,da Universidade de São Paulo.O estudo “Características cardíacas e metabólicas de corredores de longa distância do ambulatório de cardiologia do esporte e exercício, de um hospital terciário”avaliou o desempenho cardíaco de atletas do sexo masculino,com idade entre 14 e 67 anos,através de exames eletrocardiográficos e da observação e de sua resposta cardiopulmonar.Eles descobriram que 9% dos corredores tinham doenças cardiovasculares e 17% apresentaram alterações metabólicas.Mais da metade deles teve uma diminuição da freqüência cardíaca e 33% desenvolveram uma hipertrofia no ventrículo esquerdo que provavelmente resultou de uma adaptação do coração ao aumento do esforço físico.O estudo verificou essas alterações,mas não conseguiu determinar quais seriam as conseqüências de longo prazo decorrentes dessas mudanças. ARQUIVOS BRASILEIROS DE CARDIOLOGIA – VOL. 88 – Nº 1 – SÃO PAULO – JAN. 2007 www.revistapesquisa.fapesp.br/scielo135/esporte.htm
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Reciclagem
Proteção ambiental FOTOS EDUARDO CESAR
Os sites SciELO Brasil e SciELO Saúde Pública atingiram, em abril, o objetivo de disponibilizar todos os novos serviços públicos que haviam sido planejados desde o início do projeto. Os dois sites oferecem o serviço Acessos nos seus artigos, o qual permite acompanhar a quantidade de acessos recebidos, por mês, ano a ano, desde a entrada na coleção SciELO. Outros serviços virão com a identificação do usuário e estão associados à publicação do novo portal SciELO.
A fabricação de material produzido pelo homem é sempre uma maneira de intervir na natureza.No entanto a pesquisa “Ecomateriais:desenvolvimento e aplicação de materiais porosos funcionais para proteção ambiental”mostra que a intervenção humana pode ser mais inteligente, garantindo a preservação dos recursos naturais e tentando reparar os problemas já causados.O trabalho dos químicos Odair Pastor Ferreira e Oswaldo Luiz Alves,do Instituto de Química,da Universidade Estadual de Campinas,e de Jeremias de Souza Macedo,Iara de Fátima Gimenez e Ledjane Silva Barreto,do Departamento de Química,da Universidade Federal de Sergipe, analisa os testes realizados com alguns materiais porosos.Dentre eles é estudada a modificação da superfície de um vidro poroso capaz de detectar gases poluentes;o uso de biomassa a partir da casca de coco para a preparação de carbono ativado com características programáveis;a preparação de uma argila adequada para a remoção de corantes e sua posterior reciclagem.“Existem razões objetivas não só para a realização dessas pesquisas,como também para seu incremento,como um dos elementos contributivos para a complexa equação do desenvolvimento sustentável”, avaliam os químicos. QUÍMICA NOVA – VOL. 30 – Nº 2 – SÃO PAULO – MAR./ABR. 2007 www.revistapesquisa.fapesp.br/scielo135/reciclagem.htm
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Infância
Disciplina x identidade Qual o efetivo papel da escola na formação das crianças? Essa é uma das perguntas que a professora Ana Flávia Lopes Magela Gerhardt,da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),tentou responder no seu trabalho “Uma visão sociocognitiva da avaliação em textos escolares”.O estudo considera que a tarefa de produção de texto é uma atividade comple-
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xa e decisiva para a formação da identidade do aluno porque é nela que ele pode construir sua perspectiva de mundo e travar um diálogo com o professor sobre o conhecimento apresentado em sala de aula. Partindo dessa premissa, a pesquisadora estuda uma tarefa escolar de leitura e interpretação de texto, aplicada em uma turma da quarta série do ensino fundamental, de uma escola pública do município de Barra Mansa, no Rio de Janeiro. A pesquisa conclui que a tarefa de interpretação aplicada não se interessa em criar vínculos com a realidade extraclasse vivenciada pelo aluno nem abre espaço para que ele exercite sua criatividade. De acordo com Ana Flávia, o resultado desse processo – no qual a “resposta certa” é a mais parecida com o que está escrito no livro didático – é uma “dessujeitização” do aluno e do professor. A pesquisadora faz uma comparação do seu estudo de caso com o trabalho do educador Percival Leme Brito, realizado em 1983, sobre a produção de texto no ensino fundamental e traça um diagnóstico bem parecido com o dele: a produção e a interpretação de texto são reduzidas a uma mera tarefa escolar.“Refletindo sobre essa nefasta estabilidade, não é difícil constatar que as soluções propostas para os problemas verificados olham reiteradamente para o lado errado: a instituição, ao avaliar, nunca se direciona para si mesma e seus valores, mantendo-se teimosamente a olhar o aluno como uma pessoa a quem faltam os saberes autorizados por uma elite”, conclui. EDUCAÇÃO & SOCIEDADE – VOL. 27 – Nº 97 – CAMPINAS SET./DEZ. 2006
www.revistapesquisa.fapesp.br/scielo135/infancia.htm
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Estupro
Falhas no atendimento Para entender como o profissional da saúde pode ajudar as vítimas de estupro a se protegerem da contaminação do HIV, o estudo “Mulheres vítimas de violência sexual: adesão à quimioprofilaxia do HIV” coletou dados de 172 mulheres atendidas pelo Serviço de Atenção a Pessoas em Situação de Violência Sexual na cidade de Salvador, Bahia. O levantamento constatou um índice de vulnerabilidade muito alto: 45,4% das mulheres violentadas eram adolescentes e 18,7% eram virgens, que geralmente são as vítimas mais expostas à contaminação por causa das inflamações decorrentes da perfuração do hímen de maneira violenta. Apenas 57,4% das mulheres violentadas aderiram ao tratamento de proteção contra o HIV e a taxa de descontinuidade chegou
a 42,6%. Mesmo que mais de metade das mulheres tenha sido atendida da maneira correta, o trabalho das pesquisadoras Normélia Maria Freire Diniz, Lílian Conceição Guimarães de Almeida, Bárbara Cristina dos S. Ribeiro e Valéria Góes de Macedo, da Universidade Federal da Bahia, concluiu que a prevenção ao HIV foi muito baixa, exigindo que enfermeiros e médicos que atuam no atendimento aos casos de estupro busquem uma estratégia para aumentar o índice de adesão e continuidade do tratamento. “Há necessidade de um olhar atento dos profissionais a fim de perceber as condições que implicarão no aumento da vulnerabilidade das mulheres à infecção”, alertam as pesquisadoras. REVISTA LATINO-AMERICANA DE ENFERMAGEM – VOL. 15 – Nº 1 – RIBEIRÃO PRETO – JAN./FEV. 2007 www.revistapesquisa.fapesp.br/scielo135/estupro.htm
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Educação
Formação policial No atual cenário de insegurança e alto índice de violência, a necessidade de capacitar a polícia brasileira para o desempenho mais eficiente do seu trabalho é um dos temas mais citados por estudiosos da área de segurança, formuladores de políticas públicas, autoridades de governo e pelos próprios policiais. Com o objetivo de medir a contribuição dos cursos de formação policial para a modificação deste cenário, a pesquisa “O modelo policial profissional e a formação profissional do futuro policial nas academias de polícia do estado do Rio de Janeiro”, da socióloga Paula Poncioni, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), avaliou o currículo da formação e treinamento profissional, ministrado pela Academia Estadual Sylvio Terra (Acadepol), do Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças - 31 de Voluntários (Cfap) e da Academia de Polícia D. João VI (APM D. João VI). De acordo com o trabalho, há uma preocupação excessiva no controle do crime com táticas reativas, direcionadas para o confronto, e deficiências na atividade preventiva, principalmente na negociação de conflitos e no tratamento com o cidadão. Nas duas últimas décadas foram verificadas iniciativas para melhorar a formação policial que ainda não foram suficientes para mudar a atuação do profissional. Além de detectar uma formação ineficaz, o estudo verificou a falta de regularidade no treinamento do policial ao longo de sua carreira e apontou para a necessidade da implantação de um novo modelo que não se restrinja a dar respostas imediatas às ações criminosas. Para surtir um efeito mais significativo, o trabalho sugere que essa mudança no currículo depende de uma nova estratégia de formação e da aplicação de recursos humanos e materiais. SOCIEDADE E ESTADO – VOL. 20 – Nº 3 – BRASÍLIA – SET./ DEZ. 2005 www.revistapesquisa.fapesp.br/scielo134/educacao.htm
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radiação T Os benefícios dos aparelhos de raio X,com mais vantagens e uso mais amplo – é o que promete o controle tecnológico dos raios T, de radiação de terahertz. Um equipamento que controla e emite ondas eletromagnéticas T foi desenvolvido por pesquisadores ingleses da Universidade de Bath em colaboração com duas universidades espanholas,Autônoma de Madri e de Zaragoza. Os raios T podem ser usados em sondas para endoscópios tanto para verificar células cancerosas como para “ver” dentro de objetos como 62
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bolsas e bagagens,pacotes de papelão,paredes de alvenaria,além de identificar explosivos dentro de aeroportos e detectar e fazer análises químicas, LONDON PRESS
> Os olhos da
Bateria de lítio Tanque de hidrogênio Controle e distribuição de potência Motor de controle e inversão de potência Sistema de controle da célula a combustível Centro da célula a combustível Filtro de ar Sistema de controle da célula a combustível Reservatório de água Radiador Motor elétrico
com a identificação de moléculas de proteínas, vírus e bactérias.Os raios T só não podem ser usados na água e em metais. O projeto foi financiado pela Royal Society,na Inglaterra,União Européia e Força Aérea dos Estados Unidos (London Press).
> Nanogerador ultra-sônico
Imagem de raios T de manequim com roupa e material plástico no bolso
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Cientistas do Instituto Tecnológico da Geórgia, nos Estados Unidos, desenvolveram um gerador de dimensões nanométricas que pode servir como fonte de energia para uma série de máquinas no futuro. O aparelho utiliza ondas
ultra-sônicas para produzir uma corrente direta na ordem de 1 nanoampere (a bilionésima parte de 1 ampere).Em um trabalho anterior,a equipe do chinês Zhong Lin Wang havia descoberto que nanofios de óxido de zinco criavam pequenas cargas elétricas quando eramdobrados e soltos repetidamente. Agora os pesquisadores exploraram esse fenômeno usando vibrações para fazer um eletrodo de platina cheio de ranhuras se mover verticalmente.Em contato com o eletrodo,os nanofios se dobram repetidamente, produzindo a corrente. Como diferentes conjuntos de fios se movem alternadamente,a corrente
BOEING
mam derivados de petróleo. A indústria automobilística já estuda seu uso e tem vários protótipos com esse tipo de equipamento e agora é a vez da indústria aeronáutica. No caso do Boeing Phantom Works, o sistema com hidrogênio vai ser utilizado no vôo de cruzeiro, fora das etapas de decolagem e subida para atingir altitude, quando a célula contará com a ajuda das baterias. O sistema de célula e baterias aciona um motor elétrico, que por sua vez faz movimentar uma hélice convencional. A Boeing também analisa o emprego de células a combustível para sistemas secundários numa aeronave. Esse uso está mais perto de se tornar comercial e equipar os aviões dentro de dez a 15 anos.
Até o final do ano um pequeno avião monomotor deverá fazer um vôo tripulado na Espanha com um sistema de propulsão formado por uma célula a combustível, equipamento que usa o hidrogênio para gerar energia elétrica, e baterias de lítio, semelhantes e mais potentes que as usadas em celulares. O avião é um protótipo da Boeing, gigante norte-americana que conta nesse projeto com parcerias de várias empresas e universidades espanholas, e de companhias alemãs, austríacas, inglesas, francesas e norte-americanas. Silenciosa e com índice zero de emissão de poluentes, a tecnologia de célula a combustível é a mais indicada para gerar eletricidade e substituir os motores que quei-
produzida é contínua. Os autores conseguiram manter o gerador funcionando ininterruptamente por mais de uma hora. O dispositivo pode ser usado para obter energia elétrica de sistemas que vibram naturalmente, como acontece com alguns relógios. Os pesquisadores esperam conseguir controlar melhor a densidade dos fios, a fim de fazer milhões ou até bilhões deles produzirem corrente simultaneamente, otimizando a operação do gerador. Se um dispositivo como esse for instalado num sapato, o movimento de andar poderá gerar uma pequena corrente para alimentar pequenos aparelhos eletrônicos.
> Material ultra-resistente Um material ultra-resistente, capaz de arranhar um diamante e que pode ser fabricado a um custo baixo, foi criado por pesquisadores da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, Estados Unidos. O diamante é o material natural mais resistente conhecido. As estruturas sintetizadas capazes de rivalizar com sua dureza são submetidas a altas pressões na sua fabricação. O novo material, resultante de uma mistura dos elementos químicos rênio e boro, foi fabricado sem precisar dessas condições. Ele é parecido estruturalmente tanto com um metal quanto com um cristal. Para incorporar as diferentes propriedades dos dois materiais, os pesquisadores aqueceram
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e misturaram os elementos, adicionando uma potente corrente elétrica na mistura. Isso fez com que rapidamente derretessem, formando uma mistura regular, brilhante como metal, e também muito rígida.
Novo material nas formas de pó e sólido
UCLA
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> Energia solar em evolução Duas novidades em relação a células solares poderão trazer um melhor aproveitamento e maior disseminação da energia solar para gerar eletricidade. A primeira vem do Instituto de Pesquisa Geórgia Tech, em Atlanta, nos Estados Unidos. Eles desenvolveram uma cobertura para os sistemas fotovoltaicos usando nanotubos de carbono que deixam esses dispositivos em forma tridimensional (3D) para captar maior porcentagem de raios solares, além de serem mais leves e com tamanho reduzido. As células tradicionais têm uma superfície plana e refletem uma porção significativa da luz solar. Os nanotubos instalados em forma de torres
> Plástico vira
são também recobertos com material transparente e condutor. Os raios solares refletem dentro dos lados dessas torres muitas vezes propiciando uma melhor absorção e conversão da energia dos raios solares. A outra novidade foi desenvolvida na Universidade Wake Forest, da cidade de Winston-Salem, na Carolina do Norte. Pesquisadores conseguiram um novo recorde de conversão de luz solar em energia com células solares plásticas e flexíveis. Eles atingiram a marca de 6% de conversão. As células tradicionais convertem 12%. Por serem mais baratas, os pesquisadores acreditam que, se atingirem 8%, elas se tornarão comerciais.
biodiesel
GARY MEEK/GEORGIA TECH
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Célula solar em 3D: composta de nanotubos
Um novo plástico que pode ser convertido em biodiesel depois do uso foi desenvolvido na Universidade Politécnica, de Nova York, nos Estados Unidos, a partir de óleos vegetais. A pesquisa foi liderada pelo químico Richard Gross, que descreveu o bioplástico como mais resistente e mais durável do que os polietilenos tradicionais. O produto poderá ser usado como um plástico comum, tanto rígido como flexível, para embalagens e outras aplicações. Em vez de ser descartado após o uso, ele é transformado em combustível pela ação de uma enzima chamada cutinase, produzida a partir de fungos. Essa transformação não necessita de nenhum equipamento especial e pode ser feita em recipientes simples. Os benefícios de um bioplástico que pode ser transformado em combustível são importantes porque, além de diminuir a quantidade de embalagens plásticas descartadas, ele propiciará redução na demanda de combustível à base de petróleo.
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> TECNOLOGIA LINHA DE PRODUÇÃO
BRASIL
integrada Os apicultores contam agora com novas ferramentas para ajudá-los na produção de mel e outros produtos. Uma delas é o Portal da Apicultura Brasileira, site que traz informações sobre o mercado, informações técnicas e tecnológicas e notícias da área. O portal faz parte do Projeto Integrado para a Apicultura, que conta ainda com um sistema de rastreamento e gerenciamento apícola chamado Laborapix, como softwares, hardwares, que será utilizado para registrar o passo-a-passo da produção. A validação desse sistema será realizado entre maio e julho deste ano. Os resultados e os produtos oriundos desse sistema de rastreamento estarão disponíveis para o consumidor no portal a partir de setembro. O consumidor industrial ou final poderá por meio de informações contidas nos rótulos dos produtos apícolas verificar a procedência e todos os estágios pelos quais passou o mel, por exemplo, desde a produção no campo. Consulte os sites: www.portaldaapicultura.com.br, www.apiculturabrasileira.com.br 64
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> Iogurte premiado Um iogurte em pó, que tem em sua formulação bactérias que auxiliam no funcionamento regular GABRIELA SEIRAFE
> Apicultura
Um software de reconhecimento de impressões digitais desenvolvido pela empresa Griaule, de Campinas, interior paulista, ficou com o primeiro lugar na Fingerprint Verification Competition – FVC 2006, uma competição internacional para verificação eletrônica de impressões digitais que tem como objetivo avaliar os mais recentes avanços obtidos nas pesquisas em biometria, tecnologia de identificação baseada na análise de características únicas de cada pessoa, como mãos, rosto, voz e íris (leia em Pesquisa FAPESP nº 130). A edição de 2006 recebeu 150 inscrições de empresas, pesquisadores de universidades e desenvolvedores independentes, dos quais apenas 54 foram classificados para submeter as operações matemáticas (algoritmos) que fazem os sistemas funcionar. Os softwares são testados em quatro bancos de dados, cada um com 12 amostras de 150 dedos, num total de 1,8 mil imagens obtidas por um leitor de impressões digitais. O algoritmo que apresentar a menor margem de erro ao reconhecer amostras é o vencedor. O da Griaule apresentou a taxa média de 2,155%. O do segundo colocado, uma empresa chinesa, foi de 2,27%. A competição é organizada a cada dois anos pelos quatro maiores centros mundiais de pesquisa em biometria, localizados na Universi-
Iogurte de morango em pó: novidade prática
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EDUARDO CESAR
Identificação precisa
Aparelho reconhece digitais cadastradas em sistema dade de Michigan e na Universidade de San Jose, ambas nos Estados Unidos, na Universidade de Bolonha, Itália, e na Universidade Autônoma de Madri, Espanha.
do intestino, venceu a primeira edição do Prêmio Abea de Inovação Tecnológica, da Associação Brasileira de Engenheiros de Alimentos. O produto funcional foi desenvolvido como trabalho de conclusão de curso por alunas de engenharia de alimentos da Escola de Engenharia Mauá, de São Caetano do Sul, no Grande ABC paulista. “Escolhemos fazer o iogurte com o sabor morango por ser mais popular, mas ele pode ser fabricado em vários sabores”, diz Tathiana Lopes David, uma das alunas
premiadas. Participaram ainda do trabalho Gabriela Seirafe, Luciana Simões, Tatiana Alves e Thelma Teixeira, orientadas pela professora Cynthia Kunigk. O iogurte probiótico em pó, nome do novo produto funcional que está em fase de depósito de patente, tem como principal diferencial a praticidade para o consumidor. Pode ser carregado na bolsa e, para ser consumido, basta acrescentar água. Algumas empresas já demonstraram interesse em fabricar o produto.
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LAURABEATRIZ
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nanotecnológico Um anestésico local para ser usado sobre a pele em pequenas cirurgias será o primeiro medicamento a ser lançado dentro de dois anos pela empresa paulistana Incrementha, instalada no Centro Incubador de Empresas Tecnológicas (Cietec) na Cidade Universitária. A novidade é que os princípios ativos do fármaco estarão envoltos em uma cápsula de polímero biodegradável de tamanho nanométrico (1 milímetro dividido por 1 milhão de vezes). “Essa tecnologia vai permitir que o anestésico penetre na pele e se concentre nas terminações nervosas de forma mais eficaz com duração mais longa da ação anestésica e com menos efeitos colaterais”, diz Henry Suzuki, diretor técnico da empresa. Sem revelar quais são os princípios ativos encapsulados, que já são usados em outros medicamentos ou terão suas moléculas modificadas, ele diz que os estudos clínicos começarão assim que a empresa finalize a formulação industrial do produto. Tanto a transferência de tecnologia do polímero nanocomposto como a patente têm a participação de pesquisadores
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) coordenados pelas professoras Silvia Guterres e Adriana Pohlmann. A Incrementha é uma empresa de pesquisa e desenvolvimento formada por duas gigantes brasileiras da indústria farmacêutica, a Biolab e a Eurofarma. Com um ano e meio de vida e 20 funcionários, sendo 11 no laboratório entre mestres e doutores, ela recebeu R$ 4 milhões em investimentos das duas empresas. A previsão neste ano, quando o número de projetos da empresa já chega a 30, é de um orçamento de R$ 12 milhões.
> Hortaliças limpas com gás O gás ozônio mostrou em testes ter o mesmo efeito que o cloro na desinfecção de hortaliças, produto
tradicionalmente usado para essa finalidade. A pesquisa, coordenada pela bióloga Neliane Ferraz de Arruda Silveira, do Instituto de Engenharia de Alimentos (Ital), de Campinas, interior paulista, vinculado à Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, foi feita com alface-americana e crespa, agrião e rúcula. A higienização, obtida com a concentração de 1 miligrama de ozônio por litro de água, é feita em apenas um minuto e não muda o sabor nem o cheiro das hortaliças. A maior vantagem é que o ozônio se decompõe em moléculas de oxigênio e por isso não causa nenhum dano à saúde e ao ambiente. “O teste que comprova a eficiência do ozônio contribui para a implantação dessa nova maneira de limpar hortaliças, que já está
bastante difundida na Europa, onde o uso de cloro é proibido”, diz Neliane. O próximo desafio é desenvolver um aparelho para uso doméstico.
> Anticorpos para exportação
PROTEINAX
> Incremento
Anticorpos em ação na célula: estudo de medicamentos
A Proteimax, pequena empresa de biotecnologia sediada em Cotia, na Grande São Paulo, acaba de fazer um acordo de exportação dos anticorpos que produz. Essas substâncias, que se ligam às membranas das células, facilitam o estudo e o desenvolvimento de novos medicamentos (leia em Pesquisa FAPESP n° 131). O contrato foi firmado por seis anos com a empresa norte-americana Assays Design, que vai distribuir os anticorpos e os kits, que incluem essas substâncias, nos Estados Unidos e em outros países. “Nós vamos continuar a distribuir os produtos no Brasil”, diz Andrea Sterman Heimann, diretora da Proteimax. Para ela, a exportação é a conclusão de um ciclo. “Fizemos o desenvolvimento, publicamos em revistas científicas e firmamos um acordo internacional de distribuição.”
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Leveduras floculantes cultivadas em m eio lĂquido
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TECNOLOGIA
ENERGIA
Fermentação vantajosa Uso de novas linhagens de levedura pode reduzir custo de produção das usinas de açúcar e álcool Y URI VASCONCELOS |
FOTOS
E DUARD O C ESAR
D
entro de um ano, se tudo correr bem, uma nova tecnologia para produção de etanol deverá ser colocada no mercado, proporcionando redução no custo de produção das usinas sucroalcooleiras instaladas no país. Pesquisadores do Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas (CPQBA) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) conseguiram selecionar com sucesso linhagens de levedura Saccharomyces cerevisiae com capacidade floculante (cresce de maneira agrupada, formando flocos ou aglomerados de tamanho variável) para serem utilizadas em reatores do tipo torre empregados nos processos de fermentação industrial pelas destilarias brasileiras. A vantagem dessas leveduras sobre as tradicionalmente empregadas é que elas dispensam uma etapa do ciclo de produção do álcool, a centrifugação, que ocorre imediatamente após a fermentação. Os pesquisadores também desenvolveram dornas de fermentação próprias para o processo, que estão funcionando há dois anos em caráter experimental numa usina piloto da região de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo. Para dimensionar o alcance da inovação desenvolvida pelo grupo da Unicamp é preciso, antes, conhecer as etapas de produção do etanol. Depois que a cana-de-açúcar é colhida dos canaviais ela é encaminhada para a usina onde passa por um processo de moagem. O mosto resultante, constituído pelo caldo de cana ou pelo melaço misturado com água, segue para as dornas de fermentação alcoólica. Nessa etapa, as cepas de leveduras Saccharomyces cerevisiae têm papel vital, pois são elas as responsáveis pela transformação do açúcar em álcool etílico.Nos processos convencionais usados por praticamente todas as cerca de 400 usinas brasileiras, o mosto fermentado é enviado para centrífugas onde ocorre a separação das leveduras. O fermento centrifugado, contendo as células de leveduras, passa por um tratamento ácido e retorna às dornas de fermentação, enquanto o mosto é encaminhado para as colunas de destilação, o passo final do processo de produção do etanol.
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Com as linhagens de leveduras floculantes selecionadas no CPQBA, o mosto fermentado sai das dornas sem conter leveduras,que permanecem retidas no próprio equipamento.“Ao contrário das leveduras convencionais, que ficam dissolvidas no mosto fermentado,as linhagem floculantes se depositam no leito da dorna. Com isso eliminamos a etapa de centrifugação, cujo objetivo é exclusivamente separar a levedura do mosto fermentado”, explica a bióloga Maria da Graça Stupiello Andrietta,coordenadora da Divisão de Biotecnologia e Processos do CPQBA.“A grande vantagem desse novo processo é a redução do custo de aquisição e manutenção de equipamentos por parte das usinas,já que elas não precisarão mais ter separadoras centrífugas.” Pelos cálculos do grupo, a eliminação da centrifugação e do tratamento
ácido dos processos convencionais poderá levar a uma economia no custo de processamento de R$ 0,02 a R$ 0,03 por litro de etanol produzido – o custo total de processamento é de R$ 0,20 por litro, sem contar o custo da cana-deaçúcar. Além disso, a ; da máquina facilita a automação do processo, já que a unidade de centrifugação é o único setor do processo que não admite automação total. Apesar de ter uma etapa a menos no ciclo produtivo, no entanto, o rendimento e a produtividade do processo são os mesmos. Segundo a pesquisadora, há cerca de 15 anos algumas usinas brasileiras chegaram a utilizar pioneiramente processos que empregavam linhagens floculantes de Saccharomyces cerevisiae, mas eles foram abandonados por falta de domínio da tecnologia. “Naquela época,
nós já fazíamos trabalho de seleção de linhagens e percebemos que as leveduras floculantes poderiam ter um desempenho eficiente na fermentação se contassem com equipamentos apropriados. Havia um gap tecnológico”, recorda-se Maria da Graça, que, no passado, trabalhou no Centro de Tecnologia Copersucar, atual Centro de Tecnologia Canavieira (CTC), em Piracicaba (SP), uma das principais instituições de pesquisa do setor sucroalcooleiro. Outra grande barreira para a implementação industrial desse processo era a formação de um leito de células estável que permitisse a operação do sistema por longos períodos sem grandes variações nas condições operacionais. Um dos fatores ao qual a estabilidade do leito está fortemente associada é a característica das cepas presentes nos reatores. Daí a importância do trabalho feito no CPQBA. Das cerca de 300 linhagens de leveduras floculantes isoladas de unidades industriais do país e armazenadas no Banco de Cepas da Divisão de Biotecnologia e Processos do centro, 12 foram selecionadas para o estudo, financiado pela FAPESP. Um dos aspectos que o grupo procurou entender foi o perfil de floculação de cada uma das linhagens, já que o tamanho do floco formado está diretamente relacionado ao desempenho fermentativo do microorganismo. Para selecionar as mais eficientes, os pesquisadores escolheram 12 linhagens e as colocaram em um reator para ver como se comportavam – durante a fermentação, as leveduras competem entre si e apenas as mais eficientes permanecem no processo. A identificação das 12 linhagens em-
OS PROJETOS Seleção de leveduras floculantes para uso em reatores (tipo torre) fluidizado na produção de etanol
Caracterização de leveduras industriais para produção de etanol utilizando composição celular e características cinéticas
Produção de dextrana e oligossacarídeos por novas linhagens isoladas da cana-de-açúcar MODALIDADE
MODALIDADE
MODALIDADE
Linha Regular de Auxílio a Pesquisa
Linha Regular de Auxílio a Pesquisa
Linha Regular de Auxílio a Pesquisa COORDENADORA
COORDENADOR
COORDENADORA
SÍLVIO ROBERTO ANDRIETTA - Unicamp INVESTIMENTO
INVESTIMENTO
R$ 116.567,13 (FAPESP)
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CLÁUDIA STECKELBERG - Unicamp
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R$ 82.720,37 (FAPESP)
MARIA DA GRAÇA STUPIELLO ANDRIETTA Unicamp INVESTIMENTO
R$ 92.778,99 (FAPESP)
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pregadas no estudo foi realizada por meio de eletroforese, método que isola o DNA das leveduras e traça um perfil de seus cromossomos. Ao fim dos estudos, foram selecionadas duas linhagens para uso na planta piloto como inóculo, nome dado à semente que dá início ao processo de fermentação. O grupo, formado também pelo engenheiro químico Sílvio Roberto Andrietta, enfrentou outro desafio: desenvolver equipamentos específicos para uso dessas leveduras floculantes. O sistema piloto projetado é constituído de dois biorreatores tipo torre, de formato cilíndrico, mais compridos e finos do que os convencionais, que trabalham em série e têm capacidade para fermentar 4.500 litros de mosto por hora, o que significa uma produção diária de 12 mil a 15 mil litros de etanol.“As dornas convencionais seriam inadequadas, pois permitiriam que os flocos formados passassem para adiante junto com o mosto fermentado, causando entupimento nos equipamentos de destilação”, explica Sílvio Andrietta. A usina piloto, construída com apoio de um grande fabricante de máquinas para o setor sucroalcooleiro – que prefere não ser identificado –, está funcionando há dois anos com resultados promissores, segundo os pesquisadores.“Vamos testála por mais uma safra e ela estará pronta para ser lançada no mercado. Já estamos em fase de licenciamento do equipamento para uma indústria do setor”, afirma Maria da Graça. “Creio que o processo com leveduras floculantes será uma alternativa interessante para os produtores de álcool.”
dos, que estão sendo avaliadas com relação a quatro parâmetros: desempenho fermentativo, tolerância ao etanol, cariotipagem (ou perfil cromossômico) e composição celular (perfil de ácidos graxos). A cariotipagem é feita pelo método de eletroforese, enquanto a composição celular emprega um cromatógrafo a gás, que identifica os ácidos graxos presentes no microorganismo – já se sabe que as leveduras mais tolerantes ao etanol são aquelas com altos teores dos ácidos graxos do tipo palmitoléico e oléico.Para avaliar o desempenho fermentativo dos microorganismos, os pesquisadores criam condições ideais de fermentação em laboratório, colocam as 35 cepas juntas e observam quais delas fermentam melhor. “O projeto ainda está em andamento e não tem a finalidade de identificar a melhor levedura, mas conhecê-las a fundo. Nossa idéia é criar um grande banco de dados que reúna informações sobre as características cinéticas (produtividade e rendimento) e de composição celular delas. É uma espécie de ‘bioma’ das leveduras”, afirma Maria da Graça. Graças aos conhecimentos adquiridos em duas décadas de pesquisas voltadas ao setor sucroalcooleiro, o grupo também tem trabalhado na identificação de outros microorganismos presentes no ambiente canavieiro de interesse industrial – mas não diretamente associado à produção de álcool etílico.“A finalidade
desse trabalho, fruto de duas dissertações de mestrado, é avaliar o potencial de linhagens de bactérias isoladas de cana-deaçúcar em sintetizar produtos de interesse comercial a partir da sacarose”, diz Maria da Graça. Os pesquisadores já conseguiram isolar uma bactéria encontrada em canaviais, a Leuconostoc sp., que produz um tipo de goma, chamada dextrana, muito utilizada pelas fábricas de alimentos, medicamentos e cosméticos. Gomas são biopolímeros de origem microbiana (gomas dextrana, xantana etc.) ou vegetal (gomas guar, carragena etc.) com ampla aplicação industrial. A dextrana, por exemplo, entra na composição de alimentos como espessante ou estabilizante, garantindo sua consistência, e, na indústria farmacêutica, como substituto do plasma sangüíneo. O interesse por essa nova linha de pesquisa surgiu a partir da constatação de que bactérias produtoras de goma do tipo dextrana são freqüentemente encontradas em amostras de cana deteriorada.“Já caracterizamos três gomas dextranas, com propriedades diferenciadas das que existem no mercado, que podem ser empregadas na indústria de alimentos”, diz a pesquisadora. Os estudos ainda estão em andamento e, por enquanto, ainda não foi feito nenhum contato com as indústrias potencialmente interessadas para a transferência do conhecimento gerado nos laboratórios do CPQBA. ■
P orções de leveduras floculantes cultivadas em m eio gelatinoso
Banco de dados - Outro projeto desenvolvido pelos pesquisadores da Divisão de Biotecnologia e Processos do CPQBA tem como objetivo fazer a caracterização da composição celular de diferentes linhagens de leveduras Saccharomyces cerevisiae – floculantes ou não – de uso industrial.“Com esse levantamento, vamos saber como são constituídas as cepas mais empregadas nos processos fermentativos industriais no país”, afirma a química Cláudia Steckelberg, coordenadora da pesquisa, que também conta com apoio financeiro da FAPESP.A pesquisadora coletou, aleatoriamente, 35 cepas de leveduras dominantes utilizadas por usinas de açúcar e álcool de diferentes estaPESQUISA FAPESP 135
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Nemat贸ides prontos para o ataque ao bicudo da cana
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> AGRONOMIA
Simbiose letal Inseticida biológico usa parceria de bactéria e nematóide para combater praga da cana | D INORAH E RENO
MIGUEL BOYAYAN
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m inseticida biológico capaz de combater o bicudo da cana (Sphenophorus levis), uma praga que pode destruir até 30 toneladas da planta por hectare e causa elevados prejuízos para a cultura canavieira, está pronto para ser produzido industrialmente. O bioinseticida, que pode se tornar um aliado no aumento da produtividade de álcool combustível, foi desenvolvido no Instituto Biológico, unidade de Campinas, interior paulista, com base em milimétricos vermes chamados nematóides, que, ao serem pulverizados no solo, saem em busca do bicudo. Essa caçada ocorre porque os nematóides possuem receptores químicos na região cefálica capazes de localizar o inseto hospedeiro pela detecção de produtos de excreção liberados no ambiente e pela percepção de variações de temperatura e de níveis de gás carbônico que ocorrem quando os dois organismos se aproximam. Assim que encontram o alvo, eles penetram pelas aberturas naturais do inseto e liberam uma bactéria que carregam no intestino, responsável por provocar septicemia e a morte do bicudo em 48 horas. Após a morte do bicudo, os nematóides passam a se alimentar da própria bactéria e a se reproduzir dentro do inseto. Esse cenário perdura por até três gerações do nematóide dentro do inseto, quando começam a faltar alimento e os nutrientes necessários para dar continuidade ao ciclo vital. Nesse ponto, os vermes sofrem um estímulo e são convertidos em juvenis infectivos, fase em que armazenam a bactéria no intestino e estão prontos para sair em busca de novos bicudos. Os nematóides são chamados de entomopatogênicos porque vivem uma relação simbiótica com bactérias patogênicas aos insetos. Nessa associação, o nematóide atua como vetor da bactéria, que, por sua vez, fornece alimento ao minúsculo verme. Adotada em mais de dez países, a técnica de controle biológico com nematóides foi adaptada à realidade brasileira por um grupo de pesquisadores do Instituto Biológico,vinculado à Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo.
“Dependendo da espécie, os nematóides variam de comportamento. Existem grupos que ficam mais na superfície do solo e agem contra insetos de maior mobilidade e outros que atacam insetos subterrâneos, de pouca mobilidade”, diz o engenheiro agrônomo e entomologista Luis Garrigós Leite, do Centro Experimental Central do Instituto Biológico, que deu início às pesquisas com nematóides e é o responsável pelo projeto. A pesquisa, que começou em 2000 no Laboratório de Controle Biológico,recebeu em 2003 o apoio da FAPESP na modalidade Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe). A empresa parceira é a Bio Controle, de São Paulo, que atua no mercado de produtos para monitoramento e controle de pragas. Inicialmente, os sócios da empresa queriam importar os nematóides industrializados da Inglaterra,alternativa que se mostrou inviável porque o preço de venda no Brasil ficaria em cerca de US$ 200,00 o hectare. Além disso, não havia garantia de que o produto importado seria eficiente para combater as pragas nacionais. Quando os sócios da Bio Controle souberam que uma pesquisa sobre o tema estava em andamento, eles procuraram os pesquisadores responsáveis. Pragas de solo – O resultado foi a realização do
projeto em parceria.“Na primeira fase, mostramos que era possível produzir os nematóides em escala industrial, e na segunda começamos a trabalhar na produção e formulação”, diz Leite. Após a seleção de nematóides e a avaliação do mercado potencial para o produto, a escolha recaiu principalmente sobre pragas de solo que atacam a cana. “Devido à expansão da cultura e à colheita com máquinas, decorrente da proibição das queimadas, existem hoje mais de cinco pragas consideradas de solo que provocam prejuízos à cultura da cana”, diz Leite. Na colheita mecanizada, a máquina corta a cana no campo e pica a palha, que é jogada no solo, formando uma espessa cobertura. O excesso de palha resulta em um ambiente úmido e protegido, propício para a proliferação de pragas como o biPESQUISA FAPESP 135
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INSTITUTO BIOLÓGICO
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Produção de nematóides dos gêneros Heterorhabditis e Steinernema em esponjas e preparados para uso no campo
cudo da cana. O inseto, que hoje é encontrado em mais de 40 municípios ao redor de Piracicaba, no interior paulista, em 1989 estava distribuído em 14 municípios da mesma região. O combate feito com inseticidas químicos não tem impedido um aumento nas populações da praga. “O gasto com o produto químico é de pelo menos R$ 180,00 para 1 hectare”, diz Leite. Inicialmente, o bioinseticida deverá custar cerca de R$ 70,00 a dosagem por hectare, porém o preço real está estimado em torno de R$ 100,00. O processo de obtenção dos nematóides em escala começa com a multiplicação das bactérias de que se alimentam em meio apropriado à base de fígado bovino. Em seguida é preciso sincronizar a cultura da bactéria com a dos nematóides, uma etapa importante no processo. O nematóide, em concentração adequada, é inoculado na cultura da bactéria embebida em esponjas de poliuretano, material poroso que oferece suporte biológico e oxigenação ideal para a reprodução dos organismos. As etapas seguintes do processo são a colheita e a formulação, que deve ser capaz de manter os nematóides no estágio juvenil em um estado de quase hibernação, até o momento de serem pulverizados nas plantações. A formulação é feita em forma de pó molhável ou gel para serem diluídos em água. Nematóide agressivo – A seleção do ne-
matóide para controle do bicudo teve a colaboração do Centro Tecnológico Canavieiro (CTC), de Piracicaba. “Encontramos um nematóide bastante agressivo para o bicudo, que ataca não só a larva, mas também o adulto”, diz Leite. Em doses relativamente baixas de nematóides por hectare, em comparação com a maio72
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ria das dosagens recomendadas nos Estados Unidos e na Europa, foram mortas mais de 70% das larvas do inseto, que comem especialmente o rizoma da planta, e pelo menos 25% dos adultos. A seleção começou com a coleta de solos infestados de nematóides, levados para o laboratório. Hoje o projeto dispõe de um banco de nematóides com mais de 30 isolados dos gêneros Steinernema e Heterorhabditis. “Uma espécie pertencente ao gênero Steinernema foi selecionada e avaliada em três testes de campo realizados nas usinas São João, em Araras, e Costa Pinto, em Piracicaba, apresentando resultados semelhantes ao inseticida químico mais utilizado atualmente para combater o bicudo”, diz Leite. Nos testes ficou comprovado que nas áreas onde os nematóides foram jogados houve um ganho de produção de até 17 toneladas de cana em comparação com as que não receberam nada e, portanto, ficaram suscetíveis ao ataque dos insetos.
O PROJETO Avaliação de metodologias e técnicas para a produção industrial de nematóides entomopatogênicos e estudo de mercado para a comercialização desses agentes MODALIDADE
Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe) COORDENADORA
CARMEN MARIA AMBRÓS GINARTE – Bio Controle INVESTIMENTO
R$ 332.188,65 (FAPESP)
Os pesquisadores acreditam que a aplicação dos nematóides no campo deve promover, ao longo do tempo, um equilíbrio na população do inseto.“Eles têm persistência boa no solo de um ano para o outro”, diz a bióloga Carmen Maria Ambrós Ginarte, coordenadora do projeto Pipe. Para avaliar a persistência do nematóide e o efeito ao longo de quatro anos de aplicação anual a partir do plantio outros testes estão sendo realizados.“Queremos comparar os resultados do controle biológico em relação ao químico para saber qual o aumento de produção e quanto se evita de danos aos canaviais”, diz Carmen Maria. O Grupo Dedini, produtor de açúcar e álcool e de equipamentos para a indústria sucroalcooleira, com sede em Piracicaba, é parceiro nessa iniciativa. “Eles querem uma avaliação em áreas tratadas e não tratadas com nematóides, em escala semicomercial”, diz Leite. Os testes foram feitos em 50 hectares e agora serão expandidos para mais 50 hectares em canaviais da usina Iracema, em Iracemápolis. Além disso, ensaios para avaliar a eficácia dos nematóides em outras pragas estão em andamento. Um deles estuda a ação do Heterorhabditis contra larvas de Bradysia, mosca de cerca de 2 milímetros considerada praga para os viveiros de plantas ornamentais. A forma adulta não causa problemas. Mas quando as larvas eclodem dos ovos depositados pelas moscas elas atacam o sistema radicular dos vegetais, resultando em danos a plantas em fase de crescimento. Em testes de laboratório, uma espécie selecionada desse nematóide causou mais de 70% de mortalidade de larvas mais pupas do inseto. ■
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> QUÍMICA
Tinta inteligente Pesquisadores usam a nanotecnologia para criar pigmento que muda de cor INSTITUTO DE QUÍMICA/USP
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m pigmento que possui a curiosa característica de mudar de cor após ser exposto à luz de um laser foi desenvolvido por pesquisadores do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP).A pesquisa ficou com o primeiro lugar do Prêmio Abrafati-Petrobras de Ciência em Tintas 2006,o mais importante do setor,entregue pela Associação Brasileira dos Fabricantes de Tintas em parceria com a Petrobras Distribuidora.A substância,desenvolvida com tecnologia em escala nanométrica (1 nanômetro é igual a 1 milímetro dividido por 1 milhão),é constituída por nanopartículas de ouro depositadas sobre hidrotalcitas – um pó branco formado por hidróxido de magnésio e alumínio,com estrutura em forma de pequenas lâminas. As nanopartículas de ouro,quando suspensas em água,formam soluções avermelhadas.Essa coloração resulta da interação da luz com os elétrons da superfície das nanopartículas,que se movimentam como ondas.Quando as nanopartículas se aproximam,ocorre uma espécie de interferência entre as ondas,dando origem a uma coloração violeta.Isso permite que elas sejam usadas como sensores químicos e biológicos pela modificação de suas superfícies,de forma que possam sinalizar a presença de moléculas e anticorpos por meio da mudança de cor. No pigmento desenvolvido,em condição ambiente as nanopartículas de ouro se depositam sobre as bordas das lâminas e interagem mutuamente,dando origem a uma coloração violeta-azulada. Quando o pigmento é aquecido,a coloração muda gradualmente para o vermelho,indicando a formação de nanopartículas isoladas.A mudança de cor também pode ser induzida por um laser,que aquece o pigmento de cor azulada,provocando a fusão das nanopartículas de ouro.O trabalho,desenvolvido pelo gru-
Pigmento feito com nanopartículas de ouro muda gradualmente de cor à medida que é aquecido
po liderado pelo professor Henrique Eisi Toma,teve como ponto de partida a dissertação de mestrado de Leonardo da Silva Bonifácio,que,após a conclusão da pesquisa,foi trabalhar na Universidade de Toronto,no Canadá. Ainda serão necessários vários testes para medir a variação de resposta do pigmento de acordo com o laser utilizado e o meio material em que ele será empregado.Antes de pensar na comercialização do produto,Toma explica que ele poderá ser utilizado para vários fins tecnológicos e nada impede que seja aplicado em tintas de parede. No entanto, o mais provável é que a tinta feita à base de ouro tenha uso mais restrito a obras de arte ou outros objetos cuja pintura precise durar por mais tempo.É que o ouro tem natureza inorgânica,resiste a altas temperaturas – suporta até 900°C –,não se desgasta nem perde o brilho com facilidade.Em comparação com os corantes orgânicos e outros pigmentos feitos à base de sulfetos de cádmio,que são substâncias tóxicas e apresentam risco cancerígeno,a invenção oferece a vantagem de não causar riscos ao organismo humano.Além disso,a preparação do pigmento é feita em água,sem solventes químicos e,portanto,lixo residual que possa agredir o ambiente. Apesar da contribuição da descoberta para o setor de tintas,a grande novidade,na avaliação de Toma,ainda está por vir.“Esse foi apenas o primeiro passo.Por meio da nanotecnologia,que permite o controle molecular das substâncias,é possível a construção de um ‘pigmento inteligente’com as mais diversas utilidades”,diz.Para dar continuidade à pesquisa,ele já pensa na possibilidade de criar um pigmento capaz de absorver a luz do sol e convertê-la em energia elétrica ou utilizá-la para decompor moléculas de sujeira. ■
I RACEMA C ORSO PESQUISA FAPESP 135
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ENGENHARIA AEROESPACIAL
Vento hipersônico Túnel vai testar aeronaves muito mais rápidas que a velocidade do som M ARCOS
DE
O LIVEIRA
Pulso de ar produz camada de plasma na superfície do modelo de satélite
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ós nem percebemos, mas quando viajamos em aviões fabricados pela Boeing, Airbus ou Embraer, que equipam grande parte das companhias aéreas do mundo, voamos, na média, a 800 quilômetros por hora (km/h). A velocidade só é superada pelo Concorde, avião supersônico comercial aposentado em 2003 depois de ter voado desde 1976. Ele ultrapassava a velocidade do som, voando a 2.170 km/h. Atualmente apenas aviões militares de caça voam em condições supersônicas. Mas a evolução tecnológica dos aviões ou ainda aeronaves híbridas, que poderiam tanto voar na atmosfera como fora dela, não abandona as altas velocidades. A pesquisa tecnológica atual busca a elaboração de aeronaves muito mais rápidas, mais econômicas e confortáveis, além de emitirem menos poluentes. No Brasil, um importante instrumento para esse tipo de pesquisa – um túnel de vento hipersônico – já está em testes na sede do Instituto de Estudos Avançados (IEAv) do Comando-Geral de Tecnologia Aeroespacial (CTA), ligado à Força Aérea Brasileira, na cidade paulista de São José dos Campos. Inaugurado em dezembro de 2006, o túnel possui também outras funções, como testar cápsulas de satélites que vão passar por uma futura reentrada na atmosfera terrestre, em que altas velocidades e temperaturas elevadas agem sobre esses equipamentos. Dentro da câmara de análise do túnel batizado de T3 já estão instaladas réplicas das cápsulas do microssatélite Sara, sigla de satélite de reentrada atmosférica, uma plataforma reutilizável que está em estudo pela Agência Espacial Brasileira. O túnel de vento hipersônico do IEAv não funciona com fluxo contínuo de corrente de ar como em túneis usados para testar aviões, automóveis ou edificações. Esse tipo de túnel trabalha de forma pulsada. “O teste é um pulso de ar em altíssima velocidade com duração de 100 microssegundos a 10 milésimos de segundo”, explica o engenheiro mecânico Paulo Toro, pesquisador da Divisão de Aerotermodinâmica e Hipersônica do IEAv. Por meio de uma filmadora de alta velocidade capaz de tirar 2 milhões de quadros em um segundo é possível ver o exato momento em que uma camada de plasma se forma como resultado do pulso de ar e da sua alta
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temperatura (cerca de 2.000°C) em volta da réplica da cápsula do satélite. “Essa camada é chamada de onda de choque, resultante do escoamento hipersônico de ar atmosférico em interação com a superfície do modelo na seção de teste do túnel”, diz Toro. O pulso é produzido num sistema de armazenamento que alterna mecanismos de alta e baixa pressão (veja gráfico abaixo) que libera o ar em altíssima velocidade sobre um protótipo instalado na câmara de teste do túnel. O movimento do ar é hipersônico porque representa, no mínimo, cinco vezes a velocidade do som, que é de cerca de 1.155 km/h no nível do mar. O máximo de velocidade é de cerca de 25 mil km/h, equivalente ao Mach 25, medida usada para identificar a velocidade de aeronaves em vôo. Como comparação, o Concorde atinge Mach 2. Tais velocidades altíssimas estão relacionadas aos satélites e naves espaciais quando da reentrada na atmosfera e também a aeronaves do futuro que devem utilizar diferentes tipos de combustão para se viabilizar. Um exemplo dessas tecnologias aconteceu em 2004, quando a agência espacial americana, a Nasa, manteve no ar por 10 segundos um protótipo de avião que viajou à velocidade Mach 10, algo como 11,5 mil km/h. O sistema de propulsão dessa aeronave, chamada de X-43, funciona de modo diferente das tradicionais turbinas de avião a jato. Ne-
O PROJETO Investigação experimental preliminar em combustão supersônica MODALIDADE
Linha Regular de Auxílio a Pesquisa COORDENADOR
PAULO TORO – IEAv-CTA INVESTIMENTO
R$ 1.755.353,81 e US$ 235.000,00 (FAPESP)
ssas, o ar é puxado para o interior do aparelho e faz mover as pás que jogam o ar numa câmara onde é injetado combustível, produzindo uma combustão e a conseqüente exaustão de ar quente pela parte traseira do equipamento, resultando no impulso da aeronave. No sistema scramjet, sigla em inglês para combustão a jato supersônica, usado pelo X-43, que foi lançado de um avião, a idéia é não ter partes móveis como pás. No scramjet, o ar é comprimido pela própria geometria e velocidade do veículo e é direcionado para uma câmara na parte inferior do avião, onde também é pulverizado gás hidrogênio, que provoca a combustão e acelera a aeronave. Esse sistema de combustão deverá ser testa-
Pressão no túnel
do dentro do T3 ainda este ano, em testes preliminares, com um modelo desenvolvido no Brasil pelo IEAv.“Será o 14-X em uma homenagem ao 14-Bis do SantosDumont”, diz o tenente-coronel Marco Antônio Sala Minucci, um dos idealizadores do T3 e dos túneis hipersônicos anteriores, T2 e T1, de menor tamanho. O 14-X terá cerca de 1,5 metro de comprimento e 80 centímetros de largura.A previsão é que seu lançamento aconteça de um foguete brasileiro em 2010. Outra possibilidade de estudo a ser iniciada ainda neste ano é a combustão supersônica assistida por laser.“Com o laser também poderemos testar no T3 a propulsão para naves espaciais e possíveis nanossatélites, no futuro. Para isso fizemos um acordo com o Laboratório de Pesquisas da Força Aérea norte-americana (AFRL na sigla em inglês) que vai nos ceder duas fontes de radiação laser para desenvolvermos nossas pesquisas na forma de parceria”, diz Sala. Todos os experimentos que envolvem laser na combustão e na propulsão estão ainda no começo, inclusive nos Estados Unidos, e, se forem viáveis, não serão comerciais nos próximos 20 a 50 anos.Assim, o T3 será fundamental para esses experimentos.O equipamento foi totalmente desenvolvido no IEAv e contou com financiamento da FAPESP.A fabricação do túnel envolveu quatro indústrias do interior paulista e sul do Brasil, entre metalúrgicas e caldeirarias. ■
3 Antes da câmara de testes, que é mantida em vácuo, um diafragma de plástico é rompido e o pulso de ar atinge as réplicas de aeronaves e satélites
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O tubo mais largo é um reservatório de gás hélio em alta pressão. A força dessa pressão rompe um diafragma de aço carbono que separa os dois tubos
Nesse tubo, existe um gás similar ao ar atmosférico em baixas altitudes que recebe o choque do ar de alta pressão e é levado para a câmara de testes
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IMAGENS IEAV
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Tanque de exaustão que recebe os gases usados no túnel PESQUISA FAPESP 135
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EDUARDO CESAR
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Garrafas plásticas têm decomposição lenta na natureza
PLÁSTICO
Decomposição
rápida Pesquisadores desenvolvem polímero reciclado feito com PET inofensivo ao ambiente
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m plástico biodegradável que se decompõe no solo em apenas 45 dias foi criado por pesquisadores brasileiros e franceses a partir de embalagens pós-consumo de PET,um polímero fabricado a partir da resina poli(tereftalato de etileno).O segredo para o desenvolvimento do novo polímero foi utilizar em sua síntese um outro tipo de plástico,no caso um poliéster alifático (um tipo de polímero com cadeias abertas de moléculas),para acelerar o processo de degradação.Por causa de sua estrutura molecular,composta por anéis aromáticos – formados por seis átomos de carbono e seis átomos de hidrôgenio em uma disposição especial de ligações simples e duplas que se alternam –,o PET é considerado um polímero não biodegradável,o que significa que,em condições ambientais de pH,pressão e temperatura,ele não se decompõe na natureza.Já os poliésteres alifáticos são facilmente consumidos pelos microorganismos presentes no solo.“Ao misturar os dois,conseguimos formular um produto altamente biodegradável”,conta a química e coautora do trabalho Ana Paula Testa Pezzin,do Laboratório de Biotecnologia da Universidade
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da Região de Joinville (Univille), de Santa Catarina – as outras instituições envolvidas no estudo são a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e a Universidade Pierre e Marie Curie, de Paris. Diversos produtos poderão ser fabricados a partir do novo plástico biodegradável, dependendo de suas propriedades (resistência mecânica, térmica, porosidade etc.), que variam conforme o teor de PET e de poliéster alifático utilizado em sua preparação. “As aplicações desse novo material não serão tão nobres quanto as do PET virgem, já que, ao ser reciclado, ele tem uma perda de suas propriedades originais. Imaginamos que seu uso será maior em produtos de rápido descarte, como plásticos para mudas de plantas, cabos de escovas de dente, cartões telefônicos e embalagens para cosméticos, entre outros”, afirma a pesquisadora. Segundo Ana Paula, um fabricante nacional de PET já manifestou interesse em utilizar o processo em larga escala, mas as negociações ainda estão em andamento e a empresa prefere não ser identificada. O trabalho, intitulado “Reciclagem química de embalagens PET pós-consumo: síntese de novos copolímeros”, ganhou, no final de 2006, o Prêmio EcoPET de Incentivo à Reciclagem, na categoria pesquisas e processos inovadores, organizado pela Associação Brasileira da Indústria do PET (Abipet). O objetivo do concurso é reconhecer boas idéias e iniciativas em prol da reciclagem, necessárias para reduzir o impacto na natureza provocado pela grande quantidade de PET descartada. O Brasil, por exemplo, fabrica anualmente por volta de 374 mil toneladas de produtos, embalagens e garrafas plásticas do tipo PET, e somente 47% desse total é reciclado. O restante se acumula em aterros sanitários, lixões, rios e lagos, onde leva um século ou mais até desaparecer completamente. Melhores resultados - A equipe testou três tipos diferentes de poliésteres alifáticos (PTS, PES e PEA), conhecidos por ser altamente biodegradáveis. O copolímero feito com a mistura de PET e PTS, sigla para poli(sebacato de trimetileno), foi o que mostrou os melhores resultados. Antes dele, os pesquisadores já haviam sintetizado um polímero com PET e poliéster PEA – ou poli(adipato
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de etileno) –, que começou a biodegradação em solo em sete meses, um período de tempo bem menor do que os cem anos do PET isolado. A biodegradabilidade dos copolímeros formados por PET e PTS, assim como dos outros dois, depende em grande medida da composição e do catalisador utilizados. “Após 45 dias no solo, amostras com apenas 20% de poliéster alifático encontraramse no início do estágio de degradação, enquanto as com 40% já mostraram intensa deterioração. O aumento de teor de PTS foi um fator determinante para UNIVILLE
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Microscopia eletrônica mostra polímero PET-PTS sem biodegradação (acima) e após 45 dias no solo
a aceleração da biodegradabilidade”, afirma a química da Univille. O processo de síntese do polímero biodegradável é relativamente simples e ocorre por meio de uma reação normal de polimerização. As garrafas e produtos de PET são lavados, cortados e colocados juntamente com frações do poliéster alifático selecionado em um reator de vidro de 500 mililitros sob atmosfera inerte de nitrogênio, alta temperatura e agitação mecânica. Em seguida, os pesquisadores adicionam um agente catalisador. “O plástico resultante dessa reação química possui propriedades mecânicas, térmicas e de biodegradação diferentes daquelas do PET”, explica a química Sandra Einloft, diretora da Faculdade de Química da PUC do Rio Grande do Sul, que ficou responsável pelos estudos relacionados à síntese química do polímero. Para comprovar a excelente decomposição do novo material, os autores do estudo realizaram diversos ensaios de biodegradação, em que os copolímeros foram enterrados por tempo indeterminado no fundo de recipientes apropriados, chamados béqueres, contendo solo envelhecido e umidade entre 85% e 95%. De tempos em tempos, as amostras eram retiradas para análise morfológica. Essa caracterização foi realizada com emprego de microscópio eletrônico de varredura (MEV) e por várias outras técnicas, como calorimetria diferencial exploratória, análise termogravimétrica e cromatografia de permeação em gel, entre outros. Segundo as pesquisadoras, o processo não foi patenteado porque o objetivo principal do grupo era tentar mostrar que existem soluções para o problema de acúmulo de embalagens PET em aterros e lixões.“Além disso, temos também interesse acadêmico em formar recursos humanos com conhecimento sobre o assunto e, ao mesmo tempo, queremos entender essas reações e como a composição dos copolímeros influencia suas propriedades e biodegradabilidade”, diz Ana Paula Pezzin. Várias dissertações de mestrado na PUC-RS e uma na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) tiveram como tema a síntese de copolímeros a partir da reciclagem química de PET pós-consumo. ■
Y URI VASCONCELOS PESQUISA FAPESP 135
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É O M A I O R JO R N A L D O PA ÍS . L E VA N D O O M U N D O D A S A R T E S PA R A V O C Ê .
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LITERATURA
O que é a vida sem dragões?
Último livro da série Harry Potter é um bom motivo para
discutir o desejo atual por encantamento |
C A R LO S H A AG
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HUMANIDADES
IMAGENS DIVULGAÇÃO
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eu na Nature (agosto-setembro de 2005): “A leitura de Harry Potter e o enigma do príncipe, de J.K. Rowling, sugere que a bruxaria é uma habilidade herdada dentro de padrões mendelianos, com o gene ‘bruxo’ (W) recessivo ao gene ‘trouxa’ (M). Daí que todos os bruxos têm, portanto, duas cópias do gene ‘bruxo’”, escreveram três pesquisadores do Chromosome Research do Royal Childrens Hospital (“Harry Potter and the recessive allele”). Na edição seguinte, outro grupo de cientistas, dessa vez da Universidade de Cambridge, usando um bom trocadilho, retrucou a hipótese em “Harry Potter and the prisioner of presumption”: “Pelo raciocínio exposto, Hermione, uma bruxa nascida de ‘trouxas’, precisaria ter pais WM. Mas, como sabemos, esses são dentistas e trouxas, sem nenhum histórico de bruxaria familiar. A hipótese de que a bruxaria seja hereditária, portanto, não se sustenta”. Você pode até se dar ao luxo de não entender a discussão genética, mas se não conhece Harry Potter, Hermione e não sabe qual a diferença entre bruxos e trouxas, considere-se, respeitosamente, um alienado. Uma pesquisa no Google revela 160 milhões de referências ao bruxinho de Hogwarts, em todas as línguas possíveis, de fãs ardorosos a críticos milenaristas, para quem Harry ensinaria magia negra às crianças. Sem falar nos artigos em revistas especializadas, nos quais acadêmicos distintos dissecam os mais variados aspectos da criação de Rowling, cujo sétimo e último volume sairá agora em julho, com as habituais filas quilométricas de espera noite adentro na
porta das livrarias. “Será que 35 milhões de leitores podem estar errados? Sim”, afirmou o crítico literário Harold Bloom, que se dignou a abandonar o cânone ocidental para massacrar o professor Dumbledore e seus pupilos, num artigo polêmico que, infelizmente, será talvez mais “lembrado” no futuro do que os seus muitos estudos eruditos sobre Shakespeare e Cervantes. Mais: uma pesquisa feita pelo jornal Folha de S.Paulo revelou que, embora destinados ao público infanto-juvenil, os livros da série estavam sendo lidos por “quatro em cada cinco entrevistados com mais de 25 anos”. Os mesmos resultados já tinham sido obtidos no exterior. “Adultos: não continuem fugindo da vida”, sapecou um crítico inglês no The Independent. “Há porém razões de sobra para compreender isso. Vivemos imersos durante um longo período na mais profunda hegemonia da racionalidade iluminista. Não que o mito e a magia tenham deixado de coexistir; persistiram latentes, às margens da razão. Mas talvez essa não esteja mais dando conta de explicar a contemporaneidade; houve necessidade, portanto, que fossem buscados outros instrumentos e repertórios capazes de enfrentar o desafio da (in)compreensão”, observa a antropóloga Silvia Helena Borelli, que acaba de defender tese de livre-docência na PUC-SP sobre o tema “Harry Potter: campo literário e mercado, livros e matrizes culturais”. Estaríamos hoje em busca do tempo perdido das maravilhas? A partir de Adorno, a pesquisadora nos lembra do encontro de Ulisses e as sereias, na Odisséia, de Homero. “Entre mito e ra-
zão, ele encara o supremo desafio: perder-se no passado mítico (responder ao chamado das sereias) ou acionar as teias da razão e, com elas, prender-se ao mastro, ouvir o canto, deleitar-se com ele, mas seguir em frente?”A contragosto, ele foi. Para Silvia, com esse gesto de ir adiante Ulisses se torna um ser moderno, posicionado ambiguamente, de costas para o mito e de cara para a razão, sabedor de que, se não estivesse de mãos atadas, não resistiria ao chamado das belas moças aquáticas. “Não há como negar que estamos vivendo um momento propício à volta do maravilhoso, do qual a volta das fadas e da magia é apenas um sintoma”, pondera a pesquisadora do Departamento de Letras da Universidade de São Paulo (USP) Nelly Novaes Coelho, autora de O conto de fadas. “Estamos tentando re-encantar a vida”, concorda Marisa Lajolo, professora de literatura na Universidade Estadual de Campinas. Onde o bruxinho de óculos entra nessa história? “Há algo mais, que faz de Potter o herói do momento: as circunstâncias que o levam a lutar contra o malvado Voldemort. O órfão se transforma assim em vingador de seus pais e salvador do mundo. Ou seja, ele encarna um paradoxo: é livre para realizar exatamente os sonhos mais ambiciosos de seus pais. Que liberdade é essa? A contradição faz de Harry um compêndio da glória, das dores e das ilusões de nossa subjetividade contemporânea”, escreveu, na sua coluna o psicanalista Contardo Calligaris. Mas como interpretar então os 35 milhões “errados” segundo Bloom? “É melhor tentar entender o gosto dos leitores em vez de avaliar se o gosto
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alheio está certo ou errado. Mas a atitude de Bloom não é nova: a crítica literária quase nunca aprova obras de grande circulação. É um policiamento: se todos gostam, não é bom. Basta lembrar no Brasil os casos de Jorge Amado e Erico Verissimo, de público fiel e maltratados pela crítica”, observa Marisa. A literatura infantil e infanto-juvenil padece de um preconceito duplicado com essa mesma crítica. “A fantasia é componente indispensável do texto dirigido à infância e, por isso, ela parece banir dos livros o realismo. O resultado disso é mais uma comprovação do desprestígio da literatura infantil”, observa a professora de literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Regina Zilberman, em seu livro A literatura infantil na escola. Segundo a pesquisadora, a fantasia é importante subsídio para a compreensão do mundo pela criança. “Ela ocupa as lacunas que o indivíduo tem durante a infância, devido ao desconhecimento do real, e ajuda-o a ordenar suas novas experiências. A fantasia também pode tomar a configuração do sonho enquanto desejo insatisfeito. É essa significação que o ente maravilhoso, presente no conto de fadas, pode corporificar: representará o adulto onipotente, aliado e bom, que soluciona o problema maior do herói”, avalia. Historicamente porém, na passagem do relato folclórico à literatura infantil, perdeu-se, nota Regina, o conteúdo de rebeldia: o herói se sujeita à dominação do adulto.“Pomo de ouro” para Harry. “Nos livros de Rowling, para salvar um inocente temos o direito e o dever de transgredir as leis. O direito à desobediência é amplamente justificado em várias situações da série. Harry, muitas vezes, só consegue se salvar e triunfar sobre as forças do mal por causa de sua audácia e capacidade transgressora”, observa Isabelle Smadja, pesquisadora da Universidade de Nancy, em Harry Potter: as razões do sucesso. “Embora ela mantenha a necessária luta entre bem e mal, estamos longe das ficções de baixo nível de hoje dirigidas às crianças, nas quais, para dar curso a uma violência por vezes cruel, se cria o pretexto faccioso de que os ‘bons’ devem lutar contra os ‘maus’ e que, por isso, podem matar e torturar.”Antes porém de avançarmos até Hogwarts e a literatura fantástica, precisamos voltar a um passado bem real: a discussão do mi82
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to, que remonta a Platão, para quem os futuros cidadãos da República ideal deveriam iniciar sua educação com mitos, e não com ensinamentos e fatos racionais. Por uma ironia vocabular, a palavra conto vem do latim computare, ou seja, relacionar, contar fatos.
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literatura infantil nasceu muito mais tarde, assim como o próprio conceito de criança, uma invenção da modernidade. Entre 1690 e 1697, o francês Charles Perrault escreveu as primeiras obras do gênero. “Sua descoberta teve um duplo intuito: provar a equivalência de valores e sabedorias entre antigos greco-latinos e os contemporâneos franceses e divertir as crianças, em especial as meninas, orientando sua formação moral”, explica Nelly. Depois dele vieram La Fontaine, que usava animais para poder criticar a sociedade de seu tempo à vontade; os irmãos Grimm, no século XVIII, com seu trabalho seriíssimo de recuperação das raízes folclóricas germânicas por meio da pesquisa em campo das histórias populares; e, no século XIX, Andersen, que, observa Nelly, “sintonizado com os ideais românticos, foi a grande voz a falar para as crianças, transmitindo-lhes o ideal religioso que vê a vida como um ‘vale de lágrimas’ que temos que atravessar para chegar ao céu; daí seus contos plenos de realidade cotidiana, em que imperam a injustiça social e o egoísmo”. Mas em bosque onde há fadas há analistas de contos. O mais conhecido deles foi o psicanalista Bruno Bettelheim, que, em seus estudos, afirma que as fantasias “invadem a subjetividade da criança literalmente, por meio da leitura, reproduzindo os confrontos entre ela e a realidade adulta”. Nem todos concordam. Um especialista em literatura infantil, o professor da Universidade de Minnesota Jack Zipes não vê o elemento maravilhoso como uma forma de enganar o jovem leitor, podendo, ao contrário, esclarecer pontos obscuros da vida para ele. Todos estão de acordo, observa Roberto Whitaker, autor de Os filhos de Lobato, que “as histórias infantis atendem à necessidade de fantasia, apresentando um universo organizado, em que a fantasia pode ser reveladora de conflitos de outra forma inexprimíveis, contribuindo assim para o alívio das tensões existentes no interior da criança”. O próprio autor de O senhor dos anéis,
J.R. Tolkien, entendia o fantástico dessa forma e insistia que, nesse jogo de irrealidades, o que interessava efetivamente à criança era descobrir o “lado bom” e o “lado mau”. “O conto de fadas tem um papel libertador, mesmo quando propõe soluções doutrinárias e moralizantes, refletindo um processo de luta contra todos os tipos de restrição e autoritarismo, ao mesmo tempo apresentando possibilidades concretas de realização de uma utopia”, lembra Whitaker. De volta a Hogwarts. Longe do horror de Bloom, que chamou a série de “colcha de retalhos de velhos clichês”, J.K. Rowling parece ter conseguido criar, na avaliação de Isabelle, “um conto de fadas moderno, que concilia modernidade e imaginário, pondo em acordo o espírito de uma época e o caráter primitivo dos desejos”. “Herdeira” do baú milenar de histórias fantásticas, a “mãe” de Potter transformouse, nota Silvia Borelli, “em portadora de um conjunto de referências universais, configuradas por intermédio de matrizes culturais tradicionais, que retomam temas fundadores, o que permite que suas histórias rompam barreiras das particularidades culturais e construa repertórios compartilhados com leitores de diferentes etnias, religiões, classes sociais, gêneros e gerações”. Segundo a pesquisadora, é importante notar que, nos livros da série, “os personagens são híbridos: bruxos são tão humanos que ‘se esquecem’ de que são bruxos; os cenários são comuns, a trama se desenrola baseada em problemas, comportamentos e atitudes consonantes com as experiências juvenis, acionando fortes mecanismos de projeção e identificação”. E onde fica a magia? “Um dos pontos altos da série é exatamente a presença do prosaico e do cotidiano em meio à mais feérica imaginação. Creio que a rotina escolar, com professores, tarefas, a necessidade do aprendizado da magia com estudo árduo, tudo isso dá ao livro a verossimilhança necessária para ancorar a imaginação”, avalia Marisa Lajolo. A escola tem, aliás, um significado bem particular. “Os jovens acompanham os personagens naquele que talvez seja um dos últimos ritos de passagem de nossa sociedade: a entrada num colégio com professores diferentes para cada matéria, cheio de regras e tradições”, afirma o psicanalista
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Renato Mezan, professor do Departamento de Psicologia da PUC-SP. “Do ponto de vista psicanalítico, os livros de Rowling tratam de problemas de origem, que interessam tanto aos jovens como às crianças que permanecem nos adultos, algo que Freud descobriu já em 1890. É notável como a autora lida com essa investigação e essa apropriação das origens por Potter.” Mezan ressalta que os livros, de quebra, discutem temas polêmicos atuais na era da globalização, como o racismo, as diferenças sociais, o preconceito, o problema das migrações, tudo escondido sob o manto da fantasia. “Basta ver a luta de Hermione para acabar com a servidão dos elfos ou os problemas financeiros de Rony.”
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reud leria Potter com prazer? “Creio que sim, pois ele adorava mundos maravilhosos. Era, aliás, um fã das aventuras de Tarzan. Há um ponto curioso na análise freudiana que é a questão da magia. Em Harry Potter, ao contrário de Totem e tabu, ela não se liga à onipotência do pensamento, mas é algo que tem de ser aprendido, um movimento que mostra valores como leitura, erudição, pesquisa como sendo importantes e bons. Hermione, por exemplo, salva muitas situações por causa de suas leituras. Apenas após muito trabalho é que se consegue, com disciplina e persistência, vencer o mal”, observa Mezan. Potter, apesar dessa novidade em relação aos contos do passado, ainda deve ser visto como um típico conto de fadas, diz Isabelle, “embora a autora tenha preferido trocar o disfarce da fada pela capa do mágico”. Segundo a professora francesa, ser bruxo em Hogwarts significa ser capaz de realizar boa parte de nossos desejos.“O universo da bruxaria conserva alguma coisa da infância, daquele período em que ainda não admitimos que nossos desejos talvez não possam se realizar.”O esforço, no entanto, é observado e entendido pelo leitor.“Faz parte do universo infantil a notável capacidade de realizar desejos e de viver no imaginário sem ficar pensando o tempo todo que ele é construído de sonhos e fantasias. Potter é uma obra para a juventude, porque o mundo da bruxaria é a metáfora do mundo da infância diante do mundo adulto.” Mezan concorda que, para os leitores adolescentes de Rowling, as questões éticas se colocam de forma clara e a magia
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acontece sem que ninguém acredite naquilo como verdade. A mágica é outra. “O público de Potter consegue extrair respostas sobre comportamentos do seu cotidiano de que têm dúvidas, aquele ‘não estou sozinho’, é mesmo difícil conquistar meninas etc.” Porém a presença “paterna” de Dumbledore não impede que ele deixe Harry correr riscos, pois isso é parte integrante de qualquer “romance de formação”, ainda mais, lembra Mezan, pelo caráter serializado dos livros, em que, a cada ano, os leitores crescem com os personagens. Tarefa não isenta de dor.“Para Rowling, a educação das crianças não cumpre mais, neste século XXI, as condições necessárias para a construção de uma personalidade rica e interessante. As atenções incessantes que se devotam às crianças podem mesmo perverter almas que nasceram boas”, avalia Isabelle.“A idéia do sofrimento necessário para forjar uma personalidade exemplar e para prevenir contra o orgulho que o sucesso engendra repousa numa moral rigorosa e numa crítica radical da nossa sociedade.” Potter precisa aprender sozinho.“Para a escritora, a moralidade e a dignidade são superiores à busca da felicidade; o valor de um indivíduo não se mede por seu sucesso, mas por sua vontade de se tornar digno da felicidade que vier a conquistar”, diz a pesquisadora, fazendo eco às idéias de Mezan sobre a persistência. Não basta para Harry, então, viver à custa dos louros da cicatriz que traz na
testa, símbolo de sua vitória sobre a maldade de Voldemort. Há muito trabalho e também uma boa dose de ambigüidade nesse caminho. “Harry e Voldemort têm muito em comum, são farinha do mesmo saco”, diz Mezan.“A juventude foi difícil para ambos.” No primeiro livro, quando o bruxo se senta sob o chapéu seletor, que avalia o perfil de cada jovem e o dirige a uma das várias casas de Hogwarts (todas com características bem definidas), Harry torce para não cair na mesma que fora a de Voldemort. O chapéu percebe e o encaminha para outra, embora reconheça que o bruxinho tenha ambições ocultas que o permitiriam ficar na antiga casa de seu inimigo.“A cicatriz é indicativa de que Harry traz, em si, a marca do mal. Há nele um elemento diabólico e que responde à angústia de toda criança diante de seu futuro e de sua ‘bondade’”, explica o psicanalista. Será sempre nas conversas finais entre Harry e Dumbledore, quando se estabelece a moral da história, que o bruxinho entenderá que “tudo na vida são escolhas”. “Há muita lógica e racionalidade construindo a narrativa em Harry Potter”, completa Silvia. Efetivamente, pela análise de Isabelle, Rowling criou um mundo mágico muito próximo do real, a ponto de fazer o mundo dos bruxos mais realista do que o dos “trouxas, caricatural e maniqueísta, ao contrário das sutilezas de Hogwarts”. A descoberta desse universo complexo para um garoto de 11 anos, continua a pesquisadora, simboliza a passagem para a idade adulta. Falando de magos, Rowling fala de nós mesmos, de nossos jovens. Para além do exotismo puro, reitera a professora, a magia tem uma função psicanalítica, a saber, enganar a censura do Eu, falando de um outro mundo que “não é o nosso”, mas é, em verdade, o nosso.“A série apela ao inconsciente do leitor e traz mesmo à luz a questão do complexo de Édipo, com a mãe que se sacrifica para salvar a vida do filho e os vários ‘pais’ substitutos que acompanharão o bruxinho até a sua última aventura.” Mas, acima de tudo, Harry ensina o jovem, de qualquer idade, a vencer o medo.“Diante do tamanho imponente das catástrofes, nos sentimos como crianças num mundo de adultos. Impressionados, amedrontados, sempre dominados. Ao nos mostrar que um órfão combate um lorde do mal com determinação, esses
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romances permitem ler o que perdemos, a esperança de ver na realidade: o combate de Davi contra Golias, ou nossa pequenez triunfando sobre os gigantes.”
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omo nas fábulas, fechemos o ciclo: de que forma a ciência da Nature e um bruxo de ficção se combinam? Inusitadamente pela magia.“As conquistas de Francis Bacon nos parecem a antítese da magia, mas apenas porque sabemos que a ciência venceu e a magia falhou. No tempo de Bacon isso era incerto. Se você retirar nosso conhecimento presente verá que Francis e os magos tinham grandes afinidades. Ele mesmo não negaria isso”, escreveu C.S. Lewis, autor de As crônicas de Nárnia, scholar britânico que, rival de Tolkien, adorava escrever fantasias para crianças.“Se você pensar bem, já vivemos num mundo de magia, cercados por aparelhos que são cientificamente construídos, mas que nós, leigos, ignoramos como eles são possíveis. Isso porém não nos basta. Voar de avião, por exemplo, não realiza o nosso sonho de voar, mas Peter Pan o faz, com certeza”, pondera Mezan. Ao mesmo tempo, nunca o mundo nos pareceu tão “desencantado”, para usar a expressão de Max Weber, para quem teria existido um tempo anterior ao “desencantamento”, no qual as pessoas “achavam que, por trás dos eventos e coisas reais, havia algo espiritual”. O “desencantamento” então seria a remoção desse “algo” e a redução de tudo a forças impessoais. “Para muitos, isso foi aná-
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logo à ‘queda’, à expulsão do paraíso mágico da mentalidade primitiva”, escreve Michael Ostling, do Centro de Estudos da Religião da Universidade de Toronto, Canadá, em Harry Potter and the disenchantment of the world. Foi, lembremos, esse “desencantamento” que gerou a modernidade, a ética protestante e o capitalismo. Harry Weber ou Max Potter? “O mundo mágico de Hogwarts é desencantado e pós-iluminista, pelo mesmo mecanismo causal que, diz Weber, explica sempre as transformações do mundo.” Para Ostling, a mágica de Rowling é uma questão de treino e estudo: uma pessoa vira bruxo aprendendo a ser um bruxo. A magia não é alcançada em nenhum tipo de ritual, mas lendo, praticando e fazendo provas orais e escritas. “Sempre que Harry e seus amigos praticam alguma mágica ‘supersticiosa’, como em Harry Potter e a câmara dos segredos, na luta contra a entidade que transforma os alunos em pedra, o fazem sem o consentimento dos seus instrutores, rompendo a hierarquia da escola.” Magia vira tecnologia. “É curioso que, na contramão disso, o inimigo de Harry,Voldemort, ganhe vida por meio de um ritual mágico totalmente diferente da magia tecnológica praticada em Hogwarts.” No livro Harry Potter e o cálice de fogo, o duelo entre os dois termina “empatado”, apesar do poder superior do senhor das trevas, apenas porque ambos têm, nas suas varinhas mágicas, penas da mesma fênix. “O milagre então se explica como uma
incompatibilidade de software, uma conseqüência previsível e explicável, como quer o mundo ‘desencantado’. Ele derrota o mal por causa de um bug no sistema”, brinca Ostling, que não pretende criticar a série de Rowling, mas explicá-la sob outro viés. “Potter sacia a nossa fome de encantamento, a nossa busca por algo além do real. Creio mesmo que Harry é popular porque sua mágica é desencantada, porque ele faz do extraordinário o ordinário e, logo, algo familiar, que não nos desafia ou amedronta”, avalia. Para o pesquisador, Potter deve ser lido não apenas como um texto literário, mas entendido como um fenômeno. “É a mercantilização do extraordinário como função da indústria cultural: atender ao mercado, simultaneamente, em sua vontade de surpresa e familiaridade”, explica. “O mundo desencantado de Potter pode ser um bom exemplo da interface entre consumo e expectativas: incitar o desejo pelo novo, pelo diferente, pelo maravilhoso e satisfazer esse desejo com mais do mesmo.” Para ele, os livros de Rowling não vão nos levar de volta a um passado encantado em que influências mágicas eram sentidas como reais, poderosas e presentes.“Em verdade eles são um lembrete de que tais tempos, se existiram, se foram para sempre.” Encantado ou não, a boa definição do universo de Harry Potter vem de seu amigo Rony Weasley: “A vida não teria graça sem alguns dragões”. Disso ninguém duvida. Nem os cientistas da Nature. ■
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O cidadão que cheirava a rei Perfis mostram Pedro II interessado mais na essência do que na aparência do poder
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uando um figurão da República afirmou que seu partido queria ficar 20 anos no poder (frase, aliás, repetida por outro figurão, hoje no poder), o Brasil arrepiou-se. Realmente, duas décadas de mando é demasiado. O Brasil, porém, já teve um governante que se manteve à frente do Estado por 49 anos, 3 meses e 22 dias. “Pela longevidade do governo e pelas transformações efetuadas em seu transcurso, nenhum outro chefe de Estado marcou mais profundamente a história do país”, afirma o historiador José Murilo de Carvalho, que acaba de lançar um perfil de dom Pedro II (1825-1891). A sua capacidade de se manter no cargo é, infelizmente, proporcional à ignorância, acadêmica e popular, que se tem sobre o seu reinado. Há alguns anos, quando ambos adornavam cédulas de dinheiro, era comum (ainda é), em face das barbas brancas do filho, quem visse em Pedro II o pai de Pedro I.
“No Brasil do século XXI, Pedro II está em toda parte e em parte alguma. Para a maioria, ele não foi um ser real, um governante cujas ações, para o bem ou para o mal, forjaram a nação moderna brasileira. Suas realizações e suas limitações foram totalmente esquecidas”, observa o brasilianista Roderick Barman, da Universidade de Columbia, autor de outro perfil do monarca, Citizen emperor (a ser traduzido, em 2008, pela Unesp), e que acaba de terminar Brazil: the Burdens of Nationhood, 1852-1910, estudo sobre o peso do Segundo Reinado na consolidação nacional.“A monarquia garantiu a unidade do país, que periclitou durante a Regência, quando governos rebeldes declararam a independência de três províncias. Ela foi uma escola de práticas políticas civilizadas, sobretudo se a compararmos com as repúblicas vizinhas. Mas foi muito lenta na introdução de políticas sociais, como a abolição da escravidão e da educação popular, e foi emperrada em algumas reformas políti-
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cas, como a descentralização política e a expansão do voto”, explica Carvalho. Quem foi seu idealizador? Nem “Pedro Banana”, epíteto criado pelos republicanos, nem o monarca iluminado, o bom velhinho, imagem cultivada por monarquistas de ontem e de hoje. Apesar disso, deixou marcas profundas. “Os sucessos de Pedro II, a criação de uma cultura política e de um ideal de cidadania, não apenas sobreviveram à sua queda, em 1889, como se mantiveram como normas e diretivas da vida pública nos regimes seguintes (a República Velha, a Era Vargas e a República Liberal). Mesmo o regime militar, de 1964, foi profundamente influenciado pela sua visão do Brasil como nação-Estado. Apenas nos anos 1980 é que isso foi deixado de lado”, diz Barman. Pedro II reinou, governou, administrou e mandou por cinco décadas.“Por conseqüência, sem a elite compreendendo/apreciando o que ele fazia, moldava pela prática diária e pelo exemplo as expectativas da elite e do povo sobre a conduta do chefe de Estado, o estilo do processo político brasileiro. Mesmo após a televisão, essas expectativas perduram. Quem duvida disso compare a aparência e o programa do Lula candidato em 1992 e o novo, de 2002 e 2006. O jovem radical transformou-se fac-símile do segundo imperador.” Estrangeiro - Barman nota uma incômoda insistência brasileira, com Pedro II e outros “monarcas” republicanos, de ressaltar que “ele não parece brasileiro, parece estrangeiro”, ou, como nota Carvalho, no caso do imperador,“um Habsburgo perdido nos trópicos, louro, olhos azuis, num país de pequena elite branca cercada por um mar de negros e mestiços”.“É quase como um não querer/poder aceitar que se pode ser um bom chefe de governo e ao mesmo tempo um típico brasileiro.” Assim, a admiração algo tupiniquim pela cultura do monarca, que parecia saber tudo.“Já sei, já sei! Sabe tudo o sábio por excelência. Sabe mais do que a ciência e mais do que a lei. O Padre Eterno, invejoso de uma tal ciência infusa, Lhe disse, a juízo de escusa: ‘Dom Pedro, me sucedei! Eu vos entrego o universo!’ Mas o sábio, firme, respondeu-lhe com desprezo:‘Já sei, já sei!”, dizia um poema da época sobre como Pedro II reagia quando lhe tentavam informar algo.
Um Habsburgo perdido nos trópicos. “É quase como um não querer/poder aceitar que se pode ser um bom chefe de governo e ao mesmo tempo um típico brasileiro”
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Engana-se quem vê no imperador, quase sem pompas e que usava casaca, um homem desligado do poder.“O que ele desejava era a essência, e não as aparências do poder. Acima de tudo, ele queria ter o controle. O trauma de sua juventude (órfão de mãe com 1 ano, de pai aos 9, imperador aos 14 anos) atribulada deixou nele o pavor de ser tutelado”, nota Barman. “Perder o controle, para ele, significava ser manipulado. A intensidade do desejo de Pedro II por controlar tudo e todos foi mascarada por um afastamento das luzes da ribalta, pela autodisciplina. Assim, era fácil subestimar o homem, a amplidão de sua autoridade. Ele sempre igualou o regime e o país à sua pessoa.” Carvalho nota, porém, que dom Pedro não tinha apetite pela política como jogo de poder. “Não calculava custos e benefícios políticos de suas ações e não planejava o futuro de seu reinado. Não o elogio como governante, mas como um homem de grande espírito público. Ele não odiava o poder, exercia-o de forma ciumenta, mas cumprindo uma obrigação de sua posição de imperador.” Cidadão - Segundo Barman, o controle absoluto dos assuntos de Estado foi usado para “conservar e aperfeiçoar a sociedade”, não para refazê-la. Pedro II tinha notável capacidade de deixar os problemas se resolverem por si, no que o ajudava o Poder Moderador.“Preocupava-se menos em promover ações que almejava do que impedir que outros conseguissem implementar políticas que não desejava.” Se o imperador gabava-se de sua condição de cidadão, este nunca deixou de ser imperador.“Pedro II nunca se perguntou se os brasileiros queriam que ele fosse o ‘primeiro cidadão’, tampouco se eles desejavam o tipo de progresso e civilização, à francesa, que ele queria para a SUA nação”, nota o americano. Nas palavras de um contemporâneo,“apesar da simpatia, há nele um odor de rei,que acredita ser superior aos outros”. Assim, seus “assessores” não eram pessoas, mas livros, em especial as monografias francesas.“Foi respeitado por quase todos, mas não foi amado por quase ninguém”, nota Carvalho. Perdeu a grande chance de libertar os escravos antes de 1888, pelas mãos da filha, vista, então, pela elite e pelo povo como a “beata”, a casada com “o francês”,
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uma inábil para sucedê-lo. Desde os anos 1850, o mercado escravista declinava e a elite brasileira percebia que a escravidão tinha dias contados. “Pedro II compartilhava essa visão e, como bom civilizado, não aprovava o cativeiro. Mas uma coisa era o imperador deixar escapar suas visões sobre o futuro da escravatura para o seu gabinete e, outra, mexer com os políticos para que tomassem uma atitude. Ele gostava de se imaginar incapacitado para iniciar a mudança”, diz Barman. Com o fim da Guerra da Secessão americana, o Brasil seria o único país do hemisfério ocidental com escravos. Isso não condizia com seu sucesso de monarca esclarecido junto aos contemporâneos europeus.“Mas quem estuda a batalha pelo Ventre Livre não pode dizer que sua postura era apenas intelectual. Ele pagou um alto preço por isso. Quando reduziu seu impulso abolicionista, o dano para a dinastia estava feito”, ressalva José Murilo. A condução da Guerra do Paraguai, outra questão polêmica, igualmente leva a marca do monarca “que se achava o Brasil”.“Na guerra, o Brasil lutou contra o inimigo errado e isso sem dúvida graças à megalomania de López. As justificativas do imperador para continuar a luta até a expulsão de López sempre foram a letra do Tratado da Tríplice Aliança e a defesa da honra do Brasil, mas não me parece que sejam suficientes. Sua insistência em não negociar ainda permanece um enigma”, observa Murilo. “Ele viu a agressão ao Brasil como uma afronta pessoal. ‘Fala-se de paz no Rio da Prata, mas EU não faço paz com López’, escreveu Pedro II para sua amante, a condessa de Barral. A insistência do imperador em exterminar López foi desmedida”, concorda Barman. Por fim, a República. O republicanismo nasceu cedo por aqui, nos anos 1830, visto, porém, com desdém pela elite e com indiferença benevolente pelo imperador e, nota o brasilianista, dada a inabilidade do movimento se estabelecer após 1870, essa atitude não era de todo errada. A nova geração é que foi sua ruína: tendo como um dado a união do Brasil e seu status consolidado de nação-Estado, não receavam mais o colapso da ordem política. No entanto, até os anos finais do regime, a frase “O imperador meu augusto amo” era utilizada normalmente pelos brasi-
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leiros.“Em Pedro II as elites acharam alguém que suprimiu o fanatismo das massas, um monarca hábil que reuniu liberdade e ordem, paz interna e desenvolvimento do país (desde que sob sua estreita supervisão e sem excessos). Ele se tornou então uma parte natural da existência dos brasileiros.” Essa “casa em ordem” deu aos republicanos calma para crescer.“Dada a falta de um sucessor crível (Pedro II não via Isabel como tal), pela doença de que padecia o monarca, tudo parecia garantir uma transição para a República. O Brasil poderia, assim, ter suprimido de sua história o terrível militarismo iniciado em 1889”, nota Barman.“Mas suas realizações iniciais e sua recusa em ceder um pouco aos políticos, abrir o sistema, bem como sua negligência com os interesses do Exército, o levaram ao destronamento patético.”A imagem do grupo de nobres levados às pressas para o exílio pegou mais no imaginário nacional do que o poder exercido por meio século. Pedro II, que intelectualmente tendia à República, era, porém, um autocentrado, confiante de que o mundo girava a seu redor. Embora percebesse a direção a que o Brasil se dirigia, insistiu em
manter o estado das coisas, o eterno engano dos monarcas desde que os ingleses cortaram o pescoço de seu rei no século XVII. O ponto fraco do Império foi justamente essa confiança na centralização exacerbada, o desejo de controlar pessoalmente tudo. “A vida do Império só foi prolongada com a campanha abolicionista, que desviou a atenção para a fragilidade paradoxal de um regime tão consolidado.” Com o fim da monarquia, o Brasil amargou anos de ditadura militar, incluindo-se Canudos, ações de “um regime sem raízes seguras e quase sem legitimidade”, nota Barman, para quem o Brasil de hoje não tem suas origens em 1889, mas na primeira década do século XX. Foi Vargas, responsável pela derrubada do regime que derrubou o imperador, que trouxe Pedro II de volta à voga e seus restos mortais ao Brasil. “Para a maioria dos brasileiros há a crença de que seus antepassados foram inatamente republicanos e a monarquia foi uma imposição externa.” Estranha alienação da importância, boa ou má, de alguém que, seja como rei ou como “cidadão”, mandou no país por 50 anos. ■
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A internet no banco escolar Levar a web para sala de aula, e vice-versa, ainda é um desafio econômico e estratégico para educadores e governos G O N Ç A LO J U N I O R
ILU S T R AÇ Õ ES JAIME P R ADES
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difusão de lan houses pelas periferias e bairros mais humildes de pequenas e grandes cidades brasileiras, ao que parece, começa a provocar um fenômeno que já pode ser observado: a democratização da internet pode ter reflexos bem mais importantes no desempenho dos estudantes das escolas públicas do que se imagina. Em vários sentidos: na melhoria do aprendizado e do rendimento, em sua preparação para desafios como vestibular etc. A sala de aula para essa leva de incluídos tende a ficar desinteressante. Não por acaso, faz algum tempo, a internet ronda as escolas e quer entrar de qualquer jeito. Para o bem, claro. Até mesmo nos colégios particulares, onde essa integração ainda não se deu por completo. O resultado disso é que se existe uma certeza no mundo da pedagogia é somente a de que o quadro-negro, a caixinha de giz e o apagador – materiais básicos de ensino que existem há séculos – estão com prazo de validade vencido. Fazer do computador e da internet objetos integrados para o aprendizado escolar é uma coisa possível, viável e necessária faz algum tempo.As ferramentas existem e dependem de iniciativas e de vontade política. Só isso? Não, a situação é bem complexa, simplesmente porque ainda não se sabe qual a melhor forma de fazer isso, mesmo que as salas sejam ocupadas por computadores. Nem de que modo. Os desafios vão desde o papel do professor, do aluno, da escola e do poder público até se descobrir como tornar esse mecanismo eficiente, uma vez que suas múltiplas possibilidades fazem da rede mundial de computadores uma atração irresistível e dispersiva para crianças e adolescentes. Os desafios vão além. É necessário saber também como evitar o mau uso da internet na execução de trabalhos escolares, uma vez que é comum que alunos – inclusive do ensino superior – copiem material disponível ou reproduzam informações
que são erradas ou imprecisas. Ou cometam infrações como plágio ou apropriação de idéias alheias. Por tudo isso, integrar escola e internet se tornou o maior desafio para quem pensa, discute e planeja a educação em todo o planeta. A rede pode desde servir de suporte à educação a distância até fornecer informação, complementando a visão de ferramenta de instrução do processo ensino-aprendizagem ou na elaboração de atividades que auxiliam o aprendiz na construção de seu conhecimento. É o que observa o professor José Armando Valente, do Departamento de Multimeios e Núcleo de Informática Aplicada à Educação da Unicamp. Nos dois casos, diz ele, as formas de utilizá-la devem ser determinadas pela intenção pedagógica do professor, que ainda procura uma forma viável de fazer isso. Como observa Valente, os educadores têm consciência de que a internet dispõe dos mais modernos recursos de manipulação da informação para auxiliar o aluno em pesquisas sobre determinado assunto, no desenvolvimento de projetos, na comunicação com outras pessoas, na publicação dos resultados de trabalhos etc. Para o pesquisador, quanto mais sofisticado o processo de ensino e quanto mais preparado (mais maduro e consciente do que quer ser na vida) for o aprendiz, mais a internet pode ser útil na sua formação. Um exemplo partiu da Unicamp, que adotou o ensino aberto, que oferece todas as disciplinas da graduação em um ambiente de educação a distância, via internet. O professor da disciplina pode usá-lo ou não, de acordo com a sua proposta pedagógica. No caso de uso, em algumas situações, tem significado a extensão da sala de aula – a continuação das discussões, via os recursos do ambiente –, repositório de trabalhos dos alunos ou do material de apoio etc. Especialista em educação a distância, o professor da Escola Politécnica da USP e Centro UniverPESQUISA FAPESP 135
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sitário Senac Rometo Tori tem nos filhos exemplos do quanto a internet tem forçado especialistas a buscarem caminhos para levar a tecnologia digital ao aprendizado. “Se a escola não levar a internet à sala de aula, os alunos a levarão. Já faz alguns anos que presencio meus filhos, cursando ensino fundamental, fazerem pesquisa na internet e trabalhos em equipe a distância, via programa de comunicação instantânea. E não era a escola que pedia para eles fazerem dessa forma, nem eu os incentivava; era algo natural e óbvio para eles.” Assim, sugere ele, a discussão não deve ser “se a internet deve ou não ser adotada em sala de aula”, mas sim “como”. Tori diz que isso deve ser feito como qualquer outra mídia. Ou seja, com planejamento e acompanhamento.“Até para dar uma aula com lousa e giz é preciso planejar. A lousa não ensina por si só. Nem a internet.”Um grande diferencial da internet em relação à maioria das mídias até hoje empregadas em educação é a interatividade, acrescenta.“Sendo assim não faz sentido, por exemplo, colocar o aluno em frente ao browser e esperar que preste atenção numa aula expositiva.” Fenômeno - Para o professor, a mídia deve ser
adequada ao método pedagógico que se deseja empregar em cada atividade de aprendizagem. Como um curso pedagogicamente bem planejado não se baseia em uma única técnica pedagógica, explica ele, haverá momentos em que a internet terá papel de destaque e outros em que poderá (ou até deverá) ser dispensada. “Não podemos nos esquecer do fenômeno inverso ao de se ‘levar a internet à sala de aula’ que é o de se ‘levar a sala de aula à internet’, que também caminha a passos largos e vem apresentando ótimos resultados, seja na educação a distância, seja no apoio à educação presencial.” Em São Paulo, para estudar o tema, foi criado na USP o Laboratório de Investigação de Novos Cenários de Aprendizagem – Escola do Futuro, núcleo de pesquisas vinculado à pró-reitoria. Sua função é investigar como as tecnologias de informação e comunicação podem ser incorporadas à educação. A coordenadora Sílvia Fichmann explica que o projeto conta com grupos de pesquisadores de várias áreas de conhecimento. “O que se propõe é que haja uma mudança nos paradigmas educacionais, uma vez que as transformações provocadas pela revolução digital exigem uma mudança de percepção dos educadores em relação à aprendizagem, uma nova postura e uma nova forma de ensinar em que o aluno tem um papel ativo e o professor assume o papel de mediador”, observa. Em funcionamento há quase uma década, a Escola do Futuro desenvolve projetos para instituições públicas e privadas. Desde o ano de 2000, 92
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por exemplo, trabalha com o Tonomundo, que busca contribuir para a formação de educadores de ensino fundamental de escolas públicas em 16 estados brasileiros. As tecnologias de informação e comunicação, afirma Sílvia, são ferramentas que contribuem para que os alunos aprendam de forma autônoma os diferentes estilos de aprendizagem. “O problema é que os professores não estão preparados para essa mudança e para o uso da tecnologia como ferramenta educacional e continuam insistindo em manter as práticas pedagógicas e os recursos tradicionais.” Existem, segundo a educadora, vários obstáculos para que os professores utilizem a internet como ferramenta educacional. Dentre eles a falta de equipamentos e conexão com a internet na maioria das escolas. Sem contar que aqueles que os possuem têm dificuldade na manutenção dos mesmos. E mais: ausência de uma reformulação do currículo escolar que proponha atividades com o uso da tecnologia, a falta de condições para que os professores se reciclem, a carga horária escolar que inviabiliza atividades no laboratório de informática. “A internet deve ser utilizada como fonte complementar de pesquisa, os professores devem orientar os alunos sobre como encontrar as informações, selecionar as informações pertinentes e utilizá-las em seus trabalhos”, sugere Sílvia. César Nunes, doutor e pesquisador associado à Escola do Futuro, afirma que existem três grandes frentes positivas para o uso da internet em sala de aula: o acesso a todo tipo de informação, a troca de dados com colegas e especialistas e a publicação de material produzido pelos próprios alunos. A combinação dessas características permite ter um ensino centrado no aluno, no qual ele se torna responsável por coletar, validar e organizar a informação, desenvolver suas habilidades de comunicação e aprender fazendo, produzindo, seu próprio material. “Essas frentes preparam o aluno para a sociedade atual, em que todos devem ser produtores de conhecimento, e não simplesmente absorvedores.” A internet, como ferramenta de ensino, apresenta uma vantagem crucial se comparada a outras mídias, como os impressos, o rádio ou a TV: o imenso potencial de interatividade inerente à estrutura hipertextual. É o que ressalta Fábio Massaharu Nogi, mestre em odontologia social pela USP com a tese “A internet como ferramenta de apoio pedagógico no processo de ensinoaprendizagem em odontologia legal”. A representação das informações em hipertextos, diz ele, proporciona o rompimento com as seqüências estáticas e lineares das mídias tradicionais.“Dessa forma, disponibiliza um leque de possibilidades no processo de obtenção da informação, permitindo ao usuário interligar as informações
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conforme os seus próprios interesses e necessidades, navegando e construindo seqüências personalizadas em sua consulta.” Para Nogi, pode-se utilizar a rede no processo de ensino-aprendizagem de diversas formas e com abordagens bem distintas. Exemplos: navegação e pesquisa em sites, correio eletrônico, grupos de discussão, videoconferência, fóruns, simuladores, consulta a bases de dados são alguns exemplos de recursos oferecidos citados por ele que podem ser empregados na sala de aula, contribuindo para a realização de aulas mais dinâmicas e interativas. “Essa riqueza de possibilidades viabiliza a inserção da internet em projetos educacionais com graus de complexidade e dependência variáveis, em função do nível de conhecimento e preparo dos docentes e demais integrantes da equipe de trabalho.” Popularização - Nogi argumenta que não adianta se equipar das tecnologias mais sofisticadas e inovadoras se esses avanços não agregam benefícios concretos à aprendizagem do aluno.“A popularização da internet promoveu o aumento indiscriminado da oferta de cursos on-line, sem que muitos deles contemplem fundamentos pedagógicos básicos que possibilitem uma aprendizagem mais ativa e colaborativa por parte do estudante”, alerta. Trata-se, diz ele, da postura antiga e tradicional de transmissão unilateral de conhecimentos, centrada na figura do professor e que privilegia a acumulação acrítica de saberes, só que, dessa vez, maquiada por um recurso tecnológico inovador. Dez anos depois do início da massificação da internet, alguns educadores consideram que a influência ou presença da internet na educação escolar não se faz notar com destaque. Os usos existentes são ainda muito limitados, não exploram os verdadeiros potenciais da internet, como ressalta José Armando Valente. Em muitas escolas o uso tem sido restrito à procura de informação em portais disponibilizados pela instituição. Para conter distorções e mau uso dessa ferramenta, ele sugere que a mesma tem de estar a serviço de processo de resolução de problemas, desenvolvimento de projetos e meio de interação entre aprendizes e entre o aprendiz e especialistas. Sílvia Fichmann acrescenta que, infelizmente, o que se tem constatado na Escola do Futuro é que a maioria dos professores ainda não usa adequadamente a internet com finalidade educacional. “O projeto Tonomundo é um dos que notamos uma evolução nesse sentido, pois ele faz parte de uma comunidade virtual de aprendizagem e desenvolve atividades propostas com o objetivo de potencializar o computador e a internet como ferramenta educacional.” O debate ainda tem muito para avançar. ■ PESQUISA FAPESP 135
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A revolução que São Paulo esqueceu Livro com 140 fotos joga luz sobre insurreição militar de 1924 que colocou a capital sob fogo cruzado de aviões e canhões G ONÇALO J UNIOR
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e contar aos moradores dos bairros de Perdizes,Brás, Mooca e do largo da Sé,em São Paulo,que,há muito tempo,seus antigos habitantes ficaram por 23 dias sob intenso bombardeio de aviões e canhões do governo federal,é provável que poucos saberiam dizer do que se trata.Quem sabe,arriscariam a Revolução de 1932,o que estaria errado.Na madrugada de 5 de julho de 1924 unidades do Exército e da Força Pública se rebelaram e tomaram as ruas da capital para tentar derrubar o presidente Arthur Bernardes (1875-1955).Os combates duraram 23 dias. Acuados,os revoltosos se refugiaram no interior,onde foram derrotados.Não há um número oficial,mas fontes apontam para algo em torno de 720 mortos.Somente na Santa Casa foram internados mais de 2,3 mil feridos. O movimento golpista que transformou ruas e praças de São Paulo em trincheiras de guerra jamais fez parte do calendário de efemérides da cidade.Mais de 80 anos depois,costuma ser citado apenas como parte do levante tenentista deflagrado em 1922.Uma oportunidade para saber o que aconteceu em detalhes e por que se ignora um evento tão relevante é o livro Bombas sobre São Paulo – A Revolução de 1924, da doutora em história social pela USP Ilka Stern Cohen,que acaba de ser lançado pela Unesp.O volume descreve o cenário da capital,suas características e o contexto político que levaria ao levante.Depois narra seu desenrolar,as estratégias e os personagens. Ilka explica que as origens do episódio estavam ligadas ao fato de os militares ocuparem posição destacada,embora o poder fosse civil.Uma vez que o Exército participara do nascimento da República e tinha a missão também de preservar as instituições,parte de seus oficiais se considerava justificadamente capaz de intervir no processo político.“Aquele foi,sem dúvida,um dos perío dos mais conturbados da política brasileira”e a primeira vez que os paulistas se insurgiam contra o poder central. Bernardes foi eleito depois de uma campanha marcada por baixarias,como a publicação de cartas falsas atribuídas a ele nas quais eram ridicularizados o marechal Hermes da Fonseca e o Exército – por isso,assim que venceu,surgiram rumores de um golpe militar contra ele.Segundo Ilka,a série de insurreições que aconteceram nos anos 1920 se deve ao fato de que o sistema político dava sinais de esgotamento.“A so-
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ciedade mudara,havia pressões por mudanças no sistema político,a idéia de revolução estava no ar.”Uma facção do Exército, insatisfeita com a falta de carreiIlka Stern Cohen ra e porque realmente pretendia Editoria Unesp mudanças políticas,viu no golpe de Estado a solução para es144 páginas sas questões.“Não deu certo em R$ 59,00 1924,mas aconteceu em 1930, com Getúlio Vargas.” Para acabar com o levante,Bernardes reuniu seus apoios militares,ignorou as pressões por uma trégua e combateu durante todo o seu governo os exércitos chamados de “revolucionários”,que percorriam o país pregando a revolução – a famosa Coluna Prestes.Governou o tempo todo sob estado de sítio e implantou feroz censura à imprensa.A autora lamenta que a Revolução de 1924 seja um dos muitos episódiosesquecidos da história brasileira,assim como o bombardeio de Salvador nos anos 1910.Parte da explicação pode ser atribuída ao fato de,ao contrário de 1932,que tem uma importância estratégica fundamental na construção do discurso político paulista,a de 1924 não teve a menor participação das elites políticas,que,naquele momento,não pretendiam romper o pacto político vigente. Segundo Ilka,foi uma decisão bem clara a de não prolongar o debate historiográfico sobre a questão da revolução. Por isso,ela quis fazer um livro que trouxesse as vozes do passado,o que explica também a manutenção da grafia original nas citações.Sua pesquisa faz revelações baseadas em fontes pouco exploradas até hoje.O volume traz ainda 140 fotos com cenas dos locais de combates,prédios e casas bombardeados,incêndios,soldados entrincheirados e mortos,que permitem dimensionar os estragos e a sua amplitude.Tanta documentação iconográfica dimensiona um esforço sem igual de se cobrir jornalisticamente o evento – como acontecera com a Guerra de Canudos no final do século anterior. As fotografias aparecem com o propósito de dar uma idéia da sensação que causou o levante e a dimensão de sua importância.Além de reproduzidas em jornais e revistas,viraram cartões-postais,vendidos pela cidade.Também iluminaram aspectos pouco percebidos no discurso escrito.“Ver uma trincheira ao lado do Teatro Municipal nos dá a medida exata do rebuliço que virou a cidade.Ou ver uma foto do chiquérrimo Palace Hotel e pensar que hoje ali funciona o Shopping 25 é curioso,lembra-nos que São Paulo ainda preserva recantos que nos remetem ao passado”,observou Ilka. Bombas sobre São Paulo – A Revolução de 1924
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LIVROS
Pioneirismo nos céus: a história da Divisão de Aeronáutica do Instituto de Pesquisas Tecnológicas Roney Cytrynowicz Narrativa-Um/IPT 120 páginas, R$ 25,00
Pioneirismo nos céus conta a história da Divisão de Aeronáutica do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulodurante o período de 1934 até 1957.A narrativa apresenta uma série de pesquisas desenvolvidas pela divisão do IPT para consolidar a engenharia e a indústria aeronáutica e a aviação no Brasil.Um bonito livro com muitas fotos interessantes de parte da história da aviação brasileira. IPT (11) 3767-4228 www.ipt.br/atividades/servicos/publicacoes/
A paixão do negativo: Lacan e a dialética Vladimir Safatle Editora Unesp/FAPESP 336 páginas, R$ 40,00
Vladimir Safatle tenta aproximar duas teorias que se ignoraram durante meio século,o pensamento de Lacan e o de Adorno,indicando uma semelhança inesperada entre a dialética em operaçãona prát ica clínica lacaniana e aquela que vemos no filósofo frankfurtiano,também tributário de Freud,Hegel e de uma reflexão sobre a práxis estética da criação artística.Dessa maneira,tal aproximação visa evidenciarum capítulo da traje tória da dialética no século XX. Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br
Diploma de brancura: política social e racial no Brasil (1917-1945)
FOTOS EDUARDO CESAR
Jerry Dávila Editora Unesp 400 páginas, R$ 60,00
Ordem, poder e conflito no século XXI: esse mesmo mundo é possível Luis Fernando Ayerbe Editora Unesp 312 páginas, R$ 35,00
Ayerbe aborda o processo de hegemonia dos Estados Unidos no âmbito internacional e na América Latina em particular,gerando um debate sobre os alcances e limites das transformações promovidas por movimentos sociais e sobre as possibilidades futuras do equilíbrio de poder que dê legitimidade à inserção de atores que interajam no cenário globalizado. Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br
História e política em Maquiavel Patrícia Fontoura Aranovich Discurso Editorial/FAPESP 308 páginas, R$ 36,00
A doutora em filosofia Patrícia Aranovich busca em seu livro iluminar a relação direta entre política e história no pensamento de Maquiavel. Observando a História de Florença, a última grande obra e também a única propriamente histórica do autor florentino,investiga-se o quanto há de história na filosofia política de Maquiavel e o quanto de política há em sua História de Florença. Discurso Editorial (11) 3814-5383 www.discurso.com.br
O ISEB, os intelectuais e a diferença: um diálogo teimoso na educação Antônio Marques do Vale Editora Unesp 248 páginas, R$ 40,00
O historiador porto-riquenho Jerry Dávila,que dá aulas sobre relações raciais no Brasil e nos Estados Unidos, examina como as leituras científicas sobre a sociedade definiam negros e carentes como deficientes,passando a influenciar as práticas educacionais.O livro traz um olhar histórico sobre o papel do pensamento racial na reforma e na expansão do ensino brasileiro.
Com o intuito de detectar o lugar da educação na produção intelectual do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb),criado em 1955,Antônio do Vale estuda cinco autores históricos – Roland Cavalcanti de Albuquerque Corbisier,Álvaro Vieira Pinto, Cândido Antônio Mendes de Almeida,Hélio Jaguaribe Gomes de Matos e Alberto Guerreiro Ramos –,propondo uma educação continuamente marcada pelo debate.
Editora Unesp (11) 3242-7171 www.editoraunesp.com.br
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FICÇÃO
La Sindone
C LÁUDIO S OARES
O Sudário é um desafio à nossa inteligência. João Paulo II ocê acredita em milagres? A pergunta fora de contexto capturara minha atenção.Pensei: as palavras não conseguem mesmo esgotar uma visão que não se apresenta.No ve rso do cartão com a inabitual interrogação,encontrei o nome e o telefone do padre Giovanni Fiori,que por suas ações incisivas, idealismo e juventude havia recebido da imprensa o apelido de “il bambino terribile de la Chiesa Cattolica di Torino”. Sou Giuseppe Mantovani,jornalista,e afirmo: vivemos em um mundo de versões. Uma obsessiva tentativa de apreensão da realidade me levou a acumular notas sobre ocorrências inusitadas,casos extraordinários que compartilhei,por vários anos,na coluna l’Ultima Biblioteca do jornal La Stampa. Se acredito em milagres? Antes da pergunta no cartão,não saberia a resposta.Agora eu sei,pois aprenderia com padre Giovanni (e com os acontecimentos verídicos que passarei a relatar) que tudo está em tudo,nada é definitivo,apenas intermediário e fluente,como as águas misteriosas do rio Pó,o rio sem fundo. Naquela tarde de maio de 2002 eu observava da janela de meu apartamento a placidez de suas águas,quando me lembrei do enigmático cartão recebido pela manhã.A curiosidade de jornalista me fez pegar o telefone. — Boa tarde,me chamo Giuseppe Mantovani e preciso falar com padre Giovanni Fiori. — É ele quem fala.Aguardava seu telefonema,precisamos conversar pessoalmente.Que tal amanhã pela manhã? Marcamos para o dia seguinte,às 8,na Catedral Metropolitana. Na hora marcada,padre Giovanni me aguardava na entrada principal da Catedral. — É um prazer conhecê-lo,senhor Mantovani.Nossa conversa não será uma entrevista,compartilharei confidências. Antes quero levá-lo a um lugar especial.
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Seguimos,então,em direção às criptas da Catedral,completamente vazias àquela hora. — Esse é o Museu de la Sacra Sindone.Aqui realizaremos um percurso de descobertas.Giuseppe,qual a sua opinião a respeito do Sudário? Disse a ele que sempre considerei o Santo Sudário o mais intrigante e polêmico objeto do mundo.Muitos acreditam que La Sindone seja um auto-retrato,a sangue,de Jesus Cristo. — E você,Giuseppe,no que acredita? — o padre insistiu. — Acredito que o Sudário seja uma fazenda surrada,estreita e comprida,envelhecida,manchada de sangue,parcialmente queimada,na qual se percebe,não sem algum esforço,a imagem de um homem barbudo e despido.A imagem no Sudário,chamada de L’Uomo della Sindone,é a relíquia cristã mais investigada e existe uma teoria de que teria sido confeccionada por um artista na Idade Média. — Para os cristãos isso não tem o menor fundamento. O arcebispo de Turim assegurou que o Sudário pode,e deve, ser reexaminado cientificamente quantas vezes forem necessárias,mas vários cientistas já confirmaram que é improvável que algum artista da Idade Média conseguisse criar uma imagem negativa anatomicamente correta. Em 1898 o fotógrafo italiano Secondo Pia tirou a primeira fotografia do Sudário e percebeu,espantado,que o negativo de sua foto se assemelhava a uma imagem positiva,o que significava que a imagem do Sudário era,em si,um negativo. Um grande enigma que aturde cristãos e não-cristãos. Padre Fiori traçou o histórico de polêmicas envolvendo la Sindone:o Mandylion de Edessa,que o Narratio de imagine edessena sugeria que não fosse uma pintura;o incêndio de 1532,que destruiu partes do Sudário;as análises hematológica e microscópica de 1978 e o polêmico teste com o carbono 14 de 1988,cuja conclusão polêmica foi a de que o Sudário teria sido criado na Idade Média. — Admitimos mais a comunicação pela imagem do que pela palavra.É isso que justifica o Sudário.Ele é o nosso quinto evangelho.O evangelho da imagem.Mais do que isso:o
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evangelho multimídia, o evangelho do século XXI, o mais completo e minucioso relato da Paixão de Cristo. Nesse momento, padre Giovanni fez uma pausa, buscou forças e me relatou algo impressionante. — Sempre estivemos preocupados em saber o que aconteceria se a imagem no Sudário eventualmente desaparecesse. Descobriremos que o Sudário seria o próprio Cristo em estágio de crisálida pronto para emergir glorioso? E o Sudário desabitado? Continuará a capturar nossas atenções? A Igreja, certamente, não quer ter dúvidas. É hora de acordarmos e nos concentrarmos no verdadeiro sentido espiritual do Sudário: Deus ainda acredita em nós. Padre Giovanni, o homem comedido, senhor de seus atos, exasperado, transformou-se e sobre seu rosto surgiu um semblante de loucura e fúria. — Estão preparando uma farsa. Em poucos dias começará, sob a justificativa de restauração, a consagração de um novo Sudário. O original será substituído por uma cópia gerada em laboratório nos dias que sucederam o incêndio criminoso da Capela Guarini, em abril de 1997, quando, por alguns dias, o Sudário esteve longe da vista de todos, inclusive daqueles que zelam por sua segurança. Essa parte da história, confesso, mesmo para um pesquisador do insólito, me pareceu fantástica demais. Como jamais voltaria a ser procurado pelo padre, reforcei em mim essa opinião. Grande foi a minha surpresa, porém, quando uma onda de reclamações varreu a Itália depois da veiculação, pelo Il Messaggero, da notícia sobre a restauração radical aplicada ao Santo Sudário na nova sacristia da Catedral de Turim, entre junho e julho, sem que uma comissão de especialistas fosse envolvida. Comentei com meu editor a conversa que tivera com o padre meses antes. E tentei, sem sucesso, encaixar a matéria no La Stampa. Ainda no dia em que conversamos, ao terminar de contar sua fantástica história, padre Giovanni me levou à frente do Sudário, fez uma oração e vaticinou: Cristo nos libertará do Su-
dário. Finalmente, seremos livres para andarmos por nossas próprias pernas. — Padre, a pergunta que me faço desde o momento em que recebi seu cartão é de que forma posso lhe ajudar? — Cartão? Não, Giuseppe, eu não lhe enviei cartão algum. Recebi, há dois dias, uma mensagem me assegurando que logo que você entrasse em contato eu devia lhe contar os detalhes sobre a visão que não se apresenta, pois, tendo ouvidos para ouvir e olhos para enxergar, você não sufocará a palavra, apesar de receber a sua semente entre espinhos... Ainda assim (para satisfazer a minha imaginação?) tentei sufocá-la. Hoje compreendo que padre Giovanni foi perseguido, não pelo que sabia, mas por decidir viver a plenitude de sua fé e esperança. O padre seria internado como louco e dias depois o encontrariam enforcado. Até seus últimos dias, dizem, não se cansou de gritar que Cristo havia ressuscitado, que havia se libertado do Sudário e que estava entre nós.“L’Uomo della Sindone está entre nós!” Eu, desacreditado de mim mesmo, continuo fugindo dos demônios que me atormentam, pois sou o guardião de um segredo e é possível que a circunferência – alguns a chamam contexto, outros destino – esteja se fechando. Não me restam mais dúvidas. A ignorância me transformou em um idiota que precisou ver para crer. Dia após dia, cubro meu rosto com as mãos, não para me manter cego às evidências, mas para esconder as lágrimas. Então, escreverei (o que mais posso fazer?), pois é minha responsabilidade narrar o Evangelho de la Sacra Sindone. Aquela pergunta não me atormenta mais. Sim, eu acredito em milagres. Eles acontecem o tempo todo. Ainda dependemos de dolorosos óculos para enxergá-los. Mas me conforta saber que a verdade ainda habita em nós. CLÁUDIO SOARES é analista de sistemas e autor do romance SantosDumont Número 8 (Universo dos Livros, 2006). PESQUISA FAPESP 135
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classificados
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FFCLRP – DEPTO. FÍSICA E MATEMÁTICA CONCURSOS PÚBLICOS – PROFESSOR TITULAR (MS-6) ÁREA: “Física Aplicada a Medicina e Biologia” (Edital 003/07) ÁREA: “Matemática e Ciência de Computação” (Edital 002/07) PERÍODO DE INSCRIÇÕES: 03/01 a 02/07/2007 INFORMAÇÕES: adm-atac@ffclrp.usp.br ou (16)3602-3673
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Rádio Eldorado AM Sintonize 700 kHz Sábados, às 11h Reprise aos domingos às 9h ■
Se preferir, ouça o programa no site da revista
Apresentação Filomena Saleme Comentários Mariluce Moura Diretora de redação de Pesquisa FAPESP
Pesquisa Brasil ciência e tecnologia nas ondas do rádio Toda semana você tem uma hora de: ■
Novidades de ciência e tecnologia
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Entrevistas com pesquisadores
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Memória dos grandes momentos da ciência
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