Marcas da grande extinção

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setembro de 2013  www.revistapesquisa.fapesp.br

câncer

Proteína deformada torna células imortais aeronáutica

Drones brasileiros ganham os céus produção científica

Brasil e Coreia do Sul ampliam colaboração comunicação

50 anos depois, a área ainda procura seu objeto entrevista

Silvia Brandalise mudou o panorama do câncer infantil no país

Marcas da grande extinção Meteorito que caiu no Brasil Central pode ter causado o fim de quase todas as formas de vida na Terra há 250 milhões de anos


“Com parceria, estamos qualificando a ciência brasileira e ajudando a preservar os biomas.” Ana Giulietti – professora da UEFS – Feira de Santana

“Na hora de melhorar o meu negócio, a tecnologia gerada pela pesquisa fez a diferença.” Hermes Jannuzzi – produtor rural – Brasília

“A pesquisa agropecuária fez o Brasil ser um dos maiores produtores de alimentos do mundo.” Flavio Augusto Couto – pesquisador aposentado – Brasília

“Antigamente não era assim. Hoje a gente encontra fruta de qualidade o ano inteiro na feira.” Oriena de Sousa – dona de casa – Brasília

Concurso Frederico de Menezes Veiga 2013. Seu trabalho traz reconhecimento a você. E resultados para os brasileiros.

Um dos maiores prêmios brasileiros no campo da pesquisa científica agropecuária está em mais uma edição, neste ano com o tema “Quatro décadas da moderna agropecuária brasileira – inovações para segurança alimentar, competitividade e sustentabilidade”. Seu trabalho pode fazer mais diferença do que você imagina. Para informações e inscrições, acesse www.embrapa.br/fmv


fotolab

Registros do clima do passado Esta estalagmite de 2,5 metros foi coletada na caverna do Diabo, interior de São Paulo, em 2008, e tem cerca de 600 mil anos. É a mais antiga do gênero encontrada na América Latina e um dos melhores registros climáticos já datados na região. Estalagmites são formadas pela precipitação de carbonato de cálcio misturado à água que goteja do teto de grutas e cavernas. A composição química do carbonato das estalagmites fornece informações climáticas de qualidade comparável à dos testemunhos de gelo da Groenlândia e Antártida e aos achados de sedimento oceânico. Esta peça é estudada por Christian Millo sob supervisão de Francisco da Cruz, geólogos do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (USP). As etiquetas marcam as partes de onde foi tirado material para a datação, feita com o método de urânio/tório.

Imagem enviada por Francisco da Cruz, do Instituto de Geociências da USP

Se você tiver uma imagem relacionada à sua pesquisa, envie para imagempesquisa@fapesp.br, com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.

PESQUISA FAPESP 211 | 3


SETEMBRO 2013 n. 211

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA 30 Cienciometria 16 CAPA Queda de meteorito no Mato Grosso há 250 milhões de anos pode ter liberado metano suficiente para provocar um aquecimento global e causar a maior extinção de espécies conhecida ilustração  sandro castelli

Artigo analisa os caminhos trilhados pela ciência do Brasil e da Coreia do Sul

34 Colaboração

Pesquisadores brasileiros e alemães buscam uma droga eficaz contra a obesidade

37 Financiamento

Comunidade científica dos EUA sofre com contingenciamento dos recursos federais para pesquisa

40 Divulgação científica ENTREVISTA 22 Silvia Regina Brandalise Presidente do Centro Boldrini, de Campinas, a pediatra diminuiu a mortalidade de câncer infantil

seçÕes 3 Fotolab 5 Carta da Editora 6 Cartas 7 On-line 8 Dados e projetos 9 Boas práticas 10 Estratégias 12 Tecnociência 88 Memória 90 Arte 92 Ficção 94 Resenha 95 Carreiras 97 Classificados

4 | SETEMBRO DE 2013

Conferência mundial destaca a influência e as habilidades do jornalista multimídia

CIÊNCIA 44 Bioquímica

Versão deformada de proteína que protege o DNA leva as células a se multiplicarem sem controle

61 Física

Choque entre grãos é o principal motor das tempestades de areia

62 Óptica

Nova técnica altera frente de onda de feixes luminosos, permitindo manipular objetos microscópicos e transmitir mais informação

TECNOLOGIA 64 Aviação

Projetos militares contribuem para o aquecido setor de aeronaves não tripuladas

70 Pesquisa empresarial

Produtos inovadores colocam centro de tecnologia brasileiro da Mahle em posição de destaque

74 Engenharia da computação

Pequena empresa desenvolve inteligência artificial para controlar a produção

48 Biologia celular

Estudo mostra papel de um tipo de ácido ribonucleico no processo de disseminação do câncer

50 Parasitologia

HUMANIDADES 76 Epistemologia

Análise de ossadas revela o perfil de doenças de diferentes populações do Rio de Janeiro

Nos 50 anos das ciências da comunicação no país não há consenso sobre estado da arte da pesquisa sobre o campo

54 Mudanças climáticas

82 Envelhecimento

56 Especial Biota Educação VI

86 Filosofia

Cafeeiro cresce e produz mais com mais CO2 na atmosfera

Mata atlântica abriga grande diversidade de espécies endêmicas

Antropóloga se debruça sobre o discurso que constrói uma sexualidade gratificante na velhice Centro de estudos revela atualidade das reflexões de Hannah Arendt


carta da editora

Hecatombes remotas, construções do futuro Mariluce Moura |

Diretora de Redação

E

m termos plásticos, a capa desta edição aparece toda atraente e convidativa. Faz-me lembrar antigas e deliciosas charges de Angelo Agostini publicadas na Revista Illustrada em 1882, a propósito da decisão do imperador Pedro II de destinar recursos à observação astronômica da passagem de Vênus sobre o disco solar. Já a alguns colegas na redação, ela remete a A invenção de Hugo Cabret, belo filme de Martin Scorsese, de 2011, que rende homenagens a Georges Méliès e a seu A viagem à lua, um curta de 14 minutos, de 1902, considerado o primeiro filme de ficção científica da história do cinema (ver Pesquisa FAPESP, nº 155, página 8). A motivação da inspirada ilustação e da reportagem que a provocou é um estudo publicado on-line pela revista científica Palaeogeography, Palaeoclimatology, Palaeoecology em 18 de junho passado. Da lavra de pesquisadores da Austrália, Reino Unido e Brasil, ele traz à luz uma excitante hipótese para a maior das cinco grandes extinções de espécies em massa que teriam ocorrido na Terra nos últimos 500 milhões de anos. A hecatombe teria sido desencadeada pelos efeitos indiretos da abertura de uma enorme cratera de 40 quilômetros de diâmetro produzida pelo choque de um meteorito de aproximadamente 4 quilômetros há pouco mais de 250 milhões de anos, na área em que hoje estão as cidades de Araguainha e Ponte Branca, no sudeste do Mato Grosso, perto da divisa com Goiás. Sim, Brasil. Mas então tudo era Pangeia, um único supercontinente. A colisão em si não teria nem de longe potência para espalhar a impressionante destruição de 96% da biodiversidade do planeta, que marca o término do período Permiano. Mas, como detalha nosso editor especial Marcos Pivetta, autor da bela reportagem (página 16), uma sucessão de eventos decorrentes do impacto pode ter provocado um rápido e fatal aquecimento global. Há pistas geológicas de que tais eventos teriam resultado de tsunamis. Outras sugerem que ocorreram terremotos, com magnitude de até 9,9 graus na escala Richter, num raio de mil quilômetros em torno da cratera. De uma forma ou de outra, rochas ricas em carbono orgânico teriam sido fraturadas e liberado uma

quantidade gigantesca de metano, um gás do efeito estufa. Em poucos dias, segundo os cálculos dos pesquisadores responsáveis pelo estudo, podem ter sido liberadas 1.600 gigatoneladas de metano, “quase cinco vezes mais do que o despejado no planeta desde o início da Revolução Industrial, há 250 anos”, compara Pivetta. Vale a pena se embrenhar pelos detalhes dessa nova hipótese da grande extinção no remoto passado do planeta azul. Gostaria de destacar também a reportagem sobre uma pesquisa levada a cabo por uma equipe da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que propõe um papel fundamental para uma deformação da proteína p53 no surgimento de determinados cânceres (página 44). O enovelamento anormal dessa proteína, explica o editor de ciência, Ricardo Zorzetto, aproximaria a gênese de parte dos cânceres do surgimento da doença de Creutzfeldt-Jakob, a versão humana do mal da vaca louca, uma vez que o mesmo mecanismo celular estaria por trás dos dois eventos, ainda que ele se dê em proteínas distintas – o príon, no segundo caso – e produza efeitos opostos nas duas situações: a perpetuação da vida nas células, em cânceres, via sua proliferação desenfreada, e a morte antecipada das células na doença de Creutzfeldt-Jacob. Intrigante, não? Também recomendo a entrevista de Silvia Brandalise, criadora do Centro Infantil de Investigações Hematológicas Dr. Domingos Boldrini, uma de suas várias iniciativas que ajudaram a mudar o panorama do tratamento de câncer em crianças no país (página 22). Os autores são o editor-chefe, Neldson Marcolin, e o editor especial Carlos Fioravanti. Para encerrar, destaco na seção de tecnologia a reportagem sobre o aquecimento do setor de aeronaves não tripuladas, os drones ou vants, no mercado nacional, do repórter Rodrigo de Oliveira Andrade (página 64), e a reportagem de nosso editor de humanidades, Carlos Haag, com inspiradas ilustrações do artista gráfico Hélio de Almeida, a propósito dos 50 anos da pesquisa em comunicação no país (página 76). Boa leitura! Em tempo: a capa é uma concepção de nossa editora de arte, Mayumi Okuyama, com ilustração de Sandro Castelli. PESQUISA FAPESP 211 | 5


cartas

cartas@fapesp.br

fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo Celso Lafer Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior alejandro szanto de toledo, Celso Lafer, Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, Horácio Lafer Piva, Herman Jacobus Cornelis Voorwald, joão grandino rodas, Maria José Soares Mendes Giannini, José de Souza Martins, Pedro Luiz Barreiros Passos, Suely Vilela Sampaio, Yoshiaki Nakano Conselho Técnico-Administrativo José Arana Varela Diretor presidente Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico Joaquim J. de Camargo Engler Diretor Administrativo

issn 1519-8774

Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo Leite, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Adolpho José Melfi, Carlos Eduardo Negrão, Douglas Eduardo Zampieri, Eduardo Cesar Leão Marques, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Joaquim J. de Camargo Engler, José Arana Varela, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Luis Augusto Barbosa Cortez, Marcelo Knobel, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Marta Teresa da Silva Arretche, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Luiz Monteiro Salles Filho, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner do Amaral, Walter Colli

William Saad Hossne

Na entrevista de William Saad Hossne (edição 210), duas passagens na sua trajetória merecem ser destacadas. Primeiramente a sua atuação na FAFESP, quando foi diretor científico e eu tive o prazer de entrar em contato pessoal durante entrevista de aprovação de bolsa de pós-doutoramento no exterior. Na oportunidade, chamou a minha atenção a preocupação na orientação e valoração do pesquisador brasileiro em terras estrangeiras e a resistência à pressão política do Serviço Nacional de Informação da ditadura. Outra passagem destacada, sem dúvida nenhuma, é a dedicação à bioética que resultou na criação de vários comitês de ética de pesquisa nas instituições. Roberto DeLucia Instituto de Ciências Biomédicas/USP São Paulo, SP

Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos Diretora de redação Mariluce Moura editor chefe Neldson Marcolin Editores Carlos Haag (Humanidades), Fabrício Marques (Política), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência); Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores espe­ciais); Bruno de Pierro e Dinorah Ereno (Editores assistentes) revisão Márcio Guimarães de Araújo, Margô Negro arte Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos (Editora de infografia), Maria Cecilia Felli e Alvaro Felippe Jr. (Assistente) fotógrafos Eduardo Cesar, Léo Ramos Mídias eletrônicas Fabrício Marques (Coordenador) Internet Pesquisa FAPESP online Maria Guimarães (Editora) Júlio Cesar Barros (Editor assistente) Rodrigo de Oliveira Andrade (Repórter) Rádio Pesquisa Brasil Biancamaria Binazzi (Produtora) Colaboradores Abiuro, Alexandre Affonso, Ana Lima, Bruno Zeni, Cynthia Gyuru, Daniel Bueno, Evanildo da Silveira, Hélio de Almeida, Igor Zolnerkevic, Íris Kantor, Jussara Mangini, Luana Geiger, Pedro Hamdan, Salvador Nogueira, Samuel Antenor, Sandro Castelli, Tiago Lopes, Valter Rodrigues (Banco de Imagens), Yuri Vasconcelos

É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização Para falar com a redação (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br Para anunciar (11) 3087-4212 mpiliadis@fapesp.br Para assinar (11) 3038-1434 e 3556-5204 fapesp@veganet.com.br Tiragem 44.000 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo

Mudanças climáticas

Impressiona-me o destaque catastrofista dado à questão das mudanças climáticas por Pesquisa FAPESP (“Extremos do clima”, edição 210) e pelos autores do primeiro relatório brasileiro. Parece que o texto cede ao apelo do modismo de dar impacto à informação científica, ao invés de torná-la mais compreensível e interessante a um universo maior que aquele da própria comunidade paradigmática – no caso, o paradigma do aquecimento global provocado pelo CO2. Paradigma este que esconde o fato de que haver relação verificável entre variação do CO2 antecedente à da temperatura subsequente. Será que os leitores tenderão a aceitar mais a convicção, exposta no texto, de que a temperatura vai aumentar de 3° a 6°C e as chuvas mais 40%... daqui a 100 anos? Como acreditar, se a previsão catastrófica dos últimos 15 anos – dos mesmos modelos, com todo o aumento do CO2 – não se confirmou? Será que estas previsões serviriam para “guiar as políticas públicas”? Ou devemos nos amedrontar diante de tantas ameaças? Paulo Cesar Soares Pesquisador, geólogo, doutor em ciências Curitiba, PR

6 | setembro DE 2013

Dirijo-me à revista Pesquisa FAPESP, relativamente à Carta da Editora – “Revelações sobre o futuro do clima no Brasil” (edição 210) –, pela crença de que ainda existe esperança de que o nosso ecossistema possa ser um pouco mais preservado. A leitura desse texto e as reportagens publicadas na revista trouxeram grande alento para mim e por isso gostaria de expressar meus cumprimentos a todos. Lamentavelmente nossos dirigentes ainda não perceberam o grande manancial de divisas que temos e a oportunidade de captá-las em favor de nosso país, preservando nossas matas ciliares e comercializando crédito de carbono em larga escala. Lembro que o Brasil assinou o Protocolo de Kyoto em 1999 e nos comprometemos a reduzir a emissão de 20 milhões de toneladas de carbono até 2020. Não sou eu quem afirma, pois esses dados partem de instituições mundiais que analisam a riqueza de uma nação levando em conta seu desempenho na preservação ambiental. Flávio Prada Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia/USP São Paulo, SP

Correções

Na Carta da Editora “Revelações sobre o futuro do clima no Brasil” (edição 210), em vez de “A quantidade de chuvas poderá ser 40% maior em biomas como a Amazônia e a caatinga e um terço menor nos pampas”, o correto é: a quantidade de chuvas será 40% menor na Amazônia e caatinga e um terço maior nos pampas. Na reportagem “Voo direto” (edição 210) houve uma troca nas informações sobre o bioma de duas espécies: o Psilorhamphus guttatus é da mata atlântica e o Liosceles thoracicus é da Amazônia.

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar - CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.


on-line

Nas redes

w w w . r e v i s ta p e s q u i s a . f a p e s p. b r

Adenauer Casali/Incor-USP

Germana Barata_ Faz tempo que não vejo uma capa dessas na Pesquisa. Essa queima os dedos, no bom sentido! (capa da edição 210) Sandra Soares Jorge Olivera_ Achei interessante a matéria e relaciono o tema à doação de órgãos. (Técnica permite medir estado consciente) Daniel Martins de Souza_ Acho bom [a vinda de pós-docs do exterior] Técnica pode prevenir diagnóstico enganoso de estado vegetativo

e é importante que tenhamos esta troca de experiências, é importante incentivar a internacionalização

Exclusivo no site

da pesquisa nacional – é assim que o Brasil vai atrair culturas científicas

x Uma nova técnica promete medir a consciência de um paciente em coma. O avanço vem do trabalho do físico Adenauer Casali, agora no Instituto do Coração (InCor) da Universidade de São Paulo, publicado na Science Translational Medicine. Uma atividade coordenada de diferentes áreas cerebrais em resposta à estimulação magnética transcraniana caracteriza, para ele, uma capacidade de integrar informações. Além de impedir que pessoas incapazes de comunicação com o meio externo sejam vistas como vegetativas, o trabalho pode ajudar a definir o que é estado consciente.

x Formigas que patrulham o arbusto Crotalaria pallida espantam insetos herbívoros. Mas essa associação nem sempre é benéfica, conforme mostrou o biólogo da Unicamp José Roberto Trigo, na revista Acta Oecologica: plantas cheias de formigas paradoxalmente produzem menos sementes. Isso acontece, o pesquisador descobriu, porque as guardiãs também espantam vespas que seriam mais eficientes em matar e eliminar insetos dispersores de sementes.

diferentes que podem agregar valor. (Ciência competitiva) Ana Claudia Lessinger_ Excelente! Parabéns pela rica biografia e pela escolha da temática! (William Saad Hossne: o guardião da bioética) Paula Sperb_ Que mistério o manuscrito Voynich da matéria da última Pesquisa Fapesp! Edição ótima! O texto sobre o enigma tem entrevista com Jorge Stolfi. (O Código Voynich) Alisson Gontijo_ I’m impressed:

x RÁDIO O médico e professor José Eduardo Krieger explica como a pesquisa antecipativa pode prevenir doenças cardiovasculares.

editions in four languages. Nice! (Edição Internacional em Francês 2 – 2013)

Vídeo do mês Brasil faz a maior descoberta de novas espécies de pássaros em 140 anos

Assista ao vídeo:

http://revistapesquisa.fapesp.br/?p=126360

PESQUISA FAPESP 211 | 7


Dados e projetos Temáticos e Jovem Pesquisador recentes Projetos contratados em julho e agosto de 2013 temáticos  Pesquisa e desenvolvimento de materiais nanoestruturados para aplicações eletrônicas e de física de superfícies Pesquisador responsável: Fernando Alvarez Instituição: Instituto de Física/Unicamp Processo: 2012/10127-5 Vigência: 01/07/2013 a 30/06/2017

 Plasmodium vivax: patogênese e infectividade Pesquisador responsável: Fabio Trindade Maranhão Costa Instituição: Instituto de Biologia/Unicamp Processo: 2012/16525-2 Vigência: 01/08/2013 a 31/07/2017  Desenvolvimento de novos ligantes/ drogas com ação agonística seletiva (“biased agonism”) para receptores dos sistemas renina-angiotensina e calicreínas-cininas: novas

propriedades e novas aplicações biotecnológicas Pesquisador responsável: Claudio Miguel da Costa Neto Instituição: FMUSP de Ribeirão Preto Processo: 2012/20148-0 Vigência: 01/08/2013 a 31/07/2018

Pesquisador responsável: Antonio Thomaz Junior Instituição: FCT de Presidente Prudente/Unesp Processo: 2012/23959-9 Vigência: 01/08/2013 a 31/07/2018

 Sistemas de detecção ultrasensíveis livre de rotulação para testes clínicos por meio de imitância eletroquímica Pesquisador responsável: Paulo Roberto Bueno Instituição: IQ de Araraquara/Unesp Processo: 2012/22820-7 Vigência: 01/08/2013 a 31/07/2018

 Inflamação sistêmica em pacientes com caquexia associada ao câncer: mecanismos e estratégias terapêuticas, uma abordagem em medicina translacional Pesquisadora responsável: Marilia Cerqueira Leite Seelaender Instituição: ICB/USP Processo: 2012/50079-0 Vigência: 01/07/2013 a 30/06/2017

 Mapeamento e análise do território do agro-hidronegócio canavieiro no Pontal do Paranapanema-São Paulo-Brasil: relações de trabalho, conflitos e formas de uso da terra e da água, e a saúde ambiental

 Lideranças políticas no Brasil: características e questões institucionais Pesquisadora responsável: Vera Lucia Michalany Chaia Instituição: FCS/PUC-SP Processo: 2012/50987-3 Vigência: 01/07/2013 a 30/06/2018

As 10 revistas onde autores do Brasil mais publicaram (2002 - 2013) Periódico e país onde é editado

Número de citações

Documentos indexados no Web of Science

Número médio de citações por documento

1 Journal of Dental Research (EUA)

3.986

7.207

0,55

2 Brazilian Journal of Medical and Biological Research (Brasil)

34.640

6.830

5,07

3 Pesquisa Agropecuária Brasileira (Brasil)

17.376

6.424

2,70

4 Revista Brasileira de ZootecniaBrazilian Journal of Animal (Brasil)

13.375

4.001

3,34

5 Química Nova (Brasil)

15.673

3.750

4,18

6 Arquivos de Neuro-Psiquiatria (Brasil)

11.226

3.439

3,26

7 Physical Review B (EUA)

53.710

3.276

16,39

8 Memórias do Instituto Oswaldo Cruz (Brasil)

26.070

3.204

8,14

9 Revista de Saúde Pública (Brasil)

15.277

3.022

5,06

10 Arquivo Brasileiro de Medicina Veterinária e Zootecnia (Brasil)

5.027

2.748

1,83

As 10 revistas onde trabalhos de autores do Brasil foram mais citados (2002 - 2013) Periódico e país onde é editado

Número de citações

Documentos indexados no Web of Science

Número médio de citações por documento

1 Physical Review Letters (EUA)

57.987

1.495

38,79

2 Physical Review B (EUA)

53.710

3.276

16,39

3 New England Journal of Medicine (EUA)

36.617

198

184,93

4 Brazilian Journal of Medical and Biological Research (Brasil)

34.640

6.830

5,07

5 Physical Review D (EUA)

30.995

2.270

13,65

6 Science (EUA)

28.446

255

111,55

7 Nature (Inglaterra)

27.344

257

106,40

8 Lancet (Inglaterra)

27.163

392

69,29

9 Memórias do Instituto Oswaldo Cruz (Brasil)

26.070

3.204

8,14

10 Physics Letters B (EUA)

24.665

1.441

17,12

Fonte: InCities

8 | setembro DE 2013

 Estudo de novas tecnologias e rotas de processamento para o tratamento e reciclagem de resíduos sólidos Pesquisador responsável: Jorge Alberto Soares Tenório Instituição: Escola Politécnica/USP Processo: 2012/51871-9 Vigência: 01/06/2013 a 31/05/2017  Biodiversity and ecosystem functioning in degraded and recovering amazonian and atlantic forests. (FAPESP-RCUK) Pesquisador responsável: Carlos Alfredo Joly Instituição: IB/Unicamp Processo: 2012/51872-5 Vigência: 01/08/2013 a 31/07/2017  Xingu - Integrando o planejamento do uso da terra e a governança da água na Amazônia: em busca da melhoria da segurança hídrica na fronteira agrícola do Mato Grosso. (FAPESP/Belmont Forum) Pesquisador responsável: Alex Vladimir Krusche Instituição: Cena/USP Processo: 2013/50180-5 Vigência: 01/09/2013 a 31/08/2017 Jovem Pesquisador  Equilíbrio sólido-líquido de compostos graxos e ponto de fulgor de Biodiesel Pesquisadora responsável: Mariana Conceição da Costa Instituição: FCA/Unicamp Processo: 2012/05027-1 Vigência: 01/08/2013 a 31/07/2017

 Resíduos de medicamentos veterinários em alimentos: métodos analíticos multiclasses empregando LC-MS/MS, dados de exposição e estudos de depleção residual Pesquisador responsável: Jonas Augusto Rizzato Paschoal Instituição: Esalq/USP Processo: 2012/18334-0 Vigência: 01/08/2013 a 31/7/2016  Uso de medidas de complexidade de dados no suporte ao aprendizado de máquina supervisionado Pesquisadora responsável: Ana Carolina Lorena Instituição: ICT/Unifesp Processo: 2012/22608-8 Vigência: 01/08/2013 a 31/07/2017  Reconexão magnética e processos relacionados em plasmas astrofísicos colisionais e acolisionais: das chamas solares para fontes extragaláticas Pesquisador responsável: Grzegorz Kowal Instituição: EACH/USP Processo: 2013/04073-2 Vigência: 01/07/2013 a 30/06/2017


Boas práticas Num sinal de que pretende empenhar-se em conter o crescimento dos casos de má conduta científica no país, o governo da China divulgou detalhes sobre seis episódios recentes e as sanções aplicadas contra os envolvidos. Segundo a Fundação Nacional de Ciência Natural da China (NSFC, na sigla em inglês), agência governamental de fomento à pesquisa, as fraudes cometidas pelos pesquisadores envolveram plágio, apropriação de resultados de outras pesquisas e de propostas de projetos, fornecimento de informações pessoais erradas, adulteração de dados empíricos ou contratação de ghost writers para escrever artigos. Os envolvidos foram punidos com a suspensão por tempo indeterminado do direito de receber bolsas de pesquisa e verbas para projetos. Entre 2010 e junho deste ano, a NSFC recebeu 468 reclamações e denúncias envolvendo fraudes e identificou mais de 80 casos de má conduta na pesquisa. Com a crescente participação do governo chinês no financiamento da ciência e da tecnologia, um número crescente de pesquisadores apresentou documentos falsos na submissão de seus projetos. “A má conduta na pesquisa está expondo um lado negativo do desenvolvimento da ciência e da tecnologia”, disse Yang Wei, diretor da NSFC, ao site da China Radio International. De acordo com um levantamento feito em 2009 pela Associação Chinesa de Ciência e Tecnologia, dos 30.078 pesquisadores vinculados a institutos de pesquisa, universidades e hospitais entrevistados em todo o país, quase metade disse acreditar que fraude acadêmica é prática

“muito comum”. Segundo Yang Wei, isso é consequência da falta de uma definição detalhada do que é má conduta na política científica do país. Uma tentativa de estabelecer um padrão de integridade científica aconteceu em setembro de 2012, quando o governo emitiu uma série de diretrizes propondo reformas do sistema de ciência, tecnologia e inovação, de modo a expandir o direito do público de monitorar atividades de pesquisa, criar uma nova legislação e tornar mais rigorosas as punições. No mesmo ano, o Ministério da Educação caracterizou sete tipos de má conduta passíveis de punição nas universidades, como plágio, falsificação de dados científicos e adulteração de currículos, em resposta a escândalos como o que levou à demissão de dois professores da Universidade Zhenjiang, He Haibo e Li Lianda,

daniel bueno

China pune envolvidos em má conduta

que copiaram dados de outros pesquisadores em trabalhos científicos. “A China ainda precisa de leis e regulações para prevenir e punir má conduta na ciência, assim como padrões para identificar fraudes”, disse Yang Wei.

Imprudência e desleixo Pesquisadores de um respeitado laboratório de biologia molecular da Universidade de Utah, Estados Unidos, foram punidos por erros e negligências encontrados em 11 artigos publicados entre 2007 e 2011. A autora dos papers, a professora do Departamento de Medicina Ivana De Domenico, foi demitida, e o veterano patologista Jarry Kaplan, líder do laboratório, aposentou-se em meio à investigação do caso, que listou 21 erros cometidos, como alterações de imagens, gráficos e tabelas, aos quais foram adicionados dados meses depois de concluído o trabalho. O caso emergiu no ano passado, quando dois artigos sobre regulação do ferro no sangue foram retratados pela revista Cell

Metabolism, depois que o comitê de fiscalização da Universidade de Utah descobriu que um técnico do laboratório jogou no lixo os resultados primários da pesquisa. As anotações acabaram sendo recuperadas e descobriu-se que continham informações importantes que ficaram de fora dos artigos publicados. O comitê de investigação do caso não se convenceu de que houve intenção de fraudar os resultados, mas considerou que o processo foi tão marcado por desleixo e imprudência que “as publicações não representam o que foi feito no laboratório”, como explicou Jeffrey Botkin, vice-presidente para integridade da pesquisa na Universidade de Utah. PESQUISA FAPESP 211 | 9


Estratégias O avanço do acesso aberto Estudo encomendado pela Comissão Europeia mostra que em países como Estados Unidos, Suíça, Holanda e Brasil já passa de 50% a proporção de artigos publicados em revistas científicas que estão disponíveis de forma livre e gratuita em até dois anos após a divulgação. O mesmo marco foi alcançado, em escala mundial, pelas publicações em biomedicina, biologia e 1

A chegada do Alpha Delphini

O barco Alpha Delphini e o navio Alpha-Crucis ancorados em Santos: aumento da capacidade de pesquisa em oceanografia

matemática e estatística. Isso indica que o acesso aberto das publicações científicas atingiu um ponto de inflexão, disse

Foi inaugurado no dia

carência que tínhamos

a apoiar os dois projetos

12 de agosto, no porto

desde a interrupção

por entender sua

de Santos, o barco

das operações do navio

importância para o

oceanográfico Alpha

Professor W. Besnard,

avanço da pesquisa em

destaca a situação do

Delphini. Sua construção,

porque tem autonomia

oceanografia no estado

Brasil, que tem 63%

feita num estaleiro do

equivalente à dele,

de São Paulo”, disse

das publicações em

estado do Ceará,

mas com custo menor

o presidente da FAPESP,

acesso aberto graças à

tornou-se possível graças

e maior possibilidade de

Celso Lafer, que

biblioteca SciELO, um

a um projeto submetido

realização de manobras

participou da inauguração

programa especial da

à FAPESP pelo Instituto

marítimas”, disse

com o reitor da USP,

FAPESP criado em 1997

Oceanográfico (IO)

Michel Michaelovitch

João Grandino Rodas.

que hoje reúne mais

da USP no âmbito do

de Mahiques, diretor

O custo total do barco

de 240 publicações em

Programa Equipamentos

do IO-USP, à Agência

foi de R$ 6 milhões. A

vários campos do

Multiusuários (EMU).

FAPESP. O Professor

FAPESP destinou R$ 4,4

conhecimento, gerando

O início da operação do

W. Besnard foi utilizado

milhões para a construção

uma média mensal de

Alpha Delphini acontece

de 1967 até 2008,

da embarcação. O

36 milhões de downloads

pouco mais de um ano

quando sofreu um

restante – motores e uma

de artigos (ver Pesquisa

após a inauguração

incêndio e ficou sem

série de equipamentos

FAPESP n° 192).

do navio oceanográfico

condições operacionais

científicos – foi financiado

Alpha-Crucis, também

de pesquisa. “Quando os

pela USP. Sua autonomia

financiado pela FAPESP

professores da USP

de navegação é de

(ver Pesquisa FAPESP

apresentaram à FAPESP

10 a 15 dias, dependendo

n° 195), que já fez

as propostas relacionadas

do número de tripulantes,

até agora sete cruzeiros.

ao Alpha-Crucis e ao

e ele poderá operar

“O Alpha Delphini

Alpha Delphini, a

em toda a faixa de

complementa o

Fundação se dispôs,

200 milhas marítimas

Alpha-Crucis e supre uma

imediatamente,

da fronteira litorânea.

10 | setembro DE 2013

à revista Science Éric Archambault, autor do estudo. O levantamento


fotos  1, 2 e 3 eduardo cesar 4 divulgação  5 David Umberger  ilustraçãO daniel bueno

Conselheiros nomeados

Medalhas em matemática

O governador Geraldo

foi pesquisador visitante

O Brasil conquistou

Estadual de Campinas

Alckmin nomeou em 31

do Centro de Estudos

18 medalhas em

(Unicamp), da

de agosto três membros

Latino-americanos

dois recentes torneios

Universidade de São

do Conselho Superior da

(1976) e, em 1993-94,

internacionais de

Paulo (USP) e das

FAPESP, para mandatos

professor titular da

matemática. A

universidades federais

de seis anos. Eduardo

Cátedra Simón Bolivar

20ª Competição de

do Rio de Janeiro (UFRJ),

Moacyr Krieger e José

e fellow de Trinity Hall.

Matemática para

de Minas Gerais (UFMG)

de Souza Martins foram

Foi professor visitante da

Estudantes Universitários,

e do Rio Grande do Sul

reconduzidos, enquanto

Universidade da Flórida,

ocorrida na Bulgária,

(UFRGS). Já na Olimpíada

Pedro Luiz Barreiros

em 1983, e do Instituto

reuniu 321 estudantes

de Matemática da

Passos assume a vaga

de Ciências Sociais da

representando 72

Comunidade dos Países

decorrente do término do

Universidade de Lisboa,

instituições de ensino

de Língua Portuguesa,

mandato de Luiz Gonzaga

em 2000. Passos é

superior de todo o

ocorrida em Moçambique

de Mello Belluzzo.

membro do conselho de

mundo. Henrique Fiúza

e voltada ao ensino

Krieger é coordenador do

administração da Natura

do Nascimento, do

médio, o Brasil alcançou

Programa de Cardiologia

e cofundador da

Instituto Tecnológico de

a primeira posição

Translacional do Instituto

empresa. Desde 2013

Aeronáutica (ITA), foi o

na competição geral,

do Coração (InCor) e

preside o conselho de

melhor colocado entre

obtendo quatro

professor emérito da

administração da Totvs,

os brasileiros e recebeu

medalhas (uma de

Faculdade de Medicina

empresa de TI. Graduado

a medalha de ouro da

ouro e três de prata).

de Ribeirão Preto da

em engenharia de

competição. Os brasileiros

Gabriel Toneatti

Universidade de São

produção pela USP,

conseguiram outras 11

Vercelli, de São Paulo,

Paulo (USP). Presidiu a

com extensão em

medalhas de prata e duas

conquistou a medalha

Inter-American Society

administração de

de bronze no evento.

de ouro. João Campos

of Hypertension, a

empresas pela Fundação

A delegação também

Vargas, de Minas Gerais,

Academia Brasileira de

Getúlio Vargas, é

teve representantes

Lucca Siaudzionis, do

Ciências, a Sociedade

presidente do Instituto

do Instituto Militar

Ceará, e Lucas Galvão

Brasileira de Fisiologia

de Estudos para

de Engenharia

de Barros, de São Paulo,

e a Federação das

o Desenvolvimento

(IME), da Universidade

ganharam prata.

Sociedades de Biologia

Industrial (Iedi) e da

Experimental. Souza

Fundação SOS Mata

Martins é professor

Atlântica. Integra o

emérito e professor

conselho curador da

titular aposentado de

Fundação Nacional da

sociologia da Faculdade

Qualidade e os conselhos

de Filosofia, Letras e

do Instituto Empreender

Ciências Humanas da

Endeavor, do Instituto de

USP. Na Universidade de

Pesquisas Tecnológicas e

Cambridge (Inglaterra),

da Fundação Dom Cabral.

2

3

4

Eduardo Moacyr Krieger, José de Souza Martins e Pedro Barreiros Passos: mandatos de seis anos

Astrofísica indicada para agência dos EUA O presidente Barack Obama escolheu a

na, entre 1993 e 1996, e ocupava o

astrofísica France Córdova, 66 anos,

cargo de presidente do Conselho de

para dirigir a National Science Foundation

Regentes da Smithsonian Institution, que

(NSF), agência que é uma das principais

compreende 19 museus em Washington,

raios-X e gama e atuou nas universidades

fontes de financiamento nos Estados

Estados Unidos. Se confirmada a indica-

da Califórnia e da Pensilvânia. Recente-

Unidos em pesquisa básica e educação

ção pelo Senado, irá substituir Subra

mente, presidiu a Universidade Purdue.

nas ciências e engenharias, com orça-

Suresh, que deixou a agência três anos

“Ela será capaz de trabalhar com inteli-

mento de US$ 7 bilhões. Nascida em

antes de completar seu mandato para

gência e colaboração, construindo diá-

Paris, filha de mãe mexicana e pai norte-

presidir a Carnegie Mellon University.

logos com o Congresso e parceiros inter-

-americano, ela foi cientista-chefe da

Autora de mais de 150 artigos científicos,

nacionais”, disse à revista Nature Daniel

Nasa, a agência espacial norte-america-

Córdova se destacou em pesquisas com

Goldin, ex-administrador da Nasa.

5

France Córdova: da Nasa à NSF

PESQUISA FAPESP 211 | 11


Tecnociência Sardinhas em cativeiro Uma metodologia para

tanques-rede no litoral

a reprodução de

norte de Santa Catarina,

sardinhas em cativeiro

onde estão sob os

foi desenvolvida com

cuidados de pesquisadores

sucesso por pesquisadores

da Universidade do Vale

da Universidade Federal

do Itajaí (Univali) e serão

de Santa Catarina (UFSC).

recolhidas por um barco

“Não há criadouros de

pesqueiro de atum.

sardinha no país, apenas

O processo de criação

captura em alto-mar para

começou com a pesca

uso como alimento ou

no mar, prosseguiu com

isca viva para a pesca

a aclimatação dos peixes

de atum, processo que

dentro de tanques no

resulta em muitas perdas”,

laboratório e a indução

diz Cristina Carvalho,

de desova. Quando se

pós-doutoranda e

encontram na forma

participante do projeto

de larva, logo após o

chamado Isca Viva,

nascimento, elas comem

coordenado pelo professor

rotíferos, um tipo de

Vistas no espaço com o

emanam do objeto

Vinicius Cerqueira,

verme de água doce,

auxílio do mais potente

Herbig-Haro 46/47,

do Laboratório de

e artêmias, um

radiotelescópio em

situado na constelação

Piscicultura Marinha

minicrustáceo. Na fase

operação na Terra, as

austral de Vela, a

(Lapmar) da UFSC. Como

adulta, ração comercial.

nuvens de moléculas de

1.400 anos-luz da Terra

resultado do trabalho

Com cerca de 30 a 40 dias

monóxido de carbono

(Astrophysical Journal,

iniciado em 2009,

já atingem cerca de

(CO) podem revelar

no prelo). Um dos jatos,

que envolveu estudos de

5 centímetros, tamanho

detalhes até agora ocultos

em rosa e púrpura na

maturação e reprodução,

mínimo para servir de

da atividade de estrelas

imagem acima, aponta

alimentação e

isca viva. São parceiros

recém-nascidas.

para o nosso planeta.

comportamento, cerca de

no projeto a Univali

Ao apontar por cinco

O outro, em laranja

8 mil sardinhas nascidas

e o Centro de Pesquisa e

horas as antenas do

e verde, que não tinha

e criadas em cativeiro

Gestão de Recursos

Observatório Alma,

sido identificado em

foram transportadas

Pesqueiros do Litoral

localizado no deserto

observações na luz

em agosto para

Sudeste e Sul (Cepsul).

chileno do Atacama, para

visível, se prolonga

o brilho produzido por

na direção contrária.

esse gás em torno de

“Detectamos

um objeto denominado

características novas

Herbig-Haro 46/47, uma

nesse objeto, como esse

equipe internacional de

fluxo molecular muito

astrofísicos percebeu

rápido”, diz Héctor Arce,

que os jatos ao redor do

da Universidade Yale,

corpo celeste são mais

principal autor do estudo.

energéticos do que se

Objetos Herbig-Haro são

imaginava. Alguns fluxos

regiões do espaço onde

de CO se movem a uma

o material ejetado por

velocidade quase quatro

estrelas jovens se choca

vezes mais rápida do que

violentamente – a

medições anteriores

velocidades de quase

haviam detectado. Os

1 milhão de quilômetros

pesquisadores também

por hora – com o

descobriram que dois

gás ao redor, gerando

grandes jatos, e não um,

um forte brilho.

Objeto Herbig-Haro 46/47: material ejetado por estrela jovem colide com gás e produz dois jatos

Jatos energéticos

Criado em laboratório, cardume é instalado em tanques-rede no mar

1

12 | setembro DE 2013

2


Luz do sol sem calor

Álcool muda o funcionamento do cérebro

Um novo tipo de

O consumo crônico de doses elevadas de

-frontal, envolvido na tomada de decisão

material para aplicação

álcool muda o funcionamento do cérebro.

consciente. A confirmação de que esse

em janelas e fachadas

Altera a estrutura e aumenta a atividade

mecanismo está associado ao consumo

de edifícios, feito com

de uma área cerebral profunda, o núcleo

compulsivo e à de­­pendência de álcool

nanocristais ajustáveis

estriado, associada ao comportamento

veio de um estudo de Andrew Holmes,

eletricamente, permite

impulsivo e à formação de hábitos. Com

dos Institutos Nacionais de Saúde dos

selecionar com um

o tempo, o funcionamento dessa região

Estados Unidos. Ele e seus colaboradores

simples apertar de botão

passa a prevalecer sobre o do córtex pré-

submeteram camundongos a ciclos que

a passagem da luz e do

simulavam bebedeiras antes de ver o

calor do sol de forma

efeito no cérebro. Por quatro dias se-

independente. Em dias

guidos, os roedores passavam 16 horas

quentes, por exemplo,

expostos a uma elevada concentração

o usuário poderá

de etanol vaporizado no ar, intercaladas

selecionar apenas a

por 8 horas sem álcool. Esses animais

iluminação da luz visível

preferiam beber água com álcool nos

sem o calor, já que uma

dias seguintes à água pura. No fim do

pequena voltagem se

teste, as células do núcleo estriado dos

encarrega de bloquear

roedores que passaram pela bebedeira

a parte da radiação do

apresentavam mais conexões e eram

espectro infravermelho.

mais ativas que as dos expostos apenas

A tecnologia,

ao ar (PNAS, 19 de agosto).

desenvolvida por pesquisadores do Laboratório Nacional

Microcápsulas em tinta inibem corrosão

Lawrence Berkeley,

fotos 1 UFSC 2 ESO / ALMA (ESO / NAOJ / NRAO) / H. Arce   3 Poli-USP  ilustraçãO daniel bueno

dos Estados Unidos, foi capa da edição da

O combate à corrosão

São Paulo (Poli-USP).

diz a professora Idalina

Nature de 15 de agosto.

acontece em várias

Elas inibem a corrosão

Vieira Aoki, da Poli-USP,

Os vidros da janela

frentes na indústria.

no caso de riscos e

orientadora do

podem ficar totalmente

Camadas protetoras de

choques em chapas

engenheiro Fernando

transparentes ou

uma diversidade grande

metálicas pintadas.

Cotting, que pesquisou

escuros, bloqueando

de produtos garantem

A substância encapsulada

o composto durante

ao mesmo tempo a luz

a integridade dos metais.

em microcápsulas de

seu mestrado. Outra

visível e a radiação

O arsenal existente

poliestireno contém

novidade apresentada

infravermelha.

poderá ser fortalecido

silanol, um composto

é o tipo de inibidor.

A tecnologia é baseada

com mais uma arma:

químico que tem o silício

“A mistura do silanol com

em um novo material

microcápsulas que

como principal

íons de cério resulta em

eletrocrômico, que muda

contêm uma substância

componente, e o cério,

uma atividade mais

de cor pela aplicação

inibidora para serem

um elemento químico

efetiva na proteção

de uma corrente elétrica,

misturadas a tintas,

classificado como

contra a corrosão”, diz

resultado de pesquisa

terra-rara. O novo

Idalina. O estudo venceu

desenvolvida na

produto, quando

em julho o Prêmio

Escola Politécnica da

misturado a tintas,

Petrobras de Tecnologia

Universidade de

consegue impedir o

na área de tecnologia

processo de corrosão

de logística e de

nióbio. O material, além

em dutos e tanques

transporte de petróleo,

de permitir controlar a

de armazenamento

gás e derivados. Outras

passagem de luz e calor,

de petróleo. “Quando

aplicações previstas estão

proporciona maior

ocorre um dano

nas chapas metálicas

interação na área em

mecânico como riscos

utilizadas na indústria

que a matriz vítrea

ou batidas, as cápsulas

automotiva e em produtos

encontra os nanocristais,

adicionadas à tinta se

da linha branca, como

o que aumenta a

rompem e liberam os

geladeiras e máquinas de

potência do efeito

componentes que agem

lavar, além de armários

eletrocrômico.

contra a corrosão”,

de aço para escritório.

feito a partir de nanocristais de óxido de índio e estanho incorporados numa matriz vítrea de óxido de

Imagem de microscopia de cápsulas de poliestireno com substâncias anticorrosão

PESQUISA FAPESP 211 | 13


Raridades nos recifes

1

Genética do pinhão-manso

Flores da Jatropha curcas: sistema misto de reprodução

Vasculhando crostas e

estão entre os seres

fendas de recifes de

multicelulares mais

coral de praias

antigos e preferem

concorridas próximas a

crescer nas áreas mais

Maceió, capital de

escuras e profundas

Alagoas, um grupo

dos recifes, onde

de pesquisadores da

não enfrentam a

Universidade Federal de

concorrência de algas e

Alagoas (Ufal) e do

corais, que crescem mais

Museu Nacional da

eficientemente em

Universidade Federal

trechos mais iluminados.

do Rio de Janeiro (UFRJ)

Foi encontrado apenas

identificou três novas

um indivíduo de duas

espécies de esponjas

espécies identificadas

marinhas. As espécies

agora – e dois da

foram descritas em

terceira. Em geral, cada

artigo publicado em

exemplar tinha poucos

agosto no Journal of

centímetros. Hajdu

Natural History, assinado

explica que as esponjas,

Grande promessa de

de pólen, resultando em

matéria-prima para a

sementes idênticas à

produção de biodiesel,

mãe, e o cruzamento de

por Victor Cedro e

além de ajudar a moldar

por apresentar elevado

indivíduos aparentados,

Mônica Correia, da Ufal,

reentrâncias nos recifes

potencial de rendimento

fatores que podem

e Eduardo Hajdu, da

que servem de abrigo

de óleo em suas

explicar a pequena

UFRJ. Uma das novas

para outros organismos,

sementes, o cultivo do

diversidade genética

espécies é a Plakina

colaboram no controle

pinhão-manso (Jatropha

da planta”, diz o

coerulea, de cor azul,

da população de

curcas) não obteve o

pós-doutorando Eduardo

muito rara entre

bactérias, das quais se

sucesso esperado em

Bressan, do Cena, que se

esponjas – elas

alimentam ao filtrar

lavouras do Brasil,

doutorou com bolsa da

costumam ser vermelhas

a água do mar. “Elas

Índia e China, os maiores

FAPESP sob a orientação

ou amarelas. As outras

filtram por dia um

produtores. Além da

do professor Antônio

duas são a Rhabderemia

volume de água 10 mil

falta de informações

Figueira. “Com o sistema

meirimensis e a Mycale

vezes maior que o seu

agronômicas, outra

misto de reprodução

rubra. A descoberta é

tamanho”, diz Hajdu.

questão é a baixa

e os acasalamentos

surpreendente porque

“Deve haver outras

diversidade genética

correlacionados, a coleta

a região vem sendo

espécies raras vivendo

da planta, o que dificulta

de sementes de

vasculhada há décadas e

próximas às cidades e

a seleção de sementes

polinização aberta para

sofre diariamente com o

que nunca vamos

e uma melhor

fins de melhoramento

impacto da visitação da

conhecer, se não houver

produtividade. Essa

deve ser conduzida em

população local e dos

uma mudança de atitude

característica foi

um grande número de

turistas, que danificam

quanto à conservação

explorada por

plantas, para garantir

os recifes. As esponjas

desses ambientes.”

pesquisadores do Centro

uma amostra que

de Energia Nuclear na

represente os genes

Agricultura (Cena)

a serem transferidos

da Universidade de

e recombinados para

São Paulo (USP) e da

formar as gerações

Universidade Federal

futuras”, diz Bressan.

de São Carlos (UFSCar).

O estudo que confirmou

“Por meio de marcadores

o sistema de reprodução

genéticos mostramos

do pinhão-manso e

que o pinhão-manso

gerou conhecimento

apresenta um sistema

para programas de

misto de reprodução,

melhoramento genético

combinando

da cultura foi publicado

autofecundações,

na edição de agosto

apomixia, de forma

da revista científica Tree

assexuada e sem troca

Genetics & Genomes.

14 | setembro DE 2013

Nas praias de Maceió: a esponja azul Plakina coerulea, de cor incomum

2


Mortes por poluição nos Estados Unidos Nos Estados Unidos acontecem cerca

mortes relacionadas a doenças cardio-

de Proteção Ambiental dos Estados

de 200 mil mortes por ano em decor-

pulmonares, câncer de pulmão e outras

Unidos, que mapeia as fontes de emissão,

rência da emissão de poluentes de fon-

enfermidades respiratórias. Os pesqui-

eles concluíram que o estado da Cali-

tes de combustão como chaminés in-

sadores, liderados pelo professor Steven

fórnia é o mais problemático, com 21 mil

dustriais, escapamento de veículos e

Barrett, indicam que a maior fonte de

mortes por ano, tendo como causas o

geração de energia elétrica com carvão.

poluentes de material particulado fino,

transporte rodoviário e o aquecimento

A conclusão é de um estudo a ser publi-

com diâmetro menor que 2,5 micrôme-

residencial e comercial. Para Barrett,

cado na edição de novembro da revista

tros, é o transporte rodoviário, respon-

em comunicado do MIT, “nos últimos 10

Atmospheric Environment realizado por

sável por 53 mil mortes, seguida da

anos, as evidências ligando a exposição

pesquisadores do Laboratório para Avia-

produção de energia com carvão, com

da poluição atmosférica ao risco de mor-

ção e Meio Ambiente do Instituto de

52 mil mortes. Com os dados do Inven-

te prematura estão solidificadas e ga-

Tecnologia de Massachusetts (MIT). São

tário Nacional de Emissões da Agência

nharam força científica e política”.

Robô falante no espaço

fotos 1 Eduardo Bressan /Cena /usp 2 Eduardo Hajdu  3 Jaxa  ilustraçãO daniel bueno

Antiga selva mineira

A língua utilizada na

comunicativa e menos

International Space

penosa. A companhia

Station, ou a estação

não é um mero

espacial internacional,

agrado da Agência de

a ISS que orbita a Terra,

Exploração Aeroespacial

é o inglês, mas o

do Japão (Jaxa, na

astronauta Koichi

sigla em inglês) para

Wakata, do Japão, viaja

o astronauta, mas

com um companheiro

um experimento

chamado Kirobo que fala

de conversação e

japonês e é considerado

comunicação entre um

A região da serra do

o ambiente em que

o primeiro robô falante

humano e um robô

Caraça, no interior de

viviam. Eram sobretudo

espacial. Ele tem a

em uma nave espacial.

Minas, onde predomina o

árvores da família

missão de conversar

Kirobo foi desenvolvido

cerrado e um clima fresco,

das mirtáceas, hoje

e tornar a estada de

por Tomotaka

pode ter sido bem

representadas

Wakata, de 18 meses

Takahashi, professor da

chuvosa e quente, com

por goiabeiras e

na estacão, mais

Universidade de Tóquio,

temperatura média anual

jabuticabeiras, e das

e diretor da RoboGarage,

de 28 graus Celsius. Isso

leguminosas, como

empresa produtora

há 30 milhões de anos,

o pau-brasil. Essas

de robôs com origem

de acordo com o biólogo

características tornam a

na Universidade de

Jean Carlo Mari Fanton.

paleofloresta mineira

Kyoto, e também

Ele examinou ao

uma precursora da mata

com a participação das

microscópio 64

atlântica. Folhas grandes

empresas Toyota e

exemplares de folhas

e largas com a ponta

Dentsu, além da Jaxa.

fósseis de 25 espécies

muito afilada, facilitando

O robô astronauta

de plantas com flores

o escoamento da água,

é pequeno, tem 34

(angiospermas)

indicam que viviam

centímetros de altura,

encontradas nas bacias

em um ambiente com

pesa 980 gramas e

de Gandarela e Fonseca.

abundância de chuvas.

possui sistemas de

Detalhes preservados,

Esses resultados são

reconhecimento de voz,

como glândulas, pelos

parte do doutorado

síntese de fala, criação

e o formato e outras

concluído este ano por

características das folhas,

Fanton no laboratório

permitiram determinar

de Fresia Torres Branco,

o parentesco dessas

na Universidade Estadual

plantas com espécies

de Campinas (Unicamp).

atuais, além de conhecer

(Jornal da Unicamp)

e gerenciamento de Kirobo: faz parte de um experimento de comunicação na estação espacial

conteúdo. Ele chegou à estação espacial no dia 10 de agosto a bordo de uma nave cargueira 3

japonesa, a Kounotori 4. PESQUISA FAPESP 211 | 15


Uma hipótese para a grande extinção Cratera aberta no centro do Brasil pode ter causado um aquecimento global que teria levado à maior eliminação de espécies da história da Terra

PangEia

local Há pouco mais de 250 milhões de anos, quando todos os continentes estavam agrupados num único supercontinente (Pangeia), um meteorito com diâmetro estimado de 4 quilômetros atingiu o território hoje dividido pelas cidades de Araguainha e Ponte Branca, no sudeste do Mato Grosso, perto da divisa com Goiás.

impacto A queda da rocha celeste abriu uma cratera de 40 quilômetros e destruiu imediatamente tudo que estava a 250 quilômetros ao seu redor. A colisão liberou uma energia equivalente a 1 milhão de megatoneladas de TNT, gigantesca, mas incapaz de alterar diretamente o clima de todo o globo.

terremotos Novas evidências geológicas sugerem que pode ter havido muitos terremotos com magnitude de até 9,9 graus na escala Richter num raio de mil quilômetros em torno do local da queda do meteorito e liberação de uma quantidade descomunal de um gás de efeito estufa, o metano, que estava aprisionado até então no subsolo.

efeito estufa O meteorito de Araguainha caiu numa região rica em depósitos de carbono orgânico, a Formação Irati, e as ondas de choques decorrentes da abertura da cratera fraturaram as rochas e soltaram 1.600 gigatoneladas de metano. Resultado: o clima em Pangeia, que já tinha como característica ser extremamente árido em seu interior, teria esquentado demais e provocado a morte de 96% das espécies da Terra. 16 | setembro DE 2013


capa

A estufa de Araguainha Queda de meteorito no Mato Grosso há 250 milhões de anos pode ter liberado metano suficiente para provocar um aquecimento global e causar a maior extinção de espécies conhecida Marcos Pivetta

ilustraçãO sandro castelli

N

o último meio bilhão de anos houve cinco grandes extinções em massa na Terra. A mais recente e também mais famosa ocorreu cerca de 65 milhões de anos atrás, matou 75% de todas as espécies de vida e incluiu entre suas vítimas fatais os dinossauros. Os impactos climáticos causados pela queda de um meteorito que abriu uma cratera de 180 quilômetros perto da costa do que hoje é o México costumam ser apontados como a provável causa dessa mortandade em larga escala, que marca o fim do período Cretáceo. Mas esse não foi o episódio mais traumático para a biodiversidade do planeta. Há pouco mais de 250 milhões de anos, quando ainda não havia dinossauros ou mamíferos e

todos os continentes atuais estavam unidos no antigo supercontinente Pangeia, 96% das espécies da Terra sucumbiram em razão de um ou vários eventos trágicos e misteriosos. Segundo um estudo recém-publicado por pesquisadores da Austrália, Reino Unido e Brasil na revista científica Palaeogeography, Palaeoclimatology, Palaeoecology, a maior extinção conhecida, que sinaliza o término do período Permiano, pode ter sido desencadeada pelos efeitos indiretos decorrentes da abertura de uma cratera de 40 quilômetros de diâmetro no território hoje dividido pelas cidades de Araguainha e Ponte Branca, no sudeste do Mato Grosso, perto da divisa com Goiás. A colisão em si do meteorito de aproximadamente 4 quilômetros de diâmetro que criou essa PESQUISA FAPESP 211 | 17


Margem da cratera

Ponte Branca

MT DF

Araguainha

enorme cicatriz no relevo do Brasil Central, conhecida como domo ou cratera de Araguainha, não tinha potencial para acabar com a vida numa escala global. A energia produzida pelo impacto da rocha celeste com a superfície terrestre deve ter destruído imediatamente tudo que estava a até 250 quilômetros ao seu redor. “A queda do meteorito em Araguainha não tinha capacidade para provocar uma extinção global em massa”, afirma o geólogo Eric Tohver, da University of Western Australia, primeiro autor do trabalho, no qual colabora com uma equipe da Universidade de São Paulo (USP). “Mas seus efeitos indiretos sim.” Terremotos e tsunamis

Uma sucessão de eventos decorrentes do impacto pode ter provocado em questão de dias um rápido e fatal aquecimento global. A natureza e a abrangência da área de ocorrência de certos depósitos sedimentares parecem indicar que eles foram originados por tsunamis. Outras evidências geológicas sugerem que podem ter ocorrido muitos terremotos com magnitude de até 9,9 graus na escala Richter num raio de mil quilômetros em torno da cratera. Os intensos tremores de terra teriam fraturado as rochas ricas em carbono orgânico da Formação Irati, da qual faz parte a região de Araguainha, e liberado uma quantidade descomunal de um gás de efeito estufa, o metano. De acordo com os cálculos dos pesquisadores, em questão de dias podem ter sido liberadas na atmosfera 1.600 gigatoneladas de metano, quase cinco vezes mais do que o despejado no planeta desde o início da Revolução Industrial, há 250 18 | setembro DE 2013

anos. Essa ideia se apoia numa descoberta recente feita pelos pesquisadores. As rochas da região apresentam uma assinatura isotópica estranha: são empobrecidas em carbono 12 e ricas em carbono 13. A explicação para essa anomalia é que elas liberaram uma grande quantidade de metano, que tem carbono em sua composição, para a atmosfera. Se o ar foi repentinamente tomado por esse gás, o aquecimento global em Pangeia – que já tinha como marca registrada um clima de extremos, em especial em suas áreas áridas mais centrais, onde as temperaturas ultrapassavam os 60ºC – teria sido tão brusco que poucas formas de vida conseguiram se adaptar às novas condições ambientais. “Em geral, a grande extinção do fim do Permiano costuma ser atribuída a alterações decorrentes de vulcanismos e da liberação de lava”, diz o geólogo Ricardo Trindade, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, outro autor do estudo, parcialmente financiado pela FAPESP. “Mas nossa hipótese indica que a cratera de Araguainha pode ter tido um papel importante, ainda que indireto, nesse processo.” Num primeiro momento, a possibilidade de um meteorito ter sido o agente detonador de uma mudança climática global que levou ao maior processo de extinção de vida na Terra faz lembrar a saga do fim dos dinossauros. Então, a mesma história se repetiu nas duas extinções, na do Permiano e na do Cretáceo? Em ambas as situações há semelhanças: rochas caídas do espaço e as respectivas crateras terrestres podem ter ocasionado mudanças climáticas que estariam envolvidas nos dois processos de extinção. Mas nem


tudo teria sido exatamente igual. A dinâmica de cada evento teria sido única. O meteorito que, há 65 milhões de anos, caiu na península mexicana de Yucatán tinha pelo menos 10 quilômetros de diâmetro e deu origem a uma cratera, a de Chicxulub – quase cinco vezes maior do que a de Araguainha. A energia produzida apenas pelo impacto da rocha celeste foi milhões de vezes maior do que a de uma bomba atômica. Por si só, a queda do meteorito representou uma grave alteração na dinâmica do planeta. A quantidade de poeira produzida pela explosão

A nova idade da cratera

Até o ano passado, seria impensável sequer associar a grande extinção do Permiano a eventuais alterações decorrentes do surgimento do domo de Araguainha, a maior e mais antiga cratera brasileira confirmadamente aberta pela queda de um meteorito (ver texto na página 21 sobre as crateras até hoje descobertas no país). A idade estimada de Araguainha era de 245 milhões de anos, ou seja, os geólogos acreditavam que Maior mortandade da história, a cratera teria se formado a grande extinção do Permiano depois da grande mortandade de espécies. No eneliminou 96% das espécies vivas tanto, uma datação por técnicas mais modernas, feita por Tohver e os brasileiros e publicada na revista Geodeve ter bloqueado a chegada dos raios solares chimica et Cosmochimica Acta de junho de 2012, sobre a Terra e jogado o planeta num cenário de chegou a uma idade mais precisa para a cicatriz inverno nuclear, de escuridão e de frio intenso. deixada pelo meteorito no Brasil Central: 254,7 O quadro da grande extinção de Pangeia teria milhões de anos, com uma margem de erro de 2,5 algumas peculiaridades, a se levar em conta a milhões de anos para cima ou para baixo. Como a nova hipótese formulada por Tohver, Trindade extinção do Permiano ocorreu há 252,2 milhões e seus colegas. O impacto direto do meteorito de de anos, a cratera de Araguainha talvez tenha se Araguainha teria tido apenas um efeito destrutivo originado um pouco antes da grande mortandade regional. As consequências sobre o clima global de espécies. “Não há nenhuma outra cratera no teriam sido causadas pela série de terremotos que mundo que seja dessa mesma época, da transição fez as rochas da Formação Irati liberarem metano do Permiano para o Triássico”, explica o geólogo e provocarem o efeito estufa exacerbado. Nesse Cristiano Lana, da Universidade Federal de Ouro caso, a grande extinção do Permiano teria sido Preto (Ufop), outro autor do trabalho.

mapa  carlos roberto de souza filho / unicamp foto eric tohver

Imagem de satélite do domo de Araguainha (à esq.) e vista da área da cratera (abaixo): região rica em depósitos de carbono orgânico

causada pelo aquecimento do clima, enquanto a do Cretáceo seria decorrente do esfriamento. “Foi azar o meteorito ter caído numa região rica em carbono orgânico”, afirma Tohver.

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fotos  eric tohver

Cones de estillhaçamento em Araguainha (acima): evidências de que meteorito abriu a cratera. À direita, ossos fossilizados: amostra da vida local

Procurar as origens de um fenômeno de escala tão grande como o aniquilamento de quase toda a vida sobre a Terra há 250 milhões de anos não é uma tarefa trivial e qualquer hipótese aventada sempre é passível de críticas e polêmicas. O geólogo Alvaro Penteado Crósta, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), um dos maiores estudiosos de crateras no país, acredita que ainda são necessários mais dados para realmente associar a extinção do Permiano a efeitos indiretos do surgimento do domo de Araguainha. “Trata-se de uma hipótese interessante. Contudo, não há evidências de que a quantidade de matéria orgânica presente A nova hipótese nas rochas da região (Formação Irasobre o possível ti) tenha sido suficiente para liberar tamanha quantidade de metano”, diz papel da Crósta. “Além disso, o processo de liberação do metano a partir de oncratera brasileira das sísmicas proposto pelos autores necessitaria ser mais bem estudado, na extinção assim como a proposta de que tsudo Permiano é namis de grande magnitude teriam se propagado a distâncias de vários polêmica e ainda milhares de quilômetros em um ambiente marinho de águas rasas, o que será alvo de não seria de se esperar.” Segundo o geólogo Claudio Riccomini, do novas pesquisas Instituto de Geociências (IGc) da USP, outro autor do trabalho sobre o possível papel de Araguainha na extinção do Permiano, a Formação Irati apresenta teores de até 20% de carbono orgânico que tornam razoável formular essa hipótese. Alguns estudiosos sustentam que a extinção não teve uma causa, mas talvez várias, como a queda de meteoritos, a atividade vulcânica e variações no nível do mar. “Para os que defendem 20 | setembro DE 2013

uma multicausalidade para o fenômeno, teria sido justamente a somatória dos efeitos, e não necessariamente a intensidade de cada um, a responsável pela magnitude dessa grande extinção. Nesse caso, porém, a principal dificuldade é demonstrar o sincronismo entre as várias causas e determinar o momento em que foi atingido o limiar que levou à extinção”, diz o paleontólogo Cesar Schultz, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Nesse tipo de contexto, qualquer uma das causas poderia ter sido ‘a gota d’água’ que fez o copo transbordar. Mesmo que se possa questionar se a intensidade do impacto de Araguainha teria sido suficiente para, isoladamente, causar a extinção, ele poderia ter sido essa ‘gota d’água’.” Entretanto, Schultz ressalta que a diferença de tempo entre a idade atribuída à queda do meteorito em Araguainha e a grande mortandade de espécies do Permiano está no limite da margem de erro do método utilizado por Tohver e o grupo da USP. Isso ainda é um complicador, diz o paleontólogo, uma vez que os autores propõem uma relação imediata de causa e efeito entre o impacto da rocha extraterrestre e as mudanças climáticas que levaram à extinção. n

Projeto Caracterização geofísica e petrofísica da estrutura de impacto de Araguainha (nº 2005/51530-3); Modalidade Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa; Coord. Yára Regina Marangoni/IAG-USP; Investimento R$ 217.201,69 (FAPESP).

Artigos científicos TOHVER, E. et al. Shaking a methane fizz: Seismicity from the Araguainha impact event and the Permian–Triassic global carbon isotope record. Palaeogeography, Palaeoclimatology, Palaeoecology. Publicado on-line em 18 jun. 2013. TOHVER, E. et al. Geochronological constraints on the age of a Permo–Triassic impact event: U–Pb and 40Ar/39Ar results for the 40 km Araguainha structure of central Brazil. Geochimica et Cosmochimica Acta. v. 86, n. 1, p. 214-27. jun. 2012.


capa

Meteorito no Piauí Cratera de Santa Marta foi aberta por queda de rocha celeste

Tefé

Riachão Serra da Cangalha Santa Marta

D

foto  Alvaro Penteado Crósta  mapa  sandro castelli

as pouco mais de uma dezena de crateras identificadas em solo brasileiro, sete comprovadamente foram abertas pela queda de um meteorito ou cometa. A mais recente a ganhar esse reconhecimento é a de Santa Marta, uma estrutura circular com diâmetro de cerca de 10 quilômetros, perto da cidade de Gilbués, no sul do Piauí. Durante o 76º Encontro Anual da Sociedade Meteorítica, realizado entre o final de julho e início de agosto no Canadá, os geólogos Alvaro Penteado Crósta, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e Marcos Alberto Rodrigues Vasconcelos, pós-doutorando com bolsa da FAPESP, apresentaram evidências de que essa cicatriz no relevo nordestino foi realmente causada pela colisão de um meteorito. Os pesquisadores estiveram na cratera no final do ano passado e coleta-

Domo de Araguainha

As principais crateras no território brasileiro Origem por impacto de meteorito Possível origem por impacto de meteorito

ram amostras de rochas sedimentares que exibem registros macroscópicos e microscópicos do impacto de um corpo celeste: os chamados cones de estilhaçamento ou shatter cones, estruturas estriadas que lembram a ponta de uma árvore de Natal, e deformações planares em cristais de quartzo. “Ainda não sabemos com certeza a idade da cratera”, afirma Crósta, que em breve vai publicar um artigo científico com mais detalhes sobre o trabalho. Eles estimam que Santa Marta se formou entre 145 e 300 milhões

Núcleo da cratera de Santa Marta, no Piauí: a sétima no Brasil criada pelo impacto de uma rocha celeste

Piratininga

Vista Alegre Domo de Vargeão

Colônia Praia Grande

Cerro Jarau

de anos atrás, pois ali encontraram rochas sedimentares que vão do período Cretáceo ao início do Carbonífero. A localização da nova cratera, que foi identificada pela primeira vez em mapas cartográficos na década de 1970 e posteriormente em imagens de satélite, desperta a curiosidade dos pesquisadores. Afinal, Santa Marta se situa numa área relativamente próxima a duas formações comprovadamente surgidas em razão de impactos de rochas celestes: as crateras de Serra da Cangalha, no Tocantins, e Riachão, no Maranhão. As três estão dentro da bacia do Parnaíba e estão sendo estudadas em mais detalhes pelo grupo da Unicamp em parceria com cologas do Museu de História Natural de Berlim. A quantidade de crateras encontradas no Brasil é pequena quando comparada com as identificadas no mundo, que passam de 180, com grande concentração na América do Norte, Austrália e Europa. Isso não quer dizer que poucos meteoritos ou cometas caíram por aqui. Eles caíam, mas seus vestígios foram apagados ou simplesmente não puderam ser encontrados. “Ainda temos pouca pesquisa nessa área”, comenta Crósta. n PESQUISA FAPESP 211 | 21


Léo Ramos

entrevista SILVIA REGINA BRANDALISE

Inconformismo no sangue Carlos Fioravanti e Neldson Marcolin

E

m um leilão de arte, a médica Silvia Brandalise queria levar justamente um quadro que não estava à venda. Insistiu, não conseguiu, mas dias depois a própria artista lhe ofereceu o quadro – um anjo ajoelhado que toma uma margarida nas mãos –, hoje na capela de amplos vitrais com desenhos de árvores do Centro Infantil de Investigações Hematológicas Dr. Domingos A. Boldrini, em Campinas. O Centro Boldrini, como é mais conhecido, é um hospital especializado no tratamento de crianças com câncer a que Silvia começou a dar forma em 1970 no porão de um sobrado em frente à Santa Casa de Campinas. Em 1978, com o apoio de um clube de serviço de senhoras da cidade, o Clube da Lady, o Centro Infantil Boldrini – com laboratórios, sala de quimioterapia e ambulatório, com ênfase na prestação de serviço gratuito aos pacientes e famílias – começou a funcionar numa casa alugada em frente ao Banco de Sangue da Santa Casa. O hospital nasceu com uma doação do Instituto Robert Bosch, que financiou a construção, em 1.500 metros quadrados (m 2), e cresceu com a ajuda de outras instituições e empresas até atingir os atuais 40 mil m 2 de área construída em um terreno de 100 mil m 2. Silvia Brandalise ajudou a edificar os pilares da oncologia pediátrica no Brasil, centralizou o atendimento, desse modo evitando a peregrinação de crianças e pais por vários hospitais, e implantou tratamentos de maior eficácia e menor toxicidade. Ela coordenou os estudos que definiram os protocolos de tratamento da leucemia linfoide aguda, o câncer infantil mais frequente, que acomete as células brancas do sangue, indicada pela Sociedade Brasileira de Hematologia e Hemoterapia e Sociedade Brasileira de Oncologia Pediátrica. Como resultado, a taxa de cura das crianças com leucemia linfoide aguda passou dos 5% do final da década de 1970 para os atuais 70%. Ela não se aquieta ao ver esses resultados. “A incidência de câncer é ascendente entre crianças e adolescentes, e a taxa de mortalidade em cinco anos no Brasil é de 50%, ainda muito alta quando comparada com os 20% dos Estados Uni-

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idade 70 anos especialidade Oncologia pediátrica formação Graduação em medicina na Universidade Federal de São Paulo (1967) e doutorado na Universidade Estadual de Campinas (1975) instituição Centro Infantil de Investigações Hematológicas Dr. Domingos A. Boldrini e Universidade Estadual de Campinas produção científica 79 artigos, 1 livro, 22 capítulos de livros e 6 protocolos de tratamento de câncer infantil


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dos e outros países”, ela disse no final da amanhã de 5 de agosto ao receber o prêmio do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) na categoria Personalidade de Destaque deste ano. Sempre que pode, ela alerta as mães que comparecem ao Centro Boldrini sobre os riscos dos pesticidas para as crianças: “O fumacê da dengue mata o mosquito e compromete a saúde das pessoas”, ela argumenta. Seus planos atuais incluem a construção de um hospital de especialidades pediátricas com 200 leitos e 14 salas de cirurgia em um terreno vizinho. “Estou vendo com Deus se ele pode me dar mais 20 anos de vida, pelo menos. Abraão não morreu com 120? Ele disse que está estudando meu caso”, diz ela, com o habitual bom humor. Casada com um cirurgião, Silvia tem quatro filhos – um deles também é cirurgião, dois são psicólogos e o último é um biólogo que preferiu virar gourmet – e sete netos. “Quando casei, eu disse que queria seis filhos. Acho legal ter família grande. Meu marido desistiu depois do quarto, mas fui ao juiz porque eu queria adotar. O juiz disse que tinha de ter a aprovação do marido e expliquei que meu marido não queria. ‘Por quê?’, o juiz perguntou. Porque eu não parava em casa e ia sobrar para ele todas as tarefas com os filhos. Ainda insisti que ele deixasse provisório, porque eu achava que depois que recebêssemos a criança ele ia gostar. O juiz não deixou, mas depois veio um sobrinho para morar em casa, que estudou medicina e se especializou em oftalmologia.”

As cores de um hospital Fizemos boa parte desta entrevista enquanto Silvia Brandalise apresentava os principais espaços do Centro Boldrini. Os corredores têm janelas amplas, as paredes são coloridas e tomadas por desenhos de artistas, de estudantes de medicina, das crianças doentes ou de suas mães, o que deixa o local sem a tensão habitual dos hospitais. “A arte e a música ajudam a aliviar o sofrimento”, diz a médica. Em frente ao hospital, do outro lado da rua, está a Estação Boldrini, onde as crianças que chegam às 7 horas ficam até serem atendidas e depois descansam, tomam um lanche ou um banho antes de voltar para casa. “Este é um ponto de referência para as ambulâncias que trazem e levam as crianças. Temos de cuidar bem também do motorista, para trazer a criança no sábado, no domingo ou de madrugada, se necessário”, ela diz. “Com um transporte humanizado e garantido, a evasão do tratamento cai bastante.” A estação foi construída em 1996 por uma associação de pais de Americana dirigida por Maria Delfina de Oliveira, cujo filho teve leucemia, mas ficou curado. “Quem passou por uma experiência dessas vê a vida de modo diferente”, conta Silvia, que pela manhã tinha visto ali quatro voluntárias, de jaleco azul, fazendo pizzas para as crianças porque o pão ainda não tinha chegado. Voltamos ao Centro Boldrini e atravessamos o jardim com amplas esculturas coloridas da artista Vera Ferro e chegamos ao ambulatório de oncologia do Sistema Único de Saúde (SUS), que atende uma média diária de 50 pacientes com tumores sólidos – outro ambulatório, o de hematologia, atende por dia cerca de 50 crianças portadoras de leucemia. “As voluntárias fazem um trabalho de artesanato com as crianças e as mães, que aprendem as técnicas e transformam em fonte de renda nas cidades onde moram. Quando você chega às 10 horas e estão todos trabalhando, é uma alegria, porque a criança não chora à espera do médico. E fica contente porque leva o presente dela para casa.” Mais adiante, após corredores decorados com desenhos e trabalhos com argila, está a sala de aula. “É uma escola de verdade, em parceria com a Secretaria Municipal de Educação. A classe hospitalar faz assessoramento da educação da criança que está em tratamento.” Ao lado da brinquedoteca – alta, ampla, iluminada e colorida, com um palco e cantos diferenciados para crianças e adolescentes – está o laboratório de citogenética. “Aqui fazemos o perfil genético de todos os pacientes com leucemia. A identificação do grau de resposta à quimioterapia é fundamental para intensificar ou reduzir o tratamento”, ela diz, mostrando um cromossomo na tela de um computador. “Esta aqui é uma mutação, a translocação (9; 22), que por si define um mau prognóstico, ela indica que é melhor entrar com um tratamento específico, o imatinibe ou Glivec, antes usado apenas para os adultos”, diz. “A busca sistemática das mutações genéticas ficou tão importante quanto o estetoscópio.” A ala mais antiga do prédio hoje abriga os laboratórios e os equipamentos de microbiologia e biologia molecular que também avaliam necessidades de mudar os tratamentos. Quase todos os diagnósticos, exames e cirurgias são feitos ali mesmo. A área de internação é um espaço circular – os quartos ao redor de um posto de observação da enfermeira ou médico. “A mãe ou o pai está sempre ao lado da criança e temos essa visão global da situação. Isso foi feito há 30 anos com uma concepção arquitetônica ousada.” Ela se inspirou no hospital pediátrico Saint Mary, em Rochester, nos Estados Unidos. Mas fez melhor. “Temos um quarto para a mãe ou o pai, anexo ao quarto da criança, com banheiros diferentes. Eu queria também que de cada quarto o paciente visse um jardim.” Em seguida ela reclama que, por ordem da vigilância sanitária, teve de cortar as árvores dos pequenos jardins internos, e conta a alternativa que está implantando: “Estamos fazendo árvores de ferro, com flores de uma estrutura dura que vi em Lyon. Fica maravilhoso. Podendo ver o céu e as plantas, a criança tem quase a sensação de que está fora do hospital”.

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O Centro Boldrini atende crianças de até quantos anos? Vemos a criança dentro de um conceito moderno. Antes íamos até 18 anos, depois 21 anos, por demanda da própria rede de saúde. Depois fomos para 25 e agora estamos em 29 anos, igual aos americanos. Quem tem filhos sabe que até os 20 anos, quando fica doente, vira criança... Esse grupo é o que tem os piores resultados de tratamento, nos Estados Unidos, porque nessa faixa os cânceres são muito parecidos com os de criança, poucos têm o câncer típico de adulto, de mama, estômago, pulmão, próstata. Os mais velhos não se adaptam bem com médico de adulto, o tratamento vai melhor quando é feito com médico de criança, que põe no colo a criança e a família. Esse conceito de criança até 29 anos não lhe traz problemas? Existe uma enorme pressão interna para a gente mandar para o hospital adulto, porque 95% dos médicos daqui são pediatras com especialização em hemato-oncologia, mas o neurocirurgião é de formação geral, o ortopedista é geral, e temos cardiologista, endocrinologista e ginecologista geral. Existe também pressão do doente que quer ficar aqui. Recentemente atendemos uma menina que teve linfoma de Hodgkin com 4 anos de idade e recaiu 20 anos depois. Agora está com mais de 30 anos. Queriam enviá-la para outro lugar e ela não queria ir. Os médicos me procuraram e eu disse que achava que devíamos tratar aqui, porque sabemos tratar melhor esses tumores do que vários médicos de adultos. A menina afirmou que não saía e disseram a ela que se precisasse de UTI ou tivesse uma infecção a mandariam para o Hospital de Clínicas. Ela só ficou tranquila quando eu garanti que ela só iria por cima do meu cadáver. Agora está numa casa aqui do lado, porque mora muito longe.

nantes são: contaminação por pesticidas e por metais pesados e uso de hormônios na alimentação, para fins cosméticos e nas academias para fazer musculação. Algo que era inimaginável no passado é o lençol freático com hormônio. Isso ocorre porque os anovulatórios não são biodegradáveis no Brasil. A pessoa toma o anovulatório [medicamento que inibe a ovulação], bebe água, urina e isso passa para o solo e para o lençol freático. Saiu uma reportagem no Correio Popular, aqui de Campinas, sobre contaminação do rio Atibaia, com níveis elevados de hormônio. É muito sério. O fumacê da dengue mata o mosquito e compromete a saúde das pessoas. Sempre fui ligada a pesticida por causa da aplasia de medula, uma doença em que o indivíduo não produz mais sangue e só transplante

Não dá para fazer dedetização em casa e na escola com crianças por perto. Em um encontro da Organização Mundial da Saúde, a OMS, em Genebra, recebi um volume com 300 páginas sobre meio ambiente e doenças de crianças. Fiquei boquiaberta quando li os dados estatísticos sobre insuficiências orgânicas e malformações congênitas resultantes da exposição aos derivados de benzeno e secundárias à radiação. A OMS tinha chamado alguns especialistas para planejar um estudo com mais de 1 milhão de crianças. Nós, de Campinas, representamos o Brasil. Voltei desse encontro com a tarefa de reunir um grupo de 100 mil gestantes e crianças para acompanhar durante 18 anos, por questionário epidemiológico, a exposição materna a fatores de risco durante a gravidez e depois no primeiro ano e meio após nascimento da criança. Fixei o número em 100 mil para não ficar atrás dos Estados Unidos. A China entrou com 300 mil e a Inglaterra com 40 mil. Acho que nesse semestre já começaremos a ir aos postos de saúde para aplicar os questionários e coletar sangue da mãe e do bebê. No total são quatro questionários: um no primeiro trimestre da gravidez, um no último, um nos primeiros 6 meses do bebê e um no 1,5 ano. São mais de 200 perguntas em cada um deles. Se o indivíduo vier a ter câncer, poderemos correlacionar com dados epidemiológicos de toda a população dos recém-nascidos da cidade de Campinas, que realizam o teste do pezinho na Unicamp. Mas só vamos saber dos resultados daqui a uns 15 anos.

fotos centro boldrini

A OMS nos deu a tarefa de acompanhar 100 mil gestantes e crianças por 18 anos em Campinas

Ao receber o prêmio do Icesp, a senhora comentou que o câncer entre crianças e adolescentes está aumentando muito. Por quê? De 0 a 18 anos, os fatores mais determi-

resolve. As leucopenias [queda no número de leucócitos, um dos tipos de células brancas do sangue], que aparecem muito aqui, são altamente ligadas à exposição a pesticidas. A exposição a areias monazíticas e a irradiação natural é outro sério perigo quando a criança vive perto desse tipo de solo. Como ela anda pelo chão e a radiação chega a 30 centímetros de altura, a criança é mais afetada por essa radiação natural. O que pode ser feito? A pergunta básica quando vou para o ambulatório é sobre as condições de moradia. Explico imediatamente para a mãe os riscos das questões ambientais. Sem assustar, mas também sem deixar barato.

A senhora era uma pediatra que não queria saber de câncer. Como foi essa virada? Eu me formei em 1967 e fiz o primeiro ano de residência em clínica médica e PESQUISA FAPESP 211 | 25


o segundo em pediatria na Escola Paulista de Medicina. Vim para Campinas em 1969 com meu futuro marido, nos primeiros anos da Unicamp, e achei tudo um horror. O campus era um matagal. Mas mudamos para cá e comecei a trabalhar no Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina. Em 1978 eu era chefe da enfermaria de pediatria da Unicamp, que ainda funcionava na Santa Casa. Eram 50 leitos e eu não tratava as crianças com câncer. Acho que agia assim para proteger meu coração. Eu sempre dizia que quem cuida de câncer era hematologista ou cirurgião. Sempre fui mulher de um emprego e de um marido. Só sei trabalhar em tempo integral, não consigo ficar zanzando de hospital para hospital. Na enfermaria eu conhecia o nome de todos e obrigava o aluno de medicina a guardar o nome e histórico de cada paciente. Certo dia, um médico residente me falou que um menino com leucemia, na terapia intensiva, estava muito mal. Procurei o hematologista e não o encontrei. Mandei procurar outro médico especialista, que também não estava. Aparecida Brenelli, uma residente da enfermaria, que anos depois virou chefe do Departamento de Pediatria, disse que não tinha encontrado nenhum médico para cuidar de André, o menino. Ela estava tão angustiada que começou a chorar. Como não posso ver ninguém chorando eu resolvi ver a criança. Percebi na hora uma série de erros pediátricos e corrigi as prescrições que os hematologistas tinham feito, porque eles eram médicos de adulto. O menino melhorou e a mãe pediu para eu cuidar do filho. Reafirmei que não dava, porque não sabia cuidar de leucemia. Ela se recusou a tratar com hematologistas da Unicamp e dei uma lista de outros nomes. A escolha dela recaiu sobre um professor da Escola Paulista de Medicina, João Rhomes Aur, que estava em Memphis, Estados Unidos. Um pouquinho antes da viagem, a mãe me disse que o marido dela não iria e me pediu que eu a acompanhasse para o atendimento do André. Eu me recusei e ela disse que, se eu não fosse, André também não ia,

morria aqui. Todos choravam, a mãe, a avó... Fui para Memphis e lá o Rhomes me deu o protocolo VIII para ler e disse que, se o seguisse, os pacientes teriam 50% de cura. Agradeci muitíssimo e disse que não queria fazer hematologia pediátrica, queria ser pediatra geral. Um pouco antes de voltarmos, a mãe me disse que já sabia que o filho não tinha chance de cura. Para esse tipo de câncer, leucemia linfoide aguda, a chance na época era menos de 5%. Acompanhei o menino até ele falecer. E depois? Pensei que voltaria à minha vida na pediatria geral quando, menos de seis meses depois, aparece outro menino com o mesmo nome, André, sobrinho de uma

define a cura ou a morte do indivíduo. A mãe me procurou e disse que o menino estava tão bem que o médico havia suspendido a quimioterapia. Na outra semana, o menino chegou com a mãe, que, pela primeira vez, não falou nada. Ele é que falou, um catatau de 5 anos. Disse que queria muito que eu tratasse dele. Expliquei que não sabia tratar daquilo, que não era hematologista. O menino abriu um berreiro sem tamanho. Fico transtornada com choro e disse que cuidaria. Naquele dia mesmo me demiti da chefia da enfermaria para cuidar dele. O conselho do Departamento de Pediatria discutiu o caso e indeferiu meu pedido. Alegaram que se dedicar a uma doença em que todos morrem é um desperdício. Só tive um voto favorável. Lamentei que tivessem indeferido, mas mantive que ia embora. Sou filha de português. É a palavra e o bigode que valem, não precisa assinar e levar no cartório. O tratamento deu certo? Sim, o André foi curado, fez-se homem. Liguei para Rhomes para contar que tinha sido nocauteada por um cara de 5 anos, pedi para ele vir para cá e ficar um mês comigo, me ensinando todos os macetes do tratamento. E não é que ele veio? [Ela para diante de algumas fotos antigas de um dos corredores do terceiro andar, a ala da internação, com 77 leitos] Aqui foi o primeiro laboratório de coagulação, ainda não havia nenhum em Campinas. Encontrei esse porão, em um casarão em frente da Santa Casa, e comecei minha mendicância. Tive de convencer o gestor da Santa Casa de que ele faria um ótimo negócio se montasse o laboratório para mim e pagasse uma técnica. Em contrapartida, eu ia ensinar a técnica e ela faria os exames para tocoginecologia e cirurgia cardíaca. Depois, pelas circunstâncias da vida, uma assessora do José Aristodemo Pinotti, que foi reitor da Unicamp, pediu para atender uma sobrinha, eu disse que não tinha consultório, mas que poderia atender na Santa Casa. Foi um caso relativamente fácil de resolver, mas a mãe ficou muito grata. Ela se chama Beth Abrahão, era

Há 36 anos, o câncer infantil era uma sentença de morte. Não havia nada para atender os doentes

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médica residente da pediatria, que queria que eu o examinasse. Achei que era leucemia, encaminhei para um catedrático da Escola Paulista de Medicina, mas ele não achou que fosse leucemia. O menino foi piorando. Eu mesma colhi amostra da medula, fiz biópsia de gânglio e mandei para Memphis. Rhomes confirmou que era leucemia linfoide aguda e disse para seguir aquele protocolo de tratamento que ele já tinha me dado. Falei com o tal catedrático, mostrei o protocolo, ele respondeu que americano faz muita pesquisa. Respondi que vi gente curada lá. Ele disse para não me preocupar porque ele sabia tratar. Ocorre que as quatro primeiras semanas do paciente são decisivas. É quando se


presidente do Clube da Lady, uma entidade de serviço de senhoras da cidade, e colocou o clube à disposição para ajudar no que fosse necessário. Pedi um ambulatório. E foi o tio dela, Jamil Abrahão, que era jornalista, que sugeriu o nome do dr. Domingos Adhemar Boldrini, que eu não conheci, para o centro. E depois, para onde vocês foram? Esta primeira casa [mostra outra foto] foi o Clube da Lady que nos cedeu. Aqui eu comecei o ambulatório de oncologia e hematologia, antes ficava tudo na pediatria. Eu recebi a casa literalmente vazia. Quando uma mãe dizia que não sabia como agradecer, eu perguntava se ela não tinha uma mesa ou uma cadeira para doar. Para pagar o aluguel, as senhoras faziam festas e bazares, e às vezes a gente tinha de lavar a louça depois do jantar, porque não tinha dinheiro para pagar garçom. Aqui a gente já tinha montado sala de quimioterapia, mas internava em vários hospitais da cidade, onde havia vaga. Esta parte aqui [mostra outra foto], numa área de 1.500 m2, foi o Instituto Bosch que doou. O instituto acreditou que valia a pena investir em câncer infantil, que naquela época, há 36 anos, era uma sentença de morte. Não havia nada para atender esses doentes. Internavam na enfermaria de pediatria para morrerem lá. Só se salvavam os casos em que o câncer era cirurgicamente retirável. Como eles acreditaram? Um jornalista aqui de Campinas, Romeu Santini, que depois foi vereador, fez uma reportagem sobre o ambulatório falando como era a atenção à criança. Naquela época a gente rodava vários hospitais da cidade pondo a criança em vários locais, como acontece hoje na capital. Quando internamos em um hospital geral, onde as pessoas não são treinadas, a qualidade da atenção baixa. Ficou claro que precisávamos de um local amplo

que abrangesse tudo. A reportagem do Santini tinha o título “Quem compra essa ideia?”. Alguém comprou. Um cirurgião vascular, John Cook Lane, do Centro Médico de Campinas e da Unicamp, leu o texto e falou com o meu marido – eles se conheciam da cirurgia – que estava pensando em conversar com o presidente da Bosch para ver se ele se interessava. Deu certo: construímos o hospital em 1994 e hoje temos 40 mil m2 de área construída. Como a senhora mantém o hospital? Cerca de 80% da clientela é do SUS e 20% de convênio privado. Os 20% de convênio pagam 30% do orçamento. Os 80% do SUS dão 30% da receita. Fica um buraco de 40%. Suprimos isso com a mendicância que aprendemos a fazer. Trabalhamos com a solidariedade das pessoas, buscamos os recursos que elas dão, fazemos bazar... E com isso, com as doações da cidade, atingimos 30%, quase 35% da receita. Ainda assim no final do ano faltam R$ 1 milhão, R$ 1,5 milhão. O jeito é, então, fazer jantares e rifa de carro. Alguém dá um carro, rifamos e o dinheiro vem para o hospital. Com isso conseguimos fechar as contas e fazer alguns investimentos em ampliação, laboratórios etc. O que é a síndrome Brandalise? Quem deu esse nome foi Jon Pritchard [pioneiro no tratamento de câncer infantil na Inglaterra]. Foi por causa de uma criança de 3 ou 4 anos que chegou aqui com anemia hemolítica e dependência em transfusão de sangue. Quando fui examinar o sangue do menino, vi uma coisa que nunca tinha visto: uma pérola azul-claro dentro do glóbulo branco. Azul como esse céu, que você não encontra em São Paulo. Mandei para Pritchard, que achava que era uma doença qualquer. Eu disse que não era, teimei, mandei para outro centro, e também não sabiam. Nesse meio tempo recebi a visita

do chefe do hospital St. Jude, em Memphis, William Chris Mitchell. Avisei que mostraria a ele uma lâmina de algo que ele nunca tinha visto e ele retrucou dizendo que era pouco provável haver algo nessa área que não conhecesse. Bill Chris viu a lâmina e disse que não sabia. Mas ele conseguiu recursos para pagar a viagem da criança e da família a um centro do Texas especializado em glóbulos brancos para chegar a um diagnóstico. A criança foi e voltou com um diagnóstico: era um erro inato do metabolismo, do ácido araquidônico, que cristaliza e forma aquelas perolinhas azuis no glóbulo branco. A descoberta foi publicada nos Estados Unidos por esse centro e com o nome de distúrbio inato do metabolismo do ácido araquidônico. Pritchard viu, achou injusto e pediu autorização para colocar o meu nome. Eu queria mesmo era ser nome de perfume ou de algo ligado à alta-costura, mas autorizei. Depois recebi uma consulta de um médico dizendo que estava com um caso de síndrome Brandalise, muito mais fácil que o nome comprido que queriam dar. O menino que tinha esse problema se curou sozinho e não vi mais outro caso igual. A senhora é uma pesquisadora que não tem muito gosto por escrever artigos... Não. Meu foco está no que posso melhorar para os pacientes. Prefiro trabalhar nos protocolos de tratamento de leucemia, que me tomam em média dois anos para a concepção e redação de cada um deles. Preferi caminhar nesse sentido – porque me dá prazer e sentido e vejo os resultados –, do que perseguir uma titulação acadêmica. Protocolo não é receita de bolo da Dona Benta, às vezes usam como norma, como guideline, mas não é. Protocolo exige uma pergunta e exige uma resposta. E uma pergunta que a gente fez no protocolo 80 foi: a dose de radioterapia no sistema nervoso pode ser diminuída ou não? Aí fizemos o estudo PESQUISA FAPESP 211 | 27


prospectivo, randomizado aleatoriamente, e foi bárbaro, porque demonstramos cientificamente que a radiação pode ser diminuída. Em cada protocolo a gente faz uma pergunta, com o objetivo de diminuir a toxicidade do tratamento. No quarto estudo, perguntamos se dava para diminuir de 2,5 anos para 2 anos o tratamento. A resposta foi sim, ou seja, subtrair seis meses da terapia com igual chance de cura. Estamos agora no sexto estudo. No de 2009, já dividi o trabalho da coordenação dos protocolos com um professor da UFRGS, dois da Unifesp, um da Unicamp e um do Instituto de Tratamento do Câncer Infantil, Itaci [ligado ao Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo]. Trabalhamos prospectivamente na terapia da manutenção da leucemia linfoide aguda, comparativamente a um tratamento não convencional, que teve maior eficácia e menor toxicidade. O tratamento tradicional é tomar um comprimido contínuo ao dia e uma injeção semanal durante dois anos. Nós propusemos tratar dando 10 dias e descansando 11 e a injeção somente a cada 21 dias. Qual é a vantagem disso? Primeiro, o doente prefere vir a cada três semanas do que toda semana. Segundo, a toxicidade hepática, medular e a infecção são muito maiores em quem faz isso continuamente. O organismo precisa de um descanso. O problema é que o número de 500 doentes ainda é pequeno e temos de aumentá-lo.

Devia ser tudo dentro da estrutura de um só hospital. Unidades isoladas são importantes, mas o Ministério da Saúde poderia redefinir os centros de câncer de criança. Hoje são cadastrados quase 160, mas mais da metade atende menos de 30 casos novos por ano. Quem atende pouca gente em geral não tem a estrutura toda formatada. Quase 80% das unidades atende menos de 100 doentes por ano. Isso é o que faz diferença nas estatísticas. A criação de centros regionais de diagnóstico e o uso sistemático de protocolos em nível nacional permitiriam monitorar melhor os resultados. Patologias complexas, como tumor cerebral, ósseo, neuroblastoma, leucemia mieloide aguda, temos de concentrar em centro de expertise.

Ao receber o prêmio do Icesp a senhora disse que reduzir a mortalidade de crianças com câncer ainda é um desafio. No Brasil, a mortalidade ainda é de 53%. Para leucemia, que é o câncer mais curável, é de 40%, com pouca diferença entre as regiões. A mortalidade é alta, comparada, por exemplo, com os 25% dos Estados Unidos, porque, apesar da política de centros de referência, ainda se trabalha com unidades separadas para químio e radioterapia, atende num lugar, opera no outro, vai resolver a complicação num outro...

Quais são os índices aqui? Em centros isolados como o Boldrini de Campinas e o Graac [Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer], de São Paulo, a taxa de sobrevida chega a 80%, mas essa não é a média nacional. Qual é a expectativa de novos casos de câncer infantil no Brasil? Por volta de 10 mil, 11 mil por ano. Quantos a gente trata em Campinas? Uns 400 ou 450. Cerca de 20% morrem da doença. É um drama. Principalmente quando chega a um ponto em que você não sabe mais o que fazer. Isso acontece com algumas

doenças congênitas, como a porfiria, um erro inato do metabolismo da bilirrubina. A pessoa tem dor abdominal e pode ter icterícia e repercussão mental. Pensei até em escrever para a Isabel Allende. Isabel Allende é escritora, não médica. Sim, mas ela escreveu o livro Paula, sobre a filha, que morreu de porfiria. Nesse livro ela conta como os médicos deram o diagnóstico, como foi o tratamento e a internação na UTI. Como o médico contava algo grave sem levar em conta o sofrimento da outra pessoa, como evitava falar com a mãe da paciente sobre a gravidade do que estava acontecendo. Isabel Allende me ensinou muito ao mostrar a arrogância do médico que não quer falar que não tem saída e quando fala traz ainda mais problemas para a mãe. A filha de Isabel Allende teve a forma mais comum de porfiria e estão aparecendo casos semelhantes, às vezes até mais graves, para tratarmos aqui. Então, com tantos problemas, dá para ser feliz? A felicidade é uma alienação!

Em um dos estudos, conseguimos reduzir o tratamento em seis meses, com igual chance de cura

28 | setembro DE 2013

A Austrália fez assim e conseguiu gastar menos dinheiro, porque não pulveriza, e tem melhores resultados.

A senhora vai entrar nessa área? Estou altamente motivada para tratar doenças raras no estado de São Paulo. A secretária estadual da Saúde me procurou há dois anos e pediu para eu estudar e albergar as pessoas com doenças raras. No começo recusei, mas acabei seduzida por uma criança que tinha um erro inato do metabolismo de lipídios e tinha ficado nove anos no Instituto da Criança em São Paulo sem diagnóstico. Recentemente, Alexandre Nowill, da triagem neonatal da Unicamp, me ligou, dizendo que iriam comprar 10 espectrômetros de massa. Ele quer que eu dê a retaguarda para receber as crianças com doenças raras. Vamos ver se conseguimos. Alexandre é filho de Dorina Nowill, da Fundação Nowill, que fez o primeiro serviço sistemático de braile aos deficientes visuais. As adversidades e os desafios que a vida nos apresenta sem dúvida carregam a força motriz desencadeadora das transformações necessárias para o bem-estar da humanidade. n


atenção criativos de todo Brasil Já estão abertas as inscrições para a 12a Feira Brasileira de Ciências e Engenharia Para participar, basta ser estudante do 8o ou 9o ano do Ensino Fundamental, do Ensino Médio ou do Ensino Técnico, criar um projeto investigativo e enviá-lo até 29 de outubro de 2013 INFORMAÇÕES E SUBMISSÕES 11 3091 5430 febrace@lsi.usp.br www.febrace.org.br

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política c&T  Cienciometria y

Vantagens comparativas Artigo analisa os caminhos trilhados pela ciência do Brasil e da Coreia do Sul e indica espaços para parcerias

Fabrício Marques

N

um artigo publicado na revista Scientometrics, um grupo de pesquisadores do Brasil e da Coreia do Sul investigou a evolução recente da produção científica dos dois países – que são antípodas não apenas na geografia, mas também em seus modelos de desenvolvimento. A conclusão foi que os sul-coreanos, apesar de sua vocação para a tecnologia, conseguiram na década passada melhorar o equilíbrio na distribuição de artigos por outros campos do conhecimento, enquanto os brasileiros melhoraram em áreas em que já eram fortes, como ciências agrárias e naturais. “O Brasil parece ter perdido uma oportunidade de investir mais em áreas capazes de dar suporte ao setor produtivo, como engenharias e computação”, diz Daniel Fink, autor principal do estudo, que é chefe do setor de ciência e tecnologia da Embaixada do Brasil em Seul. “A ciência do Brasil ainda tem dificuldade em interferir na política industrial, ao contrário do que acontece na Coreia do Sul.” O artigo, escrito em parceria com três pesquisadores sul-coreanos, é resultado do doutoramento de Fink no Instituto Avançado de Ciência e Tecnologia da Coreia (Kaist), na cidade de Daejeon.

30  z  setembro DE 2013

Os sistemas de ciência e tecnologia do Brasil e da Coreia do Sul desenvolveram-se nas últimas décadas com investimentos concentrados em certas disciplinas. O Brasil segue um modelo semelhante ao de países desenvolvidos, com grande destaque para a medicina e um peso significativo de disciplinas como química, física, botânica e zoologia – uma especificidade brasileira é que as ciências agrárias ocupam um espaço superior ao da média mundial. Já a Coreia do Sul segue o chamado modelo japonês, com um papel mais proeminente das engenharias – incluindo a ciência da computação – e da química, com destaque para a ciência de materiais. O estudo liderado por Fink buscou comparar o que aconteceu com a quantidade e a qualidade da produção científica dos dois países em dois períodos distintos, de 2000 a 2004 e de 2005 a 2009. A análise foi feita com base nos National Science Indicators, da empresa Thomson Reuters, que contêm dados agregados por países. As variáveis incluíram o número total de publicações e citações do Brasil, da Coreia do Sul e do mundo de 2000 a 2009 – em seguida, os dados foram divididos por campos do conhecimento. O estudo concentrou-se em parte desses campos e


A evolução dos dois países em 17 áreas O que aconteceu com a produção científica e as citações de pesquisadores do Brasil e da Coreia do Sul, comparando o período de 2005 a 2009 com o de 2000 a 2004 Ciência de impacto internacional e nível de produção acima da média mundial

Biologia e bioquímica

Ciências agrárias brasil

coreia do sul

brasil

coreia do sul

Produção em alta

Produção e citações em alta

Produção e citações em alta

Citações em alta

Ecologia e ambiente

Química coreia do sul

brasil

Produção Em e citações consolidação em baixa

Ciência da computação

Medicina clínica coreia do sul

brasil

coreia do sul

brasil

coreia do sul

Produção e citações em alta

Produção em alta

Produção e citações em baixa

Produção em alta

Produção e citações em baixa

Em consolidação

Microbiologia

Matemática

brasil

coreia do sul

brasil

coreia do sul

brasil

coreia do sul

brasil

coreia do sul

brasil

coreia do sul

Em consolidação

Produção e citações em baixa

Produção e citações em baixa

Produção e citações em baixa

Produção e citações em baixa

Em consolidação

Produção e citações em baixa

Estabilidade

Citações em alta

Citações em alta

Neurociências e comportamento

Farmacologia e toxicologia

Física

Botânica e zoologia

Ciências espaciais

brasil

coreia do sul

brasil

coreia do sul

brasil

coreia do sul

brasil

coreia do sul

brasil

coreia do sul

brasil

coreia do sul

Produção e citações em baixa

Produção e citações em alta

Citações em alta

Produção e citações em alta

Produção em alta

Produção em alta

Produção e citações em baixa

Em consolidação

Produção em alta

Produção e citações em alta

Produção e citações em baixa

Produção e citações em alta

campos de especialização

a contribuição de cada um

O Índice de Especialização Relativa (RSI) indica a participação ponderada de um país em publicações internacionais num campo da ciência em particular em comparação com a participação no total mundial de publicações

Porcentagem das produção de artigos científicos publicados em revistas internacionais do Brasil e da Coreia do Sul em relação ao total mundial

n Brasil n Coreia do Sul

Nanociências e nanotecnologia

Botânica e zoologia

0.5 0.4 0.3 0.2 0.1

-0.1 -0.2 -0.3

-0.4

Física

Pesquisa biomédica

Biologia

n Coreia do Sul

3,5

Química

Neurociências e comportamento

Medicina clínica

2,0 1,5

Ciência da computação

Ecologia e meio ambiente Matemática

3,0 2,5

Engenharias

Biociências

n Brasil

Ciências agrárias

Geociências e ciências espaciais

ilustraçãO abiuro

Engenharias

brasil

Ciências dos materiais

Geociências

Genética e biologia molecular Fonte Daniel Fink

Ciência de impacto regional e nível de produção abaixo da média mundial

Ciências dos materiais

1,0 0,5 0 1999

2001

2003

2005

2007

2009

Fonte  Science Citation Index


excluiu alguns, como ciências sociais e economia, cuja produção na forma de artigos científicos não foi considerada representativa – há mais tradição na publicação de livros e capítulos nessas áreas. Ambos os países aumentaram o número de artigos publicados e viram crescer seu quinhão na produção mundial. A participação da ciência brasileira avançou na maioria das áreas, exceto em algumas como ciência da computação e física, enquanto a Coreia cresceu em todas as áreas sem distinção. No caso da agricultura, a participação do Brasil subiu de 3,1% do total mundial no primeiro período para 6,8% no segundo. Também avançou em áreas como zoologia e botânica, ambiente e ecologia, e farmacologia e toxicologia, reforçando sua posição num modelo conhecido como “bioambiental”. Mas perdeu espaço em ciências espaciais e física. “Embora os pesquisadores brasileiros nas áreas de física e ciências espaciais tenham mantido o mesmo nível de publicações em números absolutos, perderam terreno A ciência em termos comparativos. Isso porque brasileira ainda não conseguimos acompanhar o ritmo do aumento de produção de outros paítem dificuldade ses”, diz Fink. Em campos da ciência em que o Brasil já não tinha vantagens de interferir comparativas, como ciências da computação, engenharias e ciência dos mana política teriais, a produção retroagiu. “O Brasil industrial, diz dificilmente conseguirá ganhar força em tecnologia da informação e na indústria Daniel Fink de manufaturas num futuro próximo”, afirma o autor. Em relação a citações, o Brasil melhorou também em agricultura, botânica e zoologia, e farmacologia e toxicologia, e piorou numa área em que era forte, a matemática. Em ecologia e ambiente, a visibilidade da ciência brasileira diminuiu, apesar do aumento da produção. Reveses semelhantes foram observados nas citações de engenharias, ciência dos materiais e ciências da computação.

E

m relação à Coreia do Sul, não foram observados grandes saltos. Em relação à produção científica, as áreas em que houve maior crescimento foram ciência da computação, seguida de agricultura e farmacologia e toxicologia. Mas foram mantidas as características do chamado modelo japonês. Em comparação com a produção científica global, a Coreia não conseguiu acompanhar o crescimento em engenharias, química e ciência de materiais, embora tenha mantido a competitividade nesses campos. Mas o país conseguiu amenizar seus pontos fracos com desempenho melhor em áreas como ciência espacial, biologia molecular e genética. Em relação a citações, perdeu desempenho em áreas como ciência de materiais, engenharias, física e

32  z  setembro DE 2013

ciência da computação. Mas aumentou o impacto em agricultura, ciência espacial, microbiologia e biologia molecular e genética. “Essa transição mostra que a Coreia está conseguindo alcançar um estágio mais equilibrado, aprimorando áreas deficientes sem deixar de ser referência em áreas onde já possuía competência”, diz Fink. A estrutura disciplinar da produção científica relaciona-se com as estratégias de desenvolvimento econômico de cada país, observa Peter Schulz, professor do Instituto de Física Gleb Wataghin, da Unicamp, que publicou no ano passado na mesma revista Scientometrics um artigo sobre a evolução do perfil dos sistemas de ciência e tecnologia de diversos países (ver Pesquisa FAPESP nº 198). Segundo ele, contudo, algumas das conclusões do artigo de Fink precisam ser confirmadas por novos estudos antes de serem tomadas como tendências. Ele lembra que aumentou o número de revistas científicas brasileiras indexadas na base Thomson Reuters na segunda metade da década de 2000. Isso pode ter criado um viés sobre a percepção de que o Brasil ficou mais forte em algumas áreas, sem que a especialização tenha, de fato, aumentado. “O artigo mostra uma estagnação da produção brasileira na área de física, que é consistente com outros indicadores. Mas a percepção pode ter sido reforçada pelo fato de haver poucas novas revistas de física brasileiras indexadas na década passada, em comparação com o que ocorreu em outras áreas”, afirma Schulz. Ele também observa que a perda relativa do desempenho da Coreia do Sul em áreas consolidadas, como ciências de materiais, pode ter sido influenciada pelo aumento da produção científica da China nessas disciplinas, que fez crescer o total mundial de artigos. Feitas tais ressalvas, Schulz afirma que o estudo de Fink tem o mérito de levantar áreas do conhecimento em que os dois países se complementam. “É importante sabermos em quais áreas os dois países são fortes ou estão aumentando sua produção e impacto para estimular parcerias”, afirma. Essa, aliás, é uma das preocupações da pesquisa de Daniel Fink. Também como resultado de seu doutorado, ele se dedica a esquadrinhar as colaborações científicas entre o Brasil e a Coreia. O primeiro artigo em coautoria de pesquisadores dos dois países foi publicado em 1991 e, até 2000, não mais do que 10 papers com autores brasileiros e sul-coreanos eram publicados por ano. Em 2011 o número chegou a 72 artigos. As colaborações foram impulsionadas de duas maneiras diferentes. A principal é a inserção de grupos de pesquisa brasileiros e sul-coreanos em grandes colaborações internacionais, em geral lideradas por norte-americanos. A segunda delas é composta por colaborações bilaterais, formadas pelo interesse de pesquisadores dos dois países em tra-


O avanço da colaboração Evolução do número de papers com coautores do Brasil e da Coreia do Sul publicados entre 1991 e 2011, em parcerias bilaterais e multilaterais 80 70 60 50 40 30 20 10 0

1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011

n Multilateral

n Bilateral

pontos de conexão Distribuição dos artigos com coautores do Brasil e da Coreia do Sul publicados entre 2000 e 2011 segundo os campos do conhecimento

Medicina clínica Física Biociências Geociências e ciências espaciais Biologia Ciências dos materiais Ciências agrárias Ecologia e meio ambiente Química Ciência da computação Matemática Engenharias Pesquisa biomédica Botânica e Zoologia Neurociências e nanotecnologia

0 20 40 60 80 100 120 140

n Multilateral

n Bilateral

balharem juntos. Grupos da Universidade de São Paulo se destacam em todo tipo de colaboração, mas nas bilaterais há uma frequência maior de grupos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em áreas como química e ciências de materiais. “As colaborações bilaterais ocorrem quando há excelência dos dois lados. Já as colaborações multilaterais podem atingir áreas em que os dois países ainda buscam se consolidar e se associam a pesquisadores de um terceiro país, em geral os Estados Unidos, para ganhar experiência”, afirma o pesquisador. Uma colaboração recente envolveu o grupo do físico Marcelo Knobel, professor da Unicamp, que trocou amostras e dados com pesquisadores da Universidade Nacional de Changwon, em artigos sobre nanoestruturas

magnéticas publicados no Journal of the Korean Physical Society. A ponte entre o Brasil e a Coreia, nesse caso, foi o indiano Surender Kumar Charma, que fez seu pós-doutoramento no grupo de Knobel entre 2007 e 2011 com bolsa da FAPESP, e tinha vínculos com os sul-coreanos. “É uma área em que os dois países têm tradição”, diz Knobel, que já publicou outros artigos em colaboração com pesquisadores da Coreia do Sul. “Creio que a tendência é ter cada vez mais colaborações, não só pela clara presença coreana aqui no Brasil como também pela importância crescente dos dois países no cenário mundial da ciência.”

A

s colaborações entre brasileiros e sul-coreanos envolvendo grandes empresas ainda não tiveram impacto na produção científica dos dois países. “A Samsung, por exemplo, tem um laboratório dentro da Unicamp, mas o impacto é pequeno na geração de artigos”, diz Daniel Fink. Marcelo Knobel lembra que a presença de empresas coreanas no Brasil ainda é recente e ressalta que nem tudo o que é pesquisado vai para a empresa. “Os laboratórios, como o da Samsung na Unicamp, estão se estabelecendo, e os resultados demoram um tempo para acontecer, não são imediatos”, afirma. Existe uma tendência de intensificar as relações entre a ciência dos dois países a partir de pequenas e médias empresas sul-coreanas, observa Fink. Um exemplo é a HT Micron, joint-venture brasileira e coreana de encapsulamento de chips que abriu uma fábrica na cidade gaúcha de São Leopoldo, aproveitando incentivos fiscais. “Eles se comprometeram em investir 5% em pesquisa e desenvolvimento, sendo que 1% vai para uma universidade, a Unisinos, na criação de um instituto de semicondutores”, diz Fink. O interesse da Coreia no Brasil deve estimular esse tipo de aliança nos próximos anos, afirma o pesquisador. Formado em engenharia elétrica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Daniel Fink mudou-se para a Coreia do Sul em 2006, ao obter uma bolsa oferecida pelo Kaist. “Há uma carência enorme de brasileiros nas universidades coreanas e fui um dos primeiros a vir”, afirma ele, que já no mestrado iniciou uma linha de pesquisa comparando os sistemas de tecnologia do Brasil e da Coreia. Em 2007 escreveu um artigo num jornal local falando das oportunidades para empresas e pesquisadores coreanos com a implantação da TV digital no Brasil. O embaixador brasileiro em Seul chamou-o para conversar e desse contato surgiu um convite para se tornar assessor em ciência e tecnologia na embaixada. Nos próximos meses, ele e pesquisadores sul-coreanos de seu grupo virão ao Brasil entrevistar cientistas brasileiros com colaborações com colegas da Coreia do Sul para investigar a dinâmica dessas parcerias. n pESQUISA FAPESP 211  z  33


Colaboração y

Parceria contra a

obesidade Pesquisadores brasileiros e alemães trabalham em busca de uma droga eficaz para a doença

Yuri Vasconcelos

C

onsiderada um grave problema de saúde pública, a obesidade atinge 17% dos brasileiros com mais de 20 anos, enquanto o excesso de peso afeta metade da população, segundo os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No mundo, estima-se que os obesos formem um contingente de 500 milhões de pessoas sem que exista um tratamento medicamentoso confiável e com resultados duradouros para a enfermidade. Num esforço para descobrir uma droga eficaz que combata o mal, um grupo de pesquisadores do Brasil e da Alemanha selou no primeiro semestre deste ano um acordo de cooperação internacional, cujo foco é o estudo das cininas, uma família de peptídeos gerada no sangue e nos tecidos que tem 34  z  setembro DE 2013

relação direta com o desejo de ingerir alimentos e outros parâmetros clínicos, como processos inflamatórios e pressão arterial. A ideia dos cientistas é comprovar a participação e a eficácia do uso de antagonistas de cininas como possíveis drogas antiobesidade. Antagonistas são moléculas capazes de bloquear a ação de determinada substância – nesse caso as cininas. “O acordo contempla uma colaboração entre a nossa equipe e a do professor Michael Bader, do Max Delbrück Center for Molecular Medicine (MDC), da Alemanha. Queremos buscar um aprofundamento de modelos animais que comprovem a importância das cininas no fenômeno da obesidade”, diz o biólogo molecular João Bosco Pesquero, professor da Universidade Federal de

São Paulo (Unifesp). A colaboração entre os dois grupos envolve um projeto de auxílio regular à pesquisa da FAPESP e um projeto similar financiado pelo Helmholtz Association of German Research Centers, agência de fomento à pesquisa alemã com orçamento anual de € 3,76 bilhões (cerca de R$ 12 bilhões) e 18 institutos vinculados. O acordo foi firmado por iniciativa dos próprios pesquisadores, sem que houvesse um convênio ou acordo prévio entre a FAPESP e o Helmholtz. A maioria dos auxílios e bolsas concedidos pela Fundação, como o auxílio regular pedido por Pesquero, inclui recursos que podem ser utilizados, a critério do pesquisador responsável e de acordo com as regras da FAPESP, para a colaboração internacional na pesquisa. Esse é o primeiro


ilustração sobre foto de ASTRID & HANNS-FRIEDER MICHLER / SCIENCE PHOTO LIBRARY

projeto de colaboração entre pesquisadores apoiados pelas duas instituições. “A cooperação entre o Brasil e a Alemanha tem se intensificado ao longo dos anos e quando o professor Jürgen Mlynek, presidente da Helmholtz, esteve no Brasil em 2011, demonstrou muito interesse numa cooperação científica entre os dois países”, conta Pesquero. “Eu e o professor Bader decidimos que iríamos iniciar a colaboração e, como não tínhamos nenhum acerto entre as duas fundações, nenhuma regra preestabelecida, pedi um projeto regular de pesquisa à FAPESP para dar o pontapé inicial. Nós aprovamos o projeto aqui e o professor Bader fez o mesmo lá, com o Helmholtz.” O mesmo projeto – Cininas como novos alvos da obesidade – foi submetido nos dois países para obtenção

dos dois financiamentos. O auxílio da Helmholtz tem duração de três anos, com aportes anuais de € 50 mil (cerca de R$ 160 mil), enquanto o da FAPESP é de R$ 267 mil no período de dois anos. camundongos transgênicos

No âmbito dos estudos que serão realizados, os modelos animais têm importância primordial porque são camundongos transgênicos em que foram desligados os genes relacionados aos receptores B1, responsáveis pela transmissão das ações das cininas. Estudos feitos anos atrás pelos dois grupos demonstraram que o receptor B1 está intimamente envolvido na sinalização da leptina, um hormônio que funciona como modulador de apetite. Níveis elevados dessa substância no sangue reduzem a fome da pessoa.

Imagem de tecido adiposo: peptídeos que têm relação direta com o desejo de ingerir alimentos são alvo do projeto de pesquisa

pESQUISA FAPESP 211  z  35


Camundongos deficientes em receptores B1 criados pelo grupo no passado foram resistentes à obesidade induzida por dieta rica em gordura (ver Pesquisa Fapesp n° 189). mudança no sistema nervoso

Agora a ideia é aprofundar essa investigação e tentar descobrir exatamente qual tipo de receptor B1 – já que ele é encontrado no tecido adiposo e em diversos órgãos – teria relação direta com a obesidade. Nas pesquisas conjuntas anteriores eles constataram que ocorre uma mudança no sistema nervoso central do animal transgênico sem o receptor B1, levando ao aumento da expressão de um hormônio que controla o apetite chamado Cart (Cocaine and Amphetamne-Related Transcript). “Como o receptor B1 está presente em diferentes tecidos e células, incluindo o cérebro, a finalidade desse modelo será testar a hipótese de que o fenótipo que vemos no animal, que não engorda, de resistência à obesidade é devido à retirada do receptor expresso nas células do sistema nervoso”, explica Pesquero. “Portanto, se a hipótese estiver correta, ao aumentarmos a expressão do receptor B1 nessas células devemos observar um efeito contrário. São formas diferentes de testar uma hipótese geneticamente.” Uma consequência direta dessa nova investigação – caso a hipótese proposta se mostre acertada – é a geração de possíveis drogas antiobesidade baseadas no antagonista do receptor B1 capazes de chegar até o cérebro para ter melhor eficácia. “Para isso, a nova droga deverá ter uma estrutura tal que a 36  z  setembro DE 2013

permita ser capaz de atravessar a barreira hematoencefálica”, diz Pesquero. Receptores estão envolvidos No recém-firmana sinalização da leptina, do acordo internacional, com durahormônio que funciona ção prevista de três a quatro anos, o pacomo modulador de apetite pel do grupo alemão será produzir os novos animais transgênicos. “Meu grupo trabalha em vários quero passou quatro anos no país – dois sistemas hormonais envolvidos no con- com bolsa da Coordenação de Aperfeitrole cardiovascular, entre eles o rela- çoamento de Pessoal de Nível Superior cionado às cininas”, afirma o biólogo (Capes) e outros dois com financiamenmolecular Michael Bader. “Nós geramos to do governo alemão – e, desde então, modelos de ratos e camundongos com tem mantido contatos com Bader. Ao alteração dos genes envolvidos nesses voltar para o Brasil, assumiu o cargo de processos. Ao analisar esses animais, professor do Departamento de Biofísica podemos descobrir novas funções rela- da Unifesp. “Durante vários anos, muitos tivas a esses sistemas geralmente com alunos meus, que hoje são pesquisadorelevância terapêutica.” Assim que o res ou docentes da universidade e de camundongo transgênico for gerado e outras instituições brasileiras, tiveram caracterizado nos laboratórios do MDC, a oportunidade de desenvolver parte entrará em ação a equipe da Unifesp, de seu trabalho no Max Delbrück com que ficará responsável por realizar os o grupo do professor Bader.” Em 2003 experimentos fisiológicos com o animal. os dois depositaram, em conjunto com “Vamos colocá-lo sob dieta hiperlipídi- outros colaboradores das respectivas ca e avaliar diferentes parâmetros como equipes, uma patente sobre a ação de massa corporal, quantidade de gordura, drogas no diabetes e na obesidade, inticoncentração e resposta a vários hormô- tulada Mecanismos e Drogas Utilizados nios ligados ao metabolismo”, explica o no Tratamento de Diabetes e Obesidade e Controle dos Distúrbios da Fome. n professor da Unifesp. Não é de hoje que Bader e Pesquero realizam trabalhos em conjunto. A primeira colaboração entre eles remonProjeto Cininas como novos alvos na obesidade (n° 2011/12909ta a 1992, quando o brasileiro foi para a 8); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Alemanha fazer seu pós-doutorado no Coord. João Bosco Pesquero – Unifesp; Investimento MDC e conheceu o colega alemão. PesR$ 147.025,00 e US$ 50.000,00 (FAPESP).


Financiamento y

Déficit de inovação Comunidade científica dos EUA sofre os efeitos do contingenciamento dos recursos federais para pesquisa

U

ma carta enviada no início de agosto ao Congresso dos Estados Unidos e ao presidente Barack Obama, assinada por 165 presidentes de universidades norte-americanas, vocalizou a inquietação de boa parte da comunidade científica do país com o “sequestro” do orçamento federal – um dispositivo em vigor desde março que criou um teto para despesas do governo e impôs um corte de US$ 85,4 bilhões no ano fiscal de 2013, sendo cerca de US$ 10 bilhões relacionados a recursos para ciência e tecnologia. “A combinação da erosão dos investimentos federais em pesquisa e ensino superior com os cortes adicionais causados pelo sequestro do orçamento e os recursos vultosos que outras nações estão despejando nessas áreas acabam criando um novo tipo de déficit para os Estados Unidos: um déficit de inovação”, diz a carta, resultado de uma mobilização liderada por duas associações de universidades norte-americanas. “Ignorar este déficit de inovação terá consequências sérias: uma força de trabalho menos preparada e menos qualificada, menos descobertas científicas e tecnológicas originadas nos Estados Unidos, menos patentes, empresas nascentes, produtos e empregos.” Obama e os parlamentares do Partido Republicano protagonizam um impasse em torno dos limites do

orçamento – e o corte automático de recursos estava previsto na legislação em situações desse tipo. A questão voltará a ser discutida neste mês. A oposição propõe o corte de certos gastos sociais caros ao governo, enquanto a situação busca um corte seletivo, com algum aumento de impostos. O orçamento de ciência e tecnologia na área de defesa foi um dos mais atingidos, com um corte de mais de 7%. Mas a principal reação veio dos pesquisadores da área biomédica, que dependem muito dos dólares dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês), maior agência financiadora de pesquisa médica dos Estados Unidos e do planeta. Seu orçamento caiu de um patamar de US$ 30,8 bilhões, alcançado desde 2009, para US$ 29,1 bilhões neste ano. O órgão perdeu US$ 1,7 bilhão, o equivalente a 5,5% do previsto, o que levou ao corte de 700 projetos e a 750 pacientes a menos atendidos no Centro Clínico dos NIH. “Se o sequestro persistir, o financiamento dos NIH pode cair entre 15% e 20% nos próximos três anos, o que será um desastre”, disse a Pesquisa FAPESP Anindya Dutta, professor do Departamento de Bioquímica e Genética Molecular da Escola de Medicina da Universidade de Virgínia, um dos atingidos pelos cortes. Segundo ele, muitos laboratórios terão de fechar porque seus suprimentos e técnicos são pagos, em grande pESQUISA FAPESP 211  z  37


medida, com recursos dos NIH. Pesquisadores perderão renda, porque parte de seus salários vem de recursos das dotações e a ascensão na carreira de jovens cientistas ficará mais difícil. “É esperado que vejamos estudantes, bolsistas de pós-doutorado e até mesmo professores procurando empregos em países como Brasil, Índia e China, onde há investimentos crescentes em pesquisa biomédica”, acredita. Dutta, de 54 anos, nasceu e se formou na Índia e está radicado nos Estados Unidos desde 1983. Ele identificou fitas específicas de microRNAs, moléculas que têm um papel na expressão dos genes, responsáveis por promover a formação de tecido muscular. Sua pesquisa busca encontrar maneiras de manipular o processo de diferenciação das células em tecidos musculares com a ambição de desenvolver novos tratamentos para doenças como a distrofia muscular. Há cinco anos, ele recebeu uma dotação de US$ 1,3 milhão dos NIH para levar adiante seu projeto, classificado na época no segundo percentil dos projetos apresentados à agência – ou seja, foi considerado mais promissor do que 98% de todos os projetos. Em 2012, quando renovou o pedido, sua proposta foi reclassificada no 18º percentil. Em anos anteriores, tal desempenho provavelmente seria suficiente para garantir a continuidade da pesquisa. Mas, com o sequestro de orçamento, o pedido foi negado. Dutta está em busca de outras fontes de financiamento e já avisou o pós-doutorando com quem trabalha que terá de dispensá-lo. Agora irá sacrificar os ratos em que estuda a diferenciação celular para poupar recursos. “É um grande desastre, porque o meu pós-doutorando terá que encontrar um novo grupo rapidamente e a mudança de laboratório vai reduzir sua capacidade de encontrar uma posição de professor assistente. Já o sacrifício dos animais antes que os experimentos sejam feitos é um desperdício completo de tempo e de dinheiro”, afirma.

métodos computacionais

Exemplos como o de Anindya Dutta estão presentes em muitas instituições. Roland Dunbra"Gastamos ck, que comanda um laboratório mais tempo no Fox Chase Cancer Center, na Filadélfia, foi atingido pelo corescrevendo te de orçamento num pedido de grant para uma linha de pesquisa propostas e que busca desenhar em computador moléculas de anticorpos com menos fazendo uma configuração talhada para pesquisas", combater doenças. “O sistema imunológico utiliza essas molécudiz Roland las para combater infecções. Existem drogas baseadas em molécuDunbrack las de anticorpos que vêm sendo desenvolvidas para combater o câncer e outras doenças, quando as células normais não funcionam adequadamente. Usamos métodos computacionais para desenhar moléculas que possam ser usadas em tratamentos”, explica o pesquisador, que também é professor da Escola de Medicina da Universidade da Pensilvânia. Dunbrack submeteu duas propostas aos NIH em 2012. Uma delas foi aceita, mas a dos anticorpos não. “O projeto provavelmente teria sido contemplado se a análise tivesse sido feita no ano anterior”, afirma Dunbrack, que decidiu fazer ajustes, reduzindo o escopo de sua pesquisa, uma vez que só poderia contar com um aluno financiado por uma outra fonte. “Quando o número de dotações dos NIH cai, temos de gastar muito mais tempo escrevendo propostas e muito menos tempo fazendo pesquisa. Muitos de nós trabalham em instituições que exigem que parte dos nossos salários venha dos grants, de 25% a 100%, dependendo da instituição, assim como os salários das pessoas que trabalham nos laboratórios. Da forma que está agora, fica insustentável administrar um laboratório”, afirma.

Ascensão e queda

verbas sequestradas

Evolução dos investimentos federais em pesquisa e desenvolvimento nos EUA em US$ bilhões atualizados para valores de 2013 180

n Total n Defesa n Demais áreas

Cortes previstos no orçamento de ciência e tecnologia, em departamentos e agências federais norte-americanos durante o ano fiscal de 2013 - em US$

Departamento de Defesa

5,3 bilhões

Institutos Nacionais de Saúde

1,7 bilhão

Departamento de Saúde e Serviços Humanos

1,5 bilhão

Departamento de Energia

670 milhões

Nasa

474 milhões

80

National Science Foundation

283 milhões

60

Departamento de Agricultura

117 milhões

40

Departamento de Comércio

63 milhões

Departamento do Interior

40 milhões

Departamento de Segurança Interna

31 milhões

Agência de Proteção Ambiental

28 milhões

160 140 120 100

20 0

Fonte AAAS

1992 1994 1996 1998 2000 2002 2004 2006 2008 2010 2012

38  z  setembro DE 2013


1 Anindya Dutta, da Universidade de Virgínia: estudo sobre regeneração muscular interrompido 2 Yuntao Wu: empréstimo para manter pesquisa e plano de ir para a China

fotos 1 Acervo pessoal 2 Evan Cantwell/ GMU

2

1

vírus da Aids

Uma série de reportagens sobre o impacto do sequestro de orçamento na pesquisa científica vem sendo publicada no portal de notícias e de blogs The Huffington Post, assinadas pelo jornalista de assuntos políticos Sam Stein (www. huffingtonpost.com/sam-stein/). Uma das reportagens cita o caso de Yuntao Wu, professor de microbiologia e doenças infecciosas da Universidade George Mason, que nos últimos anos liderou uma promissora linha de frente da pesquisa sobre o vírus da Aids. Sua equipe estuda um composto encontrado na soja que tem potencial para bloquear a comunicação entre a superfície e o interior das células. Acredita que isso pode conduzir a um novo tratamento para combater o vírus. A tentativa de Wu de obter entre US$ 100 mil e US$ 200 mil recentemente fracassou. Ele culpa o sequestro de orçamento, observando que recebeu um total de US$ 1,2 milhão dos NIH nos últimos quatro anos. Para enfrentar a crise, Wu dispensou um técnico, interrompeu alguns projetos e já submeteu 10 novas propostas de pesquisa desde fevereiro. Ele também fez um empréstimo de US$ 35 mil para não interromper o trabalho, mas já pensa num plano B. Anunciou que está ampliando a colaboração com grupos da China, seu país natal, para onde cogita se transferir se a situação não melhorar nos Estados Unidos.

As reportagens do Huffington Post desencadearam repercussões variadas. “Algumas pessoas no mundo político acreditam que “Deus nos livre a reação é exagerada, uma vez que se vier uma o financiamento dos NIH continua robusto com US$ 29 bilhões”, espandemia de creveu Sam Stein. “Mesmo com o sequestro, o orçamento é dramatigripe nos camente mais alto do que durante o governo Clinton, mesmo quando próximos se ajusta à inflação do período.” cinco anos”, Em janeiro de 2002, o então presidente George W. Bush anundisse Francis ciou um plano para duplicar em cinco anos o orçamento dos NIH. Collins Com isso, a agência pôde gastar em 2007 US$ 29,2 bilhões, um aumento em relação aos US$ 20,4 bilhões de 2002. É para esse patamar de 2007 que retornou em 2013, o que levou a um corte de cerca de 700 projetos de pesquisa. No meio científico, as reportagens foram recebidas com entusiasmo – e várias cartas com depoimentos de pesquisadores contando suas agruras foram publicadas. No final de agosto, Stein entrevistou o presidente da agência, Francis Collins, e seu tom foi dramático. “Que Deus nos ajude se, nos próximos cinco anos, tivermos uma pandemia mundial de gripe”, disse Collins, referindo-se à pesquisa em busca de uma vacina universal contra a gripe. Ele acredita que essa vacina poderá ser alcançada no horizonte de cinco anos, se for possível poupar essa linha de pesquisa do sequestro do orçamento. Neste mês, o Congresso norte-americano discutirá os limites do orçamento do ano fiscal de 2014 e a expectativa é que defina, em acordo com o governo, uma política seletiva de cortes capaz de suspender o “sequestro”. Se o impasse não for resolvido, o número de projetos de pesquisa cortados deverá aumentar no ano que vem. n Fabrício Marques pESQUISA FAPESP 211  z  39


divulgação científica y

A conexão digital Conferência Mundial de Jornalistas de Ciência destaca a influência e as habilidades do profissional multimídia Jussara Mangini e Samuel Antenor

S

e o espaço reservado à cobertura de temas de ciência passa por certo encolhimento na mídia tradicional, há um número crescente de blogs, em diferentes regiões do mundo, com o perfil de informar, analisar e difundir resultados de pesquisas de maneira qualificada, além de questionar políticas científicas. Essa constatação foi feita na 8ª Conferência Mundial de Jornalistas de Ciência, organizada pela Federação Internacional de Jornalistas de Ciência (WFSJ, na sigla em inglês) e que reuniu cerca de 800 jornalistas e comunicadores de ciência de aproximadamente 80 países em Helsinque, na Finlândia, no final de junho. “A dinâmica do jornalismo científico de qualidade é mais forte do que nunca, e a comunidade global de jornalistas e os comunicadores de ciência podem trabalhar juntos para criar novos modelos de jornalismo científico que atravessam fronteiras nacionais neste mundo digitalmente conectado”, pontuou a declaração final da conferência.

40  z  setembro DE 2013

As plataformas digitais consolidam-se como espaço de atuação profissional para jornalistas que não encontram trabalho nas reduzidas redações das mídias tradicionais e permitem ampliar o público e a participação dos leitores, em diferentes níveis de interatividade, na elaboração e discussão dos assuntos de ciência. Com essas percepções e a constatação de que blogueiros estão deixando de ser vistos como escritores amadores para figurar entre os melhores comunicadores de ciência no mundo, a organização da conferência dedicou três mesas para o debate sobre formas de atuação nessa plataforma digital. Uma delas, intitulada “The ‘killer’ science journalists of the future”, foi organizada por Bora Zivkovic, médico veterinário que edita 63 blogs no portal da revista Scientific American, incluindo A Blog Around the Clock (blogs.scientificamerican.com/a-blog-around-the-clock), de sua autoria. Ele também é cofundador e diretor do ScienceOnline (scienceonline.com), comunidade virtual que reúne

pesquisadores, estudantes, blogueiros, artistas, desenvolvedores de web e educadores interessados na popularização da ciência. Na opinião de Zivkovic, é preciso levar em conta que, embora trabalhar na mídia impressa, no rádio e na TV renda salários melhores e atinja certos públicos qualificados, esses meios estão perdendo público rapidamente. “Assim, é interessante se concentrar no mundo on-line, e ocasionalmente ganhar algum dinheiro na mídia tradicional, quando for possível”, disse. Apelidado de blogfather, Zivkovic é conhecido por seu papel ativo na descoberta de escritores talentosos, ajudando-os até que possam seguir por conta própria. Primeiro blogueiro a ter um post citado como referência em um artigo científico, ele planeja, em parceria com três outros colegas, editar um livro que poderá servir como um manual para os blogs de ciência, útil para pesquisadores e jornalistas. De acordo com Zivkovic, para ser um jornalista de ciência ‘matador’, o profis-


fotos  wfsj

sional deve conjugar boas práticas do jornalismo com habilidades multimídia, com criatividade para produzir conteúdo e compreensão de que a blogosfera científica pressupõe uma nova lógica de relacionamento com o público e com seus pares. Na prática, significa domínio de ferramentas tecnológicas e de linguagens – vídeo, podcast, fotografia, charges, infográfico, história em quadrinhos, poesia, música, ficção científica –, que permitem explicar ciência de forma atrativa. Também significa, ele diz, saber lidar com feedbacks instantâneos, às vezes devastadores, com o máximo de transparência, retidão e reconhecimento de erros. Significa, ainda, que alcançar visibilidade implicará a construção de uma comunidade de “amigos virtuais” que servirão de replicadores dos trabalhos publicados. Zivkovic ressalta que, assim como a comunidade científica cita seus pares em artigos científicos, o texto on-line, sobretudo na cobertura de temas ligados à pesquisa, deve fazer ligações com

Jornalistas e comunicadores de ciência reunidos em Helsinque: perfil mais flexível

todos os documentos e referências mencionadas. “Confiança e reputação são as moedas no novo ecossistema da comunicação. No mundo on-line a moeda de confiança é o hiperlink. Mesmo que a maioria dos leitores não tenha tempo para abrir todos os links, eles são a prova de que o autor fez a diligência de pesquisar dados e fontes relevantes”, diz. Cobertura abrangente

Rose Eveleth, que além de jornalista atua como desenhista, produtora de vídeo e podcast e programadora, ressaltou na

conferência o desafio de ser flexível. Ela escreve sobre ciência para o blog da Smithsonian Magazine, gerencia as mídias sociais da Nautilus Magazine, é curadora do Science Studio (que reúne trabalhos multimídia em ciência) e cria animações para a plataforma TED de aulas e conferências na web, entre outras atividades que podem ser conferidas em www.roseveleth.com. “A capacidade de ter um enorme fluxo de informações chegando, de saber usá-las para contar uma história e de fazer algo grande e significativo para as pessoas, em todos pESQUISA FAPESP 211  z  41


Alternativas de financiamento

os tipos de plataformas, é totalmente nova e fascinante. Passo muito tempo trabalhando com podcasts, animações, ilustrações, infográficos, mapas, web design e assim por diante”, disse Eveleth. Outra entusiasta do novo cenário é Erin Podolak, da equipe de comunicação do Dona-Farber Cancer Institute, de Boston (EUA). Há três anos ela escreve o blog Science Decoded (www. sciencedecoded.blogspot.com), no qual publica informações sobre descobertas da ciência, cobertura da mídia sobre temas científicos e seu aprendizado na pós-graduação na Universidade de Wisconsin-Madison (EUA). “Multimídia é um componente crítico do jornalismo de hoje e só vai crescer em importância no futuro. Estamos vivendo em uma época de oportunidades jornalísticas. A internet e as ferramentas de mídia social, como o twitter, nos dão uma enorme vantagem quando se trata de interagir com o público”, diz Podolak. Isso não significa que times de jornalistas trabalhando em redações estejam fora de moda, observou Lena Groeger, desenvolvedora de aplicativos para produção e publicação de notícias do site ProPublica (www.propublica.org), que também participou do debate. Com uma redação composta por cerca de 40 jornalistas dedicados a reportagens investigativas, o ProPublica é um modelo curioso de parceria entre as redações tradicionais e jornalistas que trabalham para uma organização sem fins lucrativos. Como em tempos econômicos 42  z  setembro DE 2013

Em meio às dificuldades para o jornalismo de ciência encontradas em países com realidades díspares, um ponto em comum é a busca por novos modelos ou novas fontes de financiamento, que não comprometam a liberdade de expressão e a independência editorial. Jornalistas que atuam na web parecem estar encontrando alternativas sustentáveis. É o caso de alguns watchdog (blogs de vigilância), que monitoram informações e histórias publicadas na imprensa, em 1 Erin Podolak, criadora do blog Science textos publicitários ou por instituições Decoded: “Época públicas e privadas. O ProPublica, por de oportunidades” exemplo, foi criado por Paul Steiger, ex-editor-chefe do The Wall Street Journal, 2 Bora Zivkovic, o blogfather: responsável como uma organização sem fins lucrapela descoberta tivos, que conta com recursos da Sande novos talentos dler Foundation e de outras doações. O HealthNewsReview (www.healthnewsreview.org) é mantido pela Informed Medical Decisions Foundation, que não tem influência sobre a operação editorial do projeto, segundo Jornalistas que trabalham na o jornalista responsáweb estão encontrando novas vel, Gary Schwitzer. O blog avalia o confontes de financiamento teúdo das mensagens sobre saúde em jornalismo, publicidade, difíceis a mídia convencional às vezes marketing e relações públicas que potende a deixar a investigação de lado, dem influenciar os consumidores. Já o as histórias apuradas pelo ProPublica ScienceOnline, de Bora Zivkovic, recebe – como práticas enganosas cometidas doações dos leitores, que podem deduzipor instituições públicas e privadas – -las do Imposto de Renda. Há também o são oferecidas gratuitamente aos meios caso de empresas de comunicação que tradicionais. remuneram blogueiros – jornalistas ou Em 2012 foram publicadas mais de não – para escreverem sobre temas es80 matérias, escritas por 25 parceiros. pecíficos em blogs hospedados em seus Para facilitar o trabalho da redação e portais. Essa é uma alternativa para dar tornar o site mais amigável para os lei- aos veículos mais pluralidade. É o que tores, alguns aplicativos e ferramentas fazem, por exemplo, o jornal britânisão desenvolvidos por programadores e co The Guardian, que tem 13 blogs de jornalistas com habilidades multimídia, ciência sobre temas variados (www.thecomo a própria Lena. “Realmente não guardian.com/science-blogs), e a revista há nada como a sensação de publicar norte-americana Wired, com 10 blogs de uma história importante, seja na forma ciência (www.wired.com/wiredscience/ de uma narrativa ou de um projeto in- category/science-blogs/). n

fotos  wfsj

terativo. Estamos orgulhosos de tudo o que fazemos, e ficamos ainda mais entusiasmados quando os leitores ou outros jornalistas nos enviam e-mails dizendo o quão útil ou significativo nosso trabalho tem sido. Isso nos motiva a fazer ferramentas ainda melhores”, afirmou.


Áreas de atuação dos blogueiros de difusão científica do Brasil Jornalismo 28 Biologia 17 Física 13 Psicologia 10 Química 4 Engenharias 4 Genética 3 Medicina 2 Zoologia 2 Antropologia 1 Biomedicina 1 Fármaco-bioquímica 1 Farmácia 1 Filosofia 1 História 1 Letras 1 Matemática 1 Neurociência 1 Paleontologia 1 Psicofarmacologia 1 Psiquiatria 1 TIC 1

Blogueiros de ciência no Brasil

Marinha 1

A participação dos blogueiros na cobertura de

de autores (jornalistas e não jornalistas) está em

assuntos científicos é notável também no Brasil,

São Paulo (56), seguido pelo Rio de Janeiro (17),

Estados onde atuam os blogueiros de ciência

onde existem cerca de 210 blogs de ciência.

o que pode indicar que a divulgação científica,

Descartando-se aqueles que não tiveram posts

independentemente da mídia utilizada, é mais

publicados em 2013 e que não continham um perfil

intensa nas regiões próximas dos grandes polos

básico dos autores, o contingente de blogs cai para

de produção científica do país. Outros estados

menos de uma centena, dos quais 28 são escritos

representados no levantamento são Rio Grande

por jornalistas e 69 por não jornalistas. Entre os

do Sul (6), Santa Catarina (4), Paraná (4),

blogs mantidos por jornalistas, 25 estão vinculados

Pernambuco (3), Rio Grande do Norte (3),

a mídias tradicionais (10 deles em cinco jornais,

Minas Gerais (2), Ceará (1) e Mato Grosso (1).

15 em seis revistas de grande circulação) e três

CE

RN PE

MT

Como não existem dados precisos disponíveis

MG

sem esse tipo de vínculo. Dos 69 blogs escritos por

sobre o número de jornais e revistas que têm

não jornalistas, três também se vinculam a mídias

editorias de ciência no Brasil, uma consulta à base

tradicionais. Esse número foi obtido por meio de

de dados do mailing de jornalistas Maxpress

um cruzamento de dados levantados no Google,

mostra que são 35 os jornais impressos de grande

nos portais dos principais veículos de comunicação

circulação que reservam espaço editorial para

de cada capital brasileira, no Anel de Blogs

ciência ou contam com profissionais dedicados à

São Paulo

Científicos (lista criada pelo Laboratório de

cobertura do tema. Esses jornais estão distribuídos

Rio de Janeiro

17

Divulgação Científica e Cientometria da Faculdade

em 17 estados, sendo 46% no Sudeste: São Paulo

Rio Grande do Sul

6

de Filosofia, Ciência e Letras da USP de Ribeirão

(9), Rio de Janeiro (4) e Minas Gerais (3).

Santa Catarina

4

Preto) e também no cadastro de jornalistas e

No mesmo banco de dados foram encontradas

Paraná

4

veículos de comunicação do mailing comercializado

10 revistas impressas especializadas em ciência

Rio Grande do Norte

3

pela empresa Maxpress. Entre os blogs de ciência

e outras 10, de interesse geral e de circulação

Pernambuco 3

escritos por não jornalistas, essa ferramenta de

nacional, com espaço para o tema. Há também

Minas Gerais

divulgação científica é mais frequentemente usada

dezenas de revistas temáticas relacionadas a áreas

Ceará 1

por biólogos (17), físicos (13) e psicólogos (10).

científicas específicas, além de 159 sites de notícias

Mato Grosso

Os demais blogueiros atuam numa grande

com seções de ciência e tecnologia. De acordo com

variedade de áreas do conhecimento,

o levantamento, a divulgação científica no Brasil já

e há casos em que o conteúdo é produzido por

é feita expressivamente por blogs que representam

grupos multidisciplinares. A maior concentração

cerca de 60% dos veículos dedicados ao assunto.

SP

RJ

PR RS

SC

56

2 1

Fonte Google, portais dos principais veículos de comunicação de cada capital brasileira, base de dados do Maxpress e Anel de Blogs Científicos.

pESQUISA FAPESP 211  z  43


ciência  bioquímica y

Quando tomba o guardião Equipe da UFRJ explica como a versão deformada de uma proteína que protege o DNA leva as células a se multiplicarem sem controle no câncer

Ricardo Zorzetto, do Rio de Janeiro

Efeito danoso: moléculas mal enoveladas da p53 deformam as proteínas saudáveis e geram fibras encontradas em tumores de pele e mama 44  z  setembro DE 2013


léo ramos

A

palavra câncer se aplica a mais de uma centena de doenças – algumas que evoluem rapidamente, outras que só se manifestam depois de décadas; algumas altamente curáveis, outras incontornavelmente fatais –, todas com uma característica em comum: a proliferação desenfreada das células. Com base em resultados internacionais e dados obtidos em seu laboratório na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o bioquímico Jerson Lima da Silva formulou a hipótese de que ao menos parte dos casos de câncer seja desencadeada pelo mesmo mecanismo molecular que está por trás da doença de Creutzfeldt-Jakob, a versão humana do mal da vaca louca, que causa a morte celular precoce e deixa o cérebro poroso feito uma esponja. De acordo com essa visão, defendida por Silva e seus colaboradores em um artigo publicado em junho na Bioscience Reports, tanto no câncer, marcado pela perpetuação da vida das células, como na doença de Creutzfeldt-Jakob, em que a morte celular é antecipada, a origem do problema seria a mesma: o enovelamento anormal de uma proteína. Pode parecer uma causa sutil demais para estragos tão grandes. Mas, acreditam os pesquisadores, faz sentido. Afinal, é a estrutura tridimensional dessas moléculas grandes e complexas, fundamentais para definir a estrutura e o funcionamento das células, que determina o papel que vão desempenhar. Quando o enovelamento dá errado, as proteínas em geral deixam de funcionar como deveriam e até ganham funções extras. A diferença entre os casos de câncer e os de Creutzfeldt-Jakob estaria na proteína afetada. Nas formas de câncer analisadas pelo grupo da UFRJ, a deformação atinge a

p53, proteína que já foi chamada de guardiã do genoma por coordenar a reparação do DNA no caso de pequenos danos e por encaminhar a célula para a morte quando os defeitos não podem ser consertados. Já na doença de Creutzfeldt-Jakob a proteína alterada é o príon celular, molécula que se ancora na superfície externa das células e controla o trânsito de informações do meio externo para o interno (ver Pesquisa FAPESP nº 148). Em ambos os casos, a falha no enovelamento parece conferir à proteína alterada uma característica típica de agentes infecciosos tradicionais como os vírus e as bactérias: a capacidade de se autopropagar e infectar outras células. A ideia de que versões deformadas de uma proteína podem causar doenças não é nova. Foi proposta nos anos 1980 pelo pesquisador norte-americano Stanley Prusiner para explicar a origem do grupo de enfermidades neurodegenerativas do qual fazem parte a doença de Creutzfeldt-Jakob e o mal da vaca louca – as encefalopatias espongiformes. Investigando o agente causador de uma encefalopatia que atinge as ovelhas, Prusiner não encontrou os vírus que esperava. Em vez disso, identificou apenas uma proteína defeituosa à qual chamou de príon (sigla de partícula proteinácea infecciosa) e formulou uma explicação de como os príons deformariam as proteínas saudáveis. Segundo essa hipótese, que rendeu a Prusiner um prêmio Nobel em 1997, o simples contato da molécula deformada com as proteínas normais é suficiente para induzir uma transformação na estrutura tridimensional delas. É um evento em cadeia que, uma vez iniciado, não se consegue deter, como pedras de dominó que tombam. Também é um efeito difícil de reverter. As proteínas defeituosas têm uma estrutura

mais estável do que as saudáveis e aderem umas às outras, originando longas fibras tóxicas para os neurônios. “Acreditamos que o mesmo ocorra em uma parte dos casos de câncer em que a p53 está deformada”, contou Silva em seu laboratório no início de agosto, dias depois de um evento em que comentou seus resultados com Prusiner. Segundo Silva, estudos internacionais recentes sugerem ainda que algumas versões deformadas da p53 poderiam passar de uma célula a outra. Isso não significa, no entanto, que elas possam ser transmitidas entre indivíduos da mesma espécie. “Essas proteínas seriam transmissíveis [de célula para célula], mas não infecciosas”, explicou o bioquímico, que coordena o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Biologia Estrutural e Bioimagem e é o diretor científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). câncer de mama

As evidências mais contundentes de que versões defeituosas da p53 podem atuar como príon – os pesquisadores dizem que elas têm ação prionoide – e induzir a remodelagem das proteínas saudáveis, fazendo-as perder sua função original, surgiram nos últimos dois anos. Em parceria com a equipe da geneticista Cláudia Moura-Gallo, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, o grupo de Silva analisou amostras de tumores de mama de 88 mulheres e verificou que na maioria dos casos havia agregados formados por moléculas defeituosas da p53, semelhantes aos agregados amiloides das doenças causadas por príon – essas fibras ou agregados também aparecem em outras enfermidades neurodegenerativas, como a doença de Parkinson e a de Alzheimer. pESQUISA FAPESP 211  z  45


Uma receita de imortalidade Proteína com estrutura alterada emperra o mecanismo de reparo do DNA e de eliminação das células enovelamento correto

proteína funcional p53 normal

Célula saudável

Tetrâmero

DNA

p53

Núcleo linha de montagem À medida que são montadas, as proteínas

Nas células saudáveis, quatro unidades (tetrâmero) da p53

dobram-se sobre si mesmas e assumem

aderem ao DNA e acionam os mecanismos de reparo de

formas específicas que definem suas funções

danos no material genético ou de destruição celular

enovelamento anormal

proteína inativa fibra de p53

perda de função

semeadura

Alterações no gene da p53

Proteínas mal dobradas deformam

levam a proteína a se enovelar

as moléculas saudáveis de p53, que

de modo anormal

aderem gerando fibras inativas p53 alterada

Fração agregada

1.2

Célula tumoral

DNA

Núcleo

Tecido epitelial

1.0

Acúmulo de fibras Proliferação celular descontrolada

0.8 0.6

p53 normal

0.4 02 0 -0.2

0

2.000

Fonte  silva, j. l. et al accounts of chemical research (2010)

Quase sempre as proteínas deformadas haviam sido geradas em decorrência de pequenas alterações no gene TP53, que contém a receita para a produção dessa proteína. Era a primeira vez que se encontravam fibras de p53 em células tumorais. Mas a simples identificação dessas fibras não era suficiente para demonstrar que a proteína alterada podia disparar a deformação das proteínas saudáveis – fenômeno que em inglês recebe o nome de seeding ou semeadura, uma propriedade característica dos príons. No laboratório de Silva, a biomédica Ana Paula Ano Bom, a farmacêutica Luciana Rangel e a bioquímica Danielly Costa iniciaram, então, testes para identificar as condições em que a p53 – tanto sua versão saudável quanto a deformada – gerava os agregados. Para isso, mediram o tempo que leva para as fibras surgirem e a forma que assumem sob diferentes condições químicas 46  z  setembro DE 2013

4.000

Tempo (s)

6.000 8.000

Fibras de p53 defeituosa se acumulam no citoplasma e no núcleo celular. Sem a versão funcional da proteína, as células se multiplicam indefinidamente

(de pH) e físicas (de pressão e temperatura). Elas constataram que as duas formas da p53 geravam espontaneamente os agregados em condições semelhantes às que as células encontram no corpo humano – temperatura de 37 graus Celsius e pH neutro ou um pouco ácido, típico dos tumores. A formação dessas fibras ocorria mesmo quando apenas o segmento central, a parte da p53 que interage com o DNA, era usado nos experimentos. A diferença é que o dos agregados tóxicos se formaram mais rapidamente a partir da p53 deformada, relataram os pesquisadores em agosto de 2012 no Journal of Biological Chemistry (ver infográfico acima). O resultado mais importante surgiu quando as pesquisadoras adicionaram diminutas concentrações da proteína defeituosa em recipientes contendo p53 saudável. Como um sorvedouro, a proteína deformada atraiu as moléculas normais e induziu a sua conversão na forma alterada – con-

infográfico ana paula campos  ilustração pedro hamdan

Monômero


P53 normal

p53

P53 alterada

p53

imagens ano bom, a.p. et al. journal of biological chemistry (2012)

Células tumorais com p53 saudável (no alto) produzem menos agregados de proteína inativa do que as células com a versão alterada da proteína (acima)

é, sim, capaz de infectar células saudáveis. Os pesquisadores acrescentaram moléculas deformadas a culturas de células e viram que as proteínas alteradas eram absorvidas por bolsas que se formavam na membrana. Uma vez no interior das células, a p53 mal dobrada deAgregados Imagens sencadeou a formação de fibras. proteicos sobrepostas Como toda ideia nova, a hipótese de que versões mutadas da p53 possam funcionar como príon não é consensual. “O trabalho da equipe da UFRJ é bastante consistente, mas são necessárias mais evidências”, comenta a bioquímica Vilma Martins, do Centro Internacional de Pesquisa do A.C. Camargo Cancer Center, em São Paulo, estudiosa Imagens Agregados das doenças causadas por príon. sobrepostas proteicos Um dos passos que falta para demonstrar a ação prionoide da p53 é avaliar se a proteína deformada firmando sua propriedade de seeding. A capaci- em laboratório origina tumores em modelos anidade de induzir a deformação foi maior quando mais. Apesar da cautela, Vilma acredita que esse se usou a versão da p53 alterada resultante de mecanismo possa explicar a origem de parte dos uma mutação conhecida como R248Q, uma das casos de câncer ligados a mutações no gene TP53. sete mais frequentes no câncer. “Encontramos Se a ideia do grupo da UFRJ estiver correta, agregados dessa forma mutante em amostras de ela ajudará a entender o desenvolvimento dos câncer de mama e em linhagens de células desse tumores ditos espontâneos, que não são transmitumor cultivadas em laboratório”, conta Danielly. tidos de uma geração a outra e surgem em consequência de alterações genéticas no embrião já formado ou no indivíduo adulto. A ação prionoide pequenas alterações, grandes efeitos A formação dos aglomerados de p53 parece não da p53 seria uma boa explicação para os tumoser exclusiva dos tumores de mama. No início res espontâneos – a grande maioria dos casos de deste ano a equipe de Rakez Kayed, da Univer- câncer –, em especial quando ocorre a chamada sidade do Texas, em Galveston, descreveu essas dominância negativa. “Nesse fenômeno biológico, fibras em um tipo bastante frequente de tumor a alteração de apenas uma das duas cópias de um de pele, o carcinoma basocelular. Mais recente- gene já é suficiente para levar ao desenvolvimento mente o grupo de Silva também as identificou de uma enfermidade”, explica Silva, que levanem amostras de glioblastoma humano, um dos tou a possibilidade no caso da p53 já em 2003, tumores cerebrais mais agressivos que se conhece. quando começou a estudar o enovelamento da A tendência à agregação não ocorre só em con- proteína. Ele imagina ser possível usar as fibras sequência da mutação R248Q. Outras alterações de p53 em um teste, como marcador molecular de pontuais no gene geram versões da proteína com gravidade do câncer ou de prognóstico. E ainda propensão a se agregar, observaram os pesqui- que no futuro se torne possível interferir nesse sadores da UFRJ. Além de modificar a estrutura mecanismo e tentar frear o desenvolvimento de da p53 saudável, as versões deformadas dessa alguns tumores. “Talvez”, diz, “se encontre uma molécula sequestram e danificam duas outras forma de bloquear o processo de agregação”. n proteínas da mesma família: a p63, que controla a multiplicação celular, e a p73, que, de forma independente, encaminha as células com defeito Artigos científicos sILVA, J. L. et al. Expanding the prion concept to cancer biology: para a apoptose, um tipo de morte programada. dominant-negative effect of aggregates of mutant p53 tumor sup“Essas duas proteínas também desempenham um pressor. Bioscience Reports. 27 jun. 2013 importante papel antitumoral”, explica Danielly. SILVA, J. L. et al. Ligand binding and hydration in protein misfolding: insights from studies of prion and p53 tumor suppressor proteins. Em um estudo publicado em julho deste ano Accounts of Chemical Research. v. 43, n.2, p. 271-9. 2010. na PLoS One, Xavier Roucou e sua equipe na UniANO BOM, A. P. et al. Mutant p53 aggregates into prion-like, amyversidade de Sherbrook, em Quebec, Canadá, deloid oligomers and fibrils: implications for cancer. Journal of Biological Chemistry. v. 287, n. 33, p. 28.152-62. 10 ago. 2012. monstraram que uma versão defeituosa da p53 pESQUISA FAPESP 211  z  47


Biologia Celular y

RNA da metástase Estudo mostra papel de um tipo especial de ácido ribonucleico no processo de disseminação do câncer Marcos Pivetta

A

quelas sequências do genoma humano que não carregam instruções para a fabricação de proteínas e, uma década atrás, eram denominadas DNA lixo se mostram cada vez mais importantes para entender a maquinaria celular implicada em processos biológicos, inclusive em certas doenças. Um gene localizado no cromossomo humano 12 e conhecido pelo nome de Hotair gera um RNA bastante longo, composto por 2.200 nucleotídeos, que não dá origem a proteína alguma. No entanto, estudos recentes indicam que esse trecho da sequência genética parece exercer um papel importante na regulação da metástase, o mecanismo celular que permite a disseminação do câncer de um órgão para outro, criando assim tumores em outras partes do organismo. Um novo trabalho de pesquisadores do Centro de Terapia Celular (CTC) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP) mostra em detalhes como se dá a importante atuação do RNA Hotair nesse processo. O estudo indica que esse RNA é responsável por ativar no tumor a chamada transição epitélio-mesenquimal (EMT, na sigla em inglês), 48  z  setembro DE 2013

um processo que altera a morfologia e a funcionalidade de uma parcela das células do câncer. “Dessa forma, as células epiteliais do tumor se transformam em células mesenquimais e passam a se comportar como se fossem células-tronco do câncer”, diz o geneticista Wilson Araújo da Silva Junior, do CTC, autor de um artigo sobre o tema que deverá ser publicado em setembro na revista Stem Cells. “As células do câncer ganham a capacidade de se desprender do tumor original, migrar pela corrente sanguínea e aderir a outros

Células epiteliais (em vermelho) e mesenquimais (verde): as primeiras não são capazes de migrar como as segundas


O papel do Hotair na migração de tumores RNA estimula algumas células do câncer a ganhar a capacidade de se transferir para outros órgãos

tumor primário

metástase

transição epitélio-mesenquimal (EMT)

Células tumorais epiteliais

TGF-ß1 Receptor TGF-ß1

Fibroblastos

corrente sanguínea

RNA Hotair

c. tumoral epitelial

Passam a atuar como

Leucócitos Células-tronco tumorais

fonte  wilson araújo da silva junior

foto  christina scheel / whitehead institute ilustraçãO  pedro hamdan

célula-tronco

órgãos e gerar novos cânceres.” Além de promover o processo de espalhamento da doença pelo organismo via metástase, a EMT também ajuda a perpetuar as células do próprio tumor original. A transição epitélio-mesenquimal é uma transformação que normalmente ocorre nos estágios iniciais de desenvolvimento de um embrião e participa da geração de diferentes tipos de tecido de um organismo. Também está associada a processos curativos que incluem a formação de fibroses e a regeneração de ferimentos. Nessas situações, a EMT é um processo benéfico para a manutenção da vida. O problema é que, no caso dos tumores, a ocorrência dessa transformação também parece ser útil a seu desenvolvimento. As células do epitélio formam o tecido que recobre externamente (pele) ou internamente (mucosas) as cavidades do organismo. Elas não apresentam a propriedade de se soltar umas das outras, se disseminar pelo organismo e virar outros tipos de célula. Sua aparência e função são diferentes das células mesenquimais, que têm a propriedade de se espalhar pelo organismo e se transformar em outros tipos de célula. Ou seja, por essa linha

Estudo da USP mostra que, estimulado

células-tronco do tumor

pelo fator de transformação TGF-ß1, o

original. São capazes de migrar

RNA Hotair promove a transição EMT.

pelo sangue, se instalar em

Algumas células tumorais epiteliais

outros órgãos e gerar novos

viram células mesenquimais de câncer

cânceres (metástases)

de raciocínio, se não houver EMT, fica mais difícil para um tumor se disseminar num organismo. reprogramação celular

Às vezes, a químio e a radioterapia matam a maior parte das células do câncer, mas não as que fizeram a transição epitélio-mesenquimal, as tais células-tronco do câncer. É por meio delas que o tumor original volta ou aparece em outro lugar. “As células de um tumor são heterogêneas”, comenta Marco Antonio Zago, outro autor do artigo e coordenador do CTC, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) mantidos pela FAPESP. “No experimento, quando silenciamos o Hotair, vimos que não ocorre a EMT.” Ainda é cedo para dizer com certeza, mas bloquear a ação do Hotair pode ser uma forma de combater a metástase. Os pesquisadores da USP trabalharam com células de tumores humanos de mama e de cólon. “Essas formas de câncer são modelos muito usados nesse tipo de estudo”, afirma o biólogo Cleidson Pádua Alves, que fez pós-doutoramento no centro da USP e é o primeiro autor do artigo. No trabalho, os cientistas viram que, ao ministrar TGF-β1 (um fator de

transformação) em células de câncer cultivadas in vitro, o RNA Hotair era ativado, havia alterações no funcionamento de uma série de genes e ocorria a transição epitélio-mesenquimal. Quanto mais se acionava o Hotair, mais intenso era esse processo. No entanto, se o gene que produz o RNA Hotair era neutralizado, simplesmente não acontecia a EMT. “Esse RNA faz parte da programação celular necessária para ocorrer a metástase”, diz Silva Junior. Antes do estudo dos brasileiros, havia evidências de que tanto o Hotair, que pertence a uma nova classe de RNAs (os lincRNAs, long intergenic non-coding RNAs), como o mecanismo EMT estavam relacionados com a progressão do câncer. O que não se sabia era que o Hotair era essencial para ativar a transição epitélio-mesenquimal. n Projeto Centro de Terapia Celular (CTC) (nº 2013/08135-2); Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Coord. Marco Antonio Zago/FMRP-USP; Investimento R$ 4,5 milhões por ano para todo o Cepid (FAPESP).

Artigo científico ALVES, C.P. et al. The lincRNA Hotair is required for epithelial-to-mesenchymal transition and stemness maintenance of cancer cells lines. Stem Cells. No prelo.

pESQUISA FAPESP 211  z  49


Parasitologia y

A saúde nos tempos do imperador Análise de ossadas revela o perfil de doenças que atingiram diferentes populações do Rio de Janeiro entre os séculos XVII e XIX

U

ma equipe de pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) está decifrando as condições de saúde da população do Rio de Janeiro nos períodos colonial e imperial. E dois resultados obtidos recentemente chamam a atenção. O primeiro é que as doenças causadas por vermes eram bastante disseminadas: afetavam os pobres, que sabidamente viviam em ambientes insalubres, e também os ricos, que em princípio estariam mais protegidos por disporem de melhores condições sanitárias. Já o segundo resultado atribui uma possível nova origem para a tuberculose dos escravos africanos. Apresentado em maio deste ano na revista Emerging Infectious Diseases, ele indica que ao menos parte dos negros já teria chegado ao Brasil com a infecção, e não se contaminado depois de aportar no Rio, a então capital do país. O grupo coordenado pela bióloga Alena Mayo Iñiguez na Fiocruz chegou a essas conclusões depois de realizar análises genéticas e parasito-

50  z  setembro DE 2013

lógicas em esqueletos humanos encontrados nos últimos anos em três sítios arqueológicos do Rio: o cemitério dos Pretos Novos, o da Praça XV e o da Igreja Nossa Senhora do Carmo. Hoje confinados em uma área relativamente pequena no centro da capital fluminense – o da Praça XV e o do Carmo ficam a poucas quadras de distância um do outro, na área mais central da cidade, enquanto o dos Pretos Novos está a cerca de 2 quilômetros a noroeste dali, na zona portuária –, esses antigos cemitérios receberam no passado os restos mortais de pessoas de origens sociais bem distintas. Por essa razão, as informações extraídas dessas ossadas permitem agora entender melhor como viviam e morriam os moradores do que foi o maior e mais importante centro comercial do país nos períodos colonial e imperial. Nos séculos XVIII e XIX o cemitério da Praça XV de Novembro recebeu corpos de pessoas de todas as classes sociais, sobretudo das que morriam durante as epidemias, motivo pelo qual ele

Ossada no Cemitério dos Pretos Novos: parte dos escravos já chegava ao Brasil com a bactéria da tuberculose

léo ramos

Salvador Nogueira e Ricardo Zorzetto


pESQUISA FAPESP 211  z  51


Cemitério nobre: sítio arqueológico na Igreja de Nossa Senhora do Carmo (abaixo), onde eram enterrados os abastados

dá uma ideia geral do estado de saúde da população carioca na época. “Nessas ossadas identificamos marcadores genéticos de ameríndios, europeus e africanos”, conta Alena, pesquisadora do Laboratório de Biologia de Tripanosomatídeos do Instituto Oswaldo Cruz, da Fiocruz, e coordenadora dos estudos. A análise do material coletado de 10 pessoas mostrou que 80% delas apresentavam infecção por parasitas intestinais – em especial, vermes e protozoários. Os parasitas mais comuns eram os vermes do gênero Trichuris. De corpo alongado e com até 4 centímetros de comprimento, esses vermes vivem nos intestinos e, em grande número, podem causar sangramentos e anemia – além de Trichuris, também foram achados ovos de tênia e de lombriga. O grupo de Alena encontrou ovos de Trichuris em 70% das amostras estudadas. De acordo com os pesquisadores, essa taxa de infecção é até conservadora, uma vez que o material havia sido lavado antes de ser analisado. No caso dos cemitérios da Praça XV e dos Pretos Novos, o grupo da Fiocruz teve de trabalhar com o material coletado em operações de salvamento arqueológico, parte encontrada durante as obras de revitalização da zona portuária da cidade, enquanto na Igreja de Nossa Senhora do Carmo, a antiga Sé do Rio, as amostras 52  z  setembro DE 2013

foram analisadas no próprio local em que foram encontradas durante a restauração do prédio em 2007. “Fizemos a coleta com foco na pesquisa genética”, conta Alena. Depois de estudados, os ossos foram reenterrados. Na Igreja Nossa Senhora do Carmo, onde entre os séculos XVII e XIX eram sepultados os mortos das famílias abastadas, em geral de origem europeia, a taxa de infecção foi de apenas 12%. Apesar de mais baixo, o número surpreendeu os

pesquisadores. “A variedade de parasitas encontrada ali é igual à observada na Praça XV”, diz Alena. “Isso mostra que todos, ricos e pobres, estavam expostos ao mesmo ambiente e aos mesmos riscos.” doença de europeu

No caso da tuberculose, porém, os pesquisadores encontraram um padrão oposto ao das verminoses. A doença pulmonar causada pela bactéria Mycobacterium tuberculosis era bem mais comum


Segredo nos ossos Testes identificam parasitas comuns no Rio colonial e imperial Dentes e ossos recuperados em três cemitérios do Rio antigo guardavam material genético de bactéria da tuberculose, identificado em exames feitos por Lauren Jaeger (ao lado), e ovos dos vermes dos gêneros Trichuris (3), Taenia (4) e Ascaris (5)

1

fotos léo ramos  3, 4 e 5  JAEGER, L.H. et al. acta tropica (2013)

3

4

entre as pessoas mais ricas do que entre as pobres. A farmacêutica Lauren Jaeger, aluna de doutorado de Alena, e o restante da equipe identificaram material genético da bactéria da tuberculose nos restos humanos de 17 dos 32 indivíduos (quase todos descendentes de europeus) encontrados na Igreja Nossa Senhora do Carmo e identificados pela equipe do arqueólogo Ondemar Dias, do Instituto de Arqueologia Brasileira. Já entre os negros enterrados no Cemitério dos Pretos Novos a taxa de infecção por tuberculose foi de 25%, segundo estudo feito em parceria com a paleopatologista Sheila de Souza, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fiocruz. Na opinião dos pesquisadores, a frequência maior de tuberculose entre os descendentes de europeus condiz com a situação histórica, já que naquele período a prevalência da enfermidade era alta na Europa. “Os europeus exerceram um papel importante na disseminação dessa doença no Novo Mundo”, conta Alena. Embora não se possa negar a influência europeia no espalhamento da tuberculose, a análise dos restos mortais dos escravos enterrados no Cemitério dos Pretos Novos está levando os pesquisa-

2

5 dores a repensar uma crença antiga: a de que a África era um continente livre da enfermidade e que os escravos trazidos para o Brasil só se infectaram aqui. morte ao chegar

Redescoberto em 1996 durante a reforma de uma casa no bairro da Gamboa, quando operários abriram sondagens para fazer o alicerce e encontraram milhares de dentes e fragmentos de ossos humanos, o Cemitério dos Pretos Novos recebeu de 1769 a 1830 os negros que morriam durante a longa travessia do Atlântico ou logo depois de aportar no país. Nesse cemitério, os corpos eram atirados em valas comuns, pouco profundas. Muitas vezes eram macerados com tocos de madeira, o que torna a identificação dos esqueletos difícil – uma análise do material realizada pela equipe do bioantropólogo Ricardo Ventura Santos sugere que a maioria dos ossos encontrados ali era de homens que morreram quando tinham entre 18 e 25 anos de idade (ver Pesquisa FAPESP nº 190). “Como esses escravos nem saíam do porto, só podem ter vindo infectados”, diz Sheila, coautora do estudo publicado na Emerging Infectious Diseases. “Es-

sa condição de portadores da bactéria certamente aumentava o risco de essas pessoas adoecerem mais tarde, sob as duras condições de vida que levavam em regime de escravidão.” Até o momento, porém, não é possível saber se o contágio ocorreu no contato com os europeus na África ou mesmo antes, com cepas mais antigas da bactéria que já poderiam circular por lá. Alena e seu grupo esperam encontrar a resposta para essa dúvida nos próximos anos. Para isso precisam aplicar testes moleculares que permitam comparar o DNA das bactérias encontradas nos restos mortais do Cemitério dos Pretos Novos com as de cepas modernas da doença. “Estamos adaptando algumas técnicas de biologia molecular para trabalhar com o material antigo”, diz Alena. “Além de permitir identificar os parasitas que afetavam aquelas populações, o estudo das sequências de DNA permite fazer uma análise da evolução [desses patógenos] e comparar com bactérias que circulam hoje.” n

Artigos científicos JAEGER, L.H. et al. Mycobacterium tuberculosis complex in remains of 18th–19th century slaves, Brazil. Emerging Infectious Diseases. v. 19, n.5. 5 mai. 2013. JAEGER, L.H. et al. Paleoparasitological analysis of human remains from a European cemetery of the 17th–19th century in Rio de Janeiro, Brazil. International Journal of Paleopathology. 20 mai. 2013. JAEGER, L.H. et al. Paleoparasitological results from XVIII century human remains from Rio de Janeiro, Brazil. Acta Tropica. 27 nov. 2012. JAEGER, L.H. et al. Mycobacterium tuberculosis complex detection in human remains: tuberculosis spread since the 17th century in Rio de Janeiro, Brazil. Infection, Genetics and Evolution. 27 ago. 2011.

pESQUISA FAPESP 211  z  53


Mudanças Climáticas y

Café com mais gás Cafeeiro cresce e produz mais com mais CO2 na atmosfera Carlos Fioravanti

54  z  setembro DE 2013

ramos mais longos, caule mais robusto e folhas mais largas. Os cafeeiros que receberam mais CO2 também produziram mais frutos, de acordo com Raquel Ghini, coordenadora do projeto chamado Face, sigla de free aircarbon dioxide enrichment. Segundo ela, o ganho de produtividade final ainda não pode ser divulgado por expressar apenas o resultado de uma safra. Como o café alterna anos de alta e baixa produtividade, “precisamos de pelos menos duas safras para termos valores mais consistentes”, diz ela. A qualidade dos grãos está sendo avaliada por especialistas do Instituto Agronômico de Campinas. Os cafeeiros cresceram mais em uma atmosfera enriquecida com CO2 porque a taxa de fotossíntese aumentou 60%, passando de 10 para 16 micromoles de CO2 por metro quadrado foliar por segundo. “Mais CO2 na atmosfera significa mais substrato para o cafeeiro realizar a fotossíntese”, diz Emerson da Silva, pesquisador do Instituto de Botânica de São Paulo, responsável pelas análises. Por meio da fotossíntese é que as plantas transformam a luz do sol e o CO2 em carboidratos. Com mais carboidratos

em seus tecidos, a planta poderá crescer mais, produzir mais frutos ou, como já visto na soja, sintetizar mais compostos químicos que ajudarão na defesa contra microrganismos causadores de doenças. Em cafeeiros mantidos em estufas de topo aberto com uma concentração de CO2 de 760 ppm, a equipe do Instituto de Botânica observou um aumento na capacidade de resistir à luz, o ponto de saturação luminoso, de 600 para 800 micromoles de fótons por metro quadrado por segundo. “As plantas se tornaram mais aptas a receber mais luz”, diz Silva. O exemplo de Minas

Fabio DaMatta, professor da Universidade Federal de Viçosa (UFV), acredita que os benefícios trazidos pela alta concentração atmosférica de CO2 poderiam neutralizar boa parte dos efeitos prejudiciais da elevação da temperatura e da variação da precipitação. De acordo com um estudo recente, o efeito poderia ser o mesmo para as culturas de soja, arroz e trigo, para os quais se prevê uma queda expressiva de produção nas próximas décadas, considerando-se apenas a elevação de temperatura.

fotos  eduardo cesar

U

ma atmosfera mais rica em gás carbônico (CO2) – como a prevista para as próximas décadas, em consequência da emissão contínua de gases resultantes da queima de florestas e de combustíveis fósseis – poderia beneficiar o cultivo do café, uma das principais culturas agrícolas do país, e talvez neutralizar a perda de produtividade provocada pelo aumento da temperatura e da intensificação de secas e cheias, de acordo com os primeiros resultados de um cultivo experimental na Embrapa de Jaguariúna. Durante dois anos, os cafeeiros mantidos em seis octógonos com 10 metros de diâmetro receberam CO2 em uma concentração de 550 partes por milhão (ppm), simulando a atmosfera no final do século, que poderia atingir até 760 ppm. Em seis outros octógonos os cafeeiros viveram apenas com o nível de CO2 da atmosfera atual, em uma concentração de 400 ppm (ver Pesquisa FAPESP nº 198). Comparativamente, os que receberam mais CO2 – controlado por meio de sensores acionados automaticamente de acordo com a direção e intensidade do vento – estão mais altos, com


Flores precoces: o cafeeiro cresce mais e produz mais frutos em uma atmosfera mais rica em CO2 (abaixo)

Se as previsões otimistas se confirmarem, seria possível evitar a migração de culturas como a do café para regiões de temperaturas mais amenas, no sul do país. “O novo zoneamento do café não pode ser definido se não considerarmos também o aumento da concentração de CO2”, diz. O aumento da concentração atmosférica de CO2 poderia explicar “alguns resultados até há pouco impensáveis”, como ele diz. Por exemplo, o fato de hoje cafeeiros crescerem e produzirem em algumas regiões de Minas Gerais onde a temperatura média anual é

de 24,5º Celsius, 1,5 grau acima do limite que a planta deveria suportar. “Parte do sucesso do cultivo nessas regiões se deve, possivelmente, ao aumento de teor de CO2 na atmosfera.” Os estudos feitos até agora – e apresentados no início de setembro em Jaguariúna – indicam que o cafeeiro talvez esteja sujeito a menos doenças. No entanto, o cenário é incerto. “Algumas pragas e doenças devem aumentar e outras diminuir, porque as plantas, crescendo mais, podem criar um microclima com mais umidade e temperatura mais baixa,

mais favorável para fungos e bactérias”, diz Raquel Ghini. O capim braquiária (Brachiaria decumbens), o principal alimento do gado no Brasil, cresceu mais, apresentou mais biomassa e mais fibra quando submetido a uma atmosfera mais rica em CO2 que a atual – entre os cafeeiros – do que a braquiária que não recebeu doses extras de CO2. No entanto, “o valor nutritivo é menor”, observou Adibe Abdalla, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP). Além disso, trata-se de uma fibra de mais baixa qualidade, cuja digestão poderia resultar em uma produção maior de metano, um dos gases associados às mudanças do clima. n

Projetos 1. Efeitos da alta concentração atmosférica de CO2 em câmaras de topo aberto e sistema Face sobre a fotossíntese e os mecanismos naturais de resistência do cafeeiro à ferrugem (12/08875-3); Modalidade Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa; Coord. Emerson Alves da Silva – Instituto de Botânica; Investimento R$ 198.255,31 (FAPESP). 2. Impacto do aumento da concentração de dióxido de carbono atmosférico e disponibilidade de água sobre a cultura do café em experimento Face (“Free Air CO2Enrichment”); Coord. Raquel Ghini – Embrapa Meio Ambiente; Investimento R$2.627.048,96 (Embrapa).

pESQUISA FAPESP 211  z  55


ESPECIAL BIOTA EDUCAÇÃO VI

No fio da navalha Mesmo degradados, fragmentos remanescentes de mata atlântica abrigam grande diversidade de espécies endêmicas Rodrigo de Oliveira Andrade

“A

mata atlântica tem sido palco dos principais ciclos econômicos brasileiros nos últimos 500 anos. Desde a colonização portuguesa, a região passou por longos períodos de uso intensivo e desregulado voltado à extração ou à produção agrícola para exportação. É o caso do pau-brasil e da cana-de-açúcar, cuja exploração contribuiu para a ocupação da região da Zona da Mata no Nordeste. No decorrer dos séculos, esse uso passou pelos ciclos do ouro e do café, pela expansão urbana sobre a floresta a partir da década de 1920 e, mais recentemente, pelo corte ilegal de madeira, a caça e captura de animais e a extração de plantas como o palmito-juçara (Euterpe edulis), fonte de alimento para várias espécies de aves. Todos esses processos transformaram a paisagem do ecossistema. Mas quem assistiu às palestras do Ciclo de Conferências Biota-FAPESP Educação no dia 22 de agosto viu que, apesar de degradado, o que resta da floresta atlântica ainda abriga grande diversidade de espécies de plantas e animais.

56  z  setembro DE 2013

“São cerca de 5 mil variedades de plantas encontradas somente na mata atlântica, das quais as bromélias, as orquídeas e as palmeiras são as mais abundantes”, disse o botânico Carlos Alfredo Joly, do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Joly, coordenador do Programa Biota-FAPESP, dirigia-se a um auditório repleto de estudantes e professores universitários e do ensino médio de São Paulo. Segundo ele, à época da chegada dos portugueses a mata atlântica era a segunda maior floresta tropical da América do Sul; estendia-se por pouco mais de 1,3 milhão de quilômetros quadrados (km²), ou 15% do território nacional, ao longo da costa brasileira e do interior de Minas Gerais, São Paulo e Paraná, abrangendo área em que atualmente estão 17 estados. Hoje, porém, restam apenas 7% (95 mil km²) de sua cobertura original, sendo os índices de desmatamento mais elevados nos estados do Nordeste, onde o total de áreas remanescentes não passa dos 2%. Também devido à sua dimensão territorial, o domínio


ilustrações  Cynthia Gyuru  foto andré freitas/unicamp

Aspecto de vegetação de mangue no núcleo Picinguaba, em Ubatuba, SP

atlântico reúne diferentes tipos de ambientes, constituídos por vegetações de dunas, restingas e mangues, além de matas de araucária e florestas úmidas de porte mais denso, conhecidas como matas de encosta. Isso sem contar pequenos enclaves próximos a outros ecossistemas, como os campos dos pampas e as planícies do pantanal (ver Pesquisa FAPESP n° 207). Dentre as espécies que compõem esses ambientes, as que fazem parte das vegetações de dunas e mangues são as que enfrentam as condições ambientais mais adversas, em parte devido à alta salinidade e à instabilidade do solo em que nascem. “São poucas as espécies que sobrevivem nesse tipo de ambiente”, disse Joly. “Áreas de mangue, por exemplo, são inundadas pela água do mar, com altos índices de salinidade. Assim, essas espécies de plantas desenvolveram mecanismos adaptativos específicos para sobreviver a essas condições.” Segundo ele, os manguezais de todo o mundo são caracterizados por apenas três gêneros arbóreos: Rhizophora, Avicennia e

Laguncularia. Esse ambiente hostil para árvores é berçário para centenas de espécies de peixes e crustáceos, por isso sua degradação leva a uma perda de US$ 1,6 bilhão por ano, segundo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. Os remanescentes de mata atlântica são importantes na formação de rios e cachoeiras, cujas águas são responsáveis pelo abastecimento dos 125 milhões de pessoas que atualmente vivem no domínio atlântico. “Trata-se de um serviço ambiental da mais alta relevância para os seres humanos”, disse Joly. A densidade populacional nessas áreas tem aumentado de modo acelerado nos últimos anos, dando origem a um novo problema, agora de ordem pública. É que além de ácido, arenoso e muito pobre em nutrientes, o solo da mata atlântica é raso e bastante instável. Vêm justamente dessa característica, agravada pela ocupação de vertentes e sopés das serras, os episódios de deslizamento como os que afetaram a região serrana do Rio de Janeiro, em 2011, matando mais de 900 pessoas. pESQUISA FAPESP 211  z  57


O alto grau de endemismo verificado entre as espécies de plantas também se estende à fauna da mata atlântica. De acordo com o biólogo André Freitas, também do Instituto de Biologia da Unicamp, 45% das espécies de borboletas presentes na floresta atlântica são exclusivas desse ecossistema. Ele explica que a origem dessa diversidade biológica começou a se diversificar há milhares de anos, a partir de rotas migratórias bastante distintas. “Existe uma nítida divisão norte-sul no que diz respeito à origem dessa diversidade”, disse. “Da metade norte do Espírito Santo aos limites da mata atlântica no Nordeste, a fauna é repleta de elementos amazônicos. Mais ao sul, esses elementos estão mais associados às espécies da cordilheira dos Andes.” Essa divisão se deu ainda no período Mioceno, há 23 milhões de anos, quando a placa tectônica de Nazca, no Pacífico, se chocou com a da América do Sul, dando origem aos Andes, uma cadeia de montanhas de cerca de 3.500 metros de altura que se estende do Chile à Venezuela. PASSADO DIVIDIDO

O surgimento desse enorme paredão mudou completamente a biogeografia da região. Até então, os rios que hoje formam a bacia amazônica corriam para o oceano Pacífico. As montanhas, contudo, interromperam seu fluxo e deram forma à bacia atual, com águas escoando para o oceano Atlântico. Enquando isso, variações periódicas no clima originaram corredores naturais, com matas frias e úmidas, que permitiram a migração de espécies andinas para a mata atlântica. “Chegando lá, essas espécies começaram a se diversificar”, disse Freitas. Um exemplo é a formiga Leptanilloides atlantica, espécie recém-descrita da serra do Mar – as formigas desse gênero só era conhecido na região dos Andes e na América Central. Também a borboleta 58  z  setembro DE 2013

2

3

Hyalenna pascua é a única representante na mata atlântica de um gênero andino. “Esses animais são de montanhas altas, com clima frio. Por isso não chegaram à porção norte da floresta atlântica.” Quem alcançou a parte norte da mata atlântica foram as espécies amazônicas, quando a floresta no Nordeste se uniu à vegetação amazônica das Guianas e do Pará, perto da ilha de Marajó, além das regiões dos rios Xingu, Tocantins e Araguaia (ver Pesquisa FAPESP n° 210). Um dos resultados dessa união é a saíra-prateada (Tangara velia cyanomelaena), ave presente na mata atlântica que tem como parente mais próximo a amazônica Tangara velia iridina, além de diversas espécies de borboletas, besouros, lagartos e anfíbios.

Floresta perdida

CE PI

Desmatamento voltou a subir em 2011 e 2012, depois de três anos em queda

BA GO

MG

MS

ES SP

Remanescente florestal Área natural não florestal Mangue Restinga Desmatamento 2011-2012 Área urbana Lei 11.428/06 da Mata Atlântica fonte  SOS mata atlântica/inpe

PR SC RS

RJ

RN PB PE AL SE

fotos 1 a 4 eduardo cesar  5 André Freitas/Unicamp  mapa sos mata atlântica/inpe

1

A partir da esquerda: Flávio Ponzoni, André Freitas e Carlos Alfredo Joly


Também as variações climáticas do passado têm um papel importante nessa história, já que fizeram com que a floresta aumentasse e diminuísse de tamanho em deterO alto número minadas épocas. Sabe-se que de espécies a manutenção contínua da mata atlântica depende de endêmicas fez certas condições climáticas e de solo. “Mas no passado, com que a mata quando o clima era mais frio e boa parte da floresta estava atlântica fosse mais seca, é possível que ela inserida no mapa tenha sido reduzida a poucas áreas, onde os requisitos mídos hotspots nimos necessários para sua manutenção permaneciam de biodiversidade intactos”, disse Freitas. Essas florestas ficaram, então, isoladas, favorecendo esse processo de diferenciação regional entre espécies do mesmo gênero. Essas regiões são conhecidas como centros de endemismo. Na mata atlântica existem três centros importantes: nos estados de Pernambuco, da Bahia e do Rio de Janeiro. Além desses há outros dois centros secundários, um em Santa Catarina e outro mais ao centro do país, conhecido como Araguaia. “Para muitos grupos de animais típicos de florestas úmidas, é bastante clara a diferenciação entre as populações dos centros de endemismo do ecossistema atlântico, confirmando um processo histórico de diferenciação regional no passado.” Vegetação densa na encosta da Um caso bastante conhecido, e que evidenserra do Mar cia a existência desses centros de endemismo, (esquerda) e diz respeito aos micos-leões (Leontopithecus). mico-leão-dourado

4

São quatro espécies na mata atlântica, uma de cada um desses centros; todos com padrões de cor diferentes. “A grande diversificação e o alto grau de endemismo da fauna da mata atlântica podem ser explicados por diferentes processos atuando em conjunto.” Assim, concluiu Freitas, a grande diversidade biológica encontrada ao longo desse ambiente se deve à interação entre as tolerâncias ambientais dos diferentes grupos animais, à heterogeneidade de hábitats, como florestas, restingas e campos, e aos processos históricos, como variações climáticas. O QUE HÁ PARA CONSERVAR?

O fato de a mata atlântica estar bastante degradada, mas abrigar muitas espécies endêmicas, fez com que ela fosse inserida no mapa dos hotspots de biodiversidade no mundo: áreas que já perderam ao menos 70% de sua cobertura vegetal original, mas que, juntas, abrigam mais de 60% de todas as espécies terrestres do planeta. Hoje essas regiões ocupam 2% da superfície terrestre, abrigando mais de 1,1 bilhão de pessoas. Muitas das atividades econômicas desenvolvidas nelas dependem dos produtos de ecossistemas sadios, a partir da exploração de plantas e animais silvestres. Para Joly, tais fatores fazem da mata atlântica uma área prioritária para conservação. Mas isso não tem acontecido. Em junho, a SOS Mata Atlântica e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) divulgaram a versão mais recente do Atlas de remanescentes florestais da Mata Atlântica. Segundo ele, após três anos em queda, o desmatamento na floresta atlântica voltou a subir entre 2011 e 2012, chegando ao maior valor desde 2008. De acordo com o pesquisador do Inpe Flávio Jorge Ponzoni, um dos

5

pESQUISA FAPESP 211  z  59


palestrantes convidados, o aumento em 2012 foi liderado por Minas Gerais, responsável por metade do desmatamento no período. Ponzoni participou da elaboração do Atlas e explicou que o monitoramento inclui áreas de até 3 hectares, aproximadamente três campos de futebol. “Tudo é feito a partir da interpretação visual de imagens geradas via satélite. Trata-se de uma análise subjetiva. Assim, para garantir que as informações sejam comparáveis, nós atualizamos, anualmente, o banco de dados.” Foi a quarta vez consecutiva que Minas Gerais liderou o ranking de quem mais desmatou. Isso levou a SOS Mata Atlântica a fazer uma denúncia ao Ministério Público de Minas, que respondeu à altura. “Impressionou a agilidade com que as autoridades se mobilizaram”, comentou Ponzoni.

Programação Até 2015, 30% da área hoje ocupada por 60 espécies de árvores deve

Para mais informações: www.biota.org.br  www.biotaneotropica.org.br www.agencia.fapesp.br

ser perdida

efeitos globais

A não conservação da floresta atlântica pode desencadear outro problema: é sabido que o desmatamento contribui com o aquecimento global. Ocorre que se as temperaturas continuarem a aumentar, a tendência é que a floresta devolva à atmosfera mais dióxido de carbono (CO2) do que emitia antes. “Quando comparamos a floresta atlântica com a amazônica, verificamos que há uma diferença gigantesca em relação à quantidade de CO2 acumulado seja no tronco e nos galhos das árvores, seja no solo”, disse Joly. O mesmo acontece em relação à quantidade de nitrogênio (N) estocado no solo, cuja liberação deve se acelerar com o aquecimento. O cenário parece não ser mesmo dos melhores. Até 2100, 30% da área hoje ocupada por 60 espécies de árvores na mata atlântica deve ser perdida. “Essa é uma projeção com base em cenários otimistas do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), em que todos cumpram com os compromissos firmados no Protocolo de Kyoto e que a temperatura mundial não suba mais que 2 graus neste século”, alertou Joly. Na pior das hipóteses, em que a temperatura suba até 4 graus, a estimativa é que percamos 65% dessa mesma área. O Ciclo de Conferências Biota-FAPESP Educação é uma iniciativa do Programa Biota-FAPESP, em parceria com a revista Pesquisa FAPESP, voltada à discussão dos desafios ligados à conservação dos principais ecossistemas brasileiros (ver programação ao lado). Até novembro, as palestras apresentarão o conhecimento gerado por pesquisadores de todo o Brasil, visando a contribuir com a melhoria da educação científica e ambiental de professores e alunos do ensino médio do país. n 60  z  setembro DE 2013

Ciclo de Conferências Biota-FAPESP Educação 2013

19 de setembro (14h00-16h00) Bioma Amazônia Conferencistas Maria Lucia Absy (Inpa) Carlos Peres (Universidade East Anglia, Reino Unido) Helder Queiroz (IDSM)

24 de outubro (14h00-16h00) Ambientes marinhos e costeiros Conferencistas Mariana Cabral de Oliveira (IB-USP, São Paulo) Maria de los Angeles Gasalla (IO-USP, São Paulo) Roberto S .G. Berlinck (IQSC-USP, São Paulo)

21 de novembro (14h00-16h00) Biodiversidades em ambientes antrópicos – urbanos e rurais Conferencistas Luciano M. Verdade (Cena-USP, São Paulo) Elisabeth Höfling (IB-USP, São Paulo) Roseli Buzanelli Torres (IAC)

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Física y

O poder das colisões Choque entre grãos é o principal motor das tempestades de areia  |  Igor Zolnerkevic

DAVID EAST / SCIENCE PHOTO LIBRARY

O

s ingredientes básicos de uma tempestade de areia são, obviamente, muito vento e muita areia. Ainda assim, nenhum pesquisador havia conseguido criar um modelo físico com base nesses dois elementos que fosse capaz de explicar completamente a força dessas tempestades. Um trabalho de físicos brasileiros e estrangeiros publicado em agosto na revista Physical Review Letters (PRL) permite agora entender por que em regiões próximas aos grandes desertos da Terra, como o de Gobi, na Ásia, e o Saara, na África, as tempestades atingem dimensões colossais. Milhões de toneladas de areia e poeira podem ser soprados por milhares de quilômetros, bloqueando estradas, impedindo o tráfego aéreo, soterrando construções e erodindo o solo arável. Antes os pesquisadores consideravam impossível simular em computador a trajetória de cada grão de areia de uma tempestade. Por isso os modelos costumavam assumir algumas simplificações. Uma delas é que, quando soprados pelo vento, os grãos virtuais nunca colidiam uns com os outros. Isso porque se acreditava que as colisões entre os grãos carregados pelo ar atrapalhassem o avanço das tempestades, encurtando a trajetória dos grãos. Agora uma equipe internacional liderada pelo físico brasileiro Marcus Carneiro, do Instituto Federal de Tecnologia de Zurique (ETH), na Suíça, concluiu o contrário. Comparando simulações com e sem colisões entre os grãos, os pesquisadores mostraram que os choques aéreos são fundamentais para aumentar o número de partículas carregadas pela tempestade. “Para levar em consideração as colisões, é necessário desenvolver códigos matemáticos bastante eficientes e fazer

Tempo fechado: tempestade de poeira em estrada que liga as cidades de Melbourne a Geelong, na Austrália

uso de elevado poder computacional”, diz o físico português Nuno Araújo, também da ETH, e segundo autor do artigo que descreve o resultado, publicado na PRL. As novas simulações seguiram a trajetória de apenas um punhado de areia – cerca de 4 mil grãos soprados por um perfil de vento simplificado. Mas foram as primeiras que descreveram de modo realista as colisões aéreas. sáltons

As simulações mostram que as colisões mais do que dobram a capacidade do vento de transportar areia. Já era bem conhecido que as tempestades começam quando o vento levanta uma camada de areia alguns centímetros acima do chão. Alguns desses grãos – os chamados sáltons – voam bem mais alto que os outros, ganhando ainda mais energia do vento, cuja velocidade aumenta com a altura. Eventualmente, os sáltons caem e criam

mais sáltons quando colidem com os grãos da camada rente ao chão. O que as novas simulações mostram, no entanto, é que, antes de chegar perto do chão, um sálton pode colidir com vários outros grãos que saltam apenas um pouco acima da altura média, transferindo parte de sua energia para eles. Essas colisões no meio do ar gerariam ainda mais sáltons, engrossando as nuvens de areia das tempestades. Além de prever a intensidade de tempestades com mais precisão, o novo modelo deve mudar o que se entende sobre a formação e a movimentação das dunas de areia. Segundo Araújo, a teoria pode ser verificada em testes em laboratório, observando o movimento de grãos artificiais com diferentes propriedades elásticas. n

Artigo científico CARNEIRO, M.V. et al. Midair collisions enhance saltation. Physical Review Letters. v. 111, n. 5. 2013.

pESQUISA FAPESP 211  z  61


óptica y

Redemoinhos de luz Nova técnica altera frente de onda de feixes luminosos, permitindo manipular objetos microscópicos e transmitir mais informação

A

s figuras geométricas projetadas por um feixe laser no laboratório do físico Cid Bartolomeu de Araújo na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) podem parecer um truque banal. No entanto, esses desenhos luminosos com apenas alguns micrômetros de comprimento não são feitos de uma luz qualquer. Eles são verdadeiros redemoinhos de luz, conhecidos como vórtices ópticos. Quando incidem sobre um objeto microscópico – um grão de poeira ou uma célula viva –, esses vórtices fazem o objeto se mover e percorrer sem parar o contorno da figura projetada. Talvez ainda pareça pouca coisa, mas as aplicações tecnológicas dos vórtices ópticos são muitas. Já usados em experimentos de física e de biologia para manipular a matéria no nível submicroscópico, os vórtices prometem aumentar em centenas de vezes o volume da informação transmitida por fibras ópticas. Também podem servir de base para uma nova geração de circuitos optoeletrônicos com dimensões nanométricas. Uma vantagem da técnica desenvolvida por um trio de físicos da UFPE é que ela dá liberdade a pesquisadores e engenheiros para moldarem os vórtices ópticos na forma que precisarem em suas aplicações. As técnicas para criar os vórtices ópticos começaram a ser desenvolvidas 62  z  setembro DE 2013

no início dos anos 1990 pelo grupo dos físicos Les Allen e Han Woerdman, da Universidade de Leiden, na Holanda, e produzem vórtices que formam circuitos com geometria circular. Vórtices com outras geometrias já foram obtidos, mas eram gerados usando técnicas mais complicadas ou que permitiam desenhar alguns tipos específicos de contornos. “Descobrimos um modo de obter qualquer forma com a mesma montagem experimental usada para gerar os vórtices circulares”, explica o físico Anderson Amaral, primeiro autor do artigo que descreveu a descoberta, publicado em maio deste ano na revista Optics Letters. Saca-rolhas

Para produzir um vórtice óptico, os pesquisadores disparam um feixe de laser convencional em direção a uma tela de cristal líquido. Antes de chegar à tela, a onda de luz do laser se propaga como uma série de frentes planas. Ao penetrar no cristal líquido, as frentes de onda são refletidas segundo um padrão geométrico formado por faixas claras e escuras, criado pelo rearranjo das moléculas do cristal líquido controlado por computador. As áreas escuras refletem a luz instantaneamente. Já as faixas claras atrasam a reflexão. Assim, o padrão geométrico atrasa certas partes das frentes de onda de luz e dá às suas superfícies,

antes planas, o formato retorcido como o de um saca-rolhas (ver figura ao lado). Quando o feixe de luz espiralada é projetado em uma parede, em vez de um ponto luminoso vê-se um anel de luz. A torção das ondas anula sua intensidade no eixo do feixe e cria uma área escura em seu centro. Ao mesmo tempo, o anel luminoso restante ganha o poder de pôr em movimento partículas ou pequenos objetos sensíveis à sutil força da luz. Assim, as partículas atingidas pelo feixe passam a percorrer o circuito formado pelo anel. Quanto mais espiralada a luz – isto é, quanto menor a distância entre as voltas da onda em forma de saca-rolhas, determinada pelo número de faixas escuras e claras na tela de cristal líquido –, mais rápido as partículas giram. Amaral começou a investigar maneiras de controlar a torção da luz no ano passado, quando iniciou o doutorado sob a orientação de Araújo e do físico Edilson Falcão Filho, também da UFPE. A motivação de Amaral é usar os vórtices ópticos para manipular os elétrons de um metal. Atualmente, os circuitos eletrônicos não podem ser menores que alguns micrômetros (milésimos de milímetro). Mas muitos pesquisadores trabalham para criar circuitos até mil vezes menores, que funcionariam baseados em oscilações nanométricas dos elétrons – são os chamados plásmons –, criadas e


Espelho dinâmico Padrões gerados em telas de cristal líquido moldam feixes de luz e os tornam capazes de mover pequenos objetos

1

onda plana

Parte das ondas planas (1)

2

tela de cristal líquido

3

onda espiralada

4

Trajetória da partícula

moldando a luz

sofre atraso ao ser refletida pelas faixas claras na tela de cristal líquido (2). Assim, as ondas refletidas adquirem a forma espiralada de um saca-rolhas (3). A onda em espiral faz partículas microscópicas girarem e percorrem um circuito (4). Os físicos brasileiros descobriram um novo modo de alterar o padrão de sombras do cristal e de controlar o feixe de luz e

imagens  amaral et al. optics letters (2013)  ilustração  favio otubo

a trajetória das partículas

controladas por feixes de luz especiais, como os vórtices ópticos. A sacada dos físicos de Pernambuco foi explorar uma propriedade dos vórtices ópticos chamada carga topológica. Grosso modo, essa carga é um número que determina quantas são as voltas do saca-rolhas de luz. “Todo mundo chama essa quantidade de carga topológica, mas ninguém costuma falar nas propriedades topológicas [da geometria] dela”, diz Amaral. Os matemáticos dizem que duas figuras geométricas têm uma mesma topologia se uma delas pode ser moldada na forma da outra sem precisar cortar ou colar seus pontos. Uma esfera pode ser transformada em um cubo dessa maneira. E uma xícara pode gerar uma rosquinha e vice-versa. Do mesmo modo, os pesquisadores notaram que seria possível mudar a forma dos vórtices de luz sem modificar a sua topologia. Em outras palavras, o anel de luz poderia assumir formatos diferentes – por exemplo, o da

letra L – e manter a capacidade de transmitir seu giro a uma partícula qualquer. círculos e triângulos

A novidade da técnica desenvolvida pela equipe de Araújo é moldar o anel dos vórtices alterando o formato na parte central do padrão preto e branco da tela de cristal líquido. No artigo da Optics Letters, eles demonstraram a técnica criando vórtices em forma de L, de círculos alongados e de triângulos. “Estamos estendendo a técnica para criar formas mais complexas”, diz Araújo. “Essa é uma abordagem bem eficiente de moldar vórtices ópticos”, diz o físico Johannes Courtial, do grupo de Miles Padgett, da Universidade de Glasgow, na Escócia, um dos mais importantes grupos de estudo de vórtices ópticos no mundo. Courtial acha interessante como a porção escura central do vórtice funciona como uma espécie de molde da parte luminosa do vórtice.

Embora esteja concentrado na aplicação dos vórtices nos circuitos de plásmons, o grupo da UFPE acredita que a técnica possa ser útil também em telecomunicações. As fibras ópticas atuais transportam mensagens simultaneamente por meio de feixes lasers de comprimentos de onda diferentes que viajam juntos no interior das fibras. O limite de fluxo de informação é da ordem de 10 gigabits por segundo. Um grupo internacional de engenheiros demonstrou em um artigo publicado em 28 de junho na revista Science que codificar informação por meio dos vórtices ópticos expandiria esse limite para além de mil gigabits por segundo. “Esse limite aumentaria ainda mais se pudéssemos mudar o formato dos vórtices”, explica Falcão Filho. n Igor Zolnerkevic

Artigo científico AMARAL, A.M. et al. Shaping optical beams with topological charge. Optics Letters. v. 38, n. 9. mai. 2013.

pESQUISA FAPESP 211  z  63


tecnologia  Aviação y

O voo do Falcão

arara Vant da empresa AGX usado para levantamento aerofotográfico na agricultura

Projetos militares contribuem para o aquecido setor de aeronaves não tripuladas Rodrigo de Oliveira Andrade

64  z  setembro DE 2013

paulista, em parceria com o Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial (DCTA) da Aeronáutica, contou com os sistemas de navegação e controle de outra empresa da mesma cidade, formada no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), a Flight Technologies. Desde fevereiro deste ano, o Falcão integra a linha de produtos da Harpia Sistemas, empresa criada a partir da associação entre a Embraer Defesa & Segurança, braço militar da Embraer, e a AEL Sistemas, com sede em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, subsidiária da Elbit Systems, uma das maiores fabricantes de produtos de defesa de Israel – a mesma a fornecer os primeiros drones para uso da Força Aérea Brasileira (FAB) em 2010. Em janeiro deste ano, a Avibras também se tornou acionista da Harpia. “Desde então conduzimos estudos de configurações para atender aos requisitos operacionais das Forças Armadas para um sistema de vant capaz de cumprir missões de inteligência, vigilância e reconhecimento”, diz Rodrigo Fanton, presidente da Harpia. O primeiro protótipo do Falcão está sendo usado como ponto de partida para a adequação aos requisitos apresentados pelo

fotos  Harpia / AGX / XMobots / Embrapa / DCTA / flight technologies

U

m projeto ambicioso, desenvolvido para fins militares, poderá levar o Brasil a se tornar um importante polo de pesquisa, desenvolvimento e produção de novas tecnologias relacionadas aos veículos aéreos não tripulados, os vants – também conhecidos como drones. Idealizado para uso das Forças Armadas, o Falcão, como foi batizado, será o maior vant militar nacional. Se o projeto avançar, a aeronave terá 11 metros de envergadura, de uma ponta a outra da asa, e autonomia mínima de 16 horas. Ele poderá atuar em operações de vigilância marítima e de fronteiras, missões de busca e salvamento, no combate ao tráfico de drogas, crimes ambientais e na segurança e monitoramento de grandes eventos, como os Jogos Olímpicos de 2016, no Rio de Janeiro, ano em que a aeronave deverá ser concluída. Até agora, cerca de R$ 85 milhões já foram investidos por parte da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), de institutos de pesquisa e da própria indústria. O Falcão começou a ser desenvolvido pela Avibras no final da década passada. A empresa brasileira com sede em São José dos Campos, interior

falcão Design da nova versão do que será o maior vant militar do país


echar Concebido pela XMobots para monitoramento de extração de madeira e de garimpo

horus Primeiro vant militar brasileiro produzido pela Flight Technologies

nauru Desenvolvido pela XMobots, é o primeiro vant civil certificado pela Anac

acauã Projetado pelo DCTA para demonstrar em voo novas tecnologias para vants

apoena Usado no monitoramento ambiental da hidrelétrica de Jirau, em Rondônia

embrapaRotomotion Mini-helicóptero é opção de baixo custo para agricultores

Ministério da Defesa, que incluem um conjunto de sensores, sistema de comunicação de dados e uma estação de controle em solo. A aeronave terá cerca de 800 quilos (kg), podendo transportar mais combustível e equipamentos do que outros drones da mesma categoria a uma altura de 5 mil metros. Dentro do veículo aéreo, no lugar do piloto, poderão ser instalados sensores, câmeras e radares, entre outros itens. Boa parte da estrutura do Falcão foi desenvolvida com tecnologia nacional, como os sistemas de eletrônica de bordo, controle e navegação. “Ele terá dimensões equivalentes ao Super Tucano, aeronave turboélice da Embraer para ataque tático”, comenta Flavio Araripe d’Oliveira, coordenador do projeto vant no DCTA. “Vants de médio e grande porte, como o Falcão, são controlados do solo por técnicos em contêineres equipados com computadores e sistemas de comunicação”, diz. O Falcão utiliza outro vant brasileiro como plataforma de testes para o sistema de navegação e controle: o Acauã, um drone de 150 kg e 5 metros de envergadura concluído em 2010. Ele foi desenvolvido pelo DCTA, centros de pesquisa do ExérpESQUISA FAPESP 211  z  65


Vants menores como o de asas rotatórias podem ser controlados a distância com um notebook e um joystick GPS para localização Sistemas aviônicos: altitude e direção GPS para localização

Motor

Radiotransmissor/ receptor

Sistemas aviônicos: altitude e direção

Asas giratórias

Asas fixas Radiotransmissor/ receptor

Trem de pouso Motores

Câmera para geração de fotos e filmes

Joystick Trem de pouso Câmera para geração de fotos e filmes

Antena emite sinal para uma antena embarcada no vant

Central de controle

fonte DCTA/AGX/Avibras/XMobots

cito (CTEx) e da Marinha (IPqM) (ver Pesquisa FAPESP n° 185) e pela Avibras. Foram realizados dezenas de voos experimentais na Academia da Força Aérea, em Pirassununga, interior de São Paulo. Hoje o Acauã é utilizado pelo DCTA, Exército e Marinha, e pelas empresas Flight Technologies e Bossan Computação Científica (BCC), do Rio de Janeiro, num novo projeto, agora voltado à concepção de uma tecnologia de pouso e decolagem automáticos, que já apresentou bons resultados nos primeiros experimentos em pista realizados em agosto. O projeto conta com financiamento de R$ 4 milhões da Finep. “Desenvolvemos um sistema com sensores de aproximação com DGPS, que garante um posicionamento muito preciso por satélite, e radar altímetro capaz de medir a altura da aeronave em relação ao solo. Até agora, pouso e decolagem eram realizados apenas sob o comando de um operador”, explica D’Oliveira. Também no DCTA pesquisadores do Instituto de Aeronáutica e Espaço (IAE), em parceria com professores do ITA e engenheiros da empresa TGM Turbinas, com sede em Sertãozinho, interior paulista, trabalham em outro projeto que poderá impulsionar o setor brasileiro de drones. Trata-se de um motor turbojato movido a querosene de aviação que pode ser usado em vants 66  z  setembro DE 2013

com peso máximo de 1,2 tonelada. A Turbina Aeronáutica de Pequena Potência (TAPP) é a primeira a ser produzida no Brasil com características de durabilidade e potência de 5 mil newtons (N), força capaz de impulsionar uma aeronave de até 1,5 tonelada. “Planejamos um grupo de turbinas que possam ter aplicações em vants, mísseis e uma linha para geração de energia”, diz Alexandre Roma, da TGM, um dos engenheiros responsáveis pelo projeto. Ele conta que o equipamento não será usado no Falcão, mas instalado inicialmente em alvos aéreos para treinamento de pilotos em aviões de combate. Produção em série

Em julho, a turbina foi testada pela primeira vez no banco de provas do IAE. Segundo o engenheiro mecânico José Francisco Monteiro, coordenador do projeto, todos os componentes da TAPP foram fabricados no Brasil, exceto o rolamento para a sustentação de seu eixo. Um dos objetivos é qualificar a mão de obra brasileira para sua produção em série. “Como essa turbina pode ser instalada em mísseis de longo alcance, sua comercialização tem sido dificultada, devido aos tratados de não proliferação de armas nucleares. A alternativa é fabricar a turbina no Brasil”, avalia Monteiro.

Primeira versão do Falcão nos laboratórios da Avibras. Protótipo é usado para adequação aos requisitos do Ministério da Defesa

infográfico ana paula campos  ilustraçãO alexandre affonso

Principais equipamentos de um drone


Novos testes estão programados até o fim deste ano com o objetivo de fazê-la atingir a rotação máxima de 28 mil rotações por minuto. O projeto conta com financiamento de R$ 30 milhões da Finep. A agência já firmou 23 contratos e convênios, num total de R$ 69 milhões, voltados ao trabalho de pesquisa e desenvolvimento tecnológico de vants no Brasil, conta William Respondovesk, chefe do Departamento das Indústrias Aeroespacial, Defesa e Segurança da Finep. As vantagens inerentes ao uso dos drones em operações militares – sobretudo pelos Estados Unidos, após os atentados de 11 de setembro de 2001 – têm atraído cada vez mais a atenção de vários países. Entre 2005 e 2012, por exemplo, o número de nações que adquiriram essa tecnologia subiu de 41 para 76. Nesse mesmo período, o número de programas de pesquisa voltados para essa área nesses países saltou de 195 para 900, impulsionando um mercado em contínua evolução. Os norte-americanos ainda controlam boa parte desse mercado. Juntas, as empresas North Grumman e General Atomics Aeronautical Systems detêm 63% de toda a produção mundial de drones, de acordo com o Government Accountability Office dos Estados Unidos. Também os gastos anuais em pesquisa, desenvolvimento e comércio dessas aeronaves devem

Avibras

A Nature publicou um artigo mostrando como os vants podem ser úteis no mundo acadêmico

dobrar na próxima década, chegando aos US$ 12 bilhões – totalizando US$ 90 bilhões nos próximos 10 anos –, como mostra o relatório World unmanned aerial vehicles systems, market profite and forecast 2013, divulgado em junho pela consultoria norte-americana Teal Group, especializada nas áreas aeroespacial e de defesa. O Departamento de Defesa dos Estados Unidos deve seguir líder nesse setor. Israel vem logo em seguida. O país foi responsável por 41% dos drones exportados entre 2001 e 2011, segundo a Stockholm International Peace Research Institute, organização voltada à realização de pesquisas em questões sobre conflitos e segurança internacionais. Obtenção de dados

Avanços recentes em áreas de tecnologia computacional, além do desenvolvimento de materiais mais leves e de avançados sistemas globais de navegação, também têm atraído a atenção de pesquisadores, que usam drones para a obtenção de dados em áreas de difícil acesso. No dia 13 de junho a revista Nature publicou um artigo mostrando como esse tipo de tecnologia pode ser útil para o mundo acadêmico. Pesquisadores da Universidade do Colorado, nos Estados Unidos, por exemplo, têm usado vants para medir jatos de ventos que sopram no continente antártico. Isso poderá ajudá-los a entender a dinâmica que deu origem à formação das geleiras marinhas ao redor da Antártida. Também os biólogos aderiram aos vants em seus trabalhos de campo. Já na Índia, a World Wildlife Fund (WWF) tem usado os drones para detectar a presença de caçadores. Esse crescimento para além do âmbito militar tem se refletido no Brasil. Nos últimos anos, pelo menos cinco empresas passaram a investir em pesquisa e desenvolvimento de novas aeronaves. A AGX é uma delas. Com sede em São Carlos, interior paulista, a empresa desde 2009 trabalha com o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Sistemas Embarcados Críticos (INCT-SEC), com sede na Universidade de São Paulo (USP) de São Carlos, na concepção de soluções voltadas para o uso de vants na agricultura, meio ambiente e mineração. “Esse é o setor mais dinâmico, e o de maior crescimento, da indústria aeroespacial e de defesa em todo o mundo”, diz Adriano Kancelkis, diretor-presidente da AGX, empresa que contou com o apoio do Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP. Com características distintas, mas com várias possibilidades de adaptação para missões na agricultura, dois de seus drones, Tiriba e Arara II, possuem tecnologia nacional. Podem ser usados em levantamentos aerofotográficos com câmeras convencionais de alta definição, sensores e câmeras termais e multiespectrais. “Essa tecnologia é pESQUISA FAPESP 211  z  67


fotos 1 IAE 2 AGX 3 Embrapa

capaz de identificar com precisão a existência de pragas e falhas em lavouras e áreas atingidas por erosão e assoreamento de rios”, explica Kancelkis. Lançado em 2011, o Tiriba tem motor elétrico e pode atingir os 100 km/h, se mantendo em operação por até meia hora. O drone está sendo usado num projeto-piloto de monitoramento ambiental em parceria com a Polícia Militar Ambiental do Estado de São Paulo. “Já realizamos alguns voos, mas o vant ainda está em fase de certificação na Agência Nacional de Aviação Civil [Anac], instituição responsável pela emissão de autorizações para voos dessas aeronaves”, diz. 1

Agricultura de Precisão

68  z  setembro DE 2013

de 2,3 metros. Em maio, o vant obteve da Anac o Certificado de Autorização de Voo Experimental. “Com isso nos tornamos a única empresa do país autorizada pela Anac a fazer voos voltados à pesquisa e desenvolvimento de drones. Até então, apenas a Polícia Federal possuía vants civis aptos a voar no Brasil”, conta Fábio Henrique Assis, diretor da XMobots. Mas ele explica que o trâmite legal para essa aeronave é mesmo mais simples, já que o Nauru será usado para fins agrícolas, em espaço aéreo segregado. Em junho, durante uma feira de geotecnologia realizada em São Paulo, a empresa lançou o Echar, um novo modelo de

Vants em ação Dezenas de missões podem ser feitas por drones, muitas com custo menor que os métodos tradicionais e com menos riscos

Prospecção topográfica,

Obtenção de dados em áreas

cartográfica, mineral e

de difícil acesso ou afetadas

arqueológica

por desastres ambientais

Inspeção e monitoramento

Segurança e combate ao

aéreo (vigilância marítima,

tráfico de drogas

de fronteiras e eventos) Monitoramento de áreas Verificação de redes de

atingidas por erosão e

transmissão de energia em

assoreamento de rios

áreas remotas ou afetadas por desastres naturais

Missões humanitárias (entrega de medicamentos e vacinas

Fiscalização ambiental

em áreas de difícil acesso)

(garimpo ilegal, extração irregular de madeira,

Levantamentos de dados

invasão de áreas protegidas,

agropecuários (detecção

caça predatória)

de pragas em lavouras, produção agrícola,

Mapeamento para estudos

pulverização e contagem

florestais

de gado)

ilustrações alexandre affonso

A empresa também tem investido em novos modelos, como o VSX, aeronave desenvolvida em parceria com a Aeroálcool, com sede em Franca, interior paulista, e o INCT-SEC. Com autonomia de voo de 20 horas, o vant pode cumprir missões com até 4 mil km de alcance numa velocidade de 200 km/h. “O VSX foi projetado para carregar um radar do tipo SAR que permite mapear, no caso de uma floresta, não só a copa das árvores, mas também o que está por debaixo delas, no solo”, conta Kancelkis. O projeto recebeu R$ 2 milhões da Finep. A ideia é que o VSX seja utilizado pela fabricante do radar, a Orbisat, com sede em Campinas, em áreas de conflito urbano, calamidades e no monitoramento de fronteiras. A AGX também acaba de firmar uma parceria com a Universidade de Purdue, nos Estados Unidos. “O objetivo é atuar no segmento de agricultura de precisão naquele país, além de desenvolver novas tecnologias para sensoriamento remoto”, diz. Entre 2010 e 2013, a XMobots, empresa com sede em São Carlos, realizou um trabalho de mapeamento e quantificação do desmatamento em torno da Usina Hidrelétrica de Jirau, em construção no rio Madeira, em Rondônia. “O objetivo era que nosso vant, o Apoena, fizesse a captação de imagens que revelassem se a atividade realizada pelas empresas estava de acordo com a legislação ambiental”, explica Giovani Amianti, um dos sócios da XMobots, que também recebeu financiamento do Pipe em 2007. Depois de alguns meses, as imagens produzidas pelo drone passaram a ser usadas como parâmetro para determinar o metro quadrado que cada empresa havia desmatado. O Apoena realizou operações durante 18 meses e em seguida foi substituído pelo modelo Nauru por mais um ano. “Agora o Apoena está numa fase de maturação tecnológica. Pretendemos lançar uma nova versão no início de 2014; uma aeronave maior, com capacidade de voo superior a 8 horas, mais segura e capaz de operar em cidades”, diz Amianti. O Nauru é um drone menor que o Apoena, com autonomia de 5 horas, 15 kg e envergadura


2

1 Turbina para vants de grande porte no DCTA 2 VSX, nova aeronave das empresas AGX e Aeroálcool para transporte de radar 3 Imagem captada por vant: informações sobre falhas na lavoura e para estimar a produção

culturas de arroz, soja e trigo, foi adquirido pela Embrapa da empresa Rotomotion, dos Estados Unidos. “Esse projeto nos permitiu desenvolver softwares e sistemas de captura de imagens para as diferentes aplicações agrícolas no Brasil”, diz o pesquisador. “Mas o projeto requer mais investimento, sobretudo pelo fato de a Rotomotion ser uma empresa pequena, tendo dificuldades em atender às demandas no Brasil, como treinamentos e ajustes no sistema.” A Embrapa conta ainda com sistemas multirrotores, os chamados multicópteros, com software livre, que são uma opção tecnológica mais barata. Mesmo com o desenvolvimento acelerado do setor, os voos de vants ainda carecem de regras específicas. “Nos baseamos em normas existentes para as aeronaves tripuladas”, explica Assis, da XMobots. Hoje os principais fatores de risco associado ao voo de drones no mundo se referem à segurança das pessoas em áreas por eles sobrevoadas, possível colisão com aeronaves que compartilham do mesmo espaço aéreo e danos materiais numa eventual queda. “Eles devem ser tratados como aviões, não como brinquedos”, diz João Batista Camargo Júnior, profes3 sor da Escola Politécnica (Poli) da USP. Para ele, regras específicas devem ser criadas de acordo com a apli2,1 metros de envergadura, 6 cação que o drone terá. Segunkg e autonomia de 60 minutos. do Nei Brasil, presidente da Suas aplicações variam do moFlight Technologies – empresa nitoramento de garimpo ilegal, Regras que já desenvolveu e entregou extração irregular de madeira, específicas ao Exército e a Marinha três invasão de áreas ambientais à drones de pequeno porte –, a previsão de produção agrícodevem ser Anac pretende regulamentar la. “O Echar foi desenvolvido o voo de vants civis até 2014. a partir da demanda de nossos criadas de “A Anac segue as recomendaclientes”, conta Amianti. ções da Organização de AviaTambém em Gavião Peixoto, acordo com a ção Civil Internacional, que município próximo a São Caraplicação criou grupos de trabalho para los, no interior de São Paulo, discutir regras para a adoção pesquisadores da Embrapa Insde cada drone de vants pelo mercado civil”, trumentação usam drones na diz. Para Camargo Júnior, o área de agricultura de precisão. país precisa estar atento. “As Um modelo diferente, semeautoridades aeronáuticas delhante a um mini-helicóptero, vem zelar pela segurança da faz sobrevoos periódicos em plantações de laranja para detecção do greening, população em relação aos vants sem comprodoença que afeta o amadurecimento dos frutos, meter a pesquisa e o desenvolvimento da indúsdeixando as folhas das plantas amareladas. “Usa- tria nacional.” n mos vants em atividades agrícolas desde 1998, com o projeto de Aeronave de Reconhecimento Assistida por Rádio e Autônoma (Arara) em Projetos 1. Um sistema de mapeamento automático de produtividade agrícola parceria com o professor Onofre, da USP” (ver (nº 2005/04485-2); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pesquisa FAPESP n° 123), conta o engenheiro Pequenas Empresas (Pipe); Coord. Rafael Alexandre Ferrarezi/AGX; eletrônico Lúcio Jorge, da Embrapa. “InvestiInvestimento R$ 52.152,00 (FAPESP). mos no desenvolvimento de metodologias de 2. Projeto de um sistema aviônico certificável para veículos aéreos não tripulados (vants) de aplicação civil (nº 2007/55661-0); Modaprocessamento de imagens para drones de bailidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); xo custo.” O mini-helicóptero sem piloto, usaCoord. Giovani Amianti/XMobots; Investimento R$ R$ 56.940,84 e US$ 16.670,37 (FAPESP). do para pulverização no controle de pragas em pESQUISA FAPESP 211  z  69


pesquisa empresarial y

Competência mundial Criação de produtos inovadores coloca centro de tecnologia brasileiro da Mahle em posição de destaque Dinorah Ereno

N

o centro de tecnologia da Mahle Metal Leve, instalado em uma área de proteção ambiental da serra do Japi, em Jundiaí, a 50 quilômetros da capital paulista, componentes de motores – como pistões, anéis, camisas, bronzinas, filtros de ar e de combustível – são desenvolvidos e testados em amplas salas envidraçadas para que visitantes e clientes possam percorrer as instalações sem atrapalhar a rotina de testes e pesquisas. O edifício, composto por três prédios independentes, segue os preceitos da arquitetura sustentável, com um espelho d’água no teto que funciona como isolante térmico, amplas claraboias que deixam vazar a luz natural e a preservação da inclinação natural do terreno. Cerca de 300 pessoas trabalham no local, entre técnicos, engenheiros e estagiários, das quais mais de 200 estão envolvidas diretamente com pesquisas. “Aqui fica o segundo maior centro de tecnologia da Mahle no mundo”, diz o engenheiro mecânico Ricardo Simões de Abreu, de 56 anos, graduado pela Universidade de Mogi das Cruzes (UMC) e vice-presidente mundial de pesquisa e desenvolvimento (P&D) da empresa criada há mais de 90 anos na Alemanha para fabricar pistões de motores de liga leve. O modelo dos centros

70  z  setembro DE 2013

A partir da esquerda, pesquisadores André Ferrarese, Fernando Yoshino, Eduardo Tomanik (no alto), Carlos Roberto Camargo, Samantha Uehara e Paulo Mordente


léo ramos

de tecnologia foi estruturado por Abreu após ele assumir, em 2005, o cargo de responsável mundial pelo desenvolvimento de componentes metálicos do grupo. Cada um dos sete centros, dos quais quatro com competência mundial, possui um diretor-geral, especialistas em produtos e responsáveis pelas tecnologias. “Estabeleci um modelo em que todos os centros têm competência para trabalhar com todos os componentes de motores, mas um deles lidera o processo”, diz Abreu, que deu aulas durante vários anos no Instituto Mauá de Tecnologia, no Centro Universitário da FEI e na UMC antes de entrar para a Mahle, onde está há 17 anos. O principal centro de tecnologia está em Stuttgart, na Alemanha, e responde por pistões, pinos, eixo comando, entre outros componentes. O do Brasil, por anéis e camisas para cilindros de moto-

res, além de ser referência mundial em motores flex fuel. O de Northampton, na Inglaterra, é responsável por serviços de engenharia. O de Detroit (Estados Unidos), por bielas. Já os dois no Japão e um na China atendem os clientes dos seus respectivos países. Cerca de 48 mil pessoas trabalham em 100 fábricas espalhadas pelo mundo e nos sete centros de P&D. Em 2012, o grupo Mahle mundial teve um faturamento (receita líquida de vendas) de cerca de R$ 19,7 bilhões. Os investimentos com P&D foram de cerca de R$ 930 milhões (4,70% da receita líquida). A Mahle Metal Leve teve um faturamento de R$ 2,2 bilhões no ano passado e investiu R$ 67 milhões (3,02% da receita líquida) em P&D. Entre as inovações desenvolvidas pelo centro de pesquisa brasileiro estão desde filtros de nova geração para apli-

cação em motores flex fuel até o uso de carbonitreto de cromo – um composto químico formado por carbono e cromo – em escala nanométrica para revestimento de anéis de pistão, o que resulta na redução de atrito e, portanto, maior durabilidade das peças, além de diminuição da queima de combustível e das emissões de gás carbônico. A inovação vai substituir o material galvanizado utilizado atualmente para essa finalidade. “O carbono na forma de grafite não tem resistência mecânica, mas responde por uma função muito importante, que é a redução do atrito”, diz o engenheiro mecânico Paulo Mordente, de 37 anos e há 14 na empresa, pesquisador da área de ciência dos materiais e coordenador do projeto. A redução do atrito – entre 10% e 20%, segundo o pesquisador – se dá pela distribuição de ilhas de grafite pESQUISA FAPESP 211  z  71


Investimentos em P&D no Brasil foram de R$ 67 milhões em 2012

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da ordem de 5 a 10 nanômetros espalhadas pelo revestimento cerâmico dos anéis do pistão. Como consequência, os carros gastarão 1% menos combustível. O projeto de nanotecnologia teve origem em 2004 dentro de um consórcio europeu, formado por empresas interessadas em revestimentos de proteção superficial e universidades como a de Basel, na Suíça, com apoio governamental. “Após três anos e meio o consórcio foi encerrado, mas a Mahle decidiu continuar as pesquisas, que resultaram em três depósitos de patente e um produto previsto para entrar no mercado em 2017”, diz Mordente, graduado pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), em Minas Gerais, e com mestrado na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP). O novo produto será aplicado inicialmente em motores de carros europeus.

“A demanda de motores é maior na Europa e nos Estados Unidos, mas isso não significa que os componentes inovadores são desenvolvidos lá fora”, diz o engenheiro mecânico André Ferrarese, de 35 anos, coordenador da área de inovação, que desde 1999 está na empresa, onde começou como estagiário. “Hoje 70% dos motores diesel para carros de passageiros fornecidos pela Mahle para a Europa utilizam um anel de pistão desenvolvido aqui.” Trata-se de um anel controlador de óleo de nome X-Taper capaz de reduzir a força e, com isso, o atrito, mas sem perder o poder de vedação e raspagem. “Com isso há um ganho no consumo de combustível”, diz Ferrarese, graduado e com mestrado na Poli-USP. Só em 2012 a empresa depositou 28 patentes originais do Brasil. Ou seja, todas foram geradas aqui. O número corresponde a quase o dobro dos 16 de-

Instituições que formaram os pesquisadores da empresa Fernando Yoshino, engenheiro mecatrônico, responsável pela área de engenharia de produtos para sistemas de filtração

USP: graduação

Paulo Mordente, engenheiro mecânico, pesquisador da área de ciência dos materiais

Universidade Federal de Uberlândia: graduação USP: mestrado

Eduardo Tomanik, engenheiro mecânico, consultor técnico de P&D da área de tecnologia dos produtos

USP: graduação, mestrado e doutorado

Carlos Roberto Camargo, engenheiro mecânico, gerente de engenharia experimental de testes

FEI: graduação USP: MBA

Ricardo Simões de Abreu, engenheiro mecânico, vice-presidente mundial de P&D

Universidade de Mogi das Cruzes: graduação

André Ferrarese, engenheiro mecânico, coordenador da área de inovação

USP: graduação e mestrado

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pósitos feitos em 2011. “Temos metas de número de patentes depositadas, de projetos transformados em produtos no mercado, de publicação de artigos científicos”, relata o engenheiro mecatrônico Fernando Yoshino, de 38 anos, formado pela Poli-USP e responsável pela área de engenharia de produtos para sistemas de filtração. Só neste primeiro semestre a sua equipe, composta por 11 pessoas, depositou nove patentes no Brasil. Inovações desenvolvidas pelo seu grupo já estão no mercado, a exemplo de um sistema para retirada de água do reservatório de filtros de combustível diesel. O acúmulo de água no reservatório constitui um sério problema para os sistemas de injeção. Sua equipe também cuida de inovações relacionadas aos motores flex fuel, como um filtro de combustível de nova geração com maior capacidade de filtração das impurezas e durabilidade, o que vai resultar na ampliação do intervalo de manutenção. Portfólio diversificado

A Mahle, que começou suas atividades no Brasil em 1975 fabricando pistões para o setor automotivo, ao longo dos anos comprou empresas como a concorrente Metal Leve – que também fazia bronzinas – e junto com a Magnetti Marelli comprou a Cofap, que produzia amortecedores e anéis de pistão. “Nesses movimentos de aquisição a Mahle foi diversificando seu portfólio e agregando mais peças à sua capacidade de desenvolvimento”, diz Ferrarese. “De fabricante de pistões


fotos  léo ramos

2

1 Arquitetura do centro de tecnologia integrada à serra do Japi, em Jundiaí 2 Acompanhamento de ensaios no laboratório de motores 3 Equipamento para medição de anel de pistão 4 Laboratório de componentes: testes de pistões

4

ela passou a produtora de componentes de motores.” A inauguração do centro de tecnologia de Jundiaí em junho de 2008 deu continuidade às pesquisas que já eram feitas em Santo Amaro, na zona Sul de São Paulo, e agregou novas atividades e grupos de pesquisa. Um exemplo são os laboratórios de componentes de peças automotivas, espalhados pelo segundo andar, e o laboratório de motores, que ocupa o terceiro andar do prédio. O grupo, com 52 integrantes, foi montado pelo engenheiro mecânico Carlos Roberto Camargo, de 48 anos, gerente de engenharia experimental de testes. “Quando vim para cá só havia técnicos, fui o primeiro engenheiro do grupo”, relata Camargo, formado pelo Centro Universitário da FEI. Ele formou a equipe de engenharia experimental e reorganizou os laboratórios.

Diferentes tipos de projetos fazem parte do dia a dia dos pesquisadores. Eles se dividem em portfólio de produtos, em que existe um compromisso de colocar a peça no mercado a um custo competitivo em curto prazo; de sistemas, em que a demanda é por uma solução sistêmica a partir de produtos existentes; ferramentas básicas, em que são desenvolvidos métodos de análise, de simulação ou ainda de testes que resultem em novos componentes; e portfólio de incubação tecnológica – ideias que a princípio, pelo seu grau de inovação, não são associadas a uma utilidade. “Somente quando se tem certeza do desempenho técnico e da capacidade de produção é que alguns conceitos ou ideias passam para o portfólio da empresa”, diz Ferrarese. A área de inovação é responsável por quatro processos: gestão de ideias,

3

propriedade intelectual, imagem, que é a divulgação tecnológica e técnica de um novo produto, e inteligência competitiva. A Mahle brasileira tem atualmente mais de 100 projetos em desenvolvimento, dos quais 70 contam com algum tipo de apoio governamental. Um dos projetos, financiado pela FAPESP na modalidade Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite), envolve um consórcio entre empresas e universidades com foco nos motores bicombustíveis (ver Pesquisa Fapesp n° 196). Participam do estudo Volkswagen, Fiat, Renault, Mahle, Petrobras e Fundição Tupy, além da USP, Universidade Federal do ABC (UFABC) e Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “A ideia de estudar problemas do uso do etanol nos motores surgiu durante discussões de um grupo de tribologia na Poli, do qual faço parte”, diz o engenheiro mecânico Eduardo Tomanik, de 55 anos, consultor técnico de P&D da área de tecnologia dos produtos da Mahle, há quase 30 anos na empresa. A tribologia envolve ciências para o estudo dos fenômenos relativos ao atrito, desgaste e lubrificação. Ao longo de sua carreira Tomanik trabalhou em vários projetos, a exemplo dos anéis de pistão revestidos de PVD (técnica de deposição física a vapor), o que resulta em um produto com menor atrito. Em 2004 os anéis com PVD começaram a ser produzidos em Portugal para o mercado europeu e agora estão sendo fabricados também no Brasil. n pESQUISA FAPESP 211  z  73


Engenharia da computação y

A lógica do mercado Pequena empresa desenvolve inteligência artificial para controlar a produção em indústrias

U

ma pequena empresa de seis anos de idade foi capaz de ganhar clientes como Coca-Cola, Rhodia, Villares e Ajinomoto ao desenvolver um algoritmo baseado no conhecimento da lógica fuzzy, uma área de pesquisa de inteligência artificial, relacionada à expansão da teoria dos conjuntos que trata, por exemplo, de elementos pertencentes ou não a um determinado grupo. “Nessa abordagem algo pode estar parcialmente contido num sistema”, diz o engenheiro da computação Igor Santiago, diretor executivo da I.Systems, sediada em Campinas (SP). “Ou seja, uma pessoa não é alta nem baixa, mas 80% alta, por exemplo. Essa diferenciação propicia um número muito grande de aplicações práticas até então impossíveis com a lógica clássica”, diz. A clássica é a lógica binária em que a resposta só pode ser sim ou não, certa ou errada. Na prática, o sistema eletrônico criado pela empresa reduz perdas e torna mais eficientes processos ou equipamentos industriais, como envase de líquidos ou pó, caldeiras de vapor, torres de destilação, geração de energia de biomassa e tratamento de efluentes. Chamado de Leaf, o software gera automaticamente milhares de regras usando a lógica fuzzy, para garantir a estabilidade dos processos de controle industrial. A lógica fuzzy é usada para lidar com modos de raciocínio que são aproximados

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em vez de exatos. “Ela é utilizada para o desenvolvimento de sistemas inteligentes que fazem uso de conhecimento vago ou impreciso na tomada de decisões”, explica o engenheiro eletricista Ricardo Gudwin, professor da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Hoje a lógica fuzzy tem um grande número de aplicações, desde o controle de foco em câmeras de vídeo, passando por controladores industriais, elevadores e robôs, por exemplo.” A diferença entre os controladores existentes no mercado e o desenvolvido pela I.Systems é que neste as regras fuzzy são criadas automaticamente, por um algoritmo que a empresa desenvolveu. “Isso possibilita que pessoas leigas consigam gerar rapidamente complexos sistemas de controle industriais obtendo ganhos operacionais na redução de custos e aumento de produtividade”, garante Santiago. Leitura rápida

De acordo com o empresário, que foi aluno de mestrado de Gudwin, o Leaf representa um avanço de cerca de 100 anos em relação à tecnologia conhecida como processo Proporcional, Integral e Derivativo (PID), criada no fim do século XIX e usada até hoje em quase 100% dos sistemas industriais automatizados. Segundo ele, a tecnologia do PID foi feita para ler apenas uma informação por vez,

como temperatura, pressão ou vazão, e planejar como bombas, válvulas, entre outros equipamentos, deve se comportar para que a produção ocorra como determinado. “O fato de o PID observar apenas uma informação por vez significa que ele sempre espera um problema acontecer para reagir e tentar consertar.” Em contrapartida, o Leaf pode ler inúmeras informações ao mesmo tempo. É capaz de antecipar as mudanças e evitar que elas prejudiquem a produção. Um exemplo está nos sistemas de preenchimento de garrafas com um volume preciso de um líquido. Devido às flutuações nos sistemas de engarrafamento, há grandes dificuldades em preencher as garrafas com a quantidade exata que será expressa no rótulo. Para driblar esse problema, as empresas regulam suas máquinas de envase para colocar 5% a mais de líquido, evitando que oscilações deixem as garrafas com menos que o prometido. O Leaf, por sua vez, cria e implementa regras fuzzy que diminuem as oscilações e possibilitam as máquinas serem reguladas para injetar apenas 1% a mais que o líquido prometido, economizando 4% do volume de cada garrafa. O Leaf foi colocado em prática em 2010, na fábrica da Coca-Cola em Jundiaí, a 60 quilômetros da capital de São Paulo, a maior engarrafadora da marca na América Latina, com 2 bilhões de vasilhames por ano. O desafio é o controle

léo ramos

Evanildo da Silveira


Diferenças profundas sistema tradicional Lógica binária

Analisa uma informação por vez

Tem regras preestabelecidas

sistema fuzzy Inteligência artificial

Analisa várias informações por vez

Gera de forma automática milhares de regras

da pressão interna e o volume de refrigerante dentro do equipamento de envase a cada instante. O problema é que era utilizado um sistema PID para controlar o volume e outro para controlar a pressão. Como um sistema não era informado das ações do outro – porque só podem ler uma informação por vez –, eles acabavam se atrapalhando mutuamente. A solução foi implantar o Controle Multivariável Fuzzy, que atua simultaneamente nas válvulas de pressão e de vazão da linha engarrafadora, tornando possível um ajuste mais fino e preciso da quantidade e velocidade de líquido injetado nas garrafas. “Estabilizamos o processo de envase de refrigerante e a empresa economizou 500 mil litros de refrigerante e 100 mil garrafas PET por ano desde 2010”, conta Santiago. “Conseguimos reduzir em 31% as perdas por rejeição, nas variações de nível

do líquido injetado, e 42% por borbulhamento, que é a formação de bolhas de gás carbônico. O desperdício com o borbulhamento foi reduzido de 64 para 37 litros de refrigerante por hora, e as rejeições por nível de líquido caiu de 685 para 465 garrafas por dia.” A história que levou à formação da I.Systems começou em 2004, quando três engenheiros de computação e um matemático, formados na Unicamp, resolveram fazer um curso de inteligência artificial na mesma instituição. Foi nessa época que eles começaram as pesquisas para o desenvolvimento do Leaf. O primeiro plano de negócios, em 2006, foi feito como trabalho final de um curso de empreendedorismo da Unicamp. No ano seguinte, eles criaram a empresa. Em 2009, a I.Systems conseguiu um financiamento do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da

FAPESP. “Utilizamos os recursos para desenvolver um simulador de envase de refrigerante e convencer o gerente da fábrica da Coca-Cola de que nossa solução geraria benefícios”, lembra Santiago. “Em 2010 obtivemos outro projeto Pipe cujo dinheiro foi usado para tornar nossa tecnologia viável.” No início do ano, a empresa recebeu um aporte de investimentos do fundo Pitanga, especializado no investimento em empresas de base tecnológica com recursos de oito investidores: o biólogo Fernando Reinach, que é seu administrador, os fundadores da Natura, Guilherme Leal, Luiz Seabra e Pedro Passos, e os banqueiros do Itaú Unibanco Pedro Moreira Salles, Candido e Fernão Bracher e Eduardo Vassimon. “O fundo Pitanga resolveu investir na I.Systems porque a empresa desenvolveu uma maneira nova de utilizar a lógica fuzzy, num processo de regulação de automação industrial. É uma solução inovadora, que não existe em nenhum lugar do mundo”, diz Reinach. “Há empresas que fazem automação industrial, mas nenhuma tem este tipo de solução. No caso do produto da I.Systems, o mercado potencial é qualquer indústria do mundo.” O investimento, cujo valor não é revelado, será usado para desenvolver novos produtos e melhorar a equipe de vendas. No Brasil, a I.Systems ainda não tem concorrentes, mas em nível mundial terá de enfrentar grandes empresas, como Siemens e General Electric. “Estamos avaliando se vamos solicitar a patente da nossa tecnologia no Brasil ou no exterior ou se trabalharemos com segredo industrial nos mercados norte-americano, asiático e europeu”, diz Santiago. n

Projetos 1. Controle de processos industriais – Uma abordagem através de inteligência computacional (n°2007/56398-1); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Coord. Igor Bittencourt Santiago/I. Systems; Investimento R$ 10.592,26 (FAPESP). 2. Aplicação da plataforma hourus para automação industrial e de equipamentos (n° 2010/51286-3); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Coord. Igor Bittencourt Santiago/I.Systems; Investimento R$ 95.888,22 e US$ 1.210,71 (FAPESP).

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humanidades   epistemologia y

A crise da média idade Nos 50 anos das ciências da comunicação no país, não há consenso sobre estado da arte da pesquisa sobre o campo Carlos Haag ilustrações Hélio de Almeida

A

s ciências da comunicação estão celebrando 50 anos de produção de conhecimentos no Brasil desde a fundação do Instituto de Ciências da Informação (Icinform) por Luiz Beltrão (19181986) em 1963. Mas o receptor está captando a mensagem do emissor? O cinquentenário exige reflexões: qual o estado da arte da pesquisa em comunicação no Brasil? “Sou muito crítico da pesquisa em comunicação no país. Ela repercute pouco porque as universidades se fecham como um caramujo, sempre voltadas para dentro. O que fazemos não é relevante para a sociedade, porque de modo geral só imitamos os estrangeiros. Acima de tudo, não fazemos pesquisas empíricas”, observa José Marques de Melo, diretor da cátedra Unesco/Umesp de Comunicação. Ele é o organizador do ciclo de conferências 50 Anos das Ciências da Comunicação no Brasil: a Contribuição de São Paulo, de agosto a outubro, com a apresentação de uma centena de livros basilares da área feita por pesquisadores paulistas. O evento é uma parceria entre a FAPESP e a Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom). Nem todos são pessimistas como Marques de Melo. “Estamos numa fase positiva de expansão numérica e de fronteiras da área. Todo crescimento tem suas dores e crises. Além da

pesquisa empírica, há a pesquisa de cenários e de raízes arqueológicas da comunicação humana, todas incluindo objetos além dos clássicos, como jornalismo, publicidade, rádio e TV. Os pesquisadores mais consolidados têm uma predileção pelas fronteiras clássicas das ciências da comunicação, mas hoje nossas fronteiras estão bastante porosas e seus objetos incluem a comunicação interpessoal, a comunicação corporal, a comunicação e suas práticas para inclusão social (de deficientes, por exemplo), as dimensões filosóficas e antropológicas da comunicação”, avalia Norval Baitello Júnior, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e membro da coordenação da área de ciências humanas e sociais (subáreas comunicação, ciências da informação e museologia) da FAPESP. Visões tão diversas mostram que 50 anos podem ser muito tempo, ou pouco, na formação de um campo de saber, ou de uma ciência. Afinal, ainda há quem discuta de que lado a comunicação deve ser colocada: num status estrito de ciência, com objeto rigorosamente definido e metodologia explicitada ou num campo de estudos aberto, transdisciplinar, em que a mídia é estudada, mas nunca será o tema exclusivo. “Hoje estamos no olho do furacão e somos cobrados a dar respostas com nossas pesquisas a tudo o que acontece, numa constante ebulição. pESQUISA FAPESP 211  z  77


Mas é preciso pensar no histórico da comunicação para ver que ainda temos muita autorreflexão pela frente”, avisa Maria Immacolata Vassallo de Lopes, professora titular da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Segundo ela, na década de 1970, em virtude da juventude dos programas de pós-graduação, a oferta de áreas era superdimensionada, se “abarcava tudo”, e as linhas de pesquisa eram mal exercidas, muitas vezes “com um professor, uma linha de pesquisa”. Confundia-se “programa” com “linha de pesquisa” e “área de pesquisa”. Em 1980, com o início dos doutorados, a situação não se alterou. Só em fins dos anos 1990 apareceram tentativas de melhor especificação das linhas de pesquisa na pós-graduação.

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ara a professora, a falta de autonomia da área, o chamado “reboquismo”, a histórica dependência dos fundamentos investigativos da comunicação dos paradigmas das ciências sociais, é igualmente responsável por problemas de identidade atuais que precisam ser revisados com os alunos de graduação, para quem se afirma que a comunicação é uma “colcha de retalhos”. “Temos que reconhecer que nossas pesquisas trabalham com saberes transversais que levam desafios aos saberes estabelecidos. Falamos dos meios, mas não só dos meios. Os fundadores da

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comunicação no Brasil vieram das mais diversas áreas e deixaram esse legado”, lembra Immacolata. Anamaria Fadul, professora titular aposentada da ECA-USP, conta que, efetivamente, entrou para a comunicação com “o olhar a partir da filosofia”, onde fez seu doutorado. “Mas agora não há mais razão para que a comunicação entre nas pesquisas apenas como pretexto, como antes. A pessoa estuda a violência em São Paulo, usa os jornais e acredita que está fazendo uma pesquisa de comunicação. Falta a definição de um objeto e de uma metodologia. A transversalidade é meio assustadora: ela só é natural a partir de um objeto definido”, diz Anamaria. “Pegamos um pouco de tudo e, no final, não nos responsabilizamos por nada. Você até pode ir buscar teorias e conceitos em outras áreas para auxiliar na sua pesquisa de comunicação, mas não o caminho inverso. Nas ciências humanas a metodologia é importante, mas na comunicação não se tem o mesmo rigor. Segundo ela, estuda-se a história da comunicação dos séculos passados, mas não a de hoje. “Em geral, a bibliografia é muito datada, dos anos 1960 e 1970, e não se busca o que está sendo feito no exterior, em especial nas revistas, onde as pesquisas são mais atuais”, afirma. Anamaria nota que ainda prevalecem os preconceitos sobre a “manipulação” da mídia. “É uma visão das ciências sociais, vinculada a um


passado distante que não aceita o lucro, o sucesso, a diversão, o que explica a ausência de pesquisas que permitam compreender as indústrias culturais brasileiras”, avalia a professora. Com isso, observa, a universidade se distancia da realidade do mercado de mídia. “Fazer pesquisa dentro de uma redação é visto como menor: o melhor é ler, ficar lendo na universidade. Se a mídia real é lucro, tenho que me afastar dela. E assim por diante. A realidade só é acompanhada em seus efeitos.” É o que Marques de Melo chama de “pesquisa de morgue”, sobre objetos inanimados, só analisando algo depois que o fenômeno já passou. “E quando pesquisamos, usamos referencial teórico importado, com figuras como Bourdieu etc., porque não criamos algo que seja nosso para nossas questões. Não posso fazer pesquisa se não me aproximar das empresas do mercado. Seria como dizer a um médico para trabalhar com saúde sem chegar perto de um hospital”, explica Marques de Melo. Segundo ele, os projetos buscam, em geral, analisar aspectos políticos e ideológicos que já se conhecem exaustivamente, mas faltam aqueles que indiquem às empresas, às associações de profissionais como melhorar a qualidade de sua profissão. “Além disso, as pesquisas que vão para as financiadoras muitas vezes são mais ensaios, especulações, reflexões à margem das questões reais e atuais. Fazemos mais de mil teses por ano, um dos países que mais produzem conhecimento em comunicação no mundo, mas tudo isso não repercute e não é veiculado para as empresas”, diz o professor. Marques Alguns, no entanto, criticam a visão de Melo “presentista” dos estudos de comunicação que deixariam de lado a historicidade avisa que a dos processos de constituição do próprio campo. “Num primeiro momento, realcomunicação mente, o inimigo eram os meios massivos. Mas os pesquisadores abandonaram continua a o tom retórico e o debate ideológico em ser “parente favor de métodos de investigação, como estudos de campo, análises de política de pobre comunicação e dos efeitos de mídia, entre outros”, nota Marialva Barbosa, professodas ciências ra titular de jornalismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Issociais” so resultou na proliferação da pesquisa utilitária, com temáticas que se perdiam em modismos sem densidade e numa ‘desideologização’ do discurso acadêmico em que os pesquisadores davam as costas aos problemas sociais, se comprometendo apenas com as demandas propostas pelo mercado”, avalia. Immacolata concorda que não pode haver patrulhamento. “A pesquisa com ideologia foi fundamental no tempo em que era preciso ser politizado e fomos o bastião crítico da época. Claro que agora é preciso ajustar a agenda, mantendo

esse dualismo: não somos políticos, mas críticos. O mesmo vale para a bibliografia. Nem tudo tem que ser novo. Não é preciso seguir a última moda”, observa Immacolata. Para ela, a graduação precisa conhecer os estudos que foram feitos no passado, bem como os conceitos referenciais. “Os novos pesquisadores devem reconhecer os autores que atravessaram o tempo e que ainda dão conta da realidade. Se não, devem ser abandonados”, fala. Anamaria Fadul, no entanto, afirma que ainda se continua a repetir o Adorno dos anos 1950. “Mesmo ele, no final da vida, reviu a sua concepção de que a televisão se apropriou da consciência das pessoas. Essas visões passadistas contribuíram para ocultar as especificidades concretas do mundo da comunicação que são, acima de tudo, complexas e nem um pouco facilmente decifráveis”, nota a pesquisadora. Segundo Anamaria, o compromisso mais sério do investigador brasileiro é entender não apenas a questão da ética da comunicação. “Seria necessário que a pesquisa em comunicação assumisse seus objetos específicos, que buscasse novos métodos de investigação, sem transformar a questão do método e da teoria em problemas centrais, já que não existe teoria sem investigação empírica”, afirma a pesquisadora da ECA-USP.

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sso é importante num campo em que 100% da pesquisa é feita no interior dos cursos de pós-graduação. “Hoje o ensino básico de comunicação no Brasil depende de bibliografia estrangeira ou de pesquisadores de outras áreas do conhecimento. O que comprova a pouca importância da pesquisa brasileira para a consolidação do campo”, analisa Wilson Gomes, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Por isso, para Marques de Melo, as agências financiadoras precisam entender melhor como funciona o campo. “Há um volume imenso de iniciações científicas pedindo bolsas e poucos pesquisadores consolidados que têm projetos, o que mostra uma fraqueza da área. Continuamos como ‘parentes pobres das ciências sociais’. Isso apesar de sermos um campo fundamental para a construção da democracia. Os pesquisadores brigam por migalhas de financiamento público, as universidades não se articulam e falta consenso entre as lideranças”, afirma. Segundo Marques de Melo, a comunicação carece de um patrono generoso como Florestan Fernandes o foi para a sociologia. “Nós temos uma tradição de pesquisadores individualistas e egoístas”, acredita. Gomes também observa a preferência pela forma ensaística no lugar das pesquisas nos projetos dos professores mais consolidados. “A maior parte da publicação dos docentes é de ensaios, e não de artigos vinculados com dados de pesquisa, mesmo que fosse de uma pESQUISA FAPESP 211  z  79


pesquisa especulativa. São ensaios que vêm da cultura do autor e não apoiados sobre uma pesquisa cuidadosa, exaustiva e de ponta”, observa Gomes. A situação se agrava porque as revistas têm circulação limitada e os artigos gerados são pouco usados como fonte e referência. “Inventamos a pesquisa autista, em que cada professor está só no mundo e aparentemente só publica por imperativo do relatório”, nota. Para Gomes, há muito pouco volume de pesquisa brasileira de ponta, aquela capaz de fazer avançar o campo do conhecimento. “Os nossos comunicadores empregam a maior parte do seu tempo ‘pesquisando a pesquisa’ dada e produzida em outro lugar. Numa área já consolidada isso não deveria ser objeto de pesquisa sênior, mas algo para dissertações de mestrado. Fazer substancialmente reconhecimento de campo de programas de pós-graduação é um sintoma claro da pequena consolidação da área científica”, avalia.

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ara Norval Baitello, coordenador de área da FAPESP, se as oportunidades de se desenvolver estudos em comunicação aumentaram muito nos últimos anos, a maior parte dos projetos, no entanto, é realmente formada por trabalhos pequenos e menos ambiciosos do que os realizados em outras áreas. “O desejável seriam projetos mais complexos como pós-doutoramen-

tos, projetos temáticos, Cepids e bolsas regulares e no exterior. Mas esses são mais trabalhosos na elaboração e prestação de contas e muitas instituições não auxiliam os pesquisadores nisso, o que acaba inibindo a produção científica desse nível”, explica Baitello. “Está acontecendo uma expansão dos limites da área de comunicação, com o crescimento da complexidade dos objetos estudados, que podem ser muito amplos. Aumentou o percentual dos projetos que dialogam com o arsenal metodológico mais consistente vindo da filosofia, da antropologia, da sociologia etc., e não só do jornalismo”, diz o coordenador. Seja como for, os pós-docs estão crescendo nos últimos seis anos. “Isso mostra uma maturidade da ciência com uma crescente presença de jovens pesquisadores, alguns deles com trabalhos ousados e admiráveis que não deixam nada a dever para a produção científica da área em outros países.” Para Baitello, temos agora mais ciências da cultura do que ciências da comunicação. “Muitos ficavam tímidos em enviar seus projetos, mas a FAPESP não se restringe ao conceito clássico de comunicação. Abrigamos todas as possibilidades de projetos interdisciplinares”, diz. Segundo Baitello, não há carência de pesquisa empírica no país, que vem cedendo lugar às novas reflexões sobre cenários. “Flüsser já teorizava sobre coisas que só vieram a acontecer


décadas mais tarde. É considerado hoje o maior e o grande pioneiro filósofo da comunicação no mundo. E escreveu toda sua imensa obra sempre no formato ensaístico, construindo cenários, que deve andar de mãos dadas com a empiria”, avalia. Por isso agora há espaço para temas como a sensoriabilidade, a moda, o comportamento diante dos novos meios, a acessibilidade, os jovens e a comunicação com celulares, trabalhos que fazem interface com a psicologia, como o impacto dos meios de comunicação sobre o imaginário. “Temos uma “São trabalhos que podem estar bem expansão alocados nas ciências sociais, na educação, nas artes (como artes da mídia, fabulosa da a exemplo de modernas escolas europeias de mídia), como na comunicação, pesquisa em o que demonstra que nossa ciência efetivamente tem muito a contribuir para comunicação a expansão do conhecimento também para além dos das outras ciências. Há até mesmo a dificuldade de encontrar pareceristas parâmetros para determinados projetos”, conta Baitello. Até mesmo antigas “manias” antigos”, diz teriam sido deixadas de lado. “Para minha surpresa, o viés ideológico é praBaitello ticamente inexistente nos projetos e chegaria a ser mesmo desejável numa dose ideal. O fabuloso é que as pesquisas trazem novos objetos, o que nos obriga a rever os parâmetros antigos com que se julgavam os projetos e os resultados das pesquisas”, avisa. O coordenador conta que a FAPESP, intencionalmente, está criando meios para amplificar a repercussão das pesquisas, em particular a partir do projeto de internacionalização. Muniz Sodré, professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), acredita que o campo carece de uma “síntese de determinações”, um conceito marxista que se estende à comunicação. “Todos estão muito debruçados sobre os usos sociotécnicos do campo comunicacional, mas antes de mais nada é preciso voltar a entender o que é o campo de estudos, fazer uma revisão dos estudos da área”, afirma. Ele acredita que há muitos fenômenos de estudo e um grande recorte das práticas de comunicação a partir do seu parcelamento prático, o que estaria gerando um excesso de linhas de pesquisa. “Mas para você transcender você precisa voltar a pensar o campo de estudos novamente nesses novos tempos em que elementos como a internet neutralizam o conhecimento humano”, avisa. “Sou favorável a uma pesquisa aberta, ensaística, mas com limites, uma saudável incerteza com o cruzamento interdisciplinar. Afinal, precisamos de marcos teóricos. Mas creio que ainda trabalhamos com visões impressionistas da imprensa”, fala Eugênio Bucci, diretor do

curso de pós-graduação em jornalismo com ênfase em direção editorial da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). “Sinto falta de uma grande pesquisa que nos permitisse avaliar a qualidade da imprensa e do jornalismo no Brasil. Com isso teríamos indicadores precisos, séries históricas, não subjetivas, que seriam base para pensar a mídia com realismo”, observa. Ele sugere pesquisas sobre coberturas de mesmo tema em vários jornais etc. “Acompanho a pesquisa em comunicação no Brasil e ultimamente estou fora do ambiente acadêmico, mas sou um observador a distância que tem opinião. Vejo coisas feitas de valor, em especial em termos de história da comunicação”, fala Carlos Eduardo Lins da Silva, professor do curso de pós-graduação em jornalismo da ESPM e ex-professor livre-docente da ECA-USP. “A lacuna mais importante é de pesquisas empíricas de boa qualidade. Em especial, é preciso menos ideologia nas pesquisas”, avalia.

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m exemplo bem-sucedido é o projeto Percepção pública da ciência, coordenado por Carlos Vogt, professor titular na área de semântica argumentativa e coordenador do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Trabalhamos em atividades de pesquisa com preocupações muito concretas e voltadas para as questões de educação. A comunicação social é o aspecto fundamental do conhecimento científico e o projeto foi direcionado para motivar os jovens. Transformamos códigos específicos para códigos abertos e compreensíveis para a sociedade como um todo. Para isso foi preciso entrar no processo e entender bem os agentes e receptores”, conta Vogt. Mas diante desse estado da arte fica a pergunta: por que levantar essa questão a partir de Luiz Beltrão? “Ele fez uma série de pesquisas empíricas e, quando concebeu o Instituto de Pesquisa em Comunicacão do Brasil, sistematizou essas pesquisas e criou, em 1964, um departamento de pesquisa na instituição”, conta Marques de Melo. Assim, a contribuicão de Beltrão para o campo comunicacional está marcada principalmente pela elaboração da primeira teoria da comunicação genuinamente brasileira, a Folkcomunicação. “Em certo sentido, Luiz Beltrão antecipava observações empíricas que embalsariam a teoria das ‘mediações culturais, o cerne da contribuição de Jesus Martin Barbero e dos culturalistas ao pensamento comunicacional latino-americano”, explica Marques de Melo. Daí a atualidade do pensamento comunicacional de Luiz Beltrão, que pensou na era de McLuhan sobre as interações entre a aldeia local e a aldeia global. Como ele conseguiu ver esse cenário todo? Com pesquisa, é claro. n pESQUISA FAPESP 211  z  81


envelhecimento y

Erotismo politicamente correto Antropóloga se debruça sobre o discurso que constrói uma sexualidade gratificante na velhice Márcio Ferrari

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om o aumento da longevidade, a velhice está se tornando a fase mais longa da vida. Contada geralmente a partir dos 60 anos de idade – mas não raro a partir dos 50 –, às vezes corresponde a quase metade da existência de uma pessoa. Atualmente já se pode falar não de uma única velhice, mas de várias, dependendo da faixa etária e das condições sociais e individuais do idoso. Por ser o prolongamento da expectativa de vida um fenômeno recente e veloz, as políticas públicas, as concepções médi-

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cas e as de senso comum sobre a velhice se sucedem, se entrelaçam e muitas vezes se confundem. As variações e contradições dos discursos gerontológicos das últimas décadas são o tema do estudo Velhice, violência e sexualidade, da professora Guita Grin Debert, do Departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O trabalho se insere num conjunto de estudos que a pesquisadora vem desenvolvendo ao longo de sua carreira acadêmica, cujas conclusões mais recentes se encontram

no campo da sexualidade – ou, mais precisamente, no processo de “erotização da velhice” verificado nas últimas décadas. O estudo foi feito com base na análise de documentos e pronunciamentos oficiais, de textos publicados na imprensa e da literatura de autoajuda, além de dados etnográficos obtidos em espaços de socialização de pessoas idosas. O que se percebe, segundo Guita, é uma mudança marcante da década de 1970 para cá. Evoluiu-se de uma concepção em que a velhice é caracterizada como uma fase de “decadência física e perda


fotos  léo Ramos

de papéis sociais”, na qual a vivência sexual praticamente se extingue, para outra em que uma sexualidade ativa e gratificante é pré-requisito para uma vida saudável e feliz. É quando surge o conceito de “terceira idade” e passa a predominar a ideia de que o sexo “é quase uma obrigação” para os idosos. Trata-se do que a pesquisadora chama, tomando de empréstimo uma expressão criada pela socióloga Maria Filomena Gregori, de “erotismo politicamente correto”. Não por acaso, na discussão sobre a terceira idade, os

médicos vão perdendo terreno para os psicólogos. “A velhice se tornou a idade do lazer e da realização pessoal”, diz Guita. Essa concepção, que não se restringe ao Brasil, acaba influindo diretamente nas definições do que é ser velho e nos parâmetros da “gestão do envelhecimento”. “Não deixa de ser também um novo mercado, porque, entre todos os grupos sociais, o dos velhos é o que tem mais disponibilidade de consumo”, diz a antropóloga. A derrubada do mito da velhice assexuada se deu em campos múltiplos.

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Estudos de várias áreas comprovaram que a sexualidade não se esgota com o passar dos anos. É indiscutível o declínio da frequência das relações sexuais, mas emerge, por outro lado, a percepção de que a qualidade dessas relações pode aumentar. Os encontros podem tornar-se mais livres e afetuosos. Percebe-se que os papéis tradicionais de gênero, nesse sentido, tendem a se inverter: as mulheres passam a ser menos recatadas e os homens, mais afetuosos. Nas sensações também haveria mudanças: o prazer estaria espalhado pelo corpo, ocorrendo um processo de “desgenitalização”.

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sexóloga e psiquiatra Carmita Abdo, do Projeto de Sexualidade (Pro-Sex) do Hospital das Clínicas da Universidade São Paulo, coordenou em 2008 o Mosaico Brasil, um amplo estudo sobre a sexualidade dos brasileiros. Os resultados mostraram que a atividade sexual é mantida na velhice, mas não sem percalços. “A chegada da menopausa na mulher, com o fim da produção de hormônios, causa um grande impacto físico e psicológico, em especial num país que cultua tanto a beleza e a jovialidade”, diz Carmita. Entre os homens, a fertilidade se mantém, mas, a partir da quinta década de vida, aumenta 84  z  setembro DE 2013

a incidência de problemas de saúde que comprometem a potência sexual. O desejo, no entanto, permanece. “O repertório sexual muda com a idade. Torna-se menos arrojado, até pelas limitações da mobilidade física”, diz a sexóloga. “O ato é mais rápido do que antes, mas as carícias se prolongam. O prazer é tanto maior quanto for a cumplicidade do casal.” Relações não maritais também vêm aumentando, tanto entre homens quanto entre mulheres, muitas vezes com parceiros mais jovens. Portanto, um “sexo sem pressa” seria o marco dessa fase da vida. O surgimento dos medicamentos contra a disfunção erétil, contudo, prenuncia um reajuste de discurso que ainda está em andamento. “O triunfo da ênfase nos ganhos da velhice, ainda que possam ter eclipsado a necessidade de atenção às perdas físicas, contribuiu positivamente para quebrar preconceitos e trouxe uma aceitação da diversidade relacionada à idade”, diz Guita. E a ideia de que uma vida sexual ativa faz bem à saúde tem fundamento, segundo Carmita, ainda que de modo indireto, pela satisfação que traz. Num aparente paradoxo, a nova configuração das concepções de velhice permitiu até mesmo uma libertação, entre as mulheres, das “obrigações” da

vida sexual regular e característica das relações maritais. Muitas idosas viúvas, solteiras e separadas, ou cujos maridos sofrem de doenças incapacitantes, frequentam bailes da terceira idade, objeto de estudos separados das antropólogas Mirian Goldenberg, do Departamento de Antropologia Cultural da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e Andrea Moraes Alves, da Escola de Serviço Social da mesma instituição. Ambas detectaram uma continuidade dos investimentos na sexualidade do corpo – a vaidade e os cuidados estéticos se mantêm, embora sem o vínculo com o exercício da sedução –, mas agora acompanhada de liberdade: a liberdade de não transar. É o que Mirian define como uma substituição do “eu preciso” (ser mãe, esposa, amante) pelo “eu quero” (diversão, prazer, amizade com outras mulheres). O parceiro da dança, geralmente mais jovem, não é necessariamente um parceiro sexual. Essa abstinência, para muitos analistas – incluindo Guita Debert, Carmita Abdo e a própria Andrea Moraes Alves –, ainda revela a carga de uma moralidade conservadora e “atrelada ao estereótipo da mulher que deve obedecer”, nas palavras da antropóloga da Escola de Serviço Social da UFRJ. Seja como for,


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Mirian ressalta que as entusiastas desses bailes resistem “às imagens de um corpo envelhecido”. Um dado revelador, nesse sentido, é apontado por ela entre os dados de sua pesquisa: o único grupo social que discorda da conhecida ideia de que os homens envelhecem melhor é o das mulheres acima de 60 anos. As pesquisas conduzidas por Mirian, O parceiro que deram origem ao de dança, livro recém-lançado A bela velhice (editogeralmente ra Record), mostram que, ao chegar à termais jovem, ceira idade, as mulheres se sentem pronão é pensas a se distanciar um parceiro de uma vida familiar que mais cobra do que sexual proporciona, enquanto os homens, depois de anos dedicados a obrigações profissionais, procuram na família um acolhimento que se reveste de novidade e gratidão. Profissionalmente, idosos que participam de universidades também há um contraste entre os gê- e demais grupos de convivência para a neros. “Enquanto os homens idosos se terceira idade revelam um otimismo que realizam com novos estudos e novos tra- não se coaduna com a ideia de uma fase balhos que trazem prazer, mais do que da vida marcada pela falta. remuneração, as mulheres buscam fazer exclusivamente coisas de que gostam, ais associações, inclusive aquelas geralmente no campo da socialização e criadas por órgãos públicos como da reciprocidade”, diz Mirian. Guita pera Secretaria dos Direitos Humacebe fenômeno semelhante: as mulheres nos do governo federal, seguidamente procuram a amizade de outras mulheres, se rebelam contra discursos oficiais que os homens se engajam em atividades atribuem aos sistemas de bem-estar dos conjuntas com outros homens, como idosos a responsabilidade por gastos associações de aposentados. públicos excessivos. “Combater os preA aposentadoria, como reivindicação- conceitos em relação à velhice era mos-símbolo do estrato social dos idosos, é, trar que seus participantes mantinham segundo Guita, o marco do discurso ge- a lucidez e sabiam criticar os governos, rontológico dos anos 1970, “em seu em- os políticos e as interpretações errôneas penho em sensibilizar o poder público e que a mídia fazia de todos os diferena sociedade para a importância de estu- tes aspectos da vida social brasileira”, dos e de ações voltadas para um envelhe- escreveu Guita no artigo “Fronteiras cimento populacional bem-sucedido”. A de gênero e a sexualidade na velhice”. antropóloga observa, no entanto, que a “Muitos deles eram críticos dos prograênfase numa visão negativa da velhice já mas para a ‘terceira idade’, que alguns não encontrava, nas pesquisas, concor- chamavam de ‘playground de velhos’, por dância da parte dos próprios idosos. Hoje desviarem aposentados e pensionistas mais ainda: como atestam depoimentos de seus reais interesses.” colhidos por Mirian Goldenberg, muitas O descompasso entre as percepções pessoas dizem viver na velhice a melhor da velhice presentes nos discursos hefase de suas vidas. Os depoimentos de gemônicos, de um lado, e na experiên-

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cia dos próprios idosos, de outro, vigora igualmente no campo da sexualidade. A visão “oficial” aborda o erotismo na terceira idade de um ponto de vista da manutenção da juventude. “Não consta nenhuma intenção de promover, do ponto de vista estético, os corpos envelhecidos”, diz Guita. O novo mito da velhice feliz e erotizada também cobra seus dividendos. A antropóloga Andrea detecta, nas mulheres idosas, diferentes “estratégias” no modo como elas lidam com o próprio corpo. Uma delas é “negociar” constantemente os limites do rejuvenescimento. De um lado, investem em cirurgias plásticas, maquiagem e roupas para prolongar a aparência jovem. De outro, se mantêm alertas (e tensas) para não correr o risco de parecerem “velhas ridículas e vulgares”. E raras são as mulheres que, ainda nos primeiros anos da velhice, enfrentam o tabu dos cabelos brancos, sem tintura, “tão marcante no Brasil”. n Projeto Sexualidade, gênero e violência nas políticas da velhice (2011/10537-6);Modalidade Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa; Coord. Guita Grin Debert/Unicamp; Investimento R$ 36.208,15 (FAPESP).

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Hannah Arendt, em 1944

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A paixão pela liberdade


Centro de estudos revela atualidade das reflexões de Hannah Arendt sobre a responsabilidade do pensar

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uma era de extremos, Hannah Arendt (1906-1975) foi corajosa e sábia o bastante para usar o mundo clássico como base para a verificação de proposições morais e políticas. Hoje reconhecida, ela era, até bem poucas décadas atrás, um nome controverso à esquerda e à direita, mas foi a partir de suas obras que o totalitarismo, a condição humana e a “banalidade do mal” se transformaram em conceitos-chave para se entender a modernidade. Daí a importância constante de se divulgar a sua obra, sempre atual, uma das funções mais importantes do recém-inaugurado Centro de Estudos Hannah Arendt (www.hannaharendt. org.br), vinculado ao Instituto Norberto Bobbio, ambos presididos por Raymundo Magliano Filho, ex-presidente da BM&FBovespa, e coordenados por Cláudia Perrone-Moisés, professora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). “Ela é um clássico no sentido preconizado por Bobbio: uma autora cujos conceitos, embora elaborados no pas-

Textos de Hannah Arendt ainda são material para pensar problemas atuais

sado, ainda nos oferecem algo para que possamos entender o mundo atual”, afirma Celso Lafer, presidente da FAPESP, que foi aluno de Arendt nos anos 1960 na Cornell University, nos Estados Unidos. “Toda a sua obra é de uma intensa atualidade. Nos anos 1950 ela já discutia a sociedade de consumidores e analisava em sua obra a questão, agora vital, da responsabilidade da relação entre pensar e julgar”, concorda Cláudia Perrone-Moisés. O centro nasceu de um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP, o Núcleo de Estudos da Violência (NEV-USP), que, entre 2004 e 2010 abrigou o Grupo de Estudos e Arquivo Hannah Arendt. “Neste mês será iniciado o primeiro grupo de estudos sobre Responsabilidade e julgamento, ensaios, cursos e palestras reunidos produzidos nos anos 1960 e 1970”, conta Cláudia. Neles, Hannah Arendt propõe uma ética de visibilidade no domínio público da ação e da política, evocando mais uma vez o papel decisivo da reflexão e da crítica na determinação da prática. “Ela é uma escritora sugestiva, que sempre provoca novas leituras. Cada geração sente a necessidade de fazer a sua interpretação”, nota Lafer. Em Origens do totalitarismo (1951), Arendt descreve o processo pelo qual, depois dos tratados de paz que puseram fim à Primeira Guerra Mundial, os direitos do homem herdados da tradição das revoluções, passaram por uma prova de fogo. “Considerados inexistentes para uma categoria de pessoas percebidas como ‘sem direitos’ por serem apátridas, os direitos do homem demonstraram sua ineficácia quando desvinculados da cidadania”, explica Cláudia. Segundo ela, a crítica que Arendt efetua da questão dos direitos do homem

diz respeito à sua abstração, que se tornaria manifesta no momento em que não tivessem mais apoio na cidadania. Os direitos do homem, afinal, haviam sido definidos como inalienáveis porque se supunha serem independentes de todos os governos, mas, no momento em que seres humanos deixavam de ter um governo próprio, não restava nenhuma autoridade para protegê-los e nenhuma instituição disposta a garanti-los. “A emergência do totalitarismo só veio a ser possível, segundo Arendt, porque foi precedida por um processo, no entre guerras, que ela denominou destituição do humano”, conclui a pesquisadora. Em a Condição humana, de 1958, ela aponta para a destruição das condições de existência do ser humano no mundo moderno, operada pela sociedade de massa. Em 1961, um acontecimento seria determinante no percurso intelectual de Arendt.: sua ida a Jerusalém para assistir e cobrir, para a revista New Yorker, o julgamento do criminoso nazista Eichmann, que se transformaria posteriormente no livro Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal. Essa experiência resultou no retorno à filosofia. A expressão “banalidade do mal”, por ela desenvolvida neste trabalho, foi outro foco de discórdia por ter sido vista como trivialização do ocorrido. “Para alguns, Arendt havia traído a ideia do ‘mal radical’ defendida anteriormente, passando a considerá-lo apenas como banal. Ocorre que Arendt nunca abandonou o ‘mal radical’, mas o que presenciou em Jerusalém não se enquadrava na definição. A banalidade do mal estava ligada à incapacidade de pensar e à execução automática de tarefas do burocrata moderno”, analisa Cláudia. Nada pode ser mais século XXI do que isso. n c.h. pESQUISA FAPESP 211  z  87


memória

Iluminismo reciclado Academia Real Militar do Rio de Janeiro surgiu em 1810 para formar militares e homens de ciência Neldson Marcolin

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vinda da corte portuguesa para o Brasil, em 1808, permitiu a criação de instituições de ensino superior que ajudaram a organizar a educação e a suprir a carência histórica da área. Nesse mesmo ano surgiram os cursos médico-cirúrgicos da Bahia e do Rio de Janeiro e, em 1810, a Academia Real Militar do Rio de Janeiro, que oferecia um curso de engenharia. O interesse era formar não apenas oficiais engenheiros, mas geógrafos, topógrafos e técnicos que pudessem construir estradas, portos, pontes, edifícios e penetrar mais fundo no sertão para demarcar corretamente as fronteiras e produzir mapas. A criação da academia como um local de formação também de homens de ciência foi moldada pelos ideais iluministas de dom Rodrigo de Sousa Coutinho (1755-1812), o mais influente ministro de dom João VI e discípulo dileto de Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal (1699-1777). “A academia foi o ponto de chegada do reformismo ilustrado de Pombal, reciclado por dom Rodrigo”, diz o físico e historiador da ciência Thomás Haddad, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (each) da Universidade de São Paulo (USP Leste). Para entrar na Academia Real Militar do Rio bastava ser alfabetizado e saber fazer as quatro operações. Originalmente, seu curso de engenharia tinha sete anos de duração, com forte ênfase na matemática. Incorporava o ensino de química, mineralogia e história natural, o que não ocorria nos currículos de cursos semelhantes em Portugal

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Prédio onde funcionava a academia, no largo de São Francisco de Paula, na litografia de Bertichem, de 1856


fotos 1 Reprodução de Escola Politécnica do Largo do São Francisco – berço da Engenharia Brasileira / Biblioteca da FAU/USP 2 Memória da Administração Pública Brasileira  3 Brown University

– Rodrigo Coutinho sabia ser premente a necessidade de se estabelecer uma política de exploração dos recursos naturais em Portugal e no Brasil. As aulas começaram na Casa do Trem — hoje parte do Museu Histórico Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) — e, a partir de 1812, passaram a ser ministradas nas instalações inacabadas destinadas à catedral da cidade no largo de São Francisco de Paula. Atualmente o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ ocupa o prédio. Para formar quadros competentes em pouco tempo era preciso certa uniformização nos procedimentos pedagógicos, o que passava pela padronização do currículo, dos processos de avaliação e dos métodos de ensino. Os manuais científicos se tornaram uma ferramenta importante para esse fim. “Os próprios professores traduziam os livros que iam ser utilizados como apoio às aulas”, conta Luís Miguel Carolino, professor de história do Instituto Universitário de Lisboa e pesquisador do Museu de Ciência da Universidade de Lisboa. “Isso era exigido pelos estatutos da academia.” O astrônomo, tradutor e professor Manoel Ferreira de Araújo Guimarães publicou o seu Elementos de Astronomia para uso dos alunos da Academia Real Militar em 1814. O manual trazia uma compilação da tradução de ensinamentos

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Dom Rodrigo de Sousa Coutinho: ideário ilustrado no campo da educação

clássicos de astronomia e fornecia um curso didático de astronomia esférica (ou de posição), um ramo da astronomia que diz respeito às direções em que os astros são vistos, sem levar em conta a distância. Essas observações permitem determinar as coordenadas geográficas dos pontos de observação da Terra e eram vitais para a cartografia e náutica. Com o manual, Guimarães preparava os alunos para trabalhos em missões militares ou civis. Apesar do empenho dos professores, eram poucos os alunos que se dispunham a cursar os sete anos de engenharia. “Pelo menos nos seus primeiros 15 anos a academia formou pouquíssimos engenheiros em relação aos que se matrícularam”, diz Rogério Monteiro de Siqueira, do Programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais da EACH, especialista em história da matemática. O ideário ilustrado no campo educacional e

o movimento geral de valorização do ensino técnico, iniciado por Pombal com a reforma da Universidade de Coimbra, em 1772, havia sido levado por Rodrigo Coutinho para o Brasil, mas já era tarde para Portugal. “Em 1822, com a Independência, o império português começou a se esfacelar. E a academia acabou por se transformar em algo diferente do que foi idealizado por dom Rodrigo, o herdeiro político de Pombal”, fala Thomás Haddad. “A academia sofreu 11 reformas curriculares até meados dos anos 1870 e durante sua existência havia uma discussão sobre como deveria ser a educação dos alunos, divididos entre a formação científica e a militar”, conta Siqueira. Em 1874 houve a última reforma e ocorreu a separação definitiva da academia em duas escolas, a militar e a civil. Foi quando surgiu a Escola Politécnica, que atendia apenas alunos civis.

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Capa do manual de Araújo Guimarães e desenhos feitos por ele para o curso de astronomia esférica

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Arte

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Outros gêneros no cinema brasileiro Serra Pelada, de Heitor Dhalia, pode estimular a esperada diversificação na oferta de filmes nacionais Tiago Lopes

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trailer de Serra Pelada, novo filme do diretor pernambucano Heito Dhalia, com estreia prevista para outubro, promete um produto ágil: o drama dos garimpeiros da localidade do Pará, servindo de pano de fundo para ação e suspense nascidos de uma disputa por território surgida entre três deles. Serra Pelada lembra, já no material promocional, os filmes de gângsteres dirigidos por Martin Scorsese. Outro filme recente com uma produção complexa que lembra um gênero bem estabelecido – mas nada comum no Brasil – foi Xingu, lançado em abril do ano passado: um western na acepção mais pura do termo, mostrando conflitos gerados pelo processo de expansão de fronteiras.

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Se tivesse ao menos três sequências de tiroteios, comparações entre os diretores Cao Hamburger e John Wayne, não seriam descabidas. Esses dois filmes ainda são corpos estranhos na trajetória recente do cinema nacional. Mas o fato de estrearem num intervalo de um ano e meio aponta para um futuro em que filmes de gênero que demandam uma produção mais complexa e ainda não comuns no Brasil (ação, suspense, ficção científica) devem ser cada vez mais constantes, tanto em quantidade como, principalmente, em qualidade. Antes de Xingu, Tropa de Elite 2 foi o último filme de gênero com uma produção elaborada e amplamente abraçado pela audiência. Estreando em outubro de 2010, o filme de José Padilha


ainda ocupa o posto de maior público da história do cinema brasileiro. Mesmo com um forte viés social, o diretor carioca o embalou com sequências de ação de qualidade até então inéditas no país, criando uma produção de apelo forte para quem aprecia apenas as peculiaridades desse gênero como quem espera do cinema algo além do puro espetáculo. Ainda assim, produções de baixo custo e qualidade idem continuam dominando o cenário de filmes brasileiros. A comédia Minha mãe é uma peça, ainda em cartaz, custou R$ 5,5 milhões e já cruzou a marca de R$ 45 milhões de arrecadação, ocupando, por enquanto, o posto de produção nacional de maior bilheteria do ano. A ideia dos produtores, ao que parece, é: por que gastar mais em filmes mais arriscados se a atual fórmula continua funcionando muito bem? Se o objetivo final de produtores é alargar cada vez mais a diferença entre valor de produção e lucro final, o público brasileiro já provou algumas vezes que, quando é surpreendido, atende de maneira bem mais satisfatória a esse anseio específico de cinema enquanto negócio. Para colocar em perspectiva: Tropa de Elite 2 custou R$ 14,5 milhões e lucrou mais de R$ 100 milhões. O efeito colateral dessa aposta (investir mais esperando maior retorno) é especialmente benéfico para a história do cinema nacional a longo prazo: a tão esperada diversificação da oferta de gêneros do que é produzido no país. No artigo “Gêneros e performance no mercado cinematográfico”, ainda a ser publicado, o professor Roberto Franco Moreira, do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (CTR/ECA/USP), explica precisamente quais as implicações negativas desse impasse. “O cinema brasileiro estará condenado a uma presença tímida no mercado”, escreveu ele, se não diversificar sua oferta de gêneros. Moreira lembra que o cinema brasileiro só conseguiu dois picos de audiência no mercado nos

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1 Reprodução acachapante do caos da corrida de ouro em Serra Pelada 2 Wagner Moura como o personagem Lindo Rico 3 Juliano Cazarré e Júlio Andrade como Juliano e Joaquim.

fotos  divulgação

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últimos 10 anos: em 2003, com 23%; e em 2009, com 19%. Nos outros anos, essa porcentagem variou de 9% a 15%. “A título de contraste, vale lembrar que cinematografias como a japonesa, coreana e francesa ocupam por volta de 50% do seu próprio mercado”, diz. Dessas três nacionalidades, o que o cinema brasileiro mais se aproxima é da francesa. Como o Brasil também não é um país lembrado pelo seu cinema de gênero (no caso deles, culpa da sombra da Nouvelle Vague). Ainda assim, o cinema francês lança regularmente filmes de ação e suspense de grande impacto na bilheteria local. Não conte a ninguém, de 2006, e O ninho, de 2002, são exemplos definitivos de cinema de gênero (o primeiro é um suspense agonizante, o segundo, um filme de ação inteligente), além do oferecido pelo mercado americano. Os dois têm uma produção relativamente simples. O trunfo de ambos: roteiros enxutos, que contam histórias imprevisíveis, mas de maneira direta, com um apelo junto ao público médio, mas sem se rebaixarem ao denominador mais comum. De acordo com o professor Luiz Dantas, do CTR/ECA, essa é justamente a maior fraqueza do cinema nacional. “Filmes de gênero precisam de um conhecimento melhor de estrutura de roteiro, e nisto temos trabalho ainda por fazer”, diz ele. Dantas reconhece que o cinema nacional tem estrutura de produção e técnicos muito competentes, mas ainda não consegue criar histórias que consigam dialogar com o público, levando em consideração sua inteligência. Serra Pelada tem um orçamento de R$ 10 milhões, com uma produção altamente complexa e uma história imprevisível e de apelo ao grande público. Segue à risca a fórmula dos poucos filmes de gênero de sucesso produzidos no Brasil. Se o público responder à altura, investir mais e melhor pode deixar de ser apenas risco para virar regra. n PESQUISA FAPESP 211 | 91


conto

O símio, meu símile Bruno Zeni

§ De cima, avistei ao longe o símio — um chimpanzé macho, ao que me parecia. Encolhido junto à parede oposta do grande pátio central, ele demonstrava ter me visto, sem ter se perturbado, porém, com minha presença. Sóbrio chimpanzé, sem indício de humor ou alegria. Visto assim, ao longe, com camadas e camadas de ar — denso e ao mesmo tempo límpido ar entre mim e ele —, visto assim no fundo do pátio interno da edificação, parecia o meu colega um tanto irreal, ou distante, ou ainda mais introspectivo. Entretanto, seus movimentos vagarosos e comedidos não me induziram à dúvida; sugeriam, enfáticos, que estava vivo e que gozava de boa saúde. § Não parecia enfermo nem ansioso, tampouco irritadiço. Pensei em lhe acenar, estabelecendo contato. As areias em torno da construção se estendiam por todos os lados. A nossa edificação, minha e do macaco, erguia-se solitária no meio da seca. § 92 | setembro DE 2013

Eu havia caminhado por dias, sem parada, e restava ainda um pouco d’água em meu cantil. Pensei em oferecer o resto de bebida — límpida e fresca — ao meu companheiro, recém-encontrado. Se nem me havia considerado, contudo. Impassível. Imóvel. Ensimesmado. Esperei. § Ventava e fazia calor, o silêncio era completo nos arredores, a não ser pelo assovio do vento contra os grãos de areia que subiam e desciam em vagas em torno dos dois personagens. Éramos dois ou ele era eu? E eu, uma projeção rebaixada da essência simiesca evoluída? Por alguns minutos perdi-o de vista. § Entenderia a linguagem de sinais, meu símile símio? Perceberia a mim como um igual ou como ameaça? Ser evoluído, ele era? Quanto a mim, de seu ponto de vista, seria sucessor ou antepassado na escala evolutiva dos melhores símios? Meu ser em negativo, mais evoluído. Metade maior que um dois avos. Avô evolutivo, antepassado contemporâneo, filho adotivo, meu ser mais essencial. § Se gozava de boa saúde, já não sei. Ficou imóvel durante todas as horas que despendi em minha recomposição física. Teria eu, agora, quanto tempo nesta paragem? Andei junto à superfície interna do castelo. Sobre a areia, pés afundados no solo ao mesmo nível do símio, eu ia rente ao muro, palmilhando a amurada da edificação desconhecida. § Consegui abrigar-me do sol, ainda alto, mas que já apontava a trajetória costumeira, como se podia verificar pelas sombras ligeiramente maiores na

luana geiger

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ma caminhada distendida, percorrida desde longínqua localidade, me trouxe aos altos muros deste castelo sem torres ou campanelas. As areias que deixei para trás se enevoam rumo ao céu e desenham cortinas de ocre contra o azul da manhã. Aqui, onde aportei por meus próprios pés, fitei a altura das grandes amuradas brancas contra o sol que nelas incidia, inclemente. Apesar da superfície limpa de suas paredes claras, a construção se deixou galgar, e em poucos minutos eu havia atingido o topo da muralha.


ala esquerda da amurada. Pensava tratar-se de um castelo, mas a ausência de estruturas internas ou ruínas — pelo que pude verificar, salvo alguns exemplares espaçados de pedras sem indício de lavor — me fizeram supor outros usos, templo ou observatório astronômico rudimentar. Teria sido altar de sacrifício em vez de abrigo fortificado? O amplo espaço vazio entremuros fora reservado a cerimônias e holocaustos ou teria sido apenas abrigo propício a meditação e reza? Algo além? Observação e prece, conjugadas? § O símio executou alguns movimentos, saindo de sua localização inicial, ao norte, e migrando alguns passos a leste, evitando o sol. Se eu dispusesse de meus instrumentos de navegação e localização... Por que saí em viagem sem tê-los portado em meu alforje? Não sei dizer. Meu caderno de campo, extraviado ao longo da jornada? Minhas pesquisas anteriores, meus experimentos-controle, onde foram parar? Minhas planilhas e anotações sobre o comportamento animal, minhas especulações sobre a psicologia humana, nunca mais reencontradas?

Se fêmea for, Me achego Em redor, derredor Devorá-la Vou Com ela Minha símia Meu amor desconhecido Pelo prazer Pela perpetuação da espécie Pronto a amar, matar A morrer ou ser morto § Sempre fui mau poeta. Falo em vão, os versos, para ninguém. A cidadela permanece em silêncio, sem outrem, gente nem bicho, pessoa nem besta, símio ou sílfide à vista. § Quando a noite vier, pereceremos os dois. Engolidos pela intempérie e pelo frio do deserto, famélicos. Ele não parece precisar de mim. Ela parece não me querer. Abraçados, separados ou apartados, perdidos. Dois, sozinhos e silenciosos.

§

§

Tive medo de me aproximar. Quanto mais reflito e me esmero em estudar as virtualidades do ser simiesco — porventura mais capaz que o ser que me habita —, mais hesito em testar suas capacidades de atenção e vínculo.

A tempestade de areia se aproxima, posso sentir o ar se adensando. Tento galgar a amurada. As paredes, sujas de pó, escorregadias e solidificadas, são refratárias à minha escalada. Penso em percorrê-las até o fim — infinito, reincidente, certo da circularidade da edificação. Se deparar com o ser simiesco?

§ Seus impulsos continuam lentos, e a compleição física ainda me parece a de um exemplar masculino. Porém, os gestos que executou ao se acomodar na faixa sombreada, que alcançou depois de alguns passos, os gestos lentos e repetitivos de uma de suas mãos contra o ar aconchegado pelo outro braço, que acalentava um volume imaginário contra o peito — os gestos suaves e demorados lembravam uma carícia de teor e ênfase femininos. Um exemplar masculino de fêmeo comportamento? § Ao seu encontro, com o peito Aberto vou Se for macho A desferir Meus golpes De afeto violento Predisposto a amar Matar ou ser morto

§ A luz da tarde derrama-se, corta os muros muito brancos da edificação. O céu azul, os grãos acobreados da areia. Dia abreviado neste entardecer que doura a tudo de luz tépida. Nestas altas latitudes, dia curto, longe do equinócio dos meus dias. Não sei dizer, não sei saber sentir, não sei meu afeto. Apenas vou. Em direção ao símio, meu símile, meu eu melhor, eu mesmo. Meu futuro, no encontro imprevisto. §

Bruno Zeni é jornalista, doutor em letras e escritor, autor de Corpo a corpo com o concreto e O fluxo silencioso das máquinas.

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resenhas

Reflexões sobre a revolução de Cádis

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A experiência constitucional de Cádis: Espanha, Portugal e Brasil Márcia Berbel e Cecília Helena de Salles Oliveira (orgs.) Alameda 310 páginas, R$ 55

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coletânea A experiência constitucional de Cádis: Espanha, Portugal e Brasil discute os dilemas que marcaram o processo de construção da ordem política liberal nas primeiras décadas do século XIX, articulando temas e problemas fundamentais da historiografia oitocentista contemporânea, entre eles: cidadania e escravismo; império, nação e soberania; constitucionalismo e sistema político. Fruto de um colóquio internacional – realizado no Departamento de História da USP em 2010, com auxílio da FAPESP, do Programa de Pós-Graduação em História Econômica e da Cátedra Jaime Cortesão –, o livro revela facetas ainda pouco exploradas do constitucionalismo inaugurado pela revolução de Cádis, não apenas na sua versão peninsular e brasileira, como também hispano-americana. Um dos méritos do livro é justamente propiciar uma reflexão sobre as especificidades das experiências constitucionais nos diferentes domínios imperiais ibéricos; como também, e sobretudo, aproximar e distinguir os modelos constitucionais coetâneos propostos em Cádis, Porto e Lisboa. Os estudos discutem o impacto e os desdobramentos provocados pela ruptura do status quo e deflagrados pela revolução de Cádis (1810) empreendendo comparações na curta e na longa duração. Um dos aspectos mais relevantes diz respeito às formas de apropriação local do constitucionalismo gaditano na conjuntura crítica que marcou o processo de desagregação dos impérios ibéricos, desde a expansão napoleônica até os congressos de Viena (1814) e Verona (1822). Conforme Manuel Chust Calero, a historiografia espanhola pouco destacava o peso dos deputados americanos nos debates constitucionais: “a singularidade fundamental desta revolução liberal hispânica está em integrar os territórios americanos como parte do Estado-nação espanhol”. Josep Fradera, Ana Cristina Nogueira da Silva e Ana Rosa Cloclet da Silva apresentam os debates peninsulares e americanos em torno da inclusão/ exclusão étnico-racial dos ameríndios, afrodescendentes e mestiços nas sociedades hispano-americanas, no império português e na província de Minas Gerais. A crise geral do Antigo Regime e o reformismo ilustrado suscitaram uma nova dinâmica de estratificação social que, paradoxal-

mente, implicava a necessidade de aprofundar as hierarquias sociais e o sistema de castas (no caso específico das sociedades hispano-americanas). Nesse âmbito, podemos situar um dos aspectos cruciais que explicam a singularidade do constitucionalismo português e brasileiro perante as demais experiências constitucionais. A Carta constitucional espanhola excluiu as castas indígenas e os libertos afrodescendentes do direito à cidadania. No caso luso-brasileiro, a incorporação dos libertos ao corpo político eleitoral (ao menos como votantes no primeiro turno) ampliava a legitimidade do novo sistema político; vindo a constituir uma das formas estruturais de preservação do tráfico negreiro e do escravismo ao longo do século XIX (cf. Márcia Berbel/R. Marquese/Tamis Parron). Ivana Fraquet, Márcia Berbel, Lúcia Bastos Pereira das Neves e Cecília de Salles Oliveira desvendam as linguagens políticas assumidas pela retórica constitucionalista nos diferentes contextos políticos imperial, americano e provincial. A Carta de 1824, segundo Salles de Oliveira, representa um distanciamento em relação a outras constituições contemporâneas formuladas na Europa, devendo ser aproximada com experiências na América do Norte, na Cisplatina e em Buenos Aires. Andrea Slemian aborda o esforço para institucionalização do governo constitucional e as dificuldades para construir a separação entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Diversos artigos aprofundam a complexidade que envolveu a desarticulação do sistema legal corporativo (onde prevalecia a pluralidade de foros e autonomias jurisdicionais). Conforme observa José Reinaldo Lima Lopes, a formação dos Estados nacionais implicou um longo período de experimentação política e refinamento do ordenamento legal. O constitucionalismo americano é tributário da sólida cultura jurídica europeia, mas as variantes no Novo Mundo expressam impasses impostos pela necessidade de restringir e, ao mesmo tempo, integrar os livres pobres no jogo político nacional. O livro nos permite perceber toda a complexidade do momento constitucional antes, durante e após 1822. Íris Kantor é professora do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

eduardo cesar

Íris Kantor


carreiras

Inovação | Caminhos complementares

Força jovem

foto  acervo pessoal  ilustração daniel bueno

Curso e concurso incentivam empreendedorismo entre estudantes da graduação Em 2014, uma disciplina sobre empreendedorismo e inovação, hoje destinada a alunos do último ano da graduação na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), será oferecida também a estudantes do primeiro ano. A iniciativa faz parte da reestruturação da grade curricular dos cursos de engenharia e o que se quer com ela é aproximar desde cedo o aluno de assuntos ligados à implementação e coordenação de negócios de inovação. “O conceito de empreendedorismo está ligado ao trabalho do engenheiro, que deve assumir a liderança da execução de projetos”, diz José Antônio Lerosa de Siqueira, professor de empreendedorismo da Poli e colaborador da Agência USP de Inovação. “Assim, é importante

o jovem ter contato desde o começo da graduação com atividades que envolvem planejamento e risco”, diz. Ele está convencido de que o empreendedorismo precisa ser fomentado o mais cedo possível entre os jovens. Professor também do Senai em São Paulo, Siqueira

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Lerosa: quanto mais cedo, melhor

conta que seu interesse pelo tema surgiu no início da carreira de engenheiro civil. “Formei-me em 1973 e logo consegui um bom emprego na área. Mas em 1978 a profissão entrou em crise no país e fui para a rua.” Insatisfeito com o salário que ganhava como professor na Poli, desde 1977, e sem oportunidades no mercado, Siqueira não viu outra solução a não ser abrir uma empresa de projetos de engenharia civil. “Tive que virar empreendedor”, diz ele. Conciliando as atividades de empresário, consultor e professor, Siqueira diz que muitos dos conceitos que aprendeu na universidade só puderam ser testados “na carne” quando optou pela via do empreendedorismo. “Quanto mais cedo entramos em contato com nosso potencial empreendedor, mais conseguimos PESQUISA FAPESP 211 | 95


Jasão: em Cananeia, instalando um medidor de correntes marinhas 96 | setembro DE 2013

Caminhos complementares

Um pé na terra, outro no mar Oceanógrafo concilia a vida acadêmica com sua empresa de mergulho científico “Vou embora”, disse Rodolfo Jasão Soares Dias ao deixar o emprego de programador em um banco em São Paulo. Seguindo a trilha do pai, que tinha deixado o trabalho também em banco para estudar odontologia, Jasão, como é chamado, viu que já podia fazer o que realmente gostava: mergulhar (ele mergulhava com o pai desde criança no litoral paulista). Ele foi mergulhador profissional em plataformas de petróleo em alto-mar durante dois anos, outra vez viu que o trabalho se tornava insuportavelmente rotineiro, pediu demissão e foi trabalhar como instrutor de mergulho recreativo em Fernando de Noronha e em Arraial do Cabo, litoral do Rio de Janeiro. “Estou partindo”, ele disse outra vez, quando resolveu estudar com afinco para fazer o vestibular para oceanografia na Universidade de São Paulo. Em 2007, ao começar o curso, ele tinha 27 anos. “Meu sonho era fazer pesquisa com mergulho”, disse, após ter participado de coletas submarinas com biólogos em Rio das Ostras e Macaé, litoral do Rio. Jasão se espantou ao ver que o mergulho era pouco disseminado no Instituto de Oceanografia, mas aos poucos começou a ajudar professores e colegas em coletas de sedimentos e organismos marinhos.

Para aprender o máximo possível, Jasão participou de todas as viagens que pôde ao longo do curso. O conhecimento foi útil logo depois ao abrir uma empresa de mergulho científico e serviços submarinos chamada Subgeo, porque lhe permitiu planejar melhor o tempo e prever as dificuldades do trabalho a que se propunha fazer. Jasão e Hélio Teruo, também oceanógrafo, os dois únicos funcionários, trabalham pelo menos seis horas por dia para atender aos pedidos de coleta de sedimentos, fotografia e filmagem submarina, instalação ou retirada de equipamentos e mapeamentos que chegam de empresas, institutos de pesquisa e universidades. A outra parte do dia e da noite Jasão e Teruo empregam nas tarefas acadêmicas – ambos fazem mestrado em oceanografia na USP. Os dois viajam muito. “Um dia estamos na Antártida, um lugar maravilhoso”, diz Jasão, “e no outro em Cubatão, no porto de Santos, poluído e malcheiroso”. Para otimizar as coletas, ele criou um equipamento mais simples e mais leve que os usados, com um longo tubo de plástico rígido, braçadeiras e um peso, que lhe permitia fazer coletas de amostras de sedimentos nas chamadas águas pretas, de visibilidade zero, como a do porto de Santos. “Nessas situações, é preciso ter muito autocontrole, porque a falta de visibilidade incomoda muito a maioria das pessoas, além dos galhos e raízes grudados no fundo.”

acervo pessoal

transformá-lo em realidade. A carreira universitária não tem nada a perder com isso, pelo contrário”, afirma. A atenção com a formação empreendedora na Poli teve início na pós-graduação em 2012. Depois de uma solicitação da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e da própria USP, a Agência USP de Inovação criou uma disciplina de empreendedorismo e inovação e outra sobre gerenciamento e execução, voltadas para alunos de várias áreas do conhecimento. Os cursos são semipresenciais e já formaram uma turma. Neste semestre a Agência USP de Inovação deu início à seleção de 12 alunos de graduação que viajarão para Bayreuth, na Alemanha, onde participarão de uma competição de planos de negócios e tecnologia. Entre os dias 5 e 15 de janeiro, equipes formadas por estudantes da USP e das universidades de Illinois, Bayreuth e de Hong Kong – que tem um programa no qual o aluno aprende tecnologia e gestão simultaneamente – serão desafiados a elaborar projetos inovadores de veículos elétricos e a desenvolver planos de negócios para os produtos.


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