PESQUISA FAPESP DEZEMBRO DE 2014
DEZEMBRO DE 2014 WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR
CORDILHEIRA AFRO-BRASILEIRA
Cadeia de montanhas formada há 610 milhões de anos impulsionou a vida molecular INOVAÇÃO ABERTA
Empresas recorrem a múltiplos parceiros para criar conhecimento PELE ARTIFICIAL
Curativo para queimaduras graves é feito de óleo de copaíba e polímero EXPEDIÇÃO
Circum-navegação mostra que os EUA buscavam seu lugar no mundo no século XIX ENTREVISTA NESTOR GOULART REIS FILHO
n.226
A arquitetura e o urbanismo estudados como um só processo
SUPLEMENTO ESPECIAL USP 80 ANOS
Objeto de desejo Água em abundância depende de florestas preservadas para formar chuvas e manter a qualidade dos aquíferos
FOTOLAB
Depósito de pólen A imagem mostra a cesta de pólen (corbícula), parte da tíbia da perna traseira da abelha, usada para armazenar os grãos até a colmeia. Capturada em um microscópio confocal, a foto ganhou o segundo lugar na categoria Fluorescência no concurso Imagens Microscópicas em Ciências da Vida, promovido pelo Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP). A autora é Márcia Sirlene Zardin Graeff, especialista em laboratório e doutoranda da Faculdade de Odontologia da USP de Bauru.
Imagem enviada por Malu Motta, do ICB-USP
Se você tiver uma imagem relacionada à sua pesquisa, envie para imagempesquisa@fapesp.br, com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.
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DEZ.226 ENTREVISTA 26 Nestor Goulart
Reis Filho Arquiteto fala de suas pesquisas sobre a mineração de ouro feita na cidade de São Paulo e nos municípios vizinhos
POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
CIÊNCIA
38 Inovação aberta
Cadeia de montanhas formada há 610 milhões de anos teria impulsionado a evolução da vida complexa no planeta
Empresas brasileiras dividem riscos e custos com parceiros múltiplos em projetos de pesquisa e desenvolvimento
44 Colaboração 18
CAPA 18 A escassez
de água que alarma o país tem relação íntima com as florestas
54
Pesquisadores discutem parcerias para desenvolver medicamentos contra doenças que atraem pouco interesse das indústrias farmacêuticas
48 Geologia
54 Física
Brasileiros descobrem como medir variações de energia de núcleos atômicos
58 Ecologia
Experimento indica que maior número de espécies de anfíbios ajuda a deter a transmissão de uma doença fatal causada por fungos
60 Zoologia
Ácaro transmite vírus que causa doença em laranjeiras ao se alimentar do suco celular
62 Obituário CAPA FOTO LÉO RAMOS
4 | DEZEMBRO DE 2014
Adib Jatene foi responsável por marcos da medicina experimental e conquistas para a saúde pública
TECNOLOGIA 64 Biotecnologia
Substituto cutâneo poderá ser usado como enxerto no tratamento de queimaduras e de lesões graves
68 Empreendedorismo
Empresa desenvolve sistema para identificação mais rápida de bactérias relacionadas a infecções hospitalares
70 Nanotecnologia
Nanotubos de carbono combinados com chumbo ou pesticidas potencializam efeitos tóxicos em peixes
74 Agricultura
Leguminosa usada como fertilizante pode aumentar em 35% a produtividade da cana-de-açúcar
94
86 Antropologia
Tese premiada sugere que próteses para amputados e exoesqueletos retomam o ideal do ciborgue
91 Obituário HUMANIDADES 76 História
68
Primeira expedição científica de circum-navegação dos Estados Unidos mostra que a jovem nação buscava um lugar no mundo desde o início do século XIX
82 Filosofia
Pós-graduação forma um mestre por dia na área e incorpora temas como neurociência e mudanças climáticas
Leandro Konder dedicou-se a estudar e divulgar a obra de Karl Marx
12 Estratégias 14 Tecnociência 92 Memória
Os chamados padres matemáticos fizeram mapas detalhados sobre os sertões do Brasil
94 Arte SEÇÕES 3 Fotolab 7 Carta da editora
Exposição apresenta coleção de objetos interativos que representam equações, teoremas e conceitos matemáticos
96 Ficção
8 Cartas
“Manteiga com margarina”, de Eurico C. de Oliveira
9 On-line
98 Carreiras
10 Dados e projetos As fontes dos recursos
76
11 Boas práticas › O que define um autor › Revisores falsificados
Tese de Claudia Melo, diretora de tecnologia da ThoughtWorks, foi desenhada para gerar impacto na academia e na indústria PESQUISA FAPESP 226 | 5
o ã ç a n i g a m i s mai s a d a t n a l p s a t s e r o l f mais
Você sabia que as empresas brasileiras produtoras de papel obtêm 100% da celulose a partir de florestas plantadas?* A área de florestas plantadas no Brasil equivale a 2.2 milhões de campos de futebol.** Estimule seus filhos a lerem tranquilamente, pois o papel é feito de madeira natural e renovável.
Para descobrir fatos ambientais surpreendentes sobre a comunicação impressa e o papel, visite www.twosides.org.br
Two Sides é uma iniciativa que promove o uso responsável da comunicação impressa e do papel como uma escolha natural e reciclável para comunicações poderosas e sustentáveis. *Folha Bracelpa Nº01, Maio / Junho 2009. **Two Sides Brasil, 2014.
CARTA DA EDITORA
Águas, tempo e desafios Mariluce Moura |
A
DIRETORA DE REDAÇÃO
Pesquisa FAPESP de dezembro é, na verdade, uma dupla edição: temos a revista regular, com a capa dedicada a um tema hoje de extrema relevância em vários âmbitos, inclusive o da pesquisa científica, que é a escassez da água; e temos uma edição comemorativa dos 80 anos da USP, completados em 2014, na qual procuramos, espasmos de crises à parte, mirar de forma abrangente o que há de mais significativo na atual produção científica da maior universidade brasileira e estabelecer os fios que a vinculam aos primeiros anos da instituição e a seus desdobramentos no tempo. Ao todo, são 176 páginas – ou 184, se contarmos as capas – destinadas a uma calma degustação dos leitores, como convém perto da virada do ano, ao qual chegamos já um pouco exaustos e carentes de uma certa tranquilidade para repor as energias antes de enfrentar um novo ciclo. Vou me dar ao luxo, desta vez, de recomendar a revista em sua totalidade, em lugar de destacar algumas reportagens e explicar o porquê desse tratamento preferencial para determinados textos, como de hábito. E a razão é simplesmente que preciso usar este espaço para contar a todos vocês que esta é a última “carta da editora” que escrevo neste espaço. Um pouco relutante, como, aliás, sempre nos encontramos quando vamos nos afastar de algum projeto ou produto ao qual dedicamos com alegria, por anos a fio, o melhor de nossas competências e habilidades, estou deixando a revista Pesquisa FAPESP, um dos meus diletos “filhos”, como eu, brincando, costumava afetivamente qualificá-la. Por necessidade íntima, por inquietação ou convicção intelectual, preciso agora dedicar tempo e energia a um novo projeto de jornalismo/divulgação científica, voltado a um público jovem e muito amplo, cuja concepção tenho acalentado nos últimos cinco anos. Dará certo? Não sei, estou em pleno risco, mas me empenharei ao máximo para que sim, porque estou convencida de que, se bem-sucedido, ele poderá se tornar uma nova contribuição importante à difusão da ciência e à ampliação da cultura científica na sociedade brasileira.
Foi nada menos que isso – uma contribuição fundamental ao jornalismo científico e à divulgação científica no país – que a Pesquisa FAPESP se tornou, bancada e compreendida com visão estratégica e notável sensibilidade por esta extraordinária instituição que se chama Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Entre o pequeno boletim de quatro páginas e tiragem de mil exemplares lançado em agosto de 1995, tão simples que era possível fazê-lo sozinha em um par de dias, e esta publicação alentada e sofisticada que exige, de um lado, excelentes cientistas de todos os campos dispostos a contar seu trabalho e, de outro, uma equipe de brilhantes e dedicados profissionais para elaborá-la mês após mês, articulando revista impressa, site, vídeos e programa de rádio, há um belo percurso, uma longa viagem, através da qual o que se pode vislumbrar incessantemente é o vigor e a pujança de uma instituição. A FAPESP decidiu em determinado instante que valia a pena dar visibilidade em novos termos à produção científica de São Paulo e do Brasil. E assim o fez, delegando a profissionais a tarefa de buscar sempre os melhores termos e reservando a si mesma o papel de supervisionar a qualidade desse produto que se tornaria parte importante de seu patrimônio intelectual. Creio que os leitores não verão soberba nas palavras que dedico à Pesquisa FAPESP, mas um orgulho justificado, em paralelo a um sentimento de gratidão à instituição que abriu espaço para a criação de uma revista relevante e à certeza de que esta publicação tem cérebro e musculatura para ir longe. Faltou aqui dizer somente muito obrigada aos leitores, aos pesquisadores/fontes/colaboradores, à minha equipe, ao comitê científico da revista, ao seu conselho editorial, aos funcionários da FAPESP, aos diretores e presidentes da Fundação nos últimos 20 anos e aos membros de seu Conselho Superior. Otimista que sou, espero poder fazer um balanço tão positivo quanto este dentro de mais 20 anos em relação aos desafios que agora tenho à frente. Feliz 2015! PESQUISA FAPESP 226 | 7
CARTAS
cartas@fapesp.br
FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO CELSO LAFER PRESIDENTE EDUARDO MOACYR KRIEGER VICE-PRESIDENTE CONSELHO SUPERIOR ALEJANDRO SZANTO DE TOLEDO, CELSO LAFER, EDUARDO MOACYR KRIEGER, FERNANDO FERREIRA COSTA, HORÁCIO LAFER PIVA, JOÃO GRANDINO RODAS, MARIA JOSÉ SOARES MENDES GIANNINI, MARILZA VIEIRA CUNHA RUDGE, JOSÉ DE SOUZA MARTINS, PEDRO LUIZ BARREIROS PASSOS, SUELY VILELA SAMPAIO, YOSHIAKI NAKANO CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO JOSÉ ARANA VARELA DIRETOR PRESIDENTE CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ DIRETOR CIENTÍFICO JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO
ISSN 1519-8774
CONSELHO EDITORIAL Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo Leite, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira COMITÊ CIENTÍFICO Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Adolpho José Melfi, Carlos Eduardo Negrão, Douglas Eduardo Zampieri, Eduardo Cesar Leão Marques, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Joaquim J. de Camargo Engler, José Arana Varela, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Lucio Angnes, Luis Augusto Barbosa Cortez, Marcelo Knobel, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Marta Teresa da Silva Arretche, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Luiz Monteiro Salles Filho, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner do Amaral Caradori, Walter Colli COORDENADOR CIENTÍFICO Luiz Henrique Lopes dos Santos DIRETORA DE REDAÇÃO Mariluce Moura EDITOR-CHEFE Neldson Marcolin
Escritórios de apoio
No que pese a importância da criação de escritórios de apoio a pesquisadores por iniciativa da FAPESP, muito bem retratada na reportagem “Suporte sofisticado” (edição 225), falta uma ação mais efetiva sobre a regulação da pesquisa científica realizada em órgãos públicos. No Brasil, não se inova mais na universidade porque a legislação vê o pesquisador como provável criminoso. A lei de licitações, por exemplo, é a mesma, tanto faz se vai ser comprado um tubo de ensaio ou construída uma estrada. Aquilo que teve a intenção de proteger o gasto público tornou-se a maior barreira para os saltos
tecnológicos de que precisamos. Mesmo quando iniciativas tramitam no Congresso Nacional para modificar esse cenário, como o PL 5.687/2013, rapidamente são arquivadas sem maiores discussões. Seria interessante que a experiência da FAPESP fosse canalizada também para a outra ponta, o que reduziria sobremaneira entraves burocráticos. Adilson Roberto Gonçalves Pesquisador científico Campinas, SP
Correção
Os mapas da variação da temperatura em Campinas da reportagem “Para mudar os ares” (edição 224, página 80) apresentavam imprecisões no delineamento das macrozonas (linhas pretas). Abaixo, publicamos a versão correta.
EDITORES Fabrício Marques (Política), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência); Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores especiais); Bruno de Pierro e Dinorah Ereno (Editores-assistentes) REVISÃO Daniel Bonomo, Margô Negro ARTE Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos (Editora de infografia), Maria Cecilia Felli e Alvaro Felippe Jr. (Assistente) FOTÓGRAFOS Eduardo Cesar, Léo Ramos
Centro de Campinas mais quente 2001
2011
MÍDIAS ELETRÔNICAS Fabrício Marques (Coordenador) INTERNET Pesquisa FAPESP online Maria Guimarães (Editora) Rodrigo de Oliveira Andrade (Repórter) RÁDIO Pesquisa Brasil Biancamaria Binazzi (Produtora) COLABORADORES Alexandre Affonso, Ana Lima, Daniel Bueno, Evanildo da Silveira, Eurico C. de Oliveira, Fabio Otubo, Francisco Bicudo, Guilherme Kramer, Igor Zolnerkevic, Maurício Pierro, Mauro de Barros, Sandro Castelli, Sílvia Almstalden, Valter Rodrigues, Yuri Vasconcelos, Zé Vicente É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO PARA FALAR COM A REDAÇÃO (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br PARA ANUNCIAR Midia Office - Júlio César Ferreira (11) 99222-4497 julinho@midiaoffice.com.br Classificados: (11) 3087-4212 publicidade@fapesp.br
FONTE LANDSAT / ALESSANDRA SHIMOMURA-UNICAMP
PARA ASSINAR (11) 3087-4237 assinaturaspesquisa@fapesp.br TIRAGEM 43.200 exemplares IMPRESSÃO Plural Indústria Gráfica DISTRIBUIÇÃO DINAP GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP SECRETARIA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO
MACROZONAS 1. Área de proteção ambiental 2. Área de controle ambiental 3. Área de urbanização controlada 4. Área de urbanização prioritária 5. Área prioritária de requalificação 6. Área de vocação agrícola 7. Área de influência aeroportuária 8. Área de urbanização específica 9. Área de integração noroeste VARIAÇÃO DE TEMPERATURA n 2,7 a 15,6°C n 15,6 a 17,4°C n 17,4 a 19,3°C n 19,3 a 21,1°C n 21,1 a 36,2°C
Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar – CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.
8 | DEZEMBRO DE 2014
ON-LINE
Nas redes
REIS, S. D. S. ET AL. / NATURE PHYSICS
W W W . R E V I S TA P E S Q U I S A . F A P E S P. B R
Germana Barata_ O que mais me
Exclusivo no site
chamou a atenção é o fato de os novos padrões poderem se tornar
x Por que sistemas naturais organizados em redes interconectadas, como o cérebro humano, funcionam de modo robusto e estável se as teorias indicam que perturbações aleatórias seriam capazes de levar esses sistemas ao colapso? Em artigo publicado na Nature Physics, um grupo de pesquisadores sugere que a estabilidade do cérebro é garantida, entre outras razões, porque os neurônios com mais conexões em sua própria rede se ligam aos neurônios com mais conexões em outras redes. x Mulheres detectam mais facilmente uma variada gama de cheiros do que os homens e são mais sensíveis a muitas moléculas de odor. A conclusão é de um grupo de pesquisadores das universidades Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e de São Paulo (USP). Num estudo publicado na PLoS One, eles apontam uma razão biológica para explicar esse desempenho feminino superior na percepção dos odores: as mulheres têm uma quantidade muito maior de células numa região cerebral associada à detecção dos cheiros, o bulbo olfatório.
indicadores até melhores que a mortalidade infantil para mostrar o bem-estar social de uma população. (Uma régua universal) Vitória Rangel_ Esta edição está especial, daquelas de trazer a pipoca e ler com emoção. Tantas pesquisas boas se desenvolvendo e abrindo novos rumos nas mais diversas áreas da ciência. (Edição 225) RKSS_ O pessoal da computação em redes já sabia usar hubs para montar Redes interconectadas (colorido) podem funcionar de modo robusto, dependendo da forma como se ligam
redes complexas. A surpresa é ver o cérebro modelado como uma rede de computadores. (A estabilidade do cérebro) Biblioteca Unifesp Campus BS_ Correr faz bem também aos pulmões!
Rádio
Receio que o que levava os asmáticos a se esquivarem de práticas esportivas parece estar baseado num engano.
Astrofísico explica por que buracos negros consomem menos energia do que se pensava
(Correr faz bem!) Juliano Aarão_ A excelência na educação física deve fugir da “cultura do belo” e “do esgotamento”, pautando-se como uma ciência em prol da saúde corporal e mental de seus praticantes. (Correr faz bem!)
Vídeo do mês Pesquisador fala sobre o impacto das redes sociais em movimentos net-ativistas
Assista ao vídeo:
YOUTUBE.COM/USER/PESQUISAFAPESP
PESQUISA FAPESP 226 | 9
DADOS E PROJETOS TEMÁTICOS E JOVEM PESQUISADOR RECENTES Projetos contratados entre outubro e novembro de 2014
TEMÁTICOS Uso de modernas técnicas de autópsia na investigação de doenças humanas (Modau) Pesquisador responsável:
Paulo Hilário Nascimento Saldiva Instituição: Faculdade de Medicina/USP Processo: 2013/21728-2 Vigência: 01/11/2014 a 31/10/2018
metabólicos, de ilhas do Brasil – uma abordagem integrada Pesquisador responsável: Roberto Gomes de Souza Berlinck Instituição: IQSC/USP Processo: 2013/50228-8 Vigência: 01/11/2014 a 31/10/2019
Pesquisador responsável: Newton Sabino Canteras Instituição: ICB/USP Processo: 2014/05432-9 Vigência: 01/10/2014 a 30/09/2018 Estruturas algébricas e
Imunoterapia na asma experimental por agonistas de receptores toll-like, infecção ou tolerância Pesquisador responsável: Momtchilo Russo Instituição: ICB/USP Processo: 2013/24694-1 Vigência: 01/11/2014 a 31/10/2018
Cluster randomised controlled trial for late life depression in socioeconomically deprived areas of São Paulo, Brasil (FAPESP-RCUK MRC) Pesquisadora responsável: Marcia Scazufca Instituição: Faculdade de Medicina/USP Processo: 2013/50953-4 Vigência: 01/09/2014 a 31/10/2015
Componentes da biodiversidade, e seus caracteres
Bases neurais do medo e agressão
suas representações Pesquisador responsável: Vyacheslav Futorny Instituição: IME/USP Processo: 2014/09310-5 Vigência: 01/10/2014 a 30/09/2018
JOVEM PESQUISADOR Gênero em territórios de fronteira e transfronteiriços na Amazônia brasileira Pesquisador responsável: José Miguel Nieto Olivar
As fontes dos recursos Dispêndios em pesquisa e desenvolvimento no estado de São Paulo em 2013
Total Instituições de ensino superior
Valor (R$ milhões)
Porcentagem do total
Porcentagem do PIB estadual
24.895,8
100%
1,63%
5.514,2
22%
0,36%
IES Federais
917,3
4%
0,06%
IES Estaduais
4.125,4
17%
0,27%
IES Privadas
471,6
2%
0,03%
Agências de fomento
2.753,1
11%
0,18%
CNPq
545,6
2%
0,04%
CAPES
675,1
3%
0,04%
FINEP
429,3
2%
0,03%
FAPESP
1.103,2
4%
0,07%
Institutos de pesquisa
1.853,5
7%
0,12%
IP Federais
1.229,1
5%
0,08%
IP Estaduais
624,4
3%
0,04%
14.775,0
59%
0,96%
Empresas
IES: Instituições de Ensino Superior (somente recursos destinados à P&D; exclui aposentadorias, hospitais, ensino e extensão); IP: Institutos de Pesquisa; Os valores em cada linha foram reportados pelas organizações, a pedido da FAPESP. Para a linha Empresas os valores são estimados pelo modelo desenvolvido nos Indicadores FAPESP 2010 (ver http://www.fapesp.br/indicadores/2010/volume1/cap3-Parte-A.pdf). Fonte: Indicadores FAPESP de C,T&I em SP.
10 | DEZEMBRO DE 2014
Instituição: Núcleo de Estudos de Gênero Pagu/Unicamp Processo: 2013/26826-2 Vigência: 01/10/2014 a 30/09/2017 Estudo da formação e dissociação de hidratos de gás Pesquisadora responsável: Maria Dolores Robustillo Fuentes Instituição: Escola Politécnica/USP Processo: 2014/02140-7 Vigência: 01/11/2014 a 31/10/2018 Desenvolvimento de dispositivos supercapacitores a partir de grafenos, nanotubos de carbono e diamantes Pesquisador responsável: Hudson Giovani Zanin Instituição: Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento/Univap Processo: 2014/02163-7 Vigência: 01/11/2014 a 31/10/2018 Estudo da função das células dendríticas plasmocitoides e mieloides frente à infecção pelo fungo Paracoccidioides brasiliensis Pesquisador responsável: Flavio Vieira Loures Instituição: ICB/USP Processo: 2014/04783-2 Vigência: 01/11/2014 a 31/10/2016 Influência da bradicinina sobre a osteoclastogênese in vitro e sobre a reabsorção óssea induzida por LPS in vivo Pesquisador responsável: Pedro Paulo Chaves de Souza Instituição: Faculdade de Odontologia de Araraquara/ Unesp Processo: 2014/05283-3 Vigência: 01/11/2014 a 31/10/2017 Matéria escura na Via Láctea: uma era de precisão Pesquisador responsável: Fabio Iocco Instituição: IFT/Unesp Processo: 2014/11070-2 Vigência: 01/12/2014 a 30/11/2018
BOAS PRÁTICAS Um documento destinado a editores de revistas científicas ofereceu uma série de orientações para evitar disputas e dilemas éticos envolvendo a atribuição de autoria de papers. Divulgado em setembro por um grupo de trabalho do fórum Committee on Publication Ethics (Cope), sediado em Londres, o texto sugere que cada revista defina claramente os parâmetros que considera necessários para um pesquisador assinar um artigo – e os exponha em seu website. Se as regras forem inspiradas nas de alguma instituição ou sociedade científica, isso também deve ser declarado. Outra precaução importante é exigir que todos os autores assinem uma declaração de responsabilidade. A maioria das revistas já toma esse cuidado, mas o Cope definiu quatro requisitos para não esquecer: 1) que todos os autores cumpram os requisitos exigidos pela revista; 2) que todos se responsabilizem pela integridade da pesquisa; 3) que não sejam omitidos nomes de outros indivíduos qualificados para serem autores do artigo; 4) que seja declarada a contribuição de cada um dos autores para a concepção e elaboração do artigo. Aconselha-se, ainda, que as revistas enviem correspondência para todos os autores citados, para garantir que todos consentiram em assinar o paper. De modo geral, há consenso de que o autor é aquele que dá uma real contribuição intelectual para o trabalho científico, participando de sua concepção, execução, análise e redação dos resultados, aprovando seu conteúdo final. No documento, o Cope ressalta que indivíduos cujas contribuições se encaixem em algum, mas não em todos os parâmetros de
autoria, sejam citados nos agradecimentos, assim como aqueles que ajudaram a obter recursos e infraestrutura, mas não participaram da pesquisa. O grupo de trabalho admite que não tem respostas para todas as controvérsias envolvendo a atribuição de autoria. Cita, por exemplo, as diretrizes do International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE), segundo as quais um autor deve ser responsável por todos os aspectos do paper, a fim de garantir que as questões relacionadas à exatidão e à integridade de qualquer parte do trabalho foram resolvidas. Isso, diz o grupo de trabalho, pode ser problemático em estudos multidisciplinares, nos quais pesquisadores compreendem em profundidade apenas as suas contribuições parciais. Outra lacuna nas diretrizes do ICMJE está relacionada à exigência de que todos os autores aprovem a versão
DANIEL BUENO
O que define um autor
final do que será publicado – um dos receios é que, em artigos com muitas assinaturas, algum autor faça exigências exageradas ou descabidas que se tornem um obstáculo para a divulgação do artigo. O documento do Cope está disponível no endereço http:// publicationethics.org/files/ Authorship_DiscussionDocument.pdf.
Revisores falsificados A plataforma de revistas científicas em acesso aberto BioMed Central, do Reino Unido, encontrou em seu sistema editorial cerca de 50 manuscritos em que houve manipulação no processo de revisão. Segundo o blog Retraction Watch, a maioria dos artigos não foi publicada, pois foram detectados problemas numa verificação que antecede a publicação. Mas pelo menos cinco papers foram publicados. Eles estão sendo submetidos a novo processo de revisão e poderão ser cancelados. A fraude foi possível graças a uma falha numa das etapas do fluxo de trabalho da plataforma, que permite ao autor do paper sugerir nomes de
revisores – pesquisadores qualificados incumbidos de opinar sobre o manuscrito –, propor mudanças e recomendar ou não a sua publicação. Aparentemente, foram indicados e aceitos pesquisadores fictícios, cujos nomes e afiliações eram semelhantes às de pessoas de verdade, e que, por meio de endereços de e-mail também falsificados, recomendaram a publicação dos artigos. Em declaração enviada ao Retraction Watch, a direção do BioMed Central afirmou que não encontrou uma ligação entre os autores dos artigos manipulados. “Acreditamos que uma terceira parte deve estar envolvida”, disse o comunicado. PESQUISA FAPESP 226 | 11
ESTRATÉGIAS Orçamento espremido
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Pesquisadores de São Paulo e da Califórnia discutem parcerias na última FAPESP Week de 2014
Conversas produtivas na Universidade da Califórnia A FAPESP realizou entre os dias 17 e 21 de novembro mais uma edição do simpósio internacional FAPESP Week. O evento foi sediado na Universidade da Califórnia, nos campi de Berkeley e de Davis, nos Estados Unidos, com apoio do Wilson Center. O objetivo é dar mais visibilidade no exterior para a ciência feita em São Paulo e estreitar contatos entre pesquisadores paulistas e da Califórnia para promover novas colaborações. A programação foi abrangente, com painéis sobre temas como eficiência energética, segurança 12 | DEZEMBRO DE 2014
alimentar, genômica, democracia e desigualdade social, nanotecnologia, oceanos, entre outros. Um dos painéis debateu os desafios e as oportunidades em colaborações científicas. “O papel das instituições em fazer as colaborações funcionarem está em oferecer aos pesquisadores os incentivos certos para que eles possam enxergar boas oportunidades e tenham os mecanismos para fazer parcerias. É desse modo que temos trabalhado com colaborações internacionais em pesquisa na FAPESP”, disse o diretor
científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz. Ralph Hexter, reitor da Universidade da Califórnia, Davis, ressaltou a importância do evento. “Nós apoiamos qualquer esforço que permita o fortalecimento de nossas parcerias com a FAPESP, para garantir o melhor dos resultados”, diz. Uma das janelas de oportunidades para cooperação internacional discutida no evento foi o desenvolvimento de tecnologias para o controle de partículas e compostos de cerâmica. “Meu grupo de pesquisa em Berkeley investiga
modelagem de processos de fabricação de novos materiais. Um exemplo é a aplicação de pequenas partículas em superfícies, uma técnica que está começando a se tornar popular em impressoras 3D”, diz o pesquisador Tarek Zohdi. Edgar Dutra Zanotto, da Universidade Federal de São Carlos, apresentou sua pesquisa com cerâmicas vítreas. “Esse material nos permite combinar várias propriedades. Podemos fazer um material bioativo que é muito mais duro e resistente que o vidro”, disse ele. 2
O novo presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, atraiu críticas da comunidade científica do continente ao propor que uma fatia do orçamento do novo programa de pesquisa e inovação, o Horizon 2020, seja realocada para a criação de um fundo de investimento, voltado para a criação de empregos e a reativação da economia nos países da União Europeia. O Horizon 2020 teria € 70 bilhões nos próximos seis anos para pesquisas em áreas como biotecnologia, saúde e transporte. Juncker quer separar € 2,7 bilhões desse montante para compor um fundo de investimentos que contaria com recursos de outros programas e alcançaria € 21 bilhões. A ideia, segundo ele, é atrair também contrapartidas do setor privado e de governos nacionais, multiplicando os investimentos do novo fundo para € 315 bilhões em três anos. A Liga de Universidades de Pesquisa da Europa publicou uma nota de protesto: “O programa Horizon 2020 não é limão. Parem de espremê-lo”.
Insetos monitorados
FOTOS 1 DIEGO FREIRE / FAPESP 2 MOVERA / WIKICOMMONS ILUSTRAÇÃO DANIEL BUENO
Reforço indiano O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) começou a receber, processar e distribuir sem custos imagens do satélite indiano de sensoriamento remoto Resourcesat-2. Construído pela Organização de Pesquisa Espacial da Índia (Isro, na sigla em inglês), o satélite entrou em órbita desde 2011 e conta com três câmeras. As imagens produzidas por uma delas estão sendo usadas para aprimorar o Deter, sistema de detecção de desmatamento criado pelo Inpe. Com imagens como as produzidas pelo sensor indiano, é possível enxergar desmatamentos a 6,25 hectares, enquanto o sistema atual registra áreas de, no mínimo, 25 hectares. A cooperação entre o Inpe e a Isro é fruto de um acordo assinado em julho em Brasília,
durante a visita oficial do premiê indiano, Shri Narendra Modi, ao Brasil. Em 2008, os dois países já haviam celebrado acordo semelhante para a recepção dos dados do Resourcesat-1, antecessor do Resourcesat-2, que entrou em órbita em 2003 e ainda está em operação. O catálogo do Inpe também disponibiliza imagens dos satélites sino-brasileiros CBERS e dos satélites do programa americano Landsat.
A Agência Espacial Europeia (ESA, na sigla em inglês) divulgou um comunicado confirmando a viabilidade econômica e operacional do Vecmap, um programa lançado em fase experimental em 2009 para mapear focos de insetos transmissores de doenças, utilizando satélites e equipamentos de telecomunicações. No total, 12 instituições em nove países europeus testaram o Vecmap para a produção de mapas que mostram a probabilidade de ocorrência de mosquitos vetores de doenças, como dengue, malária e chikungunya.
“Nos testes realizados até o momento, o sistema auxiliou os pesquisadores a escolherem com mais precisão os locais a serem analisados, economizando tempo e custos com o trabalho de campo”, diz a nota. O Vecmap constitui um conjunto de softwares e serviços, incluindo um aplicativo para smartphones, que ajuda o pesquisador em estudos de campo, fornecendo informações sobre a localização dos focos de mosquitos. O programa conta com a colaboração de agências públicas de saúde de vários países europeus, como Bélgica, Grã-Bretanha, Itália e Suíça.
Tartarugas de Galápagos: combate à extinção é uma das bandeiras da Fundação Charles Darwin
Ameaça à pesquisa nas Ilhas Galápagos
2
A Fundação Charles Darwin, que há mais
centro emprega 65 pessoas e trabalha
as portas, pressionada por comerciantes
de 50 anos apoia pesquisas nas Ilhas
com mais de 100 colaboradores inter-
locais que se queixavam da concorrên-
Galápagos, no Equador, sofre com uma
nacionais. “Estamos há dois meses e
cia. Com isso, a fundação parou de ar-
crise financeira. A instituição tem con-
meio com os salários atrasados e vários
recadar cerca de US$ 8 mil por semana.
seguido arrecadar junto a doadores
projetos deixaram de ser executados”,
Em novembro, dirigentes da fundação
internacionais e agências de fomento
disse à revista Nature Swen Lorenz, di-
reuniram-se em Quito para discutir so-
apenas a metade dos US$ 3 milhões de
retor executivo da Fundação Charles
luções para esse impasse. Eles decidiram
seu orçamento anual, o que inclui gastos
Darwin. A crise tornou-se mais aguda a
formar um grupo de trabalho, com o
com o aluguel de barcos de pesquisa,
partir de julho, depois que uma impor-
objetivo de assegurar o funcionamento
programas de educação ambiental e
tante fonte de recursos para manuten-
da estação de pesquisa e tentar mobili-
manutenção de coleções e acervos. O
ção, a loja de souvenirs, teve de fechar
zar doadores.
PESQUISA FAPESP 226 | 13
TECNOCIÊNCIA Darwin on-line
1
Nascidos para brilhar
Vaga-lume: acender a lanterna do abdômen gasta menos energia do que voar
A Biblioteca Digital de
gratuitamente na
Cambridge tornou
internet, são
disponível no fim de
considerados os mais
novembro cópias
importantes para a
digitalizadas em alta
compreensão de como
resolução de 12 mil
Darwin desenvolveu sua
páginas escritas pelo
famosa teoria. Entre os
naturalista inglês Charles
manuscritos está a obra
Darwin, autor da teoria
Pencil sketch, dos anos
da evolução das espécies
1840, na qual Darwin
pela seleção natural. Os
usa pela primeira vez
documentos permitem
o termo seleção natural.
traçar o percurso feito
O naturalista inglês
por Darwin de suas
tentou formular a versão
primeiras reflexões
completa da teoria em
teóricas, anotadas na
Transmutation notebook
viagem a bordo do navio
B, mas foi em Notebook D
HMS Beagle, até a
e em Notebook E que
publicação do livro Sobre
ela começou a tomar
a origem das espécies por
forma em 1838 e 1839.
meio da seleção natural
Além das imagens,
Os vaga-lumes gastam
maior. Ao acender a
muito mais energia para
lanterna, o gasto de
em 1859. Ligada à
também estão
voar do que para fazer
oxigênio foi apenas 37%
Universidade de
disponíveis transcrições
brilhar a lanterna de seu
maior do que quando o
Cambridge, a biblioteca
do texto e notas tanto
abdômen. Pesquisadores
inseto estava em
possui a coleção quase
no site da Biblioteca
de Taiwan e da Suíça
repouso (Physical Review
completada dos escritos
Digital de Cambridge
usaram técnicas de
Letters, no prelo). O
de Darwin. Os
quanto no do Darwin
microscopia de raios X e
baixo consumo de
documentos, que agora
manuscripts project,
tomografia de alta
oxigênio, segundo os
podem ser acessados
mantido pelo Museu
resolução para mapear e
pesquisadores, decorre
Americano de História
visualizar em três
da forma como se
Natural. Imagens de
dimensões o sistema de
estruturam as traquéolas
mais documentos
tubos microscópicos e
nas células especializadas
estarão disponíveis em
suas ramificações
na emissão de luz
junho de 2015.
(traquéolas) que formam
(fotócitos). No vaga-lume
o sistema respiratório
as traquéolas são
desses insetos. Depois
otimizadas para gerar o
mediram o consumo de
máximo de luz com o
oxigênio, um indicador
mínimo de oxigênio.
do gasto energético,
“Nosso estudo gerou um
cada vez que os
importante subproduto:
vaga-lumes de duas
a evidência de que a
espécies – Luciola
lanterna dos vaga-lumes
terminalis e L. cerata
é otimizada para a
– eram estimulados a
emissão de luz”,
acender a lanterna. O
escreveram os
piscar dos vaga-lumes
pesquisadores. “A taxa
gasta menos energia do
de difusão do oxigênio a
que atividades como
partir das traquéolas é
voar, na qual o consumo
próxima à consumida na
de oxigênio é 140 vezes
bioluminescência.”
14 | DEZEMBRO DE 2014
2
Darwin: manuscritos mantidos pelo Museu Americano de História Natural 1
3
Prata em sacos plásticos para guardar alimentos Filmes feitos de PVC transparente e com
do assim os alimentos embalados. A tec-
ex-alunos de Química da Universidade
nanopartículas de silicato de prata incor-
nologia foi desenvolvida pela Nanox¸de
Federal de São Carlos (UFSCar) e que fi-
poradas ao material é uma inovação com
São Carlos, no interior paulista, que licen-
zeram mestrado no Instituto de Química
o objetivo de tornar mais seguro o acon-
ciou para outra empresa, a Alpes Indústria
da Universidade Estadual Paulista (Unesp),
dicionamento de alimentos em sacos de
e Comércio de Plásticos, instalada na
em Araraquara. Para desenvolver a em-
plástico, principalmente em refrigeradores,
capital paulista, que já distribui o produto
presa e a tecnologia eles contaram com
uma prática bem difundida tanto em re-
com o nome AlpFilm Protect. Segundo
o apoio do Centro de Desenvolvimento
sidências como no comércio e na indústria.
Luiz Gustavo Simões, diretor da Nanox, o
de Materiais Funcionais (CDMF), coorde-
As nanopartículas de prata têm a função
produto cumpre as exigências da Agência
nado pelo professor Elson Longo, um dos
de eliminar bactérias e fungos protegen-
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)
Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão
e as legislações de agências internacionais.
(Cepid) financiados pela FAPESP, inclusi-
A Nanox é uma empresa formada por três
ve para o desenvolvimento do AlpFilm.
Silicato de prata em filme de PVC combate bactérias e fungos
4
FOTOS 1 ART FARMER / WIKIMEDIA COMMONS 2 WIKICOMMONS 3 WELLCOME IMAGES 4 NANOX ILUSTRAÇÃO DANIEL BUENO
Átomo isolado
Fumo, álcool e microbiota O consumo rotineiro
que consumiam álcool;
de álcool e tabaco por
e nove pessoas que não
longos períodos pode
fumavam e bebiam
alterar a microbiota da
esporadicamente. A
boca, o conjunto de
comparação mostrou que
quase 700 espécies de
o consumo intensivo de
bactérias naturalmente
tabaco – um maço por dia
encontradas nas
por ao menos 10 anos –
mucosas da cavidade
reduziu a riqueza
Uma nova técnica para
átomos começassem a
oral. Andrew Thomas,
microbiana da boca, que
isolar átomos pode um
escapar de sua armadilha
da equipe do biólogo
inclui microrganismos
dia ajudar os físicos a
sempre aos pares
Emmanuel Dias-Neto
protetores da mucosa.
manipularem átomos
(Physical Review Letters,
no A. C. Camargo Cancer
A principal mudança foi na
individuais com a mesma
24 de setembro). Assim,
Center, usou técnicas
abundância de exemplares
facilidade com que
se o número inicial de
de biologia molecular
de cada espécie, que era
isolam partículas de luz
átomos de hélio na
para analisar a flora
menor tanto em quem
em laboratório. O físico
armadilha era ímpar,
bacteriana de três
fumava quanto nos
Andrew Truscott e seus
acabava restando
grupos de pessoas: seis
fumantes consumidores de
colegas da Universidade
um único átomo na
fumantes; sete fumantes
álcool (BMC Microbiology,
Nacional Australiana,
armadilha, com uma
outubro de 2014).
em Canberra, Austrália,
temperatura de apenas
Suspeita-se que o
aprisionaram com
890 trilionésimos
desequilíbrio na
campos magnéticos
de grau Celsius (°C)
microbiota oral esteja
cerca de 10 mil átomos
acima do zero absoluto
associado a um maior
de hélio, resfriados até
(-273°C). Pelas leis da
risco de desenvolver
formarem um estado
mecânica quântica, um
doenças que vão da
da matéria conhecido
átomo resfriado a essa
periodontite a algumas
como condensado de
temperatura se comporta
formas de câncer. Os
Bose-Einstein, em que
mais como uma onda
pesquisadores acreditam
todos os átomos se
do que como uma
ser interessante estudar
comportam como se
partícula, o que torna
a microbiota de pessoas
fossem um único átomo
os átomos isolados
que começaram
maior. Eles então usaram
pela nova técnica
recentemente a fumar
um campo elétrico para
perfeitos para testar
e a beber, para ver o
aumentar o número
fenômenos quânticos
quanto a microbiota
de colisões entre os
como o emaranhamento,
saudável persiste, além de
átomos do condensado,
já testado em pares
propor estratégias de
o que fez com que os
de partículas de luz.
recomposição. PESQUISA FAPESP 226 | 15
Barcos sob o Sol
As cores da América Latina
As equipes Vento Sul e
da população. Neste ano,
Babitonga, ambas de
a competição contou
Santa Catarina, foram as
com a participação de
vencedoras da sexta
350 universitários,
edição do Desafio Solar
agrupados em 23 equipes
Brasil, competição de
de sete estados (Bahia,
barcos movidos a
Ceará, Pará, Paraná,
energia solar realizada
Pernambuco, Rio de
em novembro em Búzios,
Janeiro e Santa Catarina).
no litoral fluminense.
As embarcações que
Formada por estudantes
participaram do rali foram
da Universidade Federal
montadas pelos alunos
de Santa Catarina
dentro das instituições
(UFSC) de Florianópolis,
de ensino, com apoio de
a Vento Sul ganhou na
professores. Além do
Que a população
e portanto sobre a
categoria Monocasco,
circuito de provas –
latino-americana é muito
autopercepção.
enquanto a Babitonga,
oito, no total –, o evento
miscigenada não é
Mas alguns fatores,
composta por alunos
também contou com
novidade para ninguém
principalmente a cor
do campus da UFSC de
workshops sobre
que já tenha andado por
da pele, se sobressaem
Joinville, sagrou-se
telemetria, propulsão
aqui. A grande base
e afetam diretamente
campeã entre os
elétrica e geração de
indígena, maior em
como a pessoa se define
catamarãs. O Desafio
energia a partir
algumas regiões do que
– mesmo quando a
Solar Brasil 2014 é uma
de placas solares.
noutras, a colonização
genética não confirma a
versão nacional do
Promovido pela
ibérica, a escravidão
ancestralidade aparente.
Frisian Sollar Challenge,
Universidade Federal do
de africanos e as várias
“As pessoas podem se
o principal evento
Rio de Janeiro (UFRJ) e
ondas de imigrantes
achar mais africanas
europeu para
pela Ampla Energia e
de outros continentes,
do que são pela cor da
embarcações solares,
Serviços, que distribui
sobretudo da Europa,
pele”, explica Maria
promovido a cada dois
energia elétrica para 66
deram origem a uma
Cátira. “Alguém com
anos na Holanda. A
municípios fluminenses,
população heterogênea.
pele escura sempre tem
competição aproxima
o desafio fez parte do
Pesquisadores de
alguma ascendência
tecnologias avançadas e
projeto Cidade Inteligente
vários países, inclusive
africana, mas talvez
a produção de energias
de Búzios (leia na ed. 202
o grupo coordenado
menos do que parece.”
renováveis ao dia a dia
de Pesquisa FAPESP).
Em Búzios, competição com embarcações movidas a energia solar teve equipes de sete estados
pela geneticista Maria Cátira Bortolini, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), resolveram investigar como a genética, a aparência física e a autopercepção caracterizam a população no Brasil, no Chile, na Colômbia, no México e no Peru (PLoS Genetics, 25 de setembro). Com dados de 7 mil voluntários, o grupo verificou que a ancestralidade, muito variável entre países e regiões devido a fatores históricos conhecidos, tem um forte efeito 3 sobre a aparência
16 | DEZEMBRO DE 2014
1
Estrutura de nanocelulose
Gota de prata com interior cristalino Uma descoberta inesperada pode ter
para o funcionamento de nanoligamentos
desdobramentos tecnológicos no futuro,
em conexões elétricas. Em outras aplica-
para o bem e para o mal. Pesquisadores
ções futuras, esse fenômeno pode ser
chineses e norte-americanos descobriram
interessante em circuitos elétricos que
que nanopartículas sólidas de prata po-
precisem de maior resistência mecânica
a proposta de uma série
dem se deformar como gotas de um lí-
em tamanhos tão diminutos que aliem
de pesquisadores de
quido. Porém o interior dessas nanopar-
também a capacidade de se deformar.
materiais norte-americanos
Nanopartículas sólidas podem se deformar como líquido
Utilizar compósitos plásticos reforçados com nanopartículas de celulose em automóveis é
tículas continua cristalino e estável sem
e australianos.
alterações quando elas são flexionadas
Nanoceluloses são
como gotas. As camadas externas se
materiais ultrafortes e
movem, mas os átomos internos ficam
extraídos de árvores de
alinhados como tijolos em uma parede.
reflorestamento. O que
Os experimentos, publicados na revista
se quer é substituir
Nature Materials de outubro, foram rea-
estruturas metálicas
lizados com dispositivos com menos de
pesadas dentro dos carros
10 nanômetros de diâmetro no Instituto
como as dos bancos. A
de Tecnologia de Massachusetts (MIT).
vantagem é ter materiais
As nanopartículas são importantes na
mais leves e baratos que
concepção de contatos metálicos e cir-
metais e fibras de carbono
cuitos eletrônicos. Nesses usos, é impor-
utilizados em vários
tante ter uma forma estável, mas essa
pontos de veículos de
descoberta pode se tornar um obstáculo
2
luxo. Segundo o Departamento de Energia dos Estados Unidos (DOE), a redução em 10%
Tanque cheio de hidrogênio
do peso em um veículo
FOTOS 1 UFSC 2 MIT 3 TOYOTA ILUSTRAÇÃO DANIEL BUENO
melhora o gasto de Um sedã que emite
camada de polímero
começam em cidades
combustível entre 6% e
vapor-d’água no lugar
que extrai os elétrons das
com postos de
8%. Para desenvolver
de poluentes, pode ser
moléculas do gás e gera
abastecimento como
as nanoceluloses para
reabastecido em três
eletricidade com o
Tóquio e Osaka.
o setor automotivo,
minutos e percorrer
oxigênio do ar. A célula
O hidrogênio pode ser
as empresas Futuris
650 quilômetros com os
fica sob o banco do
extraído da água por
Automotive e American
tanques cheios de
motorista e gera no
eletrólise utilizando-se
Process firmaram uma
hidrogênio. Esse é o
máximo 114 quilowatts.
energia renovável solar
parceria com o Instituto
Mirai apresentado pela
O motor elétrico
ou eólica e também
de Tecnologia da Georgia,
Toyota em novembro
responsável pela
do esgoto. Outra
Universidade de Atlanta
depois de mais de 10 anos
tração fica na frente do
utilidade do veículo
do primeiro protótipo.
veículo. Dois tanques
é a possibilidade de
A empresa começa a
de hidrogênio estão
gerar energia elétrica
vender o veículo a partir
acondicionados na parte
para uma casa
deste mês de dezembro
traseira. São feitos de
quando há interrupção
nas concessionárias do
plástico reforçado e
convencional de energia.
Japão. O Mirai é um
fibra de carbono.
automóvel que gera sua
As vendas no Japão
Clark, Universidade de Mirai: carro movido a hidrogênio também serve como gerador em casa
Tecnologia Swinburne e o Laboratório de Produtos Florestais do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos.
própria energia elétrica a partir do hidrogênio e também por um sistema que transforma em eletricidade a energia gerada na frenagem. O coração do veículo é a célula a combustível composta, entre outros materiais, por uma
3
PESQUISA FAPESP 226 | 17
CAPA
Dança da chuva A escassez de água que alarma o país tem relação íntima com as florestas
TEXTO
Maria Guimarães
FOTOS
Léo Ramos
Alterações no volume e periodicidade das precipitações e mau uso dos aquíferos estão entre os fatores que secam os canos de parte do Brasil 18 | DEZEMBRO DE 2014
A
Amazônia não é apenas a maior floresta tropical que restou no mundo. Esse sem-fim de verde entrecortado por rios serpenteantes de tamanhos e cores variados também não se limita a ser a morada de uma incrível diversidade de animais e plantas. A floresta amazônica é também um motor capaz de alterar o sentido dos ventos e uma bomba que suga água do ar sobre o oceano Atlântico e do solo e a faz circular pela América do Sul, causando em regiões distantes as chuvas pelas quais os paulistas hoje anseiam. Mas o funcionamento dessa bomba depende da manutenção da floresta, cuja porção brasileira, até 2013, perdeu 763 mil quilômetros quadrados (km2) de sua área original, o equivalente a três estados de São Paulo. Antonio Donato Nobre, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), não aponta o dedo para culpados. O que importa para ele é reverter esse processo e não apenas zerar o desmatamento, mas recuperar a floresta. No relatório O futuro climático da Amazônia, divulgado no fim de outubro, ele deixa claro que o único motivo para não se tomarem providências imediatas para reduzir o desmatamento é desconhecer o que a ciência sabe. Para ele, o caminho é conscientizar a população. “Agora é um bom momento porque as torneiras estão secando”, afirma. No relatório, elaborado a partir da análise de cerca de 200 trabalhos científicos, ele mostra que a cada dia a floresta da bacia amazônica transpira 20 bilhões de toneladas de água
(20 trilhões de litros). É mais do que os 17 bilhões de toneladas que o rio Amazonas despeja no Atlântico por dia. Esse rio vertical é que alimenta as nuvens e ajuda a alterar a rota dos ventos. Nobre explica que os mapas de ventos sobre o Atlântico mostram que, no hemisfério Sul e a baixas altitudes, o ar se move para noroeste na direção do equador. “Na Amazônia a floresta desvia essa ordem”, diz. “Em parte do ano, os ventos alísios carregados de umidade vêm do hemisfério Norte e convergem para oeste/sudoeste, adentrando a América do Sul.” Essa circulação viola um paradigma meteorológico que diz que os ventos deveriam soprar das regiões com superfícies mais frias para aquelas com superfícies mais quentes. “Na Amazônia, o ano todo eles vão do quente, o Atlântico equatorial, para o frio, a floresta”, explica. Uma parceria com os russos Anastasia Makarieva e Victor Gorshkov, do Instituto de Física Nuclear de Petersburgo, tem ajudado a explicar do ponto de vista físico os fenômenos meteorológicos da Amazônia. Em artigo publicado em fevereiro de 2014 no Journal of Hydrometeorology, eles afirmam, com base em análises teóricas confirmadas por observações empíricas, que o desmatamento altera os padrões de pressão e pode causar o declínio dos ventos carregados de umidade que vêm do oceano para o continente. O grupo analisou os dados de 28 estações meteorológicas em duas áreas do Brasil e viu que os ventos que vêm da floresta amazônica carregam mais água e estão
PESQUISA FAPESP 226 | 19
O
s fundamentos da influência da condensação sobre os ventos foram apresentados em artigo publicado em 2013 por Anastasia e Gorshkov, em parceria com Nobre e outros colaboradores, na Atmospheric Chemistry and Physics, uma das revistas mais importantes da área. Por meio de uma série de equações, eles mostram que o vapor de água lançado à atmosfera pela transpiração da floresta gera, ao condensar, um fluxo capaz de propelir os ventos a grandes distâncias. De acordo com Nobre, a nova física da condensação proposta por eles gerou, ainda durante a revisão do artigo, uma controvérsia com meteorologistas, que debateram o assunto furiosamente em blogs científicos com a intenção de derrubar a principal equação do trabalho. Não conseguiram e o trabalho foi publicado. O pesquisador do Inpe explica a polêmica. “É uma física que atribui à condensação, um fenômeno básico e central do funcionamento atmosférico, um efeito oposto ao que se acreditava”, diz. “Será necessário reescrever os livros didáticos da área.” Para dar a dimensão da dificuldade de diálogo entre físicos teóricos e meteorologistas, Nobre lembra que a física desenvolve um entendimento dos fenômenos atmosféricos a partir de leis fundamentais da natureza, enquanto a meteorologia o faz, em grande parte, com base na observação de padrões do clima do passado, cuja estatística é absorvida em modelos matemáticos. Tais modelos representam bem as flutuações climáticas observadas, mas apresentam falhas quando há alterações significativas no padrão. É o caso agora, quando um novo contexto – ocasionado por desmatamento, mudanças globais no clima ou outros fatores – gera fenômenos climáticos inesperados para certas regiões, como chuvas mais torrenciais e secas mais extensas. A teoria física acerta onde extrapolações do passado erram, por isso é preciso, segundo ele, construir novos modelos climatológicos que recoloquem a física no centro dos esforços da meteorologia. 20 | DEZEMBRO DE 2014
O momento agora é crucial porque o clima amazônico vem mudando. Secas importantes nessa região marcaram os anos de 2005 e 2010. “Antes a Amazônia tinha a estação úmida e a mais úmida, agora há uma estação seca”, diz Nobre. Os danos dessas secas na floresta não foram aniquiladores porque ela consegue se regenerar, mas o acúmulo dos danos aos poucos erode essa capacidade. Um efeito importante que já se observa, previsto há 20 anos por modelos climáticos, é um prolongamento da estação seca, que tem prejudicado a produção agrícola em porções do estado do Mato Grosso. A grande preocupação é que se chegue a um ponto de não retorno, em que a floresta já não consiga produzir chuva suficiente para suprir nem a si própria. Trabalhos de modelagem que levam em conta clima e vegetação indicam que esse ponto será atingido quando 40% da área original de floresta for perdida, um número que não é unânime. Segundo o relatório de Nobre, 20% da floresta já foi cortada e outros 20%, alterados a ponto de terem perdido parte de suas propriedades. Se a teoria da bomba biótica estiver correta, os efeitos desse ponto de não retorno devem ser mais graves do que a savanização proposta pelo climatologista Carlos Nobre, irmão mais velho de Antonio (ver Pesquisa FAPESP nº 167). “Se a floresta perder a capacidade de trazer a umidade do oceano, a chuva na região pode cessar por completo”, diz o Nobre caçula. Sem água para sustentar uma savana, o resultado poderia ser uma desertificação na Amazônia. Se isso ocorrer, o cenário que ele infere para o Sul e o Sudeste do país poderia ser semelhante ao de outras regiões na mesma latitude: tornar-se um deserto. Antonio Nobre não se arrisca a falar muito sobre São Paulo. “Meu relatório é sobre a Amazônia.” Mas ele acredita que a seca por aqui não independe do que acontece no Norte. Em sua opinião, foi possível devastar boa parte da mata atlântica sem sentir uma redução nas chuvas porque a Amazônia era capaz de suprir a falta de água na atmosfera local. Mas isso já não parece acontecer mais. Ele aproveita o ensejo para sugerir que não apenas a floresta amazônica, mas também a que acompanhava a costa de quase todo o Brasil precisa ser recuperada imediatamente. Se não for por outro motivo, o esgotamento a que chegaram as represas que alimentam boa parte da população paulista deveria bastar como argumento. A exportação de água desde a Amazônia para outras regiões do Brasil, sobretudo o Sudeste e o Sul, é uma realidade, por meio do fenômeno conhecido como rios voadores (ver Pesquisa FAPESP nº 158). Um indício dessa linha direta foram as intensas chuvas no sudoeste da Amazônia no início de 2014, praticamente o dobro do volume habitual, ao mesmo tempo que São Paulo passa-
INFOGRÁFICO ANA PAULA CAMPOS ILUSTRAÇÃO FABIO OTUBO
associados a maiores índices de chuvas do que ventos que partem de áreas sem floresta e chegam à mesma estação. Isso acontece, segundo os pesquisadores, por causa da bomba biótica de umidade, uma teoria proposta pela dupla russa em 2007 para explicar a dinâmica de ventos impulsionada por florestas. Essa ideia completa a descrição feita pelo climatologista José Antonio Marengo, à época pesquisador do Inpe, de como a Amazônia exporta chuvas para regiões mais meridionais da América do Sul. A teoria da bomba biótica aplica uma física não usual à meteorologia e postula que a condensação da água, favorecida pela transpiração da floresta, reduz a pressão atmosférica que suga do mar para a terra as correntes de ar carregadas de água.
Caminhos até a torneira Fontes aéreas, superficiais e subterrâneas se somam para o abastecimento
RIOS VOADORES A floresta amazônica está instalada sobre
3 RECIRCULAÇÃO DO VAPOR D’ÁGUA
uma imensa quantidade de água, o aquífero Alter do Chão. Sua vegetação
2
absorve umidade do subsolo e do oceano
TRANSPIRAÇÃO E CONDENSAÇÃO
1
e a lança na forma de vapor na
EVAPORAÇÃO DO OCEANO
atmosfera, gerando correntes aéreas que exportam chuvas para longe
Aquífero Alter do Chão
AQUÍFEROS DE SÃO PAULO A sobreposição de fontes
4
Aquífero Guarani
FORMAÇÃO DAS CABECEIRAS DOS RIOS DA AMAZÔNIA
subterrâneas no estado é exemplo da complexidade do sistema, usado
Aquífero Bauru
como fonte total ou parcial de água em 75% dos municípios
ANDES
Aquíferos sedimentares n Tubarão n Guarani n Bauru Aquíferos cristalinos n Pré-Cambriano n Serra Geral Aquiclude n Passa Dois
5 RIOS VOADORES: CENTRO-OESTE, SUDESTE, SUL E PAÍSES VIZINHOS
NO CAMPO E NAS CIDADES
A
B
A
A presença de mata nativa é
B
essencial à saúde dos mananciais. O plantio de culturas intensivas e de espécies florestais, como o eucalipto, pode reduzir
Água atmosférica
a recarga dos aquíferos, que é maior em zonas urbanas
Abastecim
ento públic
o
VEGETAÇÃO NATIVA
Irrigação
Recarga Recarga
ZONA RURAL
Aquífero sedimentar Recarga
Recarga
Aquífero cristalino
FONTE RICARDO HIRATA / IGC-USP
Poços públicos e privados
Fraturas com água
GERARD MOSS / PROJETO RIOS VOADORES
va pelo pior momento de uma seca histórica. “A chuva ficou presa em Rondônia, no Acre e na Bolívia por causa de um bloqueio atmosférico, algo como uma bolha de ar que impedia a passagem da umidade. Isso criou uma estabilidade atmosférica, inibiu a formação de chuvas e elevou as temperaturas”, conta Marengo, agora pesquisador do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Ele é coautor de um artigo liderado por Jhan Carlo Espinoza, do Instituto Geofísico do Peru, que está em processo de publicação pela Environmental Research Letters e é parte dos resultados do programa Green Ocean (GO) Amazon, que tem apoio da FAPESP. Não é possível, porém, afirmar o quanto essa relação determina a estiagem paulista. “Ainda não se sabe calcular quanto das chuvas do Sudeste vem da Amazônia nem quanto chega aqui trazido por frentes frias vindas do Sul, pela umidade carregada por brisas marinhas ou pela evaporação local”, diz. Para ele, o desmatamento pode ter um impacto no longo prazo, mas ainda é impossível dizer se ele está relacionado com a seca atual. “O Sudeste pode não virar um deserto”, pondera, “mas os extremos climáticos podem se tornar mais intensos”. Estudos usando modelos climá22 | DEZEMBRO DE 2014
ticos criados pelo grupo de Marengo já previam uma redistribuição do total das chuvas, com um volume muito grande em poucos dias e estiagens mais prolongadas, algo que já tem sido observado no Sudeste e no Sul do país nos últimos 50 anos. Além desse efeito a distância, em escala nacional, a relação entre vegetação e recursos hídricos também se dá numa escala mais local, de acordo com o engenheiro agrônomo Walter de Paula Lima, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador científico do Programa Cooperativo de Monitoramento Ambiental em Microbacias (Promab) do Instituto de Pesquisas e Estudos Florestais. Em seus estudos sobre o efeito das florestas (ou sua remoção) em microbacias hidrográficas, ele mostrou que a mata ciliar, que acompanha os cursos de água, ajuda a manter a boa saúde de pequenos rios. “O sistema Cantareira, que abastece São Paulo, é formado por milhares de microbacias”, conta. “As que estão mais degradadas não contribuem para o manancial.” Essa avaliação, porém, carece de dados experimentais concretos. Segundo Lima, para se saber exatamente o efeito das matas ciliares nos mananciais seria necessário estudar
Rios voadores: correntes de vapor-d’água que se formam sobre a floresta amazônica exportam chuvas para a região Sul do Brasil
uma microbacia experimental em que se possa medir propriedades dos cursos d’água com e sem a proteção de floresta, sem que haja outros fatores envolvidos. Um quadro praticamente inatingível. Uma experiência prática que reforça a importância de se preservar as matas ciliares para a manutenção dos recursos hídricos é relatada pelo biólogo Ricardo Ribeiro Rodrigues, da Esalq, especialista em recuperação de florestas nativas. Ele conta que há 24 anos a água desapareceu da microbacia de Iracemápolis, município no interior paulista. A prefeitura buscou ajuda na Esalq, e o grupo de Rodrigues implementou um projeto de conservação de solo da microbacia e de recupeAs florestas ração da mata ciliar que deveria afetam os estar ali. “Fui lá recentemente e levei um susto”, conta o pesquirecursos hídricos 1 sador. O nível da represa está um pouco mais baixo, mas tem água por meio de suficiente para continuar abassua influência tecendo Iracemápolis, que teve sua população triplicada nesse nas chuvas período. “Toda a região está com problemas de falta de água, mas e na recarga Iracemápolis não.” As florestas afetam a saúde das águas dos recursos hídricos por meio de sua influência nas chuvas, subterrâneas mas também tem importância a sua relação com as águas subterrâneas. O engenheiro Edson Wendland, professor no Departamento de Hidráulica e Saneamento da USP de São Carlos, estuda justamente o que acontece com a recarga do aquífero Guarani quando o cerrado é substituído por culturas como pastagem, cana-de-açúcar, cítricos ou eucalipto. O trabalho tem sido feito na bacia do Ribeirão da Onça, no município de Brotas, interior paulista, estudada desde os anos 1980. Por meio de poços de monitoramento e estações climatológicas, a ideia é detalhar, antes que não sobre mais vegetação original de cerrado por ali, como se dá a recarga do aquífero Guarani sob diferentes regimes de uso do solo. “Não é possível gerenciar o que não se conhece”, diz Wendland sobre uma das fontes de água subterrânea mais importantes do Brasil. O aquífero é uma camada porosa de rochas na qual se infiltra a água das chuvas, depois liberada lentamente para os rios. Essa diferença de tempo entre o abastecimento e a descarga, consequência do trajeto lento da água pelo meio subterrâneo, é o que garante perenidade aos rios, que dependem dessa poupança hídrica. O grupo de Wendland tem mostrado, por exemplo, que a disponibilidade de água diminui quando se substituem as pequenas árvores retorcidas do cerrado, adaptadas a viver sob estresse hídrico, por
eucaliptos, que consomem bastante água e em poucos anos atingem o tamanho de corte. Medições feitas entre 2004 e 2007 mostram que as taxas de recarga têm relação íntima com a intensidade da precipitação e o porte das culturas agrícolas nessa região onde o cerrado está praticamente extinto, de acordo com artigo aceito para publicação nos Anais da Academia Brasileira de Ciências. Isso não significa, porém, que os eucaliptos sejam vilões incondicionais. O impacto de árvores de grande porte depende, em parte, da profundidade do aquífero no ponto em que estão plantadas. Segundo Lima, os mais de 20 anos de monitoramento contínuo feito pelo Promab mostraram que a relação entre espécies florestais e água não é constante. “Onde a disponibilidade é crítica, um elemento novo pode secar as microbacias”, explica. “Mas onde o balanço hídrico e climático é bom, a diminuição de água nem é sentida.” Essas conclusões deixam claro que é necessário fazer um zoneamento de onde se pode plantar e onde a prática seria nociva, um planejamento que não existe no Brasil.
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ara Wendland, a importância de entender a relação entre o cerrado e os aquíferos é crucial porque as nascentes da maioria das grandes bacias hidrográficas do país estão no domínio desse bioma. Além da importância como recurso hídrico, algumas dessas bacias – do Paraná, do Tocantins, do Parnaíba e do São Francisco – são as principais fornecedoras de água para geração de energia elétrica no Brasil. Em pouco mais de meio século, metade da área do cerrado foi desmatada e deu lugar a atividades agrícolas. Para avaliar o efeito dessa alteração no uso do solo sobre a disponibilidade hídrica, o doutorando Paulo Tarso de Oliveira, do grupo de São Carlos, fez um estudo usando dados de sensoriamento remoto em toda a área desse bioma. Com os sensores, é possível avaliar não só a alteração da vegetação, mas também quantificar as precipitações, os índices de evapotranspiração pelas plantas e estimar a variação de armazenamento de água. Segundo artigo publicado em setembro de 2014 na Water Resources Research, os dados indicam uma redução do escoamento por causa de atividades agrícolas mais intensas. O desmatamento e o uso agrícola do solo têm importância, mas Wendland afirma que o maior problema para a recarga do aquífero hoje é a redução nas chuvas. “O aquífero supre a falta de precipitação por dois ou três anos, depois já não consegue manter o escoamento de base nos rios”, diz. Nos últimos anos as precipitações da estação chuvosa foram abaixo da média, o que diz os resultados observados. Explica também, segundo ele, fenômenos alarmantes como o esgotamento da principal nascente do rio São Francisco, que perPESQUISA FAPESP 226 | 23
maneceu seca por cerca de três meses e só voltou a jorrar água no final de novembro. O desafio do gerenciamento das águas subterrâneas, que representam 98% da água doce do planeta, tem outras particularidades em zonas urbanas, onde pode ser um recurso crucial. Segundo o geólogo Ricardo Hirata, do Instituto de Geociências (IGc) da USP, 75% dos municípios paulistas são abastecidos, em parte ou completamente, por essas águas. Isso inclui cidades importantes do estado, com destaque para Ribeirão Preto, onde elas servem a 100% dos mais de 600 mil habitantes. Na escala nacional, outras cidades completamente abastecidas por águas subterrâneas são Juazeiro do Norte, no Ceará, Santarém, no Pará, e Uberaba, em Minas Gerais, de acordo com o livro Águas subterrâneas urbanas no Brasil, em processo de publicação pelo IGc e pelo Centro de Pesquisa em Águas Subterrâneas (Cepas).
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urpreendente nas cidades é que a água perdida pelo abastecimento público vai parar no aquífero. “A impermeabilização do solo diminui a penetração da água da chuva, mas as perdas compensam e superam essa redução e o saldo é uma recarga maior onde há cidades, em comparação com outras áreas”, explica Hirata. “Se analisarmos a água de um poço qualquer em São Paulo, metade será do aquífero e metade da Sabesp.” Ele estima que a capital paulista tenha quase 13 mil poços, todos particulares, muitos ilegais. “Existe uma legislação para gerenciamento desse recurso, mas ela não é seguida”, conta. Um problema causado pelas cidades é a contaminação dos aquíferos por nitrato, devido a vazamentos no sistema de esgotos. Como a descontaminação é cara, os poços afetados acabam abandonados. Nas cidades em que são usados para abastecimento público, a solução é misturar água poluída à de poços limpos para que a qualidade total seja aceitável. “Em Natal não há mais água suficiente para mesclar”, alerta Hirata. O subterrâneo é fonte de 70% da água na capital potiguar. Outro tipo de poluição importante vem da indústria, como a causada pelos solventes organoclorados. O geólogo Reginaldo Bertolo, também do IGc e diretor do Cepas, estuda como esse poluente se comporta no aquífero abaixo de Jurubatuba, na zona Sul paulistana, uma região industrial desde os anos 1950. “É um contaminante de difícil comportamento no aquífero”, conta. Nessa rocha dura, onde a água corre em fraturas, o composto mais denso do que a água se aprofunda e só para quando chega a um estrato impermeável. “São produtos tóxicos e carcinogênicos.” A poluição impede o uso da água subterrânea numa região onde a demanda é forte. Em colaboração com pesquisadores da Universidade de Guelph, no Canadá, o grupo de Bertolo 24 | DEZEMBRO DE 2014
está mapeando esses poluentes para entender como ele se comporta e propor estratégias para eliminá-lo do aquífero. Para isso, o próximo passo é usar um sistema desenvolvido pelos canadenses para retirar amostras da rocha e instalar poços de monitoramento especiais. “O equipamento permite coletar água de mais de 20 fraturas diferentes numa mesma perfuração”, afirma. “Vamos fazer um modelo matemático para reproduzir o que acontece e fazer prognósticos.” Bertolo alerta que é importante mapear melhor as águas subterrâneas e analisar sua qualidade, porque é um recurso que pode ser complementar nas cidades. “A água subterrânea é um recurso pouco conhecido.” A engenheira Monica Porto, da Escola Politécnica da USP, não acredita que seja possível expandir muito o uso dessas águas na Região Metropolitana de São Paulo. Em sua opinião, para ir além dos cerca de 10 metros cúbicos por segundo (m3/s) extraídos dos milhares
No fim de novembro o sistema Cantareira tinha água no reservatório Paiva Castro (direita), enquanto a seca era evidente no Jacareí/Jaguari
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de poços existentes, seriam necessários milhares de novas perfurações. “Mas esses 10 m3/s não podem faltar, precisamos cuidar deles.” Monica, que já foi presidente e ainda integra o conselho consultivo da Associação Brasileira de Recursos Hídricos, pensa em maneiras de assegurar a segurança hídrica para a população. Faltar água está, de fato, entre as coisas mais graves que podem acontecer numa cidade. “Somos obrigados a trabalhar com uma probabilidade de falha muito baixa.” Segundo ela, em 2009 o governo paulista encomendou a uma empresa de consultoria um estudo sobre o que precisaria ser feito para garantir o suprimento de água. O estudo ficou pronto em outubro de 2013, já em meio à mais importante crise hídrica da história do estado. Monica explica que é impossível considerar a Grande São Paulo de forma isolada, porque não há mais de onde tirar água sem disputar com vizinhos. Por isso, o estudo abrange a megametrópole, que engloba mais de 130 municípios e uma população de 30 milhões de pessoas. As obras necessárias à melhoria da segurança hídrica já começaram, com um sistema para recolher água do rio Juquiá, no Vale do Ribeira, que deve ficar pronto em 2018. Está em fase de licenciamento ambiental a construção das barragens de Pedreira e Duas Pontes, que devem abastecer a região de Campinas. “Manaus e Campinas são as únicas cidades do Brasil com mais de um milhão de pessoas que não têm reservatório de água”, conta Monica. Não faz falta a Manaus, às margens do rio Amazonas, mas faz a Campinas, que depende do sistema Cantareira. Ela, que em casa “faz das tripas coração” para economizar
água, afirma que a crise atual é importante para conscientizar a população sobre a necessidade de se reduzir o consumo. Também ressalta a importância do conjunto de medidas que precisará ser revisto em caráter emergencial. “Temos que aprender pela dor”, diz Monica, que costuma brincar que é melhor que não chova muito para não afastar a instrutiva crise. “Mas, se não chover muito em breve, vou parar de brincar: precisa chover.” n
Projetos 1. Entendimento das causas dos vieses que determinam o início da estação chuvosa na Amazônia nos modelos climáticos usando observações do GoAmazon e Chuva (13/50538-7); Pesquisador responsável José Antonio Marengo Orsini (Cemaden); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa – GoAmazon; Investimento R$ 57.960,00 (FAPESP). 2. Estabelecimento do modelo conceitual hidrogeológico e de transporte e destino de compostos organoclorados no aquífero fraturado da região de Jurubatuba, São Paulo (13/10311-3); Pesquisador responsável Reginaldo Antonio Bertolo (IGc-USP); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Investimento R$ 502.715,27 (FAPESP).
Artigos científicos MAKARIEVA, A. M. et al. Why does air passage over forest yield more rain? Examining the coupling between rainfall, pressure and atmospheric moisture content. Journal of Hydrometeorology. v. 15, n. 1, p. 411-26. fev. 2014. MAKARIEVA, A. M. et al. Where do winds come from? A new theory on how water vapor condensation influences atmospheric pressure and dynamics. Atmospheric Chemistry and Physics. v. 13, p. 103956. 25 jan. 2013. ESPINOZA, J. et al. The extreme 2014 flood in South-western Amazon basin: The role of tropical-subtropical South Atlantic SST gradient. Environmental Research Letters. no prelo. WENDLAND, E. et al. Recharge contribution to the Guarani Aquifer System estimated from the water balance method in a representative watershed. Anais da Academia Brasileira de Ciências. no prelo. OLIVEIRA, P. T. S. et al. Trends in water balance components across the Brazilian Cerrado. Water Resources Research. v. 50, n. 9, p. 7100-14. set. 2014.
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entrevista Nestor Goulart Reis Filho
Do prédio à cidade para interpretar a evolução urbana
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plicados à obra densa do elegante arquiteto-sociólogo Nestor Goulart Reis Filho, os adjetivos singular e original não constituem favor algum. O respeitado professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), que aos 83 anos segue encantando novas gerações de estudantes, produz em seu trabalho um diálogo de tal argúcia entre arquitetura e urbanismo que consegue retomá-los como um só e mesmo processo. Mais, ele cria para tanto novas trilhas teóricas que, de quebra, o levam a novas interpretações da evolução urbana, ancoradas em outros processos sociais mais amplos e profundos na qual pode vê-la como uma face ou revelação de tais processos. E, como se ainda fosse pouco, Nestor Goulart também lida com empreendimentos em campos aparentemente tão distantes da arquitetura e do urbanismo quanto o mapeamento exaustivo das áreas históricas de mineração de ouro no Sul do Brasil que, entre outros produtos, rendeu mapas, livro e belos álbuns. A propósito, neste momento ele está empenhado em editar nada menos que 20 álbuns, que espera ver somados aos 30 livros que publicou ao longo de sua trajetória. O primeiro, ele diz, “terminei há uns quatro anos e agora quero complementar. Trata da cartografia da dispersão e fizemos junto com o Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais]”. As áreas densas do Vale do Paraíba, da região de Campinas, de todas as 26 | dezembro DE 2014
grandes regiões do estado de São Paulo foram cartografadas em cima dos levantamentos aéreos feitos pelo Inpe. “É um trabalho gigantesco e quero ver se completo agora.” O segundo tem fotografias aéreas de São Paulo, de 1940 a 1960, que ele comprou há muito tempo. “Veem-se o Jardim da Luz, o Anhangabaú, o aeroporto, o Ibirapuera, o Jóquei Clube e o rio Pinheiros com a represa lá na ponta, dá para ver tudo e a cidade crescendo. É fascinante! Esse está pronto”, conta. O terceiro álbum tem plantas da cidade de São Paulo que permitem a quem o examina “compreender visualmente a cidade de São Paulo, não precisa explicar nada”. Aliás, seu trabalho como professor, Goulart resume, “é sair para a rua e ensinar a ver”. Filho de Nestor Goulart Reis, um médico ligado aos meios intelectuais de Porto Alegre e que, já em São Paulo, dirigiu o serviço de tuberculose do estado, liderando inclusive a construção de hospitais para dar conta de sua tarefa, Nestor Goulart fez o ginásio e o colegial (atualmente parte do ensino fundamental e o médio) no Colégio São Luiz. O irmão Luiz Carlos Fernandes Reis, depois médico e professor da Medicina da USP em Ribeirão Preto, era seu colega. A mãe Ruth Fernandes Reis, dona de casa, era pianista, ex-aluna do Mário de Andrade. Quando o pai foi nomeado diretor do Hospital de Tuberculose Vicentina Aranha, em São José dos Campos, Goulart relembra, tiveram que se mudar e venderam o pia-
léo ramos
Mariluce Moura
idade 83 anos especialidade Arquitetura e urbanismo formação Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (graduação), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (graduação), Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (doutorado) instituição Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP produção científica 42 artigos científicos, 30 livros e 79 trabalhos técnicos
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no. Ela parou de tocar. Adiante, quando os dois irmãos já estavam na faculdade, convenceram o pai a comprar um piano para ela, “que voltou a tocar por puro prazer”. Foi ela, diz o arquiteto, que sempre pressionou os filhos para estudar com organização e método. A entrevista, da qual publicamos a seguir os principais trechos, tomou quase três horas de estimulante diálogo, há alguns meses, na sala do professor Nestor Goulart na FAU e no restaurante da faculdade, com direito a interrupção da gravação, claro, para o almoço. Vamos começar por seu livro mais recente, As minas de ouro e a formação das capitanias do sul. Como foi a experiência de fazê-lo? A Unesco propôs uma forma de pensar o patrimônio cultural que envolve paisagem. Há um conceito de paisagem cultural que começou a ser discutido em decorrência da destruição de certos lugares e de formas de organização de produção: aldeias, terrenos e terraços começaram a ser destruídos no Sudeste Asiático e no Peru, e havia uma preocupação de estender a produção cultural a partir dessa perspectiva. Esta é uma preocupação deste século? Não, vem dos anos 1990. A partir da Segunda Guerra Mundial, o conceito de patrimônio começou a se estender de obras isoladas para conjuntos urbanísticos, para cidades históricas, sempre ampliando e compreendendo o urbano. Para nós, estudiosos da urbanização como processo social, isso é fundamental, porque antes perdíamos as dimensões. Ainda que o Iphan [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional] tenha tombado em 1937 ou 1938, época de sua fundação, algumas cidades históricas de Minas Gerais, como Ouro Preto e outras clássicas, o tombamento era sumário, não havia conhecimento sedimentado sobre isso no Brasil nem no mundo. Depois de 1950, com a remodelação das cidades europeias, começou a haver uma preocupação com partes inteiras de cidades consideradas patrimônio cultural. E no fim do século XX percebeu-se que eram importantes aldeias e cidades históricas que se esvaziaram com a urbanização da população europeia – e os europeus sempre tiverem o maior carinho por áreas que detêm aspectos importantes da história. Iniciou-se 28 | dezembro DE 2014
então a discussão do conceito de paisagem cultural, que o Iphan adota já na passagem do século e começa a aplicar em cidades pequenas, com paisagens bem características, criadas pelos imigrantes italianos, alemães e japoneses, respectivamente, no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e no Vale do Ribeira (SP). A certa altura, Dalmo Vieira, catarinense que dirigia o Departamento do Patrimônio Material do Iphan e que em 1974 havia sido um entusiasmado aluno num curso nosso de restauro de patrimônio cultural, me perguntou se eu poderia estudar a formação dessas paisagens culturais de São Paulo e dos três estados da região Sul. O desafio era grande. Teríamos que trabalhar, por exemplo, a partir dos ciclos econômicos: o primeiro ciclo do açúcar no início da colonização, em São Paulo, o ciclo do ouro, o segundo ciclo do açúcar, o do café etc. Ele perguntou que ciclo de ouro era esse. E aí começou seu interesse pela mineração em São Paulo. Isso. Eu sabia que havia veios de mineração no Jaraguá, na Cantareira, na região do Voturuna, de Santana do Parnaíba para baixo, no Vale do Ribeira, e alguma coisa no sul também, mas conhecia pouco sobre o assunto. Na verdade, essa era uma história completamente esquecida. O Iphan fez um contrato com uma empresa que por sua vez me contratou para fazer o trabalho. Em termos de dinheiro, não ganhei quase nada. De tudo que foi gasto, sobraram R$ 16 mil por dois anos de estudo. A rigor, isso não tinha o menor sentido, porque continuei trabalhando depois no projeto, mas o fato era que tínhamos auxiliares e pudemos custear as despesas sumárias. Começamos em 2009 e editamos o material em 2012, foi rápido – são as técnicas de pesquisa amadurecidas em 60 anos de experiência que nos permitem isso. Eu tinha uma ideia das coisas, mas era preciso uma técnica de trabalho. Sabia que regiões precisavam ser estudadas, conhecia sua história, mas me surpreendi. A região de Paranaguá, na direção da serra e no planalto, e a região em torno de Curitiba eram áreas de mineração. E eu sabia que também em Santa Catarina tinha mineração a partir da cidade de São Francisco do Sul. Comecei a procurar e achei. Essa mineração era concomitante à exploração do ouro em Minas?
Não, era bem anterior. Em 1586 já havia notícias disso. E antes mesmo, por informações que os jesuítas traziam – eles também tinham minas de ouro –, a Coroa portuguesa começou a mandar técnicos para fazer a exploração. O primeiro levantamento foi feito por Brás Cubas junto com um técnico de Portugal. Eles foram na direção de Minas, não acharam nada e na volta resolveram verificar se era verdade o que se dizia sobre a ocorrência de ouro no Jaraguá. Isso ganhou importância por volta de 1590, 1595. Ou seja, é anterior ao movimento das Entradas e Bandeiras. É anterior, mas coincide em parte. Em meu trabalho valorizei o fato de os indígenas conhecerem bem o ambiente. Não haveria Bandeiras sem eles à frente, com os portugueses, às vezes, carregados em redes. Conheciam a natureza, as pedras, e tinham nomes tupis para elas. Quando os portugueses explicavam o que queriam, os índios sabiam que havia o que procuravam no Jaraguá e na Cantareira, mais ao sul, e os levavam até lá. Em 1599, o governador dom Francisco de Souza chegou à Bahia e procurou Gabriel Soares de Souza, cujo irmão tinha entrado no São Francisco e achado ouro, depois de subir o Paraguaçu. Ao tentar fazer o mesmo a pedido do governador, Gabriel morreu. Só os índios conheciam essa passagem do Paraguaçu ao São Francisco. A Coroa portuguesa estava então em mãos da Espanha e dom Francisco viera de Madri com uns contratos que lhe garantiam que se daria bem se achasse ouro. Não o conseguindo no Vale do São Francisco, veio para São Paulo. E aqui determinou que quem achasse o ouro tinha que declará-lo. E ninguém fazia isso. Claro que não. Mas o problema é que a sonegação funcionou até a Guerra dos Emboabas. Já no século XVIII, em Minas Gerais, o objetivo da Coroa era encher o lugar de mineradores e tirar todo o ouro da região o mais depressa possível. Os moradores de São Paulo não estavam habituados a isso. Eles recebiam sesmarias, latifúndios e tinham seus índios armados para não deixar ninguém entrar em suas propriedades. Ao chegarem outros mineradores, foi uma guerra. Em 1604, exigida a declaração, o único
a registrar seus achados foi um sujeito que diziam ser associado a Afonso Sardinha. Declarou na Câmara, e isso ficou registrado em ata, que nos 12 anos anteriores tinham tirado ouro na Cantareira, no Jaraguá, no Voturuna. Mas foi o único. Portanto, a partir daí é oficial a mineração no Brasil. Ao terminar seu mandato, dom Francisco voltou a Madri e convenceu a corte de que devia voltar como governador. Voltou em 1608, permanecendo no cargo até 1611. Em São Paulo, organizou militarmente a população masculina e começaram as Bandeiras – aliás, bandeira era palavra que expressava uma companhia militar em Portugal. Primeiro, recrutou os portugueses e seus descendentes, mamelucos ou não. E esses organizaram os índios, que eram tropa aliada, carregadores e mineradores de fato. Segundo Sergio Buarque de Holanda e outros, os portugueses eram incapazes de se alimentar nas matas. A história das Bandeiras precisa ser recontada. E aí tem que se observar que os chamados paulistas são uma categoria que compreende o povo de muitas vilas. Em 1700, havia de Porto Seguro para cima duas cidades e 18 vilas e, para baixo, duas cidades e 19 vilas. E todo o pessoal dessas vilas abaixo, taubateanos, curitibanos, iguapenses etc., era paulista.
para os engenhos carne salgada, doces, e muito trigo no século XVII. Quando os navios chegavam com os produtos europeus, tinham que ser pagos de alguma forma e o eram em ouro, o que foi constatado por Alice Canabrava, professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade [FEA-USP], que estudou o censo dos anos de 1766 e 1767, o primeiro feito na em São Paulo. Alice mostrou que no auge da exploração de ouro as pessoas mais ricas eram as do comércio, em segundo lugar, os mineradores e, em terceiro, os fazendeiros e pequenos comerciantes. O fato é que a Coroa portuguesa também ganhava de qualquer jeito, nos tributos sobre a mineração e, principalmente, tributando o comércio.
morro com capim, apareceu todo irregular, todo esburacado, incrível. A partir das referências, fomos ao Google Earth procurar as configurações dessas áreas. Enfim, encontramos 190 lugares de mineração. Deixe-me retomar uma informação que ficou perdida: trabalhava-se aqui muito em direção a Santana do Parnaíba, quando veio a notícia de ouro fácil em Paranaguá, depois de 1640. Portugal se separara da Espanha, dom João IV tornara-se rei, precisava cunhar moedas para pagar o exército, indispensável para fazer guerra aos espanhóis. O pessoal de Paranaguá mandou então emissários a Lisboa para informar que tentariam achar ouro se tivessem estímulos. O rei deu os estímulos: paulistas e taubateanos ou curitibanos não precisavam mais dividir as minas com os vizinhos. Aí eles passaram a declarar um pouco do ouro que achavam, com a segurança de que era deles, caso contrário, ficavam quietos. Vamos falar sobre um outro importante trabalho seu, mais antigo, Quadro da arquitetura no Brasil (Perspectiva, 1970). Nele, há uma preocupação em ligar a edificação ao lote e estas duas unidades à questão da escravidão. Depois, o senhor mostra como essas articulações são refeitas na medida da transformação socioeconômica no país pós-escravidão. Logo que me formei, constatei que havia pouca base teórica entre os arquitetos. Então resolvi estudar ciências sociais, e fui aluno de Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Egon Schaden. Tenho dupla formação porque queria aperfeiçoar meu trabalho de pesquisa em história da arquitetura e do urbanismo. E uma segunda característica de meu trabalho é que tomo o estudo da arquitetura e do urbanismo como um processo só.
A história das Bandeiras precisa ser recontada. “Paulistas” nomeava o povo de muitas vilas
Seu livro mapeia os lugares de lavra no município de São Paulo até que ano? Essa atividade se estendeu muito no tempo. Em 1930, 1940, havia mineração em Santo Amaro, onde tinham existido as minas do Morro do Ouro e Estrada do Ouro, e em Embu-Guaçu teve mineração até recentemente. Houve mineração mais intensa no sul até a descoberta das Minas Gerais, em dois ciclos muito claros: primeiro na Cantareira, Jaraguá, Voturuna e, depois, quando declaram a descoberta em Paranaguá. Mas mesmo declarando sonegava-se tudo que podia, declaravam-se uns 5% dos achados. E para onde ia esse ouro? O povo dessa região não tinha mercadorias exportáveis para a Europa. Vendia
Como o senhor descobriu onde estavam as minas? Uma das soluções que utilizei foi a da cartografia histórica, que está repleta de informações. Trabalhava-se inicialmente com bateia, mas, depois, quando toda essa gente foi para Minas, levou o processo de retirar o minério do fundo dos rios. Mineravam um trecho, largavam, iam para o seguinte. Eram muitos rios e não precisavam fazer buracos. Seria difícil para os indígenas fazer escavações. Depois começaram a usar a mão de obra africana. Voltando a nossas técnicas de trabalho, fomos inventando. Houve um momento em que peguei um cartão-postal de Ouro Preto e joguei uma luz de LED na horizontal. O que parecia apenas um
Assim, ao falar de edificação e lote, o senhor fazia, na prática, essa ligação. Sim. No desenvolvimento de meu trabalho teórico muito cedo compreendi que a análise da cidade é estática e não dá conta da dinâmica da urbanização no século XX, do mesmo modo que os conceitos europeus PESQUISA FAPESP 226 | 29
de cidade que existiam quando fiz minha tese, em 1964 e 1965, não davam conta da situação brasileira. Se os aplicássemos ao pé da letra, não haveria cidades no Brasil. Quando comecei a tese, achava que os estudos de urbanização como processo social estavam sendo feitos pelo mundo afora, mas não era assim e nessa linha conheci somente o trabalho de meu colega Jorge Hardoy, da Argentina. Na época, eu pesquisava muitos autores americanos que estudavam urbanização, mas todos a abordavam num sentido demográfico. Só um dessa brilhante equipe dos anos 1950 estudava urbanização ligada ao processo social, Eric Lampard. Ele não tinha, no entanto, uma visão histórica clara. Quem nos dá essa visão histórica, ou melhor, arqueológica, é o australiano Gordon Childe, um dos maiores arqueólogos dos anos 1940 e 1950, de formação marxista, que em seu famoso artigo “A revolução urbana” estudou como a urbanização mudou a história da humanidade. Há pouco tempo compreendi a razão prática pela qual os europeus tiveram dificuldade em entender a dispersão urbana, um fenômeno atual, ultramoderno, do qual só agora estão se dando conta. É que para eles a cidade era um fato assentado, historicamente definido. Ao passo que nós – brasileiros, norte-americanos, hispano-americanos, australianos – abrimos a janela e vemos a urbanização em processo.
como conjunto. É preciso relacionar a parte com o todo e o todo com a parte. Isso nos dá uma visão muito mais viva e vibrante de nosso processo histórico. Eu estou tendo que rever tudo isso. Começamos a trabalhar com material empírico, porque lemos o urbanismo através da arquitetura, que são evidências materiais, são provas vivas do processo histórico. Na verdade, o senhor teve de criar uma trilha teórica. Tive. Em Quadro da arquitetura no Brasil, eu usava ainda um conceito de lote urbano, era a implantação da arquitetura urbana, uma expressão do Luís Saia, que foi muitos anos diretor do Iphan de
também seu relato sobre a mudança dessa matriz no século XIX. Esse foi o seu trabalho inicial de pesquisa? Eu estava começando. Primeiro, publiquei artigos em O Estado de S.Paulo, em 1962, 63 e 64, depois publiquei o livro. Antes, por alguns anos, tinha feito uma pesquisa sobre as casas do litoral norte de São Paulo, a pedido do diretor da FAU. Jânio Quadros [1955-59] era governador e queria preservar a arquitetura de Ilhabela, São Sebastião, Ubatuba etc. A FAPESP foi criada, em 1962, e aí consegui estagiários que levantaram tudo que era possível. Acampavam por lá, adoravam o trabalho. Ali eu já estava convivendo com essas questões da arquitetura rural e urbana e começando a perceber as continuidades e os contrastes, sem o que a coisa fica confusa. Não podemos partir de conceitos fechados. Quando estudamos a arquitetura e a urbanização como processos, temos que tentar ver a presença da diversidade humana em cada momento. É aí que vamos poder entender como, no esquema tradicional europeu que herdamos, o lote urbano, a forma de dividir a propriedade, define a forma de fazer arquitetura. Por isso é que no século XVIII, quando há um pouco mais de recursos e aumento da população, os ricos vão construir e morar em chácaras fora da cidade. Os sobrados urbanos eram mais para trabalho.
Diferentemente da Europa, aqui abrimos a janela e vemos a urbanização em processo
Vemos a cidade se transformando todos os dias. Se construindo, se transformando cotidianamente e sendo transformada. Porque cada geração vem e elas não crescem homogeneamente. São transformadas permanentemente. Não há nada que seja estabelecido. Compreende-se, inclusive, por que Gordon Childe usava conceitos marxistas. A urbanização é uma forma de transformação permanente. Esse é o conceito que não havia no Brasil e que trabalhamos desde o início. Hoje existem jovens pesquisadores, de 25 a 40 anos, trabalhando na mesma linha, estudando a história da urbanização no Ceará, em Pernambuco, em Alagoas, no Vale do São Francisco. Porque isso só pode ser visto 30 | dezembro DE 2014
São Paulo. A ideia é que a arquitetura rural ou urbana é implantada, tem relação com o meio. Frank Loyd Wright, nos Estados Unidos, sempre dizia que a arquitetura tem que estar relacionada com o local onde está e com os outros objetos. Só que eles mudam, o processo é extremamente dinâmico, e isso nos dá um instrumento de pesquisa extraordinário para rever a história. Em Quadros da arquitetura no Brasil me impressiona com que clareza o senhor demonstra as semelhanças, ao longo dos séculos XVI-XIX, das plantas das moradas dos ricos e dos mais pobres e liga isso à escassa capacidade técnica da mão de obra disponível, escrava. É interessante
Para deixar mais claro para o leitor: naquela primeira ocupação do solo urbano, o lote era inteiramente tomado pela construção. Na frente e nos lados do lote, sim, porque ajudava a estabilizar a construção. Mas deixava-se o espaço do fundo, porque era preciso ter luz, local para criação de animais e ter a privada – não existia banheiro. Tinha uma fossa negra, um poço que era só para o esgoto da casa. E depois, em geral, tinha a parte de serviço, onde ficavam a cozinha e as escravas preparando a comida. A chácara cria então outra possibilidade de ocupação do terreno, não? Passa-se a ter espaço dos lados, atrás
e na frente da construção e muito mais adiante se importa da Europa a noção de jardim urbano... Sim, no fim do século XIX, início do século XX, começam duas mudanças. Primeiro, entre os ricos, a chácara se torna palacete, tem início uma arquitetura formal. Os nossos mestres do Iphan focalizavam arquitetura colonial barroca e arquitetura moderna. Esses eram pontos de interesse, sobretudo com a liderança do Lúcio Costa. Nós, a partir da criação de um centrinho de estudos na FAU, em 1948, saímos fotografando arquitetura, mas não parávamos na que foi feita no século XVIII, fotografávamos a do século XIX e começo do século XX até o modernismo e tentávamos entender o que era isso. Não que quiséssemos copiar essa arquitetura, ela não era modelo para nós. Mas era uma lição. Não adotamos o método de termos duas verdades arquitetônicas interrompidas por um período de ignorância. Tratamos de estudar arquitetura ao longo de todo o processo histórico.
casinhas dos italianos, aquilo era o Bixiga. Eu quebrava a cabeça, mas por aí não conseguia nada. Partia do neoclássico do Rio no Império muito bom, bem feito, Grandjean de Montigny e os discípulos dele, a reitoria na Praia Vermelha, o antigo hospício, a Santa Casa, belíssimos edifícios. Apesar do preconceito contra aquela arquitetura, havia projetos muito bem feitos. Aqui em São Paulo e em outros lugares, no fim do XIX, a arquitetura era tudo isso. Examinando as fotos, eu me perguntava: qual é a diferença? E então percebi que era a relação urbanística, a implantação da casa em relação ao espaço externo. E via a casa em que morou a minha avó. Seu sonho e o da minha bisavó, que viveu muito tempo, era, dizia minha mãe, morar numa casa com varanda de ferro ao lado
meçavam com os pobres, mas atingiam os ricos. Isso tudo tem muito a ver com os conceitos sanitários do fim do século XIX e começo do XX e a noção, a partir de Pasteur, de que as doenças não eram transmitidas pelo ar e que precisávamos abrir e arejar as casas. Mas aí, em seu trabalho... Mas aí precisava construir uma teoria sobre essas questões e esses artigos em Quadros da arquitetura no Brasil mostram isso no contexto da cidade. Aí vai se chegar ao extremo, ao esquema do edifício isolado no meio do jardim. Aquilo não era aleatório, era uma última etapa de um certo processo. Se você pegar minha tese de cátedra, verá uma etapa posterior de uma geração dos anos 1950, um grupo de jovens arquitetos que deviam organizar o 10º Congresso Mundial de Arquitetura Moderna. Eles começam a reestruturar de outro modo o espaço urbano, ou seja, montam um outro tecido urbano em que interagem automóveis, ruas, passarelas elevadas ligando um prédio ao outro, coisa que hoje existe muito. Temos esses conjuntos complexos em São Paulo, em que no mesmo lote grande se tem a parte residencial, a parte de escritórios, a de serviços. Os empreendimentos hoje, às vezes, integram outras coisas que antes não existiam.
A diferença no fim do século XIX foi a relação urbanística, a implantação da casa em relação ao terreno
E aí uma descoberta funda mental de seu grupo foi como se dá essa transição. Eu não sabia como resolver isso. Era um assistente, tinha que dar aula na rua para os alunos, ao lado da rua Maranhão. Nas ruas Major Sertório, Marquês de Itu, havia ainda muitas casas, a partir da praça da República, do fim do século XIX e começo do XX. Como dar aula sobre isso? Eu ia para a rua e fotografava tudo, ia a Santos e ao Rio de Janeiro e saía fotografando tudo. Depois, pegava mesas grandes e punha as fotos uma ao lado das outras, porque a tendência dos arquitetos era estudar as fachadas e os elementos decorativos. Acontece que, em São Paulo, houve a imigração italiana, no fim do século XIX, e com ela vieram os estucadores que fabricavam os elementos de decoração em gesso em sua loja e punham na porta para vender. Lembro que em minha infância passávamos na rua Santo Amaro e minha mãe mostrava um monte de moldes que as pessoas compravam e colocavam nas casas. Ou seja, aquilo não queria dizer nada como arquitetura. Perto da Brigadeiro Luís Antônio havia as
para, à tarde, sentarem ali cerzindo meias e fazendo crochê. Fui olhando como isso surgiu. No Bixiga, um espaço mais pobre, o espaço lateral era muito pequeno. Mas aí entram as questões técnicas. O modelo europeu que nos veio de casas encostadas umas às outras e frente na rua só desaparece quando a tecnologia permite resolver os problemas, com a água principalmente. Sem tecnologia nova não era possível resolver isso. Então se tem a questão do telhado, como cai a água, como se capta com as calhas, os condutores, as manilhas para tirar água e levar para fora. A cidade também passa a ter um sistema de águas pluviais e de esgoto e água para abastecimento. Isso começou na Inglaterra, por volta de 1840, no auge das pestes que co-
Fora daquela visão que dizia que a função residencial está num lugar e a do trabalho está em outro. Isso, e que isolava um edifício do outro. O que aconteceu em São Paulo? Quando isolaram todos os edifícios, a partir de 1940, e três pegaram fogo, foi um desastre monumental. No Andraus, na avenida São João, e no Joelma, na avenida 9 de Julho, as pessoas se atiravam, não tinham como sair do prédio. Nunca tinham pensado nisso porque diziam que o concreto não ia pegar fogo, mas os prédios incendiaram. Aí começaram a fazer passarelas, volta-se ao conceito de ter ruas que ligam os prédios entre si num outro nível, que permita às pessoas escapar numa situação de emergência. Isso mostra uma evolução, os arquitetos PESQUISA FAPESP 226 | 31
atibaia Jundiaí
francisco morato
cabreÚva
franco da rocha
cajamar pirapora do Rio Jaguari-Mirim bom jesus Rio Jaguari
Morro do Voturuna
são roque
Ribeirão das Lavras Rio Juqueri
Morros dos Macacos
caieiras
Serra do Bananal
perus Serra da Cantareira
Morro do Itacolomi
santana do parnaíba
mairiporã
barueri
guarulhos
Rio Tietê
Osasco
Penha
são paulo
cotia Rio Grande
Santo Amaro
são bernardo do campo
itapecerica da serra
Parelheiros
itanhaém
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são vicente
nazaré paulista
Ribeirão Itaberaba
Ribeirão das Lavras
Rib. Tomé Gonçalves
santa isabel
guararema itaquaquecetuba
Itaquera
Guaianazes
poá suzano
Serra do Itapeti
sabaúna
mogi das cruzes jundiapeba
salesópolis
biritiba-mirim
Morro do Colégio S. JOAO DAS PALMEIRAS
taiaçupeba
ribeirão pires santos
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Áreas de antigas atividades de mineração de ouro
Aldeiamentos indígenas, morros e ribeirões relacionados às áreas de mineração
Fonte as minas de ouro e a formação das capitanias do sul
PESQUISA FAPESP 226 | 33
pensando e repensando todas as relações de espaços. Quando pensou no claro entre a arquitetura colonial brasileira e a moderna para criar essas novas sendas teóricas, o senhor se valeu mais da sua formação de sociólogo ou de arquiteto? Não sei separar as duas coisas. Beatriz Bueno, colega da FAU e parceira de pesquisa, dizia que nunca me viu frequentar arquivo histórico para ler documento, sempre me viu frequentar arquivos para pegar plantas de cidades, levantamentos feitos no passado para documentar a história e sair para a rua. É uma expressão que usei outro dia num depoimento a colegas mais jovens. Em fins de 1969, da janela do nosso departamento na FAU, eu olhava o espigão da rua Cerro Corá e só havia mato. Hoje essa área está toda edificada. Na outra margem do Pinheiros, a partir do Alto de Pinheiros, só via mato. Então eu vejo a cidade se mexendo da minha janela. E preciso explicar isso, o trabalho teórico, mais que o histórico – que é o suporte do teórico –, é para explicar o que está se passando e ajudar a pensar o presente. As pessoas acham que estou voltado para o estudo do passado, mas estou o tempo todo estudando o passado para construir a teoria e entender o futuro, não só o presente. O que devemos fazer? Para onde vamos? Eu lhe diria que todas as políticas habitacionais do Brasil estão absolutamente erradas.
estão vivendo isso dolorosamente. O problema habitacional tem de ser visto do ponto de vista social e não pode haver a ilusão de que vamos resolvê-lo diretamente, mas indiretamente com qualidade da educação, saúde pública, melhoria da condição, melhoria da renda. Aí as pessoas alcançam um outro status e começam a resolver sozinhas os seus problemas. Em seu primeiro livro fica muito nítido o processo de formação da favela de 1940 a 1960, desenrolando-se a par da industrialização intensa a relação com o capital, as migrações internas etc. E antes já ficara claro o processo de construção das casas de operários nos anos 1920 e 1930.
para resolver o problema ele se torna mais simples. Voltemos à arquitetura desprezada por outros estudiosos e que ajudou em suas construções teóricas. O que o senhor diria que são seus elementos centrais? Muda a implantação da arquitetura. Isso vale para o fim do século XIX, primeira metade do XX e até depois, porque nas áreas centrais os prédios ainda eram todos geminados. Aqui em São Paulo, em 1954 e 55, nosso professor e fundador, Luiz Inácio de Anhaia Melo, conseguiu que a Câmara de São Paulo aprovasse a lei dos recuos laterais e frontais dos prédios, que começaram a ser construídos como as casas, isolados no meio do terreno. Isso deu outro aspecto a bairros como Higienópolis, nossos bairros mais densos têm espaços verdes. Se você desce a rua Haddock Lobo ou sobe a rua Bela Cintra, vê que os prédios mais antigos estão nas esquinas, porque, como não havia recuo, o empreendedor só queria construir na esquina para poder abrir janela e aproveitar o máximo do terreno. Eram todos no limite. Não tinham garagem, ou quase não tinham, e as janelas davam para a rua.
O trabalho teórico é para explicar o que está se passando e ajudar a pensar o presente
O que elas desconhecem? Não quero entrar nesse detalhe porque vamos nos perder. Mas, para lhe dar um exemplo, as pessoas pensam que, se arrumarem dinheiro para comprar terreno e casa para todos os favelados de São Paulo, o problema estará resolvido. Não estará, porque quando começar a circular a notícia todos os favelados, de todas as cidades brasileiras, virão para cá. O problema não é municipal, mas nacional. Pior: é continental. Há muito pouco tempo, começaram a chegar paraguaios, bolivianos e peruanosJ á estão chegando os haitianos. Os europeus 34 | dezembro DE 2014
Quando eu era estudante na FAU, havia quatro favelas importantes em São Paulo. Na minha infância e juventude, havia casa de periferia, num processo penoso de autoconstrução, mas praticamente não havia favela, mais presente no Rio de Janeiro. Tinha Heliópolis e uma na Vila Mariana, que foi removida, era na área dos Klabin, e mais duas. Quando comecei minha carreira como professor, devia haver 4 ou 5 mil favelados em São Paulo. Era o início e sempre a ideia de que se fossem tomadas algumas medidas aquilo estava resolvido. E não era assim, o problema habitacional está ligado a todo o funcionamento da sociedade, precisa ser visto em outra escala. Claro que se a população for mobilizada
Mas o senhor observa também nessa fase uma absorção de elementos decorativos e construtivos com influência da imigração europeia para o Brasil. Sim, em 1920, 1930. Depois veio o concreto armado, entra em cena o modernismo e de 1930 em diante essa coisa ganha força. Ganhamos autonomia de projeto, e os arquitetos começam a ganhar importância na definição dos rumos da arquitetura brasileira. Antes disso, os calculistas, os construtores, eram europeus, dependíamos muito deles. Como foi fazer ciências sociais na USP, em 1959, ao mesmo tempo que dava aula na FAU? Eu comecei no diurno, mas o Anhaia Melo voltou a ser diretor na FAU e ele, um homem meio difícil, reclamava porque eu era o único professor em tempo integral. Ele ia dizer que, em vez de tra-
balhar, eu estava estudando, então pedi transferência para o noturno. Fiz um ano e pouco de noturno. Ele se aposentou, entrou como diretor Lourival Gomes Machado, que tinha sido meu professor de história da arte na faculdade, e voltei para o diurno. Me formei com minha turma original. E sua família, como reagiu à sua decisão de cursar ciências sociais? Primeiro, teve alguma resistência. Meu pai perguntou por que eu iria exercer outra profissão se já tinha uma. Arlete Pacheco, afilhada de minha mãe, que tinha feito pedagogia na Faculdade de Filosofia, me disse: “Você faz muito bem!”. Eu disse que estava inseguro e ela me apresentou um professor novo da Faculdade de Filosofia, muito simpático, que ela dizia se chamar Fernando Henrique Cardoso. Ele sugeriu que eu assistisse a umas aulas. Fui e gostei, aí me preparei para o vestibular. Nessa época, morava na rua Itambé, vizinha da FAU. Bastava virar o quarteirão e estava na rua Maria Antônia, onde era dado o curso de ciências sociais. Logo no começo entrei em uma aula de Antropologia Cultural, com Gioconda Mussolini, sobre a teoria científica da cultura. Ouvi aquilo e pensei: “É isso”. Quando vi a sistemática da teoria da Antropologia, percebi que precisava de algo assim, uma sistematização e uma abordagem. Quase optei pela Antropologia.
e, portanto, tinha que sair da condição de professor e diretor. Discutimos qual seria o futuro da FAU, porque estávamos sempre sendo dirigidos por engenheiros civis. Desejávamos autonomia e um diretor da própria escola. Como fazer isso? Estudamos o estatuto e descobrimos que o catedrático que vinha nos dirigir não precisava ser da Escola Politécnica. Fomos conversar com Lourival Gomes Machado, nosso ex-professor, catedrático de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, onde eu já estava estudando. Contei os problemas, falei que não havia departamentos, nem recrutamento de jovens, pesquisa, publicações etc. E ele aceitou ser candidato, com o apoio de muita gente desde o palácio do governo, como Hélio Bicudo, que era promotor
Montei os cursos que nunca tinham existido no Brasil, do contemporâneo e do urbano
Quais eram as disciplinas que o senhor ensinava na FAU? Eu era assistente do Eduardo Kneese de Melo, um homem maduro, na cátedra de Arquitetura no Brasil. Era a disciplina que nos aproximava do Iphan e que foi criada no Congresso Pan-americano de Arquitetos, em 1922, quando houve uma recomendação para o estudo da arquitetura colonial em todos os países da América Latina e nos Estados Unidos. Formei-me em 15 de dezembro de 1956 e em 4 de janeiro me chamaram para assistente. Tinha 25 anos. Em 1961, 1962, sabíamos que o professor Anhaia Melo ia entrar na compulsória pelos 70 anos
público e chefe da Casa Civil. A universidade não era autônoma e o governador nomeava os diretores. Lourival foi nomeado por Carvalho Pinto e aí começou a reforma da FAU. O que ela trouxe de significativo? Um dos dados é que o curso de História da Arquitetura parava no início do Renascimento e Lourival cria a cátedra de Arquitetura Contemporânea, define que o catedrático poderia ser fulano ou beltrano, mas que eu seria o professor. Defendi que fosse incluída na disciplina a História da Urbanização, seguindo a nomenclatura do curso do Rio de Janeiro, que nesse tempo era na Escola de Belas Artes. Na pós-graduação em urbanismo
tinham uma disciplina que se chamava Evolução Urbana, que é o estudo da evolução numa cidade só. Pedi então que colocassem um hífen naquela que eu ia ensinar e a nova disciplina ficou: História da Arquitetura Contemporânea – Evolução Urbana. Aí montei os cursos que nunca tinham existido no Brasil, do contemporâneo e do urbano. O senhor era um pioneiro. Não posso dizer isso, mas era um teimoso fazendo essas coisas. Sofreu perseguição com o golpe de 1964? Não, embora estivesse numa situação delicada. Meu irmão foi perseguido, um primo foi preso, tive problemas difíceis na família e todos sabiam de qual lado eu estava. Mas eu era só um professor. Consegui levar gente inovadora para trabalhar comigo e funcionou. Em 1968 começamos a desdobrar a disciplina, porque houve a implantação do modelo americano, com departamentos etc. A história da arquitetura contemporânea foi subdividida entre vários professores, evolução urbana também foi, passou a ser história da urbanização e do urbanismo. Aumentou o número de colegas trabalhando, gente que tinha passado anos fazendo seminários conosco. Já tinham formação nessa linha. Sim. Eu tinha trazido três ou quatro estudantes de ciências sociais para trabalhar com pesquisa e eles antes já ajudavam a organizar os textos dos seminários com os arquitetos. Sabiam, portanto, como pensavam. Beatriz Bueno, que no primeiro ano do Departamento de História começou a trabalhar e a estudar na FAU, fez todas as disciplinas do nosso departamento. Esse pessoal de ciências sociais trouxe uma contribuição muito importante à FAU. Quais foram suas principais preocupações quando dirigiu a FAU, de 1972 a 1976? A FAU tinha o mais baixo orçamento da USP, isso dá uma ideia de sua fragilidade política, daí lutei para conquistar PESQUISA FAPESP 226 | 35
recursos. A FAU tinha perdido muitos docentes, tínhamos poucos assistentes. Eram, digamos, 120 professores e ficamos com 70. Com a perseguição política iniciada em 1964, saiu muita gente, de desgosto ou por perseguição mesmo. Aí me empenhei para contratar gente nova, ex-alunos qualificados. Montamos a pós-graduação, criamos cursos de especialização em pós-graduação, criamos núcleos de pesquisa. Vou dar um exemplo que deu certo: paisagismo. Pedi à professora Miranda Magnolli, que era colega de turma, que pensasse na hipótese de criação de um grupo grande. Ela era professora de paisagismo sozinha. Precisava trazer gente nova, chamar alunos, traduzir textos de inglês para o português, formar esse pessoal, montar um curso de especialização para depois montar a pós-graduação. Fizemos o curso de restauro, trouxemos gente de Portugal e da França para dar a parte de construção civil. Começamos a consolidar o processo da pesquisa na FAU e da pós-graduação.
Quando começou sua relação com o Iphan? Desde estudante, frequentava o Iphan de São Paulo e como Luís Saia não era professor da FAU e queria ser, ficou enciumado, ficamos um tempo mal. Quando foi fundado o Condephaat [Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico], não havia representante da FAU, mas sim do Departamento de História da FFLCH, o professor Eurípedes Simões de Paula. Ele era um homem ético e disse que eu era o único na USP que entendia dessa parte. Então fui representar a USP no Condephaat. Trabalhamos, o Saia e eu, muito cordialmente na montagem do novo órgão. Depois de um certo tempo, passei a ser presidente do Condephaat, no
Lelé era o maior arquiteto brasileiro, um homem extraordinário, de grande simplicidade
O senhor continuou fazendo suas pesquisas? Não dava. Eu tinha outras atividades correlatas. No segundo ano, Miguel Alves Pereira, um colega que faleceu há pouco tempo, era diretor da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Brasília e estava no Ministério da Educação. Tinham criado uma nova escola – eram 23 cursos de arquitetura no país, hoje são 300 – e estávamos preocupados com qualidade. Então ele chamou os 23 diretores e criamos a Associação Brasileira de Escolas de Arquitetura e fui eleito presidente. Foi criada uma comissão de visitação e de inspeção nas escolas e conseguimos melhorar as condições dessas escolas no Brasil. A FAU assumiu uma posição de liderança, porque eu tinha criado o laboratório de artes gráficas, o LPG, de programação gráfica. Consegui importar uma impressora Heidelberg, além de trazer a primeira fotocompositora da IBM, fazíamos composição eletrônica naquilo. Era o que havia de mais moderno e até hoje é o núcleo gráfico mais avançado da USP. 36 | dezembro DE 2014
tempo do Paulo Egydio como governador [1975-1979]. Saí da presidência e nunca mais voltei ao Condephaat. Saí da diretoria da FAU, aceitei a vice-presidência da Emurb [Empresa Municipal de Urbanização] e fui trabalhar com urbanismo na prática por cinco anos. Porque eu sou preocupado e o foco é o problema contemporâneo. A teoria é para isso. Sempre mantive o interesse, porque continuei escrevendo, publicando. Quais eram suas relações com os arquitetos como Oscar Niemeyer e Lúcio Costa? Não tinha contato. Certa vez fui visitar Lúcio Costa no Rio. Ele era um homem muito fechado, nasceu na França e foi
educado lá e na Inglaterra. Ele sentava na pontinha da cadeira, muito durinho e formal, com a mão no joelho. No fim de 15 minutos, você achava que tinha de levantar e ir embora. Ele não era cordial, pelo menos com quem conhecia pouco. Mais adiante, uma colega baiana, Maria José Feitosa, muito mais informal, tocou a campainha do prédio em que ele morava, pediu licença e subiu, conversou com ele, ficou amiga. Ela me disse um dia que ele acompanhava muito meus trabalhos, que lia todos. Se eu soubesse, o teria visitado outras vezes. Niemeyer, eu vi duas vezes rapidamente. Nunca tive camaradagem. Eu não era do Partido Comunista, portanto não tinha convivência com o grupo dele. E o João Filgueiras, o Lelé, que morreu em 2014? Eu diria que ele era o maior arquiteto brasileiro, um homem extraordinário, de uma simplicidade de trato impressionante. Um indivíduo maravilhoso. Certa vez, ele veio dar um curso aqui e quis falar comigo. Fomos ao bar da FAU. Eu estava cansado e achei que os outros é que o tinham forçado para ele se encontrar comigo. E aí cismei: por que ele tinha vindo falar comigo? Acho que ele queria que eu escrevesse um livro sobre sua obra. Quando pensei nisso, fiquei tristíssimo, porque eu gostaria muito de ter escrito. Eu sou racionalista, discordo das bobagens de Corbusier, mas a minha formação é de organizar as coisas pela razão, o que envolve compreensão das emoções, das relações sociais na sua totalidade. Essa ideia de que racionalização implica mecanização das relações humanas é uma bobagem. Mas, na arquitetura, pela minha formação política, sou muito severo. Gosto muito dos modernistas mexicanos e dos nossos primeiros modernistas que, em países pobres como os nossos, com economia de meios, procuravam uma racionalização total dos recursos, procuravam pensar nas coisas para não fazer bobagens. Não queriam nada de exibição, de pomposidade, de supérfluo. E, ao longo do desenvolvimento do movimento moderno, a arquitetura
passou a ser o jogo de formas de gente que tinha o discurso de esquerda, mas na verdade era gente rica. Isso aconteceu pelo mundo afora com frequência. A dimensão social que os alemães, italianos e ingleses propuseram no fim do século XIX perdeu-se no caminho, como muita coisa naquele tempo. O senhor está falando inclusive da Bauhaus? Bauhaus e de uma coisa que se chama Nova Objetividade, que era um movimento muito radical de fazer uma arquitetura muito austera. Os primeiros modernistas mexicanos, depois da revolução, trabalhavam assim e diziam que não iam fazer estética, que isso era bobagem. Isso é um absurdo, porque um bom arquiteto, quando vai trabalhar com as coisas essenciais, elabora esteticamente. E a arquitetura deles era esteticamente maravilhosa. Um indivíduo chamado Juan O’Gorman era o líder disso. Depois, como ele era ligado ao Rivera, se ligou ao Trotsky e foi hostilizado pelos comunistas mexicanos, ficou meio marginalizado. Tive um colaborador, que foi meu assistente, o Rodrigo Lefèvre, amicíssimo do Sérgio Ferro e do Flavio Império, que era uma pessoa extraordinária, eles fizeram uma arquitetura na época da ditadura com essa austeridade e simplicidade, que eu não gosto de chamar de seca, porque dá a impressão de que não tinha qualidade estética, e tinha muita. Era limpa, nada de supérfluo. E Lina Bo Bardi fazia, sim, uma arquitetura moderna, mas com um bom gosto danado. E Lelé fazia isso. É o que se chama de arquitetura construtiva. Ele projeta em cima da construção e a forma decorre da clareza, da ordem do projeto. De toda sua produção intelectual, qual é a linha de pesquisa que o senhor considera central e estruturante do seu trabalho? A elaboração do trabalho teórico para fundamentar os estudos, tanto na Antiguidade quanto no presente. E o da Antiguidade serve para pensar o presente e a ação futura. Para mim, essa é a preocupação. Por isso quero falar sobre os projetos novos. Terminei agora um projeto com o CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] de completar o levantamento da cartografia brasileira. Fiz o levantamento
de toda a cartografia colonial. Acham que eu só me interesso pelo colonial, mas o projeto pegava o século XIX e o XX. Já levantei o XIX. Tenho um álbum sobre a cartografia e a iconografia das cidades brasileiras no século XIX, que vai ser a sequência daquele. Pego o começo do século XX até 1930 mais ou menos. Nosso grupo levantou no Instituto Geológico toda essa cartografia feita pela Comissão Geográfica e Geológica no final do século XIX e fotografamos tudo. Vemos, com o crescimento do café, o crescimento do estado de São Paulo. Nessa época, Minas fez alguma coisa parecida, o Rio Grande do Sul também, mas não muito mais. Em 1937, o IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] mandou fazer um levantamento, encontramos poucos em vários estados e reproduzimos. No Rio levantamos tudo, sobretudo nas bibliotecas, no arquivo histórico do Exército, no Serviço Geográfico do Exército. Depois, em 1974 e 1975, os americanos sobrevoaram o país e compuseram uma nova edição cartográfica do Brasil inteiro. Temos as plantas das cidades brasileiras mais ou menos do começo do século XX até o início dos anos 1970. E hoje trabalhamos com o Google Earth. Temos então a visão de que as cidades brasileiras eram muito pequenas no início do século XX, enquanto o Brasil era predominantemente rural. Depois de 1950 e 1960 há um crescimento de determinadas cidades, numa escala aceleradíssima, e esse é um dos artigos que estou fazendo. Isso traz o conceito de dispersão urbana? Não, isso não é um espraiamento. Primeiro cresce a população, depois ela se concentra em determinadas cidades. Em 1940, tínhamos 42 milhões de habitantes, dos quais aproximadamente 13 milhões eram urbanos e 29 milhões rurais. A população rural foi crescendo até mais ou menos 1970 e chegou a 39 milhões. Hoje voltou para os 29 milhões. E tudo que o Brasil cresceu até os 201 milhões no ano passado é urbano. Esse urbano não se distribuiu de modo homogêneo. Nos anos 1950, 1960 e 1970 se formaram nove regiões metropolitanas, além de Brasília. De lá para cá, a população se concentra em cidades como Ribeirão Preto ou Fortaleza, em porcentagem elevada. E nas cidades médias, de 200 mil habitantes para cima, que o IBGE
chama de aglomerações urbanas não metropolitanas até 1 milhão, também. E os polos isolados, como Manaus e Uberlândia, que não têm periferias de cidades ao redor, embora Uberlândia tenha 500 mil habitantes. E elas são atendidas pelo mercado, comércio e serviços, os cursos de inglês são iguais, há redes de faculdades e indústria. Pelas minhas contas, 63% da população brasileira mora nessas áreas. Isso é o que eu estou querendo publicar agora. Ou seja, há cerca de 60% da população brasileira em poucas localidades. Mais de 60% da população está em 200 locais do país. Como há cerca de 30 milhões na área rural, as cidades de até 20 mil habitantes dão 10 milhões de habitantes. Também publicarei um artigo sobre a crise de 2013, com as manifestações nas ruas, nas cidades das aglomerações. Todo o problema político é que as instituições e o serviço urbano não funcionam nessas áreas. A população está extremamente insatisfeita porque essa estrutura foi montada para cidades de 5 mil ou 10 mil habitantes e, pior, por políticos que raciocinam para 5 mil ou 10 mil habitantes, como se estivessem em 1950. Nós urbanizamos 80 milhões de pessoas em 25, 30 anos no Brasil. Numa cidade como São Paulo, todos querem comprar as mesmas coisas e o preço sobe. O industrial não vai comprar o terreno nessa cidade. Vai vender o terreno na cidade, comprar dois alqueires fora, na beira da rodovia, e construir ali. Os operários vão junto e fazem vilas para morar. A classe média também. Nos anos 1970, com a modernização do transporte rodoviário, muita gente de São Paulo passou a trabalhar na capital e a morar em outras localidades próximas, como Vinhedo, Alphaville e Granja Viana. Essa era uma parte da urbanização dispersa. Não é à toa que um dos traços da crise de 2013 foi a mobilidade. A mobilidade se modernizou tecnologicamente e as cabeças não estão preparadas. As pessoas continuam acreditando, principalmente os políticos, que com os métodos de 40 ou 50 anos atrás vão dar conta disso. É preciso um projeto político. Me interessa a solução dos problemas humanos. Se não tivermos políticas públicas bem definidas, não chegaremos a nada. n PESQUISA FAPESP 226 | 37
POLÍTICA C&T INOVAÇÃO ABERTA y
Criação coletiva Empresas brasileiras dividem riscos e custos com parceiros múltiplos em projetos de pesquisa e desenvolvimento
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iante do desafio de transformar resíduos florestais em novos compostos químicos, como etanol e polímeros, instituições de pesquisa do Brasil e da Suécia e empresas do setor de papel e celulose perceberam que as chances de sucesso seriam potencializadas caso compartilhassem experiências e tecnologias numa ampla plataforma de pesquisa. Foi assim que, em junho de 2013, companhias como AkzoNobel, Fibria, Novozymes e Sekab, em conjunto com universidades como a Estadual de Campinas (Unicamp), a Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Chalmers University, da Suécia, lançaram um programa que busca integrar a indústria de celulose com as biorrefinarias, que são usinas capazes de transformar biomassa em diversos produtos químicos. Batizado de Polynol, o projeto é coordenado pelo instituto sueco Innventia, conhecido por liderar projetos articulando indústria, universidades e centros de pesquisa na Europa. “Há muitos parceiros da indústria e centros de pesquisa que trabalham em conjunto numa cadeia 38 z DEZEMBRO DE 2014
de valor, compartilhando abertamente resultados de pesquisa com o propósito de reduzir o tempo de implementação dos projetos”, explica Niklas Berglin, diretor adjunto da área de negócios de biorrefinaria do Innventia. Iniciativas semelhantes ganharam impulso no Brasil e no mundo a partir da última década com a disseminação do conceito de inovação aberta. O termo apareceu pela primeira vez em 2003, no livro Open innovation, do americano Henry Chesbrough, professor da Universidade da Califórnia, Berkeley, para definir uma prática que surgiu em meados dos anos 1990, com o estabelecimento de parcerias entre departamentos de pesquisa de empresas. Em comparação com o modelo tradicional, no qual predomina o sigilo empresarial, a inovação aberta busca distribuir o processo de inovação numa rede externa de parceiros, onde há lugar para universidades, parceiros próximos ou de outros países, fornecedores e até mesmo concorrentes e clientes, cada qual ajudando de acordo com sua expertise. Em seus livros, Chesbrough mostra que, até meados dos anos 1990, as
ILUSTRAÇÕES MAURÍCIO PIERRO
Bruno de Pierro
A queda dos muros O que significa inovação aberta e quais suas diferenças com o modelo tradicional
O QUE É O termo inovação aberta foi criado em 2003 para explicar como as empresas podem buscar colaborações para aprimorar seu desenvolvimento, além de compartilhar as próprias inovações. O modelo de inovação aberta, portanto, considera como parte do processo inovador também o conhecimento das universidades, outras organizações parceiras e do mercado, além dos próprios consumidores e fornecedores.
PARA QUE SERVE O modelo permite à empresa investir em inovação sem precisar começar um projeto do zero. A companhia pode absorver etapas, tecnologias e conhecimentos desenvolvidos por terceiros. Assim, é possível acelerar o processo de inovação, reduzir custos e dividir riscos com parceiros. A empresa também pode lucrar com o licenciamento de patentes.
Inovação fechada
Inovação aberta
P&D
P&D
A empresa procur a fontes externas de conhec imento, que podem ser instituiçõ es de pesquisa em universidades ou outras empresas. Isso agi liza o processo de inovação e divide custos
EQUIPE
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PIONEIRISMO
PION
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O objetivo é ser a primeira empresa a levar uma inovação ao mercado
DE RIEDA PROP AL U T C E gia INTEL iv r p ile
PROPRIEDADE INTELECTUAL
A empresa entende que pode se beneficiar comercialmente se outras empresas usarem suas patentes; além disso, ela própria
panhia ger A com prote o para il e q o sig s ia u nolog as tec e lv o v desen
procura adquirir tecnologias de terceiros.
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FONTE OPEN INNOVATION - HENRY CHESBROUGH
empresas buscavam fazer tudo por conta própria, como se pudessem inovar de forma autossuficiente (ver infográfico). Aos poucos, as companhias perceberam que poderiam aproveitar melhor as ideias vindas de fora, trazidas por universidades e outras empresas. “Elas viram que dessa forma poderiam reduzir custos e também ter mais tempo para se dedicar à sua especialidade, além de poder dividir riscos”, diz Bruno Rondani, fundador da Wenovate, associação dedicada a incentivar e promover projetos de inovação. Isso não significa que tudo seja compartilhado. As empresas abrem seus processos de inovação para captar e oferecer novos conhecimentos, mas os fecham quando desejam se apropriar de algo. Algumas empresas, por exemplo, só licenciam tecnologias depois que seus produtos estão há um tempo no mercado.
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as últimas duas décadas, várias multinacionais, como IBM, Xerox, P&G e Philips, passaram a envolver clientes, fornecedores, pesquisadores e outras empresas em seus processos de inovação, tornando-se referência para que outras companhias apostassem na inovação aberta. De acordo com um estudo publicado em 2012 pelo instituto norte-americano Forrester Research, 77% das maiores empresas do mundo adotam o modelo como principal estratégia de inovação. A pesquisa, que ouviu dirigentes de mais de 220 empresas localizadas nos Estados Unidos, Alemanha e Reino Unido, mostra que a maioria (81%) das iniciativas de inovação aberta acontece na forma de redes de colaboração. No caso do projeto Polynol, o laboratório da multinacional Novozymes, em Curitiba, foi escolhido para avaliar as possibilidades de extração de açúcares de diferentes tipos de biomassa, entre eles galhos e folhas, num processo conhecido como hidrólise enzimática. Já o centro de tecnologia da brasileira Fibria, em Jacareí (SP), está debruçado sobre a logística e os custos de produção das novas matérias-primas. “Dessa forma, podemos ter uma visão do todo e fazer análises mais completas dos problemas”, diz Paulo César Pavan, presidente do comitê do projeto no Brasil e gerente de processo e produto do Centro de Tecnologia da Fibria. Segundo Rondani, uma tendência que aos poucos ganha impulso é a interação entre grandes companhias e empresas nascentes de base tecnológica, também chamadas de startups. Um estudo realizado em 2012 pela Flanders DC, uma fundação de apoio à inovação ligada ao governo da Bélgica, sugere que grandes companhias deveriam interagir mais com pequenas e médias empresas. Segundo a pesquisa, que analisou casos na Europa, as grandes companhias ainda preferem colaborar com universidades e outras empresas maiores, deixando de colaborar com as menores, 40 z DEZEMBRO DE 2014
Inovação aberta em etapas
EM BUSCA DE UM DESAFIO A empresa realiza consultas externas para identificar novas oportunidades de investimento em áreas de fronteira do conhecimento ou que apresentam novos desafios ao mercado. Com a ascensão de um novo mercado de aplicativos, a Telefônica, por exemplo, identificou oportunidades de investir em novos negócios nessa área.
que dependem desse tipo de iniciativa para sobreviver no mercado. Rondani reconhece que a interação com empresas menores e startups ainda é uma faceta recente da inovação aberta, especialmente no Brasil. “Muitas empresas nascentes têm a competência necessária para ajudar grandes firmas a solucionar um problema”, diz ele. No Brasil, programas criados por grandes companhias com o objetivo de absorver tecnologias e conhecimento gerados em outras empresas começam a ganhar força. Um deles é o Wayra, programa de aceleração de startups da Telefônica. A iniciativa começou em 2012 e já selecionou mais de 30 empresas, que durante 10 meses se tornam sócias da Telefônica e dividem o mesmo espaço num prédio na cidade de São Paulo. Lá, os donos das startups têm contato direto com executivos da empresa, que prestam consultoria nas áreas de negócios e marketing. Boa parte das startups escolhidas pela Telefônica atua no desenvolvimento de aplicativos e softwares, um mercado em ascensão no mundo. De acordo com Carlos Pessoa, diretor da Wayra, a Telefônica se beneficia de duas formas. “A longo prazo, investindo em startups com potencial tecnológico inovador, a empresa pode ter um retorno econômico considerável”, diz ele. No curto prazo, a Telefônica pretende se aproximar
PROSPECÇÃO DE SOLUÇÕES E OPORTUNIDADES Este processo envolve a colaboração de agentes internos e externos, como universidades, empresas parceiras ou fornecedores. O objetivo é buscar soluções concretas que possam resolver as demandas identificadas na primeira etapa. O Bradesco, por exemplo, lançou um programa de aceleração de startups, como forma de aproveitar talentos que estão fora dos limites da empresa para resolver problemas internos.
ELABORAÇÃO DE PROGRAMAS OU PROJETOS Nesta etapa, a empresa estabelece acordos comerciais em torno de um ou mais projetos, realizados em parceria com outras empresas, grupos de pesquisa ou universidades. A Embraer, por exemplo, cria uma rede de parceiros em torno do projeto de um jato, em que cada parte disponibiliza seus conhecimentos e técnicas para o desenvolvimento de um novo produto.
EXPLORAÇÃO COMERCIAL No modelo de inovação aberta, o produto final não é a única fonte de lucro da empresa. Um mesmo projeto pode resultar em uma tecnologia ou serviço com aplicação em diferentes mercados. A Petrobras, por exemplo, desenvolveu com a PUC-RJ uma técnica para inspecionar dutos. O conhecimento foi licenciado para um grupo de pesquisadores, que fundou outra companhia, a Pipe Way.
de novos negócios e se diversificar no mercado com tecnologias e serviços que nunca fizeram parte do portfólio da empresa. “Além disso, as startups podem oferecer produtos e serviços preferencialmente para uso interno na Telefônica antes de atender a outros clientes”, diz Pessoa. Uma das empresas instaladas na Wayra é a Proradis, criada em 2013 por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto. Especializada no desenvolvimento de softwares para diagnóstico médico, a empresa aprimorou, dentro do programa, uma ferramenta baseada na computação em nuvem, que organiza e armazena dados de exames clínicos na internet que podem ser acessados simultaneamente de diferentes lugares. “Dentro da Wayra, tivemos contato com o cotidiano de uma grande empresa, o que nos colocou a par de novas ferramentas administrativas e de uma maior rede de clientes e investidores”, diz Haissan Molaib, um dos sócios da Proradis. Outra startup selecionada pela Wayra é a BovControl, que desenvolve softwares para ajudar o produtor de gado a gerenciar informações sobre o gado. “A Telefônica facilita nosso relacionamento com possíveis parceiros ou clientes, promovendo um ambiente favorável para que possamos crescer”, diz Danilo Tertuliano Leão, sócio-fundador da BovControl.
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utra companhia que resolveu atrair startups tecnológicas foi o Bradesco. O banco lançou este ano o InovaBra, um programa de interação entre a inovação fechada e a aberta voltado ao apoio de startups que apresentam soluções aplicáveis à área de serviços financeiros. O programa terá início em 2015. A diferença em relação à iniciativa da Telefônica é que a do Bradesco recorre à inovação aberta como forma de complementar a inovação feita internamente, como o desenvolvimento de novas tecnologias para melhorar a interação entre o banco e seus clientes, enquanto a Telefônica investe em startups que não necessariamente atuam no setor de telecomunicações. “Estamos pensando no nosso horizonte estratégico para os próximos 10 anos”, diz Fernando Moraes de Freitas, gerente-executivo do departamento econômico do Bradesco e coordenador do InovaBra. Novas iniciativas desse tipo também vêm sendo criadas por empresas brasileiras que já têm familiaridade com o conceito de inovação aberta. Uma delas é a Braskem, que desde quando foi criada, em 2002, adota o conceito em suas estratégias de inovação. Em junho, a empresa inaugurou um novo laboratório de biotecnologia em Campinas (SP), para pesquisas com novas matérias-primas renováveis. Também mantém centros de tecnologia em Triunfo (RS) e em Pittsburgh, nos Estados Unidos. Embora invista em laboratórios PESQUISA FAPESP 226 z 41
para que isso ocorresse, foi preciso envolver dezenas de universidades e startups, que ajudaram a criar softwares capazes de fazer o computador aprender linguagens e vocabulários específicos. Num futuro breve, o sistema poderá servir como um gerente eletrônico de banco ao indicar os melhores investimentos de acordo com o perfil do cliente. Em hospitais, onde já é utilizado nos Estados Unidos, ele colabora no diagnóstico e tratamento de câncer. “Não podemos subestimar a capacidade das outras empresas. Nossos parceiros e clientes são tão bons quanto nós”, diz o brasileiro Jean Paul Jacob, pesquisador emérito da IBM e professor na Universidade da Califórnia em Berkeley, Estados Unidos, onde vive há mais de 40 anos. “Identificando o talento de um fornecedor, podemos resolver um problema mais rápido, sem precisar contratar esse profissional”, diz Jacob.
internos, boa parte dos 270 projetos de inovação atualmente em curso na empresa é desenvolvida de forma aberta com universidades e outras empresas. “Investir numa equipe própria faz com que possamos estabelecer metas e estratégias mais seguras com nossos colaboradores”, explica Patrick Teyssonneyre, diretor do centro de tecnologia da Braskem em Triunfo. Algumas parcerias firmadas recentemente pela Braskem com startups estrangeiras mostram que um dos méritos da inovação aberta é facilitar “Com a a colaboração internacional. Uma deinovação aberta, las foi estabelecida em setembro com a norte-americana Amyris e a franceas empresas sa Michelin para o desenvolvimento de tecnologia voltada à produção de podem reduzir isopreno de fonte renovável, insumo químico utilizado pela indústria de custos e dividir pneus. As três empresas trabalhariscos com rão unidas para acelerar os estudos bioquímicos que utilizam açúcares os parceiros”, diz oriundos da cana-de-açúcar e de insumos de celulose. A Amyris vai comBruno Rondani partilhar com a Braskem os direitos de comercialização da tecnologia do isopreno renovável a ser desenvolvido. Já a Michelin terá direito de preferência não exclusivo no acesso à tecnologia do isopreno verde. Essa necessidade de articular colaboradores em torno de um projeto não é mero capricho. Sem isso, muitos projetos ambiciosos dificilmente sairiam do papel. Um caso emblemático no mundo é a plataforma Watson, um sistema de computação cognitiva lançado pela IBM em 2011. O computador, ainda em desenvolvimento, interage na linguagem do usuário, com voz, e pode processar grandes quantidades de dados e adquirir conhecimento conforme é usado. Mas, 42 z DEZEMBRO DE 2014
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uscar em fornecedores possibilidades para se diferenciar no mercado é uma das motivações que levaram a Embraer a anunciar, em maio, uma iniciativa para consolidar a cultura de inovação aberta no setor aeroespacial brasileiro. Em conjunto com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e a Agência de Desenvolvimento Paulista (Desenvolve-SP), a empresa lançou um fundo de investimento com patrimônio inicial de R$ 131,3 milhões, para apoiar projetos colaborativos envolvendo empresas e startups do setor e a Embraer. “Se a inovação for promissora, o fundo aporta recursos e apoia a empresa, sendo que a Embraer pode se tornar cliente, incorporando essas inovações em seus produtos, serviços e negócios”, diz Peter Seiffert, responsável pelo setor de planejamento estratégico da Embraer. Para ele, o conhecimento gerado nas universidades precisa ser materializado em novos produtos e serviços. “As ideias precisam sair da academia e ir para o mercado, para que a Embraer, como cliente, possa incorporar tais inovações em seus negócios”, explica Seiffert. Um exemplo histórico de como a Embraer despertou para a inovação aberta é o desenvolvimento do jato ERJ-145, criado a partir da colaboração com outras quatro empresas. Nos anos 1990, o projeto do avião havia emperrado por questões econômicas e só poderia ser concluído com ajuda externa. Graças às colaborações, o jato foi lançado em 1995 e se tornou um sucesso comercial. A partir daí, outros modelos foram desenvolvidos colaborativamente, sendo que a concepção deles é feita somente pela Embraer. Mas nem sempre foi assim. Há alguns anos, as criações da Embraer eram protegidas preferencialmente por segredo industrial – modalidade que atendia à necessidade de proteção no de-
EDUARDO CESAR
senvolvimento de um produto específico. Com o aumento da competição no setor, as pesquisas ficaram mais complexas, exigindo competências que muitas vezes não eram dominadas pela Embraer. A empresa, então, começou a articular redes de conhecimento, no âmbito da pesquisa pré-competitiva, ou seja, restrita à ciência básica. Nessa etapa, empresas do setor aeroespacial realizam pesquisa em conjunto, com o objetivo, por exemplo, de estudar novos materiais. À medida que o projeto fica próximo de ter aplicação industrial, cada empresa desenvolve internamente o seu produto ou tecnologia, que depois são protegidos por patentes. Com isso a Embraer passou a registrar cada vez mais patentes em solução de produtos e processos de manufatura no Brasil e no exterior. Por meio do licenciamento de patentes, a empresa consegue ampliar as possibilidades de faturamento. “O modelo de inovação aberta coloca a propriedade intelectual como produto vendável”, explica Henry Suzuki, consultor na área de propriedade intelectual. Como exemplo, Suzuki cita o Instituto Fraunhofer, na Alemanha, criado para atender às
A Wayra da Telefônica reúne startups num mesmo prédio em São Paulo, com o objetivo de acelerar o desenvolvimento de novos produtos e serviços
necessidades tecnológicas de empresas na Europa. O conhecimento gerado a partir da parceria com uma empresa é licenciado para outras companhias, para resolver problemas em comum. No Brasil, um dos exemplos que ilustram essa prática é a parceria entre a Petrobras e a Pipeway, empresa brasileira que fabrica e opera ferramentas para inspeção de dutos de óleo e gás, com o objetivo de identificar amassamentos, corrosões e vazamentos. Em 1998, pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e do Centro de Pesquisas e Desenvolvimento (Cenpes) da Petrobras desenvolveram uma nova ferramenta para o gerenciamento de dutos. Até então, o serviço era contratado de empresas estrangeiras, que cobravam caro por ele. Embora tivesse desenvolvido a tecnologia, a Petrobras não tinha condições de executar, ela própria, o serviço internamente. A empresa resolveu então licenciar a tecnologia que havia sido elaborada com a universidade para os pesquisadores, que em seguida criaram a Pipeway. “A empresa se tornou fornecedora da Petrobras, e além de prestar o serviço também aperfeiçoou novas soluções a partir do projeto inicial”, conta o engenheiro Ivan Janvrot, vice-presidente da Pipeway e pesquisador aposentado do Cenpes. Hoje, o conceito de inovação aberta está presente em vários projetos de pesquisa executados pela Pipeway. Um deles foi realizado recentemente em parceria com a Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), com apoio da Finep, para o desenvolvimento de um equipamento que mapeia a trajetória do duto subterrâneo e integra as informações com o Google Earth. Até a década de 1970, a Petrobras realizou pesquisas em conjunto com empresas, especialmente no desenvolvimento de tecnologias de refino. Com a descoberta de grandes reservas de petróleo na bacia de Campos em águas profundas, nos anos 1980, a companhia passou a intensificar cooperações com outras empresas. A razão disso foi a necessidade de desenvolver tecnologias para operar em águas profundas, já que a bacia tem profundidade de mais de mil metros, e na época não havia oferta de tecnologias comprovadas para extrair petróleo nessas condições. “A estratégia foi de não desenvolver tudo internamente, e sim estabelecer redes de parcerias nacionais e internacionais”, diz José Paulo Silveira, diretor associado da Macroplan, que presta consultoria em inovação aberta para empresas. Nos anos 1980, ele foi superintendente do Cenpes da Petrobras. No caso do programa de águas profundas da bacia de Campos, foram executados 109 projetos com 61 parceiros nacionais e 42 estrangeiros, ao longo de seis anos. Foram investidos US$ 70 milhões em projetos. “Nessa escala, foi um esforço de inovação aberta pioneira no país”, diz Silveira. n PESQUISA FAPESP 226 z 43
COLABORAÇÃO y
Para sair do esquecimento Pesquisadores discutem parcerias na busca de remédios contra doenças que atraem pouco
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esquisadores de vários países reuniram-se nos dias 13 e 14 de novembro, na sede da FAPESP, para discutir possibilidades de cooperação no desenvolvimento e oferta de novos tratamentos para as chamadas doenças negligenciadas, aquelas que atraem escasso interesse das indústrias farmacêuticas por atingirem principalmente populações e países pobres, tais como a doença de Chagas, a leishmaniose visceral, a malária e a tri panossomíase humana africana (doença do sono). Organizado em conjunto com a Royal Society of Chemistry (RSC), do Reino Unido, e as organizações internacionais Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi, na sigla em inglês) e Medicines for Malaria Venture (MMV), o encontro mostrou que o Brasil tem competências, especialmente nas áreas de química orgânica e biologia molecular, para ajudar a encontrar novos medicamentos – embora ainda sejam raros no país articulação entre grupos de pesquisa e estímulos para colaborações 44 z DEZEMBRO DE 2014
internacionais nessa área. “O evento nos ajudou a entender como o Brasil pode ser incluído em grandes estudos de doenças negligenciadas. Temos interesse em estreitar essa relação, porque o país tem uma comunidade forte na área de química e muitas doenças tratadas na reunião são endêmicas aqui”, disse Alejandra Palermo, gerente de inovação da RSC. De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), as doenças negligenciadas atingem cerca de um bilhão de pessoas no mundo. Das 17 moléstias desse tipo listadas pela OMS, 14 estão presentes no Brasil. No ano passado, a RSC firmou um acordo com as duas entidades internacionais, ambas com sede na Suíça, com o objetivo de desenvolver novos fármacos. A entidade britânica tem oferecido acesso a uma rede de colaboração na área de química orgânica e a softwares que facilitam a troca de conhecimento. Segundo Alejandra, muitos trabalhos apresentados por pesquisadores brasileiros podem continuar sendo conduzidos com a orientação e parceria das duas organizações interna-
cionais, cuja missão é desenvolver fármacos que sejam acessíveis aos mais pobres. Uma iniciativa já em curso envolve o Laboratório de Química Orgânica Sintética da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com o qual a DNDi mantém um programa inédito na América Latina intitulado Lead Optimization Latin America (Lola). “O objetivo é aprimorar e testar compostos químicos in vivo contra Chagas e leishmaniose”, disse Luiz Carlos Dias, coordenador do laboratório na Unicamp. Segundo ele, o trabalho em rede, promovido pela organização internacional, possibilita que uma mesma molécula possa ser testada sob diferentes aspectos em outros países, acelerando o processo rumo à produção de um medicamento. Na última década, a entidade global conseguiu disponibilizar dois novos tratamentos para malária, um para doença do sono, um para leishmaniose visceral, uma combinação de drogas contra leishmaniose visceral específica para a Ásia e um tratamento pediátrico com dose adaptada para doença de Chagas.
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interesse das indústrias farmacêuticas
Crianças brincam no igarapé, em Rondônia, num final de tarde, período mais propício para sofrerem picadas do mosquito da malária
No momento, por exemplo, a tarefa de analisar e preparar um novo composto para Chagas foi dividida entre o laboratório da Unicamp, o Centro de Biotecnologia Molecular Estrutural da USP, coordenado pelo professor Adriano Adricopulo, e o Instituto de Física da USP em São Carlos. O projeto ainda envolve empresas farmacêuticas, entre elas a Abbvie e a Pfizer, e institutos de pesquisa internacionais, como o Swiss Tropical Institute, na Suíça, e a Drug Discovery Unit da Universidade de Dundee, na Austrália, entre outros. Em outra iniciativa inédita na América Latina, a equipe de Dias coopera com projetos do MMV num programa chamado Brazil Heterocycles, que já sintetizou duas moléculas promissoras para o tratamento da malária. Este projeto conta com colaborações com centros internacionais, entre eles o Imperial College London, a Monash University, da Austrália, a Glaxo Smith Kline, na Espanha, a Astra Zeneca e a Syngene, na Índia. OBSTÁCULOS
“As etapas mais caras do desenvolvimento de novos fármacos são a descoberta da molécula e os testes pré-clínicos e de toxicidade”, disse Glaucius Oliva, coordenador do Centro de Pesquisa e Inovação em Biodiversidade e Fármacos (CIBFar), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP, envolvido em um dos projetos de síntese molecular coordenados pela equipe de Carlos Dias na Unicamp. “Com o apoio financeiro de grandes organizações globais exatamente nessa fase, a indústria farmacêutica pode entrar posteriormente nas etapas de ensaios clínicos e produção em larga escala. Isso começa a despertar o interesse da indústria farmacêutica em relação às doenças negligenciadas”, disse Oliva, que também é presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Para Oliva, a parceria entre DNDi, MMV e Unicamp deve servir de exemplo para outras iniciativas. PESQUISA FAPESP 226 z 45
“Precisamos formar uma grande massa crítica na área de química sintética”, diz Vanderlan Bolzani
1 O mosquito Anopheles gambiae, vetor da malária
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No entanto, ele destaca outros gargalos que a pesquisa brasileira precisa superar para poder contribuir com mais vigor em estudos sobre doenças negligenciadas. Um deles é em relação à farmacocinética, que é o caminho que uma molécula percorre no organismo após sua administração. “O Brasil ainda tem poucas pessoas atuando em toxicologia e em química sintética e medicinal para a criação de novas moléculas”, disse o bioquímico Walter Colli, professor da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador adjunto da FAPESP em ciências da vida. Um grupo de pesquisadores USP, por exemplo, mostrou que por meio da síntese química de compostos naturais é possível melhorar a ação de medicamentos já existentes, enquanto novos fármacos não ficam prontos. Os pesquisadores conseguiram sintetizar uma molécula a partir das betalaínas, 46 z DEZEMBRO DE 2014
2 Nas imagens tratadas digitalmente, composto extraído de flores fluorescentes atravessa membranas de dois eritrócitos, um deles infectado com plasmódio da malária
pigmentos encontrados em flores fluorescentes e beterrabas. O composto tem a capacidade de atravessar membranas de células animais com facilidade e servir como sondas e marcadores fluorescentes para biologia celular. “A molécula fluorescente poderá ser funcional, atuando como um táxi, que só apagará sua luz quando deixar o medicamento no lugar certo e na hora certa”, explicou Erick Bastos, pesquisador do Instituto de Química da USP e coordenador da pesquisa. A nova molécula ainda está em fase de testes. Como o desenvolvimento de um novo medicamento e as análises farmacológicas são caras, o grupo de Bastos acredita que o composto possa ser inicialmente usado para melhorar a ação de medicamentos para malária disponíveis no mercado. “Comprovamos por testes in vitro que as betalaínas sintetizadas em laboratório podem ultrapassar as mem-
branas do parasita da malária. Com essa técnica, a dose do medicamento usual pode ser reduzida. A eficiência do tratamento melhora porque, rastreando o medicamento, poderemos encontrar novos caminhos para levar a droga até o parasita”, afirmou Bastos. Pesquisas desse tipo podem ter um papel importante para o processo de erradicação de algumas enfermidades. “Melhorando o que já existe, é possível, no curto prazo, aumentar a eficiência de um tratamento”, afirmou Carolina Batista, diretora médica da DNDi na América Latina. Um exemplo citado por ela é o tratamento da doença de Chagas, cujo medicamento mais utilizado é o benzonidazol, criado nos anos 1970. Entre 2012 e 2013, a DNDi comandou um amplo estudo que comparou o benzonidazol com a E1224, uma nova molécula que se mostrava promissora no combate à doença de Chagas. Embora tivesse apresentado bom desempenho nos testes in vitro, a E1224 foi pouco eficiente em testes clínicos com pacientes. Um braço do estudo, contudo, realizado com benzonidazol, comprovou a eficácia do tratamento em pacientes crônicos. Outro estudo publicado este ano, por instituições de pesquisa da Espanha, comprovou que o benzonidazol ainda é o composto mais eficiente para o tratamento de Chagas. “Ainda assim, o benzonidazol causa efeitos colaterais complicados, como alergias e dores de cabeça. Isso mostra que mesmo um medicamento antigo e amplamente usado ainda precisa ser melhorado e pesquisado”, disse Carolina. Um dos estudos que atualmente avaliam a ação do benzonidazol envolve o Instituto Dante Pazzanese, em São Pau-
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lo, a OMS e instituições do Canadá e da Argentina. Foram recrutados mais de 3 mil pacientes de diferentes países e os primeiros resultados serão divulgados em 2015. “Já conseguimos analisar a ação do medicamento em crianças com Chagas, o que nos permitiu concluir que poderíamos diminuir as doses de benzonidazol para elas”, explicou Sergio Sosa-Estani, diretor do Instituto Nacional de Diagnóstico e Pesquisa em Doença de Chagas de Buenos Aires e membro da DNDi na Argentina.
FOTOS 1 CDC / JAMES GATHANY 2 ACERVO ERICK BASTOS (IQ-USP) - IMAGENS PUBLICADAS NA REVISTA PLOS ONE
EXPANSÃO DA PESQUISA
Os participantes do evento destacaram, porém, a necessidade de descobrir novas moléculas capazes de reforçar o combate às doenças negligenciadas. Em 2012, a OMS lançou novas diretrizes para o controle e eliminação dessas doenças até 2020. Segundo a organização, Chagas e leishmaniose impõem desafios enormes. No caso da doença de Chagas, há cerca de 7,6 milhões de pessoas infectadas no mundo atualmente. No entanto, quando são levados em conta os fatores de risco, entre eles condições precárias de habitação em regiões mais carentes, há aproximadamente 100 milhões de pessoas com perigo de contrair a doença apenas na América Latina, conforme dados da DNDi. Segundo o relatório da OMS, apenas 4,3% do total de financiamento para pesquisas em doenças negligenciadas é direcionado para Chagas e leishmaniose. Para corrigir essa lacuna, o MMV e a DNDi assinaram um acordo em Londres com o objetivo de expandir as pesquisas na área. As instituições recebem doações de governos, empresas e fundações como a de Bill e Melinda Gates. Jeremy Burrows, chefe do departamento de
“Melhorando o que já existe, é possível aumentar a eficiência de um tratamento”, afirma Carolina Batista
descoberta de drogas do MMV, explicou que o objetivo da entidade é elaborar novos compostos para tratar a malária, que atinge anualmente de 80 milhões a 100 milhões de pessoas no mundo. “Já colaboramos com mais de 300 parceiros e com a ajuda da ciência brasileira podemos fazer grandes contribuições no combate à malária”, disse Burrows. Já a DNDi é fruto de uma parceria entre instituições públicas de pesquisa e parte da indústria farmacêutica. A entidade nasceu com recursos que a organização humanitária Médicos sem Fronteiras ganhou do prêmio Nobel da Paz em 1999 e, hoje, gerencia uma rede com 350 colaborações em 43 países. “Colocamos em contato universidades e indústria que, se trabalhassem sozinhas, não conseguiriam desenvolver novos produtos”, explicou Robert Don, diretor de descobertas e desenvolvimento pré-clínico da DNDi.
Para o químico britânico Simon Campbell, membro da RSC e consultor das duas entidades nos projetos em colaboração com a equipe na Unicamp, a comunidade científica brasileira é reconhecida entre os que pesquisam doenças negligenciadas, além de contar com bons laboratórios e financiamento em nível adequado. Mas ele acredita que o país deve investir mais nas áreas de química sintética e medicinal, como forma de transformar o conhecimento da biologia em novos tratamentos. “Precisamos de tratamentos mais eficazes e com menos efeitos colaterais. Uma maneira de acelerar esse processo é trabalhar em colaboração, e por isso contamos com o apoio dos cientistas brasileiros”, disse Campbell. Essa visão também é compartilhada por Vanderlan Bolzani, professora do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “Precisamos formar uma grande massa crítica na área de química sintética, estimulando pesquisadores mais jovens a trabalhar com a preparação de moléculas que possam contribuir para a erradicação de doenças como malária e doença de Chagas”, afirmou ela. Na abertura do encontro, o diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz, enfatizou que a realização do workshop é uma oportunidade para aproximar diretamente pesquisadores de São Paulo e de outros lugares do mundo, além de duas importantes fundações científicas, a FAPESP e a Royal Society of Chemistry. “As instituições envolvidas têm o interesse de dividir informações de pesquisa, de tal forma que os resultados sejam alcançados mais rapidamente”, disse Brito Cruz. n Bruno de Pierro PESQUISA FAPESP 226 z 47
CIÊNCIA GEOLOGIA y
Um Himalaia primitivo: cadeia montanhosa com 2.500 quilômetros de extensão teria se erguido entre o Brasil e a África há 610 milhões de anos, quando vários dos continentes atuais ainda estavam agrupados no supercontinente Gondwana
Cordilheira transcontinental Cadeia de montanhas formada há 610 milhões de anos teria impulsionado a evolução da vida complexa no planeta Reinaldo José Lopes
DEPARTAMENTO DE GEOLOGIA / UFRJ-CENPES / PETROBRAS
R
ochas encontradas no Nordeste brasileiro e em países africanos indicam que, há 610 milhões de anos, montanhas tão imponentes quanto o atual Himalaia brotaram no supercontinente conhecido como Gondwana. O surgimento dessa cordilheira antiga, de quase 2.500 quilômetros de extensão, corresponde ao primeiro momento da história da Terra no qual uma cadeia montanhosa dessa magnitude teve condições de se formar, gerando repercussões que podem ter ido além da geologia. Os nutrientes vindos dessas supermontanhas teriam chegado aos oceanos e impulsionado a evolução dos primeiros seres vivos complexos, com organismos formados por muitas células. PESQUISA FAPESP 226 z 49
A existência remota desse “Himalaia afro-brasileiro” foi descrita em um artigo publicado em outubro na revista Nature Communications, numa colaboração entre especialistas do Brasil, da Austrália e da França. O primeiro autor do estudo é Carlos Ganade de Araújo, do Serviço Geológico do Brasil (SGB), no Rio de Janeiro. Araújo concluiu recentemente seu doutorado na Universidade de São Paulo (USP), sob orientação de Umberto Cordani, outro dos autores da pesquisa, depois de passar uma temporada no laboratório de Daniela Rubatto, na Universidade Nacional da Austrália, e de Renaud Caby, na Universidade de Montpellier II. Além de amostras brasileiras, os geólogos estudaram rochas encontradas no Togo e no Mali, países da África Ocidental. “A associação entre a formação de montanhas desse tipo e o surgimento da vida complexa é algo que vários trabalhos anteriores já vinham propondo”, conta Araújo. “A novidade do nosso trabalho é mostrar que o surgimento desse arco de montanhas foi sincrônico, dentro da margem de erro das técnicas usadas para medir esse timing, e que ele coincide com o surgimento da fauna ediacarana [Ediacarano é o nome dado ao período geológico em que ocorre o primeiro grande florescimento da vida multicelular].” A cadeia montanhosa teria surgido a partir da colisão de dois grandes blocos da crosta terrestre: de um lado, estava uma área incluindo blocos rochosos que hoje formam parte da África Central, do Saara e da bacia do rio São Francisco; de outro, uma região na qual estavam unidos blocos da atual África Ocidental e da bacia do rio Amazonas. Araújo e Miguel Basei, também da USP, coletaram as amostras dessas rochas em Forquilha, município perto de Sobral, no sertão do Ceará; numa área de floresta tropical próxima à vila de Lato, no Togo; e em afloramentos rochosos em meio às areias do Saara, no Mali. Esses três locais se situam ao longo de uma fratura geológica profunda – o chamado Lineamento Transbrasiliano-Kandi, muito estudado pela equipe da USP e pelo grupo de Reinhardt Fuck e Márcio Pimentel, da Universidade de Brasília –, resultado do choque entre blocos rochosos que teriam gerado o Himalaia afro-brasileiro.
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CÁPSULAS DO TEMPO
A datação relativamente precisa de minerais tão antigos só é possível graças à presença dos zircões, cristais ricos em elementos químicos radioativos, como o urânio. Cada exemplar de zircão, ao se formar, funciona como uma espécie de cápsula do tempo. Uma vez transformado em cristal sólido depois do resfriamento do magma, o material passa a abrigar uma determinada concentração de urânio, que, por meio da perda lenta e constante de partículas subatômicas típi50 z DEZEMBRO DE 2014
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Lá e cá: rochas do interior do Ceará (no alto) e do Mali (acima) guardam vestígios da antiga cordilheira
FOTOS 1 RENAUD CABY / UNIVERSIDADE DE MONTPELLIER II 2 CARLOS GANADE DE ARAÚJO / SGB
ca dos elementos radioativos, origina elementos químicos mais leves, como o tório e o chumbo, a uma taxa conhecida. “Depois de cristalizado, o mineral não troca mais átomos de urânio com o meio externo. É como se a estrutura cristalina fosse um sistema fechado”, explica Lêda Maria Fraga, que também trabalha no SGB e é autora de um estudo que identificou alguns dos zircões mais antigos do mundo (ver boxe na página 52). Os pesquisadores medem, então, a concentração das variedades (isótopos) do elemento químico chumbo derivadas do urânio e calculam quanto tempo antes se formou o zircão. Também foi possível determinar que as rochas brasileiras e africanas que abrigam os zircões se formaram em ambientes de altíssima pressão, a profundidades superiores a 90 quilômetros. Conhecidas como eclogitos, essas rochas
que nascem em situações de pressão ultra-alta derivam do encontro entre duas placas tectônicas, os imensos blocos rochosos que formam a crosta terrestre. Na colisão entre as placas, a borda de uma delas se enfia embaixo da outra – é a chamada subducção. A parte que afunda é submetida a pressões altíssimas que alteram suas rochas. Mais tarde, algumas dessas rochas alteradas retornam à superfície – ou são exumadas, como dizem os geólogos –, processo que pode gerar grandes cadeias de montanhas, como o Himalaia de hoje e sua contraparte do Ediacarano. Segundo Araújo, esse é outro ponto importante do estudo: trazer as evidências mais antigas de um mecanismo de tectônica de placas como os que se conhecem hoje. “Embora existam indícios de que as placas tectônicas poderiam estar em PESQUISA FAPESP 226 z 51
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atividade de alguma maneira desde o Arqueano, há mais de 3 bilhões de anos, só no Ediacarano é que vemos sinais de uma subducção profunda o suficiente para fazer com que as placas continentais desçam muito e, consequentemente, desencadeiem a formação de montanhas tão altas quanto as do Himalaia atual.” Esse fenômeno geológico, possivelmente inédito até então, pode ter tido consequências igualmente inéditas sobre a evolução da vida no planeta, afirmam os pesquisadores.
Amostra de eclogito: rocha coletada na África contendo o mineral coesita (acima), formado sob pressão ultra-alta
VIDA MISTERIOSA
Por volta da época em que se formou o Himalaia afro-brasileiro surgiram na Terra formas de vida ainda hoje envoltas em um ar de mistério. É a chamada biota de Ediacara, formada por organismos multicelulares cujas relações de parentesco com os grupos de seres vivos que evoluíram mais tarde ainda não estão muito claras, embora haja quem identifique, entre os fósseis de seres que viveram naquela época, os precursores dos cnidários (águas-vivas e corais) de hoje.
Pedaços do Hades Outro estudo geológico baseado na
sugerem que, mesmo em um passado
análise de zircões encontrou na
tão remoto, já existiam mecanismos
químicos (zircônio, oxigênio e silício),
fronteira entre o Brasil e a Guiana
capazes de produzir continentes
os zircões são minerais muito
vestígios de um fragmento do que pode
comparáveis aos atuais.
resistentes, capazes de sobreviver às
ter sido o mais antigo continente do
O vestígio mais recente de que
Formados por três elementos
transformações pelas quais as rochas
planeta. Esse continente teria existido
continentes tão primitivos podem ter
que formam os continentes podem
por volta de 4,2 bilhões de anos atrás
mesmo existido é um zircão de 4,2
passar. O zircão antigo da Guiana,
– quando o planeta tinha cerca de 300
bilhões de anos extraído de rochas
por exemplo, permaneceu intacto
mil anos de vida – no chamado Éon
vulcânicas coletadas na Guiana em
mesmo após a rocha que
Hadeano, o primeiro e mais turbulento
2011 por equipes do Serviço Geológico
originalmente o abrigava ter se
período da história da Terra.
Brasileiro e da Comissão de Minas e
fundido há cerca de 2 bilhões de
Geologia da Guiana. “Encontrar
anos, quando a região do planeta
acreditava que naquele período cujo
vestígios de quando e como se formou
onde hoje se encontra a Amazônia
nome faz referência a Hades, o deus da
a ‘primeira’ crosta continental ou algo
era dominada por vulcões –
mitologia grega ligado às profundezas
parecido com ela é sempre uma grande
acredita-se que um desses vulcões
da Terra e ao mundo dos mortos, a
descoberta”, explica a geóloga
tenha entrado em erupção e trazido
superfície terrestre fosse dominada por
brasileira Lêda Maria Fraga, coautora
das profundezas da Terra material
oceanos de rocha líquida e crateras
de um artigo que relata o achado no
fundido no qual flutuavam cristais
formadas pelo impacto de corpos
periódico Brazilian Journal of Geology.
de zircão mais antigos.
celestes. Mas registros geológicos
“Até onde sei, esse zircão é o mineral
encontrados na última década
mais antigo da América do Sul”, diz.
Até algumas décadas atrás se
52 z DEZEMBRO DE 2014
Até o momento amostras de zircão tão antigas foram encontradas
FOTOS 1 E 2 RENAUD CABY / UNIVERSIDADE DE MONTPELLIER II 3 SERGE NADEAU / CMGG
2
Em geral, os membros da biota de Ediacara são criaturas de corpo mole, com aspecto discoidal ou semelhante a talos de algas. Também há marcas fossilizadas (icnofósseis) deixadas pela passagem do animal que parecem indicar a presença de seres vermiformes, arrastando-se pelo solo marinho. Outros dados fósseis indicam ainda que, por volta daquela época, já havia organismos com desenvolvimento embrionário complexo, essencial para que seres multicelulares produzam tecidos especializados para diversas funções, como músculos ou gânglios. Essas formas macroscópicas de vida eram exclusivamente aquáticas. Microrganismos já haviam colonizado ambientes de terra firme, embora animais e plantas só começassem a deixar os mares a partir do Cambriano, há 540 milhões de anos, com o surgimento progressivo de adaptações para resistir à perda de água.
3
em menos de uma dezena de locais no mundo. A mais velha de todas, com 4,4 bilhões de anos, foi encontrada em Jack Hills, na Austrália. Minerais do Canadá, da China e dos Estados Unidos têm idades comparáveis ou um pouco inferiores às identificadas no sul da Guiana.
Testemunhas do passado remoto: cristais de zircão com 4,2 bilhões de anos, extraídos de rocha vulcânica coletada na Guiana
O surgimento da cordilheira que se estendeu por parte do que hoje é a África e o Brasil pode ter impulsionado a evolução dessas criaturas por inundar os oceanos com alimento. Essas grandes montanhas teriam passado por um processo erosivo sem precedentes, de maneira a carregar os nutrientes presentes nas rochas para o oceano. Esse “banquete” mineral teria levado à multiplicação de microrganismos marinhos que fazem fotossíntese e produzem oxigênio, aumentando a quantidade disponível desse gás nos mares e na atmosfera. Mais oxigenados, esses ambientes teriam sido muito mais propícios para sustentar o metabolismo de seres vivos complexos. “A gente também pode comparar os efeitos do aparecimento das montanhas do Ediacarano com o que ocorreu após o surgimento dos Himalaias”, lembra Araújo. De fato, essa megacordilheira ajudou a moldar o relevo e o clima na Ásia, controlando, por exemplo, as monções (chuvas anuais que caem sobre o subcontinente indiano) e impedindo que ventos frios do Ártico cheguem ao sul da Ásia. O curioso é que processos desse tipo parecem ter acontecido de novo algumas dezenas de milhões de anos mais tarde, durante a chamada Explosão Cambriana, um evento evolutivo de grande escala iniciado há cerca de 540 milhões de anos, ainda mais importante do que a gênese da biota de Ediacara. A Explosão Cambriana marca o aparecimento de quase todos os grandes grupos de animais conhecidos hoje no registro fóssil, incluindo tanto os primeiros artrópodes (atualmente os animais mais numerosos e diversos do planeta, como insetos e crustáceos) quanto os primeiros cordados (grupo que inclui os vertebrados, como o ser humano). De acordo com Araújo, supermontanhas que coincidem com a explosão de vida no período Cambriano surgiram na região leste de Gondwana, quando houve o desaparecimento de um oceano na região onde hoje está Moçambique. “A gente poderia enxergar esse evento a leste como uma continuação do processo que já vinha estimulando a evolução da vida complexa desde o Ediacarano”, afirma o pesquisador. n
O zircão da Guiana, estudado por Lêda e por Serge Nadeau, primeiro autor do artigo do Brazilian Journal of
Projeto
Geology, foi datado levando em conta
Caracterização geocronológica e termocronológica das rochas de alto grau associadas à orogênese neoproterozoica nas adjacências do Lineamento Transbrasiliano-Kandi (NE Brasil – NW África) (nº 2012/00071-2); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Umberto Giuseppe Cordani (IGC-USP); Investimento R$ 144.331,80 (FAPESP).
o decaimento radioativo do elemento químico urânio, a mesma técnica usada para determinar a idade dos zircões do Himalaia afro-brasileiro. Remontando a uma época tão distante, o surpreendente é que tenha sobrevivido
Artigos científicos
às transformações por que a crosta
GANADE DE ARAUJO, C. E. et al. Ediacaran 2,500-km-long synchonous deep continental subduction in the West Gondwana orogen. Nature Communications. 16 out. 2014. NADEAU, S. et al. Guyana: the lost Hadean crust of South America? Brazilian Journal of Geology. V. 43, p. 601-6. dez. 2013.
continental passou desde então. “Demos uma sorte enorme”, diz Lêda.
PESQUISA FAPESP 226 z 53
FÍSICA y
Máquinas de spins Brasileiros descobrem como medir variações de energia de núcleos atômicos
E
m um experimento considerado impossível até o ano passado, uma equipe coordenada pelo físico Roberto Serra, da Universidade Federal do ABC (Ufabc), determinou quanta energia um núcleo atômico pode ganhar ou perder quando é atingido por um pulso de ondas de rádio. A maioria dos pesquisadores estava convencida de que o comportamento do núcleo seria imprevisível. Jamais se conheceriam as probabilidades de o núcleo absorver energia das ondas, tornando-se mais quente, ou de esfriar ao transmitir parte de sua energia para elas. As novas experiências feitas no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro, demonstram que essa troca de energia obedece a leis da física nunca antes testadas no mundo subatômico. Essas leis podem ajudar a entender melhor reações químicas como a fotossíntese das plantas e a determinar quanta energia os computadores quânticos usarão para funcionar. “Esse é o primeiro experimento de uma nova área da física, a termodinâmica quântica”, diz Serra. Computadores quânticos prometem usar as leis da mecânica quântica para superar exponencialmente o poder de 54 z DEZEMBRO DE 2014
cálculo dos computadores convencionais. Mas quanta energia esse novo tipo de computação gastará na prática? Quanto calor essas máquinas produzirão ao funcionar? Vão precisar de refrigeração? Responder a essas questões é um dos objetivos da termodinâmica quântica. Perguntas semelhantes pairavam no ar durante a Revolução Industrial, no século XIX. Qual o mínimo de carvão que os fornos precisariam consumir e a que temperatura as caldeiras deveriam chegar para que as máquinas a vapor alcançassem sua eficiência máxima? Os cientistas da época perceberam que tanto o calor quanto a capacidade das máquinas de trabalharem são formas diferentes de uma mesma quantidade física, a energia, que nunca é criada a partir do nada nem destruída, apenas transformada. Ao investigar a conversão de uma forma de energia em outra, eles descobriram as leis da termodinâmica clássica. De acordo com essas leis, a energia flui espontaneamente de um volume com temperatura quente para outro mais frio. E uma máquina, mesmo que ideal, só pode converter parte da energia disponível na forma de calor em energia capaz de realizar movimentos mecânicos, isto é,
realizar o que se conhece em física como trabalho. “A termodinâmica impõe limites a qualquer tecnologia”, diz Serra. Os engenheiros vitorianos resolveram seus problemas, mas à custa de um pequeno truque. Seus cálculos só funcionavam quando se considerava que as máquinas estavam isoladas termicamente do resto do mundo, trocando pouco calor com o ambiente. Era preciso ainda que esses processos fossem lentos. Mas essas aproximações não servem na maioria das situações que ocorrem na natureza – em muitas reações químicas, por exemplo. Quando é impossível isolar termicamente um objeto de seu ambiente por muito tempo, a temperatura aumenta e diminui de maneira aparentemente imprevisível, ao contrário do que ocorre nos sistemas isolados, onde tudo tende ao equilíbrio. Foi apenas em 1997 que o físico-químico Christopher Jarzynski descobriu uma expressão matemática capaz de calcular as variações de energia e de trabalho mecânico que acontecem fora do equilíbrio. “A equação de Jarzynski e outros teoremas de flutuação permitem que os químicos meçam em laboratório a variação de energia de uma molécula antes e depois de uma reação”, explica Serra.
ILUSTRAÇÃO ZÉ VICENTE
Igor Zolnerkevic
PESQUISA FAPESP 226 z 55
A máquina quântica Experimento extrai energia de moléculas de clorofórmio
A
B
PREPARAÇÃO
Moléculas de clorofórmio diluídas em água
FUNCIONAMENTO
H
25ºC
C-13 Cl
Cl Cl C-13
C-13
+ energético – energético
C-13
C-13
C-13
C-13
C-13
C-13
C-13 C-13
Antena
1º PULSO
Rádio
EQUILÍBRIO
2º PULSO
EQUILÍBRIO
Na presença de um campo magnético, o
Pulsos de ondas de rádio com
Outra sequência de pulsos, agora
spin dos núcleos de carbono-13 do
menos de 1 microssegundo de
com amplitude maior, desestabiliza
clorofórmio se comportam como uma
duração e amplitude reduzida
de novo os spins e absorve parte
bússola magnética, apontando para cima
transferem energia para os
da energia dos núcleos de carbono.
ou para baixo. Ondas de rádio controlam os
núcleos de carbono, deixando
Os spins são manipulados
spins até deixá-los em equilíbrio térmico
os spins fora de equilíbrio
e retornam ao estado inicial
O próprio Jarzynski, em colaboração com uma equipe da Califórnia, confirmou sua equação em 2005, observando o trabalho mecânico de uma molécula de RNA esticada e comprimida como uma mola. Serra nota entretanto que, apesar de microscópico, o movimento da molécula de RNA era grande o suficiente para poder ser calculado usando a famosa fórmula derivada das leis da mecânica de Newton: “Trabalho é igual força vezes deslocamento”. As equações da termodinâmica, seja dentro ou fora do equilíbrio, foram deduzidas usando a mecânica de Newton. Mas as leis de Newton perdem sentido para vários processos que acontecem nas moléculas e para todos os que ocorrem no interior dos átomos por não ser possível medir forças e deslocamentos com precisão. Nessas escalas valem outras leis, as da mecânica quântica. Serra queria saber se equações como a de Jarzinsky ainda valeriam nesse mundo subatômico. Esse conhecimento ajudaria a entender reações químicas como a fotossíntese. Na fotossíntese, moléculas nas células das folhas funcionam como máquinas quânticas que absorvem energia das partículas de luz e a armazenam 56 z DEZEMBRO DE 2014
Na fotossíntese, moléculas no interior das células das folhas funcionam como máquinas quânticas na forma de moléculas de açúcar. “O processo é muito eficiente, quase não gera calor”, diz Serra. “Estudos sugerem que é um processo quântico.” Serra, seus alunos e colegas na Ufabc tentavam havia algum tempo estudar a termodinâmica quântica em laboratório, junto com a equipe dos físicos Alexandre Souza, Ruben Auccauise, Roberto Sarthour e Ivan Oliveira, que trabalham com a técnica de ressonância magnética
nuclear no CBPF. Os dois grupos mantêm uma parceria que já rendeu várias descobertas (ver Pesquisa FAPESP nº 193). No centro do equipamento no laboratório do CBPF fica um pequeno tubo de ensaio contendo uma solução puríssima de clorofórmio diluído em água. Cada uma dos cerca de 1 trilhão de moléculas de clorofórmio da solução possui um átomo de carbono-13. O núcleo desse tipo de carbono tem uma propriedade quântica chamada spin, que lembra um pouco a agulha de uma bússola magnética e pode ser representada por uma seta. Sob um forte campo magnético paralelo ao tubo, apontando de baixo para cima, as setas desses spins tendem a se alinhar com o campo, metade delas apontando para baixo e metade para cima. O campo magnético também faz com que os spins apontando para baixo tenham mais energia que os spins voltados para cima. Os físicos manipulam os spins por meio de campos eletromagnéticos, que oscilam com uma frequência de 125 megahertz (o equipamento precisa ser isolado para não captar as estações de rádio FM que transmitem nessa frequência). Essas manipulações são feitas por meio de pulsos de onda e não duram mais que
C
RESULTADO
A energia que os núcleos de carbono transferem para a onda de rádio é maior do que a que eles recebem dela, gerando um saldo positivo de energia. A energia extra pode ser usada para realizar trabalho
O experimento registrou variações de bilionésimos de graus na temperatura nos spins de carbono
INFOGRÁFICO ANA PAULA CAMPOS
FONTE ROBERTO SERRA / UFABC
alguns microssegundos. O experimento acontece tão rapidamente que é como se, por alguns instantes, cada átomo de carbono no tubo de ensaio estivesse isolado do resto do universo, submetido a uma temperatura muito próxima do zero absoluto (-273º Celsius). Os pesquisadores conseguem diminuir ou aumentar a diferença de energia entre os spins para baixo e para cima quando reduzem ou aumentam a amplitude de suas ondas de rádio. Quando essa mudança de amplitude é muito rápida, os spins saem de seu isolamento térmico e começam tanto a absorver energia das ondas de rádio – situação em que as ondas realizam trabalho sobre os spins – quanto a transmitir parte de sua energia para as ondas, realizando trabalho sobre elas. “Isso é muito difícil de medir, pois os spins dos carbonos podem trocar energia de quatro maneiras diferentes, todas acontecendo ao mesmo tempo, de maneira probabilística”, explica Serra. “Conheci um grupo na Alemanha que tentou fazer esse mesmo experimento por cinco anos sem sucesso.” O que impediu o sucesso do grupo alemão, segundo Serra, foi o fato de os físicos tentarem medir diretamente quantas
vezes a energia era emitida ou absorvida pelos spins. “O erro acumulado nessas medidas era tão grande que no fim não conseguiam determinar nada”, explica. MEDIÇÃO INTELIGENTE
A solução chegou mais cedo para Serra, em fevereiro de 2013, quando o físico Mauro Paternostro, da Queen’s University, em Belfast, Irlanda, apresentou um seminário na Ufabc sobre propostas inéditas de se observar o trabalho produzido por partículas de luz de maneira indireta. Logo Paternostro, atualmente professor visitante na Ufabc, e Laura Mazzola, sua colega em Belfast, começaram a discutir com Serra, Auccauise e o estudante de doutorado na Ufabc Tiago Batalhão como adaptar essas técnicas para observar o trabalho dos spins de carbono indiretamente. Com John Good, da Universidade de Oxford, Inglaterra, a equipe descobriu um modo esperto de usar os spins dos núcleos de hidrogênio das moléculas de clorofórmio para espiar o que acontece com os spins dos átomos de carbono enquanto realizam trabalho, sem interferir no processo. A precisão do experimento foi suficiente para registrar variações de tem-
peratura nos spins de carbono da ordem de bilionésimos de graus e verificar que a equação de Jarzinsky vale na escala subatômica. Outro resultado interessante: os spins de carbono possuem uma tendência maior de extrair energia das ondas de rádio quando a amplitude do pulso de onda é reduzida. A tendência se inverte quando a amplitude de onda é aumentada: os spins tendem a transferir energia para as ondas – ou seja, fazer trabalho sobre as ondas. “Podemos explorar essa diferença para criar uma máquina térmica quântica”, diz Serra. A máquina funcionaria alternando pulsos de amplitude reduzida e aumentada entre dois estados de equilíbrio térmico, cada um com uma temperatura diferente (ver infográfico). A máquina funcionaria de maneira parecida com a de um motor a combustão, que realiza trabalho mecânico com parte da energia química transformada em calor com a explosão do combustível. A máquina de spins teria pouca utilidade: o trabalho produzido forneceria uma energia ínfima para as ondas de rádio, apenas suficiente para mexer o spin de um núcleo atômico qualquer. Serra está mais interessado em medir quanta energia ela gasta e quanto calor ela dissipa durante seu funcionamento. “A técnica aplicada nesse experimento tem grande potencial”, diz o físico Lucas Céleri, da Universidade Federal de Goiás, que planeja observar a termodinâmica de uma única partícula de luz em parceria com os físicos Paulo Souto Ribeiro e Stephen Walborn, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no começo do ano que vem. “Avanços experimentais são muito raros na termodinâmica quântica, devido à necessidade de controlar o sistema quântico e seu isolamento do ambiente.” n
Projeto Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Informação Quântica (n. 2008/57856-6); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Amir Caldeira (Unicamp); Investimento R$ 1.384.811,24 (FAPESP) e R$ 5.700.000,00 (CNPq).
Artigo científico BATALHÃO, T. B. et al. Experimental reconstruction of work distribution and study of fluctuation relations in a closed quantum system. Physical Review Letters. v. 113 (14). 3 out. 2014.
PESQUISA FAPESP 226 z 57
ECOLOGIA y
O efeito protetor da biodiversidade Experimento indica que maior número de espécies de anfíbios ajuda a deter a transmissão de uma doença fatal causada por fungos
A
intuição, os modelos matemáticos e as observações de campo sugeriam que a perda de vegetação nativa com todos seus organismos poderia favorecer a transmissão de vírus, bactérias e outros agentes causadores de doenças. O problema é que também havia estudos científicos argumentando o contrário. Agora, um experimento fortaleceu a primeira possibilidade – quanto maior o número de espécies, menor a transmissão de uma doença –, ao indicar que a transmissão de um fungo que tem causado a extinção de anfíbios em vários países foi 66% menor entre grupos de sapos com maior diversidade de espécies em comparação com grupos com uma espécie única. “Apenas a diversidade, independentemente da composição de espécies, detém a transmissão de doenças”, concluiu o biólogo Carlos Guilherme Becker, pesquisador da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro e principal responsável pelo estudo. Desse modo, a riqueza biológica, medida por meio do número de espécies de plantas e de 58 z DEZEMBRO DE 2014
animais, teria um efeito protetor, por barrar a transmissão de agentes causadores de doenças. A partir desse raciocínio, pode-se associar a perda de vegetação nativa, com os organismos que a habitam, e o surgimento de doenças transmitidas por vírus como os responsáveis pela epidemia de Aids na década de 1990 e agora pelos surtos de Ebola – os vírus causadores dessas doenças foram encontrados inicialmente em reservatórios naturais, os animais silvestres, que as populações mais pobres da África abatem para se alimentar. “Nos países com maior número de casos de Ebola nesse momento”, diz Becker, “o desmatamento e a caça têm sido intensos nos últimos anos”. No trabalho que levou a essas conclusões, Becker usou cerca de 200 sapos de sete espécies com hábitos diferentes – duas espécies viviam na água, três em árvores e duas se reproduziam exclusivamente em ambientes terrestres. Todos os animais foram trazidos, em outubro de 2012, com as devidas autorizações de órgãos ambientais, de áreas do Parque
Estadual da Serra do Mar em que são abundantes. Becker preparou 53 caixas plásticas cobrindo metade do fundo com terra e a outra metade com água. Em cada uma das caixas, colocou quatro animais, em dois grupos diferentes: 28 caixas continham animais da mesma espécie e 25, animais de espécies diferentes, combinados aleatoriamente, sem repetição. Enquanto os animais se adaptavam ao novo espaço, Becker cultivou uma amostra do fungo Batrachochytrium dendrobatidis – ou Bd –, responsável pelo extermínio de populações de anfíbios
FOTOS C.G. BECKER
Carlos Fioravanti
ao redor do mundo. Ele preparou 53 soluções, cada uma com cerca de 1 milhão de zoosporos, o estágio infeccioso do fungo, e, no sétimo dia após o início do experimento, despejou-as na água de cada caixa, frequentemente visitada pelos animais. Depois de 18 dias, ele colheu amostras da secreção da pele dos animais, por meio de um cotonete, organizou as 212 amostras e quantificou a carga de infecção do fungo com análises de laboratório na Universidade Cornell, nos Estados Unidos, onde fazia o doutorado. QUANTO MAIS LONGE, MELHOR
As análises moleculares e estatísticas, detalhadas em um artigo publicado em novembro na Proceedings of the Royal Society of London B: Biological Sciences, indicaram que a contaminação, na maioria das espécies, era menor quando os animais estão misturados com representantes de outras epécies. Os animais
de hábitos aquáticos apresentaram uma taxa mais alta de contaminação do que os terrestres, que evitaram a água, mas também se infectaram. Em média, os animais das caixas mistas, com animais de quatro espécies cada, apresentaram uma quantidade de fungo 66% menor na pele que os das caixas com animais de uma única espécie. “Espécies com hábitos diferentes se evitam e ocupam o espaço mais eficientemente, o que deve ter reduzido a transmissão do fungo”, observou Becker. Segundo ele, às vezes a composição de espécies tende a influenciar a transmissão do fungo. Em 14 caixas, havia representantes da Brachycephalus pitanga, uma espécie terrestre que os outros animais evitavam, talvez por causa de sua cor alaranjada e secreções tóxicas. Como resultado, seus companheiros iam mais para a água e se infectaram mais que ela com o fungo.
Algumas das espécies de sapos usadas no experimento: diversidade evita contágio
“A diversidade de espécies, por si, já é uma causa da redução da transmissão do fungo, independentemente da composição de espécies”, concluiu Becker, desde outubro instalado no laboratório de Célio Haddad na Unesp de Rio Claro. Segundo ele, a conclusão poderia ser ampliada: “Quanto maior a diversidade de espécies vivendo em seus próprios espaços, menor o risco de transmissão de uma doença.” Seu argumento é que, em uma floresta, animais como os sapos vivem relativamente isolados em espaços distintos, árvores e outras plantas, próximos à água ou em tocas no solo firme. “Geralmente em ambientes com alto nível de desmatamento sobram algumas poucas espécies arborículas, outras poucas terrestres e outras poucas aquáticas, com alta densidade populacional.” E o adensamento facilita a propagação de microrganismos causadores de doenças. A conclusão agora reforçada experimentalmente é que preservar ambientes naturais deve ajudar a reduzir a transmissão de doenças infecciosas, como pesquisadores dos Estados Unidos haviam alertado em estudo publicado na Nature em 2010. De acordo com esse trabalho, a perda de biodiversidade pode mudar a abundância ou o comportamento do hospedeiro ou do vetor. De fato, o número de casos da doença de Lyme, causada por bactérias e transmitida por um carrapato, tem aumentado nos Estados Unidos, possivelmente em consequência da eliminação dos animais silvestres, como os pássaros, que serviam de reservatórios naturais do vírus, desse modo contendo a transmissão, e do aumento das populações de roedores, transmissores das bactérias causadoras da doença. “Se mantivermos a biodiversidade”, conclui Becker, “o risco de problemas para os animais silvestres e para nós é menor”. n
Projeto Especiação de anfíbios anuros em ambientes de altitude (nº 08/50928-1); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador respondável Célio Fernando Baptista Haddad (Unesp); Investimento R$ 1.407.985,13 (FAPESP).
Artigos científicos BECKER, C. G. et al. Partitioning the net effect of host diversity on an emerging amphibian pathogen. Proceedings of the Royal Society of London B: Biological Sciences v. 281, n. 1.795. 2014. KEESING, F. et al. Impacts of biodiversity on the emergence and transmission of infectious diseases. Nature v. 468, n. 7.324, p. 647-52. 2010.
PESQUISA FAPESP 226 z 59
ZOOLOGIA y
Vampiro vegetariano Ácaro transmite vírus que causa doença em laranjeiras ao se alimentar do suco celular Francisco Bicudo
C
om mais de 200 espécies conhecidas, os ácaros do gênero Brevipalpus são quase invisíveis a olho nu. Medem 0,3 milímetro e, colocados sobre uma folha de papel, seriam menores que o ponto final desta frase. Em geral se adaptam bem a diferentes condições ambientais e climáticas – podem resistir a invernos rigorosos, por exemplo –, mas preferem mesmo as regiões tropicais, com temperaturas mais amenas. Podem infestar mais de mil espécies de plantas e tornam-se praga quando se espalham em grande quantidade em culturas de chá e de uva. Um dos efeitos mais danosos que produzem é disseminar vírus que causam doenças em orquídeas, maracujazeiros, cafeeiros e laranjeiras – alguns vírus inicialmente provocam manchas em folhas, frutos e ramos, mas podem matar a planta. Estima-se que nos últimos tempos os produtores de laranja do estado de São Paulo, o maior produtor mundial de suco desse fruto, tenham gastado US$ 80 milhões por ano no combate ao Brevipalpus phoenicis, a espécie que espalha nos laranjais o vírus da leprose dos citros. Na busca de formas mais eficazes de minimizar essas perdas, o agrônomo bra60 z DEZEMBRO DE 2014
sileiro Elliot Kitajima, da Universidade de São Paulo (USP), e o zoólogo alemão Gerd Alberti, da Universidade de Greifswald, decidiram investigar como os ácaros adquirem esse vírus e depois o transmitem para as plantas. “Temos agora informações mais precisas sobre o passo a passo desse mecanismo de aquisição e transmissão, embora muitos detalhes ainda devam ser esclarecidos”, diz Kitajima, pesquisador do Departamento de Fitopatologia e Nematologia da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da USP (Esalq). No caso da leprose dos citros, como um vampiro que se contamina ao sugar o sangue de uma pessoa infectada, o Brevipalpus se infecta com o vírus ao consumir o conteúdo das células – o suco celular – das folhas de uma laranjeira doente. O vírus viaja pelo sistema digestivo do ácaro sem se multiplicar e, depois, é passado adiante quando o Brevipalpus se alimenta em uma planta saudável, como mostram os resultados apresentados neste ano em uma série de artigos da revista Zoologica. “O trabalho apresenta ainda uma revisão da taxonomia do Brevipalpus e avalia as perdas econômicas por ele provocadas”, completa Alberti. “Esse é provavelmente o
estudo mais detalhado sobre as estruturas internas desses ácaros”, diz. Kitajima estuda os vírus transmitidos pelo Brevipalpus desde os anos 1970, quando ainda estava na Universidade de Brasília – ele chegou à Esalq em 1995. Em meados da década passada, porém, viu-se diante de um impasse. “Conseguíamos visualizar o vírus no interior do ácaro, mas não tínhamos conhecimentos anatômicos suficientes para apontar com precisão em que parte do ácaro o vírus se encontrava”, conta. Em 2006, ele decidiu, então, procurar Alberti, uma das principais autoridades internacionais da área, que aceitou o desafio de investigar os detalhes internos de ácaros Brevipalpus. Foram sete anos de trabalho intenso e meticuloso. Os pesquisadores produziam fatias muito finas dos ácaros e depois as analisavam usando potentes microscópios eletrônicos. Também tiveram de fazer a reorganização tridimensional das estruturas anatômicas – “uma verdadeira tomografia”, diz Kitajima – para obter a localização precisa do vírus nos órgãos e tecidos. “É como se cortássemos uma mortadela e observássemos a distribuição espacial dos pedaços de gordura, que corresponderiam aos vírus”, compara. VIAGEM PELO CORPO
Com essa estratégia, eles confirmaram que o Brevipalpus ingere o vírus quando usa o estilete – um prolongamento em forma de agulha do aparelho bucal, só agora descrito em detalhe nesses ácaros – para perfurar a folha da laranjeira. O vírus chega ao intestino altamente ramificado (ceco) do ácaro junto com o alimento e se aloja entre membranas de células epiteliais ou glandulares vizinhas – e não no interior delas, como se suspeitava. Essa observação indica que o vírus da leprose dos citros apenas circula pelo corpo do ácaro, mas não se multiplica em seus tecidos. “Não se sabe ao certo como o vírus sai do ceco para o espaço entre as células e daí vai para o canal do estilete, por onde, com a saliva do ácaro, é injetado nas células das folhas sadias”, conta o pesquisador da Esalq.
Transportador de vírus O vírus da leprose dos citros se aloja temporariamente, sem se reproduzir, no organismo do ácaro
O ácaro Brevipalpus phoenicis usa o estilete, um prolongamento em forma de agulha do seu aparelho bucal, para perfurar as células superficiais da folha da laranjeira e ingerir o conteúdo das células
Ao se alimentar de plantas contaminadas, o ácaro adquire cópias do vírus (círculos no detalhe ao lado) presentes nas células da folha. Os vírus se alojam no sistema digestivo do ácaro por até 10 dias, período em que podem ser transmitidos
FOTOS ELLIOT W. KITAJIMA / ESALQ
para plantas sadias
Kitajima e Alberti contaram com o auxílio do grupo de João Spotti Lopes, entomologista da Esalq, para entender melhor o processo de alimentação do ácaro. Laura Garita, aluna de mestrado de Kitajima, conseguiu colar às costas do ácaro um delgado fio de ouro que se conectava a um circuito elétrico acoplado à planta. Toda vez que o ácaro se alimentava, o circuito se fechava e a corrente elétrica era registrada em um computador. Assim, foi possível conhecer a duração das diferentes fases de alimentação – inserção do estilete, salivação e sucção. O ácaro leva em média quatro horas para adquirir o vírus ao se alimentar em uma folha contaminada e cerca de duas horas para inocular o vírus no tecido sadio em outra refeição. Embora os vírus não se multipliquem no Brevipalpus, o ácaro é capaz de carregá-los por um longo período (10 dias), mesmo que não tenha acesso a novas fontes de vírus. Os pesquisadores observaram ainda que os vírus transmitidos pelo Brevipalpus pare-
cem produzir apenas lesões localizadas, provavelmente por não conseguir inocular o vírus no sistema vascular da planta. “Esses são dados fundamentais para complementar a epidemiologia, compreender como se dá a disseminação dos vírus na natureza e orientar iniciativas mais inteligentes e eficientes de controle de pragas”, afirma Kitajima. Ele explica que, em geral, a ação dos vírus é restrita, e a dispersão, lenta. “Assim, nos pomares, bastaria concentrar o combate nas plantas contaminadas e em suas vizinhas, sem necessidade de pulverizar inseticida em toda a plantação.” Na coletânea de artigos, Kitajima preparou um que traz uma revisão sobre a biologia do Brevipalpus e outro sobre as relações do ácaro com o vírus. Já Alberti se encarregou dos que tratam de detalhes anatômicos e do funcionamento dos sistemas digestivo e reprodutivo. Kitajima planeja agora detectar e caracterizar outros vírus transmitidos pe-
los ácaros Brevipalpus, ampliar as investigações sobre a taxonomia e a evolução desses aracnídeos, além de analisar possibilidades de controle biológico (predadores naturais). “Estamos conversando com produtores e compartilhando com eles nossas descobertas”, diz. “No caso da leprose dos citros, queremos encontrar as melhores estratégias para reduzir ao máximo o gasto com os laranjais.” n
Projetos 1. Manejo da leprose dos citros (nº 08/52691-9); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Elliot Watanabe Kitajima (Esalq/USP); Investimento R$ 576.462,69 (FAPESP). 2. Caracterização de vírus transmitidos por ácaros Brevipalpus (Tenuipalpidae) e estudos sobre a relação vírus/ vetor/hospedeira (n. 00/11805-0); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Elliot Watanabe Kitajima (Esalq/USP); Investimento R$ 362.063,71 (FAPESP).
Coletânea de artigos científicos ALBERTI, G. & KITAJIMA, E. W. (eds.). Anatomy and fine structure of Brevipalpus mites (Tenuipalpidae) – Economically Important Plant-Virus Vectors. Zoologica. v. 160. p. 1-192. mai 2014.
PESQUISA FAPESP 226 z 61
OBITUÁRIO y
O maestro do bisturi Adib Jatene foi responsável por marcos da medicina experimental e conquistas para a saúde pública Fabrício Marques
62 | DEZEMBRO DE 2014
científico do InCor, foi um dos principais artífices da realização de transplantes de coração no país, retomando as experiências feitas pelo professor Euryclides de Jesus Zerbini (1912-1993) no final dos anos 1960. A vida de homem público ganhou destaque em 1979, quando se tornou Secretário da Saúde do Estado de São Paulo do governador Paulo Maluf. Jatene criou, na época, um plano metropolitano de saúde para garantir um patamar mínimo de atendimento à população de baixa renda em todas as regiões da cidade. Boa parte dos hospitais construídos na periferia paulistana nos últimos anos resultou desse plano. E foi ministro da Saúde de dois presidentes. Permaneceu oito meses no cargo no governo Fernando Collor. Em 1995, com Fernando Henrique Cardoso, ganhou notoriedade pela batalha pela criação do imposto da saúde, que se transformaria na Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) – extinta em 2007. Não se cansava de repetir que a saúde necessita de recursos vinculados do orçamento mais do que outras áreas. “Quando vo-
cê constrói uma hidrelétrica, é preciso esperar ela ficar pronta para começar a ter receita. Mas quando você entrega um hospital público, gasta-se por ano com sua manutenção duas vezes o que foi destinado à obra. Por isso é preciso ter dinheiro vinculado”, disse em 2006, quando recebeu o Prêmio da Fundação Conrado Wessel, na categoria Medicina. ARMARINHO
Adib Domingos Jatene nasceu em Xapuri, no Acre. Perdeu o pai, um comerciante libanês, para a febre amarela, quando tinha apenas dois anos de idade. Passou a adolescência em Uberlândia, onde a mãe viúva foi viver, abrindo um armarinho. Trocou Uberlândia por São Paulo para fazer o ensino médio e se formou, aos 23 anos de idade, pela Faculdade de Medicina da USP. Ali também fez sua pós-graduação, orientado por Zerbini, com quem começou a trabalhar em 1951. Em 1955 tornou-se professor de uma faculdade de medicina em Uberaba, mas voltou a São Paulo dois anos mais tarde, como cirurgião do Hospital das Clínicas de São Paulo e do Instituto Dante Paz-
MARISA CAUDURO / FOLHAPRESS
A
biografia do cirurgião cardiovascular Adib Jatene, que morreu de infarto, aos 85 anos, no dia 14 de novembro, reúne uma coleção de marcos da medicina experimental brasileira e de conquistas no campo da saúde pública. Autor de mais de 700 trabalhos científicos, comandou ou fez com as próprias mãos cerca de 20 mil cirurgias cardíacas – e deixou várias contribuições no campo da cirurgia de revascularização do miocárdio e da cirurgia de doenças congênitas do coração. Nos anos 1950, organizou um laboratório, no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (FM-USP), precursor da atual Divisão de Bioengenharia do Instituto do Coração (InCor), no qual desenvolveu o primeiro aparelho coração-pulmão artificial do mundo. Em 1968 implantou a primeira ponte de safena no país. Em 1985 criou uma técnica de correção de uma cardiopatia congênita em bebês, a transposição dos grandes vasos, que se tornou conhecida como Operação de Jatene. Também nos anos 1980, já como professor titular da FM-USP e diretor
zanese. Em 1983, sucedeu Zerbini na cadeira de professor titular de cirurgia cardiovascular da FM-USP e ajudou a desenvolver o InCor, que se tornou um paradigma internacional de atendimento e pesquisa, e inaugurou um modelo de gestão hospitalar no qual o atendimento a pacientes particulares e de convênios hospitalares ajuda a financiar os leitos destinados aos pacientes do Sistema Único de Saúde. Aposentou-se na USP e no Incor em 1999, e seguiu operando no Hospital do Coração (HCor), instituição privada que também dirigia, embora já não fosse tão requisitado como antigamente – e achasse isso ótimo. “A vida inteira eu lutei para que houvesse equipes de excelência espalhadas por todo o Brasil e hoje isso é uma realidade. E muitas dessas equipes têm grandes cirurgiões que eu ajudei a formar”, afirmou, também na entrevista de 2006. Manteve múltiplas atividades. Seguiu liderando o Programa da Saúde de Família, coordenado pela Fundação Zerbini, responsável pela gestão do InCor, que construiu módulos de saúde nos bairros de Sapo-
Boa parte dos hospitais construídos na periferia paulistana nos últimos anos resultou de um plano lançado por Jatene nos anos 1980
pemba e Vila Nova Cachoeirinha. E, no Instituto de Cardiologia Dante Pazzanese, em São Paulo, continuou a se dedicar à bioengenharia, desenvolvendo próteses, equipamentos cirúrgicos e de diagnósticos para suporte a operações cardíacas, como um ventrículo cardíaco implantável eletromecânico destinado a pacientes na fila de espera por um transplante cardíaco. Encontrava tempo, ainda, para supervisionar suas fazendas de gado e, até recentemente, desempenhar as funções de presidente do Conselho Deliberativo do Museu de Arte de São Paulo (Masp), instituição da qual se tornou presidente de honra. Em 2012, Jatene sofreu um primeiro infarto – ele próprio diagnosticou o problema e convocou um colega de confiança para implantar um stent. Mas seguiu trabalhando. No ano passado, presidiu uma comissão de especialistas que ajudou o governo federal na formulação de projeto para mudanças no ensino médico no país. Deixou a mulher, Aurice, com quem se casou em 1954, quatro filhos — os médicos Ieda, Marcelo e Fabio e a arquiteta Iara – e 10 netos. n PESQUISA FAPESP 226 | 63
FABIO COLOMBINI
TECNOLOGIA BIOTECNOLOGIA y
Pele artificial Substituto cutâneo poderá ser usado como enxerto no tratamento de queimaduras e de lesões graves Yuri Vasconcelos
C
erca de um milhão de pessoas com queimaduras são registradas por ano no país. Desse total, 10% buscam atendimento hospitalar e 2.500 pacientes morrem. São os acidentes com fogo a segunda causa de morte na infância no Brasil e nos Estados Unidos. Por isso, a criação em laboratório de substitutos de pele para uso como enxerto tem sido um importante foco de pesquisa nos últimos 30 anos. Em vários países cientistas tentam desenvolver uma espécie de pele artificial que possa ser aplicada com sucesso em pessoas com lesões graves. Aqui no Brasil, vale destacar o trabalho feito por uma equipe de pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que provou em ensaios laboratoriais a eficácia de um substituto cutâneo tridimensional tendo na composição uma substância extraída de uma árvore nativa do país, a copaibeira (Copaifera langsdorffii). Desenvolvido ao longo do doutorado da bióloga Ana Luiza Garcia Millás, do Departamento de Engenharia de Materiais e Bioprocessos da Faculdade de Engenharia Química da Unicamp, com bolsa da FAPESP, o estudo ganhou em setembro o primeiro lugar no prêmio de inovação 64 z DEZEMBRO DE 2014
do 8º Encontro Nacional de Inovação em Fármacos e Medicamentos promovido pelo Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento em Fármacos e Medicamentos em conjunto com a Sociedade Brasileira Pró-Inovação Tecnológica. “O tratamento de queimaduras e lesões cutâneas extensas e graves é um desafio para a medicina regenerativa. Existem algumas alternativas para a substituição da pele, mas nenhuma delas atende a 100% da demanda e das necessidades para uma boa cicatrização. Nosso objetivo é criar uma pele artificial que possa ser absorvível pelo organismo e solucionar problemas crônicos como úlceras, escaras profundas e queimaduras de terceiro grau”, diz Ana Luiza. “Queremos desenvolver um substituto cutâneo 3D, que, além do papel reparador, tenha também função regenerativa, estética e facilite a cicatrização.” A nova pele artificial será produzida a partir de uma solução feita com polímero absorvível PLGA – sigla para poli (ácido láctico-co-glicólico) –, óleo-resina de copaíba e um solvente. Muito usado na fabricação de implantes, o PLGA é gradualmente degradado e absorvido pelo organismo do paciente. Depois de pronta, a solução de polímero é trans-
Tronco da copaibeira: matéria-prima para óleo-resina que facilita a regeneração de queimaduras
1 e 3 Equipamento para testar papel na Suzano 2 Licor negro usado para extração de lignina 4 Químico Sérgio Saraiva faz pesquisas em laboratório de P&D da empresa
PESQUISA FAPESP 226 z 65
Enxerto sintético Conheça as principais etapas do desenvolvimento do produto que poderá ser usado em implantes na pele
1
2
Seringa
3
4
5
Alta voltagem
Coletor
ENXERTO
20 A 30 DIAS
PLGA, óleo de copaíba e solvente
MATRIZ FIBROSA
SOLUÇÃO POLIMÉRICA
ELETROFIAÇÃO
CULTIVO CELULAR
CRESCIMENTO
IMPLANTE
O primeiro passo
A solução polimérica
Numa estufa a 37 graus
O tamanho do poro da
Finalmente, a pele
é a preparação
é colocada em uma
Celsius e que permite
matriz fibrosa permite
artificial (ou substituto
de uma solução
seringa e transformada
troca gasosa, células do
que os fibroblastos
de pele) formada pelo
formada por pellets
em fio por meio da
paciente responsáveis
migrem e proliferem
conjunto scaffold
do polímero
técnica de eletrofiação.
pela síntese do colágeno,
dentro dela, ligando-se
polimérico e células
biorreabsorvível poli
O resultado é uma matriz
denominadas
uns aos outros e
dérmicas está pronta
(ácido láctico-co-
fibrosa (ou scaffold),
fibroblastos, são
crescendo
para ser implantada em
-glicólico), conhecido
formada por filamentos.
colocadas sobre
em camadas que
pacientes com lesões
simplesmente como
O scaffold fibroso
o scaffold. Depois de
formam uma estrutura
cutâneas graves, como
PLGA, óleo-resina
polimérico é esterilizado
se fixar no substrato,
tridimensional.
queimaduras de
de copaíba e um
com raios gama
elas crescem, proliferam
Esse processo leva
terceiro grau, úlceras
solvente
ou ultravioletas
e se diferenciam
de 20 a 30 dias
e escaras
FONTE ANA LUIZA GARCIA MILLÁS / UNICAMP
66 z DEZEMBRO DE 2014
formada em uma fibra por uma técnica conhecida como eletrofiação. A estrutura resultante desse processo, também chamado de scaffold, servirá de suporte ou de uma armação celular tridimensional, mimetizando a arquitetura da pele. Paralelamente, fibroblastos, que são tipos de células da derme, a parte mais profunda da pele, são retirados por biopsia do paciente queimado. Essas células são cultivadas sobre a estrutura fibrosa que, após alguns dias, é implantada no paciente. De acordo com Benedicto de Campos Vidal, professor emérito do Instituto de Biologia da Unicamp e especialista em colágeno, os resultados in vitro alcançados até o momento são bem promissores e permitiram chegar a uma importante constatação: as células estão aderindo, proliferando, se diferenciando e, aparentemente, produzindo colágeno, proteína fundamental no processo de cicatrização. “Tudo indica que os
fibroblastos [células da derme] estão resultando em uma matriz de colágeno. Isso é fundamental para o sucesso da pesquisa”, diz Vidal. A nova estrutura celular tem como função dar suporte para que a epiderme, a parte mais superficial da pele, possa proliferar. Além de trabalhar com células do próprio paciente, Ana Luiza pretende utilizar também fibroblastos provenientes de terceiros. “A vantagem de usar células retiradas de outras pessoas é a possibilidade de produzir em larga escala para um banco de pele. O ponto negativo é que aumentam as chances de rejeição.” Um aspecto relevante da pesquisa é o emprego da técnica de eletrofiação, conhecida em inglês como electrospinning, que tem atraído interesse no campo da engenharia de tecidos pela facilidade em produzir fibras ultrafinas e com alta diferença entre superfície e volume sem a necessidade de uma instrumentação cara e complexa. A técnica,
INFOGRÁFICO ANA PAULA CAMPOS ILUSTRAÇÃO ALEXANDRE AFFONSO
aplicável a uma grande variedade de polímeros colágeno bovino e fibroblastos humanos. A pesnaturais ou sintéticos, também se destaca por quisa de Ana Luiza é uma evolução de um estudo permitir o controle de diâmetro, porosidade e iniciado durante seu mestrado, em 2010, intitutopografia dos filamentos. Ela também aumenta lado “Instalação de tecnologia de electrospinning a eficiência no transporte de nutrientes entre a para a produção e caracterização de nanofibras matriz de fibras e o ambiente externo. de celulose incorporadas com óleo natural”. EsA incorporação no substise trabalho levou à elaboração de uma patente que defende o tuto cutâneo de uma substânuso de fibras produzidas pela cia natural pouco estudada e tecnologia de eletrofiação e com comprovadas propriedaincorporadas com óleos essendes terapêuticas é outra inovação da pesquisa. Usado para ciais não só para uso como peOs ensaios in fins medicinais desde o século le artificial ou curativos, mas vitro mostraram XVI, o óleo-resina de copaíba também como filtros, tecidos atua como agente cicatrizante, e embalagens para alimentos que o material analgésico, anti-inflamatório e cosméticos. O desenvolvie antimicrobiano. “Esse é um mento do substituto cutâneo é biocompatível. aspecto inovador do trabalho, contou com a participação de juntamente com o uso de um uma equipe formada pelos enO próximo polímero para a produção da genheiros químicos Edison passo são os matriz a ser aplicada sobre a Bittencourt, professor da Falesão”, afirma a dermatologisculdade de Engenharia Quítestes clínicos ta Beatriz Puzzi, coordenadomica da Unicamp e orientador do doutorado de Ana Luiza, ra do Laboratório de Cultura em humanos e João Vinícios Silveira, além de Células de Pele da Faculdos professores Maria Beatriz dade de Ciências Médicas da Puzzi e Benedicto Vidal, tamUnicamp e coorientadora do doutorado de Ana Luiza. A inbém da Unicamp. Parte do desenvolvimento da pele artificial foi corporação do óleo de copaíba à matriz tem como objetivo funcionalizá-lo, facilitando a regeneração realizada no exterior. Em 2012, Ana Luiza foi fide queimaduras. A doutoranda da Unicamp expli- nanciada na pós-graduação pelo programa de bolca que a substância retirada do tronco da árvore sas mobilidade internacional do banco Santander, recebe o nome de óleo-resina por ser constituída e fez um programa sanduíche, intercalando parte por aproximadamente 45% de óleos essenciais dos estudos na Inglaterra. “Fui orientada pelo voláteis e 55% de resina. cientista Bob Stevens, professor da Universidade Nottinghan Trent e pesquisador colaborador da The Electrospinning Company. Essa empresa usa IMPRESSORA DE PELE Testes pré-clínicos, em animais, e clínicos, em hu- a plataforma de electrospinning para desenvolver manos, não foram realizados até o momento, mas biomateriais fibrosos para a área de medicina o grupo já vislumbra a possibilidade de produzir regenerativa. No período que passei na empreo material em escala maior, usando impressoras sa, decidi qual polímero usar para o propósito 3D digitais em combinação com a técnica de ele- que buscava, estabeleci todas as condições das trofiação. A ideia de utilizar essas impressoras soluções e do equipamento de eletrofiação para surgiu da necessidade de escalonar a produção a produção dos scaffolds e realizei testes in vitro do material e das exigências de manuseio da es- preliminares usando fibroblastos de pulmão.” trutura para o implante. “Iniciamos alguns testes Em 2013, Ana Luiza fez novo sanduíche, agora que combinam as duas técnicas, impressão 3D e no âmbito do programa Ciências sem Fronteiras, eletrofiação. Pode ser uma alternativa porque as na Universidade Cornell, nos Estados Unidos. n matrizes são extremamente frágeis e difíceis de manusear”, diz Ana Luiza. “Os ensaios in vitro já mostraram que o material é biocompatível e tem Projeto Desenvolvimento de scaffolds bioativos incorporados com óleos grande potencial. Acredito que os testes clínicos vegetais para regeneração de tecido cutâneo a partir da tecnologia possam ser iniciados dentro de dois anos e, se tude eletrofiação (nº 2012/09110-0); Modalidade Bolsa no País – Redo der certo, em cinco anos poderá ser iniciada gular – Doutorado; Pesquisador responsável Edison Bittencourt (Unicamp); Bolsista Ana Luiza Garcia Millás (Unicamp); Investimento a comercialização.” R$ 116.615,19 (FAPESP). A inovação surgida na Unicamp guarda semelhanças com dois produtos norte-americanos das Artigo científico empresas Organogenesis, dona do Apligraft, e Yusuf, M. et al. Platinum blue staining of cells grown in electrospun scaffolds. Biotechniques. v. 57, n. 3, p. 137-41. set. 2014. Forticell Bioscience, com o Orcel. Ambas utilizam PESQUISA FAPESP 226 z 67
EMPREENDEDORISMO y
Multiplicação dos alvos Empresa desenvolve sistema para identificação mais rápida de bactérias relacionadas a infecções hospitalares
Evanildo da Silveira
N
o mundo, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), 14% dos pacientes internados sofrem de infecções hospitalares. Só no Brasil, segundo a Associação Nacional de Biossegurança (ANBio), 100 mil pessoas morrem todos os anos por contaminações contraídas em hospitais e clínicas onde foram buscar tratamento para outras doenças. Uma das dificuldades no controle das infecções é a demora na identificação dos microrganismos dentro dos hospitais. Esse problema levou dois doutorandos de genética e biologia molecular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) a desenvolver uma tecnologia que analisa até 512 amostras e identifica, em cada uma delas, dezenas de milhares de espécies de microrganismos, num prazo de três a cinco dias, em média – tempo semelhante ao gasto para detectar apenas uma bactéria pelo método tradicional. Os doutorandos, o farmacêutico Marcos de Oliveira Carvalho e o biólogo Luiz Felipe Valter de Oliveira, criaram a pequena empresa Neoprospecta, no Sapiens Parque, em Florianópolis, Santa Catarina. A técnica antiga de identificação de bactérias, ainda a mais empregada, uti68 z DEZEMBRO DE 2014
liza placas de Petri, nas quais as espécies são cultivadas e identificadas uma a uma. O problema é que cada bactéria pode levar até uma semana para ser cultivada. A tecnologia da Neoprospecta associa análises de DNA a um algoritmo – instruções matemáticas para um software – que automatiza todo o processo. “É uma plataforma que envolve várias etapas, tecnologias e sistemas”, diz Carvalho, diretor-presidente da empresa. O processo todo é feito em quatro etapas: coleta de material em vários pontos do hospital – ou outras instituições e empresas como clínicas, postos de saúde, fábricas de alimentos e estações de tratamento de água –, sequenciamento do genoma, análise dos dados e apresentação dos resultados. A coleta é feita em pontos possivelmente contaminados, incluindo mãos, jalecos e instrumentos dos profissionais da instituição (médicos, enfermeiras, auxiliares), equipamentos de uso invasivo, quartos, corredores, bebedouros, portas, maçanetas, leitos e até nos próprios pacientes. “Para isso usamos, em cada amostra, instrumentos semelhantes a cotonetes, só que maiores, com até 15 centímetros, chamados swabs”, explica Carvalho. “Na
ponta, eles têm uma cápsula contendo um líquido chamado solução de lise e uma válvula de plástico, por onde essa solução entra em contato com o material recolhido.” Essa solução é feita de uma mistura de água, detergente e cloreto de sódio, mais conhecido como sal de cozinha, e é usada para romper a membrana celular. “Com isso, já no próprio swab começa a quebra das células das bactérias, o que dá mais segurança no transporte do material, e tem início o processo de purificação do DNA”, diz Carvalho. “São centenas de swabs usados na análise de um hospital. Depois da coleta, eles são colocados em caixas específicas, desenvolvidas por nós, que são levadas para nosso laboratório, onde o DNA dos microrganismos é purificado. Até esse ponto, o material genético de todas as espécies presentes nas amostras coletadas está misturado.” A fase seguinte é o sequenciamento. Mas, para isso, antes há uma preparação dessa “sopa” de DNA purificado de centenas ou milhares de espécies de bactérias. “Essa técnica de preparação foi desenvolvida e aperfeiçoada pela nossa empresa e permite ampliar a multiplexagem das amostras sem perda de qualidade”, explica Carvalho. “Com ela, nós analisamos
Laboratório da Neoprospecta: sequenciamento de microrganismos e identificação (abaixo) da espécie e da quantidade de bactérias relacionadas ao local da amostra
do banco de dados e muitos deles são desconhecidos até da ciência. Quando isso ocorre, as novas bactérias são etiquetadas e também passam a fazer parte dele. O trabalho de classificá-las poderá ser feito por outros pesquisadores da área de taxonomia, por exemplo.
FOTOS NEOPROSPECTA
INVESTIMENTO ACELERADO
em paralelo múltiplas amostras, obtendo-se mais rapidez e menor custo.” De acordo com ele, o preço para o cultivo de uma bactéria é em torno de R$ 100,00. Cada swab custa cerca de R$ 150,00, mas pode identificar centenas ou até milhares de espécies, o que reduz a centavos o valor gasto na identificação de cada bactéria. Na análise dos dados do sequenciamento – que chegam a dezenas de gigabytes –, o DNA, que ainda continua todo misturado, é separado por espécie. Assim, vai ser possível identificar quais existem na amostra e a quantidade de bactérias.
“Nessa fase, os dados são submetidos a outros algoritmos, que os individualizam por espécie e os catalogam”, explica Carvalho. “Todo o processamento é feito em servidores da Neoprospecta, nos quais os dados são codificados e tratados sob regime de alta segurança.” Para identificar cada espécie de microrganismo, o algoritmo compara o DNA das bactérias sequenciadas na amostra com o de bilhões que formam um banco de dados da empresa. Apesar desse grande número catalogado, até 50% dos que são identificados num hospital estão fora
A última fase é a apresentação dos resultados. “Para isso os dados são carregados em um sistema desenvolvido por nós para a análise de risco microbiológico e controle de qualidade do ambiente hospitalar”, explica Carvalho. “Esse sistema apresenta uma visualização da carga microbiológica nas amostras coletadas.” Hoje, a Neoprospecta tem três hospitais como clientes, dois em São Paulo e um em Porto Alegre, cujos nomes ele não pode revelar. Pode não ser muito, mas é significativo para uma pequena empresa com apenas pouco mais de um ano de atuação. A história da Neoprospecta começou em 2010, quando Carvalho e Valter de Oliveira venceram o Prêmio Santander de Empreendedorismo, pelo modelo de negócio da empresa. No ano seguinte eles ganharam o Prêmio Ibero-Americano de Inovação e Empreendedorismo, promovido pela Secretaría General Iberoamericana (Segib), sediada em Madri. Nessa época, a Neoprospecta andou devagar, porque os dois sócios estavam fazendo doutorado na UFRGS. No fim de 2012, eles saíram atrás de investidores. Em 2013, a empresa recebeu aporte de R$ 500 mil de um investidor-anjo e transferiu-se de Porto Alegre para o Sapiens Parque, em Florianópolis, onde passou por um processo de aceleração e desenvolvimento de tecnologia própria. Mais recentemente a Neoprospecta recebeu uma injeção de recursos de R$ 4 milhões do fundo Cventures Primus. “O dinheiro está sendo usado em infraestrutura, área comercial, pesquisa e desenvolvimento”, conta Carvalho. “Além disso, os recursos também foram empregados na construção de cinco laboratórios e na compra de equipamentos.” n PESQUISA FAPESP 226 z 69
NANOTECNOLOGIA y
Interações fatais
Nanotubos de carbono combinados com chumbo ou pesticidas potencializam efeitos tóxicos em peixes Dinorah Ereno
E
studos conduzidos em parceria por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Laboratório Nacional de Nanotecnologia (LNNano) e do Instituto de Pesca do Estado de São Paulo, em Cananeia, no litoral sul paulista, mostraram que quando nanotubos de carbono entram em contato com substâncias tóxicas como chumbo e pesticidas em ambientes aquáticos há um aumento expressivo de toxicidade para peixes como tilápias-do-nilo (Oreochromis niloticus), camarões-d’-água-doce e outras espécies. Os mais recentes resultados da pesquisa que avaliou a interação entre esses nanomateriais e carbofurano, um pesticida com alta toxicidade utilizado no Brasil em culturas agrícolas, foram publicados on-line na revista Ecotoxi70 z DEZEMBRO DE 2014
cology and Environmental Safety em novembro e sairão na edição impressa em janeiro de 2015. “Quando foi feita a combinação com o nanotubo houve um aumento de cinco vezes na toxicidade do carbofurano para as tilápias”, diz o professor Oswaldo Alves, do Laboratório de Química do Estado Sólido (LQES) do Instituto de Química da Unicamp, coordenador da pesquisa. “Isso é um claro indicativo de que a nanoestrutura está potencializando o efeito tóxico do pesticida.” Em outro sentido, ele também funciona como um excelente concentrador de pesticidas, metais e hormônios. Ou seja, o nanotubo é um material que tem propriedades potenciais para uso em filtros de sistemas de tratamento de água e sensores. “É preciso, no entanto, avaliar como será o descarte desses
materiais e pensar nas implicações ambientais futuras”, ressalta Alves. Entre os testes feitos no Instituto de Pesca, conduzidos pelo professor Edison Barbieri em parceria com Diego Stéfani Teodoro Martinez, aluno de doutorado e pós-doutorado de Alves e atualmente pesquisador do LNNano, em Campinas, estão o consumo de oxigênio – uma das medidas utilizadas para avaliação do metabolismo de organismos – e a capacidade de natação dos peixes. As descobertas indicam que as nanoestruturas de carbono podem atuar como transportadores de pesticidas e afetar o comportamento dos peixes, além da sobrevivência deles. Os testes mostraram que até a concentração de 2 miligramas (mg) de nanotubos por litro na água não houve diferença em relação ao controle no consumo
FOTO EDUARDO CESAR DETALHES UNICAMP
Tilápias em experimento realizado no Instituto de Pesca em Cananeia: à esquerda, imagem de microscopia de teste com nanotubos e chumbo mostra filamentos das brânquias deformados e inchados em comparação com o grupo-controle, à direita, em água sem substâncias tóxicas
de oxigênio. Quando o carbofurano foi colocado sozinho na água, inicialmente houve um aumento no consumo de oxigênio e logo em seguida uma diminuição, indicativo de que os peixes estavam começando a morrer. “Nos experimentos feitos com essa substância nas proporções de 0,5, 1 e 2 mg, combinado com o nanotubo de carbono (1 mg) o consumo de oxigênio baixou rapidamente, apontando uma nítida diferença em relação ao grupo de controle”, diz Barbieri, coordenador das pesquisas no Instituto de Pesca. Em relação à capacidade de natação, houve uma tendência de diminuição à medida que o pesticida e o nanotubo estavam na água. Iniciadas em 2010, as pesquisas tinham como objetivo estudar a interação de nanomateriais com poluentes comuns
como o chumbo, que em Cananeia, por exemplo, consiste em um sério problema ambiental. “Lá, os afloramentos de chumbo provenientes de galenas [minerais compostos por sulfeto de chumbo] são naturais e ocorrem quando chove muito e há lixiviação do solo”, diz Barbieri. O estudo teve início com a exposição de tilápias a nanotubos de carbono e chumbo em diferentes concentrações por períodos de até 96 horas. Os resultados foram apresentados em novembro de 2012 por Martinez, em um congresso internacional sobre segurança de nanomateriais chamado NanoSafe, realizado a cada dois anos em Grenoble, na França. Os nanotubos aumentam em até cinco vezes a toxicidade aguda do chumbo para as tilápias. No experimento em que os peixes foram expostos apenas a essas
nanoestruturas de carbono não houve nenhum sinal de toxicidade aguda até o limite de 2 mg por litro. A primeira fase dos ensaios consistiu em fazer o experimento-controle apenas com água mineral. Depois foram feitos testes com o nanotubo e chumbo separadamente colocados em diferentes concentrações até o limite de 2 mg por litro e, por último, com os dois materiais juntos. “O consumo de oxigênio diminui em todas situações com a presença de ambos”, diz Barbieri. Um artigo científico com os resultados da pesquisa saiu publicado no Journal of Physics: Conference Series, em março de 2013. “Na literatura científica mundial são poucos os estudos que tratam da interação entre poluentes ambientais e nanotubos de carbono, focalizando os impactos na fisiologia e comportamento PESQUISA FAPESP 226 z 71
Imagem de microscópio de transmissão eletrônica mostra nanotubos produzidos no Instituto de Química da Unicamp
A
interação entre chumbo e nanotubos de carbono e seus efeitos tóxicos sobre brânquias de tilápias foi também objeto de estudo de alunos de mestrado orientados por Edison Barbieri, do Instituto de Pesca. Eles estudaram os efeitos dessa combinação sobre as brânquias, principal órgão responsável pelas trocas gasosas e pela excreção da amônia, mecanismo pelo qual são removidos do organismo de animais aquáticos resíduos tóxicos como amônia, ureia e sais, responsável por manter o equilíbrio do meio interno, isto é, a homeostase. “No experimento-controle é possível ver todos os filamentos das brânquias preservados, já com a adição de nanotubos de carbono e chumbo, juntos ou separadamente, há deformação e inchaço nas células de revestimento das lamelas, responsáveis pelas trocas gasosas”, relata Barbieri. Os testes com carbofurano e nanotubos também tiveram resultados semelhantes. Antes dos experimentos terem início, foi feita a purificação e caracterização dos materiais, visando a um estrito controle da qualidade para garantir resultados convergentes. “Parte da tese de Diego foi aprender a purificar nanotubos de carbono”, diz Alves. “Foram quatro anos em que ele se 72 z DEZEMBRO DE 2014
dedicou ao tema e hoje se beneficia disso porque tem um material de qualidade para os ensaios biológicos e toxicológicos.” Alves explica que os ensaios biológicos precisam ser feitos com material comprovadamente muito bem conhecido. “Os nanotubos feitos por uma empresa são diferentes daqueles produzidos por outra.” Para que o material final tivesse a mesma qualidade, os pesquisadores encomendaram nanotubos de uma empresa coreana, que antes de ser usado passa por um processo refinado de purificação. “Para cada material que sai do LQES, fazemos uma ficha técnica, onde consta a identificação da amostra e dados de sua caracterização.” A produção de nanotubos hoje é da ordem de 20 toneladas por ano, com 600 diferentes tipos disponíveis no mercado para aplicações que englobam nanocompósitos, concreto, tintas especiais, energia, eletrônica e até aplicações médicas e ambientais. Europa e Coreia do Sul encabeçam a lista dos maiores produtores. “Embora ainda não existam empresas brasileiras produzindo em larga escala essas substâncias, precisamos ser proativos, pensar no futuro e na regulação dessa tecnologia”, diz Alves. “É preciso cuidar do descarte e, para isso, tem que se conhecer todo o ciclo de vida do material, o que demanda muita pesquisa.” Atualmente, todo o material importado à base de nanotubos de carbono entra no Brasil simplesmente como material de carbono, elemento químico que compõe desde o carvão ativo usado em filtros até medicamentos, já que não existe uma regulamentação específica para nanomateriais.
Projeto Instituto Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Materiais Complexos Funcionais (Inomat) (nº 2008/57867-8); Modalidade Auxílio Pesquisa – Projeto Temático; Pesquisador responsável Fernando Galembeck (Unicamp/LNNano); Investimento R$ 2.085.423,04 (FAPESP).
Artigos científicos CAMPOS-GARCIA, J. et al. Ecotoxicological effects of carbofuran and oxidised multiwalled carbon nanotubes on the freshwater fish Nile tilapia: Nanotubes enhance pesticide ecotoxicity. Ecotoxicology and Environmental Safety. v. 111, p. 131-7. jan. 2015 MARTINEZ, D. S. T. et al. Carbon nanotubes enhanced the lead toxicity on the freshwater fish. Journal of Physics: Conference Series. v. 429, n. 012043 mar. 2013.
LQES/UNICAMP
de peixes”, diz Martinez. Ainda mais, faltam dados conclusivos sobre os efeitos de longa duração desses nanomateriais descartados no ambiente. Isso significa que as pesquisas não acompanharam o crescimento do mercado dessas nanoestruturas com propriedades físicas e químicas diferenciadas, que têm crescido ano a ano.
A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por exemplo, ressalta que materiais nanoestruturados têm propriedades interessantes, mas é preciso cuidado ao incorporá-los a outros, sobretudo envolvendo uso biológico. “A organização faz um alerta para que eles só sejam usados se houver dados de laboratório a respeito de sua toxicidade ou alguma avaliação ligada a possíveis efeitos no organismo”, diz Alves, cujo grupo recebe financiamento do Instituto Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (INCT) em Materiais Complexos Funcionais (Inomat), que tem recursos da FAPESP e do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). As pesquisas agora terão como foco a influência da matéria orgânica presente na água de rios e lagos sobre as nanoestruturas. “Queremos saber se na presença de matéria orgânica os pesticidas param de interagir com os nanotubos”, diz Martinez. “A ideia do projeto é funcionar como uma plataforma para todos os poluentes ambientais clássicos e emergentes, incluindo hormônios e antibióticos.” Dessa forma, será possível avaliar as interações de vários poluentes com amostras nanoestruturadas. “Os trabalhos feitos até agora apontam para nós que essas nanoestruturas não poderão ir nem para o rio nem para o mar.” É preciso, ainda, fazer estudos sobre o seu descarte no solo e os efeitos sobre plantas, porque já se sabe que os seus impactos ambientais são de longa duração. n
Regulamentação em pauta Evento na França discute produção e uso seguro de nanomateriais
O tema da regulação tem mobilizado
diz Alves. Um dos blocos de construção
pesquisadores e indústrias no mundo,
desse trinômio passa pela padronização.
interessados nas várias possibilidades
“O Parlamento europeu tem destacado
de utilização de nanoestruturas. Nos dias
a importância da padronização como uma
5 e 6 de novembro, por exemplo,
maneira de acompanhar a introdução dos
representantes brasileiros estiveram
nanomateriais no mercado, avaliando
presentes em um grande evento na
que tal situação facilitará a implementação
Holanda, capitaneado pela Comunidade
de uma regulação efetiva”, relata.
Europeia, que teve como resultado a adesão
Alguns países, como Bélgica, França e
do Brasil a um dos mais importantes clusters
Dinamarca, têm implementado regulações
ligado à regulação internacional da
sobre nanomateriais específicos. “Nos Estados Unidos, a Agência de
nanotecnologia. Outro evento importante,
Proteção Ambiental (EPA) publicou em 2008
no âmbito científico, foi a NanoSafe 2014, conferência internacional sobre a produção
1
FOTOS 1 VIN CRESPI / UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PENSILVÂNIA 2 PETER ALLEN / UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA SANTA BÁRBARA 3 JAMES TOUR / UNIVERSIDADE RICE
duas resoluções, dentro do escopo do Ato de Controle de Substâncias Tóxicas (TSCA),
e o uso seguro de nanomateriais, realizada entre os dias 18 e 20 de novembro
produção industrial e prevenção; análise de
indicando claramente uma mudança de
em Grenoble, na França.
ciclo de vida; regulação e padronização, e
postura na questão da regulação da
Na quarta edição do evento, realizado a
desenvolvimento responsável. O Brasil,
nanotecnologia no país”, diz Alves. A FDA,
cada dois anos desde 2008, participaram
representado por pesquisadores de
agência norte-americana de controle de
mais de 300 pesquisadores de 30 países,
instituições como Unicamp, Universidade de
alimentos e medicamentos, também se
que apresentaram 160 comunicações orais
São Paulo (USP), Universidade Federal de
ocupa das aplicações da nanotecnologia
e 86 pôsteres, além de 12 expositores, entre
São Paulo (Unifesp), Universidade Federal
na área da saúde e tem lançado consultas
empresas e organizações. “Desde a sua
do ABC (UFABC), Universidade Federal de
públicas desde 2011. Alves ressalta que,
primeira versão, o evento procura abordar
Minas Gerais (UFMG) e Universidade
apesar de a questão da padronização
vários temas ligados à segurança dos
Federal de Juiz de Fora (UFJF), apresentou
da nanotecnologia estar no centro das
nanomateriais em diferentes sessões”, diz o
15 trabalhos. Uma das novidades mostradas
discussões em Grenoble, essa é uma tarefa
professor Oswaldo Alves, da Universidade
por algumas empresas foram equipamentos
altamente complexa. “Sabemos que a própria
Estadual de Campinas (Unicamp), presente
portáteis que permitem monitorar a
natureza dos nanomateriais, caracterizada
ao evento, onde mostrou os resultados
presença de nanopartículas em instalações
pela falta de homogeneidade, consiste
do projeto que coordena sobre o aumento
industriais, construção e outros ambientes.
em um obstáculo de altíssima dificuldade.”
da toxicidade de nanotubos de carbono para
A regulação e a padronização dos
A superação dessas dificuldades, na sua
nanomateriais são fundamentais
avaliação, se dará com o desenvolvimento
para o desenvolvimento comercial da
não só de novos métodos para a produção
NanoSafe 2014 estão novas aplicações
nanotecnologia. “O tema foi colocado
de materiais nanoestruturados, novos
de nanomateriais; nanotoxicologia, com
em pauta pela Comissão Europeia
equipamentos, como também novos
estudos envolvendo trato respiratório,
com base na Estratégia Europeia para as
protocolos de análise e rastreabilidade.
cérebro e pele como alvos; interações com
Nanotecnologias, que está apoiada no tripé
Com isso poderá ser possível chegar às
o ambiente; liberação de nanomateriais;
segurança, integração e responsabilidade”,
validações necessárias à padronização. n
peixes quando em contato com o chumbo. Entre os assuntos discutidos na
2
3
Representações gráficas de nanomateriais: nanotubos acima, grafeno e nanoestruturas funcionais, ao lado
PESQUISA FAPESP 226 z 73
AGRICULTURA y
Adubo natural Leguminosa usada como fertilizante pode aumentar em 35% a produtividade da cana-de-açúcar
1
N
ão é de hoje que produtores rurais do mundo todo usam o chamado adubo verde – biomassa de uma espécie vegetal que serve como fertilizante para outra planta –, mas são poucos os estudos científicos que explicam como isso funciona e quantificam seus resultados. Foi justamente a busca dessas respostas que fez o agrônomo Edmilson José Ambrosano, pesquisador da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (Apta), da Secretaria da Agricultura e Abastecimento de São Paulo, em dois projetos apoiados pela FAPESP. As pesquisas demonstraram que o uso da crotalária-juncea ou simplesmente crotalária (Crotalaria juncea), pode substituir totalmente o uso da adubação com nitrogênio químico nas lavouras de cana-de-açúcar, gerando um aumento de 35% na produtividade e ganho econômico de cerca de 150%. Originária da Ásia, a crotalária cresce muito rápido e de forma vigorosa. É a espécie que produz a maior quantidade de biomassa no menor tempo. Além disso, é uma planta fibrosa e, por isso, usada na fabricação de papéis especiais. 74 z DEZEMBRO DE 2014
Uma das principais vantagens do uso como fertilizante vem do fato de ela ser uma leguminosa, família cujas espécies têm a capacidade de fixar ou incorporar o nitrogênio do ar em uma molécula orgânica. “Com raras exceções no reino vegetal, só as leguminosas conseguem fazer essa fixação do ar atmosférico com a ajuda de bactérias encontradas nas suas raízes”, explica Ambrosano. “Além de fornecedora desse elemento, a crotalária também é utilizada como espécie recuperadora de solos degradados.”
A cana, por sua vez, é uma das maiores culturas agrícolas do país. Espécie de cultivo semiperene, ela fica no mesmo local por quatro a oito anos, sendo colhida todo ano. Ao término desse tempo, o canavial é reformado com a destruição do velho e o plantio do novo. No Brasil, é renovado todos os anos 1,9 milhão de hectares. “São nessas áreas ou nas novas que se faz a semeadura do adubo verde para recuperação do solo e incorporação do nitrogênio”, diz Ambrosano. “Isso já vem sendo feito no Brasil desde 1934.”
1 Plantação de crotalária: maior quantidade de biomassa em menor tempo
2
2 Experimento realizado no Cena, em Piracicaba, com aplicação de compostos com nitrogênio 15 sobre a crotalária
1
A maneira natural de aproveitamento do nitrogênio se dá por meio das leguminosas, com a ajuda de bactérias, especialmente as do gênero Rhizobium. Esses microrganismos se associam às plantas, numa simbiose, formando nódulos em suas raízes, de onde capturam o gás do ar – o solo é poroso – e o transformam em compostos nitrogenados como aminoácidos, que podem ser utilizados pelos vegetais em seu metabolismo. Uma outra maneira de transformar o nitrogênio da natureza num elemento aproveitável pelas plantas é o que as fábricas de fertilizantes fazem. Só que o processo gasta muita energia e, por isso, ele é o adubo TÉCNICA NUCLEAR Para realizar o estudo, Ambrosano criou mais caro da agricultura. O nitrogênio existe na natureza na forum experimento com a técnica chamada marcação isotópica do nitrogênio. Esse ma de dois isótopos, o nitrogênio 14 (14N), elemento é o mais abundante da atmosfera que representa 99,634% do total na atmosterrestre, com cerca de 78% do total dos fera, e o 15 (15N), correspondente a 0,366%. gases que circundam o planeta – o oxigê- Isótopos são variantes de um mesmo elenio responde por 21%. No ar, ele aparece mento químico, com as mesmas propriena forma de N2, moléculas formadas por dades, e que têm o mesmo número de pródois átomos, numa ligação covalente (que tons, mas o de nêutrons é diferente. Assim, compartilha elétrons) tripla, altamente re- o 14N tem sete prótons e sete nêutrons e o sistente. Por isso, os animais e as plantas 15N tem um nêutron a mais, o que o torna não conseguem metabolizar o nitrogênio. mais pesado. “Por isso, tivemos de imagi-
FOTOS 1 FABIO COLOMBINI 2 EDMILSON AMBROSANO / APTA
O objetivo do trabalho, que começou em 2003 e se estendeu até recentemente, era estudar o efeito da adubação verde na cana. “Nós já sabíamos que a crotalária era um bom fertilizante e funcionava bem como fornecedora de nitrogênio”, conta. “O que queríamos saber era quanto desse elemento vai da leguminosa para a cana-de-açúcar. Aproveitamos para verificar a transferência do nitrogênio presente no sulfato de amônio, que é um adubo químico muito usado. Nossa ideia era comparar a eficiência dos dois tipos de fertilizante, o verde e o químico.”
nar uma forma de marcar o que está presente na crotalária, para que pudéssemos verificar o quanto dele iria ser aproveitado pela cana”, explica Ambrosano. O estudo foi feito no Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena), da Universidade de São Paulo (USP), também em Piracicaba, que produziu um nitrogênio com 70% de 15N e 30% de 14N. O passo seguinte foi preparar dois terrenos, um de 2,80 metros (m) por 2 m e outro de 1,40 m por 1 m. Em ambos foi plantada crotalária. No primeiro, ela recebeu ureia rica em 15N, aspergida em suas folhas. No segundo, a plantação recebeu sulfato de amônio, também rico em 15N. Depois deixou-se a planta crescer até cerca de 2 m, quando ela foi derrubada e a cana plantada nos mesmos terrenos, sendo cultivada por cinco anos e colhida três vezes. A recuperação do 15N foi medida nas duas primeiras colheitas. Para fazer essa avaliação, o pesquisador pegava folhas da cana e levava para o laboratório, onde, por meio de um espectrômetro de massa verificava a quantidade de nitrogênio marcado, ou seja, do 15N da crotalária. “A passagem desses elementos da crotalária para a cana, nas primeiras duas safras consecutivas, foi de 19% e 21%, e do aplicado com sulfato de amônio foi de 46% a 49%”, conta Ambrosano. “Concluímos que o nitrogênio da adubação supriu as necessidades da cana, equivalente ao uso de 70 quilos desse elemento por hectare.” Apesar de o sulfato de amônio ter passado mais nitrogênio para a cana, o adubo verde tem outras vantagens que superam essa diferença. “Além de ser mais barata, a crotalária protege o solo das chuvas fortes e o descompacta, melhorando a infiltração de água”, diz Ambrosano. n Evanildo da Silveira
Projetos 1. Dinâmica do nitrogênio em cana-de-açúcar após adubação verde com Crotalaria juncea (nº 2006/59705-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador Responsável Edmilson José Ambrosano (Apta); Investimento R$ 36.860,00 (FAPESP). 2. Dinâmica do nitrogênio em cana-de-açúcar após adubação verde com Crotalaria juncea (nº 1998/16446-6); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador Responsável Edmilson José Ambrosano (Apta); Investimento R$ 26.309,10 e US$ 701,02 (FAPESP).
Artigo científico AMBROSANO, E. J. et al. 15N-labeled nitrogen from green manure and ammonium sulfate utilization by the sugarcane ratoon. Scientia Agricola. v. 68, n. 3, p. 361-8. jun. 2011.
PESQUISA FAPESP 226 z 75
HUMANIDADES
PACÍFICO Um dos grandes legados da expedição foi ter produzido 280 mapas de ilhas do Pacífico, região pouco conhecida até então, e 180 cartas náuticas
OCEANO PACÍFICO
OCEANO PACÍFICO
ANTÁRTIDA A expedição mapeou um trecho de 2.400 quilômetros do litoral antártico e concluiu que ali havia terra firme. Um veleiro americano encontrou um barco francês nos arredores do continente
HISTÓRIA y
Nas ondas da globalização Primeira expedição científica de circum-navegação dos Estados Unidos mostra que a jovem nação buscava um lugar no mundo desde o início do século XIX Marcos Pivetta
COSTA OESTE DA AMÉRICA DO NORTE Na época da viagem de circum-navegação, entre 1838 e 1842, as fronteiras dos Estados Unidos mal chegavam às Montanhas Rochosas, no Centro-Oeste da América do
Norte, e não lhe garantiam saída alguma para o lado do Pacífico. Por isso, um dos objetivos da expedição foi mapear boa parte da costa Oeste, entre o Oregon e a Califórnia
TERRITÓRIO DOS EUA EM 1838
OCEANO ATLÂNTICO
OCEANO ÍNDICO
RIO DE JANEIRO A cidade foi a primeira parada da expedição em 1838. Foi descrita pelo capitão Wilkes como uma cidade marcada pelo convívio do atraso com a modernidade, com uma “mistura de classes” Itinerário do veleiro Vincennes, principal navio da expedição Itinerário das demais embarcações Direção seguida
ILUSTRAÇÃO MAPA SANDRO CASTELLI GRAVURAS REPRODUÇÃO DE RELATÓRIOS DA U.S. EXPLORING EXPEDITION, 1844-1874
FONTE EM TEMPOS DE PAZ: A VIAGEM CIENTÍFICA DE CIRCUM-NAVEGAÇÃO DA U.S. EXPLORING EXPEDITION (1838-1842)
E
xatamente 62 anos após terem rompido os laços coloniais com a Inglaterra, os Estados Unidos deram uma clara demonstração de seu desejo de afirmação no plano internacional e de concorrer com os europeus na investigação do globo. Forjado no último quartel do século XVIII a partir da união de 13 colônias separatistas da costa Leste da América do Norte, o jovem país patrocinou sua primeira expedição científica de circum-navegação em torno de todos os continentes. A bordo de seis veleiros, 346 homens, entre os quais 40 oficiais, sete cientistas e dois artistas, realizaram ao longo de quatro anos, de
1838 a 1842, um périplo em torno dos continentes da Terra. Da longa viagem não resultou nenhuma teoria da evolução, como ocorreria ao naturalista inglês Charles Darwin anos depois de ter participado da volta ao mundo feita pelo navio HMS Beagle entre 1831 e 1836. Mas a empreitada serviu para lançar as bases de importantes intuições de pesquisa, formar quadros técnicos e sobretudo mapear áreas de interesse para a expansão territorial, em especial na costa Oeste da América do Norte. “A expedição revela que uma cultura imperial pode ser encontrada nos Estados Unidos desde os primórdios do Estado nacional”, diz a PESQUISA FAPESP 226 z 77
historiadora Mary Anne Junqueira, da Universidade de São Paulo (USP), que fez no fim de 2012 sua tese de livre-docência sobre a aventura marítima patrocinada pelo governo de Washington. Intitulado “Em tempos de paz – A viagem científica de circum-navegação da U. S. Exploring Expedition (1838-1842)”, o trabalho, parcialmente financiado pela FAPESP, será publicado como livro no próximo ano. Embora pouco conhecida do grande público, inclusive do norte-americano, a empreitada da nascente nação foi uma das mais grandiosas expedições de circum-navegações de caráter técnico-científico levadas a cabo na primeira metade do século XIX. A Inglaterra e a França, as duas potências de então, fizeram mais viagens desse tipo, mas geralmente destinavam um ou dois navios para essas iniciativas. Nessa época, expedições marítimas globais também foram empreendidas pela Espanha, que tentava manter um olho vigilante sobre suas colônias extramarinhas, e pela Rússia, esta, sim, uma nação em ascensão, igualmente em busca de prestígio e influência no plano internacional. “Os Estados Unidos procuravam seu lugar no mundo e a rivalidade com os europeus não se dava apenas em terra, mas também em águas internacionais”, afirma Mary Anne.
S
ob o comando de Charles Wilkes, um temperamental capitão de 42 anos que viajava na chalupa de guerra Vincennes, a jornada marítima dos norte-americanos iniciou-se no porto de Norfolk, no estado da Virgínia, em 18 de agosto de 1838. Os veleiros navegaram até as proximidades da Ilha da Madeira, não muito longe da África, e rumaram posteriormente para a porção meridional do continente americano. A primeira parada foi no Rio de Janeiro, sociedade, segundo o capitão, marcada pelo convívio do atraso com a modernidade, por uma “mistura de classes” e onde “a vegetação parece fixar a atenção sobre todas as outras coisas”. A expedição contornou a América do Sul e, além do Brasil, fez escalas na Argentina, Antártida, Chile e Peru. Em seguida, singrou pelo Pacífico Sul (Taiti, Samoa), ancorou 78 z DEZEMBRO DE 2014
30 anos. Redigidos pelo próprio capitão Wilkes, que enfrentou uma corte marcial (por desmandos a bordo e acusações de assassinato de nativos) logo após o fim da expedição, mas escapou de ser punido, os cinco primeiros tomos foram ao prelo em 1844. Eles compunham a narrativa da jornada marítima. Esse foi, aliás, o material de base para o estudo da historiadora da USP, que passou duas temporadas nos Estados Unidos para consultar os originais. “A pesquisa analisou também cartas pessoais, em particular as do comandante, documentos oficiais do governo dos EUA, autobiografias, outros relatos de viagem e os volumes científicos do relatório”, comenta Mary Anne.
Capitão Charles Wilkes: comandante da expedição tinha 42 anos, era temperamental e foi à corte marcial após o fim da viagem. Escreveu cinco volumes com a narrativa da circum-navegação
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DESENHOS REPRODUÇÃO DE RELATÓRIOS DA U.S. EXPLORING EXPEDITION, 1844-1874 FOTO NOAA
Desenhos de espécies de morcegos, aves e répteis coletados na expedição: viagem rendeu 40 toneladas de amostras
em Sydney, na Austrália, e visitou outro ponto da Antártida. Depois, subiu ao Pacífico Norte, mapeou detalhadamente a costa Oeste da América do Norte e voltou ao Pacífico em direção às Filipinas e Cingapura. Por fim, entrou nas águas do Índico, dobrou o Cabo da Boa Esperança, na atual África do Sul, e voltou para o Atlântico. O retorno à pátria-mãe se deu em 10 de junho de 1842, quando as embarcações jogaram âncora em Nova York (ver a rota da expedição nas páginas 74 e 75). Em sua chegada, a configuração da expedição diferia consideravelmente da exibida no momento da partida. Contabilizava apenas três barcos remanescentes: o Vincennes, principal veleiro à frente da jornada, e os brigues Porpoise e Oregon. Este último foi comprado durante a viagem para substituir o Relief, barco tido como lento, que fora enviado de volta para a América do Norte após a escala no Chile. Dois veleiros, o Peacock e o Sea Gull, naufragaram durante a viagem. Um terceiro, o Flying Fish, foi vendido em Cingapura por estar avariado e possivelmente incapaz de terminar a volta ao mundo. O número de tripulantes também era menor do que quando a expedição havia deixado Norfolk, porém não foi determinado. Na bagagem, 40 toneladas de amostras de plantas, animais e peças recolhidos durante o périplo. Os espécimes coletados serviram como base para a formação do acervo inicial que deu origem, em 1846, ao complexo de museus Smithsonian Institution, na capital Washington. A viagem percorreu cerca de 140 mil quilômetros, algo como quase 40% da distância da Terra à Lua, e ficou registrada em um relatório composto de 23 volumes, que foram publicados ao longo de
edigidos pelos especialistas a bordo dos veleiros, os 18 volumes científicos abordavam distintos aspectos técnicos – etnografia, geologia, geografia, botânica, meteorologia, zoologia, entre outros – levantados durante a volta ao mundo. O último tomo, sobre física e escrito pelo próprio comandante do Vincennes, só virou livro em 1874. A equipe científica da expedição era composta pelos naturalistas Charles Pickering e Titian Ramsay Peale, o etnógrafo e linguista Horatio Hale, o especialista em conchas Joseph Pitty Couthouy, o mineralogista James Dwight Dana, os botânicos William Rich e William Dunlop Brackenridge e os artistas Alfred T. Agate e Joseph Drayton, encarregados de produzir a iconografia associada à jornada e seus achados. A cargo da Marinha de Guerra, que em tempos de paz se dedicava a esse tipo de tarefa, a viagem exploratória tinha como objetivo oficial e declarado refazer e corrigir antigas cartas náuticas e fazer novas sobre pontos do globo ainda não esquadrinhados. Ter bons mapas próprios de navegação era, sem dúvida, importante para os americanos garantirem a segurança de sua frota de navios comerciais e militares, que, assim, poderia desviar de obstáculos marítimos e escolher o porto mais seguro e adequado para ancorar. Um dos grandes legados da expedição foi ter produzido 280 mapas de ilhas do Pacífico, região pouco conhecida até então, e 180 cartas náuticas. Mas os interesses por trás da expedição eram bem mais amplos: construir um saber técnico-científico nacional, independentemente dos conhecimentos estratégicos dominados pelas potências europeias, assumir um papel geopolítico no mundo e prospectar novos territórios que poderiam ser anexados aos seus domínios. “Empreitadas desse tipo sempre tinham objetivos oficialmente não declarados”, afirma a historiadora. “Eles dedicaram um tempo significativo mapeando a costa Noroeste da América do Norte, predominantemente da Califórnia e do Oregon.” Não por acaso essas regiões, a primeira pertencente ao México e a segunda em disputa com os PESQUISA FAPESP 226 z 79
ingleses, foram anexadas aos Estados Unidos seis anos depois do fim da expedição. O que se chamava de Oregon naquela época representava toda a costa Oeste do América do Norte entre a atual Califórnia e o Canadá, ou seja, englobava os contemporâneos estados do Oregon e de Washington. Cabe lembrar que, na época, as fronteiras do país mal chegavam às Montanhas Rochosas, no Centro-Oeste da América do Norte, e não lhe garantiam saída alguma para o lado do Pacífico.
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m episódio inusitado ocorreu quando um dos veleiros da expedição, o Porpoise, deparou em janeiro de 1840 com as corvetas Astrolabe e Zélée da missão francesa chefiada pelo comandante Jules Dumont d’Urville perto da atual costa Leste da Antártida. O encontro serviu para acirrar ainda mais as rivalidades entre as potências situadas dos dois lados do Atlântico. Até hoje se discute quem descobriu que a Antártida não era apenas um iceberg gigante flutuante sobre o oceano (como é o Ártico), mas sim um continente, com terra firme, coberta por gelo e neve. Wilkes mapeou um trecho de 2.400 quilômetros do litoral antártico, região hoje denominada Terra de Wilkes, e reivindicou o feito para si. O mesmo fez D’Urville, cuja expedição foi a primeira a calcular a localização do polo Sul magnético, e esteve em terra firme na Antártida. O lugar em que os franceses estiveram foi batizado de Terre Adélie, referência a Adèle, mulher de d’Urville. Especialista em história dos Estados Unidos, formadora de uma nova geração de estudiosos e dedicada a esse tema, Mary Anne se surpreendeu com a escassez de literatura, acadêmica e mesmo popular, sobre a grande a viagem exploratória patrocinada pela ex-colônia inglesa. “A expedição foi praticamente esquecida”, afirma a historiadora da
USP. A memória curta sobre uma empreitada tão grandiosa não costuma ser um traço dos norte-americanos, sempre prontos a louvar seus feitos. Na primeira metade do século XIX, as circum-navegações eram, devido aos custos e riscos, comparáveis às viagens espaciais contemporâneas, segundo alguns estudiosos. “Num tempo em que uma viagem ao Pacífico era equivalente a uma viagem moderna à Lua, uma jornada desse tipo era uma oportunidade única para os cientistas investigarem hábitats exóticos: florestas tropicais, vulcões, lagoas tropicais, icebergs e desertos”, escreve o historiador Nathaniel Philbrick, em seu livro Mar de glória – Viagem americana de descobrimento – Expedição exploratória dos Estados Unidos, lançado em 2004. Destinado ao grande público, a obra de Philbrick é o trabalho de divulgação mais conhecido sobre a expedição. Diretamente beneficiado com os saberes adquiridos e os espécimes coletados durante a viagem, o Smithsonian é uma exceção nesse contexto de silenciamento sobre a importância da grande expedição de circum-navegação. Em 1985, por ocasião do aniversário de 75 anos do Museu de História Natural, que faz parte do complexo mantido pela institução sediada em Washington, foi publicado o livro Magnificent voyagers. The U. S. Exploring Expedition, 1838-1842, organizado por Herman Viola e Carolyn Margolis. Ilustração de homens medindo o tronco de árvores no Oregon: região na costa Oeste da América do Norte, então em disputa com os ingleses, foi mapeada pela expedição
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Reprodução do veleiro Vincennes, o principal barco da expedição, e desenhos de seres marinhos coletados: viagem percorreu 140 mil quilômetros
REPRODUÇÃO DE RELATÓRIOS DA U.S. EXPLORING EXPEDITION, 1844-1874
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m seu estudo, Mary Anne discute o contexto das viagens da circum-navegação, tenta compreender os saberes que os norte-americanos queriam apreender com a expedição e destaca seus interesses em outros países das Américas. Ela também levanta hipóteses para explicar por que os americanos parecem pouco interessados em lembrar os feitos da expedição. Uma delas diz respeito à natureza do capitão Wilkes, militar polêmico, que foi a cortes marciais. A historiadora, no entanto, tende a pensar que o fator mais decisivo foi de outra ordem. “Eventos como a guerra com o México entre 1846 e 1848 e, principalmente, a Guerra Civil, entre 1861 e 1865, demandaram esforços da Marinha de Guerra e energia dos norte-americanos, relegando os feitos da expedição ao esquecimento”, diz Mary Anne. A guerra com o México, por exemplo, ampliou em um quarto o território dos Estados Unidos, que tocou o Pacífico com a anexação da Califórnia. Nesse contexto, a expedição de Wilkes figura como uma afirmação dos Estados Unidos entre as décadas de 1830 e 1840, quando a jovem república representativa era ainda um experimento e o Estado nacional carecia de consolidação. Em meio a outras iniciativas concorrentes, a circum-navegação liderada pelo veleiro Vincennes mostra, segundo a historiadora, um mundo de trocas, intercâmbios e trabalhos científicos realizados em âmbito transnacional na primeira metade do século XIX. Tudo isso em um ritmo já acelerado, navegando a caminho da globalização. n
Projeto Em tempos de paz – A viagem científica de circum-navegação da U. S. Exploring Expedition (1838-1842) (nº 2014/50527-8); Modalidade Auxílio Publicação Regular – Livro Brasil; Pesquisador responsável Mary Anne Junqueira (USP); Investimento R$ 6.000,00 (FAPESP).
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FILOSOFIA y
Maior e diversificada Pós-graduação forma um mestre por dia na área e incorpora temas como
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ntre 27 e 31 de outubro, quase mil pesquisadores com doutorado subiram a serra da Mantiqueira e participaram do 16º Encontro da Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia (Anpof ), em Campos do Jordão, interior paulista. Cerca de 2.200 apresentações foram feitas em sessões temáticas e em 54 grupos de trabalho durante a reunião, que ocorre a cada dois anos desde 1984. “O evento deste ano foi 15% maior do que o anterior”, diz Marcelo Carvalho, presidente da Anpof e coordenador de pós-graduação da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH-Unifesp). A maior participação de professores e doutores em filosofia no encontro reflete a expansão da pós-graduação na área. Em 2004, havia 14 programas de pós em filosofia. Hoje existem 41, que oferecem 40 cursos de mestrado e 21 de doutorado, de acordo com dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Atualmente cerca de 82 z DEZEMBRO DE 2014
720 docentes ministram aulas e orientam alunos na pós. Entre 2010 e 2012, cerca de 1.100 dissertações de mestrado – em média, uma por dia – e 350 teses de doutorado em filosofia foram defendidas no país. Não se trata apenas do crescimento de uma área de pesquisa cujo primeiro programa de pós-graduação, com mestrado e doutorado, foi criado em 1971 na Universidade de São Paulo (USP) – o segundo curso de doutorado só surgiria em 1980, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Nos últimos 10 anos, a comunidade de filósofos mudou muito e a pós, antes concentrada em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, se espalhou por todo o Brasil”, afirma Carvalho. Atualmente, todas as regiões do país dispõem de ao menos um curso de pós-graduação em filosofia. Na região Norte, a última a oferecer formação na área, a Universidade Federal do Pará (UFPA), iniciou suas atividades no mestrado a partir de agosto de 2011. Até o fim do ano, a Capes deve
ILUSTRAÇÕES GUILHERME KRAMER
neurociência e mudanças climáticas
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dar um parecer, favorável ou não, para a criação de mais 10 cursos de mestrado ou doutorado em filosofia. “As propostas vêm de todas as partes do país, de Roraima ao Rio Grande do Sul”, diz Vinicius Berlendis de Figueiredo, professor de filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e vice-coordenador da área de Filosofia, Teologia e Ciências da Religião da Capes.
Em 2004, havia 14 programas de pós-graduação em filosofia. Atualmente, há mais de 40, de acordo com dados da Capes
ENSINO OBRIGATÓRIO
Um dos fatores que impulsionaram a área de filosofia foi uma alteração no artigo 36 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). Em julho de 2008, a Presidência da República sancionou um projeto de lei que tornou obrigatório o ensino de sociologia e filosofia nas escolas de ensino médio, públicas ou particulares, de todo o país. A repercussão imediata da medida foi na graduação, de onde saem os bacharéis e licenciados em filosofia, potenciais interessados em dar aulas no ensino médio. “Mas, como a graduação e a pós estão integradas, uma coisa reflete na outra”, comenta Figueiredo. “Além disso, o crescimento da pós em filosofia também se beneficiou de um movimen84 z DEZEMBRO DE 2014
to mais amplo, que estimula a expansão e descentralização da pós como um todo no país.” Em paralelo ao evento da Anpof em Campos do Jordão ocorreu a segunda edição do Encontro Nacional dos Professores de Filosofia do Ensino Médio, iniciativa que também contribui para aproximar a educação da pesquisa. O crescimento da pós expandiu o leque de opções de pesquisa e levou à inclusão de temas contemporâneos, originados às vezes nas chamadas áreas duras das ciências, ao lado de vertentes e autores mais tradicionais da filosofia.
Uma das conferências mais concorridas no encontro da Anpof foi, sem dúvida, a do filósofo Paulo Arantes, da USP, que tratou das manifestações populares de junho de 2013. Mas a apresentação sobre “Questões epistemológicas, lógicas e ontológicas na filosofia da mecânica quântica”, feita por Décio Krause, professor de filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), também atraiu um bom público. Era preciso ter um certo conhecimento de física para entender alguns detalhes da exposição, mas isso aparentemente não afugentou muitos dos presentes ao encontro. Algumas vertentes atuais da pesquisa em filosofia encontram resistência em setores da academia. “Sofro muitas críticas”, diz Sofia Stein, coordenadora do curso de graduação de filosofia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em São Leopoldo, Rio Grande do Sul. “Há quem diga que, por não trabalhar essencialmente com conceitos, mas sim com experimentos, não faço mais filosofia. É como se eu estivesse pecando, trabalhando com métodos errados e propensa a dizer falsidades. O filósofo quer ser perfeito. Na área experimen-
tal, você erra.” Formada em filosofia há quase três décadas, Sofia está, há quatro anos, à frente do grupo de pesquisa Social-Brains e do Laboratório de Filosofia Experimental e Estudos da Cognição da Unisinos, que une filósofos, psicólogos e neurocientistas. Numa definição simplista, Sofia, que sempre trabalhou com filosofia da linguagem e semântica, hoje chefia “Há quem diga um grupo em filosofia que, por não da neurociência. Seu laboratório iniciou o trabalhar desenho de experimentos e em breve essencialmente deve colocar em aticom conceitos, vidade um eletroencefalograma para anamas sim com lisar a atividade cerebral em adultos. “A experimentos, não investigação de eventos neurológicos pofaço mais filosofia”, de ser complementar a estudos de semântidiz Sofia Stein ca”, diz Sofia. A exemplo da colega gaúcha Déborah Danowski, professora da Pontifícia Universidade Católica de Platão a Hannah Arendt, estiveram do Rio de Janeiro (PUC-Rio), também afinados com as ciências e profundamenredirecionou o enfoque de sua carrei- te preocupados com os acontecimentos ra nos últimos cinco anos. Especialista políticos de seu tempo”, diz a professora em filosofia moderna e metafísica, ela da PUC-Rio. “O grande acontecimento acrescentou ao seu campo de atuação a político de nosso tempo é a crise ecológitemática ambiental, em especial a ques- ca.” Para a pesquisadora, os mesmos contão da crise causada pela iminência das ceitos que ela utilizava em seus trabalhos mudanças climáticas. “Passei realmente sobre a metafísica moderna são fundaa prestar atenção a essa questão quando mentais para desenvolver sua pesquisa me dei conta de que as mudanças que os atual. Essas ideias ganharam um novo cientistas do IPCC [Painel Intergoverna- sentido, que envolve a relação do homem mental sobre Mudanças Climáticas, na com a natureza e outros entes. Mas Désigla em inglês] e de outras organizações borah não vê exatamente nenhum corte estavam prevendo para o futuro do cli- radical entre seus trabalhos mais antigos ma terrestre iriam acontecer já nas pró- de pesquisa filosófica e os novos. ximas décadas”, afirma Déborah. “Isso significa que minha filha, por exemplo, ANPOCS vai ter uma grande parte da sua vida di- Exatamente no mesmo período em que retamente afetada pelo que estamos fa- os filósofos se reuniram em Campos do Jordão, a Associação Nacional de Pószendo agora como sociedade.” Segundo a filósofa, muitos acadêmicos -graduação e Pesquisa em Ciências Soainda preferem questionar as pesquisas ciais (Anpocs) promoveu seu 38º enconsobre o clima, na maior parte das vezes tro anual. O evento ocorreu em Caxamsem sequer ler o que os cientistas estão bu, Minas Gerais, e reuniu cerca de 1.200 dizendo. “É como se eles se consideras- pessoas, das quais 970 apresentaram ao sem imunes ao que está acontecendo à menos um projeto de pesquisa. Desde sua volta. Não se lembram, por exem- 2006, o número de pesquisadores que plo, de que todos os grandes filósofos, divulga um trabalho no encontro – que
reúne acadêmicos de mais de uma centena de centros de pós-graduação em antropologia, ciência política, relações internacionais e sociologia – gira em torno de mil. Houve uma mudança de patamar em termos do número de participantes do evento em meados da década passada. Nos anos 1990, a reunião da Anpoc atraía menos de 500 pesquisadores com trabalhos aceitos pelo evento. Essa barreira, do meio milhar de pesquisadores com trabalhos aprovados, só foi rompida em 2003. “Hoje os temas tratados no encontro são muito amplos”, diz o antropólogo Gustavo Lins Ribeiro, da Universidade de Brasília (UnB), que termina no final deste ano seu mandato de presidente da Anpocs. “Nos últimos 10 anos, as pesquisas na área de relações internacionais cresceram bastante.” De acordo com dados da Capes, havia no país seis programas com mestrado e doutorado e 13 apenas com mestrado em 2004 na área de ciência política e relações internacionais. Em 2012, esses números passaram, respectivamente, para 17 e 33, além da existência de seis mestrados profissionais. n Marcos Pivetta PESQUISA FAPESP 226 z 85
Campeonato de rúgbi em cadeira de rodas: fotografia aproximou pesquisador dos entrevistados
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ANTROPOLOGIA y
O homem-máquina Tese premiada sugere que próteses para amputados e exoesqueletos retomam o ideal do ciborgue Fabrício Marques
JOON KIM
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ma pesquisa de doutorado que conquistou o mais recente Prêmio Capes de Tese sugere que a ideia do ciborgue, híbrido de homem e máquina que seria capaz de extrapolar limites biológicos, foi apropriada pelo imaginário acerca das tecnologias que buscam reabilitar pessoas com membros amputados e vítimas de lesões na medula óssea, com força para, no caso de alguns atletas paralímpicos, até mesmo apagar o estigma que costuma depreciar a identidade social dessas pessoas. Defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo por Joon Ho Kim, sob orientação da professora Sylvia Caiuby Novaes, a tese venceu o prêmio Capes na categoria Antropologia e Arqueologia. “Fiquei surpreso com a premiação, porque há incontáveis pesquisas de excelência em áreas mais tradicionais da antropologia, como, por exemplo, antropologia urbana e, especialmente, etnologia indígena”, diz Joon Ho Kim. O tema da tese é um desdobramento de sua dissertação de mestrado, defendida em 2005, na qual Joon abordou o imaginário das tecnologias cibernéticas na produção cinematográfica das últimas duas décadas, em filmes como Johnny Mnemonic (1995) e a trilogia Matrix (1999 a 2003), nos quais os personagens se conectam a redes de informática por meio de plugues espetados na
cabeça, ou a série O exterminador do futuro. “Os ciborgues e o ciberespaço dos filmes são produtos do que poderíamos chamar de cibercultura, uma resposta positiva da cultura na criação de uma nova ordem do real diante de contextos inéditos, decorrentes da disseminação das tecnologias chamadas cibernéticas e da vulgarização de discursos científicos, que desafiam as categorias tradicionais de interpretação da realidade”, diz. A cibercultura deriva de conceitos que surgiram com Cybernetics, de Norbert Wiener, livro publicado em 1948 que propunha reunir num modelo teórico os sistemas de controle existentes em máquinas e organismos, e ganharam a ficção em obras como Cyborg, de Martin Caidin, que inspirou o seriado O homem de seis milhões de dólares (1974-1978). Nele, o protagonista é um astronauta cujo corpo destroçado foi reconstruído com componentes desenvolvidos pela indústria aeroespacial. Quando desenhou o projeto do doutorado, Joon propôs-se a analisar duas categorias: os amputados e as pessoas que receberam órgãos transplantados. “Numa delas, trata-se de agregar ao corpo máquinas ou artefatos produzidos para substituir funções orgânicas. Já a outra envolve uma espécie de mistura de corpos, em que se usam órgãos de um corpo como peças de reposição para outros corpos”, afirma. Logo percebeu que as categorias exigiam procedimentos de
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campo e tinham lógicas culturais muito distintas. “O estigma do amputado não é o mesmo que recai sobre o transplantado”, observa. Resolveu, então, restringir o foco de sua pesquisa, para comparar dois grupos de pessoas com deficiência do sistema locomotor – os amputados e cadeirantes vítimas de lesão medular – e investigar as transformações que as novas tecnologias impõem à identidade social dessas pessoas. “Originalmente, eram categorias semelhantes”, diz Joon. “Em comum, tinham a depreciação de sua identidade social oriunda da incapacidade de manter a posição ereta do corpo e de andar com os dois pés, e se encaixavam na figura popular do ‘aleijado’.” ORGULHO
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Isso mudou nos últimos anos. De um lado, muitos amputados livraram-se das limitações e de boa parte do estigma ao1 conquistarem próteses inovadoras e de alta resistência. E vários deles exibem as próteses com orgulho, em vez de escondê-las, como era comum no passado. “O surgimento de tecnologias protéticas que habilitam amputados a competirem em nível olímpico tem produzido reações que contrariam a regra geral segundo a qual se evita expor aquilo que causa estigma”, afirma Joon. “E ganha cada vez mais projeção na mídia a imagem de amputados estereotipados com a realização do sonho do ciborgue: o corpo orgânico potencializado com sua hi-
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bridação com sistemas cibernéticos.” O melhor exemplo é o atleta sul-africano Oscar Pistorius, que nasceu com uma deficiência congênita chamada hemimelia fibular e amputou as duas pernas, mas obtinha alto desempenho correndo com próteses de fibra de carbono. Ele foi o primeiro atleta paralímpico a disputar uma olimpíada, a de Londres, em 2012, em igualdade de condições com atletas não deficientes. Tentou disputar a Olimpíada de Beijing, em 2008, mas teve a participação vetada pela Associação Internacional de Federações de Atletismo. O órgão considerou que as próteses garantiam a Pistorius vantagem sobre os atletas concorrentes. Ele recorreu e, quatro anos depois, conseguiu chegar às semifinais da prova dos 400 metros. A situação é bem diferente no caso das pessoas com lesões medulares. Elas seguem dependentes de cadeiras de rodas e a maioria das poucas tecnologias disponíveis não se mostrou capaz, ainda, de aliviar uma série de efeitos colaterais decorrentes da paralisia, como a falta de retorno venoso e a osteoporose. A tecnologia dos exoesqueletos robóticos, ainda em desenvolvimento, encarna uma promessa de reabilitação similar à das próteses dos amputados, mas por enquanto se trata apenas de uma promessa. Já há produtos com aprovação para uso clínico, inspirados em tecnologias da indústria bélica, mas com custos altíssimos. O neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis exibiu um protótipo na festa de abertura da Copa do Mundo – um paraplégico chutou uma bola. “O
1 Marco Aurélio Borges, lançador de disco 2 e 3 Campeonato Brasileiro de Rúgbi em Cadeira de Rodas
exoesqueleto, na contramão do que ocorre com muitas próteses para amputados, esconde a deficiência. O indivíduo consegue ficar de pé, mas há pouco ou nenhum benefício fisiológico comprovado, ao contrário de outras terapias, como a marcha induzida com eletroestimulação funcional. A obsessão em encapsulá-los dentro de corpos robóticos, em detrimento de outras terapias, parece mais motivada pelo simbolismo da possibilidade de andar sobre as duas pernas do que por uma reabilitação efetiva”, diz. Nas entrevistas que realizou no trabalho de campo, o antropólogo constatou que lesados medulares são bastante cautelosos em relação à promessa dos exoesqueletos. “A maioria acha que falta muito para que substituam a cadeira de rodas”, afirma. A exceção, em geral, são os pacientes que perderam os movimentos há pouco tempo. “Esses estão dispostos a qualquer coisa para voltar a andar.” Para Joon, o apelo dos exoesqueletos, ao contrário do que acontece com as próteses de amputados, resgata ideais encontrados na eugenia, a aplicação de métodos que sistematicamente reforçam determinadas características socialmente valorizadas e eliminam outras, socialmente rejeitadas. A eugenia foi apropriada pela política racial do nazismo, que pregava a morte ou a esterilização de indivíduos
FOTOS JOON KIM
considerados “anormais”. “A lógica dos superar limitações do corpo humano. De exoesqueletos robóticos segue a mesma acordo com William Saad Hossne, funlógica dos testes genéticos e da seleção dador da Sociedade Brasileira de Bioéde embriões para escolha de certas ca- tica, entre os conceitos mais discutidos racterísticas, em que a eugenia voltou atualmente destacam-se os propostos por como um produto de mercado”, diz. “O Raymond Kurzweil, do Massachusetts que é mais importante: garantir a aces- Institute of Technology, para quem seria sibilidade do cadeirante ou fazê-lo ficar possível alcançar a imortalidade por meio de pé – mesmo sabendo que isso não re- de processos que revertem o envelhecisulta em reabilitação de fato?”, indaga. mento ou por meio da transferência de Joon compara a preeminência da mão conteúdo cerebral para um meio físico direita, objeto de um estudo clássico da além do corpo, como um novo hardware. antropologia, com a obsessão por uma “Nesse contexto, o indivíduo deixaria de tecnologia capaz de fazer os lesados me- ser humano para se tornar pós-humano”, dulares andarem novamente. A predis- diz Hossne. No debate acerca desse ceposição biológica dos nário, coabitam teseres humanos a usar mores envolvendo a a mão direita, ele diz, ameaça de desumaniestá na base das culzação e as promessas de transformar o hoturas cujo sistema simbólico valorizam Para Joon, os mem num ser apero lado direito em defeiçoado. Para Hossexoesqueletos trimento do esquerdo. ne, a discussão levada “O significado de dia cabo pela bioética é robóticos complexa e não conreito e esquerdo transpôs-se para conceitos segue articular uma resgatam ideais como puro e impuro. receita a ser seguida, Os canhotos são reprimas pode ser útil paencontrados na midos em várias culra a questão das próeugenia, agora turas e forçados a usar teses e dos exoesquea mão direita”, afirma. letos robóticos. “É na forma de Ele também cita vítipreciso contemplar riscos e benefícios e mas de moléstias coum produto analisar qual é o obmo a hipertricose lanuginosa congênita, jetivo que se busca. que cobre o corpo de Não dá para afirmar seu portador com peque um exoesqueleto los finos e felpudos e rendeu a um doente o apelido de “menino lobo”, ou a epidermodisplasia verruciforme, tema de um documentário denominado Metade homem, metade árvore. “Há alguns atributos que são culturalmente associados a características humanas, como a pele lisa e com poucos pelos, cuja ausência é vista simbolicamente como algo subumano. A incapacidade de ficar de pé e andar ereto causa o mesmo tipo de desconforto, daí a obsessão social por colocar os cadeirantes de pé”, afirma. A bioética, campo transdisciplinar que estuda a dimensão ética dos modos de tratar a vida no contexto da pesquisa científica e de suas aplicações, vem discutindo a interação do corpo humano com a máquina num contexto mais abrangente, o do chamado pós-humanismo, que propõe o uso da biotecnologia, da informática, da robótica e da nanotecnologia para 3
que coloca alguém de pé traz pouco benefício. Quem tem de avaliar o benefício é quem vai usá-lo. O que é pouco para mim pode ser muito para ele.” Joon conheceu e entrevistou pacientes com lesões medulares no Ambulatório de Reabilitação Raquimedular do Hospital de Clínicas da Unicamp, coordenado pelo bioengenheiro Alberto Cliquet Junior, que tem a carreira dedicada ao desenvolvimento de equipamentos para reabilitação de lesados medulares, paraplégicos e tetraplégicos, assim como à aplicação de terapias com uso desses equipamentos. Também acompanhou quatro campeonatos brasileiros de rúgbi em cadeiras de rodas. “Escolhi esse esporte pelo fato de ser quase exclusivo de tetraplégicos”, diz Joon. O trabalho de campo envolveu a produção de material fotográfico com entrevistados. A maior parte das fotos, entre as quais as que ilustram esta reportagem, foi financiada pela FAPESP na linha “Fotografia, filme etnográfico e reflexão antropológica – prática e teoria” do projeto temático “A experiência do filme na antropologia” (processo 09/52880-9), coordenado pela professora Sylvia Caiuby Novaes, no Laboratório de Imagem e Som em Antropologia da USP. “O trabalho com a fotografia foi essencial para que eu tivesse acesso a eles. A princípio, reagiram com desconfiança. Fui mostrando os resultados para eles e consegui me aproximar de uma forma mais intensa do que se tivesse pedido uma entrevista e feito perguntas”, explica. n
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LÉO RAMOS
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90 | OUTUBRO DE 2013
W W W. R E V IS TA PE S QUIS A . FA PE SP. B R
OBITUÁRIO y Konder: amor pela filosofia e literatura e aversão à polêmica
O filósofo cordial Leandro Konder dedicou-se a estudar e divulgar a obra de Karl Marx
LÉO RAMOS
O
s numerosos reveses sofridos pelo marxismo nas últimas décadas do século XX nunca desanimaram o professor de filosofia, ensaísta e escritor Leandro Konder. “A filosofia é um terreno de resistência que se pergunta não para que serve uma determinada teoria, mas qual a sua verdade”, disse ele em entrevista à Pesquisa FAPESP em dezembro de 2002 (edição 82). Um dos mais respeitados estudiosos da obra de Karl Marx no Brasil, Konder era formado em direito, doutorado em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Morreu no dia 12 de novembro de 2014, aos 78 anos, no Rio, em consequência do mal de Parkinson.
Konder era natural de Petrópolis (RJ), filho de um médico sanitarista, ex-dirigente do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Embora tenha se notabilizado como pensador marxista e divulgador das ideias do filósofo húngaro György Lukács (1885-1971), ele atuou também como advogado trabalhista nos anos 1950 e 1960. Logo após o golpe militar de 1964, Konder defendeu sindicatos e trabalhadores. Sua proximidade com os movimentos sociais o levou à prisão, onde foi torturado. Em 1972 exilou-se na Europa e morou na Alemanha – foi professor visitante na Universidade de Bonn – e França. Voltou seis anos depois. A partir dos anos 1980 trabalhou como professor no Instituto Metodista Bennett, Universidade Federal Fluminense e PUC-Rio. Dedicou-se a difundir os es-
tudos sobre Marx e Lukács e a escrever. No total, é autor de 21 obras e não só de filosofia – aventurou-se pela educação, história, sociologia e memorialística. Seu primeiro livro é de 1965, Marxismo e alienação (Expressão Popular); o último foi Em torno de Marx (Boitempo Editoral), de 2010. Também escreveu dois romances, A morte de Rimbaud (Companhia das Letras) e Bartolomeu (Relume Dumará). O passeio pelos vários gêneros agradava ao filósofo, segundo seus amigos. “Ele amava a literatura, vivia pela literatura e pela filosofia”, lembrou o também filósofo e ensaísta Sergio Paulo Rouanet ao jornal O Globo. “Era um marxista dos menos dogmáticos, conhecido por sua doçura, carisma e generosidade.” Para Marco Aurélio Nogueira, professor de teoria política e diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Konder era também reconhecido pela fineza intelectual e texto envolvente. “Konder nunca fez concessões ao doutrinarismo e ao dogmatismo tão comuns no universo marxista e no campo comunista, no qual militou a vida inteira”, escreveu em O Estado de S.Paulo. “Como professor, não se cansou de descer do pedestal e de construir pontes entre o saber acumulado e a jovem intelectualidade, os homens de cultura, os militantes democráticos e socialistas.” O jornalista e escritor Zuenir Ventura afirmou a O Globo que Konder nunca hierarquizou as pessoas pela ideologia. “Ele colocava o afeto acima de todas as coisas”, disse. A imagem passada pelos amigos foi a mesma que ele mostrou na já citada entrevista à Pesquisa FAPESP, quando falou de sua aversão à polêmica: “Machado de Assis dizia: ‘Sofro de tédio à controvérsia’. Gosto do diálogo, da diferença, mas, quando esta se manifesta muito agressivamente, falta paciência”. n PESQUISA FAPESP 226 | 91
MEMÓRIA
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Com os pés na terra Os chamados padres matemáticos fizeram mapas detalhados sobre os sertões do Brasil Carlos Fioravanti
92 | DEZEMBRO DE 2014
O
s padres jesuítas tinham uma formação científica privilegiada, que contemplava principalmente a matemática e a astronomia. Em Roma, acompanhavam passo a passo as descobertas feitas com um novo aparelho, o telescópio, e dialogavam com Galileu. Como os especialistas nessas áreas eram escassos, os monarcas os requisitavam para tarefas inesperadas em territórios distantes. Em 1729, João V, rei de Portugal, contratou dois dos já chamados padres matemáticos, que eram também astrônomos e cartógrafos, o português Diogo Soares e o italiano Domingos Capassi, para “fazerem-se mapas das terras do dito Estado, não só pela marinha, mas também pelos sertões, com toda distinção, para melhor se assinalem e conheçam os distritos de cada bispado, governo, capitania, comarca e doação”, como determinava o alvará de nomeação dos dois como cartógrafos do rei. Como professor de matemática no Colégio de Santo Antão, em Lisboa, Soares já tinha escrito sobre o Brasil em seu Novo atlas lusitano ou teatro universal do mundo todo, de 1721: “É país fertilíssimo e saudável, tem o melhor ouro da América, muito tabaco, e açúcar”.
Mappa corographico da capitania do Rio de Janeiro, atribuído a Domingos Capassi
FOTOS 1 BIBLIOTECA NACIONAL 2 ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO, LISBOA 3 WIKIMEDIA
O trabalho de Soares e Capassi no Brasil, concluído em 1748, ganhou o nome de Novo atlas da América portuguesa, um conjunto de 31 mapas cobrindo toda a costa sul e sudeste até Cabo Frio, no litoral do Rio de Janeiro, e boa parte do interior, além de relatos e roteiros de sertanistas. Um dos mapas, a Carta 9ª da costa do Brazil desde a barra de Santos até à da Marambaya, elaborado por volta de 1737, “representa, pela primeira vez, a rede urbana, fluvial e viária do planalto paulista e suas articulações com o litoral”, comentou Beatriz Bueno, professora da Universidade de São Paulo (USP), em um artigo publicado na Anais do Museu Paulista. Os mapas ajudaram Portugal a defender seus territórios nas negociações com a Espanha, que resultaram no Tratado de Madri, de 1750, eliminando o Tratado de Tordesilhas, estabelecendo novos limites entre as
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Mapa da região do ribeirão do Carmo, rio das Velhas e rio Paraopeba, em Minas Gerais, atribuído a Diogo Soares
Morro do Castelo, no Rio, com o Colégio dos Jesuítas à direita. Trecho da gravura de Victor Meirelles
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possessões dos dois países na América e permitindo a Portugal tomar posse oficial de terras já ocupadas na Amazônia e nas regiões Centro-Oeste e Sul. Um cartógrafo anônimo português tinha feito em 1502 o primeiro mapa incluindo o Brasil, em 1509 outros cartógrafos fizeram mapas melhores, mas os concorrentes europeus – alemães, italianos e franceses – também faziam seus mapas, de que dependiam as ações dos países para ocupar, manter, explorar ou defender seus territórios. No Mapa da maior parte da costa e sertão do Brazil, produzido por volta de 1700, o padre Jaques Cocleo, jesuíta francês, professor de matemática e astronomia em Lisboa até 1660, quando se mudou para o Brasil, já tinha descrito rios, montanhas, vilas, caminhos e áreas de mineração do interior do país, mas ele morreu por volta de 1710 e o trabalho parou. O rei de Portugal, porém, precisava de mais informações para continuar a explorar sua principal colônia.
Soares e Capassi chegaram ao Rio de Janeiro em fevereiro de 1730, montaram um observatório astronômico no Colégio dos Jesuítas no morro do Castelo e começaram a fazer suas medições. “Não havia observações contínuas. O trabalho deles serviu basicamente para determinar a longitude do Rio com relação a Paris”, concluiu Jorge Pimentel Cintra, professor da USP que, com sua equipe, tem examinado as anotações e os mapas dos padres. Em 1732 Soares e Capassi viajaram por Minas Gerais, recolhendo relatos de sertanistas sobre minas de ouro e diamantes, localizando-as em mapas que produziam, cobrindo desde o sul de Minas até a atual Região Metropolitana de Belo Horizonte. Depois, fizeram levantamentos das coordenadas geográficas dos principais portos da capitania do Rio Grande de São Pedro. Capassi morreu em 1736. Soares continuou sozinho e elaborou outros mapas e plantas de fortificações para a defesa da cidade do Rio de Janeiro até ele também morrer, em 1748, em Goiás. n PESQUISA FAPESP 226 | 93
ARTE
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Elegância na Matemateca Exposição apresenta coleção de objetos interativos que representam equações, teoremas e conceitos matemáticos |
Q
uando elogiam determinado trabalho na sua área, os matemáticos gostam de usar palavras como “belo” e “elegante”. O emprego desses adjetivos pode parecer deslocado para alguém fora desse mundo em que quase tudo é abstração. “Essa é uma ideia equivocada”, diz Eduardo Colli, professor do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME-USP). “Nós imaginamos a matemática como algo colorido, bonito, plástico e não apenas como um emaranhado de números e contas.” A exposição interativa Matemateca espelha esse sentimento. Trata-se de uma mostra de peças que procura encontrar uma linguagem de objetos estéticos que represente uma outra linguagem – a matemática. 94 | DEZEMBRO DE 2014
Neldson Marcolin
O grupo liderado por Colli e Deborah Raphael, também do IME, que envolve outros professores, além da colaboração de alunos de graduação e pós-graduação, começou a conceber, fazer protótipos e a reunir objetos em 2003 pensando em divulgar a disciplina de modo concreto e interativo. “A linguagem matemática é pesada e impeditiva para a maioria das pessoas”, diz Deborah. “Nosso objetivo é apresentar as diferentes facetas da área de modo lúdico.” Uma das referências de partida foi a exposição francesa Maths 2000, do Museu Cidade da Ciência e da Indústria La Villette, em Paris. À medida que surgiam as ideias, Colli e Deborah encomendavam as peças para artesãos e empresas especializadas em prototipagem. O apoio financeiro para o projeto partiu
Acima, Placas de Chladni com pó de serragem formando desenhos produzidos pela vibração
FOTOS LÉO RAMOS
de vários órgãos da própria USP e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Onze anos depois foi possível reunir e apresentar as cerca de 40 atrações, divididas em agrupamentos como Formas, Movimento e Desafios do Pensamento. A exposição ocorreu no saguão da reitoria da USP, em São Paulo, até 12 de dezembro, e foi visitada por estudantes de todos os níveis. Logo na entrada há A roda d’água caótica, um experimento composto de uma roda de acrílico em posição vertical com vários copos. À medida que a água cai dentro dos copos, a roda gira ora para um lado, ora para o outro de modo imprevisível. Foi a maneira encontrada para ilustrar o estudo do caos, que se insere na teoria de sistemas dinâmicos – Artur Ávila, o brasileiro que ganhou a Medalha Fields, trabalha nessa área. “A roda é interessante por ter sido feita por uma turma de graduação durante um curso multidisciplinar ministrado pela Deborah, por mim e pelo Artur Simões Rozetraten, professor da FAU [Faculdade de Arquitetura e Urbanismo]”, conta Colli. Uma das várias curiosidades expostas são as Placas de Chladni. São chapas metálicas de vários formatos com pó de serragem em cima que, ao serem “tocadas” por um arco de violino, emitem notas musicais. A vibração provocada pelo arco espalha o pó e desenha figuras geométricas em cima da placa. O experimento foi realizado há cerca de 200 anos pelo físico e músico alemão
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Objetos de Superfícies regradas, linhas retas que formam estruturas com curvas. Abaixo, A roda d’água caótica
Ernst Chladni (1756-1827). “Esse ainda é um problema que não tem uma abordagem definitiva na literatura”, diz Deborah. Outra estrutura curiosa conhecida há tempos foi chamada pelos curadores de Balancinho, por ser parecida com os balanços de parque de diversão. Nele, há uma bandeja com uma folha de papel sulfite. Deve-se colocar a peça em movimento e deixar que uma caneta fixada a um braço de madeira toque o papel. Do movimento do balanço surgem desenhos surpreendentes, parecidos com os disponíveis no descanso de tela de computadores. Na internet é possível achar variações dessa estrutura, chamada de harmonógrafo. A parte da mostra dedicada às formas é a mais colorida e plástica. Os objetos de Topologia das superfícies ilustram o ponto de vista da topologia, em que duas superfícies são equivalentes se puderem ser transformadas uma na outra por meio de deformações sem rompimento. Uma peça em forma de xícara, por exemplo, pode ser deformada até virar um toro (formato de câmara de pneu). Já as Superfícies regradas referem-se a estruturas curvas compostas apenas de retas. Há várias peças usadas para exemplificar essas ideias matemáticas, algumas delas como representação de equações. O princípio da superfície regrada foi utilizado por Oscar Niemeyer ao projetar a catedral de Brasília. Os curadores gostariam de ter um local fixo de exposição no IME, mas falta espaço. “Por enquanto, ocupar os corredores é a forma que encontramos para conseguir isso”, diz Colli. Em parte do saguão da reitoria foi instalada outra mostra de matemática, a Pourquois les mathématiques?, da Maison des Mathématiques et l’Informatique de Lyon, da França, criada em 2000. n PESQUISA FAPESP 226 | 95
CONTO
Manteiga com margarina Eurico C. de Oliveira
A
lvarão tirou o durindana da algibeira, alisou as duas faces da palha de milho com carinho, dobrou–a ao meio e prendeu entre os dedos da mão esquerda. Com rara habilidade e seu canivete afiado picou um pedaço de fumo, bem fininho, desfiou as rodelas e enrolou um paieiro caprichado. Deslizou pelo nariz antecipando prazeres, lambeu devidamente, e protegendo a chama com a concha da mão esquerda acendeu o cigarro. Uma bela tragada e o cheiro do Tietê recendeu por toda a varanda. Encheu um copinho, jogou um pouco pro santo, deu uma golada e fez humm, satisfeito. Esticou as pernas, colocou as mãos por trás da cabeça e continuou o papo: – Pois é cumpadi (tinha essa mania de se pretender caipira), como tava dizendo, meu nono comia na pura banha de porco, temperava salada com banha derretida e pitava como uma chaminé. Morreu com saúde aos 89 anos. Naquele tempo gordura não dava infarto, pitar não dava câncer. – Calma aí, você não pode generalizar... – Qué isso? Não se usava fogão a gás e nem panela de alumínio, lenha e barro. Tô achando que essas doença moderna têm que ver com o gás – sempre vaza um pouco. Ou seria o alumínio? Ao perceber minha cara de quem não concorda, emendou antes que eu pudesse falar: – Uai, num foi ocê mermo que me disse que o alumínio é um metal pesado? Outro dia li na Seleções, tá provado, metal pesado faz um mal danado. Vai engolindo alumínio, uma titica por dia, no fim endurece as veia. Não consigo convencer a patroa a voltar à moda antiga – tem jeito não. Mas parei de tomar cerveja em latinha. Agora só em garrafa de vidro, casco escuro. Deu uma risadinha e completou – bão, se não tiver em garrafa... Após ouvir tanta “ciência” argumentei que as coisas não eram tão simples, que Seleções não era
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a fonte mais confiável de informações científicas, e acrescentei: – Tá provado cientificamente que o infarto do miocárdio está fortemente correlacionado com o nível de colesterol no sangue e que banha, ovos e manteiga são ricos em colesterol. Até os capiaus sabem disso, e você comendo torresminho e omeletes todo dia! Alvarão não era fácil e retrucou: – Tá bom, t á bom, mas ocê, tão estudado, não sabia que quem inventou essa estória de colesterol foram os produtores de óleo de soja? – Pera aí, como assim? – Escuita, o cultivo de soja acabou com o cerradão e, de tabela, com os tamanduá-bandera e o lobo guaraná, como fala meu neto. Com tanta lavoura o que fazê com as tonelada de soja? Brasileiro gosta é de feijão. Mas soja dá óleo, né? Se brasileiro não come soja, tinha que aumentar o consumo de óleo, e ponha consumo nisso. – Mas Alvarão... – Deixa eu terminá, inventaram a tal margarina, um óleo engrossado. Diga aí, quem trocaria uma boa manteiga, daquelas bem amarelinhas, por esta banha vegetal? Ainda se tivesse uma crise de leite, vá lá. Tão jogando fora, preço de banana. – Não é bem assim... – Mais é! A gauchada produzindo soja no Goiás e Mato Grosso, tanta, preço caindo, transformaram em margarina. E o povo? Comia essa bosta? Espalhar mais fácil nessa porcaria de pão de fôrma não basta. Manteiga deve fazer mal pralguma coisa, olha a ideia. Imagine besteira dessas. O home vem comendo manteiga desde o tempo que os bicho falava! Pra vendê margarina tinha que convencê o povo que manteiga fazia mal; coisa braba, câncer, doença do coração, ou atacar essa tal de próstata, tão falada mas que ninguém sabe
SILVIA AMSTALDEN
pra que serve. Veja, se ocê pensá bem, é claro que manteiga faz mal, tudo faz, até açúcar. É o mesmo que dizê que muita água dá barriga-d’água, ou afoga – e riu gostoso de sua esperteza. –Velhacos, isso sim. Pagaram cientistas, entupiro uns ratinho de manteiga, desses que morrem facinho, pronto, noves fora tava provado que manteiga tem o tar do colesterol, o que, aliás, até eu sabia, li nas Seleções. Daí a mostrar que os infartado tinha as veia entupida foi tiro e queda. – Mas Alvarão... – Espera, usaro como exemplo até um cano de pia de cozinha entupido de gordura, mostraro que planta não tem colesterol, tá nas Seleções, soja é planta, os criadô de gado foram pro brejo. – Vá lá, seu raciocínio não deixa de ter uma certa lógica... Alvarão franziu a testa, vaidoso, emendou: – Claro que tem. Dizem que se ocê come muito torresmo, ovo, pele de galinha suas veia entope, cê estica as canelas. Tá bão. Agora as galinha e os porco come o quê? Milho, farelo de soja, tudo vegetal, zero de colesterol. E comé que estão cheias de colesterol? Isso não entendo. Explica essa sabichão! – É, Alvarão, tá complicando, dá mais uma cangibrina aí, e vamos mudar de assunto. E a criação de galo de briga? Conseguiu tirar algum filho daquele galo puva marombeiro do Zé da Bica? Eita galo bom, sô! – Afinou. – Aquele galo? – Não, ocê, que é todo estudado e num sabe de nada. Eurico Cabral de Oliveira foi professor do Instituto de Biociências da USP. Especialista em algas, publicou cerca de 200 artigos científicos. Continua um estudioso apaixonado pela natureza.
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CARREIRAS
COMPUTAÇÃO
Ponte entre teoria e prática Tese de Claudia Melo, diretora de tecnologia da ThoughtWorks,
FOTO ARQUIVO PESSOAL ILUSTRAÇÃO DANIEL BUENO
foi desenhada para gerar impacto na academia e na indústria
A tese de doutorado da brasiliense Claudia de Oliveira Melo, de 34 anos, diretora de tecnologia da empresa norte-americana ThougthWorks (TW) no Brasil, foi o instrumento que lhe deu uma visão profunda sobre como acontece a transferência de conhecimento entre teoria e prática e vice-versa. “Consigo fazer pontes entre esses dois universos, o que me ajuda a orientar pessoas sobre como explorar informação e gerar conhecimento ou aliar resultados recentes de pesquisas científicas com o estado da prática na indústria”, diz Claudia, que também é pesquisadora associada ao Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME-USP), onde fez o doutorado em ciência da computação. Sua pesquisa de doutorado, desenhada para gerar impacto na academia e na indústria, foi escolhida como uma das seis melhores teses em 2013 em concurso feito pela Sociedade Brasileira de Computação. “O meu problema de pesquisa surgiu durante uma reunião com o então chefe de TI
do Banco Central, onde ele perguntou se métodos ágeis de desenvolvimento de software trariam maior produtividade para as organizações.” Há dois anos e meio, ela começou a trabalhar na TW, empresa de consultoria global e de criação de software. “Ao conciliar o fim do doutorado e o meu primeiro projeto na TW, consegui não apenas aplicar conhecimentos da minha pesquisa para o sucesso do projeto, como também refinar os resultados científicos da
Claudia Melo: tempo dividido entre trabalho e projeto de pesquisa
minha pesquisa por meio de validação prática.” Na USP, Claudia participa de um projeto de pesquisa chamado “Empreendedorismo em computação e o ecossistema de startups de software”, em que coorienta informalmente um aluno de doutorado. A pesquisa é feita em colaboração entre o IME-USP, a Israel Institute of Technology (Technion), a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e o Instituto Tecnológico Vale. Na sua trajetória profissional, ela já passou por pequenas e grandes empresas e também teve sua própria startup em consultoria. Em 2001, um ano após ter concluído a graduação em ciência da computação na Universidade Federal de Uberlândia (MG), Claudia trabalhava no Rio de Janeiro, mas sentiu necessidade de voltar a estudar para melhorar o desempenho no trabalho. Aos 21 anos, Claudia mudou para São Paulo e começou a fazer o mestrado no IME. E uma terceira carreira surgiu com a sua entrada na USP: começou a trabalhar como docente em computação em universidades como Senac (SP) e Católica de Brasília (DF), onde também foi coordenadora de uma pós-graduação. “Durante quase uma década da minha vida conciliei indústria, pesquisa e docência.” Em 2009, deixou dois empregos para voltar à USP como doutoranda. PESQUISA FAPESP 226 | 98
CLASSIFICADOS
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