Para estudar os mortos e ajudar os vivos

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março de 2015  www.revistapesquisa.fapesp.br

irrigação Esgoto tratado diminui uso de água e fertilizantes no campo asteroides Astrônomos mapeiam e estudam composição de objetos celestes que ameaçam a Terra campos rupestres Plantas desenvolvem estratégias para absorver nutrientes escassos entrevista etelvino bechara A química em comum entre vaga-lumes e doenças mentais

Para estudar os mortos e ajudar os vivos Laboratório com equipamento de ressonância inédito na América Latina investe na compreensão de doenças e em autópsias digitais


Pesquisa Brasil Toda sexta-feira, das 13h às 14h, você tem um encontro marcado com a ciência na Rádio USP FM

Pesquisa Brasil traz notícias e entrevistas sobre ciência, tecnologia, meio ambiente e humanidades.

eduardo cesar, EDUARDO SANCINETTI, ricardo zorzetto, léo ramos, nasa / jpl, Latinstock/MEHAU KULYK/SCIENCE PHOTO LIBRARY/SPL DC

Os temas são selecionados entre as reportagens da revista Pesquisa FAPESP. A cada programa, dois pesquisadores falam sobre o desenvolvimento de seus trabalhos recentes – e ajudam a escolher a

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programação musical.

São Paulo 93,7 mHz

Você também pode baixar e ouvir o programa da semana e os anteriores na página de Pesquisa FAPESP na internet (www.revistapesquisa.fapesp.br).

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fotolab

Rendilhado na floresta Arildo Dias obteve esta imagem ao cortar o caule de uma liana (cipó) e aplicar corantes em trabalho realizado durante seu doutorado em biologia vegetal na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em vermelho as fibras, que ajudam na sustentação, e elementos de vaso do xilema, para transporte de água. Em azul o parênquima, de armazenamento, e em maior quantidade o floema, que transporta açúcares. Essa distribuição lhe permitiu comparar lianas e árvores de florestas em Campinas e Ubatuba, respectivamente interior e litoral de São Paulo. As lianas, em parte por se apoiarem nas árvores, podem investir mais nos vasos em detrimento da sustentação, o que as torna mais eficientes onde há menos chuva.

Foto enviada pelo biólogo Arildo Dias Se você tiver uma imagem relacionada à sua pesquisa, envie para imagempesquisa@fapesp.br, com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.

PESQUISA FAPESP 229 | 3


março  n.229 CAPA 14 Plataforma com aparelho

de ressonância inédito na América Latina vai estudar cadáveres para avançar no diagnóstico e na compreensão de doenças

ENTREVISTA 22 Etelvino Bechara

44

Químico elucidou a ação de compostos muito reativos, os radicais livres, nas células

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA 30 Cientometria

Estudo indica que bolsistas cujos projetos são selecionados por avaliação por pares publicam mais em revistas com maior impacto

34 Difusão

TV Cultura e FAPESP lançam o programa SP Pesquisa

36 Acervos científicos

3 Fotolab 5 Cartas 6 On-line 7 Carta do editor 8 Dados e projetos 9 Boas práticas 10 Estratégias 12 Tecnociência 88 Memória 90 Arte 93 Resenha 94 Ficção 96 Carreiras 98 Classificados foto da capa Léo Ramos Milena Cely Modolo Santos e Renata de Cassia Arruda, técnicas do projeto pisa, no Magnetom 7T MRI

4 | março DE 2015

Especializações nas raízes permitem que plantas vivam no ambiente infértil dos campos rupestres

60 Ecologia

Cutias criadas em cativeiro se adaptam à vida na floresta e se reproduzem

62 Genética

Resíduos da melanina formados horas após exposição ao sol podem danificar o DNA e provocar câncer de pele

TECNOLOGIA

64 Engenharia agrícola

Irrigação com água tratada de esgoto diminui a retirada dos mananciais

70 Engenharia da computação

Empresa desenvolve software para treinamento virtual de vigilantes

Herbários virtuais facilitam análises sobre a biodiversidade

72 Pesquisa empresarial

CIÊNCIA

76 Biofísica

62

seçÕes

54 Botânica

40 Astronomia

Pesquisas brasileiras com asteroides podem ajudar a estimar risco de colisões com a Terra

46 Física

Pesquisadores criam modelo de fenômeno atmosférico luminoso

50 Cartografia planetária

Ferramentas matemáticas ajudam a identificar crateras em Mercúrio e Marte

53 Obituário

Alejandro Szanto de Toledo ajudou a formar uma geração de físicos nucleares no país

Opto, de São Carlos, desenvolve e produz lasers para a área médica Dispositivo usa ultrassom e laser juntos para reabilitar pacientes

humanidades 78 Filosofia

Pesquisadores estudam manuscritos da fase intermediária de Wittgenstein

82 História

Projeto evidencia a importância da ideia profética de “esperança” no século XVII

86 Educação

Ferramenta digital revela estrutura dos textos

88


cartas

cartas@fapesp.br

Não sei se esse material ainda existe. Houve tentativas da Finep e do CNPq de apoiar a recuperação desse material, mas a direção da Biblioteca Nacional não se interessou pelos apoios que foram oferecidos. Sei disso porque estive envolvido no processo.

CONTATOS  Site da revista No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra. No site também estão disponíveis reportagens traduzidas e as edições internacionais da revista em inglês, francês e espanhol.  Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação pelo e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727 – 10º andar CEP 05415-012 São Paulo, SP  Assinaturas, renovação e mudança de endereço Envie um e-mail: assinaturaspesquisa@fapesp.br Ou ligue: (11) 3087-4237 De segunda a sexta das 9h às 19h

Roberto de Andrade Martins IFSC-USP e UFSCar Campinas, SP

Medicina

Devido à entrevista com Elson Longo (edição 228), entrei no site de Pesquisa FAPESP e digitei “entrevista” na busca. Achei histórias incríveis e inspiradoras daqueles que possibilitaram estarmos hoje fazendo pesquisa no Brasil!

Foi com muita tristeza, indignação e revolta que li o suplemento especial “USP 80 Anos”. Sequer foi mencionada a Faculdade de Medicina Veterinária, como uma das instituições fundamentais na trajetória desses 80 anos da universidade! Situada na rua Pires da Mota, na capital paulista, essa renomada instituição foi uma das pioneiras a instalar seus departamentos de Fisiologia, Histologia, Parasitologia e Farmacologia no então recém-inaugurado campus na Cidade Universitária. O campus avançado da FMV-USP em Pirassununga, por meio de seu Instituto de Zootecnia, responsável pela formação de milhares de profissionais nas áreas de pesquisa, ensino e treinamento, também foi ignorado, assim como seus diretores e professores, como Orlando de Paiva Neto, Ernesto Matera, Antônio Guimarães Ferri, José de Fatis Tabarelli Neto, Dinoberto Chacon de Freitas e tantos outros.

Eduardo Antonelli

Francisco de Assis Martins

São José dos Campos, SP

Médico veterinário

Boa edição a de nº 228. Em relação à reportagem “Arte de parar em pé”, só não gostei quando se diz: “Os robôs funcionam como fisioterapeutas automáticos, corrigindo os movimentos”. Acho que um robô precisaria fazer muito mais para se tornar um autômato de fisioterapeuta. Comparativamente, um robô que avaliasse alguns parâmetros clínicos e prescrevesse medicamentos não se tornaria um “médico automático”. Luiza Caires São Paulo, SP

 Para anunciar Midia Office – Júlio César Ferreira (11) 99222-4497 julinho@midiaoffice.com.br Classificados: (11) 3087-4212 publicidade@fapesp.br  Edições anteriores Preço atual de capa da revista acrescido do valor de postagem. Envie e-mail para clair@fapesp.br  Licenciamento de conteúdo Para adquirir os direitos de reprodução de textos e imagens de Pesquisa FAPESP ligue: (11) 3087-4212 ou mpiliadis@fapesp.br

USP 80 anos

Elson Longo

Campinas, SP

Journal des Sçavans

Ao ler a reportagem “Os primeiros journals” (edição 227) lembrei que a única coleção do Journal des Sçavans existente no Brasil estava, antigamente, na Biblioteca Nacional, sem acesso e sem catalogação, na “coleção paralela” (um eufemismo) que ficava escondida no porão, em torno de 1990. Era um conjunto de mais de 50 mil volumes, em grande parte constituída por livros dos séculos XVIII e XIX, que depois foram desalojados do porão e levados para um prédio em ruínas no cais do porto, no Rio.

Correção

Na reportagem “Um segredo da paternidade” (edição 228), a foto no alto da página 52 é do mico-leão-da-cara-dourada e não do mico-leão-da-cara-preta. No infográfico, a figura do macaco-de-cheiro foi trocada com a do macaco-prego.

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar - CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

PESQUISA FAPESP 229 | 5


on-line

Nas redes Sacrifício pela sobrevivência: segurados com uma pinça, escorpiões se desprendem da cauda, abrindo mão do ferrão e de parte de seu abdome

Roberta Heringer Strobel_ Minha filha nasceu com 2,850 kg de 40 semanas e teve um médico que queria marcar cesárea para 37/38 semanas. Fico pensando como seria! (Antes da hora) Jefferson Banderó_ Muitas áreas do Brasil já estiveram submersas, em Cáceres (MT) há conchas marinhas sobre um morro dos mais altos na serra. Vimos isso nas aulas de solos da UFMT. (vídeo O último litoral de Minas)

Exclusivo no site x Um mecanismo de sobrevivência bastante eficiente e usado por muitas espécies de aranhas, lagartixas e opiliões parece ser comum também entre escorpiões: a capacidade de soltar partes do corpo como meio de defesa contra predadores. Num estudo publicado na PLoS One, pesquisadores do Instituto de Biociências da USP observaram que ao segurar a cauda de escorpiões do gênero Ananteris com uma pinça os animais se desprendiam delas. No caso desses artrópodes, perder a cauda, com o ferrão na ponta, significa ficar sem parte do sistema digestivo e o ânus.

Marcos Fernandes_ Este kit

Rádio

mudou minha vida. Decidi ser

Pediatra fala sobre os riscos das cesarianas desnecessárias para os bebês

causa dele. (Ciência ao alcance

Vídeos do mês

economista matemático por das mãos) Lúcia Schirmer_ Parabéns aos pesquisadores! Temos mentes brilhantes no Brasil. (vídeo Pele artificial)

youtube.com/user/PesquisaFAPESP

x Um trio internacional de Assista ao vídeo:

pesquisadores apresentou num estudo da revista Nature Physics a evidência mais convincente até o momento de que o interior da galáxia onde está a Terra também

Perda de vegetação nativa pode representar uma das principais ameaças às serpentes do Brasil

abriga algo difuso e invisível: a matéria escura, cuja presença já foi confirmada em outras regiões do Universo. O trabalho dos físicos é o primeiro a assegurar que as estrelas da região estudada giram mais depressa do que seria esperado se não houvesse ali a presença da força gravitacional da matéria escura, substância desconhecida cinco vezes mais abundante que a matéria comum. 6 | março DE 2015

Assista ao vídeo:

Fósseis indicam que um braço do mar cobria partes do Brasil há cerca de 550 milhões de anos

Mattoni, C. I. et al. / PLoS One

w w w . r e v i s ta p e s q u i s a . f a p e s p. b r


carta d0 editor fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo Celso Lafer Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior Celso Lafer, Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, Horácio Lafer Piva, joão grandino rodas, Maria José Soares Mendes Giannini, Marilza Vieira Cunha Rudge, José de Souza Martins, Pedro Luiz Barreiros Passos, Suely Vilela Sampaio, Yoshiaki Nakano Conselho Técnico-Administrativo

Para ajudar quem está vivo Neldson Marcolin |

editor-chefe

Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico Joaquim J. de Camargo Engler Diretor Administrativo

issn 1519-8774

Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo Leite, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Adolpho José Melfi, Carlos Eduardo Negrão, Douglas Eduardo Zampieri, Eduardo Cesar Leão Marques, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Joaquim J. de Camargo Engler, José Arana Varela, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Lucio Angnes, Luis Augusto Barbosa Cortez, Marcelo Knobel, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Marta Teresa da Silva Arretche, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Luiz Monteiro Salles Filho, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner do Amaral Caradori, Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos editor-chefe Neldson Marcolin Editores Fabrício Marques (Política), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência); Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores espe­ciais); Bruno de Pierro e Dinorah Ereno (Editores-assistentes) revisão Daniel Bonomo, Margô Negro arte Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos (Editora de infografia), Maria Cecilia Felli e Alvaro Felippe Jr. (Assistente) fotógrafos Eduardo Cesar, Léo Ramos Mídias eletrônicas Fabrício Marques (Coordenador) Internet Pesquisa FAPESP online Maria Guimarães (Editora) Rodrigo de Oliveira Andrade (Repórter) Rádio Pesquisa Brasil Biancamaria Binazzi (Produtora) Colaboradores Alexandre Affonso, Ana Lima, Daniel Bueno, Evanildo da Silveira, Fábio Zimbres, Juliana Sayuri, Igor Zolnerkevic, Ivan Vilela, Loredano, Luisa Gleiser, Márcio Ferrari, Maria Hirszman, Mauro de Barros, Pablo Nogueira, Pedro Hamdan, Valter Rodrigues, Veridiana Scarpelli, Yuri Vasconcelos É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização Para falar com a redação (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br Para anunciar Midia Office - Júlio César Ferreira (11) 99222-4497 julinho@midiaoffice.com.br Classificados: (11) 3087-4212 publicidade@fapesp.br Para assinar (11) 3087-4237 assinaturaspesquisa@fapesp.br Tiragem 43.700 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo

U

m aparelho de ressonância magnética a ser inaugurado na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) neste mês representa um estímulo extra aos que estudam a saúde humana. Com o novo equipamento, será possível ter um nível de sensibilidade e detalhamento extraordinário para se obter informações estruturais e funcionais do corpo. A máquina, que será usada principalmente em cadáveres, entusiasma os pesquisadores da área médica pelo leque de possibilidades que oferece à investigação científica. O laboratório em que está instalado o Magnetom 7T MRI é a Plataforma de Imagem na Sala de Autópsia (Pisa) e foi construído no subsolo da FM-USP. É o primeiro equipamento de ressonância magnética da América Latina para corpo inteiro com campo de 7 Tesla, que produz imagens melhores que as máquinas convencionais. À primeira vista, o fato de a máquina não estar liberada para uso clínico pode causar certa estranheza. No entanto, é precisamente a pesquisa em cadáveres que fará avançar as ciências que tratam da saúde humana. O equipamento deverá melhorar o diagnóstico por imagem, levar à criação de novas abordagens para o estudo de doenças, permitir autópsias minimamente invasivas e aprimorar setores do ensino médico. Na cidade de São Paulo são realizadas 14 mil autópsias por ano relativas a mortes naturais, o que faz do Serviço de Verificação de Óbitos da Capital (SVOC) o maior do gênero no mundo. A USP é a mantenedora do SVOC. A aquisição do Magnetom 7T MRI ocorre em um ambiente fértil para pesquisas com mortos cujo objetivo primordial é entender o organismo dos vivos. Na reportagem de Fabrício Marques (página 14) estão todos os detalhes dos principais usos

potenciais da máquina e o passo a passo de sua delicada instalação no subsolo da Faculdade de Medicina. Entre as várias reportagens desta edição que me chamaram a atenção destaco mais duas. Em tempos difíceis é comum ouvir, quase como um consolo, que a adversidade traz consigo oportunidades. No caso da crise hídrica que atinge os estados do Sudeste, essa sentença tornou-se verdadeira – pelo menos para a irrigação. Pesquisas independentes das três universidades estaduais paulistas e da Embrapa Informática Agropecuária, de Campinas, mostraram que o uso do esgoto doméstico tratado para irrigação,pode ser uma alternativa para o campo porque diminui a retirada de água limpa dos mananciais e economiza fertilizantes. A reportagem de Evanildo da Silveira (página 64) relata como ocorreram esses trabalhos em comum, que se tornam mais significativos quando sabemos que, no Brasil, 72% da água é usada no campo. Outro destaque desta edição refere-se à coincidência entre o entrevistado do mês e uma reportagem sobre um de seus trabalhos recém-publicados. Carlos Fioravanti entrevistou o químico Etelvino Bechara (página 22) e, quando o texto já estava finalizado, foi avisado por ele que deveria sair um artigo científico na revista Science de 19 de fevereiro. Nesse estudo, Bechara e sua aluna de doutorado Camila Mano, em colaboração com pesquisadores do exterior, mostravam como o DNA poderia ser danificado mais de três horas após a exposição direta à luz do sol. Fioravanti pediu o artigo e escreveu também a reportagem (página 62). Foi uma boa oportunidade para o serviço completo: a entrevista com a trajetória do cientista e o relato sobre seu trabalho mais recente. PESQUISA FAPESP 229 | 7


Dados e projetos Temáticos e Jovem Pesquisador recentes Projetos contratados em janeiro e fevereiro de 2015

temáticos

Vigência: 01/02/2015 a

Processo: 2014/50627-2

caracterização de um modelo

 Investigação dos efeitos

31/01/2019

Vigência: 01/01/2015 a

de rato nocaute para estudo do

31/12/2018

papel fisiológico da carnosina e

insulinotrópicos, insulinomiméticos e endoteliais

Valor nutritivo e qualidade

da taurina em células/tecidos

higiênico-sanitária de plantas

submetidos à restrição in vitro

e grãos de milho sob efeito

JOVEM PESQUISADOR

Pesquisador responsável:

de aminoácidos: uma abordagem

de estratégias de ensilagem

 Hippo-YAP como uma via

Guilherme Giannini Artioli

integrada e multifocal

Pesquisador responsável: Luiz

de convergência dos sinais

Instituição: Escola de Educação

Pesquisador responsável:

Gustavo Nussio

bioquímicos e mecânicos

Física e Esporte/USP

Everardo Magalhaes Carneiro

Instituição: Escola Superior de

provenientes da matriz

Processo: 2014/11948-8

Instituição: Instituto de Biologia/

Agricultura Luiz de Queiroz/USP

extracelular durante a

Vigência: 01/02/2015 a

Unicamp

Processo: 2014/06819-4

morfogênese da glândula

31/01/2019

Processo: 2014/01717-9

Vigência: 01/02/2015 a

mamária e a progressão

Vigência: 01/02/2015 a

31/01/2019

do câncer de mama

 Biodiversidade e processos

Pesquisador responsável:

microbianos em ecossistemas

suas implicações para o exercício físico e metabolismo muscular

31/01/2019  Devil (promovendo segurança

Alexandre Bruni Cardoso

aquáticos

 Consequências ecológicas da

alimentar com disponibilidade

Instituição: Instituto de Química/

Pesquisador responsável: Hugo

defaunação na Mata Atlântica

restrita de terra).

USP

Miguel Preto de Morais Sarmento

Pesquisador responsável: Mauro

(FAPESP-Belmont Forum)

Processo: 2014/10492-0

Instituição: Centro de Ciências

Galetti Rodrigues

Pesquisador responsável: Jean

Vigência: 01/11/2014 a 31/10/2018

Biológicas e da Saúde/UFSCar

Instituição: Instituto de Biociências

Pierre Henry Balbaud Ometto

de Rio Claro/Unesp

Instituição: Instituto Nacional de

Vida sem carnosina:

Vigência: 01/02/2015 a

Processo: 2014/01986-0

Pesquisas Espaciais/MCTI

desenvolvimento e

31/01/2019

Processo: 2014/14139-3

Recursos para P&D nas universidades norte-americanas Investimento em pesquisa e desenvolvimento (P&D) em instituições de ensino superior por fonte e disciplina nos Estados Unidos (2013)

Investimento em P&D

US$ milhões

%

Governo federal

39.535,20

58,86

Recursos institucionais

1 5 . 0 11 ,6 1

22,35

Organizações sem fins lucrativos

3 .874,14

5,77

Governos locais e estaduais

3.666,94

Setor privado

3.505,55

Todas as outras fontes

1.579,98

Total

67.17 3,42

5,46 5,22 2,35 100,00

Disciplinas

US$ milhões

Ciências

52.765,52

78,55

Engenharia

10.737,84

15,99

3.670,06

5,46

Outras Ciências

US$ milhões

Ciências da Vida

37.631, 31

% 7 1, 32

Ciências Físicas

4.664,31

8,84

Ciências do Ambiente

3.208,98

6,08

Ciências Sociais

2 .17 5,7 7

4 ,12

Ciência da Computação

2.073,18

3,93

Outras Ciências

1.179,79

2,24

Psicologia

1.157,50

2,19

674,69

1,28

Matemáticas

Fonte: National Science Foundation, National Center for Science and Engineering Statistics, Higher Education Research and Development Survey, FY 2013

8 | março DE 2015

%


Boas práticas Uma suspeita de má conduta científica, que desde 2011 repercute na comunidade acadêmica da Dinamarca, sofreu uma reviravolta em fevereiro, quando a Justiça do país inocentou a fisiologista Bente Klarlund Pedersen, pesquisadora da Universidade de Copenhague, da acusação de conduta desonesta. A agência governamental que investiga fraudes científicas, os Danish Committees on Scientific Dishonesty (DCSD), foi condenada a pagar US$ 61 mil dos custos judiciais do processo. Em 2013, o órgão concluiu que Bente agiu “de forma negligente”, caracterizando “desonestidade científica”, ao reutilizar dados de experimentos em vários artigos e falhar em detectar manipulações de imagens em microscopia cometidas por uma pesquisadora que ela orientava. A Alta Corte do Leste da Dinamarca, porém, considerou que a pesquisadora não agiu de forma desonesta. O caso levou à retratação de três artigos publicados pelo grupo de Bente e à publicação de uma correção num quarto artigo. Comprovou-se que ela reutilizou resultados de biópsias musculares em vários papers, sem indicar que as informações não eram inéditas, e mesclou os resultados de dois grupos que participavam de ensaios clínicos com protocolos distintos. Ela também era acusada de ser negligente com uma manipulação de imagens feita por sua orientanda Milena Penkowa, escândalo que deu início à investigação. Milena deixou a Universidade de Copenhague em 2010. A acusação levou Bente a deixar a função de editora de duas revistas científicas e de conselheira de uma instituição de pesquisa

biomédica. Ela admitiu problemas em alguns artigos, mas sempre argumentou que não agiu de má-fé e o expediente de reutilizar os resultados de biópsias musculares é prática considerada normal entre seus pares. Os estudos de Bente abordam os efeitos do exercício sobre a fisiologia dos músculos e buscam mecanismos capazes de acelerar a recuperação muscular. Ela era consultada com frequência pela imprensa dinamarquesa em reportagens sobre os benefícios do exercício físico. O advogado da pesquisadora, Eigil Lego Andersen, disse à revista Nature que a decisão judicial “manda uma mensagem forte” para a DCSD mostrando que nem todos os erros ou imperfeições de uma pesquisa podem ser classificados como desonestidade. “Eles precisam ter uma definição mais precisa

daniel bueno

O limite entre o erro e a desonestidade

do que é ou não desonestidade”, afirma. Henrik Gunst Andersen, que presidiu a DCSD durante a investigação do caso, disse que o governo dinamarquês está trabalhando para reformular os regulamentos da agência e acredita que a decisão da Justiça sobre o caso será considerada nessa revisão.

Diretrizes ampliadas As Academias Nacionais dos Estados Unidos, que reúnem várias instituições representativas da comunidade científica norte-americana, publicarão ainda neste semestre um novo conjunto de recomendações para promover a integridade científica. O documento, fruto de um trabalho de dois anos, vai atualizar as diretrizes que vigoram desde 1992. Um dos novos temas contemplados será a abertura dos dados de pesquisa que abastecem os artigos científicos e a criação de softwares que facilitem o compartilhamento desses dados.

Segundo a revista Chemistry World, o comitê responsável pela revisão deverá expandir a definição de má conduta, considerando as responsabilidades não só dos pesquisadores, mas também das agências de fomento, instituições de pesquisa e periódicos. “É equivocado pensar que as adversidades podem ser resolvidas apenas afastando os indivíduos problemáticos”, afirma Paul Root Wolpe, especialista em bioética da Emory University, um dos integrantes do comitê. Evidências de que os casos de má conduta vêm sendo subestimados levaram à rediscussão das diretrizes. PESQUISA FAPESP 229 | 9


Estratégias SBPC critica projeto A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) divulgou uma carta sugerindo mudanças no projeto de lei sobre biodiversidade e recursos genéticos aprovado na Câmara dos Deputados no dia 10 de fevereiro. Agora ele será apreciado pelo Senado. No documento, a entidade critica o cerceamento de direitos de certos grupos na repartição de benefícios resultantes do acesso ao conhecimento ligado ao patrimônio genético. “O projeto reconhece o direito de populações indígenas, comunidades tradicionais e pequenos agricultores de participar da tomada de decisões, mas isenta, em muitos casos, empresas e pesquisadores da obrigação de repartir os benefícios, que é a compensação econômica ao detentor do conhecimento tradicional associado à biodiversidade”, explica Helena Nader, presidente da SBPC. De acordo com o deputado federal Alceu Moreira (PMDB-RS), relator do projeto, as reuniões que antecederam à votação na Câmara tiveram a participação de entidades representativas, como 10 | março DE 2015

a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). “Não fizemos uma assembleia aberta por se tratar de um tema técnico”, diz. Outro aspecto destacado na carta da SBPC é que a repartição dos benefícios só será aplicada sobre a comercialização de produtos acabados – o que isenta empresas e pesquisadores de darem compensações antes de se chegar a um produto comercial. A SBPC questiona ainda um tópico da lei que dá a instituições estrangeiras acesso à biodiversidade brasileira, para fins de pesquisa, sem precisar se associar a uma instituição nacional, como prevê a legislação. “Isso é preocupante”, diz Helena Nader.

1

Benefícios da parceria

Alunos da Universidade Makerere e do Instituto Karolinska: colaboração

Alunos de doutorado da África que têm a oportunidade de obter duplo diploma em parcerias com universidades europeias multiplicam suas chances de publicar mais artigos científicos, diz um estudo publicado na revista PLoS Medicine. A pesquisa também mostra que as colaborações melhoram os procedimentos administrativos das instituições envolvidas. Para chegar a tais conclusões, foi

analisado um acordo de cooperação na área da saúde firmado entre a Universidade Makerere, em Uganda, e o Instituto Karolinska, na Suécia. De acordo com o estudo, a parceria permitiu a troca de experiências em colaborações científicas e em procedimentos para facilitar o apoio à pesquisa, além de inspirar mudanças em políticas de saúde em Uganda. Stefan Peterson, professor do Instituto Karolinska e coautor do trabalho, disse ao site SciDev.net que a cooperação não gerou fuga de cérebros, isto é, todos os alunos africanos que estiveram no país europeu retornaram para casa. Em 10 anos, a parceria formou 44 doutores e levou à publicação de mais de 500 artigos científicos – a maioria com um ugandense como primeiro autor.


fotos 1 Louis evongeijer 2 qeprize  3 National Air and Space Museum  ilustraçãO  daniel bueno

Ar fresco na China O presidente da Universidade Tsinghua, de Pequim, Chen Jining, foi escolhido para o posto de maior destaque no Partido Comunista vinculado ao Ministério de Proteção Ambiental na China. A nomeação sinaliza que ele deve assumir o comando do ministério em março, quando o titular, Zhou Shengxian, vai se aposentar. Caso seu nome seja confirmado, Jining colocará sua experiência em pesquisa ambiental a serviço de um dos maiores desafios da China: reduzir massivamente a poluição do ar, da água e do solo, agravada nas últimas décadas pela forte industrialização do país. Professor do Departamento de Ciência e Engenharia Ambiental em Tsinghua, suas áreas de pesquisa são política ambiental, manejo de bacias hidrográficas e

Mutirão contra crise hídrica

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cidades sustentáveis. A China tem feito movimentos dúbios no campo do meio ambiente. Em 2008, transformou sua agência de proteção ambiental em ministério e vem criando parâmetros mais rígidos para o controle da poluição. Mas tais regulações são frequentemente ignoradas pelas indústrias. Para Ma Tianjie, diretor do Greenpeace para a Ásia Oriental, Jining é uma boa escolha para o ministério. “Há uma ânsia dos chineses por respirar um ar mais limpo”, diz. Segundo ele, Jining tem consistência científica e deve conseguir resultados.

Chen Jining: pesquisador cotado para o Ministério de Proteção Ambiental

Os reitores das universidades de São Paulo (USP), Estadual Paulista (Unesp), Estadual de Campinas (Unicamp), Federal de São Paulo (Unifesp), Federal de São Carlos (UFSCar) e Federal do ABC (UFABC) criaram um fórum com o objetivo de reunir pesquisas e desenvolver novas tecnologias para enfrentar a crise hídrica na região Sudeste do país. Em carta, os reitores colocam à disposição dos governos municipal, estadual e federal a experiência dos pesquisadores que se dedicam, nessas universidades, ao estudo dos recursos

hídricos, para melhor planejar a adaptação às ações gerais de contingência. “Ressaltamos o papel de nossas instituições frente à atual crise hídrica e declaramos que estamos articulados e mobilizados para propor ações conjuntas que visam enfrentar os cenários que se desenham em curto, médio e longo prazos”, diz a carta. Os reitores propõem a criação do Painel Técnico-acadêmico de Recursos Hídricos, para trabalhar em conjunto com governos, nos moldes do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC).

Objetos guardados por Armstrong: a câmera pode valer US$ 1 milhão

Miudezas da viagem à Lua

3

Uma bolsa usada pelo astronauta norte-

do Smithsonian National Air and Space

trong e Collins na época ajudaram a

-americano Neil Armstrong em sua his-

Museum em Washington, Estados Uni-

confirmar a autenticidade do material:

tórica viagem à Lua, em julho de 1969,

dos. A conclusão dos especialistas é de

“Aquilo é apenas um monte de lixo que

foi apresentada ao público no mês pas-

que a bolsa acompanhou mesmo Arms-

queremos levar de volta – peças do mó-

sado. O objeto foi encontrado em um

trong no módulo lunar Eagle, que pousou

dulo lunar e miudezas”, disse Armstrong.

armário pela viúva de Armstrong, Carol,

na superfície lunar. Armstrong, que via-

Um consultor em assuntos espaciais

após a morte dele em 2012. O conteúdo

jou com os astronautas Buzz Aldrin e

ouvido pela rede de televisão CBS, Bill

da sacola, que incluía uma câmera fo-

Michael Collins a bordo da Apollo 11, foi

Harwood, afirmou que somente a câme-

tográfica, fios elétricos, correias e fer-

o primeiro homem a pisar na Lua. Trans-

ra alcançaria US$ 1 milhão em leilões de

ramentas, foi analisado por curadores

crições de uma conversa entre Arms-

relíquias históricas.

PESQUISA FAPESP 229 | 11


Tecnociência

1

A dança do sol e do vento O arquipélago de

tornaria produtivo o uso

Fernando de Noronha

de equipamentos que

é um paraíso natural

Fernando de Noronha: física em busca de fontes de energia

Cubesat entra em órbita O cubesat AESP-14,

370 quilômetros.

nanossatélite em forma de

Coube ao foguete

combinem as duas

cubo com 10 centímetros

norte-americano Falcon

a 360 quilômetros da

fontes de energia. O

de aresta – medida que

9 levar o cubesat dentro

costa de Pernambuco.

resultado vem de dados

engloba altura, largura

da cápsula espacial

Mas a eletricidade que

coletados de 2004 a

e profundidade – e cerca

Dragon, junto com mais

move a comunidade

2013, uma série

de 1 quilo de peso,

de 250 experimentos

do arquipélago vem

temporal inédita para

desenvolvido em parceria

científicos e suprimentos,

sobretudo de poluentes

análise conjunta desses

entre o Instituto Nacional

à ISS em 10 de janeiro.

geradores a diesel. Sol e

dois fenômenos, que

de Pesquisas Espaciais

A missão do AESP-14,

vento são fontes de

também mostrou que

(Inpe) e o Instituto

financiada pelo

energia abundantes por

os ventos mantêm uma

Tecnológico de

Conselho Nacional

ali, porém indomadas.

persistência mais forte

Aeronáutica (ITA), foi

de Desenvolvimento

Não há motivo para que

ao longo do tempo, em

lançado no espaço no

Científico e Tecnológico

sejam. A velocidade dos

comparação com a

dia 5 de fevereiro por

por meio de bolsas de

ventos e a radiação solar

radiação solar. Para

meio de um braço

pesquisa e pela Agência

estão correlacionadas

explicar a ligação entre

robótico japonês a partir

Espacial Brasileira (AEB)

por um índice que

as variáveis, os autores

da Estação Espacial

no valor total de R$ 400

persiste na escala de

sugerem que a radiação

Internacional (ISS),

mil, é validar subsistemas

tempo anual, de acordo

solar está por trás da

plataforma que fica em

eletrônicos e mecânicos

com análises estatísticas

formação de ventos por

órbita a uma altura de

desenvolvidos por

feitas durante o

meio do aquecimento do

alunos de graduação e

mestrado de Priscilla

solo, do mar e do ar,

pós-graduação do ITA

Sales dos Anjos sob

produzindo um gradiente

(ver Pesquisa FAPESP

orientação da física

de pressão que gera o

nº 219). Trinta minutos

´ sérvia Tatijana Stosic,

vento. Este também

após o lançamento

da Universidade Federal

afeta a disposição das

do cubesat, um modem

Rural de Pernambuco

nuvens, que modulam

a bordo foi ativado para

(Physica A, abril). Elas

a luz solar que chega à

transmitir mensagens

encontraram uma

Terra. Novos estudos

gravadas por cientistas

alternância entre a

devem avaliar o

brasileiros e captadas

persistência do vento

potencial de energias

e da radiação solar, que

alternativas.

ˆ

12 | março DE 2015

Inpe e ITA desenvolveram nanossatélite que foi lançado da estação espacial ISS

na frequência de 2

radioamadores.


fotos 1 Martin Stuchi Montingelli  2 e 3 léo ramos  4 IAG / USP

Mapa da chuva em São Paulo Os pontos coloridos na

é de 90 metros, a maior

principalmente em

tela indicam a tão

do país. “Essa resolução

relação aos eventos

esperada chuva que os

indica um nível de

do tempo como níveis

paulistanos esperam nos

detalhamento em que,

de chuva, granizo,

últimos meses. A imagem

se chove forte num

e que possibilita o

que todos podem acessar

ponto de uma rua, a

cruzamento de dados

no endereço www.

90 metros na mesma via

com alagamentos

chuvaonline.iag.usp.br

é possível distinguir se

e inundações. Os

é um trabalho realizado

chove fraco lá ou não”,

dois radares já estão

entre a Universidade

diz o professor Carlos

conectados com

de São Paulo (USP)

Morales, do Instituto de

os sistemas de

e a empresa de

Astronomia, Geofísica

monitoramento e

meteorologia

e Ciências Atmosféricas

defesa civil da cidade

Climatempo. Por meio

(IAG) da USP,

e serão importantes

de dois minirradares

coordenador do projeto

também no ensino

meteorológicos, um

Chuva Online. Ele conta

de meteorologia e na

instalado na Cidade

que os radares foram

previsão de chuvas

Universitária e outro na

comprados de uma

em curtíssimo prazo.

desenvolvido no Brasil

USP Leste, nos extremos

empresa italiana e cada

Um terceiro radar já

e candidato à vacina

da cidade, é possível

um custou R$ 300 mil

está previsto para ser

terapêutica contra a

ver em que local

(um pago pela USP e

instalado no Parque

doença de Chagas

está chovendo a cada 5

outro pela Climatempo).

da Água Funda, em

protegeu 80% dos

minutos em grande parte

Morales explica que

frente ao zoológico de

camundongos

da Região Metropolitana

na USP foi desenvolvido

São Paulo, onde o IAG

contaminados pelo

de São Paulo.

o software que faz a

mantém uma estação

parasita que a causa.

A resolução da imagem

análise dos dados

meteorológica.

Os animais tratados

4

Imagem de uma tarde chuvosa: a gradação mostra a intensidade entre as cores azul, fraca, e vermelho, forte

Vacina para tratar Chagas Um composto

apresentaram a mesma longevidade dos animais sem a enfermidade (PLoS Pathogens, 24 de janeiro).

O lado medicinal das frutas

Em contrapartida, todos os roedores que fizeram parte de um terceiro grupo – infectados, mas

Açaí, acerola, cajá, goiaba, graviola, man-

não tratados – morreram

ga, abacaxi, tamarindo. O Brasil tem

no fim dos 250 dias do

frutas para todos os gostos, mas outros

experimento. A vacina

atributos também são importantes nes-

também diminuiu em

ses tempos em que se valorizam as pro-

cinco vezes a carga

priedades funcionais dos alimentos. Em

parasitária dos roedores

seu doutorado na Universidade Federal

infectados e reduziu para

do Ceará, com um período no Instituto

3

Politécnico do Porto, em Portugal, Mário

33% a incidência de arritmia cardíaca, que em

Paz testou as atividades antioxidante e

pliar a durabilidade do alimento: o tama-

geral afeta 100% dos

antibacteriana da polpa dessas oito fru-

rindo apresentou boa ação contra todas

animais com o parasita.

tas (Food Chemistry, abril de 2015). A

as bactérias testadas, inclusive Salmo-

acerola e o açaí foram as campeãs em

nella e Escherichia coli, importantes agen-

propriedades antioxidantes, que podem

tes de infecções alimentares, e o açaí

ser importantes na proteção contra doen-

teve ação fraca contra microrganismos.

ças cardiovasculares e certos tipos de

Não é o caso de se transformar a frutei-

câncer, por exemplo. Nessa categoria, o

ra em farmácia, mas o estudo sugere que

do Instituto Nacional de

abacaxi e o tamarindo foram as frutas

o tamarindo deveria ser mais estudado

Ciência e Tecnologia

menos bem cotadas. As posições nessa

para entrar na composição de alguns

de Vacinas (INCTV), do

classificação foram invertidas quanto à

medicamentos contra doenças humanas

qual participa a biofísica

atividade antibacteriana, que pode am-

e de animais.

Joseli Lannes-Vieira,

Coordenado por Maurício Açaí: bom antioxidante, mau bactericida

Martins Rodrigues, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o estudo inclui um grupo

autora principal do artigo. PESQUISA FAPESP 229 | 13


Imagens de ressonância 7 Tesla (abaixo) e o equipamento da FM-USP: ambiente fértil para pesquisa

14 | março DE 2015


capa

A morte explica

a vida Plataforma com aparelho de ressonância inédito na América Latina vai estudar cadáveres para avançar no diagnóstico e na compreensão de doenças Fabrício Marques

foto léo ramos ressonâncias 1 Erwin Hahn Institute for MR  2 Medical University, Viena  3 Peter Morris, Nottingham University

N

o início da tarde do dia 13 de março, uma nova research facility da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) será inaugurada, no intervalo de um encontro científico internacional sobre mapeamento cerebral. Batizado de Plataforma de Imagem na Sala de Autópsia (Pisa), o laboratório foi instalado numa construção subterrânea de 500 metros quadrados, escavada num terreno contíguo à sede da FM-USP, e abriga o Magnetom 7T MRI, primeiro equipamento de ressonância magnética para corpo inteiro com campo de 7 Tesla da América Latina. O equipamento será utilizado principalmente no estudo de cadáveres recebidos pelo Serviço de Verificação de Óbitos da Capital (SVOC), que é mantido pela USP e realiza em torno de 14 mil autópsias por ano relativas a mortes naturais (as mortes violentas estão a cargo do Instituto Médico Legal). Um dos objetivos das pesquisas é desenvolver técnicas de diagnóstico por imagem que ajudem a identificar a causa da morte de modo menos invasivo do que uma autópsia convencional. Os estudos com os mortos prometem ajudar os vivos, ao propiciar avanços em diagnóstico e na compreensão de doenças. “Na área de diagnóstico, devemos ter retorno imediato”, diz Paulo Hilário Saldiva, professor titular de Patologia da FM-USP e coordenador do projeto. PESQUISA FAPESP 229 | 15


Plataforma de Imagem na Sala de Autópsia (Pisa)

Magnetom 7T

Óbitos da Capital (SVOC)

Sala de comando

7

Local de onde o

Túnel de

equipamento de

8

ressonância magnética é controlado

Hospital das Clínicas

Sala multifuncional

5

laboratório e, eventualmente, se transformará em sala de aula

2

Sala de pesquisa

3

Pesquisadores usarão as bancadas

1

desta sala para desenvolvimento de novos instrumentos para a ressonância, como suas bobinas experimentação animal Área para manejo e controle

n Circulação livre

fisiológico de animais

n  Acesso do staff e pesquisadores, com treinamento básico em segurança

de ressonância

acesso ao

6

Receberá parte do staff do

em pesquisas na sala

Serviço de Verificação de

O novo laboratório, que abriga a primeira ressonância magnética 7 Tesla da América Latina, foi construído numa área de 500 metros quadrados

de laboratório utilizados

Acesso ao

n  Acesso restrito a profissionais com treinamento avançado em segurança e no uso do equipamento

5

4 Salas de entrevista

Sala de preparo

Familiares das pessoas

Os cadáveres são

mortas fornecem

preparados para os

informações e

exames de imagem.

assinam termo de

Também pode ser usada

consentimento para

para treinamento de

exames de imagem

médicos e estudantes

1 Máquinas; 2 Rack; 3 Depósito; 4 Elétrica; 5 Sanitários; 6 Vestiários; 7 Sala técnica; 8 Recepção

tubo de quench Serve para escape

A sala do Magnetom 7T MRI

do gás hélio, em caso de emergência

O equipamento foi instalado numa sala com blindagem de cobre e aço silício

blindagens Teto, piso e paredes da sala são revestidos com placas de cobre, que bloqueiam a interferência de ondas de rádio vindas do ambiente externo. Atrás do equipamento

mesa

a parede tem proteção

Move-se com

extra de aço silício

baixa velocidade para não danificar

bobinas

projeção de imagens

a eletrônica e

São responsáveis por

Utilizada para estudos

reduzir efeitos

emitir e receber os

de ressonância

de vertigem

sinais de radiofrequência

magnética funcional

nos voluntários

dos tecidos

com pacientes vivos

16 | março DE 2015


infográfico ana paula campos  ilustração alexandre affonso

Como funciona a ressonância magnética de 7 Tesla bobinas de gradiente O gradiente é responsável

3Tesla

7 Testla

por codificar espacialmente o sinal para identificar a

A quantidade de prótons do

informação em cada região

tecido humano que contribuem para gerar imagens aumenta conforme a intensidade do campo magnético. Por isso, o 7 Tesla tem maior detalhamento para medidas estruturais e funcionais do organismo humano Túnel de exames com 3,2 m

1

emissão de ondas

2

coleta da

3

Processamento e geração

Bobinas transmissoras

informação

são responsáveis

Os átomos de

das imagens

por emitir ondas

hidrogênio absorvem

O sinal é processado

de radiofrequência

energia e a reemitem.

matematicamente

de 300 MHz que

A bobina receptora

e as imagens

excitam os átomos

detecta o sinal e envia

enviadas para os

de hidrogênio

para computadores

computadores

do tecido humano

na sala técnica

da sala de comando

Localização Pisa

Avenida dr. Arnaldo

Faculdade de Medicina

fonte khallil taverna chaim / fm-usp

Rua dr. Eneas de Carvalho Aguiar

Saldiva se refere a doenças que atingem órgãos difíceis de estudar enquanto o paciente está vivo, uma vez que a retirada de tecidos é arriscada. “Nunca se fez tanta quimioterapia como hoje e alguns pacientes acabam apresentando problemas cardíacos, porque há drogas tóxicas para o coração. Uma ideia é submeter pessoas que morreram desses problemas cardíacos a uma autópsia minimamente invasiva e obter amostras pontuais de tecidos do coração. Esse trabalho pode ser feito rapidamente, em 15 ou 20 minutos, atrasando pouco a liberação do corpo para a família.”

E

ntre as possibilidades que se abrem, Saldiva também cita pesquisas sobre os chamados nódulos pulmonares solitários que aparecem isoladamente em exames de diagnóstico, mas sobre os quais se sabe pouco, pois na maior parte das vezes não há indicação de biópsia. Os pacientes têm que fazer exames de controle. Será possível retirar amostras desses nódulos em autópsias minimamente invasivas e gerar informação sobre suas características. O diretor do SVOC, Carlos Augusto Pasqualucci, que é professor do Departamento de Patologia da FM-USP, ressalta as múltiplas abordagens do projeto. “Nossa expectativa é de que promova um aperfeiçoamento da investigação da causa das mortes naturais e torne mais sensíveis exames de diagnósticos de doenças”, diz. “A ideia é utilizar as imagens de ressonância obtidas para que os radiologistas compreendam melhor a natureza de alterações em órgãos e tecidos e façam diagnósticos melhores.” “Vamos trabalhar com as famílias um outro conceito de doação, a de conhecimento, mostrando a importância do estudo de cadáveres para avançar na compreensão de doenças”, afirma Paulo Saldiva. “Há outros equipamentos de 7 Tesla no mundo, mas nenhum opera num ambiente fértil para pesquisa como o nosso.” O diretor da Faculdade de PESQUISA FAPESP 229 | 17


Medicina da USP, José Otávio Costa Auler Junior, define o Pisa como “um projeto inovador, competitivo, multidisciplinar e de convergência tecnológica, com aspecto multiusuário, já que agrega diferentes grupos de pesquisa em torno do mesmo objetivo”. Segundo ele, a iniciativa permitiu a integração com estruturas do Hospital das Clínicas (HC) e se tornou modelo de gestão para futuros projetos do sistema acadêmico da FM-USP e do HC. “Pesquisadores, técnicos e administradores de várias unidades e instituições trabalharam juntos e arduamente para desenvolver o Pisa, financiado com recursos públicos”, afirma.

O

O Magnetom 7T MRI: fabricado na Alemanha e na Inglaterra pela Siemens, ainda não teve uso clínico autorizado

léo ramos

custo do equipamento foi de U$ 7,695 milhões e envolveu recursos da FAPESP, da USP e da Fundação Faculdade de Medicina. Fabricado na Alemanha e na Inglaterra, o Magnetom 7T MRI é um equipamento de ultra-alto campo que oferece maior nível de sensibilidade e detalhamento para medidas estruturais e funcionais do organismo humano com ressonância magnética, tecnologia de diagnóstico por imagens que possibilita identificar propriedades de uma substância do corpo humano de modo não invasivo. As bobinas do aparelho interagem com os tecidos, em seu interior, utilizando ondas eletromagnéticas. Em seguida, são construidas as imagens, decodificando o sinal recebido dos átomos de hidrogênio da água que compõe o corpo humano. Tesla (homenagem a Nikola Tesla, inventor que fez grandes

contribuições para a utilização da eletricidade e do magnetismo) é uma unidade de medida do campo magnético. A precisão das imagens geradas por um equipamento 7 Tesla, traduzida na resolução e na capacidade de discernir alterações, é mais de 5,4 vezes superior à de equipamentos 3 Tesla e 21 vezes superior à de aparelhos 1,5 Tesla utilizados em hospitais. Um aumento de duas vezes no campo magnético quadruplica a precisão das imagens. O padrão 7 Tesla ainda não foi liberado para fins clínicos, mas já está sendo usado em vários centros de pesquisa no mundo. O Magnetom 7T MRI foi adquirido no âmbito do Programa Equipamentos Multiusuários (EMU) da FAPESP, voltado para a compra de equipamentos de última geração que se tornam disponíveis para um amplo número de pesquisadores, de instituições do Brasil e até do exterior, cujos projetos são selecionados segundo critérios rigorosos. Num primeiro momento, mais de 20 projetos de pesquisa se beneficiarão da nova facility – alguns deles estão em andamento e utilizam imagens feitas por um equipamento de tomografia computadorizada instalado no SVOC. O conjunto será composto também por ultrassom e raios X. O tomógrafo foi adquirido com recursos da Pró-reitoria de Pesquisa dentro do projeto do Núcleo de Pesquisa Integrada em Autópsia e Imagenologia (Nupai). Um dos projetos mais ambiciosos talvez seja o Brazilian Imaging and Autopsy Study (Bias), coordenado por Saldiva, que

18 | março DE 2015


38 t

É o peso do equipamento Magnetom 7T

14mil

autópsias são realizadas por ano no Serviço de Verificação de Óbitos da Capital (SVOC)

busca criar alternativas para autópsias invasivas Os projetos de pesquisa em curso que se beneutilizando o diagnóstico por imagem. O trabalho ficiarão com a nova plataforma envolvem estudos de validação de novos métodos vai se basear em de doenças cardiovasculares, pulmonares, oncolóestudos comparativos. A estratégia é, com o con- gicas, neurológicas e obstétricas e a investigação sentimento da família do paciente morto, subme- de técnicas de imagem avançadas. “Em comum, ter o cadáver à ressonância magnética e depois todos esses projetos trabalham com imagens post à autópsia convencional, e comparar resultados mortem e validação de técnicas de diagnóstico dos dois procedimentos. Um dos projetos interna- microscópicas e macroscópicas”, afirma Edson cionais a que o equipamento Amaro Júnior, professor do dará suporte é o da autópsia Departamento de Radiologia verbal, programa de compuda FM-USP e um dos memtador que busca esclarecer bros do comitê gestor da inias causas da morte de um ciativa. A equipe do proje“Vamos trabalhar indivíduo fazendo um conto Pisa vai atuar em parcecom o conceito junto de perguntas a seus faria com pesquisadores dos miliares. “É um recurso que Estados Unidos, Inglaterra, de doação está sendo usado em lugares Alemanha, Holanda e Israel, remotos, onde não há médique formaram uma rede glode conhecimento, cos para verificar a causa de bal interligada virtualmenuma morte natural”, explica te. As colaborações incluem,1 mostrando como Saldiva. Os resultados despor exemplo, Kamil Uludag, o estudo do se questionário também seprofessor do Departamento rão comparados às imagens de Neurociência Cognitiva cadáver ajudará a de ressonância e à autópsia da Universidade de Maasconvencional, para avaliar entender doenças”, tricht, na Holanda, cujo laaté que ponto ajudam a deboratório também trabalha terminar a causa da morte. com imageamento cerebral diz Saldiva Paulo Saldiva conta que o com ressonância 7 Tesla. Ou Ministério da Saúde planeja ainda os alemães Waldemar ampliar a oferta de serviços Zylka, professor da Univerde verificação de óbitos no sidade de Ciências Aplicadas Brasil, de forma a ter um deles para cada grupo de Gelsenkirchen, que há tempos colabora com a de 3 milhões de habitantes. “Uma limitação é a USP, e Harald H. Quick, professor da Universidafalta de patologistas”, diz. “Fazer autópsia não é de de Duisburg-Essen, um dos primeiros centros um trabalho muito atraente para os médicos: é a utilizar equipamentos de 7T de corpo inteiro. preciso estudar bastante, o trabalho toma tempo Peter Morris, da Universidade de Nottingham, no e não é bem remunerado.” Melhorar a qualida- Reino Unido, é um dos parceiros de pesquisadores de da assistência por meio de técnicas de ima- do Instituto de Física da USP em São Carlos e da gem ajudaria a amenizar o problema. “Há mais Universidade Estadual de Campinas no desenvoltomógrafos que salas de autópsia em hospitais, vimento de bobinas para o equipamento 7 Tesla. assim como é comum haver mais radiologistas disponíveis do que patologistas”, pondera Saldiá dez anos a FM-USP mantém o que se torva. Os pesquisadores não vão partir do zero. Esse nou o maior banco de cérebros do mundo, trabalho vem sendo desenvolvido no tomógrafo com mais de 3 mil órgãos. Cerca de 350 computadorizado disponível no SVOC, onde 900 são coletados a cada ano por meio de doações. O exames post mortem foram realizados, sendo 300 neurocientista alemão Helmut Heinsen, da Unideles com angiografia do corpo inteiro, técnica versidade de Würzburg, veio em outubro do ano por meio da qual se injeta líquido de contraste passado para o Brasil trabalhar no banco de céna circulação sanguínea do cadáver em busca de rebros durante dois anos. Ele utiliza uma técnica evidências que ajudem a definir a causa da morte. que mergulha o órgão numa substância chamada Os estudos comparativos, observa Saldiva, po- celoidina, derivada da celulose, que ganha uma dem ajudar no controle de qualidade hospitalar. consistência plastificada. Depois, ele é seccionado “Uma pesquisa feita sobre a acurácia dos atesta- em fatias de menos de 1 milímetro de espessura dos de óbito mostrou que há taxa de desconformi- que abastecem estudos sobre doenças neurolódade de 20%, ou seja, em 20% dos casos a causa gicas e degenerativas. Também esse projeto terá da morte apontada não é a real. O conhecimen- uma interface com a plataforma Pisa: antes de seto gerado pela plataforma Pisa poderá ajudar a rem seccionados, os cérebros serão submetidos à determinar se o atendimento hospitalar fez tudo ressonância 7 Tesla, e as imagens produzidas serão o que poderia fazer pelo paciente que morreu.” comparadas com as obtidas pelo uso da celoidina.

H

PESQUISA FAPESP 229 | 19


1

O projeto terá outras vertentes, como a do ensino médico. “O impacto dessas imagens na formação dos médicos será grande, num momento em que o currículo da FM-USP está sendo renovado e há uma convergência progressiva entre a patologia e a radiologia”, diz Edson Amaro Júnior. A produção de material didático, como novos atlas de anatomia, e a possibilidade de comparar imagens de órgãos ou tecidos sadios e alterados prometem melhorar a formação dos profissionais de medicina.

A

planta do laboratório foi desenhada para viabilizar todas as atividades previstas. Depois da recepção, há duas pequenas salas, destinadas à realização de entrevistas com familiares do indivíduo morto para coleta de informações e obtenção do consentimento para a participação em pesquisas (ver infográfico na página 16). Em outra entrada, há uma sala para preparação do cadáver. Ao lado da sala do equipamento de ressonância magnética há um espaço destinado à experimentação animal – painéis instalados na parede construídos de forma a não comprometer a blindagem da sala vão intercambiar dados com experimentos feitos do lado de fora. As instalações contam também com um espaço maior para treinamento – que poderá funcionar para aulas –, uma sala de comando e diversas outras para acondicionar equipamentos de apoio, como o ar-refrigerado, e os chillers, aparelhos que fornecem de maneira contínua água gelada para o resfriamento do hélio gaso20 | março DE 2015

so e de outros instrumentos do equipamento de ressonância magnética. O hélio precisa ser mantido em estado líquido, a 269 graus Celsius negativos, para garantir propriedades supercondutoras à bobina do equipamento e gerar o campo magnético. A plataforma Pisa começou a nascer em 2009, quando Paulo Saldiva e Edson Amaro Júnior, numa conversa casual, cogitaram trabalhar juntos fazendo pesquisa com imagens de mortos. Saldiva tomou a iniciativa de procurar a direção da FM-USP e pedir algum tomógrafo que estivesse sendo desativado para usar no SVOC. Conseguiu. Depois apresentou um projeto ao Programa Equipamentos Multiusuários para a aquisição de uma máquina de ressonância magnética moderna, campo de 3 Tesla. A FAPESP aprovou o projeto. O interesse de diversos grupos da faculdade em participar da iniciativa levou a uma reavaliação de seu escopo – e surgiu a ideia de trabalhar com um equipamento 7 Tesla. “Pedimos contrapartidas maiores da USP e da faculdade e as coisas foram se viabilizando”, lembra Edson Amaro. Um convênio entre a FAPESP, a FM-USP e a Fundação Faculdade de Medicina foi celebrado em 2012. Em maio de 2012 foi definido o projeto arquitetônico da plataforma, num terreno que servia de estacionamento e de passagem de pedestres atrás da sede da FM-USP. Por se tratar de uma área tombada, a opção foi construir um laboratório subterrâneo, que teria um ano para ser construído, conforme previsto num cronograma feito pela Siemens. “Fazíamos reuniões semanais para


Na sequência, o equipamento no porto de Santos; sua chegada à FM-USP; blindagem da sala de exames com aço silício; três momentos do içamento da máquina para instalação no laboratório; a colocação do teto; e o acabamento final da sala

outubro de 2014 e chegou a Santos no dia 23, o magneto deixou a Inglaterra no dia 2 e desembarcou no dia 29. No dia 3 de novembro, a carga já estava desembaraçada, mas se optou por deixá-la mais alguns dias nos armazéns da empresa Deicmar, em Santos, porque faltava blindar a sala onde o equipamento seria montado. Faltavam poucos meses para a chegada dos equipamentos quando se iniciou o processo de importação de matéria-prima para blindagem, composta de placas especiais de cobre, lã de rocha e aço silício. A fornecedora escolhida foi a ETS Lindgren, dos Estados Unidos, ao custo de US$ 123 a obra não atrasar”, lembra mil. Para agilizar o transporMarina Caldeira, gerente te, optou-se por trazer todo de inovação da FM-USP e o material por avião. Em 8 responsável pelo acompaA produção de de novembro, quatro caminhamento do projeto. Uma material didático, nhões subiram a serra com o empresa de gerenciamento equipamento de ressonância foi contratada para monitocomo novos desmontado e o entregaram rar a construção e algumas mudanças no projeto foram atlas de anatomia, na FM-USP. Um grande teste viria nesse dia A estiagem em necessárias. As instalações São Paulo em 2014 ajudou na da plataforma Pisa ficam ao promete melhorar construção do laboratório, lado do SVOC e a ideia era a formação dos mas a primeira grande chuva conectar o novo laboratório colocou à prova o sistema de ao túnel subterrâneo que limédicos escoamento. A água chegou ga o Hospital das Clínicas ao a invadir a plataforma, mas SVOC, por onde as pessoas foi contida e o problema soque morrem no hospital são lucionado. Quatro dias detransportadas. Descobriu-se que o túnel estava mais próximo da superfície que pois o material para blindagem, desembarcado no Aeroporto de Viracopos, chegava à faculdade. o imaginado e a planta foi adaptada. O içamento do Magnetom 7T MRI aconteceu no nquanto o prédio ia sendo construído, o se- dia 25 de novembro. Como o espaço para manobra tor de importação da FAPESP organizou os ao redor da FM-USP é pequeno, foram necessários trâmites para a aquisição do equipamento, dois guindastes para levantar o aparelho e colocá-lo uma das compras de valor mais elevado já feitas dentro da plataforma através de um vão aberto no pela Fundação. A tarefa de comprar os equipa- teto, tampado em seguida. A cada etapa do procesmentos e trazê-los para São Paulo foi coordenada so as pessoas envolvidas discutiam as dificuldades por Rosely Aparecida Figueiredo Prado, a Rose, que teriam pela frente – e o professor Saldiva engerente de importação e exportação da FAPESP. cerrava a conversa com um bordão: “Vamos rezar A negociação do contrato, feita no segundo se- para a Nossa Senhora Desatadora de Nós”. No dia mestre de 2012, durou alguns meses. “Algumas do içamento alguém se lembrou de colocar uma cláusulas do contrato da Siemens não se aplica- imagem da Virgem, alvo de culto numa igreja alevam a uma instituição como a FAPESP e tiveram mã há mais de 300 anos, dentro do equipamento de ser modificadas”, diz Rose. O início formal do de ressonância. Às vésperas da inauguração da plataforma, Saldiva comentava que o percurso foi processo ocorreu em 12 de novembro de 2012. O equipamento foi fabricado pela Siemens em longo, mas as circunstâncias jogaram a favor da dois países: o magneto veio da Inglaterra e o con- iniciativa. “Todas as pessoas a quem mostramos junto da ressonância, da Alemanha. O desafio foi o projeto deram apoio e concordaram que a ideia tentar combinar os prazos para fabricação e trans- era boa. Em vez de colocar obstáculos, propunham porte com o cronograma de construção das ins- soluções. Isso é raro acontecer”, afirma. n talações do laboratório. Rose queria embarcar as duas partes do equipamento num mesmo navio, Projeto mas isso se mostrou inviável. Plataforma de Imagem na Sala de Autópsia (n. 2009/54323-0); MoOs dois navios com os equipamentos chegaram dalidade Programa Equipamentos Multiusuários; Pesquisador responao porto de Santos com poucos dias de diferença. sável Paulo Hilário Saldiva (FM-USP); Investimento R$ 10.352.243,31 (FAPESP). Enquanto o conjunto alemão zarpou no dia 6 de

Fotos 1 siemens demais fotos divulgação projeto pisa

E

PESQUISA FAPESP 229 | 21


entrevista Etelvino José Henriques Bechara

Sobre vaga-lumes e doenças mentais Químico elucidou a ação de compostos muito reativos, os radicais livres, nas células, em distúrbios psiquiátricos e em cupinzeiros luminosos Carlos Fioravanti Foto

Léo Ramos

E

nquanto aguardava a resposta a seu pedido de reingresso no Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP), Etelvino Bechara dizia que estava sem laboratório, sem dinheiro para fazer pesquisa e sem estudantes com quem pudesse dividir o trabalho. Ele nunca deixou, porém, de explorar os caminhos que se abriam à sua frente – desde que deixou Caparaó, vilarejo de Minas Gerais onde nasceu e aprendeu a ler e escrever, em uma escola noturna, com adultos, à luz de lampião. Muitos anos mais tarde, no início de fevereiro, ele fazia a revisão final em um artigo publicado duas semanas depois na revista Science mostrando como compostos químicos muito reativos, chamados radicais livres – neste caso formados a partir da fragmentação do pigmento da pele, a melanina –, contribuem para a continuidade dos danos ao DNA mesmo depois de horas de exposição direta ao sol (ver reportagem na página 62). Bechara trabalha com radicais livres desde o doutorado, conduzido sob a orientação do químico italiano Giuseppe Cilento, uma das referências da excelência científica da USP na década de 1970. Aos poucos Bechara verificou que os radicais livres participavam de fenômenos biológicos fascinantes, como os cupinzeiros luminosos do Parque das Emas, em Goiás, e ajudavam a causar ou agravar várias doenças. “Me inspiro com as coisas que vejo nos jornais ou nas conversas

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idade 70 anos especialidade Químio e bioluminescência; radicais livres formação Instituto de Química (IQ) da Universidade de São Paulo (graduação e doutorado), Universidades Johns Hopkins e Harvard (pós-doutorado) instituição Instituto de Química da USP (1971-2008), Universidade Federal de São Paulo (2008-14) produção científica 175 artigos científicos, 1 livro e 10 capítulos de livros


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com as pessoas”, diz ele. O fascínio pelo desconhecido o motivou a fazer ou acompanhar trabalhos de campo na Vila Parisi, em Cubatão, um dos lugares mais poluídos do mundo na década de 1970, depois em hospitais psiquiátricos, em fábricas de sapatos e de baterias para carros e, recentemente, em um centro de reabilitação de adolescentes em conflito com a lei de Bauru, interior paulista, associando a intoxicação por chumbo – mais uma vez por meio dos radicais livres – a problemas mentais. Pai de quatro filhos e avô de quatro netos, Bechara foi professor da USP por 37 anos, coordenou o planejamento e a implantação de cursos de graduação e de pós-graduação na unidade de Diadema da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e teve de se aposentar do serviço público ao completar 70 anos, em dezembro de 2014. Agora, pretende voltar à USP como professor sênior para não deixar de fazer pesquisa e conviver com os colegas e os estudantes. Bechara é o primeiro nome de seu avô materno, libanês que chegou ao Brasil em 1905. Henriques é do pai português. Ao rever sua trajetória pessoal e profissional no escritório de seu amplo apartamento no bairro da Lapa, em São Paulo, de onde se pode ver ao longe os prédios e as árvores da Cidade Universitária, cercado por sua coleção de pinturas de artistas populares que ele comprou ou ganhou em viagens, quem primeiro lhe vem à mente é uma antiga professora, Ilza Campos Sad.

lar que organizou um jornal chamado A hora do estudante na rádio da cidade, e durante uma hora a gente conversava com outros moradores sobre literatura, ciências, sobre tudo. Foi um primeiro momento em que fui despertado para o mundo. Depois, viajei muito, e sempre mandava um cartão-postal de onde eu estava para ela, contando o que estava fazendo. Ela fundou em Manhuaçu a Casa de Cultura e me contaram que ela expunha lá todos os cartões que mandei. Antes disso, quando terminei o ginásio, parei de estudar, porque não havia curso científico na cidade. À noite eu fazia um curso técnico de contabilidade. Um ano depois, em 1961, passei no exame para o curso técnico agrícola em Viçosa [MG]. Era um curso integral. Tive sorte,

Eu dependia da ciência para sobreviver e tinha de ajudar em casa, meu pai era alfaiate

Quem foi Ilza Sad? Foi uma maravilhosa professora de ginásio em uma escola pública de Manhuaçu, interior de Minas, limite com Espírito Santo. Dona Ilza dava aula de ciência e de geografia, foi ela que despertou em mim o interesse pela natureza e pelo homem, nas aulas de geografia humana e econômica, e tudo de modo muito natural, coletando latinhas para fazer um alambique e construindo pequenos objetos de madeira para provar as leis da física. Ela era tão espetacu24 | março DE 2015

porque os professores eram também da universidade federal, na época Universidade Rural do Estado de Minas Gerais, hoje Federal de Viçosa. Minha família já tinha migrado para São Paulo. Eu tinha quatro irmãos, cada um com seu emprego e contribuíam para o sustento da família. Quando vim também, fui trabalhar como peão em um laboratório de química em uma fábrica em Ermelino Matarazzo. Minha sorte é que o chefe do laboratório, Alexander Dubson, tinha sido professor em universidades de Moscou, Roma e Pequim. Quando percebeu meu interesse, ele se apropriou de mim como aluno, deu vazão a toda a frustração de não ser mais professor e de estar trabalhando numa indústria

e me ensinou muita química. No início eu fazia controle de qualidade, mas dois meses depois de chegar, com a ajuda dele, fui para a pesquisa de métodos que a fábrica poderia utilizar para analisar ácido sulfúrico e outras matérias-primas, usadas na produção de papel celofane. Quando desisti da fábrica, entrei no curso de química na USP. Em 1965 ainda era na alameda Glete, no centro da cidade, e depois, de 1966 até 1968, já era no Instituto de Química, na Cidade Universitária. Como foi o curso? Ótimo e me apetrechou para uma série de coisas. Eu me apaixonei pela química orgânica, acho que por causa da minha formação, sempre gostei muito de história natural, tinha uma coleção de cristais, e gostava de botânica, zoologia e química. Nessa época eu já ouvia falar muito do Giuseppe Cilento, o professor com maior renome internacional. Ele tinha feito o pós-doc em Harvard, era mais conhecido no exterior do que aqui. Desisti da orgânica e fui fazer o doutorado com ele porque nessa época, fim dos anos 1960, aconteceu uma minirrevolução científica. Estavam tentando compreender os mecanismos de formação de ATP [adenosina trifosfato] na cadeia respiratória. Era um grande mistério. Como o que comemos se converte em forma de energia no nosso corpo, que é o ATP? Se queremos contrair um músculo, pensar ou fazer qualquer coisa, usamos o ATP, é nossa moeda corrente de energia. Era um tema candente, fiquei muito impressionado e pedi para fazer o doutorado com ele. Como foi a conversa com Cilento? Foi meio complicada. Durante o curso de química, que era integral, tinha aula até sábado de manhã. Eu tinha de ganhar dinheiro, dava aula no curso do grêmio da Faculdade de Filosofia, depois no Equipe Vestibulares e era ativista do movimento estudantil, eu era do partido trotskista, a 4ª Internacional. Fui presidente do centro acadêmico, acabei preso no congresso de Ibiúna, em 1967,


fotos arquivo pessoal

e processado pelo Segundo Exército. Ao começar a pós-graduação, procurei o Cilento. Ele disse que tinha informações sobre mim que o impediam de me aceitar como estudante. Mas eu tinha sido um dos melhores estudantes dele. E ele era assim, queria gente que trabalhasse, que produzisse resultados em projetos bons e em ótimos artigos. O resto não interessava. Ele me aceitou como estudante, mas com a condição de que eu não falasse de política no laboratório. Fechei negócio com ele imediatamente e cumpri minha promessa. Dentro do laboratório nunca falei de política, embora fora eu continuasse muito ativo. Fazendo o quê? Minha casa era aparelho [local que abrigava grupos políticos clandestinos durante a ditadura], eu ajudava a esconder pessoas, transportar documentos, o que precisasse. Fui preso pela Oban [Operação Bandeirantes], fiquei um dia lá. Não sei como consegui convencer o responsável na época que meu negócio era ciência. Eu dependia da ciência para sobreviver. Durante todo esse tempo tive que ajudar a manter meu pai, que era alfaiate, e minha mãe, dona de casa. Na época, ser cidadão brasileiro, na minha concepção, era trabalhar contra a ditadura, contra o obscurantismo, contra a violência e a tortura. Mesmo na universidade, não fugi da rinha.

Na formatura em Viçosa, 1963 (Bechara é o terceiro da esquerda para a direita). Abaixo, em Harvard, 1974

E o trabalho com Cilento? Comecei com ele, em 1969, a trabalhar com oxigênio e luz, dois temas que me perseguem até hoje. Foi aí que Alberto Carvalho da Silva, então diretor científico da FAPESP, em 1969, assinou minha primeira bolsa. Comecei, no doutorado, com uma pesquisa de síntese de ATP na cadeia respiratória. Cilento falou que havia no mundo uma competição enorme para entender como o ATP era formado na mitocôndria, um dos compartimentos da célula. Trabalhei em uma das três abordagens, a chamada hipótese química. Ela postulava que no metabolismo se formam compostos ricos em energia, mas não conseguia resolver todos os problemas, porque o composto rico em energia que era proposto era instável na água e não poderia ser isolado e todos os experimentos-modelo em laboratório eram realizados em meio aquoso. Então não havia chance de se formar ATP, o composto seria morto pela água. Qual foi a ideia do Cilento? Fazer a operação em meio não aquoso, em piridina. Quando usei piridina, consegui sintetizar 26% de ATP. Sem mitocôndria, sem nada. Cilento tinha me avisado que o projeto era muito difícil e que estava sendo disputado no mundo inteiro. Ele sempre dizia que preferia dar um projeto difícil para um aluno bom, em vez de dar um projeto apenas bom. Ele acompanhava, mas se arriscava a dar com os burros n’água, não importava. Eu tinha

trabalhado com ele um ano inteiro em uma hipótese parecida, mas joguei os dados todos no lixo, porque não deu certo. Naquela época se fazia pesquisa para comprovar suas ideias, produzir conhecimento novo e, se isso acontecesse, nós publicávamos o artigo numa boa revista. Não se trabalhava para publicar, mas para produzir conhecimento novo – a publicação seria uma consequência do processo da pesquisa. Fui contratado como professor auxiliar da USP em 1971 e no ano seguinte, depois de defender o doutorado, como professor doutor, e compartilhei o laboratório com Cilento até a morte dele, em 1994. Os trabalhos com ATP me levaram até o radical superóxido, que por sua vez me levou até os radicais livres. Como foi essa ligação? Na hora de descrever a reação de síntese de ATP, eu tinha de falar de um radical livre chamado superóxido. Só poderia explicar os resultados se houvesse a intermediação do superóxido. Mas não havia reagente, não tinha como testar essa hipótese. Em 1969 é que se descreveu a enzima superóxido dismutase pelo Irwin Fridovich, da Universidade Duke [EUA]. A superóxido dismutase destrói o superóxido, mas não tínhamos como preparar aquela enzima. Como lidar com o problema? Cilento convidou o Vincent Massey, da Universidade de Michigan em Ann Arbor [EUA], para passar uma tempoPESQUISA FAPESP 229 | 25


Em 2003, na mesma sala da escola em Manhuaçu em que havia estudado muitos anos antes

rada na USP. Ele era um dos papas na área de flavinas, participantes da cadeia respiratória, veio em 1971 e me ensinou a preparar a superóxido dismutase. A gente preparava a partir de sangue de boi. Pegamos seis baldes de sangue de boi em um matadouro de Osasco, levamos para o laboratório e preparamos vários miligramas da enzima pura. A enzima era conhecida como estocadora de cobre nas membranas das células. O cobre é muito tóxico, mas essa habilidade de destruir o radical livre superóxido só foi elucidada pelo Fridovich. Até então falar de radical livre em células era um tabu, porque ele é geralmente muito reativo. Como se poderia imaginar que o corpo está preparando radical livre? Seria um suicídio, mas se demonstrou que havia essa enzima nos tecidos e, como ela é específica para destruir esse radical livre, demonstrava-se que o corpo fabricava radicais livres. Hoje sabemos que os radicais livres fazem parte do metabolismo normal do organismo, mas podem ser tóxicos e desencadear doenças quando são produzidos em excesso. Numa etapa seguinte, Cilento começou a perceber que muitas reações de radicais livres eram quimioluminescentes, emitiam luz. A energia era convertida em fótons em vez de calor. Trabalhei com ele em algumas dessas reações. Nessa época, uma das maiores autoridades em quimioluminescência era Emil White, da Universidade Johns Hopkins, em Baltimore 26 | março DE 2015

[EUA]. Cilento e White imaginaram que essas reações que emitiam luz poderiam transmitir energia para outras moléculas e, assim, efetuar uma fotoquímica sem luz, uma fotoquímica no escuro. Eles propuseram em 1974 várias substâncias que, sob a ação de enzimas, poderiam gerar um produto excitado, da mesma maneira que a luz. Assim poderia haver uma reação tipicamente fotoquímica na raiz de uma planta ou no seu fígado, que não recebem luz. Essas enzimas já eram conhecidas ou eram apenas uma hipótese? Aí entra o Cilento. Ele descobriu que algumas enzimas chamadas peroxidases poderiam fazer isso. Comecei a estudar essas reações com ele, como a peroxidase de raiz-forte. A raiz-forte é como um rabanete, um tempero japonês. Depois, já nos anos 1990, fiz trabalhos importantes sobre fotoquímica no escuro, com Alicia Kowaltowski e Anibal Vercesi. Mostramos que a degradação da mitocôndria, causada pelo fosfato, decorre da formação de formas muito reativas de oxigênio, chamadas compostos carbonílicos tripletes. Tem a ver com quimioluminescência. Agora em 2014, Paolo Di Mascio e eu publicamos um trabalho com a Camila Mano, doutoranda, mostrando in vitro que essa espécie excitada, além de emitir luz e fazer fotoquímica, pode transferir energia para o oxigênio, formando o oxigênio singlete, muito re-

Conte sobre seu trabalho com os cupinzeiros luminosos. Como começou? Quando eu estava em Harvard, de junho de 1975 a maio de 1976, trabalhando com quimioluminescência, alguns pesquisadores de lá não se conformavam que eu não conhecesse Cleide Costa, do Museu de Zoologia da USP, que estuda os cupinzeiros luminosos de Goiás. Voltando ao Brasil, em 1976, procurei Cleide. Ela ficou muito impressionada e disse que ia me ajudar. Paulo Vanzolini, diretor do museu, deu autorização para usar as dependências da instituição para fazer a minha pesquisa. Comecei a trabalhar no Parque Nacional das Emas. Cheguei lá, tinha caçador clandestino, pista de pouso e o parque estava às moscas. Ajudei a trazer o parque para a mídia, dei entrevistas sobre os cupinzeiros, que saíram na Folha de S.Paulo e no Estadão, Fantástico, Globo Rural e Globo Ciência. A bioluminescência nada mais é que quimioluminescência, mas que ocorre dentro do vagalume, que é catalisada por uma enzima, a luciferase, que é uma peroxidase. Quando fui lá pela primeira vez, me apaixonei pelos vagalumes, que me traziam a lembrança da infância em Caparaó, onde nasci. A gente não tinha brinquedo e brincava com vagalumes e outros besouros. Caparaó era um vilarejo, não tinha mil habitantes. No início eu mantinha os vagalumes no Museu de Zoologia, mas depois o trabalho se expandiu muito e montei o laboratório de bioluminescência no Instituto de Química. Foi de lá que saiu Vadim Viviani, que ainda trabalha com vagalumes na Universidade Federal de São Carlos [UFSCar], no campus de Sorocaba. Aliás, sempre procurei orientar para formar gente melhor do que eu. E sempre disse a eles que não se assustassem com possibilidades estranhas ou difíceis que aparecessem no caminho. Eles têm de abrir muitas portas para, através delas, ver as oportunidades e fazer as escolhas. Têm de ser ousados. Como funciona um cupinzeiro luminoso? O vagalume se instala no cupinzeiro e desenvolve uma rede de túneis que são independentes das câmaras e dos túneis dos cupins. Essa rede é escavada a cerca de 1 a 10 centímetros da superfície do cupinzeiro. Durante as chuvas, as lar-

arquivo pessoal

ativo, associado à destruição de células e tecidos. Cilento ficaria feliz em ver esses trabalhos.


vas dos vagalumes põem a cabecinha e o tórax brilhante em janelas abertas para o exterior, atraindo insetos. Agora, na estação das chuvas, no fim da tarde, fica uma nuvem, um enxame de insetos rodeando os cupinzeiros que estão emitindo luz verde. São pontinhos verdes de cada lanterna de larva. São 200 ou 300 larvas por cupinzeiro. Fica como uma árvore de Natal, e são centenas de cupinzeiros. Os insetos atraem escorpiões, lacraias e sapos, que, por sua vez, atraem corujas e outros pássaros noturnos. Eles defecam perto do cupinzeiro dispersando sementes. Delas, nascem plantas. Com raízes ali perto, vêm tatus e roedores. Como tem cupim e formiga, vem também o tamanduá. O cupinzeiro é como se fosse um grande hotel, que serve a vários comensais um grande banquete à noite. Os cupins ganham algo com isso? Esta é uma ótima pergunta, que ainda não foi respondida. Não podemos esquecer que os cupins formam uma sociedade de castas: rainha, rei, operárias e soldados. Os cupins soldados são muito agressivos, não admitem outras espécies por perto, mas não atacam a larva do vagalume, que vive em espaços independentes. Ao contrário. A presa preferencial da larva é o cupim, porque o cupim adulto, o siriri, também está voando ali naquela nuvem de insetos. Cada larva chega a pegar de 10 a 12 cupins por noite. Quando fizemos a moldagem de um cupinzeiro, injetando poliestireno nos túneis, vimos que a larva constrói uma sala de jantar a 1 centímetro da superfície. Quando ela morde, já regurgita o líquido digestivo, que a gente estudou com Walter Terra, do Instituto de Química. Tal como a aranha, a larva do vagalume morde e já pré-digere a presa, é uma digestão externa. Depois ela vai se alimentar daquela sopa que já está preparada, já quebraram as moléculas grandes em moléculas menores.

cupinzeiros para coletar as larvinhas. Trabalhávamos na fazenda Santo Antônio, na confluência de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás, próxima ao parque, e ficávamos hospedados em um hotelzinho em Costa Rica, no Mato Grosso do Sul. As matas da fazenda desapareceram. Todos os cupinzeiros foram derrubados para plantar soja. Um pós-graduando da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e eu fizemos um projeto de construção de um laboratório avançado de estudo da bioluminescência, com pesquisadores de diversas áreas, mas tinha de haver uma contrapartida, que seria a área, e o dono da fazenda não liberou. Apelei para o Congresso Nacional, as secretarias de Turismo, as prefeituras das cidades próximas, mas nunca

criticavam porque eu ficava pulando de galho em galho e fazia muitas coisas ao mesmo tempo, mas é o meu estilo, vou atrás do que me interessa, não da moda. Vila Parisi chamou a atenção de toda a população mundial, e Cubatão era tida como a cidade mais poluída do mundo nos anos 1970. Li num jornal que o Paulo Naum, biólogo da Universidade Estadual Paulista [Unesp] de São José do Rio Preto, tinha medido um alto grau de meta-hemoglobina no sangue das pessoas da Vila Parisi. Meta-hemoglobina é a hemoglobina em que o ferro não é o ferro 2, é o ferro 3, oxidado, que não é capaz de transportar oxigênio, o que é ruim. Não foi fácil coletar sangue dos moradores daquela localidade para fazer as análises. Foi Marisa Medeiros quem coletou, como trabalho de mestrado dela. Fomos lá, dei uma palestra no salão paroquial. Expliquei o que queríamos fazer e pedi a colaboração de todos. Com todas as pessoas com quem trabalhamos, o pessoal de Cubatão, os empregados da fábrica de baterias Saturno, os meninos da Febem, hoje Fundação Casa, explicávamos e pedíamos o consentimento deles. É também uma questão de respeito e de ética. A pessoa precisa saber por que está doando sangue e para que vai ser usado. Comparando Cubatão com dois lugares próximos não poluídos, Mogi das Cruzes e São José do Rio Preto, vimos que havia uma relação entre poluição do ar e meta-hemoglobina. Liguei para Paulo porque ele tinha descoberto a meta-hemoglobina e eu talvez soubesse a razão disso. Pensei que, se havia meta-hemoglobina, teria de haver superóxido.

Sempre disse para os estudantes verem resultados estranhos como oportunidades. Têm de ser ousados

O senhor destruiu cupinzeiros do parque? Não! Poupei o Parque Nacional das Emas exatamente porque tínhamos de abrir os

tive nenhum apoio, nenhuma resposta. Fiz o que pude, mas não consegui. Existem outros cupinzeiros luminosos no Brasil? Poucos, muito poucos. Ainda tem uns cupinzeiros com luminescência lá na região, em capões com buritis. Meu ex-aluno Vadim Viviani, hoje professor na UFSCar em Sorocaba, está iniciando a pesquisa de cupinzeiros luminosos em clareiras da Floresta Amazônica. Em 1978, o senhor foi à Vila Parisi, em Cubatão. Por quê? Foi uma vertente de pesquisas com radicais livres que se abriu depois de eu voltar de Harvard. Alguns colegas me

Por quê? Na presença de alguns poluentes, o ferro 2 da hemoglobina transfere elétron para o oxigênio e ela fica com ferro 3+ e libera superóxido. Para proteger a pessoa, o superóxido induz a formação de superóxido dismutase, que ajuda o organismo a evitar eventuais danos gerados pelo excesso de superóxido. É uma resposta do organismo, adaptativa. Publicamos juntos os resultados, em 1976, no Archives of Environment Health. Já não se chama mais o superóxido de espécie tóxica, porque já PESQUISA FAPESP 229 | 27


se viu que pode ter outras funções, como na fecundação do óvulo pelo espermatozoide e na defesa contra bactérias. Depois o senhor começou a estudar doenças causadas por radicais livres, certo? Comecei a me interessar pela patologia dos radicais livres nos anos 1980. Eu já tinha esse sentimento genuíno na importância dos radicais livres, porque o oxigênio tem duas formas principais de reagir. Ou reage por radicais livres ou por excitação eletrônica, o chamado oxigênio singlete, energizado. Quem energiza o oxigênio são, por exemplo, os corantes. Você pega um herpes labial ou uma micose e coloca ali violeta genciana ou azul de metileno. O corante absorve a luz solar, se excita e transfere essa energia para o oxigênio, formando esse oxigênio siglete, excitado eletronicamente. Ele é muito reativo, provoca lesão de DNA, mata a célula imediatamente. Comecei então a ver que danos à saúde os radicais livres poderiam provocar. Minha inspiração veio de Adolf Michelson, do Instituto de Biologia Físico-Química, de Paris, que já tinha feito vários trabalhos mostrando o papel tóxico do oxigênio em muitas doenças, principalmente doenças psiquiátricas, como esquizofrenia, paranoias e transtorno bipolar. Michelson passou um tempo com a gente no Brasil e fiquei muito entusiasmado com o trabalho dele, principalmente com doenças mentais. Pensei se não poderíamos desenvolver alguns trabalhos com outras doenças mentais que ainda não tivessem sido estudadas. Imaginei a porfiria aguda intermitente, uma doença genética que se manifesta em geral depois da adolescência, principalmente na mulher, e causa dores abdominais muito fortes, alterações psiquiátricas e até alucinações. Foi o mestrado de Marisa Medeiros e o primeiro trabalho de um grupo de brasileiros associando radicais livres e porfiria, publicado na Clinical Chemistry em 1982.

chiori, que passou pelo meu laboratório e trabalhava com porfirias inatas, que são doenças ligadas ao metabolismo da hemoglobina do sangue. Michelson nunca tinha trabalhado com isso. Como os dados do Michelson sobre esquizofrenia e transtorno bipolar eram muito genéricos, refletiam uma amostra muito heterogênea, sugeri a Dulcineia Abdalla, minha aluna de doutorado na época, que estudássemos isso de forma rigorosa. Coletamos sangue de pessoas com esquizofrenia tratadas no Hospital das Clínicas e com transtorno bipolar no Hospital Psiquiátrico do Juquery e fizemos um estudo sistemático. Elaboramos a hipótese de que um composto específico, a hidroxidopamina, é que estaria envolvido com as alterações neurológicas da

Temos de alertar para os efeitos da intoxicação por chumbo. Os danos são irreversíveis

Por que porfiria? Por causa de um colega médico do Hospital das Clínicas da USP, Paulo Mar28 | março DE 2015

esquizofrenia e distúrbio bipolar. Para testar essa hipótese, injetamos intratecal, uma substância que, a partir de dopamina, forma a hidroxidopamina, que é neurotóxica em ratinhos. Vimos que o sangue era parecido bioquimicamente com o que já tínhamos visto em pessoas com esquizofrenia e bipolar. Havia formação de superóxido dimutase, de catalase e de glutationa peroxidase, que são as três enzimas que controlam a toxicidade do oxigênio. O trabalho parou aí, Dulcineia foi contratada na Faculdade de Farmácia e mudou de linha de pesquisa, mas, depois, essa hipótese que levantamos foi constatada em muitos artigos científicos de grupos de outros países. Mais tarde fomos alertados para

o fato de indivíduos expostos a chumbo também terem distúrbios de comportamento, inclusive alucinações. A intoxicação por chumbo é um tipo de porfiria adquirida. Comecei a ler na Folha e no Estadão sobre intoxicação de sapateiros em fábricas de sapato em Franca [SP]. Sapateiro segura a tachinha de chumbo com os dentes, na boca, e se contamina. Li também sobre a contaminação por chumbo na Saturna, uma fábrica de bateria de carro em Sorocaba, e tive apoio da Fiesp-Sesi e da Fundacentro para testar o envolvimento de radicais livres na saúde dos trabalhadores. O trabalho sobre contaminação por chumbo me tomou 20 anos, porque fui desde o trabalho bioquímico, elucidando mecanismos de reação, e rastreei trabalhadores em fábricas de porcelana, fios elétricos, baterias de carro. Tudo tem a ver com radicais livres. Em 2002 o senhor disse que estava interessado na terapia antioxidante, que poderia amenizar os efeitos dos radicais livres no organismo. O que aconteceu? Foi uma grande fria. Logo depois da descoberta de superóxido dismutase e da comprovação da produção de radical superóxido nas células, houve um boom de trabalhos explorando a chamada atividade tóxica do oxigênio. Muitos pesquisadores começaram a testar a produção de superóxido em várias situações, inclusive eu: na Vila Parisi, intoxicação por chumbo, esquizofrenia, porfirias. Propuseram o uso de superóxido dismutase para doença de Peyronie, câncer, doença de Crohn, doenças mentais e muitas outras. Depois se viu in vitro que as vitaminas e outros compostos também tinham potencial para controlar o nível desses radicais livres. Vitamina E, vitamina C, caroteno, N-acetilcisteína, um número enorme de substâncias naturais e sintéticas. Elas atuariam como as enzimas, embora com menos eficácia, dando cabo dos radicais livres. Parte dos médicos se aproveitou disso, não é? A comunidade médica arregalou o olho e disse: “Vamos dar megadoses dessas subs-


tâncias para curar ou prevenir doenças”. O problema é que os médicos brasileiros têm uma formação muito fraca em bioquímica, diferentemente dos Estados Unidos e Europa. De repente, tínhamos muitos médicos fazendo cursinhos de dois dias sobre como usar antioxidantes. Surgiu a chamada medicina ortomolecular, que começou a ser adotada por médicos especialistas, até com injeção de dimetilsufóxido nas articulações, um absurdo. Foi um campo fácil para a proliferação de profissionais desonestos. Um desses, no Rio de Janeiro, dava pílulas de superóxido dismutase por via oral. Ora, se a enzima é uma proteína, ao chegar no estomago é hidrolisada, não tem jeito. Eu e outros colegas da USP ficamos empolgados e nos associamos a um grupo de médicos de uma associação de medicina ortomolecular, mas depois vimos que a maioria deles queria apenas ganhar dinheiro. Quanto dar de vitamina? Não estavam nem um pouco preocupados em aprender as bases moleculares das doenças. Nos afastamos, principalmente depois de vermos que o superóxido não era necessariamente tóxico, era vital para muitas funções do organismo. A superdosagem é um problema, e não só nas doenças de estresse oxidativo. Recentemente, ajudei Álvaro Pereira, um dos editores do Fantástico, a desmascarar vários desses médicos.

la do esmalte da pessoa e depois o dente já era obturado na hora. Em troca, ela fazia uma limpeza dentária e um diagnóstico da saúde bucal do voluntário. Nossa amostragem foi uma bola de neve. Perguntávamos se conheciam quem morava em lugar próximo da região da fábrica Ajax, e foi chegando gente. Kelly examinou cerca de 400 crianças e adolescentes. Víamos alto teor de chumbo e tentávamos relacionar com comportamento agressivo, comparando com os indivíduos com baixo teor de chumbo. Usamos um questionário validado, que afastava os fatores que poderiam confundir os resultados, como problemas familiares ou histórias pessoais muito tumultuadas, e hierarquizava os comportamentos em brandos, médios

bre o desconforto com que o Judiciário trataria dessa questão, de questões do tipo Chambinho, que matou aquele casal jovem [Liane Friedenbach e o namorado]. Se você demonstra que o menino foi contaminado por chumbo e teve alterações cerebrais por causa disso, como lidar judicialmente com esse problema? Como cientista, penso que o que não se pode fazer é esconder os resultados do trabalho científico. Todos os artigos terminamos alertando para os perigos dessa intoxicação. Até velinhas de aniversário do tipo estrela têm chumbo, alguns fitoterápicos têm chumbo, carne de caça, utensílios de cerâmica ou soldados e tinta de parede continuam tendo chumbo e temos que educar as pessoas e prevenir, porque depois de feito o dano, são especialmente os danos cerebrais, não tem como voltar atrás. Como é que o senhor formou sua coleção de quadros? Nas viagens para coletar vagalumes, conheci pintores e comecei a colecionar pinturas. Umas eu ganhava, outras comprava. Já nos anos 1960 participava das passeatas, porque era líder estudantil, vivia correndo da polícia, e o meu refúgio era Embu das Artes, cidade da Grande São Paulo. Lá eu conheci Solano Trindade, o escultor Assis e vários pintores da região. Fui viajando e aumentando a coleção. Cheguei a 90 quadros primitivos e naïf. Quando conheci os trabalhos da Isabel de Jesus, achei que era Chagall, bonito demais. Contei para ela dos cupinzeiros luminosos, que ela nunca viu, mas pintou para mim um quadro. Aqui está o cupinzeiro, cada pontinho é uma larva de vagalume. Lacraia, escorpião, aranha que estão se alimentando, a coruja e uns animais estranhos, porque a Isabel de Jesus é famosa mundialmente por ser surrealista. Quando contei que era triste ver os bichinhos todos esturricados, ela fez outro quadro, que é o incêndio do Parque Nacional das Emas, muito sensível, ela não os pintou carbonizados, mas de cabeça para baixo. Ela mora em Franco da Rocha, aqui pertinho de São Paulo. n

Como cientista, penso que o que não se pode fazer é esconder o resultado do trabalho científico

Um de seus trabalhos recentes tratou de contaminação de chumbo em crianças e adolescentes. Foi um trabalho que começou na Febem, hoje Fundação Casa, e terminou em um bairro de Bauru, que era vizinho da fábrica Ajax, que contaminou toda a região com chumbo. A aluna que me procurou propondo esse trabalho, Kelly Kaneshiro Olympio, é dentista formada em Bauru e hoje professora da Faculdade de Saúde Pública da USP. Ela soube do meu trabalho de intoxicação com chumbo. Aceitei e fizemos uma parceria com a professora Wanda Ghunter, da Saúde Pública, e Pedro de Oliveira, químico analítico do Instituto de Química da USP. Kelly levava um consultório portátil, retirava uma amostra minúscu-

e graves e a frequência com que eles eram cometidos e os tipos, que iam de bullying a assassinato. Demonstramos que os adolescentes que tinham sido expostos a chumbo durante a infância tinham probabilidade maior de desenvolver alterações de comportamento. Foi um trabalho que uniu bioquímica e comportamento, saiu na Neurotoxicology and Teratology em 2009. E mudou algo em Bauru? Não, está tudo igual. Apesar de termos a licença do supervisor das Febem e do secretário de Justiça da época, o diretor local nos impediu de continuar a pesquisa. Não entendo até hoje. Na defesa de tese de Kelly, um advogado falou so-

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política c&T  cientometria y

Desempenhos

comparados Estudo indica que bolsistas cujos projetos são selecionados por avaliação por pares publicam mais em revistas com maior fator de impacto

U

m estudo publicado na edição de janeiro da revista Scientometrics, realizado pelo Grupo de Estudos sobre Organização da Pesquisa e da Inovação (Geopi), do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mensurou o impacto de diferentes mecanismos de seleção praticados por agências de fomento no Brasil sobre o desempenho de seus bolsistas. A principal conclusão do estudo, com base em dados de um projeto que avaliou os programas de bolsas da FAPESP, é que bolsistas brasileiros de iniciação científica, mestrado e doutorado cujos projetos foram aprovados depois de passar por uma avaliação individual feita por membros da comunidade científica – o sistema conhecido como avaliação por pares, como acontece na FAPESP – publicaram mais em revistas com maior fator de impacto do que aqueles que, tendo suas solicitações de bolsa recusadas pela FAPESP, receberam o benefício por meio de quotas de bolsas para universidades disponibilizadas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento 30  z  março DE 2015

Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). No entanto, o estudo também observou que os desempenhos de ambos os grupos tendem a se aproximar ao longo dos cinco anos após a conclusão do doutorado, à medida que passam a produzir pesquisa autonomamente. O trabalho mostra que alunos de doutorado apoiados pela FAPESP publicaram em média 37% mais artigos do que candidatos cujos projetos foram recusados pela instituição e que receberam outro tipo de bolsa no mesmo período. “Uma hipótese é que o modelo de avaliação por pares representa um filtro acadêmico clássico no momento de avaliar projetos de pesquisa”, explica Sérgio Salles-Filho, um dos autores do artigo e coordenador adjunto de Programas Especiais da FAPESP. O estudo avaliou cerca de 55 mil artigos publicados por mais de 8.500 pesquisadores que receberam bolsas de iniciação científica, mestrado e doutorado da FAPESP, CNPq e Capes entre 1995 e 2009. Para fazer a análise, os autores avaliaram a trajetória acadêmica dos bolsistas com base

ilustraçãO  veridiana scarpelli

Bruno de Pierro


Avaliação por pares versus modelo institucional Desempenho dos alunos, em relação ao número de artigos publicados, antes e depois do ano de conclusão do doutorado

5

Bolsistas FAPESP (avaliação por pares)

3 Grupo de controle (modelo institucional) 2 -5

-4

-3

-2

-1

0

1

2

3

4

5

Anos (Zero = conclusão do doutorado)

Desempenho dos alunos, em relação ao fator de impacto das revistas em que publicaram artigos, antes e depois do ano de conclusão do doutorado

2,4

Fator de impacto das revistas científicas

Número de papers

4

2,2

Bolsistas FAPESP (avaliação por pares)

2

1,8 Grupo de controle (modelo institucional) 1,6 -5

-4

-3

-2

-1

0

1

2

3

4

5

Anos (Zero = conclusão do doutorado)

pESQUISA FAPESP 229  z  31


na Plataforma Lattes, do CNPq, e em respostas a questionários on-line especialmente preparados para essa avaliação. Esse contingente foi dividido em dois grupos: de um lado, os candidatos cujos projetos foram aprovados por avaliadores da FAPESP e, de outro, o grupo de controle, formado por aqueles cujas solicitações de bolsas foram denegadas pela Fundação, mas contempladas por uma agência federal. A comparação entre os dois grupos foi possível graças à utilização de uma metodologia para aproximar características dos grupos de tratamento e controle em um desenho quase-experimental (ver Pesquisa FAPESP nº 224).

O

efeito do sistema de avaliação por pares na produção científica foi observado em diferentes áreas do conhecimento. No mestrado, os bolsistas da FAPESP publicaram 24% mais artigos em ciências agrárias e 25% nas engenharias. Nas demais áreas não houve diferenças estatisticamente significativas em termos de quantidade de publicação. Considerando as diferenças de fator de impacto das revistas, os ex-bolsistas de mestrado da FAPESP publicaram 13% mais em periódicos de maior impacto, tendo como destaque as áreas de ciências agrárias (24% a mais) e biologia (16% a mais). Em relação ao doutorado, o número de publicações também foi maior entre os ex-bolsistas da FAPESP em quase todas as áreas (ver gráfico ao lado). Entretanto, no que se refere ao fator de impacto das revistas, apenas a área de humanidades apresentou superioridade (87% mais artigos). Nas demais áreas, não houve diferença significativa, com exceção de ciências sociais, na qual os ex-bolsistas da FAPESP publicaram em revistas de menor impacto quando comparados com o grupo de controle, cerca de 67% a menos. De acordo com o estudo, a trajetória profissional dos doutores em ciências sociais teve um comportamento peculiar. “Como vimos no estudo, esses pesquisadores apresentaram menor inclinação para o pós-doutorado e maior taxa de empregabilidade do que em outras áreas, apresentando um menor envolvimento com o mundo da pesquisa”, diz Adriana Bin, também professora da Unicamp e autora principal do artigo. Os autores do estudo observaram que após a conclusão do doutorado, os dois grupos de pesquisadores tendem a produzir segundo padrões similares, levando-se em conta o número de artigos e o fator de impacto das revistas científicas nas quais publicam. Para isso, foram analisados os cinco anos anteriores ao ano da defesa da tese e os cinco anos posteriores (ver gráfico na página 31). Um dado que chamou a atenção foi o fato de os bolsistas da FAPESP apresentarem um aumento das taxas de publicação logo após a obtenção do título de doutor, enquanto o grupo de controle teve uma 32  z  março DE 2015

Efeitos das bolsas por área* Artigos publicados a mais por bolsistas de doutorado da FAPESP, em comparação com o grupo de controle, entre 1995 e 2009 Ciências biológicas

+ 27%

Ciências básicas

+ 34%

Humanidades

+ 34%

Ciências da saúde

+ 34%

Total

+ 37%

Engenharias

+ 61%

Ciências agrárias *As áreas de ciências sociais e multidisciplinares não apresentam dados estatisticamente significativos

pequena queda do número de artigos publicados. “Uma das hipóteses que explicam esse fenômeno é que os bolsistas da FAPESP envolvem-se de forma mais rápida em atividades de pesquisa após o doutorado”, explica Adriana. Dos pesquisadores que tiveram bolsa da FAPESP, cerca de 40% vincularam-se ao pós-doutorado assim que concluíram o doutorado. Entre os que receberam outras bolsas, o índice foi de 30%. Para Rogério Meneghini, coordenador científico da biblioteca virtual SciELO Brasil, essa é uma informação surpreendente. “No Brasil, a grande maioria dos pesquisadores não faz pós-doc logo depois do doutorado, e com o aumento do número de universidades públicas criadas nos últimos anos grande parte dos doutores está se dedicando ao ensino”, diz. Dois pesos

Conhecido como modelo institucional, o sistema usado pelas agências federais baseia-se no desempenho de cada instituição numa classificação nacional de programas de pós-graduação – instituições com os programas mais bem avaliados recebem mais bolsas. Cabe ao próprio programa de pós-graduação ou à universidade decidirem como as bolsas serão distribuídas, e isso é feito utilizando critérios que variam caso a caso, como o currículo do candidato, sua condição socioeconômica, uma avaliação do projeto ou uma combinação de todos eles. Já a revisão por pares, adotada pela FAPESP, também pode levar em conta indicadores de desempenho, mas avalia individualmente e em profundidade o perfil do candidato e a qualidade do projeto, além da experiência do orientador ou supervisor. A diferença essencial entre os dois sistemas, diz Salles-Filho, é que no de avaliação por pares a agência que concede as bolsas tem o domínio

+ 71% Fonte Geopi/unicamp


de Saúde (NIH), principal agência de fomento à pesquisa biomédica dos Estados Unidos, e os Research Councils do Reino Unido. Algumas dessas instituições incluíram em suas avaliações internas estudos para verificar os impactos da revisão por pares na produção científica de seus bolsistas. Em 2002, por exemplo, a NSF avaliou seus programas de bolsas de pós-graduação e chegou à conclusão de que o sistema de revisão por pares tinha um efeito positivo na produção acadêmica de seus bolsistas. Em algumas áreas, como matemática e economia, alunos agraciados com bolsas da NSF chegaram a publicar cerca de três artigos científicos a mais do que o grupo de controle, formado por bolsistas de agências que não utilizam o “A avaliação por pares é o método mecanismo de revisão por pares. Outros canônico da ciência e segue sendo o estudos, porém, mostram que é difícil a relação entre os sistemas de modelo mais respeitado”, diz Salles-Filho confirmar seleção de bolsistas e o rendimento deles em publicações científicas. Um deles foi publicado por John Rigby, professor da Universidade de Manchester, Inglaterra, s primeiros programas de bolsas para pós- em 2013. Rigby afirma que a aceitação de um pro-graduação começaram a surgir nos Esta- jeto por uma agência de financiamento não prediz dos Unidos e na Europa após a Segunda o impacto que a pesquisa poderá ter no futuro. Guerra Mundial, numa época de expansão da inManter um exército de avaliadores também é um terferência do Estado no financiamento da pesqui- desafio para as agências de fomento. Em 2009, o sa científica, associado a altos investimentos em Research Assessment Exercise (RAE) fez um grantecnologia e inovação. Desde o início, o principal de esforço de apreciação da qualidade da pesquisa mecanismo usado para a concessão de bolsas era no Reino Unido e substituiu seu método baseado baseado na avaliação por pares. Um artigo publi- primordialmente na avaliação por pares por um cado na revista Science em 1977, por pesquisadores novo sistema, o Research Excellence Framework da Universidade de Columbia, destacava a im- (REF), que, embora não abandone a avaliação por portância desse modelo para a National Science pares, faz uso maior de indicadores bibliométricos, Foundation (NSF), principal agência de fomento como o número de citações das publicações feitas à pesquisa básica dos Estados Unidos, já naquela pelos cientistas (ver Pesquisa FAPESP nº 156). O época. O artigo rebate uma crítica da época, se- objetivo do governo do Reino Unido foi reduzir gundo a qual os avaliadores davam preferência custos e dar mais agilidade à avaliação. A mudanpara projetos de pesquisadores de renome e que ça dividiu a comunidade científica britânica. “Topublicavam mais. Os autores argumentam que madas de forma isolada, citações têm se mostrado não havia dados empíricos atestando que a avalia- repetidamente uma medida pobre da qualidade da ção por pares praticada pela NSF fosse subjetiva. pesquisa”, segundo publicou em editorial, na época, O sistema seguiu prestigiado dentro da comu- a revista Nature, sobre as mudanças anunciadas, nidade científica, adotado por outras importantes citando um estudo de 1998 que comparou os resulinstituições de apoio, como os Institutos Nacionais tados de duas análises de um conjunto de artigos sobre física, uma usando métricas como citações e outra baseada em avaliação por pares. As divergências atingiram 25% dos artigos analisados. “Os formuladores de políticas não têm outra opção a não ser reconhecer que a revisão de especialistas tem um papel indispensável na avaliação”, afirma o editorial da Nature. n do processo de avaliação dos projetos, por meio de pesquisadores qualificados, que emitem pareceres orientando a instituição a conceder ou não a bolsa. Já no outro sistema, a decisão é descentralizada. O modelo institucional também se vale de uma forma particular de avaliação por pares. “Não se pode afirmar que a avaliação por pares garante necessariamente a seleção do melhor candidato. No entanto, esse processo de seleção é o método canônico da ciência e segue sendo o modelo mais respeitado”, afirma Salles-Filho.

O

Artigo científico BIN, A. et al. What difference does it make? Impact of peer-reviewed scholarships on scientific production. Scientometrics. v. 102, n. 2, p. 1167-88. 2015.

pESQUISA FAPESP 229  z  33


difusão y

Ciência na telinha TV Cultura e FAPESP lançam o programa SP Pesquisa, série de reportagens com destaques da produção científica de São Paulo Diego Freire, da Agência FAPESP

A

TV Cultura estreou no dia 7 de março um novo programa que apresenta os bastidores da produção científica paulista em diversas áreas do conhecimento. O SP Pesquisa é resultado de um termo de cooperação assinado entre a FAPESP e a Fundação Padre Anchieta, responsável pela TV Cultura. A produção leva ao ar o trabalho de pesquisadores que atuam em instituições paulistas e mostra relações entre as pesquisas e o cotidiano da população, esclarecendo, de forma simplificada e com recursos visuais, conceitos relacionados às áreas abordadas. Foram produzidos 26 programas, cada um com 28 minutos de duração. Eles são exibidos na TV Cultura, aos sábados, e na Univesp TV, aos domingos e às quintas-feiras. A Univesp TV, canal digital aberto 2.2, integra a Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp). Para assistir ao canal, que faz parte da multiprogramação digital da TV Cultura, é necessário televisor equipado com conversor digital.

34  z  março DE 2015

Para Celso Lafer, presidente da FAPESP, a parceria evidencia o interesse comum das instituições envolvidas na iniciativa pelo desenvolvimento social por meio da ciência. “Uma das missões da FAPESP é divulgar ao público os resultados da pesquisa que apoia e, nesse processo, destacar a importância do conhecimento no encaminhamento dos problemas da sociedade”, diz. “Consideramos muito importante esse programa no âmbito das atividades da Fundação Padre Anchieta por dar densidade a essa vertente da missão da FAPESP.” Cientistas protagonistas

Os 26 programas produzidos contemplam diferentes áreas do conhecimento. A abordagem escolhida prioriza o trabalho dos pesquisadores e sua rotina nos locais em que as pesquisas são realizadas, com reportagens em laboratórios e nas ruas. A cada programa, os próprios cientistas falam de suas pesquisas e de como elas podem impactar na vida cotidiana.


fotos  SP Pesquisa

Cenas de dois dos programas do SP Pesquisa

“A ideia é estabelecer um diálogo entre o pesquisador e o telespectador, desmistificando a percepção de que o público costuma ter da ciência e dos cientistas”, diz Valesca Canabarro Dios, diretora do programa. O primeiro episódio da série apresentou pesquisas feitas na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) sobre a microbiota intestinal e sua relação com a obesidade e outras doenças. Pesquisadores das duas instituições, médicos e outros profissionais relacionados à área compartilharam olhares científicos sobre o tema e resultados de seus trabalhos, enquanto o programa detalhou a atividade da flora intestinal e sua importância para o funcionamento do organismo. Quadros com recursos visuais e linguagem acessível a diferentes públicos ajudam a explicar os conceitos abordados nos estudos. No quadro “Grifo nosso”, o jornalista Salvador Nogueira conta, por exemplo, como agem as vacinas no

A abordagem prioriza o trabalho dos pesquisadores e sua rotina nos locais em que as pesquisas são realizadas

corpo humano ou por que as bactérias são importantes para a digestão e outras funções do organismo. Todas as explicações foram elaboradas com a colaboração de pesquisadores consultados pelo programa. Os cientistas também participam da concepção dos recursos visuais utilizados para garantir que sejam fiéis às ideias abordadas, mesmo que com certa liberdade artística. Além de tratar, de forma elucidativa, dos mistérios científicos que as pesqui-

sas apresentadas tentam desvendar, o programa busca desmitificar o próprio trabalho dos cientistas. O quadro “Profissão” acompanha a rotina de profissionais dos grupos responsáveis pelas pesquisas abordadas pelo programa, esclarecendo o que fazem e como conduzem seus estudos nos laboratórios e em outros espaços. Os pesquisadores também abordam conquistas recentes das pesquisas na área em que atuam e comentam artigos científicos publicados em periódicos de alto impacto. Os programas tratam de pesquisas feitas no estado de São Paulo com resultados importantes em diversos campos – entre eles, física das partículas sub­ atômicas, astrofísica, geofísica do subsolo brasileiro, nanomateriais, paleontologia, urbanismo, oceanografia, biodiversidade, etanol, aquecimento global, agricultura, vacina contra a Aids e saúde em geral. As pautas foram definidas em conjunto entre a Univesp TV e a produtora contratada pelas instituições, a Itinerante Filmes, com base no trabalho de divulgação científica desenvolvido pela FAPESP. “Acompanhamos o trabalho da revista Pesquisa FAPESP e da Agência FAPESP para chegar aos temas de interesse e aos pesquisadores que seriam consultados”, diz a diretora dos programas, Valesca Dios. Aos sábados, o programa SP Pesquisa vai ao ar às 16 horas, pela TV Cultura. Na Univesp TV, o programa será exibido às 19 horas aos domingos e às 21h30 às quintas. n >Mais informações em http://univesptv.cmais.com.br/ pESQUISA FAPESP 229  z  35


Um ramo de batata-doce colhido em Anavilhanas, Amazônia, em 1991: mantido no Jardim Botânico de Nova York 36  z  março DE 2015


acervos científicos y

Milhões de plantas on-line Herbários virtuais reúnem informações de coleções mantidas em outros países e facilitam análises sobre a biodiversidade brasileira Carlos Fioravanti

Jardim Botânico de Nova York / Reflora

E

m duas viagens previstas para este ano, Sergio Romaniuc Neto, do Instituto de Botânica de São Paulo, pretende refazer as expedições de coleta de plantas realizadas pelo naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire em 1819 e 1822 ao longo do litoral, entre São Paulo e Rio de Janeiro, e pelo interior paulista. Romaniuc Neto sabe exatamente que plantas procurar porque, além de ter visto as amostras, mantidas no Museu de História Natural de Paris, foi um dos coordenadores da montagem da versão on-line da coleção de plantas e dos cadernos de campo de Saint-Hilaire (hvsh.cria.org.br), em operação desde 2009. Em fase de expansão no Brasil, os chamados herbários virtuais reúnem informações e milhares de imagens detalhadas de coleções de plantas brasileiras, organizadas por botânicos estrangeiros ou brasileiros, que antes as guardavam apenas em armários de suas instituições. A síntese on-line facilita o trabalho dos pesquisadores, amplia o número de usuários e permite novos tipos de análise sobre a diversidade biológica do país, impensáveis até poucos anos atrás. “Antes, tínhamos de fazer longas viagens para ver as coleções em outros países, sem saber o que poderíamos encontrar”, diz Rafaela Forzza, pesquisadora do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. “Agora, com os herbários virtuais, podemos planejar pESQUISA FAPESP 229  z  37


O primeiro registro botânico da mandioca: amostra coletada em 1850 em Santarém e guardada no herbário de Paris

1

38  z  março DE 2015

melhor e selecionar o que queremos estudar antes de viajar.” Rafaela coordena o Reflora (www.reflora.jbrj.gov.br), programa de repatriação de informações sobre plantas brasileiras iniciado em 2010, com apoio do governo federal, fundações de apoio à pesquisa e empresas. O Reflora liberou para acesso público on-line cerca de 100 mil imagens de plantas brasileiras do Jardim Botânico de Kew, próximo a Londres, e outras 75 mil do Museu de História Natural de Paris. As duas instituições enviaram as imagens das plantas e a equipe do Jardim Botânico analisou as etiquetas de cada amostra, escritas em francês, inglês, alemão ou latim, para retirar os chamados metadados, com o nome do coletor, data e local de coleta e outros detalhes que completam a identificação. Segundo Rafaela, diariamente, sua equipe de 70 bolsistas e funcionários distribuídos por várias instituições capturam, examinam e tratam as informações de cerca de 750 imagens que chegam de herbários de outros países e outras 750 do herbário virtual do próprio Jardim Botânico. “Hoje é rotina: nenhuma planta vai para o acervo físico do herbário sem antes ser fotografada e depositada no acervo on-line”, diz ela. Por meio de acordos estabelecidos no final de 2014, herbários de outros países começaram a enviar as imagens de plantas brasileiras mantidas em suas coleções. O Jardim Botânico de Nova York enviou 52 mil das 320 mil imagens previstas. O Jardim Botânico da Universidade de Missouri, também nos Estados Unidos, mandou 17 mil, de um total estimado em 170 mil. Em breve começarão a chegar milhares de imagens também de museus de Viena e de Estocolmo. Tais imagens ajudam a conhecer os primeiros registros, as chamadas espécies-tipo, fundamentais para os pesquisadores saberem se as plantas supostamente novas que eles coletaram são realmente novas. A espécie-tipo da mandioca (Manihot esculenta), por exemplo, foi coletada em

1850 em Santarém (PA), está guardada no herbário de Paris, mas pode ser vista em detalhes por meio do Reflora. Desde 2014 o Reflora está incorporando o acervo digitalizado de plantas mantidas em 11 herbários de universidades, museus ou centros de pesquisa da Bahia, Sergipe, Rio Grande do Norte, Ceará, Distrito Federal, Minas Gerais, Espírito Santo, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. “Os herbários virtuais não reduzem a necessidade e o espaço do acervo físico, mas são uma salvaguarda dos materiais e facilitam a consulta e a formulação de estratégias para a conservação da flora brasileira”, diz Rafaela. As informações dos herbários virtuais devem servir para a elaboração de um documento detalhado sobre a situação das 45.941 espécies de plantas brasileiras, que deve estar concluído até 2020, como estipulado na Convenção sobre Diversidade Biológica, um acordo internacional do qual o Brasil é signatário.

O

Centro de Referência em Informação Ambiental (Cria), de Campinas, é o responsável pelo desenvolvimento e manutenção da rede speciesLink, outra base de informações sobre a biodiversidade do país. A rede speciesLink (splink.cria.org.br) compartilha mais de 7,2 milhões de registros sobre 103 mil espécies de animais, fósseis, microrganismos, plantas e fungos, mantidas em acervos físicos de 123 instituições de todos os estados do país e 11 centros de pesquisa do exterior. A rede speciesLink é a base de informações do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) – Herbário Virtual da Flora e dos Fungos (inct.florabrasil.net), que reúne 152 acervos, 5 milhões de registros e 900 mil imagens de 77,5 mil espécies distintas. “Cada herbário envia as informações que podem ser de acesso público”, diz Dora Canhos, diretora associada do Cria. “Agora, não só os grandes, mas também os herbários pequenos, distantes das regiões metropolitanas, estão sendo digitalizados e têm a oportunidade de colocar seus acervos a serviço da comunidade.” A equipe do Cria começou a ganhar experiência nessa área em 2000, ao desenvolver o SinBiota, sistema para integrar e gerenciar as informações dos levantamentos de plantas, animais e microrganismos realizados pelos pesquisadores paulistas ligados ao Programa


Biota-FAPESP. O speciesLink ganhou forma logo depois, com informações sobre a biodiversidade paulista e mais tarde também de outros estados. Em 2006, o Cria lançou a versão eletrônica da Flora Brasiliensis (florabrasiliensis.cria.org.br), com 15 volumes e 22.767 espécies descritas, produzida entre 1840 e 1906, e começou a colaboração com instituições de outros países – principalmente, os jardins botânicos de Nova York e de Missouri – para repatriar as informações de plantas coletadas no Brasil.

Fotos 1 Museu de História Natural de Paris /Reflora  2 Jardim Botânico de Kew /Reflora  3 EDUARDO CESAR

U

Sempre-viva (Comanthera nivea): em Kew desde 1887, revisada por botânicos da USP em 1993 e pelo Reflora, em 2011. Abaixo, uma pasta com amostras de plantas coletadas em campo: acervo físico

m dos projetos mais recentes foi a produção do Herbário Virtual Saint-Hilaire, com cerca de 9 mil registros e quase 4.500 espécies-tipo. O naturalista francês foi o primei2 ro a descrever, em 1816, logo depois de chegar ao Brasil, a erva-mate (Ilex paraguariensis), de uma fazenda próxima a Curitiba, e o pequizeiro (Caryocar brasiliense), encontrado em Minas Gerais. Até voltar à Europa, em 1822, ele percorreu também Rio de Janeiro, Goiás, São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e trechos da Argentina e do Paraguai. Seus 10 cadernos de campo, agora no herbário virtual, além de descrições das coletas, contêm comentários sobre os costumes dos moradores das localidades que ele visitava. Por

essa razão, diz Dora, “é uma ferramenta também para historiadores e sociólogos”. Os relatos foram publicados em livros, oferecendo vívidos retratos das paisagens, como no Segunda viagem a São Paulo e quadro histórico da província de São Paulo. “Admirei sobretudo a brilhante iluminação da igreja do Carmo”, ele anotou ao chegar em São Paulo em 1822. “As ruas se achavam cheias de povo, que passeava, de igreja em igreja, mas unicamente para vê-las sem a menor aparência de devoção. Vendedoras de confeitos e doces sentavam-se no chão, à porta das igrejas, e as pessoas do povo compravam as guloseimas para oferecer às mulheres com quem passeavam.” Romaniuc Neto manuseava os cadernos de Saint-Hilaire enquanto fazia o doutorado no Museu de História Natural de Paris, de 1996 a 1999. De volta a São Paulo, ele fez um projeto de digitalização das plantas e dos cadernos de campo, com apoio da FAPESP e da Fundação Vitae formalizou o acordo de cooperação entre o museu de Paris, o Instituto de Botânica e o Cria e voltou a Paris em busca das plantas coletadas por Saint-Hilaire, dispersas na coleção de 12 milhões de amostras, para dar forma ao herbário virtual. Agora, seu plano é usar essas informações em análises espaciais e históricas. “Estamos mesmo perdendo biodiversidade? Quanto e como? Podem ter surgido outras espécies no mesmo espaço das anteriores, mantendo a diversidade. Devemos proteger espaços ou espécies? Somente a análise histórica e espacial da biodiversidade pode nos ajudar a responder a estas questões”, diz ele. Rafaela, do Jardim Botânico, acrescenta: “Para avançar, precisamos do passado”. Os botânicos estão satisfeitos, ao verem um de seus sonhos antigos, os herbários on-line, tomar forma, mas também preocupados, por temerem que a dificuldade em obter financiamentos de longa duração possa prejudicar a continuidade dessas bases com informações sobre as plantas do Brasil. n

Projeto Herbário Virtual Saint-Hilaire (nº 2006/57363-4); Modalidade Auxílio à Pesquisa; Pesquisador responsável Sergio Romaniuc Neto (Instituto de Botânica-SP); Investimento R$ 160.123,56 (FAPESP).

Artigo científico

3

PIGNAL, M. et al. Saint-Hilaire virtual herbarium, a new upgradeable tool to study Brazilian botany. Adansonia. v. 35, n. 1, p. 7-18. 2013.

pESQUISA FAPESP 229  z  39


ciência  astronomia y

Perigo na vizinhança Pesquisas brasileiras com asteroides próximos podem ajudar a estimar risco de colisões com a Terra Igor Zolnerkevic

N

o último dia 26 de janeiro, o noticiário estampou uma manchete que se repete quase todos os anos: “Asteroide passa perto da Terra”. Naquele dia, um corpo rochoso chamado de 2004 BL86, com 325 metros de comprimento, chegou a cerca de 1,2 milhão de quilômetros (km) de distância do planeta, para depois se afastar e prosseguir sua órbita ao redor do Sol. Os astrônomos jamais haviam observado um asteroide desse tamanho se aproximar tanto, ainda que essa distância fosse três vezes maior do que a que separa a Terra da Lua. Parece uma distância segura, mas não é. Todo asteroide com mais de 150 metros de comprimento que chega a menos de 7,5 milhões de km da órbita da Terra é catalogado pela União Astronômica Internacional como “potencialmente perigoso”. O termo soa alarmante, mas não é motivo para pânico. Significa apenas que há algum risco, ainda que pequeno, de esses objetos colidirem com a Terra nas próximas centenas de anos. Uma equipe de astrônomos da Universidade Estadual Paulista (Unesp) vem realizando cálculos e observações inéditas para descobrir de que são feitos esses asteroides próximos e quanto tempo ficam na vizinhança da Terra.

40  z  março DE 2015


Júpiter

Marte

Vênus

Mercúrio

nasa / jpl-caltech

Terra

Ameaça vigiada: mapa da trajetória de cerca de 1.400 asteroides com mais de 140 metros que cruzam a órbita da Terra pESQUISA FAPESP 229  z  41


12 de fevereiro de 2008

O sistema triplo de asteroides 2001 SN263: imagens de radar mostram órbita dos menores ao redor do maior

de olho no espaço

Os Estados Unidos e alguns países europeus vêm investindo nas últimas duas décadas em programas de observação de asteroides potencialmente perigosos. Segundo um relatório publicado pela Nasa em setembro passado, já foram descobertos 867 dos estimados mil asteroides com mais de um 1 km de comprimento que passam perto da Terra. Felizmente, nenhum deles deve oferecer risco ao planeta nos próximos séculos. O problema, segundo o relatório, são os asteroides menores, com menos de 150 metros. Teorias e observações astronômicas sugerem que existem milhões desses corpos rochosos nas proximidades da Terra, mas apenas 10% foram descobertos.

Reconstituição artística do primeiro sistema triplo de asteroides descoberto: o maior, Sylvia, tem 270 km

2

42  z  março DE 2015

13 de fevereiro de 2008

1

Mas projetos de monitoramento como os financiados pela Nasa não são suficientes. Eles varrem o céu inteiro várias vezes por noite para identificar novos objetos celestes potencialmente perigosos, mas não conseguem determinar com precisão a trajetória desses corpos. Só se consegue determinar com rigor a órbita desses asteroides por meio de observações por períodos mais longos, como as que vêm sendo feitas pelo projeto Impacton, sigla de Iniciativa de Mapeamento e Pesquisa de Asteroides nas Cercanias da Terra no Observatório Nacional. Os pesquisadores do Impacton projetaram e construíram um observatório em Itacuruba, no sertão de Pernambuco (ver Pesquisa Fapesp nº 156). Com espelho de 1 metro de diâmetro, o telescópio do Impacton funciona desde 2011 ajudando a determinar a órbita, o tamanho e a forma de asteroides próximos à Terra. Enquanto a equipe do Impacton se ocupa de observações, a especialidade de Othon Winter e seus colegas da Faculdade de Engenharia da Unesp em Guaratinguetá são os estudos teóricos, baseados em simulações em computador. Winter quer entender a dinâmica de duplas e trios de asteroides perigosamente próximos à Terra. Recentemente, ele e a astrônoma Rosana de Araújo, que realiza pós-doutoramento com o grupo da Unesp, calcularam quanto tempo esses sistemas podem permanecer perambulando pela vizinhança terrestre sem se fragmentarem – terminando, às vezes, por colidir com o planeta. Grupos internacionais que haviam estudado a órbita dos asteroides que circulam entre Mercúrio, Vênus, Terra e Marte, os planetas mais internos do sistema solar, haviam estimado que nenhum corpo pequeno – seja ele asteroide, seja cometa; os primeiros são mais densos e se formam mais próximos ao Sol, enquanto os últimos, além de menos densos, contêm mais água e ele-

imagens 1 Michael Nolan / Observatório Arecibo 2 Danielle Futselaar / instituto SETI

O impacto de um asteroide com o tamanho do 2004 BL86 liberaria uma energia equivalente à de dezenas de bombas atômicas. Não seria suficiente para causar a extinção da vida na Terra – para tanto, seria necessário um asteroide com alguns quilômetros de extensão, semelhante ao que caiu há 65 milhões de anos onde hoje é o golfo do México e teria extinto os dinossauros. Dependendo de onde caísse, porém, um asteroide poderia destruir cidades inteiras. Mesmo um objeto celeste bem menor pode causar danos sérios. Em fevereiro de 2013, um asteroide de apenas 20 metros de diâmetro explodiu a 29 km de altura sobre a cidade de Chelyabinsky, na Rússia. Ninguém morreu durante o evento, mas a onda de choque gerada pela explosão feriu cerca de 1.500 pessoas e danificou milhares de edificações. Alguns pesquisadores estimam que impactos como o de Chelyabinsky aconteçam de uma a três vezes a cada século, mas o fato é que ainda se sabe muito pouco sobre os objetos pequenos (com dezenas a centenas de metros) para que se tenham cálculos precisos.


O previsto e o observado Número de asteroides com menos de 100 metros já detectados próximos ao planeta é bem menor do que o que se calcula existir 1 bilhão 100 milhões

Número de objetos

10 milhões 1 milhão 100 mil 10 mil 1 mil 100 10 1 1 m

10 m

100 m

1 km

10 km

Tamanho

mentos químicos voláteis – consegue permanecer em uma órbita estável nessa região por mais de 10 milhões de anos. A órbita deles se desestabiliza em algum momento, quando se aproximam de algum desses planetas. Como consequência, o pequeno corpo celeste pode colidir com o Sol, com os planetas ou suas luas, ou ainda ser ejetado para longe, em direção aos confins do sistema solar. Esse resultado gerou uma dúVindos do vida. Se os asteroides deveriam cinturão entre permanecer na vizinhança da Terra por apenas alguns milhões de Marte e Júpiter, anos, por que a maioria deles ainda não desapareceu, dado que o asteroides sistema solar tem estimados 4,5 bilhões de anos? Uma possível solitários explicação para a existência de permaneceriam tantos asteroides por aqui é que algum processo estaria constanaté 10 milhões temente repovoando o espaço em torno da Terra. de anos Os astrônomos em geral acreditam que a maioria dos asteroides próximos que circulam nessa região do sisà Terra tema solar se originou no chamado cinturão de asteroides, uma enorme faixa entre Marte e Júpiter que abriga meio milhão de asteroides com mais de 500 metros de comprimento e incontáveis asteroides menores. Mas não é qualquer asteroide do cinturão que é capaz de migrar para perto da Terra. Só são lançados para a região mais interna do sistema solar os asteroides pertencentes a certos grupos – as

100 km

chamadas famílias de asteroides – com trajetórias e composição rochosa semelhantes, cujas órbitas sentem de maneira mais intensa perturbações dos n Número previsto de asteroides planetas Júpiter e Saturpróximos à Terra no. Essas perturbações, somadas à irradiação do n Número de asteroides calor que absorvem do próximos à Terra Sol, fazem esses corpos identificados até celestes migrarem para julho de 2013 mais perto de Marte e o planeta vermelho pode então lançá-los para fora do sistema solar ou para perto da Terra. Com base na composição mineral da superfície Fonte projeto neoshield dos asteroides, é possível agrupar esses corpos em famílias. A superfície do 2004 BL86, por exemplo, contém basalto, rocha rica em ferro e magnésio típica dos asteroides que integram a família do Vesta, o segundo maior asteroide do cinturão. Essa composição, no entanto, não garante que o 2004 BL86 seja um fragmento do Vesta. Ele pode ter se originado de outro asteroide maior que já foi destruído. Enquanto o tempo de vida de um asteroide solitário na vizinhança da Terra é da ordem de 10 milhões de anos, o estudo de Rosana e Winter publicado em 2014 na revista Astronomy & Astrophysics sugere que sistemas formados por pares de objetos celestes duram ainda menos. Dependendo de como suas órbitas cruzam a da Terra, as duplas de asteroides não existiriam por mais de 2,2 milhões de anos. Esses cálculos estão ajudando a situar no tempo a origem de um dos corpos celestes mais estranhos que já se observaram no espaço próximo à Terra: o sistema triplo de asteroides 2001 SN263. Por ser triplo, ele teria se mudado há bem menos tempo para a vizinhança da Terra. Trio especial

A história do 2001 SN263 lembra a da espaçonave alienígena do romance de ficção científica Encontro com Rama, de Arthur Clarke. O que é apenas um novo ponto luminoso no céu no início do livro se revela um corpo celeste cada vez mais intrigante à medida que se aproxima da Terra. Quando o 2001 SN263 foi descoberto em 2001 pelo projeto de monitoramento Linear, da Nasa, parecia apenas mais um asteroide com mais de 1 km de comprimento que se aproximava da Terra o suficiente para ser classificado como quase perigoso. A surpresa veio em 2008, quando o aspESQUISA FAPESP 229  z  43


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teroide se aproximou mais e imagens do radiotelescópio Arecibo, em Porto Rico, revelaram que se tratava de um sistema de três objetos muito próximos: os dois menores – Beta, de 1,1 km de extensão, e Gama, de 400 m – orbitam o maior, Alfa, com 2,8 km de comprimento. Além desse, só existe outro sistema triplo de asteroides próximo à Terra, o 1994CC. Mas o 2001 SN263 é o mais peculiar. “Diferentemente da meia dúzia de sistemas triplos de asteroides conhecidos do sistema solar, o 2001 SN263 é o único em que os três corpos do sistema possuem tamanho semelhante”, explica Winter. “Nos outros casos um corpo do sistema é bem maior que os outros dois.” origem enigmática

A origem da maioria dos sistemas triplos é uma colisão. Ela arranca pedaços de um asteroide maior, que, posteriormente, passam a orbitá-lo como duas pequenas luas. “Não existe uma teoria simples para explicar como se forma um sistema triplo com asteroides de tamanhos comparáveis”, diz Winter. “Para quebrar um asteroide maior em três pedaços grandes, o impacto deve ter sido significativo, mas os pedaços não deveriam estar próximos uns dos outros.” Uma possível explicação é que três asteroides do 2001 SN263 seriam os pedaços de um asteroide maior que teria sofrido um efeito semelhante ao que ocorreu com o cometa Shoemaker-Levy 9. Em 1992, o núcleo de gelo e poeira do cometa passou próximo demais do planeta Júpiter e a força gravitacional do planeta fez o corpo do cometa se desmanchar em quase duas dúzias de fragmentos. “É uma possibilidade, mas ela só poderia ter ocorrido se a estrutura do asteroide que originou o sistema 2001 SN263 fosse frágil e porosa, como a de um cometa”, explica Winter. “É o que chamamos de asteroide tipo ‘pilha de escombros’, um aglomerado de rochas meio soltas, com muito espaço vazio entre elas.” 44  z  março DE 2015

Rastro no céu de Chelyabinski, Rússia, feito por fragmentos de asteroide do tipo “pilha de escombros”, como o Itokawa (ao lado)

2

O 2001 SN263 é o alvo escolhido por Winter para uma primeira missão espacial interplanetária totalmente planejada no Brasil. A ideia da Missão Aster, como ficou conhecido o projeto, nasceu de um desafio informal que Winter fez a seu colega Elbert Macau, engenheiro aeroespacial do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), logo após a descoberta de que o 2001 SN263 era um sistema triplo. O projeto envolve cerca de 50 pesquisadores de instituições brasileiras, incluindo USP, Unesp, Unicamp, UFABC, Inpe e Escola de Engenharia Mauá, além da colaboração com pesquisadores do Instituto Russo de Pesquisas Espaciais, e tem por objetivo enviar uma pequena sonda espacial e equipamentos para dois experimentos adicionais – um de geofísica espacial e outro de astrobiologia –, todos com tecnologia brasileira, aos asteroides do sistema 2001 SN263. A sonda levaria a bordo três instrumentos para investigar a superfície dos asteroides: uma câmera de alta resolução, um espectrógrafo infravermelho, para analisar a composição de seus minerais, e um laser, para medir distâncias. Depois, se tudo der certo, a sonda se jogaria sobre o asteroide alfa, caindo em sua superfície e realizando mais observações. “É um projeto concreto, totalmente factível”, afirma Winter. Ainda assim a missão segue sem garantia de verba para sua execução, que deve custar cerca de US$ 40 milhões, valor considerado baixo em comparação com o de mis-


fotos 1 M. Ahmetvaleev 2 jaxa 3 nasa  4 esa

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sões espaciais europeias ou norte-americanas. A equipe da Missão Aster espera obter esses recursos em breve, para aproveitar a aproximação máxima do 2001 SN263 com a Terra, em 2022. Depois disso, será necessário aguardar mais três anos, até que o asteroide dê outra volta em torno do Sol e se aproxime da Terra novamente.

Cratera de Barringer, nos Estados Unidos, gerada pela queda de um corpo compacto e denso semelhante ao asteroide Lutetia

Material primordial

Mesmo que a missão não saia, Winter já realizou bastante ciência em função de seus preparativos. Em 2010, ele recebeu em Guaratinguetá o astrônomo italiano Davide Perna, do Observatório de Paris, especialista em asteroides próximos à Terra e um dos pesquisadores envolvidos no projeto NEOShield, financiado pela Comissão Europeia para avaliar as opções que a humanidade Asteroides do teria para desviar um asteroide sistema triplo em rota de colisão com a Terra. Perna liderou o trabalho de um 2001 SN263 grupo de pesquisadores de instituições europeias, do ON e da parecem ser Unesp que observou o 2001 SN263 com o telescópio VLT, do Obserricos em matéria vatório Europeu do Sul, em Cerro orgânica e Paranal, no Chile – a equipe conseguiu tempo no VLT em caráter minerais que emergencial, pois os asteroides só estariam ao alcance do telescópio contêm água novamente daqui a muitos anos. E o 2001 SN263 surpreendeu mais uma vez. A análise das observações, publicada em 2014 na Astronomy & Astrophysics, determinou que a superfície dos asteroides desse sistema possui o tom de cor azul mais escuro já observado em um corpo pequeno do sistema solar. Os pesquisadores sugerem que essa cor é um forte indicativo de que esses asteroides sejam ricos em matéria orgânica

4

e minerais contendo água. “O 2001 SN263 seria feito de um material muito antigo, remanescente da formação dos primeiros corpos rochosos do sistema solar, há 4 bilhões de anos”, diz Winter. Esse trabalho também sugere que os asteroides do sistema 2001 SN263 são feitos de grãos de tamanho e composição variados, o que favorece a ideia de que seriam “pilhas de escombros”. Estudos do projeto NEOShield indicam que os asteroides desse tipo estariam entre os mais perigosos, pois mesmo um foguete com ogiva nuclear não seria capaz de desviá-lo se estivesse em rota de colisão com a Terra. Menos denso, o asteroide abrigaria gases que seriam capazes de absorver a energia da explosão, sem desmanchá-lo ou alterar sua rota. “O sucesso dos métodos para desviar asteroides em rota de colisão com a Terra depende de saber do que eles são feitos, de sua rigidez e porosidade”, explica Winter. Daí a importância de missões como a Aster, ou a missão Osiris ReX, da Nasa, a ser lançada em 2016 para visitar um asteroide potencialmente perigoso: o Bennu, cuja composição parece ser semelhante à do 2001 SN263. “Se o 2001 SN263 for mesmo três fragmentos de um objeto maior que se rompeu, a Missão Aster poderia obter informações únicas”, diz Winter. “Seria como observar o interior de um asteroide maior, algo que nunca foi feito.” n

Projeto Dinâmica orbital de pequenos corpos (n. 11/08171-3); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Othon Cabo Winter (Unesp/Guaratinguetá); Investimento R$ 560.886,80 (FAPESP).

Artigos científicos PERNA, D. et al. The triple near-Earth asteroid (153591) 2001 SN263: an ultra-blue, primitive target for the Aster space mission. Astronomy & Astrophysics. v. 568. 15 ago. 2014. ARAÚJO, R. A. N. e WINTER, O. C. Near-Earth asteroid binaries in close encounters with the Earth. Astronomy & Astrophysics. v. 566. 2 jun. 2014.

pESQUISA FAPESP 229  z  45


física y

Sol de laboratório Com bolhas de sabão e uma ponteira a laser, pesquisadores criam modelo de fenômeno atmosférico luminoso Marcos Pivetta

C

om água, detergente para lavar louça e uma ponteira a laser, daquelas usadas em palestras, o casal de físicos Adriana e Alberto Tufaile criou um modelo experimental e forneceu uma nova explicação para um fenômeno natural que fascina a humanidade há pelo menos 2,3 mil anos, desde os tempos de Aristóteles: o aparecimento de um conjunto de efeitos luminosos em torno do Sol denominado tecnicamente parélio. Em zonas frias, a luz solar interage com pequenos cristais de gelo em suspensão na atmosfera e, sob certas condições, faz surgir pares de manchas brilhantes (os chamados falsos sóis ou cães de Sol), um halo (círculo parélico) e linhas retas (pilares do Sol) ao redor do astro. Em ocasiões ainda mais raras, essas formações também ocorrem nos arredores da Lua. Os professores do Laboratório de Matéria Mole da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo (USP), campus da zona leste, realizavam em meados de 2013 46  z  março DE 2015

ensaios sobre o espalhamento da luz em espuma formada por sabão, um dos seus campos de estudo, quando se depararam com essa mesma série de figuras projetadas ao fundo do experimento. “Não tínhamos ideia do que poderia ser”, diz Alberto. “Fizemos uma longa pesquisa e o único fenômeno semelhante era o parélio, que não conhecíamos.” A descoberta foi relatada em artigo publicado em 9 de dezembro na versão eletrônica da revista científica Physics Letters A. “Até hoje as explicações para o fenômeno atmosférico só levaram em conta a ótica geométrica, que trata a luz como partícula e segue as ideias de Newton”, afirma Adriana. “Mas nosso estudo sugere que o círculo parélico é fruto principalmente da característica ondulatória da luz.” As figuras praticamente análogas às manchas brilhantes, linhas retas e círculo que se formam ao redor do Sol foram observadas em laboratório quando os físicos iluminaram com o feixe de laser a chamada borda de Plateau, exa-

Laser em bolhas de sabão gera padrão luminoso similar ao parélio solar: manchas, círculo e linhas retas


léo ramos

tamente o ponto de contato entre três finos filmes de bolhas de detergente. A região de intersecção recebe esse nome em homenagem ao físico belga Joseph Plateau. No século XIX, ele observou que as bolhas sempre se encontram em trios e formam uma espécie de quina, que sustenta suas tênues paredes. Mudando o ângulo de incidência da luz sob a borda de Plateau, formada no interior de uma caixa de acrílico fechada (célula de Hele-Shaw) que abriga uma solução de água e detergente, Adriana e Alberto notaram que apareciam mais ou menos figuras, de diferentes tamanhos e com distinta nitidez. Intrigada com o padrão luminoso gerado pelo laser no experimento feito na USP Leste, Adriana resolveu um dia tentar reproduzir o ensaio em casa. Botou água com sabão em um pires, agitou a mistura para formar bolhas e apontou uma ponteira de laser na direção da borda de Plateau, o ponto de encontro de três filmes de espuma. Não deu outra: as manchas luminosas, as lipESQUISA FAPESP 229  z  47


meno atmosférico”, explica Alberto. “E capturar os cristais de gelo envolvidos no fenômeno é praticamente impossível.” Como tinham identificado um análogo do parélio do Sol em seus ensaios com bolhas de detergente e laser, o casal de pesquisadores decidiu investigar a fundo o mecanismo por trás da formação desse padrão de imagens luminosas.

Quadro Vädersolstavlan, de 1535: tela retrata o parélio nos céus de Estocolmo

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epois de repetir o experimento várias vezes no laboratório, usando inclusive lasers de três cores diferentes (verde, azul e vermelho) para se certificar de que o comprimento de onda de luz não interferia no resultado, e estudar a literatura científica sobre o fenômeno atmosférico, Adriana e Alberto chegaram à conclusão de que a explicação das figuras formadas passava essencialmente pelo caráter ondulatório da luz. Mais especificamente eles acreditam que, ao se chocar com o ponto de encontro das três bolhas de sabão, o feixe de laser espalha a luz por meio de dois processos similares, interferência e difração, em especial o segundo. A difração é um fenômeno visto durante a propagação de diferentes tipos de ondas, como as sonoras, as eletromagnéticas e até as formadas na água. Ocorre quando o som ou a luz encontra um obstáculo ou uma fenda de dimensões diminutas, mais ou menos do mesmo tamanho do seu comprimento de onda, e esse choque altera o seu ângulo de propagação. O resultado da difração é provocar um desvio no caminho do feixe de ondas ou o seu espalhamento. O fenômeno é mais fácil de ser observado com as ondas sonoras, maiores do que as da luz visível.

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nhas e o círculo surgiram na parede de sua casa. “Em ambiente aberto, a borda de Plateau se desfaz mais rapidamente”, explica a física. “Por isso usamos a célula de Hele-Shaw.” Uma das chaves para entender a similaridade entre os dois fenômenos, o atmosférico e o das bolhas de sabão, está ligada à simetria extremamente parecida dos cristais de neve e das bordas de Plateau, segundo a dupla da USP, cujos estudos fazem parte do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Fluidos Complexos (INCT-FCx), financiado pela FAPESP e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Os cristais têm formato hexagonal e as bordas são triangulares. Essas duas figuras geométricas exibem uma íntima relação: um hexágono regular pode ser visto também como a junção de seis triângulos equiláteros. Portanto, ao incidir sobre essas duas estruturas, a luz do Sol ou a do laser se espalha de acordo com o mesmo princípio. “É muito difícil estudar em detalhes a formação das imagens nesse raro fenô48  z  março DE 2015

Físicos da USP dizem que círculo e linhas retas do padrão luminoso se devem ao caráter ondulatório da luz

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fotos 1 reprodução de Vädersolstavlan de Urban målare, 1535 / wikipedia 2 léo ramos  3 Gopherboy6956 / wikipedia

Dois falsos sóis em torno do astro verdadeiro em Dakota do Norte, EUA: fenômeno ocorre em clima frio

No caso do laser que ilumina as bolhas de sabão, o feixe de luz incide sobre a borda de Plateau, uma região de alguns nanômetros de comprimento que forma um pequeno tubo triangular capaz de espalhar a luz. A luz chega no ponto de junção das três bolhas na forma de um único feixe de laser, reto e concentrado. Depois de se chocar com o tênue obstáculo, ela dá origem a uma série de feixes menos potentes e mais finos que vão formar o padrão luminoso associado ao fenômeno. Uma parte do laser inicial praticamente passa reto pela borda e origina, numa superfície branca situada atrás do experimento, um ponto luminoso mais forte, o equivalente ao Sol original que se vê na versão atmosférica do fenômeno. A luz dessa mancha se reflete nas bolhas de sabão e produz duas ou quatro imagens espelhadas, menos vigorosas que a original, os tais falsos sóis no caso da ocorrência celeste. “É interessante notar que esses pontos luminosos sempre se formam sobre a linha que delimita o círculo”, afirma Adriana.

A

té esse ponto, a explicação da dupla de brasileiros é mais ou menos igual às ideias de outros pesquisadores para dar conta do parélio solar. Sua contribuição ganha importância quando eles introduzem a questão da difração da luz causada por finos filmes de espuma. As linhas retas, em geral três, que cortam o ponto principal, o “sol original” do experimento, são formadas pela difração de parte da luz que incide na estrutura triangular da borda de Plateau. É como se a parede de cada uma das três bolhas que se encontram encostadas umas nas outras desse origem a uma linha reta. Para que também o halo do fenômeno se forme, é necessário um requisito extra: o laser tem de incidir de forma oblíqua na borda de Plateau. Dessa forma, outra fração da onda de luz difratada se espalha num formato cônico, formando assim um círculo perfeito. “Nossa explicação é mais simples do que as outras teorias que usam apenas reflexão e refração da luz, e não seu caráter ondulatório, para explicar o fenômeno atmosférico”, diz Alberto. O Sol e suas réplicas de menor intensidade são uma ocorrência celeste que tem fascinado o homem há tempos, de acordo com registros escritos e até representações pictóricas desse evento. No século

IV a. C., Aristóteles faz referência a esse tipo de evento no livro Meteorologica. Considerado como a primeira representação de Estocolmo, o quadro Vädersolstavlan, de 1535, retrata o fenômeno em sua plenitude nos céus da capital sueca. Ainda no século XVI, o dramaturgo inglês William Shakespeare faz referência ao parélio na terceira parte da peça Henrique VI. O francês René Descartes foi a Roma em 1629 para ver o fenômeno e também escreveu a respeito dele. Em alguns momentos, certas culturas chegaram a associar a ocorrência do parélio com a iminência de guerra. Adriana e Alberto, quando viram a versão a laser e com bolhas de sabão do fenômeno em seu laboratório na USP Leste, avaliaram que estavam diante de um interessante – e milenar – tema de pesquisa. n

Projeto Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Fluidos Complexos (INCT-FCx) (nº 2008/57685-7); Modalidade Projeto Temático – INCT; Pesquisador responsável Antônio Martins Figueiredo Neto (IF-USP); Investimento (em todo o INCT): 2.522.238,07 (FAPESP) e 2,5 milhões (CNPq).

Artigo científico TUFAILE, A. e TUFAILE, A. P. B. Parhelic-like circle from light scattering in Plateau borders. Physics Letters A. 4 dez. 2014.

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180º

Cartografia planetária y

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Oeste

Olhar eletrônico

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Ferramentas matemáticas ajudam

-30º

a identificar de forma automática crateras e redemoinhos em Mercúrio e Marte

-40º

-50º

Pablo Nogueira

-65º 180º

M

arte pode até ser desabitado, mas está longe de ser um lugar tranquilo. Sua superfície é frequentemente varrida por poderosos redemoinhos, os dust devils, que alcançam dimensões até 100 vezes maiores do que os redemoinhos registrados na Terra. Em Marte, eles chegam a ter 2 quilômetros de raio e 20 quilômetros de altura. Visíveis da órbita do planeta, deixam atrás de si rastros com quilômetros de extensão e modelam a paisagem marciana. Até agora os pesquisadores interessados em estudar o fenômeno têm sido obrigados, na maioria das vezes, a procurar seus rastros examinando manualmente uma a uma as imagens da superfície marciana. Mas um novo método, desenvolvido por brasileiros e portugueses, promete facilitar a pesquisa ao permitir a detecção automática tanto do traçado quanto de outras características dos dust devils. O método já apresentou uma acurácia de 92% e continua sendo aperfeiçoado. 50  z  março DE 2015

Marte, depois da Terra, é o planeta mais bem estudado da história. Já recebeu a visita de 15 sondas espaciais, que fizeram sobrevoos ou entraram em sua órbita. “Uma única câmera, de uma única sonda, chega a produzir 2 mil imagens de cada região de Marte”, diz o engenheiro cartógrafo Thiago Statella, professor no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso, em Cuiabá. Statella trabalhou sob a orientação do engenheiro cartógrafo Erivaldo Antônio da Silva, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Presidente Prudente, e de Pedro Pina, do Instituto Superior Técnico (IST), da Universidade de Lisboa, no desenvolvimento de um programa capaz de fazer a detecção automática dos rastros dos dust devils. O programa usa ferramentas da morfologia matemática, uma técnica de processamento digital que extrai informações de imagens, neste caso, feitas por câmeras a bordo das sondas orbitais Mars Global Surveyor (MGS) e Mars Reconaissance Orbiter (MRO). Criada nos anos 1960 na França pelos matemá-

ticos Georges Matheron e Jean Serra, a morfologia matemática foi empregada inicialmente para extrair informações de imagens de microscopia de rochas e metais por meio da análise de suas estruturas geométricas. Aos poucos, seu uso foi extrapolando para outras áreas até chegar à cartografia. Hoje ela auxilia na identificação de estruturas em outros planetas, a chamada cartografia planetária. “Nosso grupo já usava a morfologia matemática em trabalhos de mapeamento da superfície terrestre, o que no início não era algo muito comum. Foi isso que despertou o interesse dos pesquisadores de Portugal em colaborar”, conta Silva. O processamento de imagens baseado na morfologia matemática permite manipular a tonalidade dos pixels e, assim, realçar ou eliminar determinadas características da imagem. Com essa estratégia, limpa-se da imagem o que não interessa – por exemplo, vales, rochas, dunas e sombras – e restam apenas os rastros dos dust devils. O resultado é uma imagem com tons muito claros, plasmados

imagens nasa

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Norte 80º

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sobre um fundo escuro, que oculta as demais características da imagem original. Os pesquisadores usaram a técnica para tratar 200 imagens de cinco regiões de Marte captadas pelas sondas MGS e MRO e compararam os resultados com a análise visual feita por um expert. O índice de acertos do programa variou de 69% a 99%, dependendo da imagem. A média foi de 92%. O lado do vento

A detecção dos rastros também pode fornecer informações sobre o funcionamento da atmosfera do planeta. Os dust devils se formam pela movimentação dos gases na atmosfera marciana. A luz solar que incide sobre o solo aquece os gases próximos à superfície, que ascendem e empurram as camadas mais superiores da atmosfera para o alto. À medida que sobem, essas camadas resfriam e descem, gerando um movimento contínuo conhecido como célula de convecção. Rajadas de vento podem deslocar o ar quente na horizontal e alterar a direção da célula de convecção,

340º

320º

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Mapa da superfície de Marte, com a região analisada (em destaque); ao lado, dust devil flagrado em 2012 pela câmera da sonda Mars Reconnaissance Orbiter

originando os dust devils. Por essa razão, seus rastros podem guardar informação sobre a direção em que o vento soprava no momento em que foram formados. Essas informações são importantes para aperfeiçoar o Modelo de Circulação Geral de Marte (GCM, na sigla em inglês), que vem sendo desenvolvido pela agência espacial norte-americana, a Nasa, desde os anos 1960 com o objetivo de descrever o funcionamento da atmosfera do planeta e sua influência sobre o clima. Atualmente o GCM é capaz de predizer o comportamento esperado dos ventos nas diversas regiões marcianas.

Statella, Silva e Pina também desenvolveram um programa que, a partir dos rastros detectados na imagem, calcula a direção preferencial dos ventos. Os resultados obtidos por essa estratégia foram semelhantes aos de uma análise feita manualmente e aos do GCM, segundo estudo publicado em 2014 na revista Advances in Space Research. “Uma das maneiras de aferir as previsões do GCM são as observações feitas pelas sondas que pousaram no planeta. Mas essas observações muitas vezes são pontuais”, diz Statella. “A detecção automática da direção dos dust devils pode pESQUISA FAPESP 229  z  51

Leste

10º


200 m

Depois

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À caça dos dust devils: o programa analisa cada pixel da imagem original, realça os que integram formas pré-estabelecidas (traços alongados) e esmaece os demais; depois, converte os pixels realçados em branco e os demais em preto, gerando uma imagem em negativo e facilitando o estudo de propriedades dos redemoinhos

fornecer informações globais sobre a direção do vento numa determinada região.” Essa estratégia, porém, fornece apenas a direção predominante dos ventos – a do maior número de rastros. O problema é que uma única imagem pode exibir rastros com mais de uma orientação, gerados por dust devils que percorreram a região em diferentes momentos, sob regimes de vento distintos. Statella testou três abordagens para estimar a direção predominante dos ventos em 190 imagens feitas pela MGS e pela MRO. A mais eficaz apresentou uma acurácia de 86,3%, quando comparada com um gabarito produzido por um especialista. Em 100% dos casos a abordagem de Statella coincidiu com as previsões feitas pelo GCM em diferentes períodos para a região conhecida como Argyre, no hemisfério Sul marMercúrio: crateras detectadas corretamente (verde); erroneamente (vermelho) e não detectadas (azul)

3

52  z  março DE 2015

ciano. Ele pretende agora formar um banco de dados com o maior número possível de registros de dust devils para inferir quais os tipos mais comuns nas diferentes regiões do planeta e em quais períodos costumam ocorrer. Mensageiro de Mercúrio

A equipe de Silva e Pina também usa ferramentas da morfologia matemática e outras técnicas de processamento de imagens para identificar crateras em Mercúrio, o planeta mais próximo ao Sol. Miriam Pedrosa, aluna de doutorado na Unesp, vem desenvolvendo um programa para analisar as imagens feitas pela sonda Messenger. A sonda obteve as primeiras imagens da superfície de Mercúrio em sobrevoos feitos em 2008 e 2009 – desde que entrou na órbita do planeta em 2011, ela continua a enviar imagens com maior resolução. Em seu mestrado, sob a orientação de Silva, Miriam havia desenvolvido um programa para a detecção automática de crateras em imagens de Marte. Para Mercúrio, o programa foi aprimorado por causa da menor resolução espacial das imagens obtidas pela Messenger. “Marte já recebeu a visita de diversas sondas. Por isso estão disponíveis imagens com ótima resolução, em algumas delas cada pixel representa uma área de 25 centímetros quadrados”, conta Miriam. “Já no caso de Mercúrio, a melhor resolução disponível tem em torno de 16 metros e, em alguns casos, não passa de 250 metros.” Isso significa que uma cratera com 100 metros de diâmetro pode desaparecer na foto. Além da resolução,

características da superfície do planeta, sua proximidade do Sol e a qualidade dos detectores das câmeras também dificultam o uso do programa. Miriam já analisou 47 imagens de três regiões – as bacias de Mozart, Rachmaninoff e Raditladi – do planeta. O grau médio de acerto na identificação das crateras foi de 87%, quando comparado com a identificação feita por um especialista. “O programa usa imagens com qualidade e resolução muito diferentes”, diz Miriam. “Os melhores resultados foram obtidos com as de maior resolução.” No caso de Mercúrio, no entanto, houve um número expressivo de falsos positivos – feições que o programa, equivocadamente, considerou como crateras. A fim de solucionar o problema, ela incluiu no método uma etapa em que informa características de feições que, embora pareçam crateras, não são. “Essa é uma nova tendência na detecção automática: fornecer ao classificador exemplos de feições que estão presentes na imagem analisada e não são crateras”, conta. “Dessa forma, o programa vai ‘aprendendo’ a discriminar, até se tornar capaz de fazer a análise em fotos com características muito distintas”, explica. Poucos grupos trabalham com cartografia planetária no Brasil, que deve sediar o próximo congresso da International Cartographic Association em agosto, com uma sessão dedicada ao tema. O da Unesp é um dos poucos que aplicam a morfologia matemática aos estudos na área. “Temos alguns resultados interessantes”, diz Silva. “A maior parte dos pesquisadores busca crateras com raio superior a 1 quilômetro, nós conseguimos detectar crateras com essas dimensões e estamos trabalhando para detectar crateras ainda menores.” n

Projeto Desenvolvimento de metodologia para a extração de feições cartográficas a partir de imagens digitais das superfícies dos planetas Terra, Marte e Mercúrio (n. 2014/08822-2); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Erivaldo Antonio da Silva (Unesp); Investimento R$ 60.850,00 (FAPESP).

Artigos científicos STATELLA, T.; PINA, P.; SILVA, E. A. Automated determination of the orientation of dust devil tracks in Mars Orbiter Images. Advances in Space Research. v. 53, p. 1822-33. 2014. STATELLA, T.; PINA, P.; SILVA, E. A. Image processing algorithm for the identification of Martian dust devil tracks in MOC and HiRISE images. Planetary and Space Science. v. 70, p. 46-58. 2012.

fotos  1 e 2 statella, t. advances in space research, 2014 3 miriam pedrosa

Antes


obituário y

Paixão pela física e pela fotografia Alejandro Szanto de Toledo ajudou a formar uma geração de físicos nucleares no país

eduardo cesar

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ouco antes do Carnaval de 1964 o físico Oscar Sala fazia a manutenção de um gerador de Van de Graaff, o equipamento mais avançado que existia à época no país para acelerar partículas a velocidades muito elevadas, quando um calouro que visitava seu laboratório na Universidade de São Paulo (USP) perguntou se poderia trabalhar ali com física nuclear. “Apareça na terça às 7 da manhã que você está engajado”, foi a resposta de Sala ao novato, que, aos 19 anos, só iniciaria a graduação semanas mais tarde. “Apareci no dia combinado e nunca mais saí [da universidade]”, contou Alejandro Szanto de Toledo em uma entrevista a colegas do Instituto de Física da USP, em 2012, onde trabalhou por mais de 50 anos. Alex, como o chamavam os amigos, morreu em São Paulo no dia 21 de fevereiro, em decorrência de um câncer de intestino. Tinha 69 anos e era casado com a física e professora Eloisa Madeira Szanto, com quem teve uma filha. A mesma ousadia que o levou a abordar Sala, um físico renomado, permitiu a Szanto de Toledo construir uma carreira que lhe garantiu reconhecimento internacional em física de baixas energias e a estabelecer no Brasil um dos poucos grupos que atuam em física de altas energias. Filho de pai húngaro e mãe espanhola, Szanto de Toledo nasceu em Tanger, no Marrocos, e migrou para o Brasil ainda criança. Estudou no Liceu Pasteur em São Paulo e, em 1963, prestou vestibular para física e para engenharia eletrônica na USP.

Szanto de Toledo: habilidoso em instrumentação e na realização de experimentos

Por três anos, cursou ambos, até que abriu mão do segundo para se dedicar à pesquisa em física nuclear no grupo de Sala, seu orientador no mestrado e no doutorado. Interessado por instrumentação, Szanto de Toledo identificou nos primeiros meses de trabalho vulnerabilidades que atrapalhavam o funcionamento do gerador de Van de Graaff. “Como eu já era presunçoso na época, falei ao Sala: ‘Olha, isso aqui tá tudo errado, tem de colocar um sistema de proteção’. E o Sala disse: ‘Então faz’”, contou certa vez. Seu empenho e habilidade em solucionar esses desafios levaram Sala, ex-diretor científico da FAPESP, a encarregá-lo mais tarde de projetar e construir o equipamento – a fonte de íons – que forneceria as partículas usadas em um acelerador da geração seguinte, o Pelletron, inaugurado em 1972 para realizar experimentos que não podiam ser feitos com o Van de Graaff. Foi no Pelletron que Szanto de Toledo e seus alunos realizaram experimentos que demonstraram que o choque de núcleos atômicos nem sempre os leva a se fundir completamente porque um deles pode se romper antes do impacto. Esses resultados corroboravam a hipótese do break up nuclear, proposta nos anos 1980, e tornaram o grupo conhecido internacionalmente.

“Esse resultado é importante para entender o que se passa no interior das estrelas e gerou toda uma linha de pesquisa”, conta o físico Jun Takahashi, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), um dos discípulos de Szanto de Toledo. Em meados dos anos 1990, Szanto de Toledo decidiu enveredar por uma nova área de pesquisa. Enviou três de seus orientandos, Takahashi, Marcelo Munhoz e Patrícia Facchini, para trabalharem em aceleradores mais potentes nos Estados Unidos e iniciarem os trabalhos em física de altas energias. Esses trabalhos os levaram mais tarde a participar de um dos experimentos no Large Hadron Collider (LHC). “Uma das características do Alex era seu entusiasmo pela física”, diz Munhoz, professor da USP. Em dezembro de 2012, Szanto de Toledo, que era membro do conselho superior da FAPESP, revelou outra de suas paixões: a fotografia. Lançou o livro Face a face: uma jornada pelos povos do mundo, com 350 fotos de pessoas de diferentes etnias, resultado de suas viagens aos locais mais remotos do planeta. Nos últimos tempos, ele trabalhava em um novo livro, de retratos de crianças, que deve ser publicado em breve. n pESQUISA FAPESP 229  z  53


botânica y

Estratégias subterrâneas Especializações nas raízes permitem que plantas vivam no ambiente infértil dos campos rupestres Texto

Maria Guimarães

Fotos

Rafael Oliveira

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Serra do Cabral

mapa  pedro hamdan

Menos de 1% do território brasileiro: vegetação nasce na rocha em serras de Minas Gerais, Bahia e Goiás

Paisagem típica de campo rupestre na serra da Canastra

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Q 1 Neblina: fonte de umidade 2 Pico das Almas, na Bahia 3 Sempre-viva: Actinocephalus polyanthus 4 Drosera prestes a almoçar uma mosca

uando partiram para examinar com olhar botânico a vegetação da serra do Cabral, em Minas Gerais, o biólogo Rafael Oliveira, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e seus alunos estavam preparados para surpresas. Nesse ambiente em que as plantas crescem sobre rochas ou em meio a uma areia tão branca que parece sal, e por isso conhecido como campo rupestre, é surpreendente que elas encontrem maneiras de sobreviver. Conseguem graças a um arsenal de truques que os pesquisadores mal começaram a desvendar. E a variedade também surpreende: um levantamento ainda não publicado, liderado pelo biólogo Fernando Silveira, da Universidade Federal de Minas Gerais, estima que há cerca de 11 mil espécies (um terço da biodiversidade vegetal brasileira) numa área que não chega a 1% do território nacional, salpicada principalmente ao longo da serra do Espinhaço. “Ainda estamos longe de entender os mecanismos evolutivos que geram e mantêm essa diversidade”, afirma Oliveira, que participou do levantamento. À primeira vista, a equipe da Unicamp reparou que apenas quatro espécies eram comuns nas áreas de areia, solo quase desprovido de água e nutrientes,

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e que uma delas aparecia sempre perto de uma planta diferente, entre outros achados. “Tinha que haver algo especial para possibilitar essa existência”, relembra Oliveira. Uma dessas soluções, comum nos campos rupestres, é ser carnívora. A delicada Philcoxia minensis mantém suas minúsculas folhas grudentas enterradas na areia, onde captura e digere vermes subterrâneos, conforme mostra artigo publicado em 2012 na PNAS, resultado do trabalho de iniciação científica do biólogo Caio Pereira (ver Pesquisa FAPESP nº 194). É a primeira vez que se identifica a capacidade de consumir animais numa espécie da família das plantagináceas, ampliando o alcance conhecido dessa estratégia. Mas a paisagem guardava outras novidades. Ao desenterrar cactos da espécie Discocactus placentiformis, uma esfera espinhuda que deixa apenas a parte de cima exposta, eles viram curiosas raízes revestidas da fina areia. “Mesmo quando lavamos, a areia não sai”, conta Oliveira. Investigar que substância essas raízes estão liberando, e que função ela cumpre, foi o trabalho de mestrado de Anna Abrahão e exigiu uma solução pouco ortodoxa: cultivo hidropônico na casa de vegetação do Laboratório de Ecologia Funcional de Plantas, coordenado por Oliveira. A ideia de manter submersas em água as raízes de plantas que normalmente mal se regam foi vista com descrédito por colegas, mas era a única maneira de controlar a quantidade de nutrientes disponível. “No solo nunca sabemos quanto


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fica disponível para a planta, porque as substâncias formam compostos difíceis de quebrar”, explica o biólogo. Mais uma surpresa: a água em excesso não se revelou um problema, mas a quantidade de nutrientes era um fator mais crítico do que eles imaginavam. Numa tentativa anterior de cultivar plantas de campos rupestres em laboratório, Oliveira diluiu pela metade o fertilizante comercial, levando em conta a pobreza de nutrientes do ambiente natural em que vivem. Todas morreram intoxicadas pelo excesso. “Só conseguimos quando o composto de nutrientes estava com um décimo da concentração original.” Com o artifício de manter as raízes desenterradas, foi possível enxergar a formação dos aglomerados de pelos radiculares que secretam substâncias conhecidas como carboxilatos e mantêm a areia grudada neles. Esses carboxilatos quebram os compostos de fósforo, alumínio e ferro presentes na areia, nesse formato indisponíveis para as plantas. Assim elas conseguem absorver o fósforo, essencial para diversas funções vitais (como fazer fotossíntese e construir o material genético) e escasso nesse solo formado a partir de quartzo. “Essa secreção é uma inovação impressionante”, explica Oliveira. “Ela manipula o solo quimicamente, outras plantas não conseguiriam sobreviver nessas condições.” Com isso, as raízes conseguem mobilizar não apenas o fósforo, mas também outros micronutrientes importantes para o desenvolvimento e o crescimento. Es-

sas substâncias são tão raras nesses solos que chega a ser difícil detectá-las pelos métodos habituais. O manganês, porém, mostrou-se mais comum nas folhas de espécies com especializações nas raízes, a ponto de ser um possível indicador desse tipo de estratégia, conforme artigo de fevereiro deste ano na Trends in Plant Science.

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experimento com os cactos, cujos resultados foram publicados em outubro de 2014 na revista Oecologia, também mostrou que quando há mais fósforo no solo as raízes respondem fabricando menos carboxilatos. “As plantas têm uma série de estratégias numa escala bem pequena, com soluções adaptativas mais diversas do que imaginamos”, diz o pesquisador da Unicamp.

A descoberta de que os Discocactus usam esse artifício para obter nutrientes também foi surpreendente porque os cactos são uma família conhecida por fazer associações com fungos em suas raízes, as chamadas micorrizas, que transferem fósforo para a planta e ganham carbono dela. “O editor do artigo achou que fosse impossível, já que é uma família micorrízica”, lembra Oliveira. Para ele, trata-se de um indício de como o arsenal diverso das plantas é ignorado em grande escala, sobretudo nas condições extremas dos campos rupestres, cuja fama ainda não se espalhou pelo mundo. A investigação dessa região permitiu a Oliveira pôr à prova um modelo teórico desenvolvido pelo biólogo holandês Hans Lambers, radicado na Universidade da

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Austrália Ocidental. Em artigo publicado em 2008 na revista Trends in Ecology and Evolution, ele mostrou que nos solos antigos, pobres em nitrogênio e fósforo, as micorrizas não são a estratégia mais comum. Nesses ambientes o fósforo é uma limitação mais forte que o nitrogênio, ao contrário do que acontece em solos mais jovens. Em seu lugar, surgiriam as modificações de raízes como aglomerados de pelos e secreção de carboxilatos. A sugestão se baseou em estudos feitos em duas regiões com características muito semelhantes às dos campos rupestres: os fynbos, na África do Sul, e o kwongan, no sudoeste da Austrália. Fascinado com o artigo, Oliveira, que estava no início de um projeto para avaliar as estratégias de obtenção de água pelas plantas dos campos rupestres, aproveitou para incluir os nutrientes nos estudos. Com isso conseguiu fazer o primeiro teste da teoria de Lambers – que nesse processo se apaixonou pelos campos rupestres e iniciou uma parceria de pesquisa com o grupo da Unicamp, onde dará cursos em visitas de um mês ao longo dos próximos três anos. Uma análise do solo da serra do Cabral e de 50 das espécies de plantas mais importantes por ali indica que o campo rupestre é de fato 58  z  março DE 2015

1 A estudar: tufos nas raízes de Syngonanthus niveus 2 Raízes de Actinocephalus cabralensis revestidas de areia 3 Discocactus placentiformis: das poucas espécies que vivem na areia 4 Orquídea: exemplo da diversidade deslumbrante de flores

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tante em que eles estiveram próximos, no supercontinente Gondwana. As famílias vegetais que protagonizam essas descobertas são, em grande parte, representantes de famílias que já existiam nesse período remoto: as proteáceas, cujas raízes especializadas conhecidas nos outros continentes levaram o grupo de Oliveira a procurar semelhanças por aqui, e as veloziáceas (canelas-de-ema) e eriocauláceas (sempre-vivas), ambas com uma diversificação maior no Brasil do que nos outros países. Os segredos que elas escondem na areia prometem mostrar que os mecanismos conhecidos em florestas tropicais não são a regra, além de pôr os campos rupestres na linha de frente dessa nova compreensão de como plantas podem lidar com situações extremas. n

Projeto

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semelhante aos fynbos e ao kwongan no que diz respeito à escassez de nutrientes, sobretudo do fósforo. Também na obtenção de nutrientes mais por meio de especializações das raízes do que de associação com micorrizas, conforme mostra artigo que resultou do mestrado de Hugo Galvão e foi publicado na New Phytologist de fevereiro deste ano. Uma das observações feitas pela estagiária Ana Luíza Muler em viagens à serra mineira também rendeu um teste independente. Num período que passou na Austrália, ela estudou duas plantas que costumam viver próximas uma da outra, como é o caso de uma espécie da família das iridáceas que costuma estar

associada a uma sempre-viva na serra do Cabral. No caso australiano era uma Banksia attenuata, cujas raízes formam aglomerados que liberam carboxilatos e extraem o fósforo do solo, e uma Scholtzia involucrata, que não tem a especialização. Num experimento relatado em artigo de 2014 na Oecologia, ela mostrou que esta segunda planta cresce melhor na presença da outra espécie, sugerindo que ela aproveita os nutrientes que se tornam disponíveis pela alteração química do solo. Resta estudar o quanto isso acontece e como essas plantas distintas convivem entre si. Os paralelos entre os continentes é um resquício de um passado muito dis-

Mudanças climáticas em montanhas brasileiras: respostas funcionais de plantas nativas de campos rupestres e campos de altitude a secas extremas; Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Rafael Silva Oliveira (Unicamp); Investimento R$ 569.639,14 (FAPESP).

Artigos científicos ABRAHÃO, A. et al. Convergence of a specialized root trait in plants from nutrient-impoverished soils: phosphorus-acquisition strategy in a nonmycorrhizal cactus. Oecologia. v. 176, n. 2, p. 345-55. out. 2014. LAMBERS, H. et al. Leaf manganese accumulation and phosphorus-aquisition efficiency. Trends in Plant Science. v. 20, n. 2, p. 83-90. fev. 2015. MULER, A. L. et al. Does cluster-root activity benefit nutrient uptake and growth of co-existing species? Oecologia. v. 174, n. 1, p. 23-31. jan. 2014. OLIVEIRA, R. S. et al. Mineral nutrition of campos rupestres plant species on contrasting nutrient-impoverished soil types. New Phytologist. v. 205, n. 3, p. 1183-94. fev. 2015. PEREIRA, C. G. et al. Underground leaves of Philcoxia trap and digest nematodes. PNAS. v. 109, n. 4, p. 11548. 24 jan. 2012.

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ecologia y

Em liberdade Cutias criadas em cativeiro se adaptam à vida na floresta e se reproduzem De volta à floresta: cutia reintroduzida no Parque da Tijuca, acompanhada de filhote nascido na natureza

Rodrigo de Oliveira Andrade

A

s cutias estão de volta ao Parque Nacional da Tijuca, no Rio de Janeiro. O retorno desses roedores a uma das mais extensas florestas urbanas brasileiras é resultado de um projeto de reintrodução conduzido por biólogos e veterinários do Rio. Ariscas e frágeis, as cutias haviam começado a rarear nessa área de 4 mil hectares de Mata Atlântica encravada na capital fluminense nos anos 1970 e chegaram a ser consideradas localmente extintas. De lá para cá houve ao menos uma tentativa de recuperar no parque a população desses roedores, que desempenham um papel importante na dispersão de sementes. Dessa vez, a experiência parece ter dado certo, ao menos no curto prazo. Os animais que começaram a ser reintroduzidos em 2010 mostraram-se à vontade na mata em pouco tempo, alimentando-se sozinhos e caminhando por áreas distantes do lugar de soltura. Oito meses depois foi avistado o primeiro filhote nascido na natureza. 60  z  março DE 2015

Esse sucesso inicial na reintrodução das cutias (Dasyprocta leporina) em seu ambiente nativo se deve a um processo de soltura gradual adotado pelo biólogo Bruno Cid, integrante da equipe de Fernando Fernandez na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A estratégia incluiu duas fases – uma de quarentena e outra de aclimatação – antes da soltura. Na primeira etapa, cutias nascidas e criadas em um parque do centro do Rio foram levadas para o zoológico da cidade, onde foram alimentadas e examinadas por biólogos e veterinários por, em média, dois meses. Na segunda etapa, os animais saudáveis foram enviados para um período de aclimatação em uma área cercada em meio à mata no Parque da Tijuca. Durante a aclimatação os pesquisadores acrescentaram à dieta das cutias frutos e sementes daquela estação que poderiam encontrar na floresta. Três semanas depois de transferidos para a mata, em média, os animais foram soltos na floresta.

Onze cutias foram reintroduzidas e se adaptaram bem à vida em liberdade. Outras 10 morreram antes de serem soltas por causa de brigas entre os machos ou ataque de cachorros que invadiram o cercado durante a aclimatação. Monitorando o deslocamento dos roedores, os pesquisadores constataram que dias depois da soltura a maioria das cutias se alimentava sozinha, sobretudo do fruto da cutieira e do palmito-juçara, consumido também por aves da Mata Atlântica. O maior sinal de sucesso, porém, é que as cutias conseguiram se reproduzir: 234 dias depois de solta uma das cutias foi vista com um filhote. Desde então, os pesquisadores já avistaram outros 10 filhotes perto da área de aclimatação. Estima-se que o número de cutias no parque hoje seja de 45 indivíduos, ainda insuficiente para repovoar toda a região. Até pouco tempo atrás consideradas extintas no parque, as cutias podem ajudar a preservar a floresta. Estudos têm mostrado que esses roedores contribuem


Marco Terranova

para a dispersão de sementes de diversas espécies de plantas. As cutias que se adaptaram à vida livre enterravam sementes de espécies nativas da Mata Atlântica, como a cutieira, e de espécies exóticas, como a jaqueira. “A reintrodução de animais dispersores de sementes pode ser uma importante ferramenta de recuperação de trechos degradados de Mata Atlântica”, diz Bruno Cid. Como outros animais, as cutias comem algumas sementes e enterram outras para os períodos de escassez. Como se movem constantemente pela floresta, elas esquecem as sementes, que germinam e dão origem a novas plantas. “Essas sementes enterradas têm mais chances de germinar”, diz o biólogo Caio Kenup, aluno de mestrado na UFRJ que estuda a dinâmica populacional das cutias no Parque da Tijuca. Às vezes, as cutias também roubam sementes umas das outras, ampliando a dispersão. “Basta o solo aparentar ter sido remexido para as cutias procurarem por sementes no local”, con-

ta o biólogo Paulo Roberto Guimarães, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que há mais de 10 anos estuda a dispersão de sementes por cutias. retorno difícil

Mesmo a experiência no Parque da Tijuca reforça a ideia de que não é fácil fazer animais silvestres nascidos em cativeiro ou nascidos na natureza e depois aprisionados se adaptarem à vida em liberdade. Colocados de volta em seu ambiente natural, alguns não conseguem se alimentar sozinhos, perdem peso e se tornam presas fáceis para predadores. Outros não conseguem voltar aos espaços em que viviam antes da captura. Uma das razões é que as áreas florestais estão encolhendo, sobretudo próximo às grandes cidades. O fato é que as tentativas de reintrodução de que se tem notícia no Brasil apresentam alta taxa de insucesso — com exceção do caso do mico-leão-dourado, cuja população em áreas de preservação

aumentou como resultado de esforços de conservação. Ainda que, por ora, expliquem o bem-sucedido retorno das cutias ao Parque da Tijuca, a reintrodução em etapas ainda precisa ser aprimorada, segundo Bruno Cid. O período de aclimatação, por exemplo, pode ser estressante para os animais, mas ainda assim é necessário. “Se queimarmos alguma etapa, o risco de o animal não se adaptar à vida em liberdade aumenta. O importante é definir um protocolo com o tempo que os indivíduos devem passar em cada etapa”, afirma Cid, que desenvolve seu doutorado sob a orientação de Fernando Fernandez no Laboratório de Ecologia e Conservação de Populações da UFRJ. Fernandez e seu grupo pretendem usar a mesma estratégia na reintrodução de bugios no Parque da Tijuca e de antas em uma área a ser definida, como parte do projeto Refauna, que tenta restabelecer interações ecológicas e restaurar populações perdidas pela defaunação na Mata Atlântica. Em Minas Gerais, pesquisadores estão avaliando a eficácia da adaptação gradativa na reintrodução de mutuns-do-sudeste (Crax blumenbachii), ave da Mata Atlântica ameaçada de extinção. Desde 1990, eles já transferiram 78 animais com 2 anos de idade, quando estão atingindo a maturidade sexual, para uma área de floresta, como parte de um projeto coordenado pela fundação Crax Brasil e pela empresa Cenibra. “Todos passaram por exames médicos veterinários e ficaram de quatro a nove meses em um viveiro de aclimatação antes de serem soltos”, explica Joana Carvalhaes Borba de Araújo, mestranda responsáv el pela pesquisa coordenada pelo professor Adriano Chiarello, da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto. O objetivo agora é avaliar o sucesso da reintrodução desses animais 25 anos após o seu início. n

Artigo científico CID, B. et al. Short-term success in the reintroduction of the red-humped agouti Dasyprocta leporina, an important seed disperser, in a Brazilian Atlantic Forest reserve. Tropical Conservation Science. v. 7, n. 4, p. 796-810. 2014.

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Genética y

Ataque no escuro

S

ob a ação da luz solar, o pigmento da pele, a melanina, pode se fragmentar e formar compostos químicos muito reativos que podem danificar a estrutura da molécula de DNA, mantida no núcleo das células, e provocar o desenvolvimento de câncer de pele, de acordo com um estudo publicado na revista Science de 20 de fevereiro, com a participação de pesquisadores brasileiros. Segundo esse trabalho, o ataque ao DNA pode persistir por mais de três horas após a exposição direta à luz do sol, indicando mais uma limitação da ação dos cremes protetores aplicados à pele para proteger contra os efeitos prejudiciais da radiação ultravioleta da luz solar. “O protetor solar não vai prevenir totalmente os danos ao DNA, que continuam mesmo depois da exposição ao sol”, diz o químico Etelvino Bechara, professor sênior da Universidade de São Paulo (USP), um dos autores do estudo, pesquisador responsável por vários projetos temáticos financiados pela FAPESP sobre os impactos de radicais livres (ver entrevista na página 22). Este trabalho está ligado também ao Instituto Nacional de Ciência de Tecnologia (INCT) de Processos Redox em Biomedicina, coordenado por Ohara Augusto, do Instituto de Química da USP, com apoio da FAPESP e do governo federal. Com base nesse trabalho, Bechara recomenda ainda mais cuidado com o bronzeamento artificial e alerta para a necessidade urgente de formulações, na forma de cremes, que possam impedir a formação dos compostos lesivos ao DNA mesmo depois da exposição ao sol. Uma possibilidade de reduzir esse tipo de dano, apresentada no estudo, é o

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Resíduos da melanina formados horas após exposição ao sol podem danificar o DNA e provocar câncer de pele Carlos Fioravanti

uso de ácido sórbico, um aditivo de alimentos, embora sua eficácia, dosagem e forma de aplicação ainda não tenham sido estabelecidas. Outra possibilidade de minimizar as lesões solares, além de filtros de radiação ultravioleta, é utilizar a vitamina E, já empregada em alguns cosméticos. Bechara recebeu no início de 2012 um e-mail de Douglas Brash, da Universidade Yale, perguntando se ele poderia colaborar na solução de alguns problemas relacionados a danos ao DNA de melanócitos, as células produtoras de melanina. Os danos estavam associados ao desenvolvimento de melanoma, uma forma agressiva de câncer. Como as dúvidas e o assunto estavam relacionados ao doutorado de Camila Mano, sob sua orientação, no Instituto de Química da USP, ele pediu para ela entrar no trabalho e, logo depois, para se preparar para ir a Yale. Camila, também coautora do artigo publicado na Science, foi no final de 2012 e ficou quase seis meses, até fevereiro de 2013. Sua primeira tarefa foi

conhecer melhor o problema que não conseguiam resolver. “Eles viam alterações no DNA que pareciam geradas pela radiação solar, mas ocorriam depois da radiação”, diz Camila. Depois de entender o problema, ela aprendeu a lidar com células de camundongos e começou a fazer os experimentos que poderiam dar uma resposta. Os primeiros testes não deram certo, mas depois ela concluiu que a própria melanina poderia estar gerando as alterações no DNA. Controle de Qualidade

Normalmente, nas células produtoras de melanina, a radiação ultravioleta do sol forma os chamados dímeros (compostos químicos com duas unidades) de timina e citosina, dois componentes básicos do DNA. Os dímeros podem alterar o funcionamento do DNA no momento da multiplicação celular. Por sorte existe um controle de qualidade rigoroso, que desfaz parte dos dímeros. Já durante a replicação do DNA, algumas proteínas


montagem com foto  eduardo cesar  ilustraçãO  sírio cançado

– as enzimas de reparo – verificam se a cópia saiu de acordo com o original, como um corretor ortográfico que substitui as letras trocadas tão logo as palavras terminam de ser escritas. Outras enzimas permanecem em alerta para soldar o DNA nos pontos em que se romper. “O estudo é muito interessante e provocativo”, disse David Fisher, biólogo especializado em câncer de pele do Massachusetts General Hospital, em Boston, EUA, que não estava envolvido no trabalho, em um comentário à revista The Scientist. “Ele salienta ainda mais o que sabíamos: que a bioquímica da melanina é uma espada de dois gumes.” A melanina, o pigmento escuro da pele, pode impedir a formação dos dímeros. Pode também, como se mostrou nesse estudo, levar a um efeito oposto, induzindo a formação de dímeros de pirimidina (timina e citosina) por pelo menos três horas após a exposição direta à radiação ultravioleta do sol, desse modo reduzindo a eficácia dos mecanismos de reparo da molécula de DNA e facilitan-

do a propagação de mutações genéticas prejudiciais. Por meio de experimentos feitos em Yale e na USP, os pesquisadores verificaram que a radiação ultravioleta dispara a produção de uma série de enzimas, que vão gerar espécies reativas de oxigênio, como o superóxido e o óxido nítrico. Estes últimos se combinam e formam peroxinitrito, um composto reconhecidamente reativo, que degrada as moléculas com que interage no interior das células. A reação entre peroxinitrito e a melanina ou seus precursores gera compostos de alta energia, que é transferida para o DNA, formando os dímeros. “A radiação ultravioleta apenas inicia essas reações, que podem prosseguir por horas, mesmo depois de apenas 10 minutos de exposição das células ao ultravioleta”, diz Camila. Ela observa que a formação de compostos reativos é mais intensa com o precursor da melanina chamado feomelanina, encontrado nas células de pessoas ruivas ou loiras, do que com o eumelanina, que forma a melanina das

peles negras. Esse resultado explicaria por que as pessoas de pele clara são mais suscetíveis ao câncer de pele. Nesse experimento, os pesquisadores verificaram também que os dímeros de pirimidina formados na ausência de luz compõem cerca de 50% dos dímeros responsáveis por possíveis alterações no DNA. Esse tipo de fenômeno é chamado de fotoquímica no escuro e, enfatiza Bechara, havia sido proposto na década de 1970 por Emil White, da Universidade Johns Hopkins, e por Giuseppe Cilento, do Instituto de Química da USP. “A fotoquímica no escuro amplia as reações lesivas ao DNA iniciadas pela radiação ultravioleta”, diz ele. Segundo o pesquisador, esse tipo de reação tem sido identificado em fenômenos biológicos, mediados por compostos químicos de alta energia, em raízes de plantas e órgãos internos de animais. A ​ melanina também absorve luz visível e depois transfere parte de sua energia para m ​ oléculas de oxigênio, gerando formas altamente reativas, o chamado oxigênio singlete. O oxigênio excitado pode reagir com moléculas como o DNA e organelas (compartimentos) das células, danificando-as, conforme estudo recente de pesquisadores de São Paulo e do Paraná (ver Pesquisa FAPESP nº 227). n

Projeto Espécies excitadas tripletes em sistemas biológicos (09/02062-8); Modalidade Bolsa no País – doutorado; Pesquisador responsável Etelvino José Henriques Bechara (USP e Unifesp); Bolsista Camila Marinho Mano (IQ-USP); Investimento R$ 156.227,65 (FAPESP).

Artigo científico PREMI, S. et al. Chemiexcitation of melanin derivatives induces DNA photoproducts long after UV exposure. Science. v. 347, n. 6224, p. 842-47. 2015.

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Caetano Barreira / olhar imagem

tecnologia  Engenharia Agrícola  y

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A contribuição do campo Irrigação com água tratada de esgoto diminui a retirada dos mananciais e economiza fertilizantes Evanildo da Silveira

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Irrigação por aspersão: volume grande de gasto com água na agricultura

esde quando a crise hídrica se tornou mais grave, em meados do ano passado, tem se falado que dentre as atividades humanas a agricultura é a que mais consome água doce. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), 70% do total disponível – que já não é muito, apenas 3% da água existente no planeta – usada para irrigação. No Brasil, esse índice chega a 72%. Só na cana-de-açúcar, uma das maiores culturas do país e da qual o estado de São Paulo é responsável pela metade da produção nacional, são necessários pelo menos 1.500 litros por metro quadrado de área cultivada por ano. Diante desse quadro e da maior seca dos anos recentes que os paulistas enfrentam, e mesmo antes de esse problema aparecer de forma mais dramática, pesquisadores das três universidades estaduais desenvolvem pesquisas em busca de alternativas. A mais promissora é o uso do esgoto doméstico tratado para irrigação. Chamada de água de reúso, essa opção aumenta a produtividade da cana e traz ganhos ambientais, porque deixa de ser jogada nos rios e em outros mananciais. Um desses projetos é desenvolvido pela equipe do engenheiro agrônomo Edson Eiji Matsura,

professor da Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Nosso objetivo principal era saber como poderíamos produzir cana-de-açúcar com ajuda da irrigação de forma sustentável, considerando os aspectos econômico, ambiental e social, porque toda a sociedade ganha com a diminuição do consumo de água”, explica. O resultado indicou que a redução da utilização de água em um plantio de cana experimental foi de 50%. “O principal desafio foi utilizar água de reúso proveniente de um tratamento do esgoto doméstico da nossa própria faculdade.” Para fazer o experimento, a equipe da Unicamp armazena o esgoto da Feagri e faz três tipos de tratamento, o primeiro em reatores anaeróbicos (tanques fechados com bactérias), depois com plantas macrófitas aquáticas que possuem grandes sistemas de raízes que filtram o esgoto. Por último, o líquido passa por filtros de areia. Depois, a água residuária é transportada até a lavoura por meio de bombas e tubulações. Em seguida, ela é distribuída na plantação por tubos gotejadores, enterrados em profundidades de 20 centímetros (cm) ou 40 cm, técnica chamada pESQUISA FAPESP 229  z  65


Estação de tratamento de esgoto em Piracicaba. Quanto mais perto da lavoura, melhor o aproveitamento

de irrigação subsuperficial ou subterrânea. “É a forma mais segura de fazer a irrigação com esse material, porque evita a contaminação das pessoas e da própria planta acima do solo”, explica Matsura. “Além disso, também é a mais eficiente, porque não há perda por evaporação.”

O

experimento foi realizado com o plantio de cana numa área de meio hectare, equivalente a 5 mil metros quadrados (m2), no campo experimental da Feagri, que tem no total cerca de 10 hectares. A cultura da cana começa com um plantio, que é colhido 18 meses depois. Uma pequena parte da planta cortada é deixada na lavoura e brota. Desde então, já foram realizadas três colheitas. Numa boa plantação comercial pode haver até sete delas. Depois, a lavoura deve ser refeita, com novo plantio. Com irrigação de água residuária, Matsura espera chegar a 10. O otimismo vem da eficiência da irrigação com esgoto doméstico testado em blocos na área de cultivo da Feagri, com nove tipos de tratamento: sem irrigação, irrigação com esgoto aplicado a 20 cm de profundidade com e sem fertirrigação, quando há acréscimo de adubos químicos à água residuária, esgoto a 40 cm com e sem fertirrigação, irrigação com água de reservatório superficial (lago ou rio) a 20 cm e água de reservatório a 40 cm. Para cada um foi avaliado, entre outros parâmetros, produtividade, desenvolvimento vegetativo, trocas gasosas, diagnóstico nutricional das folhas e dos

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Esalq

colmos e fertilidade do solo na primeira e segunda colheitas”, explica Ivo Zuiton, orientando de Matsura, em sua tese de doutorado defendida na Feagri, no início de fevereiro. Entre os principais resultados do projeto está a economia em fertilizantes. A concentração de nutrientes nos efluentes permitiu a redução de até 100% na necessidade do uso de nitrogênio e fósforo na segunda colheita, e mais de 50% para o fósforo, nitrogênio e potássio na primeira em comparação com os tratamentos irrigados com a água de reservatório. Quanto à produtividade, ela chegou a mais de 200 toneladas por hectare nas parcelas irrigadas com esgoto, o dobro das sem irrigação, apenas com a água da chuva. Segundo Matsura, em todos os tratamentos irrigados a pegada hídrica, que é o volume total de água consumido direta e indiretamente no processo de produção de bens e serviços, foi inferior ao não irrigado. Isso acontece porque a irrigada gasta menos água proporcionalmente, já que produz mais cana. Assim, ao se dividir a produção pelo consumo de água, a pegada hídrica é menor na irrigada. No caso da irrigação com esgoto e fertirrigação, a redução chegou a mais de 50% em comparação com a área não irrigada. “A pegada hídrica da cana nos cultivos irrigados foi inferior à estimada nos cultivos não irrigados, com redução variando de 35,3 metros cúbicos (m³) a 23,1 m³ por tonelada para os tratamentos com esgoto e fertirrigação e águas de rios e lagos sem esse adicional de adubo”, diz Matsura. “Os resultados confirmam a proposição da irrigação por gotejamento subsuperficial em reduzir a pegada hídrica no cultivo de cana-de-açúcar.” O trabalho de Matsura é uma continuidade de uma outra pesquisa coordenada pelo professor Adolpho José Melfi, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo (USP), em Piracicaba. Os pesquisadores liderados por Melfi também testaram, entre 2005 e 2010, o uso de esgoto doméstico tratado na irrigação de cana-de-açúcar (ver Pesquisa FAPESP nº 166). Um dos principais resultados obtidos foi um aumento de 60% na produtividade da cultura. “Além disso, demonstramos que é possível, dependendo do manejo da


Etapas do tratamento Combinação de bactérias, plantas e filtros torna a água de esgoto apta para irrigação

1

reatores anaeróbicos

reservatório No experimento da Unicamp

Tanques fechados onde bactérias

foi utilizado o esgoto

consomem matéria orgânica da

da própria faculdade

água, sem consumo de oxigênio

Caixas coletoras Recebem o esgoto

3

Filtro de areia

2

Filtra as últimas partículas existentes na água.

7

antes das caixas com as macrófitas

Tratado, o esgoto é transportado e bombeado por motobombas elétricas

infográficO ana paula campos  ilustração pedro hamdan

6

5

8

4 macrófitas

Caixas de

irrigação

Plantas com denso sistema de raízes

armazenamento

A água de reúso é distribuída

que resistem a ambientes com água,

São várias, cada uma com

no campo por meio

absorvendo o excesso de nutrientes

15 mil litros, para estocar

de finos canos gotejadores

do esgoto para evitar que estes

água residuária suficiente

enterrados no solo

causem intoxicação à cana

para a irrigação Fonte  Edson Matsura e Ivo zuiton /Unicamp

irrigação, proporcionar o fornecimento completo de nitrogênio, potássio e cálcio em atendimento à necessidade da cana”, conta Melfi. “A irrigação com efluentes tratados se mostrou uma prática viável para a agricultura, do ponto de vista econômico, com a redução do uso de fertilizantes minerais, e ambiental, ao propiciar uma melhor gestão dos recursos hídricos”, diz Célia Regina Montes, pesquisadora do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da USP, que também participou do trabalho. “Outra vantagem é que em épocas de estiagem a cultura não sofreria com a falta de umidade, porque o esgoto é produzido continuamente e poderia ser utilizado.” Matsura começou a trabalhar com água de reúso em 1999. “O objetivo era estudar a utilização de água residuária tratada por meio de leitos cultivados com plantas macrófitas e seu impacto sobre o sistema solo-planta, além da irrigação por aspersão, gotejamento superficial e subterrâneo. Depois de 12 anos, no entanto, percebi que pouco tínhamos evoluído em termos de uso e de legislação adequada no emprego desse material na agricultura.” A situação começou a mudar em

2010, quando ele recebeu um convite para conhecer o projeto coordenado pelo professor Melfi, em Piracicaba. “Nesse momento compreendi a possibilidade de retomarmos os estudos anteriores e ampliarmos os conhecimentos na área, principalmente em sistemas produtivos sustentáveis”, conta. “Além disso, com a cana-de-açúcar, podíamos explorar a tecnologia existente na produção de etanol, o que facilitaria o uso de esgoto tratado por não ser alimento.”

E

m linha de pesquisa semelhante, mas com outra planta, o pesquisador Rogério Faria, da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias do campus de Jaboticabal da Universidade Estadual Paulista (Unesp), estudou o uso dos efluentes domésticos com fertirrigação no cultivo da Brachiaria brizantha, uma gramínea perene originária da África que se adaptou ao Brasil e é usada na alimentação animal. “O aumento populacional concentrado em áreas urbanas incrementa significativamente a produção de esgoto”, diz Faria. “Devido ao custo elevado dos sistemas de tratamento da água, há pESQUISA FAPESP 229  z  67


necessidade de se promover o uso do esgoto.” Por isso, segundo ele, a utilização desse material Produtividade para irrigação é uma alternativa cada vez mais com atraente. A aplicação de águas residuárias por da cana irrigação meio da fertirrigação supre as necessidades híágua de reúso dricas da cultura, irrigando e aplicando os resíduos com alta taxa de micro e macronutrientes. sem “No nosso trabalho, o efluente de esgoto tratado irrigação forneceu até 1.000 quilos por hectare (kg/ha) de água da chuva nitrogênio e até 600 kg/ha de potássio por ano, toneladas por hectare além de outros nutrientes essenciais para a forrageira”, explica. Esse suprimento corresponde às quantidades de fertilizantes minerais que o toneladas agricultor pode economizar, diminuindo o custo por hectare de produção. Constatou-se também aumento da receita bruta da cultura, uma vez que a braquiária Fonte feagri apresentou aumento de produção de forragem em cerca de 60%. ções sustentáveis para as proIrrigação com esgoto domésduções de etanol e de açúcar.” tico tratado não é a única forma de reduzir o consumo de água na Além dos ganhos econômiagricultura brasileira, principalcos, esses estudos mostram O esgoto mente no setor sucroalcooleiro. os benefícios ambientais que tratado na É o que mostra um trabalho reaas alternativas apontadas nos lizado pelos pesquisadores Fátrabalhos podem trazer. Um irrigação bio César da Silva, da Embrapa deles é a preservação dos laInformática Agropecuária, uma gos, rios e outros reservatóajuda a unidade da Empresa Brasileira de rios, além das águas subterPesquisa Agropecuária, de Camrâneas, porque o esgoto usado preservar pinas, e Alexei Barban do Patrocína irrigação deixa de ser lanlagos, rios nio, da Faculdade de Tecnologia çado nesses mananciais. “Isso do Estado de São Paulo, de Pirasignifica utilizar essas fontes e águas cicaba. Realizada em quatro usipara usos mais nobres, como nas – três de São Paulo e uma do o consumo humano e animal, subterrâneas Paraná, – a pesquisa demonstrou dado que essas águas estão fique algumas tecnologias simples cando mais escassas.” como a limpeza a seco da cana Apesar dos bons resultados para a queima da palha nas calobtidos experimentalmente deiras de alta pressão fazem o consumo de água até agora e das perspectivas que eles abrem, ainda diminuir entre 11% e 13%, em relação à lavagem há alguns obstáculos para a utilização em larga úmida usual. “Outra medida, a substituição do escala do esgoto doméstico tratado na irrigação spray (sistema de refrigeração por aspersão) pela – nenhum deles intransponível. Melfi lembra, torre de resfriamento reduziria as perdas de 5% por exemplo, que os efluentes podem conter em a 8% para 1,5% a 3%, no total do balanço hídri- sua composição metais pesados, organismos paco”, diz Silva. togênicos, alta quantidade de sódio e nitrogênio. “Tratando-se de esgotos domésticos, no entanto, om essas ações, as quatro usinas em con- os metais pesados não impedem sua utilização junto, que têm capacidade de processar na irrigação, porque os teores, quando presentes, 2.400 toneladas de cana por hora, pode- estão abaixo dos valores restritivos impostos pela riam economizar, em números absolutos, 32.895 legislação e pela Organização Mundial da Saúde m³ de água por dia. Segundo Silva, os critérios da [OMS]”, garante. Em relação aos riscos com organismos patocertificação internacional das usinas estabelecem hoje que o consumo seja inferior a 20 litros por gênicos, Melfi diz que eles podem ser minimizaquilo de açúcar produzido e 30 litros por quilo dos se forem escolhidas culturas para irrigação de etanol. “Os valores obtidos no nosso trabalho que sejam processadas industrialmente, como é demonstram que existe a possibilidade de se ob- o caso da cana-de-açúcar. Para outras culturas ter um consumo hídrico menor que 10 litros por há a possibilidade de desinfetar o esgoto tratado quilo de açúcar”, diz. “Por isso, os resultados da antes de sua utilização na irrigação com cloro, pesquisa auxiliam no desenvolvimento de solu- por exemplo. “Quanto ao sódio, no nosso projeto

200

100

C

68  z  março DE 2015


verificamos que a alta concentração deste elemento, que pode causar efeitos negativos sobre as propriedades físicas do solo, foi naturalmente reversível após períodos de chuva”, conta. “Além disso, é possível, se necessário, escolher manejos para correção do solo com a aplicação do gesso agrícola. Com relação ao nitrogênio, adequar às lâminas de irrigação, ou seja, fornecer a quantidade exata exigida pela cultura, evita, principalmente, a lixiviação de nitrato para o lençol freático.”

U

Projetos 1. Uso de efluentes de esgotos tratados por processos biológicos (lagoas de estabilização e reatores Uasb/lodos ativados) em solos agrícolas (nº 2004/14315-4); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Adolpho José Melfi (USP); Investimento R$ 1.055.509,45 e US$ 227.031,64 (FAPESP). 2. Impacto da aplicação de esgoto tratado via gotejamento subsuperficial sobre a nutrição e fisiologia da cultura da cana-de-açúcar (nº 2012/03588-6); Modalidade Bolsa de Doutorado (Ivo Zution Gonçalves); Pesquisador responsável Edson Eiji Matsura (Unicamp); Investimento R$135.512,52 (FAPESP). 3. Aplicação de esgoto tratado em sistema de irrigação subsuperficial na cultura da cana-de-açúcar (nº 2011/07301-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Edson Eiji Matsura (Unicamp); Investimento R$ 158.751,89 e US$ 65.387,10 (FAPESP). 4. Efeitos da aplicação de efluente de esgoto tratado, via fertirrigação, no solo e no cultivo de Brachiaria (nº 2012/12923-3); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Rogerio Teixeira de Faria (Unesp); Investimento R$ 67.686,75 (FAPESP).

Eduardo Cesar

Na primeira colheita de um cultivo de cana irrigada com água de reúso, a necessidade de adubação foi, no mínimo, menor em 50% em fósforo, nitrogênio e potássio

m obstáculo mais sério é a inexistência de uma legislação específica que regulamente o assunto. O que existe hoje é apenas a Resolução nº 375, de 29 de agosto de 2006, do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que trata do lodo de esgoto doméstico, que é a parte sólida, subproduto do tratamento, além da Resolução 121/2010 do Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH), que estabelece as diretrizes e os critérios para a prática de reúso direto de água não potável para as modalidades agrícola e florestal. “O Brasil tem pouca experiência com a utilização de efluentes em irrigação, por isso a legislação não é específica”, diz Faria. Ele acredita que esses estudos servem de base para a elaboração de uma legislação específica, assim como para a instalação de protótipos em cidades-teste. “O protótipo seria testado em estações de tratamento de esgoto de cidades pequenas e médias,

com até cerca de 500 mil habitantes, evitando o escoamento dessa água para os mananciais”, explica. “Em cidades médias e pequenas essa questão pode ser facilmente resolvida prevendo-se a incorporação de áreas para aplicação do efluente junto ao projeto das futuras estações de tratamento, uma vez que a área demandada é pequena.” Assim, numa cidade de cerca de 80 mil habitantes, como Jaboticabal, no interior paulista, o volume de efluentes gerado possibilitaria irrigar 240 a 320 hectares, enquanto para a vizinha Ribeirão Preto, de cerca de 600 mil habitantes, a área irrigada seria de 1.800 a 2.400 hectares. n

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Engenharia da computação y

Simulador de abordagem Equipamento para treinamento virtual de vigilantes desenvolvido por pequena empresa é vendido para a Brink’s Marcos de Oliveira

O

s simuladores eletrônicos estão presentes há muitos anos na aviação para treinamento de pilotos. Recentemente, tratores, guindastes e tanques de guerra também ganharam esse tipo de equipamento. Com o avanço nas tecnologias de reconhecimento de voz e imagem 3D, os simuladores estão agora adentrando a área de segurança no treinamento de vigilantes e policiais. De forma interativa, com projeção de imagens e som, treina-se o uso progressivo da força, em que o tiro é o último recurso, e uma boa abordagem inicial dos assaltantes é essencial. Esse sistema, que em alguns momentos mais parece um jogo eletrônico, já está disponível no país. A empresa brasileira Cientistas Desenvolvimento Tecnológico, de São Carlos, no interior paulista, em 2014 fez a primeira grande venda do equipamento com oito unidades para a Brink’s, multinacional da área de transporte de valores que opera em mais de 100 países e no Brasil tem 8 mil funcionários divididos em 63 filiais. Os dois primeiros equipamentos foram vendidos, também em 2014, para uma empresa de formação de seguranças de Belém, no Pará. Chamado de Treinamento Interativo de Segurança (TIS), o sistema é composto de software, sensor de movimento, microfones sem fio, emissores de laser, câmeras de captura de imagem, caixas de som e projetores. Equipamentos similares existem em outros países e as inovações da Cientistas, que

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depositou duas patentes no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), são relativas ao sistema de captação de voz e de reconhecimento do movimento do corpo do vigilante. “Começamos a desenvolver o TIS em 2003 com uma proposta de projeto do Pipe [Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas da FAPESP] que foi aprovada em 2002 com o valor de R$ 62 mil”, diz Antônio Valério Netto, sócio da Cientistas, que foi fundada em 2003 para executar esse projeto do Pipe. Depois, entre 2007 e 2009, a empresa recebeu mais aporte financeiro, dessa vez da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), dentro do programa Subvenção Econômica, no valor de R$ 500 mil. Formado em Ciência da Computação na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) com mestrado e doutorado na Universidade de São Paulo (USP), Valério conta que precisou de muita persistência até chegar ao produto final em 2011. “Com o avanço e barateamento tecnológico conseguimos montar o sistema. Em 2012, lançamos uma forte campanha na área de vendas focando empresas e instituições de segurança privada e pública”, diz Valério. Embora tenha agradado algumas polícias civis, guardas municipais e empresas de segurança no estado de São Paulo, as primeiras vendas vieram somente em 2014. Além dos oito já adquiridos, a Brink’s assumiu um compromisso de compra de mais dois em 2015 e dois em 2016.


tem risco. Após a conclusão, um instrutor mostra os resultados alcançados e analisa os pontos que podem melhorar e o segurança refaz o exercício. A voz do vigilante também é analisada, se forte e assertiva ela impactará no comportamento dos personagens virtuais. Da mesma forma, os movimentos do corpo do vigilante são analisados pelo sistema que reage conforme a entrada de informações. Se a simulação não ocorrer dentro dos parâmetros corretos de abordagem, o vigilante pode “virtualmente” ser atingido por um tiro.

fotos  eduardo cesar

Sistema portátil

A Brink’s já utilizava simuladores nos Estados Unidos, país-sede da empresa, Canadá, México e Chile e estudava a utilização de um equipamento adequado às suas atividades no Brasil. Foram procurados sistemas fora do país, mas esses tinham aparelhos sem integração. “O produzido aqui é um aparelho único e mais resistente, o que facilita o transporte entre as filiais, além de ter a assistência técnica no Brasil”, diz Rosana Alcine, gerente de treinamento e desenvolvimento da Brink’s. A empresa testou primeiro o sistema e depois o aprovou para compra. Em uso operacional na empresa desde abril do ano passado, o simulador já apresentou benefícios. Segundo Rosana, alguns pontos foram observados, como a melhor postura do vigilante na chamada “força de presença”. O desempenho no simulador melhorou o treinamento de tiro real, realizado fora da empresa em local adequado, e deu maior confiança ao profissional. “Em relação ao desempenho profissional de um grupo de vigilantes que analisamos, a melhora foi de 18% em relação ao acerto de tiros, além da melhora de percepção dos vigilantes”, diz Rosana. Entre as vantagens apontadas pela empresa também estão a redução no tempo no estande de tiro real, aumento da quantidade de horas de treinamento e variedade de cenários produzidos. O papel do profissional no simulador é ganhar percepção e reagir conforme as situações de ataque com foco somente em pessoas que apresen-

Suspeitos virtuais respondem conforme a abordagem. Na simulação de tiro, abaixo, laser na ponta do cano da arma

Além de um melhor treinamento para o funcionário, a empresa reduz a necessidade de deslocamento deles para o estande de tiro, diminuindo gastos em horas extras e transporte. Assim, o treinamento com o simulador é feito nas sedes da própria Brink’s e complementa o treinamento prático. Outra redução de gastos acontece na diminuição em 50% do uso de munição no tiro real. Cada disparo custa R$ 2,00. Para funcionar, o sistema, que é portátil, necessita apenas de uma sala com paredes brancas e energia elétrica. A evolução do equipamento, conta Valério, aconteceu com a leitura de vários documentos sobre segurança e a colaboração dos especialistas para quem mostrava o sistema em funcionamento. “Parti de um sistema apenas para treino de tiro para outro mais avançado e atual, que privilegia a abordagem de quem faz a segurança”, diz Valério. Ele já apresentou o equipamento, que custa em torno de R$ 70 mil, para várias guardas municipais que manifestaram interesse, contudo os governos locais alegam falta de financiamento dos governos federal e estaduais para a realização das compras. n

Projeto Sistema interativo para treinamento na área de segurança (nº 02/12914-2); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Antonio Valério Netto (Cientistas); Investimento R$ 62.789,15 (FAPESP).

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pesquisa empresarial y

Leque de inovações Opto, de São Carlos, desenvolve e produz lasers para a área médica, além de dispositivos ópticos para a defesa e câmeras para satélites Dinorah Ereno e Marcos de Oliveira

72  z  março DE 2015

C

om atuação nas áreas médica, industrial, de componentes ópticos e sistemas aeroespacial e de defesa, a Opto Eletrônica, de São Carlos, no interior paulista, nasceu em 1985 por iniciativa de pesquisadores e ex-alunos do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP). Ao longo de 30 anos a empresa desenvolveu e produziu equipamentos de lasers como leitores de códigos de barra, sensores para mísseis, aparelhos para diagnóstico e cirurgia, principalmente em oftalmologia, além de lentes e câmeras para satélites. Um portfólio tecnológico que fez a Opto atingir o faturamento de R$ 80 milhões em 2010, com 450 funcionários, dos quais 85 dedicados à pesquisa e desenvolvimento (P&D). Mas, logo em seguida, as dificuldades começaram a bater à porta da empresa. Em 2014, a Opto faturou R$ 21 milhões, ficou com 150 funcionários, sendo 22 na área de P&D, e, em dezembro, entrou em recuperação judicial, medida jurídica formal para evitar a falência, preservar os


Mário Stefani (primeiro à esquerda), diretor de P&D, e pesquisadores da sua equipe na sede da empresa em São Carlos

maior capital”, diz Gustavo. “Em média, sempre investimos entre 10% e 16% do que faturamos em P&D”, conta Stefani. A infraestrutura da empresa está dividida entre a fábrica de São Carlos, onde se concentram os projetos e produtos para as áreas médica, de defesa e espaço, e outras três, em São Paulo, Porto Alegre e Fortaleza, que produzem lentes antirreflexo, feitas com filmes finos. primeiro choque

empresa opto eletrônica

Centro de P&D São Carlos, SP

Nº de funcionários 150

Áreas de atuação Médica, industrial, componentes ópticos e sistemas aeroespacial

léo ramos

e de defesa

equipamentos, facilitar o pagamento de dívidas e reorganizar a gestão do negócio. “A redução do faturamento ocorreu por uma conjunção de fatores, sendo o principal a interrupção de programas governamentais na área de espaço e defesa”, diz Mário Stefani, diretor de pesquisa e desenvolvimento da Opto e um dos cinco sócios-fundadores que até hoje estão na empresa. Depois das câmeras para o programa Satélite Sino-brasileiro de Recursos Terrestres (Cbers 3 e 4), que já estão no espaço, nenhum outro projeto governamental teve prosseguimento. “Desenvolvemos muitos projetos e produtos para as áreas de espaço e defesa, mas infelizmente eles não foram

continuados e assim, aliado à falta de planejamento financeiro para os diversos investimentos realizados, houve um estrangulamento, em que a empresa perdeu o capital de giro necessário para a operação normal de suas atividades”, diz Gustavo Henrique Rodrigues, diretor-presidente da Opto. Ele foi contratado pelos sócios em 2012 para gerir e buscar investidores e capital para a empresa. “A dívida bancária e trabalhista da Opto é de R$ 35 milhões”, diz Rodrigues. Ele também lembra que os sócios investiram R$ 75 milhões entre 2005 e 2012 para construir uma infraestrutura de equipamentos e máquinas dentro da Opto. “Junto com os funcionários, esse é nosso

“A empresa foi criada originalmente para produzir laser de hélio-neônio, fabricado na época por poucas companhias no mundo”, relata Stefani. “A produção do laser foi o primeiro choque entre a visão acadêmica e a empresarial.” A tão esperada fila de compradores para o produto nunca apareceu e hoje ele pode ser visto no acervo do Memorial Opto, uma sala que conta a trajetória da empresa por meio da exposição de produtos que foram – ou não – bem-sucedidos comercialmente. Foi necessária uma mudança de visão e a equipe se voltou para a criação de produtos que usassem aquela tecnologia. “Logo de início o laser de hélio-neônio foi modificado para um produto que geraria uma linha-guia para o corte de chapas de metal, madeira e mármore.” Um dispositivo derivado desse laser original, para alinhamento dos trilhos de trem que transportavam minério em Carajás (PA), da Vale, também está exposto no memorial. “Participamos de uma licitação internacional para fornecer o sistema de alinhamento para a Estrada de Ferro Carajás e competimos com empresas do porte da alemã Siemens”, conta Stefani, de 53 anos, graduado em engenharia mecânica e eletrônica pela Escola de Engenharia de São Carlos da USP e com mestrado e doutorado em física na área de óptica, pelo IFSC. Por conta do peso do minério carregado pelos trens, o trilho desalinhava e aconteciam atrasos na entrega do produto aos navios no porto de Itaqui, em São Luís, no Maranhão. “Ganhamos a concorrência porque tínhamos vantagem tecnológica, e não pelo preço.” Pelas condições climáticas, com altas temperaturas e sol muito forte, o sistema da Siemens não conseguia detectar o sinal do laser. “Concebemos uma forma de processamento de sinal capaz de discernir a luz do laser da luz do sol, técnica que foi patenteada.” Entre 1988 e 1989 a empresa vendeu 16 sistemas pESQUISA FAPESP 229  z  73


1 Montagem de telescópio para identificação de alvo 2 Alinhamento de objetivas usadas em câmeras de satélites

1

para a Vale, no valor de US$ 650 mil, que garantiram o futuro da empresa do interior paulista. Em outro projeto, feito em parceria com a Itautec entre 1986 e 1989, foi desenvolvido o primeiro leitor de código de barras para supermercados do Brasil. Foi um sucesso que não resultou em ganhos financeiros. As vendas ao longo dos anos não se concretizaram como previsto. Assim que ficou pronto, o leitor foi instalado no supermercado Real de Porto Alegre (RS). No entanto, um selo de segurança com as palavras “radiação laser, cuidado”, traduzido da norma norte-americana, resultou em grande confusão e prejuízo para a empresa. Uma funcionária grávida fez uma denúncia ao Ministério do Trabalho por acreditar que a luz emitida iria prejudicar o feto – e o supermercado foi interditado. “Fomos inovadores, mas não existia ainda no Brasil a cultura de utilização do produto.” Outros horizontes foram se abrindo para a Opto. Um dos sócios-fundadores, o professor do Instituto de Física da USP Jarbas Caiado de Castro Neto, na época presidente da empresa, teve a ideia de

começar a representar algumas empresas norte-americanas de lasers para cirurgias oftalmológicas, o que se mostrou uma excelente oportunidade de negócio. E na área industrial, em decorrência do projeto da Vale, surgiram iniciativas para desenvolvimento de medidores de distância. Uma delas, um sistema de medição de distância e espessura sem contato, feito para a indústria da borracha, tema da tese de doutorado de Stefani, foi patenteada pela Opto e chamou a atenção da equipe do major-brigadeiro Hugo de Oliveira Piva, da Aeronáutica, que convidou a empresa para participar do desenvolvimento de um míssil ar-ar (armamento de aviões para serem usados contra outros aviões) para o Iraque. O projeto não foi adiante por conta da Guerra do Golfo e da invasão norte-americana naquele país no início de 1991. Em 1993, por iniciativa de Piva, uma equipe de engenheiros que estavam no Iraque fundou a empresa Mectron – e novamente a Opto foi convidada para trabalhar em outro projeto de míssil, dessa vez para a Força Aérea Brasileira (FAB). “Dessa forma, entramos no mercado da defesa do espaço aéreo trabalhando no

Instituições que formaram os pesquisadores da empresa Mário Stefani, diretor de P&D

USP graduação, mestrado e doutorado

Alessandro Damiani Mota, gerente de Projetos de Produtos Médicos

USP graduação e mestrado

Paulo Aneas Lichti, gerente de Certificações

UFSCar graduação e mestrado USP doutorado

Alexandre Soares, gerente de Projetos de Espaço

USP graduação

74  z  março DE 2015

3 Montagem de dispositivo para ativar mísseis

2

olho do míssil, um dispositivo óptico que permite ao laser enxergar o alvo pelo calor, e no sensor de proximidade do alvo.” Enquanto isso, a iniciativa de representação de empresas médicas atingiu um patamar de destaque. “Chegamos a ser o maior mercado fora dos Estados Unidos em vendas de lasers oftalmológicos”, diz Stefani. Em 1997, as estratégias da empresa tiveram que ser repensadas. Numa sexta à noite um fax recebido dos Estados Unidos cancelou a representação comercial dos brasileiros. Foi então que os sócios decidiram desenvolver seu próprio laser para a área médica. Para isso utilizaram parte do circuito da espoleta do laser usado no míssil, que mede a distância para o alvo, método patenteado pela Opto, para fazer o equipamento médico para cirurgias oftalmológicas. “Em seis meses conseguimos fabricar um equipamento a laser para cirurgias.” Foi o primeiro aparelho desenvolvido e certificado no Brasil para essa finalidade


fotos  léo ramos

3

e até hoje o modelo é fabricado pela Opto. A partir daí, a empresa começou a desenvolver equipamentos para a área médica, como microscópios, retinógrafos digitais e outros tipos de laser. “A FAPESP contribuiu muito para esses desenvolvimentos, por meio do programa Pipe [Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas]”, diz Stefani. Hoje a empresa possui um portfólio de 25 produtos na área médica, que com os acessórios chega a 100. Alessandro Damiani Mota, de 34 anos, gerente de projetos de produtos médicos que começou a trabalhar na Opto em 2005 como estagiário, já participou do desenvolvimento de quatro projetos financiados pelo Pipe. O primeiro deles tinha como objetivo o desenvolvimento de um laser verde para cirurgia de retina, iniciado em 2006 e com lançamento em 2007. “É um produto de muito sucesso ainda hoje e é o líder de vendas na área de laser da Opto”, diz. O equipamento trata sangramentos provocados pela diabetes. “O projeto resultou em uma dissertação de mestrado e know-how para a equipe em outros equipamentos”, relata Mota, engenheiro eletrônico com mestrado na área de instrumentação oftalmológica, ambos pela USP de São Carlos. A dissertação resultou em um laser amarelo, também para tratamento de retina, com apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). “Por ter comprimento de onda mais adequado, o aparelho usa uma potência menor e, com isso, o efeito térmico na região tratada é mais localizado, resultando em maior preservação de células sadias”, explica. Outro equipamento

A empresa tem um convênio com a USP que resultou em 12 teses de doutorado e 28 dissertações de mestrado

em que ele trabalhou é o laser scanner de retina. Nesse caso o laser verde é usado com um scanner que consegue selecionar até 50 pontos a serem tratados. O projeto foi encerrado em 2011 e o produto, após validação, foi colocado no mercado. Certificação europeia

Atualmente, Mota trabalha em um equipamento de LED que emite luz ultravioleta para tratamento do ceratocone, doença que deforma a córnea, em parceria com a Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara, também com financiamento do Pipe. Foi com um sistema para tratamento do ceratocone baseado na interação de luz UV com a vitamina B (riboflavina), chamado de crosslinking, que a Opto obteve a primei-

ra certificação mundial na Europa. “Conseguimos a certificação antes da concorrência”, relata Paulo Aneas Lichti, de 46 anos, gerente da área de certificações. Formado em engenharia de materiais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), onde fez o mestrado em ciência e tecnologia, Lichti começou na empresa em 1994. Inicialmente trabalhava no projeto de desenvolvimento de um sensor para míssil. Com o tempo, passou a atuar também na proteção do conhecimento gerado ao longo do processo de desenvolvimento de produtos e fez dois MBAs na Fundação Getulio Vargas (FGV) em São Paulo, um em gestão de projetos e outro em negócios. Ele ressalta ainda como conquista na sua área a viabilização da primeira certificação do Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro) no Brasil, de calibração para um equipamento laser infravermelho usado no tratamento de doenças que atacam a retina. “Não havia até aquele momento um padrão definido.” A Opto participou do desenvolvimento e fabricação de duas das quatro câmeras que compõem a carga útil do Cbers 3 e 4, desenvolvido em parceria entre o Brasil e a China. A câmera multiespectral chamada MUX e a WFI (sigla em inglês para imageador de amplo campo de visada) possuem sensores que destacam, por meio de imagens de cores distintas, as áreas de desmatamentos e recursos hídricos. Alexandre Soares, de 37 anos, formado em engenharia elétrica pela USP de São Carlos em 1999, começou a trabalhar na Opto em 2000 no projeto da espoleta do míssil e depois no desenvolvimento do retinógrafo digital. Em 2004 participou dos projetos Cbers. “Trabalhei como engenheiro do projeto, depois passei a coordenar a equipe responsável pela eletrônica e em 2010 assumi a gerência de projeto da câmera MUX.” Soares também participou, em 2009, da elaboração da proposta para o desenvolvimento do olho do míssil A-Darter, uma parceria entre o Brasil e a África do Sul. “Fizemos a câmera termal, o ‘olho’, que dá os parâmetros de guiamento para o míssil.” O projeto está em fase final de desenvolvimento. Enquanto o setor de P&D da empresa continua o trabalho de alta tecnologia e sem comparação nesse setor no país, os dirigentes da Opto buscam entre as diversas alternativas um caminho para sanar as dificuldades financeiras da empresa. n pESQUISA FAPESP 229  z  75


Biofísica y

Dois em um Dispositivo usa ultrassom e laser simultaneamente para reabilitar pacientes com artrose Yuri Vasconcelos

A

artrose, doença reumática que afeta as articulações do corpo provocando dor e limitando os movimentos, atinge cerca de 20% da população mundial. A incidência da enfermidade, conhecida nos meios médicos como osteoartrose ou osteoartrite, aumenta com a idade e estima-se que atinja 85% da população até os 64 anos, tornando-se universal após os 85. Incurável, o tratamento consiste em aliviar a dor e melhorar o padrão funcional dos pacientes, com a recuperação ou manutenção dos movimentos. A boa notícia é que um grupo de cientistas da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) desenvolveu uma nova possibilidade terapêutica para a doença, conjugando o uso simultâneo do ultrassom e do laser. Estudos clínicos experimentais com o dispositivo envolvendo cerca de 80 mulheres com artrose nas mãos e nos joelhos mostraram resultados animadores. Uma patente do aparelho, que se encontra em fase de protótipo e precisa ser aprovado pelas autoridades sanitárias do país para ser usado comercialmente, foi depositada em março de 2014 no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). 76  z  março DE 2015

Os efeitos positivos do ultrassom e do laser na reabilitação de pacientes que sofrem de artrose e outros problemas nas articulações já são bem conhecidos de médicos, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais. A novidade está na aplicação simultânea, a partir de um único aparelho, das duas técnicas. “A metodologia que desenvolvemos é pioneira e combina os efeitos mecânicos do ultrassom com os efeitos fototerapêuticos do laser. Eles produzem um efeito sinérgico de considerável amplitude, aliviando a dor e acelerando a recuperação do estado de inflamação. Com isso, a tecnologia reduz o tempo do tratamento, acelera a reabilitação física do paciente e agiliza seu retorno às atividades cotidianas”, diz o físico Vanderlei Salvador Bagnato, professor do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP) e coordenador do Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica (CePOF), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP. Bagnato explica que o ultrassom é uma forma de onda mecânica, por meio da qual a energia vibracional é transformada em energia molecular e propicia diversos efeitos terapêuticos, entre eles

o aumento da vascularização e da síntese de colágeno, além de acelerar a diminuição do processo inflamatório levando à reparação tecidual. O feixe de laser é composto por ondas eletromagnéticas que, de alguma forma, geram efeitos modulatórios e estimulantes, como alívio da dor e regeneração do tecido. “Como o ultrassom é um estímulo essencialmente mecânico, é preciso que o organismo responda a ele. Caso a região esteja muito debilitada, essa resposta é limitada. Assim, a estimulação a laser completa a ação terapêutica”, diz Bagnato, que também é coordenador da Agência USP de Inovação. “O dispositivo que nosso grupo criou, associando o laser e o ultrassom em um único equipamento, potencializa o efeito terapêutico, de maneira não invasiva e não farmacológica, o que é vantajoso nos casos de pessoas com doenças crônicas, idosos, adultos em idade produtiva ou atletas. Por essas características, pode ser associado a outros tratamentos existentes”, diz a terapeuta ocupacional Alessandra Rossi Paolillo, professora do Departamento de Terapia Ocupacional da UFSCar e integrante da equipe que desenvolveu a nova tecnologia. “Outras


Manopla com o emissor de ultrassom no centro e quatro emissores de laser. Acima, a forma de aplicação e o gabinete do aparelho

fotos  eduardo cesar

1

vantagens do sistema são a característica ergonômica e a portabilidade, o que permite sua utilização em atendimentos domiciliares ou ambulatoriais, tanto para a reabilitação física quanto para tratamentos de estética corporal.” Nas sessões terapêuticas realizadas experimentalmente com um grupo de 43 mulheres com idades ente 60 e 80 anos com artrose nas mãos, o protótipo foi aplicado em cinco pontos durante 15 minutos em cada mão, com movimentos circulares, lentos e suaves. As sessões foram realizadas uma vez por semana durante três meses. Segundo Alessandra, avaliações quantitativas e qualitativas ocorreram no período pré e pós-tratamento. “Primeiro, realizamos exames de raios X para o diagnóstico da osteoartrose. Em seguida, avaliamos a força de preensão com um dinamômetro de mão e fizemos avaliações com ajuda de um eletrogoniômetro para medir a amplitu-

de articular dos dedos simultaneamente ao uso de um acelerômetro posicionado no punho para mensurar aceleração, velocidade e quantidade de movimentos”, diz a terapeuta ocupacional. Redução do tempo

Ao final do tratamento, os pesquisadores avaliaram os limiares de dor e funcionalidade das mãos das pacientes e constataram, por meio de um teste específico, que a redução do tempo de execução da atividade “pegar objetos pequenos” caiu de cerca de 11 segundos para 8 segundos. “Isso indica que as pacientes apresentaram maior coordenação motora fina e funcionalidade pela simulação de movimentos e preensão de objetos de uso cotidiano. Também houve aumento significativo do limiar de dor para o grupo tratado com o equipamento, enquanto não houve diferenças significativas para o grupo placebo”, diz Alessandra.

Os bons resultados apresentados pelo dispositivo desenvolvido pelo grupo de pesquisadores de São Carlos, do qual também fazem parte as fisioterapeutas Jéssica Patrícia João e Fernanda Rossi Paolillo, o físico Herbert João e a aluna de graduação Daniela Frascá, do IFSC-USP, atraíram a atenção de empresas. Segundo Vanderlei Bagnato, a MM Optics, companhia sediada no polo tecnológico de São Carlos, já demonstrou interesse em fabricar o dispositivo e disponibilizá-lo para os profissionais da saúde do Brasil. “Um valor estimado para o aparelho é de R$ 10 mil reais”, diz Bagnato. Os pesquisadores estimam que, dentro de um ano, os estudos estejam finalizados e o equipamento possa estar pronto para ser colocado no mercado. n

Projeto CePOF – Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica (nº 2013/07276-1); Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisador responsável Vanderlei Bagnato (USP); Investimento R$ 8.287.218,51 e US$ 5.825.805,65 no período de 5 anos (FAPESP).

Artigo científico PAOLILLO, A. R. et al. Synergic effects of ultrasound and laser on the pain relief in women with hand osteoarthritis. Lasers in Medical Science. v. 30, p. 279-86. 2015.

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Wittgenstein por Loredano


humanidades   filosofia y

Ideias em movimento Pesquisadores estudam manuscritos da fase intermediária entre as duas obras mais conhecidas de Wittgenstein

Márcio Ferrari

S

obre o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951) não costuma haver dúvida de que foi autor de uma obra com duas fases bem distintas. O “primeiro Wittgenstein” se encontra no Tractatus logico-philosophicus, publicado em 1921, e o “segundo” é representado pelas Investigações filosóficas, publicadas postumamente em 1953. Apesar das três décadas que separam os dois momentos, “a passagem do Tractatus para as Investigações filosóficas era tratada, até o fim dos anos 1990, quase como a conversão de São Paulo ao cristianismo”, diz João Vergílio Gallerani Cuter, professor do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).

Era como se o filósofo tivesse repentinamente, sem razões muito claras, passado a produzir uma filosofia oposta à primeira. “Isso é insustentável do ponto de vista biográfico e inadequado do ponto de vista conceitual”, afirma Cuter. A abordagem começou a mudar no fim dos anos 1990 porque foi nessa época que passaram a ser publicados os manuscritos de Wittgenstein no período entre suas duas obras mais conhecidas. Esse é o material que constitui as fontes primárias utilizadas no projeto temático “Wittgenstein em transição”, coordenado por Cuter na FFLCH-USP, desde junho de 2012 e com data de conclusão prevista para o dia 31 de maio próximo. Um dos aspectos interessantes do projeto é que ele se origina de debates iniciados na própria época pESQUISA FAPESP 229  z  79


da publicação dos manuscritos, em diálogo com ma na análise dos fenômenos preconizada pela os estudos que se desenvolviam simultaneamente obra, “mas ainda era no campo privado que a linguagem deveria encontrar sua base”. Porém, em outras regiões do Brasil e no exterior. “Já temos no país uma quantidade farta e boa por volta de 1936, isso começou a cair por terra, de estudos sobre o período intermediário de Witt- e o filósofo “desenvolveu uma crítica sistemática genstein, variada e espalhada por várias regiões”, do próprio pensamento com argumentos contra a diz Bento Prado Neto, professor do Departamento possibilidade lógica de uma linguagem privada”, de Filosofia e Metodologia das Ciências do Centro devendo-se entender aqui por “linguagem privade Educação e Ciências Humanas da Universida- da” aquela cujo sentido seria logicamente inacesde Federal de São Carlos (UFSCar), que assumiu sível a qualquer outra pessoa que não o falante. a coordenação do projeto em sua última fase e vem participando dos debates com Cuter desde omo se vê, mesmo o período intermediário suas origens. O primeiro passo foi o colóquio The de Wittgenstein está longe de ser homoMiddle Wittgenstein, que propiciou a interação gêneo. O filósofo austríaco, que se mudou com pesquisadores estrangeiros e de outros esta- para a Inglaterra para ser aluno de Bertrand Rusdos, como André Porto, da Universidade Federal sell em Cambridge, doou sua parte da herança de de Goiás, e Luiz Carlos Pereira, da Universidade família, uma das mais ricas da Áustria, às irmãs, Estadual do Rio de Janeiro e da Pontifícia Uni- mais ou menos à mesma época da publicação do versidade Católica do Rio, a PUC-Rio, que coor- Tractatus. Passou então a dar aulas para crianganizaram as últimas edições do colóquio. “Era ças, renunciando à atividade filosófica. Mas, em um colóquio regular, e a transformação no projeto 1929, com 40 anos, voltou a Cambridge, onde, temático foi o resultado natural de um projeto em 1937, sucederia G. E. Moore na cátedra de já estabelecido, agora com a vantagem de uma filosofia. Renunciou à cátedra em 1947, quatro estrutura institucionalizada”, diz Prado Neto. anos antes de morrer. O projeto “Wittgenstein em Transição” se Vendo o projeto temático em retrospecto, os dois pesquisadores concordam que o ganho mais debruçou sobre os documentos do período que importante foi a possibilidade de, a partir do es- vai de 1929 até 1933, que incluem cerca de 3 mil tudo sistemático dos textos intermediários, ilu- páginas manuscritas, mais as notas das converminar aspectos da obra dos “dois” Wittgenstein. sações com o Círculo de Viena, as notas tomadas Segundo Prado Neto, tradicionalmente havia por seus alunos durante os cursos dados entre um “consenso razoável sobre os significados dos 1930 e 1933, as anotações feitas por Moore (que aforismos do Tractatus” e também sobre sua fi- serão publicadas este ano nos Estados Unidos), liação, importância no campo da lógica e origem duas conferências e a parte da correspondência das questões discutidas (encontradas em pensa- de Wittgenstein relativa ao período. “Wittgensdores como Gottlob Frege e Bertrand Russell); tein foi um filósofo no sentido tradicional da mas sobre esse consenso de base se erigiram in- palavra, e não um filósofo universitário, ocuterpretações diametralmente opostas. A diver- pado com a solução de problemas específicos gência é ainda mais acentuada nas leituras das para publicar mais um artigo”, diz Cuter. Ele acrescenta não existir, apesar disso, “nenhuma Investigações filosóficas. Diz Prado Neto que a leitura dos escritos intermediários permite colocar em novas bases o debate entre as diferentes tendências interpretativas. Quanto ao trabalho dos pesquisadores reunidos em O ganho mais importante do projeto torno dos colóquios e do projeto temátifoi a possibilidade de iluminar aspectos co nascidos na FFLCH, “conseguimos, num grupo de pessoas com formação da obra dos “dois” Wittgenstein bastante diferente, obter um mínimo de concordância que permitiu uma leitura conjunta extremamente proveitosa, sem prejuízo das diferenças de abordagem”, diz Prado pretensão de sistematização em sua filosofia, a Neto. “Em filosofia, um consenso mínimo nunca não ser no Tractatus, e mesmo assim num senimpede a variedade de interpretações; pelo con- tido muito especial”. Todo o material intermediário amplia uma trário, qualifica o debate.” Para Cuter, os textos do período intermediá- trajetória de questionamentos radicais. O imrio deixam clara a necessidade de um estudo pacto do pensamento de Wittgenstein – que ledo estatuto dos fenômenos no Tractatus logico- vou seu mestre Russell a repensar as próprias -philosophicus. Segundo ele, no início dos anos conclusões no campo da filosofia da lógica – se 1930, Wittgenstein começou a operar uma refor- deve em grande parte ao que Cuter qualifica de

C

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da ‘forma geral’ da proposição, excluindo seu ‘conteúdo’ – , a primeira obra parece reduzir a isso toda a reflexão filosófica digna desse nome e afastar temas como tempo, espaço, fenômeno etc.” Ao voltar para Cambridge em 1929, Wittgenstein irá se dedicar à “aplicação da lógica”, isto é, à análise lógica das proposições de nossa linguagem, e, a partir desse momento, o esclarecimento da linguagem, que continuava a ser o trabalho essencial da filosofia, já não poderia ser indiferente a esses conteúdos. “Essa recuperação de temas clássicos é um dos aspectos interessantes do período intermediário, na medida em que permite um confronto um pouco menos simplista da filosofia de Wittgenstein com a tradição.” Longe de esgotar – se é que isso é possível – as possibilidades de estudo e interpretação do Wittgenstein intermediário, o projeto dos pesquisadores se prolonga pela criação de um núcleo que já se incluía entre seus objetivos iniciais, com a participação, além dos pesquisadores braO filósofo austríaco sempre acreditou que os sileiros, de nomes consagrados como problemas filosóficos repousam num mau David Stern, da Universidade de Iowa, e Mathieu Marion, da Universidade de entendimento da “gramática” da linguagem Quebec. Um dos pesquisadores estrangeiros que fizeram parte desde o início dos colóquios organizados por Cuter e dição, que nada dizem; ou ainda a constatação de Prado Neto, o francês Ludovic Soutif, mudou-se que o processo de análise da suposta proposição para o Brasil – fez um pós-doutorado na USP e nos conduz a um “beco sem saída”, o que reve- hoje é professor da PUC-Rio. A rede internacional de estudos propiciou a laria que a suposta proposição de que partimos realização de quatro colóquios internacionais, era, na verdade, um contrassenso. um deles na Universidade de Bordeaux, com o período maduro, não existe mais es- aportes financeiros de agências francesas, e a se caminho único e predeterminado de publicação de um número especial da revista análise nem a noção de uma linguagem canadense Philosophiques. Um livro ainda sem ‘universal’ expressando um campo de sentido”, título escrito a oito mãos – por Cuter, Prado Nediz Cuter. “O único constrangimento lógico dado to, Marcelo Carvalho, da Universidade Federal de antemão é o caráter necessariamente público de São Paulo (Unifesp), e Mauro Engelmann, da dos critérios que utilizamos para aferir a corre- Universidade Federal de Minas Gerais – com ção ou incorreção de uma sentença.” Isso vale comentários analíticos às Philosophische Bemerpara a avaliação do sentido e do valor de verdade kungen (observações filosóficas), está prestes a das sentenças de uma linguagem e também para ser lançado pela editora da Unifesp. Um segundo qualquer coisa que envolva a noção de “regra”. O volume, exclusivamente sobre os capítulos de importante, do ponto de vista de Wittgenstein, filosofia da matemática da mesma obra, enconseria preservar a distinção entre as ocasiões em tra-se em preparação. Esse trabalho, segundo que uma regra estaria sendo seguida e aquelas Cuter, está sendo feito por jovens pesquisadores outras em que ela foi apenas aparentemente se- que possuem uma boa formação em matemátiguida. “Sempre que chamamos alguma coisa de ca e podem levar a pesquisa nessa área a bom regra, admitimos a possibilidade de alguém achar termo. “Agora, temos resultados palpáveis que que a está seguindo sem estar. É exatamente isso seriam impensáveis quando começamos a traque estaria excluído, por princípio, de um suposto balhar sozinhos, no Brasil, isolados do restante domínio estritamente privado que só eu tenho a do mundo”, diz ele. n possibilidade lógica de acessar.” “O projeto do Tractatus tem como escopo a Projeto clarificação lógica da linguagem”, diz Prado NeWittgenstein em transição (nº 2012/50005-6); Modalidade Projeto to. “Mantendo-se estritamente focado no esclaTemático; Pesquisador responsável Bento Prado de Almeida Ferraz Neto (UFSCar); Investimento R$ 100.403,46 (FAPESP). recimento da lógica – isto é, no esclarecimento “uma ambição de tratar os problemas filosóficos tradicionais em bloco”. Segundo explica o pesquisador, do começo até o fim de seu percurso filosófico, Wittgenstein sempre acreditou que os problemas filosóficos repousam num mau entendimento da “gramática” da linguagem. “Para o primeiro Wittgenstein, essa ‘gramática’ deveria ser buscada por intermédio de uma análise que nos levaria à exibição de um conjunto de proposições elementares, a partir das quais toda e qualquer proposição da linguagem poderia ser construída por meio de expedientes verifuncionais.” Sendo assim, a análise das proposições da linguagem poderia levar a três resultados: uma função de verdade usual das proposições elementares, dotada de bipolaridade e inscrita, por isso, no domínio descritivo; uma tautologia ou contra-

“N

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HISTÓRIA y

Trama ultramarina Projeto evidencia a importância da ideia profética de “esperança” nas relações entre Portugal, Holanda e Inglaterra no século XVII Juliana Sayuri

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ra o despertar de um sonho. Um sonho impulsionado pelo padre português Antônio Vieira no século XVII: a esperança profética de um “Quinto Império”, inspirada no livro bíblico de Daniel, considerado apocalíptico por tratar dos acontecimentos relacionados ao fim do mundo. Vieira acreditava que, após os domínios dos assírios, dos persas, dos gregos e dos romanos, era o momento do último reino na Terra, o Império Português. A essa trama ultramarina se dedicou o historiador Luís Filipe Silvério Lima, professor de História Moderna desde 2007 na Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), campus de Guarulhos. “No século XVII ociden-

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Alegorias e símbolos da esperança deixaram seu registro na iconografia. A gravura em papel Esperança (c. 1559-1562), de Philips Galle, a partir de um desenho de Brueghel, é uma das primeiras nas quais a âncora e o mar estão relacionados com a virtude da esperança em tempos turbulentos (225 mm × 293 mm, Rijksmuseum, Amsterdã)

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tal, principalmente europeu, o sonho era uma ideia muito poderosa para explicar o próprio mundo. Era uma metáfora do que é a vida. Diversos autores, entre dramaturgos, filósofos, políticos, padres, pintores e poetas, usavam o sonho para dar sentido à realidade”, diz Lima. Durante suas investigações, o pesquisador observou conexões entre a ideia de Quinto Império proposta por Portugal e a Quinta Monarquia idealizada na Inglaterra e partiu para um novo projeto de estudo sobre interpretações e leituras das profecias no século XVII. “Na época da elaboração do projeto, discutiam-se muito os limites metodológicos da história comparada. Eram propostas outras abordagens que permitissem pensar para além das fronteiras nacionais, como as histórias conectadas, as histórias cruzadas, emaranhadas. Assim, a partir dessas perspectivas, pretendi identificar possibilidades de conexões entre Portugal e Inglaterra nesse período, em torno das expectativas proféticas e os projetos de Quinta Monarquia que, quase simultaneamente, apareceram durante a Restauração Portuguesa e a Revolução Inglesa”, explica o historiador, autor de Padre Vieira: Sonhos proféticos, profecias oníricas. O tempo do Quinto Império nos sermões de Xavier Dormindo (Humanitas, 2004) e O império dos sonhos: Narrativas proféticas, sebastianismo e messianismo brigantino (Alameda, 2010), desdobramentos, respectivamente, de sua dissertação de mestrado e sua tese de doutorado, orientadas por José Carlos Sebe Bom Meihy e defendidas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. O rabino e o padre

Nesse contexto, Lima identificou a Holanda como espaço privilegiado para vincular Portugal e Inglaterra. “O que é marcante, por exemplo, com o papel desempenhado pelo rabino Menasseh Ben Israel, um judeu de origem portuguesa que viveu na primeira metade do século XVII”, ilustra. Menasseh era de família cristã-nova portuguesa, cristãos de origem judaica convertidos compulsoriamente ao catolicismo. Assim como muitos judeus radicados em países católicos, como Portugal e Espanha, Menasseh migrou para França e depois para a Holanda para se reconverter ao judaísmo. Ali ajudou a fundar a Talmud Torá, também conhecida como Sinagoga Portuguesa. Nos tempos 84  z  março DE 2015

Além de Esperança de Israel, outros escritos se pautaram pela esperança profética, que se traduziram em projetos políticos diferentes

dominados pelo catolicismo, Amsterdã era uma das cidades onde se podia viver “publicamente” como judeu. “Era um porto relativamente seguro para quem quisesse professar a fé judaica. Muitos cristãos-novos portugueses foram para lá, fugidos ou não da Inquisição.” O rabino Menasseh Ben Israel tornou-se uma referência para católicos e protestantes, reconhecido por seus conhecimentos bíblicos. Dialogou com outros expoentes da época, como o jesuíta Antônio Vieira, com quem certa vez teve um encontro e uma longa conversa sobre o fim do mundo, um tópico dominante nas discussões vigentes. Menasseh ainda despertou interesse de importantes círculos políticos, como os de Vasco Luís da Gama, conde de Vidigueira, depois marquês de Nisa, descendente direto do almirante português que descobriu o caminho marítimo para as Índias no século XV. Esses círculos estavam preocupados, entre outras coisas, com o papel possível dos judeus para a restauração da independência de Portugal de 1640, com a nova dinastia de dom João IV de Bragança, destacando o impacto negativo dos tribunais do Santo Ofício contra os cristãos-novos, alguns deles importantes mercadores. “A questão tinha uma dimensão religiosa e teológica, mas também política”, pondera. A partir de suas pesquisas nos arquivos de Amsterdã, Lisboa, Londres e Washington, o historiador traçou conexões que permitem compreender as inquietações religiosas e políticas no século XVII, dominadas por uma ideia principal: a esperança. Entre 1649 e 1650, Menasseh Ben Israel escreveu o pequeno tratado Miqveh Israel ou esperança de Israel, por conta do interesse de milenaristas ingleses na suposta “descoberta”, relatada pelo cristão-novo Antonio de Montesinos, de uma das 10 tribos perdidas de Israel na América espanhola, mais especificamente na Amazônia. Na interpretação das páginas bíblicas, indicaria a vinda do Messias, a instauração do Quinto Império e, assim, a iminência do fim do mundo. A “notícia” parece não ter comovido particularmente a comunidade dos judeus-portugueses na Holanda, mas mobilizou os protestantes na Inglaterra. O livro do rabino foi traduzido para o latim (Spes Israelis) e para o inglês (Hope of Israel). “A América era o novo mundo, uma terra ainda desconhecida que se ‘encaixava’ perfeitamente na profecia. Quem eram esses americanos? Eram ou não des-


cendentes de judeus? Se a Bíblia tinha todas as respostas, mas não tinha menções à América, quem eram então esses povos?”, diz o pesquisador, reverberando as questões que intrigavam os personagens daquele período. “Isso atraiu as atenções do mundo protestante, pois alguns milenaristas ingleses pensavam que também seria possível que os índios do norte da América fossem descendentes das tribos judaicas, além dos supostamente encontrados na Amazônia. Em parte devido a essas discussões, passou-se a reconsiderar a readmissão dos judeus na Inglaterra.”

L’Espérance, gravura sobre papel de Abraham Bosse (1636), publicada por Hernan Weyen (7,3 x 4,6 cm, Metropolitan). Na página ao lado, fac-símile de Esperança de Israel

Esperança

Além do tratado Esperança de Israel impresso na Holanda, outros escritos da época se pautaram pela esperança profética, que se traduziram em projetos políticos diferentes. Em Portugal, a carta Esperanças de Portugal, escrita pelo padre Antônio Vieira em 1659, consolando a rainha por conta da morte do rei dom João IV, anunciava sua ressurreição e o início do reino de Cristo na terra com o Quinto Império português. Na Inglaterra, o panfleto Door of hope, documento de autoria desconhecida divulgado em 1661, anunciava o reino dos santos para derrubar o rei Carlos II, recém-restaurado no trono inglês, conclamando um levante da Quinta Monarquia liderado pelo tanoeiro Thomas Venner. Um ponto comum desses escritos era a fonte bíblica: as visões e os sonhos do livro de Daniel sobre os cinco reinos. Segundo Lima, porém, eram diferentes interpretações, que serviram para diferentes propostas e justificativas teórico-ideológicas para intervenções políticas. “A discussão teológica tinha um rebatimento político muito forte. No fundo, a questão era: qual é o espaço da ação humana para um projeto de Deus? Qual é o cálculo político possível? Parafraseando uma narrativa de Vieira: o capitão perdeu a hora e não chegou a tempo no porto, assim o navio demorou e a frota se atrasou, assim a esquadra não chegou a tempo na Índia e não conseguiu socorrer um forte, assim se perdeu o domínio do campo, se perdeu o dinheiro e, por fim, se perdeu o império. Isto é, o império seria um projeto divino, mas a ação humana era importante para realizá-lo”, exemplifica. Nos três casos – Portugal, Inglaterra e Holanda –, a esperança era a palavra-chave. Na pesquisa iconográfica, o

historiador descobriu ainda alegorias, emblemas e símbolos para a esperança, intrinsecamente relacionados ao mar desbravado pelas navegações. Ao longo dos séculos XVI e XVII, a esperança era retratada com uma mulher e uma âncora, que simbolizariam um porto seguro e, ao mesmo tempo, uma bússola para atravessar os mares tempestuosos. “A esperança, afinal, era uma virtude que implicava a ‘espera’ de algo. Para os cristãos católicos e protestantes, era a espera pela segunda volta de Cristo, pela salvação ou pelo Juízo Final. Para os judeus, a vinda do Messias”, diz Lima. “Na bibliografia, muitas vezes os termos ‘messianismo’ e ‘milenarismo’ são usados indistintamente. Mas há diferenças”, diz o pesquisador. Por “messianismo” compreende-se a volta do Messias. “Milenarismo” refere-se à volta de Jesus Cristo para um reino de mil anos na Terra, o millenium. No século XVII, os movimentos do Quinto Império português e da Quinta Monarquia inglesa se fundamentavam nesses pensamentos proféticos. Essas diferenças entre messia-

nismo e milenarismo, no entanto, alerta o pesquisador, não são tão importantes ou operacionais para a pesquisa. A partir desse projeto de estudo, encerrado em 2014, Luís Filipe Silvério Lima desdobrou outras iniciativas. Por um lado, pretende escrever um novo livro sobre as considerações já desenvolvidas. Por outro, na Unifesp, consolidou o Grupo de Pesquisa CNPq Poder e Política na Época Moderna. O objetivo é estimular mais estudos e consolidar a área de História Moderna no campus da universidade federal. Também desse projeto saiu um colóquio em 2012 sobre messianismo no mundo ibérico, que deve resultar em um livro publicado no exterior, organizado com a professora Ana Paula Megiani, da Universidade de São Paulo (USP). n

Projeto As interpretações e leituras das profecias dos cinco reinos no século XVII (nº 09/53257-3); Modalidade Jovem Pesquisador; Pesquisador responsável Luís Filipe Silvério Lima (EFLCH-Unifesp); Investimento R$ 93.023,00 (FAPESP).

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Educação y

Compreensão conceitual Ferramenta digital revela estrutura dos textos, permitindo o aprimoramento do aprendizado

No exemplo ao lado, esta reportagem é usada para mostrar como o software Sobek extrai os conceitos principais do texto e mostra graficamente seu grau de importância e suas inter-relações

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dificuldade de expressão escrita dos estudantes é um dos pontos mais problemáticos do ensino no Brasil (embora não só aqui), como indicam numerosas avaliações nacionais e internacionais. Tendo essa questão como alvo, o professor Eliseo Reategui, da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), num projeto iniciado em 2010, criou com a ajuda de alunos uma ferramenta digital capaz de extrair automaticamente os conceitos principais de um texto e mostrar graficamente seu grau de importância e suas inter-relações. O processo é conhecido como mineração de texto. A ferramenta, disponível em português e inglês, é chamada Sobek (nome de uma divindade egípcia que simboliza força, devastação e reconstrução) e pode ser acessada gratuitamente no site da universidade (http://sobek.ufrgs.br/). Qualquer texto submetido a ela é de86  z  março DE 2015

composto em seus conceitos principais, representados por meio de um grafo – diagrama formado por nodos (os conceitos isolados em quadros) e arestas (os traços de ligação). O método é estatístico, portanto a importância dos conceitos é medida pelo número de vezes que uma mesma palavra é repetida no texto. Há filtros que descartam as palavras frequentes que, no entanto, não geram sentido isoladamente, como artigos e preposições. O modelo utilizado para a extração de conceitos foi o do algoritmo de Schenker, criado em 2003. No entanto, a Sobek apresenta uma representação simplificada que torna a leitura mais concisa e acessível. “O desenvolvimento da ferramenta teve sempre uma visão educacional e foi adaptada para o apoio à prática de leitura e escrita, mesmo que possa servir a outros usos, inclusive comerciais”, diz Reategui. “O ponto mais forte é a identificação do tema ou dos

principais temas que se encontram no texto.” Essa é a chave para a detecção de deficiências de coesão e unidade. Nesse aspecto, a Sobek cria ambientes de aprendizado úteis para analisar textos produzidos pelos alunos assim como para trabalhar com textos já existentes durante exercícios de leitura. A tarefa de avaliação e reorganização de conceitos pode ser feita pelos próprios alunos, professores ou em conjunto – possibilidades abertas pela adaptabilidade da ferramenta em diferentes momentos educacionais, desde o período de letramento (posterior à fase inicial da alfabetização) até as etapas da pós-graduação. A interação do aluno com o sistema não começa só depois da geração do grafo, mas durante o processo funcional, quando o usuário seleciona e refina a base de conceitos – ao contrário do habitual, uma professora de inglês pode, por exemplo, querer ver as preposições


A ferramenta vem sendo experimentada em várias áreas. Alunos participantes ou próximos do Centro Interdisciplinar de Novas Tecnologias em Educação (Cinprincipais ted) da UFRGS estruturaram Sobek projetos-pilotos em escolas do estado. Há registros de atividades relacionadas ao letramento e à construção conceitos diz Reategui utilização de textos, mas também como pouco recurso, por exemplo, para compreensão conceitual durante em aulas de ciências (para tempo a descrição da fotossíntese, por exemplo). “Os professoleitura UFRGS res dessas escolas se tornam escrita multiplicadores”, diz Reategui. “Não temos um acompaferramenta nhamento sistematizado do internet que é feito, mas essa é uma etapa importante ainda a ser textos exemplo realizada. Um desejo nosso entanto é criar uma comunidade de professores professores on-line para trografo ca de experiências.” processo Por estar disponível sem restrições na internet, a utilização da Sobek é igualmente irrestrita. Recentemente, um prática estudante da Espanha entrou em contato com o Cinted para apresentar uma versão que ele desenvolveu capaz de mipara avaliar o uso que seus alunos fazem tem conhecimentos. Quem aprende o faz nerar textos em idioma espanhol. E uma dessas partículas – e depois, na etapa de pelo exame e reorganização de conheci- professora moçambicana, numa atividade ajuste do grafo, por meio da eliminação e mentos diante de uma situação nova. “A voltada para a prática de narrativas com inclusão de conceitos conforme sejam ou prática da Sobek pretende não ser muito crianças das primeiras séries do ensino não relevantes, o que é feito manualmen- diretiva e baseia-se essencialmente na fundamental, teve a ideia de, em vez de te. Essa fase permite ao usuário ajustar ação reflexiva do aluno, a partir de sua trabalhar apenas com a geração de concom maior precisão a análise do texto visão e de suas experiências”, explica ceitos, usar a configuração da Sobek que busca também imagens na internet em de acordo com suas finalidades especí- Eliseo Reategui. tempo real. “A tecnologia digital faz parte ficas. “Do ponto de vista educacional, do dia a dia e é fundamental para motivar se o primeiro grafo correspondesse in- Mineração de texto tegralmente ao desejado, o processo não Segundo o pesquisador, nos Estados Uni- as crianças”, diz Reategui. “Os professores seria tão interessante”, diz Reategui. “Es- dos o uso de diagramas e outros modos precisam lançar mão de uma diversidade ses momentos de reflexão permitem ao de organização gráfica em produção tex- de estratégias, o tempo todo, para manter aluno penetrar no texto de maneira mais tual costuma concentrar-se nas fases de o interesse dos alunos.” profunda, construindo pouco a pouco a estruturação e planejamento do texto, Atualizações e aperfeiçoamentos tamrede de relações necessárias para poder durante o processo considerado como bém modificam a própria Sobek. Um estruturar a própria escrita.” pré-escrita. Isso se deve à ideia de que grupo de alunos-programadores trabaAssim se estabelece um processo es- esse é o trabalho principal e conceitual- lha permanentemente nisso. Recentetruturado e interativo que permite uma mente mais complicado da criação. Rea- mente toda a interface do ambiente foi abordagem construtivista do aprendiza- tegui entende, no entanto, que a utili- reformulada para ficar mais dinâmica e do, em conformidade com a descrição zação usual no Brasil da mineração de em pouco tempo será lançado um aplido desenvolvimento intelectual humano texto, via Sobek, é mais dinâmica, por- cativo para utilização da ferramenta em introduzida por Jean Piaget (1896-1980). que implica um “vaivém” que se traduz equipamentos móveis, mesmo não coPara o psicólogo suíço, não se transmi- em engajamento por parte dos alunos. nectados à internet. n Márcio Ferrari

ilustração daniel bueno

aluno

pESQUISA FAPESP 229  z  87


memória

Prazer em descrever O agrônomo Eurico Santos foi um divulgador da natureza brasileira durante 50 anos Carlos Fioravanti

88 | março DE 2015

E

ntre os viajantes, padres ou naturalistas que escreveram para um público amplo sobre a natureza brasileira, é difícil encontrar quem tenha sido tão profícuo, abrangente e entusiasmado quanto Eurico de Oliveira Santos. Agrônomo, nascido no Rio de Janeiro em 1883, Eurico Santos escreveu para jornais, criou quatro revistas de agronomia e publicou cerca de 50 livros sobre animais e plantas do Brasil, de 1910 até o final da década de 1960. Seu trabalho foi anterior ao de um divulgador da ciência mais conhecido, José Reis, médico carioca que escrevia inicialmente sobre doenças de aves na revista O Biológico, publicada pelo Instituto Biológico de São Paulo a partir de 1935, e depois sobre ciência em geral em jornais paulistas de grande circulação, em especial a Folha de S.Paulo. Eurico Santos, como José Reis no Biológico, expressava satisfação em apresentar a natureza ao leitor, sem abdicar da precisão. Com um horizonte mais amplo que seu sucessor, Santos escreveu textos sobre domesticação de cães – tema do primeiro livro, de 1927 –, árvores do Brasil, hortas e pomares, doenças de frutas e, na linha que mais o tornou famoso, sobre a vida e os costumes de animais brasileiros –

Esquema do corpo de um inseto (gafanhoto), acima, e marimbondo do gênero Trypoxylon


reprodução dos livros OS insetos e pássaros do Brasil (desenho de Marian Colonna)

anfíbios e répteis, peixes, moluscos, insetos, pássaros e mamíferos –, mais tarde reunidos e republicados pela editora Itatiaia. Ele sempre contava com o apoio e a ajuda de especialistas, que admiravam seu trabalho de levar o conhecimento científico a um público amplo. Por exemplo, Arthur Neiva, diretor do Instituto Biológico, é quem fez o prefácio de Pássaros do Brasil, de 1940. Santos se pôs a escrever em linguagem simples por causa da convivência com jornalistas, enquanto estudava agronomia, e da escassez de livros sobre animais brasileiros, enquanto havia muitos sobre os de outros países. Seu papel como divulgador da ciência era trazer o conhecimento dos especialistas ao grande público, de modo panorâmico. “Quem divulga para difundir a ciência entre os não especializados não precisa ser profundo e até esta qualidade da não profundidade torna-se indispensável ao divulgador. O que ele precisa em primeiro lugar é ser leve, sintético, agradável”, ele argumentou no prefácio de Moluscos. “Sua forma de escrever cativava”, comenta o ornitólogo paranaense Fernando Costa Straube, admirador da obra de Santos. “Crianças recém-alfabetizadas começaram a desenvolver o gosto pela pesquisa graças a seus livros, produzidos em linguagem clara e acessível.” Ele próprio já tinha lido Da ema ao beija-flor quando, aos 15 anos, ganhou outro livro de

Pássaros do Brasil (no sentido horário): tesoura (Muscivora tyrannus), cardeal (Paroaria coronata), canário-da-horta (Sicalis flaveola flava) e lecre (Onychorhynchus c. coronatus). Abaixo, uma formiga rainha pondo ovos

“Quelônio de construção encrencada e de aspecto hediondo. Parece alimária duma fauna fantástica, criada por um deus brincalhão” — Eurico Santos sobre o matá-matá

Eurico Santos, Pássaros do Brasil, da primeira professora de biologia no ensino médio, Zélia Arns, que era prima dele e irmã de dom Paulo Evaristo Arns e Zilda Arns. Eurico Santos escreveu intensamente para jornais durante décadas. Em um deles, O Jornal, do Rio, ele criou em 1930 – e manteve por mais de 30 anos – a seção Vida dos Campos, de acordo com o ex-professor da Universidade de São Paulo (USP) Hitoshi Nomura, um dos estudiosos de sua obra. Na década de 1950, segundo Nomura, “praticamente todos os jornais brasileiros estampavam seus artigos”, distribuídos pelo Serviço

de Informação Agrícola do Ministério da Agricultura. “Ele era de estatura baixa, prosador excelente e gourmet exigente. Foi uma satisfação trocar ideias com ele”, relatou Nomura em 2009, referindo-se ao encontro com Eurico Santos em 1959. Depois de ter sido reconhecido por diversas sociedades científicas e ganho um prêmio do presidente Juscelino Kubitschek, Eurico Santos morreu em 1968. Seu estilo de textos suaves, que qualquer um consegue entender, não pode ser esquecido, enfatiza Straube: “Autores antigos nos dão excelentes caminhos que podem e devem ser seguidos.” n PESQUISA FAPESP 229 | 89


Arte

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Tomie Ohtake Artista ajudou a definir o caráter da produção brasileira de artes plásticas da segunda metade do século XX Maria Hirszman

C

om a morte de Tomie Ohtake, no dia 12 de fevereiro, parece encerrar-se definitivamente um longo e fértil capítulo. A artista, que chegou aos 101 anos ainda produzindo e se reinventando, protagonizou alguns dos momentos mais marcantes da cena nacional, ajudando a definir o caráter da produção brasileira da segunda metade do século XX. Como bem sintetizou Paulo Herkenhoff, “Tomie é um ponto privilegiado a partir do qual podemos olhar a arte brasileira”. Em outras palavras, como discutir a força da abstração no caso brasileiro e refletir sobre o embate entre a criação lírica, gestual, e o rigor construtivo sem invocar sua obra? Seria possível estudar a importância dos fluxos migratórios e o papel da mulher na arte brasileira sem considerar sua trajetória? Faria sentido refletir 90 | março DE 2015

sobre o crescente encastelamento em torno de um mercado em expansão, mas ainda tacanho, e a necessidade de se implementar políticas públicas de democratização do acesso à arte sem considerar seu anseio por produzir obras públicas? Nascida em novembro de 1913 em Kyoto, no Japão, Tomie Nakakubo (seu nome de solteira) dizia gostar de desenhar desde criança. “Queria sair do Japão para pintar”, disse ela no filme Tomie, lançado por Tizuka Yamasaki no fim do ano passado. Naquela época, no entanto, o destino de toda jovem era o casamento. Sua chegada ao Brasil, para visitar um irmão, em 1936, foi impactante. “Tudo era amarelo, até o gosto”, relembrava ela ao descrever a paisagem que encontrou ao sair do navio. Não à toa essa cor, tão temida pelos pintores, é frequente em suas telas. A guerra e poste-

Estrutura tubular branca exposta no Instituto Tomie Ohtake: linha como elemento capaz de potencializar o espaço


fotos 1 léo ramos 2 e 3 Instituto Tomie Ohtake

riormente o casamento com o engenheiro Alberto Ohtake transformaram o que deveria ser uma rápida estadia em residência definitiva – formalizada em 1968, quando a já consagrada artista adotou a cidadania brasileira. Apenas em 1952 o antigo desejo de pintar tornou-se realidade. No início a produção era figurativa, sobretudo de paisagens. Tomie teve apenas um professor, Keisuke Sugano. Mas a vida toda mostrou-se atenta ao trabalho dos colegas, jovens e mestres. Dentre eles destaca-se o americano Mark Rothko (1903- 1970), que lhe mostrou o caminho da potência da cor. Autônoma por vocação, Tomie participou apenas de um coletivo de artistas, dentre os vários que agitavam a cena brasileira dos anos 1950: o grupo Seibi, que congregava outros destacados pintores da colônia japonesa, como Manabu Mabe e Flavio-Shiró. Apesar do forte viés abstracionista do grupo, Tomie contava que na verdade descobriu o caminho das formas não representativas ao tentar “reproduzir” detalhes de sua cozinha, transformada em ateliê. Sua transição para o abstracionismo ocorre na segunda metade dos anos 1960, período áureo do construtivismo no país. Mas Tomie jamais seguiu o caminho do rigor concretista, nem se encontrou na gestualidade fácil do tachismo. Buscando estabelecer os laços, sutis porém intensos, entre a pintora e movimentos como o

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Acima, Tomie sobre sua obra instalada (e, depois, desaparecida) na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio, em 1985. Abaixo, um dos últimos trabalhos em tela da artista

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neoconcretismo, em um dos últimos textos publicados sobre sua obra, por ocasião da mostra Tomie Ohtake – Gesto e razão geométrica, que encerrou as celebrações em torno de seu centenário, em 2013, Herkenhoff alerta para uma questão central na forma de pensar a arte de Tomie no contexto brasileiro: a necessidade de lutar “contra o reducionismo de confiná-la na rubrica de ‘artista nipo-brasileira’”. É inquestionável a afirmação – reiteradamente repetida por quem se debruçou sobre sua obra – de que sua riqueza reside exatamente em uma capacidade impressionante de conciliar forças apenas aparentemente opostas, promovendo uma rica síntese entre Oriente e Ocidente, um encontro improvável e denso entre geometria e informalismo (nas palavras de Miguel Chaia), ou uma aproximação entre intuição e empirismo (como diz Frederico Morais). Porém torna-se cada vez mais pertinente os esforços históricos e críticos de pensar seu trabalho a partir das relações com o contexto maior em que ele foi produzido. Tentar reduzi-la a um núcleo específico, isolando-a da efervescência miscigenada que marca o modernismo brasileiro, equivaleria, em última instância, a considerar Tomie exclusivamente como uma pintora de formas geométricas simples, quando na verdade ela nem é só uma pintora, nem se pode considerar a sua arte – pictórica ou não – apenas como fruto do racionalismo construtivo. Tomie foi, sim, japonesa e brasileira, da mesma forma que foi construtiva e lírica, formal e intuitiva. PESQUISA FAPESP 229 | 91


impacto

É em diálogo com a arquitetura de Oscar Niemeyer que Tomie Ohtake realizou aquela que já indicou como sendo sua obra pública preferida. Trata-se da escultura concebida em 2004 para o hall interno do Auditório Ibirapuera, composta por uma sucessão de formas sinuosas em intenso tom de vermelho, que entram em rico contraste com o rigor da arquitetura modernista. Outra peça de grande impacto foi a estrela instalada em 1985 na Lagoa Rodrigo de Freitas, que gerou polêmica no Rio de Janeiro. A obra teve um final misterioso – retirada para reparos após ter sofrido danos durante uma tempestade, a peça (20 metros de diâmetro e 17 toneladas de metal) simplesmente sumiu. Um comentário de Miguel Chaia condensa tanto a plasticidade como o destino dessa obra: “Sob suas mãos os planos descrevem curvas caprichosas e gráceis como se fossem construídos de matéria mole, como se estivessem sob a ação de uma intensa ventania”. 92 | março DE 2015

Ousada em suas intervenções urbanas, muitas vezes criticada por ter o apoio institucional que falta à grande maioria, Tomie costumava passar elegantemente por cima de polêmicas. Falava pouco, repetia as mesmas frases sucintas, vistas ora como enigmas, ora percebidas como ensinamentos, dando a entender que apontava saídas, mas não revelava tudo. Quando lhe pediam um depoimento, dizia: “Prefiro pintar”. Gostava de deixar análises e interpretações sobre seu trabalho aos muitos críticos amigos, que recebia prazerosamente, ao lado dos filhos Ruy (arquiteto, que projetou sua casa e seu instituto) e Ricardo (responsável pela coordenação da instituição agora responsável pela gestão de sua obra e memória). Impossível não ver em seus comentários a face zen, cósmica, facilmente identificável em suas obras. Preferia o silêncio, o exercício cotidiano de criar por meio de formas e cores, o embate entre controle e acaso, uma ação mental na dose certa, numa precisão sempre afinada, que poderíamos chamar de rara vocação. n

Acima, monumento à imigração japonesa na avenida 23 de Maio, em São Paulo. Abaixo, a escultura no hall interno do Auditório Ibirapuera, uma das peças preferidas da artista, em diálogo com a arquitetura de Oscar Niemeyer

fotos  léo ramos

Ela conseguiu não se ater à superfície plana, escapando da tela ou do papel para o espaço urbano, público. A investigação da linha como elemento capaz de potencializar o espaço torna-se evidente, por exemplo, numa série de esculturas em ferro tubular branco que a artista realizou nos anos 1990, exibida na 23a Bienal de São Paulo. E se faz sentir em trabalhos como o monumento em celebração ao centenário da imigração japonesa, uma estrutura gigantesca em aço vermelho, com 15 metros de altura e 100 toneladas de peso, que se insinua diante da paisagem marinha de Santos com a leveza de um desenho. Vinte anos antes, Tomie já havia participado da criação de um monumento em rememoração ao início do fluxo migratório do Japão ao Brasil, que naquela ocasião festejava 80 anos. Optou por figurar a relação entre suas duas pátrias por meio de quatro formas idênticas em concreto que remetem ao movimento do mar, o que lhes valeu o apelido de “ondas” da avenida 23 de Maio, em São Paulo. Há, ainda, uma espécie de encontro entre a sedução da cor e um tributo à concisa arquitetura moderna nesse monumento, que tem as partes internas em concreto e as faces interiores coloridas, em uma afinada composição cromática.


resenha

Samba como crônica social Ivan Vilela

É Abençoado & danado do samba Ricardo Azevedo Edusp R$ 96,00 | 784 páginas

sabido que o samba foi, e ainda é, o ritmo mais gravado no Brasil ao longo dos tempos. Contribuíram para isso o seu surgimento no Rio de Janeiro, então capital federal, e também o empenho do governo Getúlio Vargas na valorização de uma cultura urbana utilizando o rádio como artifício de difusão de suas ideologias. Soma-se a estes a permeabilidade musical desse ritmo que soube dialogar com outras músicas de origem afro-americanas como a dos Estados Unidos e com os diversos ritmos caribenhos que aportaram no Brasil no período da Segunda Grande Guerra. O livro Abençoado & danado do samba, de Ricardo Azevedo, editado pela Edusp, busca um novo recorte na leitura da música popular. Primeiramente por não desprezar a importância que a cultura popular desempenha na estruturação da música popular brasileira, fato quase nunca relevado pelos estudiosos do segmento. Segundo, por se restringir à sua área de conhecimento, a literatura, não caindo no descuido de falar sobre a música sem ter conhecimentos específicos para tal. É uma pesquisa de vulto a que resultou neste livro; um doutorado realizado na área de Análise do Discurso, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Ricardo Azevedo é profundo e honesto em suas indagações. Honesto por reconhecer, aceitar e se devotar à força de um segmento sociocultural que certamente não é o de sua origem e por dar a suas análises um tom de empirismo que acaba por autenticar o seu posicionamento junto à cultura popular. Com uma escrita clara e tom coloquial, o autor consegue estabelecer um diálogo com diversas áreas do conhecimento para criar uma nova maneira de se olhar para o samba. Trata-se de um grande estudo da cultura popular manifesto na MPB pela via do samba. Após levantar uma rápida história da música brasileira sob a visão de diversos autores, é mostrado como se deu a construção de duas diferentes percepções de mundo a partir de um pensamento escrito, chamado por ele de hegemônico, moderno e escolarizado e de um pensamento oral, nomeado consciência popular. Neste último reside, em grande parte, o repertório de samba. No cerne de suas análises impera um olhar antropológico que certamente ajuda na desconstrução

dos discursos evolucionistas e/ou deterministas feitos sobre a música popular ao longo dos anos. A partir de minuciosa análise de um vastíssimo repertório mostra como o samba constitui, em parte, uma manifestação em prol da manutenção de um modelo popular de valores e vida. Suas pesquisas acabam por identificar a permanência de conceitos recorrentes no discurso popular como a solidariedade, a religiosidade, o respeito à hierarquia, a estrutura familiar, o uso da sabedoria popular expressa por ditados e ideias perpetuadas boca a boca e a ideia de grupo, de coletividade. Pequenas adaptações da tese para o livro seriam positivas. As diversas leituras sobre a cultura popular feitas por pesquisadores como Havelock, Olson, Zumthor, Goody e Ong poderiam ser resumidas com palavras do próprio autor. Extensas notas de rodapé poderiam também ser, na medida do possível, incorporadas ao texto. O fato é que com este livro o samba cresce em importância ao olhar de todos realizando não só a função de cronista das realidades vividas por seus agentes, mas a de tornar-se, na visão de Ricardo Azevedo, um elemento de coesão e manutenção de valores que se dissipam atualmente pelas vias do consumo e de uma monocultura imposta pela mídia. E sem medo se posiciona: “O discurso do samba é popular porque consegue tratar de temas humanos complexos por meio de uma linguagem pública e acessível, de forma a gerar identificação ou pelo menos sintonia em pretos, brancos, amarelos e mestiços; pobres e ricos; universitários e analfabetos; ateus e crentes; patrões e empregados; técnicos especialistas e paus pra toda obra; professores e alunos; crianças e adultos; modernos e tradicionais, em suma, em simplesmente todas as pessoas. Desprezar ou dar-se o luxo de desconhecer as características de um discurso com tamanha envergadura e poder de penetração é inacreditável veleidade, preconceito e alienação. Certamente, em nada contribuirá nem para a compreensão da arte popular, nem da arte moderna e erudita, nem para a construção, no Brasil, de qualquer coisa que possa ser chamada de civilizada”. Ivan Vilela é professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo e autor de Cantando a própria história – música caipira e enraizamento (Edusp, 2013).

PESQUISA FAPESP 229 | 93


ficção

Terceira Guerra Mundial Luisa Gleiser

M

inha esposa disse que eu deveria voltar a estudar. Disse que iria fazer bem, eu iria me atualizar, descobrir uma paixão nova pelo trabalho. Já que eu lecionava História, por que não um mestrado na mesma área? Ela me abraçava com cheiro de shampoo promocional. Um mestrado aumentaria meu salário, ela e eu sabíamos disso. Um salário melhor talvez arranjasse todos os outros problemas. ** Minha esposa disse que qualquer ideia seria boa. O que importava mais era o projeto, eu sabia. Uma bolsa seria o ideal, ou pelo menos ajuda de custo. Resolvi estudar a Segunda Guerra Mundial, porque era do que meus alunos mais gostavam. Prestavam atenção na destruição, nos documentários, sabiam curiosidades, traziam revistas com Hitler na capa. Esse tipo de destruição sempre chamou a atenção das pessoas. ** Minha esposa disse que gostava da minha empolgação. Comemoramos mandando o Renato dormir na casa da namorada. A ausência do Renato não resolveu todos os outros problemas. Ela brincou com meu cabelo. Peguei no sono pensando em rever uma comparação que tinha feito entre Putin e Stalin na minha bibliografia. ** Minha esposa disse que eu não tinha tempo para mais nada. Era a escola e a pesquisa, a escola e a pesquisa. Ela passou a mão no meu braço. Brincou que até me perdoava por receber bolsa-auxílio, mas eu devia sair um pouco dessa rotina maçante. Ela não queria que eu reencontrasse a paixão nova? Ela me cobrou de levar o Renato no jogo do Botafogo no outro final de semana. Levei o guri ao jogo. Ele não se importou, e eu tampouco.

94 | março DE 2015

Ele passou o tempo todo enfiado no celular, e eu passei o tempo todo enfiado na ideia de uma comemoração do aniversário da queda do Muro de Berlim. Mikhail Gorbachev falou em público. Me digam quem deixa Mikhail Gorbachev falar em qualquer circunstância? Eu sabia o que isso queria dizer. ** Minha esposa disse que não lembrava quem era Mikhail Gorbachev. Era o bêbado? Mikhail Gorbachev disse que o mundo sempre estava à beira de uma nova Guerra Fria. Disse em público. Disse numa comemoração do aniversário da queda do Muro de Berlim. E minha esposa não sabia quem era Mikhail Gorbachev. Expliquei a ela minha pesquisa de novo. Palavra-chave por palavra-chave. Segunda Guerra Mundial, Getúlio, Alemanha, política externa. Sentada do outro lado da mesa, ela perguntou o que isso tinha a ver com uma catástrofe nuclear. Eu estudava Segunda Guerra Mundial e não Guerra Fria. Apesar de trabalhar num hospital, ela nem tentava saber as diferenças básicas. Não tinha feito nenhum esforço. ** Minha esposa disse que Vladmir Putin nunca diria que poderia conquistar capitais europeias em dois dias. Eu disse que Putin era um Stalin de terno. Ela disse que eu esqueci o bigode. Ouvi a risada dela vir da sala. Ela e Renato, ouvindo o comentário esportivo do rádio, concordaram que eu deveria parar de assistir televisão. Eu disse que um novo líder estava em ascensão. Não entrei na sala de estar. Eles não enxergavam a realidade. Precisei mostrar a realidade à força. ** Minha esposa disse que não queria ouvir essa história de novo.


mílias normais morriam nas primeiras quarenta e oito horas depois de um ataque nuclear russo. ** Minha esposa disse que não queria pensar nisso naquele momento. Eu disse que a gente precisava ficar junto. Ela perguntou por quê. Eu disse que gente que se prepara para a Terceira Guerra Mundial junto tem maior probabilidade de sobreviver. Ela disse que esse não era o motivo que ela estava esperando. **

** Minha esposa disse que eu não precisava comprar tudo aquilo de enlatados. Eu nem sabia o quanto se usava em casa. Organizei as latas por datas de validade. Ela implicou que a gente nunca ia comer tanto milho. Era alguma atividade da escola? Eu disse que não. Uma luz esquisita entrava por uma janela da área de serviço. O guri ouvia um desses rocks no quarto. Não tinha preparo nenhum para o mundo real, criado em um apartamento e sem nem saber nem idiomas estrangeiros nem pegar numa arma. Seria um diplomata de merda e um soldado pior ainda. Não ia saber lidar com um exército invadindo o país. E a Ucrânia ameaçou reiniciar seu programa nuclear. Minha esposa disse que a gente precisava conversar. ** Minha esposa disse que queria fazer terapia de casal. Eu disse que não tínhamos dinheiro para isso. Ela disse que alguma coisa tinha que ser feita. Ela poderia conseguir mais horas no hospital. Eu disse que a nossa sala estava despreparada. Sofás demais, esconderijos demais. Isso e a Polônia mais uma vez sem apoio dentro da Europa. Sabe como a Segunda Guerra Mundial acabou? Com uma bomba nuclear, isso mesmo.

Fabio Zimbres

** Minha esposa disse que eu estava obcecado. Disse que iria embora. Gritou comigo. Eu parei de martelar a proteção extra da janela. O que ela queria? Ela ainda cheirava ao shampoo da promoção. Ela disse que iria embora. Eu disse que seria uma a menos para proteger durante o caos nuclear. Ela disse que levaria o Renato. Eu disse que crianças sempre foram as mais fracas e só criavam problemas. Ela disse que eu estava maluco. Eu disse que maluca era ela que não via um palmo à frente dela. A história se repete, entende? Se repete. Ela disse que queria ser uma família normal. As fa-

Minha esposa ligou e deixou uma mensagem na caixa-postal. Eu não tinha pagado a pensão. Disse que teria que entrar na justiça. Eu mandei uma mensagem de texto explicando que estava deixando o maior dos bens para eles, a proteção, a comida, a água, o abrigo. Ela não me respondeu. Quando o advogado chegou à casa, não conseguiu nem abrir a porta empurrando alguns engradados de água. ** Minha esposa não disse nada durante a conversa com os advogados. O advogado dela falou, estendeu um contrato. Eu disse que contratos não importariam depois que o mundo entrasse em guerra e em colapso. Ele não sabia que os judeus enviados a Auschwitz tinham seus bens retirados deles e roubados? Por que ele achava que seria diferente? Putin só era o novo Hitler porque Putin, como Hitler, crescia sem oposição. Será que eles não viam? Eles iriam me agradecer, iriam sim. Eu poderia ter ensinado o Renato a atirar, eu disse. ** Minha esposa disse que era temporário. Eu precisava conversar com os médicos. Precisava me comportar. Contou que tinham perguntado de mim na escola e que eu precisava melhorar para poder lecionar. Eu levava jeito com história, ela disse. Eu disse que não iria me comportar, não fazia sentido. Eu disse que a Rússia era uma ameaça muito maior que o Estado Islâmico. Ninguém fazia nada a respeito? Ninguém conseguia ver? O Brasil é um país estratégico. Minha esposa levantou. Disse que voltaria no mesmo horário na semana que vem. Perguntou a alguém da minha dosagem e acenou com a cabeça. Ainda cheirava a shampoo barato, mas como se tivesse recém-entrado em um abrigo nuclear.

Luisa Gleiser é autora do romance Luzes de emergência se acenderão automaticamente (Alfaguara, 2014). Vencedora do Prêmio Sesc por duas vezes (com os livros Contos de mentira e Quiçá) e foi finalista do Prêmio Jabuti em 2012. Também foi incluída na antologia Granta: os melhores jovens escritores brasileiros.

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carreiras

Empreendedorismo

Múltiplas funções Professor da Unicamp também é sócio de empresa de biotecnologia O diretor científico e um dos sócios-fundadores da GranBio, empresa que inaugurou a primeira usina comercial de etanol de segunda geração do país, utilizando a palha da cana, é também professor do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), além de ter duas fazendas de cacau na Bahia, onde em uma delas fez experimentos científicos. Gonçalo Amarante Guimarães Pereira diz que essa trajetória não tradicional tem inspiração em seu pai, um comerciante na capital baiana. “Era um pequeno empresário que, mesmo sem o ensino fundamental completo, tinha uma visão de criar riqueza e valor”, diz Pereira. O pesquisador fez engenharia agronômica na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e, ao longo da carreira acadêmica, focou os estudos em organismos comerciais. Desde o ensino médio flertava com 96 | março DE 2015

a genética, área em que fez mestrado, na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo, e doutorado na Universidade de Düsseldorf, na Alemanha. Em 1997, foi contratado pela Unicamp, passou a coordenar o Laboratório de Genômica e Expressão e a integrar o projeto Genoma Xylella fastidiosa, bactéria que provoca doença em citros. “Foi uma revolução, começamos a trabalhar não com um gene, mas com um conjunto deles”, diz Pereira. Em 2000, por meio de um amigo, soube da vassoura-de-bruxa, uma doença fúngica que atingia de forma severa a região cacaueira da Bahia. Resolveu estudar o assunto e, ao conhecer o sul da Bahia, se interessou em comprar uma fazenda de cacau. “Vendi tudo o que eu tinha, meu casamento quase acabou, mas comprei”, diz Pereira. Ele liderou uma rede de

pesquisadores e produtores de cacau para vencer o fungo da vassoura de bruxa e usou a própria propriedade para experimentação. Em um artigo científico mostrou as bases bioquímicas da doença e começou a montar um plano de manejo quando um produtor, Edvaldo Sampaio, desenvolveu uma forma de antecipar a poda e outros procedimentos (ver em Pesquisa FAPESP nº 128). A produção de cacau melhorou e Pereira resolveu comprar outra fazenda.

Gonçalo: ter tempo significa zero de burocracia


foto  arquivo pessoal  ilustrações  daniel bueno

Gonçalo Pereira também trabalhou no estudo de doenças do eucalipto, café e desenvolvimento de leveduras. Mas foi na liderança de um projeto com a Braskem, dentro do Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite) da FAPESP, que ele sentiu a força das possibilidades em trabalhar diretamente com a iniciativa privada. Também ocorreu um reencontro. O presidente da empresa naquele momento era Bernardo Gradin, que havia sido seu colega no tempo do serviço militar na Bahia. O executivo, que é acionista do grupo Odebrecht, depois de sair da Braskem, procurou Pereira para conversar sobre biotecnologia e etanol de segunda geração. “Eu, Gradin e o Alan Hiltner [hoje vice-presidente de novos negócios da GranBio] nos reunimos e tracei um plano de como a futura empresa deveria agir no campo científico para atender seus objetivos”, diz Pereira, que foi convidado para ser sócio do empreendimento. “Foi um bom entendimento de cientista e empreendedores sentados lado a lado.” Além de cientista-chefe da empresa, Gonçalo ainda dirige a BioCelere, uma subsidiária que funciona como o centro de pesquisa em biologia sintética da GranBio. Aliado a essas responsabilidades, apenas na BioCelere comanda 23 pessoas, Pereira orienta atualmente 14 doutorandos e 7 mestrandos. Mas, como fazer para conciliar o tempo? “É muito simples, o mais importante é zero de burocracia. É preciso ter um gestor especialista nessa área, e só ter alunos excelentes que tenham a ambição de mudar o mundo”, diz. “Outra coisa, cientista não pode se envolver com finanças, não é a área dele.” n Marcos de Oliveira

tendência

Caminho profissional Jovens pesquisadores preferem carreira acadêmica a mercado

As entrevistas feitas pela analista de empreendedorismo Nathalia Dayrell Andrade na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), para a sua dissertação de mestrado “A universidade empreendedora no Brasil: uma análise das expectativas de carreira de jovens pesquisadores”, sugerem, a partir de uma amostra limitada, que a maioria dos doutorandos e pós-doutorandos não está interessada em criar a sua própria empresa e prefere dar sequência a uma trajetória acadêmica tradicional, como docente ou pesquisador. Em seu estudo de mestrado, desenvolvido no Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da universidade e defendido no ano passado, Nathalia investigou como o empreendedorismo acadêmico – que se apresenta como uma possível alternativa de carreira para recém-doutores – influencia a formação e a escolha profissional dos jovens pesquisadores. Para o estudo de caso foram selecionados cinco grupos de pesquisa das áreas de biologia, física, tecnologia da informação (dois grupos) e biotecnologia.

Foram entrevistados os 5 coordenadores dos grupos e 12 doutorandos e pós-doutorandos que trabalhavam em projetos colaborativos. Eles foram escolhidos pelo histórico de colaboração com a indústria ou de formação de empresas de base tecnológica. O projeto teve como base um estudo anterior feito pelo seu orientador, professor André Luiz Sica de Campos, que trabalha na relação entre universidade e setor industrial há mais de 15 anos, desde o seu doutorado na Universidade de Sussex, na Inglaterra. “Lá, eles concluíram que os pesquisadores envolvidos em projetos colaborativos ampliavam sua perspectiva de carreira”, relata Nathalia. “Muitos deles conseguiam ter uma carreira híbrida ao desenvolver projetos da empresa dentro da universidade ou com a criação de suas próprias empresas.” Ela ressalta que tanto na Europa como nos Estados Unidos existe uma saturação do mercado de trabalho acadêmico e por isso os jovens pesquisadores buscam o empreendedorismo como via alternativa. “No Brasil, como o ensino superior está em um momento de expansão, os doutores recém-formados estão mais interessados em continuar em uma carreira de pesquisa.” A pesquisadora ressalta também que a baixa demanda das empresas por pesquisas contribui para essa escolha. Ela cita como exemplo a entrevista feita com uma start-up que desenvolveu uma tecnologia que interessou a uma multinacional do setor aeroespacial dos Estados Unidos, mas que no Brasil não despertou atenção. n Dinorah Ereno PESQUISA FAPESP 229 | 97


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Projeto FAPESP-SCOPE Bioenergia & Sustentabilidade

SIMPÓSIO DE LANÇAMENTO DO VOLUME DE SÍNTESE

OBJETIVOS

QUANDO

• Lançamento do Volume de Síntese “SCOPE Bioenergy & Sustainability: bridging the gaps”, resultado de uma análise global sobre a expansão sustentável da bioenergia no mundo, conduzida por 136 pesquisadores de 81 instituições e 24 países

14.4.2015 10h às 17h30, na FAPESP

• Discussão dos desafios, lacunas no conhecimento e da ciência necessária para que os múltiplos benefícios da bioenergia sejam alcançados • Apresentação dos últimos desenvolvimentos ao longo de toda a cadeia de produção da bioenergia, desde o uso da terra e produção de biomassa, até as tecnologias de conversão para combustíveis líquidos, bioeletricidade, biogás e calor • Recomendações para políticas públicas, considerando-se os impactos social, econômico e ambiental, em face das mudanças climáticas, segurança energética, alimentar e dos ecossistemas na transição para a bioeconomia O relatório apresenta soluções tecnológicas e novos conhecimentos gerados em iniciativas de produção e uso da bioenergia, em vários contextos e regiões do mundo. Este é o primeiro de uma série de simpósios regionais a serem realizados no Brasil, América do Norte, Europa, África e Ásia para divulgar os resultados científicos, soluções e recomendações do relatório.

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Rua Pio XI, 1500 – Alto da Lapa 05468-901 – São Paulo, SP

PÚBLICO-ALVO Comunidade científica, representantes de governos e ONGs, indústria, agências de fomento, parceiros dos programas FAPESP de pesquisa em biodiversidade, bioenergia e mudanças climáticas,imprensa.

Mais informações www.fapesp.br/eventos/scope


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