maio de 2015 www.revistapesquisa.fapesp.br
Vegetação nativa Caatinga encolheu o equivalente à área de Portugal Acervos Imagens, documentos e jornais digitalizados aperfeiçoam trabalho de pesquisadores Literatura Estudos procuram definir parentescos culturais e estilo de Carolina de Jesus ENTREVISTA NANUZA de MENEZES A intimidade das plantas revelada pela anatomia Ilustração do supertelescópio GMT, com inauguração prevista para 2021
Universo expandido Parcerias internacionais e investimentos de R$ 200 milhões nos próximos 10 anos fortalecem a astrofísica em São Paulo
O que a ciência brasileira produz você encontra aqui
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fotolab
1mm
A orquídea discreta Foi por cacoete de biólogo que o olhar de Carlos Eduardo 2mm
de Siqueira se prendeu no ponto esbranquiçado do tronco sobre o qual crescia uma orquídea, foco de seu mestrado na Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis. Olhando de perto, viu que se tratava de um talo de 8,5 milímetros (mm) com sete flores, cada uma delas com menos de 2 mm. Convocou o colega Edlley Pessoa, da Universidade Federal de Pernambuco, e juntos descreveram a nova espécie, Campylocentrum insulare. A diminuta planta sem folhas, com poucas raízes e uma inflorescência que está entre as menores conhecidas em orquídeas, ainda não voltou a ser encontrada na natureza.
Foto enviada pelo biólogo Carlos Eduardo de Siqueira
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PESQUISA FAPESP 231 | 3
maio 231 CAPA 18 Parcerias e investimento de quase R$ 200 milhões devem impulsionar a astrofísica
ENTREVISTA 26 Nanuza de Menezes 18
Botânica ajudou a estabelecer a anatomia vegetal como área de estudo no país
Centro vai integrar áreas para avaliar e promover o bem-estar
4 | maio DE 2015
60 Física
Experimento usa redes aleatórias de cilindros de carbono para realizar operações matemáticas
62 Pecuária
40 Inovação
foto da capa fusão de foto de BABAK TAFRESHI / SCIENCE PHOTO LIBRARY (via láctea) e ilustração de Giant Magellan Telescope – GMTO Corporation (GMT)
Alteração em gene desencadeia doença autoimune em bebês durante a gestação
32 Infraestrutura
Cientistas debatem como reduzir uso de animais em testes
3 Fotolab 5 Cartas 6 On-line 7 Carta do editor 8 Dados e projetos 9 Boas práticas 12 Estratégias 14 Tecnociência 88 Memória 90 Arte 92 Ficção 94 Resenhas 97 Carreiras 99 Classificados
58 Imunologia
TECNOLOGIA
39 Experimentação
seçÕes
Machos de libélulas avaliam a própria força e a do oponente para definir estratégia de confronto
POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA Digitalização de acervos ajuda a aperfeiçoar o trabalho de pesquisadores
46
57 Etologia
42 Biocombustíveis
Comitê sugere que é possível expandir bioenergia sem gerar danos ambientais
CIÊNCIA 46 Ambiente
Imagens de satélite indicam perdas na Caatinga e no Cerrado
52 Ecologia
Modelos matemáticos reconstroem ação de animais hoje extintos na dispersão de sementes
54 Bioquímica
Bactéria Xanthomonas citri combate microrganismos competidores
Novas técnicas mapeiam a função de proteínas, carboidratos e lipídeos para obtenção de embriões bovinos melhores
68 Mineração
Nanopartículas podem ser usadas para a captura de metais
70 Pesquisa empresarial
Com corpo técnico qualificado, Bradar desenvolve radares
75 Química analítica
Aparelho portátil emprega radiação infravermelha para certificar a qualidade de produtos
HUMANIDADES
78 Literatura
Pesquisas buscam parentescos culturais de Carolina de Jesus
82 História
O papel de negociantes de Lisboa nas operações com escravos em Angola
86 História da ciência
O intercâmbio científico entre o Brasil e a Alemanha nazista
cartas
CONTATOS Site da revista No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra. No site também estão disponíveis reportagens traduzidas e as edições internacionais da revista em inglês, francês e espanhol Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação pelo e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727 – 10º andar CEP 05415-012 São Paulo, SP Assinaturas, renovação e mudança de endereço Envie um e-mail para assinaturaspesquisa@fapesp.br Ou ligue (11) 3087-4237 De segunda a sexta das 9h às 19h Para anunciar Midia Office – Júlio César Ferreira (11) 99222-4497 julinho@midiaoffice.com.br Classificados: (11) 3087-4212 publicidade@fapesp.br Edições anteriores Preço atual de capa da revista acrescido do valor de postagem. Envie e-mail para clair@fapesp.br Licenciamento de conteúdo Para adquirir os direitos de reprodução de textos e imagens de Pesquisa FAPESP ligue: (11) 3087-4212 ou mpiliadis@fapesp.br
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Etelvino Bechara
A entrevista com o professor Etelvino Bechara (edição 229) é uma aula de valorização à escola e aos educadores. Num momento em que se busca a valorização dos professores dos ciclos básico, fundamental e médio, o professor Bechara, ao recordar e citar uma professora do ginásio, nos lembra da forma mais eficiente de valorização, que é o reconhecimento. Quando esse renomado cientista retorna à sala de aula onde recebeu os ensinamentos fundamentais, ele resgata a importância da escola para a sociedade. A entrevista, que aponta a generosidade deste professor e cientista, deveria ser lida em cada sala de aula e em todas as escolas, devido ao seu elevado apelo em favor da escola. Acredito que todos nós tivemos professoras Ilza Sad em nossas trajetórias. Eu tive esta sorte e, coincidência ou não, na mesma Manhuaçu do professor Bechara. Arcilan Assireu IRN-Unifei Itajubá, MG
Água de reúso
Ainda que com características modernas e de inovação, a reportagem “A contribuição do campo” (edição 229) faz lembrar dos projetos da década de 1980 que combinavam o vinhoto (do processamento da cana para etanol) com esgoto doméstico. A acidez de um com a alcalinidade do outro tornaria a mistura praticamente inócua, com a mortandade de bactérias e outros vetores patógenos presentes no esgoto e a adequação do pH do vinhoto. A mistura poderia ser até lançada em corpos d’água – o oceano era o receptor previsto – sem maiores danos ambientais, além da carga orgânica. Assunto interessante a ser resgatado, do ponto de vista histórico da evolução da indústria sucroalcooleira em nosso país. Adilson Roberto Gonçalves
na agricultura, fornecendo água e nutrientes minerais e orgânicos às culturas, ao mesmo tempo que representa uma opção ambiental aceitável. Essa possibilidade esbarra em algumas particularidades. Em primeiro lugar, poucas cidades no país têm ETE. Quando existem, raramente estão localizadas em locais que possam favorecer sua destinação às poucas culturas recomendadas pela legislação em vigor. Em segundo lugar, a alternativa para sua incorporação aos sistemas de irrigação por gotejamento não pode ser considerada satisfatória pelas seguintes razões: a) para evitar a obstrução dos gotejadores, a água de reúso deve ser submetida a um eficiente sistema de filtragem, o que pode eliminar grande parte de seus nutrientes; b) os sistemas de irrigação por gotejamento, em geral, são mais caros que outros sistemas alternativos e, por essa razão, recomendados para culturas com maior valor econômico; c) em encontros técnico-científicos sobre este tema, chegou-se a um consenso que consiste em recomendar o sistema de irrigação por sulcos como o mais indicado para a disposição da água de reúso, como ocorre em vários países do mundo. Edmar José Scaloppi FCA/Unesp Botucatu, SP
Kits científicos
A criação de kits para o ensino de ciências (“Ciência ao alcance das mãos”, edição 228) traz à tona uma preocupação com a falta de aulas práticas laboratoriais dentro das escolas públicas. Isso vem se tornando um problema porque muitos professores não têm essa cultura de laboratório e acabam, depois de formados, despreparados para iniciar tal atividade por falta de capacitação específica. Marte Ferreira da Silva Atibaia, SP
Campinas, SP
Tem sido divulgadas (inclusive em Pesquisa FAPESP) as vantagens associadas à utilização da água proveniente das estações de tratamento de esgoto (ETE)
Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar - CEP 05415-012, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.
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on-line
Galeria de imagens Léo ramos
w w w . r e v i s ta p e s q u i s a . f a p e s p. b r
A mais vista do mês no Facebook ESTRATÉGIAS
Suporte para biotérios
50.576 visualizações 544 curtidas 224 compartilhamentos entre 20 e 24 de abril no perfil de Pesquisa FAPESP
Exclusivo no site x Pesquisadores do Laboratório de Imunologia Molecular da Universidade Rockefeller, Estados Unidos, obtiveram resultados promissores em testes com anticorpos humanos que combatem o vírus HIV, causador da Aids. Em estudo publicado na Nature, eles relatam a diminuição em até 300 vezes da carga do vírus no sangue de pessoas infectadas ao administrarem doses do anticorpo 3BNC117. Essa é a primeira vez que ele foi testado em humanos. Segundo os pesquisadores, os resultados sugerem que esse anticorpo poderia se tornar uma nova ferramenta para o tratamento de pessoas infectadas com o vírus HIV.
Rádio Sociólogo José de Souza Martins explica o fenômeno dos linchamentos no Brasil
Conheça mais sobre o trabalho de biólogos na identificação de espécies que habitam as cavernas do Brasil
Vídeos do mês
youtube.com/user/PesquisaFAPESP
Pesquisadores criam modelo de fenômeno atmosférico luminoso com bolhas de sabão e ponteira a laser
Assista ao vídeo:
x Artigos, equipamentos e manuscritos de pesquisas, entre outros materiais pessoais do professor e geneticista Bernardo Beiguelman, estarão em breve disponíveis ao público no Centro de Memória e Arquivo da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp. No dia 15 de maio será realizado no Salão Nobre da FCM um colóquio sobre o legado do geneticista, com palestras que abordarão aspectos de sua trajetória e a importância de seu acervo pessoal para a preservação da memória científica do país. 6 | maio DE 2015
Assista ao vídeo:
Dispositivo é capaz de levitar objetos usando apenas o som
carta do editor fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo Celso Lafer Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior Celso Lafer, Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, Horácio Lafer Piva, joão grandino rodas, Maria José Soares Mendes Giannini, Marilza Vieira Cunha Rudge, José de Souza Martins, Pedro Luiz Barreiros Passos, Suely Vilela Sampaio, Yoshiaki Nakano Conselho Técnico-Administrativo
Os próximos 15 anos Neldson Marcolin |
editor-chefe
Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico Joaquim J. de Camargo Engler Diretor Administrativo
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Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo Leite, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Anamaria Aranha Camargo, Carlos Eduardo Negrão, Celso Lafer, Fabio Kon, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Joaquim J. de Camargo Engler, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Lucio Angnes, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner Caradori do Amaral, Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos diretora de redação Alexandra Ozorio de Almeida editor-chefe Neldson Marcolin Editores Fabrício Marques (Política), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência); Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores especiais); Bruno de Pierro e Dinorah Ereno (Editores-assistentes) revisão Daniel Bonomo, Margô Negro arte Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos (Editora de infografia), Maria Cecilia Felli e Alvaro Felippe Jr. (Assistente) fotógrafos Eduardo Cesar, Léo Ramos Mídias eletrônicas Fabrício Marques (Coordenador) Internet Pesquisa FAPESP online Maria Guimarães (Editora) Rodrigo de Oliveira Andrade (Repórter) Rádio Pesquisa Brasil Biancamaria Binazzi (Produtora) Colaboradores Alexandre Affonso, Alexandre Teles, Alice Giraldi, Daniel Bueno, Daniel Kondo, Elisa Carareto, Evanildo da Silveira, Fabio Otubo, Francisco Bicudo, Igor Zolnerkevic, Juliana Sayuri, Liliana Laganá, Márcio Ferrari, Orlando Margarido, Patrícia Birman, Renato Moriconi, Yuri Vasconcelos É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização Para falar com a redação (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br Para anunciar Midia Office - Júlio César Ferreira (11) 99222-4497 julinho@midiaoffice.com.br Classificados: (11) 3087-4212 publicidade@fapesp.br Para assinar (11) 3087-4237 assinaturaspesquisa@fapesp.br Tiragem 43.200 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo
A
comunidade de astrofísicos de São Paulo deseja já há muito tempo aumentar a produção científica e o tamanho da pós-graduação na área, obter mais horas de observação nos principais telescópios do mundo e conseguir maior inserção e reconhecimento internacional. Embora essas aspirações venham se realizando, agora o objetivo é ir além: espera-se um salto qualitativo sem precedentes com o desenvolvimento de projetos realizados em parceria com consórcios de universidades do exterior e a participação em observatórios em construção ou expansão na América do Sul e na Europa. Para tanto, a FAPESP investirá cerca de R$ 200 milhões nos próximos 10 anos, que deverão propiciar as condições para tornar São Paulo um polo internacional de astronomia. A estratégia é unir-se aos que melhor fazem astrofísica no mundo e dividir com eles o custo de empreendimentos caros. Foi o que fizeram os pesquisadores de São Paulo ao fechar um acordo em torno de quatro grandes projetos que garantem a participação dos astrônomos em trabalhos na fronteira do conhecimento sobre os quais pouco se sabe, como, por exemplo, a natureza da matéria e da energia escuras. O Giant Magellan Telescope (GMT), de 24,5 metros – que será o maior telescópio terrestre em 2021, quando ficará pronto –, o Cherenkov Telescope Array (CTA), o Javalambre Physics of the Accelerating Universe Astrophysical Survey (J-PAS) e o Large Latin American Milimeter Array (Llama) são projetos de pesquisa ambiciosos, nos quais o Brasil entra como parceiro de vários países. Os astrofísicos paulistas representam um terço da comunidade no país e respondem por 50% da produção científica da área. Além das quatro iniciativas citadas, há várias outras, que também recebem financiamento da FAPESP e de
outras agências de fomento. Ao olhar o conjunto de projetos, é fácil ver que todos contribuirão para o avanço do setor. Uma das boas consequências de todo esse investimento é o fato de que o país estará bem aparelhado para fazer boa ciência astronômica pelos próximos 15 anos, segundo avaliam os pesquisadores. O editor especial Marcos Pivetta conta essa história a partir da página 18. Outro investimento que traz contribuições relevantes para a pesquisa científica é a multiplicação de projetos de digitalização de acervos de bibliotecas, arquivos e museus, relata o editor de Política, Fabrício Marques (página 32). O que só era possível conhecer por meio de visitas agendadas, in loco, hoje se faz com tranquilidade a distância. Não há novidade nisso – o que é novo é o resultado desse esforço. A disseminação dos acervos digitalizados facilita o trabalho do pesquisador, potencializando a qualidade da busca ou permitindo conhecer remotamente a amplitude dos documentos disponíveis. Os novos pesquisadores já estão sendo formados nesse contexto de maior acesso às informações. As facilidades da comunicação trazem também notícias pouco alvissareiras. Estudo realizado por centros de pesquisa do Brasil e da Suíça utilizando imagens de satélite indica que a Caatinga perdeu 9 milhões de hectares de vegetação nativa entre 1990 e 2010. O desmatamento está associado à agropecuária e ao uso de madeira como fonte de energia em residências e indústrias, conta o editor especial Carlos Fioravanti (página 46). Dos seis biomas brasileiros, a Caatinga está entre os que recebem menos atenção, embora sua área se estenda por 10 estados, quase todos no semiárido nordestino. Talvez esse trabalho ajude a jogar luz sobre a rica diversidade biológica da região e as transformações pelas quais tem passado. PESQUISA FAPESP 231 | 7
Dados e projetos Temáticos e Jovem Pesquisador recentes Projetos contratados em março e abril de 2015 temáticos Utilização de nanocarreadores contendo fármacos fotossensibilizantes e outros ativos aplicados a terapia celular e tratamento de patologias do sistema nervoso central Pesquisador responsável: Antonio Claudio Tedesco Instituição: FFCLRP-USP Processo: 2013/50181-1 Vigência: 01/01/2015 a 31/12/2019
Estudos com Bunyaviridae causadores de doença Pesquisador responsável: Luiz Tadeu Moraes Figueiredo Instituição: FMRP-USP Processo: 2014/02438-6 Vigência: 01/04/2015 a 31/03/2019
Rearranjos cromossômicos e sua importância na etiologia das doenças genéticas: investigação citogenômica e molecular Pesquisadora responsável: Maria Isabel de Souza Aranha Melaragno Instituição: EPM-Unifesp Processo: 2014/11572-8 Vigência: 01/05/2015 a 30/04/2019 Esfera pública e reconstrução: sobre a constituição de um paradigma reconstrutivo no campo da teoria crítica Pesquisador responsável: Marcos Severino Nobre Instituição: Cebrap Processo: 2013/50181-1 Vigência: 01/04/2015 a 31/03/2020 JOVENS PESQUISADORES Eficácia terapêutica de nanopartículas de ouro em glioblastoma multiforme ou encefalopatia séptica em camundongas Pesquisador responsável: Stephen Fernandes de Paula Rodrigues Instituição: ICB-USP Processo: 2014/05146-6
Geocronologia do Quaternário da costa sudeste e sul do Brasil Pesquisador responsável: Shigueo Watanabe Instituição: IF-USP Processo: 2014/03085-0 Vigência: 01/04/2015 a 31/03/2018
Processo: 2014/10250-7 Vigência: 01/04/2015 a 31/03/2018
Vigência: 01/03/2015 a 28/02/2019
Arsênio e arroz: monitoramento e estudos de (bio)remediação para segurança alimentar Pesquisador responsável: Bruno Lemos Batista Instituição: CCNHumanas-UFABC Processo: 2014/05151-0 Vigência: 01/03/2015 a 28/02/2019
O efeito da fragmentação sobre as funções ecológicas dos primatas Pesquisadora responsável: Laurence Marianne Vincianne Culot Instituição: IB de Rio Claro-Unesp Processo: 2014/14739-0 Vigência: 01/04/2015 a 31/03/2019
Investigação do papel da sinalização química e de mecanismos auxiliares na virulência de Salmonella enterica sorovar Typhimurium e outros enteropatógenos Pesquisador responsável: Cristiano Gallina Moreira Instituição: FCF de Araraquara-Unesp Processo: 2014/06779-2 Vigência: 01/03/2015 a 28/02/2019
Fatores antioxidantes do colostro bovino na proteção celular Pesquisadora responsável: Debora Botequio Moretti Instituição: Esalq-USP Processo: 2014/14937-7 Vigência: 01/04/2015 a 31/03/2019 Seleção de microrganismos isolados de tilápia para utilização como probiótico em peixes Pesquisadora responsável: Danielle de Carla Dias Instituição: IP/SAASP Processo: 2014/15390-1 Vigência: 01/04/2015 a 31/03/2018
Investigação da regulação epigenética em tumores sólidos pediátricos Pesquisadora responsável: Mariana Maschietto Instituição: CNPEM-MCTI
Formação de engenheiros no Brasil Graduação em engenharia no país: cursos, ingressantes e concluintes, redes pública, privada e total (2000-2013) Cursos
Ano
Pública
2000
Ingressantes
Privada
349
Total
339
688
Pública
Privada
20.909
Concluintes
Total
Pública
Privada
Total
29.071
49.980
9.233
8.401
17.634
2001
354
391
745
22.207
34.725
56.932
9.549
8.228
17.777
2002
366
443
809
22.686
41.113
63.799
10.515
9.087
19.602
2003
392
470
862
24.434
39.401
63.835
11.229
10. 3 01
21.530
2004
435
519
954
25.670
39.125
64.795
12.533
10.969
23.502
2005
446
591
1.037
25.827
45.802
71.629
12.981
13.350
26.331
2006
485
668
1.153
28.602
52.239
80.841
13.865
16.090
29.955
2007
531
753
1.284
31.184
63.228
94.412
15.269
16.420
31.689
2008
583
912
1.495
33.139
80.433
113.572
15.433
16.510
31.943
2009
733
1.180
1 .9 13
41.831
88.727
130.558
16.333
20.944
37.277
2010
864
1.366
2.230
49.342
111.97 3
161. 315
16.947
23.974
40.921 44.7 75
2011
936
1.604
2.540
51.952
147.347
199.299
18. 37 1
26.404
2012
1.038
1.7 75
2 .813
57.354
210.158
267.512
20.601
33.441
54.042
2013
1.038
2.087
3 .125
58.091
227.683
285.774
20.156
40.420
60.576
Variação 2000-2013
197%
516%
3 5 4%
178%
683%
472%
118%
381%
244%
Ingressantes e concluintes por categoria administrativa em cursos de graduação na área, 2013 Ingressantes
Concluintes 15%
4% 1%
38%
n Pública Federal n Pública Estadual n Pública Municipal
42%
n Privada sem fins lucrativos n Privada com fins lucrativos
Fonte: 2000-2012 – Dados Engenharias 1991-2012, Inep/MEC, 2014; 2013 – Microdados Censo do ES 2013, Inep/MEC
8 | maio DE 2015
24%
n Pública Federal
22%
n Pública Estadual 10%
43%
n Pública Municipal n Privada sem fins lucrativos
1%
n Privada com fins lucrativos
Boas práticas O vice-chanceler da Universidade de Sydney, Michael Spence, criou uma força-tarefa coordenada por ele próprio para rever estratégias de prevenção contra casos de má conduta acadêmica entre seus alunos de graduação. A decisão foi uma resposta a um dos maiores escândalos já registrados envolvendo fraudes nos primeiros anos de formação acadêmica. Mais de mil estudantes de 16 universidades australianas contrataram os serviços de um site, o MyMaster, que cobrava até mil dólares australianos, o equivalente a R$ 2,3 mil, para escrever trabalhos acadêmicos, relatórios ou apresentações de powerpoint e responder a testes on-line. O caso foi revelado pela rede de jornais, revistas e emissoras de rádio Fairfax Media, que teve acesso a 700 recibos de depósitos na conta bancária do MyMaster, num total de 160 mil dólares australianos só no último ano. Enquanto outras quatro universidades da Austrália – Newcastle, Macquarie, Tecnológica de Sydney e NSW – já haviam flagrado alunos usuários do serviço fraudulento com a ajuda do software antiplágio Turnitin, a Universidade de Sydney, que é a mais antiga e uma das mais respeitadas do país, mostrou-se incapaz de detectar casos. Em novembro, a Fairfax Media apresentou à universidade 40 trabalhos acadêmicos fraudulentos encomendados por seus estudantes, mas apenas cinco alunos foram identificados numa investigação interna. “Nossos processos de avaliação foram criados para minimizar a possibilidade de má conduta, mas
o advento de novas tecnologias tem criado formas inovadoras de fraude e um pequeno número de estudantes insiste em utilizá-las”, disse Spence ao jornal The Sydney Morning Herald. “Vamos considerar novos métodos de detecção de plágio e fraude e mudar processos de avaliação para reduzir o risco de que alunos sejam desonestos, a fim de fomentar uma cultura que valorize a integridade científica.” A MyMaster iniciou suas atividades em 2012 e divulgava seus serviços em banheiros de universidades e em redes sociais. Os estudantes faziam encomendas no site e informavam o conteúdo e as referências que deveriam constar no trabalho, pagando 50% do serviço. A encomenda era repassada a ghostwriters, que entregavam metade da
daniel bueno
Má conduta no início da vida acadêmica
encomenda. Se o usuário gostasse do resultado, pagava a outra metade e recebia o trabalho inteiro. O site saiu do ar depois do escândalo.
Expurgo de artigos controversos A revista Meccanica, vinculada à editora Springer, anunciou a retratação de 11 artigos científicos de autoria de Alberto Carpintieri, professor da Universidade Politécnica de Turim e ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisa em Metrologia da Itália (Inrim). A justificativa é que o processo editorial que levou à publicação dos artigos estava comprometido. A revista era editada, até o ano passado, pelo próprio Carpintieri, figura polêmica da ciência italiana. Em 2012, mais de mil cientistas assinaram uma petição pedindo o seu afastamento do comando do Inrim e a suspensão do financiamento de pesquisas sobre a fissão piezonuclear, controversa forma de geração de energia proposta pelo professor
que seria resultante da compressão de rochas, por exemplo, em terremotos. Outros pesquisadores tentaram reproduzir os experimentos do italiano que lastreavam seu achado, mas não conseguiram. Carpintieri também propusera num artigo científico de 2013 que o Sudário de Turim, pano de linho que teria sido usado como mortalha de Jesus Cristo segundo a crença católica, realmente tem mais de 2 mil anos, mas a datação do carbono 14, que o aponta como mais novo, teria sido comprometida por um terremoto ocorrido em Jerusalém no início da era cristã. Esse, aliás, foi um dos artigos que tiveram a publicação suspensa pelos editores da Meccanica. PESQUISA FAPESP 231 | 9
Prêmio Fundação Banco do Brasil de Tecnologia Social 2015 Leve para todo o país as soluções que transformaram a sua comunidade.
Ideias que mudam a realidade dos brasileiros merecem ser reconhecidas. Inscreva as iniciativas da sua comunidade que representam efetivas soluções de transformação social e compartilhe as boas práticas com todo o país.
Realização:
ANOS
R$600 mil em prêmios Inscrições até 31 de maio no site
fbb.org.br/tecnologiasocial
Tecnologia Social Fundo Rotativo Solidário no Sertão Baiano, finalista do Prêmio em 2013.
Parceria Institucional:
Patrocínio:
Multilateral Investment Fund Member of the IDB Group
Estratégias Diálogo em Buenos Aires Pesquisadores de
Marcelo Knobel, professor
São Paulo e da Argentina
da Universidade Estadual
reuniram-se em Buenos
de Campinas (Unicamp)
Aires entre 7 e 10 de
e coordenador adjunto
abril para discutir novas
de colaborações em
parcerias e intensificar
pesquisa da FAPESP.
as colaborações
No primeiro dia do evento,
científicas já em curso.
foi inaugurada no Palácio
O simpósio FAPESP Week
Pereda a exposição
Buenos Aires, organizado
Brazilian Nature,
pela FAPESP e o
dedicada à divulgação da
Consejo Nacional de
biodiversidade brasileira.
Investigaciones Científicas
Uma mesa-redonda
y Técnicas (Conicet) da
no dia 8 de abril discutiu
Argentina, apresentou
parcerias em grandes
avanços obtidos pela
projetos, como o Sirius,
astronomia que reúnem
um dos destaques foi o
ciência paulista e
a nova fonte brasileira
os dois países, como
debate sobre cooperação
portenha em áreas como
de luz síncrotron que
o projeto Llama e o
entre universidades e
astronomia, alimentos
deve entrar em operação
observatório de raios
empresas. “O rico histórico
funcionais, energia,
em 2019. Pesquisadores
cósmicos Pierre Auger
de parcerias existente
nanotecnologia,
da Argentina são os
(leia reportagem à página
entre pesquisadores da
informação quântica e
principais usuários
18). Um dos dias do
Argentina e do estado de
saúde. “Levamos a
estrangeiros da fonte
simpósio foi dedicado
São Paulo torna natural
Buenos Aires um número
atual no Laboratório
integralmente às
um aprofundamento
significativo de
Nacional de Luz Síncrotron,
humanidades, campo em
dessa antiga relação que,
pesquisadores do estado
em Campinas, em
que as colaborações
além de duradoura, é
de São Paulo, o maior
operação desde 1997.
entre pesquisadores de
bastante profícua”, disse
entre as edições da
Também foram debatidas
São Paulo e Argentina
o presidente da FAPESP,
FAPESP Week”, diz
iniciativas no campo da
são fortes. No último dia,
Celso Lafer.
1
Mesa-redonda no simpósio (acima) e inauguração da exposição Brazilian Nature, com a presença do presidente da FAPESP Celso Lafer e o embaixador do Brasil na Argentina, Everton Vieira Vargas
2
Índice de colaboração global
Laços estreitos entre Brasil e Argentina O índice de colaborações entre a Argen-
tem muito espaço para crescer”, diz Mar-
tina e o Brasil é um dos mais altos do
celo Knobel, coordenador adjunto de
mundo e segue crescendo. Era de 4,94
colaborações em pesquisa da FAPESP.
em 1997 e chegou a 5,81 em 2012 (ver
“São Paulo está a apenas duas horas de
quadro), como mostra o relatório Scien-
avião de Buenos Aires. O grau de matu-
ce and Engineering Indicators 2014 pu-
ridade da ciência dos dois países, os
blicado pela National Science Foundation
laços culturais e históricos e a proximi-
(NSF). Segundo a metodologia adotada pela NSF, valores maiores que 1 indicam
Região
Parcerias
1997*
Américas
Argentina-Brasil
4,94
5,81
México-Argentina
2,50
3,88
Canadá-EUA
1,19
1,14
EUA-Brasil
0,83
0,96
Atlântico Norte EUA-Reino Unido
0,68
0,77
0,67
0,72 0,66
EUA-Alemanha EUA-França
0,57
Noruega-Suécia
4,38
4,61
França-Alemanha
0,75
1,06
Alemanha-Reino Unido
0,70
0,98
Japão-EUA
1,00
0,86
dade da língua mostram que é possível
China-EUA
0,79
1,10
ampliar as colaborações.” O relatório da
Coreia do Sul-EUA
1,38
1,25
4,33
3,65
Europa
Pacífico Norte
Ásia/Pacífico Sul Austrália-Nova Zelândia
colaboração superior ao que seria espe-
NSF mostra que colaborações científicas
rado levando-se em conta o perfil dos
entre países latino-americanos são mais
parceiros, enquanto valores menores
intensas do que a média mundial. O ín-
que 1 revelam colaborações aquém da
dice entre a Argentina e o México foi de
expectativa. “Apesar de a cooperação
3,88 em 2012. Já entre Brasil e Estados
* Valores maiores que 1 indicam mais colaboração que o esperado; menores que 1, colaboração aquém do esperado
entre o Brasil e a Argentina ser intensa,
Unidos o índice registrou 0,96.
Fonte Science and Engineering Indicators 2014/NSF
12 | maio DE 2015
2012*
Coreia do Sul-Japão
2,20
1,93
Índia-Japão
0,78
1,06
Agência contra o ebola
Novo diretor do CNPEM
A União Africana, que
colocar em operação
congrega 54 países do
uma agência de saúde
continente, vai criar até
com atuação em
O engenheiro Carlos
julho uma agência de
todo o continente.
Américo Pacheco
combate ao vírus ebola.
“O orçamento e o quadro
deixou a reitoria do
Com sede em Adis
de funcionários são
Instituto Tecnológico
Abeba, na Etiópia, os
desproporcionais aos
de Aeronáutica (ITA),
African Centres for
objetivos da agência”,
em São José dos Campos
Disease Control and
disse Lawrence Gostin,
(SP), para assumir a
Prevention (ACDC)
professor de Saúde
direção geral do Centro
contarão com uma
Pública da Universidade
Nacional de Pesquisa
rede de laboratórios
de Georgetown, em
em Energia e Materiais
espalhados por vários
Washington. Em
países, nos moldes do
editorial, a Nature
European Centre for
classificou o projeto
Disease Prevention
como oportuno, mas de
Disease Control and
and Control (ECDC),
formato inadequado:
Prevention (CDC), que
em Estocolmo. A ACDC
“É bem-vinda a ideia
iniciou as atividades
terá um orçamento
de um centro para o
em 1946 com um
de US$ 6,9 milhões até
controle do ebola
orçamento de US$ 120
Síncrotron (LNLS), de
dezembro de 2016 e
em todo o continente.
milhões e hoje, com
Biociências (LNBio), de
11 funcionários. Segundo
Mas para que ela
15 mil funcionários, gasta
Ciência e Tecnologia
especialistas ouvidos
sobreviva e deixe de ser
US$ 7 bilhões por ano.
de Bioetanol (CTBE)
pela revista Nature,
apenas uma promessa
Mais de 10 mil pessoas
e de Nanotecnologia
as condições iniciais
são necessários mais
morreram na epidemia
(LNNano). Doutor em
do projeto estão muito
recursos”. O editorial cita
de ebola que atingiu a
Ciência Econômica pela
aquém do que seria
a estrutura do norte-
África Ocidental a partir
Universidade Estadual
necessário para
-americano Centers for
de março de 2014.
de Campinas (Unicamp),
(CNPEM), em Campinas, 3
Técnicos fazem testes para confirmar casos de ebola em laboratório na Libéria
organização social ligada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) que reúne os laboratórios nacionais de Luz
fez pós-doutorado na Universidade Columbia, nos Estados Unidos.
Programa do cérebro mergulha em crise
Américo Pacheco foi
fotos 1 e 2 heitor shimizu 3 Randal J. Schoepp 4 heidelberg university, germany
secretário-executivo O comitê executivo do
delas são procedentes.
com primatas, que
Projeto do Cérebro
Uma das críticas está
não estavam previstos
Humano (HBP, na sigla
relacionada à decisão
originalmente. O
em inglês), esforço de
da administração do
documento lança críticas
€ 1 bilhão lançado em 2013
programa de restringir
ao líder do projeto,
pela Comissão Europeia
a participação de
Henry Markram,
para impulsionar a
pesquisadores do campo
pesquisador do Swiss
pesquisa em neurociência
da neurociência cognitiva,
Federal Institute of
e computação, foi
que estuda a base
Technology, da Suíça.
dissolvido em meio a uma
biológica de processos
“Ele não é apenas
crise que deve provocar
mentais, como memória
membro de todos os
mais mudanças na
e aprendizagem. A
órgãos de tomada
iniciativa. O problema
ausência de cientistas
de decisão, execução
eclodiu no ano passado,
dessa área nas próximas
e gestão do HBP,
quando um grupo de
etapas do projeto, diz o
mas também ocupa a
100 neurocientistas
relatório, “subverte as
presidência e supervisão
acusou os dirigentes do
ambições de integrar e
dos processos
programa de má gestão
validar abordagens
administrativos. Além
e ameaçou boicotá-lo.
múltiplas para simular
disso, nomeia membros
Um comitê de avaliação
o funcionamento do
da equipe de gestão”,
foi convocado para
cérebro”. O documento
diz o relatório. O HBP
examinar as queixas
também pede que sejam
reúne 130 instituições de
e concluiu que muitas
incluídos experimentos
pesquisa de 26 países.
do MCTI entre 1999 e 2002 e secretário Simulação computacional do cérebro humano na Universidade de Heidelberg, na Alemanha
adjunto da Secretaria de Desenvolvimento Econômico do estado de São Paulo em 2007.
4
PESQUISA FAPESP 231 | 13
Tecnociência Exercício e concentração Bastam poucos minutos de atividade física intensa para uma boa melhora na concentração de crianças e adolescentes com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), problema neuropsiquiátrico que atinge até 9% das pessoas com menos de 18 anos e 4% dos adultos. 1
Correr por cinco minutos
2
foi suficiente para deixar o nível de atenção de um grupo de crianças e adolescentes com TDAH próximo ao de quem não tem o problema.
Campeãs amazônicas
Pesquisadores da Universidade de Mogi das
Nenhum ecossistema
de Campinas, e envolveu
Cruzes e da Pontifícia
da Terra estoca tanto
a participação de
Universidade Católica de
carbono como a
colaboradores de 64
São Paulo quantificaram
Amazônia. Contendo de
instituições europeias,
o impacto da atividade
duas a quatro centenas
norte-americanas e
física durante um teste
de bilhões de árvores,
sul-americanas (11 delas,
realizado com 56
a maior floresta tropical
brasileiras). Já se sabia
meninos e meninas com
do mundo armazena 17%
que, apesar da grande
idade entre 10 anos e
de todo o carbono retido
diversidade de árvores
16 anos. Quatorze
pela vegetação terrestre
amazônicas, poucas das
garotos com TDAH e
do planeta. Uma equipe
16 mil espécies dominam
14 sem realizaram uma
internacional de
a floresta: metade
prova em que tinham de
pesquisadores verificou,
das árvores da região
correr durante cinco minutos,
porém, que apenas 1%
pertence a apenas
das espécies de
227 espécies. Agora
árvores da Amazônia
os pesquisadores
concentram metade
responde por metade
analisaram dados sobre
da biomassa da floresta.
do armazenamento e da
200 mil árvores de
Sophie e seus colegas
produção desse carbono
3.458 espécies,
alertam, entretanto,
um jogo de computador.
(Nature Communications,
coletados em 530
que essa conclusão
Os participantes com
28 de abril). O estudo
locais espalhados pela
não significa que a
TDAH que haviam se
foi liderado por Sophie
Amazônia, e concluíram
diversidade amazônica
exercitado cumpriram a
Fauset, bióloga da
que a capacidade da
não seja importante para
segunda tarefa 30%
Universidade de Leeds,
floresta de produzir
garantir a sobrevivência
mais rápido do que
no Reino Unido, que
e armazenar carbono é
da floresta no longo
aqueles que só haviam
atualmente realiza
ainda mais concentrada.
prazo. Alterações no
descansado – tempo
um estágio de
Apenas 147 espécies de
clima do planeta podem
semelhante ao gasto por
pós-doutorado na
árvores, a maioria delas
levar outras espécies a
garotos sem o problema
Universidade Estadual
de grande porte,
se tornarem dominantes.
(PLoS One, 24 de março).
14 | maio DE 2015
enquanto os demais Armazenadoras: árvores de grande porte incorporam mais carbono
observavam. Em seguida, todos descansaram por cinco minutos antes de iniciar o desafio seguinte:
fotos 1 Roel Brienen 2 Maxime Réjou-Méchain 3 Felippe Pavinatto / IFSC-USP 4 célio haddad – unesp
O custo da obesidade
Circuito eletrônico impresso aplicado em sensor flexível e transparente que avalia estado de saúde da pele
A obesidade impõe
orçamento do Ministério
um custo alto à saúde
da Saúde para os
das pessoas e da
tratamentos ambulatoriais
administração pública.
e hospitalares (PLoS ONE,
Estimativas indicam que
1º de abril). Michele
as pessoas obesas – com
Lessa, Leonor Santos e
índice de massa corporal
Everton Nunes da Silva,
(IMC) superior a 30 –
da Universidade de
vivem de 2 a 10 anos a
Brasília, calcularam
Uma placa com circuito
menos do que as mais
o custo da obesidade
eletrônico impresso
magras. O problema não
a partir de um
permite analisar o
termina aí. Além de furtar
levantamento que
processo de cicatrização
São Francisco durante
anos de vida, a obesidade
pesou e mediu 188,4 mil
da pele e avaliar a
o seu pós-doutorado
consome boa parte dos
brasileiros com
necessidade de prescrição
com bolsa da FAPESP.
recursos destinados à
mais de 20 anos e de
ou não de medicamentos
O equipamento consegue
saúde. Em 2011 o sistema
dados fornecidos pelo
e o seu efeito. O
captar a mudança no
público de saúde do
sistema de informação
dispositivo é flexível e
perfil elétrico da pele
Brasil gastou US$ 269,6
em saúde do ministério.
transparente, o que
degradada (medida por
milhões com consultas,
Os casos de obesidade
facilita a sua aplicação
uma técnica chamada
cirurgias e outros
mórbida (IMC superior
no local do ferimento.
impedância) e faz um
procedimentos para
a 40) representam
O principal uso deverá
mapeamento do seu
tratar a obesidade e os
apenas 0,8% do total,
ser no atendimento a
estado de saúde.
problemas decorrentes
mas são os que saem
pacientes que ficam
A pesquisa tinha
dela. Esse valor
mais caro. Consumiram
acamados por longos
como objetivo inicial
corresponde a 1,86% do
US$ 64,2 milhões.
períodos e desenvolvem
desenvolver um sensor
úlceras de pressão.
para monitorar a
“O dispositivo permite
cicatrização de feridas
detectar feridas antes
crônicas e o efeito do uso
mesmo de aparecerem
de medicamentos.
na pele”, diz Felippe
“No decorrer do trabalho
Pavinatto, do Instituto
encontramos outro uso
de Física de São Carlos
para o sensor”, relata
da Universidade de São
Pavinatto, um dos autores
Paulo, que participou
do artigo científico que
do projeto desenvolvido
descreve o dispositivo,
na Universidade da
publicado em 17 de março
Califórnia em Berkeley e
na Nature Communications.
4
Hylodes japi: na hora de acasalar, o macho leva a fêmea para uma câmara no fundo do riacho
Cicatrização controlada
3
A perereca das nascentes As águas transparentes de riachos da
descobriu a nova espécie durante seu
ser descrito para algumas outras espécies
serra do Japi, ao lado de Jundiaí, no inte-
mestrado, feito sob a orientação de Cé-
dessa família de anfíbios”, conta Sá. O
rior paulista, acabam de revelar uma nova
lio Haddad, na Universidade Estadual
nome científico da perereca é uma ho-
espécie de perereca: a Hylodes japi, que
Paulista (Unesp) em Rio Claro (Herpeto-
menagem ao único lugar onde foi acha-
tem um comportamento reprodutivo
logica, março de 2015). Tempos antes,
da: uma floresta preservada por um
bastante peculiar. Quando um macho
o próprio Haddad já tinha encontrado
parque estadual. O local está sob a amea-
atrai uma parceira, ele a conduz para a
animais dessa espécie, mas os identifi-
ça constante de cidades populosas da
câmara que escavou na areia do fundo
cando como sendo de outra, semelhan-
vizinhança – o parque está no município
do riacho, em meio às pedras, com uma
te. A identificação não é a única novida-
de Jundiaí e a cerca de 60 quilômetros
entrada estreita por onde o casal entra
de. “Além de ser bastante raro de ser
do centro de São Paulo. Em tupi, japi
(um de cada vez) para fertilizar os ovos
observado, esse comportamento repro-
significa nascentes, justamente os hábi-
e depositá-los. O biólogo Fábio de Sá
dutivo só era conhecido para peixes até
tats naturais da nova espécie.
PESQUISA FAPESP 231 | 15
Biodiesel de moringa O óleo das sementes
apresentou uma
da Moringa oleifera,
estabilidade oxidativa
árvore originária da Índia
superior à da maioria dos
e comum no Nordeste
combustíveis produzidos
do Brasil, pode ser
no país. A estabilidade
usado na produção de
oxidativa refere-se ao
biodiesel, e o extrato
período em que ele
de suas folhas, na
consegue manter
produção de aditivos
certas propriedades
antioxidantes que
antes de se degradar.
retardam a degradação
Essa reação química,
química do combustível.
chamada de oxidação,
A conclusão é de
leva à produção de
pesquisadores da
compostos que podem
biodiesel feitas de soja,
Universidade Federal
corroer as peças do
milho, canola e girassol.
de Uberlândia (UFU),
motor e obstruir o
Com isso aumentou a
Minas Gerais. Em um
sistema de injeção.
estabilidade oxidativa
estudo publicado na
Assim, quanto mais um
desses combustíveis.
Os smartphones estão
revista Fuel de 15 de
combustível demora
“Nossos resultados
se transformando em
abril, eles produziram
para oxidar, melhor
evidenciam o potencial
plataforma para uma
biodiesel de moringa
a sua qualidade
antioxidante do extrato
série de atividades.
com propriedades
e eficiência. No estudo,
das folhas da M. oleifera
A mais recente é a
físico-químicas dentro
os pesquisadores
como aditivo para
possibilidade de utilizar
das especificações dos
adicionaram um
biodiesel”, diz o químico
qualquer desses aparelhos
órgãos regulatórios.
extrato da folha da
Rodrigo Muñoz, autor
em um microscópio
O biodiesel de moringa
árvore a amostras de
principal do estudo.
de fluorescência para
1
Extrato das folhas da Moringa oleifera serve como aditivo antioxidante
Microscópio no celular
fazer o escaneamento de DNA. Ele será destinado ao uso em locais remotos para
Dinheiro com pó
diagnóstico de diferentes tipos de câncer e doenças
A maior parte das notas de real que cir-
neurológicas, além de
culam na capital e em outros 10 municí-
detectar resistência
pios do Rio de Janeiro apresenta vestígios
a medicamentos contra
de cocaína, indica uma análise realizada
doenças infecciosas.
por pesquisadores da Universidade Fe-
Para isso, será preciso
deral Fluminense. O químico Wagner
acoplar ao celular um kit
Pacheco e sua equipe mediram a con-
com uma pequena lente,
centração do entorpecente em 144 no-
filtros e laser. A novidade
tas de real de diferentes valores obtidas
é de pesquisadores
em diversos pontos comerciais das 11
liderados por Aydogan
cidades e constataram que, em média,
mente a contaminação pelo entorpecen-
Ozcan, da Universidade
86% das notas continham níveis detec-
te (Forensic Science International, feve-
da Califórnia, em Los
táveis da droga. As notas que apresen-
reiro de 2015). Pacheco e sua equipe
Angeles (Ucla). Para uso
tavam traços de cocaína com mais fre-
acreditam que a espectrofluorimetria,
do microscópio é preciso
quência foram as de menor valor: R$ 2,
técnica usada por eles para medir a con-
isolar e etiquetar o DNA
R$ 5 e R$ 10. Embora a presença da
centração de cocaína nas cédulas de
desejado e marcá-lo com
cocaína no dinheiro fosse amplamente
dinheiro, talvez possa ter uma validade
fluorescência. Esse
disseminada, sua concentração pratica-
forense: ajudar a identificar se uma pes-
procedimento é possível
mente não variou nas notas coletadas
soa manipulou ou não cocaína. Notas
mesmo em ambientes
em diferentes regiões. A explicação,
apreendidas pela polícia fluminense com
com recursos limitados.
segundo os pesquisadores, é a alta cir-
traficantes e usuários da droga apresen-
A informação digitalizada
culação do dinheiro, em especial das
tavam concentrações de coca cerca de
é enviada pela internet
notas de menor valor, dissemina rapida-
30 vezes mais elevadas.
do celular para análise em laboratório.
16 | maio DE 2015
Galáxias moribundas As imensas galáxias conhecidas como vermelhas e mortas, por causa da coloração
2
predominante das
Velhas e quase mortas: galáxias gigantes ricas em estrelas vermelhas cessam a produção estelar a partir do centro
Borracha de dente-de-leão
estrelas muito antigas
quantidade enorme
breve recuperação
que as compõem,
de estrelas em seu
de fôlego para essas
parecem não estar tão
miolo. Aos poucos, a
galáxias. A fusão de
mortas assim. Sandro
produção foi transferida
galáxias menores gera
Tacchella, do Instituto
para zonas cada vez
uma onda de choque
de Astronomia de
mais periféricas – um
que se espalha feito
(Taraxacum kok-saghyz),
Zurique, na Suíça, e
processo que, estima-se,
um tsunami e leva à
planta rústica comum
seus colaboradores
deve levar bilhões de
produção de uma nova
em regiões de clima
analisaram imagens
anos (Science, 17 de
geração de estrelas
temperado e subtropical,
de 22 dessas galáxias
abril). Em outro trabalho,
(Monthly Notices of the
produz um complexo
e viram que essas
o grupo de Andra Stroe,
Royal Astronomical
de proteínas que
gigantes vermelhas não
do Observatório de
Society, 23 de abril).
desempenha um
se tornaram inativas.
Leiden, na Holanda,
É possível, porém, que
papel-chave na produção
Na realidade, elas
e David Sobral, que
a imensa quantidade
da borracha natural.
continuam a gerar
além de Leiden é da
de gás liberada nesse
Pesquisadores da
estrelas, mas em
Universidade de Lisboa,
processo deixe a galáxia
Universidade de Münster,
outras regiões. Quando
em Portugal, identificou
exaurida e, portanto,
do Instituto Fraunhofer
jovens, essas galáxias
um fenômeno que
ainda mais vermelha
de Biologia Molecular e
originavam uma
pode representar uma
e moribunda.
Ecologia Aplicada (IME)
O dente-de-leão russo
e da Universidade Técnica de Munique, todos na Alemanha,
Conexões flexíveis
em colaboração com a
fotos 1 J. M. Garg / wikicommons 2 eso 3 ALEX BOTTIGLIO / Universidade de Purdue ilustraçãO daniel bueno
empresa TRM, de York, no Pesquisadores da
Após a impressão,
Reino Unido, descobriram
Universidade de Purdue,
o solvente evapora,
dois componentes para
em West Lafayette,
deixando apenas as
o processo de biossíntese
nos Estados Unidos,
partículas, que são
da borracha de dente-de-
desenvolveram um novo
reagrupadas e
-leão, o que poderá levar
método para facilitar a
transformadas em
ao desenvolvimento
produção em larga
material condutor,
biotecnológico do produto
escala de condutores
conforme estudo
com diversas aplicações
elétricos flexíveis e
publicado na revista
médicas e industriais.
elásticos impressos a
Advanced Materials
Uma das proteínas
jato de tinta. A técnica
em 18 de abril. Segundo
identificadas funciona
consiste na dispersão
os pesquisadores, os
como ativador do
de metal líquido em um
condutores feitos de
processo de produção da
solvente não metálico,
metal líquido podem ser
borracha. Os resultados
como o etanol.
esticados e deformados
do estudo foram
Esse processo, segundo
sem que se quebrem,
os pesquisadores,
de modo que o método
quebra a substância em
pode permitir a
minúsculas partículas
impressão em materiais
a deslocamentos em
que, revestidas
elásticos e em tecidos.
espaços reduzidos onde
com óxido de gálio,
Se o projeto avançar,
precisem se esticar para
conseguem passar sem
a técnica poderá ser
alcançar um objetivo.
problema pelo bocal
usada para a produção
O circuito impresso em
que confere à borracha
do jato de tinta da
de pequenos robôs
roupas elásticas poderá
as propriedades de
impressora.
maleáveis destinados
ter uso terapêutico.
elasticidade e resistência.
publicados na edição 3
Circuitos eletrônicos impressos em material elástico podem ser esticados
on-line de 27 de abril da revista Nature Plants. Outra proteína identificada é responsável pela formação de cadeias longas de um polímero
PESQUISA FAPESP 231 | 17
capa
Havaí
A era das grandes observações Parcerias internacionais e investimento de quase R$ 200 milhões nos próximos 10 anos devem impulsionar a astrofísica de São Paulo
A
comunidade astrofísica paulista, que reúne um terço dos pesquisadores e metade da produção científica nacional da área, prepara-se para dar um salto qualitativo daqui até meados da próxima década. Acordos recentes fechados com quatro grandes projetos internacionais garantiram a participação de pesquisadores de São Paulo em empreitadas de ponta da ciência mundial, cuja ambição é responder a algumas das questões mais fundamentais que levam os astrônomos a esquadrinhar os céus com seus telescópios, satélites e sondas, como o enigma da vida extraterreste e a natureza da matéria escura e da energia escura, os dois principais constituintes do Universo sobre os quais quase nada se sabe. Até 2024, a FAPESP terá destinado quase R$ 200 milhões a esses projetos, sem contar os investimentos em outras iniciativas da área de astrofísica. No campo das observações nas frequências da luz visível e do infravermelho, uma das iniciativas com vocação para expandir o olhar humano sobre o Cosmo é o Giant Magellan Telescope (GMT), de 24,5 metros (m), que se tornará o maior telescópio terrestre, quando for inaugurado, provavelmente em 2021, antes de seus concorrentes de maior 18 | maio DE 2015
porte. Por meio de um acordo de US$ 40 milhões entre a Fundação e o consórcio internacional responsável pelo gerenciamento da construção do supertelescópio, os astrofísicos de universidades e instituições de São Paulo terão direito a 4% do tempo de observação do GMT. “Com esse acordo, estamos garantindo o futuro da astrofísica no país e a ciência que estaremos fazendo em 2030”, diz o astrofísico João Steiner, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), idealizador e coordenador do projeto que alinhavou a entrada no GMT (ver reportagem sobre o supertelescópio à página 20). Especialidade ainda não muito desenvolvida no país, a radioastronomia deverá ganhar um impulso com o Grande Arranjo Milimétrico Latino-americano, iniciativa de pesquisadores paulistas e argentinos mais conhecida por sua sigla em inglês, Llama, uma bem-humorada referência a um dos membros da fauna típica dos Andes, onde, a 4.800 m de altitude, será instalada no primeiro semestre do próximo ano uma antena de 12 m de diâmetro. “Nosso radiotelescópio de Itapetinga, em Atibaia, está defasado e o Llama, muito mais sensível, será importante para os radioastrônomos”, diz Jacques Lépine, do IAG-USP, coorde-
foto ESO / B. Tafreshi infográfico ana paula campos
Marcos Pivetta
Telescópios em atividade Gemini
Tempo de observação
Espanha
O acesso do país a telescópios internacionais e os novos projetos
Dois telescópios ópticos gêmeos de 8,1 m. Um fica no Havaí, outro no Chile. O Brasil tem 6,2% do tempo de uso total de ambos
CFHT Novos projetos
Até 16 noites por ano é o tempo de observação de que
GMT
os brasileiros dispõem no
Deverá ficar pronto em 2021, no
telescópio de 3,6 m,
Chile. Com 24,5 m, será o primeiro
localizado no Havaí
dos supertelescópios ópticos a entrar em atividade e produzirá imagens 10 vezes mais nítidas que as do Hubble.
Eso Brasil
A entrada do Brasil no ESO
Astrofísicos de São Paulo terão
espera aprovação no Senado.
4% de seu tempo de observação.
Mas os europeus dizem que
A FAPESP investe US$ 40 milhões
os brasileiros podem usar
em parceria com o consórcio
seus telescópios no Chile Llama Soar Telescópio óptico de 4,1 m,
Projeto financiado pela FAPESP e
Chile
localizado em Cerro Pachón,
pela Argentina, o radiotelescópio de Argentina
12 m de diâmetro para ondas
no Chile. Desde 2005, o Brasil
milimétricas e submilimétricas
conta com 30% de seu
deverá ser instalado no próximo ano
tempo total de observação
nos Andes argentinos. O Brasil investe cerca de US$ 9 milhões na
nador do projeto. A antena poderá funcionar de forma isolada ou associada ao Atacama Large Milimeter/Submilimeter Array (Alma), no Chile, o maior projeto de radioastronomia do planeta. As outras duas iniciativas internacionais abrangem áreas distintas da pesquisa em astrofísica. O Cherenkov Telescope Array (CTA) é um consórcio que reúne 29 países e vai montar dois conjuntos com mais de 100 telescópios de três tamanhos distintos. Será o maior observatório terrestre para estudar raios gama de alta energia. “Os projetos têm um escopo científico abrangente e são complementares”, diz Elisabete de Gouveia Dal Pino, do IAG-USP, uma das coordenadoras da participação brasileira no CTA. “Pela primeira vez na história, poderemos fazer observações combinadas, abrangendo dados de todo o espectro eletromagnético: das frequências de rádio aos raios gama no outro extremo do espectro, passando pelo óptico.” O Javalambre Physics of the Accelerating Universe Astrophysical Survey (J-PAS) é um projeto binacional, espanhol
e brasileiro, que visa produzir, nos próximos cinco anos, um mapa tridimensional da distribuição de matéria em todo o Universo. O Brasil financia e coordena a construção da segunda maior câmera astronômica do mundo, a JPCam, com resolução de 1,2 bilhão de pixels e 59 filtros distintos, que será instalada em um dos telescópios da iniciativa. “Há uma demanda reprimida entre os astrofísicos brasileiros por tempo de uso em telescópios internacionais”, afirma Bruno Vaz Castilho, diretor do Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA). A instituição federal administra a concessão de tempo que os pesquisadores nacionais têm à disposição nos telescópios Gemini, no Soar e no CFHT (Telescópio Canadá França Havaí). No final de 2010, o Brasil assinou um termo formal de adesão ao Observatório Europeu do Sul (ESO), consórcio de 15 países europeus que gerencia três sítios de observação astronômica no Chile. O acordo, que garante acesso à estrutura do ESO, aguarda aprovação pelo Congresso Nacional.
compra da antena e os argentinos tocam a construção do observatório
J-Pas Vai mapear o Universo em 3D. Parceria de espanhóis e brasileiros, contará com dois telescópios em Teruel, Espanha. Um deles terá a segunda maior câmera astronômica do mundo, com 59 filtros. Um telescópio brasileiro de 0,8 m, recém-instalado no Chile, vai colaborar com o levantamento
CTA Projeto internacional que prevê a construção do maior observatório de raios gama até 2020. Será formado por cerca de 100 telescópios Cherenkov, distribuídos em um sítio no hemisfério Sul e outro no Norte. A participação brasileira inclui a compra de três telescópios de 4 m para o CTA Mini-Array
PESQUISA PESQUISAFAPESP FAPESP2XX 231 | 19
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O primeiro dos gigantes Pesquisadores paulistas terão 4% do tempo de observação do GMT, supertelescópio terrestre que produzirá imagens 10 vezes mais nítidas do que as do Hubble
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otados de espelhos com diâmetro superior a 20 metros (m) de resolução 10 a 15 vezes maior do que a do telescópio espacial Hubble, o instrumento de observação do Universo mais bem-sucedido dos últimos 25 anos, os supertelescópios ópticos baseados em terra firme deverão elevar a pesquisa astronômica e cosmológica a outros patamares na próxima década. Essa nova classe de observadores gigantes dos céus terá uma capacidade de gerar dados nos comprimentos de onda da luz visível e do infravermelho sobre planetas, estrelas e galáxias sem paralelo na história da humanidade. Com eles, os astrofísicos esperam, por exemplo, produzir as primeiras imagens de planetas extrassolares semelhantes à Terra e, talvez, encontrar evidências irrefutáveis de vida
20 | maio DE 2015
em mundos ao redor de outras estrelas que não o Sol. O Giant Magellan Telescope (GMT) está previsto para ser o primeiro supertelescópio a entrar em atividade. Ainda sem estar totalmente terminado, deverá começar a funcionar em 2021. A meta é, no ano seguinte, estar totalmente operacional, com 100% de sua capacidade. Esse, ao menos, é o plano por ora. Projeto de US$ 1 bilhão tocado por um consórcio de sete universidades e instituições norte-americanas, dois centros de estudos astrofísicos da Austrália e o Instituto de Astronomia e Ciência Espacial da Coreia do Sul, o GMT incorporou, oficialmente desde dezembro passado, as instituições de pesquisa do estado de São Paulo ao seu grupo de sócios. Naquela ocasião, após ter submetido a proposta de entrada no GMT a um processo de
análise de aproximadamente três anos, a FAPESP aprovou o pedido e liberou a primeira das oito parcelas anuais de US$ 5 milhões que garantirão aos astrofísicos de universidades paulistas 4% do tempo de observação do equipamento e um representante no seu conselho de administração. O supertelescópio será construído a 2.500 m de altitude no sul da porção chilena do deserto de Atacama, em um sítio do Observatório de Las Campanas, onde a Carnegie Institution for Science, umas das instituições americanas parceiras da empreitada, mantém telescópios desde o início dos anos 1970. “No passado, se não tivéssemos entrado nos telescópios Gemini e Soar, a astrofísica brasileira teria definhado”, afirma João Steiner, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), coordenador do projeto que colocou as instituições paulistas no supertelescópio. “Até o fim da próxima década, o mesmo poderia ocorrer se não tivéssemos fechado um acordo como esse com o GMT.”
fotos 1 Giant Magellan Telescope – GMTO Corporation 2 David A. Aguilar (CfA)
Rede paulista de astronomia
Desde o ano 2000, a ciência feita no Pico dos Dias – o principal observatório situado em território nacional, em Minas Gerais, que dispõe de três pequenos telescópios, o maior com espelho de 1,6 m de diâmetro – apresenta tendência de estagnação ou queda. Já a produção de artigos científicos de astrofísicos brasileiros feitos a partir de observações no Gemini e Soar cresce 17% ao ano. Está hoje na casa dos 40 papers a cada 12 meses. Os astrofísicos esperam que a entrada no GMT represente um novo impulso à área. O quartel-general da parceria com o GMT ficará na USP, que trabalhou em prol do acordo e concentra a maior parte da produção científica em astrofísica do estado, mas os grupos de pesquisa de outras universidades paulistas também poderão submeter projetos para uso do tempo de observação no supertelescópio. “Os investimentos recentes da FAPESP em projetos como o GMT, o Llama e o CTA criaram um potencial enorme para que São Paulo se torne um polo internacional de astrofísica”, afirma Augusto Damineli, também do IAG-USP, outro pesquisador envolvido diretamente nas negociações que levaram à entrada de São Paulo como sócio do supertelescópio. “Queremos montar uma rede paulista de astronomia, aumentar a produção científica e o tamanho das pós-graduações e investir em divulgação da ciência.” Além do GMT, dois projetos, também vultosos, disputam a corrida dos telescópios gigantes: o Thirty Meter Telescope (TMT), iniciativa de US$ 1,2 bilhão bancada por um consórcio internacional de instituições de pesquisa dos Estados Unidos, Canadá, Japão, China e Índia, que será
Ilustração de como será o GMT (ao lado) e representação artística de exoplaneta similar à Terra: estudo de outros mundos será prioridade
construído num ponto a mais de 4 mil m de altitude dos Observatórios de Mauna Kea, no Havaí, onde há mais de uma dezena de telescópios instalados; e o European Extremely Large Telescope (E-ELT), empreitada de pouco mais de € 1 bilhão patrocinada pelos estados-membros do Observatório Europeu do Sul (ESO), a ser instalado a 3 mil m de altitude no topo do Cerro Amazones, na região de Antofagasta, no deserto de Atacama, Chile. O TMT e o E-ELT terão, respectivamente, espelhos de 30 m e de 39 m de diâmetro. Serão, portanto, maiores do que o GMT, cujos sete espelhos de 8,4 m vão funcionar em conjunto como se fossem um só espelho de 24,5 m, diâmetro duas vezes e meia maior do que o dos maiores telescópios terrestres hoje em atividade, como os dois Keck, no Havaí. O Brasil não terá acesso ao TMT, e a utilização do E-ELT, o projeto mais ambicioso do ESO, depende da ratificação do acordo federal com o observatório europeu (ver página 22). Em teoria, o cronograma de construções conta a favor do GMT, o menor dos supertelescópios, diante de seus competidores de maior porte. O TMT está previsto para iniciar suas atividades em 2023 ou no ano seguinte. O prazo mais otimista para a primeira luz do E-ELT é 2024. Nesse cenário, enquanto seus dois concorrentes ainda estariam terminando a fase de aquecimento, o GMT poderia correr com pista livre por talvez
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PESQUISA FAPESP 231 | 21
dois anos, se começar a operar em 2021. Tal vantagem, acreditam seus defensores, aumenta a possibilidade de garantir a primazia de descobertas há tempos esperadas. “Um dos estudos mais excitantes do GMT será com os planetas de massa similar à da Terra. Ele será o primeiro telescópio com capacidade de confirmar a existência desses planetas, de medir sua atmosfera e, se houver vida neles, detectá-la”, diz a astrofísica Wendy Freedman, da Universidade de Chicago, presidente do conselho de diretores do GMT. Atualmente, entre os cerca de 1.900 exoplanetas confirmados desde 1995, apenas entre uma e duas dezenas de mundos extrassolares se assemelham realmente à Terra, a julgar pelas exíguas informações hoje disponíveis. Ou seja, poucos parecem ser os exoplanetas rochosos situados na chamada zona habitável, com temperaturas amenas e condições ambientais ideais para abrigar água líquida e fomentar vida. “Também vamos estudar a alvorada cósmica do Universo, os momentos primordiais quando as primeiras estrelas, galáxias, supernovas e buracos negros estavam se formando”, informa Wendy. “Teremos o primeiro telescópio com sensibilidade para testemunhar esse processo, ver detalhes desses objetos tênues e medir suas distâncias.” O lançamento da pedra fundamental do GMT ocorrerá em 11 de novembro deste ano, no Chile. O evento marcará o início das obras de engenha-
ria para edificação do observatório que abrigará o supertelescópio. A parte óptica do GMT vem sendo feita há anos. Três dos sete espelhos de 8,4m já foram moldados na Universidade do Arizona, uma das sócias do empreendimento. Um desses espelhos foi polido, etapa fundamental em seu processo de finalização. Neste mês, a construção do quarto espelho será iniciada. O GMT também disporá de um centro de fibras ópticas e quatro instrumentos observacionais, basicamente diferentes tipos de espectrógrafos, aparelhos que decompõem a luz em diferentes cores (ou espectros), como o ultravioleta e o infravermelho e as frequências visíveis. Um dos espectrógrafos, o GMTIFS, será ainda responsável pelas correções efetuadas pela técnica de óptica adaptativa, que reduz as distorções de imagem causadas pela turbulência do ar. “Nossa indústria tem condição de construir partes desses instrumentos”, diz a astrofísica Cláudia Mendes de Oliveira, do IAG-USP, que está fazendo contatos com empresas de São Paulo interessadas em fornecer serviços e peças para o GMT e outros projetos de astrofísica.
Projeto Explorando o Universo, da formação de galáxias aos planetas tipo-Terra, com o Telescópio Gigante Magellan (nº 2011/51680-6); Modalidade Projetos Especiais; Pesquisador responsável João Steiner (USP); Investimento R$ 17.860.000,00 e US$ 40.000.000,00 (FAPESP).
Um acordo à espera de aprovação Entrada no ESO aguarda posição do Senado Em 19 de março, a Câmara dos
Os termos originais do acordo
Deputados aprovou o projeto de
previam pagamentos da ordem de
decreto legislativo que contém o
€ 270 milhões (pouco menos de
acordo de adesão do Brasil ao
R$ 900 milhões no câmbio do fim de
Observatório Europeu do Sul (ESO),
abril) ao ESO entre 2011 e 2021. Desse
firmado pelo governo federal em
total, € 130 milhões equivaliam à taxa
29 de dezembro de 2010. O assunto
de adesão ao observatório e € 140
agora está na pauta do Senado. Caso
milhões, ao valor das anuidades do
ganhe o sinal verde também dos
período. Como, até agora, o Congresso
senadores, o Brasil se tornará
Nacional não aprovou a parceria,
oficialmente membro da instituição.
considerada excessivamente cara por
Melo, diretor de ciências do ESO no
O ESO reúne 15 países europeus mais o
alguns astrofísicos e de valor justo por
Chile. Segundo Melo, o observatório
Chile, onde fica sua base de operações,
outros, nenhum real foi destinado ao
concordou em setembro do ano
dividida entre três sítios de observação
consórcio europeu. “Se olharmos de
passado em retirar € 66 milhões
(Paranal, La Silla e Chajnantor) com
maneira pragmática, o processo tem
do montante a ser pago pelo Brasil
alguns dos melhores telescópios do
avançado. As discussões são normais
até 2021. “Mas deverá haver ainda
mundo. O supertelescópio E-ELT, com
em uma sociedade democrática. Mas,
uma nova rodada de renegociação
espelho de 39 m de diâmetro, é o
desde 2010, os brasileiros podem se
dos valores”, diz a professora
projeto mais ambicioso do ESO para
candidatar a usar nossos telescópios”,
Beatriz Barbuy, do IAG-USP,
meados da década de 2020.
afirma o astrofísico brasileiro Claudio
uma das defensoras do acordo.
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Telescópios no Cerro Paranal, um dos sítios do ESO no Chile: acordo foi assinado em dezembro de 2010, mas o Congresso precisa ratificá-lo
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Novos olhos no Universo Telescópios vão estudar a matéria e a energia escuras, os raios gama e mapear o Cosmo em 3D
fotos 1 ESO / Y. Beletsky 2 ESO / B. Tafreshi
A
4.800 metros acima do nível do mar, situado na região argentina de Puna de Atacama, uma espécie de prolongamento da paisagem árida da porção leste chilena do deserto do Atacama, o sítio de Alto Chorrillo deverá abrigar, a partir de abril do próximo ano, um radiotelescópio de 12 m de diâmetro, o Llama, sigla em inglês para o projeto Grande Arranjo Milimétrico Latino-americano. Concebida e implementada por meio de uma parceria entre astrofísicos do estado de São Paulo e da Argentina, a moderna antena está prevista para entrar em operação, e produzir ciência, no início de 2017. Em linhas gerais, o acordo estabeleceu que os pesquisadores paulistas comprariam o radiotelescópio (com US$ 9,2 milhões financiados pela FAPESP) e os argentinos montariam a estrutura física para receber o equipamento e cuidariam de seu funcionamento. “Em princípio, cada país terá metade do tempo de observação do telescópio”, diz o astrofísico Jacques Lépine, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), mentor e coordenador do Llama em solo nacional. “Mas estamos estabelecendo projetos-chaves a ser tocados por equipes bina-
Com instalação prevista para 2016 na Argentina, a antena de 12 m do Llama será parecida com a do Apex (acima), já em operação no Chile
cionais.” Metade do valor da antena já foi paga e o restante será quitado quando o equipamento estiver 100% funcional. A parte argentina do projeto conta com financiamento da Secretaría de Articulación Científico Tecnológica do Ministerio de Ciencia, Tecnología e Innovación Productiva (MINCyT). A localização da antena nesse ponto do noroeste argentino segue critérios duplamente estratégicos. Em primeiro lugar, a Puna de Atacama tem um clima extremamente seco, com pluviosidade anual ligeiramente superior à do contíguo deserto do Atacama, o lugar mais seco do planeta. O vapor de água atmosférico é o principal empecilho para a realização de boas observações astronômicas em comprimentos de ondas milimétricos e submilimétricos, como a banda de frequências entre 90 gigahertz (GHz) e 900 GHz em que operará o Llama. Em segundo, o Llama dista, em linha reta, 150 quilômetros do Atacama Large Milimeter/ Submilimeter Array (Alma), o maior projeto de radioastronomia do planeta, montado num ponto extremamente elevado do município chileno de San Pedro de Atacama. Formado por um conjunto de 66 antenas de 7 m e de 12 m instaladas no planalto de Chajnantor, a cerca de 5 mil m de altitude, o Alma entrou em funcionamento em março de 2013 (ver Pesquisa FAPESP nº 206). Vizinho ao radioexperimento gigante, localizado igualmente no altiplano de Chajnantor, há ainda o Atacama Pathfinder Experiment Telescope (Apex), radiotelescópio de 12 m do qual o Llama é quase um clone. Inicialmente, o Llama funcionará de forma isolada, sem se conectar ao Alma. Mas há a perspectiva de a antena brasileiro-argentina trabalhar de maneira integrada ao Alma e também ao Apex, como se todos formassem um único radiotelescópio descomunal. Para que isso ocorra, o projeto precisará receber um equipamento para fazer interferometria, técnica que combina os sinais de diferentes antenas e possibilita a obtenção de imagens com maior resolução. PESQUISA FAPESP 231 | 23
Entre os objetivos científicos do Llama figuram possíveis estudos sobre a estrutura do Sol, das primeiras estrelas e galáxias, emissões de jatos e masers (um tipo de radiação similar ao laser) e também de planetas extrassolares. A procura por moléculas orgânicas no Cosmo deve ser uma das primeiras áreas de pesquisa a produzir trabalhos com a antena. Coordenador do Laboratório de Astroquímica e Astrobiologia da Universidade do Vale do Paraíba (Univap), de São José dos Campos, o astrofísico Sergio Pilling pretende usar o radiostelescópio para esse fim. “Com um pouco de sorte, podemos descobrir moléculas ainda não localizadas no espaço se observarmos em determinadas radiofrequências”, diz Pilling. Universo em raios gama
Novo telescópio brasileiro de 0,80 m montado em Cerro Tololo, Chile (à esq. na imagem abaixo) e ilustração das oscilações acústicas de bárions: parceria com espanhóis no projeto J-PAS
Outro projeto ambicioso de âmbito internacional com participação de pesquisadores de São Paulo e de outros estados brasileiros é o Cherenkov Telescope Array (CTA). Trata-se de um consórcio formado por 29 países que planeja construir até 2020 o maior observatório astronômico de raios gama do mundo, dedicado a entender os fenômenos mais energéticos do Universo. Entre esses eventos, figuram a colisão de partículas de matéria escura, a natureza dos aceleradores astrofísicos de raios cósmicos, que incluem
desde nuvens e estrelas em colisão até buracos negros supermassivos nos núcleos das galáxias, e a violação da constância da velocidade da luz, que também só pode ser medida em raios gama. O observatório, orçado em € 200 milhões, será composto por cerca de 100 telescópios de três tamanhos distintos (24 m, 12 m, 4 m de diâmetro), do tipo Cherenkov, ideais para realizar esse tipo de medição, espalhados em dois arrays, ou arranjos. Um será montado no hemisfério Norte, num ponto do México, Estados Unidos ou Espanha, e o outro no Sul, provavelmente perto do Alma, no Chile. A maioria dos telescópios será de tamanho pequeno. A primeira etapa do projeto, denominada CTA Mini-Array, prevê a instalação de nove telescópios de 4 m no sítio austral do empreendimento até 2017. Por meio de financiamento da FAPESP, a astrofísica Elisabete de Gouveia Dal Pino, do IAG-USP, coordena a contribuição nacional no Mini-Array. Ao custo de cerca de € 3 milhões, a Fundação banca a construção na Itália de três telescópios pequenos, baseados em um protótipo desenvolvido pelo Instituto Nacional de Astrofísica da Itália com a participação de engenheiros brasileiros. A África do Sul financia mais uma unidade e a Itália outras cinco. “Os telescópios do Mini-Array vão captar as mais altas energias entre 0,1 e 100 TeV [100 TeV corres2
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fotos 1 Zosia Rostomian, Lawrence Berkeley National Laboratory 2 Alberto Molino 3 www.brera.inaf.it/astri
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pondem a 100 trilhões de elétrons-volt de energia]”, diz Elisabete. “Eles elevarão de cinco a dez vezes a atual sensibilidade para captar raios gama.” A parte brasileira na iniciativa não se restringe ao Mini-Array. A equipe de Luiz Vitor de Souza Filho, do Instituto de Física de São Carlos (IFSC-USP), desenvolveu o braço que posiciona a câmara de imagem usada nos telescópios de médio porte do CTA. Ele criou e testou um protótipo com uma empresa de São Paulo, Orbital Engenharia, e agora foi escolhido para fornecer a estrutura, que mede 16 m e pesa 5 toneladas, para os demais telescópios. Pesquisadores do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) participam do projeto de desenvolvimento dos telescópios de 24 m.
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Protótipo italiano de telescópio de 4 m do projeto CTA: FAPESP financia a construção de três unidades, com participação de engenheiros brasileiros
Uma grande angular no céu
Com orçamento total de € 30 milhões, o Javalambre Physics of the Accelerating Universe Astrophysical Survey (J-PAS) é um projeto originalmente concebido pela Espanha que, há cerca de cinco anos, passou a ter o Brasil como segundo sócio. A ambição da iniciativa, para a qual foi construído um novo observatório em Teruel, na região espanhola de Aragão, é produzir um levantamento em três dimensões de todo o céu nos próximos cinco ou seis anos. Dois telescópios, um de 2,5 m e outro de 0,80 m, foram projetados para se dedicar exclusivamente ao trabalho de mapear desde asteroides, planetas e estrelas até as centenas de milhões de galáxias do Universo. O diferencial em relação a mapeamentos anteriores, como o Sloan, é que o telescópio grande do J-PAS contará com a segunda maior câmera astronômica do mundo, a JPCam, com resolução de 1,2 bilhão de pixels e composta por um mosaico de 14 CCD, sensor usado para obter imagens digitais. Uma espécie de grande angular do Cosmo. A câmera será capaz de gerar uma quantidade recorde de cores (espectros) dos objetos visualizados. Terá 59 filtros distintos – o Sloan contava com apenas cinco – e todos juntos gerarão um espectro (conjunto de cores) que realça determinadas características dos milhões de corpos celestes que serão observados. “A construção dessa câmera é financiada e coordenada pelos brasileiros”, diz Renato Dupke, astrofísico do Observatório Nacional (ON), que iniciou a parceria com os espanhóis. A Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), o Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovação (MCTI), além da FAPESP, investiram por volta de US$ 7 milhões no desenvolvimento da JPCam, que deverá ser instalada no telescópio em 2016. “O sistema de filtros da câmera deverá ser muito útil para estudarmos as oscilações acústicas de bárions”, diz Laerte Sodré, do IAG-USP, outro astrofísico que atua na parceria. Esse fenômeno, ainda pouco conhecido, é caracterizado por ondas
que teriam sido criadas logo após o Big Bang devido a interações da matéria visível (bariônica) com a radiação. Estudar tais oscilações pode contribuir para a compreensão da matéria escura e sobretudo da energia escura, os dois constituintes majoritários, porém de natureza desconhecida, do Universo. A parceria com os espanhóis estimulou a astrofísica Cláudia Mendes de Oliveira, do IAG-USP, a obter US$ 2 milhões da FAPESP para montar um telescópio de 0,80 m igual ao equipamento menor do J-PAS. O ON pagou R$ 520 mil para fazer o prédio da cúpula e bancar a manutenção dos seis primeiros meses do telescópio, batizado de T-80 Sul. O equipamento foi instalado no sítio de Cerro Tololo, no Chile, e deverá entrar em funcionamento nos próximos meses. “Vamos fazer um levantamento de grande parte do Universo local, em conjunto com o telescópio menor da Espanha, usando 12 filtros”, explica Cláudia. “Mesmo com menos filtros, devemos produzir resultados de alto impacto.” n Projetos 1. Llama: um radiotelescópio para ondas mm/sub-mm nos Andes, em colaboração com a Argentina (nº 2011/51676-9); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Jacques Lépine (USP); Investimento R$ 7.890.473,28 e US$ 9.221.992,00 (FAPESP). 2. Investigação de fenômenos de altas energias e plasmas astrofísicos: teoria, simulações numéricas, observações e desenvolvimento de instrumentação para o Cherenkov Telescope Array (CTA) (nº 2013/10559-5); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Elisabete de Gouveia Dal Pino (USP); Investimento US$ 2.269.594,10 e R$ 1.981.476,55 (FAPESP). 3. EMU: aquisição de um telescópio robótico para a comunidade astronômica brasileira (nº 2009/54202-8); Modalidade Programa Equipamentos Multiusuários; Pesquisador responsável Cláudia de Oliveira (USP); Investimento US$ 1.746.697,84 e R$ 1.325.134,14 (FAPESP). 4. Pau-Brasil: aquisição de detectores de CCD para a câmera CCD panorâmica da pesquisa Javalambre – Física do Universo em aceleração (nº 2009/54162-6) Modalidade Programa Equipamentos Multiusuários; Pesquisador responsável Laerte Sodré (USP); Investimento US$ 1.600.000,00 e R$ 912.000,00 (FAPESP).
PESQUISA FAPESP 231 | 25
entrevista Nanuza Luiza de Menezes
Uma apaixonada em meio às plantas Pioneira nas pesquisas sobre as plantas da serra do Cipó ajudou a estabelecer a anatomia vegetal como área de estudo no país Maria Guimarães |
retrato
Léo Ramos
Q
ualquer pessoa que tenha feito graduação em biologia na Universidade de São Paulo (USP) nas últimas cinco décadas sabe que as plantas da família Velloziaceae, como as canelas-de-ema, são as mais bonitas do mundo e que os campos rupestres da serra do Cipó, em Minas Gerais, são a paisagem mais espetacular. Essas informações, nada imparciais, vêm acompanhadas do colorido das histórias que Nanuza Luiza de Menezes gosta de contar. Sempre entusiasmada, ela ainda não considera abandonar a pesquisa e os estudantes. Em 2004, quando não parou de trabalhar apesar da aposentadoria compulsória, foi eleita para a Academia Brasileira de Ciências – na companhia de 24 homens, naquele ano foi a única mulher. Na mesma semana recebeu o título de cidadã de Santana do Riacho, o município de pouco mais de 4 mil habitantes que abriga o Parque Nacional da Serra do Cipó, cuja criação Nanuza ajudou a defender. Entre as duas homenagens, talvez a recepção que teve na pequena cidade, de gente empolgada com os slides da natureza local que a botânica projetou numa parede branca, emocione mais. Uma das primeiras a estudar a anatomia das plantas no Brasil, Nanuza não se contentava em descrever as estruturas que via ao microscópio: queria entender como funcionavam num contexto evolutivo. Assim, ajudou a explicar como as veloziáceas sobrevivem num solo que não retém água, além de outros aspectos das plantas mais diversas. Professora acima de tudo, nela está enraizada a linhagem que abriga boa parte dos anatomistas vegetais em atividade hoje no país.
26 | maio DE 2015
idade 80 anos especialidade Anatomia vegetal formação História Natural (graduação), Ciências Biológicas – Botânica (mestrado e doutorado), na USP instituição Instituto de Biociências, USP produção científica 69 artigos científicos, 2 livros, 10 capítulos. Orientou 17 mestrados e 21 doutorados
Com a pá que sempre a acompanha a campo, Nanuza posa em frente ao imponente chichá plantado por acidente em frente ao auditório do Departamento de Botânica no ano em que foi contratada na USP
PESQUISA FAPESP 231 | 27
No ano em que foi trabalhar na USP, 1963, alguém trouxe umas sementes para que Aylthon Brandão Joly – o professor responsável por sua contratação – identificasse. Era um chichá da Mata Atlântica. Tempos depois, Nanuza reparou uma mudinha nascendo no lugar onde acontecera a consulta e inferiu que uma das sementes teria caído naquele dia e germinado. Por acaso, foi debaixo dessa árvore que a fotografamos. Com 80 anos, completados em 2014, você ainda não parece ter incluído a aposentadoria nos seus planos. Saí na compulsória em 2004 e continuo dando aula na graduação, levamos os alunos para a serra do Cipó. Temos um caminhão-laboratório com microscópios e ar condicionado. Os meninos adoram a viagem e minhas histórias, tanto que insistiram para eu escrever sobre a minha vida de menina e de botânica, além de anatomia vegetal. São três livros que estou escrevendo. Também acabei de entregar minha última orientação de mestrado. E agora vai para Recife? A Universidade Federal de Pernambuco me convidou. Vou dar aula para a pós-graduação. Vou com uma bolsa por dois anos e, se eu gostar, me mudo de mala e cuia.
E como chegou aqui, na USP? Em 1962, abriram 200 vagas, inclusive no meu colégio, mas eu tinha que passar até em terceiro lugar para pegar a vaga. Vim para a USP fazer a prova prática e o [Aylthon Brandão] Joly, que tinha sido meu professor, me viu e me chamou. Ele disse que tinha uma vaga em botânica e me convidou. Respondi que estava feliz dando aula e que nunca tinha pensado
Estava descobrindo coisas lindas nas Vellozias e percebi que queria ser anatomista
Você já gostava de plantas quando era pequena? Já. Nossa casa era em Botucatu e meu pai plantava de tudo no quintal. Pedi um pedaço do terreno para plantar as minhas coisas. Ele deixou. O que você plantava? Comprava sementinhas de alface, de cenoura. Morria de orgulho de vê-las crescer e ver meu pai comendo da minha horta. Eu perguntava se ele não ia temperar, ele dizia que era delicioso daquele jeito. Devia ter uns 8, 9 anos. Aos 14 anos, conheci o mar e me apaixonei. Eu colecionava bichinhos.
E como chegou à anatomia vegetal, já que gostava de bichinhos? Foi por acaso. Eu dava aula no Caxingui, em São Paulo, no colégio Virgília Rodri28 | maio DE 2015
gues Alves de Carvalho Pinto. Para quem chegava pela estrada, era o primeiro colégio estadual, pouco acima do Butantã. Era longe, eu morava no Planalto Paulista e dava aula de manhã, à tarde e à noite, no Caxingui e em duas outras escolas. Houve um ano em que fui paraninfa de 10 quartas séries.
em trabalhar com botânica. Joly sugeriu que trabalhasse com algas marinhas, porque, quando eu fosse procurá-las, encontraria meus bichinhos. Foi uma choradeira quando saí da escola, os meninos tinham acendido vela para eu passar no concurso. No dia em que cheguei aqui, o Joly me disse que tinha muita gente trabalhando com algas no Brasil, pelo menos 10 pessoas. Já em anatomia, só tinha a Bertha [Lange de Morretes], em São Paulo, e o [Fernando] Milanez, no Rio de Janeiro. E o Brasil, ele disse, precisava de anatomistas. Quase chorei. Ele percebeu minha decepção e disse que no dia em que abrisse uma vaga em algas eu iria trabalhar com ele. Não tive alternativa.
Você nunca tinha imaginado olhar as plantas por dentro. Joly me disse que havia certas famílias brasileiras das quais ninguém sabia nada: Eriocaulaceae, Velloziaceae, Ericaceae. Fui procurar no Martius [o livro Flora brasiliensis, editado no século XIX por Carl Friedrich Philipp von Martius, August Wilhelm Eichler e Ignatz Urban] e quando vi uma veloziácea fiquei maravilhada, que planta linda! Descobri que elas existiam numa região chamada serra do Cipó, em Minas Gerais, e no Rio de Janeiro. Fui para o Rio primeiro falar com a Graziela Barroso, do Jardim Botânico. Ela me levou para ver uma veloziácea que estava em flor e me disse que se eu quisesse trabalhar com elas que fosse a Minas – pegava um ônibus em São Paulo, ia até Belo Horizonte, lá pegava outro ônibus, descia na beira da estrada e no quilômetro 92 havia uma pousada chamada Chapéu de Sol. De manhã, quando acordasse, veria o paraíso das veloziáceas. Por coincidência, o colega Walter Handro ia com os alunos para Paraopeba, na mesma região. Fui junto, correndo. Eles já iam para lá, então? Para a serra do Cipó não ia ninguém. Eles foram me levar. Chovia tanto que quando chegamos não dava para ver serra nem nada. No dia seguinte, acordamos naquela neblina. No quilômetro 114 da estrada, de repente subiu a neblina e pude ver as veloziáceas, canelas-de-ema, todas floridas. E foi só durante uma hora, depois baixou a neblina e não vi mais nada. Tive uma hora de visão do que era a serra. Só para não deixar mais ir embora. Foi sorte mesmo. Lembro o dia: 8 de dezembro de 1964. Voltei querendo fazer outra viagem para coletar material. O Ivan Sazima, que era estudante, se ofereceu para tirar fotos e dirigir, na época mulher não podia. Fui a primeira mulher, soube depois, a guiar carro de chapa branca em São Paulo. Entrei com um pedido na reitoria, dali passou para o governo do estado, que liberou. Depois disso, todas as mulheres puderam dirigir carros de chapa branca.
fotos arquivo pessoal
E você já começou a trabalhar, coletando e fazendo a anatomia? Já fui fazendo a anatomia das veloziáceas. Era uma beleza de planta e a folha por dentro era uma maravilha. O que havia de especial nela? É diferente de tudo o que já tínhamos visto. Quando comecei a estudar anatomia, pegava plantas e analisava por dentro. Mas quando cortei uma veloziácea florida me apaixonei. Ela cresce nas pedras, as folhas velhas caem e as bainhas ficam em volta. As raízes adventícias vêm do ápice para a base, por dentro dessas bainhas. Elas vivem da neblina que sempre há à noite, não precisam de muitos nutrientes. O ar traz grão de pólen, esporo de fungo, cinza de queimada em gotículas do sereno, e isso é suficiente. Seis meses depois, Joly me disse que tinha uma vaga em algas. “Agora quem não quer sou eu”, disse. Tinha concluído que não gostamos do que não conhecemos. Uma pedra pode ser incrível quando entendemos o sistema de cristalização de cada grãozinho. Eu estava descobrindo coisas lindas nas Vellozias e percebi que queria ser anatomista. Ele nunca me perdoou. Porque até então quem trabalhava com anatomia só cortava e desenhava, cortava e desenhava. Comecei a perguntar por que era daquele jeito. Por que tinha ficado assim? Decidi fazer estudo de desenvolvimento. Era um enfoque funcional. Sim, percebi que era importante entender o desenvolvimento. Por exemplo, vi que numa estrutura semelhante a uma pétala
Com Burle Marx, paixão compartilhada pelas plantas; abaixo, com os irmãos (a segunda a partir da direita)
da flor das veloziáceas toda a vascularização sai da pétala ou da sépala. Nada a ver com os estames, como diziam. “Que nome eu dou para isso?”, perguntei ao Joly. Ele dizia que não entendia nada de anatomia, mas sugeriu que procurasse uma estrutura denominada corona na família Amaryllidaceae. Vi que era a mesma coisa e passei a chamar de corona. Também descrevi uma estrutura nas folhas das veloziáceas que as distingue de todas as outras angiospermas: as traqueídes de transfusão. As traqueídes são células que correspondem a expansões laterais do xilema. Se houver água disponível, a planta abre os sulcos onde estão os estômatos, nas folhas. Na seca, os sulcos se fecham e não há perda de água. Assim, a água passa mais rápido. Da mesma maneira que fui me apaixonando pelas veloziáceas, me encantei cada vez mais pela serra do Cipó. Comecei a convidar todo mundo para ir lá, inclusive Joly. Um dia, em um congresso na Paraíba, ele disse para eu ir assistir à sessão sobre algas na qual ia falar. Ele foi se despedir dos ficólogos, porque tinha decidido mudar de área e trabalhar para fazer o levantamento da flora da serra do Cipó. Quase morri de chorar. Como você explica a importância da anatomia para quem não é da área? Anatomia é importante para conhecer a intimidade da planta. Depois que começamos a fazer estudos de vascularização, muita coisa foi consertada na taxonomia
de plantas. Outro dia, ao analisar uma rutácea com o [botânico da USP José Rubens] Pirani, perguntei se não havia espécies com mais estames nas flores, como indicavam vestígios de uma vascularização que observei. No dia seguinte ele me disse que na Austrália existe uma planta com vários estames. Olha que fantástico! A anatomia traz uma visão evolutiva. Exatamente. Dá para acompanhar todas as transformações. Vou dar um exemplo. Nas folhas de veloziáceas a seiva é conduzida por feixes com dois floemas e um xilema, enquanto em todas as demais monocotiledôneas cada feixe é formado por um xilema e um floema internamente à bainha do feixe. Analisando a evolução do feixe vascular em vários grupos de veloziáceas, concluí que um ancestral delas deve ter tido dois cordões de xilema e floema dentro da mesma bainha. Coloquei isso na minha livre-docência, em 1984. Em 1994 soube da descoberta de uma nova planta na China. Pedi para me mandarem uma folha, para cortar e ver se era ou não uma veloziácea. Quando cortei, saí gritando pelo corredor: é o ancestral! Porque o sistema vascular, por onde corre a água e a seiva, tem dois feixes completos, com protoxilema, metaxilema, protofloema, metafloema. Você também mostrou que as raízes aéreas das árvores de manguezais, os PESQUISA FAPESP 231 | 29
Com alunos na serra do Cipó em 2007 ao lado de uma Vellozia gigantea, espécie que descobriu
rizóforos, não são raízes. Como surgiu essa descoberta? Passei anos ensinando que eram raízes aéreas, mas nunca tinha analisado a anatomia. Um dia nossa equipe ofereceu uma disciplina eletiva e fizemos uma brincadeira: coletar e comparar plantas do mangue, restinga, Mata Atlântica e duna. Desenterrávamos plantas para fotografar e enterrávamos de novo. Sugeri que levássemos uma plantinha jovem de Rhizophora mangle à USP, já com “raízes aéreas”, porque alguns alunos do curso noturno não foram naquela viagem. Sugeri às minhas colegas que eu começaria com as raízes. Parecia que seria simples... Deixei as raízes aéreas com um estudante e fui tomar um café. Quando voltei e olhei, disse que ele tinha cortado caule e não raiz. “Não, professora, peguei aqui neste vidro de raiz”, ele respondeu. Peguei a planta que veio viva, disse onde tinha que cortar, e examinei. “Quem disse que isso aqui é raiz? É caule.” O primeiro que descreveu a espécie em 1780 achou que era um sistema de raízes, sem fazer análise anatômica. E assim ficou. O [Philip Barry] Tomlinson, de Harvard, nos Estados Unidos, dizia que era uma raiz com várias exceções, entre outras por ter diferenciação endarca – isto é, protoxilema interno ao metaxilema –, e toda raiz tem protoxilema externo. Xilema e floema formam feixes vasculares, e raiz não forma feixe. Tem origem exógena e 30 | maio DE 2015
toda raiz tem origem endógena. Tudo era exceção. Na verdade era caule, com uma única exceção: geotropismo positivo, cresce para dentro da terra. Chamei de rizóforo porque já descrevera em 1977 uma estrutura semelhante em Vernonia da serra do Cipó. Em 1994 levei esse trabalho para um congresso no Japão. Por que o artigo só foi publicado em 2006? Mandei para várias revistas internacionais, inclusive a Journal of the Linnean Society, da Inglaterra, na qual sou fellow desde 1979. Todas vinham com recusa. Na última veio assinado: P. B. Tomlinson. Ele tinha sido o revisor em todas as outras vezes? Exatamente, e na última assinou como se dissesse: você não vai publicar isso fora do Brasil. Felizmente, quando entrei na Academia Brasileira de Ciências, eles perguntaram se tinha um trabalho pronto para publicar nos Anais da Academia. Eu disse que tinha um prontinho, em dois meses estava publicado. Além da anatomia, você também se envolveu com conservação, não? Nos anos 1970, o governo quis fazer um aeroporto em Caucaia do Alto. Tirar Mata Atlântica. Nosso manancial de água vem de lá, dessa parte alta. O doutor Paulo Nogueira-Neto, que era secretário de Meio Ambiente, me disse o que estava
Como foi? Passei um tempo sem ir nas excursões a Paranapiacaba, no topo da serra de Santos, e quando voltei notei que a floresta não era mais aquela maravilha, por causa da poluição de Cubatão. Aí comecei uma campanha contra a poluição e tiveram que pôr filtros nas empresas poluidoras. Nunca vai ser a mesma coisa, mas a mata se recuperou. Então passaram a me chamar para todas as campanhas. Queriam tirar a Casa Modernista, perto da estação Santa Cruz, em São Paulo, para construir prédios. Falei com o ex-governador Franco Montoro para que ele pedisse que o governador Mário Covas fosse lá. Às 10 horas do domingo, chega o Covas. Foi um show, não deixaram demolir. A Casa Modernista continua lá. Mais tarde havia uma reserva em Itanhaém, no litoral sul de São Paulo, que queriam destruir. Lá fui eu. A rodovia dos Tamoios ia ser construída, fui para São Sebastião. Depois avisei que não dava mais. Existiam vários conservacionistas e eu precisava me aposentar dessa parte. E o Parque Nacional da Serra do Cipó? Joly e eu juntamos a documentação provando a importância da serra do Cipó. Aureliano Chaves [governador de Minas
arquivo pessoal
acontecendo e pediu que não permitisse. Chamei uma reunião com cinco outros conservacionistas. Convidamos a televisão, o rádio e dissemos que estavam tentando tirar uma mata nativa importantíssima. Mais de 500 pessoas compareceram, 16 associações de proteção estavam presentes. Começamos a ser procurados pelos repórteres. Alguém contou que um vereador tinha dito que aquilo em Caucaia do Alto não era Mata Atlântica, e sim um carrascal. Eu respondi que era um grande ignorante que não entendia nada de vegetação. Mas quem disse que era um carrascal foi o governador Paulo Egydio Martins, e não o vereador. Isso em plena ditadura. No dia seguinte, a declaração do governador e a minha resposta saíram na primeira página do Jornal da Tarde. Tudo o que falei era verdade, eu só não sabia que era o governador. Se soubesse, teria dito: “O governador tem que se informar melhor”. Hoje o aeroporto está em Guarulhos graças à primeira vitória. Depois houve a luta contra a poluição de Cubatão.
Gerais, na época] criou o parque em 1975. Infelizmente, Joly morreu em agosto, estava muito doente, e não viu. O parque só foi implantado 10 anos depois. Na placa de inauguração estava lá: 27 de setembro de 1984, dia em que fiz 50 anos, por pura coincidência! Você foi amiga do paisagista Roberto Burle Marx, como o conheceu? Quando eu soube que ele era apaixonado por veloziáceas, pensei que seria uma oportunidade para conhecê-lo. Então pedi que a Graziela Barroso me apresentasse ao Roberto dizendo que eu trabalhava com as canelas-de-ema de que ele tanto gostava. Uma das melhores coisas da minha vida foi ser amiga do Roberto. A paixão dele por plantas era inacreditável. Um dia propus dar uma aula sobre plantas para sua equipe de jardineiros, e o primeiro da fila era ele. Quando peguei uma flor, abri e mostrei com a lupa os óvulos no ovário, e disse que o pólen cai no estigma e fecunda, ele chorou. Chorou de emoção.
Você ainda vai à serra do Cipó? Vou. Temos essa disciplina. São 45 lugares e mais de 90 candidatos. Os colegas acham que sou indispensável nessas viagens. Eu conto histórias da minha vida, de infância. Nos divertimos muito. A coleção de madeira do Instituto de Biociências da USP tem o seu nome? Tem. Eu pensava: sou tão feliz trabalhando com Velloziaceae, mas o que isso significa para o Brasil? Fui para o IPT [Instituto de Pesquisas Tecnológicas] aprender anatomia de madeira e resolvi ensinar. Por quatro anos ia para Manaus, ficava um mês na pós-graduação do Inpa [Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia]. Ensinava sobre madeira e sistemas subterrâneos, como tubércu-
até nome de perereca. Uma professora da Argentina estuda dois gêneros da família Turneraceae: Turnera e Piriqueta. Adivinha qual dos dois ela escolheu para pôr meu nome? Piriqueta! Contei isso num congresso em Manaus, o auditório caiu na gargalhada! Expliquei a ela que, no Brasil, periquita e perereca são a mesma coisa. Mas não são só as brincadeiras que garantem o seu sucesso, não? Não. Recentemente estive no Centro de Arte Contemporânea Inhotim, em Minas Gerais, depois de um congresso. Encontrei um garoto que disse que, se soubesse que eu ia lá, pediria que apresentasse a mesma palestra que dei no congresso. Eu estava com o pen drive, então me dispus. Nos finais de semana, Inhotim tem cerca de 3.500 visitantes por dia. Tem um auditório que comporta 500 pessoas. Ele pôs no alto falante, lotou e ficou gente para fora. Foi a primeira vez que falei para leigos, mostrei as plantas da serra do Cipó. Quando terminei, batiam palmas em pé. Veio um senhor com lágrimas nos olhos, junto com a mulher, o filho, a filha e a neta. Dizia que a neta tinha que fazer biologia.
O aeroporto está em Guarulhos graças à nossa vitória. Depois houve a luta contra a poluição de Cubatão
O que é a Fundação Burle Marx? Eu e arquitetos que trabalhavam com ele dissemos ao Roberto que se ele quisesse que aquelas plantas se perpetuassem alguém precisava tomar conta. Se ele doasse para o governo, seria tombado para o resto da vida. Assim foi formado o conselho da Fundação Sítio Roberto Burle Marx, do qual fui presidente por vários anos.
Você foi com ele à serra do Cipó? Em 1993, ele disse que não queria fazer festa de aniversário, queria fazer uma excursão com alguns amigos que vinham do exterior. Eu é que ia programar a viagem. Fomos à serra do Cipó, serra do Grão Mogol, saímos na Bahia e voltamos. Ele só gostava se eu estivesse dirigindo e falou que foi a viagem mais linda da vida dele, um ano antes de morrer. Ele dizia que comigo tudo era mais lindo, porque eu mostrava. “Olha essa glândula, olha essa planta, que maravilha.” Eu tinha sempre uma lupa e mostrava. Ele adorava. Dizia que, se tivesse tempo, ia fazer biologia comigo.
los que servem para comer. Continuava com minhas Vellozias, mas ensinava o que achava útil para o Brasil. Todo mundo que trabalha com madeira começou comigo, ou com alguém que começou comigo. A primeira anatomista de madeira no Brasil foi a Verônica [Angyalossy], minha primeira aluna de doutorado. Muitos botânicos lhe prestaram homenagem. Quantas espécies têm seu nome? Um monte. Vellozia nanuzae, Barbacenia nanuzae, tem um gênero das veloziáceas que se chama Nanuza. E várias outras. Bichos também? Tem uma perereca, Bokermannohyla nanuzae. Eu conto para os alunos que virei
Parar não está nos planos? Eu tenho intolerância ao glúten e soube disso aos 79 anos. Eu estava com um probleminha, nem lembro o quê, meu sobrinho disse para eu ir num médico japonês amigo dele, que é formidável. Ele tinha um sistema de colocar uns eletrodos nas pontas dos dedos e lia os resultados no computador na mesma hora, e disse que eu tinha intolerância a glúten e lactose. Depois disso fui ao meu médico clínico e contei o que o outro tinha dito. Perguntei se ia ter que parar de comer pão, que amo e comi a vida inteira. Ele disse que eu tinha comido a vida inteira, ia parar por quê? Como quem diz: “Vai morrer logo”. Eu agradeci, voltei no japonês e perguntei o que me aconteceria se eu não parasse. Ele disse que eu chegaria aos 90 lúcida como estou agora. E se eu parar? Disse que eu ia passar dos 100 com a mesma saúde e lúcida. Adivinha? Parei! n PESQUISA FAPESP 231 | 31
política c&T infraestrutura y
Resgate de conhecimento Digitalização de acervos traz à tona raridades e documentos esquecidos e ajuda a aperfeiçoar o trabalho de pesquisadores
léo ramos
Fabrício Marques
32 z maio DE 2015
A
Digitalização de livros da Biblioteca Brasiliana da USP: 4,8 mil volumes da coleção do bibliófilo José Mindlin já estão disponíveis on-line
multiplicação de projetos de digitalização de acervos de bibliotecas, arquivos e museus está modificando a forma como pesquisadores brasileiros trabalham. Nos últimos 15 anos, diversas instituições se empenharam em oferecer na internet documentos, fotografias e vídeos que antes só eram disponíveis em visitas agendadas. O resultado desse esforço é sensível. Em alguns casos, a facilidade de procurar e encontrar itens com ferramentas de busca ampliou acesso a informações difíceis de garimpar manualmente, potencializando a qualidade da pesquisa. Em outros exemplos, permitiu ao menos conhecer remotamente a amplitude de determinado acervo para organizar uma consulta presencial mais rápida e eficiente. “Estudantes e pesquisadores estão sendo formados nesse novo contexto. É um caminho sem retorno”, diz o historiador Pedro Puntoni, professor da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Núcleo de Cultura Digital do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). “A biblioteca e o arquivo em papel sempre vão ter importância, mas perdem espaço para a internet diante da facilidade de ter acesso a documentos, imagens e livros, assim como teses e revistas digitais disponíveis on-line”, afirma. De um computador pessoal em sua casa, o professor e pesquisador Wilton José Marques encontrou em meados de março um poema esquecido de um dos principais nomes da literatura brasileira, o escritor Machado de Assis (1839-1908), conhecido do leitor sobretudo pelos contos e romances. Não se trata de um poema qualquer, mas o primeiro, publicado no jornal Correio Mercantil, do Rio, em 9 de setembro de 1856, intitulado “O grito do Ipiranga”. Especialistas da obra de Machado consideravam que sua produção iniciara em 1858 com o poema “Esperança”, quando o autor, aos 19 anos, começou a trabalhar como revisor naquele jornal. O achado de Marques foi possível graças à digitalização do Correio Mercantil pela Biblioteca Nacional, que criou em 2009 sua hemeroteca digital (bndigital.bn.br/ hemeroteca-digital/). Marques, professor do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), diz que encontrou a poesia graças a “um pouco de faro e um pouco de sorte”. Procurava os primeiros poemas de Machado para uma pesquisa sobre influências românticas na obra do autor. “Fui conferir as fontes, olhando poema por poema das coletâneas, a partir de 1858. Por curiosidade, resolvi fazer a busca em anos anteriores e ‘O grito do Ipiranga’, apareceu”, diz. Marques decidiu interromper sua pesquisa e se dedica a um artigo sobre a poesia. “É um poema longo, uma glorificação do grito da independência e de dom Pedro I. Uma das características da literatura de Machado é a intertextualidade: ele dialoga com outras obras e referências históricas. Nesse primeiro poema, compara o tempo todo a Independência com a república romana”, diz Marques. Outro interesse do pesquisador é lançar luzes sobre a juvenpESQUISA FAPESP 231 z 33
S
e uma hemeroteca digital é fonte suficiente para levantar e conferir dados, a pesquisa de documentos históricos raramente dispensa a análise do arquivo físico, embora a digitalização consiga acelerar esse trabalho. A arquiteta Suely Figueirêdo Puppi tem utilizado o acervo digital do Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi para sua tese de doutorado, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sobre as técnicas de restauro e de projeto de Lina Bo Bardi (1914-1992), a arquiteta ítalo-brasileira conhecida por projetar o Museu de Arte de São Paulo (Masp). “Os projetos e desenhos de Lina disponíveis no site não têm a definição necessária para usar num livro, mas para uma tese são suficientes”, afirma Suely. Desde que começou o doutorado, em 2012, ela visitou algumas vezes a sede do instituto, em São Paulo, 34 z maio DE 2015
“O grito do Ipiranga”, poema esquecido de Machado de Assis publicado no jornal Correio Mercantil, encontrado graças à hemeroteca digital da Biblioteca Nacional
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para analisar documentos. “Faço uma pré-seleção on-line e já chego sabendo o que preciso”, afirma. A catalogação e a digitalização do acervo também foram úteis na comemoração do centenário de Lina. “Os desenhos foram de grande valia para os curadores das mostras sobre sua obra realizadas em Zurique e em Munique, além de duas exposições em Nova York em que Lina teve representação. A primeira avaliação do acervo foi feita a distância”, diz Renato Anelli, professor do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP em São Carlos, pesquisador responsável pelo projeto de digitalização. Os projetos e desenhos de Lina são o ponto forte do acervo digital. “Ela coloria e criava cenas e perspectivas nos projetos arquitetônicos. São desenhos fabulosos”, afirma Anelli. É possível consultar no banco de dados fichas sobre fotos e documentos escritos da arquiteta. O instituto começou a organizar o arquivo de Pietro Maria Bardi (1900-1999), criador do Masp. Bardi e Lina foram casados por 45 anos. As principais limitações dos acervos digitais são a sua impossibilidade de oferecer a experiência sensorial de ver ou manusear um documento histórico e também a dificuldade de fornecer todas as informações necessárias para contextualizar as circunstâncias em que cada documento foi produzido e armazenado. “Documentos de arquivos públicos têm uma peculiaridade. Eles fazem sentido dentro do contexto em que foram produzidos. Longe desse contexto, não são compreendidos na sua integridade”, diz Marcelo Chaves, diretor do Centro de Difusão e Apoio à Pesquisa do Arquivo Público do Estado de São Paulo. A possibilidade
fotos 1 reprodução correio mercantil 2 léo ramos
tude de Machado. “Imagine como numa sociedade escravocrata um jovem negro de 17 anos, com educação formal que a gente não sabe muito bem como foi obtida, conseguiu se inserir no universo intelectual do Rio de Janeiro e colaborar num jornal importante da época.” A Biblioteca Nacional tem um dos mais longevos programas de digitalização no país. Começou em 2006 e, hoje, oferece 900 mil documentos on-line, que rendem 400 mil consultas virtuais por mês. Há coleções de fotos, mapas e músicas. No mês passado, foi lançado o portal Brasiliana Fotográfica (brasilianafotografica.bn.br) com mais de 2 mil fotos históricas de coleções da própria biblioteca e do Instituto Moreira Salles. A maior parte do acervo digital é composta por jornais brasileiros. São 5 mil títulos, digitalizados com recursos da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). “Temos a prerrogativa do depósito legal, que é a recepção de um exemplar de todas as publicações produzidas em território nacional. Por isso, nossa coleção é a mais abrangente do país”, diz Angela Bettencourt, coordenadora da Biblioteca Nacional Digital. A decisão de oferecer os jornais se deveu também a uma questão prática: o acervo era dos mais consultados da instituição. A consulta aos jornais é simples – uma busca por palavra é suficiente para encontrar o que há sobre aquela referência. Para pesquisadores, a utilidade vai muito além da chance hipotética de encontrar um poema esquecido. O sociólogo Benno Warken Alves, de 25 anos, concluiu em 2014 sua pesquisa de mestrado, feita na USP com bolsa da FAPESP, sobre a trajetória de um empresário negro em Curitiba no século XX, Sydnei Lima Santos (1925-2001). Alves conseguiu referências sobre a trajetória de antepassados do empresário consultando na hemeroteca jornais de Sergipe, Rio de Janeiro e Paraná. “Se tivesse de procurar em microfilmes, não teria dado tempo ou talvez nem encontrasse.”
de extrair informação mais íntegra de um documento de arquivo, ele explica, está em conhecer a sua trajetória, a finalidade com que foi produzido e por onde circulou. “Sem isso, o documento perde parte de seu potencial informativo”, afirma. O trabalho do historiador Bruno de Andréa Roma, que atuou como estagiário do arquivo por dois anos, mostra esse desafio. Durante a graduação na USP, ele produziu, sob orientação do professor Carlos Bacellar, ex-coordenador do arquivo, um guia de fontes de tudo quanto existe sobre a Universidade
Lacunas na catalogação de documentos digitais podem resultados de pesquisa
Digitalização de mapas históricos no Arquivo Público do Estado de São Paulo: preocupação em oferecer metadados dos documentos
de São Paulo naquele grande acervo. “Guias e inventários são instrumentos fundamentais para se ter consciência do que existe num arquivo sobre determinado acervo, além de conhecer a trajetória dos documentos”, afirma Bruno, que agora faz mestrado sobre a fotografia no ambiente do arquivo. “A fotografia não tem um lugar tão bem situado quanto os demais documentos. No Arquivo do Estado, os negativos de coleções como a do jornal Última Hora estão num lugar, mas contatos e ampliações fotográficas, que trazem informações sobre o seu uso, estão em outro e não conversam entre si.”
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arcelo Chaves ressalta que a digitalização foi fundamental para democratizar a informação e sem ela não seria possível constatar, hoje, que franquear documentos na internet não é suficiente para torná-los realmente acessíveis. “As políticas de digitalização são irreversíveis, mas precisam ter critérios”, diz. Nos últimos tempos, Chaves foi incumbido pelo arquivo de orientar prefeituras e câmaras municipais paulistas e encontrou situações desastrosas. “Muitos prefeitos são convencidos por empresas especializadas de que a digitalização é um benefício em si e acabam transformando arquivos físicos desorganizados em acervos digienviesar tais inacessíveis, gastando muito dinheiro”, afirma. Nos últimos anos, o Arquivo Público do Estado de São Paulo dedicou-se a disponibilizar seu acervo na internet, tendo como carro-chefe o arquivo do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops), principal órgão da polícia política paulista, extinto em 1983. Há dois anos, lançou o portal Memória e Resistência, que permite a consulta pela internet de mais de 314 mil fichas e 12,8 mil prontuários – num total de 1 milhão de imagens – produzidos por órgãos de vigilância política entre 1924 e 1999. Os técnicos do arquivo avaliam que parte desse trabalho precisa ser corrigido e até refeito. Ocorre que, da forma massiva como foi feita a digitalização, informações relevantes sobre os documentos oferecidos não estão disponíveis para os usuários. Isso pode não ser um problema para quem apenas quer consultar o que consta em seu nome ou de algum familiar dentro do arquivo. Mas, no caso de pesquisadores, as lacunas são suficientes para enviesar resultados, observa o historiador Marcelo Quintanilha Martins, diretor do Centro de Acervo Permanente do arquivo. O acervo do Deops é formado por três arquivos distintos, pertencentes às suas delegacias especializadas: Ordem Social, Ordem Política e Serviço Secreto. Frequentemente, documentos estão interrelacionados. Mas isso nem sempre é perceptível na pesquisa on-line. “O Deops dialogava, por exemplo, com o FBI norte-americano, do qual recebia memorandos relacionados a ordens de prisão. Mas esse contexto não está disponível nos documentos digitalizados.” Nas cerca de 50 mil imagens digitalizadas atualmente pela equipe do arquivo a cada mês, os chamados metadados, informações que descrevem o que pode ser encontrado nos documentos, são catalogados utilizando um software de acesso aberto, o ICA-AtoM, que permite armazenar um conjunto abrangente de dados que ajudam a prevenir a perda do contexto. pESQUISA FAPESP 231 z 35
A ideia é revisitar documentos já digitalizados, enquadrando-os nesse padrão. A padronização dos dados não é uma discussão restrita a arquivos e bibliotecas. Giselle Beiguelman, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e organizadora do livro Futuros possíveis – Arte, museus e arquivos digitais, editado com apoio da FAPESP, chama a atenção para a figura do “colecionador on-line”, aquele indivíduo que oferece na internet documentos, imagens ou vídeos de valor histórico. “Com generosidade e investimento de tempo, eles disponibilizam fotos de família, memórias pessoais ou vídeos no YouTube com programas de TV da década de 1970 e filmes históricos desde o início dos anos 1920, que podem ter utilidade para pesquisadores, mas precisariam de padronização dos seus processos de catalogação e seus metadados”, diz Giselle. Ela menciona os problemas relacionados à “corporativização da memória”, que é o arquivamento de imagens e documentos em plataformas privadas, como Flickr e YouTube. “Cada uma delas organiza documentos de uma forma e há o risco de que sejam tirados do ar a qualquer momento, de acordo com o interesse das empresas. Não há uma discussão sobre sistemas de metadados padronizados para todos, inclusive as plataformas privadas”, afirma. A ideia de criar padrões, ela diz, é factível. “A internet é o melhor exemplo. Funciona a partir de protocolos e uso regrado de símbolos comuns, que todos seguem, como a arroba no endereço de e-mail.” Um dos artigos do livro, assinado por Monika Fleischmann e Wolfgang Strauss, do Mars-Exploratory Media Lab, da Alemanha, cita o conceito de mapa
semântico de conhecimento como possibilidade para registrar e visualizar um conjunto de informações acerca de um documento. “As entradas individuais dos arquivos são localizadas de modo relacional e os parentescos semânticos são visualizados”, dizem os autores.
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digitalização de acervos tem avançado mundo afora desde o início dos anos 2000. “Nos Estados Unidos, as universidades comandaram o processo de digitalização de bibliotecas”, diz Pedro Puntoni, que dirigiu a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin da USP entre 2007 e 2014 e desenvolveu a Biblioteca Brasiliana Digital. “Já a União Europeia financiou um consórcio para fortalecer as bibliotecas virtuais, capitaneado pela Gallica, da biblioteca nacional da França.” O Brasil, observa Puntoni, teve certo pioneirismo na década passada ao catalogar, microfilmar e digitalizar cerca de 3 milhões de páginas sobre os primeiros 300 anos de história do Brasil pertencentes ao Arquivo Histórico Ultramarino, de Portugal. O trabalho foi coordenado por Esther Bertoletti, da Biblioteca Nacional. Mas a digitalização de acervos no país foi prejudicada pela dificuldade de transformar projetos em programas permanentes. “Em muitos casos, equipes são contratadas por tempo determinado e se desarticulam quando há descontinuidade no financiamento ou no comando da instituição”, diz Puntoni. Em 2009, a FAPESP lançou uma chamada de propostas do Programa de Apoio à Infraestrutura de Pesquisa, na modalidade Museus e Centros Depositários de Informações e Documentos e de Coleções Biológicas, que selecionou 20 projetos,
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A redempção vai à internet Coleção de jornal abolicionista é recuperada O Arquivo Público do Estado de São
A coleção digitalizada veio
Paulo vai lançar no segundo semestre
do Instituto Histórico e Geográfico de
um site com 132 edições digitalizadas
São Paulo e boa parte dos exemplares
do jornal abolicionista A redempção,
estava em pedaços. Os restauradores
que circulou em São Paulo de 2 de
montaram os fragmentos do jornal
janeiro de 1887 até a promulgação da
com o auxílio de pinças, consultando
Lei Áurea, em 13 de maio de 1888 e era
cópias de microfilme dos exemplares
porta-voz do movimento abolicionista
existentes na Biblioteca Lamont,
da Organização das Nações Unidas
dos “caifazes”, grupo que resgatava
da Universidade Harvard, nos
para a Educação, a Ciência e a Cultura
escravos, levando-os a locais seguros.
Estados Unidos. Nesse processo,
(Unesco). O programa reconhece
“Era um jornal radical, com ataques a
foram encontrados sete exemplares
como patrimônio da humanidade
fazendeiros, políticos e a outros jornais,
que se imaginavam perdidos.
documentos, arquivos e bibliotecas
mesmo aqueles abolicionistas”, diz
A coleção foi incluída, no final de
de importância internacional,
Marcelo Quintanilha Martins, diretor do
2014, no Registro Nacional do Brasil
regional e nacional. O objetivo
Centro de Acervo Permanente do Arquivo.
do Programa Memória do Mundo,
é ampliar a difusão dos acervos.
36 z maio DE 2015
2
Edição histórica da abolição da escravatura do jornal: coleção digitalizada será oferecida no segundo semestre
O exemplo do Museu Imperial, de Petrópolis, resume os desafios de digitalizar acervos. A empreitada começou em 2009. Hoje, 8 mil itens estão disponíveis no site da instituição, entre documentos, livros e imagens de itens museológicos, o equivalente a 3% do acervo, e geram 2 mil acessos por mês. “A intenção é digitalizar a totalidade do acervo”, diz o historiador Jean Bastardis, coordenador da equipe contratada pela sociedade dos amigos do museu e incumbida de pesquisar documentos, descrevê-los, organizar a base de dados e disponibilizar o material no site. A prioridade é digitalizar conjuntos completos de coleções para facilitar o trabalho dos pesquisadores. Apesar dos seis anos de experiência, manter o processo de digitalização tem sido uma missão acidentada. A equipe é contratada por projeto. A cada ano repete-se o desafio de obter recursos de empresas ou de editais públicos.
E
fotos 1 acervo instituto lina bo e p. m. Bardi 2 léo ramos
Teatro do Sesc Pompeia em croqui de Lina Bo Bardi: site reúne desenhos da arquiteta modernista
muitos dos quais voltados para a organização, digitalização e oferta de documentos on-line. Foram contempladas instituições como o Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi, o Arquivo Público do Estado de São Paulo, o Museu Lasar Segall e o Instituto de Estudos Brasileiros da USP, entre outros. Órgãos como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a Petrobras e a Finep também se destacam na oferta de recursos para projetos de digitalização. Um grupo de instituições comprometidas com políticas de digitalização no Brasil reuniu-se na Rede Memorial para compartilhar experiências e ajudar a organizar acervos, além de desenvolver uma ferramenta de busca que reúna em um só lugar acervos digitalizados de todas as bibliotecas nacionais. “Houve na década passada uma boa oferta de recursos para projetos de digitalização no país, ao mesmo tempo que os equipamentos se tornaram mais baratos”, diz Millard Schisler, pesquisador e consultor na área de digitalização e preservação digital. Mas a corrida para oferecer acervos on-line, afirma ele, gerou distorções. “Era comum encontrar instituições que investiam muito em digitalização, mas pouco em conservação dos documentos originais, que ficavam acondicionados de forma precária”, diz Millard. Hoje, buscam-se estratégias sustentáveis. “Em vez de querer digitalizar tudo e em alta definição, é mais razoável oferecer as partes mais procuradas de um acervo, reservando recursos para a preservação dos originais. A digitalização deve ser vista como um complemento, não como a estratégia principal.”
ntre os itens mais procurados no site, destaca-se um livro de receitas do século XIX, O cozinheiro imperial, que descreve pratos da época e cardápios de banquetes. Pesquisadores têm mais interesse pelo arquivo da Casa Imperial, com documentos produzidos em Portugal que remontam ao século XIII. A experiência do museu mostra que o trabalho de divulgação é essencial. “Quando sai uma reportagem sobre algum item, a procura por ele tem picos”, diz Bastardis. A Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, com mais de 20 milhões de objetos digitais disponíveis on-line, ao constatar que a oferta na internet não é suficiente para disseminar o conhecimento, criou um programa pelo qual seus técnicos vão a cidades ensinar professores e bibliotecários locais a explorar seu acervo. Sem boa divulgação, acervos on-line não alcançam todo o público potencial. A digitalização de 100 horas de dramaturgia da extinta TV Tupi depositadas na Cinemateca Brasileira abriu caminho para estudos sobre novelas que antes eram inviáveis. Mas o material, disponível no site www.bcc.org.br/tupi/telenovelas, ainda é pouco explorado, diz Esther Hamburger, professora da Escola de Comunicações e Artes da USP. Ela foi a pesquisadora responsável pelo projeto que catalogou e digitalizou as 100 horas de gravação, e vem realizando estudos com o material. Segundo Esther, o arquivo da Tupi está num lugar ainda pouco visível. “É preciso ter estrutura de rede que possa receber muitos acessos. O banco de dados é sólido nesse sentido, mas o projeto precisa ser completado”, diz. O conteúdo da televisão deveria estar mais disponível on-line, afirma a pesquisadora. “Países como França e Suécia disponibilizam o conteúdo que foi ao ar na TV através de suas bibliotecas nacionais”, afirma. Ela pondera que ainda não existe no Brasil tradição em pesquisa histórica utilizando material que a televisão levou ao ar. pESQUISA FAPESP 231 z 37
A
s instituições também aprenderam que um projeto de digitalização, uma vez concluído, não chegou realmente ao fim. É preciso investir em manutenção e atualização tecnológica. “No caso de filmes, manter um arquivo digital pode custar até 10 vezes mais do que manter um arquivo físico”, diz o consultor Millard Schisler, citando o estudo O dilema digital, feito pelo Science and Technology Council da Academy of Motion Picture Arts and Sciences, de Hollywood, que comparou a manutenção de filmes em película e digitais. É preciso criar e manter bancos de dados, atualizar softwares e monitorar o estado dos documentos. A cada vez que um acervo migra para outro servidor ou formatos digitais são atualizados, estima-se que até 10% dos documentos se percam – e cabe a um gestor recuperá-los a partir dos originais. Inaugurada na USP em março de 2013, a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin incorporou no ano passado os volumes digitalizados pelo Projeto Brasiliana USP e criou seu acervo digital. Já foram digitalizados 4,8 mil dos 32 mil volumes do acervo composto por livros, manuscritos e periódicos raros garimpados ao longo de 80 anos pelo empresário José Mindlin (19142010). O trabalho de digitalização na biblioteca passa agora por uma atualização. Ocorre que boa parte dos livros disponíveis on-line foi digitalizada e submetida a um processo pelo qual a imagem colorida é convertida para apenas dois tons. O processo criou algo parecido como uma cópia xerox do original, em que o texto aparece sobre um fundo branco. A decisão foi tomada na época pelo Projeto Brasiliana USP para gerar imagens mais limpas e arquivos leves, facili2
1
tando o acesso para usuários com internet mais lenta e permitindo a economia de tinta em caso de impressão dos arquivos pelos usuários. Hoje, explica Jony Fávaro, especialista em digitalização da biblioteca, o método é diferente. Busca-se digitalizar as obras preservando características como o amarelecido das páginas, as marcas do uso e a reprodução fiel da capa. “Para um usuário que busca apenas o texto da obra, pode não fazer diferença”, afirma Sandra Guardini Vasconcelos, diretora da biblioteca e professora do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. “Mas, no caso de um historiador, uma reprodução fidedigna traz elementos importantes sobre a história editorial daquela obra.” A biblioteca planeja redigitalizar as primeiras obras, embora a prioridade seja oferecer as ainda não disponíveis. “Essa preocupação com o livro no seu suporte material, isto é, como objeto físico, é seguida por grandes instituições, como a British Library e a Bibliothèque Nationale de France”, diz Sandra. n
1 Bandeira do Brasil no período monárquico, do acervo digital do Museu Imperial 2 Fotografia de veste do imperador Pedro II disponível on-line
38 z maio DE 2015
fotos acervo museu imperial
Projetos 1. Acervo quadruplex da extinta TV Tupi (nº 2009/54923-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Programa Infraestrutura; Pesquisadora responsável Esther Império Hamburger (USP); Investimento R$ 446.934,77 (FAPESP). 2. Acervo do Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi: catalogação, digitalização e montagem de banco de dados on-line (nº 2009/54901-3); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Programa Infraestrutura; Pesquisador responsável Renato Luiz Sobral Anelli (USP); Investimento R$ 253.269,46 (FAPESP). 3. Preservação e difusão da memória pública: modernização e ampliação dos laboratórios do Arquivo Público do Estado de São Paulo (nº 2009/54965-1); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Programa Infraestrutura; Pesquisador responsável Carlos de Almeida Prado Bacellar (USP); Investimento R$ 1.692.982,33 (FAPESP). 4. Por uma Biblioteca Brasiliana digital (nº 2007/59783-3); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Pedro Luis Puntoni (USP); Investimento R$ 663.514,35 (FAPESP).
EXPERIMENTAÇÃO y
Wyss Institut
Microchip desenvolvido no Instituto Wyss, da Universidade Harvard, simula o funcionamento do pulmão humano
Com a ajuda do computador Pesquisadores brasileiros e estrangeiros discutem métodos para reduzir uso de animais em testes Bruno de Piero
A
busca por alternativas ao uso de animais em ensaios clínicos e testes de produtos intensificou-se na última década. Um dos casos mais representativos é o programa Tox 21 (Toxicologia do Século 21), criado com a colaboração de agências federais norte-americanas como os National Institutes of Health (NIH) e a Environmental Protection Agency (EPA). Lançado em 2008, utiliza modelos matemáticos e computacionais, aliados à genômica e à tecnologia robótica, para estudar a estrutura e a toxicidade de uma vasta coleção de compostos químicos. O objetivo é conhecer as vias pelas quais as toxinas agem no organismo e criar métodos capazes de predizer se um candidato a fármaco merece ser submetido a ensaio clínico. Ao descartar moléculas prejudiciais à saúde, evita-se a utilização de animais em testes de compostos previamente classificados como tóxicos. Em dois anos, foram estudadas mais de 10 mil substâncias. Os resultados estão disponíveis em plataformas virtuais. “O sucesso das próximas etapas do programa depende de colaborações
mais, robustas, envolvendo companhias farmacêuticas”, diz Raymond Tice, do National Institute of Environmental Health Science dos Estados Unidos, instituição envolvida no Tox 21. Tice participou do workshop Challenges and Perspectives in Research on Alternatives to Animal Testing, realizado na FAPESP em março. Segundo ele, o paradigma dos testes em animais não incorpora avanços para tornar o processo mais seguro e preciso. Eduardo Pagani, gerente de desenvolvimento de fármacos do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), mostrou no workshop como modelos computacionais são capazes de comparar a estrutura de uma molécula candidata com a de outras já testadas e definir se vale a pena seguir com seu desenvolvimento. O LNBio, que trabalha nessa frente, busca parcerias. No caso, com grupos que dominam a tecnologia de organs-on-a-chip. Trata-se de uma técnica em estudo nos Estados Unidos e na Alemanha que usa células para desenvolver tecidos humanos integrados a microchips, capazes de reproduzir o funcionamento de órgãos vivos. “Queremos atuar no campo de mimetização de tecidos”, ressalta Pagani. Pesquisadores que participaram do workshop trouxeram novas discussões sobre o uso de modelos animais em pesquisa. Tais modelos apresentam semelhança com o ser humano de apenas 60%, disse Thomas Hartung, do Center for Alternatives to Animal Testing
do Johns Hopkins University Hospital, nos Estados Unidos. Hartung citou o exemplo da aspirina, comprovadamente segura aos seres humanos, mas que seria reprovada em testes em animais por promover malformações fetais em certos modelos. “Procuramos apresentar aos pesquisadores brasileiros a importância do uso dos métodos alternativos e suas limitações, além da necessidade de um delineamento experimental criterioso”, diz Lorena Gaspar Cordeiro, professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), uma das organizadoras do evento. Alguns métodos apresentados no workshop buscam alternativas ao uso de mamíferos, como o zebrafish, conhecido no país como peixe paulistinha, e a larva do inseto Galleria mellonella (ver Pesquisa FAPESP nº 220). “Cerca de 75% dos 26 mil genes do zebrafish são semelhantes aos humanos”, diz a geneticista Cláudia Maurer-Morelli, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Já as larvas têm mecanismos imunológicos similares aos dos mamíferos. “A cutícula da larva funciona como uma pele. Quando se injeta uma substância tóxica, ela reage e escurece”, explica Maria José Giannini, professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Araraquara, da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “O Brasil caminha para acompanhar o que acontece em países como os Estados Unidos e os da Europa”, diz Giannini, coordenadora do workshop. n pESQUISA FAPESP 231 z 39
Inovação y
Uma rede para estudar as emoções Centro de pesquisa vai integrar áreas do conhecimento com o objetivo de avaliar e promover o bem-estar
A
FAPESP e a Natura aprovaram a proposta de criação de um centro de pesquisa aplicada em bem-estar e comportamento humano, com sede no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). O projeto é liderado por Emma Otta, professora do Departamento de Psicologia Experimental do instituto, e reúne mais de 40 cientistas e suas equipes que atuam em áreas complementares, em universidades como a USP, as federais de São Paulo (Unifesp) e do Rio Grande do Sul (UFRGS), o Mackenzie, além de instituições norte-americanas como New York University, University of Florida e Washington State University. O objetivo principal é criar uma base de conhecimento capaz de avaliar e promover o bem-estar, integrando campos do conhecimento como a neurociência, a etologia, a psicologia social e a psicologia positiva, que estuda emoções como a felicidade e o prazer, além das ciências da saúde, humanas e sociais aplicadas. “De caráter interdisciplinar, o centro reúne pesquisadores unidos pelo interesse de estudar as emoções e pela valorização de intervenções que busquem a educação 40 z maio DE 2015
emocional”, define Emma Otta. “Historicamente, tanto a psicologia quanto a neurociência focalizaram o estudo de processos não emocionais, como atenção, solução de problemas, memória. Hoje, considera-se a emoção um tema legítimo de estudo e passível de investigação por métodos com rigor científico.” Segundo Gerson Pinto, vice-presidente de inovação da Natura, trata-se de um modelo inédito de centro integrado envolvendo uma empresa brasileira para investigar um tema ainda pouco explorado na academia. “A Natura já desenvolve pesquisa científica em bem-estar há oito anos e o centro terá papel fundamental na ampliação da nossa visão sobre o tema, construindo uma rede robusta de conhecimento, principalmente nas áreas de psicologia e neurociências, e nos permitindo cada vez mais trazer inovação relevante relacionada a indivíduos e suas relações”, explica. “A iniciativa trará a oportunidade de reconhecer caminhos mais assertivos para a promoção de bem-estar por meio de nossos produtos e serviços, tanto do ponto de vista do indivíduo quanto do coletivo.” De acordo com Gerson Pinto, também se espera
grande difusão do tema do bem-estar na sociedade, incluindo o setor de educação e a geração de oportunidades de negócios para empreendedores. O investimento na implantação e na condução do centro será de R$ 20 milhões em 10 anos, divididos igualmente entre a Natura e a FAPESP. A iniciativa foi aprovada no âmbito do Programa FAPESP de Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite), que apoia projetos em instituições de pesquisa desenvolvidos em cooperação com empresas e cofinanciados por elas. Mas combina práticas de outro programa da Fundação, os Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid), que apoia por longo prazo equipes multidisciplinares dedicadas a temas na fronteira do conhecimento e busca conectar a pesquisa científica com a inovação, a educação e a transferência de tecnologia. O trabalho do centro será organizado em quatro grandes linhas. A primeira delas, voltada para a avaliação de bem-estar, prevê a realização de estudos epidemiológicos e de coorte (em que um grupo específico é seguido por um prazo longo), e o desenvolvimento de novos indica-
Um dos desafios do centro é criar indicadores objetivos para avaliar sensações subjetivas
dores capazes de avaliar o bem-estar na população brasileira. Um dos principais desafios é criar critérios para avaliar as sensações subjetivas associadas ao bem-estar com indicadores objetivos. “Há maneiras de fazer isso, associando, por exemplo, o relato dos indivíduos sobre emoções positivas ou negativas com sua atividade cerebral, sudorese e batimentos cardíacos”, diz Emma Otta.
ilustraçãO Gary Waters / getty images
odores
A segunda linha tem como foco a expressão emocional e o reconhecimento das emoções. Estudos buscarão identificar expressões emocionais por meio de protocolos de observação de comportamento e de respostas como reações visuais ou a ativação da emoção por odores. “Os cheiros podem evocar reações emocionais e queremos entender como o bem-estar pode ser afetado positivamente pelo olfato”, explica a pesquisadora. A terceira linha, denominada Medidas Neurofisiológicas de Afeto, prevê estudos clínicos e experimentais sobre a autorregulação emocional, que reúne os processos que gerenciam impulsos e emoções. Respostas fisiológicas a odores
também serão investigadas nesse tópico. A quarta linha de pesquisa tem como foco intervenções para estimular a autorregulação emocional. Propõe estudos na área da psicologia positiva, saúde pública e psicologia comportamental capazes de promover a autorregulação emocional, o bem-estar subjetivo, as habilidades sociais de crianças e adultos e a resiliência, conceito psicológico emprestado da física que define a capacidade de lidar com problemas e resistir à pressão de situações adversas. O centro tem como bagagem um histórico de projetos de pesquisa como o projeto temático Interação mãe-bebê: Depressão pós-parto como um fator de risco para o desenvolvimento, encerrado em 2012, que acompanhou a depressão pós-parto em mães de São Paulo. Liderado por Emma Otta, o projeto teve como pesquisadoras principais Vera Sil-
via Raad Bussab, do Departamento de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da USP, e Maria de Lima Salum e Morais, do Instituto de Saúde, que também participam do novo centro. “As várias equipes vêm detalhando o plano de trabalho e estão muito motivadas para começar logo”, afirma Emma Otta. Os pesquisadores irão interagir com profissionais da vice-presidência de Inovação da Natura, em particular com os da área de Ciências do Bem-estar. O vice-diretor do centro será definido pela Natura. n Fabrício Marques
Projeto Positive psychology and neuroscience translational research to promote well-being and emotional regulation (nº 2014/50282-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite); Pesquisadora responsável Emma Otta (Instituto de Psicologia-USP); Investimento R$ 10 milhões (FAPESP), R$ 10 milhões (Natura), em 10 anos.
pESQUISA FAPESP 231 z 41
Biocombustíveis y
Para um futuro mais equilibrado Comitê avalia 2 mil estudos e sugere que é possível expandir bioenergia sem gerar danos ambientais
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mas FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen), de Pesquisas em Caracterização, Conservação, Restauração e Uso Sustentável da Biodiversidade (Biota) e de Pesquisa em Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG), convidados pelo Scope para elaborar o relatório. O comitê foi criado em 1969 com o objetivo de avaliar a produção de conhecimento sobre meio ambiente e fornecer informações para pesquisadores e formuladores de políticas públicas por meio de seminários e publicações anuais. A íntegra do documento está disponível no endereço bioenfapesp.org/scopebioenergy. O relatório fornece dados e resultados de pesquisas combinados com uma análise do panorama atual da bioenergia e uma revisão crítica de seus impactos. “A bioenergia pode contribuir para alterações geopolíticas, por ser flexível e sustentável, e por seu papel na mitigação das mudanças climáticas. As vantagens da produção adequada de bioener-
Com o conhecimento e práticas que se têm hoje em relação à bioenergia, 30% do abastecimento de combustíveis no mundo poderia ser fornecido por biomassa até 2050
ilustraçãO daniel kondo
C
om técnicas sustentáveis de produção de bioenergia já disponíveis, seria possível prover até 30% da energia mundial até 2050, cerca de 10 vezes mais do que o quinhão atual, sem prejudicar a biodiversidade ou colocar em risco a segurança alimentar da população. O cenário foi apresentado no relatório internacional Bioenergy & sustainability: Bridging the gaps, resultado de uma parceria entre a FAPESP e o Comitê Científico para Problemas do Ambiente (Scope, na sigla em inglês), órgão independente que colabora com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Lançado no mês passado na sede da FAPESP em São Paulo, o documento de 700 páginas baseou-se em cerca de 2 mil estudos científicos e avaliações feitos por 137 especialistas de 24 países, envolvendo mais de 80 instituições de pesquisa. O trabalho foi coordenado por pesquisadores dos progra-
Conclusões do relatório Com base na revisão de mais de 2 mil trabalhos científicos, o documento Bioenergy & sustainability: Bridging the gaps afirma que: Novas tecnologias podem prover as comunidades com segurança alimentar,
O desenvolvimento da
energética e
bioenergia pode estimular o
econômica, além de
abastecimento de alimentos
desenvolvimento
das comunidades ao melhorar
social, com a
práticas de cultivo agrícola e
utilização mais
de gestão de solos e promover
efetiva de água,
o desenvolvimento rural
nutrientes e outros recursos
O uso de bioenergia, se feito cuidadosamente, pode contribuir para a diminuição da poluição do ar e da água
Iniciativas amparadas e monitoradas por políticas públicas e boa gestão podem ajudar
Espaço suficiente Quantidade aproximada de terras usadas para a produção de bioenergia e de alimentos no mundo
a proteger a biodiversidade e fornecer serviços ambientais, Total global de terras
como a recuperação
13 bilhões de hectares
de solo degradado
1,5 bilhão Menos de
sustentáveis de bioenergia
13 a 60 milhões
podem contribuir para uma
de hectares são
Ganhos de eficiência e práticas
economia de baixo carbono, reduzindo as emissões de gases de efeito estufa
usados atualmente para a produção de bioenergia
de hectares são destinados
50 a 200 milhões de hectares são necessários para a expansão da bioenergia
para culturas agrícolas e terras aráveis
O exemplo da cana-de-açúcar Como produzir etanol de forma sustentável segundo o relatório do Scope Plantas com características superiores Novas variedades de cana mais produtivas e resistentes à seca ou a solos pobres vêm sendo desenvolvidas
Colher sem queimar A substituição das queimadas por colheita mecanizada reduz drasticamente a contribuição da cana para o aquecimento global
Proteção do solo O plantio direto, que consiste na abertura de pequenos sulcos para o cultivo de mudas sem arar a terra, pode proteger o solo da erosão. Resíduos deixados por safras anteriores ajudam a fertilizá-lo
Reciclagem de resíduos industriais A vinhaça é um resíduo resultante da produção do álcool da cana-de-açúcar e pode ser empregada como fertilizante nos canaviais, em razão de seus altos teores de potássio
Geração de eletricidade A queima do bagaço de cana é usada para gerar vapor e fazer funcionar geradores elétricos 44 z maio DE 2015
gia têm respaldo científico”, diz Glaucia tura, preservação ambiental e produção Mendes Souza, membro da coordenação de bioenergia geralmente trabalhadas em do Bioen e coeditora do documento, re- separado. O relatório sugere que a comferindo-se, por exemplo, ao caráter reno- binação de silvicultura, isto é, o plantio vável dos biocombustíveis e aos avanços de áreas de reflorestamento, com a prorecentes da bioenergia com o desenvol- dução de bioenergia, integrando áreas vimento de variedade pastagem e de flodes de plantas cada restas, pode suavizar vez mais produtivas. os efeitos das mudanO documento sustenças climáticas além de ta que o aumento do não comprometer a “As vantagens cultivo de biomassegurança alimentar. da produção sa para geração de “Culturas agrícolas energia não precisaria adequadamente geadequada de avançar sobre floresrenciadas podem ajutas nem sobre áreas dar a manter a qualibioenergia têm agrícolas hoje desdade do solo e até tinadas à produção mesmo resultar em respaldo de alimentos. Há acúmulo de carbono, científico”, diz terra suficiente reduzindo as emispara produzir sões de CO2”, explica a pesquisadora bioenergia, ocuPaulo Artaxo, profespando áreas de sor do Instituto de FíGlaucia Souza pecuária extensica da Universidade siva e solos degrade São Paulo (USP) e dados. Jon Samseth, coautor do relatório. pesquisador da Oslo Uma das recomendaand Akershus Unições do Painel Interversity College of governamental sobre Applied Sciences, na Noruega, e presi- Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla dente do Scope, enfatizou a participação em inglês), por exemplo, é a adoção do do Brasil na elaboração do relatório, por plantio direto nas lavouras. A técnica ser um dos países que mais se destacam consiste na abertura de pequenos sulcos no desenvolvimento da bioenergia dentro para o plantio de mudas, sem arar a terra. da comunidade científica global. “Ener- Com isso, o solo é protegido de erosão e gias renováveis suprem 41% das neces- resíduos deixados por safras anteriores sidades energéticas do Brasil. Nos países ajudam a fertilizá-lo. nórdicos, por exemplo, o percentual é de 30% a 35%”, comentou Samseth. Expansão e ressalvas Apesar dos avanços científicos e Uma proposta apresentada no relatório tecnológicos, os autores do estudo é expandir a produção de bioenergia em reconhecem que a expansão dos conjunto com a de alimentos. Segundo biocombustíveis depende do res- o documento, a disponibilidade de terpaldo de políticas públicas para ra para agricultura no planeta está conse sustentar em nível global. Ho- centrada na América Latina e na África je, 87% da demanda de energia no Subsaariana e boa parte é usada para pasmundo é atendida pelo consumo de tagens de baixa intensidade. De acordo combustíveis fósseis e energia nuclear. com Luiz Augusto Horta Nogueira, da “Reverter esse quadro implica triplicar Universidade Federal de Itajubá, coautor a produção de bioenergia moderna até de alguns capítulos do relatório, apro2030”, estima Glaucia, referindo-se às ximadamente 360 milhões de hectares formas mais eficientes de transforma- de terras adequadas para a agricultura ção de biomassa em combustíveis, como de sequeiro (plantio em lugares secos) o etanol de milho e de cana, e o biodiesel estão disponíveis na América Latina e de soja e dendê. no Caribe, o que corresponde a 37% do Para chegar lá, de acordo com a pes- total mundial e mais de três vezes a área quisadora, é preciso converter o conhe- necessária para atender às necessidades cimento científico em políticas públicas e alimentares do mundo. “Apenas 20% integrar estratégias voltadas para agricul- dessa área poderia produzir biocom-
bustíveis equivalentes a 11 milhões de barris de petróleo por dia, mais do que a produção de hoje dos Estados Unidos ou da Arábia Saudita”, diz ele. Convidado para comentar o relatório no evento de lançamento, o chileno Luiz Felipe Duhart, consultor e ex-chefe do escritório regional da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) na América Latina, afirmou que a expansão da bioenergia na região precisa levar em conta impactos sociais como distorções de preços dos alimentos e o avanço da monocultura. “Não podemos descartar o perigo de o preço de alimentos ser afetado com o avanço da produção de biocombustíveis”, diz ele. “Os Estados Unidos passaram a produzir etanol a partir do milho e isso contribuiu para aumentar o valor da commodity na América Central, onde a cultura está na base alimentar da população. Isso precisa ser evitado”, completou. O relatório do Scope sugere que se faça um monitoramento dos preços de alimentos que servem de matéria-prima para bioenergia e reconhece que as terras para expansão estão principalmente na América Latina e na África. Também sustenta que não foram encontradas evidências científicas de que a produção de bioenergia ocasione aumento no preço de alimentos. Durante o evento, Duhart foi questionado sobre a possibilidade de a bioenergia criar condições para o avanço da monocultura, considerada por ambientalistas uma ameaça à biodiversidade. “No caso do Brasil, não vemos a cana-de-açúcar como uma monocultura. Há uma grande quantidade de hectares plantados, mas nada parecido com o que ocorre na Indonésia, onde em toda a ilha predomina o cultivo de palma para a produção de óleo”, disse. No Brasil, afirmou Duhart, tem-se investido em técnicas para aumentar o rendimento da cana. Um exemplo é o etanol celulósico, também chamado de etanol de segunda geração, feito a partir de resíduos agroindustriais, como bagaço de cana. No entanto, o relatório do Scope é enfático em relação a essa técnica: o etanol de segunda geração ainda é produzido em escala inicial, em via de implantação comercial e em poucos lugares no mundo
Panorama em transformação O que está mudando na produção de bioenergia, segundo o relatório do Scope Uso da água Nos anos 1990, para produzir 1 litro de etanol eram necessários 6 litros de água. Em 2012, a taxa caiu para 2,7 litros de água por litro de etanol produzido Carros mais eficientes Pesquisas apontam melhorias da eficiência energética do etanol, como a combinação da injeção eletrônica de combustível com turbocompressor em motores mais potentes e econômicos Madeira e poluição Lascas e pellets (pequenas pastilhas prensadas e desidratadas) de madeira estão sendo usados para fornecer energia a aquecedores residenciais. Pellets têm alto poder calorífico e liberam baixa quantidade de compostos químicos na queima Pastagens Com as pastagens já existentes, seria possível produzir quatro vezes mais animais. A intensificação de pastagens pode gerar áreas excedentes para bioenergia e agricultura
Rendimento das safras A produtividade da cana-de-açúcar aumentou nas últimas três décadas a uma taxa média de 4% ao ano. Projeções do relatório mostram que de 2010 para 2020 o aumento da produção poderá chegar a 50%
– um deles é o Brasil. Segundo o documento, é necessário reduzir o custo das tecnologias envolvidas nesse processo. Pellets e lascas
O relatório lançado na FAPESP apresenta outras iniciativas adotadas mundo afora. Uma delas é o Akershus, um centro de distribuição de aquecimento implantado na Noruega em 2011. As principais matérias-primas utilizadas no centro são lascas e pellets de madeira – partículas desidratadas e prensadas com alto poder calorífico –, que podem ser usados como combustíveis para caldeiras residenciais, industriais e usinas termelétricas. O pellet é considerado um combustível limpo, renovável e usado na geração de calor em outros países da Europa. O calor é distribuído na forma de água quente por meio de tubulações que conectam casas e prédios à planta fornecedora. Outro caso avaliado pelo Scope é o plantio do pinhão-manso (Jatropha curcas) na África, usado na produção de biodiesel. Por não servir de alimento para o gado, a planta é predominantemente cultivada em fileiras em torno de outras culturas, servindo inclusive como barreira para o vento e a erosão. Segundo o relatório, organizações não governamentais estão incentivando o plantio da Jatropha como estratégia de desenvolvimento rural. Em alguns locais, foram criadas cooperativas de pequenos agricultores, em parceria com empresas que fornecem equipamentos, infraestrutura e compram as sementes. O subproduto resultante da produção do biodiesel é usado como fertilizante, também comercializado pelos pequenos produtores. Mas ainda há dúvidas sobre o futuro dessa estratégia. “A Jatropha é uma planta de baixa produtividade, que sofre várias doenças. Por isso, ela teve sucesso apenas em algumas poucas regiões”, diz Glaucia Souza. “Esse exemplo mostra como a produção de bioenergia deve ser tratada de diferentes perspectivas. Do ponto de vista científico, a Jatropha ainda precisa de mais estudos sobre produtividade e adaptação ao ambiente. Do ponto de vista das políticas públicas, depende da articulação entre pequenos produtores, empresas e governo local. A viabilidade econômica e social de uma biomassa depende do contexto local”, explica. n pESQUISA FAPESP 231 z 45
ciência ambiente y
Terra frágil Análises de imagens de satélite indicam perda de 266 mil km2 do Cerrado e 90 mil km2 da Caatinga, aumentando riscos de falta d’água e de desertificação
Carlos Fioravanti
C
atolé do Rocha, município do sertão da Paraíba com quase 30 mil moradores, está ficando ainda mais quente e seco, à medida que a vegetação natural se esvai. Em oito anos, de 2005 a 2013, de acordo com um estudo de pesquisadores de universidades da Paraíba e do Rio Grande do Norte, a área de caatinga rala encolheu 48% e a de caatinga densa, 13,5%, enquanto a agrícola deu um salto de 823%, de 2,45 mil para 22,64 mil hectares. Os autores desse levantamento concluíram que “a vegetação local foi suprimida indiscriminadamente” e houve “um crescimento exorbitante” das áreas ocupadas principalmente com a criação extensiva de bois. Somando muitas situações como essa, de 1990 a 2010 a Caatinga perdeu 9 milhões de hectares – ou 90 mil quilômetros quadrados (km2), quase a área de Portugal – de vegetação nativa, em consequência do desmatamento e da expansão da agropecuária e do uso de madeiras de árvores nativas como fonte de energia (lenha) em residências e pequenas indústrias, de acordo com um levantamento mais amplo publicado em março
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fábio colombini
Queimada no Cerrado em 2006 no Parque Nacional das Emas, em Goiás pESQUISA FAPESP 231 z 47
na revista Applied Geography. Esse trabalho in- dos 185 municípios do estado –, principalmendica que, nesses 20 anos, a taxa de derrubada te no sertão, estão sujeitas a um risco elevado da vegetação natural aumentou na Caatinga (de de desertificação. Um de seus estudos recentes 0,19% ao ano de 1990 a 2000 para 0,44% ao ano indicou que quase toda a região de desenvolvina década seguinte), embora os levantamentos mento do sertão do São Francisco, onde se culdo Ministério do Meio Ambiente indiquem uma tivam frutas irrigadas, encontra-se sob risco de queda do desmatamento nesse ecossistema. Pa- se transformar em um areal estéril (75% da área ra os autores do artigo, a divergência decorre encontra-se sob risco moderado e 23% sob risdo conceito de paisagem natural – eles preferi- co severo). Ali, ele explicou, o consumo de água ram não incluir as áreas cobertas puramente por para a irrigação das plantações excede a capacigramíneas, que o governo federal considerou – e dade dos rios, cuja vazão diminui, prejudicando da escala temporal (duas décadas em um caso e toda a área que percorrem. “A Caatinga é muito frágil”, diz ele. “Em alguns caquase uma década em outro). sos, o melhor seria não mexer.” A eliminação da vegetação Especialistas verificaram nativa – ainda mais prejudicial que 94% do Nordeste brasiquando feita por meio do uso 94% do leiro, além do norte de Minas do fogo, que destrói a matéria Nordeste, além Gerais e Espírito Santo, apreorgânica do solo – deixa a terra senta uma suscetibilidade que descoberta, com maior capacido norte de varia de moderada a alta à dedade para absorver a radiação sertificação e indicaram as solar, desse modo elevando a Minas Gerais áreas com maior potencial de temperatura local, acelerando a se tornarem areais estéreis até evaporação da água e diminuine Espírito o ano de 2040. Nesse levantado a resistência à erosão causaSanto, está mento, as áreas mais suscetída pelo vento e pelas chuvas, veis expandiram-se quase 5%, que arrastam a matéria orgânica sob risco de o equivalente a 83 km2, de 2000 e reduzem a fertilidade de solos pouco férteis e a capacidade de a 2010. “Esse estudo foi o pridesertificação reter água. Além disso, alertam meiro no Brasil a produzir um os especialistas, a erosão causadiagnóstico a partir da análise da pelas chuvas – raras, mas geintegrada dos principais indiralmente torrenciais – promove cadores de degradação e deo assoreamento de rios, aumensertificação”, diz Rita Vieira, tando o risco de inundações, e expõe as rochas pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas antes cobertas pela terra, dificultando a volta das Espaciais (Inpe) e principal autora desse estudo, plantas e mesmo o uso da terra para fins agrícolas. publicado na Solid Earth. Segundo ela, os resulEm Catolé do Rocha, a área exposta de rochas, os tados foram apresentados à Comissão Nacional chamados afloramentos, aumentou 27%, passando de Combate à Desertificação, que orienta a imde 578 para 734 hectares, em oito anos. plementação de compromissos internacionais assumidos pelo país. “Reduzir o risco de desertificação é um proa Caatinga, outra ameaça, que se agrava, é a desertificação. “O que mais contribui para cesso lento. O primeiro passo é mudar a forma de desencadear o processo de desertificação é lidar com a terra e parar de desmatar”, diz Carlos o mau uso da terra, com o desmatamento e mui- Magno, um dos coordenadores do Centro Sabiá, tas vezes o uso do fogo, agravado pelas condições uma organização não governamental sediada em climáticas”, diz Iêdo Bezerra Sá, pesquisador da Recife. Com financiamento do governo federal, o Embrapa Semiárido. Com sua equipe, ele exami- centro está trabalhando com 200 famílias de penou a região de Cabrobó, no sertão de Pernambu- quenos proprietários rurais do agreste e do sertão co, um dos núcleos de desertificação do nordeste de Pernambuco para recuperar 100 hectares de brasileiro, a 400 km a sudoeste de Catolé do Rocha. áreas sujeitas à desertificação com os chamados Ali, os solos são arenosos, permeáveis e incapazes sistemas agroflorestais, que consistem no plantio de reter as águas das chuvas. Seus levantamentos de plantas diferentes como milho, feijão, abóboindicaram que a área com grau severo de deserti- ra, batatas, forrageiras e frutas como umbu e cajá ficação, associado à ocupação agropecuária, era já em meio à Caatinga. “Estamos reconstruindo a ideia de que a Caade 100 mil hectares (1 mil km2) e com grau acentuado, em terras ocupadas pela caatinga arbórea, tinga é uma floresta e que precisa ser preservada”, diz Magno. de 519 mil hectares (5 mil km2). No dia 16 de abril, ele saiu de seu escritório Sá está concluindo um levantamento que indica que 9 das 12 regiões de Pernambuco – ou 122 em Caruaru e viajou 30 km até o município de
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Queimada no cerrado e buritizal de Boa Vista, Roraima, em 2014
Bezerros para visitar Maria Idalvonete Julião da Silva, dona de 3 hectares, que participa desse projeto. Motivada pela perspectiva de aumentar a produção de alimentos mesmo em tempos mais secos, Idalvonete separou 1 hectare e plantou palma forrageira e leucena, que servem de alimento para o gado, feijão guandu, mamão e abacaxi. “Além de servir aos animais e às pessoas”, ele argumenta, “os cultivos conservam o solo; a água, quando chega, fica no solo, cheio de raízes, em vez de ir embora”. Em um levantamento com 15 famílias que adotam essa estratégia há mais de 10 anos, ele verificou que “depois das grandes secas e chuvas os sistemas agroflorestais voltam a produzir alimentos mais rapidamente que os sistemas agrícolas convencionais, o que implica uma exploração excessiva do solo da Caatinga.”
fábio colombini
Cerrado
No estudo publicado na Applied Geography, a equipe coordenada por René Beuchle, do Joint Research Centre da Comissão Europeia, da Itália, examinou também outro amplo ecossistema brasileiro, o Cerrado, que perdeu ainda mais que a Caatinga. Em 20 anos, a área de Cerrado sofreu uma redução de 26 milhões de hectares – ou 260
mil km2, o equivalente ao dobro da área da Inglaterra, também pela expansão da agropecuária. Outra conclusão é de que a taxa de derrubada da vegetação natural caiu no Cerrado (de 0,79% ao ano de 1990 a 2000 para 0,44% ao ano na década seguinte), dessa vez concordando com as conclusões do governo sobre o recuo do desmatamento. Para ver o que se passava na Caatinga e no Cerrado, a equipe coordenada por Beuchle analisou 974 imagens do satélite Landsat, com resolução de 30 metros, que registraram as mudanças na cobertura vegetal do solo em 1990, 2000, 2005 e 2010 em 243 áreas amostrais, cada uma com 10 km por 10 km. Os dois ecossistemas cobrem 35% do território brasileiro e estão entre os ambientes naturais mais ameaçados do planeta devido à conversão de matas nativas para uso agrícola. Hoje a vegetação nativa da Caatinga ocupa 63% de sua área original e a do Cerrado, 47%, de acordo com esse estudo. Levantamentos do governo federal consideram a área remanescente de cobertura vegetal um pouco maior, nos dois casos. Há consenso, porém, de que a área de vegetação nativa preservada por meio de unidades de conservação ainda é muito limitada: 7,5% da Caatinga e 8% do Cerrado. pESQUISA FAPESP 231 z 49
As transformações nesses ecossistemas não são noticiadas tanto quanto as de outros dois biomas brasileiros, Mata Atlântica e Amazônia, porque, em parte, não é simples detectá-las. Nas imagens de satélite feitas na estação seca – e a maioria das imagens usadas são dessa época, por causa da ausência de nuvens de chuva –, “é difícil separar as árvores sem folhas do Cerrado e da Caatinga de outras coberturas da terra, incluindo as áreas agrícolas”, diz Beuchle. Em contrapartida, as imagens da Mata Atlântica e da Amazônia exibem um claro contraste entre a floresta alta e densa e as áreas desmatadas, mais baixas. Além disso, diferentemente da Mata Atlântica e da Amazônia, a Caatinga e o Cerrado não foram reconhecidos como patrimônios naturais. O Ministério do Meio Ambiente observa, em seu site: “Devemos reconhecer que a Caatinga ainda carece de marcos regulatórios, ações e investimentos na sua conservação e uso sustentável”. Segundo o ministério, uma das medidas fundamentais nesse sentido seria a aprovação da proposta de emenda constitucional que transforma a Caatinga e o Cerrado em patrimônios nacionais, o que poderia facilitar a implantação de medidas voltadas à conservação desses ambientes.
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Edson Sano, pesquisador da Embrapa Cerrados que trabalhou com Beuchle nessa análise, concluiu que a redução de áreas de vegetação nativa, principalmente no Cerrado, reflete a expansão agrícola do final da década de 1990, “quando a terra no Centro-Oeste ainda era barata e a produção no Sul e Sudeste já estava saturada”. Segundo ele, a partir do ano de 2000, porém, essa expansão desacelerou, por causa da elevação do custo da terra, do aumento da fiscalização (hoje os fazendeiros têm de obter autorização de órgãos federais ou estaduais para cortar a vegetação nativa, sob o risco de perder o direito de uso da área) e dos ganhos de produtividade proporcionados por novas tecnologias de cultivo. “Agora a tendência é de redução”, diz ele.
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o estado de São Paulo, de acordo com o mapeamento mais recente, de 2010, o Cerrado ocupa 847,4 mil hectares, o equivalente a 8,5% da área original, de 9,9 milhões de hectares, e apenas 25,9 mil hectares estão protegidos por algum tipo de unidade de conservação. Matas desse tipo de vegetação ainda podem ser vistas nas regiões de Ribeirão Preto, Franca, São José do Rio Preto, Bauru, Sorocaba e Cam-
Xique-xique em solo rochoso da Caatinga de Caicó, Rio Grande do Norte: ambiente frágil
Um sinal do avanço da pecuária em Currais Novos, Rio Grande do Norte
fotos fábio colombini
Para cumprir acordos internacionais, o estado de São Paulo teria de plantar 800 mil hectares de Cerrado
pinas, entre outras, acossadas pelas plantações de cana-de-açúcar (ver Pesquisa Fapesp nº 170). “Para atingir as metas de recuperação de acordos internacionais, que propõem a recuperação de 17% da área original terrestre de cada bioma, teríamos de plantar cerca de 800 mil hectares de Cerrado em São Paulo”, informa Marco Aurélio Nalon, pesquisador do Instituto Florestal e um dos coordenadores do Inventário Florestal da Cobertura Vegetal Nativa do Estado de São Paulo. Com os números e os mapas à mão, Nalon tem se reunido com outros especialistas de órgãos ambientais do estado com o propósito de repor o que for possível das matas perdidas. Não é só São Paulo que está se mobilizando. Em janeiro deste ano, o Ministério do Meio Ambiente apresentou para debate público a versão preliminar do Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa, elaborado com base na Lei de Proteção da Vegetação Nativa, de 2012, para incentivar o plantio de espécies nativas, a restauração de áreas degradadas e as práticas agropecuárias que favoreçam a recuperação de pelo menos 12,5 milhões de hectares de vegetação nativa nos próximos 20 anos, por meio do plantio ou da restauração de áreas degradadas.
Já existem técnicas agrícolas que evitam o esgotamento do solo e reduzem a necessidade de outras terras para cultivo ou pastagens. Sano destaca duas. A primeira é o rodízio de plantio: uma parte da área de pastagem é ocupada com um cultivo agrícola, que nos anos seguintes ocupa outras partes da propriedade, alternadamente. A segunda é o plantio de árvores comerciais nas pastagens: as árvores oferecem sombra para o gado e depois podem ser vendidas. “Nada impede que em uma mesma fazenda exista uma integração entre lavoura, pecuária e floresta”, diz ele. A área de vegetação nativa a ser recuperada, de acordo com a meta do plano do governo federal, corresponde a mais da metade dos 21 milhões de hectares que representam o déficit nacional de vegetação nativa no país, medido pela soma das áreas de matas nativas que os proprietários rurais devem, por lei, manter em suas terras ou nas proximidades de rios e córregos. “A recuperação da vegetação nativa é muito importante, principalmente em áreas de nascentes”, ressalta Sano. “Se não preservarmos as nascentes, em alguns anos poderemos não ter mais água nem para beber.” n
Artigos científicos OLIVEIRA, R. A. N. de et al. Dinâmica do processo de desmatamento de caatinga no município de Catolé do Rocha-PB. Agropecuária Científica no Semiárido. v. 10, n. 4, p. 1-4. 2014. BEUCHLE, R. et al. Land cover changes in the Brazilian Cerrado and Caatinga biomes from 1990 to 2010 based on a systematic remote sensing sampling approach. Applied Geography. v. 58, p.116-27. 2015. VIEIRA, R. M. S. P. et al. Identifying areas susceptible to desertification in the Brazilian Northeast. Solid Earth. v. 6, p. 347-60. 2015.
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ecologia y
Jardineiros da pesada reconstroem papel de animais hoje extintos na dispersão de sementes no Pantanal Francisco Bicudo
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reguiças-gigantes, mastodontes e cavalos selvagens povoavam a paisagem na América do Sul até cerca de 10 mil anos atrás. A extinção desses mamíferos que podiam pesar toneladas, conhecidos como a megafauna do Pleistoceno, pode ter provocado impactos consideráveis na vegetação do Pantanal brasileiro, de acordo com artigo publicado em agosto de 2014 na revista Oecologia. A flora que dependia deles como dispersores de sementes, embora não tenha sumido (há outros dispersores, como o homem), pode ter se tornado menos abundante que no passado, ocupando áreas mais restritas. “Nossa proposta foi abrir espaço para uma abordagem ecológica, capaz de observar relações específicas estabelecidas entre os bichos e as plantas, para entender o que aconteceu quando os gigantes saíram de cena”, explica Mathias Pires, do Departamento de Ecologia do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP). A inspiração foi o trabalho da brasileira Camila Donatti, feito durante o doutorado na universidade norte-americana Stanford, em parceria com o grupo do ecólogo Mauro Galetti, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro, e publicado em 2011 na revista Ecology Letters.
Ela considerou animais do Pantanal – de peixes a mamíferos – e caracterizou a dispersão de sementes realizada por eles. “A abordagem de Camila permite simplificar as interações entre espécies em um dado local. Usando essa abordagem, onde representamos espécies por pontos e suas interações por linhas, é possível extrair informações sobre como os organismos estão interligados”, explica Pires. “Ou seja, sabe-se que um animal A consome os frutos e dispersa as sementes das plantas 1, 2 e 3, mas a espécie B só consegue dispersar a planta 1, e ainda um C espalha apenas 2 e 3.” No doutorado, orientado por Paulo Guimarães, Pires encarou o desafio de investigar como essa mesma rede de interações seria no passado. Baseado em informações dos fósseis que ocorriam na região, inseriu junto aos animais atuais do Pantanal cinco espécies da megafauna que habitaram o bioma em tempos remotos. Entre essas espécies estavam preguiças-gigantes, mastodontes e um parente das lhamas atuais. O pesquisador lembra que esses bichões são descritos na literatura científica como bons dispersores de plantas, graças a pelo menos dois aspectos singulares: por serem muito grandes e incluírem frutos diversos na dieta, eles acabam ingerindo sementes grandes que animais menores não conseguem dispersar. Além disso, eles
ilustraçãO elisa carareto
Modelos matemáticos
conseguiriam percorrer longas distâncias e, como digeriam devagar, acabavam fazendo com que a germinação acontecesse em locais distantes da planta-mãe. No que diz respeito às plantas, Pires relacionou 10 espécies, sobretudo aquelas cujas sementes até hoje são espalhadas por mamíferos, como pequis, jatobás e algumas palmeiras. Com as devidas substituições e adaptações, ele recorreu então às simulações, modelos matemáticos, computadores e estatísticas. “A ideia era observar a rede atual e apurar como poderia ter sido no passado.” ontem e hoje
Pires destaca outra conclusão do estudo: nas redes que reconstruiu, os papéis desempenhados por animais da megafauna na dispersão de sementes eram bem definidos e marcados, ou seja, os grandes bichos espalhavam as sementes maiores e os animais menores, as pequenas sementes. Hoje, em sintonia com o que sugere o estudo liderado por Camila, essa divisão já não existe. “Sem os mastodontes e as preguiças-gigantes, os frutos maiores perderam seus dispersores principais. Antas, quatis e bugios, por exemplo, teriam um papel
secundário na disseminação de sementes do Pleistoceno, mas hoje são agentes fundamentais para que as sementes grandes sejam espalhadas”, explica. O retorno ao passado indica que a ausência da megafauna pode ter provocado impactos consideráveis na vegetação do Pantanal, como já mostrou um trabalho coordenado por Galetti. O artigo, publicado na Science em 2013, sugere que em regiões da Mata Atlântica, onde aves de maior porte foram extintas há mais de 50 anos, populações de palmeiras produzem somente frutos pequenos; em contrapartida, em regiões mais preservadas e com aves maiores, os frutos continuam com tamanhos variados. “O mesmo pode ter ocorrido após a extinção dos grandes mamíferos do passado. Além disso, plantas que perdem seus dispersores acabam confinadas a regiões menores e a perda de dispersores dificulta o fluxo gênico entre populações. No longo prazo, isso pode reduzir a diversidade genética das populações e diminuir sua resistência a pragas, por exemplo”, acrescenta. Para ele, essa constatação sugere que é preciso avaliar, com responsabilidade, a introdução no Pantanal de outros mamíferos que façam as vezes de dispersores, como cavalos e porcos. “Talvez algumas
dessas espécies possam até mesmo ajudar a reparar as perdas”, analisa. Pires faz mais um alerta: seu trabalho permite refletir também sobre a atual crise de biodiversidade. Segundo ele, é preciso entender as interações ecológicas para buscar amenizar as consequências da eventual perda de espécies de grande porte. Disposto a acrescentar outras informações a esse cenário, o biólogo pretende agora estudar comparativamente outros biomas, para observar os efeitos da extinção de espécies em cada um deles. “Será que a ausência da anta na Mata Atlântica tem os mesmos efeitos que a falta desse animal no Cerrado?”, questiona. Ele deseja ainda comparar, do ponto de vista quantitativo, a eficiência de algumas espécies de animais na tarefa de dispersão de sementes, olhando novamente para o passado. “Desenvolvemos modelos matemáticos para observar quão importante deveria ser uma preguiça-gigante nesse trabalho de levar sementes a grandes distâncias, quando comparada com a anta ou um porco-do-mato de hoje, por exemplo”, finaliza o pesquisador. n
Projetos 1. Estrutura e dinâmica coevolutiva em redes de interações mutualísticas (n° 2009/54422-8); Modalidade Jovem Pesquisador; Pesquisador responsável Paulo Roberto Guimarães Junior (USP); Investimento R$ 161.960,08 (FAPESP). 2. Atributos das plantas na rede de dispersão de sementes do Pantanal: Consequências espaciais, demográficas e conservacionistas (nº 2008/10154-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Mauro Galetti Rodrigues (Unesp); Investimento R$ 117.963,58 (FAPESP).
Artigo científico PIRES, M. M. et al. Reconstructing past ecological networks: the reconfiguration of seed-dispersal interactions after megafaunal extinction. Oecologia. v. 175, n. 4, p. 124756. ago. 2014.
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BIOQUÍMICA y
Contato letal Estrutura em forma de agulha permite à bactéria Xanthomonas citri lançar compostos tóxicos sobre microrganismos competidores Ricardo Zorzetto
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bactéria Xanthomonas citri, causadora do cancro cítrico, doença que voltou a se alastrar pelas plantações paulistas, passa apenas parte de sua vida no interior das folhas e dos frutos de laranjeiras e limoeiros. Ali, protegida e com fartura de alimento, ela se multiplica e estimula a proliferação das células vegetais, gerando lesões salientes e escurecidas que, ao se romperem, a devolvem ao ambiente. Em boa parte do tempo, porém, enfrenta condições bem menos amigáveis. No solo ou na superfície externa das folhas, onde em geral é encontrada, a competição com outros microrganismos por espaço e nutrientes é acirrada. Mesmo assim, a Xanthomonas citri costuma se sair bem, como comprovam os laranjais da Flórida, nos Estados Unidos, onde a produção caiu à metade nos últimos anos com a disseminação do cancro cítrico e de outra doença, o greening. Milhares de anos de evolução prepararam a bactéria para lidar com os potenciais concorrentes. Sua célula em for54 z maio DE 2015
ma de bastão é recoberta de filamentos ultrafinos que lembram pelos delgados. Essas estruturas são parte de um mecanismo de defesa que destrói outras bactérias. O bioquímico Shaker Chuck Farah e sua equipe no Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP) demonstraram que, por meio de um tipo específico desses filamentos, a X. citri lança um coquetel de compostos tóxicos sobre seus potenciais concorrentes. Os filamentos que lembram pelos na realidade são canais – há ao menos seis tipos conhecidos – que conectam o meio interno da bactéria com o exterior. Uma variedade específica desses canais, o chamado sistema de secreção do tipo IV (T4SS, na sigla inglês), é composta por mais de uma centena de proteínas e tem a forma de uma agulha. Já se sabia que, por meio dela, muitas espécies de bactérias trocam material genético com outras bactérias da mesma ou de outras espécies – fenômeno conhecido como conjugação, que permite a transferência horizontal de genes, associado ao desenvolvimento de resistência a antibióticos.
Pelo menos uma bactéria, Agrobacterium tumefaciens, transfere DNA por meio do T4SS para o seu hospedeiro, uma planta, na qual causa tumores conhecidos como galhas. É também por meio desse sistema de secreção que algumas espécies associadas a doenças em animais e seres humanos injetam proteínas que as ajudam a colonizar o hospedeiro. Mas não se conhecia a função do T4SS na Xanthomonas citri e nas dezenas de espécies que integram a família Xanthomonadaceae, da qual fazem parte as bactérias do gênero Stenotrophomonas – entre elas, a espécie S. maltophilia, um patógeno oportunista em seres humanos. Estudos anteriores indicavam que na família Xanthomonadaceae os canais T4SS eram diferentes dos encontrados em outros grupos de bactérias. Farah e sua equipe também já haviam constatado que, no caso da Xanthomonas citri, essa estrutura não desempenhava um papel essencial na infecção da planta. Agora os pesquisadores da USP verificaram que nessa bactéria o sistema de secreção IV serve para injetar cerca de uma dezena
eduardo cesar
de proteínas tóxicas (toxinas) distintas em outras bactérias. Essas toxinas digerem açúcares, proteínas e lipídios da parede de bactérias competidoras, fazendo-as expulsar seus conteúdos de uma maneira que, ao microscópio, às vezes parece explosiva. No laboratório de Farah, os biólogos Diorge Souza e Gabriel Oka colocaram milhões de células de X. citri para conviver com uma quantidade semelhante de Escherichia coli, bactéria normalmente encontrada nos intestinos dos mamíferos, e filmaram o que aconteceu. Muitas das vezes em que a X. citri tocou a superfície de uma E. coli a parede desta se rompeu e seu conteúdo extravasou, como pode se ver em um registro disponível na internet [https://youtu.be/0cSXyd9bd7Q]. “A bactéria fica deformada quando a integridade da sua parede é comprometida”, explica Farah. “É como um balão de festa cheio de água que estoura”, compara. A secreção de toxinas é ativada pelo contato, embora ainda não se saiba ao certo como a Xanthomonas reconhece as bactérias de outras espécies. Ela própria,
Convivência nem sempre pacífica: colônias de X. citri (amarelo) cultivadas com colônias de E. coli (branco) e C. violaceum (rosa)
porém, está protegida dos compostos que produz. Souza e Oka verificaram que a Xanthomonas sintetiza antídotos contra suas toxinas. “As antitoxinas estão distribuídas pela parede da Xanthomonas”, explica Souza. “Isso provavelmente impede que ela sofra os danos.” atração entre proteínas
A propósito, foi uma dessas antitoxinas que anos atrás deu a Souza uma primeira pista sobre o papel do sistema de secreção do tipo IV na Xanthomonas. Em 2005, o químico Marcos Alegria, à época aluno de doutorado de Farah, havia publicado um trabalho mostrando que em X. citri uma proteína específica – a VirD4 – desse sistema de secreção atraía outras proteínas, todas com função desconhecida na época, para o canal. Uma dessas proteínas, que recebeu a sigla Xac2609,
interagiu com a proteína Xac2610, também com função desconhecida. Tempos depois, após determinar a estrutura tridimensional da Xac2610, Souza foi buscar nos bancos de dados públicos outras proteínas com estruturas similares, o que poderia indicar sua função. A primeira que encontrou foi uma proteína que bloqueia a ação da lisozima e funciona como antitoxina. Esse resultado sugeria que o parceiro de interação da Xac2610, a Xac2609, poderia ser uma lisozima, proteína capaz de digerir a cadeia de açúcares da parede das bactérias. Depois de confirmar a ação dessas duas proteínas, Souza identificou outras potenciais toxinas e antitoxinas – ao todo são 13 do primeiro tipo e 7 do segundo – codificadas no genoma da Xanthomonas citri, além de centenas de outras toxinas associadas ao sistema de secreção do tipo IV de outras espécies da família Xanthomonadaceae. Testes feitos com bactérias de duas espécies diferentes, a Micrococcus luteus e a Bacillus subtilis, confirmaram que a proteína codificada pelo Xac2609 degrapESQUISA FAPESP 231 z 55
Competição em laboratório
imagens diorge souza / usp
Com o sistema de secreção de toxinas íntegro, as bactérias Xanthomonas citri (azul) dominam a colônia; sem ele, a X. citri fica em desvantagem e perde espaço para a Escherichia coli (amarelo)
da a parede bacteriana. E que seu efeito é anulado pela Xac2610, segundo artigo publicado em março deste ano na Nature Communications. Mas faltava verificar se essa e outras toxinas eram mesmo exportadas pelo sistema de secreção IV. Souza e Oka, então, desenvolveram X. citri geneticamente alteradas para não produzir o T4SS e as colocaram para crescer junto com bactérias E. coli, que se multiplicam mais rapidamente – a E. coli duplica a cada 30 minutos, enquanto a Xanthomonas citri gasta até cinco vezes mais tempo. Sem o canal secretor, a Xanthomonas ficou em desvantagem. O experimento começou com números semelhantes das duas espécies e terminou com a E. coli dominando a colônia. Mesmo se reproduzindo mais devagar, a Xanthomonas voltou a prevalecer, eliminando a concorrente, quando os pesquisadores lhe devolveram a capacidade de produzir o T4SS. “O sistema dá uma vantagem competitiva à Xanthomonas”, diz Souza. Embora a E. coli não seja uma concorrente da Xanthomonas na natureza, os pesquisadores acreditam que o que viram em laboratório pode valer no campo. Eles repetiram o teste contra outras quatro espécies de bactérias classificadas como Gram-negativas, que, como a E. coli, 56 z maio DE 2015
têm um envelope celular composto por três camadas – duas membranas e um periplasma fortificado, composto por um polímero (peptideoglicano) misto de açúcares e aminoácidos. “Até agora a Xanthomonas matou todas”, conta Farah, que começou a estudar a bactéria há quase 15 anos, quando integrou o grupo que sequenciou o genoma da Xanthomonas. ambiente hostil
Farah e sua equipe têm evidências de que a X. citri se arma com seu T4SS especialmente quando se encontra na parte externa da folha, ambiente potencialmente mais hostil. “Esse mecanismo deve ajudar a bactéria a se tornar competitiva”, comenta o pesquisador Marcos Antonio Machado, do Centro de Citricultura Sylvio Moreira, em Cordeirópolis. “Em termos tecnológicos, essa constatação abre a possibilidade de que se busquem compostos capazes de inibir o funcionamento desse sistema”, diz o pesquisador, que investiga formas de aumentar a suscetibilidade da X. citri a compostos como o oxicloreto de cobre, usado contra o cancro cítrico nos laranjais paulistas. Farah acredita que compreender melhor o funcionamento do sistema de secreção IV da Xanthomonas é impor-
tante para conhecer como bactérias de diferentes espécies competem entre si quando estão num mesmo ambiente e se utilizam dos mesmos recursos. “Essa competição pode ter implicações para a evolução de comportamentos tanto antagônicos quanto cooperativos entre espécies bacterianas”, conta. Esses estudos também podem levar à identificação de novas toxinas e alvos moleculares para drogas com ação antibacteriana. “Estamos usando a Xanthomonas”, completa Farah, “para entender funções mais universais das bactérias”. n
Projeto Sinalização por c-di-GMP e o sistema de secreção de macromoléculas do tipo IV em Xanthomonas citri (nº 2011/07777-5); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Shaker Chuck Farah (IQ-USP); Investimento R$ 2.146.849,71 (FAPESP – para todo o projeto).
Artigos científicos SOUZA, D. P. et al. Bacterial killing via a type IV secretion system. Nature Communications. 6 mar. 2015. SOUZA, D. P. et al. A component of the Xanthomonadaceae type IV secretion system combines a VirB7 Motif with a no domain found in outer membrane transport proteins. PLoS Pathogens. 2011. ALEGRIA, M. C. et al. Identification of new protein-protein interactions involving the products of the chromosomeand plasmid-encoded type IV secretion loci of the phytopathogen Xanthomonas axonopodis pv. citri. Journal of Bacteriology. v. 187, p. 2315-25. 2005.
etologia y
Asas da discórdia Machos de libélulas avaliam a própria força e a do oponente para definir
O tom de vermelho e o tamanho da mancha são decisivos na competição
estratégia de confronto
Maria Guimarães
Stanislav Gorb
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róximo à água de riachinhos ensolarados em algumas áreas de cerrado, é possível ver libélulas vermelhas voejando umas em torno das outras. São machos Mnesarete pudica, que se exibem para as fêmeas pousadas num galho ou numa folha de capim, ou competem com outros machos para garantir um território satisfatório para que elas ponham os ovos. Já se sabia que o vermelho das asas – tanto o tamanho da mancha como a intensidade da cor – é o segredo do sucesso, mas o biólogo Rhainer Guillermo-Ferreira foi investigar como isso ocorre durante o doutorado no campus de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. “Nossa pergunta era: eles são capazes de enxergar e avaliar isso?”, conta. A resposta é sim, segundo artigo publicado em março no site da revista The Science of Nature. O trabalho envolveu observar confrontos entre machos no cenário natural e também fazer análises detalhadas da coloração das asas durante o doutorado orientado por Pitágoras Bispo, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em colaboração com o grupo de Stanislav
Gorb, da Universidade de Kiel, na Alemanha. Ao analisar lutas entre machos rivais com diferentes graus de disparidade em qualidade, medida tanto pelo teor de vermelho quanto pelo tamanho do corpo, Guillermo ficou surpreso ao verificar que os machos não só estimam os atributos do oponente, mas também os próprios, e juntam tudo na mesma equação. “Vimos que há variação nas estratégias de confronto conforme essa avaliação”, explica o biólogo, agora professor na Universidade Federal de Grande Dourados, em Mato Grosso do Sul. Segundo ele, os machos fracos não se aventuram nas prolongadas sessões de voos vigorosos que demonstram força. Em vez disso, partem logo para a agressão. Os machos fortes, por sua vez, ponderam mais a situação. Se estão diante de um oponente visivelmente fraco, resolvem o assunto com perseguições e ameaças diretas. Se o rival está mais à sua altura, esses machos adotam as demonstrações em voo que exigem um investimento maior de energia. Esses confrontos podem durar horas, até que um deles desista. Machos com as asas
pintadas pelos pesquisadores com caneta hidrocor, de maneira a aumentar tanto a intensidade do vermelho como o tamanho da mancha, foram vistos pelos adversários como mais fortes, alterando a estratégia adotada pelos oponentes. Colorir a asa de insetos e observar suas exibições pode parecer um tanto lúdico enquanto ciência, mas está longe disso. Os experimentos de Guillermo abrem uma janela sobre aspectos intrigantes que também podem valer para outras espécies. “O comportamento que essas libélulas adotam revela que animais com um cérebro simples podem ter um sistema complexo de tomada de decisão”, conclui. n
Projeto Ephemeroptera, Plecoptera e Trichoptera (Insecta): reduzindo os déficits linneano, wallaceano e henningueano (n° 2012/21196-8); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Pitágoras da Conceição Bispo (Unesp); Investimento R$ 309.297,74 (FAPESP).
Artigo científico GUILLERMO-FERREIRA et al. Variable assessment of wing colouration in aerial contests of the red-winged damselfly Mnesarete pudica (Zygoptera, Calopterygidae). The Science of Nature. v. 102. mar. 2015.
pESQUISA FAPESP 231 z 57
IMUNOLOGIA y
Batalha interior Alteração em gene desencadeia doença autoimune em bebês durante a gestação
A
s doenças autoimunes, nas quais o sistema de defesa se volta contra o próprio organismo, podem surgir mais cedo do que se imaginava. Em casos raros, descobriu-se agora, podem se instalar antes mesmo do nascimento. Pesquisadores brasileiros identificaram em duas famílias – uma do interior de São Paulo e outra do interior do Paraná – casos de crianças que logo após o parto já apresentavam sinais de uma enfermidade autoimune incomum e grave: a síndrome da imunodesregulação, poliendocrinopatia e enteropatia ligada ao cromossomo X (IPEX). Nessa síndrome, células de defesa da própria criança atacam múltiplos órgãos, que depois de semanas ou meses de agressão contínua deixam de funcionar adequadamente e geram os sinais clínicos reconhecidos pelos pediatras. Como os bebês de São Paulo e do Paraná manifestaram os sinais da IPEX nas primeiras horas de vida, os pesquisadores concluíram que o ataque imunológico só poderia ter começado muito antes, ainda na gestação. O achado foi publicado em dezembro de 2014 na Clinical Immunology e surpreendeu os especialistas. “Não pensávamos que doenças autoimunes pudessem ocorrer durante a vida intrauterina”, conta a pediatra Magda Carneiro-Sampaio, professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e coordenadora da pesquisa. Doenças imunológicas do feto iniciadas durante a gestação não são incomuns. A mais conhecida é a eritroblastose fetal, 58 z maio DE 2015
causada pela incompatibilidade entre o grupo sanguíneo da mãe e o do bebê. Nessa enfermidade, porém, o problema é provocado por anticorpos produzidos pelas células de defesa maternas, transferidos para a criança por meio da placenta e do cordão umbilical. A diferença com os casos descritos pelo grupo de Magda na Clinical Immunology é que, nestes, são as células do sistema imunológico do próprio feto que lesam o organismo. “Até onde se sabe, esses são os primeiros casos comprovados de doença autoimune iniciada na gravidez”, diz Magda. Os casos descritos na Clinical Immunology são decorrentes de alterações em um gene que comprometem o amadurecimento de um grupo específico de células de defesa: os linfócitos T reguladores. Responsáveis por coordenar a ação de outras células de defesa, esses linfócitos passam por uma fase de maturação no timo, órgão situado no alto peito, na qual aprendem a identificar as células do próprio organismo e preservá-las do ataque a células de organismos invasores. Problemas nessa etapa de amadurecimento levam esses linfócitos a desencadear agressões contra o próprio corpo. Desde 2008 o grupo de Magda investiga as doenças autoimunes que acometem bebês e crianças nos primeiros anos de vida. Os pesquisadores só não esperavam chegar aos fetos – embora alguns imunologistas já trabalhassem com a ideia de que os problemas autoimunes pudessem começar na fase fetal. “Há casos na literatura médica de bebês com
Células do pâncreas produtoras de insulina (amarelo): danificadas pelo sistema imune do feto na síndrome IPEX
imunodeficiências graves ao nascer”, conta Magda. “Uma doença dessa natureza não se instala de um dia para outro.” O primeiro dos casos apresentados na Clinical Immunology chegou ao conhecimento de Magda anos atrás, relatado pelo pediatra Edson Suzuki, da Faculdade de Medicina de Marília. Mas a confirmação só veio com o estudo de outros dois fetos masculinos da mesma família, mortos em consequência de uma complicação no desenvolvimento, e de um caso em outra família, identificado pela endocrinologista Mariana Xavier da Silva, pesquisadora da Universidade Estadual de Londrina que fez residência médica no Instituto da Criança da USP.
Herança direcionada Genealogia das famílias permitiu identificar as mulheres que têm cópia alterada do gene FOXP3 e os filhos afetados pela síndrome Ipex
Homem saudável Mulher com cópia alterada do gene Fetos masculinos abortados Menino que nasceu com Ipex Mulher saudável (nem todas foram testadas)
DR L. ORCI, UNIVERSITY OF GENEVA / SCIENCE PHOTO LIBRARY
Fonte xavier-da-silva, m.m. et al. 2015
Nessa cidade do interior do Paraná, Mariana havia atendido um bebê do sexo masculino que nasceu prematuro e apresentou diabetes de difícil controle nas primeiras horas de vida. Exames laboratoriais mostraram que seu organismo já produzia anticorpos contra as células do pâncreas produtoras de insulina. Sinais de inflamação na pele, nos intestinos e em outros órgãos permitiram caracterizar o problema como IPEX. Essa síndrome se manifesta em 93% das vezes no primeiro ano de vida, embora alguns casos sejam identificados logo após o nascimento. Sua origem são alterações pontuais no gene forkhead box P3 (FOXP3), que controla o amadurecimento dos linfócitos T reguladores. Situado no cromossomo X, esse gene existe em cópia dupla nas mulheres e simples nos homens. Por essa razão, nas duas famílias as mães não haviam desenvolvido a síndrome, embora apresentassem uma das cópias alterada, herdada
pelos filhos com Ipex. Ao investigar a história de doenças nessas famílias, os pesquisadores viram ainda que as mães e as avós (em uma das famílias também a bisavó) já haviam perdido outros bebês do sexo masculino durante a gestação. Novo modelo
Os pesquisadores buscaram na literatura médica outros relatos de aborto e nascimento de prematuros associados à Ipex, sinal de que a síndrome teria se manifestado ainda na gestação. De 2000 a 2014, encontraram outros 130 casos. “Em 45% desses casos, as manifestações autoimunes surgiram no primeiro mês de vida e, em 11 deles, no primeiro dia”, diz Magda. “Mas nenhum pesquisador propôs que a doença havia começado durante a vida intrauterina”, conta. A constatação de que o problema pode começar na gravidez levou o grupo a propor um novo mecanismo para explicar o desenvolvimento da IPEX. Nas
escolas médicas se ensina que doenças autoimunes como essa surgem quando os linfócitos T reguladores perdem a capacidade de distinguir as células do corpo das de microrganismos invasores. Segundo esse modelo, conhecido como quebra de tolerância, o problema só se instala depois que o sistema imune passa por uma fase de amadurecimento, antes considerado impossível na vida fetal. “Nesses casos não haveria quebra de tolerância, uma vez que a tolerância nem chegou a se estabelecer”, explica Magda. Na opinião do imunologista português António Coutinho, do Instituto Gulbenkian de Ciência, colaborador do grupo, trata-se de uma mudança substancial no pensamento que predominou por muito tempo entre os especialistas. Ele acredita que esse trabalho deve servir para pediatras e neonatologistas ficarem atentos à possibilidade de recém-nascidos apresentarem doenças autoimunes. Quanto antes forem identificadas, melhores são os resultados do tratamento e maiores as chances de cura – a maioria das doenças autoimunes é tratada com imunossupressores e a IPEX, com transplante de células-tronco. “São procedimentos que podem salvar a criança”, diz Coutinho. Obstetras podem usar as novas informações para encaminhar as pacientes para o aconselhamento genético quando há casos de abortos repetidos ou perdas de recém-nascidos do sexo masculino na família. “Se houver o risco de a gestação resultar em síndromes graves que atingem só os meninos, como a IPEX, a alternativa é fazer uma fertilização in vitro e escolher um embrião feminino”, conta Maria de Lourdes Brizot, especialista em medicina fetal da FMUSP. Uma resolução do Conselho Federal de Medicina autoriza esse procedimento com a finalidade de evitar doenças ligadas ao sexo da criança. “Nesse caso”, diz Maria de Lourdes, “a escolha não é discriminatória, mas em favor da saúde e da vida do bebê.” n
Projeto Autoimunidade na criança: investigação das bases moleculares e celulares da autoimunidade de início precoce (nº 2008/58238-4); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Magda Maria Sales Carneiro Sampaio (FM-USP); Investimento R$ 1.807.886,18 (FAPESP – para todo o projeto).
Artigo científico XAVIER DA SILVA, M.M. et al. Fetal-onset FM-USP: report of two families and review of literature. Clinical Immunology. v. 156, n. 2, p. 131-140. fev. 2015.
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FÍSICA y
Como treinar nanotubos Experimento usa redes aleatórias de cilindros de carbono para realizar operações matemáticas Igor Zolnerkevic
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nanotubos para executar uma tarefa que apenas um circuito eletrônico de computador consegue: processar sinais elétricos de modo a realizar operações lógicas. “Essa é uma nova abordagem para a fabricação de nanodispositivos eletrônicos, na fronteira entre a ciência da computação, a ciência dos materiais e a engenharia elétrica”, diz Volpati. “Em vez de montar placas de circuitos eletrônicos para processar informação, nós ‘treinamos’ um material inicialmente desorganizado para executar a tarefa desejada.” Esse modo de produzir novos materiais que se comportam como circuitos eletrônicos é inspirado na forma como os organismos vivos evoluem. Em 2004 o físico Julian Miller, da Universidade de York, no Reino Unido, batizou essa estratégia de evolução em materiais (evolution in materio). Ela permite obter circuitos eletrônicos sem a necessidade de se ter o controle total sobre a montagem de sua estrutura. Físicos, engenheiros e cientistas da computação acreditam que a evolution in materio é um dos caminhos para superar um problema que assombra a microeletrônica: o limite da miniaturização dos chips de computadores. Nas últimas décadas a capacidade de processar informação vem aumentando
Evolução: pulsos elétricos alinham nanotubos (azul) imersos em cristal líquido a eletrodos de ouro (amarelo)
continuamente porque se tem conseguido esculpir cada vez mais circuitos eletrônicos em espaços cada vez menores. Mas está chegando o ponto em que deixa de ser fisicamente possível manipular a matéria para fazer os circuitos encolherem ainda mais. Miller e outros pesquisadores perseguem esse objetivo no Projeto de Engenharia em Nanoescala para Nova Computação Usando Evolução (Nascence), que envolve cinco universidades europeias e desde 2012 promove a colaboração entre cientistas da computação, físicos e engenheiros em busca de novos materiais e maneiras diferentes de treiná-los. Especialista na fabricação e na caracterização de novos nanomateriais, Volpati foi convidado por Michael Petty, líder do grupo de Durham no projeto Nascence, para participar dos experimentos com o material feito de nanotubos de carbono misturados com o polímero. Sob certas condições, os nanotubos podem desempenhar o papel de fios elétricos micros-
imagem diogo volpati / ifsc-usp
I
magine um relojoeiro maluco que, em vez de projetar molas, engrenagens e planejar como encaixar essas peças para construir um relógio, trabalhasse por um método pouco convencional, pondo as peças numa caixa e chacoalhando até elas se encaixarem e formarem um mecanismo que funcione perfeitamente. Algo semelhante foi obtido por uma equipe da Universidade de Durham, no Reino Unido, em colaboração com o físico brasileiro Diogo Volpati, do Instituto de Física de São Carlos, da Universidade de São Paulo (USP). Os pesquisadores fabricaram um filme muito fino usando um polímero (polimetacrilato de butila) contendo um emaranhado de nanotubos de carbono – estruturas cilíndricas formadas por folhas de carbono com apenas um átomo de espessura enroladas sobre si mesmas, um material de grande interesse por suas propriedades elétricas e mecânicas. Pronto o filme, a equipe aplicou uma sequência de pulsos elétricos no material para alterar a capacidade de condução elétrica dos nanotubos e identificar como a rede poderia ser utilizada para processar informações. Os pesquisadores chamam essa estratégia de “treinamento” do material. Isso permitiu trabalhar com o filme de
Evolution in materio permite criar circuitos eletrônicos sem a necessidade de controle total sobre sua montagem
cópicos. Assim, o emaranhado no interior do polímero funciona como um circuito eletrônico, mas todo bagunçado antes de o experimento começar. Nos testes, um pedacinho do material é conectado a computadores normais por uma série de eletrodos. A função de alguns deles é disparar pulsos elétricos que representam os dados de entrada – uma sequência de números, por exemplo – para um cálculo matemático. Esses pulsos atravessam a rede de nanotubos de carbono e são captados na outra extremidade. Os pulsos coletados na saída correspondem à solução para o problema matemático. realinhamento
Como os nanotubos estão desordenados, porém, no início dos experimentos a rede embaralha os sinais elétricos de entrada. O resultado é que os dados de saída dão a resposta errada ao problema. A capacidade de solucionar o problema melhora à medida que eletrodos adicionais disparam sinais elétricos produzidos por um programa de computador cujo objetivo é identificar a configuração de pulsos elétricos capaz de modificar a orientação espacial dos nanotubos. Feito por tentativa e erro, o trabalho desse programa, conhe-
cido como algoritmo evolutivo, demora apenas alguns segundos e permite descobrir a melhor maneira de orientar os nanotubos e processar uma determinada informação em um conjunto de circuitos elétricos com estrutura desconhecida. Usando essa estratégia, Mark Massey, pós-doutorando na Universidade de Durham, Volpati e seus colegas testaram diferentes misturas de polímeros com nanotubos de carbono. Em um artigo publicado em abril na revista Journal of Applied Physics, eles mostraram que o material só realiza uma determinada operação matemática se a concentração de nanotubos de carbono dispersos entre as moléculas de polímero variar entre 0,11% e 1%. “Apenas nessas concentrações o material possui as propriedades físicas necessárias para realizar a tarefa”, explica Volpati. A computação realizada pelo material nesse experimento foi bastante simples. O emaranhado de nanotubos fez apenas três tipos de soma: 0 + 0; 1 + 1; e 1+ 0. Em 2014, entretanto, a equipe de Petty já havia usado o mesmo material para resolver uma questão um pouco mais complexa, conhecida como problema do caixeiro-viajante: determinar o caminho mais curto para um vendedor ambulante percorrer uma série
de cidades vizinhas. O filme de nanotubos permitiu resolver o problema para até 12 cidades, dispostas em círculo num mapa. “Essas são provas de princípio”, explica Volpati. “O desafio agora é desenvolver um pedaço de material capaz de substituir a placa de circuitos eletrônicos que controla um robô, por exemplo.” Uma das dificuldades que os pesquisadores enfrentam é que os filmes de nanotubos de carbono são rígidos, com uma séria limitação: o aprendizado é passageiro. Eles só funcionam como circuitos eletrônicos enquanto os pulsos do algoritmo de busca evolutivo estiverem sendo aplicados. Uma vez desligados esses pulsos, o material perde as propriedades elétricas que lhe permitem atuar como um circuito. Em outro artigo publicado este ano no Journal of Applied Physics, Volpati e seus colaboradores apresentaram uma possível evolução desse material. Os pesquisadores conseguiram substituir a matriz rígida do polímero por uma feita de cristal líquido. Diferentemente das moléculas de polímero, que não se movem, as moléculas do cristal líquido se movimentam sob a influência dos pulsos elétricos emitidos pelo algoritmo evolutivo. “Os cristais líquidos alteram a orientação espacial dos nanotubos, mudando permanentemente as propriedades do material”, explica Volpati. “Mostramos também que, uma vez que orientamos os nanotubos na direção que queremos, eles não se mexem mais e o material não perde o treino.” Atualmente os pesquisadores tentam usar os nanotubos imersos no cristal líquido para realizar operações matemáticas. n
Projetos 1. Avaliação espectroscópica da orientação molecular no volume e nas interfaces de filmes finos orgânicos depositados sobre diferentes superfícies (nº 2012/09905-3); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Osvaldo Novais de Oliveira Junior (IFSC-USP); Bolsista Diogo Volpati; Investimento R$ 168.972,87 (FAPESP). 2. Controle molecular em filmes nanoestruturados de nanotubos de carbono (nº 2013/08864-4); Modalidade Bolsa Estágio de Pesquisa no Exterior – Pós-doutorado; Pesquisador responsável Osvaldo Novais de Oliveira Junior (IFSC-USP); Bolsista Diogo Volpati; Investimento R$ 202.700,20 (FAPESP).
Artigos científicos MASSEY, M. K.et al. Computing with carbon nanotubes: Optimization of threshold logic gates using disordered nanotube/polymer composites. Journal of Applied Physics. v. 117, n. 13. 6 abr. 2015. VOLPATI, D. et al. Exploring the alignment of carbon nanotubes dispersed in a liquid crystal matrix using coplanar electrodes. Journal of Applied Physics. v. 117, n. 12. 24 mar. 2015.
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tecnologia Pecuária y
Marcadores da fertilização Novas técnicas mapeiam a função de proteínas, carboidratos e lipídeos para obtenção de embriões bovinos de melhor qualidade
Q
uatro grupos de pesquisadores paulistas dedicam-se a mapear e a relacionar a função de marcadores moleculares como lipídeos, proteínas e carboidratos com o auxílio de técnicas de análise não invasivas, que utilizam lasers e espectrômetros, para selecionar na fertilização in vitro (em laboratório) os melhores embriões bovinos. O objetivo é garantir o sucesso de gestação ao transferi-los para o útero da vaca. Embora o Brasil detenha atualmente o primeiro posto na produção mundial in vitro – com 366.517 embriões bovinos produzidos em 2013, correspondentes a 70% do total –, há muito a melhorar, porque as perdas estão entre 20% e 60%. A variação nessas taxas deve-se, entre outros fatores, à qualidade do embrião e à receptividade do endométrio, a membrana que reveste o útero. O avanço de técnicas rápidas, menos invasivas e a custo factível na análise e seleção de embriões poderá ajudar nos procedimentos biotecnológicos da reprodução tanto em animais como em humanos, no futuro. Um método inovador, que une a produção de imagens ao mapeamento quí62 z maio DE 2015
mico de marcadores moleculares presentes em óvulos e embriões por meio da técnica de espectrometria de massas, desenvolvido em parceria por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade de São Paulo (USP), poderá representar um avanço significativo nas biotecnologias da reprodução. “Com o uso dessa ferramenta analítica é possível visualizar partes específicas do embrião bovino, como a zona pelúcida, que reveste todo o embrião e é responsável por sua ligação com o útero”, explica o professor Rodrigo Catharino, coordenador das pesquisas e do Laboratório Innovare de Biomarcadores, vinculado à Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unicamp. A presença de biomarcadores como os lipídeos, que funcionam como indicadores de processos biológicos, pode melhorar essa ligação, resultando em prenhez com mais chance de sucesso. Na fertilização in vitro, os óvulos coletados de uma vaca doadora são maturados e fecundados no laboratório. Após a fecundação, os possíveis zigotos – células diploides formadas pela fusão do óvulo com o espermatozoide – permanecem em incubadora para se
foto in vitro brasil ilustraçãO alexandre teles
Dinorah Ereno
Embriões bovinos prontos para serem transferidos para as receptoras
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1 e 2 Embriões bovinos em fase de blastocisto e sistema de avaliação por espectroscopia Raman 3 Análise de embrião pela técnica Maldi
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so muita pesquisa para descobrir o desenvolver por sete dias, que eles representam no processo quando são congelados ou de produção de embriões in vitro.” transferidos para uma vaO segundo artigo, publicado na ca receptora. A possibilidade revista Reproduction, Fertility and As pesquisas resultaram de saber a Development, descreve o uso do esem dois artigos científicos. pectrômetro Maldi para investigar a No primeiro deles, publiexata evolução de lipídeos biomarcadores cado na Analytica Chimica em óvulos bovinos e em embriões Acta, os autores descrelocalização de de até oito células e blastocistos, esvem o uso da espectrometruturas esféricas formadas em um tria de massas na modalicada marcador estágio mais avançado do desenvoldade Maldi para visualiquímico vimento embrionário. “Foi possível zar as diversas zonas que diferenciar quimicamente os lipídeos compõem o embrião boviconfigura uma em cada fase do embrião porque eles no. Na Maldi, uma matriz funcionam como assinaturas quími– geralmente um ácido orinovação cas dos estágios de desenvolvimengânico capaz de absorver to.” Participaram dos desenvolvia luz – é aplicada sobre mentos pesquisadores do Innovare, a amostra e, em seguida, a pesquisadora Roseli Gonçalves e o são feitos disparos de feixes de laser, que resultam na formação de íons professor José Visintin, da Faculdade de Medici(átomos com perda de elétrons). As moléculas na Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP, além ionizadas entram em um tubo submetido a vácuo de Peter Bols, da Universidade da Antuérpia, na (analisador) e são levadas até um detector. Os Bélgica, Gary Killian, da Universidade Estadual íons com tamanho menor passam mais rapida- da Pensilvânia, nos Estados Unidos, e o médico mente pelo tubo do que os maiores. Dessa forma, veterinário Marcos Achilles, da empresa Achilles as substâncias das amostras formam espectros, Genetics, de Garça, no interior paulista. cada um com massa diferente. Roseli, da USP, que desenvolve um projeto de “A reunião dos pontos e a informação de qual pesquisa no programa Jovens Pesquisadores em molécula faz parte do espectro de massas permi- Centros Emergentes da FAPESP, diz que o protem saber qual biomarcador é mais prevalente em cesso de fecundação ainda não está totalmente cada local da amostra”, diz Catharino. “Consegui- definido, por isso a importância dos resultados mos ver as estruturas separadamente, e não ape- obtidos nas pesquisas. Durante o seu doutorado, nas o corpo do embrião e do oócito [célula sexual feito na FMVZ da USP com bolsa da FAPESP, produzida nos ovários dos animais], como se vê ela estudou no John Almquist Research Center, pelas técnicas clássicas de análise.” Ele ressalta na Universidade Estadual da Pensilvânia, onde que a possibilidade de saber a exata localização trabalhou com marcadores de fertilidade sob de um marcador químico configura uma inova- orientação de Gary Killian. Ao terminar o doução. “Muitos marcadores descritos nos trabalhos torado, participou de um projeto coordenado são inéditos, o que significa que ainda é preci- por Killian, que resultou no isolamento de uma
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embriões do laboratório e produzidos em campo”, relata Marcella. E todos os dados de espectroscopia foram comparados com os de metabolismo energético, de gordura e estresse para tentar selecionar os mais viáveis. A descoberta levou a um depósito de patente feito pela universidade. Na Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu, Fernanda da Cruz Landim, do departamento de Reprodução Animal e Radiologia Veterinária, coordena projetos de pesquisa com o intuito de obter informações relacionadas à biologia básica dos embriões bovinos para melhorar técnicas importantes destinadas à comercialização do produto, como o aumento da produção embrionária in vitro e a criopreservação, que é o congelamento dos embriões excedentes no processo de transferência. Em um dos projetos foi feita a comparação da expressão gênica – processo em que a informação codificada por um gene é decodificada em uma proteína – entre embriões das raças nelore (Bos taurus indicus) e simental (Bos taurus taurus) produzidos no laboratório e coletados da vaca. “Fizemos um padrão geral da expressão gênica e selecionamos vários genes diferentes envolvidos no metabolismo lipídico”, relata Fernanda. Para análise das amostras, foi utilizada a espectrometria de massas Maldi. “Quando aplicamos a técnica de Maldi para avaliação do perfil lipídico, com o objetivo de seleção de embriões que poderiam ser mais bem criopreservados, observamos que existe um perfil diferente em relação aos lipídeos da nelore e da simental produzidos in vivo e in vitro.” Os embriões com as melhores qualidades para resistir ao processo de congelamento foram os da simental produzidos no campo. n
proteína chamada osteopontina, presente em maior quantidade em touros de raças leiteiras com alta fertilidade. “Vimos o efeito dessa proteína na produção in vitro de embriões bovinos e no congelamento de sêmen”, diz Roseli, que trabalhou nesse projeto até o fim de 2004.
fotos 1 e 2 Laboratório de biologia da reprodução animal/ufabc 3 Laboratório Innovare ilustraçãO alexandre teles
N
a Universidade Federal do ABC (UFABC), campus de Santo André, na Região Metropolitana de São Paulo, a professora Marcella Pecora Milazzotto está desde 2010 à frente de pesquisas com embriões bovinos em colaboração com Herculano da Silva Martinho, físico de formação. O primeiro projeto teve como objetivo avaliar a interação da luz de um laser de baixa intensidade com materiais biológicos. “Usamos o laser para estimular espermatozoides, oócitos e embriões bovinos e tivemos resultados interessantes com o gameta feminino [células reprodutoras]”, diz Marcella. “Conseguimos ativar vias importantes de sinalização dentro das células no processo de amadurecimento desse gameta. Percebemos que a luz influencia tanto a produção como a ativação de proteínas presentes nesses oócitos.” Além desse projeto, o grupo também trabalha com análises por espectroscopia Raman, que utiliza um feixe de luz para colher informação química e estrutural de material biológico. Em uma das pesquisas realizadas o objetivo era descobrir o que faltava aos embriões de laboratório para que se assemelhassem aos do campo. Para isso foram feitas comparações. “Usamos as mesmas técnicas utilizadas na reprodução humana, como morfologia embrionária, avaliação da velocidade do embrião em se desenvolver dentro do laboratório e análise por espectroscopia Raman dos
Projetos 1. Análise do perfil proteico e lipídico de embriões pré-implantacionais bovinos obtidos por fecundação in vitro, transferência de embriões e por transferência nuclear de células somáticas pela técnica de espectrometria de massas (nº 2010/01077-9); Modalidade Jovens Pesquisadores em Centros Emergentes; Pesquisadora responsável Roseli Fernandes (USP); Investimento R$ 629.986,73 (FAPESP). 2. Metabolômica para avaliação não invasiva de embriões bovinos produzidos in vitro (nº 2012/10351-2); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Marcella Pecora Milazzotto (UFABC); Investimento R$ 174.631,10 (FAPESP). 3. Comparação do padrão da expressão gênica global de embriões Bos taurus indicus e Bos taurus taurus produzidos in vitro (nº 2010/099220); Modalidade Auxílio Regular; Pesquisadora responsável Fernanda da Cruz Landim (Unesp); Investimento R$ 140.442,19 (FAPESP).
Artigos científicos
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Gonçalves, R. F. et al. Analysis and characterisation of bovine oocyte and embryo biomarkers by matrix-assisted desorption ionisation mass spectrometry imaging. Reproduction, Fertility and Development. 11 jul. 2014 (on-line). Sudano, M. J. et al. Phosphatidylcholine and sphingomyelin profiles vary in Bos taurus indicus and Bos taurus taurus in vitro- and in vivo-produced blastocysts. Biology of Reproduction. v. 87 (6), p. 130. dez. 2012.
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Referência mundial em produção Investimento em pesquisa e inovação da empresa In Vitro Brasil foi responsável por 45% do total da produção mundial de embriões bovinos em 2013
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empresa In Vitro Brasil, de Mogi Mirim, no interior paulista, lidera a produção brasileira de embriões bovinos em laboratório – e contribui para o país ser referência mundial nesse campo. Dos 546.628 embriões produzidos em 2013 no mundo, segundo dados da Sociedade Internacional de Tecnologia de Embriões (Iets, na sigla em inglês), a empresa brasileira respondeu por 266 mil deles, ou 45% do total – nessa conta entra a produção dos seus 8 laboratórios próprios e mais 23 afiliados, em 13 países. “Até 2007, quando terminei o meu doutorado e comecei a trabalhar na empresa, a fertilização in vitro era oferecida principalmente para animais de elite, doadores de alto valor comercial e genético”, diz Andrea Basso, doutora em reprodução animal pela Universidade
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de São Paulo e atualmente chefe de pesquisa da empresa, que no ano passado faturou R$ 15 milhões. Isso ocorria porque era um procedimento caro e no Brasil a tecnologia ainda estava em desenvolvimento. “No início, por exemplo, não era possível coletar oócitos e transportá-los por mais de oito horas antes de chegar ao laboratório. Hoje podemos transportá-los por até 24 horas.” Também não era possível congelar embriões produzidos in vitro, e atualmente a empresa congela cerca de 40% da sua produção. Fundada em 2002, a In Vitro sempre se destacou por investir em tecnologia. A partir de 2007, o foco comercial da empresa mudou e a demanda passou a ser pela multiplicação de animais de produção, principalmente no rebanho leiteiro. “Fizemos um primeiro projeto comercial de produção de embriões em larga escala, com duração de dois anos”, relata Andrea. “No final, conseguimos produzir 9 mil fêmeas da raça girolanda, resultado do cruzamento entre as raças holandesa, mais produtiva, e gir, mais rústica.” Após o término desse projeto em 2009, a empresa desenvolveu outros projetos comerciais de
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produção de embriões para o rebanho leiteiro e gado de corte. “Quando o criador opta pela fertilização in vitro, ele consegue antecipar o ganho genético do rebanho por várias gerações, tanto no gado de leite como de corte, o que proporciona crescimento na produtividade.”
fotos in vitro brasil ilustraçãO alexandre teles
A
o mesmo tempo a empresa também começou a trabalhar com projetos científicos, entre eles um que tinha como objetivo avaliar, por meio da espectrometria de massas, o tempo que era viável manter armazenados na geladeira os meios de cultivo dos embriões. O projeto, que teve apoio da FAPESP por meio do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe), em colaboração com o laboratório Thomson de Espectrometria de Massas, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mostrou que eles eram mais estáveis do que se imaginava e possibilitou grandes avanços na produção in vitro de embriões bovinos. “Antes do projeto, fazíamos os meios de cultivo uma vez por semana e hoje produzimos uma vez por mês e em grandes quantidades.” Ela ressalta que, quando armazenados em geladeira, o prazo de validade se estende para mais de 60 dias. Depois desse primeiro projeto, a empresa teve aprovados outros quatro na mesma modalidade. Um deles, encerrado no ano passado, trata de marcadores moleculares para fertilidade na raça girolanda. “Identificamos algumas regiões de cromossomos bovinos que podem ser candidatas a marcadores de fertilidade pela medição da taxa de conversão de oócitos em embriões”, descreve Andrea. Atualmente, três outros projetos estão em andamento na empresa. Um deles tem como objetivo estabelecer um protocolo de certificação sanitária para os embriões produzidos in vitro no Brasil visando à exportação. “Se conseguirmos provar que os embriões produzidos em laboratório são livres de patógenos contaminantes, teremos uma ferramenta de garantia da qualidade que abrirá caminho para a exportação.” O segundo é sobre o desenvolvimento de um protocolo para coletar uma biópsia de células embrionárias que preserve a viabilidade do embrião e, ao mesmo tempo, forneça material suficiente para se fazer uma análise genômica de suas características. Este projeto é feito em colaboração com a Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Araçatuba e de Jaboticabal, e a Agropecuária Jacarezinho. “Estamos desenvolvendo na empresa uma tecnologia em que fazemos uma biópsia dos embriões recém-produzidos no laboratório, antes do congelamento, e uma análise genética para o criador escolher qual embrião quer transferir para a receptora”, diz Andrea. Em um rebanho leiteiro, por exem-
1 Embriões bovinos com seis dias de desenvolvimento 2 Manipulação de embriões no laboratório
2
plo, a escolha pode ser para melhorar a taxa de gordura ou proteína do leite. O terceiro projeto tem como objetivo produzir embriões de animais das raças nelore e holandesa de 2 a 5 meses de idade, que ainda não entraram na puberdade. Os resultados mostraram que as bezerras e as novilhas pré-púberes que receberam determinada estimulação hormonal conseguiram produzir óvulos viáveis e embriões que já foram transferidos para receptoras. A In Vitro tem ainda dois projetos de cunho social, um deles financiado pelo Sebrae em Alagoas para melhoramento do rebanho leiteiro. A empresa enviou para produtores de leite embriões da raça girolanda que resultaram em cerca de um mil prenhezes positivas. Com o nascimento das bezerras, o rebanho terá um incremento na produção, podendo atingir desejáveis 20 litros de leite por dia, sendo que antes do melhoramento genético esse número ficava entre 3 e 5 litros. O outro trabalho, também para melhorar a produção de leite, é feito em parceria com a empresa Zambezia Agropecuária de Moçambique, na África. n
Projetos 1. Validação de biópsias e amplificação do DNA de embriões de bovinos produzidos in vitro para análise genômica global (nº 2014/506160); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisadora responsável Andrea Cristina Basso (In Vitro Brasil); Investimento R$ 101.052,74 e US$ 4.745,00 (FAPESP). 2. Padronização e validação de PCR em tempo real para certificação sanitária de embriões bovinos produzidos in vitro (nº 2014/501694); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisadora responsável Juliana Hayashi Tannura (In Vitro Brasil); Investimento R$ 137.675,00 (FAPESP). 3. Desenvolvimento de ferramentas genômicas para seleção de vacas com alta fertilidade (nº 2012/51067-5); Modalidade Pipe; Pesquisadora responsável Andrea Cristina Basso (In Vitro Brasil); Investimento R$ 229.232,80 (FAPESP).
pESQUISA FAPESP 231 z 67
Mineração y
Extração magnética Sustentável e menos poluente, novo processo utiliza nanopartículas
U
ma nova tecnologia para processamento de minérios, desenvolvida na Universidade de São Paulo (USP), poderá revolucionar a mineração, principalmente a extração do cobre. Chamada de nanohidrometalurgia magnética (NHM), é 100% brasileira e considerada “verde” porque o impacto ambiental é mínimo se comparado com outras práticas do setor. A técnica é realizada em meio aquoso, com uso de nanopartículas supermagnéticas em vez de solventes orgânicos, como o querosene, por exemplo, utilizado nos processos convencionais. Coordenado pelo químico Henrique Toma, professor do Instituto de Química da USP (IQ-USP), o artigo que reúne os trabalhos do grupo que levaram ao desenvolvimento da tecnologia foi publicado na revista Green Chemistry e rendeu um pedido de patente. Desenvolvido por Ulisses Condomitti durante a elaboração da tese de doutorado realizada sob orientação de Toma e defendida no IQ-USP, o novo processo emprega a nanotecnologia para renovar e aperfeiçoar um procedimento já aplicado pela indústria mineradora, a
Nanopartículas superparamagnéticas ligadas a sais de cobre em solução aquosa são atraídas por um ímã externo ao recipiente
68 z maio DE 2015
Evanildo da Silveira
hidrometalurgia. “Entre as vantagens da nanohidrometalurgia está a possibilidade de executar todas as etapas em um único procedimento sequencial, no mesmo reator operando em condições ambientais, dispensando o tradicional uso de extração com solventes orgânicos, tratamentos ácidos e etapas de concentração, além de diminuir a produção de rejeitos”, explica Toma. “As nanopartículas captadoras de metais são integralmente regeneradas após o procedimento, sem nenhum tratamento adicional.” O novo processo desenvolvido na USP é uma alternativa para a hidrometalurgia convencional, que começa com a lixiviação, um procedimento para a separação dos minérios por meio de ácido ou, alternativamente, com bactérias, seguido do tratamento químico com agentes complexantes – que formam compostos – de metais. A diferença é que o agente químico complexante e o solvente usado para extração do metal são substituídos por nanopartículas superparamagnéticas controladas por campo magnético e produzidas com magnetita (óxido de ferro). Elas são misturadas em uma solução
aquosa rica em sais de cobre. Após alguns minutos, os íons de cobre (Cu2+) dissolvidos se ligam às nanopartículas por meio do agente complexante presente em sua superfície, e elas são atraídas para a superfície de um eletrodo, também imerso, sob ação de um ímã posicionado do lado externo. Dessa forma, as nanopartículas com os sais de cobre ficam concentradas sobre a superfície do eletrodo. Em seguida é aplicada energia elétrica sobre o eletrodo que causa a migração e a transferência de elétrons dos íons de cobre para o eletrodo, gerando o cobre metálico (Cu). Depois de cerca de cinco minutos de aplicação de eletricidade, as nanopartículas liberam praticamente todo o metal que se encontrava ligado a elas. “A eletrodeposição proporciona um cobre com pureza de 99,9%”, diz Toma. “As nanopartículas, por sua vez, são liberadas para uso posterior.” Segundo Toma, o experimento realizado em laboratório mostrou-se vantajoso em relação ao processo tradicional de hidrometalurgia na economia de tempo. Com nanotecnologia, a obtenção de cobre metálico acontece em alguns minutos, enquanto no processo industrial atual leva sete dias.
foto léo ramos infográfico ana paula campos ilustração alexandre affonso
para a captura e produção de metais |
Transformação do metal Em solução, nanopartículas se ligam aos sais de cobre, que por sua vez grudam nos eletrodos Nanopartículas
Sais de cobre + Nanopartículas
5
minutos
Minério
Sal de cobre
1
2
3
Lixiviação
Adição de
Formação dos
Separação dos
nanopartículas
compostos
metais por meio de
Controladas por
As nanopartículas se
ácidos ou com
campo magnético,
ligam aos sais de
bactérias. Sobram
as nanopartículas
íons de cobre depois
compostos de sais
são produzidas com
de alguns minutos
de cobre
óxido de ferro
de agitação
Eletrodo com corrente elétrica
Eletrodo Ímã
Cobre metálico
4
5
compostos
partículas
As nanopartículas
Eletricidade é
são atraídas para um
aplicada no
eletrodo mergulhado
eletrodo, causando
na solução aquosa
perda de elétrons
por meio da ação de
no material que
um ímã colocado fora
se transforma em
do recipiente. Os sais
cobre metálico
Atração dos
de cobre ficam instalados entre o eletrodo e as nanopartículas
liberação das Água com sais de cobre
Nanopartículas reaproveitáveis
Outra vantagem é que todo o processamento pode acontecer em um mesmo recipiente (ver infográfico ao lado). As partículas são atraídas para as placas metálicas dos eletrodos de cobre, e a eletrodeposição acontece de forma localizada. Não há necessidade de transporte até outro reator como ocorre na hidrometalurgia convencional. Isso significa redução de custo, simplificação de processo e maior racionalidade. “A nanohidrometalurgia magnética também gera menor quantidade de descartes”, diz Toma. “Existe ainda a possibilidade de automatização, usando reatores de menor dimensão.” De acordo com o pesquisador, a nova técnica também é aplicável a vários metais estratégicos, incluindo o processamento das terras-raras, um trabalho em desenvolvimento no IQ-USP. O próximo passo do grupo é transferir a tecnologia para alguma empresa. Ele conta que duas já demonstraram interesse, a 3M e a Caraíbas, a única mineradora no Brasil que produz cobre metálico, embora insuficiente para o mercado interno. Toma lista outros argumentos para demonstrar a importância da nova nanotecnologia, a começar pela importância do cobre – o principal metal a ser beneficiado –, fundamental em setores como construção civil, indústria elétrica, máquinas, transporte e eletrônica. No caso específico do Brasil, embora o país seja rico em minerais, não o é em cobre. “O dono das maiores reservas mundiais desse elemento é o Chile, com 38% do total”, informa Toma. “O Brasil detém cerca de 1,5% e o país não possui minérios ricos nesse elemento. O que existe é de baixo teor, em torno de 4% a 5%, porém adequado para uso com a nova tecnologia.” No mundo, segundo o químico, a mineração de cobre – e mesmo de outros metais – apresenta alguns problemas atualmente. Entre eles, estão o esgotamento gradual dos minerais de alto teor e o aumento de impactos ambientais, causados tanto pela extração como pelo processamento. n
Projeto Química supramolecular e nanotecnologia (nº 2013/24725-4); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador Responsável Henrique Toma (USP); Investimento R$ 940.870,28 (FAPESP).
Artigo científico Toma, H. E. Magnetic nanohydrometallurgy: a nanotechnological approach to elemental sustainability. Green Chemistry. Publicado on-line em 12 de fevereiro de 2015.
pESQUISA FAPESP 231 z 69
pesquisa empresarial y
Para enxergar mais longe Com corpo técnico qualificado, Bradar desenvolve radares para sensoriamento remoto, defesa aérea e meteorologia Yuri Vasconcelos
Q
uinhentos e cinquenta expositores de todo o mundo participaram em outubro do ano passado da 20ª Intergeo, o maior evento global do setor geoespacial. Durante três dias, mais de 18 mil pessoas passaram pelo evento em Berlim, capital da Alemanha, interessadas em conhecer as últimas novidades tecnológicas nas áreas de geoinformação, geodésia e gestão ambiental. Um dos produtos brasileiros expostos foi o BradarSAR 3000, um radar compacto, aerotransportado e projetado para mapeamento e monitoramento territorial com alta precisão. De fácil instalação e multifuncional, ele pode ser acoplado em aeronaves de pequeno porte para geração de mapas topográficos, monitoramento de mudanças geográficas – como desmatamento, inundações, invasões e processos erosivos, entre outros –, controle de fronteiras, busca e salvamento, vigilância terrestre e marítima e estimativa de biomassa. Empresas, órgãos governamentais e instituições de 60 países demonstraram interesse 70 z maio DE 2015
no radar desenvolvido no Brasil. O BradarSAR 3000 é um produto do portfólio da Bradar, uma companhia de base tecnológica pertencente à Embraer Defesa & Segurança especializada no desenvolvimento de soluções completas em sistemas de radares para defesa, monitoramento e sensoriamento remoto. “O BradarSAR 3000 foi um grande sucesso na Intergeo. O equipamento é inovador e foi lançado recentemente, com elevado nível de sofisticação, sem concorrentes no mundo. Acreditamos que será um dos nossos principais produtos para o mercado externo”, diz João Moreira Neto, diretor técnico da Bradar. O radar é dotado da tecnologia InSAR (sigla para interferometria por radar de abertura sintética) e opera em faixas de frequência X e P. As ondas da banda X são refletidas e espalhadas pelas copas das árvores, enquanto as da frequência P penetram a folhagem e são refletidas pelo solo e troncos mais densos, permitindo o mapeamento sob a vegetação. Com isso, o aparelho consegue fazer mapas topo-
empresa Bradar
Sede São José dos Campos, SP
Nº de funcionários 250
Principais produtos Radares para as áreas de monitoramento territorial, defesa, meteorologia e controle do tráfego aéreo
léo ramos
João Moreira Neto, diretor técnico da Bradar, ao lado dos gerentes de projeto Eduardo Ribeiro e Eurico Vaz e do engenheiro José Capellardo
gráficos com alta resolução de florestas densas, além de medição de biomassa florestal. Outro importante diferencial do BradarSAR 3000 é a capacidade de operar em regiões cobertas por nuvens, sem perda da precisão do mapeamento. “A aquisição dos dados independe das condições atmosféricas. E, por utilizar duas frequências de forma simultânea, nosso radar permite a obtenção de imagens com e sem vegetação, revelando superfícies desconhecidas, como cursos d’água, construções clandestinas e outros detalhes”, diz Moreira Neto, de 54 anos. Criada em 1984 como Databus Engenharia, a Bradar inicialmente se dedicava a projetos de engenharia eletrônica.
Pouco depois, ampliou sua atuação incluindo a fabricação de receptores e equipamentos para recepção de TV via satélite, sob a marca OrbiSat. Em 2002, a empresa iniciou suas atividades no setor de sensoriamento remoto com o desenvolvimento do OrbiSAR, um radar aerotransportado com características semelhantes ao BradarSAR 3000, mas de tamanho maior e mais pesado. Quatro anos depois, a companhia passou a desenvolver radares para a área de defesa, trabalhando em parceria com o Exército brasileiro. Em março de 2011, a divisão de Radares e Sensoriamento Remoto da OrbiSat foi adquirida pela Embraer e mudou sua denominação para Bradar. Com isso, a Bradar forma um grupo de empresas
adquiridas pela Embraer composto por Atech, Harpia, OGMA, Savis e Visiona. “A venda de parte da OrbiSat foi um momento crucial para a empresa, porque com a injeção de recursos continuamos a projetar e desenvolver radares de última geração. Hoje, todos os nossos produtos têm um índice de nacionalização de, pelo menos, 90%”, conta Moreira Neto. Em 2014, a empresa investiu cerca de R$ 1 milhão em atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D) – mesma quantia que deve ser investida no setor este ano. “Nós investimos em pesquisas e acreditamos que inovar seja a melhor forma de contribuirmos para o desenvolvimento e a soberania de nosso país”, diz Astor Vasques, presidente da Bradar. pESQUISA FAPESP 231 z 71
1 Painel da antena do radar M-200 2 Placa de radar pronta para teste 3 Teste no simulador de alvos
1
Decisiva para o crescimento da Bradar, a área de P&D é gerida por um comitê formado por 10 pesquisadores e liderado por Moreira Neto, engenheiro eletrônico pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). Depois de formado, em 1982, ele foi para a Alemanha, onde fez nova graduação, também em engenharia, e o doutorado na Universidade Técnica de Munique. Em paralelo, Moreira Neto foi pesquisador do Centro Aeroespacial Alemão (DLR, na sigla em alemão) e, em 1990, recebeu o Prêmio Ciência DLR pelos trabalhos na área de radares de abertura sintética – instrumento capaz de gerar imagens de alta resolução a grandes distâncias, como, por exemplo,
no espaço. “Em 1996, fundei com um colega alemão a Aero-Sensing Radarsysteme GmbH, voltada ao desenvolvimento de radares, que recebeu importantes prêmios, entre eles o de Empresa Inovadora do Ano do estado da Baviera, em 1997. No ano seguinte, figuramos no ranking ‘As 30 Empresas Mais Inovadoras’, elaborado pelo governo alemão.” Em 2002, de volta ao Brasil, o engenheiro, que vendeu sua parte, associou-se ao dono da OrbiSat e criou a divisão de radares da companhia, que daria origem à Bradar 10 anos depois. Com uma área total de 2.300 metros quadrados, a empresa está presente em três municípios paulistas. Campinas
2
abriga o setor de Engenharia de Radares, enquanto em São José dos Campos, sede da Bradar, localizam-se a presidência, a divisão de Sensoriamento Remoto e o setor de Engenharia Mecânica. O departamento de Montagem de Radares fica em Barueri, município da Região Metropolitana de São Paulo. Do total de 250 colaboradores, 180 são engenheiros, 15 têm título de doutor e 20 de mestre. “Sessenta dos nossos engenheiros atuam diretamente com inovação, enquanto outros 115 dedicam-se ao desenvolvimento dos nossos produtos”, diz Moreira Neto, destacando que a companhia tem 19 registros de patente e três registros de marcas. projetos e versões
INSTITUIÇÕES QUE FORMARAM PESQUISADORES DA EMPRESA João Moreira Neto, engenheiro eletrônico, diretor técnico da Bradar
Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA): graduação Universidade Técnica de Munique (TUM): doutorado
Karlus Alexander Câmara Macedo, engenheiro eletricista, pesquisador da área de processamento de sinais
Universidade de Brasília (UnB): graduação Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA): mestrado Universität Karlsruhe (Alemanha): doutorado
Marco Antônio Miguel Miranda, engenheiro eletricista, gerente da área de processamento de sinais
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp): graduação Universidade Estadual de Campinas (Unicamp): mestrado Universidade Estadual de Campinas (Unicamp): doutorado (em andamento)
Eduardo Ribeiro da Silva, engenheiro eletricista, gerente de projeto do radar Grade
Universidade Estadual Paulista (Unesp): graduação Fundação Getulio Vargas (FGV): MBA
Eurico Vaz Júnior, cientista da computação, gerente de projetos, dedicado à área de sensoriamento remoto
Universidade Federal de Itajubá (Unifei): graduação Fundação Getulio Vargas (FGV): MBA
José de Jesus Capellaro, engenheiro eletricista, membro da equipe de gestão de projetos de radares militares
Universidade de São Paulo (USP): graduação
72 z maio DE 2015
Bacharel em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Itajubá (Unifei), em Minas Gerais, Eurico Vaz Junior, 34 anos, ocupa o cargo de gerente de projetos na unidade de São José dos Campos, onde lidera os departamentos de Engenharia e Manutenção de Sistemas e Desenvolvimento de Software de Sensoriamento Remoto. “Ao longo de 12 anos de experiência profissional na Bradar desenvolvi um perfil multidisciplinar com atuação na gestão de projetos de novos produtos, gerenciamento de operações de aerolevantamento, coordenação de desenvolvimento de hardware, software e operação de sistemas de sensoriamento remoto”, diz. Vaz Junior fez parte do grupo que projetou e construiu o BradarSAR 3000 e outros equipamentos da empresa, como o Sarvant, um ra-
fotos léo ramos
3
dar de abertura sintética projetado com recursos da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) para ser instalado em um veículo aéreo não tripulado (vant). Também atuou no desenvolvimento de novas versões do radar de sensoriamento remoto OrbiSAR, o radar cartográfico usado desde 2002 pela empresa para prestação de serviços no Brasil e no exterior (ver Pesquisa Fapesp nºs 89 e 149). Ele está sendo empregado no momento em um projeto do Exército para mapear os últimos vazios cartográficos da Amazônia. Antes disso, a Bradar já realizou mapeamentos topográficos com o OrbiSAR para clientes na Itália, Colômbia, Venezuela, Panamá e Equador. Além de desenvolver radares de sensoriamento remoto, a Bradar também fabrica, desde 2006, radares de defesa. O pioneiro foi o radar de artilharia antiaérea de baixa altura Saber-M60, criado em parceria com o Centro Tecnológico do Exército (CTEx). O radar rastreia alvos – aeronaves clandestinas, por exemplo – em um raio de 60 quilômetros e a uma altitude de 5 mil metros, transmitindo as informações em tempo real a um centro de operações de artilharia antiaérea. Por ser móvel e de baixo peso, pode ser facilmente transportado de um lugar a outro. “Com o Saber-M60, o Brasil passou a figurar entre os cinco países do mundo que dominam o conhecimento industrial desse tipo de equipamento”, diz Moreira Neto. Um lote de 22 desses radares foi utilizado pelas três Forças Armadas na segurança dos estádios que sediaram a Copa do Mundo de 2014.
O M200 será um radar multimissão e vai atuar nas áreas de defesa, meteorologia e controle de voos
O equipamento também foi empregado durante a Copa das Confederações e a visita do papa Francisco ao Brasil, em 2013, e na Rio+20, em 2012. Um segundo membro dessa família de radares, o Saber-M200, com raio de alcance de 200 quilômetros, já está em desenvolvimento e deve ficar pronto ainda este ano. “O Saber-M200 será o primeiro radar multimissão – artilharia antiaérea, meteorologia e aproximação de voos em aeroportos – de baixo custo do mercado internacional. A Alemanha já nos pediu informações sobre ele”, conta o diretor técnico da Bradar. O engenheiro eletrônico José de Jesus Capellaro, 52 anos, fez parte da equipe responsável pela criação do Saber-M60 e hoje dedica-se a outro
projeto na área militar, o sistema radar secundário S200R. “Trata-se de um radar de controle de tráfego aéreo projetado e desenvolvido com recursos da própria companhia, do CTEx, do ITA e da Finep para a Força Aérea Brasileira (FAB). O radar tem o objetivo de interrogar os transponders instalados nas aeronaves, equipamentos que fornecem informações de identificação e altitude. O S200R permite identificar aeronaves distantes até 200 milhas náuticas, cerca de 370 quilômetros”, afirma Capellaro. O equipamento está em fase final de construção e deverá ser entregue para a FAB no próximo ano. Previsão do tempo
Entre os projetos de produtos futuros, a Bradar se dedica a radares destinados à área de meteorologia. A empresa está construindo um radar meteorológico dotado da tecnologia now casting, capaz de fazer previsões de curto prazo, em períodos de três a quatro horas. pESQUISA FAPESP 231 z 73
Batizado de Grade, ele mede 2 metros de comprimento por 2 de altura e tem baixo consumo de energia, podendo ser facilmente instalado em regiões remotas não cobertas por radares de grande porte. Um dos pesquisadores envolvidos em seu desenvolvimento é o engenheiro eletricista Eduardo Ribeiro da Silva, 37 anos. Formado pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Guaratinguetá, ele atuou durante 10 anos no desenvolvimento de circuitos integrados nas empresas Motorola e Freescale. Nesse período, registrou três patentes resultantes de projetos, em sua maioria para o setor automotivo. giro rápido
Em 2013, Silva juntou-se à equipe da Bradar e no ano seguinte passou a coordenar a criação do Grade. “No fim do ano passado, fizemos a integração do radar e, agora, estamos realizando a análise do processamento de sinais e refinando os dados coletados”, afirma o engenheiro eletricista. “A grande diferença entre o Grade e os radares meteorológicos convencionais é a substituição do refletor parabólico por hastes, modificação que permite ao conjunto girar em velocidades de até 300 rotações por minuto (rpm), provendo, dessa forma, uma rápida leitura das condições do tempo.” 74 z maio DE 2015
período – até 2008 – trabalhei no Instituto de Micro-ondas e Sistema de Radar do Centro Aeroespacial Alemão (DLR). Foi uma experiência muito enriquecedora pessoal e profissionalmente”, diz. De volta ao Brasil, o jovem foi contratado pela Bradar e passou a integrar a equipe responsável pela engenharia de sistemas Parceiros nas e sinais para radares universidades de defesa e sensoriamento remoto. Hoje, contribuem Macedo trabalha na finalização do radar O grupo de procespara a Saber-M200, revisamento de sinais da sando seu sistema Bradar, responsável substituição de de processamento pela concepção, imcomponentes de sinal. plementação e teste Muitos dos novos dos algoritmos de siimportados produtos e tecnolonais que são embargias criados pela Bracados nos produtos e domínio dar são desenvolvida empresa, conta dos com a participacom 70% dos profisda tecnologia ção de universidades. sionais com pós-gra“A Unicamp é nossa duação. O gerente da principal parceira – área, Marco Antonio Miguel Miranda, de 27 anos, é formado temos mais de 20 bolsistas na instituiem Engenharia Elétrica pela Universida- ção –, mas também trabalhamos com de Estadual de Campinas (Unicamp), fez a USP [Universidade de São Paulo] de o mestrado na mesma instituição e, no São Carlos, a Universidade Federal do momento, cursa o doutorado. “Entrei na Ceará e a PUC [Pontifícia UniversidaBradar em 2009, quando ainda estava na de Católica] do Rio, entre outras”, diz graduação”, diz ele. “O tema do meu dou- Moreira Neto. “Muitas vezes, queremos torado está relacionado a radares meteo- produzir localmente certos componentes rológicos. Recentemente, dois colegas da importados com o objetivo de baratear o empresa e eu submetemos um pedido de custo e dominar a tecnologia. Então enpatente protegendo uma solução tecnoló- volvemos parceiros universitários. Isso gica oferecida pelo radar meteorológico ocorreu recentemente com uma placa Grade.” Um dos integrantes da área de de processamento que está presente em processamento de sinais é o engenheiro todos os nossos radares. Cada unidade eletricista Karlus Alexander Câmara de importada custava cerca de US$ 34 mil, Macedo, de 41 anos. Depois de graduar-se e um único radar chegava a usar 96 desna Universidade de Brasília (UnB) e con- sas peças. Em 18 meses fizemos nossa seguir o título de mestre no ITA, foi para própria placa, oito vezes mais potente a Alemanha em 2002 fazer o doutorado do que a importada e custando um terço na Universität Karlsruhe. “Durante esse do valor dela. n
léo ramos
Teste de integração da fonte de alimentação do radar M-200
QUÍMICA ANALÍTICA y
Reconhecimento imediato Aparelho portátil emprega radiação infravermelha para certificar a qualidade de alimentos, polímeros, fármacos e tecidos
E
Léo Ramos
m um futuro próximo, caso alguém que decida comprar uma camisa 100% algodão duvide de que a peça oferecida pela loja é mesmo feita com este material, poderá tirar um aparelho de bolso, apontar para o tecido e ler no visor se de fato é o indicado na etiqueta. A realidade é que esse equipamento portátil poderá, dentro de alguns anos, estar disponível para consumidores, policiais e inspetores de qualidade, por exemplo. O precursor desse dispositivo é o espectrofotômetro portátil MicroNIR 1700, um instrumento compacto que opera no comprimento de onda do infravermelho próximo, invisível ao olho humano. Com potencial para identificar a composição química de produtos comerciais e outros tipos de objetos sem precisar tocar neles, o aparelho está sendo testado por um grupo
Uso do aparelho para determinar a doçura e a qualidade de maçãs
de pesquisadores brasileiros interessados em tornar a tecnologia acessível à população sem conhecimento técnico. A onda eletromagnética produzida pelo próprio instrumento incide no objeto analisado e é refletida e parcialmente absorvida. Com essa informação, o aparelho gera dados sobre a composição química característica do objeto, o que permite identificar e revelar detalhes de interesse do usuário. “O MicroNIR tem um potencial grande, mas precisa do desenvolvimento de métodos e de adaptações para se tornar uma ferramenta efetiva na resolução de problemas analíticos e mais fácil de ser operada. É isso que estamos fazendo na nossa pesquisa”, explica o químico Celio Pasquini, professor do Departamento de Química Analítica do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (IQ-Unicamp) e coordenador do Instituto Nacional de Ciências e Tecnologias Analíticas Avançadas (Inctaa) apoiado pela FAPESP e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A tecnologia NIR (sigla em inglês para infravermelho próximo ou near infrared) não é novidade. Ela já existe desde a década de 1970, mas seu uso está limitado a aparelhos caros, complexos e não portáteis, operados principalmente por técnicos especializados ou cientistas. pESQUISA FAPESP 231 z 75
Radiação reveladora Saiba como funciona o espectrofotômetro portátil
1
Para checar a autenticidade de um tipo de tecido, por exemplo, o
2
Em seguida, o aparelho mede a relação entre a radiação emitida
3
Comparando o espectro de absorção do tecido analisado
aparelho emite sobre o tecido um
e a absorvida pelo tecido, em
com os espectros de absorção
feixe de ondas eletromagnéticas do
função do comprimento de
previamente armazenados no
espectro infravermelho próximo
onda refletido. Cada material
aparelho, o MicroNIR revela se
possui um espectro de absorção
o material é autêntico ou não
próprio que funciona como se Fonte INCTAA
“O lançamento do MicroNIR 1700 em 2013 pela empresa norte-americana JDSU abriu novas oportunidades para que a espectroscopia NIR possa, um dia, ser acessível ao consumidor”, diz Pasquini. INTERAÇÃO QUANTITATIVA
Pasquini explica que a espectrometria de infravermelho próximo baseia-se no estudo da interação da radiação eletromagnética com a matéria e já está consolidada na literatura científica para diversas aplicações, entre elas controle de qualidade em alimentos como leite e derivados, óleos, bebidas, frutas e frutos do mar, além da análise de produtos têxteis, polímeros e fármacos, entre outras. A técnica consiste na medição da intensidade de absorção da radiação na faixa do infravermelho próximo em função do comprimento de onda produzida por determinado objeto ou amostra. A espectrofotometria NIR é usada na medição quantitativa de grupos funcionais orgânicos, principalmente O-H (ligação oxigênio e hidrogênio), N-H (ligação nitrogênio e hidrogênio) e C=O (dupla ligação entre carbono e oxigênio). Cada objeto ou amostra possui características químicas únicas – muitas vezes resultantes de composições complexas como a impressão digital humana –, que podem ser identificadas por um espec76 z maio DE 2015
fosse uma impressão digital
A técnica não é destrutiva e permite a análise sem a necessidade de cortar ou furar a amostra
trofotômetro. “Os átomos das moléculas que formam qualquer amostra constituída por substâncias orgânicas não se encontram estáticos, parados, mas vibrando. Quando incidimos uma radiação adequada, que possa ser absorvida por certa ligação química, por exemplo, essa radiação é atenuada, transferindo parte da sua energia para a vibração dos átomos ligados, o que é registrado pelos
equipamentos de espectrofotometria NIR, explica Pasquini. “As interações com as substâncias químicas presentes são características da amostra e sua medida gera informações únicas que podem ser consideradas como sua impressão digital”, explica Pasquini. Uma das características da técnica está no fato de ela não ser destrutiva e permitir o acesso a informações nas amostras intactas. “O novo instrumento usado em nosso trabalho custa US$ 5,5 mil, valor que é cerca de 15 vezes mais barato do que os espectrofotômetros convencionais. Além disso, é portátil, robusto, fácil de usar e apresenta rapidamente uma resposta. Com todas essas características, ele pode ser visto como uma solução à procura de um problema – mais ou menos como a tecnologia dos lasers na década de 1960”, destaca Pasquini. O pesquisador também faz parte do Grupo de Instrumentação e Automação em Química Analítica (GIA) do Instituto de Química da Unicamp, constituído ainda pelos pesquisadores Jarbas José Rodrigues Rowedder e Ivo Milton Raimundo Júnior, do Inctaa. O GIA trabalha com espectroscopia desde 1995. É um dos centros brasileiros pioneiros na pesquisa e no desenvolvimento dessa tecnologia e já criou vários instrumen-
tos que resultaram em quatro pedidos de patente. Um deles serve ao controle da qualidade de combustíveis para determinação do teor de álcool em gasolina e a presença de água no etanol. O aparelho é comercializado pela Tech Chrom, empresa de Campinas, com a finalidade de inibir os tipos mais comuns de fraude nesses produtos (ver Pesquisa FAPESP nº 209).
foto léo ramos infográfico ana paula campos ilustraçãO fabio otubo
resultados no visor
Aluno de mestrado do Instituto de Química da Unicamp e membro da equipe de Pasquini, Matheus Angeluzzi Jardim esclarece que a efetividade do MicroNIR 1700, que mede 4,5 centímetros de comprimento por 4,2 de largura e pesa 150 gramas, depende da existência de um vasto banco de dados formado pela impressão digital ou espectro de absorção de um grande número de amostras. Dessa forma, ao realizar a leitura de determinado objeto, o equipamento seria capaz de fazer sua identificação comparando o espectro de absorção captado com aqueles previamente armazenados no banco de dados. Por enquanto, o aparelho apenas mostra o resultado na forma de gráficos na tela de um computador. No futuro os resultados poderão ser mostrados, de forma mais simples, num pequeno visor no próprio aparelho. “Vamos supor que queiramos analisar produtos têxteis a fim de criar um modelo que consiga identificar se determinado vestido é, de fato, de seda, tal qual consta em sua etiqueta. O primeiro passo seria dispor de algumas dezenas de amostras de tecidos de seda, com diferentes cores e padrões e, assim, obter o espectro de absorção delas”, diz Jardim. Depois, ao empregar quimiometria – ciência que recorre à aplicação de ferramentas estatísticas e matemáticas para obter informação de vastos conjuntos de dados –, os pesquisadores geram um modelo de classificação capaz de identificar, estatisticamente, se a amostra da qual se está obtendo o espectro é mesmo seda. Por fim, com o modelo pronto, pode-se usar um espectrofotômetro como o MicroNIR 1700 em qualquer peça de vestuário e saber se ela é ou não de seda. Por enquanto, a biblioteca de modelos está sendo montada no Brasil apenas pelo grupo de Pasquini. “Já temos uma biblioteca suficiente para criar modelos para determinação de açúcar em frutas,
como laranja, kiwi e maçãs, assim como para identificação de tecidos – algodão, poliéster, couro, seda e outros”, diz Jardim. Um dos objetivos de seu trabalho de mestrado é criar um modelo para determinação da escala Brix – medida que aponta a quantidade de sólidos dissolvidos numa fruta, o que reflete diretamente a quantidade de açúcar presente nela. O espectrofotômetro, portanto, poderia ajudar o consumidor a escolher no supermercado frutas mais ou menos doces, de acordo com sua preferência. “A iniciativa de construir bases de dados e os modelos, como o que estamos fazendo, está na pauta de vários grupos de pesquisa ao redor do mundo. Porém esse trabalho ainda é desenvolvido de forma isolada. No futuro, a colaboração entre grupos brasileiros e de outros países poderá ser aproveitada para tornar as bases de dados mais universais. Mas esse é um trabalho que levará alguns anos. No sistema que se pretende construir os aparelhos terão sempre seus modelos atualizados automaticamente via web e comunicação sem fio”, conta Pasquini. O aparelho também poderia ser usado para avaliar se determinado móvel foi feito com a madeira informada pelo fabricante, se um remédio tem mesmo a composição química anunciada pelo fabricante e assim por diante. “O MicroNIR poderia ser muito útil para verificar a autenticidade de mercadorias, coibindo a venda de produtos falsificados ou piratas, um problema que movimenta bilhões de dólares por ano em todo o mundo. Dados na literatura científica também revelam que a tecnologia tem potencial para ser empregada na identificação de cédulas falsas”, diz o mestrando da Unicamp. “Como a portabilidade é uma tendência crescente em nossa sociedade, acredito que dentro de algum tempo possa ser possível a criação de um aparelho NIR acoplado a um smartphone. Quando isso acontecer, a tecnologia do infravermelho próximo deverá ganhar força e será utilizada por qualquer pessoa.” n Yuri Vasconcelos
A utilização futura do equipamento portátil inclui a identificação de produtos piratas ou mesmo de dinheiro falso
Projeto Instituto Nacional de Ciências e Tecnologias Analíticas Avançadas – Inctaa (nº 2008/57808-1); Modalidade Projeto Temático – INCT; Pesquisador responsável Celio Pasquini (Unicamp); Investimento R$ 375.421,77 e US$ 531.453,87 (FAPESP).
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humanidades literatura y
Poética de resíduos Pesquisas vão além dos aspectos testemunhais da obra de Carolina Maria de Jesus e buscam definir seu estilo e seus parentescos culturais Márcio Ferrari
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inquenta e cinco anos depois de Quarto de despejo, estreia em livro da escritora Carolina Maria de Jesus, o interesse por sua obra continua se desdobrando e tomou impulso em 2014, ano de seu centenário de nascimento – presumido, porque a própria Carolina não tinha certeza sobre a data e há discrepâncias de dados entre sua certidão de nascimento e a de batismo. Definida como “favelada” no subtítulo do livro (Diário de uma favelada), Carolina hoje é revisitada sob diversos ângulos, dada a riqueza de sua produção inédita, ou quase, e de sua vida de altos e baixos. “Escritora, lavradora, catadora de papel, compositora, sambista, poetisa, dramaturga, cantora, atriz circense, raizeira [quem usa raízes em tratamento médico]”, assim a descreve a historiadora Elena Pajaro Peres em sua tese de doutorado Exuberância e invisibilidade. Populações moventes e cul-
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tura em São Paulo, 1942 ao início dos anos 70, defendida em 2007 no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Elena desenvolve agora no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP pesquisa de pós-doutorado sobre a diáspora africana nos manuscritos de Carolina. A presença de Carolina (1914-1977) em círculos acadêmicos no Brasil e no exterior contrasta com o quase total desconhecimento de seu nome pelo público leitor. A sua época, entretanto, Quarto de despejo foi um fenômeno de vendas. A primeira tiragem, de 10 mil exemplares, se esgotou em três dias, outros 90 mil foram vendidos em seis meses. No exterior, ganhou tradução em 14 idiomas. A publicação do livro aconteceu depois de uma reportagem do jornalista Audálio Dantas na favela do Canindé, uma das primeiras de São Paulo. Um encontro casual com
Carolina o levou a conhecer os escritos – contidos em cerca de 20 cadernos – que selecionou e editou, alterando a pontuação, mas mantendo a ortografia e a gramática originais. Carolina, que estudou apenas até o 2º ano do então chamado curso primário em sua cidade natal, Sacramento, em Minas Gerais, sempre havia confiado no potencial de publicação do que escrevia. Trechos de seus cadernos já tinham saído em reportagens de jornais, entre elas a de Audálio Dantas, publicada em 1958 na Folha da Noite. Dois anos depois sairia Quarto de despejo, já com expectativa de público. Carolina publicaria ainda três livros em vida, com repercussão incomparavelmente menor do que a obra que a celebrizou, e deixou guardados “mais de 5 mil páginas manuscritas, totalizando 58 cadernos que contêm sete romances, mais de 60 textos com características de crônicas, fábulas, autobiografia e contos, mais de
Acervo UH / Folhapress
Carolina em foto de junho de 1960 na janela de um barraco, em São Paulo: produção literária e vida de altos e baixos continuam sendo estudadas
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100 poemas, quatro peças de teatro e 12 marchinhas de Carnaval”, segundo levantamento feito pela doutoranda Raffaella Fernandez, que atualmente trabalha na pesquisa Narrativas de Carolina Maria de Jesus: Processo de criação de uma poética de resíduos, no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Todo esse material se encontra espalhado, e novos manuscritos podem aparecer. “Sempre que se trabalha com pessoas em movimento, tem-se que lidar com a dispersão dos documentos”, diz Elena. “Carolina entregou muitos escritos a outras pessoas, na esperança de publicá-los, e, em suas constantes mudanças, foi obrigada a deixar para trás alguns livros que colecionava com
carinho.” Mesmo suas obras publicadas são difíceis de encontrar. Elena Peres pôde consultar os microfilmes de seus manuscritos na Biblioteca do Congresso em Washington, que guarda também uma cópia de todos os livros de Carolina, inclusive o romance Pedaços da fome, de 1963, e seu único disco, gravado pela RCA Victor. Os mesmos microfilmes também estão disponíveis na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, mas no catálogo da BN não constam todos os seus livros.
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oi nos livros Provérbios e Diário de Bitita – memórias de infância da escritora, publicadas inicialmente na França, em 1982, e quatro anos depois no Brasil – que a pesquisadora tem encontrado os principais vínculos entre
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Carolina e a cultura da diáspora africana no continente americano. “Consegue-se perceber conexões com tradições africanas que davam muita importância à palavra escrita”, diz Elena. A historiadora identifica em particular um elo com a cultura de Cabinda, hoje província de Angola, que liga a escritora à África Central. Seu avô, a quem ouvia com devoção quando criança, era ex-escravo e seus pais vinham dessa região de cultura banto, onde o exercício da formação moral e da busca do caminho reto era feito por meio de diálogos e provérbios, muitas vezes pictografados em tecidos e cerâmicas. Elena, que esteve por 12 meses em estágio de pós-doutorado no African American Studies da Boston University e que vem dialogando com africanistas e estudiosos das diásporas africanas, relaciona essa preocupação quanto à firmeza de caráter com a tradição musical afro-norte-americana do spirituals. “Como os provérbios, os spirituals comunicam o caminho a ser seguido e lamentam os seus desvios, recriando uma ética religiosa e política que foi constantemente retomada nos discursos em prol dos direitos civis, especialmente nas décadas de 1950 e 1960”, explica Elena. O avô de Carolina era cristão e comandava a reza do terço em Sacramento, o que lhe conferia autoridade moral e proeminência na comunidade. Quando foram lançados Quarto de despejo, Casa de alvenaria (memórias de sua vida depois do sucesso do primeiro livro) ou Antologia pessoal (reunião de poemas organizada pelo historiador José Carlos Bom Meihy, publicada em 1996), costumava-se criticar a escritora por não refletir sobre sua condição de mulher e negra. No entanto, textos sobre esses assuntos encontram-se espalhados pelos inéditos e mesmo em passagens publicadas que não foram suficientemente levadas em conta na época. A doutoranda Raffaella destaca poemas e outras passagens dos escritos de Carolina que formam um conjunto ambíguo sobre essas questões – ora a autora incorpora preconceitos, ora reivindica a emancipação de negros e mulheres. Na vida, a escritora sempre se manteve tão independente quanto pôde. Preferiu ser catadora de papel a empregada doméstica e nunca quis se casar – teve três filhos de pais diferentes. Para Elena, a noção de pertencimento à cultura negra se alimentou também
fotos Raffaella fernandez/ebook “Onde estaes felicidade?”
do abolicionismo dos poetas românticos 1 Parte de conto brasileiros e das ideias de intelectuais co- publicado mo Rui Barbosa e José do Patrocínio, aos postumamente, em 2014, e quais Carolina teve acesso por influência disponível on-line de um oficial de Justiça mulato de Sacramento, que lia trechos de jornais para os 2 Fragmento de negros da cidade que não sabiam ler. Nos um dos numerosos deixados exíguos dois anos em que estudou numa textos por Carolina escola espírita, Carolina tomou gosto pela leitura, e o primeiro livro que leu inteiro, emprestado por uma vizinha, foi A escrava Isaura, do romântico Bernardo Guimarães. Dali para frente, continuou lendo tudo o que lhe caía nas mãos, entre livros achados ou recebidos em doação, o que formou um repertório de Carolina referência muito parpreferiu ser ticular. “Os escritos de Carolina têm trechos catadora de papel poéticos de um grande refinamento e que não a empregada correspondem exatamente à literatura do doméstica período em que foram e nunca quis produzidos”, diz Elena. Quando se mudou se casar para São Paulo, em que logo a prefeitura 1937, sozinha, deixande São Paulo, na gesdo para trás família e tão do prefeito Preslivros, Carolina pastes Maia (1961-65), sou a escrever furiosamente. Pelos rela- começou uma campanha bem-sucedida tos que deixou, sabe-se que sua cabeça de derrubada da favela do Canindé, o que era inundada por “pensamentos poéti- resultou na remoção forçada dos moradocos”. Uma de suas anotações diz: “Sentia res. Essa ação da prefeitura incentivou um ideias que eu desconhecia”. Para Elena, grupo de estudantes a criar o Movimento esse despertar inesperado dá continui- Universitário do Desfavelamento (MUD), dade a uma espécie de missão de pro- que, com a ajuda de grandes empresas, cura da sabedoria incutida por seu avô atuou na remoção de outras favelas. e impregnada de uma cultura ancestral. “Talvez ela não houvesse vindo para São doutoranda Raffaella defende Paulo se não sentisse essa necessidade”, um deslocamento de abordagem diz a pesquisadora. “Na cidade grande, que se detenha nos aspectos proCarolina se isolou e encontrou a literatu- priamente literários da obra de Carolina ra.” Com isso, conjugou uma voz própria – um terreno em que mesmo o aspecto com a vivência que trazia do entorno. De informativo dos escritos pode ser relatiacordo com Elena, a expressão “quarto vizado. “O universo ficcional está sempre de despejo”, numa metáfora da escrito- muito presente”, diz, por sua vez, Elena ra, refere-se à favela como um lugar em Peres. “Há memória na ficção e ficção no que a sociedade “guarda” o que não quer testemunho, como também ocorre em mostrar na sala de visitas. outros autores.” A pesquisadora defenO livro de estreia da autora foi recebido de também a superação dos limites da como um relato testemunhal da vida na fa- literatura “de periferia, marginal” a que vela e, segundo Elena, no exterior continua Carolina é frequentemente circunscrita. residindo aí o interesse principal desper- “Isso é importante, mas ficaríamos apetado pela escritora. O impacto e o incômo- nas com a visão do lugar e da época em do imediatos causados pelo livro foi tanto que viveu após deixar sua família”, diz,
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ao se referir às redes transnacionais que vem traçando a partir da obra da autora. “Como escritora, Carolina está além das determinações imediatas”, ressalta Raffaella, que organizou e promoveu a publicação do livro Onde estaes felicidade?, com dois contos inéditos da autora, em 2014 (disponível em www.letraria. net), e agora prepara a edição de um livro infantil e outro infantojuvenil. Em seu trabalho acadêmico, ela define a produção de Carolina como uma “poética de resíduos”, na qual se misturam discursos e gêneros literários e não literários, dos poemas românticos aos textos jornalísticos, das letras de sambas à radionovela e da norma culta à oralidade, à qual se incorpora um sotaque mineiro. Esse grande amálgama leva Raffaella a aproximar a atividade de catadora de papel à de escritora. “A literatura de Carolina também sobrevive de uma catação de discursos”, conclui. n
Projeto Escrita proibida. Expressão romântica e diáspora afri cana nos manuscritos de Carolina Maria de Jesus (nº 2012/10784-6); Modalidade Bolsa no Brasil – Pós-dou torado; Pesquisadora responsável Elena Pajaro Peres (IEB-USP); Investimento R$ 164.743,02.
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História y
A contabilidade da escravidão: na página ao lado, uma conta de compra de escravos em Luanda À esquerda, uma livrança, espécie de papel-moeda comum em Angola
Os banqueiros do tráfico Documentos antigos fotos 1 Torre do Tombo 2 Arquivo Histórico Ultramarino
evidenciam papel dos grandes negociantes de Lisboa nas operações com escravos em Angola Carlos Fioravanti
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m 1740, o português Domingos Dias da Silva era um capitão de navio que transportava tecidos, aguardente, vinho e armas de fogo para Luanda, o maior porto ligado ao tráfico de escravos em Angola, então uma colônia portuguesa. Silva vendia as mercadorias, recebia parte do pagamento na forma de papéis chamados letras ou em livranças, que funcionavam como promissórias, e parte na forma de escravos. Depois de entregar os escravos no Brasil, ele trocava as letras por moedas de ouro, enchia os porões de açúcar e voltava para Lisboa, fechando uma viagem que poderia ter começado dois anos antes. Silva ganhou dinheiro suficiente para participar do leilão de contratos de escravos, promovido pelo governo português, e oferecer mais que os concorrentes. Depois de 25 anos, ele se tornara contratador, cobrando impostos em nome do rei sobre os negócios com escravos e acumulando riqueza, poder e prestígio. pESQUISA FAPESP 231 z 83
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tenas de pessoas participavam, até mesmo padres, que poderiam enviar vinhos a serem trocados por escravos em Luanda. “Sim, padres”, diz ele. “Não havia problema nenhum. Pelo padrão religioso da época, o tráfico de escravos era uma forma de salvar almas do inferno porque os negros recebiam o batismo antes de entrarem nos navios rumo ao Brasil.”
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om esses documentos, Menz está ressaltando o papel central dos contratadores portugueses e dos contratos de exportação na geração dos mecanismos de crédito e de capitais associados ao tráfico de escravos. “O contratador funcionava com um banco, emprestando dinheiro por meio das livranças emitidas em Luanda como forma de pagamento pelas mercadorias”, diz ele. “Os papéis eram trocados por dinheiro no Brasil, quando os escravos eram vendidos.” Menz está confirmando uma hipótese do historiador Joseph Miller, da Universidade de Virgínia, Estados Unidos: “Miller propôs que os mercadores de Lisboa, graças ao controle do contrato de escravos, monopolizavam o financiamento do negócio, fazendo uso de uma série de privilégios garantidos por esses contratos e, desse modo, forneciam a maior parte das mercadorias que eram
utilizadas para a compra dos escravos no interior de Angola”. “Nessa época, os homens de negócio do Brasil atuariam principalmente no mercado de fretes, oferecendo transporte para a mercadoria humana a ser vendida no Brasil”, propõe Menz, apresentando uma alternativa a uma visão comum entre historiadores, segundo a qual os negociantes brasileiros é que controlavam o tráfico. “É esta a interpretação nos trabalhos de Luiz Felipe de Alencastro, Manolo Florentino, Roquinaldo Ferreira e Alexandre Vieira Ribeiro, mas existem pesquisas mais recentes que também reconhecem o protagonismo das comunidades mercantis de Lisboa ou dos mercadores de Luanda e Benguela, como as teses de Gustavo Acioli Lopes, Jaime Rodrigues, Daniel Domingues Dias Silva, Mariana Cândido e o doutorado, em andamento, de Jesus Bohorquez.” Enquanto ao norte, nas regiões então chamadas de Guiné e Mina, os europeus ancoravam os navios nos portos e apenas compravam os escravos capturados por mercadores africanos, em Angola, por ser uma colônia portuguesa, a participação dos europeus era mais intensa. Em Luanda, a capital, o tráfico de escravos havia se tornado a principal fonte de renda da população formada por portugueses e mestiços, que representavam
fotos 1 Guilherme Paes de Menezes / Wikimedia 2 Arquivo Histórico Ultramarino
Sua trajetória expõe a complexidade comercial do tráfico de escravos entre Portugal, Angola e Brasil, que o historiador Maximiliano Menz, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), está reconstituindo por meio de dois conjuntos de documentos encontrados por ele na Torre do Tombo, um dos arquivos históricos de Lisboa. O primeiro conjunto, consultado pela primeira vez em 2011, são os quatro livros de contratos de exportação de escravos comprados em Luanda de 1763 a 1770. Nessa época, em média 9 mil africanos saíam por ano de Angola como escravos. Ao longo de três séculos, quase 6 milhões de africanos saíram principalmente de Angola para trabalhar nas minas de ouro e nas plantações de cana-de-açúcar do Brasil. O segundo conjunto de documentos emergiu em outra viagem, em janeiro deste ano: são os cerca de 230 livros – quatro por ano, cada um com 600 páginas – dos registros de mercadorias que passaram pela alfândega de Lisboa ao serem embarcadas para Luanda de 1748 a 1807. Nos 28 livros que já examinou, Menz contabilizou cerca de 2 mil lançamentos com nomes de pessoas e mercadorias e concluiu que, embora os negócios estivessem concentrados nas mãos de grandes negociantes como Silva, cen-
Registro das exportações de escravos de Benguela, oeste de Angola, em 1738
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metade dos cerca de 5 mil habitantes da cidade (a outra metade era de escravos, parte deles à espera dos navios que os levariam para as Américas). Os portugueses financiavam a compra de escravos no interior pelos comerciantes locais, em geral negros ou mulatos, que podiam dar calote ou morrer, por causa de malária, febre amarela e ou-
tras doenças comuns. O risco maior era a perda de escravos, que muitas vezes não resistiam à travessia do oceano rumo ao Brasil, reduzindo o lucro. Para evitar esse risco, os negociantes preferiam receber o pagamento em livranças ou em letras, trocadas no Brasil por ouro ou produtos coloniais como açúcar, algodão e tabaco, enviados para Lisboa.
Vista panorâmica de Luanda em 1755, com a Sé, na cidade alta (à esquerda) e o forte de São Miguel (à direita)
A corrente de crédito funcionou até que Domingos Dias da Silva, como contratador, resolveu mudar as regras: parou de emprestar para os outros comerciantes, por meio das livranças, e forçou a compra de mercadorias que ele enviava de Lisboa. Não deu certo, porque quase ninguém tinha dinheiro vivo para usar. Segundo Menz, o governador de Angola, Francisco Inocêncio Coutinho, pressionado pelos comerciantes, escreveu para Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal e secretário de Estado do reino. Em 1770, para encerrar a confusão, Pombal extinguiu os contratos e determinou que os impostos sobre a venda de escravos seriam administrados diretamente pela Fazenda real. Apesar dos imprevistos, Silva aparentemente não faliu e anos depois morreu rico. O tráfico foi abolido em 1830, mas nos anos seguintes muitos escravos ainda foram capturados e enviados ilegalmente de Angola para o Brasil. n
Projeto U ma história econômica do tráfico de escravos em Angola: financiamento, fiscalidade, transporte (c. 1730-1807) (nº 2014/14896-9); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador Responsável Maximiliano Mac Menz (Unifesp); Investimento R$ 37.344,11 (FAPESP).
Artigo científico
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MENZ, M. M. As geometrias do tráfico: o comércio metropolitano e o tráfico de escravos em Angola (1796-1807). Revista de História. v. 166, p. 185-222. 2012.
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História da ciência y
Cientistas alemães no aniversário de 80 anos de Bernhard-Nocht (em destaque, na frente), fundador do Instituto de Doenças Marítimas e Tropicais de Hamburgo, em 1937. Rocha Lima participou da homenagem (ao fundo)
Diplomatas no laboratório Projeto investiga o intercâmbio científico entre o Brasil e a Alemanha nazista Juliana Sayuri
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as Olimpíadas de Berlim, em 1936, a cidade alemã recebeu mais do que delegações de atletas e turistas. Desembarcaram também na “nova” Alemanha os primeiros estudantes latino-americanos atraídos por cursos, congressos e visitas a instituições médicas do país. As excursões cresceram nos anos seguintes, tornando-se itinerantes. Do Brasil, jovens graduandos, principalmente da Escola Paulista de Medicina, visitaram hospitais, laboratórios e órgãos oficiais, em missões médico-diplomáticas manejadas por ministérios à época dominados pelo Partido Nazista. Algumas eram promovidas pela Academia Médica Germano-ibero-americana, fundada em 1935. O objetivo era fomentar as relações médicas entre Alemanha e países da América Latina.
“A medicina teve papel importante nessas relações diplomáticas porque gozava de grande prestígio internacional, embora não fosse uma ferramenta tão visível de propaganda cultural”, diz o historiador André Felipe Cândido da Silva, da Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). “Durante o nacional-socialismo, a corporação médica alemã foi um dos segmentos que se alinhou mais estreitamente ao novo regime. Os médicos, como representantes da arena acadêmica, eram porta-vozes convictos do intenso nacionalismo vigente. E havia a dinâmica indústria farmacêutica, com interesse em consolidar seus laços com clientes estrangeiros.” Silva explorou o papel da ciência na diplomacia cultural alemã entre 1919 e 1950, com ênfase na década de 1930, durante pós-doutorado realizado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
fotos 1 Arquivo Histórico do Bernhard-Nocht Institut für Tropenmedizin 2 Arquivo Político do Ministério das Relações Exteriores em Berlim
Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Por diplomacia cultural entenda-se o esforço germânico que congregou diplomatas e cientistas, universidades, empresas e companhias de navegação, entre outros atores. Além das expedições científicas de estudantes, enfermeiros, docentes, pesquisadores e até pacientes, algumas estratégias articulavam médicos e diplomatas entre Brasil e Alemanha. Havia periódicos especializados, como a Revista Médica de Hamburgo, fundada por Ludolph Brauer, organização de encontros científicos internacionais, campanhas sanitárias, consolidação de produtos da indústria farmacêutica alemã e construções de hospitais por vezes voltados à assistência de imigrantes. Enquanto no Brasil – especialmente no circuito Rio-São Paulo – as faculdades de medicina ganhavam corpo, com maior especialização e interesse tecnológico, sofisticação das técnicas de intervenção cirúrgica e avanços em procedimentos de diagnóstico e profilaxia, a Alemanha já era ponta de lança do desenvolvimento científico. Ali foi elaborado o modelo médico que alicerçou a formação contemporânea com o tripé ensino, assistência clínica e pesquisa universitária em Berlim, Göttingen, Heidelberg e Munique. Descobertas clínicas e inovações cirúrgicas vinham de laboratórios de universidades, indústrias e institutos alemães, que contavam com expoentes como Robert Koch, Rudolf Virchow, Paul Ehrlich, Emil Kraepelin, Emil von Behring, August von Wassermann, entre outros. As ciências tiveram impacto no contexto político, às vésperas da Segunda Guerra Mundial. “Tornaram-se ingredientes importantes do prestígio nacional, ainda mais no ambiente de intenso nacionalismo”, diz Silva. Na análise do historiador, a experiência da Primeira Guerra já tinha demonstrado a importância de estruturar complexos nacionais de pesquisa científica, aliando instituições acadêmicas, indústrias, militares e Estado. “Além disso, o discurso científico contribuiu para legi-
Estado da Bahia noticia a visita de Ludolph Brauer, da Universidade de Hamburgo, a Salvador em 1935
timar ambições territoriais e pretensões de superioridade nacional e racial importantes para conquistar a adesão interna e a externa, de aliados”, observa. Superioridade cultural
De acordo com Silva, médicos alemães se envolveram na propaganda cultural, persuadidos pela superioridade de sua cultura. Entretanto, após a Primeira Guerra, a ciência alemã ficou relativamente isolada quando parte dos cientistas se manifestou a favor do militarismo germânico. Ademais, físicos, médicos e químicos participaram de estudos como o desenvolvimento de gases letais. A instrumentalização do conhecimento para fins bélicos levou vários países a boicotar a ciência alemã até meados da década de 1920. “É importante, no entanto, distinguir os diferentes níveis da cooperação científica transnacional para ter clareza de que muitos pesquisadores continuaram mantendo contato informal com seus pares de países outrora inimigos. Embora repercutisse internacionalmente,
para os latino-americanos não teve praticamente nenhum efeito uma política de boicote levada a cabo por organizações das quais muitos deles não faziam parte”, pondera. O patologista e microbiologista carioca Henrique da Rocha Lima, por exemplo, se tornou um dos principais colaboradores da diplomacia alemã nas décadas de 1920 e 1930. Rocha Lima descobriu a origem do tifo exantemático em 1916, no Instituto de Doenças Marítimas e Tropicais de Hamburgo. Na volta definitiva ao Brasil, em 1928, foi uma liderança marcante do Instituto Biológico de São Paulo. O patologista Walter Büngeler, alemão de Danzig (atual cidade polonesa de Gdansk), escolhido para a cátedra da Escola Paulista de Medicina, pretendia ali iniciar um núcleo alinhado à ciência alemã – e correspondeu às expectativas dos oficiais da chancelaria e do Partido Nazista, transformando a escola num celeiro científico para as iniciativas da Academia Médica Germano-ibero-americana, especialmente com as excursões de estudantes. O intercâmbio expressivo incluiu nomes como o oftalmologista Antônio de Abreu Fialho, o psiquiatra Antônio Pacheco e Silva, o dermatologista Adolfo Lindenberg, que foram convidados a visitar a Alemanha. Do outro lado, vieram ao Brasil médicos como Franz Volhard, Helmut Ulrici e Walter Unverricht, Heinrich Huebschmann e Karl Fahremkamp, entre outros. Diretor do Hospital Eppendorf, Ludolph Brauer visitou o Rio, Salvador e São Paulo – ali ainda passou pela distante colônia de Presidente Epitácio, onde existia uma ativa célula do Partido Nazista. A deflagração da Segunda Guerra Mundial, em 1939, abalou o intercâmbio científico, que acabou a partir da entrada do Brasil no conflito, ao lado dos Aliados, em 1942. n
Projeto As relações científicas germano-brasileiras no contexto da medicina paulista (1919-1950) (nº 2011/51984-5); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisadora responsável Maria Amélia Mascarenhas Dantes (FFLCH-USP); Bolsista André Felipe Cândido da Silva; Financiamento R$ 227.531,91 (FAPESP).
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A princesa e as plantas da serra
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Expedição da família imperial a Itatiaia em 1872 resulta em livro raro, agora resgatado
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Acima, amostras de plantas colhidas em Itatiaia: presente para a filha do imperador Ao lado, Glaziou, o líder da expedição
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eve ter sido uma expedição peculiar – um botânico francês, a filha do imperador, então com 22 anos, e, certamente, muitos assistentes e carregadores de bagagens –, da qual infelizmente não há imagens conhecidas. Em julho de 1872, Auguste Glaziou, botânico e paisagista de 39 anos havia 14 no Brasil, liderou uma expedição da qual a integrante mais notável era a princesa Isabel, primeira filha de dom Pedro II, então já casada com Luis Felipe de Orléans, o conde d’Eu, outro francês. Subiram ao maciço de Itatiaia, região montanhosa entre as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, então parte de uma fazenda, depois comprada pelo governo e transformada em parque nacional, o primeiro do país, em 1937. Glaziou, certamente atento ao bem-estar da princesa, não deixou de coletar plantas típicas da montanha, que ele visitava pela primeira vez; o botânico Auguste de Saint-Hilaire já tinha percorrido a região cerca de 60 anos antes. Várias espécies se mostraram únicas da região, como uma planta do grupo das samambaias, a Polystichum rochaleanum, que cresce entre fendas de rochas nas
1 Plantes Cueillies sur l’Itatiaia / mnhn Reprodução Sergio Romaniuc Neto 2 Biblioteca Nacional
Carlos Fioravanti
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Capa do Plantes cueillies sur l’Itatiaia: preservado em um museu de Paris Ao lado, pico das Agulhas Negras, em Itatiaia, em foto de 1870 de Alberto Henschel, fotógrafo da Casa Imperial
3 Coleção Princesa Isabel. Fotografia do século XIX 4 Plantes Cueillies sur l’Itatiaia / mnhn Reprodução Sergio Romaniuc Neto 5 Biblioteca Nacional
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áreas mais altas. Como os nobres gostavam de plantas, Glaziou reuniu uma amostra de plantas coletadas na expedição, fez um livro com um formato aproximado de uma folha de papel sulfite comum e 50 páginas, deu-lhe o título de Plantes cueillies sur l’Itatiaia au mois de juillet 1872, impresso na capa de couro verde, fez uma dedicatória e o entregou à princesa. A filha do imperador deve ter gostado do presente porque o manteve quando a República tomou o lugar da monarquia e a família real se refugiou em Paris. A princesa Isabel mudou-se depois para a cidade de Eu, na Normandia, até morrer, em 1921. O livro foi doado pelas filhas da princesa ao Museu Nacional de História Natural de Paris e permaneceu por muitos anos quase sem leitores na seção de herbários históricos. Em 2013, Sergio Romaniuc Neto, pesquisador do Instituto de Botânica de São Paulo, trabalhava no museu de Paris para examinar a
coleção de plantas brasileiras formada por Saint-Hilaire, soube desse livro e, assim que conseguiu todas as autorizações, examinou-o e o fotografou. “Pouca gente sabia que essa coleção estava lá”, ele observa. Cada página contém amostras de várias plantas: a maioria são samambaias, com algumas rubiáceas, o grupo do cafeeiro, entre outras. Agora, Romaniuc e outros
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botânicos começam a examinar com atenção as plantas do herbário da princesa, sabendo que podem encontrar espécies ainda não descritas ou talvez já desaparecidas, como parte de um grande trabalho para repatriação das informações sobre coleções botânicas mantidas em outros países (ver Pesquisa Fapesp nº 229). A mãe de dom Pedro II, a imperatriz Leopoldina,
Princesa Isabel, em foto de 1875, com um bebê
o próprio imperador e suas filhas gostavam de botânica a ponto de manterem coleções de plantas e apoiarem Glaziou na construção de jardins e praças próximos à residência de verão da nobreza em Petrópolis, na região serrana do Rio. Glaziou cuidava também da ornamentação das exposições de plantas organizadas pela princesa Isabel, com distribuição de medalhas aos premiados pelas melhores plantas, selecionadas por um refinado júri. O imperador, a princesa e seu marido compareciam à abertura da exposição. Resgatando tais eventos, uma edição de O Estado de S.Paulo de 1967 descreveu: “A princesa contribuía com plantas e flores ornamentais, colocando ela própria os exemplares nos mostruários. As medalhas comemorativas destas exposições foram pagas pela conta particular de dom Pedro II”. A última exposição foi realizada em 1888, um ano antes do fim da monarquia no Brasil. n PESQUISA FAPESP 231 | 89
Arte
Equilíbrio e rigor Especialista em Shakespeare, Barbara Heliodora era reconhecida pela dureza controversa no ofício da crítica teatral e dedicação ao ato de ensinar
Orlando Margarido
N
1
90 | maio DE 2015
o início dos anos 1990, um conhecido diretor teatral se preparava para a estreia em Campinas de sua versão de Macbeth quando notou uma senhora sentada no saguão desde cedo. Ao saber que esperava pelo início do espetáculo, ofereceu lugar mais confortável. Ela recusou e ali ficou. Nem os grandes óculos nem o cabelo branco serviram para o encenador identificá-la como uma das mais respeitadas críticas de teatro do país. Dias depois, descobriu de quem se tratava ao ler os reparos duros ao espetáculo – e também aos outros que viriam a ser montados por ele. Foi a partir daquele momento que Ulysses Cruz deu início à rivalidade folclórica com Barbara Heliodora a ponto de barrá-la em montagens futuras. O episódio não é a única polêmica na carreira da estudiosa carioca especializada em William Shakespeare, a quem devotava tamanho empenho que poderia tomar um ônibus do Rio de Janeiro ao interior de São Paulo para avaliar a qualidade de uma adaptação. Barbara Heliodora, ou Heliodora Carneiro de Mendonça, morreu em 10 de abril, aos 91 anos, mais de duas décadas depois de outro desafeto assim desejar. Gerald Thomas se arrependeria e pediria perdão à crítica. Outros nomes da cena teatral, contudo, nunca voltaram atrás e jamais aceitaram o rigor e o que consideravam excesso de Barbara na atividade que durou 25 anos em diversas fases da vida e veículos da imprensa.
nova montagem do dramaturgo utiliza as versões de Barbara no palco, a exemplo do que se deu com Timon de Atenas no ano passado, uma adaptação atualizada com Vera Holtz no papel do protagonista masculino, um mecenas milionário. Menos pública, a atuação na universidade manteve-se um tanto discreta. Enquanto seguia, para desespero de muitos, com suas críticas na revista Visão ou em O Globo, onde permaneceu entre 1990 e 2014, Barbara formou na UniRio toda uma geração de atores, diretores e técnicos. Lecionou História do Teatro inclusive a uma das três filhas, a atriz Patrícia Bueno. “Era rígida como em tudo, não facilitava para ninguém, e muito menos para mim”, lembra ela. “Mas todos a adoravam.” Notório saber
Tonico Pereira e Vera Holtz em Timon de Atenas (2014), obra de Shakespeare traduzida por Barbara
fotos 1 Gustavo Miranda Agência /O Globo 2 Dalton Valério
2
Tal aversão era recompensada pelos que a admiravam em igual ou maior número e talvez com o mesmo fervor exagerado. Tudo em decorrência do ofício que exercia com a autoridade de quem conhecia profundamente a obra do dramaturgo inglês e o teatro de Tchecov e Ibsen, entre tantos outros. Barbara começou a exercer a crítica na Tribuna da Imprensa, em breve passagem, e no Jornal do Brasil no fim dos anos 1950. A essa época, já contava uma década de seu bacharelado em artes no Connecticut College, nos Estados Unidos, certificado mais tarde revalidado pela Faculdade de Letras da futura Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, a UniRio. Ali, com a experiência de dirigir o Serviço Nacional de Teatro e dar aulas no Conservatório Dramático Nacional, ingressou na Escola de Teatro em 1971. A convivência acadêmica terminaria na aposentadoria em 1985, quando já ostentava os títulos de professora emérita e decana da instituição. O gosto por ensinar nunca cessou. Tornaram-se famosos os cursos ministrados em sua residência do Cosme Velho, bairro do Rio, abertos a todos e frequentados por atores como Pedro Paulo Rangel e Marco Nanini. O acúmulo de funções para complementar a renda ou pelo amor ao teatro seria uma característica da autora de ensaios, livros e traduções, com Shakespeare sempre à frente. O ofício de tradutora é sempre lembrado quando alguma
Outra aluna se tornou figura próxima e apreciadora. Claudia Braga garante ter sido a única orientanda de Barbara quando realizou seu mestrado na UniRio com dissertação sobre o teatro brasileiro na Primeira República. “As pessoas tinham medo e não a escolhiam”, conta. “No início ela resistiu, dizia não conhecer o tema, e venci pela insistência; ela sabia tudo, mas era humilde e na dúvida pedia para eu procurar Décio de Almeida Prado.” Hoje professora na Universidade Federal de São João del Rey, em Minas Gerais, Claudia relembra que a orientadora simplesmente mudou o eixo do tema proposto. “Ela me mandou ler os textos de teatro do período; sempre defendia que, se não se podia conhecer as encenações, fosse aos textos buscar a verdade”, diz. Claudia retribuiu a generosidade do passado ao editar extensa coletânea com textos da autora carioca. Um dos poucos momentos em que a crítica se distanciou do Rio de Janeiro foi para realizar na Universidade de São Paulo seu doutorado, em 1975. Em parte por não ter tal possibilidade na capital fluminense, em parte por ter afinidade com seu orientador, o professor americano Fredric Litto, ali baseado. “Eu a indiquei por notório saber e ela já chegou para defender a tese”, conta Litto. O projeto, A expressão dramática do homem político em Shakespeare, tornou-se um livro de referência. Barbara permaneceu como professora titular da USP por sete anos e ministrou ainda cursos de extensão. Litto lembra suas particularidades. “Era uma pragmática acima de tudo, inspirada pela escola americana, e não pela francesa, esta seguida por Décio de Almeida Prado e Sábato Magaldi.” Essa postura, complementa, e o fato de não adotar um ponto de partida ideológico comum à época na avaliação do bom teatro faziam a diferença. “Ela apostava na dramaticidade e não se comovia desnecessariamente; havia o equilíbrio e o rigor de não seguir com critérios que vão e vêm com os ventos.” n PESQUISA FAPESP 231 | 91
ficção
A via-crúcis e os mistérios dolorosos
T
odo corpo tem uma história. A do meu descaminhou logo cedo. Aos dezesseis, idade em que os meninos aceitam desafios idiotas lançados por outros meninos, cavalguei durante alguns segundos em um manga-larga recém-domado antes de comer poeira. Meus amigos acudiram. Levantei confuso, conferi que não havia sofrido o destino de Christopher Reeves, que na época ficara tetraplégico ao cair de um cavalo. Demos umas risadas e foi isso. Dois anos depois, mochilando pela Europa, senti uma agulhada terrível nas costas a caminho da estação de trem. Tive de soltar no chão a carga que carregava, e acabei pedindo ajuda a outro viajante que também saía às pressas do albergue. Levou alguns anos para que se desenvolvesse uma dor crônica na lombar, e uma ressonância acusasse duas hérnias de disco entre as vértebras L3-L4 e L4-L5. O amortecedor da coluna, por onde passava um feixe de nervos até as pernas, tinha saído do lugar. A dor não apenas me ensinou a tratar o corpo como algo mais que um apêndice do cérebro, ou um escravo de minhas sensações e desejos. Ela veio afirmar um continente que eu ignorava. Todos os pensamentos nasciam dele e o habitavam. Todas as convicções davam-lhe forma e o desdobravam; os temores o continham, preenchiam-no de ambiguidades. A descoberta do corpo foi o meu giro copernicano. Não sabia, por exemplo, se uma dor se tratava com movimento ou repouso, frio ou calor. Desde moleque tive alguns quilos a mais. O que fazer? Entrei numa academia e aguentei umas semanas. Fui caminhar; depois, correr. Li a obra final de Foucault sobre o cuidado de si pelos gregos antigos; sopesei a ergonomia das cadeiras que utilizava todos os dias para trabalhar. A dor persistia, contudo, e o mundo passou a ser filtrado por ela. 92 | maio DE 2015
Agendei com um ortopedista do convênio, que me recomendou quinze sessões de fisioterapia. Fiz nove e não obtive melhoras. Passei em outro clínico, um jovem autoconfiante que sentenciou: “Não vou te enganar. É preciso cair na faca. Veja o que faremos”. Mostrou uma pequena maquete de duas vértebras separadas por hastes. “Isso aí vai piorar a cada ano. Você vai começar a perder o movimento das pernas. O prognóstico é bastante ruim. Quando quiser, agendamos.” Desolado, saí correndo de lá, maldizendo Hipócrates e toda a sua laia de carniceiros. Nunca me encostariam um bisturi. O tempo foi passando e a dor crônica começou a provocar os tais pinçamentos nevrálgicos, que enrijeciam os músculos das costas. Nos períodos de crise, passava dias deitado, à base de relaxantes musculares, analgésicos e anti-inflamatórios. Meus dias perdiam a regularidade, as atividades saíam do ritmo. Na época em que a dor começou a irradiar para as pernas, minha tia contou do chinês que havia curado o seu bico de papagaio em poucas sessões. Custou-me vencer o ceticismo; perdi o seu número de telefone algumas vezes. Num outono particularmente difícil, fui vê-lo num pequeno sobrado de bairro. O próprio foi me receber no portão: um senhor na casa dos setenta anos, magro e baixinho, simpático à sua maneira. Narrei resumidamente o que passava, enquanto o chinês assentia com enfado. Pediu que eu me deitasse numa maca. Chacoalhou as duas pernas como se fossem sacos de golfe, ou engrenagens pouco azeitadas. Sorrindo, comentou: “Hérnia não. Dor: outra coisa”. Em seguida, indicou que eu
renato moriconi
Tiago Novaes
aproximasse um dos joelhos dobrados contra o peito, mantendo a outra perna estirada. Para o meu espanto, o chinês subiu na maca, apontou o pé para a minha nádega esquerda e começou a chutar em movimentos firmes, até que as duas pernas estivessem com o mesmo comprimento. Passados quarenta minutos de estupefação e sudorese, ganhei a rua e a condição plena de vivente. Pela primeira vez em anos minhas costas não doíam. Contemplando a cidade pelo vidro do ônibus, estava de volta ao mundo. Poderia circular, dançar, praticar todos os movimentos do Sutra que quisesse. Curado, pensei. E agora saberia a quem recorrer. O chinês faleceu pouco depois. As dores voltaram. Em vão busquei substitutos, e não achei ninguém que me chutasse as nádegas satisfatoriamente. Fiz algumas aulas de ginástica. Ajudou. Comecei o Pilates, que também mitigou as dores (há quem diga que a Yoga cai melhor). Pratiquei exercícios isométricos para fortalecer a musculatura paravertebral. Uma amiga sugeriu que eu mentalizasse o próprio corpo, esboçasse desenhos coloridos, visualizasse as energias. Minha analista perguntou por que, afinal, eu tinha de levar o mundo nas costas. De quando em vez me entregava aos alongamentos. Um homeopata prescreveu comprimidos diários de vitamina D, após uma longa história que incluía o deslocamento da civilização para regiões de maior latitude. O homem, disse, tem sido acossado por inflamações desde que migrou da África para a Europa. Sugeriu que eu abolisse o leite, o café, o açúcar e o álcool. Deixei de tomar leite, café e açúcar durante alguns meses excelentes. Adotei cada solução parcial com um manifesto ceticismo e uma esperança latente. A cada crise tudo parecia ruir: os esforços para tornar-me um bípede como o restante da raça humana pareciam inúteis. Minha idade dobrava. De sustentáculo, a complexa engenharia óssea de trinta e três vértebras tornava-se cruz, carma, neurose regressiva. Em vários momentos julguei que a saída era abdicar das saídas. Aceitar que tinha uma deficiência. Muitas outras vezes mandei esse papo de limites às favas e passei a noite dançando como se não houvesse amanhã. Às vezes saía ileso, às vezes pagava o preço. Há algumas semanas me sugeriram a acupuntura como solução. Na Wikipédia dizem que as pesquisas alopáticas comprovaram a eficácia da técnica, a ponto de os doutores quererem confiscá-la para si próprios. Com base na Medicina Tradicional Chinesa, a acupuntura se assenta nos princípios teóricos de Yin/Yang, na Teoria dos Cinco Elementos, nos oito princípios de Ba Gua, no fundamento dos órgãos Zang Fu, nos meridianos de energia, no padrão de seis níveis de Zhang Zhong-jin, no Triplo Aquecedor (San Jiao) e nos Quatro Estágios desenvolvidos por sacerdotes das dinastias Ming e Qing. Mais não sei, porque os links da internet me conduziam a websites suspeitos. Os resultados são milagrosos, dizem. As agulhas produzem efeitos no Sistema Nervoso Central, dizem. Liberam endorfina. Atuam no Sistema Nervoso Periférico. Liberam adenosina, com poder analgésico e anti-inflamatório. Até o papa pratica, dizem. Vamos ver. Agendei uma consulta para a semana que vem. Não sei. Nunca se sabe. Depois conto como foi. Tiago Novaes é autor dos romances Estado vegetativo, Documentário e Os amantes da fronteira. Foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura (Estado vegetativo) e Jabuti (Tertúlia: o autor como leitor) na categoria Teoria Literária.
PESQUISA FAPESP 231 | 93
resenhas
A voz coral dos parreirais Liliana Laganá
D Diário de uma terra lontana José de Souza Martins Fundação Pró-Memória de São Caetano 257 páginas Para receber gratuitamente, envie um e-mail para raizes@fpm.org.br
94 | maio DE 2015
iário de uma terra lontana, o sugestivo título deste livro do sociólogo José de Souza Martins, nos remete ao imaginário do emigrante italiano, para o qual a América era a mítica terra lontana, de contornos indefinidos, terra de paz, trabalho, riqueza. Mas o autor nos leva para dentro dessa terra lontana, o Núcleo Colonial de São Caetano, fundado em 1887, para onde foram encaminhados os italianos, principalmente do Vêneto, da Lombardia e do Molise, atribulados pelas guerras de unificação da Itália, no movimento conhecido como Risorgimento. E o faz através deste “diário”, onde são reunidos os “factos diversos” – pequenas notas publicadas em jornais – e registros em arquivos públicos, no Brasil e fora dele, recolhidos ao longo de 60 anos. É através desses “factos diversos” – não relevantes para a grande história, mas que entretecem a vida de cada dia, o cotidiano dos pobres e dos esquecidos, dando outro sentido à própria história – que vemos desenrolar-se a vida do Núcleo Colonial, desde o tempo anterior à sua fundação, quando no lugar havia uma fazenda dos monges de São Bento, cuja senzala abrigaria os primeiros imigrantes, até depois, quando o núcleo desaparece, engolido pelos tentáculos da cidade que cresce, pela especulação imobiliária, pela nascente industrialização de São Paulo, que relega às suas margens as indústrias poluentes, indesejadas nas áreas centrais. Pelas páginas do diário, vemos delinear-se a paisagem, de contornos sempre fugitivos, em que a própria morfologia do terreno sofre mudanças, pelas formas de ocupação que nela se sucedem: vemos a planície encharcada, por onde correm rios que serão retificados e até mudarão de nome, e vemos modificar-se o perfil dos morros e das colinas, de onde, desde o tempo da fazenda dos beneditinos, era retirada a valiosa argila, base da moderna indústria de cerâmica. Vemos a construção da ferrovia, que substituirá os longos trajetos em lombo de mulas ou em barcos ao longo dos caudalosos rios que transportavam os tijolos até o sopé do Mosteiro de São Bento, a ferrovia que reduzirá distâncias e marcará um novo tempo, o do horário dos trens. E vemos na paisagem vicejarem os primeiros vinhedos e as plantações de frutas e verduras e
legumes, que pareciam finalmente realizar o sonho dos imigrantes, sem entenderem bem que, saídos de um mundo em transformação, é um mundo em transformação que encontram na nova terra, o mundo moderno que se delineia no horizonte, com o fim da escravidão, com a passagem da monarquia à República. E é com tristeza que vemos esses mesmos parreirais destruídos pela filoxera, que junto com as videiras destruirá os sonhos dos imigrantes de transmitir aos filhos e aos netos sua arte de cultivar as vides, renunciar a um trabalho marcado pela sucessão das estações do ano e do ciclo diário da luz solar e se submeterem, como operários, ao novo tempo exigido pelas fábricas – de formicida, de sabão e graxa, de cerâmica – instaladas nos lotes vendidos a preços de quase nada, e que marcam na paisagem o moderno modo de uso do solo. Pelo diário conhecemos os imigrantes pelo nome e sobrenome, idade, dia de chegada e navio em que chegaram, número do lote a cada um destinado e o número das campas reservadas às numerosas crianças, na área pobre do Cemitério da Consolação, cujas mortes marcam tragicamente o início da vida da colônia. E sabemos dos casamentos e dos batizados, e da festa que, de ritual de sacralização da colheita, momento de laetitia, mesma raiz de laetame (estrume), tomará ela também outro sentido, o tempo não mais marcado pelo repicar dos sinos, mas pelo horário dos trens, que trazem e levam pessoas de fora. As páginas do diário narram a história da colônia. Mas é uma narrativa feita por outros: como os protagonistas do romance de Alessandro Manzoni, I promessi sposi, citado pelo autor na epígrafe, os protagonistas desta história são mudos. Com exceção de duas cartas, uma de Antonio Rossi, pai da vinicultura na Colônia de São Caetano, e outra em que se lê “siamo in tanti che mangia e pochi che guadagnia”, não ouvimos suas falas dialetais: sua única voz será a voz coral dos parreirais, que temporariamente marcaram a paisagem de São Caetano, a expressar sua identidade e evocar a terra natal, agora lontana. Liliana Laganá é doutora em Geografia, mestre em Língua e Literatura Italiana, autora de A última fábula, Terra amada e Estrelas do Sul (Casa Amarela/Caros Amigos).
Uma vida na arena da ciência Fabrício Marques
A
fotos 1 eduardo cesar 2 léo ramos
Desafiando fronteiras – Trajetória de vida do cientista José Israel Vargas Lígia Maria Leite Pereira Editora UFMG R$ 30,00 | 447 páginas
biografia de José Israel Vargas, ministro da Ciência e Tecnologia (MCT) entre 1992 e 1999 e embaixador do Brasil na Unesco, é leitura proveitosa para quem se interessa pela história da ciência no Brasil na segunda metade do século XX e seus bastidores. Escrita pela socióloga Lígia Maria Leite Pereira, a obra tem como fonte principal as memórias de Vargas colhidas em mais de 30 horas de gravação, além de discursos e entrevistas do pesquisador. O tom, às vezes, é o de um monólogo, com longos trechos entre aspas. Pela narrativa do cientista nascido em Paracatu (MG), em 1928, passeiam seus professores e alunos, familiares, cientistas brasileiros e estrangeiros, e políticos, em episódios que reconstituem mais de oito décadas da vida do cientista mineiro e da ciência brasileira. Na primeira parte do livro, Vargas rememora a infância em Paracatu, onde a família tinha negócios nos transportes e na mineração; a adolescência em Belo Horizonte, onde foi estudar num colégio de elite com grande esforço dos pais; e a decisão de estudar química, e não engenharia como sonhava a família. O início da trajetória científica aconteceu na graduação da Faculdade de Filosofia da então Universidade de Minas Gerais, com um período de dois anos de estudo na Universidade de São Paulo. Vargas logo se encantou pela pesquisa nuclear, campo em que se doutorou em Cambridge. Como professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ajudou a formular a política nuclear brasileira no início dos anos 1960, atuação interrompida após a deposição de João Goulart. Com o fim do regime militar, retomou a influência: em 1985 ele presidiu a Comissão Vargas, avaliação do programa nuclear solicitada pelo presidente José Sarney. Transferiu-se para Grenoble, na França, como pesquisador do Centro de Estudos Nucleares do Comissariado de Energia Atômica, onde se dedicou à pesquisa por seis anos e meio. De volta ao Brasil em 1971, logo seria requisitado para colaborar com as políticas modernizadoras do governo militar. Reassumiu a cátedra na UFMG e, indicado por Celso Furtado, foi convidado por José Pelúcio Ferreira, presidente da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), a trabalhar como consultor do órgão. A ascensão de Aureliano Chaves ao governo mineiro, em 1974, levou-o à pre-
sidência da Fundação João Pinheiro e, dois anos mais tarde, ao comando da Secretaria de Ciência e Tecnologia de Minas Gerais. Em 1979, chegou a Brasília, para assumir a Secretaria de Tecnologia Industrial do Ministério da Indústria e Comércio. Em paralelo, tornou-se vice-presidente da Academia Brasileira de Ciências (1981-1995). Vargas foi o mais duradouro ministro da Ciência e Tecnologia do país. Foi escolhido para o cargo por Itamar Franco em 1992 e o deixou em 1999, ao final do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso. O curioso é que se opusera à criação da pasta em 1985. Seu argumento: a gestão da ciência é importante demais para disputar verbas com outros ministérios e, por isso, deveria estar ligada à Presidência da República. Teve papel importante na consolidação do MCT, que havia sido ocupado por nove nomes diferentes em sete anos de existência. Com Itamar, Vargas investiu dinheiro das privatizações em projetos que já estavam em gestação, como o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron. A passagem pelo MCT mostra a sua influência na formulação de iniciativas hoje consolidadas, como o programa de cooperação espacial com a China, a implantação da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança e do Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos, em Cachoeira Paulista (SP). Em 2000, foi escolhido embaixador brasileiro na Unesco, o braço das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura. A atuação diplomática não era estranha a Vargas, que no início dos anos 1960 participara de missões brasileiras na Agência Internacional de Energia Atômica, em Viena, e estivera durante sete anos no conselho executivo da própria Unesco, que presidiu entre 1987 e 1989. Sempre manteve os laços com Minas Gerais. Professor aposentado da UFMG, segue orientando alunos de iniciação científica. Na parte final do livro, em que são transcritos depoimentos de colegas e familiares, o perfil de Vargas se completa. Emerge o cientista com algo de imperial, daqueles que conseguem mobilizar, com naturalidade, um entourage de seguidores em torno dos muitos projetos a que se dedicou; o homem de cultura vasta e grande memória; e o pai carismático, que incutiu o gosto pela ciência em suas três filhas, pesquisadoras e professoras universitárias. PESQUISA FAPESP 231 | 95
Entre missões e mediações
A O antropólogo e sua bíblia – Ensaios sobre missionários-etnógrafos Melvina Araújo Editora FAP-Unifesp R$ 46,00 | 240 páginas
96 | maio DE 2015
coletânea organizada por Melvina Afra Mendes Araújo, O antropólogo e sua bíblia, versa sobre narrativas missionárias como um fazer que revela aspectos cruciais das etnografias antropológicas. Temos aqui artigos sobre os Kanak e Maurice Lienhart; sobre os bantos de Moçambique e Henri Junot; sobre os mulçumanos do Sudão e o padre Joseph Ohrwalder; sobre os Makuxi e os missionários Consolata; sobre as missões espiritanas do planalto central angolano; sobre as missões dos salesianos em regiões da Amazônia e de Mato Grosso e sobre os missionários católicos no Paraguai e as suas populações. Os artigos questionam as premissas que ordenam os modos missionários de narrar e de conhecer os indígenas, aproximando-os dos dilemas do fazer etnográfico. Os textos reunidos versam sobre relações entre missionários e indígenas através das narrativas dos primeiros a respeito destes últimos. Trata-se pois de um livro que desvela o saber missionário e os dilemas vividos pelos antropólogos e missionários com e em relação aos seus outros. Lorenzo Macagno ressalta como os missionários e os antropólogos efetuam suas reflexões a partir de uma genealogia de problemas que herdaram e que buscam até hoje ultrapassar. Através das noções de Kultur e Zivilisation, ressalta o autor, impôs-se uma tensão, embora histórica e sociologicamente configurada, por meio do nosso legado iluminista e/ou romântico. Entre uma perspectiva de assimilação desses outros como parte de uma totalidade humana universal, de base iluminista, e a perspectiva de um desenvolvimento em separado, assentada em um pressuposto romântico sobre o caráter relativo dos “dados” obtidos, abrigam-se os missionários que discutem seus interesses e percepções relativos à proteção/tutela/conversão de seus outros ao cristianismo. Assim, Patricia Azevedo descreve a forma pela qual a Igreja Católica “pôde gozar de uma situação ímpar no processo de hierarquização social”, ligado, segundo ela, ao ordenamento das raças na administração colonial britânica. Melvina Araújo observa que os mecanismos de aculturação e de assimilação, elaborados pelos missionários em Roraima, abandonaram o que poderia ser considerado um projeto iluminista para adotarem o
viés romântico da anticulturação. As duas autoras trabalham a produção política das reivindicações identitárias e os estatutos atribuídos pelo trabalho missionário aos seus outros. Esta perspectiva também é desenvolvida por Iracema Dulley ao se debruçar sobre a interação dos agentes envolvidos no contexto das missões espiritanas no planalto central angolano. Ressaltando a experiência indígena, Paula Montero enfatiza como a narrativa salesiana não é “um simples produto da imposição de um olhar externalista e europeu”. Da mesma forma que o movimento missionário da Consolata e as missões católicas em Angola, os salesianos participam do engendramento da “tradição” dos indígenas e de suas “culturas”. A narrativa salesiana como todas as outras abordadas nos levam a pensar, acompanhando Montero, sobre as mediações que os antropólogos constroem ao produzir as suas etnografias. O que importa, segundo a autora, é compreender os contextos de mediação que elaboraram nas narrativas missionárias. Alejandra Siffredi, por sua vez, demonstra como o conhecimento, relacionalmente engendrado, se passa no interior de contextos em que índios e missionários disputam as categorias que empregam, não sem combates violentos, como ela insiste. Os autores desta coletânea pressupõem que os conhecimentos são “impuros”, inseparáveis do seu tempo e tributários das relações que mantiveram com seus “objetos”. Estes “objetos”/sujeitos na antropologia clássica foram, em uma grande medida, congelados e seus povos concebidos como infensos aos contatos e à dominação colonial. Montero, ao asseverar que “o que a etnografia registra em termos de alteridade já é, na verdade, um produto desse processo e, portanto, ela mesma se constitui em instrumento de mediação” desfere um rude golpe sobre a perspectiva etnológica clássica mencionada. Temos um belo livro e um trabalho coletivo bem elaborado, concebido a partir de eixos comuns. Certamente O antropólogo e sua bíblia vai se impor como uma referência obrigatória no seu campo de estudos. Patricia Birman é docente do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e pesquisadora do CNPq.
eduardo cesar
Patricia Birman
carreiras
Competitividade
A trajetória dos engenheiros
ilustraçãO daniel bueno
Problemas estruturais e conjectura econômica interferem na profissão Os anos 2000 marcaram um aumento na oferta de cargos ligados à engenharia, assim como de sua remuneração. O estudo “Trajetórias de engenheiros jovens brasileiros no mercado formal nos anos 2000”, realizado pelo Observatório de Inovação e Competitividade (OIC) do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo (USP), analisou o mercado de desses profissionais. Foram acompanhados 9.041 engenheiros recém-formados com até 25 anos, por meio da Relação Anual de Informações Sociais (Rais), do Ministério do Trabalho e Emprego, relatório anual de preenchimento obrigatório por todas as empresas. Profissionais informais, como prestadores de serviços ou pessoa jurídica, não foram incluídos no
estudo que serve também como orientação para os que deixam a universidade logo depois de formados ou ainda estudantes de mestrado e doutorado. O período analisado foi entre 2003 e 2012, quando os salários e os cargos ligados à engenharia cresceram, situação diferente ao período utilizado para comparação, entre 1995 e 2002. O estudo mostrou que o salário de entrada dos jovens engenheiros em 2003 era 24% maior do que em 1995, já descontada a inflação do período. “Nos anos 1990, a área de engenharia não compensava financeiramente; ou se atingia o cargo de gerente, diretor, ou era melhor sair da área”, diz o economista Bruno César Araújo, responsável pelo estudo no OIC e
doutorando em Engenharia de Produção na Escola Politécnica da USP, sob a orientação de Mário Sérgio Salerno. Para ele, a engenharia é muito sensível à conjuntura dos investimentos realizados na economia. “Por isso, há dúvidas sobre o que vai acontecer nos próximos anos. Em momentos de crise a tendência é a queda nos atrativos da profissão.” Os profissionais mais bem remunerados no período foram os engenheiros gestores em engenharia, como os gerentes de produção, e os gestores fora da engenharia, como os gerentes de recursos humanos (RH). O salário médio ficou em cerca de R$ 13,5 mil. O estudo divide a categoria em nove tipos. O que lidera, com 2.477 profissionais, é o dos engenheiros PESQUISA FAPESP 231 | 97
típicos, que ocuparam cargos diretamente relacionados com engenharia. Esse tipo, mais o de engenheiros típicos em transição, com 1.799 profissionais, representou 50% do total. Os de transição mudaram ou estão migrando para outras categorias como gestores, mas permanecem na atividade principal. Os engenheiros típicos foram os que, na média, ficaram mais tempo na ocupação, 70 meses. Em seguida, estavam aqueles que ocuparam postos de gestores no próprio setor, com 50 meses. O primeiro emprego foi conquistado nos estados de São Paulo, com 20% do total, Rio de Janeiro, 11%, e Minas Gerais, 8%. Um terço do total começou a trabalhar em empresas com mais de 250 empregados. A formação mais frequente foi na construção civil, com 18,4%, seguida de profissionais eletricistas, 14,8%, e mecânicos, 11,6%. O cenário mostrado no estudo pode sofrer interferências com o desempenho econômico do país, mas esse não é o único fator determinante. “O fato é que o Brasil possui muito poucos engenheiros por habitante, estamos em último lugar nessa relação entre os 35 países da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico]”, diz Carlos Américo Pacheco, diretor do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas (SP), e ex-reitor do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). Para ele, a demanda por esses profissionais está menos ligada à situação econômica momentânea. “O mercado reage rápido, mas a sociedade, como mostra a história recente, vai se adaptando e os engenheiros são muito versáteis, podem ocupar diferentes tarefas, principalmente como gerentes e diretores”, afirma. n Marcos de Oliveira > Outras informações sobre a profissão na página 8 98 | maio DE 2015
arquivo pessoal
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Decisão aplicada Biólogo especializado em genética é assessor científico em empresa e atua em entidades assistenciais “Existe vida de pesquisa fora da academia”, garante Miguel Mitne Neto, assessor científico de Pesquisa e Desenvolvimento do grupo Fleury. “Infelizmente essas alternativas não são numerosas, mas existe muito conhecimento para ser explorado na universidade de forma mais eficiente”, diz. Formado em ciências biológicas na Universidade de São Paulo (USP), Mitne Neto, de 33 anos, está no Fleury desde 2011, onde desenvolve testes moleculares. Ele já participou de oito produtos desde a fase inicial até a entrada no mercado, três deles voltados a leucemias, além de um teste de identificação de mutações no vírus HIV. Contou para a sua contratação no Fleury o conhecimento que ele adquiriu em genética durante o doutorado, que teve financiamento da FAPESP, no Instituto de Biociências (IB) da USP, além da experiência nos doutorados sanduíche na Universidade da Califórnia em San Diego e no Baylor College of Medicine, ambos nos Estados Unidos. A tese de doutorado de Mitne Neto foi orientada pela professora Mayana Zatz, do IB e coordenadora do Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano e Células-Tronco (CPGH-Cel), um dos centros de pesquisa, inovação e difusão (Cepid) da FAPESP.
“O meu caminho natural seria a docência, mas eu me perguntava se conseguiria ser pesquisador fora da academia e decidi tentar essa possibilidade nos últimos seis meses do doutorado”, lembra Mitne Neto. Foi quando apareceu a oportunidade no Fleury, empresa que mantém parceria com CPGH-Cel. “Agora consigo fazer pesquisa básica e aplicada em produtos nos quais eu não conseguiria trabalhar até a última fase, quando se transforma em produto final, o que acontece de forma bem limitada na universidade.” Durante o doutorado e ao longo de seus trabalhos acadêmicos, ele tomou contato com a esclerose lateral amiotrófica (ELA), doença neurodegenerativa que é fatal após três a cinco anos do início da enfermidade. Até 10% dos casos apresentam histórico familiar; os 90% restantes compreendem pacientes esporádicos, em que as causas são desconhecidas. Mitne Neto aprofunda na empresa um método para identificar uma proteína relacionada à ELA no organismo humano. Ele também atua como voluntário na função de coordenador científico da Associação Brasileira de Esclerose Lateral Amiotrófica (Abrela) e do Instituto Paulo Gontijo (IPG), uma entidade sem fins lucrativos que desenvolve ações para o avanço dos estudos científicos e do esclarecimento sobre a doença para profissionais, pacientes e familiares. n M.O.
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