junho de 2015 www.revistapesquisa.fapesp.br
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exemplar de assinante
n.232
infraestrutura País investiu em laboratórios, mas de modo pulverizado
saúde mental Exames de imagem buscam marcadores de transtornos psiquiátricos
entrevista alexander kellner Um paleontólogo dos répteis voadores
avaliação Docentes de química da USP criam método para medir seu desempenho
uso da terra Quilombolas conciliam tradições agrícolas e leis ambientais
memória Livro retrata áreas em SP nas quais havia densidade científica na criação da FAPESP
Para evitar futuras epidemias, estratégia deve se orientar por informação integrada e instrumentos como vacinas, mosquitos transgênicos e novos inseticidas
FAPESP oferece recursos para Pesquisa em
Pequenas Empresas em São Paulo Chamada de Propostas para o Programa FAPESP Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (PIPE)
As solicitações de financiamento devem apresentar projetos de pesquisa, que podem ser desenvolvidos em duas etapas: • Fase 1: pesquisa para demonstrar a viabilidade tecnológica de um produto ou processo, com duração máxima de nove meses e recursos de até R$ 200 mil. • Fase 2: pesquisa para desenvolver o produto ou processo inovador, com duração máxima de 24 meses e recursos de até R$ 1 milhão. Se os proponentes já tiverem realizado atividades tecnológicas que demonstrem a viabilidade do projeto, podem submeter propostas diretamente à Fase 2. Condições para participação • Podem apresentar solicitações de financiamento pesquisadores vinculados a empresas de pequeno porte (com até 250 empregados) com unidade de P&D no Estado de São Paulo; • Empresas ainda não constituídas formalmente podem apresentar propostas na condição de “empresa a constituir”, devendo essa formalização ocorrer após a aprovação da proposta e antes da celebração do Termo de Outorga; • O pesquisador proponente deverá demonstrar conhecimento e competência técnica no tema do projeto, mas não é exigido nenhum título formal (seja de graduação ou pós-graduação); • A empresa deverá comprometer-se a oferecer condições adequadas para o desenvolvimento do projeto de pesquisa durante o período de sua execução e envidar os melhores esforços para a comercialização bem sucedida dos resultados. As normas para submissão de propostas estão disponíveis em www. fapesp.br/pipe. As solicitacões de financiamento serão recebidas exclusivamente por meio eletrônico, no sítio www.fapesp.br/sage. A FAPESP divulgará o resultado enviando a cada proponente os pareceres técnicos dos avaliadores. Em caso de não aprovação, o proponente poderá aperfeiçoar a proposta, corrigindo as falhas apontadas, e submeter nova solicitação em edital subsequente.
• A FAPESP reservou até R$ 15 milhões às propostas consideradas meritórias nesta chamada. • Data limite para apresentação de propostas no SAGe: 3 de agosto de 2015 • Previsão de divulgação do resultado da chamada: 6 de novembro de 2015
TIRE SUAS DÚVIDAS Participe do “Diálogo sobre apoio à pesquisa para inovação na Pequena Empresa”, reunião organizada pela FAPESP, o CIESP e a Anpei para esclarecimentos sobre a Chamada de Propostas.
DIA 1º DE JULHO DE 2015 DAS 9h ÀS 12h NA SEDE DA FAPESP INSCRIÇÕES www.fapesp.br/eventos/pipe3_2015
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo Rua Pio XI, 1500 Alto da Lapa – São Paulo, SP CEP 05468-901 • (11) 3838-4000 www.fapesp.br
fotolab
Purpurina submarina O brilho esverdeado de manchas amarelas em meio a cerca de 600 tipos de bactérias originárias da região antártica chama a atenção. São bactérias do gênero Cellulophaga, encontradas no fundo do oceano em associação com esponjas marinhas e agora cultivadas no laboratório de Valeria de Oliveira, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Segundo as informações disponíveis, a maneira como as bactérias crescem umas por cima das outras produz o reflexo”, explica o biólogo Tiago Rodrigues, que busca moléculas com potencial para uso biotecnológico e analisa a morfologia dos microrganismos do continente gelado.
Se você tiver uma imagem relacionada à sua pesquisa, envie para imagempesquisa@fapesp.br, com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.
Foto enviada por Tiago Rodrigues, doutorando do Centro de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrárias, Unicamp
PESQUISA FAPESP 232 | 3
jun. 232 CAPA 16 Combater a dengue requer
57 ASTRONOMIA
ENTREVISTA 24 Alexander Kellner
60 FÍSICA
MEMÓRIA 90 Livro retrata áreas com
62 OCEANOGRAFIA
a combinação de estratégias estabelecidas e inovadoras
46
Paleontólogo fala dos primeiros répteis voadores e de dificuldades da pesquisa em sua área
densidade científica em São Paulo antes do surgimento da FAPESP
POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA 30 LABORATÓRIOS
Estudo mostra que infraestrutura de pesquisa teve investimento recente, mas pulverizado
35 COLABORAÇÃO
74
seçÕes 3 Fotolab 5 Cartas 6 On-line 7 Carta da editora 8 Dados e projetos 9 Boas práticas 10 Estratégias 12 Tecnociência 86 Arte 95 Resenhas 97 Carreiras 99 Classificados
foto da capa CELSO JUNIOR / ESTADãO CONTEúDO /AE ilustração daniel bueno
4 | junho DE 2015
Equipe internacional identifica na Via Láctea estrelas jovens com composição química de velhas Grupo produz em laboratório transistor de grafeno e fosforeno, materiais com um átomo de espessura Plataformas de gelo do oeste da Antártida perdem volume e uma delas pode desaparecer
64 ZOOLOGIA
Aves abrigam uma grande diversidade de ácaros, a maior parte desconhecida
TECNOLOGIA
68 NANOTECNOLOGIA
Inmetro busca universidades para integrar rede em metrologia
Nanopartículas carregam antibióticos e eliminam bactérias sem prejudicar células sadias
38 BIOENERGIA
70 COMPUTAÇÃO
42 AVALIAÇÃO
72 BIOTECNOLOGIA
CIÊNCIA
HUMANIDADES
46 SAÚDE MENTAL
74 PATRIMÔNIO
54 BIOENGENHARIA DE TECIDOS
82 ARQUITETURA
Artigo indica que o Brasil tem posição discreta em redes de pesquisa do etanol de celulose Docentes de Química da USP criam método para medir seu desempenho
Imagens começam a revelar os padrões de desenvolvimento das redes cerebrais
Células-tronco ajudam a produzir traqueias e vasos para transplante com menor risco de rejeição
Sistema transforma imagens em sons para simplificar o cotidiano de deficientes visuais Glóbulos vermelhos são fonte de proteínas para a produção de cápsulas e novos medicamentos
Pesquisadores acompanham as lutas de quilombolas do Vale do Ribeira por territórios e tradições Centenário de Vilanova Artigas expõe suas facetas de educador, militante e pensador
cartas
CONTATOS Site da revista No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra. No site também estão disponíveis reportagens traduzidas e as edições internacionais da revista em inglês, francês e espanhol.
cartas@fapesp.br
Revista
Quero dizer que a revista Pesquisa FAPESP e as novidades on-line constituem certamente uma das melhores comunicações de divulgação científica do Brasil e talvez da América Latina. Conteúdo, apresentação, tudo merece nota 10.
E meteu os pés na nádega e não nas vértebras L3 e L4 . Se estivéssemos na vida real e fosse confirmado o diagnóstico da DAP, o tratamento teria de ser cirúrgico. O discípulo de Hipócrates tem que ser procurado sim! A cirurgia é positiva em 90% dos casos.
Alberto Santoro
Flavio Prada
UERJ-CMS-LHC-CERN
São Paulo, SP
Rio de Janeiro, RJ
Gênero e ciência
Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação pelo e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727 – 10º andar CEP 05415-012 São Paulo, SP Assinaturas, renovação e mudança de endereço Envie um e-mail: assinaturaspesquisa@fapesp.br Ou ligue: (11) 3087-4237 De segunda a sexta das 9h às 19h Para anunciar Midia Office – Júlio César Ferreira (11) 99222-4497 julinho@midiaoffice.com.br Classificados: (11) 3087-4212 publicidade@fapesp.br Edições anteriores Preço atual de capa da revista acrescido do valor de postagem. Envie e-mail para clair@fapesp.br Licenciamento de conteúdo Para adquirir os direitos de reprodução de textos e imagens de Pesquisa FAPESP ligue: (11) 3087-4212 ou mpiliadis@fapesp.br
Nanuza de Menezes
Adorei a entrevista com Nanuza de Menezes (edição 231). O texto de abertura de Maria Guimarães é o que todos nós, ex-alunos, gostaríamos de escrever. Antonio C. Marques Centro de Biologia Marinha (CEBIMar)/USP São Paulo, SP
Ficção
Gosto dos artigos sempre atuais e de escrita rápida, objetiva, conclusiva e muito atualizada da revista Pesquisa FAPESP. Utilizo os trabalhos para minhas consultas e escritas. Gosto, ainda, da publicação de uma espécie de “relaxamento científico”: a seção Ficção. Na edição 231, ao ler o conto “Via-crúcis e os mistérios dolorosos”, de Tiago Novaes, acredito que, pela nossa ótica, o assunto esteja mais para vida real do que para ficção. Com o aumento da média de vida no Brasil (72 anos), muitas patologias e sintomas antes desconhecidos começaram a aparecer. Um desses problemas é a chamada disfunção do assoalho pélvico (DAP). Além do exame clínico, uma ressonância da pelve poderia confirmar o diagnóstico. No texto, o autor do conto cita o chinês, que falou: “Hérnia não! Dor: outra coisa”.
Li a reportagem de Bruno de Pierro “A força dos estereótipos” (edição 230) sobre gênero e ciência, na qual é citado o trabalho da professora norte-americana Sarah-Jane Leslie, da Universidade de Princeton, publicado na revista Science. Há um ano redigi um artigo intitulado “A astronomia brasileira no feminino” para o livro História da astronomia no Brasil, organizado pelo professor Oscar Matsuura e recentemente publicado pela Companhia Editora de Pernambuco. Dados comparativos entre países-membros da União Astronômica Internacional mostram que o país com a maior porcentagem de mulheres na astronomia é a Argentina (37%). O Brasil tem 23% e está entre os cinco países com porcentagem maior ou igual a 20%, num total de 21 países. O mais notável é que, nesses cinco, há ainda França e Itália, que também são “latinos”, e a Ucrânia (eslavo). Os Estados Unidos não mandaram dados e os demais países da Europa Ocidental estão abaixo dos 20%. Finalmente, minha conclusão no artigo é a mesma da reportagem, ou seja, o estereótipo, em parte devido à própria família, tem um peso significativo nessa questão de gênero e ciência. Apesar da porcentagem relativamente alta em comparação com outros países, o Brasil ainda está longe da porcentagem ideal de 50%. Sueli Viegas Professora aposentada do IAG-USP São Paulo, SP
Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar - CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.
PESQUISA FAPESP 232 | 5
Galeria de imagens
w w w . r e v i s ta p e s q u i s a . f a p e s p. b r
1
2
A mais vista do mês no Facebook Ciência
Uma conexão entre o sono e a fome
47.984 visualizações 441 curtidas 305 compartilhamentos entre 13 e 18 de maio no perfil de Pesquisa FAPESP
Exclusivo no site x A comparação do genoma de 10 espécies de abelhas acrescentou mais uma peça à compreensão de como se formam sociedades complexas em que apenas a rainha se reproduz e as operárias, que cuidam da prole, mudam de função conforme a idade. Um artigo publicado na Science por um grupo internacional mostra que uma maior quantidade de sítios de ligação nas regiões que regulam a atividade dos genes gera redes mais complexas, em que cada gene está potencialmente conectado a um maior número de outros trechos do genoma. x Quase um ano após a confirmação dos primeiros casos de febre chikungunya, pesquisadores do Instituto Evandro Chagas, de Belém, ligado ao Ministério da Saúde, e da Universidade de Oxford, na Inglaterra, identificaram a origem de duas variedades do vírus responsável pela doença que circulam no país e também as regiões pelas quais elas entraram em território nacional. Em artigo publicado na revista BMC Medicine, eles sugerem que as cepas do vírus descendem de uma linhagem da Ásia e outra da África, Oriental e do Sul, e que elas teriam entrado no Brasil pelo Oiapoque, no Amapá, e por Feira de Santana, na Bahia. 6 | junho DE 2015
Rádio Diretor do IAG fala sobre parcerias que impulsionam a astrofísica em São Paulo
Vídeos do mês
Confira como equipes estão driblando as dificuldades em iniciativas de restauração de objetos científicos antigos
youtube.com/user/PesquisaFAPESP
Assista ao vídeo:
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Especializações nas raízes permitem que plantas vivam no ambiente pouco fértil dos campos rupestres Análises ajudam a explicar fenômeno envolvendo aglomerado de galáxias
fotos 1 léo ramos 2 eduardo cesar
on-line
carta da editora fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo Celso Lafer Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior Celso Lafer, Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, Horácio Lafer Piva, joão grandino rodas, José Goldemberg, Maria José Soares Mendes Giannini, Marilza Vieira Cunha Rudge, José de Souza Martins, Pedro Luiz Barreiros Passos, Suely Vilela Sampaio, Yoshiaki Nakano Conselho Técnico-Administrativo
Ações integradas Alexandra Ozorio de Almeida |
diretora de redação
Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico Joaquim J. de Camargo Engler Diretor Administrativo
issn 1519-8774
Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Anamaria Aranha Camargo, Carlos Eduardo Negrão, Celso Lafer, Fabio Kon, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Joaquim J. de Camargo Engler, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Lucio Angnes, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner Caradori do Amaral, Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos diretora de redação Alexandra Ozorio de Almeida editor-chefe Neldson Marcolin Editores Fabrício Marques (Política), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência); Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores especiais); Bruno de Pierro e Dinorah Ereno (Editores-assistentes) revisão Daniel Bonomo, Margô Negro arte Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos (Editora de infografia), Maria Cecilia Felli e Alvaro Felippe Jr. (Assistente) fotógrafos Eduardo Cesar, Léo Ramos Mídias eletrônicas Fabrício Marques (Coordenador) Internet Pesquisa FAPESP online Maria Guimarães (Editora) Rodrigo de Oliveira Andrade (Repórter) Rádio Pesquisa Brasil Biancamaria Binazzi (Produtora) Colaboradores Alexandre Affonso, André Julião, André Mota, Daniel Bueno, Evanildo da Silveira, Fabio Otubo, Igor Zolnerkevic, Janina Onuki, Márcio Ferrari, Mauro de Barros, Pablo Nogueira, Raul Aguiar, Valter Rodrigues, Yuri Vasconcelos, Zé Vicente É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização Para falar com a redação (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br Para anunciar Midia Office - Júlio César Ferreira (11) 99222-4497 julinho@midiaoffice.com.br Classificados: (11) 3087-4212 publicidade@fapesp.br Para assinar (11) 3087-4237 assinaturaspesquisa@fapesp.br Tiragem 42.400 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo
N
os últimos cinco anos (20102014), o Brasil registrou uma média anual de 881 mil casos de dengue, um aumento de 126% em relação à média anual do quinquênio anterior (338 mil casos). Só nos quatro primeiros meses de 2015, foram quase 750 mil casos no país, 66% na região Sudeste. A reportagem de capa desta edição (página 16) mostra que não há solução única para evitar novas epidemias. Uma política pública eficaz na erradicação da doença terá que se basear em uma ação coordenada, combinando instrumentos existentes e resultados de pesquisas científicas e tecnológicas. Novas abordagens, como vacinas preventivas e o uso de novos inseticidas e mosquitos transgênicos para redução da população de insetos transmissores da doença, podem ser eficazes, especialmente se subsidiadas pela ampla coleta de informações por agentes públicos e privados. A identificação das alterações na estrutura e no funcionamento do cérebro que caracterizam o seu amadurecimento saudável é um objetivo preliminar de amplo estudo multidisciplinar e multicêntrico (página 46). Uma das hipóteses é que, na transição da infância para a adolescência, as transformações pelas quais passa o cérebro de um jovem saudável são diferentes daquelas que ocorrem em pessoas mais propensas a apresentar problemas psiquiátricos. Um dos objetivos de longo prazo é reunir um conjunto de alterações que sejam indicadoras de um desenvolvimento cerebral atípico, levando ao estabelecimento de marcadores de risco de transtornos mentais. Ao identificar os sinais antes que a doença se instale, espera-se desenvolver, no futuro, meios para recolocar o cérebro na sua trajetória normal de desenvolvimento.
Uma viagem ao Vale do Ribeira, no sul do estado de São Paulo, mostra como descendentes de quilombolas se organizam para garantir a ocupação produtiva das terras reconhecidas após 1997 (página 74). De propriedade das associações locais, as terras ocupadas por esses agricultores dividem-se entre o cultivo de subsistência e o plantio de culturas de maior apelo comercial como a banana e a pupunha. A população local procura o equilíbrio entre suas tradições de uso da terra e as restrições impostas pela legislação, como o uso das queimadas e a caça. Acompanhamos pesquisadores atuantes na região, que estudam as formas de uso do território, passando por ações de coleta e preservação de tipos de semente, além do inventário cultural dos quilombos, e presenciando um mutirão de colheita com direito a baile ao fim. Uma galeria de fotos está disponível em revistapesquisa.fapesp.br. Mapeamento recente sobre a infraestrutura de pesquisa no Brasil mostra que os investimentos têm resultado em laboratórios pequenos e com equipamentos modestos (página 30). O foco não tem sido nas grandes estruturas de pesquisa ou nas facilities, os laboratórios multiusuários com equipamentos sofisticados que atendem a demandas amplas. Por último, uma boa demonstração de pesquisa que avança o conhecimento e tem aplicação econômica, além de despertar o interesse e a curiosidade, está na reportagem de ácaros de aves (página 64). A identificação dos aracnídeos microscópicos que afetaram a produção de frango no interior paulista resolveu um problema prático e produziu um avanço em área pouco explorada da zoologia. É uma alegria compartilhar com os leitores esta (minha primeira) edição. PESQUISA FAPESP 232 | 7
Dados e projetos Temáticos e Jovem Pesquisador recentes Projetos contratados em abril e maio de 2015 temáticos Recalcitrância da biomassa de cana-de-açúcar: fundamentos relacionados à formação da parede celular, ao pré-tratamento e à digestão enzimática, aplicados no desenvolvimento de novos modelos de biorrefinarias Pesquisador responsável: Andre Luis Ferraz Instituição: EE de Lorena/USP Processo: 2014/06923-6 Vigência: 01/04/2015 a 31/03/2019
Epidemiologia molecular de bactérias gram-negativas e genética da resistência a antibióticos Pesquisadora responsável: Ana Lucia da Costa Darini Instituição: FCF de Ribeirão Preto/USP Processo: 2014/14494-8 Vigência: 01/05/2015 a 30/04/2019
Abordagem multi e interdisciplinar para compreender padrões espaço-temporais de insetos-praga e delinear paisagens para manejo sustentável de pragas em sistemas agrícolas tropicais Pesquisador responsável: Wesley Augusto Conde Godoy Instituição: Esalq/USP Processo: 2014/16609-7 Vigência: 01/04/2015 a 31/03/2019
Seleção de matrizes de macaúba para formação de jardim de sementes e produção de mudas comerciais visando ao biodiesel com preservação de variabilidade genética Pesquisador responsável: Carlos Augusto Colombo Instituição: IAC/SAASP Processo: 2014/23591-7 Vigência: 01/04/2015 a 31/03/2020
Mecanismos e consequências do travamento do tráfego intracelular por 8- e 14-dehidroesteróis em modelos de parasitos fúngicos Pesquisador responsável: Agustin Hernandez Lopez Instituição: ICB/USP Processo: 2014/10443-0 Vigência: 01/08/2015 a 31/07/2019
Geotecnologias no mapeamento digital pedológico detalhado e biblioteca espectral de solos do Brasil: desenvolvimento e aplicações Pesquisador responsável: José Alexandre Melo Dematte Instituição: Esalq/USP Processo: 2014/22262-0 Vigência: 01/05/2015 a 30/04/2020
JOVENS PESQUISADORES Dinâmica de transmissão de malária em diferentes limiares de fragmentação da paisagem Pesquisador responsável: Gabriel Zorello Laporta Instituição: FM/USP Processo: 2014/09774-1 Vigência: 01/02/2015 a 31/01/2019
Espectroscopia quiróptica vibracional na caracterização estereoquímica de pequenas moléculas e macromoléculas Pesquisador responsável: João Marcos Batista Junior Instituição: CCET/UFSCar Processo: 2014/25222-9 Vigência: 01/05/2015 a 30/04/2019
Publicações científicas e impacto relativo* Brasil e São Paulo avançam pelo número de publicações, mas perdem posições no número relativo de citações
1.298.727
271.068
363.278
1
China
31.425
160.909
2 (8)
Reino Unido
73.236
101.075
3 (3)
Alemanha
69.766
95.721
4 (4)
Estados Unidos
(1)
¶ ¶ ¶
1999-2003
2009-2013
Posição**
Impacto relativo*
2009-2013 (1999-2003)
130
186
952
1.166
19 (15)
25
120
50 (50)
1.238
1.599
847
1.177
18 (17)
14
(7)
¶
1999-2003
2009-2013
1,00
1,00
Posição** 2009-2013 (1999-2003)
1,42
1,45
7 (2)
0,57
0,84
38 (47)
1,25
1,45
6 (6)
1,10
1,40
10 (14)
¶¶¶¶ ¶¶¶¶ ¶ ¶¶
805.995
MUNDO
Publ./1 milhão de habitantes
2009-2013 (1999-2003)
¶ ¶ ¶¶ ¶¶ ¶ ¶ ¶¶¶¶ ¶ ¶ ¶¶ ¶ ¶
Posição**
2009-2013
¶
Publicações (média anual) 1999-2003
¶¶ ¶¶ ¶ ¶¶¶ ¶ ¶ ¶¶ ¶¶¶ ¶¶ ¶
País/Região
Japão
74.387
77.341
5 (2)
585
606
32 (23)
0,85
1,03
27 (24)
França
50.383
67.625
6 (5)
821
1.035
23 (18)
1,04
1,32
14 (16)
Canadá
35.774
59.312
7 (6)
1.151
1.725
11 (11)
1,22
1,34
13 (8)
Itália
33.949
56.249
8
595
947
26 (22)
1,04
1,28
15 (17)
Espanha
24.404
50.178
9 (10)
596
1.076
22 (21)
0,94
1,17
21 (21)
Índia
18.609
46.152
10 (13)
18
38
60 (58)
0,54
0,71
46 (49)
(7)
¶
Coreia do Sul
16 .152
45.192
12 (14)
342
909
28 (31)
0,7 1
0,86
37 (34)
BRASIL
11 . 976
35.663
13 (17)
68
181
46 (47)
0,68
0,65
52 (37)
Holanda
20.068
34.087
14 (12)
1.252
2.044
5 (6)
1,40
1,64
Rússia
26.561
28.601
15 (9)
182
200
44 (35)
0,38
0,54
14.558
24.653
17 (16)
2.012
3.116
1,49
1,78
Suíça
1
( 1)
¶
2
(3)
63 (63) 1
( 1)
7.392
24.154
18 (25)
115
331
38 (39)
0,57
0,57
60 (48)
São Paulo***
6.012
16. 204
[23 (26)]
161
390
[36 (37)]
0,72
0,75
[44 (33)]
Portugal
3.713
10.886
26 (37)
359
1.033
24 (30)
0,88
1,08
26 (23)
México
5.382
10.543
3 1 (28)
51
88
53 (49)
0,67
0,79
42 (38)
África do Sul
4.001
9.210
34 (36)
89
179
48 (44)
0,75
0,93
29 (30)
Argentina
4.580
7.998
36 (32)
123
196
45 (38)
0,70
0,93
30 (36)
Chile
2.190
5.726
44 (40)
140
331
37 (37)
0,88
0,92
31 (22)
¶
¶ ¶ ¶
¶¶ ¶¶¶¶ ¶
Turquia
¶
* Impacto relativo é a razão entre o número de citações por artigo para país ou região e o número de citações por artigo para todos os artigos publicados no mundo, na base considerada ** As posições são calculadas para o conjunto de 66 países que tiveram pelo menos mil publicações em média anual no período 2009-2013 *** As posições para São Paulo não foram consideradas para classificar os países Fontes: Incites/Fapesp, ThomsonReuters (publicações/citações, atualização outubro/2014), Banco Mundial (população)
8 | junho DE 2015
Boas práticas O físico norte-americano Paul Ginsparg imaginava haver casos de plágio no arXiv, repositório criado por ele em 1991 no qual físicos, matemáticos e biólogos divulgam dados de suas pesquisas, submetendo-os à análise de colegas antes que sejam publicados. Para verificar a extensão do problema, ele e o pesquisador Daniel Citron, ambos da Universidade Cornell, Estados Unidos, analisaram 757 mil manuscritos indexados ao portal entre 1991 e 2012 por meio de um software que identifica a repetição de trechos em mais de um texto sem dar o devido crédito ao autor original. As conclusões do trabalho, publicadas em dezembro na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, mostram que a reutilização de textos é mais comum do que Ginsparg considerava. Segundo o levantamento, um em cada 16 autores do arXiv já praticou o autoplágio, que é a repetição de trechos presentes em manuscritos antigos de um pesquisador em novos trabalhos de sua autoria. O levantamento ainda mostra que um entre cada mil autores já copiou o equivalente a pelo menos um parágrafo de texto assinado por outras pessoas, sem citá-las. Também foi possível verificar que a incidência de casos de plágio varia geograficamente. Em parceria com a revista Science, Ginsparg e Citron mapearam 57 países cujos pesquisadores têm contribuição destacada para o arXiv. Japão, Estados Unidos e Alemanha, que figuram entre os que mais compartilham trabalhos no repositório, tendem a plagiar com relativamente pouca frequência. O índice de autores com alta probabilidade de terem plagiado
foi de 5,6%, 4,7% e 3,2%, respectivamente. Os índices mais altos foram observados em nações como Índia (25,2%), Irã (15,5%) e China (10,7%), que estão bem acima da média global, que é de 3,2%. No Brasil, 8% dos autores que submeteram manuscritos ao arXiv no período analisado enfrentam forte suspeita de terem cometido plágio. No artigo, os autores da pesquisa atribuem tais práticas a “diferenças em infraestrutura e orientação ou incentivos que enfatizam a quantidade de publicações em vez da qualidade”. Os resultados do estudo indicam, ainda, que autores que copiam textos alheios costumam ser pouco citados. Para Rogério Meneghini, coordenador científico da biblioteca virtual SciELO Brasil, a pressão sobre os pesquisadores para publicar
daniel bueno
Mapeamento do plágio
cada vez mais pode criar condições que favoreçam casos de má conduta. “Essa pressão é forte em países como China e Irã, cujos pesquisadores procuram revistas de outros lugares, inclusive o Brasil, para escoarem essa produção crescente”, diz Meneghini.
Pouca transparência Um estudo conduzido pelo Escritório de Integridade Científica britânico (Ukrio, na sigla em inglês) mostrou que poucas universidades no Reino Unido publicam relatórios das investigações que realizam sobre casos de má conduta científica, embora devessem divulgar tais informações anualmente. Desde 2013, a Universities UK, órgão que reúne instituições de ensino superior e pesquisa britânicas, determina que as universidades sigam um guia de boas práticas científicas que estabelece transparência nas investigações, com a divulgação pública de seus resultados. Mas não é o que acontece. Das 27 universidades ligadas ao escritório que participaram da pesquisa, apenas um terço divulgou relatórios nos
quais expõem conclusões e medidas tomadas em relação a infrações cometidas por pesquisadores entre 2013 e 2014. O estudo escolheu aleatoriamente outras 44 instituições não vinculadas ao Ukrio. Observou que somente três (7%) publicaram documentos desse tipo. No total, foram contabilizados apenas 12 relatórios gerados a partir de 21 inquéritos, dos quais em 4 se confirmaram as alegações de má conduta. Para a autora da pesquisa, Elizabeth Wager, as universidades temem que a exposição de casos ao público prejudique a sua reputação. “Investigações conduzidas corretamente devem ser vistas como motivo de orgulho, não como algo que possa envergonhar a universidade”, disse ela à revista Nature. PESQUISA FAPESP 232 | 9
Estratégias Reconhecimento britânico
Conselheiro Goldemberg
O diretor científico da
O físico José Goldemberg
interino de Meio
FAPESP, Carlos Henrique
foi nomeado pelo
Ambiente na época da
de Brito Cruz, recebeu
governador de São
Conferência das Nações
no dia 20 de maio a
Paulo, Geraldo Alckmin,
Unidas sobre o Meio
condecoração de
para integrar o Conselho
Ambiente (Rio-92) e
Oficial da Ordem do
Superior da FAPESP,
ministro da Educação.
Império Britânico, em
em complementação
Entre os anos de 2002
reconhecimento a seu
ao mandato do professor
e 2006, assumiu a
trabalho na Fundação
titular do Instituto de
Secretaria do Meio
pela ampliação e
Física da Universidade
Ambiente do governo
fortalecimento de
de São Paulo (USP)
paulista. Especialista
parcerias para
Alejandro Szanto de
em física nuclear e em
cooperação científica
Toledo, que morreu
energia renovável,
entre Brasil e Reino
em fevereiro. Professor
José Goldemberg é um
Unido. Ele é o primeiro
do Instituto de Energia
dos mais premiados
brasileiro nos últimos
e Ambiente da USP,
pesquisadores do país.
10 anos a receber o
Goldemberg foi
Em junho de 2008,
título, que reconhece
indicado ao cargo pela
recebeu o prêmio
o valor do trabalho de
universidade, da qual
Planeta Azul, da Asahi
pessoas nos campos
foi reitor entre 1986 e
Glass Foundation,
das artes, ciência e
1990. Nascido na cidade
do Japão, por contribuir
serviços públicos.
gaúcha de Santo Ângelo
na formulação e
A solenidade aconteceu
em 1928, Goldemberg
implementação de
na residência da
fez o bacharelado
políticas para melhorar
em Ciências (1950),
o uso e a conservação
doutorado (1954) e
de energia, com
livre-docência (1957)
destaque para um
na USP. Também
conceito formulado por
passou períodos nas
ele segundo o qual, para
universidades de Paris,
se desenvolver, os países
Toronto, Princeton
pobres não precisam
1
consulesa-geral
Científica para o
britânica, Joanna Crellin,
estabelecimento de
em São Paulo. “Tanto do
acordos de cooperação
ponto de vista pessoal
em pesquisa. Hoje, a
como institucional, este
Fundação mantém
reconhecimento vem de
35 acordos com
realizações da FAPESP
instituições de fomento,
ao longo de sua história
ensino e pesquisa e com
e Stanford. No governo
repetir paradigmas
e especialmente, em
empresas britânicas.
federal, foi secretário
tecnológicos trilhados
tempos mais recentes,
Ao entregar a insígnia,
de Ciência e Tecnologia
no passado pelos ricos.
do desenvolvimento da
criada em 1917 pelo rei
da Presidência da
No ano passado, recebeu
atividade de colaboração
George V, o embaixador
República, secretário
em Abu Dhabi o Zayed
internacional em
britânico no Brasil,
pesquisa”, disse Brito
Alex Ellis, afirmou que a
Cruz. Ele também citou
FAPESP contribuiu para
de destaque na área de
o atual estágio “mais
uma mudança na relação
energia renovável por
complexo e completo”
científica entre os dois
uma fundação criada
da cooperação FAPESP-
países. “A concretização
pelo filho do xeique
Reino Unido. Na
de um acordo com os
Zayed bin Sultan
cerimônia, foi destacada
Conselhos de Pesquisa
Al Nahyan, um dos
a sua participação no
do Reino Unido, em
fundadores dos
estímulo ao intercâmbio
2009, foi um fato
científico entre
transformador, em
pesquisadores do Reino
termos de fluxo de
Unido e de São Paulo e
conhecimento entre
nos esforços feitos em
as instituições dos dois
sua gestão na Diretoria
países”, disse.
10 | junho DE 2015
Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, recebe condecoração de Oficial da Ordem do Império Britânico
Future Energy Prize, 2
concedido a profissionais
Emirados Árabes Unidos. José Goldemberg: nomeado para o Conselho Superior da FAPESP
Em 2014, ganhou o prêmio da Fundação Conrado Wessel na categoria Ciência, que será entregue este mês.
3
Inovação ibero-americana
fotos 1 Márcio Bruno 2 léo ramos 3 European Union 2014 – European Parliament 4 eduardo cesar ilustração daniel bueno
Em 2012, o Brasil contabilizou mais de US$ 146 milhões gerados a partir da transferência de conhecimento e tecnologia de universidades a empresas, por meio de licenciamento de patentes, criação de spin-offs e outras modalidades. O valor é
Novo modelo de aconselhamento
superior ao de 2009, quando O português Carlos Moedas: mudanças no aconselhamento científico na Comissão Europeia
foram registrados pouco mais de US$ 33 milhões.
Parece ter chegado ao
Europeia para
Reino Unido, em que
fim o mal-estar gerado
assuntos científicos
o conselheiro científico,
entre a Comissão
e de inovação, para
centrado na figura
Europeia e a comunidade
coordenar a implantação
de uma única pessoa,
científica do continente,
de um novo modelo
trabalha integrado ao
21 países ibero-americanos
após seis meses de
de aconselhamento
comando da instituição
organizada no livro
incertezas sobre quem
científico para a Comissão
ou do governo. Países
La transferencia de I+D –
substituiria a bióloga
Europeia, baseado na
europeus, no entanto,
La innovación y el
escocesa Anne Glover
formação de um comitê
preferem a formação
emprendimiento en las
no cargo de conselheiro
independente composto
de conselhos consultivos.
universidades, lançado na
científico-chefe da
por sete cientistas de alto
Segundo reportagem
FAPESP. “O objetivo foi
instituição. O presidente
nível acadêmico. O padrão
publicada pelo jornal
medir o impacto da
da comissão, Jean-Claude
até então adotado era
Financial Times, Moedas
atividade de pesquisa na
Juncker, escalou o
muito parecido com o dos
espera que o novo
relação entre universidades
português Carlos Moedas,
países de língua inglesa,
sistema entre em vigor
e empresas”, disse Senén
comissário da União
como Estados Unidos e
até o segundo semestre.
Barro, organizador da
A avaliação faz parte de uma radiografia dos sistemas de ciência, tecnologia e inovação de
obra e presidente da RedEmprendia, que agrega 24 universidades com atuação em inovação.
Guia de museus da América Latina
O desempenho brasileiro é atribuído à consolidação dos Núcleos de Inovação Tecnológica (NITs)
Dos 468 centros e museus de ciência
vinculados a universidades
existentes na América Latina e Caribe,
e institutos de pesquisa,
mais da metade (272) está localizada
responsáveis pela
no Brasil. O levantamento está presen-
avaliação dos requisitos
te no Guia de centros e museus de ciência
para patentear tecnologias.
da América Latina e Caribe, lançado em maio durante o 14º Congresso da Rede
“A quantidade de centros e museus é
de Popularização da Ciência e da Tec-
maior do que esperávamos, mas ainda
nologia da América Latina e Caribe
insuficiente”, diz Luisa Massarani, direto-
(RedPop), em Medellín, na Colômbia. O
ra da RedPop, pesquisadora do Museu da
guia traz informações sobre a história
Vida da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)
e a localização de centros e museus dos
e coordenadora do guia. A expectativa,
países da região, incluindo jardins bo-
diz ela, é que o guia dê mais visibilidade
tânicos, aquários, planetários e zooló-
aos museus e sirva de referência para
gicos. Há também fatos curiosos sobre
pesquisadores. As versões em português
alguns deles, como o Museo Chiapas, no
e espanhol do guia estão disponíveis no
México, construído numa antiga prisão.
site da RedPop (www.redpop.org).
4
PESQUISA FAPESP 232 | 11
Tecnociência Braço fraco, coração frágil
1
Semeadores de nuvens
Grãos de pólen podem contribuir para a formação de nuvens, aumentando a incidência de chuvas
A reduzida força
No mais recente
de preensão – a
levantamento, no
capacidade de prender
entanto, participaram
algo com firmeza com
também pessoas da
as mãos, por exemplo
Índia, Zimbábue e
– está ligada a uma
Bangladesh, ao lado de
menor sobrevida e a
outras do Canadá e da
um risco maior de
Suécia. Os resultados
infarto, de acordo com
associaram uma
um estudo com 140 mil
elevação de 16% no
adultos com idade
risco de morte por
entre 35 e 70 anos em
qualquer causa e de
17 países, incluindo o
17% no risco de morte
Brasil (Lancet, 13 de
por infarto a cada
maio). A reduzida força
5 quilogramas de
muscular, nesse caso
declínio na força de
avaliada por meio de
preensão. Os autores
um dinamômetro
do estudo, liderado
de pressão manual,
por pesquisadores da
tem sido associada
Universidade McMaster,
à morte prematura
Canadá, sugerem
O pólen, aquelas
seria responsável por
minúsculas cápsulas
fazê-los se quebrar.
carregadas pelo vento
Para isso, usaram pólen
e responsáveis por
das árvores que mais
e deficiências físicas.
que a baixa preensão,
dispersar o material
liberam essas partículas
Até agora os
por ter se mostrado
genético das plantas,
nos Estados Unidos:
dados se limitavam
um forte indicador de
além de causar reações
carvalho, noz,
a países ricos.
risco de morte por
alérgicas em milhares
vidoeiro, cedro,
problemas cardíacos,
de pessoas por todo o
pinheiro e ambrósia.
poderia ser usada
mundo, pode contribuir
Aparentemente,
como um teste rápido
para a formação de
os grãos de pólen
e de baixo custo
nuvens e sua dispersão
dessas plantas
para identificar
pela atmosfera,
rapidamente se rompem
as pessoas mais
aumentando a incidência
em pequenas partículas
suscetíveis a infarto.
de chuvas e influenciando
quando entram em
o clima do planeta.
contato com a água
A conclusão é de um
(Geophysical Research
grupo de pesquisadores
Letters, 11 de maio).
da Universidade de
Em seguida, para
Michigan, nos Estados
verificar se eles
Unidos. Há muito se sabe
poderiam contribuir
que, soltos no ar, esses
para a formação de
pequenos grãos muitas
nuvens, os pesquisadores
vezes se quebram em
pulverizaram esses
pedaços ainda menores,
fragmentos úmidos
provocando respostas
em uma câmara que
alérgicas, como a rinite,
simula as condições
quando entram em
atmosféricas da Terra.
contato com nosso
Observaram que eles
organismo. Em laboratório,
agiam como núcleo de
os pesquisadores
condensação, ou
investigaram se a
coletores de água,
umidade atmosférica
formando nuvens.
12 | junho DE 2015
Invasores bem integrados Espécies invasoras
fotos 1 Joseph Xu, Michigan Engineering Communications & Marketing 2 Daimler 3 Antônio Scarpinetti / Ascom / Unicamp ilustraçãO daniel bueno
são vilãs aos olhos dos biólogos. Como regra geral, a descaracterização de hábitats nativos reduz a diversidade biológica. Animais e plantas que vêm de fora são mais generalistas, por isso sobrepujam os locais e geram comunidades mais homogêneas em termos 2
Caminhão dirigido por piloto automático
Highway Pilot ajuda motoristas a regular velocidade, acionar freios e prevenir colisões em estradas
de papéis ecológicos. Mas nem sempre, conforme estudo feito nos Açores por um grupo internacional com o
Em maio, o Freightliner
é um profissional que
cumpre os limites de
Inspiration Truck
aciona ou desliga
velocidade informados,
tornou-se o primeiro
o piloto automático
ajusta a distância a
Federal de Goiás (PLoS
caminhão pesado
rodoviário chamado
ser mantida em relação
One, 29 de maio). Ao
autônomo – operado
Highway Pilot e realiza
ao carro que vai à frente
analisar invertebrados de
por piloto automático –
algumas manobras, como
e usa a função de
quatro ilhas (Flores, Faial,
do mundo a receber
dar a partida, estacionar
parada/partida durante
Terceira e Santa Maria)
licença para trafegar em
ou trocar de pista, por
a hora do rush.
desse arquipélago
estradas. Produzido pela
exemplo. O sistema
O sistema Highway
atlântico, em ambientes
empresa alemã Daimler
autônomo é dotado de
Pilot não dá início
com diferentes graus de
Trucks, o veículo recebeu
uma câmera estéreo
às manobras de
perturbação humana, os
a autorização do estado
complexa e sistemas
ultrapassagem de forma
pesquisadores verificaram
de Nevada, nos Estados
de radar com as funções
autônoma, entretanto.
que a fauna exótica forma
Unidos. O fato de ser
manutenção na faixa
Elas precisam ser
autônomo não quer dizer,
de rolagem e prevenção
executadas pelo
no entanto, que o
de colisões. Ele regula
motorista. O mesmo
caminhão não precise de
a velocidade, usa os
se aplica para sair da
motorista. Na verdade,
freios e dirige. O veículo
rodovia ou mudar de faixa.
ecólogo Mário Almeida-Neto, da Universidade
conjuntos heterogêneos Dispositivo desenvolvido na Unicamp tem alcance de leitura acima de 8 metros
de espécies, que mantêm a complexidade ecológica. A regra parece não ser tão geral assim. 3
Etiqueta inteligente para metais Uma etiqueta para identificação por ra-
utilizadas em aplicações industriais e
diofrequência (RFID), que opera na faixa
logísticas, as etiquetas inteligentes con-
UHF (ultra high frequency) e pode ser em-
vencionais – compostas por um circuito
pregada em objetos metálicos como pla-
eletrônico que armazena informações e
cas, tubos e contêineres, foi desenvolvida
uma antena – enfrentam problemas na
na Faculdade de Engenharia Elétrica e
leitura de objetos metálicos na faixa UHF,
Computação da Universidade Estadual de
porque o metal interfere nesse tipo de
Campinas (Unicamp) durante a pesquisa
onda. A etiqueta desenvolvida na Unicamp
de mestrado do engenheiro Manoel Barbin,
foi construída com um novo método de
orientada por Michel Daoud Yacoub. O
alimentação do sinal de radiofrequência
vés de uma fenda no elemento irradiante
seu alcance de leitura ultrapassa os 8
que faz a conexão entre o circuito inte-
da antena”, diz Barbin. Para ele, o novo
metros, parâmetro nem sempre alcança-
grado e a antena de transmissão e recep-
método facilita a montagem da etiqueta
do pelas etiquetas comerciais. Bastante
ção de dados. “A alimentação se dá atra-
no processo de fabricação.
PESQUISA FAPESP 232 | 13
Combustível dos fungos
O clima nos exoplanetas
A partir do conhecimento de que alguns fungos
O clima em seis planetas extrassolares
produzem compostos
gigantes, de tamanho semelhante a Jú-
chamados de
piter, descobertos pelo telescópio espa-
hidrocarbonetos para se
cial Kepler, da Nasa, pode apresentar
protegerem de bactérias,
variações significativas ao longo do dia.
pesquisadores das
Estudo publicado por astrofísicos das
universidades Estadual
universidades de York e de Toronto, no
de Washington, nos
Canadá, traz evidências de que as manhãs
Estados Unidos, e Aalborg,
em quatro exoplanetas (Kepler-7b, Kepler-
em Copenhagen, na
-8b, Kepler-12b e Kepler-41b) tendem a
Dinamarca, desenvolveram
ser nubladas e escuras (Astrophysical
um método para que uma
Journal, 12 de maio). Em outros dois mun-
linhagem do fungo
dos extrassolares (Kepler-76b e HAT-P-
Aspergillus carbonarius
-7b), as tardes eram extremamente quentes, com céu aberto. Para obter dados sobre as características da atmosfera dos planetas, os cientistas mediram as mu-
1
produza combustível de aviação, um tipo de
Ilustração do exoplaneta HAT-P-7b, um dos seis estudados: tardes extremamente quentes, com céu aberto
hidrocarboneto, usando biomassa lignocelulósica.
danças de fase – variações no nível da
As enzimas secretadas
luminosidade refletida sobre esses mun-
estudo. Nas últimas duas décadas, foram
por esse fungo,
dos – enquanto esses corpos celestes
identificados quase 5.500 candidatos a
encontrado em folhas e
circundavam sua estrela-mãe. “Apesar
planetas fora do sistema solar, dos quais
frutos em decomposição,
de termos descoberto milhares de pla-
mais de 1.800 tiveram sua existência
transformam a biomassa
netas extrassolares, ainda é um mistério
confirmada. No futuro próximo, os astro-
em combustível sem
como esses mundos distantes se pare-
físicos esperam medir as alterações do
nenhum processo químico
cem”, afirma Lisa Esteves, da Universi-
clima em planetas extrassolares menores
industrial. No experimento
dade de Toronto, principal autora do
e rochosos, como a Terra.
liderado por Birgitte Ahring e publicado na revista Fungal Biology, edição de abril, a
Chips biodegradáveis feitos de madeira
biomassa que apresentou maior eficiência foi
Um chip composto de
Os pesquisadores de
substituir a maior parte
o farelo de aveia.
celulose – a fibra presente
Wisconsin, em parceria
dos processadores
Os pesquisadores
na madeira – desenvolvido
com o Departamento de
e chips por material
trabalham agora com
na Universidade de
Agricultura dos Estados
biodegradável
Wisconsin-Madison, nos
Unidos, trocaram essa
ou mesmo reaproveitável.
Estados Unidos, foi a
camada, normalmente
Para demonstrar a
solução apresentada por
feita de metal, por fibras
viabilidade da técnica,
pesquisadores em artigo
de celulose em escala
eles utilizaram um
publicado na revista
nanométrica chamadas
substrato de madeira para
Nature Communications,
de nanofibrilas de
criar um chip de 5 por
26 de maio, como
celulose (CNF, na sigla em
6 milímetros, com 1.500
solução para o crescente
inglês). Como a madeira
transistores de arseneto
problema do descarte de
pode se contrair ou
de gálio, material padrão
circuitos integrados
expandir em função da
usado pela indústria
obsoletos. A maior parte
umidade do ar, eles
eletrônica para a
de um chip convencional
recobriram o polímero
fabricação de circuitos
é composta por uma
natural com resina epóxi,
integrados. Segundo
camada de suporte que
o que resultou em um
os pesquisadores, o
abriga o processador,
material mais resistente
protótipo apresentou
responsável pelo
à água. A ideia do grupo
desempenho semelhante
funcionamento do
de pesquisadores ao
aos circuitos integrados
computador.
propor essa solução é
usados atualmente.
14 | junho DE 2015
engenharia genética Chip feito com nanofibrila de celulose recoberto com resina sobre uma folha
para melhorar as linhagens de fungos produtores de combustível.
2
Registros de um mar letal Uma análise química de rochas calcárias coletadas nos Emirados Árabes é o indício mais contundente até agora de que o pior evento de extinção em massa da Terra pode ter sido causado pela acidificação dos oceanos — o mesmo processo que o excesso de gás carbônico produzido pela humanidade provoca nos mares. O evento aconteceu há 250 milhões de anos, quando 90% das espécies biológicas foram
3
fotos 1 NASA, ESA G. e Bacon (STScI) 2 Yei Hwan Jung/Universidade de Wisconsin-Madison 3 r. a. wood 4 wikimedia commons
extintas, especialmente as de vida marinha. Uma
da Universidade de
equipe internacional de
Bremen, Alemanha, é
geólogos liderados por
colaboradora de uma
Matthew Clarkson, da
equipe da Universidade
Universidade de Otago,
de São Paulo que inclui a
Nova Zelândia, analisou o
Emirados Árabes: rochas indicam acidez que pode ter causado extinções
Diagnóstico pela pressão Um novo método com
que fez o seu projeto
potencial de diagnóstico
em colaboração com a
geóloga Marly Babinski e
para hanseníase – doença
Fiocruz, do Rio de Janeiro.
conteúdo de isótopos de
seu aluno de doutorado
infecciosa e crônica
O problema é que o
boro e de outros
Gustavo Paula-Santos.
causada pela bactéria
período de proliferação
elementos de rochas que
Eles querem usar as
Mycobacterium leprae –,
da bactéria costuma ser
se formaram a partir da
técnicas empregadas por
sem necessidade de
muito longo e se o
precipitação de
Kasemann para
biópsia dos tecidos
paciente não for
carbonato de cálcio no
determinar a variação de
lesionados, foi
diagnosticado
fundo do mar durante o
acidez da água do mar e
desenvolvido pela
precocemente existe o
evento de extinção
explicar por que rochas
pesquisadora Estela de
risco de a doença ser
(Science, 10 de abril). A
da Formação Sete
Oliveira Lima durante
transmitida para outras
análise concluiu que,
Lagoas, entre Minas
o seu doutorado no
pessoas. Pelo novo
durante um período de 5
Gerais e Bahia, formadas
Laboratório Innovare
método, que já tem um
mil anos, a água do mar
no fundo de um mar há
de Biomarcadores,
depósito de patente,
chegou a ficar quase 10
cerca de 550 milhões de
vinculado à Faculdade de
uma placa de sílica com
vezes mais ácida que o
anos, têm características
Ciências Farmacêuticas
1 centímetro quadrado
normal devido ao gás
tão diferentes de rochas
da Universidade Estadual
é pressionada levemente
carbônico dissolvido. A
de origem marinha da
de Campinas (Unicamp).
na pele do paciente,
fonte desse gás foi um
mesma época
“Atualmente o
mesmo sem nenhuma
evento de vulcanismo nos
encontradas em outras
diagnóstico é feito pela
lesão aparente. As
continentes da época,
partes do mundo. “Essas
biópsia da lesão da pele”,
moléculas impregnadas
que liberou trilhões de
rochas não têm as
explica Estela Lima,
na placa são extraídas
toneladas de carbono na
evidências da explosão
com metanol e analisadas
atmosfera. A acidez é
da diversidade de
em um espectrômetro
letal para as criaturas
espécies vivas observada
de massas de alta
marinhas com conchas e
nos demais mares do
resolução. “Fizemos
exoesqueletos, pois
globo naquela época”,
análises estatísticas
dificulta a absorção de
explica Paula-Santos.
cálcio, o principal
“Queremos saber o
ingrediente das
quanto esse mar,
carapaças. Uma das
localizado no interior do
autoras da descoberta, a
continente Gondwana,
geóloga Simone Kasemann,
era isolado dos outros.”
comparando amostras Amostra com bactéria causadora da hanseníase: método inovador
de doentes com as de pessoas sadias e vimos que existe uma seleção de moléculas diferentes 4
para cada grupo”, relata. PESQUISA FAPESP 232 | 15
capa
Um vilão de muitas caras Combater a dengue agora e nos próximos anos requer a combinação de estratégias estabelecidas e inovadoras
Texto
Maria Guimarães e Pablo Nogueira
Fotos
Léo Ramos
N
ão foi a praia que atraiu o virologista Paolo Zanotto, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP), e o doutorando Julian Villabona-Arenas ao Guarujá, no litoral sul de São Paulo, no verão de 2012-2013. Eles estavam acompanhando os casos de dengue no município, selecionado pela proximidade com a metrópole paulistana, e analisando a genética dos vírus para reconstruir a malha de transmissão entre pessoas. As análises mostraram que dois bairros, Pae Cará e Enseada, eram os focos principais da doença, que deles se espalhava para outros pontos da cidade. O trabalho dos pesquisadores chamou a atenção de uma funcionária do departamento de vigilância sanitária local, que percebeu a preciosidade de saber onde estavam os casos com vírus ativos e convocou uma unidade de fumigação – o chamado “fumacê” – para matar mosquitos nesses locais. 16 | junho DE 2015
“Foram na cabeça do dragão e deram o tiro”, diz Zanotto. Depois disso, os mapas mostram uma situação mais fácil de controlar, com casos isolados. “É isso que precisa ser feito em todos os municípios”, preconiza, ao mesmo tempo que ressalta a necessidade de combinar vacinas a diferentes formas de controle do mosquito transmissor da doença. O trabalho do grupo de Zanotto vem apontando caminhos para o combate à dengue e sublinhando o risco crescente das epidemias. Um motivo de alerta é a presença dos quatro sorotipos do vírus que eles observaram em Guarujá naquele verão, como mostra artigo de 2014 na PLoS Neglected Tropical Diseases. Provavelmente tem impacto a proximidade do porto de Santos, onde mosquitos e vírus desembarcam como passageiros clandestinos. Em Jundiaí, muito próxima à Região Metropolitana de São Paulo, os pesquisadores encontraram apenas os sorotipos 1 e 4, mas isso não chega a ser um alívio.
Larvas de Aedes aegypti se desenvolvem no laboratório para formação de linhagem transgênica
Em conjunto, os dois municípios já revelavam que a capital paulista está sujeita a múltiplos vírus, criando uma situação conhecida como hiperendemicidade, que aumenta o risco de uma pessoa ser infectada várias vezes, com maior risco de casos do tipo hemorrágico. “A presença dos quatro sorotipos em um surto numa das áreas mais densamente povoadas no Brasil é um achado perturbador”, afirma Villabona-Arenas. “Essa cocirculação só havia sido documentada em países do sudoeste da Ásia há décadas e mais recentemente na Índia, sempre associada à maior gravidade de doença entre crianças.” De fato, os números mais recentes não permitem relaxar, embora o medo imediato do mosquito Aedes aegypti, transmissor da doença, comece a ficar em segundo plano com a chegada do frio e da seca, que não favorecem o desenvolvimento das larvas. A região Sudeste foi palco de 66% dos quase 746 mil casos registrados pelo Ministério da Saúde no
país inteiro desde o início de 2015 até 18 de abril. É menos do que foi registrado em 2013, mas bem mais do que em 2014. Nesse total há uma gradação de gravidade – há quem mal sinta sintomas, outros têm febre alta e persistente e passam longos dias prostrados com fortes dores no corpo e náuseas que tornam impossível seguir a prescrição médica de tomar muito líquido. Nesse período, foram confirmados 414 casos graves e 5.771 com sinais de alarme, as categorias que exigem atenção médica. Bem mais do que no ano anterior, com uma alta proporção no estado de São Paulo. Entre os fatores de gravidade estão danos ao fígado e uma queda alarmante na concentração de plaquetas no sangue, que pode transformar qualquer lesão microscópica em uma hemorragia. Para Zanotto, os números e a situação de hiperendemicidade indicam uma progressão alarmante da doença. “A dengue está apenas começando no Brasil”, avalia, com base num gráfico PESQUISA FAPESP 232 | 17
O brilho verde na cabeça e na cauda das larvas é o marcador que indica os insetos geneticamente modificados
do número de casos desde 1995, que prevê uma escalada abrupta a partir de agora. Significa, em sua opinião, que os esforços contra as epidemias devem se tornar mais eficazes. “Deveríamos fazer como o corpo de bombeiros, que age em focos de incêndio, visando contê-los antes que se espalhem e escapem do controle.” Os estudos de Zanotto em municípios paulistas como Guarujá, Jundiaí e São José do Rio Preto localizam focos de dengue em áreas com indicadores socioeconômicos mais baixos. Mas concentrar esforços nas favelas não basta, conforme mostra estudo do biólogo Ricardo Vieira Araujo, hoje funcionário da Coordenação de Mudanças Globais do Clima do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), publicado “A dengue este ano na revista Brazilian Journal of está apenas Infectious Diseases. Em São Paulo, ele mostrou que em partes da cidade com começando temperatura superficial do solo significativamente mais alta, onde há baixa no Brasil”, umidade, pouca cobertura vegetal e altos níveis de impermeabilização do diz Zanotto solo – as ilhas de calor – há maior incidência de dengue. Entre 2009 e 2013, Araujo trabalhava na Coordenação de Vigilância em Saúde de São Paulo, no monitoramento de doenças transmitidas por vetores e zoonoses na cidade. “Eu me perguntava por que uma favela na zona sul registrava tantos casos, enquanto em outra comunidade na zona norte, por exemplo, com características semelhantes, os números eram muito menores”, explica. Nesse mesmo período, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente concluiu um mapeamento de temperatura superficial do solo que apontava as ilhas de calor na capital. “Mas muitos dos pesquisadores ponderavam que as próprias ilhas estariam em regiões com 18 | junho DE 2015
indicadores socioeconômicos mais baixos, com uma densidade populacional maior. Então talvez a causa não estivesse nas temperaturas, mas nas condições sociais e demográficas.” Para distinguir entre os fatores, foi necessário lançar mão de uma série de informações. O censo de 2010 do IBGE permitiu calcular a população, a densidade populacional, a renda média e o modo predominante de ocupação urbana nos 96 distritos administrativos de São Paulo. Os dados também indicavam onde estavam favelas, ocupações e cortiços. Com imagens de satélite foi possível analisar a cobertura vegetal, assim como criar um mapa com as temperaturas médias de superfície de toda a cidade. Os registros de casos autóctones de dengue vieram da Coordenação de Vigilância em Saúde, que entre 2010 e 2011 registrou cerca de 7.400 casos. A integração das informações mostrou que 93% dos casos ocorreram onde a temperatura superficial média passava dos 28 graus Celsius (°C). Nas regiões com maior cobertura vegetal o número de casos por 100 mil habitantes era de apenas 3,2, diante de 72,3 nas menos arborizadas. Somando tudo, o tipo de ocupação parece influenciar menos a incidência de dengue do que a temperatura, no período analisado. O estudo foi mais a fundo e incluiu também um experimento em laboratório com duas linhagens de A. aegypti: uma usada rotineiramente pelos pesquisadores e outra obtida de ovos colhidos no campus da USP. Ficou clara a influência da temperatura: quando alcança os 32°C, mais de 90% das larvas do inseto já viraram adultas. O pesquisador alerta que os mapas das ilhas de calor não são estáticos e seria necessária uma atualização constante dos dados. Mesmo assim, ele considera importante que os profissionais de saúde e de infraestrutura urbana atuem de forma integrada. “Aumentar as áreas verdes é uma possibilidade. Mas vale lembrar outras alternativas, como as adotadas em vilarejos do litoral do mar Mediterrâneo, onde as casas são pintadas de branco como forma de amenizar o calor. Precisamos usar os recursos que temos para combater a dengue de forma estratégica e integrada”, pondera. Vírus alado
Um dos recursos existentes para o combate ao mosquito é o uso de inseticidas, como no caso do Guarujá. O problema é que, por ser a estratégia mais utilizada, o A. aegypti desenvolveu resistência
A estrutura de uma epidemia Análise genética do vírus permitiu mapear a rede de transmissão da dengue no Guarujá em 2012-2013
Antes Bertioga
Santos
Guarujá
Santos
Fonte paolo zanotto
Oceano Atlântico Mais antigo Mais novo
A partir da detecção da proteína NS1,
n Enseada n Pae Cará
depois
que indica vírus
Bertioga
infográfico ana paula campos ilustraçãO daniel bueno
ativos, foi possível identificar as
Santos
principais fontes da doença no município. Fumigar esses bairros,
Guarujá Santos
Enseada e Pae Cará, foi a chave para enfraquecer o surto
Oceano Atlântico
aos inseticidas mais comuns, à base de piretroides, assim como não se espantam com a maior parte dos repelentes e continuam a rondar, com seu voo nervoso, as vítimas lambuzadas. Durante o doutorado na Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu, a bióloga Maria de Lourdes Macoris monitorou uma série de populações de mosquitos no interior paulista e verificou que, mesmo após 15 anos sem piretroides, a resistência se manteve. “O uso de inseticidas selecionou as populações resistentes”, explica o biólogo Paulo Ribolla, orientador do trabalho. “Algumas prefeituras já estão usando outros produtos, com maior sucesso.” Em seu laboratório, ele agora está implementando tecnologia para produzir mosquitos mutantes e investigar quais são os genes responsáveis pela resistência. Na corrida evolutiva com os mosquitos, é necessário buscar novos inseticidas que sejam eficazes e atuem de modo abrangente nos criadouros. Esse objetivo move desde 2007 o grupo de pesquisa coordenado pelo engenheiro químico Eduardo José de Arruda, da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), em Mato
Grosso do Sul. “Fizemos um levantamento com o Aedes e com o pernilongo Culex quinquefasciatus, e constatamos que os insetos já apresentam resistência a algumas classes de inseticida”, diz Arruda. “Pode-se até matar todos os adultos de uma geração. Mas os ovos deixados nos criadouros, apesar da perda de viabilidade, poderão eclodir e repor a população em questão de meses.” “As classes de inseticidas para as quais há resistência não deveriam mais ser usadas no controle”, diz Arruda, que ressalta os custos econômicos e ambientais da quantidade crescente necessária. O grupo coordenado por ele busca, junto com parceiros de outras universidades, a síntese e caracterização de compostos multifuncionais, que impedem a eclosão dos ovos e matam as larvas. Também destroem as bactérias, fungos e protozoários que constituem a dieta dos mosquitos, e podem interferir na comunicação química que atrai as fêmeas aos criadouros onde depositam os ovos. A ideia é encontrar estratégias para o controle de duas ou três gerações do inseto ao mesmo tempo e quebrar a sua dinâmica reprodutiva. PESQUISA FAPESP 232 | 19
Mosquitos transgênicos têm se mostrado eficazes no controle das populações selvagens implemen
tado
fábrica de mosquitos
A fábrica Moscamed,
As fêmeas
O cruzamento
na Bahia, produz
selvagens cruzam
produz larvas
mosquitos com
com os machos
que não atingem
alterações genéticas
transgênicos
a idade adulta
e seleciona os machos
Por serem mais abrangentes os compostos multifuncionais exigem cuidados. Durante o mestrado na UFGD, Taline Catelan analisou os efeitos de quatro inseticidas fenólicos sobre ovos de Aedes e em Artemia salina, um pequeno crustáceo que vive na água. “A Artemia serve como um indicador dos eventuais danos aos mananciais”, diz Arruda. O estudo, publicado este ano na Advances in Infectious Diseases, mostrou que um dos compostos impediu completamente a eclosão dos ovos do mosquito, mas afetou as populações de Artemia. Ainda mais promissores são os resultados dos estudos com metalo-inseticidas, que contêm cobre ou ferro. Os compostos desencadeiam uma reação de estresse oxidativo que pode causar danos letais nas células e nos tecidos. “É como se usássemos um cavalo de Troia para levar o composto para o interior das células, e o metabolismo ativo do inseto produzisse in situ o inseticida”, diz Arruda. Dormindo com o inimigo
ab em l
Duplos transgênicos
ório or at
A produção de machos
As fêmeas
Cruzamento
com espermatozoides
armazenam o líquido
não produz
defeituosos está
seminal estéril
descendentes
sendo aperfeiçoada no ICB-USP
Em estágio inicial
Outra manipulação genética deve produzir linhagens que geram Estes machos já estéreis serão utilizados
apenas machos, aumentando a produtividade da fábrica
o
supermosquito Num segundo momento, o ideal será inserir na população mosquitos capazes de destruir os vírus em seu sistema digestivo Fonte margareth capurro/icb-usp
20 | junho DE 2015
ecçã rosp em p
Com a eficácia incerta dos inseticidas, é necessário buscar outras armas. O laboratório da bioquímica Margareth Capurro, do ICB-USP, concentra-se diretamente nos pequenos insetos de pernas listradas, de uma maneira inusitada: produzindo milhares e milhares deles para soltar no ambiente. “Virei uma consultora mundial em produção de mosquitos em massa”, conta a pesquisadora, que durante a elaboração desta reportagem viajou à China exatamente para isso. Numa fábrica localizada em Juazeiro, na Bahia, Margareth trabalhou com a Moscamed Brasil para implementar a produção de uma linhagem desenvolvida pela empresa britânica Oxford Insect Technologies (Oxitec). Esses mosquitos geneticamente alterados acumulam uma proteína que faz as células das larvas entrarem em colapso, de maneira que não chegam à fase adulta (ver Pesquisa FAPESP nº 180). No ano passado, sua equipe publicou no Journal of Visualized Experiments um vídeo mostrando como é a produção, inclusive a laboriosa separação de pupas masculinas e femininas por tamanho (as fêmeas são maiores). A separação é necessária porque apenas os machos, que não picam e não carregam o vírus, são liberados na natureza para cruzar com as fêmeas selvagens, produzindo a descendência modificada e inviável. Para conseguir essa produção, toda a infraestrutura e logística foi cedida pela Moscamed. A empresa também fechou parcerias com o Ministério da Saúde e a Secretaria da Saúde do Estado da Bahia, que têm contribuído para financiar a iniciativa. No início, a equipe tinha até jornalista para ajudar na comunicação com a população local. “Não podíamos chegar na cidade soltando mosquitos”, diz Margareth. “Entramos na casa das pessoas para conversar e
infográfico ana paula campos ilustraçãO daniel bueno
Produzir para eliminar
explicar o projeto; usamos rádio, televisão, comunicação local.” Mas não é porque a produção existe que a pesquisa termina. Os mosquitos da Oxitec continuam a ser testados em laboratório para ver como o vírus da dengue se comporta no hospedeiro. Com esse conhecimento, é preciso sempre voltar a campo, num processo constante. “No potinho tudo funciona, mas no ambiente o mosquito alterado voa tanto quanto o selvagem?”, questiona a pesquisadora. Voa, ela já observou. Outro problema é produzir machos compatíveis com a população feminina do sertão baiano. No laboratório eles crescem demais, como qualquer animal alimentado à vontade sem necessidade de esforço. Foi preciso encontrar o número de larvas que devem se desenvolver num determinado volume de água, e quanto alimento devem receber. Os testes em Juazeiro, até 2013, e Jacobina, que começaram nesse mesmo ano, têm mostrado que o sistema funciona, apesar de alguns percalços. “A frequência de cópula é mais baixa, por isso temos que aumentar a quantidade de mosquitos.” A liberação deve ser constante, mas com ajustes semanais à população dos insetos. Com os transgênicos, a quantidade deles diminuiu na cidade toda. Mas Margareth alerta que é preciso manter os esforços na busca por criadouros. A parceria com os agentes de saúde indicou a necessidade de melhorar o procedimento. “Eles encontram criadouros com larvas e não têm como saber se são viáveis”, diz a pesquisadora. O jeito foi investir em desenvolver machos estéreis no laboratório. Como a fêmea copula apenas uma vez na vida e armazena o líquido seminal, basta um encontro com macho estéril para não ser capaz de produzir prole. Mas essa linhagem transgênica ainda não está no ponto, com apenas entre 30% e 40% de esterilidade. É preciso mais tempo de
cruzamentos controlados para se chegar ao produto final, segundo explica Margareth. “Se apenas Outra manipulação genética em desenvolvimento visa impedir o reduzirmos nascimento de fêmeas, um processo chamado de reversão sexual a população que produz uma linhagem inteiramente masculina. Isso aumende mosquitos, taria a produtividade da fábrica, já que atualmente 50% das lara doença vas são fêmeas e há uma perda no volta a atacar”, processo de separação das pupas. “Perdemos entre 15% e 25% dos diz Margareth machos”, relata a pesquisadora. Se os duplos transgênicos, estéreis e com reversão sexual, funcionarem, não é só a produtividade que melhorará. Atualmente é preciso transportar as larvas de machos 1 em carros refrigerados até Jacobina. Se houver a certeza de que só se produzem machos, será possível enviar pelo correio folhas de papel com os ovos aderidos. Os resultados são promissores, mas podem não ser suficientes. “Se eliminarmos o mosquito, a dengue acaba; se apenas reduzirmos a população, depois de uns anos a doença volta a atacar”, explica Margareth. É o que aconteceu em Cingapura no início da década passada. Com um número reduzido de mosquitos, a proporção de insetos infectados aumenta. Como a resistência humana também cai sem exposição ao vírus, o risco é de uma ressurgência forte da epidemia. Por isso, Margareth e o doutorando Danilo Carvalho propõem um combate ao mosquito em duas fases, conforme explicam em artigo de Depois de alinhados, os ovos recebem 2014 na Acta Tropica. A ideia seria, depois de reinjeções que induzem duzir a população com machos estéreis, liberar modificações genéticas
PESQUISA FAPESP 232 | 21
Em busca da vacina
Material genético do vírus
Duas frentes da batalha imunológica são necessárias para combater o vírus da dengue
Proteínas não Proteínas estruturais estruturais
Vírus
Célula humana
Estrutura As proteínas estruturais formam
2
multiplicação Nas células da pessoa infectada,
o envelope que envolve o vírus,
os vírus usam a maquinaria do
enquanto as não estruturais atuam
núcleo para replicar seu DNA e
na replicação e outras funções
produzir novas partículas virais
uma segunda linhagem, atualmente em estudo no laboratório, portadora de uma mutação que permitiria ao mosquito reconhecer as células do próprio sistema digestivo, nas quais os vírus começam a se replicar, e destruí-las. Batalha interna
Por mais que se combatam os mosquitos, a doença não será facilmente erradicada e requer a ajuda do sistema imunológico. A iminência de uma vacina tem sido alardeada, mas não deve estar disponível de imediato. A mais próxima é a produzida pelo laboratório francês Sanofi Pasteur, que aguarda aprovação pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para entrar no mercado brasileiro em 2016. Mas sua eficácia não convence o microbiologista Luís Carlos de Souza Ferreira, do ICB-USP. Ele explica que a base dessa vacina é do vírus da febre amarela. Apenas uma parte do genoma responsável pelas proteínas estruturais pertence ao vírus da dengue. “Acreditava-se que fosse suficiente, porque é com base nessas proteínas que os anticorpos reconhecem o invasor”, explica. Mas seu grupo e outros têm mostrado que, no caso da dengue, quando os níveis desses anticorpos são baixos ou eles são pouco eficientes, os vírus remanescentes são conduzidos para as células onde se replicam. Destruir essas células é tarefa dos linfócitos T, e o alvo principal são outras proteínas do vírus – as não estruturais. “Nossas pesquisas têm mostrado 22 | junho DE 2015
que a resposta dos linfócitos T é importante na dengue”, conta. Segundo ele, isso não acontece na vacina produzida pela Sanofi Pasteur. Uma das linhas de pesquisa de Ferreira busca justamente produzir uma vacina baseada numa dessas proteínas, a NS1. Famosa por ser o marcador que indica que uma pessoa cheia de dores no corpo está infectada com o vírus da dengue, a proteína tem se mostrado um bom alvo, como relata um artigo de revisão de 2014 na Virus Research. “Produzimos o NS1 em bactérias e purificamos para usar como componente da vacina”, conta Jaime Henrique Amorim, pesquisador de pós-doutorado e primeiro autor do artigo. “Conseguimos 50% de proteção nos testes em camundongos; é uma formulação promissora, embora ainda muito longe de se tornar um produto aplicável a seres humanos.” Além dessa faceta mais aplicada, outra vertente dos estudos conduzidos no laboratório busca entender o padrão da resposta imunológica. Esse enfoque pode avaliar e aconselhar o desenvolvimento de outras vacinas, e leva Ferreira e Amorim a considerar mais promissora a vacina que está em fase de testes clínicos no Instituto Butantan. “Estudos feitos nos Estados Unidos mostraram que essa vacina, baseada em formas atenuadas dos quatro tipos virais da dengue, provoca uma resposta parecida com a de pessoas que foram infectadas e conseguiram neutralizar o vírus”, explica Amorim. Produzida no Brasil, a vacina foi desenvolvida nos Estados Unidos, nos Institutos Nacionais de
Fonte jaime amorim/icb-usp
infográfico ana paula campos ilustraçãO daniel bueno
1
Linfócitos T
Anticorpos
3
combate Os anticorpos bloqueiam os vírus com base nas proteínas do envelope e os linfócitos T reconhecem as proteínas não estruturais nas células infectadas, que destroem – uma vacina eficaz deve induzir as duas funções
Saúde (NIH). “Neste momento estamos finalizando a fase 2 de estudo clínico”, conta o médico Alexander Precioso, diretor do Laboratório Especial de Ensaios Clínicos e Farmacovigilância do Instituto Butantan. Ele espera ter todos os resultados colhidos, analisados e divulgados ainda este mês. De acordo com Precioso, 300 pessoas já foram testadas, mostrando que a vacina é segura. Esses resultados levaram o Butantan a enviar à Anvisa o pedido de autorização para o início da fase 3 antes mesmo de ter todos os dados coletados da etapa anterior. “Precisamos iniciar o quanto antes o recrutamento de voluntários para conseguir vacinar antes da próxima sazonalidade”, explica o médico. Se tudo correr bem, isso permitiria iniciar a aplicação da vacina assim que a fase 2 esteja concluída. Esse cronograma permitiria que a reação imunológica à vacina fosse posta à prova no próximo verão, estação em que acontecem os surtos de dengue em várias regiões do país. Depende de conseguirem recrutar os voluntários, que devem ser 17 mil pessoas em todo o país, das características do próximo surto e de como será a resposta dos imunizados. O plano do Butantan é solicitar o registro da vacina assim que os dados de eficácia forem demonstrados e manter o acompanhamento dos participantes por pelo menos cinco anos, para avaliar a durabilidade da resposta imunológica e definir a necessidade e frequência de reforços da vacina.
Parece haver um consenso: não há solução única, em termos de estratégia nem de geografia. Em cidades como o Rio e São Paulo, a maior incidência acontece no verão, em que há mais chuvas e a temperatura é elevada. Já no Nordeste é na seca que a doença atinge mais pessoas, quando a estiagem leva os moradores mais pobres a armazenar toda a água que puderem, dando origem a criadouros de A. aegypti. As autoridades sanitárias precisam, por isso, avaliar cada município para estabelecer as estratégias de combate. De qualquer maneira, a ação precisa ser multifacetada, com vacinas e combate aos mosquitos de vários tipos. Paolo Zanotto defende que se recolham dados de forma redundante para maximizar a eficácia das intervenções, com ação do governo, das universidades e da iniciativa privada. A integração e disseminação de informação validada independentemente é o que pode permitir uma ação concertada para prevenir epidemias e dirigir a intervenção para economizar recursos. Se as situações de risco fossem bem conhecidas, não seria necessário, por exemplo, vacinar a população inteira, defende o virologista. “O que eu faço teria maior impacto se houvesse interação institucional efetiva. Está na hora de pensar diferente e agir de forma integrada: sem superposição há lacunas.” n
Projetos 1. Avaliação e melhoramento de linhagens transgênicas de Aedes aegypti para controle de transmissão de dengue (nº 2013/19921-9); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Margareth Capurro Guimarães (ICB-USP); Investimento R$ 310.817,00 (FAPESP). 2. Dengue: produção de lotes experimentais de uma vacina tetravalente candidata contra dengue (nº 2008/50029-7); Modalidade Programa Pesquisa para o SUS; Pesquisador responsável Isaias Raw (Instituto Butantan); Investimento R$ 1.926.149,72 (FAPESP/CNPq-PPSUS). 3. Filogeografia do vírus da dengue nos municípios de Jundiaí e Guarujá no estado de São Paulo (nº 2010/19059-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Paolo Marinho de Andrade Zanotto (ICB-USP); Investimento R$ 229.608,82 (FAPESP). 4. Estratégias vacinais voltadas para o controle da dengue baseadas em proteínas recombinantes e adjuvantes de natureza microbiana (nº 2011/51761-6); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Luís Carlos de Souza Ferreira (ICB-USP); Investimento R$ 813.542,17 (FAPESP).
Artigos científicos AMORIM, J. H. et al. The dengue virus non-structural 1 protein: Risks and benefits. Virus Research, v. 181, p. 53-60. 6 mar. 2014. ARAUJO, R. V. et al. São Paulo urban heat islands have a higher incidence of dengue than other urban areas. The Brazilian Journal of Infectious Diseases, v. 19, n. 2, p. 146-55. mar-abr. 2015. CATELAN, T. B. S. et al. Evaluation of toxicity of phenolic compounds using Aedes aegypti (Diptera: Culicidae) and Artemia salina. Advances in Infectious Diseases, v. 5, n. 1, p. 48-56. 28 fev. 2015. CARVALHO, D. O. et al. Two step male release strategy using transgenic mosquito lines to control transmission of vector-borne diseases. Acta Tropica, v. 132 supl, p. S170-7. abr. 2014. MACORIS, M. L. G. et al. Impact of insecticide resistance on the field control of Aedes aegypti in the State of São Paulo. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, v. 47, n. 5, p. 573-8. set-out 2014. VILLABONA-ARENAS, C. J. et al. Detection of four dengue serotypes suggests rise in hyperendemicity in urban centers of Brazil. PLoS Neglected Tropical Diseases. 27 fev. 2014.
PESQUISA FAPESP 232 | 23
entrevista Alexander Wilhelm Armin Kellner
Nas asas do passado Paleontólogo fala dos primeiros répteis voadores, os pterossauros, dos estudos com os chineses e das dificuldades da pesquisa em sua área Marcos Pivetta |
A
retrato
Léo Ramos
s primeiras pedras no caminho do geólogo e paleontólogo Alexander Wilhelm Armin Kellner, 53 anos, foram as preciosas. Seu pai teve um comércio de joias no Rio de Janeiro nos anos 1970. Com 12 anos, esse filho de imigrantes do pós-guerra, de pai alemão e de mãe austríaca, nascido prematuramente no diminuto principado europeu de Liechtenstein, servia café e varria o chão na loja da família. Desde então, rochas de outra natureza, restos de vertebrados preservados na forma de fósseis, pavimentam sua vida profissional. Brasileiro naturalizado desde 1997, Alex Kellner, como é mais conhecido, é um dos maiores especialistas do mundo em pterossauros – um raro grupo de répteis voadores que, como os dinossauros, surgiu no final do período Triássico, por volta de 230 milhões de anos atrás, e extinguiu-se misteriosamente nos estertores do Cretáceo, 66 milhões de anos atrás. Embora tenha havido exemplares do tamanho de um pardal, os pterossauros, primeiros vertebrados a alçar voo, são popularmente associados a animais 24 | junho DE 2015
de grande porte, cujas asas abertas podiam atingir uma envergadura superior a 10 metros. Foram os senhores dos ares por mais de 160 milhões de anos. Professor do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Kellner publicou mais de 200 artigos em revistas científicas. Descreveu quase 60 novas espécies de vertebrados. “Mas tem um pouco de tudo aí, dinossauros e crocodilianos, entre outros. De pterossauro, descrevi 29 espécies”, diz o paleontólogo, que também é pesquisador associado do Museu Americano de História Natural (AMNH) e do Instituto de Paleontologia de Vertebrados e Paleoantropologia (IVPP) de Pequim. Entre abril de 2014 e janeiro deste ano, o museu nova-iorquino abrigou uma exposição desses répteis alados, cuja curadoria foi partilhada por Kellner e um colega norte-americano, Mark Norell. Com ricos depósitos de fósseis do Cretáceo com idade entre 115 milhões e 110 milhões de anos, a bacia do Araripe, que abrange parte dos estados do Ceará, Piauí e Pernambuco, é um dos lugares que mais forneceram vestígios de pterossauros para
idade 53 anos especialidade Paleontologia formação Graduação e mestrado em Geologia na UFRJ e doutorado na Universidade Colúmbia em parceria com o Museu Americano de História Natural instituição Museu Nacional/UFRJ produção científica Mais de 200 artigos científicos e quase 60 espécies de vertebrados descobertas, das quais 29 de pterossauros
Nascido por acaso no principado de Liechtenstein, filho de pai alemão e de mãe austríaca, Kellner naturalizou-se brasileiro em 1997. A bacia do Araripe, no Nordeste, e mais recentemente a China forneceram muitos exemplares de pterossauros para seus estudos PESQUISA FAPESP 232 | 25
Como você veio parar no Brasil? Meu pai era alemão e nasceu em 1926. Onde ele estava por volta de 1945? Sabe aqueles garotos do filme A queda, sobre o Hitler, que ficavam em Berlim totalmente sem noção? Consigo visualizar meu pai como um deles. Ele se deu mal na guerra, perdeu toda a família, chegou a ser preso pelos russos, mas fugiu e depois foi capturado pelos americanos. Foi liberado por um oficial judeu, porque era um pobre coitado. Meu pai começou então a trabalhar com compra e venda de terrenos e ficava entre a Áustria e a Suíça. Ele veio ao Brasil na década de 1960 com minha mãe, que era austríaca e faleceu no ano passado. Ela me teve com 17 anos, quando estava passando por acaso em Liechtenstein. Durante meus quatro primeiros anos, fiquei com minha avó na Áustria até eles se estabelecerem aqui. Em 1965, minha mãe me buscou e, desde então, estou no Brasil. Naquela época, falava-se do milagre de Brasília, a capital do futuro. Quando meu pai veio para cá, havia muita discussão sobre venda de terrenos. Ele veio, viu que não havia nada interessante nessa área, mas resolveu se estabelecer no Brasil. Foi primeiro para Brasília, passou por Minas Gerais e depois pelo Rio, onde achou um veio econômico interessante, que é o das pedras preciosas.
ele dizia. Servi cafezinho, limpei vidro e varri o chão. Foi ótimo. Essa foi minha formação desde o começo. A paixão pela paleontologia surgiu desde criança? Quis ser tudo: astronauta, diplomata e pensei em fazer administração para cuidar das empresas de meu pai. Mas o que aconteceu nesse ínterim? Eu jogava futebol, era goleiro e o time da escola teve uma oportunidade maravilhosa: jogar contra um time da base do Flamengo. Sou Fluminense, mas, para nós, era uma honra. Só que queríamos ganhar e chamamos alguns alunos mais velhos, que tinham acabado de passar no vestibular, para reforçar nosso time. Empatamos em 2 a 2. Fui destaque do jogo e até peguei
Foi fácil entrar na Geologia da UFRJ? Era preciso fazer 5.534 pontos no vestibular para entrar. E foi o que eu fiz. Fiquei com a última das 40 vagas. A geologia era concorridíssima. Ainda na graduação comecei a trabalhar com o paleontólogo Diogenes de Almeida Campos, que estava no Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) [ver entrevista com Almeida Campos em Pesquisa FAPESP nº 108]. Essa parceria dura até hoje. Consegui depois uma bolsa de iniciação científica. Saí de casa e fui morar com um amigo. Ora dependia da bolsa, ora do trabalho com meu pai. Terminei a graduação e foi uma época complicada na UFRJ. Um professor reprovou a turma toda no último ano e entramos com um processo contra ele. Eu e outros terminamos o curso, mas alguns não conseguiram passar. Fiquei chateado com aquilo tudo e queria me afastar da academia. Trabalhava com meu pai, ganhava um bom dinheiro e pensava em seguir minha vida. Mas, como gostava de paleontologia, continuei indo ao DNPM. Um dia, o Diogenes me perguntou se eu ia continuar fazendo pesquisa. Disse que sim e ele me respondeu que então eu deveria fazer mestrado. No ano seguinte, entrei no mestrado na UFRJ. Passei em primeiro lugar, consegui uma bolsa e tive um desentendimento com meu pai, mais um, aliás, porque ele não queria que eu me tornasse um paleontólogo. Queria que eu tocasse as empresas dele. Aí tive uma oportunidade que mudou a minha vida. Foi em 1989, no encontro da Sociedade de Paleontologia de Vertebrados, em Austin, no Texas.
Os pterossauros dominaram as áreas costeiras durante o Cretáceo e grande parte do Jurássico
Sua primeira língua então é o alemão? Cheguei aqui e só falava alemão. Estudei numa escola alemã, a Corcovado, na época situada na Urca e hoje em Botafogo, que é trilíngue. Lá aprende-se português, alemão e inglês. Comecei na loja de joias do meu pai com 12 anos. Era do tipo linha-dura. Nada vem de graça, tem que trabalhar pelas coisas, 26 | junho DE 2015
pênalti. Tinha 15 ou 16 anos. Lembro que eram dois anos antes do vestibular. Houve uma comemoração depois do jogo. Um dos meninos mais velhos me disse que tinha acabado de passar em geologia. Eu nem sabia o que era isso. Ele me disse que era o estudo das rochas e perguntou o que eu ia fazer. Primeiro disse administração e depois falei que queria mesmo estudar aqueles animais que ficam nas pedras, os fósseis. Depois aprendi que o certo é dizer rocha. Falar pedra é heresia para um geólogo. Então ele disse para mim: “Se você quer paleontologia, tem de fazer geologia”. Aí peguei o ônibus, fui para casa e disse para minha mãe que ia fazer geologia. Ela perguntou “geo o quê?”. Isso para mostrar nosso grau de formação.
O que ocorreu no encontro? A primeira coisa que percebi era que o encontro de paleontólogos especialistas em vertebrados fósseis de todo o mundo estava sendo realizado em um hotel cinco estrelas. No Brasil, fazíamos eventos em locais pequenos, que, em alguns casos, mal tinham banheiro. O primeiro trabalho que vi no encontro foi de paleopatologia, estudo de doenças em fósseis. Estava no meio do mestrado e nunca tinha ouvido falar disso. Naque-
fotos arquivo pessoal
Kellner. Nos últimos anos, a China tornou-se outra fonte importante de material para seus estudos. “Os chineses decidiram investir em paleontologia. Agora não deixam sair nenhum fóssil de lá”, afirma. “Deveríamos fazer o mesmo.” Nesta entrevista, Kellner conta um pouco de sua história familiar e fala dos percursos, por vezes tortuosos, de sua pesquisa.
a época de estudante. Enfim, para encurtar a história, acabei sendo aceito pela Colúmbia e me mudei para Nova York com mulher e dois filhos pequenos. Fiquei lá de 1991 a 1996. Entrei no Museu Nacional em 1997, quando voltei ao Brasil. Como surgiu seu interesse pelos pterossauros? Em boa parte porque adorava os Herculoides, um desenho animado criado nos Estados Unidos no fim dos anos 1960 que passou mais tarde no Brasil. Tinha dragões e tudo aquilo ali me fascinava. O paleontólogo em campo na China em 2005
le evento havia uma sessão inteira dedicada ao assunto. Depois, apareceram estudos de isótopos, cladismo, que é a relação filogenética entre os organismos. Não sabia nada disso. Me lembro que, depois da quarta ou quinta apresentação, saí do encontro determinado a virar pesquisador. Como você acabou fazendo doutorado na Universidade Colúmbia em um programa associado com o AMNH? Durante meu mestrado fui para a Europa e vi várias coleções, inclusive na Alemanha, no Instituto para Paleontologia e Geologia da Baviera. Havia ali um pesquisador chamado Peter Wellnhofer, que tinha vários trabalhos publicados, e fui falar com ele. Wellnhofer me levou a um armário na sala dele, abriu uma gaveta e mostrou uma asa completa de pterossauro. Abriu outra gaveta e havia um crânio completo, cheio de outros ossinhos. Tudo fóssil do Brasil, que eu vi por alguns segundos. Ele disse que estava terminando um trabalho e achava que o AMNH devia ter mais material. Sugeriu que eu falasse com John Maisey, atualmente curador da seção de paleontologia do museu em Nova York. Voltei para o Brasil frustrado. Estava trabalhando aqui com um monte de caco quebrado de pterossauro e eles com o bicho completo na Alemanha. Resolvi escrever uma carta para o Maisey. Disse que fazia mestrado sobre pterossauros e perguntei se ele tinha material que eu pudesse estudar. Mandei a carta, sem esperança de resposta. Mas o Maisey disse que conhecia meu trabalho – nem sei de onde, se bem que eu publicava bastante desde
Como você descreve um pterossauro para um leigo? De uma forma simplificada, são répteis com asas enormes e um corpo muito pequeno. As formas mais basais tinham cauda longa e pescoço curto. As formas mais derivadas tinham cauda curta, pescoço comprido e cabeça ainda mais superdimensionada se comparada ao corpo. Em termos evolutivos é bom frisar que os pterossauros não são aves ou dinossauros. Apesar de ainda existir discussão onde exatamente esses animais alados estão posicionados na cadeia evolutiva dos répteis, a maioria dos autores, inclusive eu, defende que os pterossauros são parentes próximos dos dinossauros. São um grupo irmão dos dinossauros. Isto significa dizer que os dois grupos derivam de um ancestral recente comum e depois cada um seguiu o seu caminho evolutivo de forma indeKellner com os filhos em Washington em 1993: doutorado no Museu Americano de História Natural
pendente. Enquanto os dinossauros dominaram a terra firme, os pterossauros se tornaram os senhores do céu. Há, no entanto, paleontólogos que acreditam que os pterossauros sejam mais próximos da linha evolutiva que originou os lagartos. Os registros fósseis encontrados de dinossauros não são um pouco mais antigos do que os de pterossauros? Os dinossauros mais antigos passam dos 230 milhões de anos enquanto os pterossauros ficam na casa dos 215 milhões ou 220 milhões de anos. Isso só tem a ver com a questão da preservação dos fósseis. Em termos numéricos, há oito ou nove vezes mais espécies conhecidas de dinossauros do que de pterossauros. Em torno de 215 espécies de pterossauros foram descritas. Dessas, aproximadamente 150 são consideradas hoje válidas pela ciência. Das 2 mil espécies descritas de dinossauros, pouco mais de mil são consideradas válidas, dependendo da fonte usada como referência. Por que um pterossauro não pode ser considerado uma ave? Há três grupos que desenvolveram o voo ativo: as aves, os morcegos e os pterossauros. O resto plana. A história evolutiva de cada grupo é diferente. Sabemos que um pterosssauro não é uma ave pela anatomia, estudando os ossos. Os pterossauros têm o quarto dígito, o dedo anular, alongado, que sustentava uma membrana alar. Essa constituição é bem distinta da dos morcegos, que possuem quatro dígitos envolvidos na asa, e das aves, que têm penas e os ossos do antebraço proporcionalmente mais desenvolvidos. É possível ter uma ideia de como deve ter sido a convivência entre os pterossauros e os dinossauros? Há registros de pterossauros que foram predados por dinossauros. Já foi encontrado, por exemplo, um dente de espinossauro, um dinossauro carnívoro, dentro de uma sequência de vértebras de pterossauro. Grosso modo, podemos dizer que eles viveram juntos, mas, com exceção dos dinossauros avianos, dos quais derivam as aves, habitavam ambientes separados. Todos os registros de pterossauros indicam que eles voavam. Por isso, eles podiam fugir dos dinossauros de terra. Apenas os dinossauros avianos competiam com os pterossauros. PESQUISA FAPESP 232 | 27
Com sua equipe na bacia do Araripe em 2011: região rica em fósseis do período Cretáceo
Por que a bacia do Araripe preservou tantos fósseis de vertebrados? O Araripe é uma região maravilhosa em termos de preservação de fósseis do Cretáceo. Gosto de dizer que é assim porque Deus é brasileiro. Mas brincadeiras à parte, até porque sou agnóstico, a riqueza fossilífera da região tem explicação científica. O Araripe era um fundo de lago gigantesco, só que anóxico, sem oxigênio, onde tudo que caía ali dentro não era destruído nem decomposto. Essa característica preservou os fósseis, com um adicional: ali houve formação de nódulos de calcário, envolvendo os restos orgânicos, que funcionaram como uma jaqueta, protegendo os ossos da compressão resultante do peso das camadas sedimentares. Os melhores fósseis preservados hoje em dia, com exceção dos encontrados em âmbar, são os achados em nódulos calcários. Alguns pterossauros do Araripe são muito particulares. Há os da subfamília dos Thalassodrominae, que têm cristas enormes, e foram achados apenas no Brasil. Tem também os Tapejarinae, com cristas menores, que primeiro foram encontrados aqui e só depois na China e em outros lugares. Sem contar os Anhangueridae, que, com os seus dentes bem desenvolvidos, foram primeiramente registrados no Brasil e depois em outras partes do mundo. Com quase 30 espécies descritas de pterossauros, quais são as suas principais contribuições para o entendimento desses répteis alados? Tenho uma teoria proposta em 1994 que fala da competição entre aves e pterossauros. Fiz uma análise global e vi que há uma concentração absurda de pterossauros em quatro depósitos fósseis: Solnhofen, no sul da Alemanha; Cambridge 28 | junho DE 2015
Greensand, na Inglaterra; o Araripe, no Nordeste; e a formação Niobrara, nos Estados Unidos. Esses depósitos representam áreas que, no passado, estavam próximas do mar. Comparando o conteúdo fossilífero, existe uma quantidade muito maior de pterossauros do que de aves. Uma vez que ambos possuem ossos frágeis, não se trata de algum fenômeno que possa ser explicado pela preservação. Então posso dizer que, durante o Cretáceo e grande parte do Jurássico, as áreas costeiras eram dominadas pelos pterossauros, amplamente predominantes em relação às aves. Na parte interna dos continentes, não sabemos quem era dominante. Não temos dados suficientes. Talvez a China seja o único lugar do mundo onde se possa equacionar essa questão da competição das aves e dos pterossauros fora das regiões costeiras. Eles têm depósitos fósseis em áreas de sua antiga parte continental. É possível dizer que, apesar de répteis, alguns pterossauros conseguiam controlar a temperatura corporal? Fiz um estudo de fisiologia, em colaboração com o Diogenes, publicado na Science em 2002, que aborda essa questão. Mostrei que um pterossauro com uma grande crista apresentava impressões, interpretadas como vasos sanguíneos, que indicavam alguma forma de regulação térmica. Esse réptil tinha um metabolismo mais próximo da homeotermia. Outra contribuição interessante, que tange essa questão, foi realizada com os colegas chineses. Trata-se de uma reavaliação da presença de pelos nos pterossauros. Um paleontólogo havia achado um material que parecia ser pelo de pterossauro em um fóssil do Cazaquistão. Mas todo mundo disse que não se tratava disso.
Nas últimas décadas, a China ganhou espaço na paleontologia mundial. Isso se deve a uma concentração maior de fósseis de dinossauros e também de pterossauros em seu território? Não. Há pterossauro em todos os continentes, provavelmente até na Antártida. O problema é que cerca de 50% de toda a sua diversidade e mais de 90% de seus exemplares vêm das quatro regiões que citei, mais os depósitos fósseis das formações Yixian e Jiufotang, da China, descobertos recentemente. Nesse quebra-cabeça, há algumas peças que tentamos juntar, mas não sabemos se elas estão bem dispostas. A informação é difusa e toda vez que encontramos um novo depósito as coisas mudam. Foi o que ocorreu com a China. Sabe quando foi descrito o primeiro pterossauro desses depósitos chineses? Em 1997. Você tem feito muitos trabalhos com os chineses. Como é essa parceria? É algo de que me orgulho. Este é o 12º ano em seguida que vou para a China e já publiquei mais de uma dúzia de trabalhos com eles. Pelo menos 50% da minha pesquisa é hoje em dia financiada pelos chineses. Eles têm depósitos ricos em fósseis e têm investimento. No Brasil também temos os depósitos, mas não há recursos. Meus colegas de lá trabalham com US$ 1 milhão para desenvolver suas pesquisas. Você sabe quando vou ganhar esse dinheiro para estudar fóssil no nosso país? Nunca ganhei nem 10% disso. O Estado chinês diz que a paleontologia é importante e investe.
arquivo pessoal
Resgatamos essa história e, por meio de uma espécie da China, o Jeholopterus ningchengensis, mostramos que os pterossauros tinham pelo. Isso foi em um trabalho de 2009. Denominamos esses filamentos densos de picno-fibras. Outro trabalho importante foi um que publiquei na Nature em 1999. Mostrei que tínhamos encontrado tecidos moles fossilizados, fibras musculares e vasos sanguíneos, em um dinossauro de 110 milhões de anos, que, em seguida, denominei de Santanaraptor placidus. Aliás, meu sonho seria encontrar alguém no Brasil da área de biologia molecular para desenvolver um trabalho com biomoléculas em tecidos moles. Tenho material maravilhoso, mas não posso mudar o foco das minhas pesquisas.
Por que acham importante fomentar a paleontologia? Eles são interessados em desenvolver a ciência básica em todas as áreas. Isso inclui a paleontologia. Publicam muitos papers na Science e na Nature sobre diferentes tipos de fósseis, e não apenas de dinossauros, e usam a divulgação científica para atrair jovens aos seus museus de história natural. A ciência brasileira um dia tentou concorrer em pé de igualdade com a China. Mas não damos nem para o começo. O Brasil agora vai perder da Índia. Na paleontologia ainda não perde, mas, em breve, vai perder se não houver mudanças. Qual é a situação da paleontologia brasileira? É horrorosa. A maioria dos meus colegas entende a minha posição, mas não gosta que eu diga isso. Nossa produção científica é fraquíssima comparada ao nosso potencial. Muitos países estão passando o Brasil. Há ilhas de exceção, como ocorre em outras áreas da ciência brasileira. Mas, no geral, a paleontologia do Brasil está muito aquém do que um país com tantos depósitos extremamente ricos em fósseis pode oferecer à ciência mundial. E não é porque eu e meus colegas não queremos trabalhar. Perdemos, por exemplo, de 10 a 1 da Argentina. Com toda a crise, eles continuam investindo na área. Claro que os argentinos têm coisas que os favorecem, como as áreas desérticas com fósseis e uma maior tradição na área. Mas nada serve de desculpa para o Brasil estar em uma posição tão fraca.
to, vários fósseis importantíssimos vão ser encontrados na Bahia. Claro que, se eu soubesse exatamente onde, já estava lá. Existe a necessidade de fazer buscas sistemáticas nos diversos depósitos do Cretáceo daquele estado que reúne todas as condições para encontrarmos coisas interessantes. Mas tem que investir. Com frequência, ouço pesquisadores estrangeiros dizerem que não exploramos nossos depósitos fossilíferos e, por isso, o Brasil não pode reclamar da saída de exemplares para o exterior. Hoje o contrabando de fósseis é um problema de qual tamanho no Brasil? Entre as décadas de 1960 e 1980, os fósseis brasileiros estavam perambulando por aí. Podiam ser adquiridos por qual-
de profissão. Nunca é demais relembrar que uma boa coleção de fósseis traz bons pesquisadores, que fazem bons trabalhos e conseguem mais verbas. Para fazer o quê? Coletar mais e, com isso, contribuir para o conhecimento da evolução da vida em nosso planeta! Uma boa coleção é a base de tudo. Outro ponto negativo que temos no nosso país é a situação dos nossos museus de história natural. Além de poucos, a maioria se encontra em situação difícil, com exposições antiquadas, sem atrativos. No início do ano, por exemplo, o Museu Nacional, o mais antigo do Brasil, fechou por um tempo por falta de pagamento dos serviços de limpeza e segurança. Você foi preso pela Polícia Federal em 2012 no aeroporto de Juazeiro do Norte (CE) sob acusação de transporte ilegal de fósseis e passou uma noite na cadeia. Poderia falar sobre esse episódio? Essa história tem um pouco de tudo. Tem coisas que eu não me importo que publiquem. Mas outras prefiro não divulgar. Estou processando o DNPM, justamente o lugar em que comecei a trabalhar, por causa da prisão, e pedindo uma indenização de R$ 1 milhão. Um colega francês, que estava comigo e também foi preso, está fazendo o mesmo. Posso dizer que estimulei um projeto de pesquisa de um grupo local de pesquisadores do Ceará a coletar material no Araripe e que houve uma disputa com o DNPM local. Fomos presos no aeroporto com fósseis de peixes que estávamos levando para o Rio de Janeiro. Estava tudo dentro da legalidade, como sempre fiz. Levei fósseis do Araripe para o Rio durante toda a minha vida. Devo muito ao Araripe. Não teria estudado na Universidade Colúmbia se não fosse o meu orientador e a possibilidade de fazer pesquisa com material do Nordeste. Achei que era justo, e bom para o desenvolvimento da pesquisa local, que houvesse um grupo local que fizesse coletas nesses depósitos. Mais recentemente, tentaram fazer um acordo para eu retirar o processo. Mas agora vou até o fim e isso está nas mãos da Justiça. n
A produção científica da paleontologia no Brasil é fraquíssima comparada ao nosso potencial fossilífero
Qual é o objetivo do movimento SOS dinossauros que você lançou em janeiro? Queremos mais verbas para a paleontologia nacional. Queremos que as agências de fomento criem uma área específica para a paleontologia. Hoje não somos ouvidos. Estão matando uma geração de novos pesquisadores. Somos vistos como uma especialidade dentro da geologia, da zoologia ou até da botânica em comissões que julgam projetos geralmente sem contar com paleontólogos. Pode escrever aí: se houver investimen-
quer um em praças e aeroportos. Hoje isso mudou, inclusive pelo trabalho que diversos pesquisadores da geração passada e da minha fizeram de conscientização do valor científico desse material. Alguns países da Europa permitem a venda de fóssil. Aqui não. Mas o contrabando ainda é um problema grave. Coibir a venda é positivo, mas é preciso haver incentivo para que os pesquisadores possam coletar exemplares. Na China, as pessoas coletam e repassam os fósseis para as instituições. O Brasil não faz o dever de casa. Os chineses tinham o mesmo problema que nós. Investiram em paleontologia e hoje não se pode tirar fóssil de lá sem ter problemas com as autoridades ou ser mal visto pelos colegas
PESQUISA FAPESP 232 | 29
política c&T Laboratórios y
Esforço fragmentado Diagnóstico feito pelo Ipea mostra que infraestrutura de pesquisa no país é fruto de investimento recente, mas pulverizado
U
m levantamento pioneiro sobre a situação da infraestrutura de pesquisa do Brasil foi produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) e deverá ser lançado na forma de livro no segundo semestre. Segundo o diagnóstico, que analisou uma amostra de 1.760 laboratórios espalhados pelo país, há disseminação de instalações de tamanho modesto e escassez de grandes laboratórios voltados para múltiplos usuários ou talhados para desafios ambiciosos. O número total de pesquisadores trabalhando nessas instalações foi de 7.090, média de apenas quatro indivíduos por laboratório. Quarenta e seis por cento dos laboratórios informaram que seus equipamentos custavam, somados, menos de R$ 250 mil. Apenas 5% declararam patrimônio superior a R$ 5 milhões. Mas não se imagine que a estrutura seja antiga ou sucateada. A maior parte dos laboratórios (56,7%) iniciou suas atividades nos anos 2000. “O dado está relacionado a um ciclo recente de investimentos”, diz Fernanda de Negri, coordenadora da pesquisa, referindo-se aos fundos setoriais de ciência e tecnologia criados em 1999. Um deles, o CT-Infra, deu origem ao programa Proinfra, coordenado pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), que investiu entre 2003 e 2011 R$ 2 bilhões na construção de laboratórios e instalação de equipamentos. Os laboratórios vêm sendo atualizados. Mais de 70% infor30 z junho DE 2015
maram ter recebido investimentos há menos de cinco anos, sendo um terço há menos de um ano. “O que existe é um problema de escala”, afirma Fernanda. “O investimento em laboratórios foi bastante pulverizado, atendendo a uma demanda que é própria das universidades. Já ouvi professor de universidade dizendo: teve um concurso e entrou um novo doutor. Precisamos construir um laboratório para ele”, diz a pesquisadora, vinculada à Diretoria de Estudos e Políticas Setoriais de Inovação do Ipea. Na sua avaliação, a excessiva pulverização impõe um problema para o futuro da pesquisa no país. “As políticas públicas precisam ser focalizadas para a construção de grandes estruturas de pesquisa. Estamos enviando para o exterior um número crescente de doutorandos e pós-doutores e, quando eles voltam, necessitam de grandes laboratórios para seguir fazendo pesquisa de ponta. Com algumas exceções, eles não dispõem disso hoje”, afirma. A premissa do trabalho do Ipea é que uma boa infraestrutura é um fator determinante para a produção de conhecimento e de inovação. Entre as referências analisadas, destacam-se os 40 laboratórios nacionais dos Estados Unidos, estruturas que funcionam dentro do conceito de big science, com equipes numerosas, grandes orçamentos e instalações robustas para enfrentar desafios de pesquisa na fronteira do conhecimento. Em 2012, eles tiveram um orçamento de US$ 17,5 bilhões.
foto eduardo cesar infográficos ana paula campos
Fabrício Marques
Um retrato das instalações de pesquisa Levantamento analisou informações sobre uma amostra de 1.760 laboratórios do país
houve investimento recente
a maioria é de pequeno porte
concentração no sudeste e no sul
Ano de início de operação das instalações mapeadas
Valor estimado do conjunto dos equipamentos de pesquisa dos laboratórios
Distribuição regional da infraestrutura
23,3% 19,5% 11% 6,3% 2 -2 10
00 20
01
9 00 -2
-19 90
20
99
89 -19
19
19
An
tes
19
80
70
de
-19
19
79
70
2,8%
Até R$ 100 mil
28,5%
> R$ 100 mil até R$ 250 mil
17,5%
> R$ 250 mil até R$ 500 mil
17%
> R$ 500 mil até R$ 1 milhão
14,2%
> R$ 1 milhão até R$ 2 milhões
11%
> R$ 2 milhões até R$ 3 milhões
4%
> R$ 3 milhões até R$ 5 milhões
3%
> R$ 5 milhões até R$ 7 milhões
2%
> R$ 7 milhões até R$ 10 milhões
0,7%
> R$ 10 milhões até R$ 15 milhões
1%
> R$ 15 milhões até R$ 20 milhões
0,6%
> R$ 20 milhões até R$ 50 milhões
0,3%
> R$ 50 milhões
0,2%
113 419
54
Sudeste
o perfil da qualificação
avaliação de pessoal
Titulação dos pesquisadores que trabalham nos laboratórios
Ciências Exatas e da Terra
Doutorado
72,45%
Como os coordenadores dos laboratórios avaliam os recursos humanos que atuam nas infraestruturas
Mestrado
15,83%
70
Graduação
6,93%
60
Especialização
1,73%
Ensino médio
1,29%
50
Ensino profissional de nível técnico
0,56%
Não informado
0,36%
Mestrado profissionalizante
0,26%
Curso de curta duração
0,24%
10
MBA
0,16%
0
Extensão universitária
0,07%
Especialização – residência médica
0,02%
Outros
0,02%
13,29% 31,57%
Ciências Agrárias
6,86% Ciências da Saúde
Engenharias
0,1% Multidisciplinar
Adequado n Pouco adequado n Inadequado n
40 30 20
pe N sq úm ui e sa ro do d re e s Fo pe rm sq a ui çã sa o do do re s s
22,02%
interação externa
fontes de financiamento
a rotina Nas instalações
Atividades de cooperação das instalações, por grau de importância
Instituições e empresas mais citadas pela oferta de recursos aos laboratórios
Intensidade do uso dos equipamentos
Petrobras Própria instituição
700
18,62%
600
Finep
500
12,52% Fundações estaduais de amparo à pesquisa 12,45% CNPq 9,06% Empresas privadas 7,34% Prestação de serviços 5,45% Capes 2,67% Outros 8,94%
400 300 200 100
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1400 1200 1000 800 600 400 200 0 At ivi da pe de d sq uis e a
22,95%
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Contínuo Alguns dias da semana Alguns dias do mês Esporádico
At iv de idad en es sin De o se nv de olv tec im no ent log o Pr es ias taç ão de tec se no rviç lóg os ico s ex ten A sã t i v ot ec idad no e d lóg e ica
n Baixo n Médio n Alto
900
Norte
1004
Como a amostra de instalações pesquisadas se distribui por áreas
Ciências Biológicas
Nordeste 170
os campos do conhecimento
26,15%
tit u
Centro-Oeste Sul
pr N ú ofi me s r de sio o d ap nai e oi s do Q o s pr ua ofi lifi s c de sio açã ap nai o oi s o
37,2%
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Fonte MCTI/CNPq/IPEA
pESQUISA FAPESP 232z 31
A
crise financeira do país e o ajuste fiscal feito pelo governo não projetam uma ampliação do orçamento para grandes instalações de pesquisa. Os resultados preliminares do levantamento inspiraram o desenho do programa Plataformas do Conhecimento, lançado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) no ano passado (ver Pesquisa FAPESP nº 222), mas ainda embrionário. “Para aumentar seu quinhão de financiamento, a ciência deveria mostrar resultados mais concretos para a sociedade. E isso é difícil de fazer com a pulverização atual de recursos”, avalia Fernanda de Negri. Na opinião do físico Antonio José Roque da Silva, professor da USP e diretor do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), vinculado ao MCTI, não há oposição entre o investimento em grandes e pequenos laboratórios, ainda que os recursos para infraestrutura sejam limitados. “As pesquisas necessitam de laboratórios em diferentes escalas, de maneira complementar”, afirma. “Podemos falar em três escalas: os pequenos laboratórios, quase individuais ou pertencentes a poucos grupos; os laboratórios intermediários e multiusuários, atendendo universidades e regiões; e as grandes instalações como síncrotrons ou fontes de nêutrons, para trabalhos diferenciados.” A decisão sobre o investimento em grandes laboratórios, diz, depende da capacidade financeira e da estratégia de cada país. 32 z junho DE 2015
José Roque está à frente de um desafio: a construção de uma nova fonte de luz síncrotron, batizada de Sirius, que será uma das primeiras de quarta geração no mundo, exigindo financiamento de R$ 1,3 bilhão. Ela abrirá uma nova fronteira para estudos sobre estrutura atômica de materiais. A previsão é de que o primeiro feixe de luz comece a operar em 2018. “Por enquanto, está tudo dentro do cronograma”, diz ele, que recebeu sinalização de que o projeto é prioritário. Não há O LNLS opera num modelo semelhanoposição entre te ao dos laboratórios nacionais dos Estados Unidos: o governo é o dono dos o investimento laboratórios e a operação não é feita por funcionários públicos, mas por uma orgaem grandes e nização independente, com flexibilidade para planejar, contratar e demitir. Esse pequenos modelo também é utilizado na Europa, laboratórios, em fontes de luz síncrotron como a Soleil, da França, e a Diamond, do Reino diz José Roque, Unido. Outra similaridade com os laboratórios nacionais norte-americanos é que do LNLS o LNLS atraiu para o entorno de seu acelerador outras instalações, voltadas para pesquisa em biocombustíveis, nanotecnologia e biociências, que aproveitam a estrutura de pesquisa e podem trabalhar em sinergia. “Quando o governo norte-americano lançou seu programa de nanotecnologia, os cinco centros do Departamento de Energia foram instalados em laboratórios nacionais”, diz José Roque. Outro projeto apontado como prioritário para o governo federal é a ampliação do Laboratório de Integração e Testes (LIT) do Inpe, que deve custar R$ 260 milhões até 2019. Criado há 27 anos, o LIT dispõe de um conjunto de instalações para montar, integrar e testar satélites artificiais. A princípio, o
fotos 1 eduardo cesar 2 léo ramos
A amostra estudada pelos pesquisadores do Ipea concentrou-se nas áreas de engenharias, ciências exatas e da terra, agrárias, biológicas e da saúde. As instituições com maior número de laboratórios analisados foram a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Instalações voltadas para ciências humanas e sociais, ainda que denominadas laboratórios, foram descartadas, por envolverem mais investimento em pessoal do que em infraestrutura. A concentração regional é notável, com 57% dos laboratórios no Sudeste e 23% no Sul. Apenas 13% dos dirigentes das instituições classificaram suas instalações como “avançadas e compatíveis com as melhores do exterior”, enquanto 22% as consideraram “avançadas para padrões brasileiros, mas distantes das do exterior”. Muitos laboratórios (69%) atuam como prestadores de serviços, mas a atividade é esporádica. O que mais de 80% deles fazem, de modo contínuo, é pesquisa científica. Menos de 20% receberam pesquisadores de empresas em 2012. As principais fontes de financiamento mencionadas, por volume de recursos, foram a Petrobras, a Finep e as fundações estaduais de amparo à pesquisa (FAPs).
laboratório estava capacitado para testar satélites de até 200 quilos. No início dos anos 2000, foi ampliado para receber satélites de até 2 toneladas, como os da série Cbers (satélite sino-brasileiro de recursos terrestres). Agora, as instalações de 22 mil metros quadrados serão ampliadas em cerca de 14 mil metros quadrados para testar satélites de até 6 toneladas, como os da família Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações Estratégicas (SGDC). O primeiro dessa série foi comprado de um fabricante europeu e deve ser lançado em 2016, mas o segundo SGDC, com previsão de lançamento para 2021, deve ser montado e testado no LIT. “Nossa preocupação é manter a capacidade brasileira em testes de satélite. A idade média de nossos servidores é de 54 anos e muitos vão se aposentar em breve”, diz Geilson Loureiro, chefe do LIT. Cem profissionais, incluindo servidores, bolsistas e estagiários, trabalham atualmente no laboratório. José Antonio Brum, professor do Instituto de Física Gleb Wataghin, da Unicamp, alerta que é preciso dividir o desafio de criar laboratórios mais robustos em duas vertentes. “Uma coisa é a big science. A criação de grandes laboratórios com equipamentos diferenciados exige grande fôlego financeiro, mas pode dar ao Brasil uma capacidade que ele não tem e abrir novas fronteiras para a comunidade científica”, diz Brum, que foi diretor-geral da Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncrotron (ABTLuS), organização social que operava o LNLS e laboratórios associados, no período de 2001 a 2009. “Outra coisa é montar facilities, laboratórios multiusuários que atendem demandas mais amplas e diversificadas da pesquisa, com equipamentos com alto grau
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1 Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, em Campinas: construção de uma nova fonte 2 Laboratório de Integração e Testes do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, em São José dos Campos: mais 14 mil metros quadrados de área
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de sofisticação, como microscópios eletrônicos, espectrômetros de massas e sequenciadores de geração mais recente”, explica. Os laboratórios multiusuários, observa Brum, servem para organizar a aplicação de recursos e garantir que vários pesquisadores tenham acesso a equipamentos que tornem sua pesquisa competitiva internacionalmente. “O Brasil não vai criar 10 fontes de luz síncrotron, mas pode ter várias grandes facilities atendendo a demandas locais.”
B
rum é coordenador adjunto do Programa de Equipamentos Multiusuários (EMU) da FAPESP, que entre 1998 e 2014 investiu cerca de US$ 140 milhões em equipamentos de uso compartilhado. Tanto no investimento em big science quanto em facilities, afirma Brum, o Brasil está atrasado e persiste a mentalidade de prover equipamentos para grupos individuais. “Agências financiadoras como a FAPESP estão tentando quebrar isso, financiando a compra de equipamentos para múltiplos usuários e exigindo contrapartidas das instituições e universidades, como a garantia de pessoal qualificado para a operação dos laboratórios.” Além de pessoal qualificado, a FAPESP também exige das universidades contrapartidas relacionadas a seguro e manutenção dos equipamentos, construção de instalações e a existência de um plano de gestão. Quarenta e cinco por cento dos dirigentes de instalações consideraram adequada a formação de seus pesquisadores e 20%, inadequada. Já a avaliação do pessoal técnico e administrativo teve desempenho melhor: 69% classificaram como apropriada a quantidade de profissionais e 72% a qualidade. Tal avaliação favorável contrasta com o que se considera um dos grandes gargalos para a expansão da infraestrutura de pesquisa: a formação de recursos humanos com alta qualificação, treinados para a operação dos equipamentos e também para a gestão dos laboratórios. O Laboratório Central de Tecnologias de Alto Desempenho (LaCTAD) da Unicamp é uma exceção a essa regra. Inaugurado em 2013 e dotado de equipamentos destinados a pesquisas em genômica, bioinformática, proteômica e biologia celular, a facility tem uma equipe de pesquisadores cuja função não é produzir conhecimento, mas operar os equipamentos e ajudar os usuários do laboratório a fazer o desenho de seus experimentos. A líder da equipe é Sandra Krauchenco, doutora em Bioquímica pela Unicamp. “A Sandra e os quatro coordenadores de área do LaCTAD, embora sejam pesquisadores, não são avaliados pela métrica tradicional da ciência. Não importa se publicam papers, mas sim se prestam um serviço de alta qualidade”, diz Paulo Arruda, professor do Instituto de Biologia da Unicamp, que coordena o LaCTAD. A gestão do laboratório, que funciona ininterruptamente, repESQUISA FAPESP 232z 33
eduardo cesar
quer planejamento contínuo. O laboratório presta serviços para usuários de qualquer parte do país e cobra por isso. No edital do programa Equipamentos Multiusuários lançado em 2009, a FAPESP inovou ao induzir a formação de facilities. O LaCTAD foi um dos exemplos. A Fundação investiu R$ 5,5 milhões na compra dos equipamentos, enquanto a construção do prédio e a contratação dos funcionários couberam à universidade.
R
oger Chammas, professor da Faculdade de Medicina da USP e coordenador da Rede Premium (acrônimo de Programa Rede de Equipamentos Multiusuários), considera essa mudança na abordagem dos recursos humanos crucial para a transição a uma estrutura de facilities e grandes laboratórios. “O pesquisador brasileiro quer ter um equipamento só para seu uso não para ter status ou porque essa é a tradição. Ele faz isso para se defender”, afirma. “É o jeito de garantir que ele terá o equipamento funcionando na hora de fazer seu experimento. Sem pessoal técnico especializado que deveria ser fornecido pelas universidades, o equipamento pode quebrar se for franqueado para outros usuários.” A Rede Premium tem um modelo peculiar para organizar o uso de equipamentos multiusuários. Ela não dispõe de uma instalação física centralizada, como o LaCTAD. A rede, que recebeu recursos da FAPESP para vários de seus laboratórios, tem equipamentos espalhados por 26 instalações da FM-USP, utilizados de forma compartilhada. O acesso é centralizado virtualmente num site da internet, onde todas as solicitações de serviços são feitas. Chammas admite que o uso dos aparelhos por múltiplos usuários ainda ocorre de forma desigual na FM-USP. “Alguns laboratórios estão bem adaptados. Mas em outros ainda há dificuldades para operar nesse esquema.” Outra facility que teve a criação induzida pelo edital de 2009 da FAPESP foi o Centro de Facilidades de Apoio à Pesquisa (Cefap) da USP, que funciona no Instituto de Ciências Biomédicas. Em 2009, o centro recebeu cerca de US$ 4 milhões da FAPESP para a compra dos equipamentos e atende usuários de instituições de todo o estado. Com sete funcionários e um gerente, contingente insuficiente para operar os equipamentos de modo contínuo, o Cefap busca organizar o uso da infraestrutura colocando obrigações e direitos para o coordenador do equipamento e para os usuários, que têm que ser habilitados. O foco é a figura do “superusuário”, pesquisador com treinamento para operar o equipamento sem ajuda. Outra estratégia é a criação do Cefap-Pluma, estrutura virtual que pretende integrar ao centro outros equipamentos dispersos por laboratórios do ICB. “Nossa cultura ainda é a de não ter laboratório de uso múltiplo mas de pulverizar os investimentos em diversas 34 z junho DE 2015
instalações”, diz Carlos Menck, professor do ICB e coordenador do Cefap. “A ideia do Cefap-USP é quebrar essa cultura, de modo que os pesquisadores tenham acesso a grandes equipamentos de prestação de serviços ou multiusuários.” O levantamento do Ipea será lançado na forma de livro no segundo semestre. A obra vai detalhar a situação da infraestrutura de pesquisa nos setores aeronáutico, de defesa, agropecuário, de tecnologia da informação, da saúde e do petróleo. n
Laboratório Central de Tecnologias de Alto Desempenho (LaCTAD), da Unicamp: equipamentos multiusuários reunidos num mesmo endereço
Instituições mais comprometidas Agências dos EUA e do Reino Unido exigem contrapartidas financeiras para investir em equipamentos Agências de fomento como a
2011, exigindo mais contrapartidas
norte-americana National Science
financeiras das instituições.
Foundation (NSF) ou os Research
Por exemplo, o Biotechnology
Councils do Reino Unido (RCUK)
and Biological Sciences Research
exigem contrapartidas financeiras
Council (BBSRC) oferece
das instituições de pesquisa para
financiamento de no máximo 50% do
financiar equipamentos. No caso do
valor de equipamentos que custem
programa de equipamentos de
entre £ 10 mil e £ 135 mil
pesquisa multiusuários da NSF, que é
(de R$ 48,5 mil a R$ 656 mil).
a principal organização de apoio à
No caso de equipamentos acima
pesquisa básica nos Estados Unidos,
de £ 135 mil, o BBSRC prioriza
as instituições e universidades têm
o financiamento de equipamentos
de contribuir com 30% da proposta,
multiusuários e também
que pode ter valor de até US$ 4
divide os custos meio a meio
milhões e contemplar a compra ou
com as instituições. Mas pode
o desenvolvimento de equipamentos.
concordar em financiar até 100%
Os RCUK, que reúnem sete conselhos,
em casos excepcionais, quando a
cada qual responsável pelo apoio à
aquisição for aumentar a capacidade
pesquisa em um determinado campo
de atender necessidades estratégicas
do conhecimento, mudaram as regras
importantes da comunidade
para fomento de equipamentos em
científica vinculada ao BBSRC.
Colaboração y
Medições competitivas Inmetro busca universidades para integrar rede nacional em metrologia Bruno de Pierro
ilustraçãO zé vicente
U
ma iniciativa para ampliar a cooperação entre universidades e empresas no campo da metrologia, área que estuda e padroniza pesos e medidas e baliza a qualidade de produtos e processos, começa a tomar impulso com a expansão de uma rede de laboratórios criada em 2013 pelo Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro). Um edital lançado em parceria com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), com aporte de R$ 3 milhões, deve incorporar ainda neste ano até sete novos grupos de pesquisa à Rede de Laboratórios Associados do Inmetro para Inovação e Competitividade (Relai). Concebida inicialmente como projeto-piloto, a rede hoje é formada pelo Laboratório de Nanoespectroscopia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pelo Instituto de Materiais Cerâmicos da Universidade de Caxias do Sul (UCS). O resultado do edital, cujas inscrições se encerraram em abril, será divulgado em outubro. Os grupos contemplados poderão utilizar as instalações do centro de pesquisa do Inmetro em Xerém, no Rio de Janeiro. Em um comunicado, o físico Carlos Alberto Aragão, diretor de Inovação e Tecnologia do instituto, disse que a estratégia da rede é fortalecer a articulação entre universidades, instituições e empresas em pesquisas envolvendo metrologia e áreas próximas, como a ciência dos materiais. Para Idelazil Cristina Nobre pESQUISA FAPESP 232 z 35
Silva, coordenadora-geral de programas estratégicos da diretoria de programas e bolsas da Capes, é também necessário ampliar a formação de recursos humanos e o envolvimento de pesquisadores em projetos inovadores. “Além disso, a ampliação da rede é uma oportunidade de compartilhar custos, diminuindo o risco tecnológico da inovação”, diz Idelazil. Um dos requisitos para fazer parte da Relai é que o laboratório estabeleça parcerias com o setor produtivo. nanometrologia
Um dos braços da rede, o Laboratório de Nanoespectroscopia (LabNS) da UFMG, colabora com um grupo do setor de mineração para resolver o problema da possível contaminação do ar durante o processo de extração mineral. O projeto, explica o físico Ado Jório, um dos coordenadores do laboratório, pretende desenvolver toda a metodologia para medir a quantidade de nanopartículas presentes no ar e identificar quais delas são decorrentes de poluição gerada pela mineração. “Queremos avançar na área de nanometrologia, que é a nanotecnologia orientada para medições. Junto com o Inmetro, podemos contribuir para o desenvolvimento industrial gerando novos processos”, diz Jório. Uma das áreas de interesse do seu grupo é a aplicação de uma técnica conhecida como espectroscopia Raman na identificação de propriedades de nanotubos de carbono. A abordagem abriu caminho a novas
aplicações para os nanotubos e rendeu a Jório colaborações com mais de uma centena de grupos no exterior (ver Pesquisa FAPESP nº 196). Outro projeto em andamento no LabNS é voltado para o uso da espectroscopia no diagnóstico clínico. “Os exames de sangue são feitos por meio de testes químicos. Buscamos uma forma de análise utilizando a luz para determinar a composição de elementos físico-químicos”, explica Jório. O pesquisador e sua equipe também tentam aplicar a técnica na detecção do acúmulo de proteínas beta-amiloides, que desempenham um
"A rede é uma oportunidade de compartilhar custos, diminuindo o risco tecnológico da inovação", diz Idelazil Cristina
O desafio da precisão A metrologia é uma das áreas de
Um dos desafios permanentes
gasodutos, que são muito maiores”,
pesquisa mais tradicionais do Instituto
do instituto é aprimorar a confiabilidade
explica. A diferença entre as
de Pesquisas Tecnológicas (IPT)
na calibração de equipamentos
condições ideais e reais pode provocar
de São Paulo. “Esse campo do
metrológicos. Por exemplo,
desempenhos metrológicos diferentes
conhecimento é essencial para avaliar,
na calibração dos medidores de gás
do medidor, gerando erros de medição
por meio da medição de desempenho,
que são utilizados na tarifação do
e, consequentemente, prejuízos
se um novo produto ou processo
gás natural transportado, transferido
financeiros. “Alguém pode estar
realmente é inovador em relação a uma
e consumido em residências, indústrias
perdendo muito dinheiro com isso”,
versão anterior. É um dos alicerces
e termelétricas. No Brasil, explica
afirma. No exterior, já existem
do desenvolvimento científico
Kawakita, os equipamentos utilizados
normas e regulamentos
e tecnológico de um país”, avalia
para medir o gás natural são calibrados
que tratam essa questão.
Kazuto Kawakita, diretor do Centro
em laboratórios em condições próximas
de Metrologia Mecânica, Elétrica e de
do ideal e com ar a baixa pressão.
Financiadora de Estudos e Projetos
Fluidos do IPT. A Instituição é pioneira
“O problema é que esses medidores
(Finep), um fabricante de medidores
no campo da metrologia no país.
trabalham em pressões de operação de
em Itu (SP), cujo nome não é revelado,
36 z junho DE 2015
Uma parceria entre o IPT, a
ilustrações zé vicente foto eduardo cesar
papel central no desenvolvimento da doença de Alzheimer. “Utilizando a óptica, queremos diagnosticar precocemente esse quadro clínico”, afirma. A pesquisa científica em metrologia no Brasil está concentrada em institutos de pesquisa vinculados ao governo federal. Além do Inmetro, fazem parte desse sistema o Instituto de Radioproteção e Dosimetria, responsável pela metrologia para radiações ionizantes (raios X e gama), e o Observatório Nacional, no Rio de Janeiro, voltado para a metrologia em tempo e frequência nas áreas de astronomia e geofísica. Às vezes são estabelecidas colaborações entre essas instituições, universidades, centros de pesquisas e empresas, resultando na formação de parcerias em áreas específicas, como a Rede Brasileira de Metrologia Legal e Qualidade e a Rede de Metrologia Química, ambas criadas recentemente. Uma das experiências pioneiras é a Rede Metrológica do Rio Grande do Sul, formada em 1992. A iniciativa reúne laboratórios do estado e do Uruguai, além de instituições e empresas de outras partes do Brasil.
e companhias interessadas na tecnologia, entre elas a Petrobras e a Comgás, busca criar um protótipo de um novo medidor de gás e um circuito de testes especial para realizar calibrações com gás a alta pressão. “No lugar do gás natural, vamos utilizar o CO2, que, mesmo em uma pressão mais baixa, consegue simular as condições presentes na operação de um gasoduto em uma pressão mais elevada”, conta Kawakita.
"Queremos avançar na área de nanometrologia, que é a nanotecnologia orientada para medições”, diz Ado Jório
Válvula (em amarelo) para medir vazão de gás em linha de teste do laboratório de metrologia do IPT, em São Paulo
A principal dificuldade do setor, explica Humberto Siqueira Brandi, diretor de metrologia científica do Inmetro, está relacionada ao custo elevado da manutenção de equipamentos. “Outro problema é a necessidade de recursos para ampliação dos laboratórios”, explica ele. Apesar disso, Brandi afirma que as atividades de pesquisa e desenvolvimento, iniciadas em 2003 no Inmetro, têm avançado. Em 2002, diz ele, o instituto tinha apenas dois doutores em seu quadro funcional; hoje, são aproximadamente 250. “O Inmetro tem agora laboratórios bastante modernos, como, por exemplo, o Centro de Microscopia Eletrônica”, diz Brandi. vitrocerâmicos
Marcio Ramos, assessor de articulação institucional do Inmetro, explica que os projetos apoiados pela rede não devem necessariamente priorizar apenas as áreas diretamente ligadas à metrologia. “Vamos dar espaço para campos do conhecimento com potencial para aumentar a competitividade das empresas”, diz ele. No Instituto de Materiais Cerâmicos da UCS, por exemplo, uma pesquisa procura desenvolver materiais vitrocerâmicos para a indústria petroquímica a partir de rochas vulcânicas ácidas que são disponíveis em larga escala no país. O projeto é realizado em colaboração com uma empresa brasileira no ramo da construção civil, cujo nome não é revelado. “Vitrocerâmicos não são uma novidade. Datam da década de 1950. Mas a produção utilizando esse tipo de rocha é um campo pouco pesquisado no mundo”, diz José Vitório Emiliano, pesquisador do instituto. “Esse material é muito resistente a ataques químicos e à abrasão e pode ser usado para revestir tubos utilizados na indústria petroquímica”, completa. Em outra iniciativa, o instituto da UCS encontrou um parceiro além do Inmetro, o Federal Institute for Materials Research and Testing (BAM), da Alemanha. Tanto a instituição brasileira quanto sua similar alemã estão interessadas em materiais de referência para calibração de equipamentos utilizados na avaliação de propriedades termofísicas em temperaturas superiores a 1.400 graus Celsius. “Hoje contamos com materiais de referência limitados a temperaturas próximas a mil graus Celsius", diz Emiliano. n pESQUISA FAPESP 232 z 37
Bioenergia y
Corrida de obstáculos Estudo indica que o Brasil, apesar da importância como produtor de biocombustíveis, tem posição discreta em redes de pesquisa do etanol celulósico
Planta de etanol celulósico da GranBio em São Miguel dos Campos, Alagoas: a meta é produzir 80 milhões de litros por ano
38 z junho DE 2015
granbio
A
corrida para produzir a preços competitivos o etanol de segunda geração, biocombustível extraído da celulose de resíduos agrícolas como bagaço de cana, sabugo de milho e madeira, promete multiplicar a oferta de energia renovável, mas ainda envolve a superação de entraves tecnológicos. Um artigo publicado na revista Scientometrics indica que a ciência brasileira está em situação de desvantagem nessa corrida em relação a países competidores. Assinado por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo (USP), o trabalho mapeou artigos científicos publicados no mundo durante 30 anos sobre etanol de segunda geração. Demonstrou que o Brasil, embora seja o segundo maior produtor de etanol de primeira geração, obtido da cana-de-açúcar, não exibe essa mesma proeminência em redes internacionais de colaboração científica dedicadas a vencer gargalos para a produção do etanol de celulose.
Os sistemas de inovação de países como Estados Unidos, China e Alemanha têm presença mais expressiva nessas redes do que o Brasil, segundo a pesquisa. “O conhecimento científico raramente é produzido de forma isolada e depende de colaborações entre várias instituições e países para avançar”, diz o autor do artigo, o economista Luiz Gustavo Antonio de Souza, que atualmente faz estágio de pós-doutorado no Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético (Nipe), da Unicamp. O paper é resultado de sua tese de doutorado na Esalq, sob orientação da professora Márcia Azanha. No caso do etanol de segunda geração, o trabalho em rede é relevante. “Não há uma tecnologia consagrada, mas pacotes de alternativas em estudo. A exploração das oportunidades depende do trabalho conjunto de vários grupos”, afirma. O estudo analisou 6.053 artigos científicos da base de dados Web of Science publicados até 2012. Todos estavam vinculados a palavras-chave que remetem a campos de investigação do etanol de segunda geração, como “pré-tratamento”, operação para desmontar a estrutura vegetal do material celulósico; ou “hidrólise enzimática”, rota de transformação da celulose em glicose. O passo seguinte foi identificar, nos artigos em colaboração, quais eram os países, instituições e pesquisadores que trabalhavam juntos com frequência. As redes foram representadas na forma de novelos, nos quais os fios que ligam países ou instituições são tão mais grossos quanto a cooperação é mais frequente (ver página 40). A base de dados Web of Science mostra que, ao longo de 30 anos, 103 países tomaram parte na produção do conhecimento sobre etanol de segunda geração. Os Estados Unidos lideram, com 23% do total de papers. Em seguida aparecem a China (9,8%) e o Brasil (4,9%). Em termos de colaboração, os norte-americanos dominam. Alemanha, França, Reino Unido e Suécia vêm na sequência. China, Japão, Índia e Brasil, embora publiquem mais que estes países europeus, estão menos conectados. A pesquisa brasileira se destaca quando a análise focaliza instituições. A USP é a terceira instituição
mais forte em colaboração, atrás do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos e da Universidade da Califórnia. Instituições como Unicamp e Universidade Federal de São Carlos também aparecem no gráfico das instituições. “Os esforços do Brasil se concentram em poucas instituições”, diz Luiz Gustavo. A China tem uma quantidade de artigos semelhante à do Brasil e, na categoria das instituições, aparece em boa situação. “A estratégia da China é se aproximar de quem tem capacidade tecnológica, no caso os Estados Unidos”, explica. INICIATIVAS
O esforço brasileiro de pesquisa em etanol de segunda geração se distribui por algumas iniciativas. Uma delas, baseada predominantemente na pesquisa feita em universidades, está vinculada ao Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen), criado em 2008 para aprimorar a produtividade do etanol e avançar em ciência básica e em desenvolvimento tecnológico. Glaucia Souza, professora do Instituto de Química da USP e uma das coordenadoras do Bioen, diz que o destaque obtido pela USP e pelo estado de São Paulo é fruto de investimento recente. “Como são muitos os projetos temáticos no âmbito do Bioen, é comum haver o envolvimento de grupos de outros países. Com o etanol de segunda geração isso também aconteceu”, afirma a pesquisadora, referindo-se, por exemplo, ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (Inct) do Bioetanol. Coordenado por Marcos Buckeridge, professor da USP, o Inct do Bioetanol mantém colaborações com pesquisadores dos Estados Unidos, Rússia e Holanda, entre outros. Glaucia também cita o Centro de Processos Biológicos e Industriais para Biocombustíveis (CeProBIO), que envolve parceria com a União Europeia e é liderado por Igor Polikarpov, do Instituto de Física de São Carlos da USP. No campo da aplicação tecnológica, o Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), em Campinas, montou uma planta-piloto de etanol de segunda geração para avaliar tecnologias propostas e comercializadas no mundo. pESQUISA FAPESP 232 z 39
Já na pesquisa empresarial, uma iniciativa importante é o Plano de Apoio à Inovação Tecnológica Industrial dos Setores Sucroenergético e Sucroquímico (Paiss), lançado em 2011 pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), que disponibilizou R$ 3 bilhões para novas tecnologias de processamento da biomassa de cana. Na carteira de projetos, há algumas plantas de demonstração para produção de etanol de segunda geração: a da empresa GranBio, instalada em 2014 em São Miguel dos Campos, em Alagoas; a da Raízen, que começou a produzir na Usina Costa Pinto, em Piracicaba; e a da Abengoa, que começa a operar em 2016 em Pirassununga. O Centro de Tecnologia Canavieira (CTC) tem uma planta de escala menor, no município paulista de São Manoel.
Redes de colaboração científica Países (abaixo) e instituições (à dir.) mais conectados por laços de cooperação na pesquisa do etanol celulósico Áustria
Japão
China
Austrália Índia Estados Unidos
Alemanha
Dinamarca
Israel Canadá
Suíça
Chile
BRASIL
Argentina
empresas estrangeiras
Em comum, as plantas de demonstração trabalham com tecnologias desenvolvidas fora do país. Como não havia no Brasil conhecimento maduro para produzir etanol celulósico, o BNDES e a Finep optaram por atrair empresas estrangeiras. “O Brasil tem as vantagens naturais necessárias para que as tecnologias de produção de etanol celulósico se desenvolvam. Temos recursos naturais e biomassa competitiva, de bagaço e palha de cana”, diz Artur Milanez, gerente da área de biocombustíveis do BNDES. “Várias empresas estrangeiras queriam entrar no nosso mercado. O Brasil tem 400 usinas de cana que passam cinco meses do ano ociosas por conta da entressafra e algumas delas ainda não utilizam a fibra presente no bagaço e na palha. Há muito espaço para celebrar parcerias”, afirma. A expectativa agora é de que pesquisadores brasileiros participem do esforço para solucionar gargalos tecnológicos e adaptar às condições do país tais tecnologias, que foram concebidas para tipos de biomassa disponíveis no hemisfério Norte, como palha de milho e de trigo. A planta da GranBio, a maior do mundo em etanol celulósico extraído de bagaço e palha de cana, licenciou tecnologias de vários países para iniciar as operações. A empresa DSM, da Holanda, fornece leveduras, e a Novozymes, da Dinamarca, enzimas para hidrólise. A italiana Beta Renewables é a responsável pelos sistemas de pré-tratamento da biomassa. 40 z junho DE 2015
Reino Unido
Bélgica
Itália
Suécia
Espanha
Portugal Holanda
A segunda geração não tem para o Brasil o caráter estratégico que tem para outros países, diz Antonio Bonomi, do CTBE
França Finlândia
“Desenvolvemos parceria estreita com a empresa norte-americana American Process, de tecnologias e processos industriais”, diz Gonçalo Amarante Guimarães Pereira, sócio-fundador da empresa e professor do Instituto de Biologia da Unicamp. A GranBio tem participação na American Process. “Desenvolvemos na GranBio uma levedura, baseada em cepas brasileiras utilizadas na primeira geração, que já foi certificada e será usada na indústria no segundo semestre”, diz ele. A GranBio investiu US$ 265 milhões na usina e o BNDES, R$ 300 milhões. O panorama do artigo da Scientometrics é real, afirma Gonçalo, mas ele o interpreta de modo otimista. Segundo ele, a desvantagem brasileira em redes internacionais não é primazia da pesquisa em bioenergia, mas uma fragilidade da ciência do país. “Estar conectado a redes é importante, mas isso só avança quando há perspectiva de financiamentos cooperativos. Hoje, com o petróleo barato, o investimento em energias reno-
O SIGNIFICADO DOS NOVELOS Os fios que ligam países e instituições engrossam conforme o volume de artigos científicos publicados em parceria bilateral, enquanto o tamanho dos pontos (nós) reflete o número total de conexões realizadas por meio de parcerias entre países e instituições. Os dados são da base Web of Science até 2012 Universidade do Estado de Michigan (EUA)
Departamento de Agricultura (EUA)
Universidade de Wisconsin (EUA) Laboratório Nacional de Energia Renovável (EUA)
Universidade da Califórnia (EUA)
CNRS (França)
Universidade British Columbia (Canadá) Universidade Lund (Suécia)
Academia Chinesa de Ciências
USP Fonte luiz gustavo Antonio de souza/Unicamp
váveis ficou mais escasso. Enxergo para a GranBio uma janela de oportunidade para liderar o setor. Apostamos no etanol de segunda geração num momento em que outros interessados estão com menor apetite para o risco.” A usina da GranBio está em fase de comissionamento, com a meta de alcançar capacidade plena até o final do ano. O objetivo é gerar 80 milhões de litros de etanol por ano. Redes de colaboração, na definição dos autores do artigo, conectam os sistemas de inovação dos países e envolvem cientistas e empresas tanto na geração de conhecimento quanto na exploração comercial de tecnologias. O Brasil, à parte a dificuldade em participar de redes de pesquisa, também sofre para envolver o setor empresarial. A análise é de José Maria Ferreira Jardim da Silveira, professor do Instituto de Economia da Unicamp. Ele é o pesquisador responsável pelo Projeto Temático, no âmbito do Programa Bioen, que resultou no artigo, com a participação da professora Ester Dal Poz, da Unicamp.
Ambos são coautores do paper. O pesquisador vê dificuldade na articulação entre universidades e empresas. “No campo da ciência, o país é muito bom. Quando se olha para o desenvolvimento e a comercialização de tecnologia, estamos defasados”, afirma José Maria. Experiências distintas
Antonio Bonomi, coordenador de Avaliação Tecnológica do CTBE, em Campinas, alerta que a situação do Brasil é diferente da dos outros países e que comparar experiências tão distintas pode ser impróprio. “Nosso etanol de primeira geração é um caso de sucesso. A segunda geração, apesar das vantagens, não tem para nós o caráter estratégico que tem para os outros países. Já para a Europa e a própria China, é a única alternativa para uma produção em larga escala”, diz. “As usinas brasileiras queimam o bagaço e a palha de cana para gerar energia, o que reduz os custos de produção, além de ampliar a redução da
emissão de gás estufa do etanol brasileiro. Só fará sentido usar esses resíduos para fabricar etanol celulósico quando o custo for ainda menor.” Ele também enfatiza a dificuldade de envolver nas redes os fabricantes de etanol, que se ressentem de uma crise duradoura. “As empresas brasileiras do setor estão em situação difícil e isso não se deve apenas à política que manteve o preço da gasolina congelado por muito tempo. Elas tiveram perda de produtividade associada a fatores climáticos e à introdução da colheita mecanizada”, conta Bonomi. “Enquanto isso, outros países se organizam para patentear e comercializar tecnologias de etanol de segunda geração.” O estudo da Scientometrics mapeou os pesquisadores mais ativos em produção científica e colaboração. O primeiro da lista é Lee Lynd, da Thayer School of Engineering do Dartmouth College, que mantém laços com a pesquisa brasileira desde 2008. A convite da FAPESP, já participou de diversos workshops e eventos do Bioen (ver Pesquisa FAPESP nº 163). O economista Guilherme de Oliveira Marques, que está fazendo doutorado na Unicamp sobre o impacto para a indústria da incorporação de ferramentas da biotecnologia, observa que o número de conexões que um país estabelece com uma rede é menos importante do que a qualidade desses contatos. “A participação em redes científicas não necessariamente implica em produção de tecnologia. A tradução do conhecimento científico em capacidade tecnológica está longe de ser trivial”, afirma. Na sua opinião, estar conectado a nós mais centrais pode criar canais para fluxo de conhecimento científico e tecnológico. “Nesse sentido, é preciso avaliar a evolução da inserção brasileira ao longo do tempo. A absorção, incorporação e adaptação de conhecimento gerado lá fora pode ser um passo importante na construção de capacidades internas, que permitam a alavancagem do Brasil a posições de maior destaque no futuro.” n Fabrício Marques
Projeto Desenho organizacional do programa Bioen: propriedade intelectual, mecanismos de incentivo e avaliação e impactos (nº 2008/58041-6); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Programa Bioen – Projeto Temático; Pesquisador responsável José Maria Ferreira Jardim da Silveira (Unicamp); Investimento R$ 316.200,13 (CNPq/FAPESP).
pESQUISA FAPESP 232 z 41
Avaliação y
O melhor de cada um Departamento do Instituto de Química da USP desenvolve método para medir o desempenho de seus docentes
M
ais de 70 docentes de um dos departamentos do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP) foram submetidos recentemente a um processo de avaliação baseado em critérios como a produção científica, a capacidade individual de captar recursos para pesquisa, as orientações de alunos, supervisões de pós-doutorados e participações em bancas, além de atividades didáticas, administrativas, de cultura e de extensão em que se engajaram nos últimos cinco anos. O resultado da iniciativa é uma espécie de ranking (ver tabela), no qual os professores, todos eles vinculados ao Departamento de Química Fundamental do instituto, são identificados apenas por códigos. Seus nomes não são divulgados para o público externo – embora, dentro da instituição, a posição de todos seja mais ou menos conhecida. Nos últimos 10 anos, a avaliação foi realizada quatro vezes. Na mais recente, que tem dados de 2009 a 2014, os nove últimos docentes da lista, aqueles que tiveram as piores pontuações, foram convidados a participar de reuniões com o chefe do departamento, o professor Mauro Bertotti. Eles obtiveram um escore geral em torno de 2 pontos. A média do instituto foi de pouco mais de 6 pontos e o primeiro da lista ultrapassou os 15 pontos (ver tabela). “Reiteramos que não se tratava de punir ninguém e que o intuito da reunião era saber de que forma o departamento poderia ajudá-los a melhorar o desempenho”, conta Bertotti, que dividiu a tarefa em duas reuniões, uma com quatro professores e outra com os cinco restantes. Embora alguns dos docentes tenham feito ressalvas aos critérios da avaliação, a maioria buscou justificar seus indicadores ruins. Segundo Bertotti, um professor argumentou que estava difícil recrutar alunos para trabalhar em seu laboratório porque sua área é pou-
16 n Orientações n Atividades administrativas
14
n Produção n Captação de recursos n Cultura e extensão
12
n Atividades didáticas
10
8
6
4
2
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infográficos ana paula campos
co atraente para os jovens pesquisadores. “Nos prontificamos a ajudá-lo a arregimentar estudantes e sugerimos que se unisse a outros grupos para não trabalhar sozinho”, comenta o chefe do departamento. Já os mais antigos na carreira se queixaram da dificuldade de competir com os mais jovens, vistos como agressivos na busca por produtividade científica e recursos para pesquisa. “A queixa é que a regra do jogo mudou e os mais jovens levam vantagem porque dominam melhor esse novo ambiente”, afirma Bertotti, lembrando que, para alguns poucos professores da geração mais antiga do Departamento de Química Fundamental, a tarefa de publicar artigos em revistas de prestígio frequentemente era vista como menos prioritária do que garantir uma formação de excelência para os alunos. A experiência, por enquanto, gerou poucos efeitos concretos. Um exemplo: um dos professores com avaliação desfavorável, que admitira ter parado de fazer pesquisa, aceitou abrir mão do espaço de seu laboratório quando surgiu uma discussão sobre a realocação de instalações de pesquisa no Instituto de Química. Mas seria parcial medir o alcance da avaliação apenas pelos resultados palpáveis, já que, desde o início, se estabeleceu que ninguém
seria premiado ou punido. A iniciativa tem relevância porque sua metodologia foi construída e negociada nos últimos 10 anos pelos próprios docentes, num esforço, ainda incomum na universidade brasileira, para melhorar o desempenho do grupo. “É um instrumento de autorregulação, no qual os docentes se posicionam em relação a seus pares”, diz Bertotti. “Trata-se de criar parâmetros de avaliação da atividade docente, com pesos amplamente discutidos e definidos pela comunidade e que sejam compatíveis com a missão institucional, com o objetivo de sistematizar informações, produzir diagnósticos e valorizar recursos humanos e financeiros. A sociedade sustenta a universidade pública e cabe a ela demonstrar que os investimentos estão sendo geridos de modo responsável”, destaca. Para Guilherme Andrade Marson, professor do IQ-USP e um dos membros da Comissão de Avaliação do Desempenho Docente, o debate dos critérios obrigou os membros do departamento a refletirem sobre a natureza de seu trabalho e o que consideram um padrão de excelência. “A existência do processo de avaliação é um grande ganho. O instrumento mostra o
que cada docente faz de melhor e foi pensado para melhorar a qualidade do que fazemos, não para promover uma caça às bruxas”, pondera. O esforço foi coletivo, mas esteve longe de ser consensual. “A discussão no conselho do departamento sobre os critérios teve de ser definida pelo voto”, lembra Bertotti, referindo-se à falta de entendimento sobre o uso de indicadores como o fator de impacto de publicações e a avaliação dos cursos feita pelos alunos. “O importante é ter prevalecido a ideia de que a avaliação é importante”. Outro efeito a considerar é o impacto causado no ânimo dos pesquisadores mais jovens. “É um estímulo trabalhar num departamento que valoriza o mérito”, diz Pedro Cury Camargo, 33 anos, professor do IQ-USP desde 2011. A construção do processo de avaliação remonta ao início dos anos 2000, quando Henrique Eisi Toma era chefe do Departamento de Química Fundamental e divulgava na internet o número de publicações indexadas de cada docente e outras informações. “Havia um desconforto em relação ao desempenho do departamento medido pela contagem de publicações da forma divulgada nos anuários da USP, indicando performance superior da mé-
Performance Mensurada
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O desempenho dos 71 docentes do Departamento de Química Fundamental do Instituto de Química da USP entre 2009 e 2014. A identidade dos docentes foi protegida por códigos.
Quanto vale cada atividade Como funciona o método de avaliação criado pelo Departamento de Química Fundamental do IQ-USP Administração
Cultura e extensão
Peso atribuído a cada participação em comissões
Peso atribuído a cada tipo de atividade
e trabalho em cargos de chefia e diretoria
Diretor
5,0
Membro de corpo editorial
5,0
Chefe de departamento
4,0
Organização de eventos
4,0
Presidente de comissão estatutária
3,0
Cursos de curta duração
3,0
Presidente de outras comissões
1,5
Divulgação científica
2,0
Membro de comissão estatutária
1,0
Prêmios
1,5
Membro de outras comissões
0,5
Bolsa tutoria
1,0
Aparições na mídia
0,5
Produção
Orientações e bancas
Peso atribuído a cada tipo de produção
Peso atribuído a cada tipo de atividade
Primeira versão
científica e acadêmica
Livro
4
Doutorado
2,0
Capítulo
2
Mestrado
1,0
Patente
2
Bancas
1,0
Bolsa produtividade
2
Supervisão de pós-doutorado
0,5
Artigo
*
Iniciação científica
0,5
*Para os artigos, o valor equivale ao fator de impacto da revista publicada Captação de recursos
atividades didáticas
Peso atribuído à função desempenhada
A carga horária semanal de cada disciplina de
em cada projeto
graduação e de pós-graduação é multiplicada por 1,2, cumulativamente, em cada uma dessas
Coordenação
2
Membro
1
situações:
1o
Disciplina foi ministrada no período noturno ou aos sábados
2o
Disciplina obteve nota maior ou igual à média do semestre no Programa de Avaliação (Padiq) feito pelos alunos
3o
Disciplina tem mais de 50 alunos por docente
Os valores arrecadados em cada projeto são divididos e atribuídos da seguinte forma: Se o projeto tem só um membro, atribui-se a ele 100% do valor. Se tem vários membros, o coordenador fica com 50% e os demais dividem os outros 50% . O montante é dividido pelos anos em que o projeto esteve ativo
Somam-se os valores das disciplinas ministradas por semestre e é feita uma média
Peso para cada faixa de valores 0 a R$ 100.000,00
1
R$ 100.001,00 a R$ 500.000,00
2
A partir de R$ 500.001,00
3
Fonte comissão de avaliação do desempenho docente
44 z junho DE 2015
dia dos docentes de outra unidade congênere”, recorda-se o professor Ivano Gebhardt Rolf Gutz, que era vice-chefe do departamento nesse período. “Era uma época em que a Plataforma Lattes estava começando e havia dificuldade em reunir informações sobre a produção e demais atividades de cada um.” Tentou-se integrar a coleta de dados da secretaria de pós-graduação, aproveitada nos relatórios para a Capes, com a da biblioteca do Conjunto das Químicas e a do departamento, e se criou até um endereço de e-mail para o qual os pesquisadores deveriam enviar informações, mas a estratégia não deu certo. “Observávamos uma heterogeneidade no departamento, com alguns professores se dedicando mais ao ensino do que à pesquisa”, recorda-se Gutz.
dos dois semestres do ano. Para a pós-graduação, o cálculo não contempla a nota do Padiq, que é aplicado só na graduação
Em 2004, Ivano Gutz assumiu a chefia do Departamento de Química Fundamental e decidiu implantar o que seria a primeira versão do processo de avaliação com um conjunto abrangente de indicadores, já contemplando as atuais categorias de desempenho (ver quadro). A ideia era atribuir pontos a todo tipo de atividade feita pelos docentes e arbitrar um modo de compilar os números, de modo que os professores fossem reconhecidos mesmo se não tivessem grande performance em pesquisa. Quem ministrasse boas aulas, participasse ativamente de comissões e orientasse alunos de graduação e pós-graduação ou se destacasse por suas atividades de extensão também seria valorizado. “Na época, combinamos que os dados não seriam usados para medidas drásticas. Houve muitos questionamentos sobre a ponderação dos indicadores, mas ninguém se opôs a que as informações fossem reunidas”, lembra Gutz. Os pontos mais controversos foram suavizados. Em vez de usar o fator de impacto de revistas científicas como peso para avaliar publicações de cada docente, adotou-se a raiz quadrada do fator de impacto. O objetivo era evitar abrir um fosso entre o escore dos que conseguiram publicar em periódicos de alto impacto e o dos que divulgaram seus trabalhos em revistas de menor prestígio. Para publicações em revistas de ensino ou educação, que costumam ser menos citadas, recorria-se à classificação do periódico no sistema Qualis da Capes em substituição ao índice de impacto.
O resultado da conta também tinha de ser dividido pela raiz quadrada do número de autores do artigo que pertencem ao departamento, cabendo a cada um deles um quinhão equivalente. As planilhas levavam em conta indicadores do triênio anterior (hoje as informações contemplam cinco anos de trabalho de cada docente). A pontuação relativa à carga horária de atividades didáticas recebia um bônus quando o curso era bem avaliado pelos alunos, as aulas eram ministradas no período noturno ou as turmas eram grandes. Quanto mais recursos o docente captasse em projetos de pesquisa, mais pontos acumulava. Da mesma forma, atividades administrativas que implicam encargos e responsabilidades maiores, como direção e chefia de departamento, rendiam mais pontos do que a participação em comissões que não geram trabalho extra. Quem cuidava da montagem das planilhas com as pontuações era o próprio Ivano Gutz, auxiliado por uma secretária e, nos corredores do IQ-USP, a metodologia era chamada, em tom de brincadeira, de índice G, referência ao conhecido índice-H, que mede quantidade e impacto da produção científica. “Mas o índice G é melhor, por ser abrangente e levar em conta o desempenho recente do pesquisador”, brinca Gutz. “O índice-H é cumulativo e dá vantagem a quem tem mais tempo de carreira.” A divulgação dos resultados em 2006 e 2007 envolveu algum desconforto, mas foi aceita pela maioria. “Havia a resistência clássica, vinda daqueles que se julgavam ameaçados pelos resultados. Como mostramos que não se buscava punir ninguém, ela foi diminuindo”, ressalta o professor. A resistência se explicava: em 1988, vazou no jornal Folha de S.Paulo uma lista, produzida para uso interno pela reitoria da USP, com nomes de pesquisadores que não haviam publicado nenhum trabalho científico de 1985 a 1986. A chamada “lista dos improdutivos” gerou trauma e controvérsia duradouros. critérios refinados
Após a saída de Ivano Gutz da chefia em 2008, o departamento fez uma pausa no processo, que havia gerado duas avaliações. “Os chefes que vieram em seguida delegaram a coleta de dados a secretárias. Como elas tinham outras atribuições, o trabalho acabou adormecendo”, diz Mau-
A publicação de artigos científicos tem peso proporcional ao fator de impacto da revista, explica Bertotti
ro Bertotti, que retomou a avaliação quando chegou à chefia do departamento, em 2012. Muitos critérios foram refinados, num processo que ainda não foi concluído. No caso dos artigos científicos, o peso agora é determinado diretamente pelo fator de impacto da revista, e não mais pela raiz quadrada do fator de impacto. “Defendemos que a publicação de arti gos deva ter um peso forte, proporcional à qualidade da revista”, sustenta Bertotti. Na categoria captação de recursos, além de haver um peso maior para valores mais altos, coordenadores de projeto ganham um bônus na pontuação em relação aos demais membros. Em cada categoria, a pontuação é contabilizada em separado e normalizada pela mediana do departamento, com os pesos atribuídos a cada atividade, a fim de evitar que o desempenho elevado de um docente num quesito ofusque a performance dos demais. Um dos cuidados tomados foi o de profissionalizar a coleta de dados. Uma estagiária foi contratada para cuidar dessa tarefa, o que inclui procurar cada docente e estimulá-lo a declarar todo tipo de atividade que se encaixe na avaliação. Ela também é responsável por divulgar um boletim mensal com as atividades dos docentes, incluindo desde participações em bancas até as reportagens publicadas na imprensa em que eles foram entrevistados. “A intenção é valorizar tudo o que o docente fizer”, enfatiza Bertotti. Nas discussões sobre a reforma dos estatutos da USP há a proposta de permitir que os departamentos retirem do regime de dedicação exclusiva professores com desempenho mais fraco, levando-os para o regime de turno parcial. Avaliações co-
mo a promovida pelo Departamento de Química Fundamental poderiam servir de referência objetiva para esse tipo de decisão. “Não sabemos se essa mudança no estatuto vai prosperar”, diz Gutz. Os idealizadores do processo de avaliação preocupam-se com o fato de que os critérios adotados às vezes não combinam com as diretrizes para promoção na carreira dentro da USP. “Podemos sustentar que um docente deva ser reconhecido por dar aulas muito boas ou participar de atividades de extensão, mas isso não será suficiente para levá-lo ao topo da carreira”, pondera a professora Silvia Serrano, que dirige a comissão de avaliação. Gutz observa que a iniciativa poderia ser um instrumento para regular se um pesquisador pode ou não prestar consultoria a empresas, por exemplo. “Alguns anos atrás, a Associação Brasileira da Indústria Química, interessada no bem-sucedido modelo de inovação da Coreia do Sul, trouxe como conferencista um professor e dirigente de centro de pesquisa, que também veio fazer uma palestra no Instituto de Química e nos contou como isso funcionava no seu país. Lá, docentes bem avaliados têm liberdade de prestar consultoria para empresas. Já quem não consegue dar conta de suas atividades acadêmicas é alertado e estimulado por uns dois anos. Se prosseguir sendo mal avaliado, pode ser desligado.” Para o professor, o processo de avaliação mostra que é possível, mas não indispensável, ter destaque em todas as atividades em que o docente se envolve. “Temos professores que conseguem fazer um trabalho de excelência em várias áreas. É justo que sirvam de inspiração para os demais”, afirma Gutz. n Fabrício Marques pESQUISA FAPESP 232 z 45
ciência SAÚDE MENTAL y
Uma longa maturação Imagens de ressonância magnética funcional começam a revelar os padrões de desenvolvimento das redes cerebrais e desvios que podem indicar futuros transtornos psiquiátricos Ricardo Zorzetto
Por dentro do cérebro: imagens de ressonância magnética de participantes do estudo 46 z junho DE 2015
E
sinais que surgem antes de o problema se manifestar. Caso se descubram marcadores eficientes, talvez seja possível intervir precocemente para proteger o cérebro e tentar evitar que a doença se instale. “Queremos um dia poder identificar precocemente os indivíduos com risco elevado de apresentar transtornos mentais”, diz Euripedes Constantino Miguel, professor do Departamento de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador da pesquisa. “Se tivermos parâmetros para isso, talvez se consiga planejar ações para trazer o cérebro de volta à sua trajetória normal de desenvolvimento.” “Seria uma grande transformação na área da saúde mental”, afirma o psiquiatra Rodrigo Bressan, coordenador do Laboratório Interdisciplinar de Neuroimagem e Cognição (LiNC) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), coordenador de pesquisa do INPD e responsável pela parte de imagem e biomarcadores do projeto, do qual participam pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Universidade Federal do ABC (UFABC). “Hoje não é possível prevenir o surgimento dos transtornos mentais. Na maioria dos casos, a psiquiatria entra em cena depois que a doença está estabelecida e os tratamentos se concentram em administrar medicamentos e psicoterapia para controlar os sintomas e reduzir os prejuízos que ela traz para o indivíduo.” Por trás da busca de marcadores de risco, há o reconhecimento cada vez maior da natureza médica dos transtornos mentais. “As doenças psiquiátricas não são mais entendidas só como transtornos da mente ou distúrbios de comportamento”, explica Bressan, “são também doenças do cérebro, um órgão complexo e de grande plasticidade, que é altamente influenciada pelo ambiente, em especial pelas interações sociais”.
fotos eduardo cesar imagens inpd
ram 10h20 do domingo 17 de maio, quando Pedro, um adolescente magro e meio tímido, entrou em um equipamento de ressonância magnética no Instituto de Radiologia da Universidade de São Paulo (USP). Ele acabara de responder a uma longa sequência de perguntas sobre como andam suas emoções e seu comportamento em casa, na escola e com os amigos e passaria os 40 minutos seguintes deitado no interior do aparelho, que produziria quase 6 mil imagens de seu cérebro. Atualmente com 17 anos, Pedro integra um grupo de 2.512 crianças e adolescentes de São Paulo e Porto Alegre – cerca de 60% deles com alto risco de desenvolver transtornos psiquiátricos – que vêm sendo acompanhados desde 2009 por pesquisadores do Instituto Nacional de Psiquiatria do Desenvolvimento para Crianças e Adolescentes (INPD). Esses garotos e garotas participam de um estudo pioneiro na América Latina que busca identificar as alterações na estrutura e no funcionamento do cérebro que caracterizam o seu amadurecimento saudável e as modificações que indicam o risco de desenvolver transtornos psiquiátricos. Os resultados mais importantes dessa pesquisa começaram a ser apresentados nos últimos meses. Os dados psicológicos, bioquímicos e de neuroimagem coletados em 2009 e 2010, durante a primeira fase do projeto, sugerem que na transição da infância para a adolescência os sistemas cerebrais dos jovens saudáveis passam por transformações diferentes das que ocorrem no daqueles mais propensos a apresentar problemas psiquiátricos. Médicos e outros profissionais da área da saúde mental esperam que, uma vez conhecidas em detalhes, as alterações indicadoras de uma evolução indesejável possam ser usadas como marcadores de risco de transtornos mentais:
pESQUISA FAPESP 232 z 47
A proposta teórica mais aceita pela medicina e pela psicologia explica os transtornos mentais como resultado da interação entre as condições sociais, econômicas, psicológicas e culturais em que o indivíduo vive – são os chamados fatores ambientais – e sua propensão a desenvolver o problema, determinada por suas características genéticas. A evolução dos exames de imagem permitiu olhar o cérebro in vivo e associar alterações sutis em suas estruturas – um volume um pouco aumentado ou diminuído, ou ainda um padrão de ativação anormal de uma rede neuronal – a variações no comportamento. São alterações bem mais tênues do que as verificadas em doenças neurodegenerativas como Parkinson e Alzheimer.
E
m uma conferência TED realizada em 2013 na Califórnia, Thomas Insel, diretor do Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos, usou a infraestrutura de trânsito de uma cidade como metáfora do que ocorre no cérebro no primeiro e no segundo caso. As doenças neurodegenerativas causam perda de células e provocam lesões grandes, que corresponderiam à inundação de uma área da cidade ou até mesmo à queda de um viaduto. Já os transtornos mentais poderiam ser comparados a um desajuste na rede de semáforos. Ambos os problemas atrapalham o trânsito, mas o primeiro tipo costuma causar alterações permanentes, enquanto o segundo pode ser reajustado mais facilmente, se detectado cedo. Ao mesmo tempo, estudos epidemiológicos começaram a encontrar indícios de que os problemas de saúde mental, além de serem crônicos, custosos e altamente incapacitantes, também começam cedo. Em 2005, o sociólogo Ronald Kessler, especialista em epidemiologia da saúde mental da
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Universidade Harvard, nos Estados Unidos, publicou um estudo mostrando que 50% dos casos começam antes dos 14 anos de idade e 75% até os 24 anos. Somadas, essas evidências favorecem a ideia de que os transtornos psiquiátricos são decorrentes de problemas do neurodesenvolvimento. Situações repetidas de maus-tratos físicos e psicológicos e outros eventos estressantes vividos durante a infância e a adolescência interagiriam continuamente com genes que determinam a vulnerabilidade a problemas psiquiátricos, gerando alterações no funcionamento e na estrutura das redes cerebrais. “A partir de determinado ponto, as alterações acumuladas se tornariam suficientes para produzir os sintomas das doenças psiquiátricas”, explica Miguel. No estudo com as crianças e os adolescentes de São Paulo e Porto Alegre, os pesquisadores estão comparando as trajetórias do desenvolvimen-
1 Exame de imagem realizado na USP 2 Participante do estudo passa por simulação antes de fazer ressonância
Efeito do amadurecimento Da infância à adolescência, aumenta a sincronia e a robustez da conexão entre as áreas da rede de modo-padrão
7 a 9 anos
10 a 12 anos
13 a 15 anos
fotos 1 e 2 eduardo cesar infográfico ana paula campos ilustraçãO fabio otubo
Fonte joão ricardo sato / ufabc
to cerebral tidas como saudáveis (participantes sem sintomas psiquiátricos) com as que consideram desviantes (indivíduos com alguns sinais de transtornos mentais ou filhos de pais com doença psiquiátrica diagnosticada). Ao confrontar essas trajetórias, eles esperam encontrar padrões de maturação específicos que indiquem quem no futuro pode adoecer. Em paralelo, buscam identificar mudanças nos níveis de compostos encontrados no sangue e alterações emocionais e de comportamento que também possam estar associadas ao surgimento de transtornos psiquiátricos. No longo prazo, a expectativa é a obtenção de um conjunto de marcadores de risco confiáveis para a área de saúde mental, algo semelhante ao que os níveis de pressão arterial e as taxas sanguíneas de colesterol representam para as doenças cardíacas. “A doença cardíaca não começa com a obstrução arterial e o infarto, mas muito antes”, lembra Bressan. “O mesmo acontece com as doenças psiquiátricas.” Por essa razão, psiquiatras e neurocientistas tentam descobrir algo que represente para os transtornos mentais o mesmo que o colesterol elevado significa para as doenças do coração. As redes neurais relacionadas aos sintomas psiquiátricos se organizam e reorganizam mais intensamente durante a infância e a adolescência e depois se consolidam, o que torna muito mais difícil alterá-las, mesmo com medicações ou terapias. “O objetivo, ao identificar mais cedo e até mesmo antes de se caracterizar como doença, é aumentar a eficiência dos tratamentos, que é limitada”, diz o psiquiatra Luis Augusto Rohde,
professor da UFRGS e vice-coordenador do projeto. “Atualmente as medicações funcionam em apenas 60% dos casos”, conta. Já existem fatores de risco mapeados para alguns transtornos mentais. Estudos internacionais que acompanham os participantes da infância à idade adulta mostraram, por exemplo, que abusos físicos e psicológicos sofridos nos primeiros anos de vida e o uso de drogas na adolescência estão associados a problemas psiquiátricos mais tarde. Ao conhecer em que ponto o desenvolvimento do cérebro começa a típico do caminho, talvez seja possível tentar intervir – alterando hábitos e outros fatores ambientais – para que ele retome a trajetória normal. “Ainda sabemos pouco como se dá o desenvolvimento das estruturas cerebrais”, diz Bressan. “Estamos começando a aprender o que molda o desenvolvimento do cérebro com as grandes coortes [estudos que acompanham a saúde de uma população por longos períodos]”, conta o neurocientista Tomáš Paus, da Universidade de Toronto, Canadá, que 15 anos atrás iniciou um dos primeiros estudos de coorte em saúde mental no mundo. “Esse e outros grandes estudos longitudinais de coorte proporcionam uma oportunidade única de examinar a organização e o desenvolvimento do cérebro”, diz Julia Zehr, da Divisão de Trajetórias do Desenvolvimento de Doenças Psiquiátricas do Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos. “Ainda não se conhece muito sobre o desenvolvimento cerebral, particularmente sobre os circuitos pESQUISA FAPESP 232 z 49
Perdas e ganhos Com o amadurecimento, áreas corticais como o giro angular se tornam mais relevantes na rede de modo-padrão, já as áreas subcorticais (caudado, putâmen e tálamo) perdem importância
Tálamo
Giro angular Fonte joão ricardo sato / ufabc
neurais em desenvolvimento, e sobre como as regiões influenciam umas às outras de maneira a moldar suas funções”, explica. Na primeira fase do projeto brasileiro os pesquisadores submeteram 770 dos 2.512 participantes a exames de ressonância magnética que avaliaram a estrutura física do cérebro e mapearam o funcionamento de algumas redes cerebrais. Com esses dados em mãos, o estatístico e neurocientista João Ricardo Sato, do Centro de Matemática, Computação e Cognição da UFABC, começou a mapear como o cérebro saudável passa por mudanças ao longo da infância e da adolescência, concentrando-se na evolução de duas redes cerebrais: a rede de modo-padrão e a de controle cognitivo. Opostas e complementares
Mais ativa quando se está em repouso, com a mente vagando, a rede de modo-padrão está associada à capacidade de uma pessoa se voltar para seu mundo interior e refletir sobre si mesma (introspecção) e à capacidade de recordar eventos importantes da própria vida (memória autobiográfica), como onde estava quando deu o primeiro beijo. Já a rede de controle cognitivo é integrada por áreas cerebrais acionadas quando é preciso focar a atenção no mundo externo. Por exemplo, fazer uma prova ou realizar um cálculo, ou conter e inibir um comportamento inadequado, como atirar uma bola de papel no professor que está de costas. Essas duas redes funcionam em oposição: quando uma se encontra mais ativa, a outra permanece menos ativa, e vice-versa. Sato usou ferramentas de uma área da matemática chamada teoria dos grafos para avaliar como as características dessas duas redes mudam com a idade. Essa abordagem trata as regiões cerebrais como se fossem os pontos ou nós de uma rede e a simultaneidade de ativação (conectividade funcional) de duas regiões como caminhos ligando os dois pontos. Essa estratégia apresenta uma vantagem em relação aos métodos de análise de dados nor50 z junho DE 2015
Núcleo caudado
Putâmen
Rede de modo-padrão era mais imatura em crianças e adolescentes com sinais de problemas psiquiátricos
malmente usados nos estudos da área da saúde. Ela permite ter uma visão global da organização das redes de conectividade do cérebro. A análise de imagens do cérebro de 447 crianças sem sinais de transtorno psiquiátrico com idades entre 7 e 15 anos revelou que, de modo geral, a conexão entre os pontos dessas redes se torna mais robusta com a idade. Isso significa que a comunicação entre as áreas cerebrais se torna mais intensa e sincronizada. “Estudos anteriores avaliando variações no volume das estruturas cerebrais já indicavam que isso deveria acontecer”, conta Bressan. “Agora flagramos essas mudanças ocorrendo no cérebro em funcionamento”, diz. A hierarquia interna dessas redes também muda entre o fim da infância e o início da adolescência. Algumas áreas ganham relevância, enquanto outras perdem. Sato observou, por exemplo, que o córtex pré-frontal medial – área cerebral associada à capacidade de pensamento abstrato, planejamento e controle – apresentava um papel mais destacado nos participantes com mais idade. O mesmo acontece com duas áreas do giro do cíngulo, uma dobra mais interna do córtex cerebral ligada ao controle das emoções e da atenção, à capacidade de estabelecer laços
Os riscos e o neurodesenvolvimento Mais impactantes no início da vida, traumas e eventos estressantes interagem com genes que determinam a vulnerabilidade a problemas psiquiátricos e alteram o funcionamento das redes cerebrais
75% dos casos de transtornos psiquiátricos
50% dos casos de transtornos psiquiátricos Risco de desenvolver a doença
14 anos
Idade
Fonte rodrigo bressan / unifesp e kessler, r. c. et al. jama psychiatry 2005
infográficos ana paula campos ilustraçãO fabio otubo
Casos da doença
Coorte de alto risco para transtornos psiquiátricos na infância e na adolescência
Primeira coleta de dados 6-12 anos Segunda coleta de dados 9-15 anos
sociais e à de prever e evitar situações desagradáveis. Com a idade, a região anterior e a região posterior do cíngulo passam a mediar a conexão entre muitas áreas das duas redes, comportando-se como um entroncamento de vias de trânsito muito movimentadas. As mudanças no padrão de atividade dessas redes estão em acordo com o que se conhece do desenvolvimento emocional e cognitivo humano. Da infância à adolescência, características anatômicas sutis de algumas áreas mudam, assim como a maneira como elas se comunicam entre si. Essas transformações são acompanhadas do desenvolvimento de diferentes habilidades. Nos primeiros anos de vida a criança desenvolve a capacidade motora e chega aos 5 ou 6 anos em condições de começar a ser alfabetizada. Aos 9 ela já sofisticou a capacidade de se comunicar verbalmente e começa a desenvolver a capacidade de fazer abstrações matemáticas mais complexas. Daí até a idade adulta controla cada vez melhor os impulsos e as emoções. “A criança é muito mais impulsiva, nela predomina a ativação de áreas subcorticais [mais profundas e evolutivamente primitivas] do cérebro do que no adolescente”, explica a bióloga Andrea Jackowski, especialista em neuroimagem do LiNC e uma das principais integrantes do estudo.
P
ara ter uma visão geral das mudanças no cérebro, Sato comparou ao mesmo tempo como evoluía o padrão de atividade de 325 regiões cerebrais já mapeadas por anatomistas. De modo simplificado, o que muda entre a criança e o adolescente é que o giro angular – região do córtex envolvida em tarefas importantes como o processamento da linguagem e dos números, da
24 anos
manutenção da atenção e da capacidade de resgatar memórias – ganha importância nos adolescentes. Simultaneamente, algumas estruturas em uma região mais interna e evolutivamente primitiva – os núcleos da base, que integram informações emocionais e motoras – perdem relevância. Um achado empolgou os pesquisadores, por suas possíveis aplicações clínicas. Depois de conhecer como a rede modo-padrão amadurecia nos participantes saudáveis, Sato e os outros pesquisadores decidiram analisar a evolução dessa rede no cérebro de crianças e adolescentes com sintomas de problemas psiquiátricos. Estudos anteriores já associavam alterações no funcionamento dessa rede à depressão e à ansiedade, marcadas por sintomas mais ligados à introspecção, como a tendência excessiva a remoer problemas. Se alterações nesse funcionamento estavam associadas a mudanças no comportamento e a transtornos psiquiátricos, os sintomas apresentados por algumas crianças não seriam sinal de problemas no amadurecimento da rede? Para responder a essa questão, era preciso ver como a rede mudava com a idade e identificar quais alterações fugiam ao esperado. Isso é complicado porque as variações na atividade cerebral são grandes em pessoas saudáveis e podem se tornar imprevisíveis em quem tem transtornos psiquiátricos. Sato, que se graduou em estatística e chegou a trabalhar no mercado financeiro antes de se interessar pela neurociência no doutorado, decidiu atacar o problema usando uma abordagem computacional, o aprendizado de máquina, adotado para desenvolver ferramentas capazes de aprender automaticamente a reconhecer padrões depois de expostos a alguns exemplos, como fazem os filtros de mensagens indesejadas de e-mail. pESQUISA FAPESP 232 z 51
Ele criou um programa de computador para reconhecer o padrão da atividade espontânea da rede de modo-padrão de crianças em diferentes idades. Em seguida, usou-o para avaliar atrasos na maturação da rede cerebral em 622 crianças e adolescentes que haviam passado por ressonância magnética funcional. A combinação das ferramentas de teoria dos grafos e aprendizado de máquina permitiu criar um índice de maturidade cerebral, descrito em um artigo aceito para publicação no Journal of Child and Psychology and Psychiatry. Esse índice leva em consideração o fato, observado antes pelo grupo brasileiro e, em amostras menores, por pesquisadores estrangeiros, de que as redes cerebrais mudam com a idade. Ao confrontar o índice de maturidade obtido pelo programa com as informações sobre sintomas, identificados por meio de questionários respondidos pelos pais dos participantes, Sato verificou que as crianças e os adolescentes com mais sinais de problemas psiquiátricos apresentavam a rede mais imatura.
Vista lateral
Q
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Vista frontal
Vista inferior
Rede altamente integrada: áreas cerebrais que formam a rede de modo-padrão (amarelo) e as fibras que as conectam
imagens andreas horn / instituto max planck para o desenvolvimento humano / wikipedia
uanto? Ele ainda não fez os cálculos, mas estima que o atraso de maturação esteja entre dois e três anos. Isso pode significar que a rede de modo-padrão de uma criança com 10 anos de idade e sintomas psiquiátricos graves poderia ter a mesma maturidade que a de uma criança saudável de 7 ou 8 anos. As crianças e os adolescentes com a rede de modo-padrão menos desenvolvida, em geral tinham sintomas classificados como internalizantes, frequentes na depressão e na ansiedade. “Os testes tradicionalmente usados para analisar informações das imagens de ressonância não teriam permitido extrair esse tipo de informação”, diz Euripedes Miguel. “Isso só foi possível com a associação dessas estratégias estatísticas mais avançadas.” Esse achado não é importante apenas por tornar possível medir a maturação dessa rede, cuja função ainda não é bem conhecida. É relevante também pelo potencial que representa para a psiquiatria. Caso se mostre efetivo nas próximas etapas desse projeto e em outros estudos, esse índice pode se tornar uma forma de medir o risco de problemas psiquiátricos. “Um marcador de risco desse tipo permitiria que os exames de imagem ganhassem uma nova função na psiquiatria”, conta o médico Giovanni Salum, da UFRGS, que coordenou a coleta de dados em Porto Alegre. “Hoje eles são usados somente para eliminar hipóteses de problemas como tumores e lesões.” “Esse indicador vai na direção do desenvolvimento de um marcador de risco, mas, para ser denominado marcador, teria de ter um poder preditivo muito alto”, pondera Sato. Para Miguel, a saída não deve estar em um só marcador. “Provavelmente precisaremos de um conjunto deles: de imagem, bioquímico e de com-
Pessoas com sintomas psiquiátricos tinham nível mais alto de molécula inflamatória no sangue
portamento”, diz. Por essa razão, além da associação entre os dados de imagens e os sintomas, os pesquisadores também buscam uma conexão entre os sinais clínicos psiquiátricos e a alteração nos níveis de compostos encontrados no sangue. Na Unifesp, a psiquiatra Elisa Brietzke e sua equipe analisaram nos últimos anos amostras de sangue de 600 das crianças que participaram dos exames de neuroimagem na primeira fase da pesquisa. Eles buscavam compostos que pudessem indicar alterações cerebrais associadas ao maior risco de desenvolver doenças psiquiátricas e que, ao mesmo tempo, funcionassem como marcadores bioquímicos de risco. Por enquanto, encontraram dois candidatos: a eotaxina, um comunicador químico associado à inflamação; e o receptor 2 do fator de necrose tumoral ou TNFR2, molécula que parece evitar a morte de células cerebrais.
O
s dados apresentados no encontro anual da Sociedade de Psiquiatria Biológica, realizado em maio no Canadá, mostram que, simultaneamente, os níveis de eotaxina se encontravam mais elevados e os de TNFR2 mais baixos no sangue das crianças e dos adolescentes com mais sintomas de problemas psiquiátricos. Segundo Elisa, essa combinação foi capaz de identificar com bom grau de precisão aqueles que eram filhos de mulheres que haviam consumido, durante a gestação, álcool, um agente agressor do sistema nervoso do feto. Crianças e adolescentes filhos de pais com transtorno de humor (depressão ou transtorno bipolar) tinham níveis mais elevados de eotaxina no sangue, enquanto aqueles com pais com transtornos de ansiedade (fobias, pânico ou ansiedade) apresentavam taxas mais baixas do neuroprotetor TNFR2. Em paralelo ao trabalho de Sato e Elisa, os pesquisadores da área clínica investigam formas de usar as informações coletadas por meio dos questionários de saúde mental à procura de comportamentos que sirvam como indicadores precoces do desvio de trajetória do desenvolvimento cerebral. Um exemplo é o trabalho do psiquiatra Pedro Pan, pesquisador do LiNC, que estuda o transtorno bipolar, marcado por episódios alternados de depressão e de mania, doença de difícil diagnóstico em crianças e adolescentes. Ele separou os 26
sintomas apresentados por 479 crianças e adolescentes com sinais de mania em dois grandes grupos: o exuberante, que inclui, por exemplo, os indivíduos excessivamente animados, que falam muito rápido e são cheios de energia; e o de baixo controle, integrado por pessoas com sinais de irritação excessiva, dificuldade de controlar os pensamentos e que não se preocupam com o perigo, entre outros. Ao comparar os dois tipos de sintomas com os prejuízos que causavam na vida das crianças, de acordo com o relato dos pais, verificou que os sintomas de baixo controle permitiam identificar os casos mais graves, que provavelmente necessitavam de tratamento. Os pesquisadores esperam reforçar os achados iniciais ao analisar os dados da segunda fase do projeto, coletados desde o final de 2013. Em meados de maio, os quase 30 pesquisadores que integram as equipes de São Paulo e Porto Alegre já haviam concluído a avaliação neuropsicológica, feita em domicílio, de quase 2 mil participantes, cerca de 80% do total atendido na primeira fase. Dos 770 garotos e garotas que realizaram o exame de ressonância em 2009 e 2010, cerca de 300 – entre eles, Pedro – já haviam repetido o exame até maio. Outros 300 devem fazer até o fim do ano. “Ao compararmos os dados da primeira fase com os que estão sendo coletados agora”, diz João Sato, “devemos conseguir mais precisão”. Ao confrontar essas informações, eles devem ser capazes de verificar se as pessoas em risco de fato desenvolveram transtornos psiquiátricos. n
Projetos 1. O Instituto Nacional de Psiquiatria do Desenvolvimento: uma nova abordagem para a psiquiatria tendo como foco as nossas crianças e o seu futuro (nº 2008/57896-8); Modalidade Projeto Temático – INCT; Pesquisador responsável Euripedes Constantino Miguel Filho (IPq-FM-USP); Investimento R$ 5.695.960,92 (FAPESP e CNPq). 2. Coorte de alto risco para transtornos psiquiátricos na infância: seguimento de neuroimagem após 3 anos (nº 2013/08531-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Andrea Parolin Jackowski (Unifesp); Investimento R$ 316.708,90 (FAPESP). 3. Aprendizado de máquina em neuroimagem: desenvolvimento de métodos e aplicações clínicas em transtornos psiquiátricos (nº 2013/10498-6); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável João Ricardo Sato (UFABC); Investimento R$ 110.925,07 (FAPESP).
Artigos científicos SALUM, G. A. et al. High risk cohort study for psychiatric disorders in childhood: rationale, design, methods and preliminary results. International Journal of Methods in Psychiatric Research. dez. 2014. SATO, J. R., et al. Age effects on the default mode and control networks in typically developing children. Journal of Psychiatric Research. nov. 2014. SATO, J. R., et al. Decreased centrality of subcortical regions during the transition to adolescence: a functional connectivity study. Neuroimage. jan. 2015. SATO, J. R., et al. Default mode network maturation and psychopathology in children and adolescents. Journal of Child Psychology and Psychiatry. mai. 2015. PAN, P. M. et al. Manic symptoms in youth: dimensions, latent classes, and associations with parental psychopathology. Journal of the American Academy of Child and Adolescent Psychiatry. 22 mar. 2014.
pESQUISA FAPESP 232 z 53
BIOENGENHARIA DE TECIDOS y
Órgãos sob medida Células-tronco ajudam a produzir traqueias e vasos sanguíneos para transplante com menor risco de rejeição Pablo Nogueira
I
1 Por meio de uma cirurgia, retira-se um segmento de vaso – em geral, da veia safena – da perna do doador
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magine uma reforma de casa tão radical que inclua a remoção da pintura e do reboco das paredes, deixando desnudos os tijolos que formam a sua estrutura. Essa metáfora é útil para entender os projetos em andamento no Laboratório de Engenharia Celular (LEC) coordenado pela hematologista e hemoterapeuta Elenice Deffune na Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Botucatu. Em vez de tinta e cimento, o trabalho dos pesquisadores envolve a remoção das células que recobrem estruturas ocas do corpo, como a traqueia e os vasos sanguíneos. Esse procedimento, conhecido como descelularização, é o primeiro passo de uma transformação mais ampla: a produção de órgãos e tecidos de reposição formados por células com as características genéticas do receptor. Usando essa estratégia, o cirurgião vascular Matheus Bertanha está desenvolvendo no LEC uma possível alternativa terapêutica para os problemas circulatórios gerados pela aterosclerose. Na aterosclerose, placas de gordura e cálcio se acumulam no interior das paredes das artérias e obstruem, ainda que parcialmente, a passagem do sangue. Quando esse bloqueio é grave a ponto de causar sintomas, o tratamento envolve procedimentos cirúrgicos para restaurar a circu-
lação. Nos casos mais radicais, implanta-se um segmento de artéria ou de veia retirado de outra parte do corpo do próprio indivíduo, criando um desvio – ou uma ponte – que restabelece o fluxo sanguíneo normal. É o que geralmente fazem os cirurgiões cardíacos ao implantar um segmento da veia safena, extraído da perna, no coração de quem tem as artérias coronárias obstruídas. Algo semelhante é feito pelos cirurgiões vasculares para tratar bloqueios em artérias das pernas. Nem sempre, no entanto, é possível realizar esse procedimento. Segundo dados da literatura médica, 30% dos pacientes que necessitam de enxerto para a confecção de pontes coronarianas não possuem vasos com as características adequadas para essa função. Estima-se ainda, conta Bertanha, que uma em cada 10 pessoas com indicação para receber enxertos vasculares nos membros inferiores enfrente o mesmo problema. “Alguns possuem veias com menos de 2,5 milímetros de diâmetro, o que impede a sua utilização”, explica. “Outras pessoas já estão na segunda ponte e não têm mais vasos disponíveis”, diz. Nesses casos, uma saída é usar uma ponte artificial, feita de material sintético. Mas elas podem ter uma vida útil curta porque sofrem obstrução mais facilmente. Outra
infográfico ana paula campos ilustraçãO raul aguiar
2
Um banho químico com detergentes elimina as células das paredes do vaso. Sobra apenas um arcabouço de colágeno
possibilidade é obter vasos de doadores vivos, o que nem sempre é viável por causa da incompatibilidade imunológica, que pode levar à rejeição do implante. Bertanha trabalha numa alternativa, ainda experimental, para tentar superar a falta de vasos do próprio indivíduo e o risco de obstrução dos materiais sintéticos. Em testes com coelhos, ele primeiro extrai vasos naturais – mais especificamente veias – de um animal doador. Depois, o segmento a ser transplantado para outro animal passa por um banho químico com detergentes que eliminam as células das paredes do vaso. O objetivo desse processo de descelularização é evitar que o corpo do receptor desencadeie uma agressão contra o órgão implantado. O que sobra desse processo é uma estrutura tubular – um arcabouço – composta por fibras de colágeno, a proteína formadora dos tecidos de sustentação do corpo. Em seguida, o pesquisador semeia no interior do vaso um tipo especial de célula retirada do corpo do receptor: as células-tronco mesenquimais. Extraídas do tecido adiposo do animal que vai receber o transplante, essas células são capazes de se converter em células típicas dos vasos sanguíneos. Elas são cultivadas em laboratório até atingirem a quantidade esperada – cerca de 100 mil células para o experimento em animais pequenos – e depois coladas no interior do tubo de colágeno com o auxílio de um gel. “A presença de células do próprio receptor no segmento a ser implantado reduz ao mínimo a necessidade de usar imunossupressores para evitar a rejeição”, explica Elenice Deffune, que orientou o trabalho de Bertanha durante o mestrado. Em um experimento concluído recentemente, Bertanha comparou o desempenho de quatro tipos de implante. Os animais do primeiro grupo receberam um segmento de veia cava retirada diretamente de outro indivíduo, sem passar pela descelularização, enquanto nos do segundo foi implantada apenas a veia descelularizada. No terceiro grupo foi
usado um segmento de veia que passou pelo processo de descelularização seguido do repovoamento com células-tronco de outro indivíduo. E, por fim, o quarto grupo recebeu um segmento de veia descelularizada contendo células-tronco mesenquimais do próprio receptor.
3 Células-tronco extraídas do tecido adiposo do receptor são semeadas no interior do tubo de colágeno
Célula-tronco
rejeição e regeneração
Como esperado, no primeiro caso houve uma reação inflamatória exuberante e uma forte rejeição ao vaso transplantado, enquanto no segundo ocorreu apenas uma resposta inflamatória branda. O uso de um tubo de colágeno povoado com células-tronco de outro indivíduo não despertou uma rejeição imediata. As células se diferenciaram formando o endotélio, a camada que reveste o interior dos vasos sanguíneos, e pavimentaram boa parte do tubo. Um mês mais tarde, porém, surgiu uma inflamação expressiva. Apenas os animais do quarto grupo não apresentaram rejeição, nem inflamação importante, mesmo um mês após a cirurgia e sem o uso de medicamentos imunossupressores. O que mais surpreendeu o pesquisador foi o comportamento das células-tronco implantadas. “Além de terem pavimentado mais de 50% do vaso, elas atraíram outras células-tronco existentes no organismo do receptor”, conta Bertanha. O resultado, inesperado, foi a formação de novos vasos sanguíneos (angiogênese). “Em princípio, essa surpresa é boa porque a angiogênese pode ajudar o novo vaso a se integrar ao tecido adjacente”, diz o pesquisador. “Mas teremos de investigar se esse processo não é patogênico.” Bertanha planeja realizar mais testes em animais, ao mesmo tempo que começa a trabalhar com células-tronco humanas, já pensando em experimentos futuros. Em paralelo ao trabalho de Bertanha, a biomédica Thaiane Cristine Evaristo, aluna de doutorado da cirurgiã Daniele Cataneo, usa os procedimentos de descelularização e recelularização para produzir no LEC traqueias a serem usa-
Tecido adiposo
4 As células-tronco se diferenciam em células de revestimento e povoam o interior do vaso, reduzindo o risco de rejeição
Fonte matheus bertanha / unesp
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das em transplantes. Ela desenvolve um protocolo de descelularização distinto dos adotados por equipes no exterior – e potencialmente mais barato. Em outros países, os pesquisadores costumam usar enzimas de origem animal ou obtidas por engenharia genética para eliminar da traqueia as células do doador. Apesar de eficaz, essa estratégia é cara. Pode-se gastar até € 80 mil para descelularizar uma única traqueia. Esse custo, sem contar o da cirurgia e o da internação, torna quase proibitivo o transplante de traqueia em seres humanos. Buscando uma alternativa, Thaiane e Elenice decidiram submeter as traqueias extraídas de doadores a uma sequência de tratamentos químicos e físicos que produzissem um resultado semelhante ao obtido com as enzimas. Primeiro, removeram cirurgicamente a traqueia e a banharam em um potente detergente, que ajuda a desfazer a membrana das células. Em seguida, usaram uma prensa para comprimi-la suavemente, antes de fazê-la passar por alguns ciclos de congelamento e descongelamento e imersão em um líquido agitado por vibrações ultrassônicas. Por último, a traqueia passou um período exposta à luz emitida por diodos (LEDs). Peças de retífica
As traqueias livres de células obtidas com essa técnica foram testadas em coelhos, com resultados promissores. Não houve rejeição ao transplante e os roedores sobreviveram por um período que, para humanos, equivale a 10 anos. Com base nesses resultados, Elenice propôs ao físico Vanderlei Bagnato, da Universidade de São Paulo em São Carlos, desenvolver um equipamento integrando todas as etapas da técnica. Recentemente eles depositaram um pedido de patente do aparelho, cujo protótipo se encontra em desenvolvimento. Ao mesmo tempo que trabalha no equipamento, o grupo de Botucatu prepara a próxima fase de testes, com suínos, etapa necessária antes do início dos estudos com seres humanos. Além de analisar a eficácia das técnicas de descelularização e recelularização de traqueias, o grupo pretende nos próximos anos testar traqueias artificiais feitas a partir de uma nova tecnologia, a ser desenvolvida em parceria com o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) e 56 z junho DE 2015
“No Hospital das Clínicas de São Paulo há uma fila de cerca de 300 pessoas à espera de um transplante de traqueia”, conta Elenice Deffune o Instituto do Coração (InCor) da Universidade de São Paulo, ambos na capital paulista, e o Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer, em Campinas. A colaboração prevê que o LEC forneça ao IPT proteínas humanas para serem usadas na produção de um tecido nanoestruturado. No Centro Renato Archer, placas desse nanotecido deverão alimentar uma impressora 3D, que irá esculpir novas traqueias. Uma vez prontas, elas deverão ser remetidas ao LEC para a etapa de recelularização. “Queremos avaliar se essa opção se mostra tão boa quanto o uso das traqueias naturais”, diz Elenice. “Talvez o futuro dos transplantes esteja nesses novos materiais.” No mundo todo existe uma demanda por traqueias para transplante. Elas são necessárias para substituir a traqueia de crianças que nascem com estreitamento nesse tubo que leva o ar do nariz aos pulmões – enfermidade conhecida como atresia congênita da traqueia, que atinge três crianças em cada 100 mil nascidas vivas – e também as de adultos que passam por longos períodos de internação respirando por meio de aparelhos. “No Hospital das Clínicas de São Paulo há uma fila de cerca de 300 pessoas à espera de um transplante de traqueia”, conta Elenice. “Em muitos casos, são adultos jovens que sofreram acidentes de trânsito.”
A literatura médica internacional traz relatos de aproximadamente 30 pessoas que receberam, de modo experimental, o implante de traqueia obtida por meio de engenharia celular. Mas ainda não se conhecem os resultados, que estão sob análise. “A engenharia celular pode fornecer uma esperança concreta para pacientes com lesões crônicas em órgãos de difícil abordagem terapêutica na atualidade”, diz Elenice. Em sua opinião, há motivos para investir na criação de traqueias e vasos sanguíneos artificiais, uma vez que é difícil obter essas estruturas naturais, que dependem de doadores de órgãos. “Às vezes, comparo nosso método a uma retífica de peças, que recupera as usadas e as deixa prontas para o transplante”, exemplifica Elenice. “Criar traqueias artificiais abriria a possibilidade de trabalharmos com peças novas em folha para o processo de recelularização.” Referência em engenharia celular no Brasil, a bióloga Nance Nardi, da Universidade Luterana do Brasil, no Rio Grande do Sul, explica que a pesquisa nessa área começou com vasos e traqueias por causa da relativa simplicidade dessas estruturas. “Já há estudos com órgãos mais complexos, como o fígado, mas estão em estágios mais preliminares”, diz. Nance vê no crescente domínio do processo de descelularização uma das chaves para o progresso apresentado pelo LEC. “Remover as células de um arcabouço sem comprometer a sua integridade ainda é algo bem difícil”, avalia. “O trabalho deles tem conseguido boa repercussão, mas ainda deve levar algum tempo até que esses procedimentos se tornem cotidianos nas salas de cirurgia.” n
Projeto Estruturação ex-vivo de vasos sanguíneos a partir da diferenciação de células-tronco de coelhos (nº 2010/525498); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Elenice Deffune (Unesp); Investimento R$ 61.883,41 (FAPESP).
Artigos científicos BERTANHA, M. et al. Tissue-engineered blood vessel substitute by reconstruction of endothelium using mesenchymal stem cells induced by platelet growth factors. Journal of Vascular Surgery. v. 59, n.6, p. 1677-85. 2014. BERTANHA, M. et al. Morphofunctional characterization of decellularized vena cava as tissue engineering scaffolds. Experimental Cell Research. v. 326, n. 1, p. 103-11. 2014.
astronomia y
Um enigma na Via Láctea Equipe internacional identifica na galáxia estrelas jovens com composição química de velhas
A Astros incomuns: representação artística de estrelas gigantes vermelhas de composição química atípica, recém-identificadas
descoberta de estrelas relativamente jovens com composição química típica de estrelas antigas prova que um método usado para estimar a idade de estrelas longínquas da galáxia, o chamado “relógio químico” da Via Láctea, nem sempre funciona. Essas estrelas foram identificadas recentemente por uma equipe internacional de astrônomos coordenada pela brasileira Cristina Chiappini e descritas em um artigo na edição de abril da revista Astronomy & Astrophysics. A origem dessas estrelas jovens com cara de velhas, porém, permanece um mistério. Pesquisadora do Instituto Leibniz para Astrofísica, em Potsdam, Alemanha, Chiappini notou a existência desses objetos celestes incomuns quando seu aluno de doutorado Friedrich Anders lhe apresentou uma análise de 622 estrelas de várias partes do disco da Via Láctea.
Chiappini desenvolve modelos de evolução química estelar para deduzir quando e onde nasceram as estrelas da galáxia. Uma das previsões desses modelos é que, quanto mais átomos de ferro uma estrela possui em relação a elementos químicos chamados de alfa, mais jovem é a estrela. Para verificar essa previsão, Anders comparou a composição química das estrelas, obtida por astrônomos do levantamento Apogee, com a idade das mesmas estrelas, calculada por pesquisadores do telescópio espacial CoRoT. O Apogee investiga a evolução da galáxia usando instrumentos sensíveis à luz infra vermelha montados no telescópio de 2,5 metros do observatório Sloan, no Novo México, Estados Unidos. Já o CoRoT é um satélite desenvolvido por uma colaboração franco-europeia-brasileira que permite investigar a estrutura interna das estrelas e determinar a idade delas. pESQUISA FAPESP 232 z 57
imagens AIP/ J. Fohlmeister
Igor Zolnerkevic
Estrelas temporãs Astros com composição química diferente da esperada estão situados na região mais central da Via Láctea
45.000 anos-luz
30.000
15.000 Sol
0
Centro galáctico
De perfil e do alto: localização das estrelas de composição química incomum descobertas agora (vermelho) e conhecidas anteriormente (amarelo) em relação ao centro da galáxia
Fonte Cristina chiappini / ILA
Anders confirmou que as idades da maioria das 622 estrelas determinadas pelo CoRoT concordavam com a faixa etária sugerida pela composição química delas. Cerca de 20 dessas estrelas, no entanto, chamavam a atenção por terem proporcionalmente mais elementos químicos alfa do que ferro, em relação ao que se esperaria de suas idades. “Achamos que algo estranho estava acontecendo”, lembra Chiappini. Intrigados, Chiappini e Anders pediram a um de seus colaboradores no projeto CoRoT, o astrônomo Benoit Mosser, do Observatório de Paris, que reanalisasse os dados sobre cada uma dessas estrelas em detalhe, para calcular melhor suas idades. A confirmação da idade das estrelas pobres em ferro causou espanto. “Elas são jovens demais”, diz Chiappini. “Uma delas, por exemplo, tem a proporção de elementos químicos esperada para uma estrela com 10 bilhões de anos, mas sua idade é de apenas 2 bilhões de anos.” Exceto em circunstâncias muito especiais, os astrônomos dificilmente conseguem determinar a idade de estrelas da Via Láctea situadas a mais de 80 anos-luz de distância do Sol. A maioria dos telescópios não consegue determinar as propriedades de estrelas tão distantes 58 z junho DE 2015
com a precisão necessária para que os astrônomos consigam calcular a idade delas. Há, porém, uma maneira menos precisa de estimar se uma estrela longínqua é muito nova ou muito antiga examinando seus elementos químicos. Relógio quebrado
Esse método é o do “relógio químico”, que se baseia no seguinte raciocínio: as primeiras estrelas da galáxia teriam nascido a partir de nuvens de gás primordial, composto apenas por elementos químicos leves – hidrogênio, hélio e um pouco de lítio –, criados durante o Big Bang, o evento que teria originado o Universo. A morte explosiva de estrelas gigantes, com massas de 8 a 10 vezes superiores à do Sol, teria acrescentado elementos químicos mais pesados ao gás primordial, especialmente os chamados elementos alfa: oxigênio, magnésio, silício, cálcio e titânio, criados a partir da fusão de núcleos de hélio no interior dessas estrelas. Essas explosões, conhecidas como supernovas do tipo II, são as principais fontes desses elementos químicos na galáxia. Já a maior parte do ferro da Via Láctea vem de outro tipo de supernova, as variedades Ia. São estrelas anãs brancas que, depois de sugarem uma
certa quantidade de gás de uma estrela gigante vizinha, acabam explodindo e espalhando átomos de ferro pela galáxia. As supernovas de tipo II demoram milhões de anos para explodir, enquanto as de tipo Ia levam muito mais, bilhões de anos. Essa diferença entre as escalas de tempo das supernovas funciona como um marcador temporal para estimar a data de nascimento das estrelas da Via Láctea. Desse modo, quanto maior a abundância de elementos alfa de uma estrela em relação à abundância de ferro, mais velha a estrela deve ser. Até a identificação das 20 estrelas incomuns, o método do “relógio químico” parecia funcionar sempre. Em todos os casos nos quais havia sido possível fazer medições que permitiam calcular a idade das estrelas, os valores a que os astrônomos chegavam correspondiam bastante bem à estimativa obtida pelo “relógio químico”. Em 2012, Chiappini e seus colegas chamaram a atenção para o fato de que seria possível usar o telescópio espacial CoRoT para obter idades de várias estrelas situadas a mais de 80 anos-luz do Sol, para as quais não havia outro méto do disponível além do “relógio químico”. “O CoRoT mede variações de brilho a
Bolsão de gás primordial que não interagiu com o restante da galáxia pode ter gerado as estrelas jovens feitas de material antigo
cerca de 20 mil anos-luz do centro galáctico, localizado perto de uma estrutura da galáxia chamada de barra. “É uma região em que se acredita que o gás e as estrelas do disco giram com a mesma velocidade que o gás e as estrelas da barra”, explica Chiappini. “Por essa razão, é mais difícil haver por ali os choques entre nuvens de gás necessários para formar as estrelas.” Se de fato se comportar assim, essa região pode ter abrigado bolsões de gás que mantiveram as características primordiais. gás intergaláctico
1
Sol
imagens 1 eso 2 nasa infográfico ana paula campos
2
partir das quais podemos obter o raio, a massa e a distância da estrela”, ela explica. “Com esses dados, é possível calcular a idade.” Desde então, Chiappini vem articulando uma colaboração entre astrônomos de especialidades que não costumam interagir. Chamada de CoRoGEE, a colaboração é uma parceria entre pesquisadores do CoRoT, instrumento mais conhecido por suas descobertas de exoplanetas, e pesquisadores envolvidos com o Apogee, que também conta com a participação de brasileiros ligados ao Laboratório Interinstitucional de e-Astronomia (LIneA), no Rio de Janeiro. Foi combinando os dados de estrelas observadas tanto pelo CoRoT quanto pelo Apogee que os pesquisado-
res descobriram as estrelas estranhas para as quais o relógio químico parece não funcionar. “Seria possível formar uma estrela jovem com abundância elevada de elementos alfa em relação à de ferro”, Chiappini sugere, “caso uma porção de gás primordial pouco enriquecido por supernovas do tipo Ia houvesse sobrado em algum lugar isolado, sem participar da evolução química geral da galáxia”. Esse gás teria ficado ali por bilhões de anos, sem interagir com o gás do resto da galáxia, e só depois teria formado estrelas. Os dados do Corot e do Apogee também sugerem que as 20 estrelas jovens feitas de material antigo tenham nascido em algum lugar do disco da Via Láctea a
Outra possibilidade é que essas estrelas tenham se formado a partir de um gás de composição primordial que teria caído na Via Láctea apenas recentemente, vindo do meio intergaláctico. “Mas é difícil entender por que isso teria acontecido mais para o centro da galáxia e não em toda parte”, diz Chiappini. “Essa descoberta é interessante porque mostra que há diversos processos ocorrendo na nossa galáxia, em particular próximo à barra central”, diz a astrofísica Beatriz Barbuy, da Universidade de São Paulo (USP), que estuda a evolução química da Via Láctea. “Sabemos, a partir da observação de outras galáxias e de modelos dinâmicos, que as barras permitem uma migração de gás e estrelas em dois sentidos, da barra para o disco e do disco para a barra.” Os pesquisadores precisam descobrir mais dessas estrelas para entender sua origem. Isso será possível, eles esperam, combinando os dados da missão espacial Kepler-2 com os do Apogee-2, o novo levantamento de estrelas da Via Láctea que vem sendo realizado pelo projeto Sloan Digital Sky Survey. n Artigo científico CHIAPPINI, C. et al. Young [Alpha/Fe]-enhanced stars discovered by CoRoT and Apogee: What is their origin? Astronomy & Astrophysics. v. 576, L12. 10 abr. 2015.
pESQUISA FAPESP 232 z 59
FÍSICA y
Menos perda de energia Grupo internacional produz em laboratório transistor de grafeno e fosforeno, materiais com um átomo de espessura Igor Zolnerkevic
Estrutura do transistor Campo elétrico externo Nitreto de boro Grafeno
Fosforeno Óxido de silício
60 z junho DE 2015
C
álculos de um trio de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) mostraram que, ao combinar dois dos mais interessantes materiais descobertos recentemente pela física, o grafeno e o fosforeno, é possível construir um transistor que funciona com uma dissipação de energia mínima. Medindo uns poucos nanômetros (milionésimos de milímetro), o dispositivo funcionaria graças a uma forma especial de combinar os dois materiais que permite preservar as características de cada um deles. José Padilha, Adalberto Fazzio e Antônio José Roque da Silva mostraram que, diferentemente do que acontece nos transistores atuais, de silício, os elétrons de uma corrente elétrica quase não perderiam energia ao passarem de uma folha de grafeno para uma de fosforeno, nem ao fazerem o caminho inverso. A previsão, publicada em fevereiro na Physical Review Letters, foi confirmada em laboratório por uma equipe da Universidade Nacional de Cingapura (NUS), da qual participa o brasileiro Antônio Castro Neto, diretor do Centro para Materiais Avançados 2D e do Centro de Pesquisa do Grafeno na NUS. Base do funcionamento dos computadores atuais, os transistores funcionam como os interruptores de energia que acendem e apagam uma lâmpada. Os estados de “ligado” e “desligado” representam os zeros e uns do código binário, a linguagem dos computadores. Os microprocessadores mais recentes contêm de 1 bilhão a 2 bilhões de transistores, cada um com 45 nanômetros de comprimento, feitos de materiais à base de
silício. Esses transistores são ligados uns aos outros – e aos demais componentes eletrônicos do microprocessador – por fios de metal (ouro ou cobre). Ao passar dos fios para os transistores e destes para os fios, os elétrons da corrente elétrica perdem parte de sua energia na forma de calor devido à resistência de contato entre o metal e o semicondutor. Atualmente esse calor não atrapalha o funcionamento dos microprocessadores. Mas, se a tendência de miniaturização desses componentes seguir no ritmo das últimas décadas, a situação pode se complicar. “Pode chegar uma hora em que a dissipação de calor queime o dispositivo ou impeça o seu funcionamento”, explica Padilha. Hoje professor na Universidade Federal do Paraná – Campus Avançado de Jandaia do Sul, o pesquisador fez os cálculos mostrando a possibilidade de construir transistores de grafeno e fosforeno em um estágio de pós-doutorado na USP, sob supervisão de Fazzio e José Roque. Nos últimos anos, pesquisadores de diversos centros imaginaram que a saída para o problema do contato estaria no grafeno. Descoberto em 2004, esse material é formado por átomos de carbono dispostos em um padrão hexagonal e com um átomo de espessura. Elétrons deslizam pelo grafeno milhares de vezes mais rápido do que no silício, e com uma perda mínima de energia. “O grafeno só tem um problema: não é um material semicondutor, como o silício”, explica Padilha. Os transistores são feitos com materiais semicondutores porque estes permitem controlar a passagem de elétrons e criar os zeros e uns
imagens josé padilha / ufpr
dos computadores. Os semicondutores só conduzem elétrons com energia superior a certo valor. No transistor, esse valor funciona como uma barreira, que pode ser elevada ou baixada com o auxílio de um campo elétrico. Essa barreira ajustável – ora ela deixa passar os elétrons, ora os bloqueia – torna possível usar essa propriedade para codificar informação binária. “Se o grafeno se comportasse assim, seria o material perfeito”, diz Padilha. Essa limitação do grafeno levou pesquisadores do mundo todo a procurar outros materiais feitos de uma única camada atômica. Vários foram descobertos, mas o interesse atual recai sobre aquele identificado mais recentemente: o fosforeno. Formado por uma camada monoatômica de fósforo, o fosforeno não permite que os elétrons se movam tão rapidamente quanto no grafeno, embora viajem mais rápido que no silício. A vantagem do fosforeno é que ele é semicondutor. Em dezembro de 2013, José Roque começou a discutir com Padilha e Fazzio a ideia de investigar como seria o contato ideal de um transistor de fosforeno em um circuito elétrico. “O fosforeno perde suas propriedades semicondutoras se soldado a fios de cobre ou ouro de um circuito convencional”, explica Padilha. “Além disso, o contato com os átomos dos fios metálicos provocaria a dissipação de energia dos elétrons na forma de calor.” Padilha, Fazzio e José Roque propuseram contornar o problema substituindo o contato de fios metálicos por uma camada de grafeno sobreposta a uma de fosforeno. Enquanto o contato entre os fios e o fosforeno seria feito por ligações
químicas entre átomos, as camadas de fosforeno e grafeno são ligadas por uma força atrativa de baixa intensidade, a interação de Van Der Waals. Apesar de tênue, essa força eletromagnética permite que os átomos do grafeno e do fosforeno compartilhem seus elétrons, sem que as propriedades eletrônicas de um material interfiram na do outro. Encontrada a solução, Padilha, Fazzio e José Roque calcularam o comportamento dos elétrons no transistor. É uma tarefa complicada, já que os elétrons não funcionam como minúsculas bolinhas que se movem no interior do dispositivo. Em vez disso, eles são uma mistura quântica de onda e partícula, cujo comportamento é descrito por equações matemáticas que levam meses para ser resolvidas em superclusters de computadores. Os resultados publicados na Physical Review Letters mostraram que o “sanduíche” de fosforeno e grafeno funciona como um transistor que perde pouquíssima energia em seus contatos e pode ser “ligado” ou “desligado” por um campo elétrico. Quase ao mesmo tempo, um time de físicos liderado por Barbaros Özyilmaz na NUS construiu em laboratório um transistor semelhante ao imaginado pelos brasileiros. A diferença é que as camadas de fosforeno, que funciona como semicondutor, e as duas tiras de grafeno, usadas para realizar o contato do transistor com o resto do circuito, feito de dispositivos eletrônicos de silício, são recobertas por uma camada de nitreto de boro hexagonal. Esse material protege as demais camadas do oxigênio do ar. O transistor funcionou perfeitamente
nos testes. “Obtivemos os melhores resultados entre todos os dispositivos de fosforeno já construídos”, afirma Antônio Castro Neto. Físico teórico da NUS e pesquisador do projeto “Grafeno: fotônica e opto-eletrônica: colaboração UPM-NUS” do programa São Paulo Excellence Chair (Spec) da FAPESP e sediado no centro MackGraphe, da Universidade Mackenzie, Castro Neto colaborou na análise dos dados do experimento, que confirmou as previsões do grupo da USP. Segundo Padilha, os mesmos cálculos podem orientar combinações de folhas de grafeno e outros semicondutores de camada atômica única. “Fizemos um transistor, mas poderíamos criar uma célula solar cujos elétrons, excitados pela luz do Sol, seriam transferidos quase sem perder energia da camada semicondutora para a de grafeno”, diz Padilha. “Há uma grande aposta na combinação de materiais bidimensionais, como esses, para produzir estruturas com novas propriedades”, conclui José Roque. n Projeto Propriedades eletrônicas, magnéticas e de transporte em nanoestruturas (nº 2010/16202-3); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Adalberto Fazzio (IF-USP); Investimento R$ 1.327.201,88 (FAPESP – para todo o projeto).
Artigos científicos PADILHA, J. E. et al. Heterostructure of phosphorene and graphene: Tuning the schottky barrier and doping by electrostatic gating. Physical Review Letters. v. 114. 12 fev. 2015. AVSAR, A. et al. Air-stable transport in graphene-contacted, fully encapsulated ultrathin black phosphorus-based field-effect transistors. ACS Nano. v. 9, n. 4. 13 mar. 2015.
Materiais monoatômicos: folha de fosforeno (no alto) e de grafeno (abaixo)
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oceanografia y
Mais finas e quebradiças Plataformas de gelo do oeste da Antártida perdem volume e uma delas pode desaparecer até o fim da década Marcos Pivetta
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E
m 1995, uma plataforma de gelo de 2.500 quilômetros quadrados, equivalente a pouco mais de uma vez e meia a área da cidade de São Paulo, desgarrou-se do gelo continental, que cobre a terra firme, e desintegrou-se em poucas semanas no mar de Weddell, o trecho do oceano Austral que banha a península antártica e parte do continente gelado. Era o fim da Larsen A, nome da plataforma. Sete anos mais tarde, em 2002, a Larsen B, uma plataforma vizinha cinco vezes maior, perdeu em um mês e meio cerca de um quarto de sua extensão. Blocos enormes de gelo passaram a vagar pelo oceano antes de derreter em decorrência das temperaturas em elevação naquela região. Desde então, o tamanho da parte restante da Larsen B passou a ser alvo de constantes monitoramentos. Um estudo com dados de satélite coordenado pela Nasa, a agência espacial norte-americana, publicado na edição deste mês do periódico científico Earth and Planetary Science Letters, estima que a parte restanUma das plataformas de gelo te da Larsen B, da ordem de 1.600 Larsen em fevereiro quilômetros quadrados, deve desade 2000: falhas parecer nos próximos cinco anos. A e fraturas em plataforma, cuja espessura atinge razão das altas temperaturas até 500 metros em alguns pontos,
Mudanças nas plataformas As plataformas do oeste estão afinando enquanto as do leste se mantêm ou ganham gelo
Variação da espessura do gelo entre 1994 e 2012 (em metro por década)
-25
-10
0
10
Plataforma Larsen B Larsen C Larsen D
Leste Oeste da Antártida
18% menos espessas
500 km
foto nasa/Landsat 7
Fonte Scripps
está derretendo e se fragmentando a um ritmo acelerado. “É surpreendente a velocidade com que isso está ocorrendo”, afirma Ala Khazendar, geofísico da Nasa, principal autor do estudo. Outro trabalho recente, com participação do brasileiro Fernando Paolo, que faz doutorado na Instituição Scripps de Oceanografia da Universidade da Califórnia em San Diego, detalha o mecanismo que estaria por trás do afinamento de outra plataforma de gelo do grupo Larsen. Em um artigo publicado em 13 de maio na revista científica The Cryosphere, pesquisadores do British Antarctic Survey, do Scripps, incluindo Paolo, e de outras universidades americanas mostraram que a espessura da plataforma Larsen C, cinco vezes maior do que a Larsen B, perde volume e está afinando em razão de dois processos. “Por cima, deve estar ocorrendo derretimento e compactação da camada superficial de firn, neve mais densa que cobre o gelo da plataforma, provavelmente devido a um aumento da temperatura atmosférica. Isso provoca a perda de ar do firn
“O derretimento das plataformas abre caminho para que o gelo aprisionado no manto, que está sobre o continente, deslize mais facilmente para o mar”, diz o glaciologista Jefferson Cardia Simões, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera. “Há um consenso de que o aquecimento global está atuando sobre o derretimento das plataformas de gelo na península antártica”, afirma Ilana Wainer, do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP), que trabalha com modelos climáticos sobre a interação do oceano com a atmosfera na região antártica . “E não se trata apenas de uma variação natural do clima.” Nos últimos 50 anos, a temperatura atmosférica média na península antártica aumentou 2,5ºC.
na superfície da plataforma”, diz Paolo. “Por baixo, no setor submerso da plataforma, ocorre um afinamento do gelo por causa do derretimento provocado pela chegada de águas de fundo mais quentes. Isso também causa uma mudança no fluxo de gelo, produzindo estiramento da plataforma. Nossas medidas apresentam incertezas consideráveis, mas só conseguimos explicar esse nível de afinamento da Larsen C se esses dois mecanismos estiverem atuando simultaneamente.” O estudo foi feito a partir da análise de dados de satélite e de oito levantamentos de radar realizados entre 1998 e 2012. O afinamento e eventual sumiço das plataformas, que são extensões de geleiras e do manto de gelo que recobre a Antártida, não causa diretamente a elevação do nível do mar. Seu gelo já está sobre o oceano e sua liquefação não muda o nível do mar. O mesmo raciocínio vale para o gelo marinho, que é muito mais fino e vaga ao redor da Antártida. O efeito do afinamento das plataformas de gelo sobre o nível do oceano é indireto.
A fragilidade das plataformas de gelo é maior na península, que abriga as regiões menos frias do continente, e na Antártida ocidental. Um estudo publicado na Science em 26 de março deste ano, do qual Paolo foi o autor principal, indica que as plataformas da porção ocidental perderão metade de seu volume em 200 anos se for mantida a sua atual taxa de afinamento. Entre 1994 e 2012, de acordo com dados de altimetria obtidos por satélites da Agência Espacial Europeia, algumas plataformas se tornaram até 18% menos espessas. “A situação é mais crítica no oeste do continente, mas também há sinais de mudanças no leste”, diz Paolo. Quando levam em conta o período analisado no estudo, os dezoito anos como um todo, os pesquisadores registraram um leve aumento na espessura das plataformas da Antártida oriental. Mas esse aumento se concentrou nos primeiros 10 anos monitorados. Ao olharem apenas os dados dos anos mais recentes, detectaram estabilização ou perda no volume de massa das plataformas do leste. É um sinal de que o afinamento também parece atingir as plataformas orientais. n
Artigos científicos PAOLO, F. S. et al. Volume loss from Antarctic ice shelves is accelerating. Science. v. 348, n. 6232, p. 327-31. 17 abr. 2015. HOLLAND, P.R. et al. Oceanic and atmospheric forcing of Larsen C Ice-Shelf thinning. The Cryosphere. v. 9, n. 3, p. 1005-24. 2015.
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zoologia y
Um zoológico entre as penas Aves abrigam uma grande diversidade de ácaros, a maior parte desconhecida
fotos gary bauchan / usda
André Julião
N
o fim de 2010 um mal atingiu as galinhas da cidade de Bastos, no interior de São Paulo, a maior produtora de ovos do Brasil. As aves mantidas nas granjas começaram a perder as penas, pararam de se alimentar e passavam o dia se coçando. A produção diminuiu consideravelmente e muitas galinhas foram abatidas para evitar o contágio. Logo se constatou que o problema era causado por um ácaro, mas identificá-lo não foi tão simples: era desconhecido pela ciência. O fato causou surpresa nos veterinários do Instituto Biológico, órgão da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado, que tem uma unidade no município, já que galinhas são conhecidas por sua importância econômica, e seus parasitas, bastante estudados. O ácaro em questão
Ao microscópio eletrônico: ácaro Michaelia numa pena (esquerda) e Opisthocomacarus umbellifer, com projeções em forma de penas
só foi descrito em 2013, pelo zoólogo russo Sergey Mironov, e era não só uma espécie nova como um gênero ainda não descrito. Pairavam no ar, porém, algumas dúvidas: quem seria o hospedeiro natural do Allopsoroptoides galli e como o aracnídeo teria infestado as galinhas? O fim do mistério foi resolvido pelo biólogo Fábio Akashi Hernandes, do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro. Ele e sua equipe encontraram o ácaro no anu-branco (Guira guira), uma ave bastante comum na maior parte do território nacional, como relata o pesquisador em artigo publicado em dezembro de 2014 na Parasitology Research. De acordo com Hernandes, o A. galli vive em perfeita harmonia com seu hospedeiro natural e as outras sete ou oito espécies de ácaro pESQUISA FAPESP 232 z 65
que habitam a plumagem da ave: todas, exceto uma, até então desconhecidas e agora em processo de descrição. “Diferentemente do que aconteceu com as galinhas de Bastos, a maioria dos ácaros de pena não prejudica seus hospedeiros”, explica Hernandes. Pesquisas recentes mostram que aves saudáveis carregam mais desses aracnídeos microscópicos do que as doentes. “Isso dá suporte à ideia de que ácaros de pena normalmente não são parasitas, mas têm atuação neutra ou mesmo benéfica para as aves”, diz a zoóloga Heather Proctor, da Universidade de Alberta, no Canadá, uma das maiores especialistas em ácaros no mundo. Os ácaros normalmente se alimentam do óleo excedente produzido na plumagem e assim evitam a proliferação de bactérias prejudiciais aos hospedeiros. O caso ocorrido na capital do ovo, como é conhecida a cidade, é um raro registro de transferência de ácaros selvagens para animais domésticos. A principal hipótese para a “contaminação” é o fato de as galinhas de Bastos viverem em ambientes abertos, onde os anus-brancos e outras aves transitam livremente em busca de alimento e água.
Um catálogo provisório Em meio à imensidade de espécies de ácaros prevista para o Brasil, os já descritos revelam uma surpreendente variedade de formas
O fato de uma ave comum como o anu-branco ter tantos ácaros desconhecidos dá uma dimensão de quão inexplorada é essa fauna invisível a olho nu. Menos conhecidos que os carrapatos, que também pertencem à subclasse Acari, os ácaros geralmente medem algumas centenas de mícrons (milésimos de milímetro) e existem no solo, no fundo do mar, nas plantas, no tapete da sala e mesmo na pele humana. Do cerca de 1 milhão de espécies de ácaro que se estima existir no mundo todo, só entre 50 mil e 60 mil são conhecidas. Os ácaros de pena pertencem basicamente às superfamílias Analgoidea e Pterolichoidea e menos de 2.500 espécies foram descritas pelos taxonomistas. O Brasil oferece todo um universo a ser explorado nas penas. Num estudo realizado em 2011, Hernandes, Heather Proctor e Michel Valim, atualmente no Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo, encontraram 185 espécies de ácaros em 218 espécies de aves brasileiras, o que corresponde a meros 12,4% da diversidade de aves do país, a segunda maior do mundo. Com base nesses números, eles estimaram que no Brasil 66 z junho DE 2015
fotos fabio akashi hernandes / unesp
Diversidade invisível
existem entre 900 e 5.300 espécies de ácaros de pena. “Creio que o número mais provável seja em torno de 2 mil”, diz Proctor. No mundo, podem ser 10 mil. “Só no Brasil há material para estudar por mais umas três vidas”, brinca Hernandes. Para dar uma ideia do desafio que representa identificar os ácaros das aves brasileiras, ele conta do dia em que um aluno do seu laboratório encontrou morto no campus da universidade um
o do Anisodiscus goodmani, cujo órgão copulatório masculino tem o dobro do tamanho do corpo inteiro. Ácaro 3D
Na pesquisa que começou em 2011 e conta com o mestrando Luiz Gustavo Pedroso e do estudante de graduação Matheus Gabriel, Hernandes descreveu várias novas espécies e pretende aprofundar parcerias com institutos internacionais que usam as mais recentes tecnologias de microscopia eletrônica, como o Departamento de Ao microscópio, é possível notar a Agricultura dos Esespecialização pela morfologia dos tados Unidos (Usda, na sigla em inglês). ácaros, adaptada a cada ambiente Os microscópios de varredura usados por eles permitem uma resolução impossível bico-de-lacre (Estrilda astrild), passari- nos aparelhos ópticos. “Em imagens que nho exótico, de origem africana, bastante fizemos em março deste ano conseguicomum no Brasil. Qual não foi a surpresa mos ver detalhes que nem sonhávamos, dos pesquisadores quando acharam sete como estruturas do aparelho bucal e da espécies de ácaros, “provavelmente todas formação da carapaça e dos escudos dos novas”, vivendo nas penas da ave. A ave ácaros”, conta. Outra tecnologia da qual recordista em espécies de ácaro é a Ara- ele pretende se beneficiar na parceria é tinga holochlora, um periquito nativo do o microscópio confocal com laser, em México e da América Central. Em 1995 que o feixe de luz faz um escaneamento a zoóloga Tila Pérez, da Universidade total do animal, gerando um modelo em Nacional Autônoma do México, iden- três dimensões. Enquanto não tem esse aparato mais à tificou 25 espécies de ácaros nessa ave. Dizer que vivem nas penas é uma defi- mão, Hernandes conta com o olhar treinição pouco precisa desses bichos. “Exis- nado da equipe. O artigo de 2014 relatem ácaros só das penas das asas, outros tou outro achado que dá uma noção da das penas ventrais, das dorsais, das plu- quase invisibilidade dos ácaros de pena. mas mais delicadas do pescoço e mesmo Na plumagem do anu-branco havia alos que vivem no cálamo, a parte da pena guns exemplares do A. galli, aquele que que fica dentro da pele”, explica Hernan- aterrorizou a capital do ovo, dentro de des, detalhando uma especialização que uma casca de ovo... de piolho. Funciovai muito além das espécies de ave. Ao nava como uma carapaça sobressalente microscópio, é possível notar essa espe- enquanto seu corpo estava vulnerável cialização pela morfologia dos ácaros, pelo processo de muda, no qual o animal adaptada a cada ambiente. São espinhos se despe de seu revestimento para fazer para se prender em asas, travas nas articu- outro, um pouco maior. n lações para não cair em momentos de turbulência e mesmo patas bem assimétricas, comuns naqueles que vivem em aves Projeto Diversidade e taxonomia de ácaros de pena (Arachnida: aquáticas. O ácaro do gênero Michaelia, Acari: Astigmata) em aves no Brasil (nº 11/50145-0); que passa toda a vida nas penas do biguá Modalidade Jovem Pesquisador; Pesquisador respon(Phalacrocorax brasilianus), tem o memsável Fábio Akashi Hernandes (IB-Unesp, Rio Claro); Investimento R$ 346.193,00 (FAPESP). bro dianteiro de um lado bem maior que o do outro, acredita-se que para se agarArtigo científico rar ao modo de vida voador e nadador da HERNANDES, F. A. et al. From cuckoos to chickens: a ave hospedeira. Outra característica bem caught-in-the-act case of host shift in feather mites peculiar, não relacionada ao hospedeiro, (Arachnida: Acari: Psoroptoididae). Parasitology Research. v. 113, n. 12, p. 4355-61. dez. 2014. são os peculiares órgãos sexuais, como pESQUISA FAPESP 232 z 67
tecnologia nanotecnologia y
Transporte seletivo Nanopartículas de sílica carregam antibióticos e eliminam bactérias sem causar problemas às células sadias Evanildo da Silveira
U
m dos caminhos da evolução das drogas farmacêuticas é tentar atingir e eliminar um microrganismo ou tumor sem prejudicar as células sadias do paciente e causar efeitos colaterais. Dentre as ferramentas biotecnológicas mais utilizadas em experimentos para esse fim estão as nanopartículas produzidas com vários tipos de materiais. No Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), instituição localizada em Campinas (SP) e vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, a sílica foi o material escolhido para compor essas nanoestruturas com diâmetros entre 10 e 500 nanômetros (a medida de 1 nanômetro equivale a 1 milímetro dividido por 1 milhão). Um novo tipo dessa nanopartícula poderá levar antibióticos pelo corpo humano para combater bactérias. Ela transporta o medicamento e tem um labirinto de canais internos onde o fármaco é estocado para ser liberado no interior dos microrganismos ou próximo a eles. O estudo do LNLS também levou ao desenvolvimento de dois outros tipos de nanopartículas: uma de prata, que tem propriedade bactericida, e outra com um “caroço” desse metal, recoberto por sílica, que transporta a droga em sua superfície.
68 z junho DE 2015
Autor principal do projeto, o pesquisador Mateus Borba Cardoso diz que a maior vantagem da nanopartícula é a capacidade de carregar uma grande quantidade do antibiótico. “As nossas podem ser ativas contra os microrganismos e inofensivas às células de mamíferos”, diz Cardoso. Os experimentos foram realizados com cultura de células humanas-padrão usadas em biotecnologia. As nanoestruturas de prata também não apresentaram efeitos secundários indesejáveis às células. O trabalho de Cardoso começou em 2010, quando o pesquisador desenvolveu uma estratégia para aprisionar carboidratos dentro de nanopartículas de sílica porosa. A pesquisa rendeu um artigo científico publicado em 2011 no Journal of Pharmaceutical Sciences. Nesse primeiro trabalho, ele diz ter se dado conta da possibilidade de controlar o tamanho das nanoestruturas de forma bem precisa. A equipe trabalhou com vários carboidratos diferentes, o que levou os pesquisadores a se perguntarem se não seria possível colocar moléculas biologicamente ativas dentro das nanopartículas porosas. Cardoso então testou a metodologia com uma proteína chamada lisozima em colaboração com o grupo do biólogo Jörg
Kobarg, ex-pesquisador do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), que funciona ao lado do LNLS, hoje professor do Departamento de Bioquímica e Biologia Tecidual do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A lisozima está presente na lágrima humana e é capaz de digerir parte da parede da maioria das bactérias, destruindo-as. “Surpreendentemente, verificamos que a nossa estrutura tinha um poder bactericida maior do que o da lisozima pura”, conta Cardoso. “Nesse ponto, conseguimos entender que as propriedades superficiais e o tamanho eram pontos cruciais para que uma determinada nanopartícula apresentasse efeito biológico.” O trabalho ilustrou a capa de uma das edições da revista Journal of Materials Chemistry, em 2012. Dessa forma, ficou claro para o grupo que a utilização conjunta com o fármaco ou princípio ativo produz efeitos biológicos mais acentuados do que a ação em separado. “Após entender como o tamanho e a superfície das nanopartículas se correlacionavam com as propriedades bactericidas, começamos a trabalhar com sistemas biológicos mais complexos como a interação dessas nanoestruturas com células tumorais e diferentes tipos
de vírus”, explica. “Dessa forma, começamos a sintetizar tipos de nanoestruturas que levam a droga em seus canais ou em sua superfície.” É o caso da sílica. Ao entrar em contato com a bactéria, pode acontecer um de dois efeitos esperados: a nanopartícula entrar no microrganismo e liberar o antibiótico, ou grudar no microrganismo (por fora) e soltar o medicamento perto de onde ele vai agir. Isso potencializa o poder bactericida, porque a ação da droga é somada à do próprio veículo. “Nós testamos essa tecnologia em duas bactérias, uma resistente apenas à tetraciclina e outra a esse antibiótico e à ampicilina”, conta Cardoso. “Contra as resistentes aos dois medicamentos nossa metodologia se mostrou eficaz.” Esse trabalho foi publicado em junho de 2014 no periódico Langmuir.
Nanoesferas com fármacos nas bactérias Antibiótico Nanopartícula Nanopartículas com tamanho entre 5 nanômetros (nm) e 500 nm têm na parte interna um labirinto de canais onde fica o antibiótico. Ao grudar na bactéria, liberam o medicamento Bactéria
imagem Maiara Emer / LNLS infográficO ana paula campos
dinâmica molecular
Mais recentemente, o grupo começou a desenvolver uma classe de nanopartículas um pouco mais complexas chamadas de “caroço-casca”. “O grande diferencial dessa estrutura é o fato de ligarmos quimicamente a elas moléculas do antibiótico ampicilina, o que lhes confere grande poder bactericida”, explica Cardoso. “Além disso, o antibiótico não é colocado ao acaso na sua superfície, mas em uma orientação predeterminada. Estudos teóricos baseados em dinâmica molecular realizados pelo químico Hubert Stassen [professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul] indicaram a configuração que nos proporcionou o maior efeito biológico.” A equipe considera essa estratégia a mais promissora por ter três meios de ataque ao patógeno: o caroço de prata, a casca de sílica e a droga. Na avaliação do engenheiro químico Antônio Hortencio Munhoz Júnior, coordenador do curso de Engenharia de Materiais da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, na área de drug delivery (liberação controlada de medicamentos), o que está mais avançado é o uso de polímeros orgânicos para o transporte do antibiótico e sua liberação paulatina no organismo humano. “O uso desses polímeros é comum tanto na literatura médica como na indústria farmacêutica”, diz Antônio. “Com o uso de nanopartículas de sílica para o transporte de antibióticos não conheço nenhum caso.”
300 nm Fonte Mateus Cardoso/LNLS
De acordo com Cardoso, já existem várias nanoestruturas aprovadas e em uso para tratamento de diferentes tipos de câncer em outros países. “Na parte dos antibióticos, até onde conheço, esse tipo de estrutura não está ainda sendo utilizada”, diz. “Um grupo nos Estados Unidos demonstrou propriedades bactericidas de outra classe de nanopartículas contra bactérias resistentes. No entanto, a técnica e os produtos para a sua produção são extremamente caros, o que pode inviabilizar uma possível utilização dessas partículas numa aplicação industrial”, conclui. “Eles utilizam nanopartículas de ouro, enquanto o nosso utiliza a sílica, material bem barato e possível de ser facilmente utilizado em escala industrial.” n
Projetos 1. Funcionalização de nanopartículas compósitas para aplicações biomédicas (nº 2011/21954-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador Responsável Mateus Borba Cardoso (LNLS); Investimento R$ 312.799,24 (FAPESP). 2. Funcionalização de nanopartículas de sílica: aumentando a interação biológica (nº 2014/22322-2); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador Responsável Mateus Borba Cardoso (LNLS); Investimento R$ 376.226,76 (FAPESP).
Artigos científicos Capeletti, L. B. et al. Tailored silica-antibiotic nanoparticles: Overcoming bacterial resistance with low cytotoxicity. Langmuir. v. 30, n. 25, p. 7456–64. 2014. Oliveira, L. F. et al. Mechanism of interaction between colloids and bacteria as evidenced by tailored silica lysozyme composites. Journal of Materials Chemistry. v. 22, p. 22851-58. 2012. Leirose, G. D. S. & Cardoso, M. B. Silica-maltose composites: Obtaining drug carrier systems through tailored ultrastructural nanoparticles. Journal of Pharmaceutical Sciences. v. 100, p. 2826-34. 2011.
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Computação y
Reconhecimento de ambiente Sistema desenvolvido com tecnologia de videogame transforma imagens em sons para simplificar o cotidiano de deficientes visuais Dinorah Ereno
A
partir de uma tecnologia disponível no mercado, o sensor Xbox Kinect, lançado pela Microsoft para jogos de videogame, pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) desenvolveram um sistema, ainda em fase experimental, que converte vídeos em informações sonoras para auxiliar deficientes visuais em suas tarefas cotidianas. A tecnologia Kinect possui duas câmeras, uma delas com um sistema que emite e captura luz infravermelha, reconhecido por um algoritmo que confere um valor de profundidade – ou distância da câmera – para cada ponto da imagem. Com base nesses dados é possível identificar objetos e usuários no ambiente sem se confundir com os seus contornos e variações de luzes e cores. No projeto conduzido na Unicamp em parceria com o pesquisador Dinei Florêncio, da Microsoft, foi montado um protótipo que teve como suporte um capacete de skate. Em cima do capacete foi colocado um sensor Kinect com as duas câmeras – os itens restantes que fazem parte do equipamento original 70 z junho DE 2015
foram retirados – conectadas a um laptop com grande poder de processamento de informações, além de um giroscópio, um acelerômetro e uma bússola, dispositivos que registram, em conjunto, mudanças de direção da cabeça. O laptop é carregado pelo usuário dentro de uma mochila. “Os dados do ambiente captados pela câmera são processados pelo computador, que retorna a informação para o usuário em áudio”, diz Siome Klein Goldenstein, professor do Instituto de Computação da Unicamp e coordenador do projeto, financiado por FAPESP e Microsoft dentro do Programa Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite). O usuário conta ainda com fones de ouvido com tecnologia bone conduction, em que o áudio é transmitido aos ouvidos por meio da condução do som pelos ossos do crânio. Isso permite que os ouvidos fiquem livres para escutar outras fontes sonoras do ambiente, e não apenas os feedbacks de áudio que o sistema fornece, o que ocorreria caso fossem utilizados headphones comuns. Siome explica que durante o projeto foram estudados vários cenários de uso
para a tecnologia. Uma das aplicações que já estão prontas é um módulo de detecção e reconhecimento de pessoas em um ambiente fechado. Para que o sistema faça o reconhecimento, é preciso primeiro criar um cadastro de pessoas. “Utilizamos uma técnica de localização de face e empregamos um algoritmo para classificação de cada uma das pessoas do cadastro”, explica Laurindo de Sousa Britto Neto, doutorando no Instituto de Computação da Unicamp e participante do projeto. Quando o usuário entra em um recinto com pessoas previamente cadastradas, o módulo de detecção e reconhecimento de face passa a informação para o módulo de áudio 3D, configurado para reproduzir um som na localização espacial de cada um dos presentes na sala. “Ao escutar o nome de cada uma das pessoas, o usuário saberá a posição exata em que ela se encontra”, explica Siome. “É como se o som saísse da cabeça da pessoa identificada pelo módulo de detecção.” O objetivo é fazer com que o deficiente possa virar o rosto na direção certa e se comunicar da forma mais natural possível.
conduzidos com deficientes visuais. Após a realização de todos os experimentos necessários para a validação do novo sistema, ele poderá ser compartilhado com toda a comunidade. Abordagem simplificada
fotos eduardo cesar
Sensor com câmeras e equipamentos que registram mudanças de direção da cabeça do usuário faz parte do protótipo da Unicamp
A técnica de áudio 3D foi um capítulo à parte no desenvolvimento do projeto porque cada ouvido reage de forma diferente aos estímulos do mundo externo, segundo Siome. A pesquisa com áudio 3D foi conduzida por Felipe Grijalva Arévalo, equatoriano que chegou ao Brasil em 2012 para fazer o mestrado sob orientação do professor Luiz César Martini, da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação da Unicamp, deficiente visual que trabalha com pesquisas direcionadas para esse público. Como cada cabeça tem uma anatomia
diferente, é preciso recorrer a um processo chamado de personalização para gerar áudio 3D. “A abordagem mais simples consiste em usar medidas já conhecidas de anatomia da orelha e, a partir daí, traçar um modelo de personalização”, relata Felipe. Ele pesquisou o tema na sua dissertação de mestrado, coorientado por Siome, e atualmente continua a trabalhar com áudio 3D em sua tese de doutorado. Os testes foram feitos inicialmente com pessoas vendadas; na próxima etapa, após aprovação pelo comitê de ética da Unicamp, serão
Outra aplicação que está em fase de finalização é um sistema de auxílio à navegação capaz de informar ao usuário onde há obstáculos à sua frente. “O Kinect posicionado na cabeça do deficiente irá captar os quadros do vídeo que serão segmentados, por meio de algoritmos, em diversos planos, como chão, porta, escada”, explica Laurindo Neto. As informações são então repassadas em áudio para o usuário. O projeto teve a participação de Vanessa Maike sob orientação de Maria Cecilia Baranauskas, do Instituto de Computação (IC), que trabalhou com experimentos na área de interfaces naturais, que envolvem formas naturais de interação entre as pessoas e os computadores, e de Anderson Rocha, também do IC, na parte de biometria. A ideia de transformar imagens em som para deficientes visuais não é nova, mas as tecnologias utilizadas pelo grupo de pesquisa da Unicamp resultaram em uma abordagem de reconhecimento mais simples para o usuário, com reprodução do ambiente natural. O dispositivo mais conhecido no mercado com esse conceito é o The vOICe, criado por Peter Meijer, do Laboratório de Pesquisas Philips, na Holanda. O sistema consiste de uma câmera comum acoplada a óculos – também pode ser utilizada a do smartphone –, que captam as imagens do ambiente, convertidas em imagens por um computador e transmitidas por meio de fones de ouvido. Nesse caso, a câmera capta as cenas da esquerda para a direita e essas informações são recebidas pelo usuário no ouvido esquerdo e direito, alternadamente. n
Projetos 1. Visão para o cego: traduzindo conceitos visuais 3D em informações de 3D de áudio (nº 2012/50468-6); Modalidade Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite); Pesquisador responsável Siome Klein Goldenstein (Unicamp); Investimento R$ 32.648,40 (FAPESP) e R$ 32.648,40 (Microsoft). 2. Aprendizado de máquina em processamento de sinais aplicado ao áudio espacial (nº 2014/14630-9); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisador responsável Luiz César Martini (Unicamp); Bolsista Felipe Leonel Grijalva Arévalo (Unicamp); Investimento R$ 136.000,80.
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Biotecnologia y
Ativos naturais
Nanoestruturas para fármacos Sistema de obtenção e transporte de ativos naturais funciona a partir de sangue bovino
Peptídeos
Glóbulos vermelhos do sangue são fonte de proteínas e lipídeos para a produção
Hemoglobina
de pequenas cápsulas e candidatos a medicamentos
Glóbulo vermelho
Dinorah Ereno
1 Extração dos peptídeos Da hemoglobina bovina, uma proteína presente nos glóbulos vermelhos do
P
esquisadores de Brasília encontraram no sangue matéria-prima para encapsular moléculas com uso potencial contra cânceres, fungos e bactérias em futuras aplicações terapêuticas. Das hemácias, eles obtiveram fosfolipídeos, uma espécie de gordura empregada na fabricação de lipossomos – nanoestrutura semelhante a pequenas cápsulas esféricas, utilizada para transportar fármacos e cosméticos para regiões específicas do corpo. Ainda a partir das hemácias, mais especificamente da proteína hemoglobina encontrada nos glóbulos vermelhos, também conhecidos como eritrócitos, eles extraíram peptídeos (fragmentos de proteína) com atividades farmacológicas. “Proteínas como a hemoglobina possuem inúmeros peptídeos internos à sua estrutura que podem apresentar bioatividade distinta daquela da proteína original”, explica Luciano Paulino da Silva, coordenador do grupo de Nanobiotecnologia da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia. “Desde a década de 1980 existem relatos na literatura científica de que fragmentos de proteínas contêm atividades biológicas”, relata. “Mas, pelas
72 z junho DE 2015
sangue, são extraídos peptídeos com uso potencial para tratamento de câncer e combate a fungos e bactérias
pesquisas que fizemos, esses fragmentos ainda não haviam sido aplicados na forma de nanossistemas como constituintes de lipossomos.” A pesquisa, conduzida em parceria com a Embrapa e a Universidade de Brasília (UnB), resultou em um depósito de patente tanto pela obtenção dos peptídeos como pela estratégia utilizada para a produção de lipossomos. “Extraímos os fosfolipídeos das membranas das hemácias e formulamos os lipossomos a partir do próprio componente da célula”, relata Luciano. “A obtenção de lipossomos de hemácias realmente é uma inovação porque os similares comerciais disponíveis no mercado são preparados a partir de fosfolipídeos sintéticos ou naturais a partir de gemas de ovos e de outras fontes”, diz Eneida de Paula, professora do Departamento de Bioquí-
Peptídeos
Nanocápsula
Nanocápsula com peptídeos Lipossomo
2
Encapsulamento dos bioativos Os peptídeos são então colocados na forma de nanopartículas dentro de lipossomos, uma estrutura
Lipossomos com nanocápsulas
que lembra pequenas cápsulas esféricas
Fosfolipídeos
3
Produção de lipossomos Os lipossomos utilizados na
Célula
pesquisa foram produzidos com fosfolipídeos de origem natural, um tipo de gordura extraída da membrana dos
4
glóbulos vermelhos
Mecanismo de ação Os peptídeos encapsulados nas nanoestruturas são entregues diretamente à célula do organismo
como bioativos na indústria química e farmacêutica tanto animal como humana, para possíveis tratamentos de doenças. Outros compontentes do sangue, como peptídeos, também são estudados pelo pesquisador. “A hemoglobina apresenta similaridade celular entre diferentes organismos, o que abre um leque de possibilidades para uso da tecnologia”, relata Luciano. Como a hemoglobina é uma proteína com quase 600 aminoácidos, para extrair apenas os peptídeos de interesse para a pesquisa – entre 5 e 20 – foi preciso colocá-la em meio aquoso com uma enzima específica para essa finalidade, processo chamado de hidrólise enzimática. Os peptídeos extraídos foram colocados dentro de lipossomos, que tem potencial de levar o fármaco para a célula do organismo que necessita de tratamento. A avaliação dos efeitos antitumorais dos peptídeos foi feita a partir da hemoglobina hidrolisada de camundongo in vitro, em um modelo para estudo de câncer de mama. Os testes foram conduzidos em laboratório pela bióloga Graziella Anselmo Joanitti, professora da UnB, que trabalha com aplicação de nanotecnologia na biomedicina na área de câncer, e por Cínthia, com células isoladas de câncer de mama de camundongos. “Inicialmente, fizemos testes com peptídeos administrados na forma livre e observamos um efeito sutil na redução da viabilidade das células tumorais”, relata Graziella. Em seguida, foram testados componentes peptídicos da hemoglobina na forma nanoestruturada. “Quando encapsulados em lipossomos, o efeito antitumoral in vitro foi bem mais expressivo.”
que necessita de tratamento, com menos efeitos colaterais do que
Câncer e agricultura
nos tratamentos convencionais
Na primeira etapa da pesquisa, o conjunto de todos os peptídeos obtidos passou por testes. Na próxima fase, os pesquisadores farão a identificação das moléculas com papel mais preponderante na redução de células tumorais in vitro e irão investigar os mecanismos de ação envolvidos. Graziella ressalta que os lipossomos constituídos pelos próprios componentes das hemácias, quando utilizados para transporte de bioativos, possivelmente não são reconhecidos como invasores pelo organismo. A expectativa dos pesquisadores brasilienses é futuramente utilizar essa estratégia para tratamento de câncer em humanos, mas para isso toda uma sequência de testes pré-clínicos e clínicos precisa ser seguida. Por enquanto, eles estão na fase de estabelecimento de colaborações com outros grupos de pesquisa da Embrapa para procurar novos fármacos destinados ao tratamento de doenças causadas por microrganismos como bactérias patogênicas e também por parasitas que provocam grandes prejuízos à agropecuária nacional, como berne – uma larva da mosca Dermatobia hominis –, infestação por carrapato e pela mosca-dos-chifres. n
infográfico ana paula campos ilustraçãO alexandre affonso
Fonte Luciano Paulino da silva
mica, do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Os estudos que resultaram nesse trabalho foram conduzidos pela bióloga Cínthia Caetano Bonatto durante a sua dissertação de mestrado na UnB, orientada por Luciano. O pesquisador lidera um grupo na Embrapa que estuda alternativas para resíduos agropecuários que são, em geral, descartados. No caso, foi utilizado sangue bovino e de camundongo. De um boi de tamanho médio abatido, por exemplo, pode-se obter até 20 litros de sangue. “Os lipossomos que formulamos têm potencial de uso para diversos tipos de fármacos”, diz Cínthia, que continua a se dedicar ao tema no doutorado, em que também utiliza plantas. Algumas de suas possíveis aplicações são em quimioterapias, para reduzir os efeitos adversos do tratamento. Ou ainda
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humanidades Patrimônio y
Com os pés fincados na
história Pesquisadores acompanham as lutas das comunidades remanescentes de quilombos do Vale do Ribeira por seus territórios e tradições Texto Fotos
“A
Carlos Fioravanti
Eduardo Cesar, de Eldorado, SP
qui fazemos duas coisas importantes. Saímos do eu para trabalhar para o nós e saímos do meu para trabalhar para o nosso”, sintetizou Benedito Alves da Silva, mais conhecido por Seu Ditão, sentado sobre uma mesa de madeira baixa e grossa à frente do altar da igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, no coração do bairro rural de Ivaporunduva, no município de Eldorado, em meio à maior área contínua de Mata Atlântica do país, no sudoeste paulista. Sua voz calma espalhava-se pela igreja de paredes pintadas de branco, portas largas de madeira verde, com vigas de madeira reforçadas com placas de aço, construída pelos escravos e inaugurada em 1791. À sua frente, no início da tarde do dia 11 de maio de 2015, estava um grupo de pré-adolescentes de uma escola de Uberaba, Minas Gerais, cercados por professores e monitores de camiseta laranja. “O que é meu? A casa, as roupas”, prosseguiu o homem alto de 60 anos, cabelos brancos, a pele negra lisa como se tivesse 30 anos menos. “E o que é nosso? A terra.” Seu Ditão divide o tempo entre cuidar de sua plantação de banana e hortaliças e falar de seu povo e res-
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Uma tradição renasce: mutirão de colheita de arroz organizado por Hermes Modesto Pereira (na página à esquerda). Ao lado, Leide Miranda Jorge pESQUISA FAPESP 232z 75
No meio da floresta
Faú Biguá Preto
BR-373 Morro Seco Maria Rosa Ribeirão
Pilões
Pedro Cubas de Cima Abobral
Galvão São Pedro Eldorado
Peropava
BR-116
Jurumim
Bananal Castelhanos Pedro Cubas Caiacanga Ivaporunduva Poça Sapatu Nhunguara Bombas Padre André I André Lopes Rio da Cláudia Padre André II
Desidérrio Cangume Porto Velho BR-476
Iporanga
João Surrá
Ribeirão Grande/ Terra Seca
São Paulo Bagre
Pedra Preta/Paraíso Rio das Minas
Mandira Porto Cubatão
Taquari/ Santa Maria
São Paulo
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Iguape
Ex-Colônia Velha
Cedro
Fonte isa
Momuna
Lençol Capitão Brás Manoel Gomes
Praia Grande
Reginaldo
Paraná
Rio Ribeira de Iguape
Piririca
Varadouro
ponder às perguntas dos grupos de escolas que chegam quase todo dia. “Você é um tipo prefeito daqui?”, perguntou um dos meninos, fascinado diante das histórias de sofrimento, sacrifício e resistência, acompanhadas por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) desde 2003. Seu Ditão, agora com um largo sorriso, explicou que ele era apenas um dos líderes da comunidade, mas já tinha sido presidente da associação de moradores, que gerencia a pousada em que os visitantes haviam se instalado para passar aquele dia e o seguinte. Depois de meia hora de conversa, todos saíram, andaram um pouco e pararam diante de uma casa de pau a pique. Seu Ditão explicou como era construída – com madeira e cipó para a estrutura, terra para as paredes, sapê para a cobertura – e em seguida os meninos se divertiram amassando com os pés o barro com que cobriram uma das paredes. Ao lado da casa de pau a pique, hoje pouco usada, há outra, de alvenaria, com três antenas parabólicas para TV por satélite. Os sinais de modernidade e o conforto são recentes. Foi há
n n n n n n n
Terras de quilombo Terras de quilombo reconhecidas Bacia hidrográfica do rio Ribeira Unidades de conservação Limites municipais Limite estadual (SP/PR) Estradas e rodovias
apenas 10 anos que os moradores de Ivaporunduva, após contínuas reivindicações, ganharam luz elétrica, a primeira escola – antes as crianças tinham de acordar às 3 da madrugada para pegar uma canoa e estudar na cidade –, acesso à internet e uma ponte de concreto sobre o rio Ribeira de Iguape. A outros bairros ainda se chega por barco ou balsa, e a um deles apenas por uma trilha na mata, após três horas de caminhada. O que mais mudou, ainda gera conflitos e é o que define as relações sociais e o modo de viver nas 66 comunidades autodenominadas descendentes de quilombolas no Vale do Ribeira é a forma de apropriação e uso do território. Quilombolas eram escravos ou ex-escravos negros refugiados em locais chamados quilombos durante e após o período da escravidão no Brasil, abolida oficialmente em 1888. “Em 200 anos, passamos da completa ausência de Estado sobre o território para um quadro complexo, com a participação de muitos atores, públicos e privados, com leis cada vez mais restritivas sobre o uso da terra”, observou Célia Futemma, bióloga com pós-graduação em Antropologia e pesquisadora da
mapa adaptado de mapas do isa ediçãO de arte ana paula campos
As comunidades quilombolas do Vale do Ribeira estão integradas a amplas áreas preservadas de Mata Atlântica
Unicamp, que visitou os bairros quilombolas do Vale do Ribeira pela primeira vez em 2008. Com seu trabalho, Célia ampliou os estudos iniciados cinco anos antes na região pelo antropólogo Rui Murrieta e pela ecóloga Cristina Adams, que então desenvolviam projetos de pós-doutorado na área de Antropologia Ecológica, uma das vertentes de trabalho do grupo coordenado por Walter Neves no Instituto de Biociências (IB) da USP. Roças de baixo impacto
Os estudos mais recentes desse grupo reforçaram a hipótese de que o método de plantio adotado pelos quilombolas – à primeira vista aparentemente agressivo por implicar o corte e a queima de áreas de vegetação nativa – tem baixo impacto sobre a floresta e os animais que a ocupam, como os próprios agricultores diziam há tempos. “O fogo destrói?”, indagou o biólogo Alexandre Ribeiro Filho na manhã do dia 1º de abril no Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP, ao apresentar os resultados de sua pesquisa de doutorado, em um debate organizado por Cristina Adams sobre as formas de uso do território quilombola. “Nem sempre”, respondeu ele. Por meio de sensores enterrados no solo, Ribeiro Filho verificou que o fogo usado para abrir uma área de plantio faz a temperatura do solo subir em média 10 graus Celsius. Suas análises indicaram que as chamas, apesar do espetáculo impressionante, em geral queimam principalmente as folhas e galhos finos, de modo
que 85% da vegetação resiste e os nutrientes permanecem no solo. “De modo geral o fogo não altera a quantidade de matéria orgânica”, concluiu. As roças, antes criticadas por supostamente prejudicarem a biodiversidade da floresta, podem até mesmo servir de fonte de alimento para animais da floresta, de acordo com a pesquisa de doutorado do biólogo Herbert Medeiros Prado, orientado por Murrieta e concluído em 2012 no IB-USP. Em 60 áreas, usando câmeras fotográficas noturnas, Prado identificou antas, jaguatiricas, catetos (porcos selvagens), tamanduás-mirins, pacas, veados mateiros, cachorro-do-mato, gambás e um bicho raro, a irara-branca, mamífero de corpo comprido, pernas curtas e cauda peluda e longa. Os animais eram vistos tanto nas matas em regeneração ou secundárias, usadas para o plantio, quanto na floresta preservada. “Macaco, por exemplo, gosta de milho”, observou a gestora ambiental Daniela Ianovali ao longo de seus levantamentos de campo para sua pesquisa de mestrado, realizada sob orientação de Cristina Adams e apresentada no final de maio na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP. O baixo impacto das plantações sobre a floresta, sugerido pelos novos argumentos, somado às crescentes limitações legais para uso do fogo, ajuda a entender por que a cobertura florestal representava de 81,3% a 94,3% do atual território de quatro bairros quilombolas examinados pelos pesquisadores.
Pupunha no pé do morro, colada à mata: cultivo comercial, com incentivo do governo, concorre com as roças de milho e cana próximas às casas
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O dia a dia quilombola: Isabel da Costa Moraes fazendo farinha de mandioca, Ana Maria Galácio com sua colcha de retalhos, Elvira da Silva Pedroso fazendo artesanato com fibras de bananeira e Benedito Silva explicando como se faz uma casa de pau a pique
Ainda assim, os pesquisadores defendem que o método tradicional de cultivo agrícola adotado pelos quilombolas poderia ser aperfeiçoado. “Se mudar o formato das roças de quadrado para retangular, a recuperação da floresta será mais rápida”, disse Eduardo Gomes, pesquisador do Instituto de Botânica, para os colegas pesquisadores reunidos na USP. Depois de comparar a regeneração da floresta em 10 áreas de pousio – período em que a terra é deixada sem semeadura para se recuperar, após o cultivo – com idade variando de 2 a 60 anos e formato quadrado ou retangular, ele concluiu que a mata se refaz mais rapidamente nas áreas retangulares. “A regeneração da mata não começa exatamente das bordas para o centro, mas a uma distância de 10 a 20 metros”, disse ele. “Faz sentido”, concordou Antonio Jorge, agricultor do bairro de Pedro Cubas, em Eldorado, ao conhecer a conclusão do trabalho. As estradas e suas consequências
Em meados do século XIX, quando começou a ser ocupada por escravos fugidos, libertos ou abandonados por seus donos, a terra era de quem chegasse primeiro. Os primeiros ocupantes exploravam ouro e depois cultivavam arroz e criavam porcos, que vendiam nas cidades. A partir da década de 1950, Célia observou, as estradas – primeiramente, o trecho da BR-116 entre São Paulo e Curitiba, e depois as ramificações – trouxeram outros interessados por terra e pela exploração de palmito. Pressionados, moradores antigos se mudaram principalmente para Curitiba, São Paulo e Baixada Santista, às vezes mandados pelos pais. “Eu saí em 1965, aos 13 anos, com uma remessa de moças, para trabalhar fora”, contou Edvina Maria Tie Braz da Silva, aos 70 anos, na varanda de sua casa, no bairro de Pedro Cubas de Cima, em uma manhã de chuva fina que encharcava o terraço à frente. “Fui chorando, a pé, eu não 78 z junho DE 2015
queria sair, mas havia muitos homens chegando para tomar nossas terras e as mães tinham medo do que poderia acontecer com as filhas.” Dona Diva, como é chamada, trabalhou como empregada doméstica e em hospitais da prefeitura de São Paulo. Em 2000 ela se aposentou, voltou e ajudou a criar a associação de moradores de Pedro Cubas de Cima para tentar reaver as terras dos fazendeiros que estão na área de 6 mil hectares reconhecida como território quilombola. Maria Sueli Berlanga – ou Irmã Sueli, por ser freira da Ordem das Pastorinhas – notou o que chamou de invisibilidade dos moradores dos então chamados bairros negros logo ao chegar a Eldorado, em 1986, com o propósito de mediar os conflitos de terras. A situação começou a mudar com a Constituição de 1988, que reconheceu o direito das comunidades de remanescentes de quilombos à terra que ocupavam, e Irmã Sueli ajudou os moradores dos bairros negros na difícil tarefa de assumir o passado, marcado pelo sofrimento e rejeição. “A identidade quilombola, trazida à tona pela Igreja Católica, ajudou a garantir a posse da terra”, observou Cristina Adams. Com base em levantamentos históricos e cartográficos, os territórios quilombolas começaram a ser reconhecidos a partir de 1997, como primeiro passo para receber o título de propriedade legal da terra. Em todo o país, cerca de 2.400 comunidades quilombolas já obtiveram o reconhecimento de terras, mas menos de 100 receberam o título de propriedade. Agora a propriedade da terra pertence à associação de moradores de cada bairro de quilombolas, para evitar que seja vendida e seus donos tenham de migrar para as cidades, como antes. Segundo a Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), que apoia os agricultores na regularização das propriedades e na melhoria dos plantios, o bairro quilombola de Ivaporonduva, atualmente com 94 famílias, é
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o único do Vale do Ribeira com todo o território oficialmente registrado em nome da associação de moradores. Em geral os territórios quilombolas incluem áreas ocupadas por pequenos ou grandes proprietários particulares, em meio a sítios arqueológicos, cascatas, cavernas e áreas preservadas de Mata Atlântica. Um território quilombola próximo a Eldorado, reconhecido há poucos anos, abriga fazendas particulares produtoras de banana, uma das bases da economia da região. Nem todos os fazendeiros aceitam sair, mesmo diante de uma proposta de indenização pelos órgãos do governo, gerando processos judiciais que atravessam muitos anos até serem concluídos. “A história não foi inteiramente resolvida, os preconceitos e as disputas por terras continuam”, disse Irmã Sueli na tarde do dia 12 de maio em seu escritório. Ela é também advogada e defende os direitos dos quilombolas, nos últimos anos em colaboração com a Defensoria Pública estadual e federal. Sobre um de seus armários de metal ela
mantém um retrato de Carlos da Silva, morador do bairro de São Pedro assassinado por pistoleiros em 1982. Em 2011, Laurindo Gomes, liderança de Praia Grande, no município de Iporanga, desapareceu misteriosamente. “A copiosa legislação agrária brasileira tem servido não somente como garantia ao processo de reconhecimento, regularização e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, mas também como argumento jurídico para contestação das terras já tituladas, como é o caso de ações populares que foram propostas e que se encontram em curso no estado do Pará”, escreveu Joaquim Shiraishi Neto, professor da Universidade Federal do Amazonas, em um artigo da revista Cadernos UNDB. “Ainda há muitas incertezas”, disse Irmã Sueli. Uma das preocupações dela e das lideranças comunitárias é uma proposta de emenda constitucional que, caso aprovada, poderia permitir a cessão de terras ocupadas por índios e quilombolas para exploração econômica por terceiros. Seu Ditão contou que foi a Brasília em 2011 e falou com vários senadores para evitar a perda dos direitos adquiridos. “Temos de acompanhar e intervir”, disse ele. “Se ficar de fora, é pior.” Caçar, nunca mais
Os quilombolas tiveram de fazer concessões, mudar hábitos e aprender a conviver com regras ambientais que proíbem a caça e o uso do fogo, com o propósito de preservar a fauna e a vegetação nativas. “Quando eu era moleque, ia muito na mata para caçar e cortar taquara”, relatou Seu Ditão. “Gosto de carne de paca, de veado, de tatu, mas não podemos mais, nem precisamos, viver de carne de caça.” Outro sinal de transformação é a expansão do cultivo de pupunha, uma palmeira da qual se aproveita o miolo do alto do caule, como alternativa ao palmito-juçara, hoje raro, após décadas
Ver mais imagens dos bairros quilombolas e do mutirão de colheita de arroz em Iguape no site www.revistapesquisa. fapesp.br pESQUISA FAPESP 232z 79
Mata preservada no bairro de Pedro Cubas: entre a serra e a estrada
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de intensa exploração. Daniela Ianovali comparou o cultivo comercial de pupunha, induzido por meio de financiamentos de órgãos do governo, com o cultivo de subsistência – as roças – de arroz, feijão, milho e mandioca. “O cultivo de pupunha pode ser mais eficiente e lucrativo que a roça”, concluiu. Segundo ela, as roças são relevantes por causa da autonomia na produção de alimentos básicos e pelo valor simbólico, por estarem ligadas à tradição e às festas. “Alguns não têm mais roça”, lamentou Antonio Benedito Jorge, que não abre mão da independência. Em Pedro Cubas, ele mantém uma plantação de pupunha, mas não pretende parar de plantar banana, cana-de-açúcar, arroz, feijão, milho, mandioca e frutas. “Se faltar comida no campo, vai faltar na cidade”, ele comentou, na varanda de sua casa – de alvenaria, concluída há sete anos, ao lado de uma de pau a pique, que ele pretende refazer ainda neste ano. Segundo
Antonio Jorge, as matas atrás de sua casa abrigam bananeiras de vários tipos – ouro, prata, pão, preta. Seu filho, Carlos Jorge, correu para lá e em minutos voltou com uma das variedades de banana, a costa – mais encorpada, amarela e doce que a prata –, que oferece aos visitantes, deixando a dúvida sobre por que essas bananas tão saborosas não estão nos mercados, hotéis e restaurantes das cidades próximas. Agora os quilombolas precisam de autorização da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) para preparar suas áreas para cultivo. Como o uso do fogo na agricultura foi proibido em São Paulo, as licenças deixaram de ser emitidas. Em 2009, há dois anos sem licença para plantar, os agricultores protestaram, argumentando que faltava comida para suas famílias. Um dos líderes do bairro de São Pedro, com a mediação de pesquisadores de universidades e do Instituto Socioambiental (ISA), conseguiu reunir em Iporanga os técnicos da Cetesb para negociar a liberação das licenças. Os resultados preliminares da equipe da USP, indicando que os cultivos feitos desse modo tinham um impacto menor que o esperado sobre a floresta, serviram de argumento para a Cetesb liberar as licenças, finalmente, em 2013. “Mesmo com as licenças, depois de sete anos sem autorização para fazer roça, muitos não tinham mais sementes, que se perdem quando não são plantadas”, comentou Raquel Pasinato, coordenadora do Programa Vale do Ribeira do ISA. O biólogo Nelson Novaes Pedroso Junior, durante o doutorado orientado por Murrieta e defendido em 2008, havia entrevistado 20 agricultores de 11 bairros quilombolas e verificado que metade das 142 variedades de 53 espécies agrícolas cultivadas citadas – 22 de arroz, 19 de mandioca, 16 de banana, 13 de feijão, 10 de cará, 10 de abóbora, 6 de batata-doce, entre outras – havia se perdido. Raquel e a equipe do ISA mobilizaram os agricultores e organizaram uma feira de troca de sementes. A primeira delas, em 2008, na praça principal de Eldorado, reuniu 35 produtores e 95 variedades de 34 plantas cultivadas na região, a segunda cresceu para 84 produtores e 199 variedades de 78 espécies de feijão, mandioca, cana, arroz, banana, milho, batata-doce e outras da região. Agora a equipe do ISA está catalogando as áreas e a produtividade das variedades de cultivos usadas pelos agricultores. Em paralelo, o agrônomo Samuel Ferrari, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Registro, começou a coletar amostras de arroz-crioulo (selvagem) da região com o propósito de dimensionar e preservar as variedades em câmaras frias e em canteiros. Ele coletou 16 – entre elas cateto, tiriva, tirivinha, moti, vermelho, branco, amarelo, amarelão, três-meses e quatro-meses – e espera chegar a 40.
Três das estimadas 40 variedades de arroz cultivadas no Vale do Ribeira: já sob a guarda da Unesp de Registro
Em maio os grupos do ISA e da Unesp começaram a conversar sobre os mecanismos legais de proteção do patrimônio genético. As festas e as orações
Reapareceram também velhos hábitos. No final de uma reunião de planejamento da próxima feira de sementes, marcada para os dias 21 e 22 de agosto, Hermes Modesto Pereira, agricultor de 73 anos do bairro Morro Seco, em Iguape, expôs a outros agricultores, pesquisadores e representantes de órgãos públicos seu plano de promover um mutirão para colheita de sua plantação de arroz, no sábado, dia 23 de maio: “Estão todos convidados.” As mulheres começaram na sexta a preparar a comida para as cerca de 60 pessoas que participaram da colheita do arroz e à noite festejaram dançando fandango e forró. “Faz 30 anos que não fazemos um mutirão completo”, disse Seu Hermes. “É uma forma de mostrar como os antigos faziam e de reforçar a amizade entre os grupos.” O Inventário cultural de quilombos do Vale do Ribeira e as conversas com os moradores indicam que a cultura popular ainda está viva entre os bairros rurais da região. “Se barrear em lua minguante, fica lisinho, na crescente quebra logo”, disse Seu Ditão diante dos estudantes de Uberaba ao explicar como aplicar o barro na parede da casa de pau a pique. “A lua influencia tudo. O feijão, se colhido na minguante, dura muito, mas na crescente dá caruncho.” “Por que é assim?”, perguntou um dos garotos. “A natureza é inexplicável”, respondeu Seu Ditão. “Sei que dá certo.” “Eles adoram dançar, adoram festas”, observou Irmã Sueli. A próxima será no dia 4 de julho no bairro de São Pedro, formada por cerca de 150 moradores que devem trabalhar muito para receber um público estimado em 5 mil pessoas. Cobrinha verde e mão esquerda são duas danças lembradas por Antonio Jorge, que só tem uma queixa: “A juventude não acompanha o ritmo dos
mais velhos”. Antonio Jorge é o capelão das rezas da recomendação das almas, ritual realizado na noite de Sexta-feira Santa. Os participantes – de 30 a 70, todos vestidos de branco – se reúnem às 22 horas em Pedro Cubas, seguem em silêncio pela estrada e à meia-noite começam a entoar antigas orações no cemitério de um bairro vizinho. Na volta, tocam a matraca para avisar que estão chegando às casas e diante de cada uma cantam 15 padres-nossos, até o amanhecer. Antonio Jorge não pretende parar tão cedo: “Tenho 70 anos, até quando servir, vou fazer”. Um de seus netos, Maicom dos Santos Jorge, de 20 anos, que terminou o ensino médio e agora quer cursar direito, disse que já os acompanhou e gostou. Raquel, do ISA, que participou de uma dessas caminhadas, lembra-se de que, antes de sair, teve de tomar uma bebida na qual, se recordou, havia alho: “O gosto era horrível, mas eles dizem que tem de tomar para manter o corpo fechado”. n
Projetos 1. Populações locais e a conservação do patrimônio natural (nº 2007/53308-1); Modalidade Jovem Pesquisador; Pesquisadora responsável Célia Regina Tomiko Futemma (Unicamp); Investimento R$ 76.466,73 (FAPESP). 2. Impactos do sistema agrícola itinerante sobre os solos de remanescente de Mata Atlântica com uso e ocupação por comunidades quilombolas no Vale do Ribeira (São Paulo, Brasil) (nº 2012/17651-1); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Cristina Adams (USP); Investimento R$ 262.594,02 (FAPESP).
Artigos científicos ADAMS, C. et al. Diversifying incomes and losing landscape complexity in quilombola shifting cultivation communities of the Atlantic Rainforest (Brazil). Human Ecology. v. 40, p. 1-19. 2013. GOMES, E.P. C. et al. A sucessão florestal em roças em pousio: a natureza está fora da lei? Scientia Florestalis. n. 41, n. 99, p. 343-52. 2013. RIBEIRO FILHO, A. A. et al. The impacts of shifting cultivation on tropical forest soil: a review. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. v. 8, p. 693-727. 2013. SHIRAISHI NETO, J. Os quilombos como novos sujeitos de direito: processo de reconhecimento e impasses. Cadernos UNDB, v. 4, p. 203-23. 2014. ANDRADE, A. M e TATTO, N. (eds.). Inventário cultural de quilombos do Vale do Ribeira. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2013.
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Arquitetura y
Turbilhão
Artigas Centenário do arquiteto tenta dar conta não só de sua obra, mas também de suas facetas de educador, militante e pensador Márcio Ferrari
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empre tendo a arquitetura como eixo, João Batista Vilanova Artigas (1915-1985) foi um pensador e ativista da educação, da política e do urbanismo. Tentar dar conta de todas as facetas sobrepostas do arquiteto é um dos desafios das atividades marcadas para este ano de seu centenário. E ainda “falar do homem, não do mito”, objetivo declarado da historiadora Rosa Artigas, sua filha e uma das curadoras da exposição Ocupação Vilanova Artigas, que será aberta em 23 de junho (data de seu aniversário) no Instituto Itaú Cultural, em São Paulo. No dia seguinte, estreia nos cinemas o documentário Vilanova Artigas: o arquiteto e a luz, dirigido por Laura Artigas, neta do arquiteto, e Pedro Gorski. Também neste ano serão lançados um livro ainda sem título sobre a obra do homenageado de uma perspectiva histórica e A mão livre do vovô, livro infantil inspirado em desenhos feitos pelo arquiteto para ilustrar as histórias que contava a seus netos, ambos pela editora Terceiro Nome. No âmbito acadêmico, estudiosos de Artigas discutem a obra do arquiteto com vários métodos, criticamente, e algumas 82 z junho DE 2015
vezes divergem entre si, mas todos os entrevistados por esta reportagem concordam num ponto: a urgência de recuperar uma arquitetura relacionada diretamente às questões culturais e urbanas, como a praticada por ele. “Esse talvez seja o principal legado de Artigas: pensar a cidade em suas implicações sociais e políticas, e não apenas como um objeto a ser desenhado”, diz Leandro Medrano, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) e autor, com Luiz Recamán, do livro Vilanova Artigas – Habitação e cidade na modernização brasileira (Editora da Unicamp), que pretende buscar na obra do arquiteto entre as décadas de 1940 e 1970 sua ideia de cidade possível. Nascido no Paraná, Artigas é considerado o expoente inicial da chamada escola paulista de arquitetura, classificação não totalmente unânime entre os especialistas em sua obra. De qualquer forma, não se discute que as mudanças da cidade de São Paulo, de núcleo urbano médio, até provinciano, a metrópole industrial, tiveram papel fundamental em suas concepções de arquitetura e urbanismo. Entre as obras mais emblemáticas estão marcos
Fotos de Vilanova Artigas em diversas fases da vida e projetos da garagem de barcos do Santa Paula Iate Clube, da represa Guarapiranga, em São Paulo (alto), e da FAU-USP
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fotos acervo de família desenhos divulgação
Rodoviária de Jaú (à esquerda), edifício Louveira (abaixo) e interior da casa da família (página ao lado): obras reverenciadas
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como o estádio Cícero Pompeu de Toledo (Morumbi), o Conjunto Habitacional Zezinho Magalhães Prado, conhecido como Parque Cecap, em Guarulhos, o edifício residencial Louveira, no bairro de Higienópolis, a rodoviária de Jaú (SP) e o prédio da FAU-USP, na Cidade Universitária, considerado sua obra-prima. Membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB) desde 1945, Artigas trazia da militância a preocupação prioritária com o coletivo. Numa aula registrada em filme, ele definiu a função do arquiteto como “intermediário entre algumas vontades sociais e o seu conhecimento do valor cultural da arquitetura”. Além disso, foi um “arquiteto da prática”, nas palavras de Felipe Contier, doutorando em História da Arquitetura pelo Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU) da USP de São Carlos, cuja tese é sobre o prédio da FAU. A expressão não se refere apenas ao Artigas militante no ensino de arquitetura e na formalização de instituições ligadas à profissão, mas também ao fato de que ele se formou em engenharia pela Escola Politécnica da USP, quando ainda não havia a FAU, que posteriormente ajudaria a fundar. Embora Artigas e Oscar Niemeyer fossem amigos e correligionários no PCB, na história da arquitetura brasileira ele costuma ser considerado o responsável pela ruptura com a geração dos criadores de Brasília (Niemeyer e Lucio Costa), chamada por alguns de escola carioca. “Artigas passa a adotar uma técnica pro84 z junho DE 2015
dutiva que espelha sua concepção de país e projeta outra imagem da identidade moderna do Brasil”, diz Renato Anelli, professor do IAU-USP. “Em relação à obra de Niemeyer, Artigas radicaliza a estrutura, tornando mais claros os processos de projeto e construção. Ele explora os espaços abertos, interpretando a questão social por meio de uma arquitetura sem barreiras, sem portas, mas não é tão tentado à forma livre e algo exibicionista da ‘escola carioca’.” Se Anelli vê nessas características da arquitetura de Artigas uma tentativa de “antecipar uma sociedade de plena liberdade”, de acordo com suas crenças políticas, a pesquisa publicada por Medrano e Recamán interpreta os projetos residen2
ciais do arquiteto (e mesmo o prédio da FAU) como expressões do descompasso entre esse ideal de “plena liberdade” em relação a uma São Paulo que crescia sob o controle dos interesses do mercado e seus esquemas de segregação. Por isso, ele e Recamán veem nos projetos de Artigas edifícios voltados para o interior, nos quais, aí sim, se manifesta a utopia da convivência irrestrita. “Essas construções aceitam a condição de isolamento de seus lotes e idealizam funções libertárias em relação à cidade do capital”, diz Medrano. “Isso não faria sentido hoje.” Trocas sociais
Para o pesquisador, São Paulo busca atualmente se aproximar de valores que são inerentes às cidades, como a possibilidade de convívio e trocas sociais em seus espaços públicos e livres. As preocupações do arquiteto, no entanto, continuam atuais e podem ser resumidas a “colocar a arquitetura em função de certas expectativas políticas e sociais”, como uma disciplina complexa que necessita de métodos e teorias, como ambicionava Artigas. Medrano lembra que as questões em evidência nas cidades em que Artigas quis interferir continuam as mesmas e não resolvidas: habitação social, convívio e segregação, áreas verdes, mobilidade.
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Embora nem de longe seja tão conhecido internacionalmente quanto Niemeyer, Artigas, ao contrário do primeiro, criou uma escola de arquitetura verdadeira, que hoje, atualizada, se encontra na terceira ou quarta geração, de acordo com Medrano. Além de “paulista”, essa escola é também chamada de brutalista ou artiguista, todas denominações com defensores e críticos. Nos últimos dois anos, exposições internacionais em locais como o Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York e a Bienal de Veneza, destacaram a obra de Artigas. Anelli ressalta, no entanto, que esse interesse só se deu graças à projeção da obra de um discípulo, Paulo Mendes da Rocha.
fotos 1 nelson kon 2 e 3 Olé Produções
Concreto sem ornamentos
A classificação “brutalismo” se refere a uma escola, não só arquitetônica, presente no mundo todo, e sua característica mais evidente é o uso do concreto armado, em geral sem revestimento, e de linhas essenciais, sem ornamentos. Artigas é conhecido por ter suavizado essas características pelo uso da cor, por exemplo. Em pesquisa que realizou recentemente, Anelli comparou a obra de Artigas à de arquitetos brutalistas estrangeiros e concluiu que, se sua visão programática de sociedade encontra muitos paralelos com a da escola no exterior, a evolução de suas obras “se deu com raízes próprias”. E há uma diferença básica: Artigas trabalhava com a continuidade dos espaços, e os brutalistas, com a fragmentação.
Membro do PCB desde 1945, Artigas trazia da militância a preocupação prioritária com o coletivo
No Brasil, o brutalismo partiu de hipóteses progressistas preocupadas com a coletividade e acabou designando toda a arquitetura em concreto armado aparente cada vez mais distante dos ideais iniciais e voltada para própria forma das estruturas, segundo Contier. Ele observa que a estética, ironicamente, foi incorporada pelo regime militar para obras públicas, entre outras razões, por representar, ao menos na teoria, uma construção mais austera, barata e de pouca manutenção que, mesmo assim, ostentava alguma monumentalidade, o que contribuiu para inverter o sentido original da escola artiguista. O próprio arquiteto, embora impedido de dar aulas pelo regime, assinou vários projetos de obras públicas durante a ditadura militar. Para além das questões arquitetônicas e dos estudos acadêmicos, das pessoas que conviveram com Artigas, responsáveis tanto pela exposição quanto pelo filme biográfico, surge a figura de um arquiteto-educador que nunca abriu mão de estar presente em suas
obras, nas salas de aula, no Instituto dos Arquitetos e nas casas que construiu para sua família. Laura Artigas, que tinha 4 anos quando o avô morreu e não se lembra de seus contatos com ele, considera o documentário que dirigiu “uma pós-graduação afetiva”. “Os depoimentos que colhemos mostram uma mente muito inquieta, que fazia com que as pessoas pensassem coisas que nunca tinham pensado”, diz. “Conseguir colocar em prática alguma coisa em que ele acreditava, a força do convívio, é uma conquista muito interessante que o filme revela.” n Projetos 1. A produção do edifício da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo na Cidade Universitária Armando Salles de Oliveira (1961-1969) (nº 2013/03331-8); Modalidade Bolsa de Doutorado – Regular; Pesquisador responsável Renato Anelli (IAU-USP); Bolsista Felipe de Araújo Contier (IAU-USP); Investimento R$ 81.574,34 (FAPESP). 2. Vilanova Artigas. Habitação e cidade na modernização brasileira (2013/25319-0); Modalidade Auxílio Publicação – Regular; Pesquisador responsável Leandro Medrano (FAU-USP); Investimento R$ 3.500,00 (FAPESP).
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Arte
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Do piano à pesquisa Eduardo Monteiro concilia carreira musical e acadêmica Márcio Ferrari
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pianista carioca Eduardo Monteiro fala com satisfação de sua “vida atribulada”. Professor, pesquisador e concertista, para sua própria surpresa ele também se viu à vontade na chefia do Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), cargo que exerceu em 2013. Tão satisfatória foi a experiência administrativa que Monteiro aceitou em seguida o cargo de vice-diretor da ECA, que exerce hoje. “Meus estudos do instrumento são feitos agora só às noites e nos finais de semana”, diz. “Não consigo estudar tanto quanto na época em que eu tinha 20 ou 25 anos, mas, em compensação, a experiência ajuda.” Como a maioria dos pianistas profissionais, Monteiro começou a se exercitar no instrumento na infância. Aos 14 anos, já sabia que aquela seria sua carreira – o que se confirmou com uma escalada de prêmios em concursos importantes no Brasil e no exterior. Em 1989, aos 23 anos, recebeu por unanimidade o primeiro lugar no Concurso Internacional de Piano de Colônia, Alemanha,
Monteiro durante masterclass na USP: atividade acadêmica passou os estudos de piano para a noite
fotos 1 Acervo pessoal 2 Júlio Acevedo
além do prêmio de melhor intérprete de Beethoven. Monteiro considera esse um momento crucial de sua carreira. “Foi quando pensei que talvez eu conseguisse fazer alguma coisa nessa área”, diz ele, não sem alguma ironia, já que a essa altura ele já tinha concluído o bacharelado em música na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e, a rigor, nunca cogitou seriamente fazer, em termos profissionais, qualquer coisa em outra área. Em seguida vieram o mestrado em Instrumento de Teclado na UFRJ, o doutorado em História da Música e Musicologia na Universidade Paris-Sorbonne – sobre a obra do compositor brasileiro Henrique Oswald (1852-1931) – e uma passagem de dois anos (Artist Diploma) pelo New England Conservatory of Music (Boston, EUA). Essas duas experiências, uma na área de pesquisa (Sorbonne) e outra na de execução (Boston), permitiram ao pianista “amarrar os conceitos e pensar em como se toca”. Em 2002, começou a dar aulas na ECA. “De início não foi muito fácil me encontrar na universidade”, diz Monteiro. “Somos formados para dar aula do instrumento. Muito poucos se dedicam à formação de pesquisador, e fui percebendo que me aprofundar nessa área poderia ser extremamente enriquecedor.” Isso não significa que as apresentações, no Brasil e no exterior, tenham diminuído em frequência. Monteiro conduz projetos de estudos de interpretação do repertório de piano. Trata-se de identificar e registrar por escrito as escolhas que os instrumentistas fazem ao executar uma obra. “O que eu faço é a formalização de todo o processo de performance”, diz. “Cada nota tocada é fruto de uma escolha precisa, de uma ponderação – isso pode não ser evidente para quem não é da área – e o conjunto de boas escolhas faz a qualidade da execução. Essa reflexão existe em toda performance de alto nível, mas não está registrada praticamente em lugar nenhum.” No primeiro projeto nessa linha, entre 2011 e 2012, foi abordada a execução da Sonata em si menor, de Liszt, e no estudo atualmente em curso a obra é a Sonata op. 111, de Beethoven. Paralelamente, Monteiro pesquisa compositores brasileiros cuja obra é pouco conhecida e ainda menos sistematizada. “É uma afinidade com o repertório; eu me sinto muito à vontade tocando esses autores”, diz. Em 2007, lançou, com um concerto no Wigmore Hall de Londres, o CD Piano music of Brazil pelo selo inglês Meridian Records, com obras de autores brasileiros do romantismo, nacionalismo e século XX, incluindo uma interpretação de Cartas celestes vol. 1, de Almeida Prado (1943-2010), muito elogiada pelos críticos especializados e pelo próprio compositor. Em 2013, Monteiro gravou o Quinteto e o Quarteto para piano e cordas, de Henrique Oswald, com o Ensemble São Paulo pelo selo Lami.
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Monteiro antes de uma apresentação: no horizonte, a realização de cinco concertos e a gravação de um CD
Agora é a vez de pesquisar a obra do compositor, regente e pianista brasileiro Alexandre Levy (1864-1892), tema de um projeto de extensão iniciado em 2014 que prevê a realização de cinco concertos e a gravação de um CD. O projeto é coordenado por Monteiro e pela professora Luciana Sayure. Os intérpretes do repertório serão os alunos de graduação e pós-graduação do Departamento de Música da ECA. “A obra de Levy é extremamente importante, influenciada pelo romantismo europeu e também com elementos precursores da escola nacionalista”, diz. “Mesmo assim, é um compositor pouquíssimo conhecido, cuja produção não foi editada, nem gravada ou estudada.” No ano passado, Monteiro ainda organizou e ministrou, em parceria com Luciana Sayure, uma oficina de piano na USP. Durante uma semana, cerca de 100 pessoas, entre professores e alunos de piano, alguns iniciantes, revezaram-se em aulas individuais, masterclasses, concertos e palestras cujo objetivo principal era o compartilhamento de práticas e informações. A ideia surgiu da observação das provas de habilidade específica para admissão no Departamento de Música da ECA. “Há pessoas que têm talento evidente, mas não passaram por uma formação adequada”, diz Monteiro, que pretende repetir a experiência no ano que vem. n PESQUISA FAPESP 232 | 87
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memória
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Por volta de 1962 Livro retrata áreas nas quais havia densidade científica em São Paulo antes do surgimento da FAPESP Neldson Marcolin
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endereço exato de onde aconteceu não se sabe. Pode ter sido em uma sala no prédio no qual funcionava a reitoria da Universidade de São Paulo (USP), na rua Helvétia, centro da capital paulista, ou na Faculdade de Medicina da USP, na avenida Dr. Arnaldo. O fato é que em algum momento do dia 4 de junho de 1962 o geneticista Warwick Kerr, primeiro diretor científico da FAPESP, sentou-se à mesa e começou a examinar as primeiras 507 propostas de projetos com pedidos de auxílios e bolsas enviadas à recém-fundada agência de fomento à ciência e tecnologia. Nascia ali uma rotina diária de análise de processos dentro da Fundação incorporada pelo seu corpo de servidores, assessores ad hoc e diretores que foi aprimorada muitas vezes e jamais seria interrompida nas décadas seguintes. O início do trabalho de apoio financeiro à pesquisa científica de São Paulo realizado por uma instituição especialmente criada com este fim e os anos que os antecederam estão contados no recém-lançado Circa 1962 – A ciência paulista nos primórdios da FAPESP, de autoria da jornalista Mônica Teixeira.
Ruth e Victor Nussensweig (esq.) casam na biblioteca da FM-USP. Samuel Pessôa é o segundo da direita para a esquerda
fotos 1 Acervo família Nussensweig 2 acervo fapesp
O livro é uma narrativa sobre as principais atividades científicas realizadas em São Paulo nas décadas anteriores à criação da Fundação. A opção da autora foi se concentrar nas áreas onde havia massa crítica de pesquisa. “Usei o primeiro Relatório de atividades da FAPESP, que tratou de 1962, para falar dos setores onde realmente se fazia ciência”, diz Mônica. “Não deu para falar de todos e algumas áreas são citadas de modo breve.” A agronomia, por exemplo, aparece na figura de Warwick Kerr e Friedrich Brieger, catedrático de Citologia e Genética da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP). Aparece também no prefácio que Celso Lafer, presidente da Fundação, faz no livro, no qual fala sobre a contribuição da engenheira agrônoma Victoria Rossetti. Foi ela quem diagnosticou e batizou em 1987 a doença das laranjeiras, a clorose variegada dos citros (CVC), cuja bactéria Xylella fastidiosa foi identificada três anos mais tarde por John Hartung, da Universidade da Califórnia, e teve seu DNA sequenciado por equipes de pesquisadores de São Paulo financiados pela FAPESP entre o fim da década de 1990 e o ano 2000. O mesmo ocorreu com o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), que, embora não faça parte de nenhum capítulo, é citado pelo professor Lafer pelas pesquisas lá realizadas desde quando era parte da Escola Politécnica e se chamava Gabinete de Resistência de Materiais. “Os professores da USP atuaram no IPT, muitos dos
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Página interna do Relatório de atividades de 1962: relato do diretor científico sobre os primeiros auxílios concedidos pela FAPESP
quais ajudaram a gestar as primeiras ideias da criação de uma fundação de amparo à pesquisa na década de 1940”, diz o presidente da FAPESP. Mônica Teixeira dirigiu os holofotes para as pesquisas que se faziam em medicina, genética, física e ciências sociais, áreas que já tinham densidade científica e eram frequentemente apoiadas pela Fundação Rockefeller antes dos anos 1960. Dos 507 pedidos, Warwick Kerr deliberou pela concessão de 344 deles, o equivalente a 68% dos projetos apresentados até 30 de abril de 1962. No total, foram atendidos “cerca de 700 pesquisadores”, de acordo com o relatório de Kerr, geneticista já conhecido e respeitado na comunidade científica e então professor da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras (FFCL) de Rio Claro, posteriormente vinculada à Universidade Estadual Paulista (Unesp). Em 2013, o número de contratações realizadas pela FAPESP foi de 12.393. Os 507 pedidos iniciais foram classificados dentro de áreas – Agronomia, Biologia, Engenharia e Tecnologia, Química, Ciências Médicas, Ciências Humanas e Sociais, Exatas, Geológicas, Geografia e História – e em todas elas houve orçamentos reduzidos e projetos denegados. Uma das concessões foi para José Carneiro da Silva Filho, um dos professores-assistentes de Histologia e Embriologia da FM-USP, para o estudo de nucléolos em células hepáticas por meio de radioautografia. Antes dos anos 1960, a FM-USP era um dos poucos lugares onde se praticava a pesquisa em medicina e biologia de modo constante no país. O laboratório do catedrático de Histologia e Embriologia, Luiz Carlos de Uchôa Junqueira, parecia o mais interessante para os que queriam de fato se aventurar no mundo científico por trabalhar com assuntos de ponta e buscar – e conseguir – colaborações com cientistas PESQUISA FAPESP 232 | 91
qualificados de fora do país. Um dos assistentes de Junqueira era Michel Rabinovitch, conhecido na época por ser uma espécie de ímã de jovens talentos. Entre os muitos que foram acolhidos e estimulados por ele estão Ricardo Brentani, Thomas Maack, Nelson Fausto e Sergio Henrique Ferreira, todos com contribuições reconhecidas em suas áreas. Algo semelhante acontecia no entorno de Samuel Pessôa, catedrático de Parasitologia de 1931 a 1956 e médico e pesquisador interessado em tentar resolver problemas sociais usando a pesquisa científica como instrumento. A soma dos desejos de fazer ciência e consertar o mundo uniu em torno do veterano pesquisador jovens como Erney Plessmann de Camargo – que refundaria a cadeira de Pessôa no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP em 1986 –, Luiz Hildebrando Pereira da Silva e o casal Ruth e Victor Nussensweig, entre outros. Os dois últimos se conheceram e casaram na Faculdade de Medicina. Literalmente: a celebração ocorreu na biblioteca da faculdade. Outro casamento feliz, desta vez metafórico, ocorreu dos anos 1940 a meados de 1960. A Fundação Rockefeller financiou a maior parte da pesquisa que implantou o estudo de cromossomos e genes no país. Investiu, por exemplo, na vinda do geneticista ucraniano radicado em Nova York Theodosius Dobzhansky para continuar suas pesquisas de genética de populações de drosófilas (mosca-da-fruta) em 1943 92 | junho DE 2015
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Acima, o geneticista Warwick Kerr. Ao lado, Antonio Candido em Bofete (antigo Rio Bonito) em pesquisa para sua tese, defendida em 1954
Dobzhansky, sua filha Sophia (sentados), Pavan (esq.) e Antonio Brito da Cunha percorrem de trole trajeto até área de pesquisa em Monguaguá (SP)
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no Brasil, enquanto dava cursos em São Paulo. E enviou Crodowaldo Pavan e outros pesquisadores para se especializar em genética no exterior. Com esses estímulos, uma geração de geneticistas se formou no país, como Antônio Brito da Cunha, Pedro Henrique Saldanha e Luiz Edmundo Magalhães (SP), Newton Freire-Maia (PR), Francisco Salzano e Antonio Cordeiro
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(RS) e Oswaldo Frota-Pessoa (RJ). Também na física há grandes nomes que desenvolveram a disciplina no Brasil: Marcelo Damy de Souza Santos, Mario Schenberg, Roberto Salmeron, Paulus Aulus Pompeia, César Lattes, Oscar Sala, José Goldemberg e Sérgio Mascarenhas, para ficar em alguns. Por trás de todos, houve a feliz escolha de se convidar Gleb Wataghin, ucraniano radicado na Itália, para começar a construir o ensino e a pesquisa de física no Brasil em 1934, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL-USP.) Em poucos anos, sob a liderança de Wataghin, a física brasileira começou a aparecer sob a forma de artigos em boas revistas internacionais. Os estudantes eram enviados para estágios em laboratórios de outros países de modo a se aperfeiçoar; por outro lado, pesquisadores estrangeiros, como o italiano Giuseppe Occhialini, passavam períodos no Brasil. De toda a rica experiência dos físicos formados entre os anos 1930 e 1950, a que ficou mais conhecida é a
fotos 1 acervo FMRP-USP, depto. de genética 2 Edgar Carone 3 acervo comissão Memória IB/USP 4 acervo de família 5 O. Luiz/Estadão Conteúdo/AE 6 acervo pessoal Marcelo Damy
Francisco Lara (esq.) escreveu diagnóstico sobre a bioquímica no país, com propostas de ação. Schenberg, físico teórico, trabalhou pela institucionalização da física do estado sólido
descoberta da partícula subatômica méson pi pelo grupo liderado por Cecil Powell, da Inglaterra, da qual participaram ativamente Lattes e Occhialini em 1947. Na década de 1960, começou outra boa fase da física brasileira quando Mario Schenberg montou o primeiro grupo de física do estado sólido (hoje chamada de matéria condensada) em São Paulo, em 1961, com verbas federal, estadual e da própria USP. Nos anos seguintes, os pesquisadores envolvidos no novo laboratório buscaram auxílios e bolsas na FAPESP. Posteriormente, em 1969, Zeferino Vaz, dinâmico primeiro reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), trouxe Rogério Cerqueira Leite dos Estados Unidos para o Instituto de Física, com o apoio da Fundação,
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para desenvolver essa linha de pesquisa. Outros pesquisadores de primeira linha também vieram para a universidade, como José Ellis Ripper Filho e Sérgio Porto. “O grupo que veio dos Estados Unidos para a Unicamp foi talvez o mais bem-sucedido do Brasil, nos anos 1970, em estabelecer uma relação produtiva com a indústria”, escreveu Mônica no capítulo “Física do estado sólido”. A pesquisa paulista estava presente também nas ciências sociais nos primórdios da FAPESP. Florestan Fernandes, sociólogo da FFCL-USP, incluiu em seu pedido de 6
1962 à Fundação auxílio para “investigações sobre empresas industriais em São Paulo” e verba para viagens de seus assistentes, já doutores, Fernando Henrique Cardoso (Paris) e Octavio Ianni (Londres). Os dois foram estudar temas relacionados à sociologia rural e do trabalho para depois, na volta ao Brasil, ir a campo levantar e analisar dados. “Naquela época, as ciências sociais já eram menos ensaísticas e os pesquisadores faziam estudos de campo. E isso requeria dinheiro”, conta Mônica. Ir a campo era o que fazia o crítico literário Antonio Candido, sociólogo de origem, que entre 1947-49 e 1952-54 realizou um extenso trabalho em cidades do interior paulista. Dali resultou o clássico Os parceiros do Rio Bonito, livro de 1964 que nasceu como tese defendida em 1954 na cadeira de Sociologia II da FFCL-USP. Candido e Florestan foram assistentes, nos anos 1940, do catedrático Fernando de
Reunião de físicos na década de 1960: Mascarenhas, Damy, Goldemberg, Sala (sentados) e Ernst Hamburger (em pé)
Azevedo, um dos formuladores da USP. O livro Circa 1962 descreve, ainda, como a FAPESP aperfeiçoou o apoio aos pesquisadores. O projeto especial Programa para o Desenvolvimento da Bioquímica (Bioq-FAPESP) começou em 1970 com participação importante do bioquímico Francisco Lara, catedrático da Faculdade de Farmácia da USP. Um dos ineditismos importantes foi desenvolver um projeto concebido para acelerar o desenvolvimento da pesquisa em um campo determinado – no caso em questão, a bioquímica. O primeiro diagnóstico do setor, com propostas de ação para avançar na pesquisa da área, foi obra de Lara. A sequência bem planejada de projetos cumpriu seu papel de estabelecer os programas de pós-graduação na USP e na Escola Paulista de Medicina com pesquisadores como Hugo Armelin, Rogério Meneghini, Walter Colli, Ricardo Brentani, Giuseppe Cilento, Carl Peter Dietrich, Hernan Chaimovitch e José Leal Prado, entre vários outros. “O Bioq-FAPESP representou uma nova forma de organizar a pesquisa e o financiamento PESQUISA FAPESP 232 | 93
Carvalho Pinto sanciona a lei que instituiu a FAPESP. Na foto: Carvalho Pinto (1), Hélio Bicudo (2), José Elias de Paiva Neto (3), Antonio Barros de Ulhôa Cintra (4), Paulo Vanzolini (5), Zeferino Vaz (6)
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a partir dos anos 1970”, diz Mônica. A jornalista lembra que os primeiros pedidos de auxílio traziam nomes reconhecidos, como Schenberg, Lattes, Pavan, Brieger e Florestan, por exemplo. “Mas me surpreenderam os dois pedidos de Carolina Bori em psicologia experimental”, diz. O primeiro na área de Ciências Humanas e Sociais para estudar a socialização da criança por métodos clínicos; o segundo nas 94 | junho DE 2015
Ciências Biológicas para verificar o papel dos estímulos aversivos para a aprendizagem. “Os dois estavam entre os 344 aprovados em 1962.” Carolina ensinava na FFCL de Rio Claro e foi uns dos pesquisadores instados por Warwick Kerr, segundo lembram colegas daquele período, a enviar projetos para análise. Mais tarde, em 1987, ela sucedeu Pavan na presidência da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Circa 1962 foca as pesquisas do passado para entender o presente e foi planejado para celebrar os 50 anos da FAPESP em 2012. Quando o governador Carvalho Pinto assinou o decreto nº 40.123, promulgado em 23 de maio de 1962, que aprovava seus estatutos, definiu-se que a FAPESP deveria apoiar
Acervo público do estado de são paulo
pesquisa e não fazer pesquisa; que o conceito de pesquisa seria abrangente; que o processo de avaliação deveria ser baseado na análise por pares; que a Fundação teria autonomia nos processos decisórios e um limite de 5% para as despesas administrativas. “Ao pensar nesse livro, também queríamos destacar que já existia, à época da criação da Fundação, um público-alvo que poderia responder construtivamente à existência de uma instituição com essa feição”, explica Celso Lafer. No Plano de ação do governo (1958-1963), Carvalho Pinto colocou o tema da FAPESP no item que chamou de “Melhoria de Condições do Homem”. É ali que se fala de uma instituição destinada a apoiar a investigação científica e tecnológica. “O governador incumbiu Paulo Vanzolini, do Museu de Zoologia, de estudar as instituições similares nos Estados Unidos e Europa”, conta Lafer. “Coube ao pesquisador refletir como deveria se constituir a tarefa da Fundação por meio das diretrizes de seus estatutos e isso foi muito debatido com o governador.” De acordo com seu presidente, a FAPESP tem um conjunto de dispositivos legais e estatutários que permitiu a ela crescer em consonância com essas diretrizes. “Circa 1962 tem essa intenção de explicar o que é a instituição e o que ela representa para São Paulo e para o país”, conclui. O livro, com tiragem de 3 mil exemplares, foi distribuído às bibliotecas de universidades públicas e privadas e às instituições de pesquisa do estado de São Paulo. n
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Desafios no campo internacional Janina Onuki
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Relações internacionais – Olhares cruzados Corival Alves do Carmo, Érica Winand, Israel Roberto Barnabé e Lucas Miranda Pinheiro (orgs.) Fundação Alexandre de Gusmão 623 páginas | R$ 28,00 Disponível para download gratuito em funag.gov.br/loja
s intensas mudanças pelas quais passaram as relações internacionais e a projeção internacional que o Brasil ganhou nas últimas décadas atraíram olhares de fora e abriram caminhos para novas interpretações sobre nosso papel no mundo. Nesse contexto, formaram-se grupos de jovens pesquisadores em diferentes regiões do país que têm tido iniciativas de destaque. Relações internacionais, olhares cruzados, resultado de um seminário internacional de pesquisa e extensão da Universidade Federal de Sergipe (UFS), que contou com apoio da Fundação Alexandre de Gusmão, traz uma contribuição relevante para refletir sobre a área de relações internacionais, não só do ponto de vista dos novos temas, mas também no que se refere aos desafios para consolidar a imagem de um país capaz de influenciar o cenário internacional, ao mesmo tempo que o Brasil busca novas parcerias com atores regionais e globais. Nessa coletânea, diferentes interpretações se cruzam para mostrar uma diversidade de abordagens teóricas e epistemológicas sobre temas que foram adensando as agendas de pesquisa que hoje são referência para pensar o Brasil. O livro está dividido em seis partes e reúne pesquisadores de diferentes instituições do Brasil e de países vizinhos. A primeira parte, dedicada a três autores das teorias clássicas das relações internacionais – Carr, Aron e Abade de Saint-Pierre –, percorre o realismo e o idealismo e mostra como conceitos fundadores são atuais para pensar a política contemporânea. O desafio trazido por novos atores leva à retomada dos clássicos para repensar a sociedade internacional. A segunda parte do livro dá continuidade à análise da nova ordem internacional a partir da perspectiva da reconfiguração de poder mundial. Olhar para as regiões e países que ganharam poder de influência nas últimas décadas é fundamental para um país como o Brasil que busca ampliar suas parcerias para ganhar mais visibilidade internacional. Nesse sentido, Europa e China não poderiam faltar como capítulos deste livro. A terceira e quarta parte são dedicadas a olhar para os países vizinhos, a partir das novas perspectivas de integração regional, da relação que o Brasil mantém com parceiros estratégicos, como
Argentina e Venezuela, e da percepção que se tem das possibilidades de cooperação. A criação do Conselho de Defesa Sul-americano pode ser tomada como um incentivo à cooperação regional, baseada na criação de uma identidade entre os atores sul-americanos. Os estudos nessa área, como se observa nesta obra, contribuem para pensar políticas de defesa à luz das novas questões de segurança. As duas últimas partes dedicam-se a analisar a evolução da política externa brasileira no período pós-redemocratização. Não há como negar que as relações com os Estados Unidos são um parâmetro importante para revisar nossas próprias ações internacionais, e, ao mesmo tempo, é preciso reconhecer que essas relações mudaram e se tornaram mais complexas. Essas mudanças das relações com países do Norte estão inseridas no contexto de retomada do discurso diplomático brasileiro da “autonomia pela diversificação”. Autonomia marcada pela aproximação do Brasil com países emergentes, como Índia, China, Rússia e África do Sul. O livro traz ainda dois capítulos de debate conceitual e empírico que permitem refletir sobre o significado que ganhou a atuação do Brasil nos regimes internacionais, analisando como políticas domésticas cada vez mais passaram a influenciar a construção da nossa imagem internacional e como a inserção do país nos regimes levou à formulação mais apropriada de políticas públicas. Para um país como o Brasil, que busca ocupar um espaço de relevância na governança global e ainda enfrenta desafios na consolidação das suas instituições democráticas, não é possível desvincular o doméstico do internacional. Sua política externa e suas parcerias estratégicas só podem ser pensadas a partir do olhar para dentro. Este livro representa uma contribuição para refletir sobre diversos temas, hoje centrais para as relações internacionais do Brasil. Trazer, para fundamentar esta análise, olhares cruzados de pesquisadores experientes e jovens docentes reunidos nesse seminário da UFS contribui para responder perguntas que continuam nos desafiando no campo internacional. Janina Onuki é professora associada do Instituto de Relações Internacionais e pesquisadora do Caeni-IRI/USP.
PESQUISA FAPESP 232 | 95
A emergência dos saberes médicos André Mota
O laboratório e a República: Saúde pública, ensino médico e produção de conhecimento em São Paulo, 1891-1933 Márcia Regina Barros da Silva Editora Fiocruz 208 páginas | R$ 40,00
96 | junho DE 2015
tipologias e temas como para constituir determinadas sociedades médicas. No levantamento empreendido para o estudo desse periodismo, destacam-se o Boletim da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, a Revista Médica de São Paulo e a Gazeta Clínica. Por eles conseguimos compreender a circularidade envolvendo ciência e política, sociedade e cultura, das descobertas de Pasteur às ações sanitárias, da produção laboratorial realizada pelos institutos às necessidades imperativas para a produção de uma medicina reconhecida como moderna e eficaz. Enfim, o capítulo oferece uma visão ampliada dessas ações e intenções, bem como o prestígio público de seus responsáveis em formatar uma população saudável e morigerada pela destreza da medicina e do sanitarismo. Nomes como Emílio Ribas, Vital Brazil, Luiz Pereira Barreto, Carlos Botelho, Rubião Meira, Victor Godinho, Arnaldo Vieira de Carvalho e uma plêiade de médicos passaram a ser (re)conhecidos. A implantação da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo (capítulo 3) em 1912 foi, sem dúvida, um elemento central de toda essa movimentação. Se, de um lado, deixou entrever inconsistências nem sempre narradas, de outro, retomou fôlego com a chegada de um corpo docente internacional e os acordos com a norte-americana Fundação Rockefeller, a partir de 1916. A autora explora, em sua reflexão, a complexa rede de alunos, professores e instâncias governamentais, apresentando o regime das disciplinas, as particularidades de seu corpo docente e os espaços de ensino-aprendizagem teóricos e clínicos. Tudo isso enlaçado pelos resultados de muitos estudos que já vinham sendo realizados pela faculdade desde seus primeiros tempos. Como um espelhamento produzido entre o tempo passado e presente, essa é uma obra fundamental por desvelar, historicamente, aquilo que fomos e somos, quando o assunto é o sofrimento humano e as estratégias de legitimação de certos grupos para sua intervenção.
André Mota é professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) e coordenador do Museu Histórico Prof. Carlos da Silva Lacaz da FM-USP.
eduardo cesar
N
as últimas décadas, a necessidade de pautar pesquisas no campo da medicina e da saúde em uma perspectiva histórica abriu novos horizontes analíticos, preocupados com as condições de emergência da produção desses saberes e de suas instituições. Foi a partir desse desafio que a historiadora Márcia Regina Barros da Silva estudou a complexidade dessa conjuntura em solo paulista, entre os anos de 1891 e 1933, resgatando pelos fios da história o entrelaçamento do poder político, da reorganização das instituições médicas e de saúde, bem como da produção de novos conhecimentos. A autora inicia O laboratório e a República: Saúde pública, ensino médico e produção de conhecimento em São Paulo, 1891-1933 com um tópico fundamental no capítulo “A comunidade imaginada da república paulista”: o debate que moldaria uma idealidade paulista em torno de um projeto civilizatório, liberal e republicano coadunado com uma representação por demais utilizada entre suas elites. Para tanto, com notável habilidade interpretativa e destreza na pesquisa documental, a autora reconstrói os elementos constitutivos dessa comunidade imaginada, composta no tensionamento da força propulsora advinda da higiene e da instrução diante da imagem passadista da doença e da ignorância. Logo se instalou todo o arcabouço legal, abrindo as portas para que novos tempos congregassem todo o estado de São Paulo, estabelecendo um ordenamento que deveria ser capaz de golpear o passado que teimava em insurgir-se. Esse projeto se materializou, sobretudo pela (re)organização sanitária estadual, com seus institutos e instituições e a produção de um conhecimento científico que seria capaz de prover a elite médica em sua formação. Como bem ponderou a autora, se embates houve, eles voltaram-se, em larga medida, para tais expectativas em torno do futuro médico e de sua corporação. No capítulo “As ciências médicas de São Paulo” são-nos apresentados não apenas os lugares onde transcorre toda a circulação voltada à recepção da medicina experimental, mas acima de tudo os seus veículos de divulgação. Notadamente, a criação e a ampla veiculação de periódicos médicos foram centrais tanto para estabelecer
carreiras
Empreendedorismo
Laços da internacionalização
ilustraçãO daniel bueno
RedEmprendia apoia o aprendizado e o intercâmbio de empreendedores em países ibero-americanos Reunindo 24 universidades em sete países ibero-americanos, a RedEmprendia apoia a formação e a internacionalização de empresas nascentes no meio acadêmico. Surgida na Espanha com patrocínio financeiro do Banco Santander, a rede fornece bolsas de intercâmbio em outros países para novos empreendedores. “Apoiamos empresas spin-off [formadas na academia] que tenham plano de negócio baseado em um projeto de pesquisa realizado na universidade ou start-ups [pequenas empresas iniciantes] de base tecnológica originadas ou apoiadas pelos programas de empreendedorismo universitário”, diz Senén Barro, presidente da RedEmprendia, que veio ao Brasil para o lançamento do livro La transferencia de I+D – La innovación y el emprendimiento en las universidades (ver nota na página 11). “Nossa relação é direta com escritórios de transferência
tecnológica ou agências de inovação. As instituições de ensino resolvem se há empreendedores habilitados aos nossos programas. Depois da nossa aprovação, elas transferem as bolsas”, explica Senén. Os países participantes da rede são Brasil, Espanha, Portugal, México, Argentina, Colômbia e Chile. As universidades brasileiras participantes são a de São Paulo (USP), a estadual de Campinas (Unicamp) e a Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). As bolsas dentro do programa BoosterWE da RedEmprendia são para o empreendedor que ainda não montou a empresa, mas tem um plano de negócio. A bolsa, de € 3 mil a € 4 mil, paga viagem e estadia para um período de dois a três meses em empresas de outro país ibero-americano do setor e interesse do beneficiário. “A empresa de destino é escolhida por nós, onde ele possa aprender
a parte administrativa, comercial e desenvolver sua tecnologia.” Um dos brasileiros participantes foi Thierry Marcondes, engenheiro mecânico com graduação na Unicamp que ficou três meses na Continental Automotive no México, em 2013. Ele desenvolveu um sistema para análise do etanol e da gasolina que identifica combustíveis adulterados. “A experiência foi muito boa, conheci outros ecossistemas, culturas e tive contato com pessoas que no futuro podem ser parceiros estratégicos e tecnológicos”, diz Thierry. “Por ano, desde 2012, são destinadas 50 bolsas no BoosterWE”, diz Senén, que é físico e foi reitor da Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha, entre 2002 e 2010. Outro programa da RedEmprendia, chamado Landing, oferece apoio para spin-offs, start-ups e empreendedores com mais de um ano de atividade que queiram ter mobilidade internacional ou ainda encontrar sócios para atividades locais. “Nesse caso, o empreendedor escolhido, sempre com ligação à universidade, recebe uma bolsa e o apoio de uma incubadora ou parque tecnológico em outro país da rede em período que vai de uma semana a alguns meses. No Landing não temos número fixo de bolsas, apoiamos aqueles que têm bons planos de negócio.” A rede tem mais de € 1 milhão por ano para investir nas suas atividades. A cada dois anos, ela promove um evento em um país diferente, chamado de Spin (em 2016 será na Espanha), aberto a todos empreendedores ligados às universidades que queiram mostrar suas ideias e buscar capital de risco. Mais informações em www.redemprendia.org. PESQUISA FAPESP 232 | 97
Projetos inovadores na área química A Dow, empresa do setor químico, está com inscrições abertas até o dia 30 de junho para o Innovation Fair, evento que será realizado no dia 11 de agosto em São Paulo e tem como objetivo promover projetos inovadores de pesquisadores acadêmicos, empresas juniores e start-ups, voltados à sustentabilidade e tecnologia. As inscrições podem ser feitas pelo site www.innovationfair. com.br, em seis categorias. Na categoria Alimentos Frescos, o foco é encontrar soluções para o manejo e a preservação de alimentos; em Agricultura, tecnologias, produtos e processos para aumento da eficiência e produtividade no campo; em Segurança Hídrica, métodos, produtos e processos voltados para a purificação e o manejo de água destinada a consumo humano e industrial; em Construção e Infraestrutura, materiais, aditivos e técnicas para aumentar o desempenho e eficiência na cadeia de construção; em Produtos Químicos Renováveis, compostos produzidos a partir de fontes renováveis utilizando matérias-primas ou rotas alternativas às petroquímicas; e em Materiais, Processos e Produtos Químicos, aplicações que não se enquadrem nas categorias anteriores. Os projetos escolhidos serão apresentados pelos empreendedores no dia do evento para representantes das áreas técnica e de negócios da Dow, empresas parceiras, clientes e de capital de risco. 98 | junho DE 2015
perfil
Cooperação internacional Pesquisador sueco, radicado na Inglaterra, atuou um ano no InCor-USP na área de sono e ritmos circadianos “São Paulo já tem uma posição de liderança na ciência brasileira. Acredito que o estado poderá tornar-se um dos líderes globais no campo da pesquisa acadêmica em menos de cinco anos.” Foi com essa impressão que o biólogo sueco Malcolm Schantz, de 48 anos, deixou o Brasil em abril deste ano, após passar um ano sabático atuando como pesquisador visitante do Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP). Professor de Biologia Molecular, Genética e Neurociência na Universidade de Surrey, na Inglaterra, Schantz dedica-se a estudar o sono e o ritmo circadiano (ciclo biológico de 24 horas), seus determinantes moleculares e como eles interferem na saúde humana. Ele é formado em Biologia e Química pela Universidade de Lund, na Suécia, onde fez doutorado com um período de três anos e meio na Universidade da Califórnia em Los Angeles (Ucla). De volta à Europa, fez pós-doutorado no Imperial College, em Londres, finalizado em 1997, ano em que foi contratado pela Universidade de Surrey. Sua relação com o Brasil é antiga. Ele visitou o país pela primeira vez em 1995 para participar da conferência anual da Sociedade Brasileira do Sono, realizada em Curitiba. Pouco tempo depois, iniciou uma colaboração acadêmica com o professor Mario Pedrazolli,
hoje da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP, que também se dedica ao estudo do sono. Nessa época, Schantz ocupava o cargo de reitor adjunto da área internacional da Faculdade de Saúde e Ciências Médicas da universidade. “Durante os quatro anos que fui vice-reitor, visitei a USP várias vezes.” No ano em que ficou no Brasil, Schantz participou de um estudo conduzido em conjunto por pesquisadores da USP e da Universidade de Surrey com moradores de Baependi, cidade mineira de 18 mil habitantes. A particularidade desse município está no fato de as pessoas cultivarem hábitos relacionados ao sono semelhantes ao da era pré-industrial. Dormem cedo e acordam assim que o dia amanhece. Por causa desse costume, os moradores de Baependi tornaram-se foco da pesquisa que busca compreender o regime de sono moderno. “Esse estudo talvez seja único no mundo. Com o financiamento de longo prazo da FAPESP, é possível para os pesquisadores do nosso grupo seguir a jornada dos habitantes de Baependi”, diz Schantz. De volta à Inglaterra, ele planeja não ficar muito tempo longe de São Paulo. “Consegui uma bolsa do programa Ciência Sem Fronteiras, na modalidade de Pesquisador Visitante Especial, que prevê uma visita de um mês, durante três anos seguidos ao Brasil”, explica. “Com isso, terei oportunidade de encontrar meus colegas brasileiros, que se dedicam ao trabalho científico com uma satisfação e entusiasmo raros de ver.”
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