julho de 2015 www.revistapesquisa.fapesp.br
Aumenta frequência de casos de tumores de cabeça e pescoço causados pelo HPV Biblioteca Virtual da FAPESP atrai usuários com ferramentas analíticas Programa auxilia startups a desenvolver modelo de negócios Construções históricas do período cafeeiro estão ruindo
n.233
Roteiro turístico revela as rochas que fizeram a história de São Paulo Magda Soares: “A escola trata os diferentes como deficientes”
Integridade na ciência
Caderno de laboratório de 1930 do engenheiro civil Hubertus Colpaert (acervo do IPT)
Iniciativas apresentadas em conferência mundial mostram estratégias de promoção de boas práticas científicas desde a formação dos pesquisadores
venda proibida
exemplar de assinante
Pesquisa FAPESP julho de 2015
n.233
Pesquisa Brasil Toda sexta-feira, das 13h às 14h, você tem um encontro marcado com a ciência na Rádio USP FM
Pesquisa Brasil traz notícias e entrevistas sobre ciência, tecnologia, meio ambiente e humanidades.
eduardo cesar, EDUARDO SANCINETTI, ricardo zorzetto, léo ramos, nasa / jpl, Latinstock/MEHAU KULYK/SCIENCE PHOTO LIBRARY/SPL DC
Os temas são selecionados entre as reportagens da revista Pesquisa FAPESP. A cada programa, dois pesquisadores falam sobre o desenvolvimento de seus trabalhos recentes – e ajudam a escolher a
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Você também pode baixar e ouvir o programa da semana e os anteriores na página de Pesquisa FAPESP na internet (www.revistapesquisa.fapesp.br).
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Flores mensageiras Uma coloração à base de anticorpos parece transformar em flores a comunicação entre nervos e músculos, ou junções neuromusculares. Na imagem obtida por meio de um microscópio confocal de varredura a laser, os talos verdes são os terminais nervosos, as manchas azuis são os núcleos das células e as zonas de contato aparecem em vermelho. A imagem é fruto da pesquisa da anatomista Selma Michelin Matheus, como parte do doutorado de Cristiane Pissulin sobre os efeitos da terapia a laser para minimizar lesões causadas pelo anestésico bupivacaína, muito usado em cirurgias. A foto foi finalista no concurso da Royal Microscopy Society realizado durante o Congresso de Microciência e Microscopia (de 29 de junho a 2 de julho, Manchester, Inglaterra).
Imagem enviada por Selma Michelin Matheus, do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu Se você tiver uma imagem relacionada à sua pesquisa, envie para imagempesquisa@fapesp.br, com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.
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julho 233 foto da capa léo ramos
CIÊNCIA 40 Medicina
Aumenta a frequência de casos de tumores de cabeça e pescoço causados pelo HPV, transmitido por contato sexual, em pessoas jovens e não fumantes
70 Nanotecnologia
Experimento resulta no aparecimento de microtubo coberto por nanofios que poderá ter aplicações em nano e microeletrônica
HUMANIDADES
46 Neurociência CAPA 16 Conferência mundial discute experiências educativas que promovem boas práticas científicas desde o início da carreira dos pesquisadores
ENTREVISTA 24 Magda Becker Soares
Educadora da UFMG fala dos desafios da alfabetização e do letramento no país e da importância da pesquisa direcionada à prática
POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA 30 Difusão
Em 10 anos, a Biblioteca Virtual da FAPESP evoluiu de uma base de dados para um sistema de informações com ferramentas analíticas
Dobras e espessura da camada externa do cérebro não estão relacionadas ao número de neurônios, segundo estudo
48 Genômica
Sequenciamento do DNA de abelhas ajuda a decifrar o desenvolvimento desses insetos
52 Microbiologia
Físicos e biólogos investigam como as bactérias Xylella fastidiosa se agregam em um biofilme
56 Geoquímica
Matéria orgânica transportada pelo Amazonas viaja por quase 600 quilômetros no Atlântico e chega ao Caribe
58 Paleontologia
Fóssil de quelônio marinho de 12 milhões de anos encontrado na Venezuela é parente distante das tartarugas de água doce da América do Sul
60 Física
Nuvens de átomos frios podem ser usadas para medir tênues variações da força da gravidade
34 Cientometria
Dados compilados da Plataforma Lattes abastecem estudos sobre a ciência no país e revelam tendências
38 Indicadores
Censo mostra crescimento dos grupos de pesquisa no país e redução de sua concentração regional
TECNOLOGIA
62 Empreendedorismo
USP sedia programa de aceleração de empresas startups
66 Bioengenharia
Instituto Biofabris produz implantes de liga de titânio para pacientes que perderam ossos do crânio ou da face após acidente ou doenças
72 Patrimônio arquitetônico
Inventário da USP alerta para a perda de construções históricas na primeira região cafeeira do estado
78 Turismo geológico
Roteiro reúne monumentos e edifícios do centro histórico paulistano revestidos com rochas de um passado distante
82 Sociologia
Embora nas cinco últimas décadas o acesso à renda e a direitos sociais tenha crescido, há disparidades que custam a ceder, como a racial
86 Arqueologia
Estudos destacam a importância das áreas rurais nas antigas pólis gregas do Mediterrâneo seçÕes 3 Fotolab 5 Cartas 6 On-line 7 Carta da editora 8 Dados e projetos 9 Boas práticas 10 Estratégias 12 Tecnociência 90 Memória 92 Arte 94 Resenhas 97 Carreiras 99 Classificados
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Dengue CONTATOS Site No endereço eletrônico www. revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP, na íntegra, em português, inglês e espanhol. Também estão disponíveis edições internacionais da revista em inglês, francês e espanhol Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação pelo e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727 – 10º andar, CEP 05415-012, São Paulo, SP Assinaturas, renovação e mudança de endereço Envie um e-mail para assinaturaspesquisa@fapesp.br ou ligue para (11) 3087-4237, de segunda a sexta, das 9h às 19h Para anunciar Contate Júlio César Ferreira na Mídia Office, pelo e-mail julinho@midiaoffice.com.br, ou ligue para (11) 99222-4497 Classificados Ligue para (11) 3087-4212 ou escreva para publicidade@fapesp.br Edições anteriores Preço atual de capa acrescido do custo de postagem. Peça pelo e-mail clair@fapesp.br Licenciamento de conteúdo Para adquirir os direitos de reprodução de textos e imagens de Pesquisa FAPESP ligue para (11) 3087-4212 ou envie e-mail para mpiliadis@fapesp.br
A edição 232 de Pesquisa FAPESP, com a reportagem de capa sobre a dengue (“Um vilão de muitas caras”), traz na sua contracapa o lema: “O que a ciência brasileira produz você encontra aqui”. Se a revista se propõe a uma abordagem nacional, causou-me espécie o texto versar sobre um tema que impacta todo o país, porém incluir apenas soluções a partir de projetos com financiamento da FAPESP. Na linha de novas tecnologias para a dengue, o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Dengue tem no Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (ICB-UFMG) um centro que desde 1997 realiza pesquisas sobre esse assunto e possui um relevante acervo de tecnologias desenvolvidas e testadas na área de monitoramento e controle da doença. Uma das patentes da UFMG é sobre armadilhas e feromônios, que posteriormente foram integrados a sistemas de monitoramento inteligente para apoio a tomada de decisão no combate a endemias. Patentes na área de virologia, que possibilitam a detecção da circulação viral a partir dos insetos capturados, também foram integradas ao pacote tecnológico. A reportagem cumpriria uma melhor prática de jornalismo científico se considerasse linhas de pesquisa como as realizadas em Minas ou em Porto Alegre. Alexandre Alves Inseed Investimentos Belo Horizonte, MG
Nota da redação: O objetivo da reportagem não foi esgotar o assunto dengue, que hoje recebe a atenção de vários gru pos de pesquisa pelo país. O foco foi dirigido para os trabalhos científicos realizados em instituições de São Paulo porque havia uma clara conexão entre eles. Pesquisa FAPESP publicou reportagens sobre trabalhos de pesquisadores que integram o INCT Dengue (edição 142, de dezembro de 2007, e 220, de junho de 2014). A mais recente menciona inclusive as experiências feitas em Porto Alegre e em outras cidades. Voltaremos outras vezes ao tema, procurando sempre incluir os centros de pesquisa brasileiros que tenham contribuições na área.
Parabéns pela reportagem sobre a dengue que mostrou que no estado de São Paulo há estudos sérios sobre a doença, distantes da política corrente de negar epidemias e crises. Vemos que em várias frentes se combate a doença e a propalada vacina é apenas uma das estratégias. Adilson Roberto Gonçalves Campinas, SP
Psiquiatria
Gosto de ler Pesquisa FAPESP. Confesso que dou mais atenção à física nuclear, astronomia e neodarwinismo, além das reportagens da área de humanidades. Gosto de quase tudo, mas, não por coincidência, fico triste quando leio textos sobre psiquiatria, principalmente quando se referem a conceitos e tratamento de psicose. A rigor, as reportagens que falam de pesquisas sobre cérebro tratam de neurofisiologia e não de psiquiatria e isso significa que são trabalhos que deveriam ser colocados na periferia do conhecimento sobre loucura. Algo que ajudaria a somar conhecimentos, a fazer contrapontos, mas jamais ser central e condutor no estudo das psicoses. Para dar um exemplo: os esquizofrênicos que saem das páginas da revista parecem que não sentem, não pensam, não têm emoções. Têm apenas o cérebro danificado. A psiquiatria neurofisiológica existe e é importante. Mas existe outra psiquiatria bem diferente dessa, que pouco aparece na revista. Depois de acompanhar por 40 anos mais de 150 processos psicoterápicos de pessoas psicóticas, eu ousaria dizer que essa outra psiquiatria ajuda mais a quem precisa. Os trabalhos de neurofisiologia são importantes e devem continuar a ser noticiados. Minha sugestão é dar também espaço maior à psiquiatria, seja clínica, social ou psicodinâmica. Geraldo Massaro Supervisor do Serviço de Psicoterapia do HC-FM-USP São Paulo, SP
Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar – CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.
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Galeria de imagens
w w w . r e v i s ta p e s q u i s a . f a p e s p. b r
A mais vista do mês no Facebook Boas Práticas
Mapeamento do plágio
57.984 visualizações 428 curtidas 381 compartilhamentos entre 21 e 24 de junho no perfil de Pesquisa FAPESP
Exclusivo no site x Há muito se sabe que a bacia de Araripe, no interior do Ceará, abriga uma variedade de fósseis de plantas e animais pré-históricos. Ainda assim, o paleontólogo Ismar de Souza Carvalho, do Instituto de Geociências da UFRJ, não
Rádio Historiador fala sobre cooperação científica entre Brasil e Alemanha nazista
Moradores de comunidades remanescentes de quilombos no Vale do Ribeira (SP) lutam por seus territórios e tradições
esperava encontrar algo tão raro por lá. Ele e sua equipe depararam com o fóssil muito bem preservado de uma ave pequena, do tamanho de um beija-flor,
Vídeos do mês
youtube.com/user/PesquisaFAPESP
de aproximadamente 115 milhões de anos, coberto por penas e plumas – estruturas que dificilmente resistem à ação do tempo. Até onde se sabe, esse é o fóssil de ave mais antigo do Brasil.
x Um almofariz e um bastão. Com esses dois instrumentos simples, encontrados Assista ao vídeo:
até mesmo em cozinhas domésticas, uma equipe internacional de pesquisadores, entre eles físicos brasileiros, conseguiu transformar nanotubos de carbono em fitas com apenas um átomo de espessura
Pesquisas buscam definir estilo e parentescos culturais da escritora Carolina Maria de Jesus
e extensão de uns poucos nanômetros (1 nanômetro equivale a 1 milímetro dividido por 1 milhão). As nanofitas interessam à engenharia de materiais por permitirem a transmissão de corrente elétrica de forma controlada. No estudo, os pesquisadores despejaram um punhado de nanotubos em um almofariz e depois o maceraram com um bastão. Ao fim de 20 minutos, cerca de 80% dos nanotubos haviam se aberto no sentido do comprimento e se transformado em fita. 6 | julho DE 2015
Assista ao vídeo:
Tecnologia poderá tornar a mineração mais eficaz e menos danosa ao ambiente
foto eduardo cesar ilustraçãO daniel bueno
on-line
carta da editora fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo Celso Lafer Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior Celso Lafer, Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, Horácio Lafer Piva, joão grandino rodas, José Goldemberg, Maria José Soares Mendes Giannini, Marilza Vieira Cunha Rudge, José de Souza Martins, Pedro Luiz Barreiros Passos, Suely Vilela Sampaio, Yoshiaki Nakano Conselho Técnico-Administrativo
Mudanças de comportamento Alexandra Ozorio de Almeida |
diretora de redação
Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico Joaquim J. de Camargo Engler Diretor Administrativo
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Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Anamaria Aranha Camargo, Carlos Eduardo Negrão, Celso Lafer, Fabio Kon, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Joaquim J. de Camargo Engler, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Lucio Angnes, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner Caradori do Amaral, Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos diretora de redação Alexandra Ozorio de Almeida editor-chefe Neldson Marcolin Editores Fabrício Marques (Política), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência); Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores especiais); Bruno de Pierro e Dinorah Ereno (Editores-assistentes) revisão Daniel Bonomo, Margô Negro arte Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos (Editora de infografia), Maria Cecilia Felli e Alvaro Felippe Jr. (Assistente) fotógrafos Eduardo Cesar, Léo Ramos Mídias eletrônicas Fabrício Marques (Coordenador) Internet Pesquisa FAPESP online Maria Guimarães (Editora) Rodrigo de Oliveira Andrade (Repórter) Rádio Pesquisa Brasil Biancamaria Binazzi (Produtora) Colaboradores Amália Inês Geraiges de Lemos, Daniel Almeida, Daniel Bueno, Daniel das Neves, Dartiu Xavier da Silveira, Elisa Carareto, Evanildo da Silveira, Igor Zolnerkevic, Márcio Ferrari, Maria Hirszman, Maurício Pierro, Mauro de Barros, Michel Paty, Nelson Provazi, Pablo Nogueira, Rafael Garcia, Sandro Castelli, Valter Rodrigues, Veridiana Scarpelli É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização Para falar com a redação (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br Para anunciar Midia Office - Júlio César Ferreira (11) 99222-4497 julinho@midiaoffice.com.br Classificados: (11) 3087-4212 publicidade@fapesp.br Para assinar (11) 3087-4237 assinaturaspesquisa@fapesp.br Tiragem 42.500 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo
A
integridade no comportamento é um valor comum da vida social e deveria ser praticado em todas as atividades humanas. Em algumas áreas, como na ciência, os tropeços de seus expoentes atraem holofotes, possivelmente devido à expectativa de que, em uma atividade construída sobre princípios e métodos, que busca o avanço do conhecimento, não caiba a má conduta. Os percalços enfrentados no estabelecimento de boas práticas científicas, e não os escândalos, são o objeto da reportagem de capa desta edição (página 16), que mostra diversas iniciativas de promoção de uma cultura de integridade em universidades e instituições de pesquisa mundo afora. Um marco desse processo no Brasil foi o lançamento do Código de boas práticas da FAPESP, baseado em três pilares, sendo o primeiro justamente a educação, além da prevenção e da investigação. Atividades de educação e treinamento para pesquisadores em formação e formados, essenciais para a promoção dessa cultura de integridade, são ainda escassas no Brasil, mas pouco a pouco ganham espaço e importância dentro das instituições. * Alterações no comportamento humano, no caso sexual, podem explicar uma significativa mudança no perfil dos pacientes com câncer de cabeça e pescoço (página 40). Os tumores de língua, céu da boca, amígdala, faringe e laringe eram comumente associados a homens acima de 50 anos, fumantes e consumidores imoderados de bebidas alcoólicas, mas na última década passaram a acometer pessoas entre 30 e 45 anos que não apresentam essas características comportamentais. Indícios apontam que o papilomavírus humano (HPV) seja a causa de infecções que facilitam a formação de
tumores nessas regiões. A associação do vírus ao câncer pode estar relacionada ao sexo oral com muitos parceiros – o uso de preservativo pode ser insuficiente como prevenção, dado que não evita o contato com áreas contaminadas não cobertas pela proteção. Em 10 anos, os casos de câncer de amígdala associados ao HPV passaram de 25% para 80%. A mudança no perfil dos pacientes coloca-se como novo problema de saúde pública, que deve levar à elaboração de novas formas de prevenção, além de tratamento. * Primeira educadora e terceira mulher a vencer o prêmio Álvaro Alberto, principal honraria científica do país, Magda Soares combina atividade de pesquisa sobre alfabetização, leitura e escrita com a transposição didática do conhecimento produzido para a ação pedagógica, principalmente por meio da elaboração de livros didáticos (página 24). Dedicou-se a entender a relação das crianças das camadas populares com os adultos que as educam. Procurando identificar as causas do fracasso escolar das crianças de escolas públicas, o diagnóstico da educadora inverte os termos da explicação convencional: a deficiência não é do aluno, mas do ensino que ele recebe. Em obra da década de 1980, ainda atual, propõe que as diferenças entre os alunos são tratadas como deficiências porque a escola não sabe lidar com a diferença. O fim da discriminação contra crianças das escolas públicas, para a educadora, é uma mudança de comportamento necessária para melhorar a qualidade do ensino e, portanto, de aprendizagem. Para a formação de cientistas íntegros, assim como de cidadãos letrados e alfabetizados, ainda há muito a ser feito. A educação é vital em todas as atividades e durante toda a vida. PESQUISA FAPESP 233 | 7
Dados e projetos Temáticos e Jovem Pesquisador recentes Projetos contratados em maio e junho de 2015 temáticos Estudo epidemiológico da dengue (sorotipos 1 a 4) em coorte prospectiva de São José do Rio Preto, São Paulo, Brasil, durante 2014 a 2018 Pesquisador responsável: Mauricio Lacerda Nogueira Instituição: Faculdade de Medicina de S. J. do Rio Preto/SDECTSP Processo: 2013/21719-3 Vigência: 01/06/2015 a 31/05/2020
Sistemas propulsores eletromagnéticos para coração artificial implantável e dispositivos de suporte circulatório mecânico Pesquisador responsável: José Roberto Cardoso Instituição: Escola Politécnica/USP Processo: 2013/24434-0 Vigência: 01/04/2015 a 31/03/2020
Pesquisador responsável: Alexandre Vaz Pires Instituição: Esalq/USP Processo: 2014/14136-4 Vigência: 01/06/2015 a 31/05/2020
Pesquisador responsável: Giuseppe Palmisano Instituição: ICB/USP Processo: 2014/06863-3 Vigência: 01/02/2015 a 31/01/2019
Dualidade gravitação/teoria de Gauge Pesquisador responsável: Victor de Oliveira Rivelles Instituição: IF/USP Processo: 2014/18634-9 Vigência: 01/04/2015 a 31/03/2020
Grupo de pesquisa de música da Renascença e contemporânea – GReCo Pesquisador responsável: Cesar Marino Villavicencio Grossmann Instituição: IA/Unesp Processo: 2014/15570-0 Vigência: 01/06/2015 a 31/05/2019
Uso de solventes verdes e suas misturas na otimização de processos químicos Pesquisador responsável: Omar Abou El Seoud Instituição: IQ/USP Processo: 2014/22136-4 Vigência: 01/05/2015 a 30/04/2019
Inovações tecnológicas visando o aumento da produtividade em bovinos de corte: inter-relações nutricionais e genéticas sobre a puberdade, a reprodução e produção; protocolos para IATF; expressão gênica nos processos reprodutivos
JOVEM PESQUISADOR Modificações pós-traducionais para o diagnóstico de câncer e doenças parasitárias: abordagens metodológicas e implicações biológicas
enzimas oxidativas de carboidratos, voltadas para o desenvolvimento de um cell factory mais eficiente Pesquisador responsável: Fernando Segato Instituição: EE de Lorena/USP Processo: 2014/18714-2 Vigência: 01/05/2015 a 30/04/2019
Como a época do fogo afeta a vegetação do Cerrado? Pesquisadora responsável: Alessandra Tomaselli Fidelis Instituição: IB de Rio Claro/Unesp Processo: 2015/06743-0 Vigência: 01/05/2015 a 30/04/2019
Mecanismos de reação de sistemas catalíticos assimétricos por espectrometria de massas e espectroscopia vibracional de íons na fase gasosa Pesquisador responsável: Thiago Carita Correra Instituição: IQ/USP Processo: 2014/15962-5 Vigência: 01/05/2015 a 30/04/2019
Softwares de código aberto contendo ferramentas estatísticas para análise e integração de conjuntos de dados epigenômicos produzidos em alta escala, a fim de decifrar e entender redes reguladoras de câncer Pesquisador responsável: Houtan Noushmehr Instituição: FMRP/USP Processo: 2015/07925-5 Vigência: 01/06/2015 a 31/05/2019
Oxidação enzimática do bagaço de cana-de-açúcar: descoberta, caracterização e aplicação de novas
Variação do impacto relativo de citações por área de conhecimento Impacto relativo* de citações de publicações de circulação internacional nos períodos 1999-2003 e 2009-2013 para o Brasil, São Paulo e países selecionados Áreas do conhecimento da FAPESP
Brasil
São Paulo
África do Sul
Argentina
China
Coreia do Sul
Espanha
Reino Unido
Fed. Russa
1999-
2009-
1999-
2009-
1999-
2009-
1999-
2009-
1999-
2009-
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2009-
1999-
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1999-
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1999-
2009-
2003
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2003
2013
Ciências exatas/da Terra**
0,75
0,80
0,79
0,92
0,79
0,98
0,81
0,96
0,54
0,89
0,75
0,95
1,08
1,25
1,34
1,49
0,60
0,56
Ciências biológicas
0,40
0,56
0,42
0,60
0,57
0,94
0,43
0,66
0,38
0,72
0,53
0,79
0,75
1,08
1,27
1,52
0,39
0,48
Engenharias
0,74
0,78
0,79
0,83
0,66
0,69
0,76
0,81
0,62
1,00
0,80
0,93
1,08
1,10
1,10
1,22
0,55
0,40
Ciências da saúde
0,55
0,65
0,56
0,70
0,73
1,11
0,78
1,23
0,61
0,72
0,63
0,76
0,88
1,21
1,19
1,45
0,31
0,65
Ciências agrárias
0,49
0,55
0,54
0,66
0,83
0,88
0,87
1,03
0,79
1,09
0,79
0,90
1,19
1,42
1,51
1,50
0,57
0,80
Ciênc. humanas e sociais ***
0,79
0,59
0,79
0,68
0,61
0,67
0,78
0,53
0,80
0,96
0,75
0,78
0,62
0,72
1,07
1,15
0,29
0,29
Interdisciplinar
0,54
0,49
0,83
0,56
0,15
0,74
0,54
1,23
0,18
0,52
1,44
1,44
1,35
1,56
1,03
1,58
0,17
1,56
Impacto relativo de citações 1999-2003 n Brasil n São Paulo
Interdisciplinar
Ciências humanas e sociais
Ciências agrárias
1,0 0,8 0,6 0,4 0,2 0,0
Ciências exatas/da Terra Ciências biológicas
Engenharias
Ciências da saúde
Impacto relativo de citações 2009-2013 n Brasil n São Paulo
Interdisciplinar
Ciências humanas e sociais
Ciências agrárias
Ciências exatas/da Terra 1,0 0,8 0,6 0,4 0,2 0,0
Ciências biológicas
Engenharias
Ciências da saúde
* O impacto relativo das citações é obtido pela razão entre o número médio de citações das publicações das áreas, para país ou região, e o número médio de citações para publicações da área em todo o mundo ** Matemática, Física, Química e Geociências *** Inclui Linguística, Letras e Artes Fonte: InCites Fapesp, ThomsonReuters, atualização março/2015
8 | julho DE 2015
Boas práticas O que acontece com a reputação de um pesquisador quando um artigo de sua autoria é retratado pela revista científica que o publicou? É esperado que ele passe a receber menos citações, mas o prejuízo depende do status do cientista e do motivo da retratação do artigo, segundo estudo dos economistas Pierre Azoulay, Alessandro Bonatti e Joshua Lev Krieger, da Sloan School of Management, vinculada ao Massachusetts Institute of Technology (MIT). “Cientistas proeminentes são mais penalizados do que colegas menos conhecidos, mas isso acontece apenas nos casos de fraude ou má conduta. Quando a retratação é causada por erros não intencionais, o prejuízo é menor e não faz diferença se o pesquisador tem prestígio ou não”, diz Azoulay. A queda média nas citações de artigos após a retratação, segundo o estudo, é de 10%. Mas pode chegar a 20% quando envolve lideranças de grupos de pesquisa acusadas de má conduta. Os resultados foram publicados num documento do National Bureau of Economic Research (NBER), dos Estados Unidos. O interesse do trio de economistas foi investigar como escândalos afetam a confiança nas pessoas envolvidas, tema sobre o qual há poucas informações. A percepção sobre os cientistas que cometem erros ou desvios permite, segundo os autores, analisar empiricamente esse fenômeno. Para chegar às conclusões, foram identificados 878 artigos da área biomédica que haviam sido retratados entre os anos de 1980 e 2009. Entre os responsáveis pelos artigos havia 376 pesquisadores baseados nos Estados Unidos sobre os quais se levantaram dados como as citações
de seus outros trabalhos ao longo do tempo. Para efeito de comparação, foram compilados dados sobre um grupo de controle com 759 autores da mesma área que não tiveram artigos retratados. Os resultados do trabalho dos economistas do MIT parecem estar em desacordo com os de outro documento do NBER produzido em 2013 por pesquisadores das universidades de Maryland e de Rochester e da Kellogg School of Management, que analisou o impacto da retratação de um artigo entre seus diversos coautores. Esse trabalho mostrou que os pesquisadores sêniores, aqueles que em geral assinam por último na lista de autores, têm prejuízo pequeno e sobrevivem ao cancelamento de um artigo, enquanto pesquisadores jovens, como aqueles que assinam em primeiro lugar na lista, como autores principais, sofrem até mesmo a perda de posição
daniel bueno
Impacto profissional da retratação
no grupo de pesquisa na esteira de um escândalo envolvendo fraude, plágio ou falsificação. “É importante observar que comparamos pesquisadores que pertencem a grupos diferentes, enquanto o outro trabalho analisou o impacto das retratações no interior de grupos”, escreveram Azoulay, Bonatti e Krieger.
Pesquisa sem fundamento A revista Science anunciou a retratação de um artigo, publicado em dezembro de 2014, que vinha sendo usado por militantes dos direitos dos homossexuais para nortear suas ações. O artigo dizia que cabos eleitorais da Califórnia que bateram de porta em porta para defender o casamento gay tiveram mais êxito em mudar as convicções de eleitores conservadores quando revelaram que eram homossexuais, numa suposta evidência de que a experiência pessoal funciona como fator de convencimento. Tais conclusões começaram a ruir quando dois pesquisadores da Universidade da Califórnia, em
Berkeley, tentaram repetir o estudo e observaram que os resultados obtidos eram muito inferiores aos registrados no paper da Science. Procuraram a empresa de pesquisa que havia contratado os cabos eleitorais, mas ela negou ser a fonte das informações que embasaram o artigo original. Um de seus autores, o cientista político Donald Green, professor da Columbia University, foi avisado do problema e pediu ao estudante de pós-graduação Michael LaCour, que assinara como autor principal, os dados sobre as pessoas que tomaram parte da pesquisa. Segundo Green, o aluno se recusou a fornecer as informações. PESQUISA FAPESP 233 | 9
Estratégias
1
Exército de autores
LHC: equipes de dois detectores fizeram artigo com recorde de assinaturas
O governo do estado
poderão ser
norte-americano do
desmontados no
Havaí anunciou que
Mauna Kea e quando
três a quatro telescópios
isso vai acontecer.
instalados no monte
“Sempre afirmamos que
Mauna Kea, a 4 mil
a parte superior da
metros de altitude,
montanha só deveria ser
precisarão ser
ocupada pelos melhores
desativados para tornar
telescópios”, disse
viável a construção do
Günter Hasinger,
telescópio gigante Thirty
diretor do Instituto
Meter Telescope (TMT),
de Astronomia da
iniciativa de US$ 1,2
Universidade do Havaí,
bilhão financiada por um
nos Estados Unidos.
consórcio de instituições
Observatórios como o
de pesquisa dos Estados
Gemini e o Keck,
Unidos, Canadá, Japão,
previstos para operar
China e Índia. O monte
até 2033, envolvem
abriga 13 telescópios
acordos internacionais
potentes, entre os quais
que não podem
Um artigo assinado por
O recorde anterior era de
5.154 pesquisadores
um artigo publicado por
bateu o recorde de
3 mil pesquisadores do
autores em um único
LHC em 2008. Se entre
o Keck, de 10 metros de
ser cancelados.
trabalho científico.
os físicos o conceito de
diâmetro, o Subaru e o
“Pretendemos continuar
Das 33 páginas do
“hiperautoria” é bem
Gemini, ambos de 8
trabalhando enquanto
artigo, publicado em
aceito, em outras áreas
metros. Previsto para
o retorno científico
maio na revista Physical
causa desconforto.
iniciar suas atividades
desses equipamentos
Review Letters, nove
A publicação em maio
em 2023, o TMT terá
ainda valer a pena”,
foram usadas para
de um artigo assinado
um espelho de 30
disse à revista Nature
apresentar os resultados
por 1.014 pessoas sobre
metros de diâmetro.
Raymond Blundell,
de pesquisa e sua
o genoma da mosca
A notícia gerou
professor de astronomia
bibliografia. As outras
drosófila gerou um
especulações sobre
da Universidade
24 páginas listam os
debate sobre o
quais telescópios
Harvard.
nomes dos autores e
significado da autoria
suas instituições.
num trabalho como
O paper é o primeiro
esse. “Será que todos
publicado pelas equipes
contribuíram para
que operam o Compact
serem creditados como
Muon Solenoid (CMS)
autores?”, indagou o
e o Atlas, dois detectores
neuroetologista Zen
de partículas do
Faulkes, da Universidade
Grande Colisor de
do Texas. A geneticista
Hádrons (LHC), o
Sarah Elgin, professora
maior acelerador de
da Washington
partículas do mundo.
University em St. Louis,
Os pesquisadores
Missouri, autora sênior
obtiveram uma
do paper, publicado
estimativa mais precisa
na revista G3, defendeu
da massa do bóson de
a autoria múltipla.
Higgs, descoberto em
“É reunindo os esforços
2012, aproximadamente
de muitas pessoas que
0,25% menor do que
se fazem bons projetos”,
a estimativa anterior.
afirmou à revista Nature.
10 | julho DE 2015
Monte Mauna Kea: três a quatro telescópios serão desativados
fotos 1 Maximilien Brice /CERN 2 Richard Wainscoat / NOAO / AURA / NSF 3 eduardo cesar ilustraçãO daniel bueno
Lugar para o gigante
O papel do aconselhamento científico A participação de cientistas na elabora-
com o documento, órgãos consultivos
em consideração incertezas inerentes à
ção de políticas sobre assuntos como
como o Painel Intergovernamental de
pesquisa e evitem fazer afirmações ca-
mudanças climáticas e biodiversidade
Mudanças Climáticas (IPCC) em geral
tegóricas. “Pareceres científicos podem
ainda se restringe à oferta de informações
consideram que seu papel termina quan-
ser contestados se as evidências não
técnicas e não contempla o monitora-
do as recomendações chegam aos inte-
forem suficientemente conclusivas. A
mento do impacto das decisões adotadas
ressados. Carthage Smith, coordenador
diferença entre risco e incerteza nem
por governos. Essa é uma das conclusões
da avaliação da OCDE, disse ao site Sci-
sempre é bem compreendida pelo pú-
de um relatório publicado pela Organi-
Dev.net que os órgãos precisam ser mais
blico”, diz o relatório.
zação para Cooperação e Desenvolvi-
ativos. “É importante avaliar se a infor-
mento Econômico (OCDE), que avaliou
mação teve influência concreta”, disse.
o papel de pesquisadores no processo
O relatório recomenda que cientistas e
de aconselhamento científico. De acordo
responsáveis por políticas públicas levem
Contribuição premiada O astrônomo brasileiro
Pró-reitoria de Pesquisa da
Sylvio Ferraz-Mello,
USP e o IAG promoveram
78 anos, que é professor
no dia 16 de junho uma
emérito e foi diretor do
comemoração e uma
Instituto de Astronomia,
palestra ministrada pelo
Geofísica e Ciências
astrônomo, intitulada
Atmosféricas da
“Chaos nos sistemas
Universidade de São
planetários”. “Este é o
Paulo (IAG-USP) entre
prêmio mais importante
Helena Nader, biomédica
um banco de dados com
1981 e 1985, recebeu o
da minha carreira”, diz
e professora titular da
a história da ciência
Brouwer Award 2015,
Mello, cuja pesquisa
Universidade Federal de
brasileira e da Sociedade.
concedido pela Divisão de
tem como ênfase a
São Paulo (Unifesp), foi
“Queremos criar novos
Astronomia Dinâmica da
dinâmica do Sistema
reeleita presidente da
veículos de comunicação
American Astronomical
Solar e os sistemas
Sociedade Brasileira para
voltados para a mulher e
Society a pesquisadores
planetários extrassolares.
o Progresso da Ciência
para o meio ambiente a
com contribuições
Ele é bacharel em Física
(SBPC), que reúne 110
fim de divulgar a ciência
relevantes na área. Para
pela USP e doutor em
sociedades científicas
brasileira“, afirmou
marcar a premiação, a
Ciências Matemáticas
associadas e mais de
Helena Nader, que é
4 mil sócios ativos. Após
membro da coordenação
cumprir dois mandatos
da área de Biologia da
como vice-presidente
FAPESP. Para os dois
e dois como presidente,
cargos de vice-presidente
universidades de
ela seguirá à frente da
foram eleitos o físico Ildeu
Paris (França),
entidade até julho de
de Castro Moreira, da
La Plata (Argentina),
2017. “Buscamos manter
Universidade Federal
Porto (Portugal) e
uma atuação permanente
do Rio de Janeiro (UFRJ),
Viena (Áustria). A União
no Congresso
e Vanderlan Bolzani, da
Astronômica Internacional
Nacional, fazendo o
Universidade Estadual
deu o nome “Ferraz-Mello”
acompanhamento de
Paulista (Unesp), membro
ao asteroide 1983 XF
projetos de lei que afetam
da coordenação do
(5201), descoberto em
as áreas de educação,
programa Biota FAPESP.
1983. Entre 1999 e 2001,
ciência, tecnologia,
Walter Colli, professor da
o pesquisador dirigiu
inovação e meio
Universidade de São Paulo
o Observatório Nacional,
ambiente”, disse a
(USP) e coordenador
instituto de pesquisa
pesquisadora. Uma das
adjunto da área de Ciências
vinculado ao Ministério
metas para a próxima
da Vida da Fundação,
da Ciência, Tecnologia
gestão é o projeto de
assume o cargo de
e Inovação.
memória da SBPC,
primeiro tesoureiro.
pela Académie de Paris, na França. Ocupou posições temporárias como professor nas
2
Novo mandato na SBPC
3
Helena Nader: à frente da entidade até 2017
PESQUISA FAPESP 233 | 11
Tecnociência
1
Ratoeiras aladas
Uma série de estudos já
da puberdade,
detectou na água potável
principalmente no caso
de várias cidades,
das amostras de 2010.
sempre em doses muito
Bastaram três dias
pequenas, a presença de
consumindo a água –
substâncias que afetam
onde foram detectadas
o funcionamento
substâncias como
hormonal, conhecidas
cafeína, atrazina, estrona
pelos especialistas como
e outras – para que os
interferentes endócrinos.
pesquisadores
São contaminantes com
observassem um
origem em atividades
aumento no peso do
humanas e que não são
útero e na espessura do
eliminados de maneira
endométrio, indicadores
satisfatória pelas
de resposta estrogênica.
estações de tratamento
Com uma exposição
de água. Durante o
mais longa, de 20 dias,
doutorado no campus
as ratas apresentaram
de Botucatu da
alterações hormonais,
Biólogos que estudam
Cerrado e Amazônia
Universidade Estadual
sobretudo nos níveis
marsupiais e roedores
(Systematics and
Paulista (Unesp), a
dos hormônios
podem recrutar
Biodiversity, maio).
patologista Marize Solano
folículo-estimulante
assistentes de campo
O material foi coletado
foi além da detecção
e luteinizante
inusitados: corujas.
durante o doutorado
das substâncias na água.
(Endocrine Disruptors,
Altamente qualificada é
da bióloga portuguesa
Ela analisou o efeito de
maio). Os efeitos
a suindara (Tyto furcata),
Rita Rocha, orientado
amostras de água da
verificados são ainda
caçadora exímia de
por Carlos Fonseca,
torneira colhidas em 2010
sutis e registrados
pequenos mamíferos
da Universidade de
e 2012 em Campinas,
apenas em roedoras,
(a ponto de ser apelidada
Aveiro, e Leonora Costa,
interior paulista, no
mas podem ser um sinal
de “ratoeira que voa”)
da Ufes. O material
desenvolvimento
de alerta para seres
que existe em
genético derivado das
reprodutivo de ratas.
humanos – sobretudo
praticamente todo o
ossadas revelou 11
Apesar de fracos, os
quando se leva em conta
Brasil. São auxiliares
espécies de mamíferos,
efeitos apontam para
o consumo prolongado
eficazes porque, como
dos quais dois eram
uma aceleração no
de água tratada
outras corujas, comem
marsupiais novos para
desenvolvimento
ao longo da vida.
as presas inteiras e
aquela área – até então
depois regurgitam ossos
conhecidos apenas no
e pelos numa bolota
norte da Amazônia.
seca. Um grupo da
Alguns dos roedores
Universidade Federal do
consumidos pela coruja
Espírito Santo (Ufes),
podem pertencer a
coordenado pelo biólogo
espécies desconhecidas.
Yuri Leite, analisou o
Diante da eficácia das
DNA extraído de
aves, os pesquisadores
regurgitados de suindara
sugerem que zoólogos
encontrados no sul do
sempre coletem
Pará, na fronteira com
regurgitados, um
Mato Grosso e Tocantins,
procedimento simples e
às margens do rio
que não requer cuidados
Araguaia – uma região
especiais de
de transição entre
armazenamento.
12 | julho DE 2015
2
Depois de comer roedores inteiros, a suindara regurgita ossos e pelos
fotos 1 Moisés Silva Lima 2 Kristine Paulus 3 eduardo cesar 4 Riga et al., Journal of South American Earth Sciences ilustraçãO daniel bueno
Da torneira ao útero
Café contra o diabetes
3
Obstáculos detectados O uso de sensores ultrassônicos em um par
O consumo diário de duas ou mais xícaras
de óculos para ajudar
de café pode ajudar a evitar o diabetes
cegos a se locomoverem
tipo 2. A conclusão é de uma equipe in-
levou um grupo de
ternacional coordenada pela médica
estudantes e profissionais
Maria Inês Schmidt, da Faculdade de
pernambucanos a ficar
Medicina da Universidade Federal do Rio
entre os 18 melhores
Grande do Sul. Eles examinaram 12.586
projetos do mundo no
participantes do Estudo Longitudinal
prêmio The World Summit
de Saúde do Adulto (Elsa-Brasil) com
Youth Award, apoiado
idade entre 35 e 74 anos, avaliando a quantidade de café, álcool e cigarro que consumiam diariamente por meio de um
pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Beber mais de duas xícaras de café ao dia pode diminuir o risco de ter diabetes
Destinada a
questionário. Em seguida, mediram os
desenvolvedores e
níveis de glicose no sangue de cada um
duas a três doses diárias apresentaram
empreendedores sociais
em jejum e os submeteram a um teste
risco 23% menor de ter diabetes quan-
com menos de 30 anos,
de tolerância à glicose, com nova me-
do comparados àqueles que nunca ou
a competição teve os
dição após duas horas. Ao todo, 1.341
quase nunca consomem a bebida. Três
vencedores conhecidos
(10,7%) foram diagnosticados com dia-
doses por dia — com ou sem açúcar —
em junho, na capital
betes, 3.083 (24,5%) com altos níveis
podem diminuir em até 26% o risco de
paulista. O sistema
de glicose sanguínea em jejum e 3.114
desenvolver a doença e em 29% o de
brasileiro chamado de
(24,7%) com alteração na glicose de
tolerância reduzida à glicose. Para os
Annuit Walk identifica
duas horas (tolerância reduzida). Mais
pesquisadores, o consumo de café pode
objetos e estruturas acima
da metade dos participantes (58%) dis-
afetar o metabolismo da glicose sanguí-
da linha da cintura do
se beber ao menos dois cafés por dia
nea de modo mais significativo após a
deficiente visual que não
(PLoS One, 15 de maio). Os que bebiam de
alimentação do que quando em jejum.
são detectados pela bengala. Quando o sensor identifica um obstáculo, um sinal faz vibrar uma
Caminhos de dinossauros argentinos
pulseira. O coordenador do projeto é o cientista
Pegadas e trilhas
presença desses animais.
de saurópodes
da computação Marcos
fossilizadas de
Ao todo, o grupo
titanossaurianos,
Penha, que formou o
dinossauros gravadas
liderado por Bernardo
animais gigantescos de
em rochas na província
Riga, da Universidade
pescoço e cauda longos
de Mendoza, na
Nacional de Cuyo,
e cabeça pequena que,
Argentina, estão
Argentina, com a
nas patas, tinham unhas
ajudando pesquisadores
participação do
enormes que usavam
argentinos e brasileiros
paleontólogo brasileiro
como única arma de
a entender melhor os
Roberto Candeiro, da
defesa. As pegadas,
animais que habitaram
Universidade Federal
eles verificaram,
aquela região há cerca
de Goiás, identificou
guardam impressões
de 85 milhões de anos,
330 rastros bem
dessas garras, cuja
no período Cretáceo
preservados, compostos
descrição é coerente
Superior (Journal of South
por seis tipos de
com a de dois esqueletos
American Earth Sciences,
pegadas, em formações
fossilizados encontrados
agosto). Os rastros
geológicas distintas.
recentemente na mesma
foram encontrados em
Na Formação Anacleto,
região. De acordo com
regiões com rios e lagos,
uma camada fossilífera
os pesquisadores,
em cujas margens a lama
encontrada na região de
essa é a primeira vez
se transformou em rocha
Neuquén, próxima à
que pegadas fósseis
com a passagem do
fronteira com o Chile,
de titanossauro são
tempo, preservando
os pesquisadores
corroboradas por
evidências indiretas da
encontraram 20 rastros
esqueletos fossilizados.
grupo de pesquisa WearIt, Descrição de garras em pegadas condiz com a de fósseis da mesma região
que reúne estudantes de diferentes universidades para desenvolver tecnologias vestíveis.
4
PESQUISA FAPESP 233 | 13
Bactérias do queijo coalho
1
Janela ajustável ao sol
Ilustração de película sobre vidro representando o modo privacidade
Bactérias do gênero
Bruno, responsável
Lactobacillus foram
pela pesquisa, feita em
selecionadas por
colaboração com
pesquisadores da
pesquisadores das
Embrapa Agroindústria
universidades Federal
Tropical, de Fortaleza,
do Ceará (UFC), Estadual
no Ceará, para produção
de Campinas (Unicamp)
de um novo fermento
e o Instituto de
lácteo que poderá ser
Lactología Industrial,
utilizado na produção
sediado em Santa Fé,
do queijo coalho
na Argentina. O
industrial. A novidade
processo de escolha de
preserva características
três cepas bacterianas,
do produto feito
selecionadas entre
artesanalmente,
900 bactérias
como sabor e textura,
encontradas em
expandindo a
amostras de queijo
possibilidade de
coalho produzido com
comercialização.
leite cru nos municípios
O queijo coalho
cearenses de Jaguaribe,
Para trazer mais
A película eletrônica
privacidade a uma casa
pode ser aplicada tanto
artesanal consumido
Quixadá, Tauá e
ou escritório, ou barrar
em novas janelas como
nas regiões do Nordeste
Maranguape, durou
o excesso de luz solar
naquelas já em uso;
é feito com leite cru,
10 anos. O material
que adentra esses
e, segundo os
o que é proibido na
selecionado foi testado
ambientes, o usual é
pesquisadores, toda a
produção industrial.
e as bactérias foram
utilizar cortinas, um
estrutura utilizada custa
“No processo de
utilizadas em duas
acessório que poderá
cerca de US$ 333,00
pasteurização para
formulações diferentes.
ser eliminado caso
o metro quadrado.
eliminar as bactérias
Ambas foram eficazes na
chegue ao mercado a
O estudo, em parte
patogênicas, também
fabricação de queijo com
tecnologia desenvolvida
financiado pela National
são eliminadas as da
leite pasteurizado.
na Universidade de
Science Foundation
microbiota normal do
“O resultado foi um
Cincinnati (UC), nos
(NSF), dos Estados
leite, que conferem
produto com aceitação
Estados Unidos,
Unidos, foi publicado na
ao produto final
de aproximadamente
em parceria com a
revista Applied Optics,
características próprias
7 em escala sensorial
Universidade Nacional
de 10 de junho. A
de sabor e textura
de 9 pontos, o que
de Taiwan e as empresas
coordenação é de Jason
apreciadas pelos
corresponde à avaliação
HP e EMD Merck.
Heikenfeld, que já tem
consumidores”, explica
‘gostei’, no teste”,
Os pesquisadores
patente depositada
a pesquisadora Laura
explica Laura.
desenvolveram uma
sobre o invento. Ele faz
película eletrônica que
parte do laboratório de
controla a passagem da
novos dispositivos da
luz solar em até 90% e
Faculdade de Engenharia
ainda garante, quando
e Ciência Aplicada da
necessário, opacidade
UC, que tem tradição em
ao vidro, trazendo
estudos no uso de cor,
privacidade. O calor do
brilho e velocidade e em
sol também pode ser
exposição em displays
controlado, deixando a
de aparelhos eletrônicos.
luz entrar no ambiente
A tecnologia utilizada
no inverno e barrando-a
na película se baseia em
no verão. Os ocupantes
estruturas hexagonais,
fazem o controle da
de 500 micrômetros
luminosidade e da
em cada haste, feita
transparência ajustando
de polímeros condutores,
a passagem de luz em
semelhantes a favos
várias gradações.
de mel.
14 | julho DE 2015
Queijo coalho industrial com sabor e textura iguais aos do artesanal
2
fotos 1 Universidade de Cincinnati (UC) 2 eduardo cesar 3 léo ramos ilustraçãO daniel bueno
Um mundo de árvores
Transmissão do vírus zika No começo de 2015, o
Instituto Oswaldo Cruz,
Em meio à imensidão
serviço público de saúde
junho). Análises
das florestas tropicais,
de Natal, no Rio Grande
filogenéticas sugerem
ainda não se tem ideia
do Norte, passou a
que a cepa do vírus em
de quantas espécies
relatar casos de pessoas
circulação na região
de árvores existem. Um
com febre, irritação
descende de uma
amplo estudo compilou
na pele, conjuntivite e
linhagem asiática.
dados de levantamentos
dores nas articulações.
Segundo os pesquisadores,
florestais em mais de
Por algum tempo,
a identificação do vírus
200 localidades na
confundiu-se esses
zika como sendo
região entre os trópicos
sintomas com os da
responsável por uma
de Câncer e de
dengue, por se tratar de
epidemia da doença no
Capricórnio, onde foram
uma área endêmica
Nordeste do Brasil
contabilizadas mais de
da doença. Mas testes
representaria a primeira
11 mil espécies (PNAS,
sorológicos e moleculares
transmissão autóctone
16 de junho). Análises
logo descartaram essa
(dentro do estado ou
possibilidade. Ao analisar
município) no país. Assim
amostras de soro de
como os vírus da dengue
oito desses pacientes,
e da chikungunya, o zika
pesquisadores do
também é transmitido
Instituto Carlos Chagas,
pelo mosquito Aedes
3
estatísticas, porém,
Amazônia: América pode não ser a recordista em diversidade de árvores
indicam que a região
pobre: o mínimo está
deve abrigar no mínimo
entre 4.500 e 6 mil
entre 40 mil e 53 mil
espécies. A avaliação
espécies de árvores, um
condiz com a hipótese
valor mais alto do que
de que no Pleistoceno
da Fundação Oswaldo
aegypti. Os pesquisadores
estimativas anteriores
as florestas africanas
Cruz, em Curitiba, Paraná,
acreditam que isso
apontaram. Um aspecto
tiveram uma redução
e do Instituto de Medicina
facilitará a dispersão do
surpreendente foi a
drástica, sobrando um
Tropical da Universidade
vírus por outras regiões
avaliação de que a
acervo pequeno para a
Federal do Rio Grande
do Brasil. Por enquanto,
região indo-pacífica é
diversificação que veio
do Norte, verificaram que
o controle do mosquito
tão rica quanto a parte
depois, com a expansão
se tratava do vírus ZIKV,
é a única medida que
tropical das Américas,
florestal. O estudo
responsável pela febre
pode interromper a
que era considerada a
envolveu dezenas de
zika (Memórias do
transmissão do vírus.
recordista de diversidade
pesquisadores, entre
de árvores. Levando em
eles 29 brasileiros
conta a margem de erro
de 17 instituições. Um
da estimativa, ambas
alerta: a maior parte
devem ter entre 19 mil e
dessas espécies é rara,
25 mil espécies, no
o que indica um risco
mínimo. A África
elevado de extinção por
continental é bem mais
desmatamento.
Caminhando e conversando Um passatempo agradável, observar
como a velocidade com que as pessoas
semelhantes já detectaram: indepen-
como as pessoas caminham pela rua,
atravessavam o corredor mudava se
dentemente do espaço entre as pessoas,
também pode ser útil para projetar es-
andavam em grupos de duas ou três
trios tendem a andar mais devagar que
paços públicos mais seguros e agradáveis.
pessoas conversando entre si. Também
duplas, e sempre com uma das pessoas
Francesco Zanlungo, Dražen Brščić e
queriam saber se a velocidade mudava
à frente, com o grupo formando um “V”
Takayuki Kanda, do Instituto Internacio-
quando as pessoas andavam afastadas
de ponta cabeça (Physical Review E, 19
nal de Pesquisa em Telecomunicações
ou próximas umas das outras. A partir
de junho). Os pesquisadores suspeitam
Avançadas, em Kyoto, Japão, registraram
de 800 horas de dados registrados por
que essas regularidades tenham a ver
durante um ano a passagem de milhares
câmeras e sensores de movimento, a
com o conflito entre manter uma con-
de pessoas por um corredor de 3 metros
equipe analisou e comparou em detalhe
versa ao mesmo tempo que o grupo
de largura em um edifício comercial em
as caminhadas de 3.305 duplas e 602
precisa se mover e prestar atenção aos
Osaka, Japão. Seu objetivo era descobrir
trios. Verificaram o que outros estudos
obstáculos no caminho.
PESQUISA FAPESP 233 | 15
capa
Para promover uma
cultura de integridade Conferência mundial discute experiências educativas que promovem boas práticas científicas desde o início da carreira dos pesquisadores
O
desafio de disseminar boas práticas científicas desde os primeiros estágios da carreira dos pesquisadores foi uma das questões mais ressaltadas na 4ª Conferência Mundial sobre Integridade Científica, que reuniu no Rio de Janeiro cerca de 500 profissionais de mais de 45 países, entre os dias 31 de maio e 3 de junho. Cerca de duas dezenas de apresentações mostraram resultados de programas de educação e treinamento criados em vários lugares do mundo para promover uma cultura de integridade em universidades e instituições de pesquisa, num sinal de que o debate sobre honestidade acadêmica já não se restringe à formulação de diretrizes éticas e às punições de casos de fabricação de dados, falsificação e plágio – principais focos no campo da discussão sobre má conduta na pesquisa. O debate atual, diga-se, já inclui até a preocupação com alunos de ensino médio, que desde cedo têm contato com ferramentas capazes de facilitar o plágio em trabalhos escolares.
16 z julho DE 2015
O Brasil, representado por mais de 200 participantes, conta com poucos programas educacionais. “Há uma longa jornada para que o país implemente políticas educativas amplas de integridade científica”, disse Sonia Vasconcelos, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), uma das organizadoras do evento. “A conferência foi uma oportunidade para os participantes se familiarizarem com o que instituições em vários países estão fazendo e avaliarem como podem avançar.” Entre as experiências, destacaram-se cursos de treinamento on-line para estudantes e pesquisadores, cujo conteúdo pode ser adotado por qualquer instituição. Um exemplo é o programa europeu Epigeum (www.epigeum.com), utilizado em cerca de 230 universidades de mais de 27 países, que foi criado em 2005 como spin-off da Imperial Innovation, empresa sediada no Imperial College de Londres. Entre dezenas de cursos on-line sobre assuntos de interesse científico e acadêmico, o de integridade científica é um dos
ilustrações maurício pierro
Bruno de Pierro, do Rio de Janeiro
pESQUISA FAPESP 233 z 17
“O editor deve tomar a atitude certa na hora certa”
Chris Graf, diretor da divisão de revistas médicas da editora Wiley, é o novo vice-presidente do Committee on Publication Ethics (Cope), organização à qual estão filiadas as principais editoras científicas de boa parte dos países que lideram a produção científica. Como o Cope ajuda editores a lidar com a má conduta de autores? Em nosso site (www.publicationethics.org), disponibilizamos, de forma anônima, mais de 500 casos reais de má conduta em artigos científicos enfrentados por editores. Cada situação foi analisada e discutida por aproximadamente 60 editores, que fazem recomendações sobre como enfrentá-la. Muitos problemas são idênticos a outros que ocorrem diariamente. Os casos resolvidos são uma fonte inestimável de conselhos.
arquivo pessoal / cope
É possível padronizar a resposta dos editores em situações de má conduta? O Cope produziu 16 diagramas com orientações que ajudam editores que se veem frente a uma situação complicada, envolvendo plágio, fabricação ou falsificação de dados, e também a problemas menos graves. O diagrama ajuda o editor a tomar a atitude certa e a procurar a instituição a que o autor é filiado no momento certo. Que países e instituições têm enfrentado melhor a questão da má conduta? Não tenho conhecimento suficiente para responder, mas sei que a forma de avaliar a produção científica no Reino Unido mudou radicalmente. Em vez de dar importância ao fator de impacto dos periódicos, caminha-se em direção a medições que levem em conta o impacto real da pesquisa na sociedade, nas políticas, na economia e assim por diante. Tenta-se capturar todo o quadro qualitativo.
18 z julho DE 2015
mais requisitados. Divide-se em cinco módulos que abordam tópicos como planejamento de pesquisa, conflitos de interesse e atribuição de autoria de papers, e tem ferramentas didáticas como vídeos e debates on-line. O Epigeum também dispõe de um curso no qual são discutidas a definição de plágio e as maneiras de identificá-lo. Ainda se sabe pouco sobre o impacto de programas educacionais na prática dos pesquisadores. “Estamos desenvolvendo um questionário para analisar como cada um absorve o conhecimento abordado nos cursos”, disse Nicholas Steneck, diretor do programa de Ética e Integridade na Pesquisa da Universidade de Michigan, que coordena o curso do Epigeum.
A
estratégia de dar treinamento on-line pode ser útil, mas tem limites. É preciso considerar, por exemplo, se o conteúdo é adequado para o contexto de cada país. “É essencial fazer uma avaliação da cultura de cada ambiente de pesquisa antes de implantar esses programas”, observou Sabine Kleinert, editora da revista The Lancet e uma das coordenadoras do comitê internacional do evento. Para ela, o ideal é que tais iniciativas sejam um complemento a atividades educativas desenvolvidas em cada universidade. Outra experiência é o Collaborative Institutional Training Initiative (Citi), da Universidade de Miami (www.citiprogram.org). Criado em 2000, oferece cursos on-line em 10 idiomas, já utilizados em 77 países. O treinamento sobre conduta responsável em pesquisa divide-se em 11 módulos. Alguns estão disponíveis em português, como os que definem conflitos de interesses, tipos de má conduta e formas de gerenciar dados de pesquisa. Assim como no Epigeum, o uso dos módulos do Citi não é gratuito. É necessária uma licença institucional, que pode ser paga anualmente. O conteúdo tem abordagem vinculada a diretrizes da National Science Foundation (NSF), principal agência norte-americana de fomento à pesquisa básica, que desde 2007 exige treinamento em integridade científica nas instituições que financia. Mas o programa Citi não reflete apenas a realidade dos Estados Unidos. Nos últimos anos, a iniciativa desdobrou-se com a criação de centros instalados em mais quatro países: Japão, Canadá, Índia e Coreia do Sul. Eles desenvolvem conteúdo adaptado para demandas locais, com colaboração de pesquisadores de outras culturas. Na Índia, por exemplo, o Citi é utilizado na Universidade de Sri Ramachandra na formação ética de médicos, com ênfase na responsabilidade em testes clínicos. No Brasil, o Citi está ancorado em duas instituições, a UFRJ e a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). “Além de participar de um curso presencial de 16 ho-
ras, docentes e alunos da UFRJ e de instituições parceiras devem completar o módulo eletrônico do Citi”, explicou José Roberto Lapa e Silva, professor da Faculdade de Medicina da UFRJ. A PUC-RS estuda a utilização do Citi para ampliar ações de treinamento que já incluíam a realização de workshops, seminários e distribuição de material didático a alunos de iniciação científica e pesquisadores. “Queremos agora atingir professores que orientam pesquisadores em início de carreira na pós-graduação”, contou Rosemary Shinkai, professora da PUC-RS. Episódios envolvendo má conduta, como fraude e plágio, disseminaram-se nos últimos anos, em boa medida impulsionados pelo crescimento da produção científica. Um estudo publicado em 2012 na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) mostrou as causas de retratação de 2.047 artigos científicos indexados no repositório PubMed e produzidos por pesquisadores de 56 países. Apenas 21,3% dos artigos tiveram a publicação cancelada devido a erros não intencionais, enquanto 67,4% em razão da má conduta. Desses, 43,4% ocorreram por prática ou suspeita de falsificação, 14,2% por publicação duplicada e 9,8% por plágio. As origens da proliferação de práticas antiéticas na ciência foram amplamente discutidas na conferência. Para muitos pesquisadores, o fenômeno está relacionado ao sistema de recompensas vigente no ambiente científico. “O pesquisador é avaliado de acordo com sua produtividade. A forma como vai receber apoio, ganhar uma bolsa ou avançar na carreira está atrelada ao número de artigos que publica”, ponderou Rosemary Shinkai, da PUC-RS. Para ela, esse sistema precisa ser repensado. O físico inglês Philip Moriarty, da Universidade de Nottingham, defendeu mudanças no modelo. “O fator de impacto da publicação
às vezes não diz nada sobre a qualidade de um trabalho individual”, afirmou. Uma pergunta inevitável é: o que leva um pesquisador sênior, com sólida carreira acadêmica, a protagonizar casos de má conduta em trabalhos científicos? Para Paulo Beirão, diretor científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), a resposta contempla variáveis às vezes pouco tangíveis. “Há fatores que nem mesmo pesquisadores experientes conseguem sempre controlar. Em geral, são muito ocupados, envolvem-se com atividades burocráticas e de ensino, restando tempo insuficiente para fazer um acompanhamento rigoroso do que publicam em parceria com alunos e colaboradores, quando esses são em número excessivo”, explicou Beirão, que foi membro da Comissão de Integridade Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) entre 2011 e 2013. Desde que assumiu cargos de gestão, Beirão diminuiu o ritmo de suas pesquisas com toxinas em aranhas e escorpiões na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), para evitar esse problema. “Tarefas administrativas não inviabilizaram meu trabalho como pesquisador. Mas passei a publicar menos”, disse.
A
pressão que o pesquisador exerce sobre si mesmo para publicar muitos artigos pode gerar erros. “Em um ambiente competitivo, o imaginário do pesquisador é tomado pela ideia de que, para ser o melhor, ele precisa publicar excessivamente”, disse Beirão. A justificativa, diz o professor, nem sempre tem respaldo na realidade, pois as agências de fomento do país têm evitado cobranças desse tipo. “As agências costumam ser criticadas pela pressão sobre os pesquisadores, mas a maioria delas não defende a produção em grande quantidade. O que se espera é um número razoável de trabalhos, mas de qualidade.” Zoë Hammatt, diretora da divisão de Educação do Escritório de Integridade de Pesquisa (ORI) dos Estados Unidos, apresentou na conferência um panorama das justificativas dadas por pesquisadores investigados. Um estudante de pós-graduação, por exemplo, alegou que estava “sob forte estresse”. Alguns expõem insegurança e medo de desapontar colegas e supervisores. “Estava aterrorizado com a possibilidade de errar e com o que meus colegas e alunos pensariam se me vissem falhar”, disse um pesquisador que fabricou dados. “Esses casos mostram que a má conduta tem múltiplas causas e os casos devem ser investigados com cautela”, disse Zöe. Os casos investigados pelo ORI são utilizados para auxiliar na elaboração de programas de educação de instituições de pesquisa. Recentemente, o escritório divulgou um documento com mais de pESQUISA FAPESP 233 z 19
Debate em evolução Etapas da discussão sobre a integridade científica nos últimos tempos
Responsabilidade
princípios
partilhada
éticos
Conferência Mundial
Fundação Europeia de
Declaração da
sobre Integridade
Ciência lança código
2ª Conferência Mundial
e Tecnológica do
Científica em Lisboa,
de ética no qual afirma
sobre Integridade
discute o aumento de
governo norte-
Portugal. Países
que instituições,
Científica, em Cingapura,
casos de má conduta
-americano consolida
discutem estratégias
editores, pesquisadores
define 4 princípios
no país. Governo
a definição de má
para a harmonização
e agências de fomento
para promover boas
norte-americano
conduta científica,
de políticas de
são responsáveis pela
práticas: honestidade;
cria o Escritório
abrangendo casos de
integridade para
prevenção e
prestação de contas;
de Integridade em
plágio, fabricação e
promoção de boas
investigação de casos
imparcialidade;
Pesquisa (ORI)
falsificação de dados
práticas no mundo
de má conduta científica
e boa gestão
Reforço
Definição de
institucional
má conduta
Academia de Ciências
O Escritório de
dos EUA publica
Política Científica
relatório em que
diálogo global Realização da 1ª
20 estudos de caso. Os exemplos, baseados em situações reais, são acompanhados por instruções sobre como abordá-los em sala de aula. Um dos casos apresentados é o de uma pesquisadora estrangeira, sem habilidades para escrever em inglês, que entrega à sua supervisora nos Estados Unidos um artigo em que 80% do texto é plagiado. Sugere-se que a discussão com os alunos parta da pergunta: “Ela deveria ser expulsa do programa ou ter uma segunda chance?”. Para o coordenador do trabalho, James Dubois, professor da Universidade de Saint Louis, o objetivo é estimular o debate. “Queremos encorajar instrutores de cursos a serem criativos e a ajudar os estudantes a desenvolver o pensamento crítico”, escreveu Dubois.
A
pontado como uma iniciativa promissora de educação em integridade científica na Europa, o programa Good Scientific Practice (GSP) envolve instituições e universidades da Alemanha, Luxemburgo e França. Diferentemente de iniciativas on-line, seu objetivo é promover workshops com a participação de pesquisadores em início de carreira. Até maio, haviam sido realizados 25 eventos. O GSP também oferece cursos a docentes que desenvolvem atividades de integridade científica com seus alunos. Segundo Helga Nolte, professora da Universidade de Hamburgo, na Alemanha, e membro do GSP, um problema associado à formação ética de estudantes é o baixo engajamento de professores em programas educacionais criados por suas instituições. “Trata-se de um trabalho adicional, que para muitos deveria envolver recompensa financeira”, disse. Na Coreia do Sul, a participação de pesquisadores ajudou a estruturar um programa de trei-
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namento em boas práticas criado em 2014 pelo Instituto de Desenvolvimento de Recursos Humanos em Ciência e Tecnologia da Coreia. A instituição consultou pesquisadores para identificar quais temas eles tinham menos conhecimento. Noventa e três por cento dos pesquisadores relataram sentir falta de informações sobre como publicar artigos dentro dos padrões corretos. Outros 79% apontaram uma carência de debates sobre a responsabilidade social no ambiente da ciência. “Estruturamos disciplinas de um curso a partir dessa consulta”, explicou Eun Jung Ko, representante do instituto coreano. Já a Universidade Ghent, na Bélgica, anunciou em maio o lançamento de um programa para reforçar princípios de integridade científica entre seus pesquisadores, sobretudo aqueles em início de carreira. Estratégia semelhante foi posta em prática pela escola de medicina veterinária da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos, que criou uma instância incumbida de oferecer treinamento em boas práticas na área biomédica. A experiência brasileira na promoção de uma cultura de integridade científica é recente. O Código de boas práticas científicas da FAPESP foi lançado em 2011 e estabeleceu um conjunto de diretrizes éticas para a atividade profissional dos pesquisadores que recebem bolsas e auxílios da Fundação. O documento serviu de referência para que outras instituições, como o CNPq e a Academia Brasileira de Ciências (ABC), criassem suas próprias normas. “Mas ainda estamos no início de um processo”, observou Luiz Henrique Lopes dos Santos, responsável por coordenar a elaboração do código da FAPESP e membro do comitê organizador da conferência. “Cabe às agências de fomento estimular as instituições de
Códigos
Colaborações
Sistema de
brasileiros
internacionais
recompensas
FAPESP lança seu
A declaração da
Discussão sobre
Código de Boas
3ª Conferência Mundial
o sistema de
Práticas, baseado
sobre Integridade
recompensas na
em três pilares: a
Científica, em
carreira dos
educação, a prevenção
Montreal, no Canadá,
pesquisadores e
e a investigação,
destaca a promoção
a importância de
com sanções justas
de boas práticas
programas de
e rigorosas. O CNPq
em colaborações
educação e
também lança
internacionais e
treinamento avançam
recomendações e
chama a atenção para
na 4ª Conferência
diretrizes em projetos
as diferenças entre
Mundial sobre
financiados pela
sistemas regulatórios
Integridade Científica,
agência
e legais dos países
no Rio de Janeiro
“A questão não é de quantidade versus qualidade”
A brasileira Rosemary Shinkai, professora da PUC-RS, participou do conselho do Cope, fórum sobre ética em periódicos científicos. Por que o sistema de recompensas na ciência deveria ser repensado? É preciso mudar o modo como as instituições científicas públicas e privadas selecionam seus pesquisadores, privilegiando aspectos quantitativos da publicação de artigos. A forma como o pesquisador recebe apoio ou avança na carreira está muito atrelada ao seu currículo. Isso alimenta um ambiente muito competitivo que às vezes abre espaço para a má conduta científica.
pesquisa a reconhecerem a necessidade de sua participação nesse processo”, disse Lopes dos Santos, que é coordenador-adjunto de Ciências Humanas e Sociais, Arquitetura, Economia e Administração da Fundação.
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É preciso incentivar os pesquisadores a publicarem menos e com mais qualidade? A questão não é de quantidade versus qualidade. Artigos científicos das ciências exatas e biológicas costumam ser assinados por vários autores e são publicados com mais frequência, enquanto pesquisadores de ciências humanas podem levar anos para publicar um livro. Diante dessas diferenças, perguntamos: o que é ser um autor? O que é ser produtivo? Essas questões, sim, precisam ser levadas em conta.
arquivo pessoal
m São Paulo, algumas instituições começam a desenvolver atividades educativas sobre integridade científica com mais intensidade. Na Universidade Estadual Paulista (Unesp), os comitês de ética de cada unidade da instituição promovem eventos sobre boas práticas de pesquisa ao longo do ano. Um deles é direcionado a alunos de graduação no Congresso de Iniciação Científica da Unesp; outro é voltado para recém-doutores, docentes e pesquisadores recém-contratados. “O código da FAPESP e as diretrizes do CNPq são usados como parâmetros para a realização de workshops e simpósios voltados a pesquisadores em início de carreira”, explicou Maria José Soares Mendes Giannini, pró-reitora de Pesquisa da Unesp. “Com isso queremos assumir mais fortemente nosso papel na formação ética dos pesquisadores.” A preocupação da Universidade de São Paulo (USP) está nos estudantes de graduação e pós-graduação. O objetivo é fazer com que ações preventivas ajudem a diminuir a necessidade de investigar abusos e estabelecer punições. “A má conduta é um dos desafios da própria existência humana. Sempre existiu e continuará existindo”, disse José Eduardo Krieger, pró-reitor de Pesquisa da USP. “Mas devemos investir em mecanismos capazes de evitar a sua disseminação na universidade.” A USP não dispõe de um programa institucional sobre integridade científica, mas há iniciativas lideradas por docentes de diversos departamentos. Ainda
Como foi sua experiência no Cope? Nos últimos três anos, participei do conselho do Cope. Foi a primeira vez que o Brasil e a América Latina tiveram representação nesse comitê. Atualmente permaneço nele como consultora. É importante para o país ter representatividade em diferentes órgãos internacionais que tratam ativamente da integridade científica.
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“É preciso ser transparente em casos de má conduta”
A advogada Susan Zimmerman é diretora do Secretariado de Conduta Responsável em Pesquisa do governo canadense (SRCR). Como os casos de má conduta têm sido tratados no Canadá? Recentemente, mudamos nossas regras. Agora, se descobrirmos que o pesquisador cometeu uma infração grave, podemos proibi-lo para sempre de receber apoio de agências federais. Também podemos publicar os resultados de nossas investigações. Isso é novo para nós. A sociedade não quer mais que digamos para ela não se preocupar. Quer nos ver tomando medidas.
arquivo pessoal
Como lidar com a privacidade de investigados? É importante proteger a privacidade do pesquisador, mas em certo ponto é necessário ser transparente sobre o que aconteceu. Agora, ao se candidatar a um financiamento, o pesquisador canadense precisa assinar um consentimento dizendo algo como: “Se for descoberto que eu cometi uma infração grave, permito que seja divulgado o que eu fiz de errado, qual foi minha punição e onde eu estava trabalhando”. Que outras ações o Canadá vem implementando? O país tem um guia nacional sobre ética na pesquisa há 15 anos. Em 2011, ele passou por uma revisão significativa e está disponível em nosso site (www.rcr. ethics.gc.ca). Estamos agora preparando um tutorial interativo sobre o guia. Digo isso porque, apesar de o nosso guia ter sido feito para instituições e pesquisadores canadenses, sabemos que ele tem sido usado ao redor do mundo.
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em 2015, a pró-reitoria de Pesquisa deverá realizar dois grandes eventos sobre o assunto, abertos a alunos, professores e funcionários. O pró-reitor reconhece que a responsabilidade por promover a integridade científica cabe, primariamente, às universidades e instituições que abrigam estudantes e pesquisadores, mas reforça a necessidade do trabalho articulado com agências de fomento e editores de revistas científicas. Isso porque, embora esteja atenta, a universidade não dispõe de instrumentos para identificar problemas em todas as etapas de pesquisa. “Uma atuação compartilhada é indispensável”, disse. Uma das primeiras iniciativas de educação em integridade científica no Brasil foi a criação, em 2007, de uma disciplina obrigatória sobre ética e integridade científica para alunos de mestrado e doutorado do Instituto Militar de Engenharia (IME), no Rio de Janeiro. Entretanto, a UFRJ parece ser a instituição com mais experiência no assunto. Desde 2011, o Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho começou a oferecer uma disciplina sobre ética e integridade na pesquisa para pós-graduandos. O Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) oferece um curso de extensão com oito horas de treinamento em metodologia científica e ética na pesquisa. Desde 2013, as aulas estão disponíveis no site da TV Coppe (www.coppetv.coppe.ufrj.br). Já o Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis (IBqM) da UFRJ começa a oferecer neste ano a disciplina “Conduta responsável em pesquisa” para alunos de pós-graduação. Na graduação, a UFRJ também oferece disciplinas optativas voltadas para temas que se relacionam com a integridade científica. Recém-formada em biomedicina na universidade, Mariana Ribeiro cursou entre 2013 e 2014 duas dessas disciplinas optativas, uma sobre sociologia da ciência, ministrada pela professora Jacqueline Leta, e outra sobre comunicação científica, por Sonia Vasconcelos. “Sempre tive interesse por esses temas, mas sabia pouco sobre eles”, disse Mariana. As aulas de comunicação científica incluem discussões sobre autoria, plágio, dinâmicas da produção científica e a importância do
pesquisador se comunicar de maneira clara e responsável com o público e com os pares. “No ensino médio, tinha apenas noções limitadas sobre plágio”, disse a estudante, que pretende iniciar um mestrado sobre integridade científica na UFRJ no segundo semestre de 2015.
“Na ciência, você deve fazer de tudo para provar que está errado”
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Philip Moriarty, físico da Universidade de Nottingham, no Reino Unido, é pesquisador na área de política científica. Qual é a responsabilidade das editoras científicas na questão da integridade científica? Os pesquisadores confiam no nome da revista como garantia de qualidade de um trabalho. Em alguns casos, pode-se argumentar que os padrões de revisão de periódicos de alto fator de impacto são os mais elevados, mas encontramos situações em que esses padrões falharam. Há problemas na revisão por pares? Não quero que soe como crítica, porque a vasta maioria dos artigos são aperfeiçoados pela revisão por pares. Mas acho que a revisão deveria ser encarada de outra maneira. Achamos que a publicação do artigo é o fim da história, quando na verdade deveria ser o começo. As críticas surgem depois que publicamos. Da mesma forma, as citações mostram quão popular é um trabalho, mas não necessariamente qual é a sua qualidade. Nesse processo, dúvidas e limites da pesquisa podem ser omitidos? O físico Richard Feynman disse que na ciência você deve fazer de tudo para provar que está errado. Mas a prática é oposta a isso. A preocupação é convencer os avaliadores. Essa é uma cultura perigosa.
arquivo pessoal
a cerimônia de abertura da conferência, Helena Nader, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), chamou a atenção para a necessidade de se trabalhar tais temas em escolas. “O problema da integridade científica tem origem no ensino médio”, afirmou. “Hoje, já na escola, os jovens utilizam as novas tecnologias de comunicação, como tablets e smartphones, para fazer trabalhos, muitas vezes copiando textos sem saber que aquilo constitui plágio.” O expediente de reproduzir em trabalhos escolares trechos copiados da internet, sem que se atribua adequadamente a autoria, expandiu-se na mesma velocidade com que a rede mundial de computadores ganhou utilidades múltiplas. No caso dos estudantes do ensino médio, parece não faltar informações sobre as implicações de plagiar. Em dissertação de mestrado defendida em 2014 na Universidade Federal do Espírito Santo, Mariana Santolin Romaneli entrevistou 40 estudantes do ensino médio de escolas públicas e particulares de Vitória. Convidados a opinar sobre um caso hipotético de plágio num trabalho escolar, a maioria considerou que o plágio é uma atitude errada e deve ser punido com “nota zero” ou com a exigência de fazer um novo trabalho, agora com conteúdo original. Docentes de universidades e professores de colégios privados de ensino médio vêm utilizando softwares rastreadores de plágio para coibir a escalada de abusos. A UFRJ adquiriu uma licença de software capaz de identificar plágios em trabalhos. Constatou-se que quase a totalidade da monografia de uma aluna de história havia sido copiada, e seu diploma foi cancelado. Mas o conselho universitário da UFRJ permitiu que a estudante fizesse uma nova monografia e, como medida educativa, ela foi admitida como estagiária da Câmara Técnica de Ética em Pesquisa (CTEP), voltada para promover e tratar de questões relacionadas à integridade da pesquisa. Para Sonia Vasconcelos, a quarta edição da conferência avançou no sentido de amadurecer os debates sobre as formas de promover a integridade científica nas instituições e de pontuar muitos dos desafios. Para Melissa Anderson, pesquisadora da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos, os programas educacionais reforçam a ideia de que a responsabilidade no combate à má conduta científica é coletiva. “O sucesso depende da dedicação de todos os atores dos sistemas de ciência e tecnologia em cada país”, disse. n
Os programas educacionais estão conseguindo mudar essa percepção? As pessoas já estão conscientes. Quando chegam no nível de doutor, elas são esclarecidas. Se distorcerem dados ou cometerem plágio, elas sabem que é errado. O problema é usarem atalhos, porque a pressão para publicar é intensa, mesmo estando conscientes de que não deveriam.
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entrevista Magda Becker Soares
O poder da linguagem Educadora da UFMG fala dos desafios da alfabetização e do letramento no país e da importância da pesquisa direcionada à prática Bruno de Pierro |
retrato
Glaucia Rodrigues
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oucos dias depois de receber a equipe de reportagem em sua casa em Belo Horizonte (MG), a educadora Magda Becker Soares embarcou em um navio hospitalar da Marinha, que atende populações ribeirinhas do rio Negro, na Amazônia. Na bagagem, levou livros infantis para distribuir. Aos 83 anos, ela conquistou o Prêmio Almirante Álvaro Alberto de 2015 e ganhou a viagem no pacote de honrarias, que também inclui diploma, medalha e R$ 200 mil. Concedido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em parceria com a Fundação Conrado Wessel e a Marinha do Brasil, trata-se do principal prêmio da ciência e da tecnologia do país. “Precisarei tomar algumas vacinas, mas, fora isso, tudo bem”, disse, ao ser perguntada sobre como lidaria com uma viagem tão longa. Desde a graduação em letras na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), na década de 1950, Magda procurou conectar o que elaborava no plano teórico, em pesquisas no campo da alfabetização e do letramento, a práticas capazes de interferir na aprendizagem de crianças e auxiliar professores. Para ela, pesquisar é uma forma de compreender e agir. “Não acho que publicar artigo científico seja suficiente, quando se é da área da educação”, diz. Sua carreira é marcada pela influência em políticas públicas, como o Programa Nacional Biblioteca na Escola, e a publicação de coleções de livros didáticos entre as décadas de 1960 e 1980. Sua obra inovou, nos anos 1960, ao propor que o ensino da língua para crianças utilize textos do cotidiano, como gibis e reportagens. Aposentada há 13 anos, Magda não quer saber de descanso. Três vezes na semana viaja para a cidade mineira de Lagoa Santa, a 35 quilômetros de Belo Horizonte, onde desenvolve um projeto com professores e estudantes.
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idade 83 anos especialidade Educação formação UFMG (graduação, doutorado e livre-docência) instituição UFMG produção científica Mais de 80 artigos científicos e 26 livros. Orientou 62 mestrados e 10 doutorados
A professora na biblioteca de sua casa, em Belo Horizonte: pesquisa em educação e influência em políticas públicas
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Como soube que tinha recebido o prêmio? O ministro Aldo Rebelo, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação [MCTI], me telefonou. Fiquei surpreendida e até achei que era trote. É um prêmio valorizado na área científica e acadêmica. Fui apenas a terceira mulher a recebê-lo. No meu discurso, chamei a atenção para isso. Não sou feminista, mas acho que as mulheres têm dado uma contribuição grande para as ciências e estão numa minoria significativa no prêmio. A segunda surpresa é que fui a primeira da área de educação. A que atribui sua escolha? Talvez seja porque, entre tantas mulheres e homens que contribuem para a educação, eu tenha me voltado para uma área essencial para o país, que é ensino e aprendizado. Minha trajetória foi dirigida para a educação das crianças que frequentam escola pública e estão nas camadas desprestigiadas da sociedade. Mais do que isso, sempre trabalhei com a língua materna, particularmente o aprendizado da língua escrita.
Angela Leão, que estava terminando o curso de letras. Eu não tinha noção de que existia um curso de letras. Naquela época, por volta de 1949, só tínhamos notícia dos cursos de engenharia, medicina e direito. Eu sabia que tinha odontologia e farmácia, porque meu pai trabalhou nessas faculdades, mas desconhecia que havia uma faculdade de filosofia, com vários cursos. Naquela época, as faculdades de filosofia ainda mal tinham sido criadas. Achei o trabalho dessa professora, que ainda estava se formando, absolutamente fascinante. Ela abriu as portas da literatura para mim. Antes disso a senhora não tinha contato com literatura? Sempre li muito. Mas na escola nunca tive
sidade. Paralelamente, o colégio Izabela Hendrix me convidou para ser professora de português. Resolvi que gostaria de ter essa experiência de ensinar crianças. Comecei a dar aulas no Izabela Hendrix e, logo depois, entrei para as redes públicas estadual e municipal de ensino. Essa foi a grande virada em minha vida acadêmica e profissional. Quando comecei a lecionar na rede pública, tomei um grande susto. E foi a partir desse susto que se originaram minhas pesquisas, meus estudos e publicações. O que a assustou? Na rede municipal, me dei conta de como era forte a discriminação e as diferenças entre a educação que eu tinha tido, pertencendo à classe média, e a educação nas duas instâncias em que dava aulas: na escola privada e na escola pública. Àquelas crianças da rede pública ensinava-se menos. A partir daí, nunca consegui fazer mais nada que não fosse lutar contra essa diferença na educação de camadas sociais diferentes.
Para mim, pesquisar é compreender para agir. Não acho que publicar artigos seja suficiente, na área de educação
A senhora cogitou se formar em ciências exatas, certo? É isso mesmo. Essa mudança nem foi da área de exatas para a de educação, mas para as ciências sociais aplicadas na área de letras. Percebo que fiz uma virada radical. Minha intenção era fazer curso na área de exatas. Fiz o científico [equivalente ao ensino médio atual], muito voltado para química e física. Estudar para mim sempre foi um prazer. Costumo dizer que praticamente nasci dentro da universidade. Meu pai, Caio Líbano Soares, era médico psiquiatra e professor na UFMG. Meu pai ia para seu laboratório na Faculdade de Farmácia, que ficava na esquina da casa em que morávamos. Isso me deu vontade de seguir a vida universitária e ir para as ciências exatas.
Como mudou de ideia? Aconteceu quando estava me preparando para fazer o vestibular. Eu tinha dúvida se prestava para engenharia química ou para outro ramo da engenharia com foco em física. Tive, já no terceiro ano do científico, uma professora de português, 26 | julho DE 2015
formação para isso. Hoje penso em quanto tempo perdi. Em 1950, entrei no curso de letras. Naquele tempo, fazíamos três anos só com matérias de conteúdo, depois um ano das disciplinas pedagógicas. Fiz o curso de letras neolatinas, no qual estudávamos cinco línguas e suas respectivas literaturas. Eram latim, português, francês, italiano e espanhol. Para quem gostava de ler, como eu, foi muito boa essa abertura para várias línguas e literaturas. Em que momento a senhora começou a se interessar pela alfabetização? Foi em decorrência de outra mudança radical. Estava quase terminando a graduação e fui sondada para trabalhar como assistente de professores na univer-
No que consistia essa diferença? Ela ainda persiste? Sim, persiste. Trata-se, por exemplo, de diferenças no espaço físico em que as crianças estudam. O colégio Izabela Hendrix era lindo, ocupava dois quarteirões, tinha pátio de esportes, piscina. Na escola pública a infraestrutura era – e ainda é, quase sempre – absolutamente precária. A questão que mais me tocava, porém, era a postura dos professores em relação àquelas crianças. Eles acreditavam que os alunos não davam conta do aprendizado, tinham vocabulário pobre, a mãe era analfabeta. No entanto, eram crianças inteligentes, que queriam aprender. O que sempre me incomodou é o tipo de relação que se estabelece entre professores, gestores e as crianças das escolas públicas.
Seu interesse foi fazer uma ponte entre a pesquisa na universidade e o ensino em escolas públicas? Fui convidada a substituir uma professora do Colégio de Aplicação da UFMG e, ao mesmo tempo, trabalhar com práticas de ensino de português na Faculdade
acervo ceale / ufmg
de Filosofia. Comecei a discutir aquelas questões que me incomodavam com os alunos da faculdade. Como eu também era professora de português na escola pública, a questão da linguagem foi fundamental nessa interação com futuros professores. Comecei a me aprofundar para entender quem são as crianças das camadas populares e qual é a relação delas com os adultos que as educam. Como resultado de muitas leituras e de algumas pesquisas que fiz, em 1986, publiquei o livro Linguagem e escola: uma perspectiva social [Editora Ática], obra na qual discuto os conceitos com que se explicavam os bons ou maus resultados de crianças das camadas populares: faltava “dom” para os estudos? Eram deficientes? Eram diferentes? Quando eu era pequena, as pessoas diziam: fulano tem um dom para português, para matemática. Durante muito tempo vigorou a ideologia do dom. Até hoje, não? Pois é, até hoje vigora esse mito de aluno superdotado, brilhante. Mas depois que as camadas populares conquistaram o direito de ir para a escola, o que apareceu foi a diferença. Na época, vários livros sobre essa questão dos alunos “diferentes” começaram a chegar às escolas. Por muito tempo nosso ensino foi só para crianças da burguesia. Quando a escola se tornou mais acessível para todas as classes, o professor Miguel Arroyo, colega da faculdade, dizia que a escola pública “pegou carona” na escola da burguesia, foi imposta para crianças que não eram da burguesia. Como elas eram de outra realidade, começaram a ser identificadas como “deficientes”. Na verdade eram apenas diferentes. Depois, direcionei minhas pesquisas para identificar as causas do fracasso escolar das crianças de escolas públicas. Quis mostrar que elas não eram deficientes. Deficiente era o ensino dado a elas. Qual foi o impacto dessa ideia na época? O meu livro Linguagem e escola, publicado nessa época, mostrou que a diferença é tratada como deficiência porque a escola não reconhece diferenças e não sabe lidar com elas. O lamentável é que, embora seja da década de 1980, o livro continua sendo publicado. Está na 18ª edição e é muito utilizado em cursos de pedagogia. Lamentável, porque fica evidente que o problema da discriminação contra crianças das escolas públicas continua.
Com alunos da rede municipal de Lagoa Santa (MG): projeto em que se engajou depois da aposentadoria
Que importância dá à sua participação em projetos envolvendo políticas educacionais? Para mim, pesquisar sempre foi uma forma de compreender para agir. Não acho que publicar artigo científico seja suficiente, quando se é da área da educação, sobretudo em um país em que o ensino público ainda é tão deficiente. Na época da ditadura militar, por exemplo, recebi críticas quando aceitei um convite de Jarbas Passarinho, então ministro da Educação, para auxiliar na elaboração da Lei de Diretrizes e Bases de 1971. Na verdade, o convite foi feito pelo reitor da Universidade de Brasília [UnB] da época, Caio Benjamin Dias, que era mineiro e conhecia meu trabalho. Na época, muitos estudantes e professores lutavam contra a opressão, defendendo a universidade da interferência militar. Ao mesmo tempo, tínhamos como princípio que era preciso tentar entrar no sistema político por onde houvesse brechas. Foi essa estratégia que me levou a aceitar o convite de Passarinho. Passei dois ou três meses em Brasília. Era uma comissão sensata, de educadores, sem nenhuma interferência militar, devo dizer isso. A senhora escreveu livros didáticos para estudantes e manuais para professores. Era também uma forma de colocar em prática os resultados de pesquisas? Sempre defendi que o pesquisador, particularmente na área de educação, deve produzir e socializar o conhecimento. Só produzir e ficar isolado entre as paredes da universidade é mais cômodo, mas não é socialmente justo. Um dos
caminhos que encontrei foi escrever livros didáticos operacionalizando teorias linguísticas e pedagógicas sobre o ensino da língua, porque com eles eu chego nas escolas, às mãos dos professores e dos alunos. Os professores recebiam o mesmo livro que o aluno recebia, com a diferença de que o material do professor era acompanhado com comentários, discussões conceituais, uma forma de eu conversar com ele. Era uma maneira de formar tanto o aluno quanto o professor. Como conciliar a teoria com a linguagem simples dos livros didáticos? Esse é um grande nó para quem pesquisa nas áreas de ciências humanas e sociais. Eu não consigo entender por que as pessoas, pela pesquisa, compreendem a realidade, mas não agem para alterá-la. No meu caso, essa transposição didática, do conhecimento produzido para a ação pedagógica, é uma questão de simplificar sem distorcer, o que não é fácil. Para simplificar sem falsificar, é preciso conhecer a fundo o conteúdo, tornar aquilo compreensível para a criança e o professor. Digo que é mais fácil escrever um artigo científico e publicar para os meus pares que escrever um livro didático. Porque para os meus colegas eu relato simplesmente minha pesquisa. Quando se quer usar o resultado de pesquisas para traduzi-las em práticas de alfabetização, isso dá um trabalho enorme. Tem que pensar na fase de desenvolvimento em que a criança está, nos seus processos cognitivos, no seu desenvolvimento linguístico, nas características do objeto de conhecimento, a língua escrita, e também no professor. PESQUISA FAPESP 233 | 27
Por isso resolveu usar textos de jornais e gibis para alfabetizar? Naquela primeira coleção de livros didáticos, trabalhei apenas com textos literários. Era a concepção de ensino de português da época. Na minha pesquisa, observei que o ensino baseado fortemente em gramática não levava a criança a se tornar um leitor ou um produtor de textos competente. Dessa compreensão veio a ação, que foi produzir uma coleção didática diferente. A sociedade vai mudando, as crianças vão mudando, passaram a ser invadidas por publicidade, por histórias em quadrinhos, pela Turma da Mônica etc. Era preciso, portanto, manter o texto literário, mas também desenvolver habilidades de leitura nesses outros gêneros. Teve, ainda, um fato bastante significativo que me fez perceber isso. Na época, fui a uma escola em Juiz de Fora onde estavam utilizando meus livros. Pedi à professora para assistir à aula, mas disse que ficaria quieta, no fundo da sala, e solicitei que ela não falasse nada a meu respeito com os alunos. No fim da aula, a professora se deu o direito de falar: “Agora, vou contar um segredo para vocês. Sabem quem é aquela que está lá atrás sentada, assistindo à nossa aula? É a Magda Soares, autora do nosso livro”. Em seguida, um menininho falou assim: “Mas ela é viva?”. Naquele instante me dei conta de que, para o menino, o autor do livro era alguém que já morreu. Isto é, o autor aparece como alguém distante, intangível. Eram crianças de 10 ou 11 anos e a ideia de que o autor já morreu me deu esse outro susto na vida: o livro como uma coisa que não parece pertencer ao tempo deles. 28 | julho DE 2015
cristina lacerda / abc
Qual era sua base conceitual quando escreveu os livros didáticos? Minha primeira coleção, dos anos 1960, foi intitulada Português através de textos. Nela, eu propus um ensino que entende o português como texto, não como gramática, como se fazia na época. Uma pesquisa minha mostrou que a criança de ensino fundamental não tem condições de entender a língua como sistema, a gramática da língua, o que é muito complexo. Nessa fase, dos 11 aos 13 anos, a criança está naquela fase que Jean Piaget chamou de operações formais. Por exemplo, substantivos e adjetivos, orações coordenadas e subordinadas são conceitos dos quais a criança ainda não dá conta.
Com Hernan Chaimovich, presidente do CNPq, e o ministro Aldo Rebelo, recebendo o Prêmio Álvaro Alberto
Garanto que, se naquele momento meu livro fizesse referência a gibis, textos de publicidade, o garotinho certamente não ia perguntar se a autora estava morta. Como a senhora esbarrou na questão do letramento? O sociólogo Pierre Bourdieu foi, nesse sentido, meu grande guru. Ele mostrou como a linguagem é usada como instrumento de poder na sociedade. Portanto, é importante dar às pessoas esse instrumento. As camadas populares têm que lutar muito contra a discriminação e a injustiça, e a linguagem é um instrumento fundamental. Alfabetização e letramento têm esse objetivo: dar às pessoas o domínio da língua como instrumento de inserção na sociedade e de luta por direitos fundamentais. Em relação à língua escrita, a criança tem que aprender duas coisas. Uma é o sistema de representação, que é o sistema alfabético. Esse é um processo que trabalha determinadas operações cognitivas e tem que levar em conta as características do sistema alfabético, é saber decodificar o que está escrito, ou codificar o que deseja escrever. Mas isso deve ser feito em contexto de letramento, com textos reais, não com o clássico exemplo “Eva viu a uva”. Que Eva? Que uva? Tradicionalmente a alfabetização se resumia a codificar e decodificar, porque o foco era a criança aprender apenas o código. Mas a questão é que a criança precisa aprender o código sabendo para o que ele serve.
Trata-se de saber fazer usos sociais da alfabetização? A escrita é uma tecnologia como outras. É importante aprender a escrever, conhecer a relação fonema-letra, saber que se escreve de cima para baixo, da esquerda para a direita, aprender as convenções da escrita. Mas essa tecnologia, como toda tecnologia, só tem sentido para ser usada: para saber interpretar textos, fazer inferências, ler diferentes gêneros, o que significa outra coisa e exige outras habilidades e competências. Aprender o sistema de escrita é alfabetização. Aprender os usos sociais do sistema de escrita é letramento. As políticas de educação levam em consideração essa distinção? A formação de professores para ensinar a língua escrita, até mesmo para ensinar qualquer conteúdo, é o principal nó na educação. Governo e ministério se preocupam em dar formação para o professor, mas de forma, em meu entender, inadequada. Não há um trabalho contínuo e duradouro. Falta mudar a formação de professores. Enquanto isso não for feito, não vamos chegar a lugar nenhum. A escola tem recebido crianças com deficiências, ao contrário do que acontecia no passado. Qual o impacto disso? Toda criança tem direito de ser incluída no ensino regular, independentemente do problema que tenha. Hoje, crianças com necessidades especiais já vêm sendo incluídas no ensino regular. É muito
bom. Só que as professoras não são formadas nem preparadas para ensinar essas crianças. Vejo outro problema: cresce a cada ano o número de crianças consideradas “de inclusão” nas escolas. Não é possível ter tanta criança autista como as que têm sido incluídas nas redes de ensino. Tenho visto turmas em que dizem haver quatro, cinco crianças autistas. Isso não parece razoável do ponto de vista médico e psicológico. O que a senhora quer dizer? A proposta sempre foi incluir quem tem as chamadas necessidades especiais, mas aí se começou a considerar qualquer dificuldade como “necessidade especial”. Por exemplo, consideram crianças como tendo atraso mental de 3 ou 4 anos. Discordo: em geral não é atraso mental, é atraso de ensino que gera atraso de aprendizagem. Outro exemplo: basta o menino não conseguir parar quieto e ter paciência para acompanhar a aula para ter diagnóstico de hiperativo e receber receita de ritalina [medicamento usado contra hiperatividade e déficit de atenção]. Ele é ativo, só isso, a atenção é curta. Professores e escola precisam saber trabalhar com essas crianças, não encaminhá-las logo a profissionais de outras áreas.
fonemas, contato com bibliotecas de todo o Brasil. Identificamos temas que mereciam aprofundamento, outros que não eram tratados. Com o tempo, passamos a participar de atividades de extensão em escolas públicas e a colaborar com o Ministério da Educação em programas de alfabetização e letramento. É um centro que tem desempenhado a difícil tarefa de ser ao mesmo tempo um grupo de pesquisa, uma linha do curso de pós-graduação da Faculdade de Educação da UFMG e um centro de colaboração com políticas públicas na área da linguagem. A senhora foi amiga de Paulo Freire. Como seu trabalho se aproxima do dele? Considero que trabalho com os mesmos pressupostos e os mesmos ideais que
a pessoa aprender a língua escrita como instrumento de inserção social e cultural e da luta por seus direitos. A arma social de luta mais poderosa é o domínio da linguagem. É através dela que as classes dominantes dominam. É essa visão que Paulo Freire tinha e que eu tenho. A senhora se aposentou aos 70 anos. O que tem feito ultimamente? Colaboro como voluntária na rede municipal de ensino de Lagoa Santa. Ao deixar a universidade, quis voltar à escola pública, para buscar a articulação entre as teorias que estudei ou construí e as práticas das salas de aula. Desenvolvemos um projeto com o objetivo de que todas as 24 escolas do município avancem na qualidade da educação. Quando há oito anos uma nova administração assumiu o município, a secretária de Educação ficou assustada com os baixos resultados em alfabetização na rede e me pediu sugestões e ideias. Visitei as escolas e propus um trabalho que atingisse a rede toda. O projeto recebeu o nome de Paralfaletrar, que significa aprimorar a alfabetização e o letramento ao mesmo tempo. Foi construído com a participação das professoras e apresenta ótimos resultados: o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) do município aumentou acima do esperado e os resultados dos alunos nas avaliações externas estão sempre acima da média estadual ou nacional.
O método Paulo Freire não existe. Sua proposta é alfabetizar com palavras da realidade da pessoa
Como nasceu o Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale), da UFMG, do qual a senhora é fundadora? Nasceu de uma proposta de pesquisa que enviei ao CNPq há 25 anos. Eu queria construir o “estado da arte” em alfabetização no Brasil: um levantamento do que já se tinha pesquisado a fim de identificar as lacunas que demandavam pesquisas. O projeto foi aprovado e deu-se início a um trabalhoso levantamento de todas as teses e dissertações sobre alfabetização escritas no país até aquele momento. Descobrimos que o primeiro trabalho a pesquisar a alfabetização foi uma tese de livre-docência defendida nos anos 1960 em São Paulo. Numa época em que ainda não havia o banco de teses e dissertações da Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior], o levantamento foi feito por meio de tele-
ele, com a mesma utopia. Não considero que a principal contribuição de Paulo Freire é um método de alfabetização. O que chamam de “método Paulo Freire de alfabetização” não existe. A grande contribuição que ele deu foi a visão política da alfabetização e da luta contra o analfabetismo. Quanto à alfabetização, sua contribuição foi que não se deve alfabetizar com “Eva viu a uva”, mas sim com palavras e textos da realidade da pessoa. O foco de Paulo Freire foi sobretudo a alfabetização do adulto. Meu foco é a alfabetização de crianças. Alfabetizando operário, é fundamental trabalhar com a palavra tijolo, por exemplo. Alfabetizando crianças, trabalho com a palavra boneca ou bola. Tudo isso para
A questão da alfabetização está resolvida no Brasil? Não. Eu mesma, e é uma queixa frequente de professores, já tive alunos de graduação e até de pós-graduação com dificuldade de compreender e de escrever textos. A dificuldade vem de um ensino deficiente na educação básica. Nos anos 1950 e 1960, abrimos as escolas para as camadas populares, até tardiamente. Agora fazemos o mesmo nos cursos superiores. Mas nos dois níveis estamos resolvendo a quantidade e não a qualidade. Esse é o problema da educação brasileira: busca-se resolver apenas a quantidade de carteiras nas salas de aula. Fica faltando a qualidade do ensino e, portanto, de aprendizagem. n PESQUISA FAPESP 233 | 29
política c&T Difusão y
Apoio transparente Em 10 anos, a Biblioteca Virtual da FAPESP evoluiu de uma base de dados para um sistema de informações com ferramentas analíticas Fabrício Marques
U
m conjunto de palestras e mesas-redondas programado para acontecer no dia 21 de agosto vai marcar os 10 anos de atividade da Biblioteca Virtual (BV) da FAPESP. Sistema de informações sobre bolsas, auxílios e pesquisadores apoiados pela Fundação, disponível em inglês e português de forma aberta na internet, a BV em 2014 recebeu quase 4,2 milhões de visitas,
O desempenho da BV-FAPESP Alguns indicadores sobre o uso do sistema de informações
Evolução do número de visitas
Número de consultas por tipo
à BV-FAPESP (2008 a 2014)
de página na BV-FAPESP (2014) 4.199.194
Pesquisador
2013
4.166.990
Bolsas
2012
2.262.324
2011
1.394.539
2010
850.025
2009
857.111
Fonte Google Analytics – posição em 31.12.2014
e inglês dos auxílios regulares, bolsas e programas da Fundação, entre outros, a partir de 1992. Além de multiplicar seu conteúdo, a biblioteca desdobrou-se em diversas páginas que organizam os dados segundo recortes determinados, como a descrição dos projetos e bolsas em cada subárea de 76 disciplinas ou em cada uma das cerca de 1.500 instituições de pesquisa atuantes em São Paulo. Também incorporou ferramentas que per-
2014
2008
30 z julho DE 2015
patamar três vezes superior ao registrado em 2011. Lançada em 2005 com as referências de 4 mil documentos da literatura científica e acadêmica oriunda de projetos financiados pela Fundação, como papers, teses, capítulos de livros e livros, a BV ampliou seu escopo e passou a fornecer informações sobre o fomento à pesquisa no estado de São Paulo. Conta hoje com mais de 200 mil registros, incluindo resumos em português
86.053
2.070.388 1.646.546
Busca em todos os campos
1.490.796
Auxílios a pesquisa Outros Assuntos
1.277.105 264.540 116.278
Instituição de pesquisa
39.879
Área do conhecimento
21.848
mitem visualizar dados consolidados na forma de gráficos e mapas e recuperar informações com facilidade. “A biblioteca deixou de ser apenas um banco de dados com artigos e projetos e incorporou ferramentas analíticas com inúmeras aplicações”, afirma Roberto M. Cesar-Jr., professor do Instituto de Matemática e Estatística da USP e coordenador adjunto de Ciências Exatas e Engenharias da FAPESP. Em 2010, ele participou de
um grupo que ajudou a reformular a BV, propondo a criação de ligações externas e de novas ferramentas. A multiplicação de consultas à Biblioteca Virtual está relacionada diretamente a páginas criadas recentemente. Quase a metade dos 4,2 milhões de consultas em 2014 se dirigiu a perfis de pesquisadores apoiados pela Fundação, que começaram a existir apenas em 2013. “Nesses perfis é possível enxergar, de maneira resumida
Ranking dos países estrangeiros com mais visitas à BV-FAPESP (2014) 93.665
Estados Unidos Portugal Índia ilustraçãO veridiana scarpelli
Espanha Reino Unido
89.150 26.765 15.447 13.830
França
13.418
Não identificado
12.749
Alemanha
12.621
Angola
12.298
e organizada, a história do vínculo entre o pesquisador e a FAPESP”, observa Rosaly Favero Krzyzanowski, coordenadora da Biblioteca Virtual desde a sua criação. Isso inclui a lista dos auxílios a pesquisa e bolsas em andamento e concluídos, os nomes dos colaboradores mais frequentes, a descrição e o gráfico de evolução das publicações científicas resultantes dos apoios da Fundação, assim como as citações que cada artigo eventualmente
Fontes de acesso à BV-FAPESP (2014)
91,64% Ferramentas de busca
5,96% Acesso direto
2,08% Sites referenciais
0,31% Mídias sociais
pESQUISA FAPESP 233 z 31
recebeu em publicações indexadas na base Web of Science (WoS). Também há links para o currículo Lattes do pesquisador e para perfis internacionais como o ResearcherID, integrado à base Web of Science da Thomson Reuters, e o MyCitations, do Google Scholar. A busca dos artigos científicos vinculados a bolsas e auxílios a pesquisa é feita por robôs que obtêm automaticamente da Web of Science e da biblioteca SciELO as referências desses papers. Desde 2013, os pesquisadores apoiados pela FAPESP se obrigam a registrar, além da habitual menção à Fundação, também o número do processo que referencia o projeto de pesquisa em qualquer publicação científica que resultar de bolsas ou auxílios financiados. Se não houver a menção ao número do projeto, o artigo científico não pode ser indexado automaticamente junto ao registro do respectivo projeto, indexado na BV, e, consequentemente, não é inserido na página do pesquisador. “Dessa forma, a Biblioteca Virtual mantém atualizadas as informações sobre cada apoio concedido”, diz Rosaly.
Recursos da biblioteca Exemplos de informações relacionadas nos perfis de pesquisadores
Perfis externos Links dão acesso a currículos acadêmicos nacionais (Plataforma Lattes) e internacionais (Researcher ID, da Web of Science, e MyCitations, do Google Scholar) Colaborações A lista dos colaboradores mais frequentes em auxílios e bolsas da FAPESP permite visualizar com quem o pesquisador se relaciona
Apoio consolidado A quantidade e a lista de bolsas e auxílios a pesquisa recebidos pelo pesquisador resumem a trajetória de seu vínculo com a FAPESP
E
ny Goloni Bertollo, professora do Departamento de Biologia Molecular da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (Famerp), descobriu que a lista de artigos de sua autoria estava defasada em seu perfil na página de pesquisador e pediu ajuda à equipe da BV. Ocorre que, embora tivesse mencionado a FAPESP nos agradecimentos em todos os artigos, não tinha incluído o número do processo. “Não me dei conta de que isso fazia diferença”, disse Eny. A pesquisadora enviou recentemente à BV uma lista atualizada dos artigos, que aos poucos estão sendo incluídos depois de ser verificado o vínculo com o apoio recebido. Segundo a professora, manter atualizado o perfil na BV é importante para seu trabalho. “Um perfil desse tipo consegue mostrar, de forma simples e organizada, se o pesquisador tem uma relação ativa e produtiva com agências de fomento, se orienta alunos e se tem colaborações recentes. Também mostra em quais revistas está publicando e quem está citando os seus artigos. São informações valiosas, por exemplo, quando submetemos novos projetos para avaliação de agências de fomento ou quando procuramos colaboradores que trabalhem em temas específicos”, afirma. 32 z julho DE 2015
Palavras-chave A visualização das palavras-chave mais mencionadas pelo pesquisador em seus projetos e artigos ajuda a mostrar suas expertises
Publicações e citações A lista atualizada de publicações do pesquisador e as citações recebidas por cada uma delas (na base Web of Science) podem ser vistas na forma de gráficos
Durante 2014, pouco mais de 5% das visitas à BV se vincularam a conteúdos em inglês. Foram mais de 216 mil visitas, com destaque também para os perfis de pesquisadores, com 86 mil visitas. Segundo Rosaly Favero, a adoção de estratégias baseadas em software livre para aumentar a visibilidade das informações na web e de um sistema de recuperação de dados que facilita buscas também teve um papel no crescimento das visitas. O interesse pelas informações oferecidas pela biblioteca é diversificado. A equipe de cinco bibliotecá-
rios e dois analistas que trabalha na BV costuma receber e-mails, por exemplo, de pessoas que descobrem referências a projetos de pesquisa sobre doenças, em geral vítimas dessas moléstias ou seus familiares, e pedem contato com os pesquisadores responsáveis. Também é comum que estudantes e pesquisadores, do Brasil e do exterior, peçam referências bibliográficas sobre temas em que estão trabalhando. “Avaliamos todas as solicitações e informamos que a FAPESP recomenda entrar em contato diretamente com o pesquisador, através
ilustraçãO veridiana scarpelli
do endereço de e-mail que fornecemos”, diz Thais Fernandes de Morais, bibliotecária supervisora do Centro de Documentação e Informação em C&T (CDI) onde é desenvolvido o projeto da BV. Dentro da FAPESP, as ferramentas analíticas da biblioteca se tornaram valiosas. “Elas permitem compreender de modo amplo o que se passa com a pesquisa financiada pela FAPESP”, diz Roberto M. Cesar-Jr. Ele cita como exemplo a participação de representantes da Fundação em eventos internacionais, como a feira Nature Jobs, em que a FAPESP busca atrair estagiários de pós-doutorado e jovens pesquisadores para atuar em instituições no Brasil. “Com as ferramentas da BV, é possível montar rapidamente uma sequência de slides tratando de temas específicos, com os projetos aprovados e as bolsas vigentes.” Mapas permitem visualizar a distribuição geográfica do fomento da FAPESP por todo o território do estado de São Paulo e até no exterior, e gráficos mostram o histórico do apoio da Fundação a cada tema ou projeto. Outra utilidade pode ser observada quando a Fundação firma um novo acordo ou convênio com uma instituição internacional. “É possível encontrar rapidamente quais são os pesquisadores de instituições paulistas que já tiveram alguma relação com aquela instituição estrangeira. Eles são as primeiras pessoas que precisam receber informações sobre o acordo. Da mesma forma, podem ser identificados pesquisadores dedicados a tópicos específicos para participar dos simpósios FAPESP Week, que buscam estimular colaborações internacionais, e workshops de programas como o de pesquisa em bioenergia (Bioen) ou o de biodiversidade (Biota), entre outros”, afirma. A trajetória da Biblioteca Virtual se divide em duas fases. A primeira, entre 2005 e 2009, enfatizou o registro de artigos científicos e da literatura acadêmica vinculados a projetos apoiados pela FAPESP. No início dos anos 2000, o então diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo (CTA) da FAPESP, Francisco Romeu Landi (1933-2004), participou de uma comissão criada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) que propôs uma Política Nacional de Preservação da Memória da Ciência e Tecnologia e destacou a importância de tornar mais visível a produção científica do Brasil.
Entre 2009 e 2010, a biblioteca foi ampliada, passando a oferecer informações sobre auxílios a pesquisa e bolsas financiadas pela FAPESP, em vez de se limitar ao registro da literatura científica associada a eles. “Um dos objetivos foi dar conhecimento à sociedade civil sobre a natureza do financiamento concedido”, lembra Rosaly. De forma padronizada, as informações sobre os projetos apoiados, como o resumo, o pesquisador responsável e a instituição-sede de pesquisa, entre outros dados, tornaram-se públicas no site da BV até chegar aos 200 mil registros atuais. Ainda hoje, a equipe da biblioteca está digitalizando resumos de projetos antigos e já há planos de oferecer referências aos projetos e bolsas contemplados entre 1962, ano da fundação da FAPESP, e 1991, que só existem em anuários de papel.
Novas páginas agregam informações que ampliam a visibilidade da pesquisa, como perfis de pesquisadores e instituições Para enfrentar o desafio, a FAPESP criou em 2003 o seu Centro de Documentação e Informação em C&T (CDi), onde foi implantada a Biblioteca Virtual em 2005. “A criação da BV se deu com a preocupação de tornar público o conhecimento desenvolvido a partir dos projetos apoiados pela FAPESP”, diz Rosaly Favero. Na época, pesquisadores e bolsistas apoiados pela FAPESP foram convidados a informar a sua produção científica. O resultado desse esforço foi uma massa de 6 mil formulários preenchidos em papel, que deram origem à base de dados inicial da BV, com 4 mil referências que remetiam, quando possível, para a íntegra de artigos científicos, teses, capítulos de livros e livros.
M
ais recentemente, foram criadas as páginas com valor agregado, ou seja, com informações complementares e importantes para a visibilidade da pesquisa, tais como os perfis de pesquisador e as páginas das instituições. “Universidades estão solicitando que a BV compartilhe com elas os dados organizados sobre seus projetos. Já fizemos isso com a Unicamp e estamos conversando com a USP e a Unesp”, diz Rosaly Favero. Em breve, haverá uma página com teses e dissertações de bolsistas apoiados pela Fundação, organizando cerca de 18 mil referências dessa produção acadêmica, com links para seus textos completos, quando eles existirem nas bibliotecas digitais de teses e dissertações da USP, da Unesp e da Unicamp. O registro de artigos científicos também retornou com força, compondo a página de publicações resultantes de projetos de pesquisa, que informa sobre o índice de citação de cada paper na base Web of Science, além de remeter para o texto completo, quando ele está disponível. A biblioteca promove, ainda, intercâmbio com outros sistemas de informações acadêmicas e de pesquisa. Em 2014, a FAPESP passou a contribuir com a base de dados International Alzheimer’s Disease Research Portfolio, sob a responsabilidade dos National Institutes of Health e da Alzheimer’s Association, dos Estados Unidos, atualizando registros sobre 259 projetos apoiados pela Fundação que tratam da doença de Alzheimer. n pESQUISA FAPESP 233 z 33
Cientometria y
Registros valiosos Dados compilados da Plataforma Lattes abastecem estudos sobre a ciência no país e revelam tendências
A
Plataforma Lattes, que reúne mais de 4 milhões de currículos acadêmicos, tornou-se fonte de informações para um número crescente de pesquisadores que buscam dados sobre a ciência brasileira a fim de estudar seus fenômenos e tendências. Criado em 1999 pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o sistema de currículos registra a trajetória e a contribuição de cada estudante, técnico e pesquisador do Brasil e fornece ao governo e a agências de fomento informações sobre produção científica, participação em projetos e orientações e supervisões, entre outros. Sua utilidade, porém, há tempos extrapolou a esfera da gestão, ajudando pesquisadores a produzir conhecimento original. “Raros países dispõem de uma plataforma com as atividades de sua comunidade científica como um todo”, diz Rogério Mugnaini, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA), da Universidade de São Paulo (USP). Mugnaini participa de um projeto de pesquisa apoiado pelo CNPq e a USP que busca desenvolver ferramentas para combinar informações da Plataforma Lattes com dados sobre publicações científi34 z julho DE 2015
cas de fontes nacionais e internacionais. No mês passado, Mugnaini e colegas publicaram um artigo na revista PLoS One analisando a relação entre pesquisadores sêniores na área de ciências exatas e da Terra e estudantes de pós-graduação orientados por eles, utilizando produções bibliográficas de 1981 a 2010 registradas na Plataforma Lattes. Constatou-se que, quanto mais tempo eles trabalham juntos, maior é a produtividade do jovem pesquisador orientado. “Observamos que parte dos orientadores deixou de ter uma linha de pesquisa própria, passando a declarar como sua produção apenas artigos de alunos”, afirma. Outro estudo do grupo analisou até que ponto as informações do Lattes estão atualizadas ao comparar dados dos currículos com os obtidos em relatórios de programas de pós-graduação. A conclusão é de que a falta de atualização pode alcançar até 20% dos artigos publicados nos três anos anteriores. As áreas de engenharias e ciências agrárias são as que mais sofrem com o problema. Mugnaini acredita que seja viável criar indicadores específicos baseados no Lattes. “Nas referências bibliográficas dos currículos Lattes, há informação sobre
a produção científica em revistas não indexadas nas bases de dados de revistas tradicionais, além de teses, livros e outros documentos. O Lattes representa uma visão completa do conjunto da produção científica brasileira e poderia municiar um sistema de avaliação mais fidedigno”, afirma. O advento de uma ferramenta que ajuda a extrair e organizar grandes quantidades de dados do Lattes disponíveis na internet foi fundamental para pavimentar o trabalho dos pesquisadores. Desde 2005, está disponível o scriptLattes, desenvolvido pelo professor do Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP, Roberto M. Cesar-Jr., e seu então aluno de doutorado, Jesús Mena-Chalco, hoje professor da Universidade Federal do ABC (Ufabc). Mena-Chalco também integra o grupo de pesquisa de Mugnaini, que é coordenado por Luciano Digiampietri, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP. “Nossa pretensão era criar uma ferramenta para uso doméstico do IME, mas acabou se tornando útil para muito mais gente”, diz Mena-Chalco. “Antes do scriptLattes, a coleta de dados do Lattes
ilustraçãO elisa carareto
era geralmente feita de forma manual.” O scriptLattes, que é um software livre, descarrega de forma automática os currículos Lattes de um grupo de pessoas de interesse, compila as listas de suas produções, removendo dados duplicados, e gera relatórios, por exemplo, sobre artigos publicados, orientações e redes de coautoria. “A ferramenta não cria dados adicionais, mas consegue reunir e organizar, de forma automática, informações extraídas de grandes massas de dados. Essas informações servem de insumo para a descoberta de conhecimento.” O scriptLattes está sendo utilizado, atualmente, por mais de 50 instituições e grupos de pesquisa no Brasil. Mena-Chalco usa a ferramenta em dois projetos. Um deles busca mapear as redes de coautores de artigos científicos, livros e capítulos de livros. Um trabalho publicado em janeiro de 2014 no Journal of the Association for Information Science and Technology mostrou que o número de colaborações entre pesquisadores brasileiros teve avanço notável nas últimas duas décadas, principalmente nas áreas de ciências da saúde e ciências agrárias (ver Pesquisa FAPESP nº 218). pESQUISA FAPESP 233 z 35
Referências da plataforma servem até para predizer quais serão os temas de pesquisa mais estudados
seriam os assuntos mais estudados no futuro próximo. Em 2012 a expressão que mais se destacou segundo a metodologia foi “serviços web”, mas está previsto, tanto para 2015 como para 2020, que o campo mais quente será o de redes neurais. O pesquisador da EACH-USP também planeja criar uma ferramenta capaz de sugerir a um pesquisador artigos recém-publicados que possam lhe interessar, com base nos temas a que se dedica. “Comecei a trabalhar com esses assuntos há cinco anos. Não tinham a ver com o que fiz no doutorado, mas me fascinaram”, diz Digiampietri. fenômenos
Outro projeto busca construir árvores genealógicas de cientistas, analisando as relações de orientação e supervisão. O pesquisador e seus colaboradores planejam criar uma plataforma nacional, na qual seja possível verificar a contribuição de cada pesquisador na formação de outros. “Já havia iniciativas para levantar árvores genealógicas em campos do conhecimento, como a matemática, a física e a neurociência, mas não sobre a comunidade científica de um país”, afirma o pesquisador. “A análise das informações sobre relações de orientação acadêmica é uma tentativa de mensurar a notoriedade de um pesquisador com base em sua repercussão em outras gerações.” Já Luciano Digiampietri, professor do bacharelado em sistemas da informação da EACH-USP, que já publicou mais de uma dezena de artigos baseados em dados do Lattes, também utiliza as informações da plataforma para desenvolver algoritmos talhados para antecipar tendências. Uma de suas pesquisas, em parceria com um aluno de mestrado, 36 z julho DE 2015
William Maruyama, busca prever as colaborações futuras de um pesquisador. O estudo utilizou dados sobre coautoria de trabalhos científicos de pesquisadores da área de ciência da computação registrados na Plataforma Lattes entre 1970 e 2010. Os dados entre 1970 e 2000 serviram para representar os padrões do passado. As informações entre 2001 e 2005 foram usadas para representar o presente. O algoritmo comparou os dois intervalos e tentou predizer com quem os pesquisadores iriam se relacionar no futuro. Para validar o algoritmo, seus resultados foram comparados com dados registrados entre 2006 e 2010. A representação do futuro feita pelo algoritmo e o que aconteceu de verdade entre 2006 e 2010 teve índice de coincidência de 97%. Outra linha de pesquisa é a análise de tendências em determinados campos do conhecimento. Utilizando palavras-chave extraídas dos títulos de publicações científicas de pesquisadores da ciência da computação registradas no Lattes ao longo do tempo, buscou-se predizer quais
Estudos com base nos dados da Plataforma Lattes estão mostrando fenômenos pouco conhecidos ou movimentos ainda não registrados em indicadores oficiais. Fabio Mascarenhas, professor do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), acaba de orientar a dissertação de mestrado do estudante Guilherme Alves de Santana, que, em meio a dados compilados sobre colaboração científica, encontrou uma peculiaridade sobre a formação de grupos de pesquisa no Brasil. “Foi analisada a produção científica dentro de grupos de pesquisa. Esperávamos encontrar mais artigos assinados em coautoria entre os membros dos grupos. Mas observamos que há mais colaboração com pesquisadores de fora dos grupos do que entre eles”, afirmou. O assunto será investigado em profundidade no doutorado de Santana. Outra curiosidade, essa envolvendo a produção científica brasileira sobre medicina tropical, foi observada na dissertação de mestrado de Natanael Vitor Sobral, também defendida neste ano. Com base em dados do Programa de
tores contratados como professores em universidades federais. “É possível que eles não estejam conseguindo publicar o mesmo volume de artigos do tempo em que faziam o doutorado”, afirma. Outra seria a expansão de vagas de docentes em institutos federais de ensino, onde há pouco espaço para os doutores fazerem pesquisa. A queda na produção científica, porém, não é observada nos docentes de programas de pós-graduação nem entre os bolsistas de produtividade. produção comparada
Pós-graduação em Medicina Tropical da UFPE, constatou-se que parte significativa dos artigos publicados na área não tem como foco de forma direta as doenças endêmicas no Brasil, como dengue, malária ou esquistossomose, mas de moléstias que despertam mais interesse de revistas científicas internacionais, como a Aids. “A explicação é que grandes periódicos científicos têm pouca abertura para doenças de países pobres se não estiverem associadas a temas mais universais”, diz Mascarenhas. Alberto Laender, professor titular do Departamento de Ciência da Computação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro da Academia Brasileira de Ciências, coletou dados de mais de 4 milhões de currículos e, com a ajuda de Thiago Magela Rodrigues Dias, aluno de doutorado do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, do qual é coorientador, está analisando a produção científica dos mais de 220 mil doutores com currículos cadastrados na plataforma, de 64 mil docentes de programas de pós-graduação e de 15 mil bolsistas de produtividade do CNPq, pesquisadores considerados mais produtivos pela agência de fomento federal. “Vamos analisar a evolução da
“A abertura integral das informações do Lattes seria importante para a comunidade científica”, diz Alberto Laender
produção nesses três grupos e em sete grandes áreas do conhecimento”, diz Laender, que integra o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para a Web (InWeb). Dados preliminares sugerem que, de modo geral, começou a haver em 2012 uma redução no número total de publicações pela comunidade científica brasileira. Isso, diz Laender, pode ter duas origens. A primeira é o aumento da carga de trabalho didático dos dou-
Laender e seu grupo têm uma extensa produção de artigos baseada em dados do currículo Lattes. Já publicaram papers sobre o perfil dos pesquisadores de ciência da computação e sua produção científica em comparação com a de colegas da América do Norte e da Europa. Também utilizaram dados do Lattes para organizar um portal na internet (www. cienciabrasil.org.br) onde é possível vislumbrar a produção dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs). Uma queixa frequente de pesquisadores que trabalham com informações do Lattes é a dificuldade de obter diretamente do CNPq dados brutos da plataforma. Em abril, tornou-se mais complicado extrair informações do Lattes na internet, pois o CNPq introduziu um código de confirmação para cada consulta a currículos. Isso para evitar o crescente compartilhamento de dados da plataforma por sites comerciais. O CNPq tem como política fornecer a cada instituição os dados consolidados de seu corpo de pesquisadores, professores e alunos, mas o conjunto de informações da plataforma não é facilmente franqueado. “A abertura integral dos dados do Lattes seria importante para a comunidade científica. Não me refiro a currículos individuais, mas ao conjunto de dados e à atualização deles para que possamos tratá-los com mais facilidade”, diz Alberto Laender, da UFMG. Mônica Ramalho, analista de ciência e tecnologia e inovação do CNPq que atua na assessoria de planejamento, coordenação de estatísticas e indicadores do órgão, alega que há um caminho institucional a ser seguido para obter tais informações. “Para conseguir acesso mais direto, é preciso enviar um pedido ao CNPq explicando os motivos pelos quais o pesquisador precisa dos dados do Lattes”, afirma. n Fabrício Marques pESQUISA FAPESP 233 z 37
indicadores y
Ciência em movimento Censo mostra crescimento dos grupos de pesquisa no país e redução de sua concentração regional
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) divulgou os resultados do 10º Censo do Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil, uma espécie de inventário das equipes de pesquisadores em atividade no país. Com dados coletados em 2014, foram mapeados 35.424 grupos de pesquisa, 29% mais do que o registrado em 2010 e três vezes mais do que o resultado do Censo de 2000. O número de pesquisadores em atividade e seu nível de formação aumentaram. Dos 180 mil pesquisadores atuantes, 116 mil têm pelo menos nível de doutorado, ou 65% do total. Em 2010, o índice era de 63% e em 2000, de 57%. Também se observou uma redução da concentração regional em relação a 2010. O Nordeste aumentou sua participação no total dos grupos de 18,3% para 20,4% entre 2010 e 2014, aproximando-se do Sul, estável na casa dos 22%. Em 2004, a participação do Nordeste era de 14,2%. O Sudeste, que tinha 46,8% dos grupos em 2010, hoje tem 43,8% do total. Os indicadores em alta são atribuídos, em boa medida, ao programa de reestruturação e expansão das universidades federais, o Reuni, que ampliou o número de professores e de vagas nas instituições vinculadas ao Ministério da Educação (MEC), inclusive em regiões distantes dos principais centros de produção do conhecimento. “Surgiu um novo perfil da qualificação dos professores contratados em universidades federais. Muitos se formaram em programas de doutorado dinâmicos, com a perspec38 z julho DE 2015
tiva de seguir fazendo ciência, e formaram grupos de pesquisa em instituições que nem sempre tinham tradição nisso”, diz Elizabeth Balbachevsky, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (fflch-USP), pesquisadora da área de ciência e inovação. Rogério Meneghini, coordenador científico da biblioteca SciELO Brasil, complementa: “Investiu-se muito dinheiro nas universidades federais para ampliar a oferta de vagas para estudantes e isso teve impacto também na pesquisa”. O crescimento dos grupos, ele observa, é uma notícia boa, mas não significa que isso resulte na produção de pesquisa de impacto. “O Brasil perdeu posições em rankings de qualidade da pesquisa, o que pode ser resultado do crescimento muito rápido de grupos de pesquisadores”, afirma. Apesar da redução da concentração regional, vários indicadores destacam o desempenho de unidades da federação com mais tradição em pesquisa. São Paulo, por exemplo, tem 78,5% de seus pesquisadores com nível de doutorado. É o maior percentual entre as unidades da federação. A média brasileira é de 61%. Da mesma forma, entre os pesquisadores do estado de São Paulo, o número de artigos publicados em revistas internacionais chegou a 3,3 artigos por autor em 2010, enquanto a média no Brasil foi de 2,5 artigos por autor. No censo de 2002, foram registrados 2 artigos por autor em São Paulo e 1,4 no Brasil. A participação feminina teve uma suave alta entre 2010 e 2014. Quarenta e seis por cento dos postos de liderança nos grupos são ocupados por
mulheres, diante de 45% em 2010 e 42% em 2004. Já no número total de pesquisadores manteve-se a divisão de 50% para cada gênero observada em 2010. Também houve mudanças na participação das áreas do conhecimento no total dos grupos, com um crescimento mais expressivo em ciências humanas (de 19,5% para 20,9% do total entre 2010 e 2014), sociais aplicadas (de 12,6% para 13,7%) e linguística, letras e artes (de 6,6% para 6,9%). Para Elizabeth Balbachevsky, a mudança nas grandes áreas pode ter vínculo com o avanço feminino. “O crescimento dos grupos foi mais significativo em áreas que atraem mais as mulheres, como ciências humanas e sociais aplicadas”, afirma. A pesquisadora destaca que, nessas áreas, vem se quebrando a tradição de fazer pesquisa de forma isolada, com um aumento da formação de grupos de pesquisa. “Tem se consolidado uma cultura de pesquisa coletiva em ciências humanas, incentivada por iniciativas como os projetos temáticos da FAPESP e programas que estimulam a formação de redes”, afirma. influência
A socióloga Fernanda Sobral, da Universidade de Brasília (UnB), aponta a influência de programas como o dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs), mantidos pelo CNPq e pelas fundações estaduais de amparo à pesquisa, na disseminação de novos grupos de pesquisa. “Cada um desses institutos forma redes com pesquisadores de várias instituições e regiões”, afirma. Ela considera o fenômeno responsável, ao menos em parte, pelo desempenho do Nordeste e o avanço das mulheres. “Ainda que os coordenadores dos INCTs sejam majoritariamente pesquisadores do sexo masculino sediados no Sul e no Sudeste, há participação de grupos de outras regiões ou liderados por mulheres”, afirma. “Mas a política de pós-graduação e programas como o Casadinho também ajudaram a reduzir a concentração da pesquisa”, diz, referindo-se a uma iniciativa do CNPq que conecta programas de pós-graduação consolidados com outros, mais jovens. Quando são analisados os artigos publicados em revistas internacionais, algumas áreas se destacam. Nas ciências biológicas, o número de artigos publicados por ano por pesquisador com nível de doutor chega a 1,9. Também se distinguem as ciências da saúde (1,76 artigo por pesquisador/ano), ciências exatas e da Terra (1,49 artigo) e agrárias (1,22). Esse perfil é diferente do das ciências humanas (0,21 artigo por pesquisador/ano), ciências sociais aplicadas (0,24 artigo) e linguística, artes e letras (0,09), que, contudo, assumem os primeiros lugares quando a produção é medida por capítulos de livro (entre 0,68 e 0,77 capítulo por pesquisador/ano). “Há notável resiliência dessas áreas”, diz Balbachevsky. “Seus pesquisadores seguem publicando livros e capítulos de livros apesar de isso ter perdido valor em processos de avaliação.” n Fabrício Marques
Panorama atualizado Indicadores do 10º Censo do Diretório dos Grupos de Pesquisa As áreas do conhecimento
A evolução dos grupos
Número de grupos 7.271
11.760
1995
2000
19.470
27.523
2004
2010
Total de pesquisadores
35.424
% de grupos de pesquisa em 2014 Linguística, letras e artes
2014
180.262
Ciências agrárias Ciências exatas e da Terra
9,29
15,83 Ciências biológicas
10,3 13,2
77.649 48.781
2004
2010
2014
Pesquisadores doutores 116.427
Ciências sociais aplicadas
Distribuição por região (%)
Sudeste 69,2
81.726
57,3
47.973 14.308 1995
2004
2010
46,8
1995
n Homens n Mulheres
Sul
Líderes de grupo por gênero (%) 61
58
55
43,9
2014
Homens e mulheres nos grupos de pesquisa
66
52,5
27.662
2000
Ciências da saúde
13,66
Engenharias e computação
26.779
2000
20,91
9,86
128.892
1995
Ciências humanas
6,92
54
14,9
1995
2000
19,7
2000
2004
2010
2014
23,5
22,5
22,4
2004
2010
2014
18,3
20,4
Nordeste 34
1995
39 2000
9,8
42
45
46
2004
2010
2014
Total de pesquisadores (líderes e não líderes) por gênero (%) 61
56
53
50
50
1995
14,6
14,2
2000
2004
2010
2014
Centro-Oeste 4,2
5,4
5,9
7,1
7,5
1995
2000
2004
2010
2014
2
3
4
5,2
5,8
1995
2000
2004
2010
2014
Norte 39
1995
44 2000
47
50
50
2004
2010
2014
Fonte DGP/CNPq
pESQUISA FAPESP 233 z 39
40 z julho DE 2015
ciência Medicina y
As novas faces do câncer Aumenta a frequência de casos de tumores de cabeça e pescoço causados pelo HPV, transmitido por contato sexual, em pessoas jovens e não fumantes Rodrigo de Oliveira Andrade
léo ramos
A
ntes mais comuns em homens com mais de 50 anos, fumantes e consumidores contumazes de bebidas alcoólicas, os tumores de língua, céu da boca, faringe, laringe e amígdala, genericamente chamados de tumores de cabeça e pescoço, estão aparecendo em pessoas mais jovens, entre 30 e 45 anos, que não fumam e não bebem ou bebem pouco. Médicos e pesquisadores concluíram que o papilomavírus humano, o HPV, microrganismo geralmente encontrado em qualquer pessoa em algum momento da vida, deve ser o causador de infecções que facilitam a formação desses tumores. Se há 10 anos o HPV
respondia por 25% dos casos de câncer de amígdala, um dos mais frequentes nessa região, hoje está associado a 80% desses tumores, de acordo com estudos recentes realizados por especialistas do A.C. Camargo Cancer Center, em São Paulo, e reiterados por outros grupos de pesquisa. Antes desses trabalhos, o HPV era mais conhecido como o principal agente causador de verrugas genitais e de câncer de colo do útero – o terceiro tipo de tumor mais comum em mulheres, depois do de mama e cólon e reto – e, raramente, de tumores de pênis e ânus, este último mais frequente em homossexuais e bissexuais. O fato de agora estar sendo associado a tumores na região pESQUISA FAPESP 233 z 41
da cabeça e do pescoço se deve possivelmente Os tumores de cabeça e pescoço são o sexto gruao mesmo motivo: práticas sexuais, nesses casos po de câncer mais comum no mundo, originando principalmente sexo oral, sem proteção e com cerca de 650 mil novos casos todos os anos. No muitos parceiros. Mesmo o uso de preservativo Brasil, 32.130 pessoas foram diagnosticadas com pode não ser suficiente para evitar a contami- algum desses tipos de câncer em 2014, segundo o nação, alertam os especialistas. O HPV é trans- Instituto Nacional do Câncer, no Rio de Janeiro. mitido pelo contato direto com a pele infectada O câncer nessas regiões do corpo costuma ser dee, muitas vezes, pode se esconder em áreas não vastador porque implica transformações em uma cobertas pela camisinha, como na bolsa escrotal. área muito visível, o rosto, diretamente associado “A falta de higiene íntima e bucal aumenta o ris- à identidade de cada pessoa. Muitas vezes, como co de transmissão do vírus e de desenvolvimento parte do tratamento, é preciso remover a língua e de tumores, sobretudo os de outras partes da boca e da garganamígdala, orofaringe (parte ta tomadas pelos tumores. Como da garganta logo atrás da boconsequência da cirurgia, as pesca) e língua”, diz o cirurgião soas costumam ter dificuldade para Os primeiros Luiz Paulo Kowalski, diretor comer, falar e respirar. sinais do do Núcleo de Cabeça e PesOs primeiros sintomas que incoço do A.C. Camargo. dicam a formação de tumores são câncer são pequenas feridas que sangram facilmente e crescem até chegar pequenas à musculatura e aos nervos, então causando dor. “Cerca de 80% feridas na boca das pessoas diagnosticadas com que sangram câncer de cabeça e pescoço em São Paulo têm tumores em estáfacilmente gio avançado porque não deram atenção aos primeiros sintomas, que são indolores”, diz Kowalski. Segundo ele, a dificuldade para mastigar e engolir, movimentar a língua ou a mandíbula são sintomas tardios. Nesses casos, as consequências são mais dramáticas: “Às vezes é preciso remover metade ou até mesmo toda a língua ou as cordas vocais”. Muitos pacientes em tratamento entram em depressão. “Alguns não veem mais sentido na vida e precisam de acompanhamento psicológico”, diz a psicóloga Mariana Meloni, que há quatro anos coordena reuniões com pessoas com tumores de cabeça e pescoço prestes a serem operadas no Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp). “O fato de terem de abrir mão de antigos hábitos, frequentemente associados à bebida e ao cigarro, e de não poderem voltar a trabalhar ou até mesmo se alimentar sozinhas faz com que se sintam como se tivessem perdido o controle de suas vidas.” Além da necessidade de redesenhar a vida, emerge o sentimento de culpa, como descreveu a escritora norte-americana Susan Sontag no ensaio Doença como metáfora (1978), antes de ela própria morrer de câncer, em 2004, aos 71 anos: “O mito que ronda o câncer sugere que a pessoa é responsável por sua própria doença, sendo o câncer, então, visto como sinônimo de fracasso”. E mais adiante: “Tratar o câncer como um inimigo demoníaco faz dele não só uma doença letal, mas uma doença vergonhosa”. 42 z julho DE 2015
As formas mais comuns Distribuição proporcional dos 10 tipos de câncer mais incidentes estimados para 2014 por sexo
Próstata Traqueia, brônquio e pulmão Cólon e reto Estômago Cavidade oral Esôfago Laringe Bexiga Leucemias Sistema nervoso central
22,8% 5,4% 5% 4,3% 3,7% 2,6% 2,3% 2,2% 1,7%
11.280 casos 6.870 casos
Homens
1,6%
e pescoço foram percebidos nos Estados Unidos a partir da década de 2000, mudando o perfil epidemiológico da década anterior, associado a pessoas com mais de 50 anos que bebiam e fumavam assiduamente. Kowalski detectou essas mudanças no Brasil em 2011, quando, com sua equipe, comparou as análises moleculares de 114 amostras de tumores de boca de dois grupos de pessoas tratadas no A.C. Camargo: um formado por indivíduos com idade entre 30 e 45 anos, que não fumavam nem bebiam, e outro com pessoas com mais de 50 anos que fumavam e bebiam antes de terem a doença. Kowalski encontrou trechos do DNA do HPV em 68,2% das 47 amostras do grupo mais jovem e em 19,2% das 67 amostras do grupo que fumava e bebia, conforme descreveu em um artigo publicado em 2012 no International Journal of Cancer. álcool, cigarro e hpv
Mama Cólon e reto Colo do útero Traqueia, brônquio e pulmão Glândula tireoide Estômago Corpo do útero Ovário Linfoma não Hodgkin Leucemias
desenho reprodução de estudos de cabeça de leonardo da vinci lâmina léo ramos infográfico ana paula campos
Fonte inca
Os médicos do A.C. Camargo observaram que as pessoas mais jovens, cujo câncer estava associa6,4% do ao HPV, respondiam melhor ao tratamento 5,7% 4% e apresentavam melhores taxas de sobrevida 2,9% do que as com mais idade, cujos tumores eram 8.050 casos 2,7% em geral mais agressivos e resistentes. Segundo 2,2% Kowalski, essas diferenças poderiam resultar do 2,1% Mulheres fato de os pacientes mais jovens serem mais sau1,8% 1,6% dáveis por não beberem nem fumarem. “Pessoas com tumores causados pelo álcool e pelo tabaco, além de terem mais idade, costumam sofrer de problemas pulmonares e cardiovasculares, e o diagnóstico geralmente é feito quando os tumores estão em um estágio mais avançado, o que Pessoas mais jovens respondem dificulta o tratamento”, melhor ao tratamento, com melhor taxa diz Kowalski. Em julho, ele presidirá a quinta de sobrevida, que as com mais idade edição do Congresso Mundial da Academia Internacional de Câncer Oral, realizado pela Não há estimativas concretas sobre o número primeira vez no Brasil, que reunirá profissionais de casos de tumores de cabeça e pescoço causados de diversas áreas para discutir estratégias que pelo HPV no país. Nos Estados Unidos, estima-se estimulem a prevenção e o diagnóstico precoce que 42.440 casos de tumores desse tipo tenham desses tumores. Mesmo que existam sinais de que os tumosido registrados em 2014, sendo 14.410 apenas de orofaringe, dos quais, calcula-se, 9 mil foram res de cabeça e pescoço causados pelo HPV se causados pelo vírus em homens e 2 mil em mu- comportem de modo diferente, eles são combalheres jovens, de acordo com a American Cancer tidos do mesmo modo, com químio e radioteraSociety. “Esses dados reforçam a hipótese de que pia e cirurgia, muitas vezes com sucesso, como o número de casos de tumores causados pelo HPV no caso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da nessa parte do corpo deve superar os provocados Silva, acometido por um câncer na laringe, sem pelo álcool e pelo cigarro até 2020 nos Estados vinculação ao HPV, em 2011. Em outros casos, o Unidos”, diz Kowalski. “O Brasil provavelmente tratamento pode não ser suficiente para conter a doença. Um dos criadores da psicanálise, Sigseguirá a mesma tendência.” Os primeiros sinais de que pessoas mais jovens, mund Freud morreu em 1939 em decorrência não fumantes e de boa saúde – alguns atletas, in- de um câncer de boca, contra o qual lutou por clusive – estavam tendo mais tumores de cabeça 16 anos, tendo substituído quase toda a mandí20,8%
pESQUISA FAPESP 233 z 43
batalha interna
As pessoas infectadas, porém, nem sempre produzem anticorpos contra o vírus, verificou Luisa Villa, coordenadora do Instituto de Ciência e Tecnologia para o Estudo das Doenças Associadas ao HPV e pesquisadora do Centro de Medicina Nuclear do Departamento de Radiologia e Oncologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), que colabora com a equipe do A.C. Camargo. Um dos estudos de seu grupo indicou que apenas 50% das mulheres e 10% dos homens infectados produziram anticorpos específicos contra o vírus. “Sete em cada 10 mulheres pode contrair o HPV em algum momento da vida”, diz José Eduardo Levi, do Instituto de Medicina Tropical (IMT) da USP. “O organismo da maioria delas consegue eliminar o vírus, enquanto o dos homens, não”, explica. Por esse motivo é que as mulheres podem readquirir o vírus, mesmo depois de já tê-lo eliminado várias vezes, ao serem reinfectadas por seus parceiros. Uma estratégia adotada no Brasil para evitar o contágio e reinfecções pelo HPV-16 tem sido a Estima-se que vacinação de meninas a metade das partir dos 9 anos de idade (ver Pesquisa FAPESP pessoas nº 157). No entanto, para o controle mais eficiente sexualmente da disseminação do HPV, bula por próteses. Freud fumou até ressalta Villa, seria precimorrer, aos 83 anos. ativas abrigue so levar em consideração Rossana López, pesquisadora alguma das também os homens. “Se do Icesp, encontrou outro indício não os incluirmos nesse de que o HPV pode ser a causa de 200 variedades processo, é possível que tumores nessa região. Em 2011, ela a mesma mulher, depois avaliou a prevalência de infecções conhecidas de ter eliminado o vírus, pelo vírus em 1.475 pessoas com volte a se infectar.” câncer de cabeça e pescoço usando HPV Em estudos realizados do dados de dois estudos. O prino Instituto de Ciências meiro foi feito de 1998 a 2003 pela Biomédicas (ICB) da USP Agência Internacional de Pesquisa em 2013, uma substância em Câncer (Iarc) em cinco cidades brasileiras, embora ela tenha usado dados ape- candidata a vacina experimental de DNA fez as nas de Goiânia, Rio de Janeiro e São Paulo, para células de defesa de camundongos identificar e restringir a amostra e poder compará-la com da- eliminar células de tumores causados pelo HPVdos do segundo estudo, realizado entre 2003 e 16. A vacina experimental age após a infecção 2010 por uma rede internacional de pesquisa, o causada pelo vírus – diferentemente das vaciprojeto Genoma do Câncer de Cabeça e Pescoço nas tradicionais, exclusivamente preventivas –, (Gencapo), de São Paulo. Por meio de análises de ativando células (linfócitos T CD8) que identifiamostras dos tecidos com tumores, Rossana veri- cam esses sinais e lançam proteínas tóxicas que ficou que a prevalência do HPV do tipo 16, uma matam as células infectadas. A ideia de que microrganismos podem caudas 200 variedades conhecidas, aumentou de 1% entre os casos do estudo mais antigo, do final da sar câncer é antiga. Em 1901, o médico francês década de 1990, para 6,7% no mais recente, dos Eugène-Louis Doyen anunciou à Academia de anos 2000. Ela também identificou anticorpos Medicina de Paris, França, que havia isolado o contra o HPV-16 em 55% das amostras do estudo microrganismo responsável pela doença: o Micrococcus neoformans. Não demorou para se veda Iarc e em 72% das do Gencapo. 44 z julho DE 2015
fotos 1 e 3 nonononono 2 nonononno 4 nonononono ilustraçãO nonoono desenho reprodução de estudos de cabeça de leonardo da vinci fotos léo ramos
rificar que ele estava equivocado. Quase 10 anos depois, no Instituto Rockefeller, em Nova York, o virologista Francis Peyton Rous, ao transplantar o tumor de uma galinha para outra, saudável, concluiu que tumores seriam causados por um minúsculo parasita. Nesse caso, ele estava certo. Sabe-se hoje que vírus como o Epstein-Barr e bactérias como a Helicobacter pylori são responsáveis por 15% do total dos casos de câncer. No caso do HPV, calcula-se que pelo menos metade das pessoas sexualmente ativas abrigue no mínimo uma das 200 variedades conhecidas do vírus, mas isso não quer dizer que o contágio evoluirá para um câncer. Algumas variedades de HPV são inofensivas e causam apenas saliências facilmente confundidas com verrugas. Os estudos da equipe de Levi sugerem que o HPV se aloja preferencialmente na base da língua e nas amígdalas. O vírus pode favorecer a formação de tumores ao interagir com genes das células humanas e inativar o processo de produção da proteína p53, a principal responsável pelo reparo do DNA. “Se o HPV inativa a p53, as células começam a se multiplicar descontroladamente”, diz ele. Uma estratégia para deter o vírus e a formação de células anormais seria, portanto, restaurar e fortalecer a ação da p53. Uma molécula conhecida como P-Mapa, desenvolvida pela rede de pesquisa Farmabrasilis, que conta com pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), da USP e de universidades dos Estados Unidos – com apoio da FAPESP –, conseguiu restaurar a atividade da proteína p53 em ratos com câncer de bexiga urinária induzido,
de acordo com um estudo publicado em 2012 na Infectious Agents and Cancer. Em testes em laboratório, a molécula mostrou-se capaz de reduzir em 95% os tumores desses animais, por meio da ativação de receptores celulares do sistema imune inato (receptores toll-like), favorecendo também a produção de um tipo de proteína que bloqueia o processo que leva à formação de vasos sanguíneos que nutrem os tumores e os ajudam a se espalhar por outros tecidos. Um teste molecular não invasivo desenvolvido por pesquisadores e médicos da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), do A.C. Camargo e do Hospital do Câncer de Barretos talvez possa ajudar na detecção precoce do risco de reaparecimento de tumores de cabeça e pescoço, em pessoas que já os tiveram, antes dos primeiros sinais clínicos, ampliando a eficácia do tratamento. O teste consiste no exame molecular de células epiteliais encontradas na saliva. O DNA dessas células é extraído e se avalia se genes supressores de tumores apresentam um tipo específico de alteração, a hipermetilação. Pessoas cujos genes supressores sofreram essa alteração apresentaram um risco cinco vezes maior de reaparecimento dos tumores de cabeça e pescoço do que as pessoas cujos genes estavam inalterados. Os pesquisadores acreditam que o teste poderia ser usado também para identificar alterações genéticas prejudiciais em quem não teve a doença para saber se há risco de desenvolvê-la. n
Projetos 1. Instituto de Ciência e Tecnologia para o Estudo das Doenças Associadas ao Papilomavírus (nº 2008/57889-1); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Luisa Lina Villa (FM-USP); Investimento R$ 4.949.181,38 (FAPESP). 2. Aspectos clinicopatológicos e moleculares do carcinoma epidermoide bucal em pacientes com idade menor ou igual a 40 anos (nº 2007/56117-2); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Luiz Paulo Kowalski (Hospital A.C. Camargo); Investimento R$ 224.989,95 (FAPESP). 3. Fatores ambientais, clínicos, histopatológicos e moleculares associados ao desenvolvimento e ao prognóstico de carcinomas epidermoides de cabeça e pescoço (nº 2010/51168-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Temático; Pesquisadora responsável Eloiza Helena Tajara da Silva (Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto); Investimento R$ 1.644.520,00 (FAPESP).
Artigos científicos LOPEZ, R. M. et al. Human papillomavirus (HPV) 16 and the prognosis of head and neck cancer in a geographical region with a low prevalence of HPV infection. Cancer Causes and Control. v. 25, n. 4, p. 461-71. 2014. BETIOL, J., VILLA, L. L. e SICHERO, L. Impact of HPV infection on the development of head and neck cancer. Brazilian Journal of Medical and Biological Research. v. 46, n. 3, p. 217-26. mar. 2013. FÁVARO, W. J. et al. Effects of P-Mapa immunomodulator on toll-like receptors and p53: Potential therapeutic strategies for infectious diseases and cancer. Infectious Agents and Cancer. v. 7, n. 1. jun. 2012. KAMINAGAKURA, E. et al. High-risk human papillomavirus in oral squamous cell carcinoma of young patients. International Journal of Cancer. v. 130, n. 8, p. 1726-32. abr. 2012. RIBEIRO, K. B. et al. Low human papillomavirus prevalence in head and neck cancer: results from two large case-control studies in high-incidence regions. International Journal of Epidemiology. v. 40, n. 2, p. 489-502. abr. 2011.
pESQUISA FAPESP 233 z 45
Neurociência y
curvas
A razão de tantas
Dobras e espessura da camada externa do cérebro não estão relacionadas
om uma folha de papel amassada em forma de bola é possível explicar como o cérebro dos mamíferos se dobra sobre si mesmo para formar as depressões e saliências que lhe dão o aspecto enrugado de uma noz. A formação dessas dobras, com sulcos e giros, responde a um mecanismo físico universal que depende de como variam a espessura e a extensão do córtex cerebral à medida que esse órgão se desenvolve, sugerem a neurocientista Suzana Herculano-Houzel e o físico Bruno Mota, ambos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em estudo publicado em 2 de julho na revista Science. Por muito tempo acreditou-se que o grau de dobras do córtex, a camada mais superficial do cérebro, estaria associado a sua capacidade de abrigar mais neurônios. Segundo o que se pensava, essas dobras seriam consequência do aumento do número de neurônios distribuídos nessa região ao longo da evolução dos mamíferos. Assim, cérebro com mais depressões e saliências deveria comportar mais dessas células do que os córtices com superfície mais lisa. Isso acontece, por exemplo, quando se comparam cérebros grandes, como os do ser humano, que têm mais dobras do que cérebros pequenos, como os dos camun46 z julho DE 2015
dongos. Por essa lógica, o córtex de animais como baleias e elefantes, sendo maior e tendo mais dobras que o humano, deveria ter mais neurônios e capacidade cognitiva mais complexa. No entanto, o córtex humano tem três vezes mais neurônios do que o dos paquidermes e dos cetáceos. Para elucidar esse paradoxo, os pesquisadores analisaram informações sobre o córtex de 74 espécies. Foram avaliados o grau das dobras, a espessura, o volume e a quantidade de neurônios que abrigavam. Eles verificaram que todos os cérebros se dobravam de acordo com uma relação matemática existente entre a área total da superfície do córtex cerebral e sua espessura. “O cérebro de seres humanos e de outros mamíferos começa a se dobrar durante o desenvolvimento embrionário”, explica Suzana. “Nesse processo, o córtex assume a configuração mais estável conforme sua superfície se dobra em resposta às forças às quais ele está sujeito durante seu desenvolvimento, como a pressão do fluido cérebro-espinhal, que o empurra para fora, e as fibras nervosas, que o puxam para dentro.” A mesma relação matemática explicaria o grau de dobras de uma bolinha de papel. Uma única folha de tamanho A4,
léo ramos
ao número de neurônios
Extensão e espessura do córtex determinam o grau de dobras da camada superficial do cérebro
A relação matemática entre o córtex e as bolinhas de papel: quanto menor a espessura mais a superfície se dobra sob pressão
se amassada, terá mais dobras do que quatro ou cinco folhas amassadas juntas. Quanto menor a espessura da superfície — e quanto maior sua área —, mais ela se dobrará sob pressão. “Isso vale para o córtex cerebral e também para as bolinhas de papel”, afirma Suzana. Segundo ela, esse mecanismo físico explicaria o grau de dobragem de todos os córtices, lisos e enrugados, incluindo o córtex humano e o de outras espécies de mamíferos, como o peixe-boi, que tem um córtex grande e pouco dobrado, e os cetáceos, cujo córtex é grande e mais dobrado do que o humano. “O grau de dobras do córtex não tem nada a ver com a quantidade de neurônios ou com o modo como estão distribuídos nessa região, mas respeita um princípio físico”, conclui. dobras em formação
A vantagem de ter um córtex mais dobrado, segundo ela, seria uma comunicação mais eficaz entre os neurônios. “Córtices mais espessos e, portanto, de superfície mais lisa resultariam em neurônios mais distantes uns dos outros. Isso poderia comprometer a troca de informações entre eles”, diz. O córtex cerebral é o principal responsável por funções cognitivas como atenção, memória e linguagem. Apesar de o dobramento ser uma de suas principais características, ele nunca foi devidamente explicado. Muitos estudos tentaram entender os mecanismos relacionados à formação dessas depressões e saliências e, com eles, muitas hipóteses foram propostas nos últimos anos. Em artigo publicado em 2014 na Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), um grupo de pesquisadores de diversas instituições da Europa e Estados Unidos explicava como conseguiu reproduzir em laboratório o desenvolvimento cerebral e a formação de suas dobras corticais. No estudo, eles verificaram que as dobras seriam resultado da interação entre a massa branca e a cinzenta do cérebro. De acordo com essa interpretação, a matéria cinzenta cresceria mais rápido do que a substância branca, desencadeando a formação dessas dobras no córtex. Em outro estudo, publicado em 2013 na Physical Biology, pesquisadores da Inglaterra e dos Estados Unidos propuseram um modelo matemático em que o grau de dobras do córtex estaria relacionado à sua expansão tangencial, en-
quanto as camadas mais profundas se desenvolveriam em resposta ao estresse causado por esse processo. Se o córtex se expande mais rápido, o comprimento das circunvoluções cerebrais, chamadas giros, seria mais curto e com mais dobras, dizem eles. Em contrapartida, se esse processo for mais lento, o comprimento dessas circunvoluções seria maior e sua superfície seria mais lisa. Entender melhor o desenvolvimento do cérebro é importante para compreender como ele funciona e quais as estratégias adotadas pela natureza para construir um órgão tão complexo que, no caso humano, permitiu que surgisse a consciência. O mecanismo físico proposto pela equipe da UFRJ oferece uma possível explicação para a lisencefalia, um transtorno pouco comum da formação do cérebro caracterizado pela ausência de dobras no córtex cerebral. Ainda que o cérebro tenha um tamanho normal, a falta de dobras pode causar perda de funções cognitivas. A lisencefalia humana está associada a mutações genéticas que perturbam a migração de neurônios durante o desenvolvimento cerebral. Como resultado, o córtex se torna mais espesso, o que, segundo Suzana, seria suficiente para que se formem menos dobras. Para Martín Cammarota, neurocientista do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), o estudo da UFRJ poderia abrir novas perspectivas para a pesquisa nessa área. “O estudo é interessante, mas precisa ser testado experimentalmente.” Esse é o próximo passo almejado pela equipe do Rio. “Pretendemos testar essa hipótese analisando a formação das dobras no cérebro de diferentes espécies durante o desenvolvimento”, diz Suzana. “A partir desses estudos, esperamos poder compreender melhor como os neurônios se distribuem pelo córtex e que fatores são mais determinantes para o ganho ou a perda de espessura e volume.” n Rodrigo de Oliveira Andrade Artigos científicos HERCULANO-HOUZEL, S. e MOTA, B. Cortical folding scales universally with surface area and thickness, not number of neurons. Science. v. 349, n. 6243, p. 74-7. jul. 2015. TALLINEN, T. et al. Gyrification from constrained cortical expansion. PNAS. v. 111, n. 35, p. 12667–72. abr. 2014. BAYLY, P. V. et al. A cortical folding model incorporating stress-dependent growth explains gyral wavelengths and stress patterns in the developing brain. Physical Biology. v. 10, n. 1. fev. 2013.
pESQUISA FAPESP 233 z 47
genômica y
Em Apis mellifera, a abelha produtora do mel comercializado, as tarefas são bem repartidas na colônia
Um enxame ordenado
Sequenciamento do DNA de abelhas ajuda a decifrar o desenvolvimento desses insetos
A
lguém que se perder pelo campus da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto e se deixar atrair pela beleza de um prédio ladeado por quatro espelhos d’água e um arbusto de amor-agarradinho na entrada pode levar um susto. Junto a esse belo jardim há um gramado com uma centena de caixas de madeira apoiadas em pequenos pedestais, como se fossem altares. O curioso que se aproximar um pouco mais vai perceber que entrou no meio de um apiário a céu aberto. É ali, literalmente no meio de uma revoada de abelhas nativas sem ferrão, que os biólogos Zilá Simões, Klaus Hartfelder e Márcia Bitondi tentam entender como a estrutura social e o comportamento desses insetos estão codificados no DNA. As colônias de Apis mellifera (a abelha com ferrão comumente usada na produção de mel) ficam numa área separada, onde não há risco de algum desavisado entrar sozinho. Os três pesquisadores são o núcleo central do Laboratório de Biologia do Desenvolvimento de Abelhas (LBDA), uma 48 z julho DE 2015
rede de pesquisadores presente em diversas instituições paulistas (ver Pesquisa FAPESP nº 130). O grupo participou dos consórcios que mapearam o genoma da Apis mellifera e mais recentemente o da abelha mandaçaia, a Melipona quadrifasciata, e prepara agora o sequenciamento de uma outra espécie brasileira, a marmelada-amarela (Frieseomelitta varia). Isso sem contar as dezenas de estudos sobre funções específicas de genes de desenvolvimento de abelhas. Na década que se seguiu à publicação do primeiro genoma de abelhas, em um artigo na revista Nature, em 2006, o grupo passou a se beneficiar do mesmo conjunto de ferramentas que surgiu com o trabalho no genoma humano e que mudou o cenário de pesquisa biomédica. Além de obter a sequência completa do DNA dos insetos, os pesquisadores dispõem agora de ferramentas e know-how para gerar e analisar transcriptomas. O termo é uma referência à análise de genes que estão sendo transcritos – ou seja, ativos na produção de proteínas – em diferentes tecidos das abelhas.
Ao analisar os resultados, os pesquisadores conseguem enxergar a rede de interação entre os genes transcritos, vendo quais influenciam a expressão de outros genes e quais estão ligados a aspectos de interesse. Em um estudo recente, por exemplo, o grupo conseguiu identificar o papel de genes envolvidos no desenvolvimento de abelhas operárias. Essa casta possui nas pernas traseiras uma estrutura específica para transportar pólen, a corbícula, que é ausente em abelhas-rainhas. Como cada larva pode se desenvolver em rainha ou operária, conforme o alimento que recebe, só os transcriptomas revelam como elas se diferenciam. Com técnicas de genômica e bioinformática, os cientistas de Ribeirão Preto conseguiram identificar genes do tipo Hox – que controlam a parte principal do desenvolvimento do corpo –, importantes na formação das corbículas, e descreveram a descoberta em um artigo na revista PLoS One, em 2012. Um desses genes, o Ubx, tinha um nível de expressão 25 vezes maior durante a fase de pupa nas abelhas operá-
eduardo cesar
Rafael Garcia
rias, em comparação com as rainhas, e se revelou uma chave essencial para a diferenciação de castas. Os Hox pertencem a uma grande família de genes muito visada por pesquisadores da biologia do desenvolvimento por determinar quais estruturas do corpo derivam de cada segmento de um embrião. Em alguns casos, porém, é preciso olhar partes mais sutis do genoma para entender como as funções são distribuídas em uma colônia. Em um estudo subsequente publicado no mesmo periódico, em 2013, Hartfelder e colaboradores descrevem algumas sequências reguladoras, chamadas RNAs não codificadores longos, que influenciam o tamanho dos ovários das abelhas. Essas moléculas, junto com microRNAs, são peças-chave no processo de diferenciação de castas, por exemplo por provocarem a destruição de muitas células dos ovários de operárias. Isso faz com que o sistema reprodutivo das rainhas seja muito maior, característica fundamental para a produção constante de ovos. transcriptomas
Com o objetivo de fazer esse tipo de estudo, o LBDA já conseguiu produzir com seus colaboradores mais de 100 transcriptomas de diferentes tecidos do inseto, em diferentes momentos da vida. O desafio é entender em detalhes como o desenvolvimento de castas está programado no DNA e é desencadeado pela dieta – notavelmente, as abelhas-rainhas são alimentadas com mais geleia real do que as operárias em momentos-chave de seu desenvolvimento. E não é de hoje que a compreensão do desenvolvimento das abelhas é considerada um desafio. A organização desses insetos contraria um princípio da biologia segundo o qual a evolução não é capaz de criar animais longevos que tenham também alta taxa de reprodução. Seria preciso abrir mão de uma característica em prol da outra. A abelha-rainha, porém, vive tipicamente mais que um ano (muito para um inseto) e tem alta taxa de reprodução, chegando a botar até meio milhão de ovos ao longo da vida. Isso é possível graças à divisão de funções com as abelhas operárias, que vivem algo em torno de um mês sem se reproduzir. Esse tipo marcante de divisão de trabalho na colônia foi o alvo de um estudo internacional do qual o LBDA fez parte pESQUISA FAPESP 233 z 49
– principal motivo pelo qual o laboratório de Ribeirão Preto analisou o DNA da mandaçaia. Existe um espectro de socialização quando se analisam todas as espécies de abelhas, algumas com divisão de castas mais acentuada (eussociais), enquanto na maioria as fêmeas vivem solitárias. O grupo comparou os genomas de 10 tipos diferentes de abelhas e descobriu que quanto mais eussocial e hierarquizada é uma espécie, mais sequências reguladoras de genes existem no DNA, conforme mostra artigo publicado no mês passado na Science. No caso de Apis mellifera, quando a rainha morre, as operárias produzem outra rainha, alimentando uma larva com geleia real. Em espécies menos eussociais, operárias chegam a competir com a rainha pela reprodução, enquanto nas espécies não sociais todas as fêmeas se reproduzem. Na mandaçaia, uma abelha nativa altamente social, a divisão de funções é muito clara, mas as operárias participam da reprodução da colônia produzindo machos. A rede de interação entre esses trechos de DNA – que não contêm propriamente receitas de proteínas, mas influenciam a atividade de outros trechos – é tão abundante que Zilá já aposta na criação de um novo termo para defini-la: reguloma. “Essa palavra ainda não é usada, mas o estudo disso na prática já começou a ser feito”, diz a cientista.
Polinização por abelhas sustenta US$ 12 bilhões da agricultura brasileira Há pelo menos duas décadas, os
presença de abelhas é um serviço
números de colmeias em diversas
ambiental importante, mas mesmo
regiões do mundo têm sofrido
assim poucos investem em manter
reduções. O fenômeno, que ganhou o
colmeias para polinizar plantações.
nome de Distúrbio do Colapso de
“O serviço de polinização oferecido
Colônias (ou CCD, na sigla em inglês),
pelas abelhas, porém, tem um valor
é muito bem documentado na Europa
muito superior ao dos conhecidos
e na América do Norte, onde há
produtos da colmeia”, diz a bióloga.
encolhimento de populações da
No hemisfério Norte, várias causas
ordem de até 50%, mas ainda pouco
têm sido apontadas para o CCD.
estudado no Brasil (ver Pesquisa
As principais são o uso de inseticidas,
FAPESP nº 137). O risco de a
a emergência de patógenos, a perda
agricultura nacional sofrer grandes
e a fragmentação de hábitat, as
perdas com a falta de insetos para
mudanças de clima, o manejo
polinização, porém, é real, mostra um
inadequado e a competição com
estudo recente liderado pela bióloga
espécies exóticas. No Brasil, porém,
Tereza Cristina Giannini, da USP.
não se sabe ainda quais desses
Ao lado de colegas da USP e da Universidade Federal do Ceará, ela
fatores representam maior ameaça. Muitas das culturas estudadas
analisou 141 plantas da agricultura
pelo grupo de Tereza Cristina têm
brasileira e constatou que 85 delas
a Apis mellifera como polinizadora,
dependem em algum grau da
mas também se destacam as abelhas
polinização por abelhas. O trabalho,
sem ferrão, as abelhas solitárias
publicado em maio na Journal of
do gênero Centris e as abelhas
Economic Entomology estima que a
carpinteiras e mamangavas
receita dos cultivares que dependem
(Xylocopa e Bombus). Segundo Tereza
de polinizadores cairia em 30%
Cristina, existe uma “necessidade
(US$ 12 bilhões) se esses insetos
urgente” de produção de pesquisas
Bioinformática
sumissem do país. Metade desse
em biologia reprodutiva de plantas
valor se refere às plantações de soja.
e insetos para entender a extensão
Café, tomate, algodão, cacau e
do problema no país.
Dominadas as ferramentas de genômica, a quantidade de informações geradas pelos pesquisadores do LBDA é tão grande que não é mais possível trabalhar da mesma forma que antes. O que laboratórios de ponta de biologia de abelhas estão fazendo hoje é essencialmente aquilo que o geneticista americano Eric Lander (um dos pais do Projeto Genoma Humano) chamou de “fazer ciência sem partir de hipóteses”, deixando muitos biólogos contrariados. Com a genômica, os cientistas podem olhar para o funcionamento molecular de um organismo sem precisar de concepção inicial sobre qual gene faz o quê, escolhendo os genes a serem estudados por meio de algoritmos que analisam as redes de interação entre eles. Não está claro se a metodologia da genômica é fundamentalmente diferente de outras áreas da ciência, mas certamente a maneira de trabalhar dos gene-
laranja também poderiam ser grandemente afetados. Mesmo entre os vegetais que não dependem totalmente de polinização cruzada, a transferência de pólen entre plantas diferentes afeta a qualidade dos frutos. “Aqui no Brasil, existe um trabalho muito consistente demostrando isso em morangos”, diz Tereza Cristina. “Os frutos ficam mais bem formados quando são polinizados por abelhas. Quando a polinização não ocorre, a polpa não cresce adequadamente e compromete a formação do morango.” Agricultores brasileiros, porém, não têm ainda muita consciência da importância desses insetos além da produção de mel. É comum no meio agropecuário a noção de que a 50 z julho DE 2015
1
Scaptotrigona em flores de açaí, no Pará
Câmaras nutridoras alimentam ovócito em ovaríolo de rainha (esq.), e musculatura (em vermelho) cobre intestino de operária (dir.). Em azul, os núcleos das células
fotos 1 léo ramos 2 e 3 Juliana Ramos Martins
2
ticistas mudou muito. “Uma das peças fundamentais hoje é ter bons bioinformatas, não vivemos mais sem eles”, diz Márcia. “E um laboratório sozinho não consegue fazer isso. É preciso congregar a expertise de vários laboratórios.” Na USP de Ribeirão Preto, a demanda por esse tipo de pesquisador foi suprida por projetos de pós-graduação com parte do treinamento dada no próprio Departamento de Genética, mas o conhecimento de ciência da computação teve de ser buscado fora. Assim foi a trajetória de Daniel Guariz Pinheiro, graduado no Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP, que fez um estágio de pós-doutorado no Departamento de Genética de Ribeirão. Hoje ele é professor na Unesp de Jaboticabal e o principal bioinformata na rede de colaboração do LBDA. Além de trabalhar nos transcriptomas, uma das funções do bioinformata é organizar os genomas que são usados como base dos estudos, porque as máquinas de sequenciamento obtêm fragmentos de DNA que precisam ser enfileirados de maneira correta. “A bioinformática entra então para montar esse quebra-cabeça, ligando as partes para que se obtenha a sequência genômica completa”, diz Guariz, que atuou no trabalho publicado na Science. “Já estamos em mais de 99%, especialmente no caso da Apis mellifera.” Um dos trabalhos de destaque com participação dos cientistas do LBDA foi uma colaboração internacional liderada pela Universidade de Uppsala, na Suécia, para o qual foram sequenciados genomas de 140 abelhas melíferas ao redor do mun-
do, pertencentes a diferentes populações. O mapa da diversidade genética da Apis mellifera, publicado em 2014 na revista Nature Genetics, sugere uma origem diferente para a espécie. Acreditava-se que ela teria surgido na África, mas o estudo aponta para uma dispersão a partir da Ásia, local onde também vivem hoje as outras abelhas do gênero Apis. intervenção
Nem só de trabalho no computador vivem os biólogos de Ribeirão Preto, porém. Uma de suas atividades essenciais é fazer experimentos para comprovar hipóteses levantadas pela genômica. Usando uma técnica chamada de interferência de RNA, os pesquisadores do LBDA conseguem desligar a expressão de genes específicos em abelhas para estudar sua funcionalidade. Esse tipo de pesquisa básica também tem implicações práticas, com as reduções acentuadas das populações de diversas espécies de abelhas nas quais viroses e pesticidas são apontados como os principais culpados. Além do impacto ecológico desses fatores que ainda vêm sendo estudados, é preciso considerar os prejuízos para a agricultura de frutas, grãos e outras plantas que dependem de abelhas para polinização (ver texto ao lado). Duas espécies cujos genomas foram recentemente sequenciados e analisados com participação do LBDA são abelhas do gênero Bombus, o mesmo das mamangavas brasileiras, de alta importância para serviços ambientais de polinização. O resultado do trabalho foi publicado em junho na revista Genome Biology. Os pes-
3
quisadores descobriram que as Bombus, cuja socialidade é muito menos complexa, têm muitos genes que se acreditava exclusivos de Apis. O padrão de expressão de RNAs se mostrou marcadamente diferente entre esses dois gêneros, porém, reforçando a ideia de que é no reguloma que está a chave para entender o comportamento desses animais. Para encontrar a melhor forma de lidar com as reduções de populações de abelha, dizem os pesquisadores, a pesquisa genômica poderá prover auxílio em suas três esferas: comparando espécies de abelhas, colônias de uma mesma espécie e indivíduos de uma mesma colônia (esta última por meio do estudo de transcriptomas). O grupo de Ribeirão Preto desenvolveu a expertise para trabalhar de todas essas formas. n
Projeto Análise causal do desenvolvimento de Apis mellifera – genes reguladores e redes hierárquicas de expressão gênica na especificação de tecidos e órgãos (nº 2011/03171-5); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Zilá Luz Paulino Simões (FFCLRP-USP); Investimento R$ 1.029.830,00 (FAPESP).
Artigos científicos WALLBERG, A. et. al. A worldwide survey of genome sequence variation provides insight into the evolutionary history of the honeybee Apis mellifera. Nature Genetics, v. 46, n. 10, p. 1081-8. out. 2014 SADD, B. M. et. al. The genomes of two key bumblebee species with primitive eusocial organization. Genome Biology. v. 16, n. 76. 24 abr. 2015. GIANNINI, T. C. et al. The dependence of crops for pollinators and the economic value of pollination in Brazil. Journal of Economic Entomology. v. 108, n. 3, p. 1-9. 1º jun. 2015. KAPHEIM, K. M. et al. Genomic signatures of evolutionary transitions from solitary to group living. Science. v. 348, n. 6239, p. 1139-43. 5 jun. 2015.
pESQUISA FAPESP 233 z 51
Microbiologia y
Físicos e biólogos investigam como as bactérias Xylella fastidiosa se agregam em um biofilme Maria Guimarães
52 z julho DE 2015
que são essas células compridas?”, perguntou a física Mônica Cotta, mostrando imagens da bactéria Xylella fastidiosa produzidas nos potentes microscópios do Instituto Nacional de Fotônica Aplicada à Biologia Molecular (Infabic), na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A pergunta evocou uma memória quase esquecida nos estudos pretéritos da bióloga Alessandra de Souza, pesquisadora do Centro de Citricultura Sylvio Moreira do Instituto Agronômico de Campinas (IAC). Quando estão numa situação de estresse, bactérias diversas suprimem a produção da proteína que as separa em duas depois da replicação. É a filamentação, que agora parece ser uma propriedade fundamental da formação do biofilme que torna temível esse microrganismo: o agregado bacteriano ocupa e bloqueia o xilema (vasos que conduzem água e outras substâncias da raiz para todas as partes da planta), causando sérios danos ao desenvolvimento das plantas e à produção de frutos. O grupo descreveu a formação do biofilme em artigo publicado em abril na Scientific Reports e continua em busca de formas de derrotar esses velhos inimigos dos citricultores brasileiros e dos cultivadores norte-americanos de uvas, e invasores recentes de olivais italianos. As chances de sucesso podem residir, ao menos em parte, na parceria interdisciplinar. Para o físico Carlos Lenz Cesar, vice-coordenador do Infabic, o trunfo do instituto é reunir pesquisadores com especialidades distintas. “Cada um deve se aprofundar na sua área e contribuir para o conjunto por meio da colaboração”, afirma. Quando Mônica começou a analisar a Xylella em seu microscópio de fluorescência, não obtinha boas imagens porque o brilho emitido pelas bactérias – do qual o aparelho depende – era muito fraco. Melhorou com a sugestão de Alessandra de inserir nas bactérias a proteína verde fluorescente (GFP, na sigla em inglês), que se tornou o marcador de maior sucesso em estudos biológicos por emitir um brilho muito mais forte. Ainda assim, o equipamento não permitia estudar os organismos vivos e faltava interpretar os pequenos círculos verdes,
fotos richard janissen/universidade delft de tecnologia
Força que vem da união “
Filamentos de EPS se projetam a partir de biofilme em imagens colorizadas obtidas em microscópio de fluorescência
também observados no microscópio de força atômica do grupo da física. A pista fundamental veio do olhar treinado da pesquisadora em usar microscopia para estudar materiais. “A bactéria só pode ter uma simetria assim se estiver ‘em pé’, ou seja, na vertical”, imaginou (ver imagens na página 52). O que via deveria ser a extremidade do organismo visto de cima. E foi atrás de outros tipos de microscopia. O microscópio confocal do Infabic, capaz de gerar imagens tridimensionais, era uma promessa, mas as bactérias vivas ainda apareciam como borrões. A solução surgiu quando chegou o microscópio confocal com detecção via spinning disk, que tem um disco que gira em alta velocidade, repleto de furinhos equipados com lentes pelos quais passam feixes de laser que varrem a amostra. “Podíamos produzir imagens tridimensionais em alguns segundos, em vez de vários minutos no confocal tradicional”, conta a física. Seu grupo – especificamente o biólogo alemão Richard Janissen, à época no laboratório para um estágio de pós-doutorado e agora na Universidade Delft de Tecnologia, na Holanda, e o doutorando colombiano Duber Murillo, físico – começou a examinar placas de cultura de Xylella ao longo de todo o ciclo de vida, e assim desvendou uma parte importante do comportamento da bactéria. A interpretação inicial de Mônica estava correta. “As bactérias ficam ‘em pé’ e giram sobre a ponta em contato pESQUISA FAPESP 233 z 53
com a superfície”, explica, mostrando uma oscilação como o de um joão-bobo. As imagens eram borradas por causa do movimento. “Nesse microscópio conseguimos produzir 100 quadros por segundo em três dimensões”, conta Lenz. “Pegamos a bactéria no pulo, como se um helicóptero voando aparecesse na foto com as pás paradas.” A fluorescência, assim como assinaturas químicas detectadas no microscópio Raman confocal da Universidade de São Paulo (USP), mostrou que no início do processo de colonização as bactérias secretam algo que se acumula numa das pontas. Conhecidas genericamente como substâncias poliméricas extracelulares (EPS), essas secreções têm propriedades distintas conforme o estágio de desenvolvimento do biofilme. Num primeiro momento, as EPS solúveis ancoram a bactéria no substrato (no caso, a placa de vidro) de maneira reversível. Ao microscópio, depois de lavar a amostra, vê-se uma estrutura em formato de vulcão, onde a bactéria estava encaixada. Em seguida o organismo passa a produzir EPS capsular, que torna esse encaixe irreversível e atrai as companheiras, formando aglomerados. Assim nasce o biofilme de Xylella, no qual as bactérias vão ficando imersas numa goma de EPS. Foi nas imagens sequenciais da formação do biofilme que Janissen avistou as bactérias compridas entre aglomerados de bactérias vizinhos, depois explicadas como filamentação. “Os aglomerados provavelmente produzem uma sinalização química e algumas bactérias da borda começam a se replicar sem dividir-se”, explica Mônica. O resultado são bactérias alongadas que secretam EPS, atraem companheiras e aceleram a formação da comunidade coesa. Segundo a física, é a
primeira vez que se descreve esse processo, conhecido como filamentação, em biofilmes bacterianos. Ela descobriu o que parece ser o mesmo fenômeno no material suplementar de um artigo sobre a bactéria do cólera, publicado em 2012 na revista Science por um grupo norte-americano. “Vi um vídeo no qual, de repente, apareciam os filamentos; mas os autores não mencionam nada”, conta Mônica. Não basta a informação estar visível: é preciso que alguém a enxergue. Outro aspecto do ciclo de vida da bactéria apareceu graças ao microscópio confocal, que permite girar virtualmente a amostra e analisá-la por baixo, onde o biofilme se ancora na placa de Petri. O biofilme fica preso por apenas alguns pontos, aquelas bactérias iniciais que se fixaram no substrato por uma de suas extremidades. Essa estrutura pode facilitar a transmissão da doença pelo inseto vetor responsável pela transmissão da doença. “Fica fácil para a cigarrinha arrancar um pedaço do biofilme quando suga a seiva da planta infectada”, imagina Mônica, de maneira ainda especulativa. Falta verificar se é o que acontece; por enquanto é uma dessas pistas que a compreensão física pode fornecer aos biólogos. “O que temos não contradiz o que a Xylella precisa ter in vivo.” Na prática
Murillo agora tenta determinar quais componentes são necessários no meio de cultura para a adesão das bactérias. É um processo exploratório, em que o físico vai retirando componente por componente e depois volta a acrescentar, enquanto observa a reação das culturas de Xylella. Brincando, Mônica qualifica essa parte do trabalho como “de biólogo”. A ideia é construir um modelo de adesão que per-
Perpendiculares ao substrato, bactérias secretam substância aderente (EPS)
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Passo a passo de um aglomerado Uma combinação de técnicas de microscopia possibilitou desvendar como o biofilme se forma
Microscópio confocal por spinning disk permitiu congelar movimento de bactéria e confirmar sua posição vertical
mita dar um tratamento mais experimental ao problema e buscar, por exemplo, impedir a formação do biofilme. Um dos objetivos é entender como a substância N-acetilcisteína (NAC) impede que Xylella fastidiosa cause danos severos às plantas, como o grupo de Alessandra mostrou em 2013 (ver Pesquisa FAPESP nº 214). Por enquanto, Mônica desconfia que a NAC, presente em xaropes expectorantes, atue nas EPS solúveis, impedindo que a adesão se torne irreversível. Foi nesse momento inicial da formação do biofilme que o físico indiano Prasana Sahoo, no laboratório da Unicamp para um estágio de pós-doutorado, acrescentou NAC à amostra que observava ao microscópio confocal e viu bactérias se soltarem do substrato. A observação foi um produto lateral da pesquisa de Sahoo. Ele põe bactérias numa superfície repleta de nanofios espetados, com aparência de uma cama de pregos em miniatura. As EPS formam uma teia que verga os fios, que por sua vez registram a força exercida pelo biofilme. De acordo com Mônica, esses avanços foram possíveis pela combinação de diferentes equipamentos e técnicas de microscopia que estão aos poucos permitindo reunir as peças do quebra-cabeça. Nada novo para a física dos materiais. “Apenas transferimos o raciocínio para a microbiologia”, diz. Causadora de graves prejuízos à produção brasileira de laranjas, a Xylella fastidiosa recentemente chegou ao sul
fotos richard janissen/universidade delft de tecnologia
O brilho da proteína verde fluorescente, que tinge a bactéria e seus produtos, revela (abaixo) círculos de EPS ao microscópio de fluorescência
da Itália e tem aterrorizado a região da Apúlia, onde oliveiras centenárias (e até milenares) são patrimônio nacional. Em 2013, o virologista vegetal Donato Boscia, do Conselho Nacional de Pesquisa italiano em Bari, avistou oliveiras secas num pomar e saiu em busca da causa. Depois de consultar colegas na Itália e outros países, chegou à Xylella fastidiosa. No início de 2014, uma pesquisadora do grupo veio a Cordeirópolis, interior paulista, para aprender a isolar a bactéria com o engenheiro agrônomo Helvécio Della Coletta-Filho, responsável pela clínica fitopatológica do Centro de Citricultura. No retorno à Itália, ela
Bactérias ancoradas atraem companheiras por meio de secreção, formando conjuntos coesos. Em seguida, formam-se filamentos que unem grupos vizinhos e continuam a atrair bactérias (ao lado). O resultado é um biofilme preso ao substrato por relativamente poucos pontos (embaixo, à esquerda, em verde-claro) e imerso em goma secretada (abaixo).
rapidamente conseguiu. “Nunca vi um grupo avançar tanto em pesquisa em tão pouco tempo”, conta Alessandra. A comparação genética entre amostras de Xylella de diferentes partes do mundo indica que a bactéria dos olivais deve ter chegado à Europa de carona em plantas ornamentais (espirradeiras) oriundas da Costa Rica. A relação cultural dos italianos com as oliveiras torna a invasão bacteriana um problema social, além de econômico. “Algumas pessoas chegaram a responsabilizar os próprios pesquisadores que descobriram a doença”, conta Alessandra, que em outubro do ano passado foi a Bari apresentar seu trabalho
com NAC. Segundo ela, o grupo europeu já começou a investigar o efeito da substância, com resultados promissores. “A NAC é absorvida pelas plantas, mas ainda é preciso ver se reduz a infecção.” Na Apúlia, Alessandra e Coletta-Filho viram pomares secos e conversaram com habitantes locais angustiados com a perda das oliveiras. Enquanto não existe um composto eficaz para combater a doença, um cinturão de proteção com pulverização intensiva busca impedir que cigarrinhas portadoras da bactéria avancem para o norte, onde está a produção mais importante de azeite. n
Projeto Análise estrutural e química de biofilmes de Xylella fastidiosa (nº 2010/51748-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Mônica Alonso Cotta (Unicamp); Investimento R$ 187.406,00 (FAPESP).
Artigo científico JANISSEN, R. et al. Spatiotemporal distribution of different extracellular polymeric substances and filamentation mediate Xylella fastidiosa adhesion and biofilm formation. Scientific Reports. v. 5, n. 9856. 20 abr. 2015.
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GEOQUÍMICA y
A terceira margem do rio Matéria orgânica transportada pelo Amazonas viaja por quase 600 quilômetros no Atlântico e chega ao Caribe Pablo Nogueira
A
cada ano, o rio Amazonas transporta até 27 milhões de toneladas de matéria orgânica terrestre para regiões do Atlântico distantes da costa. São compostos produzidos pelas queimadas e também restos de plantas, animais e seres vivos microscópicos da floresta que chegam ao rio levados pelo vento e pela chuva. As águas do Amazonas se encarregam de lançar todo esse material no oceano, onde serve de alimento para os organismos marinhos. A quantidade de matéria orgânica, estimada agora por pesquisadores brasileiros e norte-americanos, é tamanha e avança tanto mar adentro que surpreendeu os especialistas. Nesse trabalho, publicado na Global Biogeochemical Cycles, os pesquisadores também analisaram as transformações por que passa a matéria orgânica à medida que a água do rio se mistura à do oceano. Sozinho, o Amazonas responde por 15% a 20% do volume de água doce despejada nos oceanos do planeta. Suspensa ou dissolvida em suas águas, a matéria orgânica coletada na bacia amazônica chega ao Atlântico na altura da ilha de Marajó, no Pará. No oceano, a coluna de água doce (pluma) vinda do rio alcança 600 quilômetros de extensão e até 200 quilômetros de largura. De 56 z julho DE 2015
2010 a 2012, cerca de 40 pesquisadores realizaram três cruzeiros à América do Sul e coletaram amostras de água em centenas de pontos distribuídos entre Óbidos, no Pará, a 800 quilômetros da foz do rio, e a região de Barbados, já no Atlântico Norte, depois de a pluma do Amazonas viajar por quase 600 quilômetros rumo ao Caribe, empurrada por correntes da costa brasileira. “As pesquisas sobre a pluma e o rio eram feitas separadamente”, conta a oceanógrafa norte-americana Patricia Yager, pesquisadora da Universidade da Geórgia e coordenadora desse projeto, o River-Ocean Continuum of the Amazon (Roca). “O objetivo do Roca é pensar o sistema de forma integrada”, diz. Usando um espectrômetro de massa de resolução ultraelevada, os pesquisadores identificaram ao menos 4,4 mil compostos orgânicos na pluma do Amazonas. São moléculas formadas por quatro elementos químicos (carbono, hidrogênio, oxigênio e nitrogênio) que se combinam em proporções variadas. À medida que as águas do rio avançam para o oceano, esses compostos sofrem sucessivas transformações: são degradados por bactérias e outros microrganismos (biodegradação) ou pela luz (fotodegradação) e podem também ge-
rar moléculas mais complexas. Embora ocorram simultaneamente, alguns processos são mais intensos em certos trechos do percurso. Próximo à foz do Amazonas, bactérias digerem as moléculas orgânicas complexas e reaproveitam açúcares, aminoácidos e lipídeos. Já no oceano algas microscópicas extraem os subprodutos contendo nitrogênio, como aminoácidos e ureia. Passada a plataforma continental, uma faixa de 80 quilômetros a partir da costa, as águas se tornam menos turvas e a luz solar ajuda a degradar compostos orgânicos complexos. do complexo ao simples
Essas transformações biológicas e fotoquímicas deixam traços detectáveis nas amostras de água. No material vindo do rio, a proporção de hidrogênio é menor do que a de carbono, indicando que ali as moléculas orgânicas são mais complexas. Nas amostras coletadas no mar, a situação se inverte e a proporção de hidrogênio supera a de carbono, sinal de moléculas orgânicas mais simples, resultado da degradação das complexas. Esses dados ajudam a entender o que acontece no nível químico e biológico. “A proporção menor de hidrogênio e maior de carbono nos compostos encontrados
Venezuela
Guiana Francesa
Guiana Suriname
Amapá
Roraima Ilha de Marajó
RIO AMAZONAS
Pará Maranhão
Piauí
imagens Norman – Kuring - NASA/GSFC / OBPGww
Amazonas
no rio sugere contribuição de material terrestre, caracterizado pela presença de anéis aromáticos [formados por seis átomos de carbono]”, conta Patricia Yager. Esses anéis, segundo a pesquisadora, são mais difíceis de ser degradados, em especial pelas bactérias marinhas. Já a proporção de hidrogênio e carbono das amostras de água da pluma coletada no mar indica a presença de compostos alifáticos, formados por longas cadeias abertas de carbono. Esses compostos são indicativos da ação das algas, que, ao realizar fotossíntese, transformam moléculas pequenas de carbono em moléculas maiores, mais fáceis de serem digeridas e fonte de energia para as bactérias marinhas. Apesar da ação de microrganismos e da luz solar, uma grande quantidade de matéria orgânica terrestre resiste às transformações e viaja muito além da foz do Amazonas. Em períodos de alta descarga, mais de 70% da matéria or-
Um rio no oceano: mais de 70% da matéria orgânica transportada pela pluma do Amazonas (laranja e verde) chega à Guiana Francesa em períodos de alta descarga
gânica terrestre transportada pelo rio é encontrada próximo à Guiana Francesa. Nos períodos mais secos essa proporção diminui para 50%. Convertidos em números absolutos, esses dados sugerem que a pluma do Amazonas lança entre 13 milhões e 21 milhões de toneladas – em algumas ocasiões 27 milhões de toneladas – de matéria orgânica terrestre no Atlântico. “Essas estimativas podem conter vieses, causados pela heterogeneidade da pluma ou por sua vasta extensão”, pondera a oceanógrafa brasileira Patricia Medeiros, primeira autora do artigo da Global Biogeochemical Cycles. Estudos feitos nos Estados Unidos indicam que 50% do material orgânico terrestre transportado pelo rio Mississipi é
degradado perto da costa. “Sabemos que a degradação rápida ocorre no Mississipi e em outros rios. Ficamos surpresos que ela não ocorra no Amazonas”, diz Patricia Medeiros. A brasileira tem duas hipóteses para explicar como tanta matéria orgânica do Amazonas alcança mar aberto. “Como grande parte da degradação ocorre durante o transporte no próprio rio, é possível que o material que chega ao oceano seja mais resistente”, diz. Outra possível explicação é a velocidade do transporte. Estima-se que no Mississipi o material orgânico demore meses para ir da foz ao mar aberto. No Amazonas, esse percurso é feito em 30 a 60 dias, tempo insuficiente para a degradação da matéria orgânica terrestre. n Artigo científico MEDEIROS, P. M. et al. Fate of the Amazon River dissolved organic matter in the tropical Atlantic Ocean. Global Biogeochemical Cycles. v. 29, p. 677-90. 25 abr. 2015.
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Paleontologia y
Um primo do Caribe Fóssil de quelônio marinho de 12 milhões de anos encontrado na Venezuela é parente distante das tartarugas de água doce da América do Sul
Marcos Pivetta
U
ma espécie de Madagascar e sete do norte da América do Sul, todas de água doce, como a tartaruga-da-amazônia (Podocnemis expansa), são as únicas formas vivas remanescentes de uma família de quelônios denominada Podocnemididae. A maioria das espécies conhecidas desse grupo desapareceu da Terra. Embora não haja atualmente membros dessa família adaptados a ambientes marinhos, alguns fósseis sugerem que houve linhagens de Podocnemididae de água salgada no passado distante. Uma equipe de paleontólogos brasileiros e venezuelanos descreveu uma nova espécie extinta de tartaruga, descoberta no norte da Venezuela, que fornece mais evidências a favor dessa hipótese. Nas palavras dos pesquisadores, a Bairdemys thalassica, como foi batizada a espécie, que viveu 12 milhões de anos atrás, faria parte da “última linhagem marinha” de quelônios do grupo Podocnemididae. O nome foi escolhido para destacar o hábitat da tartaruga: em grego, thalassa significa mar. As informações sobre a espécie constam de artigo publicado no mês passado na revista científica eletrônica PeerJ.
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Os vestígios da B. thalassica consistem em um crânio quase completo oriundo da caverna El Miedo, situada no Cerro Misión, localidade distante menos de 40 quilômetros do mar do Caribe. Apesar de há anos pertencer ao acervo do Laboratório de Paleontologia do Instituto Venezuelano de Pesquisas Científicas, de Caracas, o fóssil só passou a ser estudado em meados de 2013. “Eles não tinham um especialista em tartarugas para trabalhar com o material”, afirma o paleontólogo Max Langer, professor da Universidade de São Paulo (USP), campus de Ribeirão Preto, um dos autores do artigo que apresenta a espécie. O pesquisador brasileiro tinha: seu então aluno de mestrado (hoje doutorando) Gabriel de Souza Ferreira, biólogo especializado em quelônios. Langer colabora com os venezuelanos em razão de ser o coordenador de um projeto temático sobre a origem e irradiação dos dinossauros, que o levou a fazer escavações conjuntas no país vizinho. A oferta para estudar o fóssil de tartaruga lhe pareceu interessante e Ferreira aceitou o desafio. Dois tipos de evidências sinalizam que a B. thalassica era de água salga-
da: as características do sítio fossilífero em que foi encontrada e detalhes anatômicos da tartaruga. A caverna em que a espécie foi descoberta é rica em carbonatos, que são tipicamente formados em ambientes marinhos. Além dos restos do quelônio, as paredes da gruta El Miedo forneceram fósseis de cetáceos, peixes e aves marinhas. Esses indícios reforçam a ideia de que as águas do Caribe chegavam até ali. “A caverna estava em uma área sem influência do continente”, diz Ferreira. “No Mioceno Médio, entre 16 e 11,6 milhões de anos atrás, aquilo tudo estava embaixo do mar.” O ambiente em que foram achados os fósseis das outras seis espécies do gênero extinto Bairdemys sinaliza que esses quelônios apresentavam alguma tolerância a água salgada ou salobra e, possivelmente, vivessem em áreas estuarinas, de transição entre rio e mar. “Em nenhum desses casos é possível afirmar claramente, como estamos fazendo com base na B. thalassica, que essas tartarugas eram de mar aberto”, afirma Langer. A morfologia do fóssil venezuelano, cujo crânio media cerca de 10 centíme-
ilustração rodolfo nogueira fotos Ascanio Rincón mapa FreeVectorMaps.com
Bairdemys thalassica Período Viveu há 12 milhões de anos localização Venezuela
Caracas Caverna El Miedo
medida Crânio com cerca de 10 cm Copyright © Free Vector Maps.com
hábitat Água salgada alimentação Adaptada para comer presas com carapaças duras
Reconstituição artística e fósseis do crânio da nova espécie: linhagem adaptada à vida marinha e à durofagia
em todos os oceanos do globo, também exibe anatomia adaptada à durofagia. As espécies de tartarugas que hoje vivem nos mares não apresentam nenhuma relação de parentesco com membros, extintos ou não, da família Podocnemididae. Elas surgiram a partir de linhagens independentes de quelônios, que se tornaram dominantes nos mares durante o Mioceno Médio, justamente a época em que viveu a B. thalassica. É possível que o desaparecimento, no ambiente oceânico, das tartarugas do grupo Podocnemididae tenha relação com o surgimento e diversificação de outros quelônios adaptados à vida marinha, dizem os pesquisadores da USP. n Projeto
tros (cm), ligeiramente maior do que o das espécies vivas de Podocnemididae, também fornece pistas de seus hábitos oceânicos. A espécie apresentava uma expansão da superfície trituradora da maxila e da mandíbula, isto é, um aumento da área usada para processar alimentos sólidos. “Fizemos análises das medi-
das geométricas do crânio e acreditamos que essa expansão seja uma adaptação à durofagia”, diz Ferreira. “Essa tartaruga devia comer presas com conchas ou carapaças duras, como moluscos e crustáceos.” Entre as espécies vivas de quelônios de água salgada, a tartaruga-comum (Caretta caretta), encontrada
A origem e irradiação dos dinossauros no Gondwana (Neotriássico – Eojurássico) (nº 2014/03825-3); Pesquisador responsável Max Langer (USP Ribeirão Preto); Modalidade Projeto Temático; Investimento R$ 1.587.258,45 (FAPESP).
Artigo científico FERREIRA, G. S. et al. The last marine pelomedusoids (Testudines: Pleurodira): a new species of Bairdemys and the paleoecology of Stereogenyina. PeerJ. 30 jun. 2015.
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física y
Acelerações quânticas Nuvens de átomos frios podem ser usadas para medir tênues variações da força da gravidade Igor Zolnerkevic
O
físico Philippe Courteille e seus colaboradores no Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da Universidade de São Paulo (USP) estão construindo um instrumento para medir com alta precisão o efeito da força de gravidade da Terra sobre o chamado condensado de Bose-Einstein, nuvens microscópicas compostas por cerca de 100 mil átomos de estrôncio mantidos a temperaturas próximas ao zero absoluto (-273, 15º C). Esse equipamento – um gravímetro atômico – deverá permitir obter em tempo real a intensidade da força gravitacional em escala microscópica, algo ainda não muito bem mensurado. Existem outros instrumentos semelhantes no mundo, com sensibilidade igualmente suficiente para medir forças gravitacionais nessa escala. Mas os dispositivos existentes apenas reconstituem o movimento dos átomos depois que ele já aconteceu e não conseguem acompanhá-lo ao vivo, como prometem os pesquisadores de São Carlos. De acordo com eles, o novo gravímetro terá aplicações práticas e em física fundamental. Outros experimentos com gravímetros atômicos – alguns já realizados, outros em andamento – mediram a força 60 z julho DE 2015
gravitacional em escalas microscópicas. Mesmo assim, ainda não se alcançou o mesmo grau de precisão obtido para as demais forças fundamentais da física. “Há teorias que preveem que a lei da gravitação de Newton pode não valer para distâncias menores que alguns micrômetros”, conta Courteille. A lei da gravitação estabelece que a força de atração entre dois corpos é inversamente proporcional ao quadrado da distância entre eles e explica muito bem o que se observa no mundo macroscópico. “Talvez seja necessário fazer modificações nessa lei de atração para explicar o que ocorre no nível microscópico”, diz o físico. As aplicações práticas do novo gravímetro dependerão de sua sensibilidade. Se for bastante elevada, o aparelho poderá ser usado para mapear reservas de petróleo e minérios. Courteille ainda não tem condições de estabelecer o grau exato de sensibilidade que seu instrumento poderá alcançar, mas estima que deve ser capaz de superar os melhores gravímetros comerciais de alta precisão, que usam feixes de laser para medir a aceleração da gravidade que atua sobre um pequeno espelho em queda livre no vácuo. Geofísicos usam esse tipo de equi-
pamento para mapear reservas no subsolo que tenham valor econômico. Variações mínimas na aceleração da gravidade terrestre permitem detectar diferenças nas densidades das rochas subterrâneas, indicando a presença de minérios. Courteille já tem pronta a peça fundamental do gravímetro: a cavidade óptica anular. Trata-se de um trio de pequenos espelhos especiais que ficam dispostos nos vértices de um triângulo, distantes cerca de 2 centímetros um do outro. São esses espelhos, cuidadosamente projetados e arranjados, que devem garantir o sucesso do futuro aparelho, de acordo com artigos publicados nas revistas Optic Express e Laser Physics Letters. Simulações computacionais realizadas por Courteille e Romain Bachelard, do IFSC, em parceria com Marina Samoylova e Nicola Piovella, da Universidade de Milão, na Itália, e Gordon Robb, da Universidade de Strathclyde, no Reino Unido, indicam que a cavidade óptica deve aprimorar o funcionamento do gravímetro por duas razões. A primeira é que a cavidade deve evitar a destruição do condensado pelo feixe de laser que interage com ele para medir seu deslocamento. A segunda é que ela deve estabilizar as oscilações do condensado, tornando-as mais regulares e previsíveis. Os pesquisadores submeteram neste ano um pedido de patente do aparelho ao Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI).
foto léo ramos infográfico ana paula campos
em queda livre
Desde o final dos anos 1990, físicos realizam experimentos usando átomos frios como gravímetros. Quando resfriados a temperaturas próximas ao zero absoluto, alguns tipos de átomos podem se aglutinar e formar o chamado condensado de Bose-Einstein. No condensado, os átomos param de agir como partículas individuais e começam a se mover todos juntos, formando uma nuvem de átomos idênticos – os físicos dizem que se comportam como uma única onda de matéria. Vários gravímetros atômicos feitos até agora medem como as propriedades dessa nuvem de átomos mudam à medida que ela se desloca exclusivamente sob a influência da gravidade. Para analisar a ação apenas da força gravitacional, os físicos geram essa nuvem de átomos no interior de uma câmara de vácuo e a deixam se deslocar na vertical em direção
O coração do gravímetro Três espelhos especiais aprisionam feixes de laser que controlam o movimento do condensado de átomos Laser
Espelho
Espelho semitransparente Condensado
Espelho semitransparente Detector
Dois feixes de laser limitam a oscilação do Espelho
condensado (azul) no eixo vertical e um terceiro (verde) monitora o seu deslocamento, influenciado pela gravidade. Um detector lê a luz (em vermelho) que resulta da interação do condensado com o laser verde.
ao solo. Nesse movimento, semelhante ao de um elevador em queda livre, que cai sem nada que o freie, a única força atuando é a gravidade. Já o gravímetro de Courteille funciona de modo diferente, semelhante ao desenvolvido em 2005 pela equipe do físico Massimo Inguscio, da Universidade de Florença, Itália. No experimento feito pelo italiano, o condensado de Bose-Einstein cai livremente até certo ponto. Quando a aceleração gravitacional faz o condensado atingir determinada velocidade, ele interage com uma onda de luz criada pelo cruzamento de dois feixes de laser. Nesse instante, o condensado recebe um impulso da onda de luz e passa a se mover para cima, num processo que se repete indefinidamente. “É como se a onda de matéria desse saltos em um trampolim”, explica Courteille. “A frequência dos saltos depende da aceleração gravitacional da Terra.” Ao usar os três espelhos para criar uma cavidade óptica, espaço em que os feixes de laser permanecem aprisionados, circulando quase indefinidamente, Courteille conseguiu eliminar alguns inconvenientes do experimento italiano. O gravímetro de Inguscio usava um ter-
fonte philippe courteille / IFSC-usp
ceiro laser para medir o deslocamento do condensado que acabava por destruí-lo. No esquema de Courteille, o ambiente é controlado e a luz do terceiro laser, mesmo que interaja com o condensado, não o desorganiza. Sob supervisão de Courteille, o físico Raul Teixeira, que realiza um estágio de pós-doutorado no IFSC, está construindo a câmara de vácuo do gravímetro e preparando a montagem dos lasers e da cavidade óptica. “É um grande desafio técnico”, diz Courteille. “Vai demorar pelo menos uns dois anos até obtermos resultados científicos.” n
Projetos 1. Desenvolvimento de sensores quânticos com átomos ultrafrios (nº 2013/04162-5); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Philippe Wilhelm Courteille (IFSC-USP); Investimento R$ 1.988.250,00 (FAPESP – para todo o projeto). 2. Monitoramento contínuo de oscilações de Bloch de átomos ultrafrios para aplicação em gravimetria (nº 2014/12952-9); Modalidade Bolsa no Brasil – Pós-doutorado; Beneficiário Raul Celestrino Teixeira; Pesquisador responsável Philippe Wilhelm Courteille (IFSC-USP); Investimento R$ 177.860,00 (FAPESP).
Artigos científicos SAMOYLOVA, M. et al. Synchronization of Bloch oscillations by a ring cavity. Optics Express. v. 23, n. 11. 28 mai. 2015. SAMOYLOVA, M. et al. Mode-locked Bloch oscillations in a ring cavity. Laser Physics Letters. v. 11, n. 12. 12 nov. 2014.
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tecnologia Empreendedorismo y
Negócios em alta velocidade USP sedia programa de aceleração de empresas startups Marcos de Oliveira
A
Universidade de São Paulo (USP) sediou em junho o primeiro programa de aceleração de startups realizado dentro da instituição. Essa modalidade de incentivo ao empreendedorismo visa desenvolver rapidamente ideias que podem gerar negócios e formatar empresas inovadoras. Essas empresas iniciantes, em sua maioria, não estão estruturadas, conhecem pouco o mercado e têm dificuldades em comercializar a tecnologia desenvolvida. A aceleração de startups surgiu há 10 anos nos Estados Unidos e, no Brasil, existe desde 2011. São vários os tipos de aceleradoras, muitas são empresas e outras mantidas por organizações maiores, como a Microsoft, por exemplo, universidades ou organizações não governamentais (ONGs). A modalidade é diferente do trabalho realizado por incubadoras de empresas que normalmente são organizações constituídas por universidades, parques tecnológicos ou institutos de pesquisa, onde as empresas novatas se desenvolvem por dois a três anos, período em que recebem apoio 62 z julho DE 2015
institucional em consultorias de tecnologia, administração e de formatação comercial da empresa. Deixam a incubadora quando conseguem atingir o mercado e ganham força financeira ou perecem se não alcançam esse objetivo. Os programas de aceleração podem durar de um fim de semana até seis meses. Na USP, durou cinco semanas e foi realizado pela aceleradora Startup Farm em parceria com o Centro de Competência em Software Livre (CCSL) do Instituto de Matemática e Estatística (IME) e apoio do Núcleo de Empreendedorismo (NEU), ambos da universidade. “A aceleração é um programa educacional com treinamento intensivo que envolve aulas, palestras e mentorias durante certo período de tempo, de manhã, tarde e noite. Uma vez por semana os participantes fazem apresentações de cinco minutos para uma plateia formada por mentores e profissionais sobre o estado da empresa naquele momento e recebem críticas”, explica o professor Fabio Kon, do CCSL, que trouxe para a universidade o programa de aceleração. De acordo com o estágio da empre-
ilustraçãO nelson provazi
sa, ela tem à disposição mentorias especializadas formadas por vários profissionais que dão o apoio necessário ao rumo da startup. Entre os 78 mentores, que ofereceram 519 sessões de consultoria, estão empresários que já passaram por essa fase, profissionais da indústria, consultores e, no caso da USP, professores da universidade. As mentorias, na maioria das aceleradoras, são feitas por voluntários. “Estudei o ambiente empreendedor do Vale do Silício, nos Estados Unidos, e estive realizando pesquisas sobre o ecossistema de inovação de Israel. Pude observar que as incubadoras estão cedendo espaço para as aceleradoras que têm gerado excelentes resultados num período de tempo mais curto. No ano passado participei como mentor da Startup Farm em Belo Horizonte e, na ocasião, propus a parceria com o IME de modo a contribuir para o ecossistema de inovação paulista e contagiar a comunidade da USP com o empreendedorismo”, diz Fabio. “Há alguns anos observo que os alunos que saem do IME são excelentes desenvolvedores de software, mas o
número de empreendedores ainda é muito baixo e, daqueles que tentaram empreender, poucos tiveram sucesso; a educação empreendedora pode ajudar a mudar esse cenário.” Para Fabio, o empreendedorismo brasileiro é forte, mas não desenvolve novas tecnologias, prefere copiar algo já existente no exterior. “Uma parcela muito pequena de nossos empreendedores busca criar tecnologias inovadoras. É preciso investir em pesquisa nas startups e nas empresas, transformar ciência em negócios inovadores”, diz Fabio. Por essa razão, o programa de aceleração da USP teve o nome oficial de “Disrupt: Transformando ciência em negócios tecnológicos”. A chamada para o evento não se restringiu à USP e foi feita principalmente por redes sociais tendo como alvo as startups ou mesmo pessoas e grupos com boas ideias e intenção de montar uma empresa. Foram 117 projetos, dos quais foram escolhidos 15, 8 com alguma relação com a universidade, de alunos e ex-alunos e de empresas instaladas no Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia (Cietec), incubadora localizada dentro do Instituto de pESQUISA FAPESP 233 z 63
Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) na Ci- o projeto e descobrir como vender seus produtos”, dade Universitária e que tem a USP no Conselho diz Pedro. A Aceleratech tem uma parceria tamde Gestão Estratégica. “Foram 15 selecionadas e bém com o Cietec. “Temos ali várias empresas que 10 finalistas porque os projetos se desenvolveram vieram da incubadora. Algumas nos procuram e, muito bem e chegaram ao ponto de ser apresen- para nós, o fato de elas terem passado pela incutados publicamente. Em outras edições do pro- badora é um fator positivo”, diz Pedro. “A ideia grama – este da USP é o décimo segundo – foram inicial é que elas passem pela aceleração em nosso menos empresas finalistas, entre cinco e oito. Isso espaço próprio, na capital paulista, em regime de demonstra o amadurecimento do nosso mercado co-working, com as empresas trabalhando lado a que tem gerado negócios mais bem estruturados”, lado, e depois se tornem independentes, mas já tivemos casos em que a empresa quer voltar para diz Alan Leite, um dos sócios da Startup Farm. “Todas passaram por um desenvolvimento rá- o Cietec porque lá ela tem um espaço dela e um pido para deixar claro para elas quem são os clien- networking positivo.” tes, quanto vai custar o produto, por quanto vão vender e como deverá ser o O pitch do Demoday impacto no mercado”, diz A estrutura do programa de aceleraAlan. Entre as 15, três inção, e prática comum em quase todas validaram seus negócios as aceleradoras, é o demoday no últidurante o programa pormo dia. Trata-se do momento onde Cada empresa que perceberam que não cada empreendedor se apresenta ao foi possível construir um mercado e fala sobre os rumos que a apresenta o modelo de negócios esstartup pretende tomar e qual o mopróprio modelo calável. De acordo com o delo de negócio. Isso é feito por meio empresário, muitas vezes, de uma apresentação com tempo dede negócio dentro da aceleração, é coterminado chamado de pitch, em que mum uma empresa mudar se faz a exposição do negócio. Na plapara uma de ideia, invalidar todo o teia, investidores tanto de empresas negócio ou inverter estrade capital de risco, anjos (investidoplateia de tégias. A Startup Farm tem res individuais) e representantes de possíveis em seu portfólio a empregrandes empresas, no caso, compasa Easy Taxi, que criou um nhias como IBM e Telefônica, anainvestidores aplicativo para chamar tálisam as startups. Depois, se houver xis, hoje presente em 40 interesse, investem na empresa ou países, com valor de merainda podem incorporá-la. No decado aproximado de US$ moday desta edição um júri formado 1 bilhão. A Easy participou do segundo grupo de aceleração realizado pela Startup Farm em 2011, no Rio de Janeiro. A aceleradora não faz investimentos em empresas como as apresentadas na USP, ainda em estágio muito inicial. “Vamos investir nas que tiverem melhor desempenho no intervalo de dois anos”, diz Alan. No Brasil já existem 50 empresas especializadas em aceleração que fazem programas semelhantes. Uma delas é a Aceleratech, também de São Paulo, em que as empresas escolhidas para a aceleração passam por um programa de seis meses, podem receber investimento de até R$ 150 mil e ter como sócios os proprietários da Aceleratech, Pedro Waengertner e Mike Ajnsztajn, brasileiro que vive nos Estados Unidos. Desde 2012, fizeram aceleração em 47 empresas, sendo que três foram compradas por outros grupos empresariais, momento em que a aceleradora obtém lucro. Entre seus parceiros está a Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), de São Paulo, que colabora nas mentorias com professores. “Ajudamos a empresa a ter acesso ao mercado, executar 64 z julho DE 2015
foto startup farm ilustraçãO nelson provazi
Fim do programa de aceleração da Startup Farm em parceria com a USP: conhecimento sobre empreendedorismo e novos negócios
por representantes da indústria, de investidores e da USP elegeram no fim das apresentações as três melhores empresas. A primeira foi a Bright Photomedicine, há um ano no Cietec. A empresa desenvolve um equipamento de pequeno porte com luz de LED contra a dor. Já existem equipamentos mais caros e não portáteis que são usados nesse tipo de terapia. A startup idealizou e depositou patente de um equipamento para fototerapia que é flexível, atado ao corpo do paciente, que pretende ter um preço baixo. “Estudo esse assunto há mais de seis anos e fiz doutorado com o tema na USP e na Universidade Harvard, nos Estados Unidos. No doutorado, desenvolvi uma técnica nova já testada em camundongos com sucesso na atenuação da dor”, diz o físico Marcelo Sousa, graduado na Universidade Federal do Ceará (UFC). “Estamos preparando o primeiro protótipo, que está sendo viabilizado com um projeto Pipe [Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas] da FAPESP, que nos permite comprar material, componentes, equipamentos e me garantiu uma bolsa de pesquisador”, diz Marcelo, que procura estabelecer parcerias com hospitais como Sírio Libanês e Einstein para realizar futuramente os ensaios clínicos. Em relação ao programa de aceleração, ele diz que ajudou na definição do modelo de negócio da empresa. “Durante o programa, entrei em contato com possíveis clientes, que são clínicas de fisioterapia, e tive uma noção do mercado, tanto que chegamos à conclusão de que também poderemos alugar os aparelhos em vez de vendê-los.” Em relação às mentorias, Marcelo diz que recebeu cerca de 40 sessões de alto nível. Outro participante que usufruiu do programa de aceleração foi Rafael Libardi, da empresa UkkoBox. Formado em Sistemas da Informação no Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP em São Carlos, Rafael idealizou um serviço de proteção de arquivos em nuvem computacional. Os arquivos são divididos
em diversos pedaços, criptografados e depois espalhados em provedores distribuídos em países diferentes. No sistema desenvolvido por Rafael, que tem mais dois sócios, mesmo sem acesso a alguns dos pedaços do arquivo, é possível recuperar o todo. “Existe uma grande preocupação das empresas com perda de dados, vazamentos de informações, espionagem, e nós pretendemos atuar para impedir tudo isso”, diz Rafael. “No evento conseguimos ter uma ideia melhor do que pode ser a empresa porque nós entendemos de tecnologia e não de negócios, e os mentores apontaram várias falhas no nosso plano”, conta Rafael. “Por exemplo, a ideia inicial era vender nosso software. O problema é que os clientes não querem administrar e pagar vários provedores de nuvem. Mudamos o nosso modelo de negócio para que o cliente nos pague para acessar o sistema e nós gerenciamos os provedores”, diz ele, que finaliza em julho sua dissertação de mestrado na USP sobre o mesmo tema. Para o diretor do Cietec, Sérgio Risola, as aceleradoras são bem-vindas e a convivência entre incubadoras e aceleradoras é crescente. “Elas buscam escala de mercado e não concentram atenção maior ao plano de negócio, querem que o dono da startup as convençam de que vale a pena investir”, diz Risola. “Mas isso não vale para todos os tipos de empresa”, ressalta. As aceleradoras normalmente buscam empresas mais ligadas à área de tecnologia da informação. “Empresas startups em áreas como nanotecnologia, biotecnologia e energia, demandam mais tempo para chegar ao mercado. Esses casos interessam menos às aceleradoras e precisam de uma incubadora para se fortalecer no mercado.” n
Projeto Análise de viabilidade técnico-científica de um curativo com luz para fototerapia (nº 2014/50569-2); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador Responsável Marcelo Sousa (Bright); Investimento R$ 54.045,37 e US$ 10.233,00 (FAPESP).
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Bioengenharia y
Próteses sob medida Instituto Biofabris produz implantes de liga de titânio para pacientes que perderam ossos do crânio ou da face após acidente ou doenças Dinorah Ereno
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Imagens de tomografia do paciente, modelo em 3D do crânio e prótese sob medida projetada em software
fotos INCT-Biofabris
U
ma prótese de titânio feita sob medida transformou a vida da estudante Jessica Alves Farias Cussioli, de 23 anos. Após um grave acidente em setembro do ano passado, em Araçatuba, interior de São Paulo, quando caiu da moto e bateu a cabeça em uma caçamba de entulho, Jessica teve afundamento profundo na lateral direita do crânio, em uma região que começa nos olhos e vai até o alto da cabeça. Oito meses depois, no dia 26 de maio, ela se tornou a primeira paciente a receber um implante craniofacial de titânio no Brasil, procedimento feito no Hospital das Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (HC-Unicamp). A fabricação da prótese feita sob medida pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Biofabricação (INCT-Biofabris), sediado na Unicamp e financiado pela FAPESP e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), faz parte de um longo processo de pesquisa e desenvolvimento multidisciplinar iniciado em 2009.
Além da Unicamp, participam do Biofabris as universidades de São Paulo (USP), as federais de São Paulo (Unifesp) e do Rio Grande do Sul (UFRGS), o Instituto de Pesquisas Nucleares (Ipen) e o Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer (CTI), entre outras instituições. “Trabalhamos no desenvolvimento de polímeros, biopolímeros, materiais metálicos e cerâmicos, destinados a diversas aplicações”, diz o engenheiro químico Rubens Maciel, professor da Faculdade de Engenharia Química (FEQ) da Unicamp e coordenador do Biofabris. Os estudos de desenvolvimento de novos materiais envolvem ainda testes in vitro e in vivo para avaliar se não causarão nenhum problema ao paciente, no caso de uma futura implantação. “Sua atuação no organismo não pode ser nociva às células nem prejudicar o corpo no local onde está implantado.” A operação de Jessica durou mais de oito horas e teve a participação de uma equipe médica composta por quatro cirurgiões plásticos e um neurocirurgião. O procedimento cirúrgico foi a última eta-
pa de um trabalho colaborativo que envolveu médicos e pesquisadores durante três meses. A parceria entre o instituto e o HC começou logo após a inauguração do Biofabris. “Após uma longa conversa com Rubens Maciel e André Jardini [engenheiro mecânico e pesquisador do instituto Biofabris], percebi que poderíamos ter uma parceria científica”, relata Paulo Kharmandayan, professor e coordenador da área de Cirurgia Plástica do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, integrante do Biofabris. Além da convergência de interesses nas linhas de pesquisa, também havia a proximidade física dos laboratórios. “Foi uma tarde inteira de conversas em que expus as minhas necessidades na área médica e eles se propuseram a encontrar soluções para as demandas apresentadas.” À medida que o tempo passou e o instituto cresceu, apareceram mais perguntas e propostas. “Atualmente fazemos reuniões semanais e a cada discussão surgem novas ideias.” A tarefa de fabricação dos três implantes personalizados de titânio que compESQUISA FAPESP 233 z 67
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põem a prótese e formam uma superfície de 10 centímetros de comprimento demorou 20 horas. O primeiro passo para a fabricação de uma prótese é fazer, por meio de tomografia, imagens da área do corpo que necessita de reparos. Essas imagens são colocadas no programa InVesalius, um software desenvolvido pelo CTI, responsável pela reconstrução da parte afetada em 3D. A partir da comparação da parte preservada com a afetada por trauma ou acidente, os pesquisadores criam uma prótese com a dimensão e o formato mais apropriado, preservando a aparência e recuperando a função original de proteção ao cérebro. Com base nesse modelo virtual da cabeça do paciente, são feitos então um crânio-modelo e uma prótese em nylon por impressão 3D. “O planejamento virtual é uma etapa demorada, em que o programador e a equipe médica discutem todos os ajustes necessários, antes de chegar à prótese definitiva, em metal”, explica Kharmandayan. Acabamento e esterilização
Na etapa final, de fabricação da prótese metálica, uma liga com pó de titânio é colocada dentro da máquina de manufatura aditiva, técnica de impressão em que um modelo tridimensional é criado por sucessivas camadas de material. O pó é sinterizado a laser e forma as camadas com 0,4 milímetro. Dependendo da peça, a fabricação pode demorar até um dia para o processo ser finalizado. Depois de retirada da máquina, a peça é submetida a um tratamento térmico 68 z julho DE 2015
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1 Próteses craniofaciais feitas de titânio 2 Projeção da prótese a partir do modelo 3D 3 Modelo de estudo do crânio e da prótese
ou químico e, no caso de ser usada em aplicações médicas para implantes, ainda passa por um processo de limpeza, acabamento superficial para retirada de resíduos e esterilização. Jessica foi a sexta paciente operada pela equipe de Kharmandayan. Ela é uma das pacientes que integram um projeto aprovado pelo comitê de ética da Unicamp, que prevê a realização de 15 cirurgias. “Foi a primeira cirurgia craniofacial que fizemos com o material. As outras eram apenas de crânio ou face”, contou o cirurgião plástico. O primeiro paciente operado, em 2012, colocou uma prótese para reconstrução do crânio aos
fotos 1 caius lucilius/hc-unicamp 2 inct-biofabris 3 antonio scarpinetti
17 anos, três anos depois de um grave acidente de bicicleta. “Ele parou de estudar, ficava trancado em casa, não tinha vida social. Depois que fez a cirurgia, voltou a estudar, começou a tocar violão, ficou noivo, tirou carta de motorista e passou em um concurso público.” O tratamento mais utilizado atualmente para recompor a região afetada é retirar um segmento do osso do lado sadio da cabeça e colocá-lo no local com o trauma. Mas nem sempre isso é possível. “Quando os defeitos são grandes ou quando ocorre absorção do osso por causa da infecção, é preciso recorrer a um substituto sintético, metálico ou não”, explica. Um dos mais utilizados para essa finalidade é o metilmetacrilato, um tipo de plástico descoberto na década de 1920. “Existem vários relatos de pacientes que tiveram rejeição à prótese porque o material pode liberar substâncias químicas.” Outro detalhe é que a reconstrução com o metilmetacrilato é feita artesanalmente pelo cirurgião. “O plástico em pasta, a uma temperatura de 82 graus Celsius, é modelado diretamente em cima do cérebro do paciente, no caso de uma reconstrução do crânio.” A modelagem a mão deixa muito a desejar. Dentre os pacientes operados no HC da Unicamp como parte do projeto, quatro tinham feito anteriormente próteses a partir do plástico. A liga de titânio é usada há bastante tempo na medicina e, de uns anos para cá, na odontologia no setor de implantes, por ser um material já bastante testado, seguro e que não libera resíduos depois de pronto. “As miniplacas que utilizamos, além de seguras, permitem a integração com o osso”, diz Kharmandayan. “Sua superfície é fabricada com pequenas ranhuras, de forma que a osteointegração e o crescimento celular ocorram mais rapidamente do que em uma superfície comum”, ressalta Maciel. As placas de titânio para reconstrução craniofacial são produzidas por outros países e vendidas no mercado, mas elas são feitas em tamanho padrão, e não sob medida para o paciente e para as suas necessidades. “Uma placa como a que foi implantada na Jessica custaria no mercado em torno de R$ 130 mil”, estima Maciel. “Os gastos que tivemos com material para construir a placa personalizada e com as utilizadas pelos outros pacientes ficaram em cerca de R$ 3 mil a R$ 5 mil,
dependendo do material utilizado.” Isso sem contar os honorários médicos e custos com aquisição de máquinas, projeto e esterilização, por exemplo, que foram absorvidos pelo Biofabris. NOVOS MATERIAIS
Além das próteses customizadas com ligas de titânio, outras linhas de pesquisa envolvendo a busca de novos materiais são desenvolvidas com instituições parceiras. Uma delas, em colaboração com a UFRGS, tem como foco as biocerâmicas de fosfato de cálcio, como a hidroxiapatita, material semelhante à parte mineral do osso, e outras similares. “Fazemos a síntese e a caracterização de cerâmicas e moldamos as peças no equipamento de prototipagem rápida”, diz Cecília Zavaglia, professora do Departamento de Engenharia de Materiais da Faculdade de Engenharia Mecânica (FEM) e vice-coordenadora do instituto. Essas cerâmicas desenvolvidas, chamadas de beta fosfato tricálcico, podem ser utilizadas como substituto de ossos e dentes, em pequenos reparos. Já foram realizados testes in vitro e in vivo para avaliar a biocompatibilidade do material e sua toxicidade. A próxima etapa serão os testes clínicos. Outros materiais usados na biofabricação são os biopolímeros. O melaço da cana-de-açúcar, a semente do açaí e o óleo de mamona são matérias-primas de fontes renováveis utilizadas para a fabricação desses materiais. A partir do melaço, por exemplo, os pesquisadores obtiveram o
poliácido láctico, um polímero absorvi- xicos para conduzir a reação química”, do pelo organismo em taxas controláveis. diz Maria Ingrid Rocha Barbosa Schia“Fazemos a polimerização do ácido lácti- von. Ela iniciou a pesquisa durante o pósco para usar como base em uma série de doutorado que resultou em um depósito aplicações, como regeneração de tecidos, de patente em conjunto com outros pespele artificial, formação de cartilagem e de quisadores do Biofabris. A partir do poliácido láctico obtido da ossos”, diz Jardini. “Esse material pode ser utilizado como se fosse o arcabouço para cana-de-açúcar, em associação com o poli semear células que precisam ser desenvol- 2-hidroximetilmetacrilato (pHEMA), foi vidas em um determinado local.” Em uma formado um polímero híbrido como resulimpressora 3D o polímero é processado para tado da pesquisa de doutorado de Marcele adquirir o formato a ser implantado no pa- Fonseca Passos, sob orientação de Maciel ciente. Esse biopolímero é então semeado e de Carmen Gilda, do Departamento de com células do próprio paciente e, após o Engenharia Mecânica da Universidade crescimento, a prótese pode ser implan- Federal do Pará (UFPA). A pesquisa levou a um depósito de patente, o processo tada no local desejado. Da semente do açaí, foi desenvolvido não necessita de agentes químicos, e o proum poliuretano para ser usado como pró- duto obtido tem uso potencial em odontologia, regeneração tese óssea, principalparcial de cartilagem, mente nas regiões do de menisco e orelha. crânio e da face (ver Testes de citotoxiciPesquisa FAPESP dade mostraram bionº196). E o óleo de Melaço de cana, compatibilidade do mamona associado ao semente de polímero e atualmenácido cítrico resultou te estão sendo feitos em um novo polímero, açaí e óleo de testes com animais na objeto de um depósiFaculdade de Biologia to de patente. “O óleo mamona são da UFPA em colabode mamona obtido foi ração com o Instituto submetido a uma reatestados como Evandro Chagas, tamção com o ácido cítrimatéria-prima bém no Pará. n co, o que resultou em um poliéster reticulade próteses do obtido a partir de um processo de poProjetos 1. Biofabris – Instituto de Biofalimerização que não bricação (nº 2008/57860-3); envolveu agentes tóModalidade Projeto Temático – INCT; Pesquisador responsável Rubens Maciel Filho (Unicamp); Investimento R$ 2.691.894,52 (FAPESP) e R$ 2.239.094,33 (CNPq). 2. Síntese de biopolímeros epoxídicos a partir de fontes renováveis para construção de dispositivos biomédicos utilizando técnicas de prototipagem rápida e biofabricação (nº 2009/16480-6); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Rubens Maciel Filho (Unicamp); Bolsista Maria Ingrid Rocha Barbosa Schiavon; Investimento R$ 215.732,36 (FAPESP). 3. Redes IPNs de pHema-PLA para aplicação em engenharia tecidual (nº 2011/18525-7); Modalidade Bolsa de doutorado; Pesquisador responsável Rubens Maciel Filho (Unicamp); Bolsista Marcele Fonseca Passos; Investimento R$ 177.978, 84 (FAPESP).
Artigos científicos
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CALDERONI, D. R. et al. Paired evaluation of calvarial reconstruction with prototyped titanium implants with and without ceramic coating. Acta Cirúrgica Brasileira. v. 29, p. 579-87. 2014. JARDINI, A. L. et al. Cranial reconstruction: 3D biomodel and custom-built implant created using additive manufacturing. Journal of Cranio-Maxillo-Facial Surgery. v. 42, p. 1877-84. 2014. LAROSA, M. A. et al. Microstructural and mechanical characterization of a custom-builtimplant manufactured in titanium alloy by direct metal laser sintering. Advances in Mechanical Engineering. v. 2014. p. 1-8. 2014.
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Nanotecnologia y
Filamentos inesperados Experimento resulta no aparecimento de microtubo coberto por nanofios que poderá ter aplicações em nano e microeletrônica
Evanildo da Silveira
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a pesquisa científica, a busca por um resultado leva, muitas vezes, a outro, até mais importante, de maneira fortuita. Foi o que aconteceu com o físico José Antônio Souza durante a orientação de mestrado da aluna Cynthia Gómez, ambos da Universidade Federal do ABC (UFABC). Ela desenvolvia microcabos coaxiais, que podem ser usados em telecomunicações, para entender como a corrente elétrica flui por eles. Foi quando observou a formação de estruturas inesperadas, mais precisamente microtubos recobertos externamente por nanofios, cujo diâmetro equivale a 1 milímetro dividido por um milhão. O estudo levou Souza a vislumbrar futuras aplicações tecnológicas para a descoberta, desde o uso na nano e microeletrônica até em sistemas conhecidos como drug delivery, em que microtubos carregam medicamentos até o local do organismo onde devem agir. Para garantir a primazia de sua eventual exploração econômica, a dupla depositou patente relativa ao novo material
no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). Depois de protegidos, os resultados foram publicados na revista Applied Physics Letters com a colaboração dos professores Jeroen Schoenmaker, Alejandro Zúñiga e Denise Criado, todos da UFABC. Os microcabos coaxiais com os quais trabalhavam são fios de zinco metálico (Zn), com diâmetro entre 30 e 120 micrômetros, recobertos por uma camada de óxido de zinco (ZnO) nanométrica. “Nosso objetivo era estudar o comportamento da resistividade elétrica – ou seu inverso, a condutividade – desses microfios, com o aumento da temperatura, presença de campos magnéticos, e inferir sobre a formação das nanoestruturas em sua superfície”, diz Souza. “A intenção era fabricar cabos coaxiais magnéticos, porque se acredita que todo material nanoestruturado apresenta magnetismo.” Para realizar o estudo, Souza e Cynthia aqueceram os microfios metálicos de zinco numa câmara especial com controle de atmosfera e temperatura. Em seguida ocorreu o crescimento dos nanofios em cima da microcamada de óxido de zinco, por um mecanismo físico que envolve a difusão de íons (átomos eletricamente carregados) do metal. No passo seguinte, fizeram uma corrente elétrica passar pelos microcabos coaxiais. O que aconteceu surpreendeu os pesquisadores. “A eletricidade causou um efeito colossal na estrutura”, conta o físico da UFABC. “Quando a tempera-
A partir de microcabos coaxiais sólidos surgiram, depois de um processo com corrente elétrica e calor, microtubos cobertos por nanofios
tura chegou a 600°C, o núcleo de zinco metálico evaporou completamente, restando apenas um microfio oco, recoberto externamente por nanofios.”
fotos ufabc
integrar funcionalidades
A temperatura em que esse processo ocorreu também surpreendeu os pesquisadores. Normalmente, o zinco evapora a 1.000°C. “A corrente elétrica aumentou muito a pressão de vapor, levando à evaporação total do metal”, explica Souza. “Nossa descoberta abre caminho para a obtenção de microtubos de outros materiais, como estanho e alumínio, por exemplo.” Estruturas como a descoberta pelos pesquisadores da UFABC são chamadas de hierárquicas, compostas de duas ou mais formas diferentes, como fios e tubos. Às vezes, elas têm também tamanhos diferentes, como é o caso da encontrada por Souza e Cynthia. As possibilidades tecnológicas da descoberta, segundo o pesquisador, estão no fato de que é possível unir as aplicações dos nanofios com as dos mi-
São várias as possibilidades tecnológicas da descoberta que une as aplicações de nanofios e microtubos
crotubos em um único dispositivo, porque se conseguiu fabricá-los juntos, em uma mesma estrutura. Os nanofios, isoladamente, podem ser usados em sensores e na construção de microscópios eletrônicos e em circuitos de computador menores que os atuais. Os microtubos, por sua vez, têm emprego no transporte de nanofluidos, como o ferrofluido, que contêm nanopartículas magnéticas. “Integrar essas funcionalidades é muito importante na área de microeletrônica”, diz Souza. “Além disso, pode-se imaginar, por exemplo, um microtubo carregado com uma droga e os nanofios
com algum material biocompatível, o que permite criar dispositivos para a área de drug delivery.” O físico Fábio Coral Fonseca, do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), em São Paulo, que estuda materiais para conversão de energia e magnetismo, acrescenta outras possíveis aplicações da descoberta dos pesquisadores da UFABC. “Essas estruturas podem ser exploradas em dispositivos lab-on-a-chip [espécie de laboratório miniaturizado, que possibilita a realização de testes e análises biológicas em um chip], caso demonstrem ter as propriedades necessárias”, diz. “Outra aplicação que se pode imaginar é em catálise [aceleração de reações químicas], se, por exemplo, os nanofios puderem ser obtidos de metais ou ligas com boas propriedades catalíticas.” Por abrir essas possibilidades de aplicação tecnológica, Fonseca avalia o trabalho da UFABC importante. “Creio que o processamento e os fenômenos envolvidos na fabricação dessas estruturas são relevantes”, diz. “É interessante enfatizar a simplicidade do método e o uso da corrente elétrica no processo, que parece exercer papel importante na obtenção das estruturas.” Ele lembra, no entanto, que descobrir como aliar essas propriedades e aplicações mais específicas de nanofios e microtubos ainda dependerá do desenvolvimento das pesquisas. n
Projeto Síntese e caracterização das propriedades físicas de materiais nanoestruturados (nº 2013/16172-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável José Antônio Souza (UFABC); Investimento R$ 75.905,92 e US$ 59.151,64 (FAPESP).
Artigo científico Gómez, C. M. R. et al. Microtubes decorated with nanowires. Applied Physics Letters. v. 106. mai. 2015 (on-line).
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humanidades PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO y
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Por trás das fachadas Inventário da USP alerta para a perda de construções históricas na primeira região cafeeira do estado Texto
Carlos Fioravanti
Fotos
Eduardo Cesar, de Bananal
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m sobrado de paredes brancas e portas azuis, que já foi a casa de homens ricos, uma escola pública e sede da prefeitura e esteve abandonado por 18 anos, hoje reina com elegância à noite, sob as luzes dos holofotes, em um dos lados de uma praça de Bananal, cidade paulista próxima à divisa com o Rio de Janeiro. A restauração de trechos de paredes, das 16 portas e das 32 vidraças da fachada, e a reconquista do interior, de onde saíram 11 caminhões com entulho e dejetos de ratos e morcegos, foram lideradas por três moradores, o casal Reinaldo Afonso e Margarida Duarte Afonso e Vera Lúcia de Paula Antunes da Silva, que assumiram em 2001, voluntariamente, a tarefa de reavivar o prédio em que aprenderam a ler. Ainda há muito por fazer. Por dentro, a vista é desoladora. Penumbra, portas caindo, buracos no piso. Vinte pilares de eucalipto, colocados em caráter provisório em 1985, sustentam as vigas do teto frágil. Um piano quebrado ao pé da escada remete às antigas aulas de música. As luzes e as sombras do Solar Vallim expressam os contrastes, as incertezas e as dificuldades de conservação do
Casa mal conservada de São José do Barreiro: paredes com estrutura exposta, como em outras cidades do Vale Histórico Paulista pESQUISA FAPESP 233 z 73
Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP). De fevereiro de 2013 a dezembro de 2014, com sua equipe, formada por historiadores, gestores ambientais, microbiologistas, biólogos, químicos e climatologistas, Sílvia inventariou 195 construções urbanas e rurais do período cafeeiro de cinco cidades da região – Bananal, São José do Barreiro, Areias, Silveiras e Queluz, todas fundadas no período colonial no antigo caminho entre São Paulo e Rio de Janeiro. O levantamento indicou que 78 casas, o equivalente a 40% do total, correm risco de desabamento ou exigem reparos urgentes. De acordo com esse inventário, 36 casas precisam de reparos porque o teto está desabando, 16 porque as paredes têm rachaduras e 8 porque estão próximas a encostas, sob risco de deslizamento e alagamento em caso de chuvas fortes e cheias dos rios. cupins onipresentes
Interior do solar Vallim, em Bananal: quase tudo a ser refeito, atrás da fachada já restaurada
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patrimônio cultural arquitetônico no chamado Vale Histórico Paulista, a primeira região ocupada pelas plantações de café no estado de São Paulo, no início do século XIX. O nome do solar remete ao seu primeiro dono, Manoel de Aguiar Vallim, que mandou construir o casarão em 1855 para receber comerciantes ingleses e autoridades do governo. Em Bananal e nas cidades vizinhas, muitas construções históricas já foram restauradas, como a Câmara Municipal de São José do Barreiro, um sobrado que em outros tempos foi a cadeia da cidade. Outras preservam apenas a fachada, com o interior já deteriorado ou modernizado, e algumas estão sendo refeitas. Várias casas, em reforma ou vazias, com trechos de paredes sem reboco, expõem a terra vermelha e os troncos de árvores que lembram os ossos e veias de um corpo sem pele. Conta-se por ali que várias casas antigas ruíram e, como eram de terra, desapareceram, consumidas pela chuva. “A perda é contínua”, observou a historiadora Sílvia Helena Zanirato, pesquisadora da Escola de
Os pesquisadores registraram uma redução contínua do patrimônio histórico. Queluz, de 10 mil habitantes, mantém apenas 11 casas urbanas e 1 sede de fazenda da época do café. Silveiras, de quase 6 mil moradores, apenas 7. Bananal, a maior cidade da região, com pouco mais de 10 mil moradores, desfruta de um patrimônio mais extenso, com 65 casas históricas urbanas e rurais da época do café na própria cidade e 9 na zona rural. São José do Barreiro, com 4 mil moradores, tem 52. Areias, de 4 mil moradores, 42. “Aqui não tem casario em más condições”, disse Cláudio Carvalho Costa, secretário da Cultura de Areias. Segundo ele, havia apenas duas casas de valor histórico em estado crítico, com tetos desabando, ao lado do sobrado que abriga a secretaria, mas que foram compradas e reformadas. Em Areias, segundo Sílvia, os problemas maiores estão nas construções das fazendas. Em todas as cidades, a maioria das construções históricas exibe mudanças ou adaptações que põem em dúvida sua autenticidade. “Vemos pelas ruas do centro tombado de Bananal edificações que foram e estão sendo reconstruídas e profundamente alteradas sem a devida comunicação aos órgãos de proteção do patrimônio histórico”, comentou Sílvia. Segundo ela, a prioridade deveria ser o combate aos cupins, que corroeram as madeiras do teto, das paredes, do piso, das portas e das janelas das 78 casas em risco. “Vi criança dormindo em casa com forro que parecia renda de tanto cupim e poderia desabar facilmente”, relatou. “Em São José do Barreiro, seria necessário fazer um tratamento contra cupins em toda a cidade, porque os telhados e paredes do casario do centro são contínuos, não adianta cada um cuidar da sua.” Uma apresentação das conclusões do trabalho de campo e de propostas de um plano de ação está marcada para o início de agosto na Secretaria da Cultura em São Paulo.
As perspectivas de conservação do patrimônio cultural são preocupantes, com base nas circunstâncias atuais e nos cenários climáticos para a região construídos pelas meteorologistas Rita Ynoue e Rosmeri Porfírio da Rocha, ambas do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP. A análise das informações colhidas em cinco estações meteorológicas da região e as simulações feitas por computador indicaram um provável aumento de 3o Celsius nas temperaturas mínimas e máximas na região nas últimas décadas deste século (2070-2100). Teoricamente, comentou Sílvia, o calor mais intenso poderia facilitar a ação dos já temidos cupins. As projeções indicaram que deve também haver uma redução de 3% na umidade relativa do ar e um leve aumento na precipitação. “A precipitação é mais difícil de prever porque os resultados variam muito de um modelo climático para outro”, disse Rita. O trabalho convergiu com as previsões de aumento de temperatura e de chuvas mais intensas e irregulares na região Sudeste elaboradas pelas equipes de José Marengo, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e Tércio Ambrizzi, do IAG-USP. O microbiologista Felipe Chambergo Alcalde, com sua equipe da EACH-USP, colheu 2.317 amostras de ar do interior das edificações históricas e identificou 34 espécies de fungos e 74 de bactérias, beneficiados pela umidade que chega a 80% nos primeiros meses do ano. A maioria dos microrganismos, por produzir enzimas capazes
de digerir celulose, poderia se instalar sobre batentes e vigas do teto, corroendo-os. Andrea Cavicchioli, também da EACH, e Alejandra Fazio e Dalva Faria, do Instituto de Química da USP, identificaram 14 espécies de fungos, alguns relatados pela primeira vez, que colonizam as paredes de alvenaria em terra das construções históricas urbanas e rurais de São José do Barreiro e Areias, causando sua deterioração, por meio da liberação de substâncias ácidas. Segundo Cavicchioli, essa região é uma das únicas em São Paulo que reúnem os três tipos de construções de terra: pau a pique, adobe e taipa de pilão. “A arquitetura em terra não cozida, anterior ao tijolo e ao cimento, é um patrimônio muito característico do estado de São Paulo que corre o risco de se perder.”
O Vale Histórico Paulista é uma das únicas regiões do estado que reúnem os três tipos de construções de terra: pau a pique, adobe e taipa de pilão
Desconfiança e resistência
Conservar construções públicas ou particulares não é fácil, mesmo quando se tem dinheiro para pagar as reformas e se deseja seguir as normas de restauração estabelecidas pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat). Muitos imóveis encontram-se abandonados e deteriorando, como o Hotel Brasil, de 1847, ao lado do Solar Vallim, por causa de partilha de herança e empobrecimento de herdeiros. A equipe da USP observou “uma grande desconfiança da população em relação aos órgãos responsáveis pela conservação do patrimônio em nível estadual e nacional”, como consta em um dos relatórios do trabalho. “Apesar da presença constante de técnicos no local e do canal aberto para diálogo, a população em geral apresenta muita resistência em seguir as orientações técnicas e a realizar os projetos necessários para a formalização das aprovações”, comentou Lara Melo Souza, diretora do grupo de conservação e restauração de bens tombados da Secretaria da Cultura do Estado. “Criou-se o mito de que o restauro é caro e que o Condephaat não aprova intervenções, mas não existe uma preocupação em entender quais razões podem ter levado o Condephaat a não aprová-las.” De acordo com Lara, as edificações tombadas pelo patrimônio histórico, por terem especificidades arquitetônicas, demandam um projeto de restauração cuidadoso para que suas características originais não se percam. “Isso não necessariamente significa que sejam procedimentos caros; muitas vezes, os materiais são encontrados na região, mas são ações que requerem mais atenção no momento do planejamento.”
Cemitério dos escravos em São José do Barreiro: abandono pESQUISA FAPESP 233 z 75
Contrastes: fazenda Catadupa, em início de restauração, e capela da fazenda Loanda, recuperada ao longo de 10 anos
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“Isto aqui não é um ponto turístico?”, perguntou Lauro Maia Cavalcanti diante de uma sepultura coletiva no chamado cemitério dos escravos, em São José do Barreiro. Na lápide, pode-se ler: “Aqui descançam os restos mortais dos últimos escravos. Não somos filhos da servidão e do desprezo, mas sim herdeiros da liberdade e da caridade da Igreja e Jesus Cristo”. Cavalcanti e sua esposa, Joseane Paes Leme Fontaine, moradores do município, onde têm uma fazenda, estavam abismados diante do que viam: “Faltam túmulos inteiros”, disse ele. Como o cemitério tem rece-
bido pouca atenção dos órgãos públicos, o roubo de placas e estátuas de mármores – ali eram enterrados também outros moradores da cidade – tem sido constante. Em 2012, Lauro Cavalcanti, neto de um fazendeiro da região, que fez direito e gestão ambiental na USP, e Joseane compraram e começaram a restaurar a fazenda Catadupa, uma das representantes dos tempos do café. A primeira tarefa, que tomou 25 dias, foi refazer a ponte sobre o rio Formoso, com 96 dormentes de trilho de trem. “Este muro de pedra já foi em parte refeito usando terra de cupinzeiro e de formigueiro e cal”, disse ele, ao lado da sede da fazenda. “Ainda estamos procurando a melhor combinação de terra, com os pesquisadores da USP.” Seu esmero contrasta com a pressa de outros restauradores, que misturam cimento com terra. “O cimento pode funcionar como um curativo, mas depois estufa e cai.” Para a casa da fazenda, há muitos planos: trocar as madeiras e o bambu trançado do teto, restaurar a pintura original das paredes, refazer o piso. “A casa estava caindo quando chegamos”, disse. “Já conseguimos acabar com as goteiras.” Pedro Teixeira, médico que se mudou para Bananal em 1996, gastou 10 anos e estimados R$ 2,5 milhões para restaurar a fazenda Loanda, estabelecida em 1790 e que pertence à família Teixeira desde 1940. Como resultado, ele expõe salões impecáveis, com espelhos franceses, gra-
Escadaria do sobrado histórico ocupado pela secretaria de cultura de Areias: exemplo de ação do poder público
mofone inglês e um piano alemão. “A casa está hoje como estava em 1860”, comemorou. Perto da casa, ele está construindo um museu, um restaurante e uma loja de produtos locais, que pretende inaugurar ainda neste ano. Sua fazenda apenas recebe a visita de turistas, mas outras restauradas e igualmente luxuosas tornaram-se pousadas e cenários para novelas e filmes. A igreja matriz
Na Igreja Matriz do Senhor Bom Jesus do Livramento, de 1811, o padre Tiago Augusto Pereira Vituriano vive inquieto. A capela está restaurada, incluindo as pinturas em papel dos apóstolos, mas um dos altares está caindo, corroído por cupins, que também atacaram o teto da nave principal e do monastério, sob o qual ele conduz as missas. Por meio de projetos de restauração submetidos ao Condephaat, a restauradora Margarethe Boesing pretende refazer o teto, os altares e os santos e recuperar a pintura de 1939, mais característica da igreja que a posterior, de 1979. Para pagar as reformas, o padre promove campanhas de arrecadação ou rifas, como a de um carro, com números a R$ 250 reais (às vezes pagos em até 10 vezes), a ser sorteado em agosto. “Nossos recursos são os do povo”, ele relatou. “Conseguimos tudo com dificuldade.” Os três guardiães do solar Vallim levantaram dinheiro para as reformas também por meio da doação de moradores, do chamado festival de prendas, que todo sábado e domingo atrai de 50 a 100 pessoas, e de uma participação nas vendas da Casa do Artesão, que ocupa uma das alas tér-
reas do sobrado. A prefeitura contribui deixando de cobrar a conta de luz e ajudando na limpeza do casarão. Reinaldo Afonso não se esqueceu de uma conversa com o então prefeito, em 2001, quando ele e um grupo de amigos se organizaram para recuperar o prédio: “O prefeito me fez dois pedidos: ‘Não me peça dinheiro’ e ‘Não me traga problemas’”. Os três aquietaram um pouco em 2014 ao saber que um escritório de São Paulo, o VD Arquitetura, estava preparando um projeto de restauração, aprovado pelo Condephaat em junho, com um custo estimado em R$ 8 milhões, a ser ao menos parcialmente pago pela prefeitura. “Só sairemos daqui quando começarem as obras”, anunciou Afonso. Ele, aos 69 anos, sua esposa, de 66, e Vera Silva, de 69, chegam todo dia às 9 da manhã para abrir a Casa do Artesão, que vende doces, bordados e bonecas de pano. Faz pouco tempo Vera Silva abriu uma loja de objetos usados, em uma sala anexa. Parte da renda vai para a reforma da antiga escola. “Nossa memória”, disse Vera, “está muito viva”. n
Projeto Patrimônio cultural do Vale Histórico Paulista: análise da vulnerabilidade às mudanças climáticas (n° 2011/51016-9, Convênio FAPESP-Condephaat); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Sílvia Helena Zanirato (USP); Investimento R$ 229.276,56 (FAPESP) e R$ 69.884,44 (Condephaat).
Artigo científico FAZIO, A. T. et al. Towards a better comprehension of biodeterioration in earthen architecture: Study of fungi colonisation on historic wall surfaces in Brazil. Journal of Cultural Heritage. mai. 2015 (no prelo).
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TURISMO GEOLÓGICO y
Uma São Paulo de 600 milhões de anos
Prefeitura Travertino italiano Sede da Prefeitura de São Paulo desde 2004, o Edifício Matarazzo foi projetado pelo arquiteto italiano Marcello Piacentini e inaugurado em 1939. Sua fachada é recoberta por travertino, rocha calcária importada da Itália
Roteiro reúne monumentos e edifícios do centro histórico paulistano revestidos com rochas de um passado distante
Teatro Municipal Arenito Itararé
Ricardo Zorzetto
Inaugurado em 1911, o Teatro Municipal, construído por Ramos de Azevedo, foi erguido sobre uma base de granito Itaquera. Sua fachada é coberta por placas de arenito Itararé, extraído da
As rochas ornamentais paulistas
região de Iperó
Pedreiras da capital e do interior forneceram os materiais mais usados em prédios e monumentos do centro antigo de São Paulo
SP MG
Botucatu
Socorro
Obelisco da memória Itararé Bacia
do
á Paran
Itupeva
Granito Itaquera
Piracaia Itaquera
Ubatuba
Capão Bonito
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O mais antigo monumento
Sedimentos cenozoicos
de São Paulo, o Obelisco da
Rochas alcalinas cretáceo-cenozoicas
Mauá
PR
Sedimentos quaternários
Oceano Atlântico
n n n n n
Granito Itaquera Granito Itupeva Granito Mauá Granito Piracaia
Memória, foi projetado pelo engenheiro Daniel Müller e construído pelo mestre Vicente Pereira em granito Itaquera. Inaugurado em
Granitos Ubatuba,
1814, ficava no limite do
Socorro e Capão Bonito
núcleo urbano da cidade
infográfico ana paula campos ilustraçãO daniel almeida
O centro em 19 paradas 1 Pátio do Colégio
11 Praça D. José Gaspar
2 Centro Cultural Banco do Brasil
12 Ladeira da Memória
3 Rua XV de Novembro
13 Teatro Municipal
4 Praça Antonio Prado
14 Edifício Matarazzo
5 Mosteiro de São Bento
15 Largo de São
6 Casa das Boias
Francisco
7 Rua 25 de Março
16 Rua Direita
mercado municipal
8 Mercado Municipal
17 Caixa Cultural
Granito Itupeva
9 Largo do Paissandu
18 Palácio da Justiça
Desenhado pelo escritório
10 Rua Marconi
19 Catedral da Sé
de Ramos de Azevedo e inaugurado em 1933, às margens do rio Tamanduateí, o Mercado Municipal foi erguido sobre um embasamento de granito rosa Itupeva
caixa cultural Granito Piracaia Inagurado em 1939 para ser a sede da Caixa Econômica Federal de São Paulo, o edifício Sé abriga desde 1989 a Caixa Cultural, o projeto cultural do banco. Sua fachada exibe um rocha negra comercialmente chamada de granito Piracaia – na verdade, um monzonito
Catedral da Sé Granito Mauá Projetada pelo arquiteto alemão Maximilian Hehl em 1912 e inaugurada em 1954, a Catedral da Sé ostenta diferentes tipos de granito, entre eles o cinza Mauá, usado na base da estátua de São Paulo e na fachada pESQUISA FAPESP 233 z 79
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fotos léo ramos
A
geóloga Eliane Del Lama deseja revelar ao visitante interessado em conhecer um pouco das origens de São Paulo algo além dos prédios e monumentos que retratam parte dos 461 anos da maior metrópole da América do Sul. Em parceria com outros quatro pesquisadores, ela elaborou um roteiro do centro antigo da cidade no qual chama a atenção para os tipos de rochas mais usados na construção e na ornamentação de edifícios e obras de arte que integram o que Eliane chama de patrimônio geológico construído paulistano. Seu objetivo, ao contar um pouco da história de materiais que ajudaram a fazer a história de São Paulo, é mostrar que a geologia está mais próxima do cotidiano das pessoas do que elas imaginam. “Em geral se associa a geologia à prospecção de petróleo e de minérios, mas o trabalho do geólogo vai muito além”, diz ela, que é professora do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (USP). O roteiro geoturístico do centro antigo de São Paulo elaborado por Eliane e seus colaboradores foi publicado em junho na revista Geoheritage. Ele indica 19 pontos de visitação ao longo de 6,5 quilômetros, que podem ser percorridos a pé ou acessados de metrô. São construções e monumentos produzidos principalmente no final do século XIX e começo do XX, quando São Paulo, erguida à base de taipa de pilão (barro amassado sustentado por madeira), deu espaço à cidade de alvenaria, embrião da metrópole. “Selecionamos os prédios e monumentos bem conhecidos que incluíam a maior diversidade de pedras”, conta Eliane. O passeio começa pelo Pátio do Colégio, o ponto de origem da cidade de São Paulo. Foi ali, em uma colina alta e plana, cercada pelo rio Tamanduateí e pelo riacho Anhangabaú, que os padres jesuítas Manoel da Nóbrega e José de Anchieta instalaram em 1554 a sede do Colégio São Paulo de Piratininga com o consentimento do cacique Tibiriçá, chefe dos índios guaianases que viviam na região. Praticamente nada sobrou do primeiro barracão, feito em taipa de pilão e substituído um século mais tarde por uma construção em estilo colonial, destruída após a expulsão dos jesuítas do Brasil em 1759. Quem anda hoje por ali encontra uma réplica do antigo colégio, construída em alvenaria entre 1954 e
1
1 Pátio do Colégio, calçamento em granito cinza Mauá
“O granito cinza Itaquera construiu a São Paulo do início do século XX”, diz a geóloga Eliane Del Lama
2 Mosteiro de São Bento: fachada atual, de 1922, mistura granito cinza Itaquera e rosa Itupeva
centro histórico. A obra mais antiga da cidade esculpida em granito Itaquera é o Obelisco da Memória, de 1814. Também conhecido como Pirâmide do Piques, está ao lado da estação Anhangabaú do metrô, por onde passam diariamente milhares de pessoas sem notá-lo. Foi projetado pelo engenheiro Daniel Müller e construído pelo mestre Vicente Pereira. Ficava além do ribeirão Anhangabaú, no limite da cidade, de onde partia a estrada projetada por Müller para ligar a capital ao interior. o cinza-São Paulo
1979. Da época dos jesuítas, restou uma parede interna de taipa de pilão, o mesmo material usado para erguer, ali na vizinhança, a casa nº 1 e o solar da Marquesa de Santos, ocupado entre 1834 e 1867 por dona Domitila de Castro Canto e Melo, amante do imperador Pedro I. O embasamento do solar foi erguido com blocos de uma rocha granítica cinza-claro, conhecida como granito Itaquera, extraído de uma pedreira que funcionou por mais de um século no bairro de Itaquera, na zona leste de São Paulo. O acesso fácil a essa rocha – antes as rochas ornamentais eram importadas – possibilitou seu uso em diversas construções do
Na vizinhança do Pátio do Colégio, um dos dois prédios da Secretaria Estadual da Justiça e Defesa da Cidadania, projetado pelo arquiteto Ramos de Azevedo e inaugurado em 1896, foi erguido sobre uma base de granito Itaquera. “Esse granito construiu a São Paulo do início do século XX”, conta Eliane. Os tons claros dessa rocha não são os únicos que podem ser observados por ali. Todo o calçamento da praça usa um granito mais escuro, o cinza Mauá, oriundo de Mauá e Ribeirão Pires, municípios da Região Metropolitana de São Paulo. As paredes do prédio do Tribunal da Alçada Civil, na frente do Pátio do Colégio, exibem os matizes róseos característicos do grani-
to rosa Itupeva. Possivelmente essa é a mesma rocha observada na fachada do Centro Cultural Banco do Brasil, uma construção de fins da década de 1920 que associa os estilos neoclássico e art-nouveau, na segunda parada do roteiro. O passeio atravessa o centro histórico, um triângulo delimitado pelas ruas Boa Vista, Líbero Badaró e pela praça João Mendes, e se estende a nordeste até o Mercado Municipal, erguido sobre uma base de granito rosa Itupeva, e a noroeste até o Largo do Paissandu, onde fica o Monumento à Mãe Preta, uma obra de 1955 em homenagem aos negros cuja base, de granito, foi pintada e está coberta de pichações. O roteiro conduz de volta ao centro passando pela Biblioteca Mário de Andrade, ornada com granito cinza Mauá; pelo Teatro Municipal, erguido sobre uma base de granito Itaquera e com fachada coberta de placas de arenito Itararé, extraído da região de Iperó; e pela sede da prefeitura, no Edifício Matarazzo, ornamentado com travertino, uma rocha calcária importada da Itália. O ponto final é a Praça da Sé, onde estão a catedral em estilo neogótico, que ostenta diferentes tipos de granito, e o marco zero da cidade, esculpido em mármore em 1934 pelo artista francês Jean Gabriel Villin. Granitos de diferentes regiões do estado são as rochas observadas com mais frequência em edifícios, monumentos e estátuas do passeio. Suas cores variam do negro e tons de cinza ao verde-escuro e os matizes róseos e avermelhados. Todos têm composição mineralógica semelhante: são formados por cristais de quartzo, mica, feldspato e outros minerais em concentrações muito baixas – é o feldspato que determina a variação de cor. Os granitos de São Paulo formaram-se entre 600 milhões e 580 milhões de anos atrás por movimentos da crosta ocorridos a mais de 35 quilômetros abaixo da superfície, sob temperaturas elevadas e pressões 6 mil vezes superior à da atmosfera, e constituem as cadeias de montanhas do sudeste brasileiro. Essas rochas podem ser observadas em muitos pontos do estado, como na província granítica de Itu – uma faixa de 60 quilômetros por 350 quilômetros no interior paulista –, de onde são extraídos os granitos Itupeva, Capão Bonito e Piracaia. O roteiro que Eliane produziu com Denise Bacci, Lucelene Martins, Maria Motta Garcia, da USP, e Lauro Dehira, do Instituto de Pesquisas Tecnológicas
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de São Paulo (IPT), não é o primeiro. Em 2006 André Stern e colegas da USP e da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) haviam sugerido um passeio pelas ruas do centro velho paulistano, com um número menor de pontos turísticos. Quase inexistentes no Brasil, esses roteiros são uma releitura das caminhadas geológicas formuladas para Londres nos anos 1980 pelo geólogo Eric Robinson. Antes de São Paulo, havia roteiros propostos para Curitiba e Rio de Janeiro. No caso de Eliane, a produção do roteiro é um desdobramento de uma mudança de rumo em suas pesquisas. Especializada em analisar a composição química e a evolução geológica de rochas formadas em regiões profundas da crosta, ela decidiu fazer “algo diferente” depois de ser contratada como docente da USP, em 2004. Em um período que passou sem os equipamentos para análises mineralógicas, saiu pelo centro da cidade e passou a registrar imagens dos monu-
mentos históricos e a avaliar seu estado de conservação. Essa atividade, de início despretenciosa, levou-a a realizar análises mais profundas da saúde de obras que integram o imaginário paulistano – a mais conhecida é o Monumento às Bandeiras, no Ibirapuera. Esse trabalho a fez concluir que é necessário divulgar a geologia para a população e, assim, tentar reduzir o vandalismo contra os monumentos da capital. “O melhor jeito de conservá-los”, afirma Eliane, “é ensinar as pessoas a gostarem deles, porque só se preserva o que se conhece”. n
Projeto A mineralogia aplicada ao estudo da herança cultural (nº 2009/02519-8); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Eliane Aparecida Del Lama (IGc-USP); Investimento R$ 94.400,40 (FAPESP).
Artigo científico DEL LAMA, E.A. et al. Urban geotourism and the old centre of São Paulo City, Brazil. Geoheritage. v. 7, n. 2, p. 147-64. Jun. 2015.
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SOCIOLOGIA y
Desigualdades persistentes Embora nas cinco últimas décadas o acesso à renda e a direitos sociais tenha crescido, há disparidades que custam a ceder, como a racial
O
Brasil passou por um importante processo de redução de desigualdade entre 1960 e a primeira década deste século, com ganhos no acesso à educação, à renda e à maioria dos serviços públicos, entre eles a eletricidade e a coleta de lixo. No entanto, algumas desigualdades persistem expressivamente, como a cobertura de redes de esgotos, muito restrita às regiões mais ricas, a diferença de remuneração entre homens e mulheres e, principalmente, o acesso à renda e à educação entre brancos e não brancos (pretos e pardos). Essas informações são parte de um retrato rico e complexo das mudanças pelas quais o Brasil passou no período mencionado, feito com base nos dados dos últimos seis censos demográficos 82 z julho DE 2015
produzidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O trabalho está reunido no livro Trajetórias das desigualdades – Como o Brasil mudou nos últimos 50 anos (editora Unesp). O plural do título indica um importante aspecto do estudo: a preocupação em não restringir a análise da desigualdade à dimensão das diferenças de renda. O grupo de pesquisadores ampliou a abordagem englobando outros parâmetros de desigualdades, como as existentes entre regiões do país ou entre gêneros, desdobradas em diversos aspectos da vida social – da religião à estrutura familiar, da migração à participação política. “A desigualdade é um fenômeno multidimensional”, diz a organizadora do livro, Marta Arretche, professora de Ciência Política da Faculdade de Fi-
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Márcio Ferrari
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fotos 1 e 3 nonononono 2 nonononno 4 nonononono ilustraçãO nonoono
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losofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e diretora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) – um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP –, local onde nasceu a iniciativa do estudo desses censos. A pluralidade de dimensões pôde ser explorada graças à diversidade dos dados colhidos de 10 em 10 anos pelo IBGE, analisados agora com as tecnologias avançadas de tratamento de grandes volumes de informações. “Há nisso uma novidade importante: descrever uma combinação, no tempo, de processos que têm histórias diferentes”, diz Marta. Ela e outros 24 pesquisadores assinam 14 ensaios reunidos em cinco eixos centrais – participação política; educação e renda; políticas públicas; demografia; e mercado de trabalho. Na extensa análise dos pesquisadores, fica clara uma forte queda de desigualdades no período estudado. Segundo Marta Arretche, isso contraria a avaliação surgida nos anos 1990 de que a democratização havia falhado em seu papel de trazer as soluções sociais esperadas. “Na introdução a um clássico das ciências sociais brasileiras, Cidadania no Brasil [2001], José Murilo de Carvalho sintetizou interpretação compartilhada à época por diversos cientistas sociais”, escreveu ela. “Segundo Carvalho, o entusiasmo com a democracia revelara-se 84 z julho DE 2015
Negros são os que mais tardiamente se beneficiam de qualquer expansão da escolaridade
ingênuo. As conquistas no plano político – eleição direta em todos os níveis, liberdade de reunião e de expressão, sufrágio universal – não haviam se traduzido em resolução de problemas centrais de nossa sociedade.” O estudo da grande massa de dados dos censos mostrou, ao mesmo tempo, que fatores de diminuição de desigualdades como a democracia e o acesso à educação não são suficientes para explicar desequilíbrios persistentes como o existente entre cidadãos brancos e não brancos. “A democracia é um instrumento impor-
tante de vocalização das desigualdades, mas não uma condição suficiente para saná-las”, diz Marta. Isso tem sido comprovado nas últimas décadas também na Europa, com o esgarçamento do padrão europeu de igualdade na classe média, apesar da continuidade dos regimes democráticos, antes vista quase consensualmente como garantidora de bem-estar para a totalidade da população. acesso à educação
No Brasil, embora as políticas públicas do período democrático tenham começado logo de início a “pagar a dívida social”, os números do Censo de 1990 mostram que o auge da desigualdade de renda se deu também no primeiro governo civil, do presidente José Sarney. Já os dados do Censo de 1960 revelavam baixa desigualdade, ainda que provocada pela homogeneidade da pobreza, num país rural em que apenas 20% dos jovens abaixo dos 15 anos estudavam até quatro anos. As análises do capítulo sobre as desigualdades raciais, que se concentrou no acesso à educação de brancos e não brancos, precisaram refinar os dados em sucessivas abordagens para chegar a um quadro mais preciso da situação de pretos e pardos quanto à escolaridade – e em que sentido isso pode significar ou não oportunidades de ascensão social. “Um dos indicadores de que o ganho educa-
Reflexo na escola Mudanças nas taxas de escolarização líquida* nos diferentes níveis de ensino fonte IBGE, Censos Demográficos 1980-2010. Tabulações especiais do Centro de Estudos da Metrópole (CEM)
n Branco n Preto n Pardo n Total
ensino fundamental [7 a 14 anos] Única faixa etária cuja frequência à escola é praticamente universal (98%) em 2010 %
100 90 80 70 60 50 40 30
1980
1991
2000
2010
ensino médio [15 a 17 anos] A distância entre os grupos permanece, mesmo com as mudanças das últimas décadas %
70 60 50 40 30 20 10 0
1980
1991
2000
2010
ensino superior [18 a 24 anos] Em 2010 ainda há uma distância expressiva entre os grupos %
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70 60 50 40 30 20 10 0
1980
1991
2000
2010
* Escolarização líquida é a participação dos estudantes nos níveis de ensino considerados adequados ao seu grupo etário: alunos de 7 a 14 anos no ensino fundamental, de 15 a 17 anos no ensino médio e de 18 a 24 anos no nível superior.
cional é um fator limitado para explicar a diminuição da desigualdade racial é que, de modo constante, os negros são os que mais tardiamente se beneficiam de qualquer expansão da escolaridade”, diz Márcia Lima, professora do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP e autora do capítulo em parceria com Ian Prates, doutorando no mesmo departamento. O fenômeno que se verifica no acesso à educação é chamado tecnicamente de “saturação” e se manifesta por um mecanismo em camadas pelo qual os negros e pardos só alcançam igualdade com os brancos num determinado nível educacional quando o acesso se torna praticamente universal, o que aconteceu com o ensino fundamental na virada do século XX (Censo de 2000). Os dados relativos ao ensino médio e ao ensino superior seguem a mesma tendência. “O que ocorre é menos uma diminuição de desigualdades entre brancos e não brancos e mais uma expansão do ensino para todos os grupos, que também representa menor desigualdade”, diz a pesquisadora. Para ela, há uma tendência em desconsiderar o critério racial como fator explicativo das desigualdades a ponto de se deixar de coletar esta informação no Censo de 1970. Por isso, e pela constatação de que o acesso de negros ao ensino superior era praticamente nulo em 1960, os dados trabalhados pelos autores desse capítulo começaram pelo Censo de 1980. Segundo uma projeção feita na primeira década deste século pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), citada no artigo por Márcia Lima e Ian Prates, se for mantido o mesmo ritmo de diminuição das desigualdades raciais de renda verificado entre 2001 e 2007, seriam necessárias três décadas para que os grupos branco e não branco tivessem, em média, a mesma renda. Mesmo assim, há fatores que podem atrasar esse futuro já longínquo, como crises econômicas duradouras e aumento de desemprego. Outras análises de dados dos dois sociólogos mostram como a situação é sensível a variáveis relacionadas a prestígio social e estruturas resistentes. Quanto mais os estudos se aproximam do topo da pirâmide social, mais o fator racial se manifesta como freio da ascensão. Uma das abordagens da pesquisa adotou como critério de comparação dois grupos de formação acadêmica-profissional, um
deles composto pelas “profissões imperiais”, aquelas com as maiores médias salariais em 1980: medicina, direito e engenharias. Outro grupo reuniu as três menores médias salariais no mesmo ano: letras, história e ciências da educação. Os dados colhidos confirmaram que, além de menos negros ingressantes no primeiro conjunto, há diferenças salariais entre negros e brancos com o mesmo diploma e no mesmo grupo ocupacional. Outra abordagem revelou mais um aspecto da desigualdade racial: os filhos de pais negros com diploma superior têm menos chance de ingressar na universidade do que os filhos de brancos na mesma condição. Herança social
Márcia Lima e Ian Prates se filiam à linha de interpretação teórica que “questiona se a explicação da herança social é suficiente para dar conta das diferenças sociais entre negros e brancos no Brasil”. Modelos teóricos tradicionais consideravam a expansão de acesso à renda e à escolaridade os únicos meios necessários para terminar com a disparidade racial. Para os pesquisadores, no entanto, é preciso levar em conta a discriminação, um fator pouco mensurável por pesquisas quantitativas como as dos censos. Existem pesquisas qualitativas relevantes, segundo Márcia Lima, mas que fogem ao âmbito das informações coletadas pelos recenseamentos. Mesmo assim, segundo a socióloga, há números que apontam claramente para a discriminação, como o fato de que há menos negros empregados no setor privado do que no serviço público, cuja seleção de ingresso costuma ser feita por concurso (isto é, “às cegas”). “Embora a discriminação racial seja proibida por lei, os critérios de aprovação por meio de entrevista de emprego têm uma carga subjetiva muito maior”, observa a pesquisadora. n
Projeto CEM – Centro de Estudos da Metrópole (nº 2013-076167); Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisadora responsável Marta Arretche (FFLCH-USP); Investimento 7.124.108,20 para todo o projeto (FAPESP).
Artigo científico LIMA, M. e PRATES, I. Desigualdades raciais no Brasil: Um desafio persistente. Artigo do livro Trajetórias das desigualdades. Como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos, de Marta Arretche (org.). Editora Unesp/CEM, 2015.
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Arqueologia y
A cidade e o campo Estudos destacam a importância das áreas rurais nas antigas pólis gregas do Mediterrâneo
Marcos Pivetta
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pjt56 / wikimedia commons
P
esquisadores do Laboratório de Estudos sobre a Cidade Antiga (Labeca) do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP) estão tentando entender melhor como as pólis, as antigas cidades gregas, utilizavam todo o território sob sua esfera de influência durante os períodos Arcaico e Clássico, entre os séculos VIII e III a.C. Do ponto de vista da ocupação espacial, as pólis, uma forma inovadora e autônoma de organização social não submetida a um poder centralizado, eram divididas em duas áreas: a ásty, mais adensada, “urbana” e menor, que abrangia seu núcleo fundador, onde os cidadãos, habitantes livres do sexo masculino ali nascidos, exerciam a atividade política; e a khóra, setor rural, de maior extensão, dedicado à prática da agricultura, pecuária e extração de madeiras. As
fronteiras de uma pólis eram definidas O foco prioritário dos trabalhos do pelos limites de sua khóra. Labeca não tem sido Atenas, Esparta O papel da khóra, área disputada pe- ou Tebas, as mais conhecidas e estudalas pólis nas guerras em razão de sua das cidades da Grécia Antiga balcânica, importância estratégica como fonte de mas conjuntos de pólis situadas dentro e alimentos e expressão de poder político, fora da Hélade continental, em especial é o eixo central que articula as pesquisas as da Magna Grécia, como os helenos da equipe do Labeca nos últimos qua- denominavam o sul da Itália, da Sicília, tros anos. Para tanto, os arqueólogos do norte da África e da Argolida, região do MAE realizaram viagens de campo norte-oriental do Peloponeso. As pria sítios gregos da Europa mediterrânea meiras fundações gregas na Sicília dae pesquisa na literatura especializada. tam do século VIII a.C., época em que, “Boa parte dos trabalhos feitos desde na área balcânica, Atenas, Corinto e Aro século XIX prioriza a área ‘urbana’ gos estavam ainda em fase de construdas antigas cidades gregas como se ela ção. O processo de ocupação da Sicília representasse toda a pólis”, diz a arqueó- se estende pelos séculos VIII e VII a.C. loga Maria Beatriz Borba Os dados das fontes textuais Florenzano, coordenadora Vestígios do Templo nem sempre coincidem com do Labeca e de um projeto de Héracles (Hércules) as informações obtidas pelas temático sobre as relações em Agrigento: monumento escavações e trabalhos arda parte urbana, a ásty, entre a ásty e a khóra das an de uma antiga pólis queológicos, mas atualmente tigas cidades gregas. se considera que Naxos, Mégrega na Sicília
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Cidades em torno de um mar Antigos gregos fundaram pólis nas duas margens do Mediterrâneo, entre os Bálcãs e a península itálica
Trácia
Pitecusa
Cumas
Macedônia
Magna Grécia Tarento
Posseidônia Eleia/Vélia
Metaponto Síbaris
Grécia
Crotona
Sicília
Mégara Corinto
Caulônia Lócris Messina Régio Tauromênio Naxos
Leontinos Agrigento Casmena Gela
Catânia Mégara Hibleia Siracusa
Camarina
Cálcis
Delfos
Medma
Selinonte
Olinto
Olímpia
Tebas Atenas
Argos Egina
Paros
Naxos
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III a.C .
Cnossos
Creta Cortina
Fonte labeca/mae-usp
gara Hibleia e Siracusa surgiram entre 750 e 730 a.C. Gela foi fundada em 680 a.C. e Selinonte, criada por antigos moradores de Mégara Hibleia, possivelmente por volta de 650 a.C. No século VI a.C., os habitantes de Gela fincaram o núcleo central de outra importante pólis na ilha, Agrigento. Na península itálica, a cronologia não é muito distinta. Na década de 1990, os vestígios de Pitecusa, uma cidade grega do início do século VIII a.C., talvez a mais antiga da Magna Grécia, foram descobertos em Ísquia, uma ilha do golfo de Nápoles. 1.500 pólis, uma língua e religião
Assim as primeiras pólis erigidas na orla ocidental do Mediterrâneo foram contemporâneas à criação das principais cidades da própria Grécia continental. Seu desenvolvimento se deu de forma autônoma e em paralelo ao de Atenas e das demais pólis dos Bálcãs. Nessa época ainda não havia um modelo acabado de uso da ásty ou da khóra que pudesse ser copiado e as questões locais e regionais definiam modos específicos de apropriação do espaço. “A Grécia Antiga deve ser tratada como o mundo grego no Medi88 z julho DE 2015
Pólis do sul da Itália fundadas no século VIII a.C. são contemporâneas das principais cidades da Grécia balcânica terrâneo”, afirma Beatriz. “Ela inclui os assentamentos gregos na península balcânica, onde se encontra a Grécia atual, na Turquia, na Itália, na França, na Espanha, no norte da África e no mar Negro.” No período estudado, a área vista como grega era muito maior do que os limites atuais da Grécia. Fundada há 2.500 anos, a pólis grega de Quersoneso, por exem-
plo, estava assentada sobre parte do território da atual Sebastopol, importante porto do sul da Crimeia, região hoje em disputa entre a Ucrânia e a Rússia. Os levantamentos mais recentes indicam a existência de cerca de 1.500 pólis estabelecidas pelos antigos helenos, quase todas em áreas próximas ao litoral mediterrâneo. Embora o número de pólis conhecidas seja elevado, a maioria dos estudos históricos e arqueológicos se concentra sobre Atenas, vista durante muito tempo como o modelo do que era uma cidade grega antiga, a pólis por excelência. No entanto, essa visão, segundo os pesquisadores do Labeca, é extremamente parcial e deve ser relativizada. Como parte de um esforço para superar essa abordagem reducionista do antigo mundo grego, o laboratório do MAE criou o Nausitoo, um banco de dados com informações, fotos e plantas da ocupação do espaço urbano e rural de quase 200 pólis espalhadas pelo Mediterrâneo. “Os habitantes das pólis gregas, independentemente de sua localização geográfica, falavam uma língua comum e adotavam a mesma religião e costumes”, explica a arqueóloga Elaine Hirata, ou-
foto Giovanni Dall’Orto / wikimedia commons ilustraçãO sandro castelli
Ruínas dos séculos V e IV a.C. de Siracusa: castelo e muralha protegiam a khóra, a parte rural da antiga cidade na Sicília
tra pesquisadora do Labeca. “Havia um mundo interligado no Mediterrâneo. O banco de dados permite fazermos estudos comparativos entre as cidades.” Siracusa, a mais poderosa pólis da Sicília, é talvez o caso mais extremo des sas antigas conexões. Entre as pólis gregas, não existia uma relação assimétrica de metrópole e colônia, embora as mais fortes tivessem influência sobre as mais fracas. De acordo com as circunstâncias, alianças eram feitas para combater outras cidades gregas ou enfrentar inimigos externos, como os persas, fenícios ou cartagineses. Siracusa chegou a ser a segunda maior pólis grega no século V a.C. e derrotou Atenas em guerras. A ocupação de seu território apresentava peculiaridades em relação a outras pólis, segundo os pesquisadores do Labeca. Em torno da ásty, do núcleo central, de Atenas e da maior parte das pólis gregas, havia uma muralha de proteção. Essa é a regra geral. Em seu apogeu, no entanto, Siracusa exibia uma muralha muito maior, que englobava, inclusive, parte de sua khóra. Algumas novidades referentes à organização do espaço mais “urbano” também parecem ter chegado antes na cidade siciliana do que em outras partes do antigo mundo grego. Siracusa nasceu na ilhota de Ortígia, quase contígua à área de terra firme. As vias da localidade se distribuem em um plano ortogonal, um desenho da malha “urbana” que seria utilizado mais tarde do outro lado do Mediterrâneo. “Atenas re-
construiu a área no entorno do porto de Pireu adotando a ortogonalidade como princípio urbanístico de organização do espaço”, afirma Elaine. Campo como zona de contato
Durante muito tempo, os principais estudos históricos ou arqueológicos descreviam a khóra como uma parte menos importante das pólis gregas. Isso porque as edificações de caráter político, como as que abrigavam as assembleias e conselhos, os espaços de convívio dos cidadãos, como a ágora, e o santuário da divindade protetora situavam-se na ásty. A porção mais afastada do território de uma pólis teria importância menor, vista apenas como área de trabalho agrícola, realizado pelos escravos que cultivavam a terra para os homens livres da ásty, o centro cívico onde estava o poder. Nas últimas décadas, especialmente por conta das escavações arqueológicas realizadas fora do núcleo “urbano”, essa visão tem sido reformulada, de acordo com os pesquisadores do Labeca. A khóra aparece hoje como uma área de grande dinamismo econômico, com ocupação muito mais densa do que os textos faziam crer. Também é vista como um espaço com construções monumentais, como templos de divindades importantes que atuavam como “fronteiras simbólicas” entre uma pólis e outra. “A grande atenção que os antigos gregos davam à interação ásty-khóra está presente nos calendários dos festivais
religiosos das cidades em que estavam previstos rituais, como procissões, que conduziam a população do núcleo mais propriamente político da pólis aos santuários espalhados pela khóra”, diz Beatriz. “A pólis se autorrepresentava nesses rituais como uma unidade constituída de espaços especializados que compartilhavam os mesmos valores, cultuavam os mesmos deuses e que, de forma coesa, defenderiam o seu território.” Os confins da parte rural de uma pólis também eram uma zona de contato intenso com gregos de outras cidades e povos não gregos, sobretudo nas áreas fora da península balcânica. As interações com outras culturas promoviam mudanças recíprocas entre os grupos envolvidos e são um tema estudado pela arqueologia mediterrânea contemporânea. “Há relatos de coabitação de gregos e fenícios no oeste da Sicília e na Sardenha, área de domínio exclusivo cartaginês. Temos também evidências de muitas trocas materiais entre a Sicília fenícia e a grega”, afirma a arqueóloga Cristina Kormikiari, professora do MAE e outra pesquisadora do projeto, que estuda as cidades criadas pelos fenícios, povo dedicado ao comércio marítimo. n
Projeto A organização da khóra: a cidade grega diante de sua hinterlândia (nº 2009/54583-1); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Maria Beatriz Borba Florenzano (MAE-USP); Investimento R$ 419.833,30 e US$ 17.780,00 (FAPESP).
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memória
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O colecionador Comerciante formou acervo particular que serviu para a criação do Museu Paulista Carlos Fioravanti
1 O Museu Paulista em 1902 2 Uma caneta com ponta de marfim e cabo de madeira do Museu Sertório
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A
s raras descrições sugerem que o casarão de número 27 do Largo Municipal, atual Praça João Mendes, centro de São Paulo, era um caos. Espalhadas pelos cômodos havia milhares de peças de valor histórico ou científico: coleções de moedas e de conchas (algumas com pérolas), estatuetas de gesso, louças, espadas, um barômetro e varas de medição, instrumentos musicais, entre eles um serpentão – parente distante do trombone, feito de cobre e couro –, amostras de madeiras, cipós, fósseis e animais empalhados, incluindo um tamanduá, uma onça e algumas corujas, além de um lenço usado por dom Pedro II e uma armadura, objetos, ossos e crânios de tribos indígenas. Naquele endereço funcionava o Museu Sertório, um dos pontos culturais de destaque da ainda calma capital paulista no fim do século XIX. Em 1884, o imperador dom Pedro II esteve no museu, ainda em outro local, com a princesa Isabel, que teria comentado que não gostou do cheiro de uma anta empalhada. “O fato de ter existido um museu particular em São Paulo no fim do século XIX expressa o anseio de progresso da elite paulista”,
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fotos 1 e 2 GUILHERME GAENSLY / BIBLIOTECA NACIONAL / PAULA CARVALHO / USP 3, 4 e 5 PAULA CARVALHO / USP
diz a historiadora Heloisa Barbuy, pesquisadora do Museu Paulista. “O museu era um dos instrumentos da modernidade, como o café e a ferrovia. Havia também um aspecto prático. As coleções de animais e rochas eram muito valorizadas pelas teorias pedagógicas da época.” Abertos à visitação pública, o casarão e o acervo pertenciam ao coronel Joaquim Sertório, paulista rico do qual pouco se sabe. Depois de fazer carreira na Guarda Nacional, força paramilitar organizada durante o período regencial, ele foi vereador em São Paulo, cidade onde comprava e vendia terras, imóveis e café. Sertório morreu em 5 de dezembro de 1905, aos 78 anos, quatro anos depois de sua mulher. Sua coleção serviu como núcleo inicial para o Museu Paulista, que seria mais tarde integrado à Universidade de São Paulo (USP) e a partir do qual, décadas depois, se formou o Museu de Zoologia, também ligado à USP. Em um estudo recente, a historiadora Paula Carolina de Andrade Carvalho, do Museu Paulista, observou que a trajetória do Museu Sertório é similar à do Ashmolean Museum, aberto à visitação desde o século XVII. Iniciado por dois jardineiros reais e consolidado por Elias Ashmole, um inglês rico do século XVII, foi depois doado à Universidade de Oxford, na Inglaterra. Em 1890, quando Sertório anunciou o desejo de se desfazer do acervo, jornais de São Paulo defenderam que o governo deveria assumir o museu, visto como um patrimônio
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3 Garrafa de vidro branco contendo crucifixo de madeira 4 Barômetro aneroide, com caixa de madeira e alça e pés de metal 5 Estatueta de menino chorando
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da cidade. O político e empresário Francisco de Paula Mayrink entrou em cena, comprou o acervo e o doou ao governo paulista. A coleção de Sertório somou-se a outra e ajudou a formar o Museu do Estado. Seu diretor era o botânico sueco Alberto Loefgren, que havia sido contratado por Sertório anos antes para catalogar e organizar seu acervo. Em 1893 o Museu do Estado ganhou o nome de Museu Paulista, que desde 1894 ocupa o Palácio do Ipiranga e se tornou a principal instituição do gênero de São Paulo. O primeiro diretor do museu renovado, o zoólogo alemão Hermann von Ihering, queria construir uma instituição com foco na história natural, mas seu sucessor, o historiador Affonso Taunay, valorizou a seção de história, e o acervo de história natural perdeu importância e se dispersou. Um levantamento da historiadora Paula Carvalho, publicado em 2014 na revista Anais do Museu Paulista,
dimensiona o acervo de história natural do Museu Sertório, formado por 430 exemplares de mamíferos, 1.600 pássaros, 460 répteis e anfíbios, 292 peixes, além de insetos, moluscos, crânios, ninhos e ovos. Quando Taunay dirigia o Museu Paulista (de 1917 a 1945), boa parte desse acervo foi transferida para o Departamento de Zoologia da Secretaria de Agricultura, que iria formar o Museu de Zoologia da USP, também no bairro do Ipiranga. Muitas peças se perderam e outras se deterioraram, como a anta malcheirosa que chamou a atenção da princesa Isabel. O Museu Paulista mantém 60 peças históricas do Museu Sertório, entre elas raridades como um mapa do relevo de Bragança, no interior paulista, feito por um engenheiro alemão, e uma peça de madeira do século XVI usada durante mais de dois séculos no chamado ponto do rocio, no Largo da Sé, para marcar onde terminava a cidade e começava a área rural. n PESQUISA FAPESP 233 | 91
Arte Couer meurtri (c. 1913), de Nicota Bayeux (1876-1923). Óleo sobre tela
Exposição na Pinacoteca mostra as mulheres pioneiras no campo das artes entre os séculos XIX e XX
Maria Hirszman
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Sob o manto da invisibilidade
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protagonismo de Anita Malfatti e Tarsila do Amaral no modernismo brasileiro é reiteradamente apresentado pela história da arte como a entrada triunfal das mulheres na cena artística nacional. Basta, no entanto, um recuo no tempo para perceber que a presença feminina no campo das artes é anterior, mais rica e bem mais complexa. A exposição Mulheres artistas: as pioneiras (1880-1930), em cartaz na Pinacoteca do Estado até o dia 6 setembro, na capital paulista, mostra uma poderosa, mesmo que marginal, presença feminina no campo das artes na virada do século XIX para o XX.
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São cerca de 50 obras, entre as quais desenhos, pinturas e esculturas de 21 artistas, selecionadas em diversas coleções públicas e particulares de forma a apresentar ao público essa produção feminina. Correspondendo aos campos de estudo desenvolvidos pelas curadoras em seus projetos de pesquisa – a presença da mulher na arte brasileira do século XIX, no caso de Ana Paula Cavalcanti Simioni, e o ensino acadêmico, no caso de Elaine Dias –, a seleção contempla duas questões centrais: a incorporação dessas artistas nos mesmos sistemas de aprendizagem da tradição acadêmica e a relação dessa produção com os diversos gêneros da arte.
fotos 1 E 2 Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo / Reprodução Isabella Matheus 3 Acervo Artístico Cultural do Palácio do Governo de São Paulo
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Estudar a produção das artistas mulheres no Brasil da virada do século XIX para o XX não é tarefa fácil. Além da precariedade material e desinteresse histórico, as poucas artistas que ousaram trilhar o caminho do profissionalismo ficaram ocultas por longo tempo sob um manto de invisibilidade e foram vistas sempre como, na melhor das hipóteses, “amadoras” talentosas. As restrições à entrada de mulheres no campo profissional foram sendo pouco a pouco vencidas por pioneiras como Abigail Andrade, Julieta de França e Georgina de Albuquerque, por meio de uma combinação de esforço pessoal, talento e proximidade de figuras masculinas de grande importância no período, que acabaram lhes franqueando o caminho para o mundo profissional das artes. As mulheres só tiveram acesso à Escola Nacional de Belas Artes a partir de 1892. E o estudo de modelo vivo – essencial para o desenvolvimento de conhecimento em anatomia – era, assim, algo difícil por ser centralizado pela instituição e muitas vezes restrito em sessões separadas dos homens. Quando possível, os modelos masculinos deveriam usar um tapa-sexo, como se pode constatar em desenhos como os de Angelina Agostini, Dinorá de Azevedo e Julieta de França, reunidos na primeira sala da exposição. A segunda e última sala da exposição dedica-se a mostrar a versatilidade de gêneros trabalhados por elas, com paisagens, retratos, naturezas-mortas (sobretudo flores) e até esculturas. A principal ausência é a pintura histórica, o maior de todos os gêneros e praticamente vedado às artistas mulheres. Essa lacuna, segundo as curadoras, se deve à pouca quantidade de obras nessa modalidade realizadas por mulheres no Brasil.
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À esquerda, Autorretrato (1917), de Beatriz Pompeu de Camargo (1887-1980). Óleo sobre tela Acima, Estudo de nu (1921), de Tarsila do Amaral (1886-1973). Óleo sobre cartão
“Pretendemos mostrar o modo com que elas se apropriaram com qualidade, destreza, capacidade das linguagens dos repertórios e métodos acadêmicos”, explica Ana Paula Simioni, professora do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). “É interessante evidenciar o quanto elas correspondem de forma precisa ao que a elas foi negado durante tanto tempo”, complementa Elaine Dias, professora do curso de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo, campus de Guarulhos. Ela propõe uma aproximação entre o estudo de um homem velho, de Julieta de França, e outro de nu masculino feito por Almeida Júnior, que pertence à Pinacoteca e pode ser visto na sala contígua. Tal comparação exemplifica um dos méritos de Mulheres artistas, sua integração ao acervo do museu, propondo um recorte que vem complementar o projeto museológico e ampliar as possibilidades de leitura da coleção. “Nosso objetivo é abrir caminhos de pesquisa, olhar para o que está sendo produzido em história da arte no Brasil, adensando a narrativa contada pelo acervo da Pinacoteca”, explica Fernanda Pitta, que representa o museu na equipe curatorial. n PESQUISA FAPESP 233 | 93
resenhas
A história recente da física quântica Michel Paty
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The quantum dissidents – Rebuilding the foundations of quantum mechanics (1950-1990) Olival Freire Junior Springer 356 páginas Capa dura US$ 99 e-book US$ 69,99
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om seu livro The quantum dissidents, Olival Freire Jr. apresenta uma análise detalhada e documentada de um aspecto importante, pouco conhecido e muitas vezes mal compreendido da história relativamente recente da física quântica: o dos fundamentos desta ciência cuja importância é considerável, uma vez que diz respeito às propriedades da matéria em nível atômico, nuclear e subnuclear das partículas e campos quânticos. A questão dos fundamentos acompanhou a elaboração da mecânica quântica, que rompia com as teorias físicas clássicas e cujo formalismo matemático muito refinado parecia requerer uma interpretação (física e também filosófica) para ser compreendido e assegurar sua conexão com os dados das experiências. O sucesso da teoria quântica quanto ao conhecimento da estruturação da matéria elementar determinou logo a corrente principal (mainstream) da física quântica. A preocupação com os fundamentos parecia desde então marginal para a física, e, no melhor dos casos, relegada à filosofia. Quanto a isso, a interpretação dita da “complementaridade”, proposta por Niels Bohr, gozou de um tal consenso que passou a ser a ortodoxia nesse assunto. Tendo em vista esse pano de fundo, Olival Freire Jr. escreve a história da retomada por físicos do problema dos fundamentos da teoria quântica, de 1950 a 1990, tal como pôde acompanhá-la e fazê-la reviver para nós. Ele faz um estudo dos principais casos (trabalhando sobre mais de 20 autores com contribuições significativas), com a precisão e o rigor do historiador e do epistemólogo, em certos momentos também do sociólogo, além dos conhecimentos de físico. A leitura desse livro nos traz à memória as pessoas e seus círculos, nos quais se desenvolveram as ideias, os debates e as controvérsias desse período relativamente recente. É nesse sentido que sua exposição é uma narrativa que tenta apreender em todas as suas dimensões (intelectual, humana, social) esse trabalho de elaboração dos conhecimentos quanto aos seus conteúdos e circunstâncias (que incluem também aspectos ideológicos e políticos). Essa reconstituição muito viva está firmemente fundamentada na realidade histórica: tudo o que o autor narra é reconstituído, estabelecido a partir de uma documentação
exaustiva (publicações, arquivos, correspondências pessoais), completada por inúmeras entrevistas com importantes protagonistas. O título do livro indica claramente que o movimento de retomada das questões relativas aos fundamentos se realizou, pelo menos num primeiro tempo (digamos de 1950 a 1980), como uma contestação da ortodoxia em vigor, cujos representantes reagiram certas vezes brutalmente (chegando mesmo, em alguns casos, a causar a interrupção de carreiras científicas). Opor-se naquela época ao dogma da “monocracia de Copenhague” merece bem o qualificativo de “dissidentes”, mesmo se nem todos o foram da mesma maneira. No período seguinte, as ideias inovadoras conseguiram modificar a situação e “quebrar” o consenso: já era o sucesso do movimento de “reconstrução dos fundamentos”. Podemos acompanhar a reconstrução seguindo os trabalhos de Bohm sobre as variáveis ocultas, o potencial quântico e a mecânica bohmiana; os de Everett sobre o estado relativo; os de Bell sobre as correlações quânticas e a não localidade no experimento mental EPR de Einstein (teorema de Bell); os esclarecimentos sobre a teoria quântica de medição; a formulação teórica detalhada (teoria da decoerência) da experiência mental do gato de Schrödinger e da intricação quântica; a utilização desta última na transmissão de informação (primeiros passos da informação quântica); e todas as experiências efetivas, de extrema precisão, correspondentes (as de Aspect sobre a não localidade pela violação das desigualdades de Bell, de Haroche et al. sobre a intricação e a decoerência etc.). Em razão desses episódios quase exaustivamente descritos e analisados no livro, é possível dizer, com Olival Freire Jr., que o problema dos fundamentos “entrava no laboratório”, sem negar por isso a preservação de sua pertinência filosófica. Renovado e recuperando sua legitimidade, este juntava-se doravante à corrente principal do desenvolvimento da física quântica. Tudo isso é contado e analisado pormenorizadamente com muita competência, sempre suscitando o interesse do leitor. Michel Paty é diretor emérito de Pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e pesquisador do Laboratório Sphere (CNRS e Universidade Paris 7-Diderot).
O paraíso artificial das cidades Amália Inês Geraiges de Lemos
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eduardo cesar
Espaços fechados e cidades – Insegurança urbana e fragmentação socioespacial Maria Encarnação Beltrão Sposito e Eda Maria Góes Editora Unesp 359 páginas | R$ 78,00
livro Espaços fechados e cidades – Insegurança urbana e fragmentação socioespacial, de autoria de Maria Encarnação Beltrão Sposito e Eda Maria Góes, ambas professoras da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Presidente Prudente, baseou-se em um rico material teórico metodológico, sustentado numa visão interdisciplinar, e em um árduo trabalho de campo, realizado em três cidades do estado de São Paulo: Marília, Presidente Prudente e São Carlos. Na primeira parte do livro as autoras discorrem sobre a formação das cidades contemporâneas. Concentram-se, nos capítulos seguintes, nos problemas de insegurança e de violência na cidade, que levam a população de maior poder aquisitivo a procurar espaços de segurança que os separem da presença do outro, considerado indesejável. Esse é um fato que interessa a todas as cidades, por levar a uma forma de segregação que se materializa em fragmentação espacial. Na estrutura urbana, hoje, há um papel determinante dos conceitos e das circunstâncias da insegurança, que chamaríamos de retórica da ideologia, que os meios de informação de todos os tipos fazem questão de destacar. Uma nova dimensão da realidade, como mencionam as autoras, que resulta em um processo de várias escalas, manifestando-se em tempos e espaços diferentes. Surge uma nova organização do espaço urbano, que teve origem nos Estados Unidos, assim citado pelas autoras: “A gated community é um produto imobiliário, estandardizado, planificado, fechado, que se difundiu, espalhando-se rapidamente no mundo inteiro. Ela promete alegria de viver e segurança às classes média e alta. Barreiras, guaritas, muros, arames, estendendo-se sobre dezenas, na verdade, centenas de metros, povoam atualmente as paisagens das cidades americanas. É difícil penetrar nessas gated communities sem se identificar e sem conhecer alguém no seu interior”. O aparecimento dessas novas formas de morar, que às vezes já incluem o lazer, traz representações sociais negativas em relação aos espaços públicos: ruas e avenidas com assaltos, espalhando o medo, o perigo e a violência urbana, fatos
que se tornaram próprios das cidades nos países emergentes. Hoje a população urbana e suburbana brasileira é a grande maioria, predominando a pobreza e a exclusão social, que já é uma forma de materializar as ideologias existentes. As pesquisadoras se interessaram, por um lado, pelos modos de uso e apropriação dos espaços, e, por outro, pela percepção das pessoas em relação a esses lugares que habitam, o que foi feito por meio de depoimentos dos entrevistados. O material empírico lhes permitiu interpretar as relações entre esses novos espaços e as cidades às quais pertencem, assim como as relações com os diferentes espaços urbanos. Essas novas formas de ocupação do espaço – as gated communities –, por razões óbvias, localizam-se nas periferias das cidades, modificando o próprio conceito de periferia, até então considerada como lugar de moradia dos mais pobres, os excluídos do ponto de vista sociológico: esses desenhos urbanos produzem uma nova divisão social do espaço da cidade, uma mudança nas formas e nos conteúdos da periferia. Além do rico conteúdo teórico metodológico, é interessante a contribuição trazida pelas entrevistas realizadas nas cidades de Marília, Presidente Prudente e São Carlos, por meio das quais é possível verificar a recorrência dos motivos alegados pelos entrevistados para a escolha de morar nesses espaços fechados: nível de segurança, liberdade maior para as crianças, investimento financeiro, tranquilidade, boa vizinhança e possibilidade de aprofundar amizades. Pelas entrevistas, transparece a ideologia utilizada para vender a altos preços esses espaços fechados: o reencontro de uma espécie de paraíso, que remete a uma vida supostamente de paz e harmonia, vivida no passado nas cidades pequenas. Um paraíso artificial do qual o outro, o indesejável, o diferente, ou seja, o que está nas camadas mais pobres, é excluído; um paraíso artificial que torna evidente, no espaço, as profundas desigualdades sociais e econômicas existentes no país. Amália Inês Geraiges de Lemos é professora titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, professora orientadora do Prolam/USP e ganhadora do Prêmio Milton Santos no XV EGAL-2015.
PESQUISA FAPESP 233 | 95
Percurso da maconha no Brasil
J
História da maconha no Brasil Jean Marcel Carvalho França Três Estrelas 152 páginas | R$ 29,90
96 | julho DE 2015
ean Marcel Carvalho França nos traz no livro História da maconha no Brasil um interessante relato do percurso das concepções sobre a Cannabis sativa em nosso meio, da época colonial aos tempos atuais. Percorre cinco capítulos em um discurso simples e direto, agradável e fluente, instigando-nos a refletir sobre esse tema de extrema relevância na contemporaneidade. Uma das maiores contribuições desse tipo de obra é permitir um distanciamento crítico de um problema complexo, agregando elementos históricos e socioantropológicos, outros saberes, que ampliam assim a compreensão de um fenômeno que se configura interdisciplinar para além de uma medicalização ou psicologização excessivas da questão. Partindo de elementos históricos, a obra abarca tanto o comércio do cânhamo quanto o seu uso como substância inebriante desde a Antiguidade, guiando-nos nas sucessivas mudanças de status da maconha ao longo do tempo. Diante da malsucedida tentativa de plantação e comércio do cânhamo para produção de tecidos, velas e cordas no Brasil colonial, difunde-se o uso recreacional da droga, trazida pelos marinheiros portugueses e escravos africanos. Uma vez que os produtos do cânhamo concorriam fortemente com a indústria de derivados químicos e celulose emergente, os Estados Unidos tinham uma razão econômica para desencadear uma verdadeira cruzada contra a maconha desde no início do século XX. O viés étnico fundamentava essa batalha norte-americana ao associar o consumo de maconha a comportamentos antissociais de negros e imigrantes hispânicos. Até meados do século XX esse uso esteve igualmente no Brasil identificado sobretudo com negros, classes desfavorecidas e grupos marginais. A partir do movimento de contracultura da década de 1960, a maconha sofre um processo de “democratização” em todo o Ocidente, passando a ser consumida cada vez mais por jovens das classes privilegiadas, estudantes, intelectuais, artistas e profissionais liberais. A partir dos anos 1970, baseando-se no discurso utópico da Guerra às Drogas deflagrada nos Estados Unidos, somado ao ideário preconceituoso do “vício dos pretos” ainda presente em nossa
consciência coletiva brasileira, fundamentaram-se políticas públicas higienistas e totalitárias, que invadiram a área jurídica e a científica. Os sintomas são diversos na área jurídica: legislação ambígua, internações compulsórias, “justiça terapêutica”, hiperencarceramento progressivo baseado em critérios étnicos para diferenciar usuário e traficante; e, na área científica, internações involuntárias, abstinência forçada, uso de evidências questionáveis para fundamentar práticas afrontosas aos direitos humanos, além da obstaculização de pesquisas para investigar o potencial terapêutico de substâncias ilícitas. O autor nos lembra o quanto ainda persiste a visão reducionista e preconceituosa com relação a essa questão, balizando medidas repressivas e coercitivas para dar conta do problema a despeito da falta de evidências de sua eficácia. A partir dos anos 1990, constatada a falência da Guerra às Drogas, diversos países passaram a adotar posturas pragmáticas com relação às substancias ilícitas, como as estratégias de redução de danos ou descriminalizando seu uso e, mais recentemente, defendendo a regulação do comércio de maconha. Jean Marcel conclui ressaltando o quanto o discurso proibicionista pode ser considerado marcadamente moral e pouco pragmático, tendendo, portanto, a tornar-se progressivamente mais obsoleto, estranho e excepcional. Antes de finalizar, destaca a ponderação de Fernando Henrique Cardoso como membro da Comissão Global sobre Drogas: “Pensar em um mundo livre de drogas é uma coisa utópica, não houve até hoje na história. Agora, é possível reduzir o dano que a droga causa às pessoas e à própria sociedade”. Emerge assim a necessidade de agir diante do caos gerado pelo proibicionismo. Dessa forma, documentários como Quebrando o tabu (2011), de Fernando Grostein Andrade, e Cortina de fumaça (2010), de Rodrigo Mac Niven, podem ser vistos como testemunhos de uma transformação na nossa consciência coletiva, refletindo uma mudança de paradigma que, embora tardia, se faz necessária para tratarmos de um tema tão delicado de forma aprofundada. Dartiu Xavier da Silveira é médico e professor livre-docente do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo.
eduardo cesar
Dartiu Xavier da Silveira
carreiras aceitar fazer carreira em uma grande empresa. “Eles procuram traçar uma trajetória que os satisfaça e, agora, tentam outras opções em startups, em empreendimentos sustentáveis ou no Terceiro Setor.” Nesses novos tempos, nada mais natural que as faculdades criem disciplinas voltadas para o empreendedorismo. “Nas aulas, os alunos desenvolvem um produto físico, como, por exemplo, um sistema de irrigação inovador e estruturam o modelo de negócio, na forma de uma startup”, diz Zancul. Trabalhando em conjunto, os alunos de engenharia podem pensar o produto como negócio e os de administração têm a possibilidade de analisar um Empreendedorismo banco de patentes, por exemplo, e transformar determinada tecnologia em produto comercial. “Essa experiência é fundamental FGV e Poli-USP oferecem disciplina conjunta na graduação para o empreendedorismo, além de para futuros engenheiros e administradores permitir que os alunos convivam com culturas diferentes antes do Departamento de Engenharia A constatação de que muitos de saírem da faculdade”, diz alunos de graduação querem abrir de Produção da Poli, que junto Andreassi. Na Poli, os alunos têm com André Leme Fleury, seu próprio negócio levou a à disposição o InovaLab@Poli, também da Poli, Tales Andreassi, Fundação Getulio Vargas (FGV) um laboratório que serve de vice-diretor da Escola de e a Escola Politécnica (Poli) da infraestrutura para a disciplina com Administração de Empresas Universidade de São Paulo à (Eaesp) da FGV e Adriana Ventura, oficinas mecânica e eletrônica, além criação de uma disciplina voltada da salas de projetos, com recursos também da FGV-Eaesp, para o empreendedorismo. para reuniões e impressoras 3D. elaboraram o projeto e ministram Após um semestre experimental, Na FGV, os alunos de as aulas. O programa trata de um convênio entre as duas instituições oficializou a disciplina estratégias, marketing, prototipagem administração têm também a opção de fazer um curso semelhante com optativa “Criação de negócios e uma ferramenta de gestão colegas de engenharia do Instituto tecnológicos”, oferecida durante chamada método Canvas – usado um semestre conjuntamente nas na validação da ideia de negócio –, Tecnológico de Aeronáutica (ITA). “São cursos de uma semana, de duas faculdades. Professores e que serve para pensar startups, forma intensiva, em que os alunos alunos das duas instituições verificar clientes potenciais, de administração ficam hospedados participam das aulas, ministradas fornecedores, estabelecer fluxos no ITA, em São José dos Campos, e tanto na FGV quanto na Poli. de receita e despesa. “No curso experimental foram “Dou aulas desde 1990 e naquela têm aulas conjuntas. Fizemos um em 2014 e o próximo será em julho 20 alunos de engenharia e 20 de época a ambição dos alunos era deste ano. Da próxima vez vamos administração, proporção que ingressar em uma grande tentar trazer os alunos do ITA para deve continuar. O objetivo em organização e aos poucos ir a FGV”, diz Tales. Tanto a disciplina uma disciplina única é passar uma subindo na empresa”, lembra GV-Poli (semestral) quanto a visão abrangente sobre criação Andreassi. De acordo com ele, GV-ITA (semanal) são oferecidas de tecnologia e modelo de a postura mudou e cada vez mais uma vez ao ano. n Marcos de Oliveira negócio”, diz Eduardo Zancul, alunos pensam duas vezes em
ilustraçãO daniel bueno
Parceria nas aulas de negócios
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carreiras léo ramos
Inclusão cultural
Barreiras transpostas Ana Amália Barbosa, mesmo sem andar e falar, cursou o doutorado, lançou livro sobre a sua experiência com crianças portadoras de paralisia cerebral e faz pós-doutorado O olhar, um leve movimento de queixo e um programa de computador são os meios utilizados por Ana Amália Tavares Bastos Barbosa, de 49 anos, artista plástica e educadora de arte, para se comunicar. Desde que sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) de tronco em 2002, ela ficou praticamente sem movimento no corpo e sem fala. Sua memória e cognição, no entanto, continuam preservadas. Assim como a necessidade de dar vazão aos seus sentimentos e pensamentos, como mostram as notícias postadas em seu blog atualizado semanalmente, as pinturas feitas em papel e tinta com o auxílio de um suporte plástico e as aulas que dá a crianças com paralisia cerebral da Associação Nosso Sonho, no bairro de Perdizes, em São Paulo. É o mesmo bairro onde mora com a mãe, Ana Mae Barbosa, professora aposentada da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), e a filha Ana Lia, de 15 anos, em um apartamento repleto de livros e pinturas feitas antes e depois do AVC. Ana Amália formou-se em artes plásticas pela Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) em 1991 e fez cursos no exterior, como gravura e design na Universidade Columbia, em Nova York, e arte japonesa na Universidade do Texas. Deu aulas de artes visuais na Universidade São Judas Tadeu e inglês no Centro Britânico, escola de idiomas. A junção desses dois temas, o ensino da arte e do inglês, foi o tema da 98 | julho DE 2015
Ana Amália: comunicação via software especial e por meio de um cartão com letras e números
sua dissertação de mestrado, defendida na ECA. No dia em que iria apresentar o estudo sofreu o AVC, que a deixou hospitalizada durante quatro meses. Para retomar a carreira como artista plástica e educadora ela teve que reaprender a se comunicar. O primeiro instrumento a ser utilizado, depois de adaptações, foi um cartão com linhas, letras e números, que um acompanhante lê em voz alta para que ela possa manifestar seus desejos e dar sequência a conversas por meio de piscadas de olho. Depois veio um programa de computador desenvolvido pelo Hospital Sarah Kubitschek, em Brasília, especialmente para ela. O programa tem um teclado virtual com varredura, movido por um sensor que fica logo abaixo do queixo. Foi com esse instrumento que ela respondeu aos
questionamentos da banca que avaliou a sua tese de doutorado no Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP, em maio de 2012. Apesar de todas as dificuldades enfrentadas, Ana Amália diz que nunca desistiu dos seus projetos por ter feito uma promessa ao pai, João Alexandre Costa Barbosa, escritor e professor de literatura da USP, antes de ele morrer, em 2006. “Prometi ao meu pai que nunca iria parar de estudar”, diz com piscadas rápidas. Na pesquisa de doutorado, feito na ECA, ela analisa o trabalho de artes visuais desenvolvido entre 2008 e 2010 com crianças portadoras de paralisia cerebral da Associação Nosso Sonho. Durante o seu estudo ela trabalhou a relação do corpo no espaço e no desenvolvimento da percepção de sentidos, como visão, audição, sensibilidade da pele, cheiro e sabor. “Antes, as crianças não se deixavam tocar, agora dominam os seus corpos”, escreve Ana Amália com o queixo no sensor. A visita a espaços culturais, como o Instituto Tomie Ohtake, e a exposições fez parte do seu projeto de inclusão cultural dessas crianças. A pesquisa feita para a sua tese de doutorado está contada no livro Além do corpo, uma experiência em Arte/Educação (Cortez Editora), lançado em 9 de junho. Atualmente ela estuda a criação de uma interface para tetraplégicos esculpirem usando computador e impressora 3D no seu pós-doutorado na Universidade Estadual Paulista (Unesp). n Dinorah Ereno
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