Segredos do DNA

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novembro de 2015  www.revistapesquisa.fapesp.br

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Pesquisa FAPESP novembro de 2015

n.237 R$ 9,50

O dinamismo de metrópoles que abrigam universidades de pesquisa Novos testes tentam identificar tumores em estágio inicial e orientar o seu tratamento Recuperação da Mata Atlântica pode contribuir para o bem-estar social Projeto muda métodos e melhora índice de alfabetização Empresa paulista lança ônibus elétrico

n.237

Profissionais mal treinados aumentam risco de família vetar doação de órgãos

Segredos do DNA Brasileiros descobrem mutação que mitiga distrofia muscular em cães e genes humanos de doenças raras


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fotolab

Propulsão na bancada Em dezenas de testes, o engenheiro aeronáutico Rene Nardi só conseguiu registrar uma vez, nesta foto, o comportamento completo do líquido que sai de uma injetora ciclone. Muito usado em foguetes e outros veículos a jato, esse aparelho faz o líquido girar dentro de uma câmara e depois o lança por um orifício, formando um cone oco. Quanto mais o cone se expande, mais se afina a folha de líquido, até rasgar e se esfumaçar em gotículas. São elas, ao evaporar rapidamente, que permitem a combustão. Nardi aperfeiçoou um modelo de cálculo que leva em conta parâmetros como o ângulo do spray (medido nas fotografias) para caracterizar o funcionamento dessa injetora e garantir seu desempenho.

Foto enviada por Rene Nardi, doutorando do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) sob orientação de Amilcar Porto Pimenta Se você tiver uma imagem relacionada à sua pesquisa, envie para imagempesquisa@fapesp.br, com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.

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NOVEMbro  237

60 78 CAPA 14 Descobertos o gene que compensa a distrofia muscular e outros associados a doenças raras ENTREVISTA 22 Jeter Bertoletti Museólogo gaúcho fala do desafio de conciliar pesquisa com divulgação científica

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA 28 Redes de conhecimento Pesquisador mapeia como grandes universidades influenciam a economia e o ambiente das regiões urbanas onde estão instaladas 33 Genômica Cepids criam plataforma de dados genéticos em busca de terapias personalizadas 34 Políticas públicas Profissionais da saúde mal treinados aumentam risco de recusa de doação de órgãos 38 Mudanças climáticas Código Florestal deve ajudar o país a reduzir gases estufa, mas metas para 2030 dependem de modernização das indústrias, segundo relatório 42 Prêmio Nobel Doenças parasitárias e reparo de DNA são alguns dos temas reconhecidos este ano; economista escocês, escritora bielorrussa e negociadores da paz na Tunísia são laureados ilustração da capa  sandro castelli

45 Nobel de Física premia a confirmação de que partículas fantasmas trocam de identidade e têm massa

74 Transporte Empresa brasileira lança ônibus elétrico híbrido menos poluente

CIÊNCIA

HUMANIDADES

46 Saúde Médicos monitoram resistência do parasita da malária aos remédios em uso, enquanto bioquímicos buscam alternativas

78 Educação Projeto realizado durante quatro anos em três escolas promove melhoras e detecta falhas do ensino público

50 Neurologia Mesmo sem alterações patológicas, envelhecimento reorganiza o funcionamento da mente

84 Sociedade Modelo estatístico indica que construção de usinas hidrelétricas não traz benefícios locais

52 Física Grupos no Brasil e no exterior usam novas métricas para identificar tendências no desenvolvimento das cidades

86 História Entre os séculos XVII e XVIII, jesuítas de missões da Amazônia espanhola tiveram que lidar com versões indígenas do catolicismo

56 Ecologia Estudos apontam caminhos para recuperar a Mata Atlântica e contribuir para o bem-estar social na região 60 Astronomia Equipe internacional mapeia a energia liberada nas regiões instáveis do Sol

TECNOLOGIA 64 Biotecnologia Nova geração de testes tenta identificar tumores mais cedo e avaliar a eficácia do tratamento 70 Empreendedorismo Pesquisadores de pequenas empresas voltam de Londres e de Oxford com novas ideias para seus projetos no plano comercial

seçÕes 3 Fotolab 5 Cartas 6 On-line 7 Carta do editor 8 Dados e projetos 9 Boas práticas 10 Estratégias 12 Tecnociência 90 Memória 92 Arte 94 Resenhas 96 Carreiras 98 Classificados

56


cartas

cartas@fapesp.br

Revista

cartas@fapesp.br ou para a rua

Gostaria de partilhar uma experiência para valorizar Pesquisa FAPESP. Estava em visita ao meu pai em um fim de semana quando ele me disse: “Sempre que vou à clínica, leio uma revista muito boa”. E me mostrou a capa de Pesquisa FAPESP. Ele disse que as reportagens são muito interessantes, a linguagem boa de acompanhar e comentou alguns textos. Meu pai pediu a revista para a secretária da clínica de modo a ler com calma em casa. José Maria Castelucci é o nome dele, um homem muito lúcido, de 79 anos, que adora novos conhecimentos. Foi ele quem me estimulou para a vida acadêmica! Parabéns à revista, que cumpre seu papel de divulgação da ciência.

Joaquim Antunes, 727 – 10º andar,

Patricia Castelucci

CEP 05415-012, São Paulo, SP

Instituto de Ciências Biomédicas III/USP

CONTATOS Site  No endereço eletrônico www. revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP, na íntegra, em português, inglês e espanhol. Também estão disponíveis edições internacionais da revista em inglês, francês e espanhol Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação pelo e-mail

São Paulo, SP

Assinaturas, renovação e mudança de endereço Envie um e-mail para assinaturaspesquisa@fapesp.br ou ligue para (11) 3087-4237, de segunda a sexta, das 9h às 19h Para anunciar Contate Júlio César Ferreira na Mídia Office, pelo e-mail julinho@midiaoffice.com.br, ou ligue para (11) 99222-4497 Classificados  Ligue para (11) 3087-4212 ou escreva para publicidade@fapesp.br Edições anteriores Preço atual de capa acrescido do custo de postagem. Peça pelo e-mail clair@fapesp.br Licenciamento de conteúdo

No ambiente de perplexidade e insegurança em que vivemos, receber Pesquisa FAPESP a cada mês renova esperanças. Ler suas reportagens, sejam as dedicadas às ciências exatas ou às ciên­cias humanas, é receber conhecimento e tranquilidade. Tranquilidade sim, porque é alentador saber que uma legião de pesquisadores trabalha com tenacidade e rigor para o aprimoramento do conhecimento científico. Por mais de uma década de leitura, seria difícil citar quais os artigos que mais me cativaram. Nos inspiradores estudos de variada natureza, como, entre outros, os dedicados a astrofísica, biologia, biotecnologia, botânica, ornitologia, artes, história, memória, enfim, até mesmo em áreas nas quais laboro (música, antropologia, etnomusicologia), os textos são corretos na forma, no conteúdo e mostram esmero no projeto gráfico. Instituições como a FAPESP tornam o Brasil melhor. Kilza Setti Academia Brasileira de Música Centro de Trabalho Indigenista São Paulo, SP

Para adquirir os direitos de reprodução de textos e imagens de Pesquisa FAPESP ligue para (11) 3087-4212 ou envie e-mail para mpiliadis@fapesp.br

Matemática do DNA

Interessante a reportagem “A estrutura matemática do DNA” (edição 235), que apresenta o trabalho de uma equipe de

cientistas brasileiros que demonstrou, por meio de equações, que o código genético é similar ao funcionamento do sistema digital. Sinceros parabéns. Francisco J. B. Sá Salvador, BA

Reportagens de setembro

A edição de setembro (nº 235) literalmente jogou luz sobre três excelentes assuntos. Em relação à produção comercial do etanol de segunda geração e os desafios da empresa GranBio para consolidar a posição do Brasil na área nos últimos 10 anos, vemos não apenas nosso protagonismo, mas o fato de que somente nós é que podemos vencer os desafios que essa área demanda. Na leitura do texto “H2O no nanotubo” foi inevitável pensar na poliágua, engodo ou engano de décadas, junto com outros mais recentes, como a fusão a frio. Ficando clara a seriedade do trabalho dos pesquisadores da UFABC, uma sugestão para a revista é publicar um resgate histórico dessas fraudes científicas. Por fim, fiquei aliviado com a reportagem “Água reciclada”, que mostrou que há desenvolvimento e tecnologia brasileira para o reúso da água. Adilson Roberto Gonçalves Campinas, SP

Vídeo

Excelente o vídeo “Perigo na vizinhança”. Os pesquisadores brasileiros mais uma vez mostram a boa qualidade da ciência nacional. Claudio Carvalho Via Facebook

Correção

Na entrevista “Memórias de um ex-combatente” (edição 236), onde está escrito imigrar leia-se emigrar.

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar – CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

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Galeria de imagens

w w w . r e v i s ta p e s q u i s a . f a p e s p. b r

A mais vista do mês no Facebook política c&T

Com ajuda da ciência

97.813 visualizações 2.487 curtidas 405 compartilhamentos entre 19 e 26 de outubro no perfil de Pesquisa FAPESP

Exclusivo no site x Um estudo publicado na revista Frontiers of Molecular Neuroscience sugere que o estresse psicológico sofrido por crianças com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) pode acelerar o processo de envelhecimento celular. No estudo, os

Rádio Médica Lavínia Schüler-Faccini fala sobre reaproximação de famílias separadas pela hanseníase

Confira o registro fotográfico de Eduardo Cesar sobre os imigrantes e refugiados que chegaram a São Paulo nos últimos anos

pesquisadores analisaram o tamanho dos telômeros — estruturas que impedem que os cromossomos se

Vídeos do mês

youtube.com/user/PesquisaFAPESP

deteriorem ou se fundam com outros cromossomos — de 61 crianças com idade entre 6 e 16 anos com TDAH. Verificaram que os telômeros de todas as crianças eram mais curtos que o normal para a idade delas.

x Uma substância desenvolvida por Assista ao vídeo:

pesquisadores brasileiros radicados no Centro de Câncer da Universidade do Novo México, nos Estados

Grupo brasileiro estima risco de colisões de asteroides com a Terra

Unidos, poderá contribuir para o desenvolvimento de um tratamento menos invasivo de alguns problemas oculares que causam perda de visão, como as retinopatias da prematuridade e do diabetes, e a degeneração macular relacionada à idade. Batizada como Vasotide, a novidade é a forma modificada de uma molécula cujo potencial terapêutico foi demonstrado em 2010. A grande vantagem é que pode ser usada como um colírio, segundo mostra o artigo publicado na revista Science Translational Medicine. 6 | novembro DE 2015

Assista ao vídeo:

Tecnologias para irrigação ajudam a reduzir desperdício de água

foto  PETE SOUZA / CASA BRANCA

on-line


carta do editor fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo José Goldemberg Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior Carmino Antonio de Souza, Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, João Fernando Gomes de Oliveira, joão grandino rodas, José Goldemberg, Maria José Soares Mendes Giannini, Marilza Vieira Cunha Rudge, José de Souza Martins, Pedro Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski, Suely Vilela Sampaio Conselho Técnico-Administrativo José Arana Varela Diretor-presidente Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico Joaquim J. de Camargo Engler Diretor Administrativo

issn 1519-8774

Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Anamaria Aranha Camargo, Carlos Eduardo Negrão, Fabio Kon, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Joaquim J. de Camargo Engler, José Arana Varela, José Goldemberg, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Lucio Angnes, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner Caradori do Amaral, Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos diretora de redação Alexandra Ozorio de Almeida editor-chefe Neldson Marcolin Editores Fabrício Marques (Política), Márcio Ferrari (Humanidades), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência); Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores espe­ciais); Bruno de Pierro (Editor-assistente) revisão Daniel Bonomo, Margô Negro arte Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos (Editora de infografia), Alvaro Felippe Jr., Júlia Cherem Rodrigues e Maria Cecilia Felli (Assistentes) fotógrafos Eduardo Cesar, Léo Ramos Mídias eletrônicas Fabrício Marques (Coordenador) Internet Pesquisa FAPESP online Maria Guimarães (Editora) Rodrigo de Oliveira Andrade (Repórter) Renata Oliveira do Prado (Mídias sociais) Rádio Pesquisa Brasil Biancamaria Binazzi (Produtora) Colaboradores Daniel Bueno, Evanildo da Silveira, Flávia Fontes Oliveira, Igor Zolnerkevic, Jayne Oliveira, Maurício Puls, Oscar Calavia Sáez, Ricardo Aguiar, Ricardo Bitun, Sandro Castelli, Valter Rodrigues, Veridiana Scarpelli, Yuri Vasconcelos É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização Para falar com a redação (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br Para anunciar Midia Office - Júlio César Ferreira (11) 99222-4497 julinho@midiaoffice.com.br Classificados: (11) 3087-4212 publicidade@fapesp.br Para assinar (11) 3087-4237 assinaturaspesquisa@fapesp.br Tiragem 39.600 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo

O fim de um mistério

N

a edição de dezembro de 2010, Pesquisa FAPESP publicou reportagem cujo título era “O mistério de Ringo e Suflair”. Tratava-se de dois cães golden retriever, respectivamente pai e filhote, que vinham sendo estudados por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP). Embora os animais não produzissem distrofina, proteína essencial para a integridade dos músculos, eles não pareciam ser afetados por isso. O fato intrigava os pesquisadores, que queriam saber o que tornava os cachorros praticamente imunes ao problema. Essa informação talvez pudesse ajudar a desenvolver novos tratamentos para pessoas incapazes de produzir distrofina. Cinco anos e muita pesquisa depois, a equipe da USP – trabalhando com pesquisadores de dois centros nos Estados Unidos – achou um gene, o Jagged1, localizado no cromossomo 24 dos cachorros, cuja expressão (ativação) protegia os animais (página 14). Mistério resolvido. Para transformar essa descoberta em uma terapia que ajude as pessoas com distrofias musculares, como as de Duchenne e de Becker, é preciso percorrer um longo caminho. Novos tratamentos só serão possíveis se os pesquisadores conseguirem uma maior ativação do Jagged1 – é a anomalia nesse gene que compensa o efeito da ausência de distrofina. Uma importante parte da questão está resolvida. Agora serão necessários mais anos de pesquisa para obter resultados concretos para seres humanos. A descoberta sobre a distrofia certamente será útil para a medicina de precisão, um conceito que agrega informações clínicas e moleculares sobre doenças para obter tratamentos específicos para cada paciente. Em São Paulo há hoje várias iniciativas de impacto nessa direção. A mais recente delas é uma plataforma comum de dados genéticos, a Brazilian Initiative on Precision Medicine (BIPMed), que reunirá centros de pesquisa

de São Paulo com o objetivo de estimular a criação de terapias a partir da genômica. O esforço da plataforma paulista reúne, por enquanto, 5 dos 17 Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP (página 33). Outro trabalho de destaque nessa área é a nova geração de testes para detecção de câncer no estágio inicial da doença, que poderão auxiliar na avaliação da eficácia do tratamento (página 64). O investimento no conhecimento parece ser um daqueles ativos que sempre dão resultado em todas as áreas, mesmo quando demoram para aparecer. Em junho, um estudo apresentado pelo reitor da Universidade de Toronto (Canadá), Méric Gertler, reforçou essa ideia (página 28). Ele mostrou que a Região Metropolitana de São Paulo, incluindo Campinas e São José dos Campos, é um dos aglomerados urbanos em que o conhecimento gerado pelas universidades mais cresceu entre 1996 e 2013, ficando atrás apenas das megalópoles de Xangai e Pequim, na China, e de Seul, na Coreia do Sul. De acordo com Gertler, as universidades multiplicaram as interações com empresas e organizações da sociedade provocando modificações altamente positivas na economia e no ambiente das cidades. Gertler analisou a produção científica das últimas duas décadas e criou dois rankings. No primeiro, São Paulo teve um crescimento percentual de 400% na produção de ciência e aparece em 4º lugar, atrás apenas dos asiáticos. O segundo ranking é baseado no volume de publicações científicas de instituições entre 2011 e 2013 e coloca o aglomerado paulista na 32ª posição. O trabalho confirma o axioma de que universidades de pesquisa são catalisadoras de dinamismo para as regiões onde estão instaladas e, com isso, impulsionam a inovação, a criatividade e, por conseguinte, a economia. Boa leitura. Neldson Marcolin | editor-chefe PESQUISA FAPESP 237 | 7


Dados e projetos Temáticos e Jovens Pesquisadores recentes Projetos contratados em setembro e outubro de 2015 temáticos  Sequenciamento completo do exoma, paired-end RNA e genoma: novos insights sobre a natureza genética do câncer de tiroide na idade adulta e na faixa etária pediátrica e aplicações na prática clínica Pesquisadora responsável: Janete Maria Cerutti Instituição: EPM/Unifesp Processo: 2014/06570-6 Vigência: 01/10/2015 a 30/09/2019

 Sistemas de liberação sustentada e direcionada de fármacos para o tecido epitelial Pesquisadora responsável: Renata Fonseca Vianna Lopez Instituição: FCFRP/USP Processo: 2014/22451-7 Vigência: 01/09/2015 a 31/08/2020  Nitrito e nitrato de sódio: dos mecanismos à terapêutica anti-hipertensiva Pesquisador responsável: José Eduardo Tanus dos Santos Instituição: FMRP/USP Processo: 2014/23946-0 Vigência: 01/10/2015 a 30/09/2019  Filogenia da hiperdiversa ordem Characiformes (Teleostei: Ostariophysi) utilizando elementos ultraconservados Pesquisador responsável: Claudio de Oliveira Instituição: IB de Botucatu/Unesp Processo: 2014/26508-3 Vigência: 01/10/2015 a 30/09/2019

 Religião, direito e secularismo. A reconfiguração do repertório cívico no Brasil contemporâneo Pesquisadora responsável: Paula Montero Instituição: Cebrap Processo: 2015/02497-5 Vigência: 01/09/2015 a 31/08/2020  Estudo funcional de componentes do exossomo e do spliceossomo de Saccharomyces cerevisiae e de seu papel no controle pós-transcricional de expressão gênica Pesquisadora responsável: Carla Columbano de Oliveira Instituição: IQ/USP Processo: 2015/06477-9 Vigência: 01/01/2016 a 31/12/2019  Estratégias biotecnológicas para o controle do HLB mediante transgenia Pesquisador responsável: Leandro Antonio Pena Garcia Instituição: Fundecitrus Processo: 2015/07011-3 Vigência: 01/09/2015 a 31/08/2020  Mecanismos moleculares envolvidos na disfunção e morte de células beta pancreáticas no diabetes mellitus: estratégias para a inibição desses processos e para a recuperação da massa insular Pesquisador responsável: Antonio Carlos Boschero Instituição: IB/Unicamp Processo: 2015/12611-0 Vigência: 01/01/2016 a 31/12/2019

 Caracterização do envolvimento do sensor de nutrientes mTOR no desenvolvimento de doenças metabólicas crônicas associadas à obesidade Pesquisador responsável: William Tadeu Lara Festuccia Instituição: ICB/USP Processo: 2015/19530-5 Vigência: 01/11/2015 a 31/10/2020

JOVENS PESQUISADORES x Criação do biobanco de tecidos oculares e investigação de novos mecanismos fisiopatológicos relacionados a doenças oculares do segmento anterior Pesquisadora responsável: Monica de Cassia Alves de Paula Instituição: FCM/Unicamp Processo: 2014/19138-5 Vigência: 01/09/2015 a 31/08/2019

 ASTRID – Accessibility, social justice and transport emission impacts of transit-oriented development strategies (FAPESP-ESRC-NWO) Pesquisadora responsável: Maria de Fátima Andrade Instituição: IAG/USP Processo: 2015/50128-9 Vigência: 01/09/2015 a 31/08/2020

x Avaliação da independência local e uso de vinhetas-âncora na Escala de Satisfação de Vida Pesquisador responsável: Cristian Zanon Instituição: USF – Campus Itatiba Processo: 2015/05741-4 Vigência: 01/10/2015 a 30/09/2019

 Designing and policy implementation for encouraging cycling and walking trips (FAPESP-ESRC-NWO) Pesquisador responsável: Antonio Nelson Rodrigues da Silva Instituição: EESC/USP Processo: 2015/50129-5 Vigência: 01/09/2015 a 31/08/2018  Smart Governance of Sustainable Cities (Smartgov) (FAPESP-ESRC-NWO) Pesquisadora responsável: Maria Alexandra Viegas Cortez da Cunha Instituição: FGV/EAESP Processo: 2015/50133-2 Vigência: 01/09/2015 a 31/08/2019

x Investigação do metabolismo de nanomaterias absorvidos por plantas empregando-se espectroscopias vibracional e de raios X Pesquisador responsável: Hudson Wallace Pereira de Carvalho Instituição: Cena/USP Processo: 2015/05942-0 Vigência: 01/08/2015 a 31/07/2019 x Caracterização biofísica da hemoproteína do anelídeo Amythas gracilis e seu potencial uso como biossensor de contaminação ambiental Pesquisadora responsável: Patricia Soares Santiago Instituição: Unesp – Campus Registro Processo: 2015/11447-1 Vigência: 01/10/2015 a 30/09/2019

Colaborações internacionais em publicações por grandes áreas Porcentagem por área do conhecimento – média mundial, Brasil, universidades paulistas e países escolhidos (2009-2013) 65% 60% 55% 50% 45% 40% 35% 30% 25% 20% 15% 10% 5% 0%

Todas as áreas

Ciências da natureza/Exatas

Engenharia e tecnologia

Ciências médicas e da saúde

Ciências da agricultura

Ciências sociais

Humanidades

n Unesp    n Média mundial   n Unicamp    n Brasil  n Coreia do Sul    n USP  n Espanha  n Argentina  n Reino Unido As áreas do conhecimento seguem a classificação da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE  Fontes: InCites, Thomson Reuters, atualização março 2015

8 | novembro DE 2015


Boas práticas

Wikimedia / Kemina

Registros inventados Um artigo científico sobre efeitos de uma droga contra hipertensão foi retratado no final de setembro pelo The Journal of the American Medical Association (Jama). O paper, que havia sido publicado em 2013 e recebera 35 citações, sustentava que o Ramipril, medicamento usado para o controle da pressão arterial, teria um efeito benéfico suplementar: ajudaria pacientes com problemas circulatórios a caminhar sentindo menos dor. Os pilares que amparavam essa conclusão desmoronaram quando a autora principal do artigo, a australiana Anna Ahimastos, admitiu que parte dos dados do artigo foi inventada. O trabalho se baseou num ensaio clínico de três anos com 212 indivíduos, com média de 65 anos de idade, recrutados em Melbourne, Townsville e Brisbane, cidades da Austrália. Anna confessou que muitos dos pacientes de Melbourne jamais existiram e seus registros foram fabricados. Os resultados favoráveis ao Ramipril apresentados no artigo, como disse a pesquisadora a uma comissão de investigação, foram obtidos num ensaio clínico menor, feito posteriormente. Anna Ahimastos trabalhava no Baker IDI Heart and Diabetes Institute, em Melbourne, e foi demitida quando o escândalo eclodiu. A investigação teve início em junho, quando um pesquisador da instituição notou inconsistências nos dados de pesquisa que abasteceram o artigo. De acordo com a investigação interna, nenhum outro coautor sabia do problema. A chefe do laboratório onde a fraude aconteceu, Bronwyn Kingwell, disse que Anna é uma Ph. D com 10 anos de experiência, recebeu treinamento em boas práticas clínicas e estava qualificada

para o trabalho. “Trabalhamos em equipe, num ambiente de alta confiança no qual cada indivíduo assume responsabilidades sérias. Infelizmente, a pessoa que quebrou essa confiança era responsável pela coleta de dados”, afirmou Kingwell, que assinou 16 artigos com a ex-colega, entre os quais o do Jama. O instituto, embora afirme que se trata de um caso isolado, está reavaliando seus processos, principalmente os relacionados à forma como seus pesquisadores coletam e apresentam dados de pesquisa, para evitar que o incidente se repita. Outros papers publicados por Anna Ahimastos estão sendo avaliados e pelo menos um deles, publicado na revista Circulation Research, também foi retratado. Para Virginia Barbour, presidente do Committee on Publication Ethics, fórum de editores científicos que oferece orientações sobre boas práticas

Baker IDI Institute em Melbourne: pacientes fictícios em ensaio clínico

científicas, casos como esse podem ser um efeito da exacerbação da cultura do “publique ou pereça”. “Sentimos que um dos problemas é a pressão para publicar, e publicar em revistas de alto impacto”, disse à rede de televisão ABC. Ela citou um estudo feito no Reino Unido em 2014 no qual pesquisadores disseram que, para atender altas expectativas, eventualmente cometem imprudências e deslizes éticos.

Revista sobre integridade O primeiro periódico internacional totalmente dedicado à integridade na pesquisa deverá ser lançado até o início de 2016. A revista Research Integrity & Peer Review (www.researchintegrityjournal. com) é uma aposta da plataforma de revistas científicas em acesso aberto BioMed Central, do Reino Unido, para atender uma demanda de pesquisadores que se dedicam ao estudo de temas vinculados à integridade científica, como boas práticas de pesquisa e medidas para detectar e coibir abusos como fabricação de dados, falsificação e plágio. “Hoje não há revistas científicas tratando exclusivamente do processo de

revisão por pares ou de integridade científica. Esperamos que o periódico incentive não só pesquisadores, mas também agências de apoio a investir mais nessa área de investigação no campo da ética”, disse Elizabeth Wager, uma das editoras da nova publicação. Segundo ela, alguns artigos sobre integridade científica são publicados em periódicos especializados em ética e não alcançam pesquisadores de outras áreas, como ciências médicas. “Sentimos que há um interesse crescente pelo tema. É uma oportunidade de estabelecermos a integridade científica como um campo de pesquisa”, disse. PESQUISA FAPESP 237 | 9


Estratégias Butantan cria biotério de zebrafish Foi inaugurado no

e Difusão (Cepid)

programa Cepid e que

Instituto Butantan, em

financiados pela FAPESP.

daria lugar ao CeTICS.

São Paulo, um biotério

“Nossa ideia é de que

“O zebrafish tem sido

com capacidade para criar

o local possa abrigar

um dos modelos de

até 3 mil peixes adultos do

estudos do CeTICS e de

genética mais explorados

tipo paulistinha, também

diversos outros grupos”,

no mundo há mais de

conhecido como zebrafish.

disse Monica Lopes-

duas décadas e aqui

A espécie tem sido

Ferreira, coordenadora

no Brasil não há ainda

cada vez mais usada

do biotério de zebrafish.

laboratórios fazendo

como modelo animal

De acordo com o

um trabalho realmente

em pesquisas científicas,

coordenador do CeTICS,

competitivo nessa área”,

principalmente na área

Hugo Armelin, a

disse Armelin à Agência

da saúde. A plataforma

mobilização para criar

FAPESP. A proposta

A Organização das

foi montada no âmbito

a estrutura começou há

é que o peixe comece

Nações Unidas para a

do Centro de Pesquisa em

três anos, quando ainda

a ser introduzido

Alimentação e Agricultura

Toxinas, Resposta-Imune

estava vigente o Centro

em ambientes de

(FAO) conferiu o prêmio

e Sinalização Celular

de Toxinologia Aplicada

pesquisa nos quais

Herói da Revolução

(CeTICS), um dos Centros

(CAT), projeto aprovado

atualmente são usados

Verde Brasileira a 10

de Pesquisa, Inovação

no primeiro edital do

camundongos e ratos.

pesquisadores. Um deles

1

Paulistinha: peixes são usados como modelo animal em pesquisas

Revolução verde

foi Heitor Cantarella, do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), especialista em

Chile amplia proteção a oceanos

fertilidade do solo e um dos coordenadores do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia

O governo do Chile anunciou a criação

(Bioen). Também foram

de novos santuários ecológicos no Pa-

premiados Mauro de

cífico numa conferência internacional

Rezende Lopes, da

sobre a proteção dos oceanos sediada

Fundação Getulio Vargas

no país em outubro. Na abertura da con-

(FGV); Alberto Portugal,

ferência “Nossos oceanos”, realizada na

pesquisador da Embrapa;

cidade de Valparaíso, a presidente Mi-

Carlos Clemente Cerri,

chelle Bachelet anunciou que mais de

do Centro de Energia

600 mil quilômetros quadrados (km2)

Nuclear na Agricultura

ao redor da Ilha de Páscoa passarão a

2

ser protegidos da pesca ilegal. Somada

da Universidade de São Paulo (Cena-USP);

a outras reservas marinhas, o Chile pas-

Patagônia, com o propósito de defender

Geraldo Sant’Ana de

sou a ter mais de 1 milhão de km2 de mar

espécies como baleias, golfinhos e pin-

Camargo Barros, da USP;

com biodiversidade preservada. “Trata-

guins. A conservação dos fiordes da

-se de uma das maiores áreas protegidas

Patagônia, grandes entradas de mar em

do mundo”, disse Bachelet. As águas ao

meio a formações montanhosas, era uma

redor da Ilha de Páscoa abrigam espécies

lacuna na política ambiental chilena,

de atum, tubarão, marlim e espadarte.

segundo o ministro do Meio Ambiente

Eles são fonte de alimento para o povo

chileno, Pablo Badenier. O financiamen-

Teresa Losada Valle, do

Rapa Nui, que se envolveu na concepção

to à iniciativa nos próximos três anos foi

IAC; Aroldo Galassini,

da reserva. O governo chileno também

garantido pela Fundação Waitt, dos Es-

da cooperativa Coamo;

divulgou planos de criar uma rede de

tados Unidos, que também investe na

e Ruy de Araújo Caldas,

águas marinhas protegidas próxima à

proteção da Patagônia argentina.

da Universidade

Lourival Carmo Monaco, Pinguins na Patagônia chilena: novas reservas

presidente da Fundecitrus; Luiz Otávio Campos da Silva, da Universidade Federal de Viçosa;

Católica de Brasília. 10 | novembro DE 2015


3

Escolhidos para a FAPESP No dia 6 de outubro,

Engenharia de São Carlos

o governador Geraldo

da Universidade de

Alckmin reconduziu

São Paulo (EESC-USP).

José Arana Varela

Com pós-doutorado pela

ao cargo de diretor-

Universidade da Califórnia,

-presidente do Conselho

Berkeley, foi diretor-

Técnico-Administrativo

-presidente do Instituto

(CTA) da FAPESP e

de Pesquisas Tecnológicas

nomeou três novos

(IPT) e diretor-presidente

membros do Conselho

da Empresa Brasileira de

Superior da Fundação:

Pesquisa e Inovação

Carmino Antonio de

Industrial (Embrapii). Pedro Wongtschowski

Souza, João Fernando Gomes de Oliveira e

é engenheiro químico,

Pedro Wongtschowski.

mestre e doutor em

Muito artigo, pouco risco

Engenharia pela Escola

José Arana Varela é

fotos  1 e 4 léo ramos 2 Alejandro Vila_WCS  3 Alcatel / Lucent / Bell Labs  5 Antonio Scarpinetti – Ascom – Unicamp  6 eduardo cesar  7 arquivo pessoal

John Bardeen, Walter Brattain e William Shockley demonstram funcionamento de transistor nos Bell Labs, em 1947

físico e professor titular

Politécnica da USP.

do Instituto de Química

Preside os conselhos

A pressão para publicar

Com base na sua

da Universidade Estadual

de administração do

artigos científicos

análise das recompensas,

Paulista (Unesp), campus

Centro Nacional de

continuamente pode

o grupo notou

de Araraquara. Doutor

Pesquisa em Energia e

desencorajar cientistas

que pesquisadores que

em Materiais Cerâmicos

Materiais (CNPEM) e

a buscar avanços

apenas responderam

pela Universidade de

da Embrapii, e o Conselho

no conhecimento

a perguntas já

Washington, é fellow da

Superior da Associação

inovadores, de acordo

estabelecidas foram mais

American Ceramic Society

Nacional de Pesquisa

com um estudo liderado

felizes em ver seus

e membro da Materials

e Desenvolvimento

pelo sociólogo Jacob

resultados publicados,

Research Society, nos

das Empresas

Foster, professor da

requisito para progressão

Estados Unidos.

Inovadoras (Anpei). Foi

Universidade da

na carreira. Já os

Foi diretor-presidente do

diretor-superintendente

Califórnia, Los Angeles.

pesquisadores que

CTA da FAPESP de 2012

da Oxiteno e presidente

Foster e seus

fizeram perguntas

a fevereiro de 2015 e

da Ultrapar.

colaboradores montaram

originais e tentaram forjar

um banco de dados

novos elos na produção

com mais de 6,4 milhões

de conhecimento tiveram

de artigos científicos

dificuldade em publicar

das áreas de química e

um grande volume de

biomedicina publicados

artigos. Mas, quando

municipal de Saúde de

entre 1934 e 2008.

conseguiram, foram

Campinas, é professor

Primeiro, analisaram

mais recompensados

titular do Departamento

se esses papers tratavam

com citações. Os

de Clínica Médica da

de tópicos de pesquisa

autores sugerem que

Faculdade de Ciências

já consagrados ou se

as universidades

Médicas da Universidade

propunham conexões

devem incentivar seus

Estadual de Campinas

originais. Depois,

pesquisadores a assumir

(FCM-Unicamp). Doutor

relacionaram as

mais riscos, dissociando

e livre-docente pela

publicações a

a segurança do emprego

Unicamp, fez estágio

recompensas como

dos indicadores de

de pós-doutorado na

citações em outros

produtividade. Eles

artigos e viram se

observam que uma

seus autores foram

abordagem semelhante

reconhecidos com

foi muito bem-sucedida

premiações acadêmicas.

em meados do século XX

Constataram que 60%

nos Bell Labs, onde

dos artigos não criavam

cientistas podiam

novas conexões, sinal

trabalhar em um projeto

de que trouxeram

por vários anos sem

pouca inovação.

sofrerem avaliação.

membro do Conselho Superior da Fundação

4

de 2004 a 2010. Carmino Antonio 5

de Souza, secretário

Universidade de

6

Gênova (Itália). Suas áreas de pesquisa são

Varela e Gomes de Oliveira (ao lado), Carmino e Wongtschowski (acima): nomeados pelo governador

onco-hematologia e transplante de medula. João Fernando Gomes de Oliveira é engenheiro mecânico e professor titular da Escola de

7

PESQUISA FAPESP 237 | 11


Tecnociência Velho mamífero de Taubaté O mamífero extinto

paleontólogo Herculano

Taubatherium

Alvarenga, Graziella

paulacoutoi, que viveu

realizou a descrição

entre 23 e 24 milhões de

anatômica e comparativa

anos atrás na área hoje

do esqueleto. O estudo

ocupada pela Formação

revelou que o T.

Tremembé na bacia de

paulacoutoi, pertencente

bandos à beira de um

Taubaté, no lado paulista

à família extinta de

paleolago”, afirma a

do Vale do Paraíba, foi

ungulados denominada

pesquisadora. O

estudado em detalhes

leontinídeos, tinha

trabalho possibilitou

pela paleontóloga

aproximadamente

ainda a reconstituição,

Andar o mais depressa

Graziella do Couto

1,80 metro de

pela primeira vez, de um

possível pode não ser o

Ribeiro durante a

comprimento e 80

esqueleto completo da

melhor exercício. Variar a

realização de seu

centímetros de altura e

espécie, agora exposto

velocidade pode queimar

doutorado, defendido

pesava entre 280 e

no Museu de História

20% mais calorias, de

em setembro deste ano

350 quilos. Era, portanto,

Natural de Taubaté

acordo com experimentos

no Instituto de

comparável em tamanho

(MHNT), do qual

feitos na Universidade

Biociências da

e massa corpórea a uma

Graziella é pesquisadora

Estadual de Ohio, Estados

Universidade de São

espécie moderna de

e Alvarenga, fundador e

Unidos (Biology Letters,

Paulo (IB-USP). A partir

equídeo (cavalos,

diretor-presidente.

setembro). Numa esteira

da análise de 490

jumentos e zebras).

T. paulacoutoi faz parte

em velocidade constante,

dentes e ossos de vários

“Essas características

da fauna de mamíferos

voluntários foram

exemplares da espécie,

corroboram a hipótese

extinta da bacia de

instruídos a variar:

cujos primeiros fósseis

de ele ter sido um

Taubaté, que contava

apertar o passo para

foram descobertos nos

herbívoro de hábitos

com espécies

chegar à frente, e ficar

anos 1970 pelo

gregários, que vivia em

endêmicas.

para trás andando mais

1

Reconstituição total do esqueleto de T. paulacoutoi, exposto em Taubaté

Caminhada inconstante

devagar. “Medir o custo metabólico de

Brejos isolam bicudinhos

mudar a velocidade é importante porque as

Descrito oficialmente

população de cada região

pessoas não vivem em

no final de 2013,

apresenta níveis de

esteiras e não andam em

o bicudinho-do-brejo-

estruturação e

velocidade constante”,

-paulista (Formicivora

diferenciação genética

diz Manoj Srinivasan,

paludicola) ocorre em

só antes encontrados em

coordenador do

apenas 15 brejos perto

grupos isolados de aves

laboratório. O estudo

das nascentes dos rios

que habitam os topos de

mostra que se gasta

Tietê e Paraíba do Sul,

montanhas na África

8% da energia das

no entorno da Região

(PLoS One, 8 de outubro).

caminhadas cotidianas

Metropolitana de

Cada população vive em

São Paulo. Um estudo

um brejo distante cerca

coordenado por

de 60 quilômetros dos

pesquisadores da

outros dois e parece

traz um dado

Universidade Federal de

apresentar um elevado

relativamente otimista

São Carlos (UFSCar) e

grau de adaptação às

sobre a espécie que desde

da Universidade Estadual

condições locais. Por isso

sua descoberta se sabe

Paulista (Unesp),

os autores do trabalho

criticamente ameaçada

para queimar calorias:

campus de Botucatu, com

recomendam não

de extinção: a população

andar de forma que

bicudinhos provenientes

transferir exemplares

total pode chegar

pareça pouco natural,

dos três brejos mais

de uma localidade para

a 600 aves, o dobro da

fazendo mudanças de

importantes indica que a

outra. O artigo também

inicialmente estimada.

velocidade e rumo.

12 | novembro DE 2015

para começar a andar e 2

Bicudinho-do-brejo-paulista: divergência genética grande entre populações

parar. Outro resultado foi confirmar que as pessoas andam mais devagar quando a distância é curta e rápido quando precisam ir longe. A dica


fotos 1 Graziella do Couto Ribeiro 2 Glaucia Del-Rio  3 embrapa  4 Nasa/christopher perry 5 british geological survey

Sachê de agroquímico

Mais aglomerados à vista Astrônomos anunciaram

mapeia estruturas

Um sachê biodegradável

a descoberta de

desconhecidas no bojo

desenvolvido por

mais 493 aglomerados

da Via Láctea (ver

um grupo de

agricultor. De acordo

de estrelas na

Pesquisa Fapesp

pesquisadores da

com a química

região central da

nº 200). “As descobertas

Embrapa Instrumentação

Elaine Cristina Paris,

Via Láctea, o chamado

do Vista mais do que

e da Universidade

pesquisadora da Embrapa

bojo. A região esconde

duplicaram o número

Federal de São Carlos

Instrumentação, esse

seus segredos atrás

de aglomerados

(UFSCar) poderá

método de dispersão

de nuvens espessas de

conhecidos nessa

promover o uso mais

evita que o agroquímico

gás e poeira, entretanto

região”, diz o astrofísico

seguro e eficaz de

seja levado pela água

com câmeras sensíveis

brasileiro Roberto Saito,

defensivos químicos

da chuva e garante um

à luz infravermelha é

da Universidade Federal

em lavouras do Brasil.

maior aproveitamento

possível enxergá-los.

de Sergipe, que

Feito à base de amido,

dessas substâncias

Desde 2010, a câmera

participou do estudo

pectina e outros

pelas plantas, com

infravermelha do

publicado em setembro

polímeros, o dispositivo

menos prejuízo ao meio

telescópio de 4 metros

na Astronomy &

estoca qualquer tipo

ambiente e também

Vista, do Observatório

Astrophysics. “Hoje

de substância solúvel

ao ser humano. Os

Europeu Austral (ESO),

sabemos que ali há mais

em água, como

defensivos químicos, em

em Cerro Paranal, Chile,

de mil aglomerados.”

fertilizantes e pesticidas.

geral, são pulverizados

O sachê é, então, selado

manualmente sobre as

por prensagem e, em

lavouras ou com o auxílio

seguida, inserido

de tratores. Dessa

no solo, onde libera

maneira, os produtores

gradativamente as

rurais muitas vezes

substâncias à medida

ficam expostos a essas

que se desfaz.

substâncias tóxicas, que

A quantidade de

podem causar câncer e

agroquímico por sachê

outros efeitos adversos

pode variar conforme

ao sistema nervoso

a necessidade do

central e periférico.

3

Embalagem biodegradável: fertilizantes e pesticidas podem ter uso mais seguro no campo

5

Registro de tempestade geomagnética (direita): auroras como a foto abaixo

4

A noite em que o céu pegou fogo Pesquisadores colombianos encontra-

explosão a maior já registrada. A ejeção

ram evidências de que um espetáculo

produziu auroras polares extraordinárias

de luzes coloridas e de brilho ofuscan-

pelos dois dias seguintes. Há muitos

te iluminou a cidade de Montéria, Co-

relatos nos jornais da época de que es-

lômbia, na noite do dia 2 de setembro

sas auroras foram avistadas em países

de 1859. A origem dessas luzes é a

do hemisfério Norte muito além do Cír-

mesma das auroras polares, que costu-

culo Ártico, onde elas normalmente

mam ser vistas em latitudes próximas

aparecem. Já se sabia que cidades em

aos polos Norte e Sul: elas são emitidas

Cuba e no Panamá testemunharam es-

quando partículas eletricamente car-

sas auroras. Mas agora Freddy Cárdenas

regadas expelidas pelo Sol colidem com

e Sergio Sánchez, do colégio Gimnasio

a atmosfera da Terra. No dia 1º de se-

Campestre, em Bogotá, em parceria com

tembro de 1859, o astrônomo britânico

o astrônomo Santiago Domínguez, da

Richard Carrington observava uma

Universidade Nacional da Colômbia,

mancha na superfície do Sol quando,

descobriram um relato dessa aurora

de repente, um brilho extraordinário

escrito na época pelo vigário José Inés

surgiu dela. Hoje os astrofísicos consi-

Ruiz, da catedral de Montéria, mais ao

deram a ejeção de massa de partículas

sul que a Cidade do Panamá (Advances

carregadas do Sol associada a essa

in Space Research).

PESQUISA FAPESP 237 | 13


capa

NOVOS ACHADOS GENÉTICOS Mutação que mitiga a distrofia muscular em cães é descoberta e genes humanos associados a doenças raras são identificados Marcos Pivetta

14 | novembro DE 2015

D

esde 2004, os pesquisadores do Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL), ligado ao Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), desconfiavam que o golden retriever Ringo tinha algum mecanismo molecular que mitigava o aparecimento dos sintomas mais severos da distrofia muscular, como dificuldade para andar e deglutir. O cão, a exemplo do que ocorreria posteriormente com seu filhote Suflair, nunca produziu distrofina, proteína essencial para a manutenção da integridade dos músculos, e deveria ter sucumbido à degeneração progressiva da doença. Ambos, no entanto, sempre se mantiveram praticamente normais. Ringo morreu no ano passado aos 11 anos, tendo atingido uma expectativa de vida normal para cães, e Suflair continua bem, aos 9 anos e meio. Neste mês, o grupo da USP, em parceria com colegas da Escola Médica de Harvard e do Instituto Broad, dos Estados Unidos, publicou um artigo na revista científica Cell com a explicação do fenômeno: os dois golden retriever apresentam aumento na expres-


1

Músculos afetados por distrofia e os cães Ringo e Suflair: mutação no gene Jagged1 minora quadro da doença

fotos 1 CDC / Dr. Edwin P. Ewing, Jr.  2 eduardo cesar

2

são (ativação) de um gene, o Jagged1, que os protege de desenvolver um quadro grave de distrofia muscular. O achado é promissor, pois, na opinião dos cientistas, sinaliza a possibilidade de explorar uma nova abordagem terapêutica, com o intuito de ao menos mitigar os sintomas da doença em seres humanos, por meio do controle do funcionamento desse gene. A alteração genética descoberta faz com que o Jagged1 seja duas vezes mais expresso em Ringo e Suflair do que em cães severamente afetados pela doença. Ou seja, o gene é ativado de forma mais intensa e produz o dobro de sua respectiva proteína nos cachorros da USP do que nos animais doentes. Segundo o estudo, a anomalia no Jagged1 compensa o efeito deletério da ausência de distrofina, causada por mutações no gene responsável por produzir essa proteína. Isso porque uma

das funções do Jagged1 é atuar sobre uma via de sinalização intracelular denominada Notch, envolvida na produção e reparação de células musculares. “Pela primeira vez, mostramos que um animal de grande porte, sem distrofina, pode ter um músculo funcional”, diz Mayana Zatz, coordenadora do trabalho agora publicado e do CEGH-CEL, um dos 17 Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP. “O paper abre caminho para testarmos novos tratamentos contra as distrofias musculares mais frequentes no homem, como as de Duchenne e de Becker, por meio de uma maior ativação do gene Jagged1.” As atuais tentativas de terapia contra as distrofias musculares, por ora com resultados modestos, concentram-se em tentar restaurar o funcionamento normal do gene da PESQUISA FAPESP 237 | 15


distrofina, no qual ocorrem as mutações que in- -Toh são, ao lado de Mayana, os coautores seniores terrompem a produção dessa proteína e levam do estudo da Cell. Como pista inicial de onde procurar a hipoao surgimento da doença. Conhecer as bases moleculares das patologias tética mutação protetora, Natássia contava com é um passo importante para desenvolver trata- os dados de um experimento feito cinco anos mentos mais personalizados, uma tendência da atrás em colaboração com o laboratório de Sergio medicina do século XXI. “No futuro próximo, Verjovski-Almeida, do Instituto de Química (IQ) os médicos vão olhar as informações genéticas e da USP. “Vimos, com o emprego de um chip de de funcionamento do metabolismo das pessoas e DNA, que 66 genes tinham um perfil de expresreceitar o remédio mais adequado em uma dose são alterado nos cães assintomáticos em relação individualizada”, afirma Mayana. As pesquisas aos animais com o quadro de distrofia”, afirma contra o câncer caminham nessa direção (ver re- Verjovski-Almeida, que também contribuiu com portagem na página 64), e uma iniciativa que en- o novo trabalho. No laboratório de Lindblad-Toh, volve cinco Cepids, a Brazilian Initiative on Pre- Natássia sequenciou todo o genoma de Ringo cision Medicine (BIPMed), criou uma plataforma e Suflair e de um terceiro golden retriever com computacional para integrar dados genéticos e um quadro severo de distrofia muscular. Descobriu que havia uma pequena clínicos de doenças e, assim, mutação em um dos 66 gegerar tratamentos talhados nes que haviam chamado a para cada paciente (ver reatenção no trabalho com o portagem na página 33). IQ-USP: a troca de uma úniAmbas as distrofias musnovos Estudos ca base nitrogenada (a uniculares, a de Duchenne, mais deverão testar se dade química que compõe severa, e a de Becker, mais todo o DNA) na região que branda, são doenças recesa manipulação regula o funcionamento do sivas que acometem essengene Jagged1, localizado no cialmente indivíduos do sexo do gene que cromossomo 24 do cachormasculino. A explicação para esse padrão de ocorrência é reduz os sintomas ro, era a mutação que procuravam há anos. simples. O gene da distroda distrofia Em seguida, a bióloga volfia fica no cromossomo X, tou ao laboratório de Kunkel do qual os homens têm uma pode ser viável e fez experimentos com RNA cópia e as mulheres duas. mensageiro em peixes pauPor isso, eles desenvolvem como terapia listinha (ou zebrafish), um a doença ao herdar uma únidos modelos biológicos mais ca cópia do gene com a muusados para simular doentação, ao passo que elas preças humanas em animais. A cisam de duas cópias com a alteração para manifestar a distrofia, algo muito ideia era ver se, ao estimular a ativação do gene raro de ocorrer. Quando portam uma cópia mu- Jagged1, como ocorre com os cachorros, os peixes tada, as mulheres, na maioria dos casos, são as- apresentariam menor prevalência de um quadro sintomáticas, mas têm, em cada gestação, 50% equivalente à distrofia muscular humana. Deu de risco de transmiti-la para seus descendentes. certo. “A incidência da doença caiu dos esperados A distrofia de Duchenne afeta um a cada 3.500 25% para 6%”, afirma Natássia. Dessa forma, os recém-nascidos do sexo masculino, índice 10 ve- pesquisadores colheram fortes evidências de que a mutação no gene Jagged1, que no ser humano se zes maior do que o de Becker. A bióloga Natássia Vieira, que fez doutorado no encontra no cromossomo 20, é capaz de atenuar IB-USP e permaneceu quase quatro anos nos Es- a manifestação clínica das distrofias musculares. tados Unidos procurando a mutação protetora de Ringo e Suflair, foi uma das principais responsáveis Avanços nas doenças raras pela descoberta. Ela passou uma temporada no la- A identificação de um provável mecanismo moleboratório de Louis M. Kunkel, da Escola Médica cular que mitiga o desenvolvimento das distrofias de Harvard, que identificara na segunda metade não foi o único trabalho recente do CEGH-CEL dos anos 1980 as mutações do gene da distrofina a produzir resultados substanciais no entendiassociadas à doença, e convenceu a geneticista mento de doenças genéticas. Em artigo publicado sueca Kerstin Lindblad-Toh, diretora científica on-line em 29 de setembro na revista científica da área de Biologia do Genoma de Vertebrados Human Molecular Genetics, outro grupo de pesdo Instituto Broad, mantido por Harvard e pelo quisadores ligados ao centro da USP mostrou Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), a que pacientes com uma rara síndrome herediparticipar do projeto. Por isso, Kunkel e Lindblad- tária neurodegenerativa não apresentam uma 16 | novembro DE 2015


A incidência de três doenças raras Problemas decorrem de uniões consanguíneas

Ceará

Puda des dolor as ex earcius pellisi cusciae pla dolor secti dolor accus molo cuptas nusae ipienihillo iuremol uptatis

Rio Grande do Norte

Spoan IMPA1 MED25

Paraíba

A síndrome Spoan totaliza 75 casos conhecidos no Brasil, 61 deles no Rio Grande do Norte, 5 na Paraíba, 5 em São Paulo, 2 no Ceará e 2 no Rio Grande do Sul. As deficiências intelectuais causadas por mutações nos genes Impa1 e Med25 apresentam, respectivamente, 9 e 7 casos

São Paulo

foto silvana santos  infográfico  ana paula campos

Rio Grande do Sul

sequência com 216 pares de bases na região que controla o funcionamento de um gene do cromossomo 11, o KLC2. A identificação da alteração genética demorou 10 anos. Em 2005, enquanto fazia estágio de pós-doutorado no CEGH-CEL, a bióloga paulista Silvana Santos foi a principal responsável pela descoberta da doença em um município de 5 mil habitantes do interior do Rio Grande do Norte, Serrinha dos Pintos, onde um terço dos casamentos era consanguíneo, entre primos de primeiro ou segundo grau. “Foi muito difícil encontrar a mutação. Apenas com as novas técnicas de sequenciamento conseguimos ter sucesso”, comenta Mayana Zatz. Denominada síndrome Spoan, sigla que, em inglês, significa Spastic Paraplegia, Optic Atrophy and Neuropathy, a doença causa uma série de sin-

tomas clínicos que levam os pacientes a viver em uma cadeira de rodas a partir da adolescência: o contínuo enrijecimento e enfraquecimento das pernas e braços, lesões progressivas nos neurônios motores e sensoriais e diminuição do campo de visão, resultante da atrofia congênita do nervo óptico (ver Pesquisa FAPESP nº 113). Esse esforço de uma década mobilizou Silvana, que desde 2008 é professora da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), em Campina Grande, pesquisadores do CEGH-CEL da USP, de outras universidades brasileiras e até do exterior e incluiu várias idas a campo pelo interior da Paraíba e do Rio Grande do Norte. Durante as viagens, além de informações sobre a Spoan, os pesquisadores descobriram dois novos distúrbios neurológicos, e o mecanismo genético que os ocasiona, em comunidades relativamente isoladas do Nordeste. Essas novas doenças, igualmente raras, foram apresentadas à comunidade científica em dois trabalhos recém-publicados. “Da mesma forma que a Spoan, essas duas doenças se originam em famílias com muitas uniões consanguíneas”, afirma Silvana. Como os estudos iniciais já indicavam na década passada, a alteração genética responsável por provocar a Spoan se encontra em uma região do cromossomo 11 com mais de 140 genes. Essa pisPESQUISA FAPESP 237 | 17


ta sempre esteve correta. O que os pesquisadores não tinham como saber era que a mutação estava em um trecho de DNA pouco estudado até alguns anos atrás. A mutação associada à síndrome não está na chamada região codificadora, a parte da sequência que contém as instruções específicas para a produção da proteína associada a cada gene de um organismo. Tal região é o lugar de ocorrência mais comum de mutações associadas ao aparecimento de patologias. Por isso, tradicionalmente é o primeiro alvo da busca por alterações genéticas com repercussões clínicas. Mas a mutação ligada à síndrome de Serrinha dos Pintos se encontra em uma área regulatória do gene KLC2. A perda de um trecho de 216 pares de base na região que controla o gene faz com que ele funcione em excesso. O KLC2 é mais ativado do que o normal nos doentes e produz uma quantidade extra de cinesina, membro de uma classe de proteínas motoras que transportam organelas do corpo celular até o axônio, a parte do neurônio que conduz os impulsos elétricos. Ou seja, a mutação na região regulatória não leva à produção de uma forma alterada da proteína nem impede sua fabricação, como ocorre na maior parte das doenças genéticas, mas desregula a quantidade produzida da proteína. “Essa é a primeira doença autossômica recessiva descrita como resultado de uma mutação que faz um gene ganhar, em vez de perder, uma função”, diz Silvana. Os pacientes que desenvolvem Spoan herdaram as duas cópias do gene KLC2, uma do pai e outra da mãe, com a alteração que causa a doença. É por isso que a síndrome é denominada recessiva. Pessoas com apenas uma cópia alterada são portadoras da mutação, que pode ser transmitida aos filhos, mas são clinicamente normais. Se a doença fosse dominante, bastaria ter uma cópia do gene

com a mutação para desenvolver o problema de saúde. “O defeito que causa a Spoan estava em um gene que havíamos investigado em 2006”, conta a bióloga Lúcia Inês Macedo de Souza, que se dedicou entre 2005 e 2013 a procurar a alteração genética responsável pela síndrome, durante seu doutorado e pós-doutorado no IB-USP. “Mas, na época, não tínhamos no mundo tecnologia para sequenciar todo o genoma a um custo baixo. Só conseguimos fazer isso em dezembro de 2012.” Na cauda do zebrafish

Natural de Campina Grande, o biólogo Uirá Souto Melo, que faz doutorado sobre a Spoan sob a supervisão de pesquisadores do CEGH-CEL, realizou um experimento que reforçou a ligação do gene KLC2 com a síndrome. Ele permaneceu três meses na equipe de Nora Calcaterra, da Universidade Nacional de Rosário (Argentina), antiga parceira do centro da USP, onde usou o zebrafish para estudos sobre a função do gene. Melo injetou doses extras de RNA mensageiro (a receita química para a produção de uma proteína) extraído do KLC2 em embriões de paulistinha. Conforme a dose de RNA era aumentada, a cauda do peixe entortava mais, um fenótipo que pode ser interpretado como a manifestação de uma doença neurodegenerativa. “No momento estou tentando

Casamentos consanguíneos variam de 6% a 41% em cidades do interior da paraíba

1

Rua dos Judeus, em Recife, no século XVII: mutação que causa síndrome Spoan deve ter entrado no Nordeste na época do Brasil holandês com os judeus sefarditas 18 | novembro DE 2015


1 reprodução do livro o brasil e os holandeses – 1630-1654  2 eduardo cesar

Serrinha dos Pintos: doença Spoan foi descoberta em 2005 no município do interior do Rio Grande do Norte

2

desenvolver um camundongo transgênico com a mutação da Spoan”, afirma Melo, que passa uma temporada na Universidade da Califórnia em Berkeley. “Dessa forma, ficaria mais fácil fazer um modelo biológico da doença em um animal geneticamente mais parecido com o ser humano.” Na década passada, por questões de custo e de limitações da tecnologia, os sequenciamentos se concentravam na região codificadora do genoma humano, que representa de 2% a 3% da sequência total. O restante do genoma, cerca de 97% da sequência, chegou até a ser denominado “DNA lixo” nos primeiros anos após o término do projeto de sequenciamento de todos os genes do ser humano, em 2003. Achava-se que não servia para nada. Mas essa visão mudou radicalmente com o passar do tempo e a criação e a disseminação de novas técnicas de sequenciamento. Hoje, conhecer a composição química de todo o material genético do homem, inclusive das áreas não codificadoras, tornou-se uma tarefa muita mais rápida, barata e, como mostra o estudo com a Spoan, importante. Segundo levantamento feito pelo National Human Genome Research Institute (NHGRI), dos Estados Unidos, o custo de sequenciar todo o genoma de uma pessoa era, em setembro de 2001, de US$ 95 milhões. Em julho deste ano, a mesma empreitada custava US$ 1,3 mil. A descoberta da mutação no gene não abre caminho, em um primeiro momento, para a cura da Spoan, cujos afetados não têm prejuízo cognitivo nem sentem dor, mas veem sua qualidade de vida se deteriorar rapidamente. No entanto, possibilita desenvolver um teste capaz de prever a ocorrência da doença em filhos de pais portadores da mutação. Dez anos atrás, quando foi descoberta,

a Spoan tinha acometido 26 moradores (17 mulheres e 9 homens) de Serrinha dos Pintos, todos descendentes de casais aparentados, de 19 uniões consanguíneas. Agora o número de afetados chega a 61 no Rio Grande do Norte, distribuídos por oito cidades (dois terços deles em Serrinha e São Miguel), e 14 em outros quatro estados (5 em São Paulo, 5 na Paraíba, 2 no Ceará e 2 no Rio Grande do Sul). “Tivemos contato com dois casos no Egito, nos quais também confirmamos a mutação na região regulatória do gene KLC2”, diz Silvana. Mutação e judeus sefarditas

Um detalhe sempre chamou a atenção dos pesquisadores quando identificaram os primeiros afetados pela Spoan em Serrinha dos Pintos. Todos os pacientes tinham nascido naquela região, eram caucasianos, descendentes distantes de portugueses ou de holandeses que dominaram parte do Nordeste no século XVII. Essa situação levou-os a formular a hipótese de que a mutação pode ter sido introduzida na região pelos europeus na época do Brasil holandês. O DNA de 68 afetados pela síndrome e de 85 familiares que carregam a mutação (mas não têm a doença) está sendo analisado para tentar determinar quando a alteração genética surgiu. Com sorte, também será possível determinar se a mutação apareceu em solo brasileiro ou foi trazida por imigrantes. “Os dados preliminares sugerem que a mutação pode ter chegado ao Nordeste com os judeus sefarditas, originários da comunidade judaica de Portugal e da Espanha, no tempo do Brasil holandês”, diz Silvana. Os estudos que levaram à descoberta da Spoan começaram na primeira metade dos anos 2000. PESQUISA FAPESP 237 | 19


Silvana ainda morava em São Paulo e ficou intrigada com a história de uma vizinha com um tipo de paraplegia que ninguém sabia dizer exatamente o que era. Essa moça dizia ser de uma família de Serrinha dos Pintos com muitos membros afetados pelo mesmo problema de saúde. Silvana foi ao pequeno município do interior potiguar e viu que a incidência da doença e de outros distúrbios neuromotores era grande em toda aquela região. A Spoan, descrita na literatura científica em 2005, foi sua primeira descoberta, quando ainda fazia parte da equipe do CEGH-CEL na USP. Em 2008, ela foi contratada pela UEPB e deu continuidade aos estudos com doenças ligadas à consanguinidade. “Desde então, ela tem sido uma ótima parceira do nosso centro, mandando alunos para cá e fazendo estudos conjuntos”, diz Mayana Zatz. Em 2009, Silvana e seus alunos da UEPB firmaram uma parceria com 39 municípios do sertão paraibano e, com o apoio de agentes comunitários de saúde, entrevistaram 20.462 casais para tentar estabelecer a frequência de uniões consanguíneas em diferentes localidades. O resultado do estudo apontou números elevados: a taxa variou de 6% a 41%, dependendo da cidade. Em 2012, o grupo da UEPB e uma equipe de neurologistas da USP examinaram 109 indivíduos com algum tipo de deficiência física ou mental oriundos de seis municípios paraibanos com elevados índices de consanguinidade (Bom Sucesso, Brejo dos Santos, Catolé do Rocha, Belém do Brejo do Cruz, São José do Brejo do Cruz e Brejo do Cruz). Essas incursões por lugares com muitos casamentos

Dois novos tipos de deficiência intelectual foram descobertos em cidades da Paraíba

entre parentes facilitaram a descoberta de mais casos de Spoan e também de novas doenças raras, como os dois problemas neurológicos agora divulgados em periódicos científicos. “Fizemos um livro eletrônico gratuito, intitulado Tem alguma pessoa com deficiência na sua família?, e o disponibilizamos no site da UEPB ”, afirma Silvana. Uma das novas doenças é um tipo de deficiência intelectual (antigamente chamado de retardo mental) que provoca sexualidade exacerbada e alterações anatômicas na face (prognatismo, queixo proeminente e nariz muito grande), encontrada em sete indivíduos de uma mesma família originária do município de Catolé do Rocha, Paraíba. Hoje três dos afetados vivem em Mossoró, no Rio Grande do Norte, mas o núcleo original do clã é o município paraibano. Em artigo publicado em dezembro do ano passado no Journal of Medical Genetics, os cientistas descreveram a doença e a mutação no gene MED25, do cromossomo 19, que a causa. “Tivemos sorte”, comenta a bióloga Thalita Figueiredo, que fez doutorado na UEPB

Mutações em dois novos genes causam a síndrome de Noonan Estudo amplia base molecular da doença e eleva para 11 o número de genes implicados na condição clínica

Pesquisadores do CEGH-CEL

importantes que levam os pais a

descobriram dois novos genes

procurar o serviço médico são as

associados à síndrome de Noonan,

cardíacas e a baixa estatura”, afirma

doença de prevalência quase tão

a geneticista Débora Bertola, do

elevada quanto a síndrome de Down.

CEGH-CEL e médica do Instituto da

De acordo com artigo publicado em

Criança do Hospital das Clínicas (HC)

junho no Journal of Medical Genetics,

da USP, principal autora do estudo.

mutações nos genes S0S2 e LZTR1

“As características clínicas da

são responsáveis por 3% dos casos

síndrome são muito variáveis.

da doença. O primeiro gene está no

É provável que muitos indivíduos

cromossomo 2; o segundo, no 22.

afetados nem saibam que a têm.”

Um a cada 2,5 mil recém-nascidos, segundo algumas estimativas, ou um

Características físicas de criança com a síndrome Cabelos cacheados Cabeça em formato de triângulo invertido

Queixo pequeno

Baixa estatura

Testa larga

Excesso de pele no pescoço

Antebraço mais afastado do corpo

Em geral, a doença não afeta a expectativa de vida dos pacientes.

a cada mil, de acordo com outras, é

A síndrome de Noonan é

acometido pela síndrome, que pode

classificada como uma doença

afetar diferentes áreas do corpo (ver

monogênica autossômica dominante.

figura ao lado). “As anomalias mais

Basta herdar uma única cópia de um

Deformidade no osso esterno Mamilos muito espaçados fonte American Family Physician (AAFP)

20 | novembro DE 2015


fotos Uirá Melo  ilustração sandro castelli

Embrião de zebrafish: (da esq. para a dir.) normal, pouco afetado e muito alterado pela mutação da Spoan

sob a orientação de Silvana e é a primeira autora do estudo. “Três meses depois do nosso trabalho, um grupo internacional descreveu famílias com outra mutação nesse mesmo gene.” O MED25 faz parte de uma grande família de genes, associada a diversas formas de deficiência intelectual. O segundo distúrbio neurológico, ainda sem nome, ocorre em razão de uma mutação identificada no gene Inositol monophosphatase 1 (Impa1), localizado no cromossomo 8. Trata-se de uma doença que causa deficiência intelectual e alterações comportamentais, como agitação e agressividade. Ela foi descoberta em uma família de Brejo dos Santos com nove afetados. “Esse trabalho abre uma perspectiva interessante para novas pesquisas”, afirma o neurologista Fernando Kok, pesquisador do CEGH-CEL e diretor médico da Mendelics, laboratório privado dedicado à análise genômica, que participou do sequenciamento das três doenças. “O lítio dado aos pacientes com transtorno bipolar inibe a ação do gene.” No entanto, antes da publicação do estudo dos pesquisadores brasileiros, que saiu em 2 de outubro na revista Molecular Psychiatry, nenhum problema mental havia sido associado ao Impa1. Os trabalhos sobre novas e velhas doenças genéticas raras no Nordeste estão longe de ter fim.

No caso da Spoan, o desafio agora é entender o mecanismo fisiológico, a cadeia de eventos, que a mutação provoca nos afetados pela síndrome e os empurra progressivamente para uma vida em uma cadeira de rodas. A alta prevalência de distúrbios e síndromes ocasionados por casamentos entre cônjuges aparentados é um indício de que ainda há muito a ser pesquisado nessa seara. Um levantamento nacional divulgado no ano passado aponta que existem cerca de 4 mil pessoas de mais de 80 municípios, a maioria do Nordeste, que apresentam doenças genéticas de baixa incidência em comunidades relativamente isoladas do país. “Vários países dão bastante atenção às populações com alta taxa de consanguinidade ou baixa diversidade genética, como os Amish nos Estados Unidos, os franco-canadenses no Canadá, os árabe-israelenses em Israel e os finlandeses”, comenta Kok. “Ainda sabemos muito pouco sobre as doenças genéticas no Brasil.” Os avanços dos estudos genéticos, impulsionados por novas tecnologias e por uma melhor capacidade de analisar vastas quantidades de dados, estão permitindo, no entanto, conhecer um pouco mais as raízes de patologias raras, como a Spoan, e também de condições bem mais comuns, como as distrofias musculares. n

Projetos único gene com uma mutação

da síndrome”, afirma Maria Rita

patogênica para desenvolvê-la. Antes

Passos-Bueno, coordenadora da área

do trabalho do CEGH-CEL, mutações

de Transferência de Tecnologia do

em nove genes estavam associadas a

CEGH-CEL. Com exceção do LZTR1,

80% dos casos da doença. Em geral,

todos os demais genes responsáveis

os afetados têm alguma mutação

pelo desenvolvimento da síndrome

deletéria em apenas um dos genes

estão associados à via de sinalização

que podem causar a síndrome.

RAS/MAPK, cuja desregulação

Com o estudo dos brasileiros, o

parece ser crucial para a origem da

número de genes ligados à sindrome

doença. Para descobrir a associação

aumentou para 11. “A dificuldade hoje

dos dois genes com a síndrome,

é encontrar genes que respondam

foi sequenciada a parte codificante

por uma porcentagem muito pequena

do genoma de 50 pacientes do HC

dos casos da doença”, explica

que tinham a doença, mas não

Débora. “A descoberta das mutações

apresentavam mutações nos

nesses dois genes melhora a

nove genes até então sabidamente

eficiência do diagnóstico molecular

ligados à patologia.

1. CEGH-CEL – Centro de Estudos do Genoma Humano e de Células-Tronco (nº 2013/08028-1); Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisadora responsável Mayana Zatz (IB-USP); Investimento R$ 9.609.746,03 e US$ 4.676.005,00 para todo o projeto. 2. Programa de Pesquisa do Núcleo de Estudos em Genética e Educação da Universidade Estadual da Paraíba (NEGE-UEPB); Pesquisadora responsável Silvana Santos (UEPB); Investimento R$ 200.000,00 (Propesq/UEPB, Fapesq/CNPq, Biomarin).

Artigos científicos VIEIRA, N. M. et al. Jagged1 mitigates the Duchenne muscular dystrophy phenotype. Cell. 12 nov. 2015. MELO, U. S. et al. Overexpression of KLC2 due to a homozygous deletion in the non-coding region causes Spoan syndrome. Human Molecular Genetics. 18 set. 2015. FIGUEIREDO, T. et al. A homozygous loss-of-function mutation in inositol monophosphatase 1 (Impa1) causes severe intellectual disability. Molecular Psychiatry. 29 set. 2015. FIGUEIREDO, T. et al. Homozygous missense mutation in MED25 segregates with syndromic intellectual disability in a large consanguineous family. Journal of Medical Genetics. 19 dez. 2014 YAMAMOTO, G. L. et al. Rare variants in SOS2 and LZTR1 are associated with Noonan syndrome. Journal of Medical Genetics. v. 52, n. 6, p. 413-21. jun. 2015.

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entrevista Jeter Bertoletti

22 | novembro DE 2015


Semeador de acervos Museólogo gaúcho fala do desafio de conciliar pesquisa com divulgação científica e organizar exposições interativas Bruno de Pierro  |

retrato

Fernanda Chemale

A idade 76 anos especialidade História Natural, Museologia e Aquacultura formação PUCRS (graduação, doutorado e livre-docência) instituição PUCRS produção científica Mais de 150 artigos científicos e 17 livros e capítulos de livros. Orientou 163 trabalhos de iniciação científica e pós-graduação

coleção pessoal de um jovem estudante foi o ponto de partida do acervo do Museu de Ciências e Tecnologia (MCT) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Gran­ de do Sul (PUCRS), um imponente prédio construído numa área de 22 mil metros quadrados (m 2) no campus da uni­ versidade gaúcha. Na década de 1960, o biólogo e museologista Jeter Bertoletti ingressou na instituição para cursar História Natural. Levava na bagagem um grande interesse pela ciência e guardava no porão de casa um acervo, acumulado desde os 7 anos de idade, de rochas, minerais e pequenos animais, como aranhas, escorpiões e serpentes. A coleção originou o Museu de Zoologia da PUCRS, embrião do atual MCT, ao qual Bertoletti se dedicou até se aposentar em 2007. Em mais de quatro décadas de atividade, ampliou as coleções por meio da aquisição, coleta e doações de materiais e peças de arqueologia, paleontologia, zoo­ logia, botânica e mineralogia. E ajudou a projetar muitos dos mais de 700 experimentos de química e física disponíveis no museu. O tempo dedicado à divulgação científica não o impediu de tra­ balhar como pesquisador. Sob o teto do MCT foram elaborados projetos no campo da criação de peixes, camarões e siris – atividade de pesquisa que ajudou a desenvolver no Rio Grande do Sul com o mesmo entusiasmo com que se dedicou à museologia. Uma de suas iniciativas de maior repercussão foi o Projeto Tainha, que selecio­ nou ambientes propícios para a criação sustentável de pescados. Paralelamente, estudava características morfológicas de peixes, chegando a descrever uma nova espécie, o Trachelyopterus lucenai. Bertoletti defende a ideia de que centros e museus de ciência devem ser espaços para a produção científica. “As coleções têm um PESQUISA FAPESP 237 | 23


apelo científico e servem de apoio à for­ mação de recursos humanos em curado­ ria, por exemplo, ou taxonomia”, diz ele. Em 2007, o museólogo foi o vencedor da 27ª edição do Prêmio José Reis de Divulgação Científica, concedido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Parte do reconhecimento foi creditada ao pio­ neirismo no país na criação de um mu­ seu que funciona sobre as rodas de um caminhão, o Promusit. Inaugurado em 2001, foi o primeiro museu de ciência itinerante do Brasil e se tornou uma re­ ferência. Aos 76 anos de idade, o pesqui­ sador divide seu tempo entre duas casas que projetou para morar, nas cidades de Porto Alegre e Canela. Como começou o seu interesse pelas ciências naturais? Estudei no Colégio Marista Nossa Senhora do Rosário, em Porto Alegre, cujo viés das disciplinas era para o la­ do da natureza. Havia alguns irmãos maristas que traba­ lhavam com história natural e isso me chamou a atenção. Quando tinha uns 7 anos, eu saía com colegas da escola em busca de pedras preciosas em Porto Alegre, que está nu­ ma região granítica. Escavá­ vamos morros e achávamos, por exemplo, quartzo. Come­ cei a colecionar. Tínhamos um porão grande em casa, onde depositava esses mine­ rais e cristais. Além de rochas e minerais, eu guardava alguns bichos, como aranhas, escorpiões e serpentes.

Na verdade, comecei a ter isso claro quando entrei na graduação. O curso da PUCRS não tinha um museu, embora estivesse bem equipado com microscó­ pios, por exemplo. Já no primeiro ano de faculdade comecei a organizar por conta própria as coleções do curso. De 1960, quando entrei, até 1967, organizei uma linda coleção com o apoio do então reitor José Otão e do professor Jacob Kuhn, que depois se tornou o Museu de História Natural da PUCRS. Parte do acervo de minerais havia sido adquirida da Alemanha, por Faustino João, um ir­ mão marista que na época era diretor de ciências da universidade. Como falava várias línguas, encomendou esses mi­ nerais vindos da Europa com facilidade.

mais recente. Por isso comecei a pensar na época em fazer algo novo no Brasil. Um museu que pudesse abrigar não só coleções, mas também laboratórios de pesquisa básica e aplicada. Como foi estruturado o museu na fase inicial? Funcionava em uma área de 220 m2 de exposições, com cerca de 7 mil peças de áreas como arqueologia, zoologia, botâ­ nica, paleontologia, geologia etc. Havia uma réplica de um mastodonte de 3 me­ tros de altura. Tínhamos vários aquários marinhos e de água doce e cerca de 30 aparelhos interativos fabricados por mim para explicar conceitos da física e quí­ mica. Acho importante salientar que na década de 1970 trabalhei co­ mo professor de matemática e coordenador de biologia de dois colégios no Rio Grande do Sul: o Marista Nossa Se­ nhora do Rosário, onde es­ tudei, e o Colégio Estadual Júlio de Castilhos. Em am­ bos também criei museus de ciência. Eles contavam com um corpo docente muito qualificado, laboratórios, bi­ bliotecas. Com isso, comecei a introduzir aos alunos aulas práticas nessas escolas.

O número de museus é insignificante no país considerando que temos mais de 5.500 municípios

Tornou-se um colecionador... Já tinha essa tendência. Com o tempo, comecei a identificar as espécies. Mi­ nha coleção foi crescendo, sem que eu tivesse orientação de professores. Meus pais me incentivaram a cursar medicina, mas acabei fazendo História Natural na PUCRS. É uma graduação que não exis­ te mais no Brasil. Ela dava uma noção muito mais ampla da natureza. Como eu havia criado uma coleção grande de minerais e animais, já tinha em mente trabalhar com museus de ciência. O desejo de criar um museu de ciência o acompanhava desde a infância então? 24 | novembro DE 2015

Na época, o senhor se inspirou em exemplos internacionais? Eu não tinha conhecimento de expe­ riências do exterior ainda – era apenas um estudante. Em 1961, ainda no se­ gundo ano do curso, comecei a traba­ lhar como monitor de mineralogia na PUC, uma disciplina complexa. Depois fui monitor de zoologia e de fisiologia vegetal. Isso, de certa forma, me ajudou a tomar ainda mais gosto pela divulga­ ção científica. Mas eu acompanhava o que acontecia no mundo por meio de revistas internacionais. Lia sobre mu­ seus, principalmente de países da Euro­ pa e dos Estados Unidos. Eram museus grandes, mas muito estáticos. O con­ ceito de interatividade, com atividades dinâmicas como temos hoje em dia, é

Há estudantes que chegam à universidade sem terem entrado em um laboratório antes. Sim, e eu já estava preocupa­ do com isso na época. Vi que a divulgação do conhecimento científico e a popularização da ciência deveriam estar presentes em todas as escolas. Da capital, dos municípios, do estado e até do Brasil. Hoje em dia ainda há muita falta de aulas práticas, como as de mi­ croscopia, de morfologia e de anatomia de animais. Por exemplo, a microscopia de microrganismos vivos ou em lâminas. Orientei um filme amador com alunos sobre a anatomia de um cão de rua do­ ente. Tinha tantas lombrigas no interior do animal e atravessando diversos órgãos dele, como fígado e pâncreas, que cer­ tamente ele morreria em poucos dias. O filme foi divulgado em várias capitais, inclusive Brasília. O problema é que nos­ sos professores, em geral, não são pre­ parados para ensinar dessa forma. Sem


falar da falta de recursos e estrutura. O Colégio Estadual Júlio de Castilhos, por exemplo, na minha época tinha es­ trutura, laboratórios. Hoje, em grande parte, encontra-se tudo sucateado. Há apenas um pequeno museu, mas sem muita finalidade. O museu passou a se chamar Museu de Ciências e Tecnologia posteriormente? Sim. O nome depois mudou por um moti­ vo simples: eu via que a química, a física, a tecnologia e outras áreas do conheci­ mento não estavam presentes no Museu de História Natural. Faltava dar espaço a esses campos. O museu já era bastan­ te visitado, havia mês em que passavam por lá mais de 2 mil alunos. Então come­ cei a ampliar com conteúdo de outras disciplinas. A inserção do termo “tec­ nologia” veio somente em 1993. O Mu­ seu de Ciências e Tecnologia da PUCRS hoje está instalado em 22 mil m2, com uma arquitetura própria, situado em uma área privilegiada dentro do campus da universidade. Sua estrutura tem cinco pavimentos e dois mezaninos, onde estão localizados a área de exposições, o acer­ vo científico e didático, os laboratórios de pesquisa e de formação de professo­ res, além de oficinas e a administração. Há ainda áreas anexas, como oficinas mecânicas, de artes, depósitos, serpen­ tário, espaço de aquacultura e garagens. No total, são mais de 700 experimentos em cerca de 20 áreas temáticas, como Universo, Eletricidade e Magnetismo e Ser Humano.

fotos  arquivo pessoal

Como o museu ganhou sua atual configuração? Estávamos espalhados por diversos pré­ dios até meados dos anos 1980. Em 1985, o então reitor Norberto Rauch me pediu

Bertoletti (centro) apresentando o Projeto Tainha a autoridades de Rio Grande (RS) na década de 1970

um projeto. Entreguei em 1988 o fluxo­ grama que combinava com o currícu­ lo das escolas, explorando a biologia, a zoologia, a botânica, a química, a geo­ grafia e a história. Depois, com ajuda da Fundação Vitae, dirigida por Regina Weinberg, conhecemos outras experi­ ências internacionais, no México, nos Estados Unidos e na Europa, que têm um fluxograma bem diferente do nosso. Quais museus de ciência mais o encantam e servem de referência internacional no momento? Cada um apresenta características pró­ prias, pela tradição ou pela inovação. A atração, a interatividade, o ensino e a aprendizagem variam. Com o conhe­ cimento que tenho de mais de 50 mu­ seus, posso citar alguns. O certo é que os melhores museus estão situados no he­ misfério Norte e nos países mais evoluí­ dos economicamente. Por exemplo, o Ameri­ can Museum of Natu­ ral History, em Nova York, é muito conhe­ cido pela vasta coleção de fósseis. Já o Smith­ sonian National Mu­ seum of Natural His­ tory, em Washington, Expedição organizada por Bertoletti nos anos 1970 com o objetivo de selecionar peixes para pesquisas

tem mais de 120 milhões de peças, é mui­ to forte em pesquisas, especialmente de peixes. O Museum of Science de Boston é muito interativo e dinâmico, abrange várias áreas do conhecimento humano. Ele teve um grande diretor, David Ellis, com quem trabalhei em Porto Alegre, Minas Gerais e São Paulo. Lá, a física e a matemática estão bem representadas. Estão presentes também atrações so­ bre dinossauros e o tubarão do famoso filme Tubarão. O California Academy of Sciences em São Francisco é um dos maiores espetáculos em matéria de mu­ seu moderno. A arquitetura é uma obra­ -prima. Possui áreas de interatividade, exposições diferenciadas e pesquisa bio­ lógica de destaque. Tem também o Cité des Sciences et de l’Industrie de Paris. É um grande e famoso parque de ciências, além de ser um cartão-postal da capital francesa, juntamente com o Louvre. Cito também o Deutsches Museum de Muni­ que, um dos maiores e mais tradicionais museus do mundo. Ele se destaca pela tecnologia e pelas ciências naturais. E o Natural History Museum de Londres, com boas coleções de ciências da vida e da Terra. Na década de 1970, o senhor criou um curso de pós-graduação oferecido pelo museu. Um museu de ciência também deve ser um centro de formação? Em 1972, mandei um projeto para a Ca­ pes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior] para a cria­ PESQUISA FAPESP 237 | 25


Primórdios do Museu de Ciências e Tecnologia: alunos participam de uma aula prática

ção de um curso de osteologia, a ciên­ cia que estuda os ossos. Recebi muitas críticas na época. Muita gente me dizia que um museu não pode ser uma ins­ tituição de ensino nem de pesquisa. A reitoria me comunicou que não era fun­ ção do museu ter um curso de pós-gra­ duação. Dessa forma, cancelei o curso e os alunos foram aproveitados no curso de pós-graduação de paleontologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, para poder identificar, por exemplo, fêmures de animais fossilizados. As co­ leções têm um apelo científico e servem de apoio à formação de recursos huma­ nos em curadoria ou taxonomia. Hoje no museu se desenvolvem três cursos de pós-graduação – Zoologia, Arqueologia e Educação em Ciências e Matemática – com centenas de alunos. O trabalho do museu era apoiado por uma revista de divulgação científica. Qual o balanço dessa experiência? Eu criei e fui editor de duas revistas cien­ tíficas do museu. Chamavam-se Comunicações Científicas e Divulgações do MCT-PUCRS. Infelizmente, a PUC acabou com elas no fim da minha gestão, em 2007. Deve ter tido umas 40 edições. Cir­ culou muito, e mundialmente. Permiti­ ram que fizéssemos um forte intercâmbio internacional, enviando nossas revistas para algumas das principais instituições de pesquisa do mundo, da Bélgica, Ho­ landa, França, Inglaterra, Rússia e Es­ tados Unidos, e recebendo exemplares de publicações dessas instituições. Com 26 | novembro DE 2015

as revistas que recebíamos, montei uma biblioteca com mais de 40 mil volumes. Deixei esse material no museu, mas a PUCRS, que tem uma das maiores biblio­ tecas da América do Sul, anexou esses volumes à biblioteca central. Foi a partir dos anos 1960 que o senhor começou seu trabalho com peixes? Além dos meus trabalhos com museus, eu também pesquisava, com apoio do CNPq [Conselho Nacional de Desen­ volvimento Científico e Tecnológico]: estudava peixes que coletava no Lago Guaíba e na Laguna dos Patos. O obje­ tivo era conhecer a fauna de maneira geral e identificar espécies. As pesquisas começaram dentro do museu e eu con­ tava com a ajuda de alunos do curso de História Natural, que faziam um estágio no museu e no final recebiam um certifi­ cado. Nessa época, descrevi e publiquei uma nova espécie de peixe, o Trachelyopterus lucenai. No total, devo ter mais de 50 trabalhos nessa área. Paralelamente, também atuei como consultor na área ambiental. Fui contratado, por exemplo, pelo Consórcio Nacional de Engenheiros Consultores de São Paulo, pela empresa Hidroservice e por outras grandes em­ presas nacionais e internacionais para coordenar estudos de impacto ambien­ tal na construção de hidrelétricas. Isso implicava um levantamento ambiental complexo, que envolvia fauna, flora, geo­ logia, arqueologia etc. Eu coordenava equipes de mais de 100 pessoas. Eram pesquisadores que iam a campo.

Os resultados de seus trabalhos na identificação de espécies de peixes eram aproveitados de alguma forma pelo museu na PUCRS? Para mim, museus de ciência e pesquisa devem caminhar juntos. Hoje, a maioria dos museus brasileiros não faz pesquisa. Há, claro, levantamentos bibliográficos, de acervo, mas não existe a preocupação de investir em pesquisa científica de fa­ to. No meu caso, eu tinha a preocupação de manter sob o teto do museu cerca de 50 pesquisadores, dedicados exclusi­ vamente aos laboratórios de ictiologia, herpetologia, paleontologia e ornitolo­ gia. Chegamos a organizar uma edição do Congresso Internacional de Ictiolo­ gia dentro do museu, com mais de 300 pesquisadores de todo o mundo. Nosso laboratório foi referência internacional e por meio dele recebi convites para co­ nhecer laboratórios nos Estados Unidos. Em 1974 o senhor criou o Projeto Tainha. Como foi? A produção de camarões e peixes da La­ guna dos Patos estava decaindo drasti­ camente naquele momento. As colônias de pescadores estavam em crise e a in­ dústria de pesca do Rio Grande do Sul também estava indo mal. Comecei a co­ mandar expedições oceanográficas, em parceria com o governo estadual, para buscar peixes. A ideia era coletar espé­ cies e aumentar a coleção científica para pesquisa e, ao mesmo tempo, identificar peixes marinhos do Rio Grande do Sul. A Secretaria de Agricultura do estado tinha um grupo de trabalho dedicado ao desenvolvimento da indústria da pes­ ca. Fiz uma proposta à pasta: modifi­

arquivo pessoal

O senhor trabalhou em São Paulo, não? Sim, fiz estágio no Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo nos anos 1960, que era dirigido pelo Paulo Van­ zolini, um dos maiores pesquisadores de lagartos do mundo. Ele me deu toda a estrutura necessária para pesquisar e queria que eu ficasse com ele, trabalhan­ do com peixes. Com o tempo, passei a ter uma cópia da chave do museu, e ia para lá também aos sábados e domingos. O Van­ zolini me arrumou a casa de uma família perto do museu, que me alugou o quarto principal. Naquela época, também recebi muito apoio do zoólogo Heraldo Britski, do Museu de Zoologia, que trabalha na área de ictiologia, o estudo de peixes.


car a estrutura do posto de piscicultura do município de Osório, como forma de introduzir a piscicultura econômica em várias áreas do estado, e implantar o projeto de seleção de ambientes em águas estuarinas e marinhas para a im­ plementação de criadouros de espécies de importância econômica como tainhas, linguados, camarões e siris. Quais foram os resultados desse projeto? Implantamos a maricultura na cidade de Tramandaí, com a criação de mexi­ lhões. Também introduzimos ostras na entrada do rio Tramandaí, mas não deu muito certo. Alguns de meus alunos de­ pois levaram a ideia para Santa Catarina e alguns até para o Nordeste. E levamos o projeto para o Saco do Jus­ tino, uma enseada na Laguna dos Patos. Entre 1976 e 1978, a região produziu 70 mil qui­ los de camarão e mais de 100 mil quilos de tainha. Os gran­ des beneficiadores locais – que compram e beneficiam o pescado – ficaram abisma­ dos. Por exemplo, com o pro­ jeto, 30 camarões passaram a pesar cerca de 1 quilo. Que­ riam que eu os ajudasse, mas meu objetivo sempre foi be­ neficiar os pescadores mais carentes. O que eu fazia era criar zonas de alimentação natural, além de fertilização química das fazendas aquáti­ cas. Essas áreas atraíam pei­ xes, camarões e siris. Pegava farelo de arroz e semeava to­ dos os dias. No total, fiz 19 projetos de aquacultura no Rio Grande do Sul.

começou para valer em 2001. O projeto foi apresentado à Vitae, que após análise e aprovação financiou toda a estrutura. Primeiramente o objetivo era atender apenas o Rio Grande do Sul, mas com o tempo a carreta começou a se deslocar para outros estados. De 2001 a dezembro de 2007, ano em que eu deixei o museu, foram realizadas 92 exposições aten­ dendo um total de 1,7 milhão de pessoas. A demanda cresceu com o tempo e não conseguíamos atender todos. Foram 138 pedidos não atendidos no Rio Grande do Sul, 10 em Santa Catarina, cinco no Paraná, três em São Paulo. Além dos 60 experimentos interativos, em média, há oficinas pedagógicas. Não são só experi­ mentos. Tem teatro científico, palestras,

Uma das funções desses projetos itinerantes é chegar a locais onde não há museus fixos, certo? Sim. O número de museus de ciência no país é, sem dúvida, insignificante, con­ siderando a existência de mais de 5.500 municípios brasileiros, para uma po­ pulação de 205 milhões de habitantes. Deveríamos ter muito mais museus de ciências no Brasil. Estamos longe disso, mas se justifica a necessidade de cada cidade dispor de pelo menos um museu ou centro de ciências. Vivemos num mo­ mento especial, que exige uma mobiliza­ ção geral para aumentar a sensibilidade sobre a importância da ciência e da tec­ nologia, não só para os estudantes, mas para toda a sociedade. Além da quantidade reduzida, cerca de 272 segundo o Guia de centros e museus de ciência da América Latina e Caribe, os museus também estão concentrados mais nas regiões Sul e Sudeste. Exatamente. O índice ou ní­ vel de cultura de um povo é proporcional ao número e à qualidade de seus centros e museus de ciência. No Bra­ sil, essas instituições come­ çaram a surgir efetivamente, como ação cultural, há ape­ nas três ou quatro décadas. E isso não é algo que deve ser pensado somente para atender estudantes. É para a sociedade. Trata-se de uma ferramenta para melhorar a qualidade educacional, ao apresentar o conhecimento de forma interativa e lúdica. A divulgação de quaisquer ativi­ dades científicas é complexa e exige pre­ cisão dos conteúdos. A leveza da forma de apresentação torna-se fundamental para facilitar a assimilação e a apren­ dizagem. A todo professor deveria ser proporcionada a oportunidade de se ca­ pacitar, através de cursos, reuniões téc­ nicas, palestras, simpósios e estágios. As escolas devem apresentar condições físicas e arquitetônicas adequadas, com laboratórios e bibliotecas virtuais, e com obras essenciais e atualizadas, espaços para reuniões e discussões de assuntos escolares para palestras, conferências e exposições interativas, produzidas pelos alunos no modelo de feiras estudantis. n

Museus de ciência e pesquisa devem caminhar juntos. No Brasil, a maioria não coloca isso em prática

O senhor foi pioneiro no país ao criar o Promusit, o museu de ciência itinerante da PUCRS. Como surgiu a ideia? Eu estava assistindo a um documentá­ rio do projeto itinerante Questacon, da Austrália. Um pesquisador de lá adquiriu verba e comprou um caminhão de carga, que depois foi adaptado e se transfor­ mou em um museu sobre rodas, com vá­ rios experimentos científicos e atrações. Até hoje o caminhão percorre o interior da Austrália e localidades carentes, que nunca tinham visto experimentos de física e de biologia. Aquilo me deu um estalo! Uma vontade de fazer algo similar no Brasil. Montei o projeto em casa e ele

projeção de filmes em 3D, microscopia ao vivo e com lâminas preparadas em laboratório. O senhor também criou o Projeto Escola-Ciência (Proesc). Do que se trata? Diferentemente do Promusit, o Proesc consiste em um ônibus que viaja para atender alunos e professores de escolas comprovadamente carentes. Tem tam­ bém o objetivo de atender portadores de necessidades especiais, meninos de rua. Ele traz dos diferentes locais crianças e adultos e os leva ao MCT. No museu, eles passam o dia sob a orientação de professores. Também são servidas refei­ ções gratuitamente nos restaurantes da PUC­RS. No caso do Proesc, é o ônibus que vai atrás das crianças.

PESQUISA FAPESP 237 | 27


política c&T  Redes de conhecimento y 0

500%

1.000%

Xangai Pequim Seul

fôlego criativo Crescimento percentual da produção científica em cada região metropolitana entre os anos 1996 e 2013

São Paulo Barcelona Madri Roma Milão Toronto Amsterdã-Roterdã Munique Nova York Houston Baltimore Copenhague-Lund Estocolmo-Uppsala Boston Montreal Berlim

O DNA da inovação nas metrópoles

Seattle Manchester-Liverpool Paris Detroit-Ann Harbor Chicago Londres San Diego, La Jolla

Pesquisador mapeia como grandes universidades influenciam a economia e o ambiente das regiões urbanas onde estão instaladas Fabrício Marques

Los Angeles Filadélfia Edimburgo-Glasgow São Francisco Tóquio-Yokohama Osaka-Kobe

Washington Moscou

28  z  Novembro DE 2015

Fonte  WEB of science / thomson reuters e universidade de toronto (2014)


200.000

líderes em conhecimento Publicações científicas de instituições de cada região metropolitana entre 2011 e 2013

100.000

0

Londres Pequim Boston Tóquio-Yokohama Nova York São Francisco

fotos  léo ramos

A

Região Metropolitana de São Paulo, atrás apenas das megalópoles de Xangai e Pequim, na China, e de Seul, na Coreia do Sul, aparece em 4º lugar numa lista de aglomerados urbanos em que o conhecimento gerado pelas universidades cresceu de forma acentuada nos últimos anos, multiplicando interações com empresas e organizações da sociedade e modificando a economia e o ambiente das cidades. O ranking foi apresentado em junho por Méric Gertler, professor do Departamento de Geografia e Planejamento e atual reitor da Universidade de Toronto, no Canadá, em um fórum bianual que reúne líderes de universidades de pesquisa, o Glion Colloquium, na Suíça. O diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz, que participou do encontro, comentou: “Foi uma agradável surpresa assistir à palestra de Méric Gertler, que aconteceu no dia seguinte à minha, e ver o destaque dado a São Paulo como cluster de produção científica”. Referência internacional em estudos sobre geografia da inovação, Gertler compilou dados sobre a produção científica em aglomerados regionais, extraídos da base Web of Science, da empresa Thomson Reuters, e analisou redes de colaboração vinculadas a essa produção. Em seguida, comparou o desempenho de cada região entre 1996 e 2013. Nesse ranking, que mostra a evolução da produção científica nas últimas duas décadas, São Paulo, com um aumento de mais de 400%, e as metrópoles asiáticas (Xangai teve crescimento de 1000%) apareceram nos primeiros lugares, à frente de regiões como Munique, na Alemanha, Boston, nos Estados Unidos, e Londres, na Inglaterra. Gertler também apresentou um ranking de regiões baseado no volume de publicações científicas entre 2011 e 2013. Nessa lista, São Paulo aparece na 32ª posição, com cerca de 40 mil publicações, atrás de regiões consolidadas como São Francisco, Tóquio e Berlim, mas à frente de grandes regiões como Munique e Manchester-Liverpool. Os dados sugerem que universidades de pesquisa imprimem um dinamismo para as regiões que as abrigam, dando impulso à economia, à inovação e à criatividade. Entre as 50 universidades mais bem colocadas no ranking da Times Higher Education, mostrou o reitor, apenas sete estão em aglomerados com menos de 1 milhão de habitantes – nas outras 43, a existência de uma universidade de classe mundial atrela-se a alguma grande região metropolitana, cujas empresas e instituições se beneficiam do conhecimento e dos recursos humanos gerados pela academia ao mesmo tempo que propõem demandas que desafiam o ambiente acadêmico. O aglomerado urbano de São Paulo é definido, na análise de Gertler,

Seul Amsterdã-Roterdã Xangai Paris Los Angeles Osaka-Kobe Toronto Filadélfia Madri Chicago Baltimore Detroit-Ann Harbor Barcelona Moscou Copenhague-Lund Houston Berlim Roma Estocolmo-Uppsala San Diego, La Jolla Milão Montreal Washington Seattle Edimburgo-Glasgow São Paulo

Manchester-Liverpool Munique

pESQUISA FAPESP 237  z  29


como a megalópole de mais de 30 milhões de habitantes formada pela capital paulista, Campinas e São José dos Campos, onde há universidades como a de São Paulo (USP), a Estadual de Campinas (Unicamp), as federais do ABC (UFABC) e de São Paulo (Unifesp) e o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), além de três institutos da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Apenas a USP, que tem seu principal campus na capital paulista, é responsável por 22% da produção científica brasileira, segundo dados da Web of Science. “Esse polo brasileiro tem uma história notável. Há apenas 25 anos, era pouco conhecido e altamente especializado. Hoje, é uma força global”, disse Méric Gertler à Pesquisa FAPESP. “De acordo com dados bibliométricos da Thomson Reuters, em 1990, a USP colaborava com 350 instituições em 28 países. Em 2014, já eram mais de 6,5 mil instituições em 145 países. Isso é extraordinário.”

S

egundo ele, a parceria com universidades é crucial para a reinvenção econômica das cidades. Ele cita como exemplo a trajetória de Pittsburgh, na Pensilvânia, que conseguiu fazer a transição de principal polo siderúrgico norte-americano para uma região próspera e diversificada, referência em atividades como educação, tecnologia, saúde e serviços financeiros. “Pittsburgh se beneficiou tremendamente do impacto da Universidade Carnegie Mellon, da Universidade de Pittsburgh e de outras 35 universidades e faculdades. Da mesma forma, regiões metropolitanas como Boston, São Francisco, Raleigh e Austin se beneficiaram da influência do MIT, das universidades Harvard, Stanford, da Califórnia [em São Francisco], da Carolina do Norte-Chapel Hill, Duke, do Texas [em Austin], e outras escolas menores e menos famosas”, afirmou Gertler. “Isso também vale para o Canadá, em locais como Toronto e Vancouver, e outros, ao redor do mundo. Pense em Singapura ou na região de São Paulo, incluindo São José dos Campos e Campinas, por exemplo.” Muitos países, reconhecendo o valor da participação em redes globais de conhecimento, selecionam algumas de suas universidades líderes em pesquisa para concentrar investimentos, o que ajuda a atrair e reter estudantes e pesquisadores

talentosos. “Isso resulta em enormes crescimentos de publicações, citações e colaborações – e é uma boa notícia para todos”, disse Gertler. O levantamento adota uma metodologia utilizada por outros grupos de pesquisa, segundo a qual indicadores bibliométricos também funcionam para apontar, mesmo que de maneira indireta, o vigor de atividades econômicas e da sociedade civil que naturalmente se conectam com as universidades. “A pesquisa científica é, por definição, uma atividade criativa e inovadora – e ela própria é um motor do desenvolvimento urbano”, escreveram Christian Wichmann Matthiessen, pesquisador da Universidade de Copenhague, Annette Winkel Schwarz e Soren Find, da Universidade Técnica da Dinamarca, num artigo sobre cidades globais publicado em 2009 que utilizou a mesma metodologia usada por Gertler. “O gestor de um fundo de capital de risco foi direto ao ponto ao dizer: o dinheiro flui para onde as ideias fluem”, afirmou Gertler que, adverte, porém, para as conhecidas limitações do uso de indicadores bibliométricos, que em geral falam muito sobre quantidade, mas não necessariamente sobre qualidade. Méric Gertler dedicou boa parte de sua carreira acadêmica a estudar as economias das regiões urbanas e o papel que grandes instituições, como universidades, desempenham no seu desenvolvimento. Segundo ele, há vários meios pelos quais universidades de pesquisa intensiva impulsionam regionalmente a inovação, a prosperidade e a reinvenção da economia. Em primeiro lugar, diz, universidades são fontes de dinamismo e resiliência para as economias das regiões urbanas. Elas gerenciam orçamentos vultosos e propiciam pesquisas em parceria com indústrias, instituições e organizações sem fins lucrativos. “Esse tipo de pesquisa baseado em parcerias muitas vezes leva a novos achados em ciência fundamental e aplicada. Quando parceiros locais trabalham com uma universidade, professores e alunos são tanto os provedores de novas ideias como seus beneficiários. Além disso, grande parte da pesquisa realizada dentro de nossas instituições encontra o seu caminho no mercado através de canais como acordos de licenciamento de tecnologia, patentes e startups.”

fotos 1 universidade de toronto 2 léo ramos

“O gestor de um fundo de capital de risco foi direto ao ponto ao dizer: o dinheiro flui para onde as ideias fluem”, afirma Gertler


O reitor da Universidade de Toronto, Méric Gertler: referência internacional em estudos de geografia da inovação

1

Formar capital humano, observa Gertler, representa a principal contribuição das universidades para suas regiões e países. “Educar os estudantes é, de longe, a mais importante forma de transferência de tecnologia das universidades. Eles são uma injeção poderosa de criatividade, compromisso e energia em sua comunidade”, diz o reitor. E isso funciona para todas as áreas do conhecimento. “Muitas vezes ouvimos que nossos países precisam de mais graduados em ciências, tecnologia, engenharia e matemática. Estes campos, é claro, são cruciais. Mas deve-se dizer que os graduados em ciências humanas e ciências sociais geram dinamismo e resiliência na mesma medida. As ciências humanas e sociais nos permitem pensar de forma ampla e profunda sobre nossos problemas e os valores que nos orientam a criar soluções.” Na era digital, segundo ele, é preciso ser capaz de analisar as informações de forma crítica e criativa, de ordenar os pontos-chaves para formar argumentos persuasivos, de ouvir e aprender com outras perspectivas. Universidades de pesquisa também funcionam como portas de entrada que conectam suas regiões com o mundo e vice-versa. “Colaborações entre pesquisadores e publicações em coautoria estão se acentuando ao longo do tempo e cada vez mais têm caráter internacional. Não são distribuídas aleatoriamente. Com mais frequência, as parcerias internacionais são celebradas entre instituições de elite, localizadas em outras grandes regiões urbanas. Nas palavras de um recente editorial na revista Nature, a excelência busca a excelência, por isso universidades nacionais de elite também lideram colaborações internacionais”, afirma o reitor. Isso é importante, observa Gertler, porque a prosperidade presente e futura das universidades dependem de sua

capacidade de ter acesso e de usar não apenas o conhecimento produzido localmente mas também aquele produzido em outros centros principais de pesquisa e inovação em todo o mundo. As universidades, por fim, exercem uma influência estabilizadora em sua vizinhança. “Tomando emprestado um conceito do varejo, nossas instituições são como ‘lojas-âncora’ nas comunidades. O tamanho das nossas instituições gera um impacto econômico substancial em toda a região – na criação de empregos, na receita fiscal e no empreendedorismo”, diz Gertler, que também aponta o impacto local positivo das atividades de extensão exercidas por seu corpo docente, funcionários e alunos em comunidades vizinhas e bairros. Um exemplo: estudantes de odontologia da Universidade de Toronto atenderam 78 mil pacientes no ano passado, como parte da atividade de extensão.

U

niversidades também contribuem para a reconstrução da infraestrutura física das cidades e, com frequência, desempenham papel de liderança na regeneração do tecido urbano. “Não é à toa que tantos municípios recorrem a instituições de ensino superior para dar vitalidade a seus centros urbanos envelhecidos.” A cidade de São Paulo foi formada pela convergência de movimentos econômicos favoráveis, como o do café e a industrialização, a diversidade cultural promovida por processos migratórios e o desenvolvimento científico fomentado por grandes universidades, observa Leandro Medrano, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. “Sua liderança regional está ligada a essa singular situação que transformou uma vila na maior megacidade da América Latina em menos de um século. Tal diversidade e pujança econômica impulsionaram ciclos conpESQUISA FAPESP 237  z  31 3


ocupa a 12ª colocação, superada, por exemplo, pelo Vale do Silício (Califórnia), Nova York, Los Angeles e Boston, nos Estados Unidos. No caso de São Paulo, o estudo aponta como pontos fortes o fato de ser a capital econômica da América Latina, além do financiamento às empresas nascentes de tecnologia em atividade, cujo número estimado chega a 2,7 mil. Os investimentos de fundos de capital de risco em startups tecnológicas de São Paulo em 2014 foram maiores que os feitos em empresas de Seattle, nos Estados Unidos. “São Paulo possui mais talentos do que qualquer ecossistema de startups da América do Sul”, destacam os autores do estudo. A pujança de aglomerados de inovação desaenato de Castro Garcia, professor do Instituto de Economia da Unicamp, lembra que fia a ideia de que, por meio da globalização, o a região de São Paulo sofreu um processo mundo se tornou plano, proposta num livro do de fuga de indústrias para regiões com custos me- jornalista norte-americano Thomas Friedman, nores e facilidades logísticas. “Mas as soluções observa Veneziano de Castro Araújo, professor tecnológicas das empresas têm mais dificuldade de economia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). de se descentralizar, porque a “É certo que a globalização proximidade física e geográfica levou a uma convergência que com a geração do conhecimenpermitiu a países como Índia to tem um peso importante”, e China ingressarem na cadeia afirma. Garcia orientou uma global de fornecimento de serdissertação de mestrado, defen“A proximidade viços e produtos, mas contidida na USP pela economista geográfica com nuam a existir pontos em que a Ariana Ribeiro Costa, que anacompetência se aglomera meslisou a dinâmica das empresas a geração do mo dentro desses países”, afirde tecnologia de informação ma Araújo, que em 2013 defenda Região Metropolitana de conhecimento deu tese de doutorado na USP, São Paulo. “As empresas que também orientada por Renato se concentram na cidade e em tem peso Garcia, abordando os efeitos regiões próximas a ela são inimportante da proximidade na dimensão tensivas em conhecimento”, diz local da inovação no Brasil. Ariana. Ela concluiu que essas para as Ele cita o exemplo da criação empresas seguem se concenda Unicamp. “A universidade trando nas vizinhanças da caempresas”, diz começou a formar engenheipital paulista porque, a despeito ros bastante qualificados e seu dos custos, identificam na cidaRenato Garcia entorno a atrair empresas, que de elos para sua consolidação e ampliaram a demanda por esoportunidades de troca de coses profissionais. A necessidade nhecimento. “O contato face a face e a diversificação produtiva exercem um papel das empresas também exigiu que os engenheiros fundamental nessa concentração e nas trocas de aprendessem tecnologias que não estavam dispoconhecimento geradas nesses ambientes”, afirma níveis e incentivou colaborações com a universiAriana, que utiliza o conceito de conhecimento dade. E outras empresas que desejavam vir para o tácito, bastante explorado por Méric Gertler em Brasil escolheram Campinas para se instalar, inteseus estudos sobre aglomerados econômicos. O ressadas na boa interação entre a universidade e as conhecimento tácito, que se opõe ao conhecimen- indústrias”, explica. “A Embraer é outro exemplo to codificado em livros, é aquele que não é facil- e surgiu a partir da mão de obra formada pelo ITA, mente transferível e depende de contato pessoal, mas hoje absorve engenheiros formados na USP e interação regular e confiança para ser repassado. na Unicamp. Isso é possível graças à proximidade, O trabalho de Ariana ajuda a explicar por que à especialização e ao conhecimento tecnológico a capital paulista foi a única metrópole da Amé- da região”, afirma. Esses fatores não impedem, rica Latina listada na última edição do relatório diz Araújo, que se intensifiquem interações entre Global Startup Ecosystem Ranking 2015, que avalia pesquisadores e empresas de regiões distantes, o ambiente para o desenvolvimento de empresas mas elas não fluem com a mesma velocidade que nascentes de tecnologia, as startups. São Paulo as colaborações dentro dessas aglomerações. n

tínuos de inovação em diversos setores, como a ciência, a cultura e as artes”, afirma. Na avaliação de Medrano, a maior ameaça a essa estrutura é a violência urbana e o desejo de confinamento de parte da sociedade. “A proliferação de condomínios fechados, verticais e horizontais, e centros comerciais poderia fracionar a cidade em microssistemas murados. E com isso prejudicar suas potencialidades como centro de inovação. Felizmente essa tendência dos anos 1980 e 1990 parece estar tomando outros rumos. São Paulo pode estar iniciando um novo ciclo de avanço em relação às suas virtualidades urbanas”, diz.

fotos léo ramos

R


Genômica y

Medicina de precisão Centros apoiados pela FAPESP criam plataforma comum de dados genéticos em busca de terapias talhadas para cada paciente

Shaury Nash / Flickr

P

esquisadores de cinco Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP reuniram-se num esforço para dar impulso à medicina de precisão, abordagem que busca integrar informações clínicas e moleculares sobre doenças a fim de gerar tratamentos talhados para cada paciente. A Brazilian Initiative on Precision Medicine (BIPMed) prevê a criação de uma plataforma computacional que abrigará dados genéticos gerados pelos cinco Cepids e outros grupos brasileiros. O banco de dados vai seguir a metodologia da Global Alliance for Genomics and Health (genomicsandhealth.org) e integrar-se a esse consórcio, composto por 300 instituições de vários países, que busca criar terapias a partir da medicina genômica. O interesse pela medicina de precisão é internacional. Em janeiro, o presidente norte-americano Barack Obama anunciou investimentos de US$ 200 milhões nesse campo de pesquisa. Em São Paulo, já existem múltiplas ações com resultados de impacto em medicina personalizada. O Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano e Células-Tronco da USP descobriu a mutação de um gene que protegeu cães de desenvolver um quadro grave de distrofia muscular. O achado tem potencial para mitigar sintomas da doença em seres humanos (ver reportagem de capa na página 14). Já uma equipe do Instituto Ludwig para a Pesquisa do Câncer e do Centro de Oncologia Molecular do Hospital Sírio-Libanês está finalizando uma nova geração de testes para detectar o câncer precocemente. A oncologia, diz Anama-

ria Camargo, líder da equipe, é das áreas da medicina em que a personalização do tratamento está mais desenvolvida (ver reportagem na página 64). dados genômicos

“A plataforma poderá ser consultada por qualquer pesquisador do Brasil ou do mundo interessado em saber informações sobre dados genômicos e características fenotípicas encontradas em pacientes e/ ou populações de controle, se são muito ou pouco prevalentes na população ou se estão associados a alguma doença ou condição, por exemplo”, explica Munir Skaf, professor do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (IQ-Unicamp) e coordenador do Centro de Pesquisa em Engenharia e Ciências Computacionais (CCES), um dos Cepids parceiros. Além do CCES, incumbido de organizar a plataforma computacional da BIPMed, participam da iniciativa quatro Cepids da área da saúde: o Centro de Pesquisa em Doenças Inflamatórias e o Centro de Terapia Celular, sediados na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP), o Centro de Pesquisa em Obesidade e Comorbidades, o Instituto de Pesquisa sobre Neurociências e Neurotecnologia, sediados na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp. “Estamos agregando ao nosso grupo a competência de um bioinformata, o Helder Nakaya. Isso irá aumentar a produção de resultados a serem incorporados ao novo projeto”, diz Fernando de Queiroz Cunha, professor da FMRP-USP e coordenador do Cepid sobre doenças inflamatórias.

Comparação de sequências de DNA de diversos indivíduos

A mobilização dos Cepids, que atuam em temas na fronteira do conhecimento e recebem financiamento de longo prazo, aconteceu naturalmente. Vários desses centros trabalham com dados genéticos e lidam com o desafio de analisá-los e interpretá-los. “Para que possamos fazer análises complexas, precisamos de volumes de dados muito grandes e leva tempo para gerar um número significativo de informações capaz de indicar se uma determinada característica tem a ver com um polimorfismo genético, por exemplo”, diz Fernando Cendes, professor da FCM-Unicamp e coordenador do Instituto de Pesquisa sobre Neurociências e Neurotecnologia. O centro estuda os mecanismos da epilepsia e do acidente vascular cerebral na população brasileira e trabalha com dados genéticos e diagnóstico por imagem. “Os repositórios de bancos de dados são importantes para fazer esse tipo de análise e existem várias iniciativas mundo afora, como as que estudam o câncer e o Alzheimer”, diz. Segundo Cendes, os Cepids vão se beneficiar da iniciativa desenvolvendo ferramentas e técnicas que representam, elas próprias, avanços no conhecimento. A montagem completa da plataforma deve demorar algum tempo. “Não é um projeto que se faça em menos de quatro ou cinco anos e essa é outra razão pela qual os Cepids, que podem ser financiados por mais de 10 anos, têm vocação para organizá-lo.” n Fabrício Marques pESQUISA FAPESP 237  z  33


Políticas Públicas y

Doação de órgãos

A arte de dar más notícias Segundo estudo, treinamento deficiente de profissionais da saúde ajuda a explicar aumento na recusa das famílias brasileiras Bruno de Pierro

O

número de famílias que não autorizam a doação de órgãos e tecidos de parentes com diagnóstico de morte encefálica aumentou significativamente no Brasil. Em sete anos, a taxa de recusa familiar dobrou, saltando de 22% em 2008 para 44% em 2015, segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO). Países como Austrália e Reino Unido enfrentam situação semelhante que, aliada a falhas na identificação e notificação de potenciais doadores, dificulta a realização de transplantes. Um estudo conduzido por pesquisadores da Escola Paulista de Enfermagem da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) buscou mapear as razões da recusa familiar. O principal motivo identificado pela pesquisa é que boa parte das famílias (21%) não compreendeu o conceito de morte encefálica. Já 19% atribuíram a decisão a crenças religiosas e

34  z  novembro DE 2015

outros 19% responsabilizaram a falta de competência técnica da equipe hospitalar. No total, foram ouvidas 42 famílias que haviam sido consultadas pelo Serviço de Procura de Órgãos e Tecidos da Escola Paulista de Medicina da Unifesp, ligado ao Hospital São Paulo, em 2010. A conclusão mais importante foi a de que, apesar da falta de conhecimento técnico sobre a morte encefálica, as chances de a família aderir à possibilidade de doação são diretamente proporcionais à capacidade de os profissionais da saúde criarem empatia durante a entrevista na qual a doação é solicitada aos familiares. Um dado que surpreendeu os pesquisadores é que aproximadamente 43% das famílias consideraram insuficiente o tempo dado a elas para a tomada de decisão. É certo que há pressa em conseguir a autorização, pois órgãos como coração e fígado não podem mais ser aproveitados quando


Transplantes que não acontecem Famílias consultadas sobre doação de órgãos e número de recusas – de janeiro a junho de 2015 número de recusas

número de entrevistas

342

São Paulo 90

Rio de Janeiro

239

85

Rio Grande do Sul

217

92

Paraná

199

74

Santa Catarina

92

Pernambuco

192 169

Minas Gerais

54

155

Ceará

64

150

Bahia

83 28

73

Goiás

47

70

23

50

Rio Grande do Norte

20

41

Pará

21

40

Maranhão

26

38

Mato Grosso do Sul

21

29

Amazonas

16

26

Paraíba

13

25

Piauí

15

25

Sergipe

16

19

Acre

12

18

Alagoas

8

16

Rondônia

10

14

Mato Grosso

2

Amapá, Roraima e Tocantins não notificaram entrevistas com familiares de potenciais doadores no período levantado

139

Distrito Federal

Espírito Santo

901

3

Fonte ABTO

o coração para de bater. A queixa das famílias é que a abordagem foi feita de forma mecânica, até mesmo truculenta, sem respeitar o atordoamento de quem acabou de receber uma notícia trágica. “As pessoas precisam de tempo para assimilar a perda do familiar”, diz Bartira De Aguiar Roza, professora da Unifesp e coordenadora do estudo. Segundo ela, a dificuldade reside no fato de muitos médicos e enfermeiros não estarem preparados para comunicar más notícias de maneira respeitosa e esclarecedora. O estudo também indicou que, entre 1998 e 2012, cerca de 21 mil famílias se recusaram a doar órgãos. Se 80% delas tivessem aceitado a doação, supondo a possibilidade de extrair pelo menos quatro órgãos de cada doador, mais de 67 mil pacientes teriam sido transplantados nesse período. Bartira reconhece que a crença religiosa interfere. Em um dos casos de recusa, uma mulher

contou que não doaria os órgãos da mãe porque acreditava na ressurreição. “A interpretação pessoal de textos religiosos pode levar a uma postura desfavorável à doação, ainda que nenhuma religião se oponha a ela”, afirma Bartira. Mesmo nesses casos, a pesquisadora acredita que a culpa não deve ser totalmente atribuída à família, pois o desempenho do profissional da saúde que propõe a doação também pode ser decisivo. Tanto isso é verdade que, quando questionado se mudaria de opinião, 70% do total de famílias respondeu que hoje optaria pela doação. Para outro autor do estudo, João Luis Erbs Pessoa, diretor técnico da Central de Transplantes da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, uma das principais funções do profissional que lida com doações de órgãos deve ser esclarecer todas as dúvidas dos familiares. “Quem tem a obrigação de entender de morte encefálica são pESQUISA FAPESP 237  z  35


os médicos e enfermeiros, não a família”, diz Pessoa. O grau de instrução escolar dos familiares que participaram da pesquisa foi diversificado: 29% deles concluíram o ensino fundamental, 33% o ensino médio, 36% se graduaram e 2% tinham doutorado. A maior parte das famílias (48%) tinha renda de um a três salários mínimos e 64% declararam-se católicos. “A pesquisa indica que o que está em jogo não é saber se a população conhece o conceito de morte encefálica, mas sim se é bem tratada pelos profissionais da saúde. Muitas vezes subestimamos os familiares, mas eles sabem quando os procedimentos da entrevista são equivocados”, explica Pessoa.

O

estudo sugere investir mais no treinamento das pessoas que trabalham na captação de órgãos. Em Santa Catarina, estado com uma das menores taxas de recusa familiar (ver gráfico na página 35), os coordenadores de transplantes que atuam em hospitais da rede pública de saúde passam por curso de comunicação em situações críticas, oferecido pela Secretaria Estadual de Saúde. “Os profissionais aprendem a dialogar com sensibilidade com os familiares e a se colocarem à disposição para esclarecer dúvidas”, diz Joel de Andrade, coordenador estadual de transplantes de Santa Catarina. Experiências desse tipo também têm sido colocadas em prática na Unifesp, no Hospital das Clínicas da Universidade

“As pessoas precisam de tempo para assimilar a perda do familiar”, diz Bartira De Aguiar Roza, da Unifesp

de São Paulo (HC-USP) e no Hospital Israelita Albert Einstein, na capital paulista. “O diagnóstico de morte encefálica é angustiante e desperta muitas dúvidas. É uma morte que não parece morte, pois o coração continua batendo. Isso faz com que a família ainda tenha esperanças de recuperação”, explica Juliana Gibello, professora do curso de Comunicação de Más Notícias do Albert Einstein, criado no início do ano. Com carga horária de 30 horas e on-line, o curso é direcionado a médicos, enfermeiros, psicólogos, entre outros profissionais. Os módulos abrangem desde conceitos fundamentais da comunicação interpessoal até os processos que envolvem morte e luto. Ao longo de todo o curso, os alunos discutem casos clínicos. “Esse tipo de treinamento e discussão deveria ser feito desde a graduação nos diversos cursos da área da saúde”, sugere Juliana. As iniciativas brasileiras buscam inspiração no modelo espanhol de doação de órgãos, que se tornou referência internacional. A taxa de recusa familiar na Espanha é hoje uma das menores do mun-

A resistência em alguns países Taxas de recusa familiar a potenciais doações de órgãos em 2014 Fonte Comissão Europeia/ ONT

Paraguai

13%

Cuba

16%

Espanha

17%

Estados Unidos Itália

21% 31%

Reino Unido

42%

Brasil

42%

Argentina Suíça Turquia 36  z  novembro DE 2015

48% 57% 77%

do, de 17%. Parte desse sucesso se deve à forma como profissionais da saúde lidam com as famílias. “Respeito e empatia são o cerne da questão”, disse à Pesquisa FAPESP Carmen Segovia Gomez, uma das fundadoras da Organização Nacional de Transplantes (ONT), criada em 1989, vinculada ao governo espanhol. Além da coordenação nacional de captação de órgãos para transplantes, outra tarefa da ONT é organizar cursos de comunicação de más notícias. A entidade foi a primeira no mundo a criar esse tipo de treinamento para profissionais da saúde. “Essa formação específica permite que o profissional desenvolva habilidades de comunicação para fazer com que um familiar em crise de luto sinta-se livre e confiante para tomar sua decisão”, conta Carmen, que atualmente dirige o curso da ONT. Em uma das etapas do curso, os alunos interagem com atores, que fazem o papel de familiares recebendo a notícia da morte encefálica. Na simulação, os alunos são instruídos a fazer uma abordagem sensível, perguntando primeiro como era a vida do familiar, do que ele gostava, para só então abrir a possibilidade de autorizar a doação. Na província espanhola de Alicante, esse tipo de abordagem chegou a zerar a recusa nos anos 1990. Nos últimos anos, Carmen também colaborou como consultora em alguns filmes do cineasta Pedro Almodóvar, como Tudo sobre minha mãe (1998), no qual a personagem de uma enfermeira que atua na coordenação de transplantes em um hospital foi inspirada no trabalho da fundadora da ONT. Embora a prioridade na Espanha seja promover boas práticas de comunicação entre profissionais da saúde, o país também investe em campanhas de esclarecimento. Marcelo José dos Santos, pesquisador da Escola de Enfermagem da USP, participou como aluno do curso oferecido pela ONT, durante uma viagem à Espanha em 2001. Segundo ele,


venilton kulcher

lá a doação de órgãos é um tema apresentado a crianças e adolescentes desde o ensino básico, por meio de programas educativos. “No Brasil, ainda temos muito trabalho a fazer nesse sentido. Não basta investir só em treinamento dos profissionais da saúde”, adverte. “Aqui, a população ainda confunde muito morte encefálica com coma, por exemplo”, diz Santos, que atualmente realiza um estágio de pós-doutorado sobre o assunto, cujos resultados parciais mostram que a recusa familiar é maior ainda em relação à autorização de doação de tecidos ósseos, pele e córnea. Uma das pistas para explicar a rejeição seria o fato de as famílias desconhecerem a possibilidade desse tipo de doação ou terem aversão à ideia de que o corpo seja mutilado. Também os Estados Unidos e o Reino Unido passaram a investir em campanhas. No primeiro caso, os esforços têm contribuído para aumentar o número de doadores. Atualmente, mais de 100 milhões de norte-americanos, pouco mais de um terço da população, declaram-se doadores de órgãos. Apesar disso, o governo segue preocupado com a recusa familiar, que no momento está em torno de 22% no país.

U

ma pesquisa feita pela Rede de Transplantes e Procura de Órgãos norte-americana (OPTN) mostrou que os motivos que levam famílias a não doar órgãos de parentes são os mesmos encontrados em outros países. Uma das estratégias adotadas pelo governo foi esclarecer a população por meio do site Organ Donor (www.organdonor. gov), pelas redes sociais e campanhas em rádio e TV. Pesquisadores também são convidados a participar para divulgar informações sobre procedimentos relacionados à doação. O Reino Unido apresenta atualmente uma taxa de recusa familiar de 42%, uma das mais altas do continente europeu. No ano passado, o número de doações caiu pela primeira vez em 11 anos. Segundo um levantamento do National Health Service (NHS), o sistema público de saúde inglês, 16,9 milhões de pessoas – cerca de um terço dos adultos no Reino Unido – admitem que nunca consideraram a possibilidade de se tornarem doadoras de órgãos. Outros 4 milhões declararam ser doadores, mas nunca avisaram um familiar. Para tentar reverter isso, o governo britânico criou um site (www.organ-

Chegada de órgãos para realização de transplante em hospital no Paraná

“Respeito e empatia são o cerne da questão”, diz Carmen Segovia sobre a abordagem das famílias

donation.nhs.uk) com esclarecimentos sobre o processo de doação de órgãos. Segundo Bartira Roza, uma das hipóteses que explicam o aumento da recusa familiar em alguns países da Europa é a repercussão negativa de um episódio ocorrido na Alemanha em 2013. Na ocasião, descobriu-se que o responsável pelo setor de transplantes do Hospital Universitário de Göttingen, manipulou a fila de transplantes, alterando dados médicos de pacientes que esperavam por um órgão. Após o escândalo ser re-

velado, o número de órgãos doados caiu 20% no país. Bartira lembra que o Brasil já passou por situação parecida, quando uma mudança na legislação resultou na queda drástica do número de doações. Em 1997, foi instituída a doação presumida, pela qual todo cidadão passou a ser considerado doador de órgãos, a menos que optasse por registrar o desejo contrário no documento de identidade. O efeito foi o oposto do desejado. No Nordeste, a maioria dos indivíduos declarou-se não doadora na hora de tirar ou renovar a identidade. “As pessoas tinham medo de entrar nos hospitais e morrerem por conta do descaso”, conta Bartira. Em 1998, uma medida provisória instituiu a autorização familiar nos casos de ausência de manifestação nas carteiras nacionais de habilitação ou nos registros de identidade. Somente em 2001 a doação consentida pela família foi incorporada na legislação. Para a pesquisadora, qualquer mudança na lei pode determinar o sucesso ou o fracasso das doações de órgãos no país. “As estratégias precisam estar em sintonia com o contexto cultural e ético da sociedade”, diz Bartira. n

Projeto Avaliação das causas de recusa familiar para a doação de órgãos e tecidos (nº 2012/05348-2); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Bartira De Aguiar Roza (Unifesp); Investimento R$ 10.382,80.

pESQUISA FAPESP 237  z  37


Mudanças climáticas y

1

Do desmatamento à poluição urbana Código Florestal deve ajudar o país a reduzir gases estufa, mas metas para 2030 dependem de modernização das indústrias, mostra relatório

38  z  novembro DE 2015

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missões de gases do efeito estufa causadas pelo desmatamento da Amazônia podem ser zeradas a partir de 2030 caso o novo Código Florestal brasileiro seja implementado integralmente. Essa é a principal conclusão do relatório Land use change in Brazil: 2000-2050, realizado por pesquisadores ligados ao projeto “Redução de emissões por desmatamento e degradação florestal (Redd-PAC)”, financiado pela International Climate Initiative, do governo alemão, com apoio da FAPESP. Os resultados do estudo foram apresentados no dia 7 de outubro na sede da Fundação, em São Paulo, e serviram de parâmetro para a elaboração da proposta brasileira de redução de emissões de gases de efeito estufa (INDC, na sigla em inglês), levada em setembro pela presidente Dilma Rousseff à Conferência das Nações Unidas para a Agenda de Desenvolvimento Pós-2015, em Nova York. Segundo o estudo, com a progressiva redução do desmatamento, mais esforços deveriam ser direcionados para combater a poluição gerada por outros setores, como o energético e o industrial. Sem investimentos em energias renováveis e na modernização de linhas de produção, por exemplo, será mais difícil o Brasil


Emissões brasileiras Evolução do lançamento de CO2 no país por setor

fotos 1 JONNE RORIZ / AE  2 eduardo cesar

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Complexo industrial de Cubatão, na Baixada Santista (à esq.), e área de reflorestamento para compensação ambiental das obras do Rodoanel, em São Paulo: o peso da indústria na emissão de gases de efeito estufa vem aumentando

cumprir a promessa de diminuir suas emissões em 37% até 2025 (em relação a 2005) e em 43% até 2030. A meta brasileira será apresentada pelo governo durante a 21ª Conferência das Nações Unidas para Mudanças Climáticas (COP 21), que ocorrerá entre os dias 30 de novembro e 11 de dezembro em Paris. Uma das projeções fornecidas pelo estudo indica que, em um cenário de plena aplicação do Código Florestal, com a restauração de áreas desmatadas nas margens de rios e em nascentes, seriam reflorestados cerca de 11 milhões de hectares (ha) no país até 2030. E as reduções de emissões por desmatamento no Brasil poderiam chegar a 110 milhões de toneladas de dióxido de carbono (CO2) em 2030. Essa marca representaria uma queda nas emissões de 92% em relação a 2000, quando se atribuiu ao desmatamento cerca de dois terços do CO2 lançado na atmosfera pelo país. “Isso significa que, para o Brasil, os desmatamentos tendem a deixar de ser um grande problema para o clima. O foco principal, neste momento, deve ser reavaliar a questão energética e o impacto da indústria nas emissões de gases de efeito estufa”, explicou Gilberto Câmara, pes-

Energia Agropecuária

12%

16%

3% Indústria

1990

1% Resíduos

68%

Mudança de uso da terra

Energia

29%

27%

2013 35%

Agropecuária

Mudança de uso da terra

6% Indústria

3%

Resíduos

Fonte  instituto de energia e meio ambiente (iema)

pESQUISA FAPESP 237  z  39


“É preciso reavaliar o setor de energia e o impacto da indústria nas emissões”, diz Gilberto Câmara

“Projetamos uma redução em 10 milhões de ha de área de pastagem entre 2010 e 2030. Nesse ano, deveremos ter aproximadamente 230 milhões de cabeças de gado no país, ocupando 30% menos área por cabeça do que em 2000”, ressaltou Câmara. Atualmente, existe no país cerca de 200 milhões de cabeças de gado em uma área de aproximadamente 200 milhões de ha –média de uma cabeça por hectare. Esse tipo de pecuária, chamada de extensiva, predomina no Brasil. Para que as projeções do estudo aconteçam, o país precisa aumentar os investimentos em métodos alternativos capazes de elevar a produtividade agropecuária sem prejuízos ambientais. Um exemplo de técnica ainda incipiente 1

por aqui é o sistema silvipastoril. Nele, o gado é criado em meio a florestas, em pastos arborizados, o que permite manter até cinco animais por hectare e produzir de 10 mil a 15 mil litros de leite por ano/ha, sem adubação e quase sem suplementação alimentar (ver Pesquisa FAPESP nº 192). “Reduzir o desmatamento implica fazer um melhor uso do solo. No entanto, diferentemente do que se pode imaginar, ainda não resolvemos esse problema no Brasil”, disse Sergius Gandolfi, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP). Segundo Gandolfi, que participou dos debates que antecederam a aprovação do novo Código Florestal, é preciso ver a lei não só pelo impacto nas emissões, mas de maneira ampla. Para ele, uma retomada do Código Florestal anterior, que obriga a recuperar mais florestas, é necessária e ainda possível. Também permitiria, diz Gandolfi, uma maior e mais precoce redução das emissões, além de efetivamente salvar rios, lagos, mangues etc. “Retomar parte da legislação anterior é possível, porque atualmente tramitam no Supremo Tribunal Federal quatro ações diretas de inconstitucionalidade [Adins] contra o atual Código Florestal”, diz. O Ministério Público Federal questiona a constitucionalidade de dispositivos da nova lei relacionados às áreas de preservação permanente (APPs), à redução da reserva legal e também à anistia para quem promove degradação ambiental. “Assim, o documento aprovado há três anos ainda pode ser revertido em muitos pontos importantes”, explica Gandolfi. De acordo com o pesquisador, cerca de 90% dos percursos de rios do país estão concentrados em calhas inferiores a 10 metros de largura. Para essas áreas, a legislação anterior, de 1965, previa uma faixa de proteção ciliar de 30 metros a cada margem, para proteger os riachos. “O código atual permite que a faixa de proteção seja reduzida de acordo com o tamanho da propriedade. Pode ter, por exemplo, apenas 5 metros, ou seja, seis vezes menor”, explicou. Segundo Gan-

Mina de carvão na China: o país se comprometeu a reduzir emissões, mas só a partir de 2030 40  z  novembro DE 2015

fotos 1  Peter Van den Bossche  2 Secretaria de Agricultura e Abastecimento SP

quisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e coordenador do projeto Redd-PAC, que contou a com a participação de pesquisadores dos institutos de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Internacional para Análises de Sistemas Aplicados (Iiasa, na sigla em inglês) da Áustria, além do Centro para Monitoramento da Conservação Mundial do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. “Não precisamos de mais legislação ambiental para conter o desmatamento. A questão hoje é fazer cumprir o Código Florestal”, disse Câmara. Aprovado em 2012, o código busca combater o desmatamento ilegal. Determina a recuperação de áreas de reserva legal e torna obrigatório o Cadastro Rural Ambiental (CAR), instrumento criado para regularizar propriedades rurais e monitorá-las. O relatório estima que, com o cumprimento de tais medidas, o Brasil poderá conciliar produção agrícola com proteção ambiental. A expectativa é de que a área cultivada cresça nas próximas décadas, indo de 56 milhões de ha em 2010 para 92 milhões de ha em 2030, podendo atingir 114 milhões em 2050. Na avaliação dos pesquisadores responsáveis pelo trabalho, a atual legislação ambiental possibilita a ampliação do uso da terra, tanto para a produção de alimentos quanto para a de bioenergia, sem fazer com que o desmatamento cresça. No caso das pastagens, a expectativa é de que haja até uma redução da área utilizada, conforme sejam desenvolvidas técnicas para o aumento da produtividade.


Integração entre lavoura, pecuária e floresta no interior paulista: aumento da produtividade e baixo impacto ambiental

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significa adotar inovações tecnológicas que não só reduzam o consumo de energia e outros insumos, mas também levem a indústria a um desempenho comparável ao dos países industrializados”, escreveu Goldemberg em um artigo publicado no dia 19 de outubro no jornal O Estado de S.Paulo. protocolo climático

dolfi, uma faixa de proteção florestal de 5 a 8 metros não seria capaz de fazer a retenção de sedimentos e excesso de adubo que vão para os rios. “Isso mostra como o uso do solo ainda permanece precário no Brasil, com áreas de margens de rios e nascentes que deveriam ser reflorestadas, para garantir a segurança hídrica, sendo legalmente convertidas em áreas de produção”, diz. Mudanças estruturais

Além do Brasil, outros países anunciaram suas propostas voluntárias para conter as emissões de gases de efeito estufa. Os Estados Unidos, responsáveis por 14% das emissões globais, pretendem reduzi-las em até 28% em 2025, em comparação com 2005. Já a China, responsável por 28% das emissões no mundo, reafirmou recentemente seu compromisso de alcançar o seu nível máximo de emissões de gases estufa no ano de 2030 ou antes dessa data, se for possível. Atualmente, segundo dados oficiais, o carvão atende a 66% da demanda energética do país, à frente do petróleo (18,4%) e do gás natural (5,8%). As reduções esperadas nas emissões, porém, não seriam capazes de livrar o planeta de um aumento de temperatura de 2,7 graus Celsius até 2050. “Com os INDCs anunciados até o momento por alguns países, a redução da emissão no mundo poderia chegar até 40% em média”, disse Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da USP, no evento realizado na FAPESP. “Essa taxa, no entanto, pode ser ainda menor, pois as metas variam bastante em cada país, o que dificulta a definição de uma estimativa mais precisa. Para garantir que o

aumento médio não passe de 2 graus, o corte das emissões globais teria que ser da ordem de 70%”, afirmou. Gilberto Câmara propôs direcionar o debate para um dilema. “Queremos seguir para o lado do petróleo, com o pré-sal, ou para o lado dos combustíveis renováveis?”, indagou. Ele explicou que em 2035 o país deverá produzir aproximadamente 6 milhões de barris de petróleo por dia, ao mesmo tempo que é um dos países com maior potencial de produção de bioenergia do mundo. “Enquanto nosso consumo energético de combustíveis fósseis é da ordem de 20% da matriz energética, o consumo mundial de petróleo é de 50%. Quem projeta hoje um Brasil grande exportador de petróleo, projeta um mundo muito mais quente”, criticou. Rubens Maciel Filho, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ponderou que não é de uma hora para outra que se muda a matriz energética do país. “Temos um caminho interessante para andar junto com o petróleo, ainda aproveitando um pouco do que for retirado de águas profundas”, disse. “Talvez possamos aproveitar uma parte da renda do pré-sal e aplicar no desenvolvimento de biocombustíveis. A energia da biomassa, como a cana-de-açúcar, passa a ser estratégica a longo prazo”, salientou Maciel. Segundo o presidente da FAPESP, o físico José Goldemberg, para que o Brasil consiga cumprir os compromissos que serão apresentados na conferência de Paris em dezembro é importante investir na modernização do setor industrial brasileiro, localizado principalmente no estado de São Paulo. “A modernização

No dia 8 de outubro, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente assinou um protocolo de intenções com a FAPESP, a fim de implantar o Protocolo Climático do Estado de São Paulo. O objetivo é auxiliar empresas a identificar ou desenvolver tecnologias voltadas à mitigação e adaptação aos impactos das mudanças climáticas. Treze dias depois, em um encontro realizado para apresentar o protocolo a empresas, associações e entidades empresariais paulistas, a secretária estadual do Meio Ambiente, Patricia Iglecias, disse que a parceria com a FAPESP permitirá apoiar principalmente as pequenas e médias empresas, para as quais é mais difícil implementar medidas de redução de emissões. “As grandes empresas e setores mais estruturados já possuem iniciativas nessa área”, disse à Agência FAPESP. A adesão ao protocolo pode ser feita pelo site da secretaria (www.ambiente. sp.gov.br/spclima). Representantes de grandes empresas, como Unilever, Grupo Votorantim e Carrefour, já assinaram um memorando de entendimento em relação ao documento. O protocolo institui um sistema que atribui pontos, num total de nove, às informações prestadas pelas empresas, como dados de inventários de emissão de gases de efeito estufa, metas voluntárias e medidas de adaptação climática, entre outros aspectos. Para Oswaldo dos Santos Lucon, assessor para mudanças climáticas da secretaria, o peso da indústria nas emissões de gases de efeito estufa aparece de diversas formas. “Desde o uso de combustíveis fósseis para transporte e logística até o impacto dos produtos finais, como no caso dos automóveis”, disse. n Bruno de Pierro pESQUISA FAPESP 237  z  41


Prêmio y

A safra 2015 do Nobel Doenças parasitárias e reparo de DNA são alguns dos temas reconhecidos; economista escocês, escritora bielorrussa e negociadores da paz na Tunísia

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anúncio do Nobel de Medicina ou Fisiologia de 2015 causou surpresa pelo tema premiado e pelo perfil de um dos vencedores. A busca por terapias contra doenças tropicais há tempos estava fora do radar do Nobel, embora tenha sido bastante prestigiada nas primeiras edições do prêmio, no início do século XX. Este ano, porém, foi reconhecida por meio do trabalho do irlandês William C. Campbell, da Universidade Drew, nos Estados Unidos, do japonês Satoshi Omura, da Universidade Kitasato, e da chinesa Youyou Tu, da Academia Chinesa de Medicina Tradicional. 42  z  novembro DE 2015

Campbell, de 85 anos, e Omura, de 80, desenvolveram uma droga eficaz no combate a duas doenças causadas por vermes, a filariose linfática (ou elefantíase) e a oncocercose, conhecida como “cegueira dos rios”. Desde a década de 1960, Omura estudava um grupo de bactérias, as Streptomyces, conhecidas por produzir compostos com atividades antimicrobianas. Trabalhando no Japão, Omura isolou diferentes cepas de Streptomyces, cultivou-as em seu laboratório e selecionou 50 com potencial terapêutico. Nos Estados Unidos, Campbell verificou que uma dessas culturas era eficiente contra parasitas. Isolou seu agente, batizado de

Avermectina, e o modificou quimicamente com o objetivo de obter um componente mais eficaz, a Ivermectina. O trabalho teve impacto sobretudo nos países em desenvolvimento, onde a dificuldade de prevenir e tratar doenças parasitárias produz resultados dramáticos. “O aspecto mais importante a ser ressaltado em relação aos premiados deste ano é o fato de os resultados de suas pesquisas terem beneficiado diretamente a população, sobretudo os mais pobres”, comentou o parasitologista Erney Plessmann de Camargo, professor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP).

fotos 1 Bill Denison / Drew University 2 Satoshi Omura / acervo pessoal  3 Xinhua  4 Scientific Women

são laureados


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Medicina O irlandês William Campbell (esq.), o japonês Satoshi Omura (ao lado) e a chinesa Youyou Tu, nos anos 1950 e hoje (acima): drogas eficientes contra moléstias tropicais

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O reconhecimento a Campbell e Omura acabou, de certa forma, ofuscado pela trajetória incomum da chinesa Youyou Tu, de 84 anos. Ela passou a maior parte da carreira no anonimato, não tem grau de doutorado e realizou seu trabalho dentro das fronteiras da China, com pouca interação com outros grupos. Nos anos 1960, Tu, então com 39 anos, recorreu à medicina tradicional chinesa em busca de uma forma mais eficiente de combater a malária. A China estava em meio à Revolução Cultural de Mao Tsé-tung quando a pesquisadora foi incumbida de liderar uma equipe para encontrar uma droga contra a doença, que tinha incidência elevada em seu território. Tu buscou informações em antigos textos médicos chineses e pesquisou remédios populares. Coletou 2 mil medicamentos potenciais, a partir dos quais sua equipe produziu 380 extratos de 200 plantas diferentes. Em 1971, isolou um composto ativo do arbusto Artemisia annua, que o conhecimento tradicional dizia trazer alívio para os sintomas da doença. “Durante a Revolução Cultural, não havia meios práticos para realizar ensaios clínicos de novos medicamentos. Assim, eu e meus colegas nos oferecemos para ser os primeiros a tomar o extrato”, recordou-se Tu, em artigo escrito para a revista Nature Medicine em 2011. Depois de verificar que o extrato não era tóxico, seu grupo foi à província de Hainan, região com alta incidência de malária, para testar a sua eficácia clínica em pacientes infectados. Quem recebeu o extrato livrou-se rapidamente dos sintomas da malária. Dois anos mais tarde, seu grupo sintetizou um derivado do composto 10 vezes mais potente que o extrato original, abrindo caminho para uma nova classe de agentes antimaláricos que elimina o parasita logo nas primeiras fases de seu desenvolvimento. O primeiro texto científico escrito em inglês sobre o medicamento, conhecido como artemisinina, foi publicado em 1979, mas seus autores ficaram anônimos, como era comum na China naquela época. Youyou Tu só seria reconhecida pela descoberta recentemente. A malária afeta hoje cerca de 200 milhões de pessoas. Estima-se que a artemisinina reduza em 20% a mortalidade da doença quando administrada com outras drogas, salvando aproximadamente 100 mil vidas por ano. pESQUISA FAPESP 237  z  43


economia Angus Deaton, professor da Universidade Princeton: aumento da precisão de indicadores econômicos básicos, como os de renda e pobreza

literatura A escritora Svetlana Alexievich, ucraniana criada na Bielorrússia: rara premiação de um autor de não ficção

Os três vencedores do Nobel de Química ajudaram a elucidar os mecanismos que reparam os danos sofridos constantemente pelo material genético. O sueco Thomas Lindahl, 77 anos, do Instituto Francis Crick e do Laboratório Clare Hall, do Reino Unido, mostrou que o material genético decai a uma taxa que deveria tornar impossível a vida na Terra. De acordo com seu estudo, cada uma das células humanas sofre perda de bases, blocos que compõem o DNA, 10 mil vezes ao dia, a uma temperatura de 37 graus Celsius. Também identificou os mecanismos de reparo por remoção de bases, que se contrapõem constantemente ao colapso do DNA. O norte-

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-americano Paul Modrich, 69 anos, do Instituto Médico Howard Hughes e da Universidade Duke, nos Estados Unidos, demonstrou como a célula corrige erros da divisão celular por um mecanismo conhecido como mismatch repair, que reduz a frequência de erros quando o DNA se replica. O turco Aziz Sancar, 69 anos, da Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, verificou como as células reparam os danos causados pelos raios ultravioleta. Defeitos nesse mecanismo estão por trás do câncer de pele após exposição ao sol. Os ganhadores do Nobel de Física foram o japonês Takaaki Kajita, 56 anos, da Universidade de Tóquio, e o canadense

química Aziz Sancar (ao lado), Thomas Lindahl (abaixo, à esq) e Paul Modrich: mecanismos que reparam os danos sofridos pelo material genético

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44  z  novembro DE 2015

Arthur B. McDonald, 72 anos, da Queen’s University, em Kingston, Canadá. Eles ajudaram a demonstrar que os neutrinos, partículas elementares da matéria que se formam em abundância no interior do Sol, podem mudar de identidade (ver reportagem na página 45). Conhecido por estudos sobre consumo, bem-estar e desigualdade, o escocês Angus Deaton, de 69 anos, professor da Universidade Princeton, nos Estados Unidos, foi agraciado com o Nobel de Economia. Ele ajudou a aumentar a precisão de índices econômicos básicos, entre eles os de renda e pobreza, ao criar modelos que analisam dados individuais dos consumidores e das empresas e aproximar a teoria econômica dos métodos estatísticos. A premiação traz uma lição importante para os analistas econômicos, segundo Eduardo Haddad, professor do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP). “Deaton mostra que é preciso conhecer bem os dados com que se trabalha e todas as suas vicissitudes”, diz Haddad. “Essa talvez seja a fase mais importante de um trabalho empírico em economia.” Segundo a Real Academia de Ciências Sueca, os estudos de Deaton trouxeram respostas a várias questões. Uma delas é: como os consumidores distribuem seus gastos entre diferentes bens? Nos anos 1980, o escocês desenvolveu um modelo flexível e simples para estimar a demanda por bens. Sua abordagem tornou-se uma ferramenta-padrão de análise no meio acadêmico e na política econômica. Também ajudou a responder à pergunta: como grande parte da renda da sociedade é gasta e quanto é economizada? Segundo Deaton, a análise

fotos 1 Denise Applewhite / Princeton University 2 Elke Wetzig / Wikimedia 3 Max Englund / UNC School of Medicine  4 Duke Photography 5 The Francis Crick Institute  6 The Sudbury Neutrino Observatory  7 SNO Collaboration  8 University of Tokyo

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de dados individuais dos consumidores é a chave para entender a interação entre renda e consumo ao longo do tempo. O Prêmio Nobel da Paz de 2015 foi concedido ao Quarteto de Diálogo Nacional da Tunísia, formado em 2013 por quatro organizações civis daquele país. O Comitê Norueguês do Nobel destacou a contribuição decisiva da organização no estabelecimento de um processo político pacífico em um momento em que o país estava à beira de uma guerra civil, com assassinatos com motivação política e agitação social generalizada, após a chamada Revolução de Jasmin, em 2011, que levou à queda do presidente Ben Ali, no cargo desde 1987. O Nobel de Literatura de 2015 foi concedido à escritora Svetlana Alexievich, 67 anos, nascida na Ucrânia e criada na Bielorrússia. A Academia Sueca atribuiu o prêmio “a seus escritos polifônicos, um monumento ao sofrimento e à coragem em nosso tempo”. Nenhuma das obras da escritora foi publicada no Brasil. Os livros de Svetlana falam de pessoas que lutaram em guerras como a do Afeganistão ou das vítimas do acidente da usina nuclear de Chernobyl, ocorrido na Ucrânia em 1986. Sua irmã morreu e sua mãe ficou cega em consequência do acidente. Esta foi uma das raras vezes em que o prêmio foi concedido a um autor de obras de não ficção. n 6

A metamorfose dos neutrinos Nobel de Física premia a confirmação de que partículas fantasmas trocam de identidade e têm massa

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s dois pesquisadores que compartilharam o Prêmio Nobel de Física deste ano coordenaram experimentos a centenas de metros abaixo da superfície da Terra. O físico japonês Takaaki Kajita, da Universidade de Tóquio, e o canadense Arthur McDonald, professor emérito da Queen’s University, repartiram o prêmio e 8 milhões de coroas suecas por terem comprovado que os neutrinos, uma das partículas abundantes no Universo, mudam de identidade à medida que viajam. Segundo os físicos, essas transformações – as oscilações de sabor – só podem ocorrer se os neutrinos tiverem massa. A experiência de McDonald foi conduzida em laboratório instalado numa mina operada pela empresa brasileira Vale. Há três tipos de neutrinos: eletrônico, muônico e tauônico. Por não terem

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física Arthur McDonald e Takaaki Kajita: confirmação da massa e da troca de sabores dos neutrinos em detectores como o de Sudbury (ao lado)

carga elétrica e quase não interagirem com outras partículas, são difíceis de detectar e já foram apelidados de partículas fantasmas. Quando se descobriu como observá-los, viu-se que o número detectado era inferior ao previsto. Em 1998, o grupo coordenado por Kajita no Super-Kamiokande, um observatório instalado em uma mina de zinco no Japão, verificou que o número de neutrinos muônicos da atmosfera que chegavam ao detector variava segundo a direção de origem. Esse resultado sugeria que parte teria se transformado em um sabor que não podia ser detectado ali. Na mesma época, a equipe de McDonald conduziu no Canadá experimentos que permitiram contabilizar a proporção dos três tipos de neutrinos gerados no Sol. A comparação dos resultados demonstrou que essas partículas de fato mudavam de sabor e tinham massa. O grupo de McDonald realizou os experimentos no Sudbury Neutrino Observatory (SNOLab), instalado a 2 mil metros de profundidade em uma mina de níquel operada desde 2006 pela mineradora brasileira Vale. A empresa cede o espaço e providencia condições de funcionamento e segurança para o SNOLab. “Esse Nobel de física representa um caso em que a academia se beneficia da interação com a indústria para gerar conhecimento”, diz Luiz Mello, gerente executivo de Inovação e Tecnologia da Vale. “É um compromisso da Vale aproximar os atores da indústria e da academia.” A empresa tem minas a céu aberto no Brasil nas quais talvez se possa realizar experimentos. “Estamos abertos a ouvir propostas e identificar como contribuir”, diz Sandoval Carneiro Junior, especialista técnico em parceria e recursos da mineradora. n pESQUISA FAPESP 237  z  45


ciência  saúde y

Corrida contra a malária Médicos monitoram resistência do parasita aos medicamentos em uso, enquanto bioquímicos buscam alternativas Igor Zolnerkevic

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erradicação mundial da malária parecia estar próxima de ocorrer em 1979 quando a equipe da farmacologista chinesa Youyou Tu publicou seu estudo demonstrando a ação potente da artemisinina, princípio ativo obtido da erva Artemisia annua, contra a espécie mais letal do parasita causador da doença, o protozoário Plasmodium falciparum. A identificação e a síntese em laboratório do composto salvaram milhões de vidas por reduzir drasticamente a mortalidade por malária e renderam a Tu o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia deste ano (ver reportagem na página 42). Desde os anos 2000, no entanto, a artemisinina e seus derivados vêm perdendo parte de seu poder antimalárico em cinco países do Sudeste Asiático. “Nessas regiões, a artemisinina, que antes eliminava o parasita do sangue do paciente no segundo dia de tratamento, só consegue agora depois do terceiro dia”, diz o médico Marcus Vinícius Lacerda, pesquisador da Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado (FMT-HVD), do governo do Amazonas, em Manaus. “Já existe uma pequena po-

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pulação de P. falciparum resistente à artemisinina, problema que deve começar a crescer e se espalhar à medida que o tratamento eliminar os parasitas ainda sensíveis ao efeito desse composto”, conta Lacerda, que também é pesquisador do Instituto Leônidas e Maria Deane, da Fundação Oswaldo Cruz em Manaus. Lacerda acompanha um efeito parecido na Amazônia brasileira, mas envolvendo o Plasmodium vivax, espécie responsável por 85% dos casos de malária no Brasil. Em um trabalho a ser publicado na revista Lancet Global Health, Lacerda e seus colegas da FMT-HVD realizaram um ensaio clínico de fase 3 para avaliar a segurança e a eficácia do combate ao P. vivax com um medicamento fabricado pela empresa farmacêutica Sanofi. O novo remédio combina dois compostos: o artesunato, obtido a partir da artemisinina, e a amodiaquina. No trabalho, a eficácia dessa combinação foi comparada com a do fármaco cloroquina, usado no mundo todo para tratar a malária causada por P. vivax. Os pesquisadores acompanharam por 42 dias dois grupos de pacientes da cidade de Manaus – cada


léo ramos

grupo recebeu um tratamento diferente. Nesse período, foi avaliada a capacidade das drogas de reduzir – e até mesmo eliminar completamente – o número de parasitas no interior dos glóbulos vermelhos do sangue. O estudo demonstrou que a combinação de artesunato e amodiaquina funciona melhor que a cloroquina. Mais importante: revelou também que a cloroquina falhou em 10% dos casos. Esse resultado, apresentado na XIV Reunião Nacional de Pesquisa em Malária, realizada no início de outubro em São Paulo, reforça os achados de estudos anteriores conduzidos por Lacerda. Ele já havia observado que de 5% a 10% dos casos de malária causada por P. vivax em Manaus não respondem bem ao tratamento com a cloroquina, um medicamento relativamente barato em comparação com os derivados de artemisinina. “Esse é um dado alarmante”, considera o médico Marcelo Urbano Ferreira, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP). Ferreira investiga o risco de surgir resistência aos medicamentos antimaláricos na Amazônia, especialmente no Acre. Até o momento, sua equipe

não encontrou evidência de resistência de Plasmodium vivax à cloroquina no Alto Juruá, hoje a região brasileira com maior incidência de malária. “A Organização Mundial da Saúde sugere que uma terapia deve ser trocada quando falha em mais de 10% dos casos”, diz. Ferreira nota, entretanto, que esse nível elevado de resistência do P. vivax deve ocorrer apenas em Manaus. Junto com Lígia Gonçalves, pesquisadora visitante no ICB-USP, e Pedro Cravo, da Universidade Federal de Goiás, Ferreira fez uma revisão na literatura científica em busca de casos de resistência de P. vivax à cloroquina na América Latina. Dos anos 1990 para cá, há relatos de resistência no Brasil, no Peru e de turistas infectados na Guiana. Neste ano também surgiram relatos de resistência do P. vivax na Amazônia boliviana, próximo à fronteira com Rondônia. “Ainda é um fenômeno raro no país, mas a vigilância é fundamental”, diz Ferreira, que publicou a revisão no ano passado na revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. Desenvolvida por pesquisadores alemães nos anos 1930 para substituir o quinino, que ainda fun-

Para vencer o parasita: em laboratório da USP, pesquisadores testam novos compostos contra a malária

pESQUISA FAPESP 237  z  47


ciona, mas provoca efeitos colaterais graves, a cloroquina foi o principal antimalárico usado nas campanhas mundiais de erradicação da doença após a Segunda Guerra Mundial. Já nos anos 1950 começaram a surgir os primeiros relatos de P. falciparum resistentes à cloroquina na América do Sul e no Sudeste Asiático. Em pouco menos de 40 anos, a resistência se disseminou pelo mundo. “Atualmente, as únicas regiões do mundo nas quais ainda existe P. falciparum sensível à cloroquina são a América Central, o Haiti e a República Dominicana”, conta Ferreira. De meados dos anos 2000 para cá, as autoridades internacionais da saúde recomendam que os compostos derivados de artemisinina sejam sempre administrados em conjunto com uma droga com mecanismo de ação diferente. O objetivo é evitar a disseminação de variedades de P. falciparum resistentes à artemisinina. No Brasil, por exemplo, a malária causada por P. falciparum é tratada com uma combinação de um derivado de artemisinina, o artemeter, com lumefantrina. “Ainda que o parasita desenvolva resistência a uma das drogas, ele não vai sobreviEm Manaus, ver se não desenvolver resistência à de 5% a 10% segunda também”, explica Ferreira. Ape­sar dessa estratégia, já há relatos dos casos de de resistência a terapias combinadas no Sudeste Asiático. “Temos de esmalária por tar sempre vigilantes e buscar novas formulações de drogas, com outros P. vivax já não mecanismos de ação bioquímica.” respondem Alguns pesquisadores tentam caminhos alternativos para alcançar o mais à mesmo objetivo. Pedro Melillo Magalhães, da Universidade Estadual cloroquina de Campinas (Unicamp), coordenou um estudo que testou o emprego de um chá antimalárico, feito a partir de folhas de uma variedade enriquecida da Artemisia annua, com uma concentração 100 vezes maior de artemisinina do que a da erva selvagem, em 17 pacientes não-graves do Pará infectados pelo P. falciparum. O chá eliminou a presença do parasita em todos os pacientes em até três dias após seu uso. No entanto, o protozoário reapareceu nos doentes antes de se completar um mês de terapia. Para preservar a saúde dos participantes do trabalho, feito em parceria com pesquisadores do Instituto Evandro Chagas, do Pará, e da Universidade de Oxford, na Inglaterra, os pacientes receberam o tratamento convencional contra a malária (artemeter e lumefantrina). “O emprego do chá sozinho obteve os mesmos resultados que o uso da artemisinina isolada”, afirma Magalhães, que trabalha na divisão de agrotecnologia do Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas (CPQBA) da Unicamp. “Mas com 48  z  novembro DE 2015

uma dose equivalente a um terço da recomendada para a artemisinina.” Para evitar que os parasitas reapareçam nos pacientes, Magalhães defende o uso combinado do chá com um medicamento antimalárico, em esquema parecido com o que se emprega atualmente a artemisinina. O próximo passo dos estudos do pesquisador da Unicamp será testar essa terapia combinada de chá mais uma medicação em pacientes do Pará com malária causada pelo P. vivax. Vias alternativas

O bioquímico Rafael Guido, do Laboratório de Química Medicinal e Computacional da USP em São Carlos, ressalta a necessidade de se encontrarem novos alvos no metabolismo do plasmódio para medicamentos contra a malária. “Quase todos os que existem convergem para os mesmos alvos”, explica. O grupo dele está estudando a enolase, proteína usada pelo parasita para produzir energia. Estudos recentes têm mostrado que o gene que produz a enolase não está ativo apenas dentro da célula, onde funciona a fábrica de energia, mas também em outros lugares, como na membrana celular – na qual tem uma função na sinalização celular. O grupo de Guido acaba de descobrir uma região que pode revelar uma nova função da enolase e começou a testar a atividade de uma série de substâncias contra essa proteína. São compostos fornecidos pela organização não-governamental Medicines for Malaria Venture (MMV), que fez uma curadoria em bases de dados da indústria farmacêutica e selecionou os promissores. “Já se sabe que eles têm atividade contra a malária, mas não se sabe o mecanismo”, diz Guido. Nos testes, alguns dos compostos foram bem-sucedidos em bloquear a enolase. “Cinco compostos conseguiram 100% de inibição, 10 inibiram 80% da expressão da enolase e 38 obtiveram 50% de inibição”, adianta. Agora falta trabalhar com essas substâncias para deixá-las mais potentes sem afetar a enolase humana. Um dos problemas para encontrar novos antimaláricos é que ainda não se conhece a função de metade dos cerca de 5 mil genes das duas espécies do parasita. “É muito difícil estudar uma via bioquímica quando não se sabe quais genes codificam as proteínas envolvidas nela”, diz a química Célia Garcia, do Instituto de Biociências da USP. Desde o final dos anos 1990, o laboratório de Célia vem desvendando como funcionam algumas dessas vias bioquímicas essenciais à sobrevivência dos parasitas causadores da malária. São conjuntos de reações químicas que permitem ao protozoário perceber o ambiente a sua volta, em especial quando invade os glóbulos vermelhos e se multiplica em seu interior. Célia e sua equipe demonstraram, por exemplo, que o parasita é capaz de controlar a concentra-


léo ramos

Sangue infectado com Plasmodium falciparum: ao invadir o glóbulo vermelho, o parasita cria uma bolsa ao seu redor e controla os níveis de cálcio

ção de cálcio ao seu redor, algo fundamental para que consiga se multiplicar, e também sincronizar sua fase reprodutiva aproveitando a melatonina, composto que regula o ciclo de vigília e sono do corpo humano. Em parceria com o grupo do bioquímico Andrew Thomas, da Universidade de Rutgers, Estados Unidos, a pesquisadora vem testando uma série de compostos com o potencial de bloquear a capacidade do parasita de perceber a melatonina. Ela e outros químicos brasileiros também buscam identificar compostos que atuem em outras vias bioquímicas do parasita. O bioquímico alemão Carsten Wrenger, do ICB-USP, segue uma abordagem diferente. Quando trabalhava em Hamburgo, Wrenger e seus colegas identificaram na metade conhecida do genoma das duas espécies de Plasmodium duas vias bioquímicas essenciais para o metabolismo do parasita e ausentes nas células do ser humano. Assim como os seres humanos, o Plasmodium precisa das vitaminas B1 e B6 para sobreviver. Sem elas, mais de 100 enzimas essenciais não funcionam. Mas, enquanto as pessoas só as obtêm por meio da dieta, o protozoário fabrica suas próprias vitaminas. Em 2013, Wrenger e colegas sintetizaram em laboratório um composto a partir do qual o Plasmodium produz uma versão defeituosa da vitamina B1. “Esse composto é inerte para o organismo humano e o parasita o modifica criando uma versão da vitamina que não funciona”, explica Wrenger. “Sem a vitamina, o metabolismo do parasita para.” Ele continua a buscar e desenhar compostos que impeçam o protozoário de produzir as vitaminas B1 e B6. “Identificar esse tipo de composto é complicado”, diz. “A vantagem é que ele poderia atuar em mais de 100 alvos ao mesmo tempo.” No Instituto de Química da Unicamp, o químico Luiz Carlos Dias e sua equipe trabalham des-

de 2013 com a MMV no aprimoramento de uma nova classe de compostos promissores contra a malária. São moléculas que inibem a atividade da enzima PI(4)K, identificadas em 2013 por pesquisadores da empresa farmacêutica Novartis. Em testes com animais de laboratório, esses compostos foram capazes de eliminar as variedades de P. falciparum e P. vivax mais resistentes aos medicamentos hoje disponíveis para tratar a malária. Segundo Dias, o que mais desperta o interesse nessa molécula é que ela consegue matar o parasita nos diferentes estágios de seu ciclo de vida no organismo dos mamíferos. “Atualmente nenhum medicamento faz isso, apenas compostos que ainda estão em ensaios clínicos”, afirma. A partir da estrutura do inibidor da PI(4)K, Dias e seus colaboradores sintetizaram cerca de 60 compostos e encaminharam para serem testados em instituições de pesquisa de diferentes países. Apesar de promissores, um experimento realizado na biofarmacêutica AbbVie, nos Estados Unidos, e na Universidade de Dundee, na Escócia, mostrou que esses compostos interagem com uma das 140 proteínas quinases humanas testadas. Os pesquisadores não sabem qual a consequência dessa interação, mas, para não correr riscos, precisarão alterar a estrutura dessa classe de compostos. “Temos de entender como eles interagem com a quinase do parasita e com a humana para aumentar a primeira interação e impedir a segunda”, explica Dias. Ele pretende criar um consórcio com equipes de outras universidades paulistas para realizar parte dos testes com células e animais de laboratório no país. n

Projetos 1. Genômica funcional em Plasmodium (nº 2011/51295-5); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Célia Regina da Silva Garcia (IB-USP); Investimento R$ 2.068.066,18. 2. Metabolismo de vitamina B no parasita da malária humana Plasmodium falciparum e a sua validação como alvo para quimioterapia (nº 2010/20647-0); Modalidade Bolsa no País – Programa Jovem Pesquisador; Pesquisador responsável Carsten Wrenger (ICB-USP); Investimento R$ 179.861,70. 3. Pesquisa clínica de extratos vegetais no tratamento da malária a partir de matéria-prima padronizada: Artemisia annua (var. CPQBA) (nº 2009/53639-3); Modalidade Projeto Temático-Pronex; Pesquisador responsável Pedro Melillo de Magalhães (CPQBA-Unicamp); Investimento R$ 16.874,70. 4. Descoberta e planejamento de inibidores de enolase de Plasmodium facilparum como novos agentes antimaláricos (nº 2014/26313-8); Modalidade Bolsas no Brasil – Pós-doutorado; Pesquisador responsável Rafael Victorio Carvalho Guido (IFSC-USP); Bolsista Lorena Ramos Freitas de Sousa; Investimento R$ 169.558,00.

Artigos científicos GONÇALVES, L. A. et al. Emerging Plasmodium vivax resistance to chloroquine in South America: an overview. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. v. 109 (5). ago. 2014. ALVES, E. et al. Encapsulation of metalloporphyrins improves their capacity to block the viability of the human malaria parasite Plasmodium falciparum. Nanomedicine. v. 11 (2). fev. 2015. CHAN, X. W. A. et al. Chemical and genetic validation of thiamine utilization as an antimalarial drug target. Nature Communications. 28 mai. 2013.

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NEUROLOGIA y

O cérebro sujeito ao tempo Mesmo sem alterações patológicas, envelhecimento provoca uma reorganização do funcionamento da mente Ricardo Aguiar

A

ssim como a pele ganha rugas e os cabelos ficam brancos, o cérebro muda conforme a pessoa envelhece. São alterações estruturais e também funcionais, na forma como as diferentes regiões desse órgão se comunicam e relacionam. Resultados publicados na revista Cerebral Cortex ajudam a caracterizar essas mudanças. “Observamos que o cérebro passa por um processo de reorganização”, explica Geraldo Busatto Filho, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), um dos autores do artigo. “Funções mentais importantes exigem integração e sincronia entre diferentes áreas.” Luiz Kobuti Ferreira, autor principal do estudo e também da FM-USP, conta que o estudo avaliou pareamentos entre 278 regiões do cérebro inteiro. Entre os três mais importantes resultados do trabalho, realizado com ressonância magnética funcional, está o aumento da associação, em idosos, entre áreas de funções diferentes que não precisariam se comunicar para realizar as respectivas tarefas. O exame, que permite ver o cérebro em funcionamento, mostrou que a área responsável pela visão, por exemplo, tem conexão fraca com aquela relacionada ao raciocínio lógico em jovens e adultos. Entretanto, conforme 50  z  novembro DE 2015

a idade aumenta, essas áreas passam a funcionar mais em conjunto. “Uma das teorias sobre isso diz que certas regiões cerebrais não conseguem exercer sua função tão bem quanto antes e recrutam outras áreas como forma de compensação, o que leva a uma perda de especialização”, diz Ferreira. Esse tipo de funcionamento pode deixar o cérebro mais suscetível a ruídos, dificultando a execução de tarefas que exigem atenção ao mundo externo. Como os idosos avaliados eram saudáveis e não apresentavam problemas cognitivos, também é possível que a maior conexão entre diferentes áreas esteja relacionada à maior experiência de vida e aprendizado. Outra diferença entre o cérebro de jovens e de idosos é uma perda de sincronia entre regiões. Durante a infância e a adolescência, algumas redes cerebrais começam a se comunicar mais entre si e passam a ficar ativas simultaneamente, enquanto regiões com funções diferentes podem fazer o processo contrário: se uma delas está ativa, a outra não está. Um exemplo são as regiões responsáveis pela atenção, ativadas diante de uma ameaça, e a Rede de Modo Padrão (Default Mode Network, em inglês), um conjunto de regiões ativo quando a pessoa está alheia ao mundo externo. Em uma parte dos

idosos estudados a sincronia entre essas regiões, que é forte em jovens e adultos, fica reduzida. Pares de regiões fortemente associadas entre si também podem se tornar menos conectadas em idosos. Essa observação foi constatada principalmente na Rede de Modo Padrão e corroborou estudos anteriores realizados com regiões específicas do cérebro. Os achados complementam trabalhos anteriores do grupo de Busatto, que analisaram como o envelhecimento afeta o cérebro do ponto de vista estrutural. “O cérebro de idosos apresenta uma diminuição de volume que pode ser explicada por várias alterações, incluindo diminuição da densidade de conexões sinápticas, da atividade de neurotransmissores e perda dos prolongamentos dos neurônios”, diz ele. Ainda não é motivo para se sentir derrotado. O processo de envelhecimento cerebral pode ser minimizado pela prática de exercícios físicos, por uma dieta saudável e por não fumar, além de estar bem psicologicamente e participar de atividades mentalmente estimulantes. Outros grupos se concentram em compreender como se dá o envelhecimento não saudável do cérebro, como o de Carlos Alberto Buchpiguel e Daniele Farias,


léo ramos

Exercícios físicos, além de uma vida intelectualmente estimulante, ajudam a manter a juventude cerebral

do Centro de Medicina Nuclear da USP, em colaboração com o grupo de Busatto. “Eles estão analisando pacientes com comprometimento cognitivo leve e estágio inicial de doença de Alzheimer, responsável por mais da metade dos casos de demência”, diz Busatto. “Está sendo usada a técnica de PET para fazer imagens do acúmulo de fragmentos do peptídeo beta-amiloide no cérebro para analisar, em conjunto com exames de ressonância magnética funcional, se esses acúmulos estão relacionados com mudanças nos padrões de conectividade cerebral”, explica, referindo-se a um tipo de tomografia que permite monitorar determinadas substâncias químicas no organismo. Estudar o que acontece no cérebro em pacientes com Alzheimer é o objetivo também de Marcio Balthazar, da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp): tanto alterações estruturais e funcionais que ocorrem no cérebro como as semelhanças e diferenças entre o envelhecimento saudável e o patológico. Balthazar observa que pacientes com Alzheimer, em comparação com idosos saudáveis, apresentam uma desativação menor da Rede de Modo Padrão durante a realização de tarefas voltadas para o mundo externo, o que resulta numa

menor capacidade de atenção e concentração. Ele também detecta uma maior quantidade de conexões entre áreas do cérebro que exercem diferentes funções. Conforme a doença avança, o cérebro dos pacientes diminui muito mais de tamanho quando comparado a cérebros saudáveis, e deixa de recrutar outras regiões como forma de compensação. prevenir e remediar

Um dos principais desafios para Balthazar é encontrar métodos para detectar a doença de Alzheimer da maneira mais precoce possível. Uma ideia é unir os padrões de conectividade cerebral com o que já se sabe sobre a deposição da proteína beta-amiloide, principal responsável pela perda de conectividade e por problemas cognitivos na doença. “Nossos resultados mais recentes indicam que é possível utilizar níveis de beta-amiloide para predizer o grau de conectividade cerebral”, explica. Ele ressalta que a ideia de utilizar a proteína e imagens cerebrais como biomarcadores tem potencial, mas ainda precisa ser refinada para ser utilizada com sucesso na área clínica. Outro objetivo é descobrir um tratamento eficaz para a doença de Alzheimer, que hoje não tem cura. O grupo de Bal-

thazar estuda, atualmente, se o exercício físico – que ajuda a prevenir a doença – pode ter efeito também como tratamento. “Resultados preliminares indicam que exercícios físicos têm potencial para retardar não apenas o aparecimento, mas também a progressão da doença.” n

Projetos 1. Recuperação de memória autobiográfica e envelhecimento cerebral: um estudo através de ressonância magnética funcional (nº 2011/00475-3); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Geraldo Busatto Filho (FM-USP); Investimento R$ 69.463,87. 2. Neurociência translacional da doença de Alzheimer: estudos pré-clínicos e clínicos do peptídeo b-amiloide e outros biomarcadores (nº 2012/50329-6); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Geraldo Busatto Filho (FM-USP); Investimento R$ 3.082.570,79. 3. Biomarcadores na doença de Alzheimer e comprometimento cognitivo leve: estudo de métodos de ressonância magnética funcional e marcadores liquóricos e plasmáticos (nº 2011/17092-0); Modalidade Jovens Pesquisadores; Pesquisador responsável Márcio Balthazar (FCM-Unicamp); Investimento R$ 226.940,05.

Artigo científico FERREIRA, L. K. et al. Aging effects on whole-brain functional connectivity in adults free of cognitive and psychiatric disorders. Cerebral Cortex. On-line. 26 ago. 2015.

pESQUISA FAPESP 237  z  51


FÍSICA y

As medidas do

D

esde 2003 uma equipe liderada pelo físico Geoffrey West, do Instituto Santa Fé, nos Estados Unidos, acumula evidências de que o desenvolvimento das cidades obedece a certas regularidades estatísticas. É uma espécie de física do crescimento urbano, regido por fórmulas matemáticas relativamente simples – as chamadas leis de escala ou potência – que permitem fazer previsões sobre as propriedades de uma cidade. As leis de escala tornam possível estimar com precisão razoável os valores que os indicadores socioeconômicos e de infraestrutura de uma cidade podem assumir, conhecendo-se apenas o seu número de habitantes. De modo geral, funcionam para cidades de diferentes tamanhos, de metrópoles a vilarejos, com as mais variadas histórias e culturas, na Europa, na Ásia e nas Américas. As cidades brasileiras também obedecem a essas leis de escala, verificaram recentemente os físicos Haroldo Ribeiro, Luiz Alvez, Renio Mendes e Ervin Lenzi, da Universidade Estadual de Maringá (UEM), no Paraná. Em um estudo publicado em setembro na revista PLoS One, eles confirmaram que é possível usar essas leis para enxergar tendências no desenvolvimento urbano do Brasil no espaço e no tempo. Com base nessas tendências, a equipe paranaense desenvolveu um modelo matemático simples e simulou a evolução de oito indicadores socioeconômicos – os índices de trabalho infantil, desemprego, analfabetismo, homicídio, renda familiar, idosos, homens e mulheres – em 1.605 municípios brasileiros. “Ao colocar os resultados dessas

52  z  novembro DE 2015


crescimento

urbano

Grupos no Brasil e no exterior usam novas métricas para identificar

fotos  léo ramos

tendências no desenvolvimento das cidades

previsões em mapas, conseguimos identificar as regiões do Brasil em que esses indicadores devem aumentar e aquelas em que devem diminuir quando forem medidos no censo nacional de 2020”, diz Ribeiro (ver mapas na página 55). Ribeiro ressalta que as leis de escala revelam tendências nos indicadores socioeconômicos que podem passar despercebidas ou serem distorcidas pela maneira convencional como especialistas em planejamento urbano avaliam esses indicadores. Relatórios e guias para políticas públicas costumam medir o desempenho de cidades com tamanhos diferentes ou a evolução de uma mesma cidade cuja população cresceu levando em conta os valores médios de indicadores socioeconômicos divididos pelo número de habitantes. Assim, tenta-se averiguar como as taxas de desemprego, analfabetismo ou homicídio evoluem de um lugar ou de um período para outro tomando-se por base os dados per capita. “A análise per capita, em princípio, elimina o efeito do tamanho da população e permite comparar cidades com populações de tamanho diferente”, explica Ribeiro. “Quando não consegue eliminar esse efeito, porém, essa análise pode introduzir vieses nos indicadores.” A origem desses vieses é uma suposição que se faz a priori. Ao usar esses

indicadores para comparar cidades com populações de tamanhos diferentes, os pesquisadores assumem implicitamente que o crescimento das cidades acontece sempre de maneira linear. Seguindo esse raciocínio, uma cidade de 2 milhões de habitantes seria apenas uma versão duas vezes maior de uma cidade com 1 milhão de habitantes. Assim, seria esperado, por exemplo, que a cidade maior tivesse em média duas vezes mais homicídios do que a menor. Mas essa regra nem sempre funciona. camundongos e elefantes

Cálculos feitos por Ribeiro e seus colegas indicam que, em 2010, uma cidade brasileira com 2 milhões de habitantes tenderia a apresentar mais de duas vezes mais assassinatos – precisamente, 2,44 vezes mais – do que uma cidade com a metade dessa população. Esse resultado indica que nem sempre os índices per capita eliminam completamente o efeito do tamanho da população e que as cidades grandes não são apenas versões ampliadas de cidades pequenas. Elas são qualitativamente distintas. E a maneira como elas diferem lembra o que ocorre com animais grandes e pequenos, como o elefante e o camundongo. Nos anos 1930, o biólogo suíço Max Kleiber estudou a influência do tama-

nho dos mamíferos na fisiologia de seus corpos. Kleiber comparou o número de calorias que animais de diferentes espécies precisam consumir todos os dias para se manterem vivos. E verificou que, independentemente do tamanho, o metabolismo obedecia sempre uma lei matemática de escala. No caso dos mamíferos, a quantidade de energia necessária para viver aumentava seguindo uma lei de potência em que o expoente era o número 0,75. Isso significava que um animal com o dobro da massa de outro precisava consumir só 1,68 vez mais calorias, e não o dobro de energia. O fato de esse expoente ser menor que 1 significa que um animal maior necessita proporcionalmente de menos energia que um menor. Por essa razão, um elefante precisa de 40 mil quilocalorias por dia para se manter vivo, enquanto um camundongo consome apenas 4 quilocalorias. A quantidade de energia que o elefante ingere é 10 mil vezes maior do que a que o camundongo consome, embora a massa total do primeiro seja 220 mil vezes maior que a do segundo. No final dos anos 1990, Geoffrey West e seu grupo descobriram que essa economia é decorrente da forma como a energia é distribuída pelo corpo: quanto maior o animal, mais eficientemente a energia chega aos diferentes pontos do seu corpo. pESQUISA FAPESP 237  z  53


Em 2003, West e sua equipe verificaram que uma lei de escala idêntica determina o crescimento das cidades. Dados de cidades dos Estados Unidos, da Europa e da Ásia mostravam que indicadores de infraestrutura urbana como o número de postos de gasolina, a malha viária e o comprimento total dos cabos da rede elétrica aumentam com o tamanho da população da cidade seguindo a lei de Kleiber. Quando a população de uma cidade dobra, a infraestrutura necessária para atendê-la não precisa ser duas vezes maior, mas apenas 1,68 vez – esse fator varia um pouco de país para país. “É como se a cidade grande otimizasse o uso de seus recursos”, explica Ribeiro. Matemáticos e físicos chamam esse padrão de crescimento de sublinear. Uma lei de escala semelhante regula o crescimento dos indicadores socioeconômicos. Mas o ritmo é diferente. Enquanto os indicadores de infraestrutura tendem a crescer mais lentamente à medida que a população aumenta, os índices socioeconômicos aumentam de maneira acelerada, mais do que dobrando quando a população da cidade dobra. West observou que, nesses casos, indicadores de crescimento econômico como o produto interno bruto e o número de patentes geradas aumentam cerca de 2,22 vezes. Do ponto de vista econômico, portanto, uma cidade de 2 milhões de habitantes é mais eficiente e produtiva do que duas cidades de 1 milhão de habitantes cada uma – padrão de crescimento conhecido

54  z  novembro DE 2015

Indicadores socioeconômicos crescem de maneira acelerada com o aumento do tamanho da população

como superlinear. Infelizmente, como qualquer habitante de uma metrópole pode adivinhar, indicadores de baixa qualidade de vida, como a taxa de desemprego ou de homicídio, também crescem mais ou menos na mesma proporção. Mas há exceções. Nem todos os indicadores aumentam de maneira não linear. Alguns deles, tanto de infraestrutura como socioeconômicos, podem crescer na mesma proporção que a população, de modo linear, caso do

consumo de eletricidade por domicílio. Também há categorias de indicadores que podem apresentar diferentes ritmos de crescimento. Em um artigo publicado em agosto no Journal of Urban Health, uma equipe liderada pelo físico brasileiro Luis Rocha, do Instituto Karolinska, na Suécia, comparou vários indicadores de saúde pública de cidades no Brasil, nos Estados Unidos e na Suécia. Nos três países, a incidência de doenças infecciosas como a gripe e a Aids aumentou de modo superlinear, talvez porque a aglomeração maior de pessoas nas cidades grandes facilite a transmissão dessas enfermidades. Já as mortes por ataque cardíaco e suicídio cresceram sublinearmente. A explicação para esse resultado ainda é controversa. Os pesquisadores suspeitam que tenha a ver com o fato de as cidades maiores terem rede hospitalar mais bem estruturada e com uma dificuldade maior de se isolar socialmente. Evolução brasileira

No trabalho da PLoS One, Ribeiro e seus colegas analisaram os dados de 1.605 municípios brasileiros, obtidos nos anos de 1991, 2000 e 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e pelo Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DataSUS). Como esperado, os indicadores socioeconômicos de renda familiar, desemprego e homicídios cresceram com a população da cidade de maneira superlinear. Já os índices de trabalho infantil e analfabetismo fugiram à regra, crescendo de maneira sublinear: cidades maiores parecem erradicar esses problemas mais facilmente. Os pesquisadores observaram outra tendência clara: ao longo do período estudado, os índices medidos nas cidades brasileiras se aproximaram dos valores projetados pelas leis de escala. Em 1991, por exemplo, a cidade de Peixoto de Azevedo, em Mato Grosso, tinha um número de homicídios muito maior do que o esperado para uma cidade de seu tamanho. Ao longo das últimas décadas, porém, o número de homicídios da cidade caiu, se aproximando do esperado pela lei de escala obtida pela equipe de Ribeiro. Já as cidades brasileiras que tinham menos homicídios do que o esperado pela lei de escala sofreram um aumento de casos de homicídio. Ribeiro arrisca uma explicação. “Parece que


O Brasil em 2020 Os mapas mostram como devem evoluir alguns indicadores até o fim da década em relação a 2010 em 1.605 municípios Boa Vista

homicídios

Macapá Belém

Os índices de

São Luís Teresina Fortaleza

Manaus

assassinato devem crescer mais no interior (círculos avermelhados)

porto velho rio branco

Natal João Pessoa Recife Maceió Aracaju

palmas

e diminuir no litoral e no Sul do país

brasília cuiabá goiânia

Salvador

0,6 As cores avermelhadas representam crescimento superlinear (acelerado) no índice; as azuladas, crescimento sublinear (desacelerado)

0,3

Campo grande Belo Horizonte Vitória

0

Rio de Janeiro São Paulo

- 0,3

Curitiba Florianópolis

-0,6

Porto Alegre

analfabetismo

população masculina 0,04 0,02 0 - 0,02 -0,04

As taxas de

0,04

analfabetismo, segundo

0,02

a projeção, devem se agravar principalmente no Nordeste brasileiro

0 - 0,06 -0,012

foto  léo ramos  mapas alves, l. g. a et al. plos one, 2015

população feminina

A população masculina deve aumentar mais nos estados do Nordeste e diminuir nas regiões Sudeste, Centro-Oeste e Norte

0,016

quando há homicídios em excesso os cidadãos ficam preocupados e cobram políticas para reduzi-los”, especula. “Já quando a taxa de homicídios está muito baixa, parece que as pessoas ignoram o problema e esses índices logo voltam a subir.” Dos oito indicadores analisados pelo grupo, o único que não segue essa tendência é o analfabetismo, que tende a aumentar nas cidades onde já é alto e diminuir ainda mais onde já é baixo. “Parece um efeito de autoalimentação”, Ribeiro sugere. “Quanto mais educadas, mais as pessoas exigem educação.” “Leis de escala permitem realizar previsões, mas esses índices também dependem das políticas adotadas pelos governos, o que não é levado em conta por esse estudo”, critica o geógrafo Cosmo Antonio Ignazzi, da Universidade Paris 1, na França, que pesquisa leis de escala nas cidades brasileiras. Ribeiro reconhece o problema e acredita ser muito difícil quantificar o efeito de políticas públicas em um modelo matemático. “Nosso modelo não é determinístico”, ressalta Ribeiro. “Entretanto, nosso trabalho e o de outros pesquisadores mostram que o efeito dessas políticas é limitado pelo tamanho da população da cidade.” Ignazzi também questiona a maneira como os físicos definiram as áreas urbanas em sua análise, considerando cada município uma cidade. “A metodologia do estudo é boa, mas eles adotaram a unidade errada. Municípios são unidades político-administrativas. Não é uma boa escolha, pois não leva em conta as grandes conurbações em torno de capitais brasileiras como Manaus, Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro.” “Realmente, a escolha da definição de unidade urbana é crucial, mas não há até agora um procedimento à prova de falhas para definir os limites de uma cidade”, responde Ribeiro. “Em nosso trabalho comparamos os resultados agregando ou não os dados dos municípios que compõem as 39 regiões metropolitanas do Brasil e não observamos diferença apreciável em nossas conclusões.” n Igor Zolnerkevic

O crescimento da população feminina apresenta

Artigos científicos

0,08

tendência oposta à

ALVES, L. G. A. et al. Scale-adjusted metrics for predict-

0

masculina: deve aumentar

ing the evolution of urban indicators and quantifying

- 0,02

mais no Centro-Sul do país

-0,04

the performance of cities. PLoS One. 10 set. 2015. ROCHA, L. E. C.; THORSON, A. E; LAMBIOTTE, R. The non-linear health consequences of living in larger cities.

Fonte alves, l. g. a. et al. plos one, 2015

Journal of Urban Health. v. 92 (5), p. 785-99. out. 2015.

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ecologia y

Uma nova chance para a Mata Atlântica Estudos apontam caminhos para recuperar a floresta e contribuir para o bem-estar social na região

Maria Guimarães Fotos

Eduardo Cesar

56  z  novembro DE 2015

“A

li era a casa da minha avó”, ouviu a ecóloga Camila Rezende em plena mata na região serrana do estado do Rio de Janeiro. Surpresa por não ter percebido estar num antigo povoado, ela aos poucos começou a enxergar os resquícios do passado. “No meio da Mata Atlântica de repente tinha um limoeiro, por exemplo, e pedras que foram o esteio de uma casa”, conta a pesquisadora, doutoranda na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sob orientação do ecólogo Fabio Scarano. O achado fortuito a levou a investigar a reconstituição espontânea dessa floresta que já ocupou mais de 1 milhão de quilômetros quadrados (km2) espalhados por 17 estados brasileiros, e hoje está reduzida a pouco menos de 12% dessa área – a maior parte em manchas florestais de 50 hectares ou menos. Reverter esse quadro pode ser essencial para combater efeitos das mudanças climáticas globais para a população humana, como mostram trabalhos que compõem o volume especial sobre Mata Atlântica da revista científica Biodiversity and Conservation publicado em setembro deste ano.


Camila avaliou o que aconteceu de 1978 para cá no município de Trajano de Moraes, uma área de 600 km2 no norte da serra fluminense. A região foi ocupada (e desmatada) nos séculos XVIII e XIX, sobretudo para a instalação de cafezais. Mas, com a crise do café ocasionada pela quebra da bolsa de valores em 1929, as plantações foram abandonadas e a floresta aos poucos voltou a colonizar seu espaço. Nas fotos aéreas e de satélite de 1978, 1988, 1999, 2006 e 2014, a ecóloga viu que havia ali muitas áreas de floresta em regeneração. O cenário, no entanto, estava longe de ser homogêneo. “Usamos modelagem espacial para entender por que algumas áreas se regeneraram e outras não”, explica Camila. Nesses 36 anos, a cobertura florestal ali aumentou em mais de 3 mil hectares, um crescimento de 15%. No modelo estatístico que montou, para cada unidade amostral ela calculou a probabilidade de regeneração da floresta dadas as condições ecológicas. Entre as variáveis mais importantes, ela destaca o tipo de relevo: quanto mais acidentado, mais difícil a ocupação e mais acentuada a regeneração, enquanto áreas planas continuam sendo ocupadas e utilizadas. Em seguida, outros fatores importantes foram a incidência solar, a distância em relação a áreas urbanas (áreas mais próximas a cidades têm menos chances de serem abandonadas), a qualidade do solo e a distância de fragmentos florestais que sirvam como fonte de sementes. Um projeto de restauração dessa mesma área com técnicas tradicionais de plantio direto custaria, estima-se, cerca de US$ 15 milhões. Para Camila, o custo e o contexto de mudança climática dão importância para uma mudança de olhar sobre as matas recentes, historicamente vistas como de segunda categoria. “As florestas regenerantes são cada vez mais valorizadas pelos serviços ambientais que proporcionam, como a estocagem de carbono, a produção de água e o ganho de biodiversidade associado”, explica. Em sua opinião, entender como funciona a regeneração espontânea pode ajudar a planejar o reflorestamento, direcionando recursos para áreas que de fato carecem de plantio. Na prática, trata-se de dar uma mãozinha à natureza em seu talento para recuperar território assim que as pessoas se afastam. Essa ajuda, que precisa ser avaliada caso a caso, pode consistir

em fazer corredores ou ilhas de vegetação que sirvam como fonte de sementes para a regeneração, ou esperar que a mata se instale para fazer o enriquecimento da biodiversidade em seguida. Essa desconhecida

Levar em conta as regras de funcionamento da floresta pode ser útil quando se pensa em ampliar a escala para outras regiões brasileiras. E algumas delas são muito pouco conhecidas, conforme revela estudo do ecólogo Renato Lima, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP). Ele mostrou que os inventários florestais já feitos na Mata Atlântica se limitaram a uma área que corresponde a 0,01% do que resta desse

tipo de vegetação. Para chegar a essa estimativa, Lima e colaboradores compilaram todos os levantamentos já feitos na Mata Atlântica lato sensu, na qual é baseada a definição legal dessa floresta. No mosaico que compõe essa definição ampla de Mata Atlântica, que inclui fisionomias distintas como a arenosa restinga e a peculiar floresta de araucárias da serra gaúcha, algumas regiões foram mais estudadas do que outras – pouco foi feito na Bahia e no Mato Grosso do Sul. “As implicações de um conhecimento tão limitado são importantes para decisões de conservação”, pondera Lima. “Quando se fala em conservar espécies ameaçadas, é preciso saber sobre qual conhecimento tais decisões se baseiam.”

Cabo de guerra: quando os habitantes humanos vão embora, a vegetação nativa reconquista o território

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Inventário incompleto Uma proporção pequena da Mata Atlântica foi estudada; lacunas maiores estão no Mato Grosso do Sul e na Bahia

Fonte  renato lima/usp

Áreas de estudo Formações pioneiras Estepe Floresta estacional decidual Floresta estacional semidecidual Floresta ombrófila aberta Floresta ombrófila densa Floresta ombrófila mista Rios e lagos Savana

58  z  novembro DE 2015

Por isso, Lima destaca a importância de direcionar os trabalhos futuros para as áreas menos conhecidas, além de reduzir o desmatamento. Ele conta ainda que o governo federal está estimulando os estados a conduzirem inventários florestais. Santa Catarina já concluiu sua parte, amostrando 60% do que se conhece de Mata Atlântica no estado. O problema, segundo o pesquisador, é que o Inventário Nacional Federal usa uma metodologia um pouco diferente dos outros estudos já realizados, como considerar árvores cujos troncos tenham no mínimo 10 centímetros de diâmetro à altura do peito. “Faz sentido para a Amazônia, mas estudos na Mata Atlântica se preocupam com as árvores jovens e incluem diâmetros a partir de 5 centímetros”, explica. “Vai ser difícil reunir os dados novos com os já existentes.” Para racionalizar os estudos e eco­ nomizar recursos, Lima está coordenando, em parceria com Alexandre Adalar­­

do e Paulo Inácio Prado, professores do IB-USP, a construção de uma base de dados on-line colaborativa que reunirá os inventários florestais no Brasil e estará disponível para ser usada pela comunidade científica. O projeto, batizado de TreeCo (abreviação de Neotropical Tree Communities Database), é uma extensão natural do diagnóstico feito para a Mata Atlântica e já tem dados sobre 2 milhões de árvores. Futuro

O trabalho de Lima não representa mero romantismo de um apaixonado pela flora, pela fauna e a rede de interconexões entre elas. “Talvez a espécie mais ameaçada seja a nossa própria”, alerta Fabio Scarano, da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS) e da UFRJ. No domínio da Mata Atlântica vivem mais de 100 milhões de brasileiros e reside o motor econômico do país. Embora 90% da população re-

mapa  carolina bello / unesp

A área inventariada nesses estudos foi somada e comparada às estimativas da organização não governamental (ONG) SOS Mata Atlântica sobre a área dos remanescentes. De acordo com o ecólogo, não é surpreendente que se tenha estudado uma proporção tão pequena da Mata Atlântica. “Se fizéssemos o mesmo com outros biomas, o resultado seria parecido; poucos biomas têm uma grande porcentagem amostrada.” Apesar de não ser surpreendente, a estimativa é alarmante quando vista no contexto do desmatamento que continua a ser feito, numa taxa estimada em 200 mil km2 por ano, de acordo com o relatório de 2014 da SOS Mata Atlântica. “A taxa de desmatamento é quatro ordens de magnitude maior do que as taxas de levantamentos das florestas remanescentes”, compara o pesquisador. “Em longo prazo, se esse quadro se mantiver, a floresta desaparecerá antes de estudarmos o pouco que restou.”


Plantação de palmito disputa espaço com a floresta no Vale do Ribeira, interior de São Paulo

No domínio da Mata Atlântica vivem mais de 100 milhões de brasileiros e reside o motor econômico do país

de áreas protegidas. Para isso, Scarano advoga uma integração cada vez maior entre pesquisadores, tomadores de decisão e gestores de políticas públicas e a população, que deve ser informada e convencida do que deve mudar para beneficiar a todos. “Otimizar os recursos e cuidar do ecossistema equivale a gerar renda a partir de turismo, de uma agricultura mais produtiva e da descoberta de possíveis fármacos, por exemplo.” A visão otimista de Scarano se baseia na resiliência natural da floresta, revelada no trabalho de Camila, e na noção de que os interesses da população humana convergem com a preservação da natureza. Segundo ele, o Brasil tem vocação para dar esse passo e usar os ecossistemas como parte da solução para os impactos do aquecimento global no bem-estar social. Mas precisa ser mais rápido do que tem sido. “Temos prazo até 2030; se até lá não alterarmos nossos padrões de consumo e de uso da terra, deveremos chegar a 2050 com 2 graus Celsius de aumento na temperatura, com efeitos danosos sobre a vida como conhecemos”, avisa. Muito depende do que sair da Conferência do Clima em Paris, a COP 21, em dezembro. “Se as metas propostas pelo governo brasileiro forem concretizadas, estamos a 15 anos de um paraíso ambiental”, exagera o pesquisador. n

Projeto

sidente no bioma esteja aglomerada em centros urbanos, como São Paulo e Rio de Janeiro, mais da metade da terra dedicada à agricultura no país também está nesse bioma. Em um artigo de revisão, Scarano e Paula Ceotto, da ONG Conservação Internacional, examinaram os efeitos da mudança de uso da terra e das mudanças climáticas locais na floresta e na população humana. “Ambientes que perderam muito de sua capacidade de suportar sistemas vivos são muito mais vulneráveis”, afirma. “E as pessoas pobres são ainda mais vulneráveis.”

Para Scarano, que integra o grupo de autores do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), ainda é preciso fazer muitos estudos sobre cenários futuros. “Estima-se que espécies migrarão para o sul à medida que a temperatura aumenta, mas o problema é que já tem gente vivendo nessa área, não tem muito espaço sobrando”, ressalva. Mesmo assim, ele é otimista quanto à possibilidade de uma adaptação baseada em ecossistemas, que inclui pagamento por serviços ambientais, a restauração da floresta e o fortalecimento e a ampliação

O papel da diversidade funcional na estruturação de comunidades arbóreas tropicais: uma abordagem baseada em modelos (nº 2013/08722-5); Modalidade Bolsa no País – Regular – Pós-doutorado; Pesquisador responsável Paulo Inácio Prado (IB-USP); Bolsista Renato Augusto Ferreira de Lima (IB-USP); Investimento R$ 131.224,64.

Artigos científicos LIMA, R. A. F. de. et al. How much do we know about the endangered Atlantic Forest? Reviewing nearly 70 years of information on tree community surveys. Biodiversity and Conservation. v. 24, n. 9, p. 2135-48. set. 2015. REZENDE, C. L. de. et al. Atlantic Forest spontaneous regeneration at landscape scale. Biodiversity and Conservation. v. 24, n. 9, p. 2255-72. set. 2015. SCARANO, F. R. & CEOTTO, P. Brazilian Atlantic Forest: impact, vulnerability, and adaptation to climate change. Biodiversity and Conservation. v. 24, n. 9, p. 2319-31. set. 2015.

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Explosão registrada pelo satélite Solar Dynamics Observatory, da Nasa: janela para investigar a geração de energia no plasma confinado em regiões próximas às manchas solares

60  z  novembro DE 2015


ASTRONOMIA y

Na origem das explosões solares Equipe internacional

mapeia a energia liberada

nas regiões instáveis do Sol

nasa / sdo

O

físico brasileiro Pier­ re Kaufmann anda apreensivo com um experimento que deve começar nas próximas semanas. A agência espacial norte-americana (Nasa) planeja lançar em 1º de dezembro, a partir da base dos Estados Unidos na Antártida, um balão que subirá a 40 quilômetros aci­ ma do nível do mar transportando dois equipamentos para estudar o Sol. Um des­ ses aparelhos é o Solar-T, um telescópio fotométrico duplo projetado e construído pela equipe de Kaufmann para analisar uma faixa especial da radiação solar (ver Pesquisa FAPESP nº 219). Se tudo correr como o planejado, o Solar-T, que integrará um experimento da Universidade da Ca­ lifórnia em Berkeley, deve passar de duas a quatro semanas coletando ininterrup­ tamente a luz emitida pelo Sol, que nessa época do ano nunca se põe no polo Sul.

Ricardo Zorzetto

O motivo da inquietação do físico é que a Nasa pretende lançar o Solar-T desliga­ do e só ativá-lo quando o balão atingir a altitude máxima. “Essa estratégia aumen­ ta o risco de falha, que é inerente a qual­ quer missão em balão estratosférico”, diz Kaufmann, que acompanhou os testes do telescópio nos Estados Unidos em condi­ ções semelhantes às que enfrentará nos céus da Antártida. “Em todas as ocasiões, o equipamento se saiu muito bem, mas as avaliações foram feitas com ele ligado”, conta o físico, coordenador do Centro de Astronomia e Astrofísica (Craam) da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “O problema de lançá-lo inativo”, expli­ ca, “é que, se algo não funcionar após a subida, não é possível consertar”. Enquanto sobrevoar o continente gela­ do, o Solar-T deverá captar a energia que emana das explosões solares em duas frequências específicas: 3 e 7 terahertz

(THz), que correspondem a uma fra­ ção da radiação infravermelha distante. Situada no espectro eletromagnético entre a luz visível e as ondas de rádio, essa faixa de radiação permite observar mais facilmente a ocorrência de explo­ sões associadas aos campos magnéticos das regiões ativas do Sol, que muitas ve­ zes lançam em direção à Terra jatos de partículas de carga negativa (elétrons) aceleradas a grandes velocidades. Nas proximidades do planeta, essas partí­ culas atrapalham o funcionamento de satélites de telecomunicações e de GPS, produzem as auroras austrais e boreais. A radiação nessa faixa do infraver­ melho também torna possível investi­ gar fenômenos que transferem energia da superfície do Sol, a fotosfera, onde a temperatura não passa dos 5.700 graus, para as camadas superiores e mais quen­ tes: a cromosfera, onde as temperaturas pESQUISA FAPESP 237  z  61


1

Explosões observadas na faixa do infravermelho podem ajudar a entender como o Sol acelera partículas

Rumo à estratosfera: o telescópio Solar-T, que será lançado em breve na Antártida, a bordo de um balão, para observar as explosões solares nas faixas de 3 e 7 THz

alcançam 20 mil graus, e a coroa, que está a mais de 1 milhão de graus. Apesar de abrir essas janelas para ob­ servar o Sol, a radiação em terahertz, que já foi chamada de raios T, sempre foi pouco utilizada. O motivo era que havia – e ainda há – alguns desafios para detectá-la. O primeiro é que a atmosfera terrestre impede que a maior parte dessa radiação chegue aos telescópios no solo. Além disso, não é qualquer telescópio que enxerga a radiação em terahertz. “Para detectar ou produzir uma ima­ gem do Sol nessas frequências é preci­ so usar um telescópio feito apenas de espelhos, porque as lentes de vidro ou de materiais ópticos comuns absorvem essa frequência de radiação”, explica Matthew Penn, astrônomo associado do Observatório Solar Nacional (NSO) e do McMath-Pierce Solar Facility, ambos no Arizona, Estados Unidos. Outro complicador é que os detectores não podem ser feitos de silício, transpa­ rente a essas frequências de energia, e têm de estar refrigerados a temperatu­ ras muito baixas. “Antes de Pierre Kauf­ mann começar a trabalhar nessa área, havia pouca observação do Sol nessas frequências porque era difícil explorar a tecnologia”, conta o astrônomo Stephen 62  z  novembro DE 2015

White, do Laboratório de Pesquisa da Força Aérea, no Novo México, também nos Estados Unidos. Kaufmann espera que os dados do Solar-T contribuam para alimentar um gráfico que vem ajudando a construir há cerca de 30 anos. Essa curva representa o perfil da energia emitida na origem das explosões do Sol, em geral observadas na região das manchas que de tempos em tempos tingem a superfície da estrela. É uma espécie de assinatura energética des­ sas explosões, que, na opinião de físicos, astrônomos e astrofísicos, pode ajudar a desvendar os fenômenos que as originam.

O

gráfico da quantidade de radiação lançada ao espaço em cada fre­ quência começou a ser delineado nos anos 1960, a partir de observações das explosões solares. Por muito tempo, ele registrava apenas a radiação emitida na faixa das ondas de rádio – com frequência entre 30 megahertz (MHz) e 30 gigahertz (GHz) –, as menos energéticas do espec­ tro eletromagnético na faixa de rádio. Em 1972, John Castelli e Jules Aarons, do Laboratório de Pesquisa Cambrid­ ge da Força Aérea (AFCRL) dos Estados Unidos, produziram um perfil energético das explosões solares reunindo dados de 80 eventos. O gráfico tinha a forma apro­ ximada da letra U e indicava que a maior parte da energia liberada nessas explosões estava em duas faixas das ondas de rádio de energia e frequência baixas: um bom tanto tinha frequência inferior a 1 GHz, enquanto o outro tanto ficava na faixa entre 3 GHz e 30 GHz.

Um pouco antes, em 1968, os pesqui­ sadores C. D. Clark e W. M. Park haviam obtido indícios de que uma radiação de frequência maior e mais energética pu­ desse ser produzida nas erupções sola­ res. Usando o telescópio do Queen Mary College, da Universidade de Londres, eles detectaram pulsos de energia a 250 GHz, frequência cerca de 30 vezes maior que as correspondentes a micro-ondas e inesperadamente muito intensas. Talvez porque fossem esparsos, esses e outros dados na região das micro-ondas não ganharam muita atenção. “Apesar de vá­ rias sugestões, por muito tempo os pes­ quisadores dessa área ignoraram esses indicativos”, conta Kaufmann. A suspeita de que as explosões solares pudessem liberar muito mais energia só ressurgiram duas décadas mais tarde, em parte consequência do trabalho de Kau­ fmann. Com o radiotelescópio de Itape­ tinga, instalado em Atibaia, interior de São Paulo, ele observou uma explosão solar ocorrida em 21 de maio de 1984. Os registros indicaram que a maior parte da energia era emitida em ondas milimétri­ cas, na frequência de 90 GHz, na forma de pulsos de centésimos de segundo de duração. Era um novo sinal de que havia mais a ser descoberto sobre as explosões. “Na época, percebemos que existia um componente das explosões que alcança frequências mais altas”, conta o físico. Em parceria com pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ele desenvolveu equipamen­ tos que foram instalados em diferentes observatórios para registrar a energia em


2

fotos  1 léo ramos  2 nasa / sdo / wiessinger

Brilho fugaz: frequentes nas proximidades das manchas solares (regiões ativas do Sol), as explosões liberam energia em diferentes faixas do espectro eletromagnético

frequências mais elevadas. No início da década passada, Kaufmann e sua equipe monitoraram explosões solares com o Te­ lescópio Solar de Ondas Submilimétricas (SST), instalado no Complexo Astronô­ mico El Leoncido, nos Andes argentinos, e registraram um fluxo de radiação que voltava a crescer em 0,2 e em 0,4 THz. Esses resultados levaram Kaufmann e o pesquisador Rogério Marcon, do Instituto de Física da Unicamp, a desenvolver equi­ pamentos capazes de detectar frequências ainda mais altas, na região dos 30 THz. Com um telescópio de 30 THz instala­ do em El Leoncito e outro na cobertura de um dos prédios do Mackenzie, no centro de São Paulo, o grupo do físico brasileiro, que envolve pesquisadores da Argentina e dos Estados Unidos, já registrou três explosões solares – uma em 13 de março de 2012, outra em 1o de agosto de 2014 e uma terceira em 27 de outubro de 2014 – que liberaram grande quantidade de energia nessa faixa do espectro eletro­ magnético. Uma análise englobando di­ ferentes regiões do espectro revelou que, na realidade, esses eventos produzem de 10 a 100 vezes mais energia no infraver­ melho distante (terahertz) do que nas micro-ondas (gigahertz), segundo artigo

publicado em junho deste ano no Journal of Geophysical Research – Space Physics. Além das observações do grupo de Kaufmann, Matthew Penn e sua equipe registraram emissões em 30 e 60 THz. Ao completar o perfil energético das ex­ plosões com os novos dados, o gráfico assume a forma da letra W – e não mais de U, como haviam indicado Castelli e Aarons nos anos 1970. Essa assinatura sugere que as explosões coincidem com fluxos energéticos intensos em duas fai­ xas de radiação: uma nas ondas de rádio, menos energética, e outra no submilimé­ trico e no infravermelho, mais energética e com limite ainda desconhecido.

U

ma possível fonte dessa energia seriam elétrons acelerados a ve­ locidades próximas à da luz em regiões densas da superfície solar que, ao serem freados por campos magnéti­ cos intensos, emitiriam radiação na fai­ xa do infravermelho. Outra é que essas partículas aceleradas aqueceriam mais o plasma da cromosfera, que, em conse­ quência, responderia liberando radiação. “Por enquanto, ninguém consegue expli­ car esse espectro duplo”, diz Kaufmann, que, além de financiamento da FAPESP, também recebe apoio do Ministério da Ciência e Tecnologia, do Fundo Mac­ kenzie de Pesquisa e do Escritório de Ciência da Força Aérea norte-americana. “Ainda não temos exemplos suficien­ tes dos eventos observados em terahertz para explicar como pode haver uma

emissão em uma gama tão ampla”, diz Stephen White, do Laboratório de Pes­ quisa da Força Aérea norte-americana e colaborador de Kaufmann. “Imaginamos que isso possa revelar como o Sol acelera partículas a altas energias.” Enquanto não se encontram as respos­ tas, Kaufmann tenta completar a curva com mais informações em mais frequên­ cias, na esperança de que os dados aju­ dem a esclarecer os fenômenos gerado­ res das explosões. Recentemente ele e Marcon concluíram um novo telescópio, o Hats (High Altitude Terahertz Solar Telescope), que vai operar nas faixas de 0,85 e 1,4 THz em um observatório a mais de 5 mil metros de altitude em Famatina, nos Andes argentinos. Também já está pronta a versão mais moderna dos de­ tectores que devem aprimorar a capa­ cidade de observação dos telescópios em El Leoncito. Antes disso, Kaufmann aguarda ansioso pela subida do Solar-T. “Estamos por conta da Nasa”, diz. “Mas o Sol também tem de colaborar e produ­ zir explosões nesse período.” n

Projeto Diagnóstico de explosões solares em inédito intervalo espectral, de micro-ondas até frequências THz: desafios para interpretação (FLAT) (nº 2013/24155-3); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Pierre Kauf­mann (UPM); Investimento R$ 1.836.374,29.

Artigo científico KAUFMANN, P. et al. Bright 30 THz impulsive solar bursts. Journal of Geophysical Research – Space Physics. 30 jun. 2015.

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Teste múltiplo: célula eletroquímica usada na detecção simultânea de três proteínas ligadas ao câncer de próstata

fotos  léo ramos

tecnologia  BIOTECNOLOGIA y


Um flagra no câncer Nova geração de testes tenta identificar a doença mais cedo, avaliar a eficácia do tratamento e auxiliar na escolha da terapia Ricardo Zorzetto e Evanildo da Silveira

P

esquisadores brasileiros trabalhando no país e no exterior estão finalizando uma nova geração de testes laboratoriais para detectar o câncer precocemente, antes que se torne identificável por meio de exames clínicos. De modo geral, quanto mais cedo a doença é descoberta, maior é a chance de sucesso no tratamento e até mesmo de cura. São pelo menos quatro os novos testes. Desenvolvidos por equipes em São Paulo, São Carlos e na Espanha, eles usam estratégias distintas para captar sinais de tumores em amostras de sangue, urina e outros fluidos corporais. Caso se mostrem eficientes nos próximos estágios de avaliação pelos quais ainda precisam passar, eles talvez possam, em situações específicas, substituir testes mais invasivos como biopsias e punções e servir de complemento aos exames clínicos e de imagem. Os dois testes que se encontram em estágio mais avançado de desenvolvimento foram elaborados pela equipe da geneticista Anamaria Camargo no Instituto Ludwig para a Pesquisa

do Câncer (ILPC) e no Centro de Oncologia Molecular do Hospital Sírio-Libanês (HSL), em São Paulo. Ambos se baseiam na análise genética das características do tumor de cada paciente e representam um passo rumo à medicina personalizada, que prevê a possibilidade de realizar diagnósticos mais precisos e prescrições sob medida para cada paciente. “A personalização ocorre em todas as áreas da medicina, mas é mais desenvolvida em oncologia, por causa das bases genéticas do câncer”, diz Anamaria. No Brasil, esse modelo, que depende da identificação da causa genética das enfermidades (ver reportagem na página 14), ainda é incipiente. Ele começa a ser implementado em alguns hospitais particulares e agora ganha impulso no estado de São Paulo com uma iniciativa de cinco centros de pesquisa que estão se reunindo em um projeto para fazer avançar a medicina de precisão (ver reportagem na página 33). O primeiro teste consiste na análise de um painel gênico para orientar a terapia do câncer. Para a elaboração do painel, os pesquisadores cruzaram informações sobre as pESQUISA FAPESP 237  z  65


À caça de mutações: no detalhe (acima) e na página ao lado, lâmina que recebe amostras de DNA tumoral a serem sequenciadas no Centro de Oncologia Molecular do Hospital Sírio-Libanês

alterações genéticas recorrentes nos tumores humanos com informações sobre as vias moleculares alteradas nesses tumores e os alvos de drogas comumente usadas no tratamento da doença. No total, selecionaram os 494 genes alterados com maior frequência em diferentes tumores e que servem de alvo para algum tipo de medicamento. “Esse painel pode ajudar a guiar o tratamento, porque algumas dessas mutações tornam o tumor sensível a certos compostos”, explica Anamaria. Centros avançados de tratamento do câncer, como o Memorial Sloan Kettering Cancer Center, em Nova York, ou o MD Anderson Cancer Center, no Texas, também possuem seus próprios painéis, cada um com um número diferente de genes. E já os disponibilizam para seus médicos selecionarem a droga mais eficaz para tratar cada paciente.

A

namaria e seu grupo atualmente trabalham na validação do painel gênico do Sírio-Libanês. Eles sequenciaram o material genético dos tumores de 12 pessoas atendidas no hospital e identificaram as mutações específicas de cada câncer. “Já analisamos sete casos e estamos concluindo outros cinco”, conta a geneticista. Até o momento, segundo a pesquisadora, o teste produzido no Sírio mostrou 100% de sensibilidade e 100% de especificidade e se saiu tão bem quanto outro mais amplo, de 600 genes, desenvolvido pela empresa norte-americana de análise genômica Foundation Medicine e disponível no mercado. Em outra avaliação, o biomédico Luís Felipe Campesato e o bioinformata Pedro Galante, ambos do HSL, demonstraram que o painel do Sírio também pode ser usado para orientar o tratamento do câncer com uma classe de medicamentos que se tornou disponível apenas nos últimos anos: os imunoterápicos. São moléculas que estimulam o sistema de defesa a atacar as células tumorais e que vêm produzindo resultados animadores contra alguns tipos de tumor, em especial de pele e pulmão. “O tratamento com esses medicamentos é caro e só

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beneficia parte dos pacientes”, diz Anamaria. “Por isso é importante identificar quem vai responder.” Usando uma estratégia de bioinformática, Campesato e Galante confrontaram a capacidade do painel do Sírio e do painel da Foundation Medicine de associar a quantidade de mutações (carga mutacional) de tumores de pele e de pulmão com a resposta aos imunoterápicos. Em estudo publicado em outubro na revista Oncotarget, eles demonstraram que ambos foram tão eficientes quanto o sequenciamento de todo o genoma humano. De acordo com o trabalho, os imunoterápicos foram eficientes para 70% das pessoas com câncer de pulmão que apresentavam elevado número de alterações gênicas. Nos casos de sucesso, os pacientes permaneceram ao menos seis meses livres do câncer depois do tratamento – metade deles não apresentava sinais do tumor 18 meses após o uso da medicação. Já entre as pessoas com poucas alterações gênicas, os compostos funcionaram em apenas 20% dos casos. “Nosso teste se mostrou viável do ponto de vista científico, agora é preciso demonstrar que tem aplicabilidade prática”, afirma o bioquímico Luiz Fernando Lima Reis, superintendente de pesquisa do HSL. Antes que possa ser usado pelos médicos do hospital, será preciso passar por uma fase de certificações e de ganho de escala. Em paralelo ao desenvolvimento do painel de genes, o grupo de Anamaria trabalha na produção de um teste individualizado para verificar se o tratamento antitumoral está funcionando como o esperado e detectar a recaída da doença. Sua equipe começou a trabalhar nesse teste a pedido do grupo dos cirurgiões digestivos Angelita Habr-Gama e Rodrigo Oliva Perez, do Instituto Angelita e Joaquim Gama. No início dos anos 1990, Angelita, uma pesquisadora e cirurgiã respeitada internacionalmente, propôs uma estratégia ousada e menos agressiva para tratar certos casos de câncer de reto. A terapia padrão para combater tumores nesse órgão consiste na retirada definitiva da porção final do intestino, seguida de um tratamento à base de rádio e quimioterapia para evitar o reaparecimento do tumor. Em busca de uma saída que evitasse


Exame que mede a quantidade de DNA tumoral no sangue pode avaliar resposta à rádio e à quimioterapia

a eliminação do órgão, ela inverteu a ordem da terapia e passou a tratar seus pacientes primeiro com radiação e medicamentos e a acompanhá-los de perto com exames de imagem. Assim, conseguiu evitar a cirurgia em 28% dos casos (ver Pesquisa FAPESP nºs 162 e 195).

A

nte o risco de o câncer ressurgir, Angelita e Perez se uniram a Anamaria para produzir um exame molecular que permita detectar o mais cedo possível se o tratamento funcionou ou se o problema reincidiu. Eles chegaram a um teste genético personalizado que já se mostrou viável, mas precisa ser aprimorado. A partir de uma amostra do tumor, os pesquisadores determinam as alterações genéticas específicas do paciente. Concluído o tratamento combinado, eles passam a coletar apenas amostras de sangue de tempos em tempos para medir a quantidade de DNA tumoral circulante. Em princípio, essa estratégia deveria permitir encontrar tumores residuais após a terapia, além de focos metastáticos não detectáveis por exames clínicos ou de imagens.

Um ensaio-piloto com quatro pessoas com câncer de reto mostrou que o teste ainda não foi tão sensível quanto os pesquisadores inicialmente imaginavam para detectar a doença residual após a terapia. Depois do tratamento, ele não foi capaz de detectar a chamada doença residual mínima, situação em que resta menos de 10% do número inicial de células tumorais. Mas conseguiu identificar a presença de câncer quando esse número passava dos 20%. O teste, no entanto, mostrou-se bastante eficaz para avaliar a resposta ao tratamento e detectar a diminuição no tamanho do tumor. Ele permitiu antecipar em 18 meses a progressão da doença e a detecção clínica de metástases. Esse resultado, publicado também em outubro na Oncotarget, sugere que o teste tem potencial para servir de marcador de resposta ao tratamento e para o monitoramento da doença após a intervenção terapêutica. Os níveis de DNA tumoral no sangue diminuíram no caso em que a terapia combinada de radiação e medicamentos funcionou. E aumentaram nos dois pacientes em que o tumor voltou a crescer. “Os dados sugerem que a quantidade de material genético alterado na circulação é proporcional ao tamanho do tumor”, conta Lima Reis. A equipe do hospital planeja agora usar o teste com outros 20 pacientes do Sírio-Libanês. Enquanto os pesquisadores da capital buscam formas de detectar tumores a partir do seu material genético diluído no sangue, em São Carlos, o químico Ronaldo Censi Faria trabalha para aprimorar a precisão do teste sanguíneo usado para fazer o diagnóstico inicial dos tumores de pESQUISA FAPESP 237  z  67


próstata. Faria é professor do Departamento de Química da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e desenvolveu um sensor para identificar simultaneamente três proteínas sanguíneas associadas ao câncer de próstata. Hoje o exame de sangue usado para identificar alterações na próstata só mede os níveis do antígeno prostático específico (PSA) e pode indicar a presença de tumor antes dos sintomas clínicos do câncer. O problema é que há casos da doença em que o PSA não se altera e casos em que o seu nível aparece elevado sem que exista tumor. “Por isso trabalhamos com a detecção do PSA, do antígeno de membrana específico da próstata ou PSMA e do fator plaquetário 4, o PF-4, para um diagnóstico mais preciso”, esclarece Faria. “A ideia é diminuir o risco de falsos resultados.” Faria começou a desenvolver o sensor entre 2011 e 2012, durante um estágio de pós-doutorado na Universidade de Connecticut, nos Estados Unidos. A detecção dos biomarcadores ocorre por meio da emissão de luz, resultado de uma reação química (eletroquimioluminescência). No dispositivo, a intensidade de luz é proporcional à concentração das proteínas no sangue. O sensor contém eletrodos descartáveis de grafite sobre os quais são depositados anticorpos. Quando um dos três biomarcadores interage com os anticorpos, uma reação química ocorre e produz luz. Outro tipo de dispositivo foi desenvolvido pela química brasileira Priscila Monteiro Kosaka, do Instituto de Microeletrônica de Madri (IMM), na Espanha. Chamado de sensor nanomecânico, ele

é feito de silício e tem o formato de um trampolim de piscina, como uma base e uma “prancha”, cujo tamanho não passa de meio milímetro. “Cada trampolim vibra em uma determinada frequência de ressonância”, explica Priscila. “Mas quando algo se deposita na sua superfície, essa frequência de ressonância muda de maneira proporcional à massa aderida.” Se a amostra de sangue contém o biomarcador do câncer, ocorrem duas alterações no sensor: a sua frequência de ressonância se altera e a amostra muda de cor.

T

anto Faria como Priscila afirmam que seus dispositivos são mais sensíveis e precisos que os métodos de diagnóstico existentes. “No sistema que desenvolvemos, os limites de detecção chegam a ser mil vezes menores do que os do teste Elisa, em concentrações da ordem de femtograma por mililitro”, assegura Faria. “Isso possibilita que se faça uma grande diluição do soro humano, o que leva a um menor consumo de amostras e minimiza possíveis interferências.” Além disso, Faria diz que o sensor que desenvolveu detecta mais de um biomarcador simultaneamente. “O número de falsos positivos e negativos chega a 40% com o uso apenas do PSA como indicador para câncer de próstata”, explica. “A detecção múltipla, usando três proteínas diferentes, possibilitará um diagnóstico mais preciso.” Priscila também assegura que seu nanossensor é muito sensível e específico. “Nos ensaios em laboratório simulando uma amostra de sangue, ocorreram dois erros a cada 10 mil ensaios”, afirma. “Nosso método é capaz de identificar o bioPreparação do teste para câncer de próstata: captura de biomarcadores proteicos em amostras de soro sanguíneo utilizando partículas magnéticas

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Sensor desenvolvido na UFSCar: eletrodos descartáveis de grafite sobre os quais se depositam os anticorpos contra biomarcadores do câncer

Testes mais sensíveis para identificar proteínas tumorais no sangue ainda levarão anos para chegar ao mercado

marcador mesmo que sua concentração não ultrapasse 100 moléculas numa amostra de sangue.” Devido à elevada sensibilidade e especificidade desses dispositivos e ao seu baixo custo, eles poderão vir a ser utilizados em exames de sangue de rotina, segundo Faria. “Isso pode impactar a saúde pública porque as chances de cura, no caso do câncer, são maiores quando o diagnóstico é realizado precocemente, além de os custos de tratamento serem muito menores”, diz. A má notícia é que isso não é para logo. “Pode levar ainda 10 anos para chegar ao mercado”, estima Priscila. “Nosso objetivo é um nanossensor ultrassensível e de baixo custo.” Faria, por sua vez, não tem previsão para o uso do seu dispositivo nos serviços de saúde. “O sistema necessita de mais estudos até se conseguir um produto final que possa ser utilizado em hospitais e clínicas”, reconhece. “Mais pesquisas devem ser realizadas em relação à detecção de várias proteínas simultaneamente e à automatização do método.” Para o químico especialista em bioanalítica Emanuel Carrilho, do Instituto de Química de São Carlos, da Universidade de São Paulo (USP),

os dois tipos de sensores são promissores. “São plataformas diferentes, com biossensores diferentes, mas o que ambos têm de muito interessante é a capacidade de multiplexação, ou seja, poder detectar vários biomarcadores num único ensaio”, diz. “A multiplexação deve permitir um diagnóstico completo, que mostrará se há câncer e de qual tipo ele é.” Outro aspecto importante destacado por ele é o uso de nanopartículas, que amplificam os sinais dos dispositivos. Para Carrilho, que também é pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Bioanalítica (INCTBio), o desafio para os novos sensores é ter anticorpos para todos os tipos de câncer. n

Projetos 1. Tratamento neoadjuvante em câncer de reto: identificação de uma assinatura gênica capaz de predizer a resposta ao tratamento e desenvolvimento de biomarcardores personalizados para avaliar a doença residual mínima (no 2011/50684-8); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Anamaria Camargo (ILPC); Investimento R$ 361.226,21. 2. Desenvolvimento de biossensores para determinação de biomarcadores proteicos visando à aplicação no diagnóstico precoce e monitoramento de câncer (nº 2011/02259-6); Modalidade Bolsa no Exterior; Bolsista Ronaldo Censi Faria (UFSCar); Investimento R$ 10.780,00 e US$ 35.400,00.

Artigos científicos CARPINETI, P. et al. The use of personalized biomarkers and liquid biopsies to monitor treatment response and disease recurrence in locally advanced rectal cancer after neoadjuvant chemoradiation. Oncotarget. 6 out. 2015. CAMPESATO, L. F. et al. Comprehensive cancer-gene panels can be used to estimate mutational load and predict clinical benefit to PD-1 blockade in clinical practice. Oncotarget. 1o out. 2015. KADIMISETTY, K. et al. 3D-printed supercapacitor-powered electrochemiluminescent protein immunoarray. Biosensors and Bioelectronics. v. 77, p. 188-93. mar. 2016.

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Empreendedorismo y

Cursos para líderes inovadores Pesquisadores de pequenas empresas voltam de Londres e de Oxford com novas ideias para seus projetos no plano comercial Marcos de Oliveira

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V

isão ampliada dos negócios e muitos elogios. Assim se pode resumir a opinião de pesquisadores e coordenadores de projetos do Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP que participaram do Leaders in Innovation Fellowships Programme da Royal Academy of Engineering (RAEng), com cursos realizados em Londres e Oxford, na Inglaterra, em março deste ano. O evento irá se repetir em dezembro e tem o objetivo de capacitar pesquisadores em empreendedorismo e comercialização de produtos tecnológicos, além de incentivar a criação e participação em redes internacionais de inovação e tecnologia. A parceria foi estabelecida entre a FAPESP e a Royal Academy of Engineering no âmbito do Fundo Newton, programa mantido pelo governo britânico para promover o desenvolvimento social e econômico por meio de ações de pesquisa e inovação. No Brasil, o fundo é coordenado pela Rede Britânica de Ciência e Inovação (SIN), que fomenta colaborações científicas e tecnológicas entre o Brasil e o Reino Unido. Para esse

programa, o Fundo Newton contribuiu com o financiamento da viagem e estadia dos 23 coordenadores de projetos do Pipe durante duas semanas. “No Brasil é raro uma empresa startup ser eficiente tanto no desenvolvimento da tecnologia quanto em sua comercialização. O Pipe tem empresas com pesquisa sólida, mas muitas vezes sem boa formação em negócios. É preciso que os empreendedores apliquem metodologias modernas para a busca de seu modelo de negócio e façam adaptações em seus produtos para desenvolvê-los comercialmente”, diz Fabio Kon, professor de Ciência da Computação do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME-USP) e um dos coordenadores adjuntos da Diretoria Científica da FAPESP na área de Pesquisa para Inovação. “O sucesso de uma pequena empresa apoiada pela FAPESP depende não só da qualidade do projeto de pesquisa realizado, mas da capacidade de suas lideranças


para desenvolver a empresa. O programa com a Royal Academy Engineering nos ajuda a oferecer treinamento prático e objetivo sobre como desenvolver as oportunidades de negócio para uma pequena empresa aumentando as chances para seu crescimento”, explica Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP. “O curso é destinado a pesquisadores que estejam no início da etapa de definição do modelo de negócio”, completa Kon. Foram escolhidas empresas que participam do programa Pipe na fase 1, quando são realizadas as pesquisas iniciais que devem demonstrar a viabilidade técnica do projeto. Mudando cabeças

ilustração  Veridiana Scarpelli

A primeira semana na Inglaterra foi de treinamento com especialistas ingleses nas áreas de geração do modelo de negócio, apresentação em público do próprio negócio e técnicas de negociação. O principal método de trabalho foi o Business

Model Canvas, um sistema muito usado atualmente para validar a ideia comercial da empresa, identificando fornecedores e clientes potenciais. “Tudo isso me fez ter insights sobre alternativas do meu modelo de negócio”, diz Roberto Speicys Cardoso, sócio da Scipopulis, de São Paulo, empresa que desenvolve aplicativos e sistemas de controle de ônibus nas cidades. “Com o nosso aplicativo, é possível saber que horas um ônibus de uma linha específica passa em um determinado ponto em São Paulo”, conta Cardoso, que também tem um contrato de análise da velocidade dos ônibus com a prefeitura de São Paulo. “Os palestrantes ingleses e os mentores [profissionais especializados em empreendedorismo, inovação ou da área de atuação da empresa] me fizeram ver que meus competidores podem se transformar em parceiros em alguns momentos para facilitar uma negociação com prefeituras ou outras empresas maiores.” Para Val Fontanette, sócia e fundadora da Itera, empresa que cria soluções tec-

nológicas na gestão de documentos eletrônicos, uma das grandes contribuições dos cursos na Inglaterra foi enxergar formas de escalar os negócios em nível global. “As aulas práticas de oratória e de modelo Canvas nos capacitaram para apresentações a investidores estrangeiros e assim acessar recursos financeiros para poder escalar nosso negócio”, diz Val. A empresa Itera, instalada no Centro de Desenvolvimento das Indústrias Nascentes (Cedin) de São Carlos (SP), quer atuar no mercado de Big Data, que reúne e processa dados em grandes quantidades com o objetivo de gerar novas informações principalmente na internet. Marcos Valadares, sócio da Pluricell, também conseguiu ver outros ângulos do negócio de sua empresa durante a estada na Inglaterra. Sua empresa está incubada no Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia (Cietec), em São Paulo, e desenvolve tecnologia para diferenciação de células pluripotentes induzidas (iPS na sigla em inglês) transformando-as em células de vários órgãos do corpo destinadas a experimentos científicos in vitro e para desenvolvimento de fármacos e cosméticos. “Voltei com uma visão comercial mais crítica e percebi que falta uma ferramenta para vender a nossa tecnologia”, explica Valadares. pESQUISA FAPESP 237  z  71


Novas visões sobre planos de negócio e produtos escaláveis em nível global

Intensa atividade durante duas semanas em cursos sobre como apresentar a empresa para clientes

“Eu e meus sócios temos forte formação acadêmica e grande dificuldade em pensar no mercado, porque ficamos mais no campo tecnológico.” Ele gostou também da segunda etapa do curso realizada na Isis, empresa de comercialização de pesquisa e tecnologia da Universidade de Oxford. “Conhecemos como eles transformam uma ideia em negócio. Lá, a taxa de sucesso das empresas é perto de 80%”, diz. Celso Tomazin Júnior contou que conseguiu melhorar a elaboração do seu plano de negócios e a comercialização de sua empresa, a Chimtec, incubada na EsalqTec, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da USP, em Piracicaba. Ele desenvolve um produto à base de óleo de laranja para substituir antibióticos sintéticos utilizados na produção de etanol, quando as bactérias contaminam o processo e competem com a levedura que transforma o açúcar do mosto da cana em álcool. “Eu já tinha participado do curso Empretec, do Sebrae, que também foi muito intenso, mas o que contou na Inglaterra foi a cultura que eles têm de empreendedorismo. Minha mentora me ajudou muito no estudo do plano financeiro e investimento e para a negociação da tecnologia”, explica Tomazin Júnior. Uma nova visão de negócios também deve provocar mudanças na vida comer72  z  novembro DE 2015

cial da Solstício Energia, de Campinas (SP), que em junho deste ano deixou a Incubadora de Empresas de Base Tecnológica (Incamp) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Foi muito bom saber como eles veem o que nós construímos”, diz Bruno Wilmer Fontes Lima, sócio da Solstício. “Nosso projeto é o desenvolvimento de um painel fotovoltaico para energia solar mais fácil de instalar e que proporciona uma diminuição do custo da estrutura”, diz Lima. “Como há dois anos instalamos sistemas convencionais, nossos mentores ingleses acham que devemos desenvolver a tecnologia, mas também continuar com um bom serviço. A inovação tem que estar integrada no que a empresa já faz.” gestão da inovação

Tanto o Pipe quanto o Leaders of Innovation contam também com a participação de pequenas empresas que estão no mercado há algum tempo e buscam um novo processo de pesquisa tecnológica, como é o caso da Apis Flora, empresa de Ribeirão Preto (SP), que tem 33 anos. “Trabalhamos com produtos farmacêuticos à base de própolis, mel e medicamentos fitoterápicos e agora estamos desenvolvendo um novo fármaco originário da biodiversidade brasileira para tratamento de candidíase”, explica Andresa Aparecida

Berretta de Silva, farmacêutica e gerente de Pesquisa e Desenvolvimento e Inovação da empresa. Para ela, os cursos foram interessantes porque promoveram em especial a gestão da inovação e como dar valor ao produto obtido, numa linguagem mais fácil de entendimento. “Esse medicamento inovador poderá ser negociado com uma outra empresa ou com investidores no mercado.” Na apresentação de cada empresa realizada no final da primeira semana em Londres, para a qual os empreendedores foram treinados, acadêmicos e profissionais de várias empresas e investidores ocuparam o papel de juízes. Em uma dessas apresentações, que foram divididas em dois grupos de brasileiros, o ganhador foi Rogério Junqueira Machado, um dos sócios da Reciclapac, empresa também incubada no Cietec. “A comissão julgadora gostou da minha apresentação porque utilizei um conceito que nos foi proposto: startup tem que pensar grande e seu produto precisa ser escalável em um padrão global”, diz Machado. “Mostrei que em vez de resíduo uma embalagem pode ser reelaborada e reutilizada.” A Reciclapac foi formada depois que Machado saiu da General Motors (GM), onde trabalhou por 28 anos nas áreas de suprimentos e exportação, e tomou contato com o resíduo gerado pelas embala-


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o Fundo Newton em bit.ly/1Mtfu4t

ilustração  Veridiana Scarpelli   fotos  Fundo Newton

Projetos

gens de peças automotivas, muitas feitas de madeira, que entram ou saem do país. “Criamos um processo em que pegamos aquelas embalagens, reciclamos e vendemos para a própria empresa, trazendo no final uma redução de custo e a eliminação do resíduo”, diz Machado, que quer expandir essas ações. “A remanufatura das embalagens chega a reduzir em 85% o consumo de energia e de materiais. São embalagens complexas que acondicionam o câmbio de automóveis, por exemplo, e pesam mais de 100 quilos.” Além dos cursos, das mentorias e do conhecimento adquirido em Oxford no campo da propriedade intelectual, os coordenadores dos projetos Pipe puderam vivenciar a companhia de empreendedores de outros países, como Taiwan e Vietnã, que faziam as mesmas ativida-

des em recintos separados. “Eu conheci e troquei informações com Nguyen Van Truc, diretor do Centro de Treinamento e Comercialização de Tecnologia do Ministério da Ciência e Tecnologia do Vietnã”, lembra Celso Tomazin, da Chimtec. Outro resultado que agradou os participantes do grupo de brasileiros que esteve na Inglaterra foi o entrosamento entre eles, mesmo tendo projetos tão diferentes. Com a amizade formada e a necessidade de manter a experiência de troca de informações, eles formaram um grupo de discussões no aplicativo Whats­App. “Voltamos de lá motivados e o grupo é uma oportunidade de trocar opinião sobre vários assuntos que envolvem as empresas”, diz Bruno, da Solstício. “É também um modo de nos ajudarmos”, conta Andresa, da Apis Flora. n

1. Desenvolvimento de um medicamento para tratamento de candidíase vulvovaginal (nº 2013/50496-2); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisadora responsável Andresa Aparecida Berretta e Silva (Apis Flora); Investimento R$ 425.262,37, US$ 123.911,50 e R$ 33.282,60 (Bolsas). 2. Uma aplicação móvel para obtenção de informações atualizadas de transporte público a partir do conhecimento coletivo (nº 2013/50812-1); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Roberto Speicys Cardoso (Scipopulis); Investimento R$ 47.152,87, US$ 990,00 e R$ 111.970,80 (Bolsas). 3. Módulo integrado – painel solar fotovoltaico com estrutura de fixação, fiação e microinversor integrado (nº 2013/50662-0); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Bruno Wilmer Fontes Lima (Solstício Energia); Investimento R$ 73.620,00 e R$ 2.928,00 (Bolsas). 4. Avaliação da eficiência do óleo bioativo da citricultura no controle bacteriano em fermentação alcóolica (nº 2013/50704-4); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Celso Tomazin Júnior (Chimtec); Investimento R$ 33.600,00 e R$ 44.917,20 (Bolsas). 5. Diferenciação de células-tronco pluripotentes induzidas em hepatócitos e sua caracterização para uso em testes de droga (nº 2013/50263-8); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Marcos Costa Valadares (Pluricell); Investimento R$ 131.221,00, US$ 4.750,00 e R$ 149.623,20 (Bolsas). 6. Avaliação de viabilidade de reúso de caixas de madeira descartáveis na indústria automobilística (nº 2014/50399-0); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Rogério Junqueira Machado (Reciclapac); Investimento R$ 85.313,20 e R$ 82.438,50 (Bolsas). 7. E-share miner: gerenciamento de informação apoiado pela descoberta de conhecimento via taxonomia de tópicos (nº 2012/51181-2); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Marco Antonio Pereira (Itera); Investimento R$ 54.816,58 e R$ 76.283,40 (Bolsas).

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transporte y

Ônibus mais sustentáveis Empresa brasileira lança veículo elétrico híbrido menos poluente seguindo tendência entre fabricantes multinacionais Yuri Vasconcelos

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U

eduardo cesar

ma tecnologia de transporte flexível e ambientalmente vantajosa está em operação na Grande São Paulo desde meados de outubro. Trata-se do Dual-Bus, um ônibus elétrico híbrido fabricado pela Eletra, empresa 100% nacional, com sede em São Bernardo do Campo (SP). Veículos híbridos possuem duas fontes de energia – um gerador a diesel e um banco de baterias – e são bem menos poluentes do que os ônibus movidos exclusivamente a combustíveis fósseis. A vantagem do Dual-Bus é a versatilidade, porque ele também é capaz de operar exclusivamente como trólebus ligado à rede elétrica aérea ou como um veículo elétrico puro que utiliza apenas a bateria alimentada pelo gerador a diesel e não precisa ser conectado a uma tomada para recarregar. O Dual-Bus é o primeiro ônibus do gênero produzido no Brasil. Outras fabricantes, como a sueca Volvo e a

Dual-Bus: funciona como trólebus, elétrico ou híbrido mantido por baterias recarregadas por um pequeno motor a diesel

chinesa BYD, também investem no país em novas tecnologias de transporte urbano de passageiro baseadas em tração elétrica, as duas também com baterias recarregáveis. “A possibilidade de um mesmo ônibus funcionar como híbrido, trólebus ou elétrico puro agrega vários benefícios para a operação, porque com a mesma frota é possível atender a diversos sistemas”, diz o engenheiro Paulino Fumio Hira­ tsuka, gerente de engenharia, desenvolvimento e produto da Eletra. “Além disso, a matriz energética pode ser modificada de acordo com a evolução da tecnologia de geração e armazenamento ou mesmo dos custos envolvidos.” Ele explica que o Dual-Bus pode ser empregado numa linha qualquer inicialmente como trólebus, em seguida continuar no modo híbrido – com o acionamento do gerador, que é um motor menor em relação aos tradicionais, e do banco de baterias – e finalizar o percurso operando como um veículo elétrico, sem nenhuma emissão de poluentes. Nos trólebus, em caso de falta de energia é possível desconectar da linha superior e seguir por alguns quilômetros com as baterias. Uma chave no painel de controle permite ao motorista escolher o modo de funcionamento do veículo. “Ônibus como o Dual-Bus da Eletra são ideais para o centro de grandes metrópoles, onde a preocupação com o nível de poluentes é constante. Essas tecnologias de mobilidade sustentáveis vêm conquistando espaço no setor de transporte público de passageiros”, afirma o engenheiro Wanderlei Marinho, membro do Comitê de Veículos Elétricos e Híbridos da Sociedade de Engenheiros da Mobilidade (SAE, na sigla em inglês) e professor de pós-graduação em Engenharia Automotiva do Instituto Mauá de Tecnologia, em São Caetano do Sul. O Dual-Bus está circulando no Corredor Metropolitano ABD, uma via exclusiva da Grande São Paulo para ônibus e trólebus. Com extensão de 33 quilômetros, ela liga o bairro de São Mateus, no leste da capital paulista, ao Jabaquara, na zona sul, atravessando os municípios de Mauá, Santo André, São Bernardo do Campo e Diadema. TRAÇÃO ELÉTRICA

O modelo criado pela Eletra é tracionado apenas pelo motor elétrico, e a energia para mover esse motor vem de um banco de baterias e de um motor gerador – esse conjunto também tem a função de recarregar as baterias do veículo. Esse modelo de veículo elétrico híbrido funciona com as duas fontes de energia (motor gerador e baterias) pESQUISA FAPESP 237  z  75


ELÉTRICOS SUECOS

Uma das maiores fabricantes mundiais de ônibus, a Volvo Buses, também investe em veículos com baixa ou zero emissão de poluentes. Seu portfólio de soluções para o transporte público de passageiros inclui versões de ônibus elétricos híbridos, elétricos e híbridos (motor elétri76  z  novembro DE 2015

Ônibus de dois andares lançado neste ano pela chinesa BYD, em Londres. A empresa está finalizando uma fábrica em Campinas (SP)

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Veículos elétricos começam a demonstrar um custo de operação menor ou igual aos movidos a diesel

co, motor a diesel e baterias elétricas). Dos três, apenas o último é produzido no Brasil. Em 2012, dois anos após o lançamento mundial do híbrido, a unidade de Curitiba foi a primeira a fazer o modelo fora do continente europeu. Com capacidade para 100 passageiros, o híbrido da Volvo adota a tecnologia com dois motores, um a diesel e outro elétrico, operando de forma independente. Já foram produzidas no país mais de 400 unidades do veículo, que roda em Curitiba, Foz do Iguaçu, Campinas e Sorocaba e foi exportado para Bogotá, na Colômbia. No

mundo, são mais de 2 mil veículos em circulação em 21 países. “No nosso modelo, o motor elétrico é usado para arrancar o ônibus e acelerá-lo até aproximadamente 20 quilômetros por hora. A partir dessa velocidade, entra em funcionamento o motor a diesel”, explica o engenheiro Idam Stival, coordenador de engenharia de vendas da Volvo no Brasil. “Quando o veículo está parado no trânsito, em pontos de ônibus ou em semáforos, o motor a diesel fica desligado. Nosso veículo opera 20% do tempo como elétrico e 80% no modo diesel.” De acordo com Stival, o híbrido da Volvo consome até 35% menos combustível e, consequentemente, emite 35% menos gás carbônico. Em um ano de operação, o veículo deixa de jogar na atmosfera 33 toneladas de CO2 quando comparado aos ônibus a diesel com a mesma capacidade de passageiros. “Embora a tecnologia tenha sido desenvolvida fora do Brasil, o modelo que roda aqui foi tropicalizado e atende às regras de conteúdo local para financiamento via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)”, diz o engenheiro Renan Shepanski, da área de engenharia de vendas. Há um ano, a Volvo lançou comercialmente na Europa o seu primeiro modelo de ônibus elétrico híbrido. Diferentemente da versão fabricada pela Eletra, o veículo conta com a tecnologia plug in, que permite recarga rápida nos

fotos 1 byd 2 e 3 volvo buses

operando simultaneamente. Como o motor gerador só é usado para produção de energia (e não para tracionar o ônibus), ele é menor que um motor convencional a diesel. O resultado é uma diminuição de emissão de poluentes de 95% em relação à de um ônibus a diesel comum. Outro ponto de destaque do novo modelo da Eletra, segundo o engenheiro Hiratsuka, é que ele não demanda investimentos em infraestrutura de recarga para as baterias. “Quando está operando como híbrido ou elétrico, as baterias também são recarregadas nas frenagens por meio de um sistema conhecido como Kers, sigla em inglês para sistema de recuperação de energia cinética”, diz Hiratsuka. Quando o freio é acionado, o motor elétrico vira um gerador e a energia que seria desperdiçada na frenagem é reaproveitada e armazenada no banco de baterias. O ônibus pode rodar até 20 quilômetros como elétrico puro, utilizando somente a energia das baterias. Com capacidade para 153 passageiros, o Dual-Bus tem 23 metros de comprimento e seu chassis articulado de quatro eixos foi fabricado pela Mercedes-Benz. O motor elétrico foi desenvolvido pela WEG, de Santa Catarina. O gerador, por sua vez, é formado por um motor veicular Mercedes-Benz movido a diesel e um gerador também feito pela WEG. Segundo a gerente comercial da Eletra, Iêda Maria Alves de Oliveira, o Dual-Bus custa 35% mais do que um ônibus similar a diesel, mas sua manutenção é cerca de um terço mais barata. Presente no mercado brasileiro há 30 anos, a Eletra é especializada na fabricação de trólebus, ônibus elétricos e híbridos. Em 1999, ela criou o primeiro ônibus elétrico híbrido com tecnologia brasileira (ver Pesquisa FAPESP nº 92). Hoje, a marca está presente em cerca de 320 ônibus com tração elétrica em operação na Grande São Paulo e outros 82 em cidades do exterior, como Rosário, na Argentina, com 20 veículos, e Wellington, na Nova Zelândia, com 62.


Híbrido da Volvo fabricado no Brasil tem dois motores, um elétrico e outro a diesel

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pontos de embarque e desembarque de passageiros com um conector preso a uma espécie de poste que é ligado a um adaptador no teto do ônibus. Com isso, ele é capaz de rodar 70% do tempo no modo elétrico, usando apenas a energia das baterias, e os 30% restantes no modo híbrido, a diesel. O resultado é uma redução do consumo de combustível e de emissão de dióxido de carbono em até 70%, em comparação com o ônibus diesel convencional. Por receber recar-

gas rápidas de energia, ele possui maior autonomia de operação no modo elétrico. “O elétrico híbrido da Volvo é um sistema que funciona bem, mas exige investimento e intervenção na infraestrutura viária para instalação das estações de recarregamento das baterias”, afirma o engenheiro Wanderlei Marinho, da SAE. Segundo a Volvo, seu elétrico híbrido é indicado para trajetos mais longos e menos travados, como corredores de transporte exclusivos para ônibus.

Opção na Europa: no desembarque e no embarque de passageiros, recarga rápida das baterias

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ELÉTRICOS CHINESES

Outra empresa que começa a produzir um ônibus ambientalmente sustentável no Brasil é a chinesa BYD (iniciais de Build Your Dreams ou “Construa Seus Sonhos”). Em agosto foi inaugurada em Campinas a fábrica para produção de ônibus elétricos da empresa. A BYD é uma das maiores fabricantes mundiais de baterias recarregáveis e ônibus elétricos. A empresa lançou neste ano em Londres, na Inglaterra, um ônibus elétrico de dois andares, o double-decker. A empresa pretende investir no Brasil US$ 400 milhões em três unidades industriais no país até 2018. A fábrica de Campinas terá capacidade para produzir entre 500 e mil ônibus por ano. Por meio de um acordo com a SP­-Trans, autarquia responsável pela gestão do transporte público na capital paulista, a BYD iniciou em setembro a primeira etapa de testes de desempenho do modelo K11. Ele foi projetado para circular em corredores exclusivos de ônibus e tem autonomia de 260 quilômetros e capacidade para 120 passageiros. “A BYD já comercializou ônibus e veículos elétricos em mais de 150 cidades em 45 países e estamos percebendo que, além dos ganhos ambientais, os ônibus elétricos estão mostrando que os custos de operação são similares ou menores que o dos veículos convencionais a diesel”, diz Adalberto Maluf, diretor de relações governamentais da BYD. n pESQUISA FAPESP 237  z  77


humanidades   EDUCAÇÃO y

Alfabetização para valer Projeto realizado durante quatro anos em três escolas promove melhoras e detecta falhas do ensino público

Márcio Ferrari  |  Fotos  Léo Ramos

O

s números são oficiais. Segundo os resultados da Avaliação Nacional de Alfabetização (ANA) 2014, anunciados em setembro pelo Ministério da Educação (MEC), uma em cada cinco crianças do 3º ano do ensino fundamental das escolas públicas só tem capacidade de ler palavras isoladas e 56,7% só conseguem localizar uma informação explícita em um texto longo se ela estiver na primeira linha. O 3º ano – no qual se encerra o primeiro ciclo do ensino fundamental – deveria ser aquele em que se completa a alfabetização. Como a meta frequentemente não corresponde à realidade, foi criado em 2012 o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic), um compromisso dos governos federal, estaduais e municipais para tentar alcançá-la. Dois anos antes, também com o intuito de melhorar essas estatísticas, tornou-se obrigatório o ensino fundamental de nove anos, que acrescentou uma série ao início do processo de alfabetização. “Criam-se novas políticas, mas não se prevê como vão funcionar”, critica Claudemir Belintane, professor da Faculdade

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Aula de alfabetização na Escola de Aplicação da USP, uma das três incluídas no projeto sobre o programa para as primeiras séries do ensino fundamental

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Brincadeira de senha, com recombinação de sílabas, antes de entrar na sala de aula (abaixo) e as palavras a serem decifradas pelas crianças na lousa

de Educação da Universidade de São Paulo (USP). Embora os números de inclusão educacional tenham atingido quase a totalidade da população em idade escolar, as deficiências do ensino não permitem comemorações. “Não temos mais uma escola excludente, mas alunos que ficam excluídos dentro da própria sala de aula”, prossegue Belintane. Segundo ele, um só professor em sala de aula quase nunca dá conta da alfabetização de todos os alunos, que chegam à escola com diferentes graus de capacitação para ler e escrever. “Assim, acham um padrão mediano, apoiando os alunos que já têm condições de aprender e deixando de lado os que não têm”, afirma Belintane. No entanto, as diferenças são naturais em qualquer grupo de alunos. “É preciso entender que a heterogeneidade não traz necessariamente alunos problemáticos, mas modos diferentes de entrar no código escrito a partir da cultura de cada um”, diz o pesquisador. Entre 2011 e 2014, Belintane esteve à frente do projeto “O desafio de ensinar a leitura e a escrita no contexto do ensino fundamental de nove anos”, com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). O objetivo do trabalho foi construir uma proposta de alfabetização e leitura para o primeiro ciclo. O projeto se desenvolveu nas Escolas de Aplicação da USP e da Universidade Federal do Pará (UFPA) e numa escola pública em Pau dos Ferros, esta sob responsabilidade de pesquisadores da 80  z  novembro DE 2015

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Ao todo, 326 crianças foram envolvidas no estudo, do qual participaram alunos de graduação e pós-graduação das três instituições e os próprios professores das escolas receberam bolsas para atuar na pesquisa. Uma avaliação realizada pelos pesquisadores – de 12 a 15 em cada escola – constatou a alfabetização de mais de 90% dos alunos, além de “um nível alto de leitura e produção textual”. Os bons resultados foram confirmados pela ANA da escola da USP. Antes do projeto, as notas dessas escolas pelo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) do MEC eram bem diversas: 7,3 para a paulista, 5,8 para a paraense e 4,9 para a potiguar. O Ideb ainda não fez uma avaliação posterior. A prática foi simultaneamente de verificação e intervenção, com um escopo ambicioso, que incluiu diagnósticos e avaliações contínuas dos alunos, investigação da formação dos professores e elaboração de uma política de articulação entre as séries e entre os ciclos. “Enquanto nós pesquisávamos, também melhorávamos o ensino de um ano para o outro”, conta Belintane. O primeiro ano, 2011, foi de implantação e organização na 1ª série, enfrentando certa resistência e o período de adaptação dos professores. O pesquisador percebeu, da parte dos professores em geral, boa disposição para receber “uma intervenção muito grande” em suas rotinas de sala de aula. “O ensino fundamental de nove anos estava começando a ser implantado e ninguém sabia muito bem o que fazer”, diz. “Isso nos deu argumento para propor mudanças no programa do ciclo.” CONTAR HISTÓRIAS

A intervenção deu ênfase à oralidade como elemento introdutório para a alfabetização e ao uso de diversos suportes para ensinar leitura e escrita, inclusive os eletrônicos. A importância da oralidade vem sendo pesquisada e defendida por Belintane, que escreveu o livro Oralidade e alfabetização – Uma nova abordagem da alfabetização e do letramento (Cortez Editora, 2014) baseado em parte em uma pesquisa anterior, feita com apoio da FAPESP em uma escola estadual da zona oeste da cidade de São Paulo. Um novo livro sobre o assunto está programado para 2016, agora com base no banco de dados e nas observações resultantes da pesquisa mais recente. Além de artigos em revistas, o projeto Desafios, como ficou conhecido entre os participantes, originou


até agora quatro teses de doutorado e seis dissertações de mestrado, além de um filme documentário em fase de edição. As estratégias de uso da oralidade englobaram contação de histórias e jogos como adivinhas, trava-línguas e parlendas. Essas práticas, originadas da tradição popular, fazem parte de uma espécie de memória coletiva, mas costumam passar ao largo das salas de aula. “Para os professores que não estão habituados a usá-las, eu peço que puxem pela memória da própria infância”, conta Belintane. De início, mesmo a contação de histórias deve, no entender do educador, ser feita pelo professor sem um suporte escrito. “Uma das constatações que eu trouxe de projetos anteriores é que o Brasil é um país oral”, diz Belintane. “Os alunos respondem bem quando trazemos as atividades por via da música, da rima, da métrica ou da contação de histórias, textos que são trazidos na memória. Não se trata de conversa cotidiana, que é fragmentária.” Mesmo as crianças que têm pouca afeição à escola e dão vazão à agitação física na sala de aula costumam gostar de ouvir histórias e respondem a elas com um sossego do corpo. Envolver o grupo num círculo de contação de histórias é também um modo de integrar as crianças que tendem a se isolar.

A ideia de trabalhar com esse tipo de material responde à formação de uma matriz textual que será necessária na escrita e na leitura, por corresponder a narrativas. “Se o aluno não tem narrativas na memória, ele se alfabetiza precariamente”, afirma Belintane. Aos poucos, o professor vai misturando contação e leitura em voz alta, ou então, numa fase mais adiantada, narra a história oralmente até o clímax e entrega a solução da trama por escrito – os que têm dificuldades leem junto com um colega. “O aluno tem que ler textos de grande extensão”, diz Belintane. “As avaliações do governo muitas vezes propõem o texto de uma propaganda, uma tirinha em quadrinhos ou um texto curto. Isso melhora as estatísticas, mas o aluno que lê de forma lenta ainda não é um leitor. Diante de um texto grande ele se perde.” Belintane é crítico da crença da escola construtivista de que as crianças devem ser expostas a diversos tipos de texto. Segundo ele, nos anos iniciais da escolarização a imaginação das crianças deve ser acionada e satisfeita. Belintane concorda com o filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955) quando, ao criticar o pragmatismo na educação, disse que as crianças devem ler coisas “inúteis” – isto é, não necessariamente

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relacionadas à realidade imediata com que convivem. É uma postura diferente da defendida pela educadora Magda Becker Soares, professora emérita da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita da instituição (Ceale). Para ela, os alunos precisam desde o início serem expostos à função social da escrita. “As crianças se alfabetizam para ler textos que circulam no contexto social e para escrever em eventos em que a escrita é necessária”, diz Magda. “A alfabetização deve basear-se em textos produzidos em situações reais, visando a leitores reais.” SINGULARIDADES

Participação nas aulas e aprendizado da escrita: atenção à singularidade e à imaginação dos alunos

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Belintane vem observando há tempos o interesse das crianças por mitos e costuma recorrer a antologias de contos populares, de matriz indígena, africana ou europeia, como os compilados por Luís da Câmara Cascudo (1898-1986). “As crianças que entram na nova primeira série têm apenas 6 anos de idade, mas muitos professores trabalham praticamente apenas com giz, lousa e elementos de alfabetização, sem estimular sua imaginação”, diz Belintane. Ele recomenda que os professores dispensem livros didáticos (sobretudo as cartilhas) e produzam ou procurem materiais contextualizados em relação aos diagnósticos sobre os alunos da classe, usando simultaneamente aqueles que têm suporte em

papel e ferramentas contemporâneas, de filmes a tablets e jogos de computador. Para os envolvidos no projeto coordenado por Belintane, esse esquema tradicional, centrado no chamado professor regente (aquele que comanda e se responsabiliza pelas atividades principais da sala de aula), não consegue manejar a diversidade e as demandas múltiplas da classe. Na Escola de Aplicação da USP, a professora Natalia Bortolaci – que se baseou na experiência como bolsista do projeto para fazer sua dissertação de mestrado em pedagogia, uma proposta de currículo para a nova 1ª série do ensino fundamental – participou e acompanhou de perto a elaboração de procedimentos para cada criança da classe. Durante o projeto, pela presença de mais professores do que os contratados pela escola, as classes puderam ser reduzidas de 30 para 20 alunos, o que já facilita uma atenção personalizada. Em cada sala havia dois professores, um deles para “questões singularizadas”. “Isso deu a possibilidade de observação e intervenção mais pertinentes no caso dos alunos com maior resistência a aprender ou que chegam com menos cultura escolar”, conta Natalia. O projeto Desafios promoveu diagnósticos com quatro níveis de domínio de leitura e escrita e classificou as crianças. Segundo Natalia, isso permitiu que todos os alunos pudessem ser desafiados a aprender mais, mesmo os que chegam com domínio da leitura e da escrita. Foram promovidas atividades simultâneas sobre um


cuidar disso, sem ter de recorrer a um psicopedagogo externo ao ambiente escolar”, diz Belintane. FORMAÇÃO

mesmo tema, mas com graus diferentes de dificuldade. E, uma vez por semana, o “professor de ciclo” convidou os que têm mais dificuldade para atividades fora da sala de aula, com trabalhos a partir da oralidade. Em outros momentos as atividades misturaram os grupos, com a ideia de que os que sabiam mais ajudassem os que sabiam menos. Na Escola de Aplicação da UFPA as experiências foram além, com grupos que reu­ niram alunos de diferentes séries. O trabalho com quatro perfis de estudantes continuou na instituição mesmo depois do fim do projeto. A ideia de separar alunos por graus de habilidades é vista com cautela por muitos educadores. “Fazer separações traz para dentro da escola os preconceitos que a sociedade dissemina sobre os mais fracos socialmente”, diz Leda Tfouni, professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP. No trabalho de diagnóstico para a 1ª série, os professores do projeto Desafios elaboraram no início do ano portfólios por aluno, que reúnem registros de atividades realizadas na pré-escola e, quando possível, informações obtidas com os pais. Trabalhos semelhantes são realizados dentro do conceito de “dobradiças” entre as séries e ciclos: no fim e no início do ano alunos das duas séries seguidas se encontram e conversam. O trabalho de conhecimento e diálogo com o aluno é constante. Belintane adotou os conceitos de “escuta” e “transferência” da psicanálise para trabalhar com os alunos em atividades relacionadas à alfabetização. Jogos e exercícios são utilizados para tomar um contato mais profundo com as crianças. “O aluno com dificuldades é muito sensível e é difícil lidar objetivamente com ele; mas é possível ter alguém dentro da classe para

A escuta a esse aluno empresta a ideia de “atenção flutuante” de Sigmund Freud (1856-1939), segundo a qual é nos detalhes aparentemente sem importância da fala que uma pessoa se revela mais profundamente. Espera-se com isso encontrar o “ponto de giro”, a partir do qual o aluno sai do papel de suposta incapacidade de aprender. Um exemplo de transferência é o de um aluno muito resistente ao aprendizado e com uma história pessoal de abandono que, por meio de atividades de contação de histórias promovidas por uma das pesquisadoras do projeto Desafios, identificou-se com o personagem Pequeno Polegar (um andarilho solitário), e esse foi seu ponto de giro. Desafiando a prática das teorias construtivista e sociointeracionista – que pregam a exposição do aluno, desde o início do processo de alfabetização, a textos completos de diversos gêneros –, Belintane acredita na utilização dos elementos constitutivos das palavras – sílabas e letras – em combinações e recombinações. Na Escola de Aplicação da USP, o professor, na entrada da sala de aula, brinca de “senha” com os alunos. Cada um pega, sem ver, um cartão com duas palavras (por exemplo: chuchu e vagem) e busca formar outra com uma sílaba de cada (chuva). Em outra atividade, uma lista na lousa mostra palavras estranhas que os alunos, acrescentando e tirando letras, transformam em termos conhecidos. As deficiências do ensino da alfabetização percebidas durante o projeto Desafios e nas pesquisas anteriores de Belintane levaram, inevitavelmente, a uma avaliação da formação do professor. Para ele, quem alfabetiza precisa ser um “professor leitor”. “A formação dos professores precisa sair do envolvimento mais ideológico, marcado pela adesão a correntes, e debruçar-se mais sobre as demandas reais do ensino brasileiro, sobretudo as da própria escola em que se dá aula”, diz Belintane. “Falta conhecimento das técnicas de alfabetização e dos recursos necessários ao domínio do alfabeto.” Leda Tfouni concorda: “De que adianta um professor com a cabeça cheia de teorias famosas, sem saber direito o que fazer com isso?”. Belintane acredita que o projeto Desafios possibilitou que o ensino nos cursos de Pedagogia integrantes fosse repensado e melhorado nas três universidades envolvidas. n pESQUISA FAPESP 237  z  83


SOCIEDADE y

Cidades

alteradas Modelo estatístico indica que construção de usinas hidrelétricas não traz benefícios locais

A

ssociada desde sempre à ideia de desenvolvimento do país, a construção de usinas hidrelétricas também vem sendo defendida como fator de progresso econômico local, isto é, nas regiões do entorno do reservatório. Essa ideia está presente no discurso do governo federal, expresso no texto dos Programas de Aceleração do Crescimento (PAC) 1 e 2, de 2007 e 2010, e repetido quando são lançados os licenciamentos de hidrelétricas como a de Belo Monte, atualmente em construção no Pará. Verificar, em números, a validade dessa afirmação é o objetivo do projeto de pesquisa “Performances de desenvolvimento dos municípios brasileiros afetados por usinas hidrelétricas”, encabeçado por Evandro Mateus Moretto, coordenador do Programa de Pós-graduação em Ciência Ambiental (Procam) do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE-USP) e professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH-USP). Até agora os estudos de impacto das hidrelétricas tratavam das consequências ambientais. Faltavam ferramentas para testar a modificação dos indicadores de 84  z  novembro DE 2015

desenvolvimento humano concomitante à construção e operação das usinas, incluindo os possíveis efeitos da compensação financeira recebida pelos municípios que tiveram áreas alagadas. O modelo adotado pelo projeto do pesquisador do IEE, que se encerra em fevereiro de 2016, envolve 159 usinas que foram inauguradas até 2010 com capacidade instalada igual ou superior a 20 mW, constituindo um universo de 647 municípios alagados e 1.154 vizinhos não afetados. Para realizar as análises, foram utilizadas as 256 variáveis utilizadas pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), disponíveis para os anos de 1990, 2000 e 2010, para a produção do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que inclui as dimensões de riqueza, longevidade e escolaridade. As variáveis – sistematizadas pelo PNUD a partir de mensurações oficiais, como do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) – foram utilizadas para comparar os grupos de municípios alagados e seus vizinhos, com o objetivo de verificar se o desenvolvimento nos períodos de análise dentro

Obras da hidrelétrica de Aimorés, em Itueta (MG), no ano de 2004: dados não indicam benefícios vindos do aproveitamento da compensação financeira recebida


de cada uma das regiões hidrelétricas é igual ou diferente entre os dois grupos de municípios. No conjunto das 159 usinas hidrelétricas, as análises mostram que há uma forte tendência de piora no desempenho do IDH durante o período de instalação das usinas hidrelétricas, quando ocorrem importantes impactos decorrentes da instalação e funcionamento dos canteiros de obras. “De forma geral, os indicadores melhoram em ambos os grupos de municípios, mas crescem menos no grupo mais próximo aos canteiros de obras, que serão os municípios alagados ao final da implantação”, constata o pesquisador. No caso do complexo hídrico de Pelotas-Uruguai, na divisa entre Rio Grande do Sul e Santa Catarina, por exemplo, foi possível identificar que os municípios que abrigam as casas de força das quatro hidrelétricas destacaram-se em alguns indicadores, como foi o caso do maior crescimento do PIB em relação aos outros municípios. Isto, provavelmente, está associado à própria dinâmica econômica que a construção da usina imprime na localidade. Nesses municípios, as oportunidades de trabalho crescem, mas só durante a construção, que emprega várias centenas de trabalhadores, e não depois que a hidrelétrica entra em operação, o que envolve não mais do que 20 pessoas em alguns casos.

lalo de almeida / folhapress

trabalho de campo

Numa análise específica do impacto das compensações financeiras não foi detectada correlação estatística entre os recursos recebidos pelos municípios alagados e a melhora de cada uma das 256 variáveis do IDH, o que é um forte indício de que elas não estão sendo devidamente aproveitadas pelos governos locais para promover suas agendas de desenvolvimento. “Já é possível afirmar que as usinas hidrelétricas não induzem aquele desenvolvimento local preconizado pelos documentos oficiais de planejamento, mas ainda não podemos estabelecer precisamente quais são as relações de causa e consequência entre as usinas e cada uma das variáveis analisadas”, afirma Moretto. Para isso, é necessário trabalho de campo. A intenção é que, a partir de abril, uma parceria entre a USP e a Universidade da Flórida, envolvendo cerca de 15 pesquisadores, ainda não formali-

zada, mas já em andamento, realize um estudo de caso “à exaustão” nas regiões de três hidrelétricas em operação e uma a construir em Rondônia, além das bacias do rio Teles Pires, no Mato Grosso, e do rio Tapajós, no Pará. Algumas observações in loco foram feitas pelo gestor ambiental Daniel Rondinelli Roquetti em seu mestrado sob orientação de Moretto, que se dedicou a verificar impactos socioecológicos da construção da usina de Barra Grande, que faz parte do complexo estudado por Carina Sernaglia Gomes entre Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Ele percebeu que as obras da usina provocaram, nos municípios da região, “uma transformação social associada a mercados ilegais”, além do aumento da criminalidade e da incidência de doenças sexualmente transmissíveis. Efeitos ainda piores foram verificados por Simone Athayde, do Centro de Estudos Latino-americanos da Universidade da Flórida (EUA), entre os povos indígenas das regiões afetadas por hidrelétricas no Xingu, incluindo Belo Monte. “Os impactos negativos afetam até o sistema de conhecimento do ambiente por esses povos e não admitem compensação; são incalculáveis sob o ponto de vista monetário”, diz a pesquisadora. Simone e Moretto não se opõem às hidrelétricas como opção principal dos governos brasileiros para a geração de energia. “Não há dúvida de que elas contribuem para o desenvolvimento da economia do país, mas nada prova que favoreçam as regiões em que são construídas”, diz Moretto. Ele supõe que o discurso oficial nesse sentido queira resgatar uma associação histórica que sempre houve entre barragens e de­ senvolvimento das sociedades locais. “Mas o benefício das hidrelétricas não é o mesmo de outros tipos de barragens, dedicadas a prover irrigação e abastecimento público da própria localidade, por exemplo; no Brasil, grandes usinas hidrelétricas não são feitas para gerar energia elétrica para a região onde estão localizadas.” n Márcio Ferrari

Projeto Performances de desenvolvimento dos municípios brasileiros afetados por usinas hidrelétricas (nº 2013/14111-9); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Evandro Mateus Moretto (IEE-USP); Investimento R$ 35.466,16.

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HISTÓRIA y

Cristianismo negociado Entre os séculos XVII e XVIII, jesuítas de missões da Amazônia espanhola tiveram que lidar com versões indígenas do catolicismo

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evangelização dos índios da Amazônia pelos europeus não se reduziu a uma absorção pas­ si­­va do pensamento ocidental. As noções cristãs tiveram de ser tra­ duzidas para as línguas ameríndias e adquiriram significados que os missio­ nários não podiam controlar – mesmo porque muitas funções religiosas eram na verdade exercidas pelos nativos, dada a escassez de padres. A conversão não foi propriamente uma imposição unilateral e sim um “diálogo intercultural”, no qual os indígenas adaptaram o cristianismo a suas matrizes de pensamento. A ampli­ tude desse intercâmbio intelectual vem sendo estudada pelo historiador Fran­ cismar Alex Lopes de Carvalho em seu estágio de pós-doutorado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH­ -USP) desde 2013. A pesquisa abrange as missões de Maynas e Mojos, criadas nos atuais Equador e Bolívia por jesuí­ tas a serviço da Espanha. O material ana­lisado pelo pesquisador, em grande parte inédito, foi localizado em arquivos 86  z  novembro DE 2015

e bibliotecas na Espanha, na Itália, em Portugal e nos Estados Unidos. A primeira etapa do trabalho de Car­ valho foi concluída e resultou na publi­ cação, este ano, de um artigo na revista Varia Historia, editada pela Universidade Federal de Minas Gerais, e de um segun­ do aceito na revista Anuario de Estudios Americanos, da Escuela de Estudios His­ pano-Americanos de Sevilha (Espanha). De acordo com o pesquisador, as missões de Mojos foram estabelecidas em 1682 e prosperaram devido à produção de ca­ cau, sebo, cera, açúcar e tecidos. Reu­ niam 24.914 índios batizados em 1713. Já as de Maynas, criadas em 1638, não tiveram a mesma sorte. Atingidas por sucessivas epidemias, não conseguiam sobreviver sem subvenções da adminis­ tração colonial. Produziam grãos, cacau e salsaparrilha, mas sempre em pequenas quantidades. Em 1719 somavam apenas 7.966 almas. Carvalho interessou-se por esse diálogo intercultural entre europeus e indígenas ao elaborar sua tese Lealdades negociadas: povos indígenas e a expansão dos impérios

ibéricos nas regiões centrais da América do Sul (segunda metade do século XVIII), defendida em 2012 no Departamento de História da FFLCH e publicada como li­ vro pela editora Alameda em 2014. Nesse trabalho, ele observa que a conquista da Amazônia por portugueses e espanhóis se baseou numa política de cooptação dos líderes tribais, por meio da qual os caciques barganhavam vantagens mate­ riais em troca do apoio aos colonizadores. Finda a tese, ele passou a estudar de que maneira os indígenas da região se apropriaram do catolicismo – e consta­ tou que as negociações entre europeus e nativos também se estendiam à esfe­ ra ideológica. Os índios assimilavam os conceitos cristãos, mas conferiam signi­ ficados estranhos às noções originais, o que levou à emergência de um cristia­ nismo híbrido. Essa “barganha espiritual” começava nas “entradas missionárias” – prática que provavelmente remonta ao padre Manoel da Nóbrega em São Paulo no século XVI: ladeados por soldados, os jesuítas “con­ vidavam” os índios a migrar para suas

JOHN CARTER BROWN LIBRARY

Mauricio Puls


Gravura europeia do século XVI representa o demônio escravizando indígenas do Novo Mundo: ecos da estratégia de catequização adotada pelos jesuítas pESQUISA FAPESP 237  z  87


povoações; se eles não quisessem, “esta­ riam sujeitos a uma ‘guerra justa’ movida pela tropa”, conta Carvalho. O objetivo dessas entradas era obrigar os nativos a aceitar “a fé pelo medo”, como esclare­ ceu o cientista político José Eisenberg no livro As missões jesuíticas e o pensamento político moderno (UFMG, 2000).

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mesmo procedimento era apli­ cado na Amazônia. Contudo, co­ mo as fronteiras ali ainda eram fluidas, portugueses e espanhóis preci­ savam disputar a lealdade dos índios. O convencimento, portanto, tinha de ir além da mera violência. Pedro Puntoni, professor da FFLCH-USP e orientador da tese de Carvalho, observa que “o con­ texto da fronteira é decisivo” para expli­ car a negociação com os líderes tribais, que resultou na concessão de benefícios econômicos e certa autonomia adminis­ trativa às etnias. Como eram poucos, os missionários repassavam aos índios diversas atribui­ ções, como as tarefas de catequistas, sa­

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cristãos, músicos e fiscais da doutrina. A delegação dessas funções, quase todas de caráter espiritual, restringia muito o po­ der dos jesuítas para impor suas ideias. “Nas missões de Maynas”, explica Car­ valho, “os missionários tiveram de lidar com interpretações alternativas que os índios faziam da doutrina cristã, as quais os padres não podiam evitar de todo, porque dependiam dos conceitos dispo­ níveis nas línguas locais e de auxiliares nativos para fazer avançar a conversão”. Essa resistência indígena ao pensa­ mento europeu se manifestava aos mis­ sionários como obra do demônio. Daí a profusão dessa figura nos relatos dos jesuítas. Mas, como escreve o autor em seu artigo publicado na Varia Historia, tais menções não constituíam apenas uma rejeição aos indígenas e sim “uma tentativa de estabelecer pontes analógi­ cas por meio das quais o diálogo inter­ cultural e a negociação do universo do sagrado podiam fluir”. Por que a figura do demônio adquiriu tal centralidade no diálogo intercultu­

ral? Segundo Carvalho, tudo começou porque muitos religiosos partilhavam da convicção de que, após a cristianização da Europa, “o demônio e sua horda infer­ nal haviam se retirado para a América”. O Novo Mundo estava sob “a tirania de Satanás” – daí a obsessão em identificar traços demoníacos nas crenças exóticas. “É nesse cenário de ‘demonização’ das deidades indígenas que os padres operaram uma metamorfose nas enti­ dades espirituais que causavam danos na figura cristã do diabo”, diz Carvalho. Nessa metamorfose, porém, o conceito cristão experimentou mudanças relevan­ tes. Os índios incorporaram o demônio cristão como uma divindade a mais em seu panteão ou simplesmente passaram a chamar de diabo certos espíritos ma­ lignos já conhecidos. Os religiosos nem sempre podiam evitar deslocamentos no significado do termo “demônio” devido à estratégia linguística que eles adotavam. Para enal­ tecer as noções cristãs, diz Carvalho, “os jesuítas preferiam manter em espa­ nhol os termos positivos e centrais para a Igreja, como Deus, sacramentos etc., e lançar mão das palavras nativas para descrever o negativo”. Tamanha sutileza, porém, acarretava consequências inespe­ radas, pois os missionários não podiam controlar os significados atribuídos às antigas entidades indígenas, nem tam­ pouco impedir que os nativos usassem esses termos negativos para denotar os próprios espanhóis. A tradução dos conceitos europeus pa­ ra o pensamento tribal enfrentava outras limitações. Se os nativos aceitaram bem a ideia de demônio, o mesmo não se po­ de dizer da ideia de inferno. “O conceito parecia absurdo aos indígenas”, explica o pesquisador. “Como dar crédito à exis­ tência do inferno, um lugar onde seus antepassados, que não haviam conhecido o cristianismo, padeceriam eternamente juntos com os mais prestigiosos guerrei­ ros e xamãs?” As dificuldades dos jesuítas não cessa­ vam aí: as tentativas de eliminar o papel dos xamãs como intermediários com o mundo espiritual também fracassaram. “Os missionários não podiam destruir completamente a crença comum no poder dos xamãs porque eles mesmos eram acei­ tos nas comunidades como xamãs mais poderosos, generosos e efetivos”, assinala Carvalho. “O missionário era visto como


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Página de rosto de um léxico da língua dos índios tucanos escrito por um jesuíta (ao lado) e vista do século XVIII de uma aldeia da missão de Maynas

alguém que possuía a inusual capacidade de manipular forças espirituais. Por essa razão, era um provedor tanto de benefí­ cios como de pragas e maldições.”

fotos 1 NEW YORK PUBLIC LIBRARY 2 OLIVEIRA LIMA LIBRARY

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m outras palavras: os padres eram respeitados pelos indígenas, em parte porque assumiram funções como a distribuição de bens e a inter­ mediação com o mundo sobrenatural, que eram da competência dos xamãs. De acordo com Carvalho, os jesuítas não podiam, portanto, investir contra alguns dos esquemas de pensamento nativos que asseguravam a sua aceitação. Em­ penharam-se, assim, em relegar os feiti­ ceiros indígenas ao ostracismo, salvo em alguns casos em que, por não se oporem ao Evangelho, podiam ser incorporados como auxiliares. Nem sempre, contudo, os missionários eram bem-sucedidos em negociar sua inserção nas comunidades, e não foram

raros os casos de sublevação e martírio de padres. Na dissertação A expressão da vontade: relações interétnicas e rebelião indígena nas missões de Maynas (16851698), defendida na Pontifícia Univer­ sidade Católica de São Paulo (PUC-SP) em 2009, a atual doutoranda Roberta Fernandes dos Santos mostrou as difi­ culdades do padre Enrique Richter em estabelecer uma missão às margens do rio Ucayali. “Ao que parece”, sugere Car­ valho a respeito desse episódio, “o padre teria rompido a negociação inicial que facultou sua aceitação pelos índios, ao não suprir os itens prometidos, ausen­ tar-se por longos períodos e impor uma disciplina que não foi tolerada”. A re­ belião culminou com o assassinato do jesuíta em 1695. Mas é precisamente nessas situa­ ções de conflito que a “demonização” das crenças indígenas mostrava sua fa­ ce positiva. No artigo “Contato, guerra e negociação: redução e cristianização de Maynas e Jeberos pelos jesuítas na Amazônia no século XVII”, publicado na Revista de História Unisinos em 2007, Fernando Torres-Londoño, professor do Departamento de História da PUC­ -SP, observa que a presença do demônio acabava por eximir os indígenas de qual­

quer “responsabilidade quando emergia o conflito”. Na visão dos jesuítas, explica Carvalho, como as rebeliões podiam ser creditadas a Satanás, abria-se um canal de reconci­ liação com os revoltosos. “A rigor”, con­ clui o pesquisador, “atribuir ao demônio a responsabilidade pelos martírios e des­ truição das missões tornava os índios tão humanos quanto os europeus”. n

Projeto O governo dos índios: instituições municipais ibéricas e identidades indígenas nas missões de Maynas e Mojos (segunda metade do século XVIII) (2012/06580-6); Modalidade Bolsa no País – Pós-doutorado; Pesquisador responsável Pedro Luís Puntoni (FFLCH-USP); Bolsista Francismar Alex Lopes de Carvalho (FFLCH-USP); Investimento R$ 160.172,31.

Artigos científicos Carvalho, F. A. L. de. Imagens do demônio nas missões jesuíticas da Amazônia espanhola. Varia Historia. v. 31, n. 57, p. 1-45. set.-dez. 2015. Carvalho, F. A. L. de. Estrategias de conversión y modos indígenas de apropiación del cristianismo en las misiones jesuíticas de Maynas, 1638-1767. Anuario de Estudios Americanos. No prelo.

Livro Carvalho, F. A. L. de. Lealdades negociadas: povos indígenas e a expansão dos impérios ibéricos nas regiões centrais da América do Sul (segunda metade do século XVIII). São Paulo: Alameda, 2014. 596 p.

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memória

Trigo e milho bem moídos Moinhos d’água expressam os modos de produção desde o século XVII Carlos Fioravanti

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Carlos Fioravanti Moinho vertical de Gramado, RS, construído por imigrantes italianos

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90 | novembro DE 2015

nstalados no Brasil pelos colonizadores europeus, os moinhos de pedra movidos a água eram comuns no centro-sul do país. O registro mais antigo sugere que os primeiros moinhos foram construídos entre 1614 e 1616 em São Paulo. Os maiores eram utilizados para moer trigo, enquanto os menores, espalhados também por estados vizinhos a partir do século XVIII, serviam para triturar milho, usado para alimentação de pessoas e de animais domésticos. Com a eletricidade e a industrialização de alimentos, perderam utilidade. A maioria desapareceu, outros viraram ruínas, como em um sítio em Santana do Parnaíba, na Grande São Paulo, mas ainda há dezenas em funcionamento em sítios e fazendas, em geral com uso secundário ou turístico. “Hoje os moinhos de pedra são quase um fóssil tecnológico”, diz o historiador Franscisco Andrade, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Representam um elo com uma tradição técnica iniciada na Europa há mais de dois milênios.”


fotos 1 Francisco Andrade  2 Centro de Memória da Unicamp – Coleção Secretaria de Agricultura, Comércio e Obras Públicas do Estado de São Paulo  3 Victor Hugo Mori  desenho Francisco Andrade

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Andrade encontrou três moinhos d’água em funcionamento nos municípios mineiros de São Gonçalo do Rio das Pedras e Ouro Branco. Em Boa Esperança ele conheceu o artesão Gilson José Guimarães, que fabricava as peças mais importantes do moinho, os discos de pedra, a partir de blocos de granito, e explicou a relação entre os sulcos das pedras e seu uso para moer milho. Em São Paulo, Andrade encontrou outros moinhos inteiros, embora a maioria estivesse inativa, em antigas fazendas de café do Vale do Paraíba e da região de Itu. Em Silveiras ele conheceu Josias Mendes Florêncio, um raro operador de moinho (ou moleiro). Mineiro nascido em 1931, ex-tropeiro e fabricante de balaios, Florêncio explicou como funcionava o moinho, com descrições que muitas vezes convergiam com as de um tratado escrito pelo engenheiro espanhol Pedro Juan de Lastanosa entre 1564 e 1575. O moinho de Silveiras foi construído em 1916 e permaneceu inativo durante décadas, até Florêncio consertá-lo, nos

Azenha em Ibitinga, SP, em foto de Guilherme Gaensly, 1906

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Ruínas e reconstituição do moinho do Sítio do Morro, em Santana do Parnaíba, SP

anos 1980, e começar a usá-lo para moer milho e fazer fubá para ele e para os vizinhos. Nos estados de Goiás, Minas, Rio de Janeiro, Espírito Santo e São Paulo, predominavam os moinhos de roda horizontal, com no máximo 4 metros de altura. A água dos rios bate em uma roda horizontal de madeira, que aciona um eixo vertical, ao qual está encaixado um dos discos de pedra. A pedra gira sobre outro disco de pedra, fixo, triturando os grãos colocados entre eles. No sul, os mais comuns são os moinhos de roda vertical, chamados de azenha, usados para moer trigo. Em um artigo publicado em janeiro na revista Anais do Museu Paulista, Andrade observou que os moinhos no Brasil eram de menor porte e mais simples que os construídos em Portugal e na Espanha, embora mais numerosos, por causa da abundância de rios com quedas-d’água. “Os moinhos de água agregam o Brasil colonial às mais profundas tradições civilizatórias e, dada sua importância, eram considerados um investimento a ser sempre controlado pela Coroa e seus governantes”, comenta o arquiteto e professor da Unicamp Marcos Tognon, orientador do trabalho de Andrade. Ele lamenta o descuido com os discos de pedras, também chamados de mó. “As pedras de mó, geralmente em granito rosa ou cinza, são encontradas em uma situação de largo desleixo, como apoio de vasos, plano de mesas e até mesmo como bancos despretensiosos sob árvores frondosas”, diz ele. “Quem se senta ou se apoia sobre elas não sabe que essas peças possuem papel central na ocupação do interior brasileiro colonial.” n PESQUISA FAPESP 237 | 91


Arte

Um modo de dançar Grupo da USP traduz os princípios do Tanztheater alemão Flávia Fontes Oliveira

A

o criar o Laboratório de Pesquisa e Estudos em Tanz Theatralidades (Lapett), em 2011, dentro do Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicação e Arte da Universidade de São Paulo (ECA-USP), a professora, pesquisadora e coreógrafa Sayonara Pereira sabia que um dos primeiros desafios seria mostrar as dimensões da expressão Tanztheater. Mais do que “dança-teatro”, na tradução comum no Brasil, conhecida particularmente pelas obras da coreógrafa alemã Pina Bausch (1940-2009), o termo, para ela, deve ser visto hoje como um modo de pensar e fazer dança a partir dos ensinamentos dos pioneiros desse movimento, mas levando em consideração as contribuições de quem cria e de quem interpreta. 92 | novembro DE 2015

Acredita-se que o coreógrafo e pedagogo alemão Kurt Jooss (1901-1979) tenha sido o primeiro a empregar o conceito, em 1935. É dele a coreografia A mesa verde, de 1932, considerada a manifestação inicial do Tanztheater, na qual trata das agruras da guerra, inspirando-se em danças macabras alemãs do século XV. Seu tema e sua construção, com diversos esquetes, fugiam dos recursos comuns ao balé clássico e fizeram dela um marco para a época. Ainda hoje, companhias pelo mundo mantêm a obra em repertório. “A característica do Tanztheater foi transcender a técnica do balé clássico, utilizando-se da dramaticidade do teatro”, diz Sayonara. Uma seguidora do Tanztheater, a bailarina e coreógrafa alemã Susanne Linke, foi quem indicou Sayonara para


fotos  silvia machado

a Folkwang Hochschule de Essen (hoje Folkwang Universität der Künste), na Alemanha, dirigida à época por Pina Bausch. Isso aconteceu depois de vê-la num teste em 1984, quando Sayonara começava a carreira em Porto Alegre, sua cidade natal. “Desenvolvi em Essen o início da minha caligrafia coreográfica e o esboço da pedagogia de dança que eu viria a elaborar”, conta a professora. Formado por alunos de graduação e pós-graduação do curso de Artes Cênicas da ECA e de universidades parceiras, o Lapett conta hoje com seis participantes. Sem obrigatoriamente terem conhecimento prévio em dança, os atores-dançarinos são selecionados anualmente, no início do primeiro semestre, por meio de uma aula-teste. Os encontros do Lapett acontecem duas vezes por semana. Têm pouco mais de três horas de duração e combinam treinamento corporal, exercícios para desenvolver as qualidades expressivas dos movimentos e aulas teóricas sobre a história do Tanztheater e suas coreografias. As matrizes com que Sayonara trabalha podem ser gestos do cotidiano (andar, comer, escovar os dentes) ou a exploração de novos planos espaciais. “Não existe uma aula que ensine técnicas do Tanztheater”, afirma a professora, que é também autora de um livro sobre as relações do grupo alemão com seu trabalho, Rastros do Tanztheater no processo criativo Es-boço (editora Annablume). “É um modo de condução do trabalho, preocupado com o intérprete, seus sentimentos, suas

A bailarina Bárbara Lins, na coreografia Momento(s) de silêncio (também abaixo), e cena de Unterwegs (acima), resultados do diálogo entre o Lapett e o Tanztheater

sensações e suas memórias. Kurt Jooss sugeria que o intérprete já traz em seu corpo o material para ser lapidado.” Sayonara procura integrar pesquisa e prática no Lapett. “Ela sempre deixava clara a vontade de conhecer o que cada um tinha para mostrar, dizer e defender por meio do movimento”, conta Rafael Sertori, hoje mestrando em Artes Cênicas na ECA com bolsa da FAPESP, que participou do Lapett entre 2011 e 2013 e integrou o elenco de Momento(s) de silêncio (2012), primeiro espetáculo do grupo. “Conforme os encontros semanais do grupo iam acontecendo, ela teve a sensibilidade de perceber o surgimento de temas comuns em nossas conversas, nos textos e nas imagens que trazíamos.” “O trabalho sempre começa tentando acionar a memória do corpo dos intérpretes, as sensações e os sentimentos”, diz Sayonara. Em Vãos, que estreou em agosto, a coreógrafa recorreu a fotos. Cada intérprete pesquisou e depois fotografou espaços ou situações que identificou com a sugestão: o que seriam os vãos da cidade, quem são os habitantes desses espaços? O primeiro impulso é sempre a pesquisa individual dos participantes. A partir disso, Sayonara sugere gestos ou sequências para a construção a ser elaborada. O Lapett também deu impulso para o segundo pós-doutorado de Sayonara. Com bolsa da FAPESP, a partir de dezembro ela estará na Freie Universität Berlin para desenvolver o projeto “Arquivos corporais dos intérpretes: memórias levadas para a cena”. “O grupo é sempre matéria de inspiração”, diz. “Tento agora pensar o meu ‘fazer’, conceituar de forma acadêmica os trabalhos que realizei pensando prioritariamente na prática.” n PESQUISA FAPESP 237 | 93


resenhas

Para compreender fenômenos complexos Ricardo Bitun

O

Messianismo e milenarismo no Brasil João Baptista Borges Pereira e Renato da Silva Queiroz (organizadores) Edusp 280 páginas | R$ 52,00

94 | novembro DE 2015

s movimentos messiânicos e milenaristas ocorridos no Brasil em meados dos séculos XIX e XX são tão diversos em suas configurações e situações histórico-sociais que, por vezes, os conceitos analíticos são insuficientes para classificá-los. Não é para menos: a realidade tal como ela é, de fato, não pode ser apreendida em sua totalidade, apenas problematizada conceitualmente. É nesse sentido que o conjunto de artigos que compõe a coletânea Messianismo e milenarismo no Brasil – organizada pelos antropólogos João Baptista Borges Pereira e Renato da Silva Queiroz – pretende contribuir para um tema já clássico. Publicada originalmente numa edição especial da Revista USP (no 82, de 2009), a coletânea conta com 11 artigos escritos por especialistas, sendo um inédito. Apesar da diversidade das abordagens, é possível apontar um ponto de convergência entre os artigos: trata-se de demonstrar que os diferentes movimentos sertanejos e suas utopias escatológicas tendiam a ser interpretados por seus observadores contemporâneos (e ainda hoje) como irracionalidade ou obstáculo aos ideais modernos (a República, a ciência etc.). Além disso, na maioria dos casos, as revoltas sertanejas tiveram fins trágicos. No caso de Canudos, como bem retrata Walnice Galvão, uma série de ambiguidades marcou a leitura desse movimento, começando pela cobertura jornalística (e literária) do próprio Euclides da Cunha. Sua obra Os sertões pode ser tomada como exemplo: ora denuncia os exageros da civilização em relação aos sertanejos, ora simpatiza com aqueles a quem descreve como “fanáticos”. Além disso, há por parte dos autores um esforço elogiável em não tomar um tema clássico como esgotado. A propósito, Lísias Negrão faz um excelente inventário bibliográfico do estado atual das pesquisas, privilegiando três movimentos específicos: o de Juazeiro, Canudos e Contestado. Com exceção do artigo de Rodrigo de Sousa que abre a coletânea e cujo objetivo é traçar um quadro histórico do messianismo judaico primitivo (e seus desdobramentos), os demais textos fazem uma releitura dos principais estudos acerca dos movimentos messiânicos no Brasil. Marcio de Godoy aponta para a apropriação dos ideais

bíblicos por parte dos portugueses e as trovas proféticas de Gonçalo Bandarra em momentos de crise da corte que permitiram a construção mítica de dom Sebastião, cuja figura faria ecos também no Brasil Colônia. Por sua vez, Renato Queiroz analisa o episódio que ficou conhecido como “a aparição do demônio de Catulé”, protagonizado por membros da Igreja Adventista da Promessa em Minas Gerais, em 1955. Outro eixo analítico que coloca em nova perspectiva os estudos dos movimentos messiânicos são os referenciais teóricos da psicanálise tal como articulados por Antonio Máspoli na análise do conflito do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto (movimento ocorrido no estado do Ceará entre 1894 e 1937) e por Heloisa Módolo, que investiga o aspecto psicológico dos “delírios religiosos” (o caso de Jacobina e seus liderados, os Mucker). Apesar dos “riscos” de tal abordagem, a proposta rende reflexões interessantes. Por fim, do ponto de vista da construção das memórias em torno de fenômenos fixados num passado histórico, são interessantes os artigos de Celso Menezes e de Julio Cesar Melatti. Nessa direção, o artigo inédito de Gladson da Cunha trata de explorar um movimento messiânico que ficou conhecido como Estado União de Jeová. Cabe ainda mencionar a reconstituição histórica que Cristina Pompa faz do “movimento de Pau de Colher” a partir de seus protagonistas, argumentando que o movimento ressignificou os símbolos de devoção do catolicismo sertanejo: o festejo de santo, a romaria e a procissão-penitência. Em todos esses casos, mitos e ritos se entrelaçam com a história. O livro reacende, pois, um debate clássico e articula diferentes elementos analíticos: tão diversos quanto o objeto em questão são também as abordagens e os referenciais teóricos cujo quadro interdisciplinar é sempre bem-vindo para a compreensão de um fenômeno complexo e multifacetado. Sua leitura (não apenas obrigatória, mas também agradável) é indispensável para especialistas e interessados. Ricardo Bitun é coordenador do curso de pós-graduação do Programa de Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie.


A produção indígena de conceitos Oscar Calavia Sáez

M

Metafísicas canibais Eduardo Viveiros de Castro Cosac Naify / n – 1 Edições 320 páginas | R$ 45,00

etafísicas canibais é um volume denso cuja leitura exige familiaridade com as duas disciplinas que ele cruza: a antropologia e a filosofia. Mas nele se destaca uma questão prévia, que traz à tona um interlocutor prévio: o que pode a filosofia fazer com o pensamento do outro, ou seja, desses povos outrora chamados “selvagens”, dos quais a antropologia nos dá notícia? Por muito tempo a resposta foi: nada. No pensamento dos outros nada podia se detectar além de erro; ou, no melhor dos casos, noções rudimentares cuja versão desenvolvida nos pertence. Mais tarde, o tom mudou: reconheceram-se formas diferentes de uma racionalidade humana comum, e a paleopsiquiatria ou a paleoecologia tornaram-se etnopsicologia e etnoecologia, aptas para ser incluídas dentro de uma razão ampliada, que, no entanto, continuava sendo a nossa. O autor Eduardo Viveiros de Castro denuncia uma inclinação narcisista da nossa cultura, que o pensamento pós-colonial, longe de interromper, tem levado ao seu máximo vigor: a todo pensamento “outro” cabe ser uma versão precária ou uma projeção do pensamento do Ocidente. Sem tal narcisismo, seria possível reconhecer que os “outros” trazem a esse pensamento elementos que não estão na sua tradição, ou que só aparecem nela quando as ideias dos outros os ativam. O autor postula que “todas as teorias antropológicas não triviais são versões das práticas de conhecimento indígenas”. O pensamento do outro nos fornece conceitos com os quais é possível pensar. O canibalismo pode ser um bom exemplo, ou mesmo um modelo, desses conceitos. É uma tese provocativa, porque nos nossos dicionários o canibalismo não passa de um modo bárbaro de alimentação, que reduz um semelhante a comida. Bem outra era a concepção dos Tupinambá, os “canibais” por excelência: matar o inimigo não era para eles assimilá-lo, mas assumir o seu nome, tornar-se o inimigo, tornar-se outro. A prática canibal acontecia dentro de uma filosofia do devir; e filosofias do devir já houve muitas, mas essa, adaptando uma expressão de Tim Ingold citada no livro, é uma filosofia do devir com seus sujeitos (e os hábitos desses sujeitos) dentro. Em contraste com a tradição do Velho Mundo que pensa mediante similitudes e generalizações, e cujas

metáforas estão tomadas da consanguinidade (da paternidade como modelo da produção à fraternidade como modelo do social), a dos “selvagens” toma como paradigma o outro (um inimigo) e a “alteração”. O resultado é uma versão perspectivista e desunificada disso que nós chamamos “a grande cadeia do ser”. Uma metafísica canibal é uma metafísica que deixa de lado as constantes e as invariantes e foca a diferença e a produção da diferença. As sínteses que nela interessam são as que criam e multiplicam: sínteses disjuntivas – um termo que, como muitas outras inspirações do livro, procede da filosofia de Gilles Deleuze, não em vão eivada de leituras etnológicas. O objetivo do livro não é definir uma etnofilosofia com sua área demarcada dentro de um mapa multicultural do pensamento. Há, de fato, muitas afinidades entre essas ideias e correntes da ciência atual que têm deixado de lado a taxonomia e a busca de teorias unificadas para explorar uma proliferação de relações horizontais. Veja-se, por exemplo, a mudança de ênfase da semântica para a pragmática, do combinatório para o fractal ou diferencial. Talvez não haja melhor ilustração dessa afinidade do que as descobertas recentes a respeito da troca de informação genética entre microorganismos: uma troca, ou uma captura à margem da reprodução, que altera os seus protagonistas e revela uma agência inesperada em níveis do ser muito longe do humano – quem sabe o velho animismo de volta, agora pela porta da biologia. Falar de multiplicidade e horizontalidade e recusar totalidades e hierarquias leva o argumento para a política, pois a ordem hegemônica está baseada numa ontologia unitária, que define objetivos comuns, necessidades universais. Metafísicas canibais reivindica aquele Manifesto antropofágico da vanguarda de 22, designando para a antropologia uma tarefa de “descolonização permanente do pensamento”: afirmar perspectivas outras – múltiplas, portanto – contra essas figuras do Todo expressas nas ideologias totalitárias, mas de um modo quiçá mais efetivo no credo global. Oscar Calavia Sáez é professor adjunto do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pesquisador do CNPq.

PESQUISA FAPESP 237 | 95


Parcerias

Talentos verdes Três brasileiros estão entre os melhores em premiação na Alemanha relacionada ao desenvolvimento sustentável O desenvolvimento sustentável e a internacionalização acadêmica são dois temas atuais que, reunidos em um prêmio de âmbito mundial, podem ser muito positivos para a carreira dos ganhadores. Foi o que aconteceu com três brasileiros premiados no Green Talents Award, realizado pelo Ministério Federal da Educação e Pesquisa da Alemanha, por seus projetos de pesquisa nas áreas de hidrologia e ciência do solo, energia renovável e agropecuária. Paulo Tarso Sanches de Oliveira, que faz estágio de pós-doutorado na Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo (EESC-USP), Larissa Marchiori Pacheco, mestranda na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto da USP (FEA-RP), e Paula de Carvalho Machado Araujo, mestranda na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), ficaram entre os 27 escolhidos de um total de 574 inscritos de 91 países. Os Green Talents ganham duas semanas de visitas e interação com pesquisadores 96 | novembro DE 2015

em universidades e instituições alemãs como o Fraunhofer Fokus, Centro de Competência para Água de Berlim, Instituto Ecológico, e empresas como a Henkel e a ThyssenKrupp Steel, entre outras. Paulo Tarso é bolsista de pós-doutorado da FAPESP em um projeto que estuda os mecanismos hidrológicos e de erosão do solo do Cerrado brasileiro. “Além de trazer prestígio internacional, o prêmio Green Talents tem ajudado a ampliar minha rede de contatos na Alemanha com potenciais parcerias de pesquisa”, diz Paulo. “No período de 15 dias tive reuniões com pesquisadores na área de hidrologia nas universidades de Stuttgart, de Potsdam e no Instituto de Meteorologia Max Planck. Esses encontros foram produtivos e geraram colaboração em dois novos artigos científicos.” Agora ele pretende conseguir uma posição como professor. Deve, ainda, aproveitar outra vantagem em ser um Green Talent, que é ficar por três meses na Alemanha em 2016 para estudos. “Acredito que essa parceria tende a se

prolongar e trazer benefícios às pesquisas que já desenvolvo no Brasil.” Para Larissa, que pretende trabalhar como pesquisadora e docente, “o prêmio foi importante por prestigiar o trabalho realizado por pesquisadores que ainda estão iniciando a atuação profissional”. Ele oferece também oportunidades de parcerias com instituições alemãs para compartilhamento de conhecimento. “O contato com pesquisadores e profissionais me mostrou as possibilidades de atuação como pesquisadora e me proporcionou definir os meus objetivos para os próximos anos”, diz ela, que estuda as atitudes das empresas frente aos recursos naturais e ao desenvolvimento sustentável dentro da perspectiva da inovação verde. Paula Araujo, a terceira brasileira, é mestranda em agricultura orgânica na UFRRJ e trabalha como técnica do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, na Amazônia. Ela é veterinária e seu estudo é na área de criação animal com projetos relacionados ao manejo agroecológico das pastagens. “Os encontros individuais com três experts da minha área foi o momento mais importante do prêmio porque pude compartilhar minhas iniciativas e experiências e ter o retorno positivo deles”, contou. “Além disso, o contato abre novas oportunidades de parcerias entre o Instituto Mamirauá, a UFRRJ e outras instituições da Alemanha.” n Marcos de Oliveira

foto  arquivo pessoal  ilustraçãO  daniel bueno

carreiras


Perfil

Universidades que mais formaram empreendedores

Versado em fibras ópticas

A aproximação entre o mundo empresarial e o acadêmico por meio do incentivo a pesquisadores empenhados em transformar trabalhos científicos em produtos comerciais pode ser um forte fator de internacionalização das universidades. É o que mostra o recém-lançado PitchBook Universities Report, que apresenta o ranking das 10 universidades no mundo que mais produziram candidatos a empresário. Eles receberam o chamado capital de risco, um subsídio que costuma vir de investidores e ajuda a transformar ideias em realidade rentável. Ao todo, os programas de graduação dessas instituições — encabeçadas pelas universidades Stanford e da Califórnia, em Berkeley, e pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), todos nos Estados Unidos — formaram um grupo de empreendedores que, de 2010 a 2015, criaram mais de 3 mil empresas que receberam US$ 33,5 milhões. O relatório apresenta ainda as instituições com os melhores programas de pós-graduação e MBA e destaca o oferecido pela Fundação Getulio Vargas (FGV), de São Paulo. A fundação está entre as cinco instituições de ensino com o melhor MBA fora da Europa e dos Estados Unidos. O documento propõe que o caminho para transformar uma pesquisa em um negócio bem-sucedido requer mais do que um bom gerenciamento do modelo de negócio. É preciso investir em redes de contato, de professores a investidores e sócios, formando um nexo humano que permita ter um fluxo de recursos para inovar. n Rodrigo de Oliveira Andrade

Aos 52 anos, o físico Claudio Egalon, com vasta experiência em fibras ópticas, voltou neste ano ao Brasil com a aprovação de um projeto do Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP. Ele vivia em Los Angeles, nos Estados Unidos, tinha uma empresa, a Science & Sensors, na qual desde 2008 desenvolvia para o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) um sensor de fibra óptica para medir a concentração de nutrientes em soluções líquidas para o cultivo de plantas usando hidroponia. “Durante esse projeto consegui desenvolver também um colorímetro na forma de um kit educacional. O dispositivo mede nutrientes no cultivo de plantas em hidroponia”, conta. Agora, no projeto Pipe ele desenvolve um sensor para medir, até em nanômetros, o nível do líquido nesse tipo de plantio. “Quero saber o quanto a planta consome de água. Essa informação ajuda a diagnosticar as condições de saúde das plantas.” Em todos esses sensores, Egalon utiliza fibras ópticas com iluminação lateral, na qual a luz ilumina a superfície cilíndrica do dispositivo. Ao usar vários LEDs ao longo da fibra, essa técnica cria pontos sensores com apenas um detector. Egalon é formado em física pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), fez mestrado e doutorado no College of William & Mary, e um segundo doutorado na Universidade Old Dominion, ambos nos Estados Unidos. Depois

Físico brasileiro passou 30 anos nos Estados Unidos, trabalhou na Nasa, e volta para desenvolver empresa em São José dos Campos ele se tornou pesquisador no Centro de Pesquisas da Nasa Langley, onde ficou por 10 anos trabalhando com sensores de fibras ópticas. Entre 1993 e 1994, foi o primeiro brasileiro a fazer experimentos de microgravidade a bordo do avião da Nasa KC-135, usado no treinamento de astronautas. No voo, por meio de manobras parabólicas, é criada a condição de falta de peso quando os passageiros flutuam dentro da aeronave. “Fiz esse voo seis vezes”, diz. Depois de sair da Nasa, ele deu aulas na Universidade de Porto Rico e ainda trabalhou no laboratório da Força Aérea Americana, Philips Research Site, no Novo México. Em 1998, Egalon foi para a Intelligent Optical Systems (IOS), perto de Los Angeles, uma pequena empresa de sensores. Voltou ao Brasil em 2002 com a aprovação de seu primeiro projeto Pipe para desenvolver um sensor de fibra que identificasse íons de cloro em concreto armado, mas não conseguiu seguir para a segunda fase. “Voltei para os Estados Unidos e dei aulas em colégios enquanto tentava financiamento para os meus projetos”, diz. Em 2006, ele conseguiu financiamento da National Science Foundation (NSF) para desenvolver um sensor de fibra óptica para umidade relativa com aplicações em estruturas inteligentes como pontes e naves espaciais. Depois, conseguiu dois projetos do USDA até 2011. Ao longo dos anos Egalon acumulou 26 patentes. “Agora estou em São José dos Campos desenvolvendo uma empresa de pesquisa e consultoria.” n M. O.

PESQUISA FAPESP 237 | 97


classificados

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98 | novembro DE 2015

PPGCOM

Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo


Pesquisa Brasil Toda sexta-feira, das 13h às 14h, você tem um encontro marcado com a ciência na Rádio USP FM

Pesquisa Brasil traz notícias e entrevistas sobre ciência, tecnologia, meio ambiente e humanidades. Os temas são selecionados entre as reportagens da revista Pesquisa FAPESP.

A cada programa, três pesquisadores falam sobre o desenvolvimento de seus trabalhos recentes

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