abril de 2016 www.revistapesquisa.fapesp.br
Estudos trazem as primeiras evidências de que o zika causa microcefalia Atraso de regulamentação de nova lei trava pesquisa com material genético Atividade comercial dos quilombos sobrevive nas comunidades negras rurais Lama de acidente em MG atinge unidades de conservação na costa brasileira
n.242
Na universidade, docentes se tornaram burocratas, diz Eunice Durham Novas soluções tecnológicas procuram melhorar artefatos para pessoas com deficiência
Geo-
genômica Biologia e geologia formam novo campo de estudos para entender a biodiversidade da Amazônia e da Mata Atlântica
venda proibida
exemplar de assinante
Pesquisa FAPESP abril de 2016
n.242
A imagem da capa concretiza a parceria realizada na geogenômica: uma certa fusão e complementaridade entre a geologia e a biologia. O padrão ondulado está no corte de uma estalagmite, cuja formação levou entre 11 mil e 83 mil anos e que preserva em suas camadas informações climáticas de todo esse tempo. O ramo é uma amostra prensada e seca da planta Manaosella cordifolia, representante da diversidade vegetal investigada na Amazônia. Fotos: Léo Ramos
fotolab
Além do microscópio A imagem que lembra um grafite, com traços levemente borrados, é uma das premiadas em 2016 pela britânica Wellcome Images, um dos repositórios mais renomados de iconografia científica. Estão retratados três parasitas causadores da toxoplasmose, vistos por uma técnica de microscopia conhecida como superresolução, que utiliza recursos ópticos, matemáticos e computacionais para ampliar a visão fornecida pelo microscópio comum, de acordo com o biofísico carioca Leandro Lemgruber. “Não chega à resolução do microscópio eletrônico, mas tem a vantagem de podermos observar estruturas marcadas com anticorpos, além de observarmos material vivo.” Assim, os pesquisadores podem visualizar proteínas de diversos protozoários, como os causadores da malária e da doença do sono, e detalhar seu ciclo de vida.
Imagem enviada por Leandro Lemgruber, do setor de imagens do Centro Wellcome Trust de Parasitologia Molecular, da Universidade de Glasgow, Escócia
Se você tiver uma imagem relacionada à sua pesquisa, envie para imagempesquisa@fapesp.br, com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.
PESQUISA FAPESP 242 | 3
abril 242
TECNOLOGIA 66 Bioengenharia Bengalas eletrônicas, exoesqueletos e máquinas de escrever em braille procuram melhorar a vida de pessoas com deficiência 70 Acústica Hidrofones revelam a paisagem sonora do fundo do mar
42 CAPA 16 Biólogos e geólogos unem esforços para explicar a diversidade biológica da Amazônia e da Mata Atlântica e criam uma nova disciplina, a geogenômica ENTREVISTA 22 Eunice Durham Referência em estudos sobre educação superior, a antropóloga da USP revê sua trajetória e fala de universidade e ensino fundamental
POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA 30 Instituição Instituto de Biociências em Rio Claro é referência em pesquisa na Unesp 34 Internacionalização Instituto de física teórica em Natal ganha sede e vai promover eventos de longa duração com cientistas de vários países 36 Legislação Lei da Biodiversidade cria novas regras para pesquisadores e empresas, mas regulamentação atrasa 40 Comunicação científica Ferramenta ajuda a encontrar artigos em acesso aberto ou cópias gratuitas de manuscritos publicados em revistas comerciais
84 CIÊNCIA 42 Ecologia Poluentes chegam a 200 km ao norte e ao sul da foz do rio Doce, atingem unidades de conservação, alteram equilíbrio ecológico e se acumulam no assoalho marinho 48 Saúde Equipes no Brasil e no exterior registram evidências de que o vírus zika causa microcefalia 52 Neurociências Odor de filhotes ativa em camundongos adultos células de órgão nasal associado a comportamentos instintivos 54 Paleontologia Estudo reforça hipótese de que o maior dinossauro carnívoro também vivia em ambientes semiaquáticos 58 Astronomia Planetas gigantes gasosos situados próximo a suas estrelas podem lançar ao espaço moléculas essenciais à vida 60 Física Partículas recém-descobertas revelam novos arranjos possíveis para os principais componentes da matéria
72 Novos materiais Frutas e legumes são matéria-prima de plásticos que protegem alimentos e são comestíveis 76 Química Novos biossensores devem detectar câncer no pâncreas e ovário com mais rapidez
HUMANIDADES 80 História Trocas de excedentes agrícolas dos quilombos com o entorno ainda sobrevivem nas comunidades rurais negras da atualidade, diz pesquisador 84 Sociedade Para especialistas, profissionais da saúde deveriam falar sobre morte e luto entre si e com a família dos pacientes 88 História da saúde Preventivismo orientou a prática médica no estado de São Paulo na segunda metade do século XX seçÕes 3 Fotolab 5 Cartas 6 On-line 7 Carta do editor 8 Dados e projetos 9 Boas práticas 10 Estratégias 12 Tecnociência 92 Arte 94 Memória 96 Resenha 97 Carreiras 99 Classificados
56
cartas
contatos Internet revistapesquisa.fapesp.br redacao@fapesp.br PesquisaFapesp PesquisaFapesp pesquisa_fapesp
Pesquisa Fapesp
Pesquisa Fapesp
cartas@fapesp.br
Boas práticas
Sobre a nota “Mecanismos de correção” (seção Boas Práticas, edição 240), a minha opinião é de que a opção por revistas de acesso livre e também pelo preprint reduziria o risco de plágio nas publicações científicas. Stevens Rehen Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Umbu Opiniões ou sugestões Por e-mail: cartas@fapesp.br Pelo correio: Rua Joaquim Antunes, 727 – 10º andar CEP 05415-012, São Paulo, SP
Vale a pena ler a reportagem “O cosmético que vem da Caatinga” (edição 240) e aproveitar os benefícios do umbu. Somos privilegiados pois temos acesso a esse fruto aqui na minha região. Parabéns aos colegas pesquisadores. Elaine Martins
Assinaturas, renovação e mudança de endereço Envie um e-mail para assinaturaspesquisa@fapesp.br ou ligue para (11) 3087-4237, de segunda a sexta, das 9h às 19h
Paulo Saldiva
Parabéns para o engenheiro de produção que criou o site. Aylana Cotrinho
Burocracia
A reportagem “Impasse burocrático desacelera pesquisas com material genético”, publicada no site da revista, mostra uma situação absurda, que hoje impede o andamento da minha pesquisa no exterior. Vania Fonseca
Obesidade
A respeito da reportagem “Uma gordura contra a obesidade”, publicada no site, o vilão é sempre o mesmo, a inflamação, normalmente causada por má alimentação. Para combatê-la, não tem segredo: alimentação saudável e exercícios. Giovana Vasconcellos
A entrevista de Paulo Saldiva (edição 241) mostra um trabalho de total relevância. Comprova que meio ambiente saudável é ser humano saudável. Ana Maria Brischi
Para anunciar Contate Júlio César Ferreira na Mídia Office Por e-mail: julinho@midiaoffice.com.br Por telefone: (11) 99222-4497 Classificados Por e-mail: publicidade@fapesp.br
A entrevista é excelente! Nós que moramos em centros urbanos precisamos aprender outro jeito de nos relacionar com o meio ambiente, antes que não exista nem meio ambiente, nem pessoas para se relacionar. Telma Lucia Barroso
Por telefone: (11) 3087-4212 Edições anteriores Preço atual de capa acrescido do custo de postagem. Peça pelo e-mail: clair@fapesp.br Licenciamento de conteúdo Adquira os direitos de reprodução de textos e imagens de Pesquisa FAPESP. Por e-mail: mpiliadis@fapesp.br Por telefone: (11) 3087-4212
Formatação de referências
Iniciativa louvável a descrita na reportagem publicada on-line “Site ajuda a formatar referências científicas”. Porém, entregar um diploma de ensino superior para alguém que não tem a competência mínima de fazer uma referência é preocupante. Ivan Claudio Guedes
Sensacional essa nova ferramenta, Menthor, divulgada no site de Pesquisa FAPESP. Embora seja importante que todo estudante e profissional saibam formatar e fazer as referências de forma manual, mesmo que, agora, o software faça isso.
Vídeos
Excelente trabalho o vídeo “Drones sobre o campo”. Parabéns a todos os envolvidos. Vamos precisar cada dia mais de inovações que auxiliem na otimização da produção agrícola. Régis Vitória
Li o texto “Drones sobre o campo” (edi ção 239), mas o vídeo complementa muito bem a reportagem: conhecer (um pouco) o funcionamento dos drones e seu sistema de inteligência artificial! Priscila Mary Yuyama
Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar – CEP 05415-012, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza. Via facebook.com/PesquisaFapesp
PESQUISA FAPESP 242 | 5
w w w . re v i sta p es q u i sa . fa p es p . br
No site de Pesquisa Fapesp estão disponíveis todos os textos da revista em português, inglês e espanhol, além de conteúdo exclusivo
A mais vista do mês no Facebook
fotos 1 reprodução 2 léo ramos
on-line
Galeria de imagens
ABNT
Site ajuda a formatar referências científicas
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Exclusivo no site x Consulte um pesquisador que investiga a origem da vida na Terra e provavelmente ouvirá que duas condições foram necessárias para que ela surgisse: a existência de água líquida e de uma atmosfera capaz de reter um pouco de calor e gerar, a partir de moléculas muito simples, outras mais complexas que formam os seres vivos. Esses fatores, porém, parecem não ter sido suficientes. Um estudo publicado na Astrophysical Journal Letters sugere que a vida no planeta poderia ter sido fulminada bem no início caso bilhões de anos atrás não existisse um escudo magnético como o que atualmente protege a Terra das partículas e do excesso de radiação emitidos pelo Sol. bit.ly/1opaAk2
Rádio O engenheiro metalúrgico João Batista Ferreira Neto apresenta uma tecnologia que pode levar o país a produzir ímãs de alta potência
Confira nas fotos de Léo Ramos o primeiro satélite nacional de médio porte inteiramente projetado e construído no Brasil
Especial
As muitas faces da água
x Um estudo publicado na Nature Cell Biology indica que o tecido adiposo marrom – um tipo benéfico de gordura – de camundongos obesos pode apresentar baixos níveis de uma forma específica de microRNA responsável pela supressão da proteína Bace1. Essa proteína, quando expressa em grandes quantidades, impede a formação de células adiposas características desse tipo de gordura. No estudo, os pesquisadores usaram um inibidor farmacológico para controlar os níveis de Bace1. Fazendo isso, conseguiram aliviar as complicações metabólicas e reativar a
2
função de células adiposas do tecido marrom.
A água é objeto de estudos nos mais diversos campos do conhecimento.
A descoberta pode ampliar as perspectivas de
Confira neste dossiê o que Pesquisa FAPESP já publicou sobre o assunto
terapias para o diabetes e outras doenças
bit.ly/235SLX0
metabólicas. bit.ly/235SKSL 6 | abril DE 2016
carta do editor fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo José Goldemberg Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior Carmino Antonio de Souza, Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, João Fernando Gomes de Oliveira, joão grandino rodas, José Goldemberg, Maria José Soares Mendes Giannini, Marilza Vieira Cunha Rudge, José de Souza Martins, Pedro Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski, Suely Vilela Sampaio
Como nasce uma disciplina
Conselho Técnico-Administrativo José Arana Varela Diretor-presidente Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico Joaquim J. de Camargo Engler Diretor Administrativo
issn 1519-8774
Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Anamaria Aranha Camargo, Ana Maria Fonseca Almeida, Carlos Eduardo Negrão, Fabio Kon, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Joaquim J. de Camargo Engler, José Arana Varela, José Goldemberg, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Lucio Angnes, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner Caradori do Amaral, Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos diretora de redação Alexandra Ozorio de Almeida editor-chefe Neldson Marcolin Editores Fabrício Marques (Política), Márcio Ferrari (Humanidades), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência); Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores especiais); Bruno de Pierro (Editor-assistente) revisão Margô Negro arte Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos (Editora de infografia), Alvaro Felippe Jr., Júlia Cherem Rodrigues e Maria Cecilia Felli (Assistentes) fotógrafos Eduardo Cesar, Léo Ramos Mídias eletrônicas Fabrício Marques (Coordenador) Internet Pesquisa FAPESP online Maria Guimarães (Editora) Rodrigo de Oliveira Andrade (Repórter) Renata Oliveira do Prado (Mídias sociais) Rádio Pesquisa Brasil Biancamaria Binazzi (Produtora) Colaboradores Alexandre Affonso, Daniel Bueno, Evanildo da Silveira, Igor Zolnerkevic, Jayne Oliveira, Maria Hirszman, Mario Videira, Negreiros, Pedro Hamdan, Valter Rodrigues, Yuri Vasconcelos É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização Para falar com a redação (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br Para anunciar Midia Office - Júlio César Ferreira (11) 99222-4497 julinho@midiaoffice.com.br Classificados: (11) 3087-4212 publicidade@fapesp.br Para assinar (11) 3087-4237 assinaturaspesquisa@fapesp.br Tiragem 37.800 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo
A
reportagem de capa desta edição flagrou um momento incomum do fazer científico: o nascimento de uma nova disciplina. Biólogos e geólogos que estudam a formação da floresta amazônica e da Mata Atlântica iniciaram uma forma de cooperação que extrapolou a multidisciplinaridade. Para avançar nas pesquisas, os dois grupos de cientistas de setores tão distintos perceberam que precisavam mais do que informações esparsas sobre os assuntos que não dominam – precisavam se aprofundar na seara uns dos outros e trabalhar juntos desde as primeiras perguntas do projeto em comum. A união das especialidades para estudar as florestas deu origem ao que vem sendo chamado desde 2014 de geogenômica, uma área nova de estudos integrados entre a biologia e a geologia (página 16). Apenas uma especialidade não é suficiente para explicar a complexidade da Amazônia ou da Mata Atlântica. Para saber como a biodiversidade das grandes extensões de mata foi formada é necessário investigar tanto a parte vegetal quanto os cursos d’água, as montanhas e o subsolo. Rios são barreiras naturais para a mobilidade de organismos, mas nem sempre estiveram na posição onde estão hoje porque as regiões passam por transformações significativas quando se leva em conta a escala geológica, de milhões de anos. Novas datações de minerais, por exemplo, podem alterar o modo como se vê a evolução da flora e fauna. Também já há trabalhos em que paleoclimatólogos usam dados genômicos para testar hipóteses formuladas por geólogos. Um impulso relevante ao novo campo de estudos veio da colaboração entre os programas Biota-FAPESP e Dimensions of Biodiversity, da norte-americana National Science Foundation (NSF). As
duas agências apoiam desde 2012 projetos de biodiversidade em que a congregação de grandes grupos de pesquisadores de especialidades diferentes permite analisar enormes quantidades de informações coletadas. Pelo entusiasmo demonstrado pelos participantes aqui e nos Estados Unidos, mais resultados não tardarão a surgir. *** Quando há urgência da sociedade sobre problemas de saúde, invariavelmente os pesquisadores são convocados para procurar as soluções. A emergência do vírus zika no Brasil e suas graves consequências mobilizam grande número de cientistas e laboratórios médicos em todo o mundo. Pode-se medir essa movimentação pelo número de artigos científicos publicados. Entre 1952 e 2015, o Pubmed, base de papers na área biomédica, registrou 218 trabalhos sobre o vírus. Agora, só nos três primeiros meses de 2016, foram 307. Ainda não há saídas à vista, embora começar a entender o problema em um período tão curto de tempo já seja um avanço. A reportagem da página 48 apresenta alguns trabalhos que começam a demonstrar que o zika causa de fato a microcefalia. *** A entrevista da antropóloga Eunice Dur ham registra uma visão de universidade e pedagogia pouco comum entre acadêmicos de qualquer área (página 22). Com ampla experiência como docente, pesquisadora e gestora de órgãos ligados ao ensino superior, ela defende um sistema de educação diverso e flexível. No ensino fundamental, diz que há pouca competência pedagógica e quase nenhuma valorização do mérito porque os professores não são avaliados. Vale a pena conhecer suas opiniões. Neldson Marcolin | editor-chefe PESQUISA FAPESP 242 | 7
Dados e projetos Temáticos recentes Projetos contratados em fevereiro e março de 2016 Papel do sistema renina-angiotensina em diferentes modelos inflamatórios orais: uma abordagem interdisciplinar experimental e clínica Pesquisador responsável: Carlos Ferreira dos Santos Instituição: Faculdade de Odontologia – Bauru/USP Processo: 2015/03965-2 Vigência: 01/02/2016 a 31/01/2021
Previsão imediata de tempestades intensas e entendimento dos processos físicos no interior das nuvens. O SOS-Chuva (Sistema de Observação e Previsão de Tempo Severo) Pesquisador responsável: Luiz Augusto Toledo Machado Instituição: Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais/MCTI
Processo: 2015/14497-0 Vigência: 01/02/2016 a 31/01/2020 Pesquisas em novos materiais envolvendo campos magnéticos intensos e baixas temperaturas Pesquisador responsável: Gennady Gusev Instituição: Instituto de Física/USP Processo: 2015/16191-5 Vigência: 01/03/2016 a 28/02/2021
Intensidade de dispêndios em P&D (fração do PIB) Dados de São Paulo, Brasil e Brasil menos São Paulo – 2008-2013
São Paulo
1,80%
Brasil
Brasil menos São Paulo
1,60%
Intensidade de dispêndios em P&D
1,40%
1,20%
1,00%
0,80%
0,60%
0,40%
0,20%
0,00% 2008
2009
2010
2011
2012
2013
2008
2009
2010
2011
Total
1,56%
1,44%
1,62%
1,67%
1,68%
1,73%
1,10%
1,05%
1,12%
1,13%
Orçamento executado estadual
0,11%
0,11%
0,11%
0,10%
0,12%
0,12%
0,07%
0,07%
0,07%
0,06%
2012
2013
2008
2009
2010
2011
2012
1,15%
1,24%
0,88%
0,07%
0,06%
0,04%
2013
0,86%
0,87%
0,88%
0,93%
1,04%
0,05%
0,05%
0,04%
0,05%
0,04%
Orçamento executado federal
0,17%
0,18%
0,18%
0,16%
0,18%
0,19%
0,23%
0,26%
0,26%
0,24%
0,25%
0,31%
0,26%
0,30%
0,30%
0,28%
0,29%
0,36%
Ensino superior privado
0,02%
0,03%
0,03%
0,04%
0,04%
0,04%
0,02%
0,02%
0,02%
0,02%
0,02%
0,02%
0,02%
0,02%
0,02%
0,01%
0,02%
0,02%
Ensino superior estadual
0,26%
0,25%
0,26%
0,25%
0,27%
0,27%
0,12%
0,11%
0,12%
0,13%
0,14%
0,15%
0,05%
0,05%
0,05%
0,08%
0,09%
0,10%
Ensino superior federal
0,04%
0,05%
0,05%
0,06%
0,06%
0,06%
0,17%
0,16%
0,16%
0,16%
0,17%
0,19%
0,23%
0,21%
0,22%
0,21%
0,22%
0,24%
Empresas
0,95%
0,83%
0,99%
1,05%
1,03%
1,05%
0,50%
0,43%
0,49%
0,51%
0,50%
0,50%
0,27%
0,22%
0,24%
0,25%
0,27%
0,28%
Orçamentos executados, federal ou estaduais: outras despesas governamentais, além daquelas executadas nos orçamentos das instituições de ensino superior (IES) públicas; inclui agências de fomento, institutos de pesquisa e outros. Ensino superior: dispêndios do orçamento das universidades e de outras instituições relativos às atividades de pós-graduação. Empresas: utiliza-se a metodologia dos Indicadores CT&I FAPESP 2010, com dados das Pintecs e investimentos (formação bruta de capital fixo). Obs.: A intensidade de dispêndios é calculada sobre o Produto Interno Bruto (PIB) de São Paulo, do Brasil e dos demais estados, referente aos anos utilizados. Fontes: Indicadores de CT&I – MCTI (dispêndios), IBGE (PIB), base de dados Indicadores de CT&I – FAPESP (empresas).
8 | abril DE 2016
Boas práticas
ilustração daniel bueno
Efeitos localizados da retratação Um estudo feito por seis pesquisadores da Thomson Reuters, empresa de comunicação que produz informações sobre a ciência, analisou o impacto que casos de má conduta científica produzem em seu entorno e concluiu que o prejuízo se concentra nos artigos que são alvo de retratação e em seus autores principais, sem afetar a instituição onde o pesquisador acusado de fraude ou plágio atua. Quem inadvertidamente citou o artigo cancelado em seus trabalhos ou publicou outros papers em coautoria com o pesquisador acusado também mantém sua reputação acadêmica isenta dos efeitos deletérios da retratação. Os dados foram divulgados em fevereiro no repositório eletrônico arXiv. Os pesquisadores analisaram 2.659 artigos retratados em várias áreas do conhecimento entre 1980 e 2014, todos indexados na base de dados Web of Science, da Thomson Reuters. Desse total, identificaram o motivo do pedido de retratação de 1.666 papers. Mais de 25% eram casos de plágio. Aproximadamente 24% das retratações decorreram de erros não intencionais cometidos pelos autores e cerca de 23% dos artigos foram cancelados por falsificação ou fabricação de dados. Uma hipótese apresentada pelos autores da pesquisa é de que o plágio se tornou mais frequente com a crescente disponibilidade de literatura científica na internet. Também se constatou que autores de papers retratados passam a ser menos citados. Autores que falsificaram ou fabricaram dados sofrem maior prejuízo na sua reputação do que os que cometeram erros não intencionais, e a repercussão do escândalo na imprensa potencializa esse efeito. As instituições de pesquisa ou
os campos do conhecimento aos quais o artigo retratado se vincula praticamente não sofrem impacto. O estudo cita um exemplo: o sul-coreano Woo-Suk Hwang, autor de dois artigos fraudulentos sobre células-tronco publicados na revista Science em 2004 e 2005, foi severamente punido com uma queda de citações de seus outros trabalhos, mas o prejuízo não atingiu o Colégio de Medicina Veterinária da Universidade Nacional de Seul, que manteve uma curva ascendente de citações. O estudo também revela que as retratações acontecem mais nas ciências médicas e biológicas. “O aspecto mais original desse estudo é avaliar os efeitos da retratação em instituições e áreas do conhecimento”, afirmou Ferric Fang, autor de pesquisas sobre retratação e professor da Universidade de Washington.
“As evidências de que retratações resultam em declínio nas taxas de citação, particularmente quando há má conduta, são um sinal de que o sistema funciona como deveria”, disse ele ao blog Retraction Watch.
Revisão por pares defeituosa A revista científica PLoS One admitiu que seu processo de revisão falhou na avaliação de um artigo publicado em janeiro, segundo o qual a arquitetura da mão humana foi “desenhada pelo Criador”. E anunciou a retratação do paper, assinado pelo pesquisador Cai-Hua Xiong e colegas da Universidade Huazhong de Ciência e Tecnologia, da China. O artigo foi duramente criticado por lastrear o resultado científico com uma crença religiosa, mas seu autor explicou à revista Nature que houve um problema de tradução. “O inglês não é nossa língua nativa e não compreendemos a conotação de muitas palavras, como ‘Criador’. Lamento o que aconteceu”, afirmou. Embora não houvesse erro nos resultados do
artigo, que analisou o movimento das mãos de 30 indivíduos, restou a sensação de que o paper foi publicado sem que os editores da revista o lessem com cuidado. Essa crítica é corriqueira para uma certa categoria de publicações científicas, aparentemente mais interessada em lucrar com a divulgação de artigos sem analisar sua qualidade. A PLoS One, contudo, não se encaixava nesse figurino. Conta com revisores de alto nível e publica um grande número de artigos (cerca de 30 mil por ano) mantendo um fator de impacto elevado para uma revista de acesso aberto. “O processo de avaliação por pares não analisou adequadamente vários aspectos do trabalho”, admitiram os editores da PLoS One, justificando a retratação. PESQUISA FAPESP 242 | 9
fotos 1 david chipperfield architects 2 amy piermarini / wikicommons 3 heitor shimizu 4 Ana Paula Migliari / TV Brasil / EBC
Estratégias Casa nova para a Fundação Nobel A Fundação Nobel
onde será realizada a
parcerias com escolas da
dedicadas às áreas
anunciou a construção
cerimônia anual da
região e disponibilizar o
abrangidas pelo prêmio,
de uma nova sede
entrega do Prêmio
espaço para professores
e também atividades
na península de
Nobel, a honraria mais
desenvolverem atividades
temporárias, conectadas
Blasieholmen, no centro
importante da ciência,
complementares.
a questões da
de Estocolmo, Suécia.
concedida há 114 anos.
Também deverá
atualidade”, informou
Orçado em US$ 146
Com área total de
promover exposições
um comunicado da
milhões, o Nobel Center
25 mil metros quadrados,
científicas. “Vamos
fundação. Outro
foi idealizado pelo
o prédio será aberto a
aproveitar a experiência
propósito será promover
arquiteto britânico David
visitantes e acolherá
do Museu Nobel em
encontros entre
Chipperfield e deverá
iniciativas culturais e
Estocolmo para criar
cientistas de todo o
ficar pronto em 2019.
educacionais e uma
algo inteiramente novo e
mundo, por meio da
Abrigará o museu da
biblioteca. Uma das
interativo. Haverá
realização de simpósios
fundação e um auditório
propostas é estabelecer
exposições permanentes,
e conferências. O futuro Nobel Center: auditório, biblioteca e exposições
1
Para orientar adolescentes transgêneros Os Institutos Nacionais
Os adolescentes
e coordenador do
de Saúde (NIH),
recebem medicamentos
estudo, disse à revista
principal organização
que impedem o avanço
Nature que o objetivo da
de apoio à pesquisa
da puberdade até que
pesquisa é encontrar
médica dos Estados
a capacidade de tomar
a melhor forma de dar
Unidos, anunciaram que
decisões amadureça,
ajuda médica aos
destinarão US$ 5,7
iniciando um tratamento
adolescentes
milhões para apoiar
hormonal apenas
transgêneros. No
um estudo sobre
a partir dos 16 anos
próximo mês, começarão
efeitos do retardamento
de idade. O problema
a ser recrutados 280
da puberdade em
é que os efeitos
voluntários. Um grupo
adolescentes transgêneros.
colaterais, psicológicos
receberá bloqueadores
Para aliviar possíveis
e fisiológicos desse
de puberdade no início
traumas em jovens que
tipo de terapia ainda
da adolescência e o
têm identidade divergente são pouco conhecidos.
outro, formado por
do gênero de nascimento,
Robert Garofalo,
indivíduos um pouco
médicos têm adotado um
pesquisador do
mais velhos, hormônios
tratamento controverso.
Hospital de Chicago
do sexo oposto.
10 | abril DE 2016
Skylar Kergil, ativista transgênero dos Estados Unidos
2
Em Michigan e Ohio A 13ª edição do simpósio
Física da Universidade
internacional FAPESP
Estadual de Campinas
Week, realizada entre
(Unicamp) e coordenador
os dias 28 de março e
adjunto de colaborações
1º de abril nos estados
em pesquisa da FAPESP.
norte-americanos de
Joseph Kolars, docente
Michigan e Ohio, buscou
da Escola de Medicina
estreitar as relações
da Universidade de
entre pesquisadores de
Michigan, destacou o
São Paulo e dos Estados
impacto das parcerias
Unidos. Os encontros
nas áreas da saúde e
aconteceram na
medicina: “Um exemplo
com a qual a Fundação
Universidade de Michigan,
está na prevalência do
assinou um acordo de
na cidade de Ann Arbor,
câncer suprarrenal no
cooperação em 2013,
e na Universidade do
Brasil, uma das maiores
trouxe bons resultados
Estado de Ohio, em
no mundo, mas uma
nos últimos anos.
Columbus. A FAPESP
doença rara nos Estados
“Foi produzido um
mantém acordos de
Unidos. Entretanto, temos
elevado número de
cooperação com as duas
experiência no tema e
artigos nos últimos anos
parceria para desenvolver
instituições. “O diferencial
a colaboração com os
por pesquisadores do
70 novas variedades de
dessas duas universidades
brasileiros tem permitido
estado de São Paulo
milho, mais tolerantes à
é que elas se destacam
avançar no tratamento
em conjunto com
seca, à baixa fertilidade
pelo interesse em
desse problema”. Para
colegas de Ohio. Esse
do solo e a pragas. O
consolidar parcerias de
Carlos Henrique de Brito
número saltou de 40
projeto Stress-Tolerant
longo prazo em todas as
Cruz, diretor científico da
artigos por ano em 2009
Maize for Africa (STMA)
áreas do conhecimento”,
FAPESP, a aproximação
para cerca de 300 em
destina-se a combater
disse Marcelo Knobel,
com a Universidade
2015”, disse Brito Cruz
os efeitos das mudanças
professor do Instituto de
do Estado de Ohio,
à Agência FAPESP.
climáticas na agricultura
3
Pesquisadores brasileiros e norte-americanos em encontro promovido pela FAPESP na Universidade de Michigan
Milho mais resistente Instituições de pesquisa do México e de países da África lançaram uma
da África subsaariana, que sofre com uma redução da frequência e da
Apoio privado à ciência
intensidade de chuvas nas últimas décadas.
O documentarista e jornalista João Mo-
selecionar seu diretor exe-
A expectativa é de que as
reira Salles e sua mulher, Branca, anun-
cutivo. A ideia surgiu em
variedades aumentem
ciaram a criação de um instituto privado
2010, quando Salles dava
a produtividade de
de apoio à ciência. Organizado como
aulas no curso de cinema
milho em 30% a 50%,
associação civil com sede no Rio de Ja-
da Pontifícia Universidade
neiro, o Instituto XY (nome provisório)
Católica do Rio de Janeiro
irá trabalhar com recursos de um fundo
(PUC-Rio). Ele verificou
Wheat Improvement
patrimonial constituído por meio de uma
que, naquele ano, a instituição havia
Center, sediado no
doação de cerca de R$ 20 milhões feita
formado três físicos, dois matemáticos
pelo casal. João é um dos filhos do em-
e 27 bacharéis em cinema. “A taxa de
presário e banqueiro Walther Moreira
formação de engenheiros no Brasil é
Salles (1912-2001). Comum em países
inferior à da China, da Índia e da Rússia,
como os Estados Unidos, esse modelo
países emergentes com os quais com-
de financiamento, conhecido como en-
petimos”, escreveu em artigo publicado
beneficiadas. “O projeto
dowment funds, é composto por doações
em 2010 no jornal Folha de S.Paulo. Nos
utilizará tecnologias
cujos rendimentos são investidos em
últimos anos, Salles promoveu encontros
modernas que conferem
pesquisa, infraestrutura e bolsas. “O ob-
com pesquisadores e visitou agências
resistência a pragas e
jetivo é apoiar projetos de pesquisa e de
de apoio no Brasil, como a FAPESP, e em
estresse hídrico”, disse
divulgação científica no âmbito das ciên-
outros países, como o Instituto Fraunho-
ao portal SciDev.net
cias e da matemática”, disse à Agência
fer, na Alemanha, a fim de levantar ideias
Tsedeke Abate, líder do
FAPESP o economista Rodrigo Fiães,
para a consolidação do instituto. O XY
projeto e ex-diretor
encarregado de organizar o instituto e
deve começar a funcionar neste ano.
do Instituto de Pesquisa
de acordo com o 4
International Maize and
México. Mais de João Moreira Salles: instituto com dotação inicial de R$ 20 milhões
5 milhões de famílias de pequenos agricultores que plantam milho na região podem ser
Agrícola da Etiópia. PESQUISA FAPESP 242 | 11
Tecnociência Percevejo monitorado
1
Representação de uma anã branca (estrela menor): novo tipo tem atmosfera composta basicamente de oxigênio
Um novo tipo de anã branca
A monitoração eletrônica
projeto, que teve
da alimentação de
também a participação
percevejos, que pode ser
do pesquisador Tiago
útil no combate a esses
Lucini. Os percevejos
insetos considerados
monitorados são da
pragas nas culturas de
espécie Dichelops
milho, soja e trigo,
melacanthus. Eles inserem
foi feita pela primeira vez
seus estiletes sugadores
no país. A técnica,
na planta e utilizam
conhecida pelo nome de
a saliva para destruir
Electrical Penetration
os tecidos e obter
Graph (EPG), é feita em
nutrientes, causando
laboratório e consiste na
danos ao vegetal.
ligação dos percevejos
Além do fio conectado
a um eletrodo de cobre
ao inseto, outro
e a um fio de ouro
filamento é instalado
conectado a um
na planta hospedeira.
amplificador e a um
É estabelecido um
computador. “Utilizamos
circuito elétrico quando
cola com prata diluída
o inseto insere os
para a passagem da
estiletes no vegetal.
O último estágio da vida
totalmente composta de
de 98% das estrelas da
oxigênio, com traços
Via Láctea é virar uma
residuais dos elementos
anã branca, um astro
neônio, magnésio e
corrente elétrica e
Os sinais elétricos que
pequeno, quente e
silício. “Não há uma
uma lixa odontológica
mostram as atividades
extremamente denso,
teoria que explique a
para raspar a cera no
dos percevejos são
com massa similar à do
formação de uma anã
corpo do inseto onde
enviados ao computador
Sol compactada em um
branca assim”, diz
implantamos o eletrodo”,
e exibidos em forma
tamanho equivalente
Kepler. “Agora sabemos
explica Antônio Panizzi,
de gráfico. O estudo vai
ao da Terra. Depois de
que elas são raras, mas
pesquisador da Embrapa
servir de guia para
observar as linhas do
existem.” Como regra
Trigo, de Passo Fundo
futuras modificações
espectro de absorção
geral, o núcleo das anãs
(RS), coordenador do
genéticas nas plantas,
de 32 mil anãs brancas
brancas concentra os
para que elas possam
catalogadas pelo
elementos mais pesados
expressar toxinas ou
levantamento Sloan
(usualmente carbono
bloquear a ação dos
Digital Sky Survey
e oxigênio), enquanto
insetos sugadores.
(SDSS), que permitem
os mais leves (hélio e
inferir a composição
hidrogênio) estão nas
química dos corpos
camadas mais externas
celestes, o astrofísico
(a atmosfera). No caso
Kepler de Souza Oliveira
da SDSSJ1240+6710,
Filho, da Universidade
nome pouco amigável
Federal do Rio
da inusitada anã branca,
Grande do Sul (UFRGS),
o hélio e o hidrogênio
e colaboradores
não fazem parte de
identificaram uma
sua atmosfera. Os
estrela desse tipo com
astrofísicos especulam
propriedades nunca
que o sumiço desses
antes observadas
elementos pode ser
(Science, 1º de abril).
decorrente da interação
Eles encontraram uma
do astro com uma
anã branca cuja
estrela companheira, até
atmosfera é quase
agora não identificada.
12 | abril DE 2016
2
Percevejo com eletrodo (detalhe) e equipamento de monitoração: para entender danos à cultura do milho, soja e trigo 2
Uma inesperada nuvem de prata Achados inéditos marcam o estudo do
gicida (ver Pesquisa FAPESP nº 212), a
nuvem têm tamanho entre 1,5 e 2 nanô-
composto químico tungstato de prata
equipe do pesquisador descobriu que,
metros e se juntam uma a uma como se
– material semicondutor, com potenciais
em torno dos bastões, circula uma nuvem
fossem pingos de água para formar go-
aplicações em fibras ópticas, fotocatáli-
de partículas nanométricas de prata
tas cada vez maiores. Ao final do pro-
se (acelerar uma reação com luz) e sen-
(Scientific Reports, 16 de março). “É uma
cesso mais prata metálica se deposita
sores – por parte do grupo do professor
novidade na literatura científica”, diz
sobre o tungstato. Longo é coordenador
Elson Longo, no Instituto de Química da
Longo. “A nuvem surge quando feixes
do Centro de Pesquisa para o Desenvol-
Universidade Estadual Paulista (Unesp),
do microscópio de emissão de elétrons
vimento de Materiais Funcionais (CDMF),
em Araraquara (SP). Depois de observar
incidem sobre os bastões. O trabalho
um dos Centros de Pesquisa, Inovação
no composto, em 2013, o crescimento
melhora a compreensão do fenômeno
e Difusão (Cepid) da FAPESP.
espontâneo de bastões de prata que
de interação entre o elétron e o tungs-
poderão ter uso como bactericida e fun-
tato de prata.” As nanopartículas da
fotos 1 NASA / ESA / G. Bacon (STScI) 2 Antônio Panizzi / Embrapa Trigo 3 CDMF ilustraçãO daniel bueno
Canto virtual das aves
Amostra de tungstato de prata: nuvem de partículas nanométricas circula em torno do material
Gerado por um algoritmo
equivalentes à
evolutivo que controla o
recombinação genética e
processo de simulação
à mutação e, assim, gera
dos cantos de uma
uma nova ave virtual,
população virtual de aves,
com seu respectivo
o modelo computacional
canto. “Quando essa ave
EvoPio cria trilhas
‘morre’, seu canto cessa
sonoras compostas de
e o cromossomo é
um conjunto de chilreios
apagado da população”,
que nunca se repete.
explica Fornari. “Não
Desenvolvido pelo músico
existem sons gravados
Depois de procurar por
e engenheiro elétrico
nem qualquer outra
alterações diretamente
participantes do estudo
José Fornari, do Núcleo
forma de registro no
associadas a 584 graves
para tentar encontrar
Interdisciplinar de
sistema.” A versão mais
doenças infantis em um
algum fator biológico,
Comunicação Sonora
nova permite ao
conjunto de 874 genes
talvez alterações em
(Nics), da Universidade
pesquisador introduzir
de quase 590 mil
outros genes, que possam
Estadual de Campinas
no sistema novas aves
indivíduos, uma equipe
funcionar como proteção
(Unicamp), o software
e cantos com
de pesquisadores
ao aparecimento desses
pode gerar, em sua
o simples envio de uma
dos Estados Unidos,
problemas de saúde.
versão atual, até 20
mensagem do Twitter.
Canadá, Suécia e China
Em certos casos, dizem
cantos simultâneos
encontrou 13 pessoas que
os pesquisadores, talvez
(International Journal of
permanecem saudáveis
se chegue à conclusão
Arts and Technology,
apesar de carregarem
de que a ligação entre
vol. 9, n. 1, 2016).
alguma mutação
essas mutações e
O sistema emula o
claramente ligada a uma
certas doenças não é tão
funcionamento da
de oito patologias
direta como se pensava.
siringe, o órgão das aves
conhecidas, como a
O estudo vasculhou
equivalente às cordas
fibrose cística e as
parte do genoma de mais
vocais, e é controlado
síndromes de Pfeiffer
de meio milhão de
por um conjunto de 16
e de Smith-Lemli-Opitz
indivíduos em busca
parâmetros, uma espécie
(Nature Biotechnology,
de alterações consideradas
de “cromossomo”
11 de abril). Os cientistas
como a causa de
computacional com as
não sabem por que
algumas doenças
instruções para gerar
esses indivíduos não
mendelianas, que podem
os distintos cantos.
desenvolveram as
aparecer já na infância
Cada “cromossomo”
doenças normalmente
e geralmente são
se reproduz em duplas
causadas pelas mutações
ocasionadas por mutações
por meio de processos
e vão usar os dados
em um único gene.
3
Saudáveis, mas com mutações genômicos dos
PESQUISA FAPESP 242 | 13
Chip de ouro: primeiro lugar em concurso de fotografia científica no Reino Unido
Armadilha de íons em chip
Agricultura resseca o Cerrado Quanto mais a
(ha) cultivados. Em 2013,
vegetação nativa do
a agricultura ocupava
Cerrado cede área
2,5 milhões de ha.
para a agricultura,
Três quartos do avanço
mais reduzido se torna
do plantio ocorreram
o volume de chuvas
sobre terras antes
disponíveis à própria
cobertas por vegetação
atividade agrícola.
nativa, quase toda de
O alerta é de um estudo
Cerrado. Também a partir
conduzido por Stephanie
das imagens de satélite
Spera, da Universidade
foi possível avaliar
Brown (EUA), e
a quantidade de água
colaboradores, inclusive
lançada ao ar pelas
a ecóloga brasileira
folhas das plantas, a
Marcia Macedo, do
evapotranspiração.
Centro de Pesquisa
Na estação das chuvas,
Woods Hole (Global
de outubro a abril,
Change Biology, 29 de
quando a lavoura está
março). Eles analisaram
crescendo, a evaporação
A física brasileira Diana
superfície do dispositivo.
Prado Lopes Aude Craik,
“Quando um potencial
imagens de satélite
nas áreas com plantio
28 anos, que faz
elétrico é aplicado sobre
feitas durante 11 anos na
é similar à verificada
doutorado em física
os eletrodos de ouro do
região conhecida como
nas áreas com vegetação
quântica na Universidade
chip, íons atômicos
Matopiba, que abrange
nativa. O problema
de Oxford, Inglaterra,
individuais podem ser
os estados de Tocantins,
ocorre no período seco,
ganhou a categoria
aprisionados. Esses íons
Maranhão, Piauí e Bahia,
quando as lavouras
Eureka (imagens
são usados como bits
e viram um grande
estão na entressafra.
que refletem novas
quânticos, os qubits,
avanço da fronteira
Durante os meses
descobertas) e também
unidades que armazenam
agrícola. Em 2003, havia
de estiagem, o volume
o prêmio principal de
e processam informação
1,2 milhão de hectares
de evapotranspiração
fotografia científica no
em um computador
concurso promovido pelo
quântico”, disse a
nas áreas com cultivo do
Engineering and Physical
brasileira, após ser
que nas com vegetação
Sciences Research
anunciada vencedora
nativa. O risco é de que
Council (EPSRC), agência
da competição.
a falta da umidade do ar
do Reino Unido que
“Dois estados de energia
agrave a seca e acabe por
financia pesquisas nas
dos íons atuam como
adiar o início da estação
áreas de engenharia
[as posições] 0 e 1
chuvosa, encurtando
e ciências físicas. Com
desses qubits. Eletrodos
o período produtivo.
a imagem de um chip
encaixados no chip
Como a umidade circula
de ouro usado para
fornecem radiação de
por correntes de ar, os
armazenar íons em
micro-ondas para os
autores temem que
experimentos de
íons, permitindo
os efeitos dessa seca
computação quântica,
manipular a informação
não fiquem restritos ao
desenvolvido por ela
quântica armazenada por
Cerrado e cheguem
e por um colega da
meio do estímulo da
à Amazônia. Uma forma
universidade, Diana
transição entre os
de reduzir o problema
superou mais de
estados de energia 0 e 1.”
é plantar dois cultivos
200 concorrentes.
O dispositivo foi fabricado
por ano na mesma
A foto mostra os fios de
com a técnica de
terra, como o milho
ouro do chip conectados
fotolitografia, usada para
safrinha em seguida
a eletrodos que
fazer circuitos integrados.
à soja. Essa prática
transmitem campos
Por ter vencido o
alonga o período de
elétricos cujo objetivo
prêmio principal,
crescimento das plantas
é aprisionar íons
Diana ganhou material
e pode representar
individuais cerca de
fotográfico no valor de
100 mícrons acima da
£ 500 (R$ 2.537,00).
14 | abril DE 2016
Imagens de satélite de região do Cerrado: área agrícola dobrou de tamanho entre 2003 (alto) e 2013
é em média 60% menor
uma redução menor da 2
evapotranspiração.
fotos 1 Diana Prado Lops Aude Craik / Universidade de Oxford 2 Mustard Lab / Universidade Brown 3 wikimedia commons / Miniwiz SED 4 Ernie Button
1
Morte fetal diminui no país
A bactéria que “come” garrafas PET
A taxa de óbitos fetais no Brasil caiu 22,9% em
Uma nova espécie de bactéria, denomi-
um período de 16 anos,
nada Ideonella sakaiensis, pode quebrar
segundo estudo de
as moléculas e digerir plásticos do tipo
pesquisadores da
poli (tereftalato de etileno), conhecido
Universidade Federal de
como PET, material utilizado em garrafas
Santa Catarina (UFSC).
de refrigerantes e água (Science, 13 de
Baixou de 13,4 mortes
março). Um filme fino do plástico, de 60
por mil nascidos em 1996
microgramas, foi degradado em seis se-
para 10 por mil nascidos
manas pelo microrganismo, que foi des-
em 2012 (Maternal and
coberto pelo grupo de Kohei Oda, do
Child Health Journal,
Instituto de Tecnologia de Kioto, no Japão. A bactéria utiliza duas enzimas, a petase e a metase, para degradar e pro-
3
23 de março). Dois terços dos óbitos fetais
Garrafas PET: bactéria degradou filme de 60 microgramas do plástico em seis semanas
ocorreram quando as
cessar o PET. Foi necessário ir a campo
grávidas tinham passado
para descobrir a bactéria. Primeiro, os
tico em todo o mundo. Oda esteve no
da 28ª semana de
cientistas coletaram em um centro de
Brasil, em 2007, em visita financiada pela
gestação e mais de 40%
reciclagem 250 garrafas PET com todo
FAPESP, a convite de Luiz Juliano Neto,
deles ocorreram por
tipo de resíduo, como água, lama e se-
da Universidade Federal de São Paulo
causas não especificadas.
dimentos do solo. Em seguida, no meio
(Unifesp). Ele veio estudar bactérias pre-
Apesar de registrar uma
desse material, identificaram vários mi-
sentes nas fezes de animais que pudes-
queda gradual, o índice
crorganismos, entre os quais a Ideonella
sem ter uso industrial, principalmente
nacional ainda é quase
sakaiensis. O descarte de artefatos de
na decomposição de PET, e também para
o dobro do verificado
PET é um grande problema ambiental.
participar de pesquisas sobre enzimas
em países desenvolvidos
Apenas em 2013 foram produzidas cer-
proteolíticas, que ajudam a degradar
e apresenta grandes
ca de 56 milhões de toneladas do plás-
proteínas (ver Pesquisa FAPESP nº 142).
variações em razão do grau de instrução das mulheres e do nível de desenvolvimento das
Uísque produz manchas uniformes
regiões brasileiras. Em mulheres sem nenhuma
A forma como o uísque
da bebida alcoólica
margens do que no
evapora e deixa resíduos
formadas no fundo
centro, fenômeno
relativamente uniformes
de um copo limpo
presente em grande
no fundo do copo
apresentem tal
parte dos líquidos,
pode fornecer dicas
disposição espacial
como no café, que gera
importantes para a
(Physical Review Letters,
manchas sem
criação de novas formas
24 de março). Os
uniformidade. No caso
de pintura ou
pesquisadores usaram
do destilado, os
revestimento industriais.
marcadores florescentes
surfactantes se
Pesquisadores da
para medir o movimento
acumulam nas bordas
Universidade de
de fluidos no interior
e criam um gradiente
Princeton (EUA), com
de gotas de uísque
de tensão superficial
a ajuda do fotógrafo
durante o processo
(o chamado efeito
profissional Ernie Button,
de evaporação e
Maringoni) que empurra
descobriram que alguns
observaram um fluxo
o líquido para o centro
tipos de moléculas,
vindo das bordas das
da mancha. O papel
como os surfactantes
manchas para o centro.
dos polímeros na criação
(compostos que reduzem
Essa corrente interna
de manchas uniformes
a tensão superficial
se contrapõe, ao
é um pouco diferente:
entre dois líquidos) e os
menos parcialmente,
eles se fixam no fundo
polímeros de plantas,
à tendência de as gotas
do copo e atraem
atuam de forma decisiva
evaporarem mais
partículas ao substrato
para que as manchas
rapidamente em suas
a que aderiram.
Gotas secas de uísque: entender o processo de formação das manchas pode ser útil para criar novas pinturas
instrução formal, a taxa foi de 24,3 mortes por mil nascidos em 2012, cinco vezes maior do que em gestantes com pelo menos 12 anos de estudo.
4
PESQUISA FAPESP 242 | 15
capa
P Ramos prensados e secos são armazenados como registros de espécies de plantas, como esta Pyrostegia venusta 16 | abril DE 2016
or mais que biólogos explorem o chão, as árvores e os corpos d’água, eles ainda parecem longe de estimar e explicar a diversidade biológica das florestas tropicais. Mais do que isso, falta explicar como e quando surgiram montanhas, rios e tudo o que está por baixo da mata. Projetos centrados na Amazônia e na Mata Atlântica agora buscam respostas: biólogos e geólogos vêm trabalhando juntos em busca de decifrar essa história numa disciplina batizada em 2014 como geogenômica pelo geólogo Paul Baker, da Universidade Duke, nos Estados Unidos. Um grande impulso para o campo veio da colaboração entre os programas Biota-FAPESP e Dimensions of Biodiversity, da National Science Foundation (NSF), a principal agência norte-americana de fomento à ciência. “Projetos dessa natureza precisam de uma abordagem participativa desde a elaboração das perguntas”, comenta a botânica Lúcia Lohmann, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), que coordena com o ornitólogo norte-americano Joel Cracraft, do Museu Ame-
Para entender a
origem da floresta Biólogos e geólogos unem esforços para explicar a diversidade biológica da Amazônia e da Mata Atlântica e criam uma nova disciplina, a geogenômica
foto léo ramos
Maria Guimarães
ricano de História Natural, o primeiro projeto a concretizar a parceria, com foco na Amazônia. Para integrar as equipes, foi preciso inicialmente vencer barreiras básicas de comunicação. “Um geólogo apresentava uma palestra e os biólogos ficavam perdidos”, conta Lúcia. E vice-versa. “Na primeira reunião passamos duas horas explicando um único slide aos geólogos”, lembra a bióloga Cristina Miyaki, também do IB-USP e coordenadora de um projeto semelhante, porém na Mata Atlântica. Estabelecido um vocabulário em comum, as trocas começaram a tomar forma. “Agora é óbvio que projetos dessa natureza devem contar com pesquisadores de ambas as áreas desde o início, mas não era essa a visão antes de começarmos”, diz Lúcia. Outro entrave nada trivial à integração do conhecimento é a escassez de dados. “Precisamos ter todas as filogenias datadas, com bancos de dados georreferenciados para produzir mapas de distribuição antes de poder cruzar com os dados geológicos”, conta Lúcia. Ela e seus colaboradores têm uma expedição para a Amazônia planejada para este ano. “Vamos coletar da-
dos de diferentes organismos para avaliar em que extensão os rios Negro e Branco representam barreiras para a dispersão.” É fácil imaginar que rios caudalosos limitam a mobilidade dos organismos, mas, quando os biólogos usam o DNA para resgatar informações da história das espécies, nem sempre é o que veem. “Para as plantas, os rios não parecem ser barreiras importantes”, diz Lúcia, especialista na família Bignoniaceae. Já a circulação de primatas pode ser limitada por eles, como mostra o primatólogo brasileiro Jean Philippe Boubli, da Universidade de Salford, na Inglaterra. Ele também é pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), e por isso tem acesso a um acervo importante de amostras de primatas depositadas na instituição. “Temos uma cobertura quase completa de amostras de primatas amazônicos e, com a genômica, conseguiremos investigar o papel dos grandes rios na origem da diversidade do grupo”, planeja. Com uma nova filogenia dos sauás, ou zogue-zogues (Callicebus), publicada em março deste ano na revista Frontiers in Zoology, ele, sua aluna de doutorado Hazel Byrne e colegas indicam PESQUISA FAPESP 242 | 17
divergências profundas que justificam a criação de dois novos gêneros: Cheracebus, para as espécies dos rios Negro e Orinoco, e Plecturocebus, no sul do Amazonas. Callicebus ficaria reservado às espécies da Mata Atlântica. “Eles podem ser a chave de tudo”, diz o pesquisador. É um grupo muito antigo e rico em espécies, por isso é ideal para testar o papel de fatores como os rios e mudanças climáticas na diversificação das espécies. “A colaboração com os geólogos está abrindo nossos olhos para coisas que não sabíamos da Amazônia”, diz. “O que vem ficando claro é que as hipóteses postuladas nas últimas décadas acabam sendo simplistas para a complexidade da Amazônia”, reflete a bióloga Camila Ribas, do Inpa, que integra o projeto de Lúcia e também o de Baker. “A Teoria dos Refúgios prevê que as espécies atuais teriam se originado durante os ciclos glaciais, dos quais o último aconteceu há cerca de 18 mil anos”, exemplifica. Mas as diferentes regiões da Amazônia parecem ter passado por processos distintos e as espécies respondem de forma diferente às condições locais. As aves, especialidade de Camila, são um bom exemplo de organismos muito heterogêneos na lida com o ambiente: as que conseguem voar longas distâncias, por exemplo, são menos afetadas por barreiras. No outro extremo os jacamins (gênero Psophia), aves amazônicas que quase não voam, se tornaram o exemplo por excelência de como os grandes rios funcionam como as principais barreiras entre espécies, de acordo com estudo publicado em 2012 na Proceedings of the Royal Society B por Camila e colaboradores. Mais recentemente, um dos projetos da bióloga do Inpa investiga a fauna de aves típicas de áreas de areia branca na Amazônia, como relatou em artigo publicado este ano na Biotropica, resultado do mestrado de sua aluna Maysa Matos. “São manchas de areia branca no meio de um mar de floresta, com uma vegetação aberta, mais parecida com a da Caatinga ou do Cerrado”, explica Camila. A surpresa é que os animais encontrados em manchas distantes são mais semelhantes do que se imaginaria, mesmo que hoje não consigam atravessar a floresta. Os resultados suscitam uma série de perguntas, como há quanto tempo aquele ambiente existe e se a floresta teria sido mais permeável a esses animais no passado. Outro dos alunos de Camila, Leandro Moraes, analisou durante o mestrado o papel dos rios Tapajós e Jamanxim, no Pará, em limitar a distribuição de anfíbios e répteis. Os resultados, que serão publicados em breve na revista Journal of Biogeography, mostram que um terço das espécies de anfíbios tem a movimentação restrita pelos rios, proporção que cai para apenas 8% nas cobras e lagartos. O trabalho busca avaliar 18 | abril DE 2016
1
“A colaboração está abrindo nossos olhos para coisas que não sabíamos da Amazônia”, diz Boubli
a importância desses rios na configuração da paisagem e dos hábitats adequados a esses animais, e por isso Camila o considera um exemplo de como o projeto começa a integrar as áreas de conhecimento. Paisagem mutante
Nos últimos anos, começou a se sedimentar uma noção de que a drenagem da bacia amazônica evoluiu sobretudo nos últimos 3 milhões de anos (e não 15 milhões, como postulavam as estimativas anteriores), uma escala temporal que parece concordar com o que indicam os dados de animais e plantas. O istmo do Panamá, outra estrutura com grande relevância para a biogeografia porque permitiu migrações entre a América do Sul e as Américas Central e do Norte, também mudou de idade. Um estudo liderado pelo geólogo Camilo Montes, da Universidad de los Andes, Colômbia, publicado na Science em abril de 2015, analisou minerais de origem panamenha encontrados na América do Sul e estimou essa formação entre 13 milhões e 15 milhões de anos atrás – 10 milhões a mais em relação ao que se pensava antes. “A nova datação muda totalmente como se vê a movimentação passada da flora e da fauna na região, nos obriga a reavaliar toda a literatura”, afirma Lúcia Lohmann.
fotos 1 ingrid macedo / inpa 2 léo ramos 3 anselmo d’afonseca
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Essa reavaliação tem se revelado muito mais produtiva com a união de especialistas. “Os evolucionistas e biogeógrafos precisam conhecer a história geológica para entender por que as espécies vivem onde vivem, e mesmo como as espécies vieram a existir”, explica Paul Baker, inventor do termo “geogenômica”. Ele tem o plano ambicioso de fazer cinco furos de sondagem próximos a grandes rios amazônicos, com profundidades que podem chegar a 2 quilômetros, para ter acesso contínuo a amostras de sedimentos de várias idades, até cerca de 65 milhões de anos atrás. Em reunião no Inpa no ano passado, ele e colegas do projeto da Amazônia chegaram a um acordo sobre que tipos de dados obtidos com a empreitada poderiam ajudar a reconstituir a história geológica, climática e biótica. Agora o desafio é conseguir o financiamento. “Nosso orçamento só para a perfuração é de US$ 7 milhões”, conta. O projeto de Baker parte da geologia, enquanto no de Lúcia as perguntas surgem sobretudo da biologia. A geogenômica, entretanto, pretende ser uma via de mão dupla. “A ideia é que geólogos também possam usar dados biológicos para responder a perguntas geológicas”, diz ele. As datas estimadas para o surgimento das espécies dos jacamins de Camila, por exemplo, podem ajudar a estimar a idade dos grandes rios como o Amazonas, o Xingu, o Tapajós e o Madeira, segundo Baker. “Os dados biológicos fornecem uma ordem de grandeza que permite gerar as hipóteses que podemos testar com as idades absolutas provenientes de datações geocronológicas”, concorda o sedimentólogo Renato Almeida, do Instituto de Geociências (IGc) da USP. Junto com o colega André Sawakuchi, ele investiga a formação dos depósitos sedimentares que compõem a bacia amazônica. “É uma área do tamanho de um continente com uma escassez de dados ab-
Grandes rios limitam a distribuição de espécies como Psophia crepitans (esquerda) e Cebus olivaceus (abaixo), mas não de plantas cujas sementes são carregadas pelo vento (acima)
surda”, afirma. Reduzir esse desconhecimento não é tarefa que poderá ser realizada dentro do tempo do projeto atual, e a maior parte dos dados que o grupo vem levantando ainda não está publicada. Além de começar a pintar um quadro geográfico do passado, uma missão da equipe é ajudar os biólogos a distinguir quais das hipóteses têm mais fundamento para explicar os padrões biogeográficos. O trabalho vem mostrando que o soerguimento da cordilheira dos Andes aos poucos empurrou para leste a água de um imenso lago que havia na região e foi formando as drenagens de maior porte em direção ao oceano Atlântico. Uma das técnicas para revelar o passado dos rios é a luminescência opticamente estimulada, que depende da coleta, em tubos de alumínio, de sedimentos dos barrancos que ladeiam os rios. “De volta ao laboratório, conseguimos datar a última vez que o grão de quartzo foi exposto à luz do sol”, explica o geógrafo Fabiano Pupim, pesquisador de pós-doutorado no laboratório de Sawakuchi. O grupo também enxerga uma rica informação na configuração dos sedimentos nesses paredões junto aos rios, que chegam a ter 20 metros de altura. As estruturas internas permitem inferir a escala e o sentido do rio quando aquele sedimento foi depositado, entre outras informações. Imagens de sonar mostram que o fundo de rios como o Amazonas, outro território desconhecido, tem dunas de até 12 metros de altura. “Precisamos entender como funciona um rio dessas dimensões para inferir como eram os grandes rios do passado”, diz Almeida. Em colaboração com o geólogo Carlos Grohmann, do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP, ele também investiga a dinâmica dos rios por meio de séries temporais de imagens de satélite.
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Em laboratório iluminado apenas com luz vermelha é possível saber há quanto tempo sedimento recebeu a luz solar
A importância é maior do que a função dos rios como barreiras. Os cursos d’água e os sedimentos que vieram dos Andes formaram o mosaico de ambientes que caracterizam a Amazônia, com áreas secas e de alagamento periódico. Sawakuchi, Pupim e equipe (sobretudo os alunos de mestrado Dorília Cunha e Diego Souza) têm investigado a formação dos arquipélagos de Anavilhanas e do tabuleiro do Embaubal, no rio Amazonas, nos últimos 10 mil anos. O surgimento desse tipo de ambiente e dos rios propriamente ditos representa escalas de tempo distintas, cujo significado o geógrafo espera complementar com os dados biológicos. Clima flutuante
Mas nem só de água terrestre vivem as florestas. Francisco William da Cruz Júnior, do IGc-USP e um dos coordenadores da parte geológica na geogenômica brasileira, usa espeleotemas (formações de composição carbonática de cavernas), principalmente estalagmites, para inferir o clima do passado. Os dados obtidos por seu grupo de pesquisa indicam que a Era Glacial na América do Sul não era árida como se pensava. “Parte do continente estava seca, mas outras áreas eram úmidas, o que pode ter favorecido até mesmo a expansão das florestas, como na Amazônia peruana e na parte sul da Mata Atlântica”, afirma. Com base na análise de isótopos de oxigênio contidos no carbonato de cálcio do material das cavernas, ele observa que diferentes partes da Amazônia e regiões adjacentes passaram por processos muito distintos, como fica claro em artigo de que participou, em conjunto com biólogos da equipe, sob a coordenação do colega chinês Hai 20 | abril DE 2016
Cheng e publicado em 2013 na Nature Communications. As datações indicam que, nos últimos 250 mil anos, o clima do oeste da Amazônia se manteve mais estável do que a região a leste, no Pará, com um fortalecimento das chuvas durante os períodos glaciais – entre 100 mil e 20 mil anos atrás. O grupo interpreta essa relativa estabilidade como responsável pela alta biodiversidade encontrada hoje na região, enquanto a parte leste da Amazônia, menos rica em espécies, passou por variações climáticas drásticas que podem ter levado a extinções. “Estamos desafiando um paradigma”, diz Cruz. “A estabilidade climática pode ter sido mais importante do que os refúgios para gerar o padrão de alta diversidade encontrado hoje na floresta amazônica, principalmente junto aos Andes.” No período glacial o oeste da Amazônia parece ter sido bem úmido, assim como o domínio da Mata Atlântica no Sul e Sudeste brasileiros. Cruz tem indícios de uma faixa climática que une essas duas regiões e tem características opostas à área que inclui o Pará, no leste da Amazônia, e a região Nordeste, que varia em ciclos de cerca de 23 mil anos. “Esse padrão está sendo testado tanto no projeto da Amazônia como no da Mata Atlântica.” Ele defende que essas correspondências possibilitaram a formação de corredores entre os dois biomas, que explicam casos de parentesco maior entre espécies da Amazônia e da Mata Atlântica, em relação a espécies de um mesmo bioma. Cruz postula que em um período no qual se supõe uma alta umidade no leste da Amazônia e no Nordeste do país, as florestas tropicais devem ter se expandido, formando uma ponte de floresta entre os dois biomas. Mais tarde, há indícios de chuvas mais abundantes na região mais próxima ao sopé dos Andes e no Sul e Sudeste brasileiros, também com possibilidade de expansão das florestas até o encontro da Amazônia com a Mata Atlântica. “Estamos atualmente testando quais seriam essas fases.” Um testemunho dessa dinâmica são as folhas fossilizadas coletadas por Cruz no vale do rio São Francisco, região hoje recoberta por Caatinga. “Elas indicam que a região foi rapidamente coberta por vegetação úmida entre 18 e 15 mil anos atrás”, afirma. Mesmo na atualidade, há uma conexão climática direta entre os dois biomas: no verão, a umidade que viaja desde a Amazônia determina o que acontece na Mata Atlântica, por exemplo. “Não dá para restringir o estudo a um quadro local, nem é interessante”, diz Cruz. Iniciado um ano depois do projeto da Amazônia, o da Mata Atlântica, coordenado pelas biólogas Cristina Miyaki, da USP, e Ana Carolina Carnaval, da Universidade da Cidade de Nova York, está em um estágio mais inicial da integração das especialidades. “Vários artigos em que estamos trabalhando neste terceiro ano incluem o ângulo
Camadas de estalagmite (acima) e folhas fossilizadas (abaixo) são indicadores de clima do passado
ou a hipótese que o time de paleoclimatólogos (ou o de sensoriamento remoto) trouxe para nossa equipe”, diz Ana. Um trabalho com dados genômicos testando hipóteses formuladas por Cruz e outros integrantes da equipe geológica, como a palinologista Marie-Pierre Ledru, do Instituto de Ciências da Evolução em Montpellier, França, está sendo finalizado para publicação. “É legal demais porque a paleoclimatologia indica um caminho que a genômica testa e vê o que confere, o que não confere”, conta. “Depois trazemos a discussão de novo para os paleoclimatólogos, para refinar as ideias.” Os resultados estão surgindo e prometem render muitos frutos nos próximos anos, quando o financiamento atual já tiver sido substituído por outros projetos. Firmar a parceria é, parece, a maior conquista. “Estamos começando a delimitar o que ainda não está entendido”, diz Cristina. Seu trabalho sempre envolveu suposições do campo da geologia para entender a diversificação de aves na Mata Atlântica. Mas agora, com o novo aprendizado, vem a sensação de que as análises eram muito superficiais e as interpreta-
ções, apesar de serem as melhores possíveis na época, ingênuas. A geogenômica é um exemplo da melhor ciência moderna. “De certa maneira voltamos à história natural antiga, em que os pesquisadores tinham conhecimento de biologia e de geologia”, brinca Cristina. Mas, com técnicas cada vez mais especializadas, bancos de dados mais e mais gigantescos e um nível crescente de detalhes, a única maneira de se reunir esse conhecimento é a congregação de grandes grupos. Passados os primeiros anos em que cada especialidade continuou a produzir trabalhos semelhantes aos que já faziam antes, de agora em diante devem começar a aparecer os resultados realmente integrados. n
Projetos 1. Estruturação e evolução da biota amazônica e seu ambiente: uma abordagem integrativa (nº 2012/50260-6); Modalidade Programa Biota/Dimensions-NSF; Pesquisadores responsáveis Lúcia Lohmann (IB-USP) e Joel Cracraft (AMNH); Investimento R$ 3.752.671,77. 2. Dimensions US-Biota São Paulo: integrando disciplinas para a predição da biodiversidade da Floresta Atlântica no Brasil (nº 2013/502970); Modalidade Programa Biota/Dimensions-NSF; Pesquisadoras responsáveis Cristina Miyaki (IB-USP) e Ana Carolina Carnaval (CUNY); Investimento R$ 3.781.927,16.
fotos léo ramos
Artigos científicos BAKER, P. A. et al. The emerging field of Geogenomics: Constraining geological problems with genetic data. Earth-Science Reviews. v. 135, p. 38-47. ago. 2014. BYRNE, H. et al. Phylogenetic relationships of the New World titi monkeys (Callicebus): First appraisal of taxonomy based on molecular evidence. Frontiers in Zoology. v. 13, n. 10. 1º mar. 2016. CHENG, H. et al. Climate change patterns in Amazonia and biodiversity. Nature Communications. v. 4, n. 1.411. 29 jan. 2013. MATOS, M. V. et al. Comparative phylogeography of two bird species, Tachyphonus phoenicius (Thraupidae) and Polytmus theresiae (Trochilidae), specialized in Amazonian White Sand Vegetation. Biotropica. v. 48, n. 1, p. 110-20. jan. 2016. MORAES, L. J. C. L. et al. The combined influence of riverine barriers and flooding gradients on biogeographical patterns for amphibians and squamates in south-eastern Amazonia. Journal of Biogeography. No prelo. RIBAS, C. C. et al. A palaeobiogeographical model for biotic diversification within Amazonia over the past three million years. Proceedings of the Royal Society B. v. 279, n. 1.729, p. 681-9. 11 jan. 2012.
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entrevista Eunice Durham
Modelos flexíveis de universidade Referência em pesquisas sobre educação superior, a antropóloga da USP revê sua trajetória Fabrício Marques |
retrato
Léo Ramos
A
contribuição da antropóloga Eunice Ribeiro Dur ham, de 83 anos, para o conhecimento sobre o siste ma educacional do Brasil divide-se em duas searas. No campo acadêmico, ela coordenou o Núcleo de Pesquisas sobre Ensino Superior (Nupes), da Universidade de São Paulo (USP), um grupo interdisciplinar que entre 1989 e 2005 ajudou a pautar as discussões sobre o sistema universi tário do país ao produzir estudos comparativos e reflexões sobre o tema. Já na seara pública, ela teve duas passagens pelo Ministério da Educação (MEC). Entre 1990 e 1992, presidiu a Coordenação de Aperfeiçoa mento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e foi secretária de Ensino Superior. E, entre 1995 e 1997, assumiu a Secretaria de Política Educacional, um órgão de planejamento no qual ampliou o escopo de suas preocupações para os ensinos fun damental e médio. Não foi um mero caso de pesquisador que levou sua experiência teórica para o governo. “Existe aquele slogan ‘saber é poder’, mas aprendi que o poder também é saber. No ministério, tive uma visão global do sistema e das diferentes dinâmicas em que ele funciona que eu jamais tive da perspectiva das ciências sociais”, afirma. Crítica do corporativismo acadêmico e do gigantismo das universidades públicas, Eunice Durham defende um sistema de educação superior diverso e flexível, que reúna diferentes
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idade 83 anos Especialidade Antropologia rural e urbana, Políticas educacionais Formação Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (graduação, mestrado, doutorado, livre-docência) Instituição Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Produção científica Escreveu ou organizou 8 livros. É autora de 31 capítulos de livros e de cerca de 50 artigos acadêmicos
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tipos de instituições – públicas, privadas, técnicas e de tamanhos diferentes – ca pazes de atender a demandas regionais e de massa por uma boa formação pro fissional e também as exigências para a formação de pesquisadores. Professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, fez toda a sua carreira na instituição. Atuou nos departamentos de Ciência Política e de Antropologia, onde se aposentou como professora titular em 2005. Atualmente, é pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas, que sucedeu ao Nupes. Na entrevista a seguir, ela relem bra sua trajetória e a gênese de algumas de suas ideias. Como surgiu seu interesse pela antropologia? Uma das coisas mais difíceis da minha vida foi escolher que curso eu devia fazer de pois do ensino médio. Tinha interesses múltiplos. Quis fa zer arquitetura, matemática, física, veterinária. E gostava de antropologia. Meu pai ti nha uma pequena biblioteca e um dos livros era do [Bronis law] Malinovski. Fiquei en cantada com a antropologia.
E entrei em ciências sociais. No curso, o que me fascinou mais foi antropologia e ciência política. Tive um professor de ciência política extraordinário, Louri val Gomes Machado. De sociologia eu não gostava muito. Fui aluna do Flores tan Fernandes e era tudo muito teórico. Quando terminei, fui convidada para trabalhar como professora-assistente voluntária na antropologia. Professores voluntários trabalhavam de graça, certo? Durou quanto tempo? Três anos. Trabalhava com o Egon Scha den, que foi meu orientador e chefe. Também trabalhei como professora no Instituto Sedes Sapientiae e lá ganhava um salário. Segui carreira na universi dade. Eu era assistente de antropologia,
família no interior de São Paulo, Descal vado. A pesquisa abrangeu um período grande tendo sido também um pouco histórica. A antropologia era acusada de não levar em conta a história e de ser muito centrada num tempo deter minado. Para quem trabalha com índio não tem muito jeito. Índios não têm do cumentos históricos, têm lendas. Não é o caso dos imigrantes italianos. Fiz um levantamento da imigração italia na e mostrei que Descalvado era uma cidade importante para estudar. E fiz um recenseamento. Descobri que 70% dos habitantes tinham ao menos dois avós italianos, o que significava uma verdadeira substituição da população original. Já tinha terminado quando o Darcy Ribeiro montou uma enorme pes quisa sobre urbanização e as transformações da socieda de brasileira contemporânea e me convidou a participar. Achei uma falta de respon sabilidade do Darcy porque eu era recém-formada. O mestrado nem estava escri to ainda. Mas ele era uma pessoa interessante e sedu tora. Me dizia: “Pode deixar. Eu oriento você”. Jamais fui orientada. Ele me deu a par te da migração rural-urbana, que se tornaria minha tese de doutorado. Nesse meio -tempo, veio a invasão da Faculdade de Filosofia. Em 1968, houve ampla cassação dos professores, especial mente na ciência política e na sociologia.
Nosso trabalho seguia uma tradição na sociologia: queríamos contribuir para entender o Brasil
Malinovski que bem mais tarde seria o tema da sua livre-docência. Considerado, até hoje, um clássico da antropologia. Fui falar com meu pai, que era professor da USP, um edu cador. Ele sugeriu que eu fizesse ciências sociais porque incluía matemática e estatística e tinha antro pologia. Eu resistia porque não queria ser professora. Ele disse: “É engano seu. Se você fizer veterinária, o tempo inteiro vai lidar com animal doente, animal atro pelado. Se fosse fazer medicina, também ia lidar com gente com problemas. Mas ser professora é muito bom. Vai lidar só com gente jovem, idealista, é muito mais alegre”.
Dar aula era o que os graduados em ciências sociais faziam? A trajetória era dar aula de sociologia em escolas normais. Mas também podia le cionar geografia e história. Aí achei que talvez o magistério fosse uma coisa boa. 24 | abril DE 2016
fiz mestrado e doutorado na área. Foi um tempo perturbador, pois se deu com a instalação do regime militar. A faculdade foi invadida, o movimento estudantil se mobilizou em oposição à ditadura. Fiz mestrado e doutorado quase em segui da nessa época e tive um filho também. Sua pesquisa de mestrado foi sobre a imigração italiana. Por que o tema? Meu mestrado se sobrepôs um pouco ao doutorado. O tema foi, como era costu me na época, escolhido pelo catedrático. Como o estudo da imigração estrangeira era uma das linhas de pesquisa do cate drático, fui, com Ruth Cardoso, designa da para essa área. Fiz a pesquisa sobre imigrantes italianos na cidade da minha
Daí a senhora foi para a ciência política. Eu e a Ruth Cardoso. Eu gostava de ciên cia política, mas minha cultura nessa disciplina era reduzida. Naquele tem po dávamos aula sobre qualquer coisa. O titular fazia o programa e mandava a gente dar aula ou fazer seminários. O jeito era estudar e preparar a aula. Es tudei muito a formação do Estado mo derno nessa época. Trabalhando com a Ruth, começamos a estudar movimentos sociais urbanos. Nosso trabalho seguia uma tradição na sociologia e na geografia humana da época: queríamos contribuir para entender o Brasil. A imigração ita liana era crucial aqui em São Paulo. A migração rural-urbana também é para
arquivo pessoal
Em 1995, cumprimenta Hillary Clinton, que visitava o Brasil, apresentada pela colega antropóloga Ruth Cardoso, então primeira-dama
o país inteiro. Os movimentos sociais urbanos eram algo novo. Entre os resultados de sua pesquisa, destacava-se o peso da família na imigração. Por quê? Eu não comecei minhas pesquisas in teressada na família. Mas, estudando os italianos, vi que a família era crucial. Aquela imigração foi destinada de início para a zona rural e depois houve o pro cesso de ascensão social que dependeu muito do que eu chamo “acumulação primitiva”. Era feita por meio do número de filhos, todos trabalhando. Nas lavou ras de café, o pai recolhia tudo e criava um capital inicial com o qual comprava terra ou levava a família para a cidade e fundava um negócio. Depois, quando fui estudar a migração rural-urbana, a famí lia apareceu novamente. O roteiro das entrevistas qualitativas era baseado na pergunta: como é que o senhor chegou em São Paulo? Como é que teve a ideia de vir? E vinha sempre a resposta, do ti po: “A gente era muito pobre, não tinha emprego, e o meu irmão veio, o meu tio veio, então resolvi vir e fui para a casa deles”. E depois iniciavam o processo de trazer o resto da família. Organiza-se então o trabalho em torno da relação en tre o espaço geográfico e o espaço social. Eu não tinha jeito senão assumir que a família era muito importante no Brasil, embora para os alunos daquela época não fosse um assunto muito interessante.
Por quê? Em 1968, meu programa era sobre família e parentesco, um tema crucial na antro pologia. Mas os alunos estavam empe nhados em fazer a revolução socialista. Era duro obter a atenção deles. Quando chegou maio, eu perguntei: “Quem aqui não deu presente de dia das mães no do mingo passado?”. Todo mundo tinha dado. Eu disse: “Estão vendo? Não dá para estu dar só a revolução, tem que saber em que a sociedade está assentada para mudá-la e a família é importante”. Era preciso con vencer os alunos com alguma esperteza. Como foi a transição da imigração para o estudo de movimentos sociais? Antes de ir para a ciência política, eu já havia começado a me interessar pela questão da política estudantil e univer sitária. Toda a luta dos estudantes e pro fessores menos tradicionalistas girava em função da necessidade de reformar a universidade. Apoiei os estudantes, mas achava que eles estavam indo por um caminho em que não ia haver vitória nenhuma, que era o de fazer a revolução socialista. O movimento ia acabar, como acabou, destruído porque os estudan tes não tinham apoio popular nem apoio político para fazer a revolução. Eles não entendiam nada de Brasil e muito pou co de história. Foi a época, inclusive, em que eles inventaram os cursos paritários. Eram os professores com os alunos que escolhiam o curso a ser dado. Esses cursos
eram voluntários. Eu queria estar junto com os estudantes e me ofereci para fazer. Em que ano? Foi mais ou menos em 1967, logo antes da invasão do prédio da rua Maria Antônia, quando fomos para a Cidade Universitá ria. Nunca fui a favor da pedagogia cujo slogan era: professores e alunos apren dem juntos. Não é verdade. Os alunos não sabem antropologia. Como vão de cidir o que estudar? Essa parte da minha história é engraçada. Estava tentando es crever o doutorado sobre migração rural -urbana. Quase a totalidade dos alunos e professores mais jovens era marxista. Argumentei com os alunos que estáva mos vivendo uma grande transformação social, que era a urbanização, que isso envolvia uma enorme mudança da po pulação e criava problemas imensos. E, para ter um projeto para o Brasil, pre cisávamos entender com quem iríamos lidar. Era uma população tradicional? Tinha novos valores? Consegui conven cer os alunos a estudar isso. A senhora não se colocava como marxista? Não, o marxismo não serve muito para a antropologia. Na verdade, a obra A origem da família, da propriedade privada e do Estado, de Engels, está errada do ponto de vista da antropologia. E entre os povos chamados “primitivos”, que estudávamos então, não havia luta de PESQUISA FAPESP 242 | 25
classes. Mas trabalhei bastante com o marxismo. Li muito, porque não dava para conversar com os alunos e tentar influenciá-los um pouco se não falasse a linguagem deles. Depois de 1968, nós saímos dos barracões em que estávamos provisoriamente alojados após a invasão da Maria Antônia e fomos para um pré dio novo. Nesta época fui dar um curso sobre o conceito de cultura. Todos os alunos se sentiam derrotados, mas ain da eram ferozmente marxistas. Eu tinha que arrumar um jeito de demonstrar que conhecia Marx, porque senão eles não iam prestar atenção. Lembrei de um en saio do José Arthur Giannotti chamado “O ardil do trabalho”, um trabalho muito lindo, mas muito difícil, sobre a concep ção de trabalho de Marx. Pedi para os alunos lerem. Da perspectiva dos alunos, era uma bibliografia legítima, puramente marxista. Foi interessante, porque eles não conseguiram entender o artigo. Eu nunca daria aquilo para estudantes do primeiro ano não fosse por essa minha maldade pedagógica. Dei uma aula sobre o assunto. Aí fui legitimada, porque eu sabia Marx – e sabia mais do que eles. Aprendi muito com os alunos. Eles sa bem denunciar muita coisa que está er rada. Mas são incapazes de propor uma solução realista. Com a sua passagem para a ciência política, a senhora se envolveu mais com a universidade? 26 | abril DE 2016
Com a morte do Vladimir Herzog, em 1975, eu estava voltando da romaria que fizemos até a catedral da Sé para o cul to ecumênico e encontrei outros cole gas que disseram que, após o ato, have ria uma reunião dos professores na USP. Era preciso tomar uma atitude. Fui a essa primeira reunião, que criou a Associação dos Docentes da USP, a Adusp. Comecei então um imenso envolvimento com a política universitária e me dei conta de que sabia muito pouco sobre a universi dade. Éramos contra os militares, contra a cátedra, a favor do departamento, mas não havia muita comunicação entre os docentes a não ser para tentar proteger alunos e colegas. Resolvi estudar. Achei um maravilhoso livro do Simon Schwart zman, Formação da comunidade científica no Brasil. Conhecia outros trabalhos sobre a universidade, mas o do Simon era outra coisa. Não era criar um modelo ideal, mas analisar a dinâmica real da universidade. Se fazemos um modelo ideal, tudo está sempre errado, porque ninguém constrói o modelo ideal na prática. Como evoluiu sua visão de universidade? A grande mudança inicial do meu pen samento foi o reconhecimento de que a universidade não pode ser tomada como sinônimo de ensino superior. Este cons titui sempre um sistema diversificado de instituições e a universidade deve ser analisada nesse contexto. Também
sempre tive uma clara visão de que a ex cessiva politização da universidade não era uma coisa boa. O papel da universi dade é trabalhar numa linha mais cien tífica, de progresso do conhecimento. E um conhecimento de certo tipo, baseado na crítica constante do próprio traba lho. Tratar a universidade como uma comunidade é um erro. A universidade é uma organização burocrática baseada na divisão de trabalho. Se não se entende isso, ficamos trabalhando com ideais de que todos devem contribuir igualmente. A universidade não pode ser entendida desse jeito. A pessoa que serve o café tem uma visão de universidade, o as sessor jurídico tem outra visão. E o tra balho do pesquisador é outro também. Não é a mesma coisa. A universidade é mais como um teatro do que como uma comunidade. Mas a tradição do Brasil é colocar tudo no mesmo saco. Vou dar um exemplo: num certo momento, o go vernador Franco Montoro [1983-1987] me nomeou representante do governo no Conselho Universitário da Unicamp. Tinha um problema crucial lá com a mú sica e a orquestra. Havia grandes músi cos, mas não se podia dar um salário de cente porque ninguém tinha doutorado. Era um absurdo. Eu tinha a ideia de que precisávamos de uma universidade mais flexível e menos burocrática. A função da burocracia é fazer uma norma para todo mundo, porque assim é mais fácil governar. Tender à flexibilidade e à di
arquivo pessoal
Com o amigo e então senador Darcy Ribeiro, no campus da Universidade de Brasília, em meados dos anos 1990
versidade não é algo que o burocrata tenha em mente. E os nossos professo res acabaram sendo grandes burocratas. É um exagero exigir que todo professor universitário seja doutor? Há uma distinção que precisa ser man tida com a área profissional. No ensino de direito, por exemplo, é preciso ter grandes praticantes dando aula e não simplesmente alguém com conhecimento teórico. Você não vai formar pesquisado res, vai formar advogados. Tive grande amizade com um diretor da Escola Po litécnica, o Décio Zagottis, uma pessoa muito corajosa. Fizemos uma reunião na Adusp sobre tempo integral. Ele queria dividir o tempo integral em dois: o inte gralão e o integralinho, com possibilidade maior de trabalhar fora da Po litécnica. Eu argumentei con tra. Na saída, ele veio falar co migo. Disse: “Eunice, sou um especialista em grandes estru turas. Basicamente, grandes pontes e grandes prédios. Co mo vou aprender a fazer isso dentro da universidade? Não posso fazer pontes aqui para treinar”. Aquele argumento para mim foi definitivo.
Como foi o período em que a senhora trabalhou com o então reitor da USP José Goldemberg? Foi um período efervescente, entre 1986 e 1990. Durante o longo período militar e a luta pela reforma, criamos a ilusão de que a universidade não ia para frente por causa dos militares. E que, tirando os mili tares, seria libertada e entraria num perío do de grande transformação inovadora. O regime militar caiu e não aconteceu nada. O Goldemberg acreditava que nós podía mos fazer uma grande transformação. Era inovador e tinha coragem, um homem de dicado a melhorar a universidade. Ele me dava processos ou problemas para discutir. Era muito estimulante trabalhar com ele. Ele não queria a fama pela fama. Queria fazer coisas importantes.
Eu alertei o Goldemberg para não divulgar aquela lista, mas houve um vazamento. Um primeiro levantamento não pode ser divulgado ipsis litteris, não pode dar nome às pessoas. É preciso analisar e trabalhar com as estatísticas. De qualquer forma serviu para levantar a questão da avalia ção e os professores começaram a tomar mais cuidado com sua produção científica. O Goldemberg era corajoso na oposição aos exageros do movimento estudantil e do movimento docente. O excesso de greves, as reivindicações corporativas, os estudantes fazendo invasões na reitoria sem propostas claras eram coisas contra as quais ele lutou bastante. Eu também. O Nupes veio em seguida. Qual foi a sua contribuição principal? O Nupes foi uma nova forma de fazer pesquisa sobre en sino superior, uma pesqui sa menos ideológica e mais baseada no levantamento e análise de fatos e informa ções levando em considera ção o que ocorria no resto do mundo. Nossa primei ra pesquisa envolveu cinco países latino-americanos e pesquisadores de cada um deles. Concluímos que os problemas eram os mes mos: a carreira, o tempo in tegral, o grau de diversidade do sistema. Mas as soluções eram diferentes e se davam em tempos diferentes. To dos estavam tentando fazer avaliação, todos queriam uma reforma universitária. Acho que o Nupes fez um bom traba lho. A direção do Simon Schwartzman foi essencial. Deixamos de falar em uni versidade para falar de sistema de ensi no superior. Foi organizada essa grande pesquisa sobre as políticas educacionais na América Latina, para ter uma visão do Brasil não isolada do que acontecia no resto do mundo. Os grandes temas daquele período estavam presentes no trabalho de uma comissão, criada pelo então presidente eleito Tancredo Ne ves, da qual o Simon foi relator. Eram os problemas da autonomia, da avaliação, da diversificação do sistema de ensino. A diversificação foi o tema em que nós fomos mais constantemente derrotados pela academia.
Sempre tive uma clara visão de que a excessiva politização da universidade não era uma coisa boa
Como resolver isso numa universidade de pesquisa? Todo o ethos da USP é a pesquisa. E a pesquisa é em grande parte um trabalho ex perimental, não um traba lho ligado diretamente com o exercício de uma profissão. Essa é uma distinção funda mental: deveria haver carreiras dife rentes. A outra é uma distinção entre as ciências humanas e sociais de um lado e as exatas e a matemática de outro. As hu manas têm outro tipo de conhecimento, que não é exato, mas importante. Quando eu era aluna, não existia trabalho sobre o Brasil escrito por brasileiro. O grande salto foi dado pelo Florestan Fernandes e outros que começaram a estudar o país. Mas a capacidade de previsão nas ciên cias sociais é pequena. Meu exemplo favorito é que ninguém previu a queda do Muro de Berlim. Isso é importante para dar um pouco de modéstia ao traba lho que fazemos. Gosto das ciências hu manas e considero todas essenciais, mas acho que ficaram ideológicas demais.
E o que deu para fazer de importante na USP nessa época? Muitas coisas. Por exemplo, foi o começo da informatização da USP, sem o que não seria possível formular uma política ra zoável para a instituição. Quando o Gol demberg entrou, praticamente não havia computadores. Havia um imenso arqui vo na reitoria com estantes tão grandes de processos que tinha um motor para mover a estante para poder achar algu ma coisa. Não havia informações básicas sobre a universidade como o número de classes, de alunos, de professores. A divulgação da lista dos docentes e sua produtividade causou uma grande celeuma...
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Qual é o problema disso na pedagogia? Na pedagogia o problema é mais grave porque, em vez de formar professores, formam gerentes de escolas, teóricos ou pesquisadores. O curso não está voltado para ensinar, mas apenas para pensar sobre o ensino. As diretrizes curricu lares que foram definidas em 2004 são absolutamente vergonhosas. Em seis ou oito páginas de diretrizes, não se fala ne nhuma vez em séries iniciais do ensino fundamental e sobre o que o professor deve fazer lá. Apenas a pesquisa é valori
zada na formação dos professores e essa pesquisa em pedagogia de modo geral é ruim. Todos falam que é indispensável a relação entre ensino e trabalho, mas isso é apenas um mantra. O MEC chegou ao cúmulo de proibir qualquer disciplina que envolvesse trabalho real durante o curso. Educação é uma área profissional. É para formar professor. A Lei de Diretrizes e Bases discutida nos anos 1990 propunha um caminho diferente, não? Essa foi feita pelo Darcy Ribeiro e ele entendia de povo. Ele criou a Escola Nor mal Superior. São Paulo inteiro estava modificando o sistema de ensino e crian do cursos normais superiores. Durou uns seis anos. Estava deslanchando quando veio a proposta de diretrizes curriculares de 2004 dizendo que toda formação de professores tem que corresponder nas diretrizes curriculares ao curso de pe dagogia tal como está. Então não podia mais ter Escola Normal Superior. Como estava na lei, eu reclamei. Consegui falar com o ministro da Educação e dizer que é um absurdo, mas não adiantou. Quais as deficiências dos professores? Na prática, não sabem alfabetizar. Escre vem mal. Não sabem matemática básica e não sabem sequer ensinar aritmética. São muito mal formados, inclusive, já antes, no ensino fundamental. E não há nenhum processo para reforçar a forma ção. No meu contato com professores, vi muita gente dedicada. Mas a formação é precária. Como ensinar a criança com
essa formação? As faculdades, na maioria privadas, atendem à camada mais pobre nos cursos de formação de professor, a que vem de escolas públicas, e nosso en sino médio público é muito ruim. Tem alunos com muito potencial, que são da primeira geração que chega à universi dade e vêm de famílias muito pobres. Chegam à universidade por um cami nho longo e difícil. É preciso compensar as deficiências anteriores, reforçando o domínio das matérias do primeiro nível do ensino fundamental. Não tem a ver com salário o fato de a carreira não ser atrativa? Não vou dizer que salário não seja im portante, mas a carreira está construí da de tal modo que é impossível pagar bem. Há tanta vantagem paralela que fica demasiado caro para o Estado. Há uma média elevadíssima de faltas por mês. Além disso, há faltas justificadas, que são pelo menos cinco ou seis por ano. Quando somadas, o professor está ausente em média o equivalente a um mês de aula, sem contar as greves. A car reira é mal formulada. O professor passa a ganhar mais por tempo de serviço ou se obtiver o mestrado e o doutorado. Tu do isso não tem muita coisa a ver com a competência pedagógica e a dedicação ao ensino. Não há, a não ser na entrada, nada que valorize propriamente o mé rito, porque não há avaliação posterior dos professores. Isso desvaloriza o pro fessor. Você tem professores com pouca cultura e, especialmente agora, depois da questão da informatização, alunos que
Com o ministro da Educação, Paulo Renato Souza, numa reunião da Unesco em 1997
28 | abril DE 2016
arquivo pessoal
Por quê? Havia aquele ethos comunitário, que eu chamo de igualitarismo elitista. A ideia de que você pudesse ter uma carreira para a engenharia e outra para os pesqui sadores de ciência básica era muito mal vista. Assim também a ideia de que, em um sistema de ensino superior, é neces sário que haja instituições voltadas para a formação para o mercado de trabalho, outras só para ensino e outras para ensi no/pesquisa, pois não dá para ter ensino de massa numa universidade que tem como alvo e objetivo fazer pesquisa. É preciso haver outras instituições para lidar com a massa de estudantes que é muito heterogênea. Nem todo mundo vai querer ser pesquisador de física ou de química ou mesmo de educação. Boa parte dos estudantes querem uma for mação que os prepare para o mercado de trabalho. Critico a ideia de que o ensino na universidade esteja apenas voltado para formar pesquisadores como nós, isto é, futuros professores universitários.
sabem mais que o professor. É algo hu milhante, um professor tentando achar alguma coisa no computador e os alunos tirando aquilo de letra. Queria que falasse um pouco da sua experiência no MEC. O que aprendeu com ela? Adquiri uma visão de todo o sistema que eu não tinha da perspectiva das ciências sociais. Tive muito contato com os cien tistas, os médicos, os engenheiros. Talvez o trabalho melhor que eu tenha feito na vida foi dirigir a Capes. Foi só um ano. Um dos desafios foi a diminuição do tempo de mestrado. No mundo inteiro, mestrado é uma coisa secundária, um aperfeiçoa mento prático. O mestrado profissional ou profissionalizante está previsto na legis lação da pós-graduação. Mas isso nunca pegou no Brasil, porque todo mundo come çou a pós-graduação fazen do mestrado. Valorizava-se o mestrado porque era o que se tinha. Mas nosso mestrado é tão teórico e geral quanto o doutorado. Para colocar um pouco o Brasil dentro da or dem mundial, propusemos diminuir o tempo das bolsas. Foi terrível. Foi a única vez que a congregação da Facul dade de Filosofia escreveu uma carta interpelatória di zendo que eu estava interfe rindo na autonomia univer sitária. Foi divertido, porque pedi uma audiência para a congregação.
departamento a manter o curso. Podiam usar para o que quisessem menos para pagamento de pessoal. Houve progra mas que, quando mandaram a primei ra prestação de contas, incluíram papel higiênico. Foi um escândalo na Capes. Eu dizia: se está faltando papel higiêni co, é normal que comprem, porque não dá para funcionar sem papel higiênico. Não era muita coisa, mas salvamos mui to programa de pós-graduação. Podiam mandar consertar o microscópio, jun tar diferentes departamentos e comprar um computador ou melhorar o sistema elétrico para evitar panes, por exemplo.
uma avaliação indicativa, mas como era um exame universal e todos os alunos tinham que fazer no final do semestre, criou-se um instrumento para ver qual é o aproveitamento dos estudantes. O Provão teve um efeito positivo. As ins tituições de ensino superior passaram a se preocupar com o resultado do exame e davam aula de reforço para o aluno poder fazer o exame. Houve um esforço real de melhoria da qualidade do ensino. Quem tinha boa avaliação fazia anúncios sobre sua classificação e aumentava o número de alunos enquanto as muito ruins perdiam estudantes.
Nos anos 1990 houve um crescimento do setor privado, não necessariamente com qualidade...
Como avalia o programa Universidade para Todos, o Prouni? Não é uma ideia ruim, mas salvou da falên cia as instituições que estavam perdendo alunos por causa do Provão. No Prouni, uma instituição privada aumenta em 10% o número de alunos sem contratar novo profes sor, nem mudar as turmas ou o programa, sem aumentar as salas de aula, e tem um enor me abatimento no custo com isenção de impostos. Acho possível uma colaboração das instituições governamentais com as particulares. Mas teria que privilegiar as que dessem um bom ensino. O pior é que não se sabe quanto custa. Es se foi um dos problemas cru ciais do PT na condução da educação. No MEC, eu mesma coordenei o projeto do Fun def [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério]. Sabia-se exatamente quanto ia para cada aluno no Brasil inteiro. O projeto é inteiramente transparente. Já o Fundo que o substituiu tem diversas fontes e vai desde a pré-es cola até o ensino médio. A distribuição entre esses níveis de ensino é precária. Nunca descobri como é feito esse cálcu lo. O Prouni exige pouco da instituição. O mesmo aconteceu com o programa de crédito educativo. Tem instituições pri vadas que sobrevivem à custa disso. Tem 70% de alunos com crédito educativo. O Estado paga a mensalidade e o aluno fica devendo ao Estado. A instituição não tem nenhuma obrigação. Nunca houve tantas benesses para o setor privado. n
O Prouni salvou da falência instituições privadas que estavam perdendo alunos por causa do Provão
Como a senhora respondeu? Expliquei que não estava interferindo na universidade, mas na duração das bolsas da Capes. Nada impedia que a universi dade, ela própria, desse mais dois anos de bolsa, se quisesse. As bolsas não são da universidade. São da Capes. Também na Capes, me orgulho de ter inventado a então chamada “taxa de bancada”. Não sei como se chama hoje, embora tenha si do mantida. Quando assumi, os cursos de pós-graduação estavam à míngua. Todo o dinheiro para a pesquisa do orçamento da Capes tinha sido cortado. Então inventei a taxa de bancada, porque descobri que a coisa que não se pode cortar é a bolsa. O valor da bolsa foi acrescido como taxa de bancada para o curso, para ajudar o
A questão é que as instituições privadas atendem a uma demanda de massa. Se você não atende à demanda de massa no ensino público, o setor privado cres ce. Não precisou nunca de um estímulo governamental. Uma avaliação baseada simplesmente na análise dos programas, como se faz para o reconhecimento dos cursos, não adianta nada. Tudo o que vo cê exige no papel elas fazem. O problema é o professor, seu regime de trabalho, como e quanto recebe, sua competência real. Para muitas áreas do conhecimen to, como direito, por exemplo, não é tão importante se têm doutorado, mas se têm experiência e se os alunos aprendem. Es se é o problema e ele foi assumido pelo ministro Paulo Renato com o Provão. Era
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política c&T Instituição y
Biodiversidade no interior Instituto de Biociências em Rio Claro é referência em pesquisa na Unesp
O
campus da Universidade Estadual Paulista (Unesp) no município de Rio Claro, a 180 quilômetros de São Paulo, tornou-se referência internacional em pesquisas sobre a biodiversidade. Estudos realizados por biólogos, zoólogos e ecólogos da instituição sobre temas como a diversidade dos anfíbios brasileiros, os efeitos do empobrecimento da fauna na saúde das florestas tropicais e a busca de antídotos para venenos de abelhas e vespas envolveram colaborações internacionais de alto nível e foram publicados em revistas científicas de alto impacto. “Começamos, nos anos 1950, com estudos pioneiros sobre insetos sociais e levantamentos sobre a fauna e a flora, mas conseguimos diversificar nossos interesses e nuclear grupos que trabalham na fronteira do conhecimento”, diz Claudio J. Von Zuben, atual diretor do Instituto de Biociências (IB) da Unesp em Rio Claro, unidade que abriga estas linhas de investigação e reúne mais de uma centena de docentes. 30 z abril DE 2016
A trajetória do biólogo Mauro Galetti, professor do Departamento de Ecologia do IB, resume um pouco a evolução da pesquisa em Rio Claro. Desde a graduação, no final dos anos 1980, Galetti se dedica a investigar interações entre animais e plantas. Com mais de 150 artigos publicados em revistas indexadas, ele estuda como o declínio da população de animais, provocado pela ação humana, pode ter efeitos tão sérios para a floresta quanto os do desmatamento, ao interferir na dispersão de sementes e na polinização. Nos últimos oito anos, publicou artigos sobre tais interações na revista Science, em parceria com cientistas de outros países. O primeiro deles, de 2008, abordou as consequências da extinção de grandes animais, a chamada megafauna. “Fizemos uma revisão sobre os maiores vertebrados extintos em ilhas oceânicas e constatamos que a extinção da megafauna é contínua e atinge até mesmo animais que não são muito grandes, mas em determinado ecossistema são os maiores”, diz
Fotos divulgação unesp
Fabrício Marques
Esta é a segunda reportagem de uma série sobre os 40 anos da Universidade Estadual Paulista, a Unesp
Prédio do Instituto de Biociências, estudos com formigas e laboratório do curso de Biologia: grupos de pesquisa com interesses diversos
Galetti. “Ou seja, continuamente, sempre o maior vertebrado disponível está sendo eliminado pelos seres humanos.” “Outro artigo, publicado em 2013, é quase a minha história de pesquisa”, define o pesquisador. Nesse trabalho, Galetti e seus colegas e alunos demonstraram que a extinção de grandes animais comedores de frutos acarreta uma mudança evolutiva no tamanho das sementes do palmito jussara. “Estudamos quem se alimenta dos frutos do palmito jussara, se a semente germina ou não, qual o tamanho de cada ave que dispersa e notamos que, em locais onde os grandes dispersores foram extintos, as sementes são menores”, diz ele, que começou a analisar os dados quando fazia um estágio sabático de 18 meses em Stanford, com financiamento da FAPESP e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), entre 2007 e 2009. “Esse estágio foi um ponto de inflexão na minha carreira. Ali, conheci laboratórios de ponta e as pessoas que lideram
as pesquisas no mundo em ecologia, mudanças climáticas e serviços ecossistêmicos. Quando retornei ao Brasil, montamos diversos projetos com alunos de iniciação científica, mestrado e doutorado da Unesp para preencher lacunas da pesquisa e torná-la completa”, diz o pesquisador. “Temos toda criatividade e competência para fazer ciência de ponta”, complementa Galetti. Graduado em biologia e mestre em ecologia pela Unicamp, Galetti fez doutorado na Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e chegou à Unesp em 1997 como beneficiário do programa Jovens Pesquisadores em Centros Emergentes, da FAPESP. “A Fundação tinha acabado de criar o programa e fui um dos primeiros a receber. Estava fazendo um estágio de pós-doutorado na Indonésia pela Universidade de Cambridge, mas voltei para nuclear um grupo de pesquisa junto com a professora Patrícia Morellato”, conta. Ele montou um laboratório de interações entre animais e plantas no Departamento de Botânica pESQUISA FAPESP 242 z 31
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Pesquisa com abelhas, Jardim Experimental, e sapos Dendropsophus minutus, espécie mapeada em projetos sobre anfíbios anuros da Mata Atlântica
fotos 1 e 2 divulgação unesp 3 célio haddad
“A influência do professor e, em 1998, fez concurso para Kerr com o estudo de abelhas uma vaga de docente no Dedesdobrou-se em outros inpartamento de Ecologia, onde Atração de setos sociais, como formigas, trabalha até hoje. jovens cupins e vespas, e mais tarde A pesquisa no IB remonenvolveu a área de bioquímica, ta aos anos 1950, com a criapesquisadores no estudo dos venenos”, diz ção pelo governo do estado Mario Sergio Palma, coordeda Faculdade de Filosofia, com bons nador do Laboratório de BioCiências e Letras de Rio Clalogia Estrutural e Zooquímica ro, que oferecia, entre outros, currículos teve do Ceis e um dos responsáveis um curso de História Natural. reflexo na pelo desenvolvimento do soro Logo se tornou referência no contra o veneno de abelhas. estudo de insetos que se orprodução Professor do IB desde meados ganizam em sociedade, como dos anos 1970, Palma começou abelhas, formigas, vespas e científica, diz a trabalhar com a bioquímica cupins, por força do interesde venenos de vespas e tesse pelo tema de pesquisadoCélio Haddad temunhou o crescimento da res contratados para lecionar pesquisa na instituição. “Cona faculdade. Aconteceu em mecei na Unesp há 38 anos, Rio Claro, em 1956, um famoso incidente no qual espécimes da abelha Apis trabalhando numa pequena cozinha de 6 memellifera scutellata, trazidas da África pelo pro- tros quadrados.” Hoje, a infraestrutura do centro fessor Warwick Kerr, escaparam de uma área conta com sete laboratórios (formigas urbanas, restrita num hortoflorestal e, dali, espalharam- formigas cortadeiras, abelhas, cupins, microbio-se pelo Brasil. A espécie, agressiva, fabrica mel logia, zooquímica e evolução molecular), que com grande produtividade e se adaptou muito ocupam uma área de mais de 1.300 metros quabem ao país. Mais de meio século depois, em drados. “Temos um dos melhores laboratórios 2010, pesquisadores do Centro de Estudos de de espectroscopia de proteínas na América LaInsetos Sociais (Ceis), vinculado ao IB, obtive- tina, voltado para a pesquisa com abelhas, formiram a primeira patente para um soro capaz de gas e vespas”, diz Palma. “Trabalhamos com 70 neutralizar os efeitos do veneno da Apis melli- alunos de iniciação científica, mestrado e doufera scutellata, num estudo em parceria com a torado usando pouquíssimos recursos humanos Universidade de São Paulo (USP) e o Instituto da universidade, com apenas quatro funcionáButantan iniciado em 2000 (ver Pesquisa FA- rios. Nós mesmos cuidamos da manutenção e PESP nº 153). O soro ainda não está disponível os grupos que conseguem aprovar um projeto comercialmente, mas o Instituto Butantan se de pesquisa ajudam momentaneamente os que estão sem financiamento.” prepara para iniciar a produção.
Ao longo do tempo, os interesses da instituição foram se ampliando. Em 1976, a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras desmembrou-se em duas unidades, o Instituto de Geociências e Ciências Exatas e o Instituto de Biociências, que se tornaram parte da Unesp. Neste ano, o IB criou o primeiro curso de graduação em ecologia do país. Hoje, além desse, oferece cursos em ciências biológicas, educação física e pedagogia e sete programas de pós-graduação. Mauro Galetti lembra que, em 2008, diante da oportunidade de contratar docentes para o Departamento de Ecologia, se discutiu quais seriam as linhas de pesquisa do futuro nesse campo do conhecimento. “Conseguimos contratar pessoas competentes em áreas como mudanças climáticas, ecologia molecular e ecologia da paisagem, que foram fundamentais para dar um novo rosto para nossa pós-graduação”, afirma. renovação 2
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Para Célio Haddad, professor do Departamento de Zoologia, a evolução da pesquisa no IB também se explica pela estratégia de atrair pesquisadores de outras instituições para investir em linhas nas quais a instituição não tinha expertise. “É comum uma certa endogamia nas universidades brasileiras e, no passado, muita gente formada no instituto continuava aqui. Mas em vários departamentos houve renovação, com a atração de jovens pesquisadores com bons currículos e isso teve um reflexo tanto na produção científica quanto na capacidade de captar recursos para pesquisa”, conta. Haddad chegou a Rio Claro no final dos anos 1980. Egresso da Unicamp, sua missão era trabalhar com anfíbios, uma área de investigação ainda inexplorada no IB. “Criei o grupo de pesquisa no Departamento de Zoologia em 1988. No começo foi muito difícil. Eu ainda não tinha o doutorado e arrumar financiamento era complicado”, recorda-se. Entre 1996 e 2000, Haddad foi beneficiário do
programa Jovens Pesquisadores, o que lhe permitiu adquirir equipamentos e ampliar as condições de fazer pesquisa. O foco principal de sua pesquisa são os anuros, ordem de animais que inclui sapos, rãs e pererecas, cuja taxonomia e comportamento serviram de mote para mais de 280 trabalhos publicados em revistas indexadas. Sua coleção científica, a terceira maior do Brasil, tem cerca de 30 mil exemplares e 700 espécies de anfíbios. Ele próprio já descreveu mais de 50 espécies de sapos, rãs e pererecas, além de gêneros e famílias desses animais. Em 1997, passou um ano fazendo um estágio de pós-doutorado na Universidade da Califórnia, em Berkeley, e em 2013 realizou estágio sabático na Universidade Cornell, ambos com financiamento da FAPESP. Nesses estágios internacionais conheceu pesquisadores estrangeiros que hoje fazem parte de sua rede de colaboradores. Mantém parcerias longevas com colegas das universidades de Cornell e da cidade de Nova York, nos Estados Unidos, além de colaborações com pesquisadores de instituições na Argentina e Alemanha. Frequentemente recebe doutorandos e estagiários de pós-doutorado de vários países em seu laboratório, interessados em estudar a riqueza da fauna brasileira (ver Pesquisa FAPESP nº 179). Em 2006, Haddad participou de uma iniciativa internacional que mudou a classificação dos anfíbios: o Amphibian Tree of Life, publicado em 2006 no boletim do Museu Americano de História Natural. Já liderou alguns projetos temáticos que, em comum, dedicaram-se a descrever a diversidade de anfíbios do país. Ultimamente, vem testando uma nova técnica, conhecida como DNA ambiental, voltada a verificar se espécies consideradas extintas eventualmente mantêm exemplares escondidos na natureza. São coletadas amostras de água de riachos onde as espécies deixaram de ser vistas. As amostras são purificadas e enviadas para a França, em busca de vestígios de material genético. “Se for encontrado material genético de espécies que desapareceram, isso pode significar que elas persistem em baixas densidades e não estamos sendo capazes de encontrá-las”, diz. A produção dos pesquisadores do IB-Unesp foi turbinada, há alguns anos, pela melhoria da infraestrutura. A construção de novos prédios para alguns departamentos do instituto, entre 2009 e 2014, é apontada como um marco na capacidade de fazer pesquisa. “Todos os docentes têm sala individual, com laboratórios anexados. E há laboratórios de uso comum em ecologia molecular, informática e ecologia da paisagem”, diz Mauro Galetti. “Isso é fundamental porque temos muitos alunos de ecologia e biologia, cuja criatividade era tolhida pelo tamanho modesto dos laboratórios.” Hoje cada docente trabalha com vários bolsistas de iniciação científica, mestrado e doutorado, e há lugar para todos. n pESQUISA FAPESP 242 z 33
Internacionalização y
Um polo ao norte Instituto de física teórica em Natal ganha sede e vai promover eventos de longa duração com cientistas de vários países
N
atal, capital do Rio Grande do Norte, deu um passo para se consolidar como polo internacional de pesquisa em física teórica. A inauguração em março da sede do Instituto Internacional de Física (IIF), no campus da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), promete estimular trabalhos e parcerias na fronteira do conhecimento, ao reunir pesquisadores de todas as partes do mundo em eventos com até três meses de duração. A área construída de 4 mil metros quadrados dispõe de um auditório de 150 lugares, duas salas para seminários, um laboratório de computação de alto desempenho e escritórios para o staff da instituição e dezenas de convidados. “Agora temos gabinetes de trabalho para abrigar até 70 pesquisadores. Isso é fundamental para receber bem os físicos do Brasil e do exterior, ampliar a circulação de ideias e pavimentar colaborações”, afirma o físico Álvaro Ferraz, professor da UFRN e diretor do instituto. O IIF foi fundado em 2010 e funcionava numa casa alugada, nas imediações do campus da universidade. Suas atividades anuais, definidas pelo seu Conselho As34 z abril DE 2016
sessor Internacional, do qual participam dois detentores do Prêmio Nobel de Física, entre outros pesquisadores do país e do exterior, compreendiam cerca de uma dezena de workshops e reuniões internacionais com uma ou duas semanas de duração sobre temas relacionados à fronteira da física, como Teoria de Cordas, turbulência, átomos frios, informação quântica, supercondutividade de altas temperaturas, e aconteciam no Departamento de Física Teórica e Experimental da UFRN ou em auditórios alugados de hotéis da cidade. Agora, com a nova sede, a intenção é promover encontros mais robustos. “A mais recente reunião do Conselho Assessor Internacional sinalizou que teremos encontros de longa duração, alguns com até três meses”, afirma Ferraz. “Eu já me beneficiei bastante dos eventos do instituto, que têm sempre pesquisadores do mais alto nível tratando de temas na fronteira do conhecimento”, conta Mucio Continentino, representante do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) no Conselho Assessor Internacional do IIF. “Com eventos mais longos, a expectativa é de que promova um intercâmbio maior”,
diz o pesquisador. A reitora da UFRN, Ângela Cruz, ressalta o impacto que o instituto promoveu na universidade. “Só nos últimos anos o IIF trouxe à UFRN cerca de 300 cientistas, 900 estudantes de pós-graduação e realizou 32 eventos científicos de caráter internacional. A esses resultados acrescente-se a promoção de cerca de 100 seminários de pesquisa e o crescimento de publicações de repercussão internacional”, afirma. fontes de inspiração
A ideia de fundar o IIF surgiu no final da década de 2000, como uma sugestão do então ministro da Ciência e Tecnologia, o físico Sérgio Rezende. Ele propôs a criação de um instituto que, embora vinculado a uma universidade, tivesse o status de entidade autônoma associada ao ministério. Com isso, ganharia orçamento próprio e capacidade de patrocinar tanto os eventos como o salário de pesquisadores de alto nível, recrutados, em muitos casos, em outros países. As fontes de inspiração eram centros de física teórica como o Instituto Kavli de Física Teórica, em Santa Bárbara (EUA), o Instituto Yukawa, vinculado à Univer-
fotos Cyro Lucas Souza / IIF
Nova sede (acima) tem gabinetes para até 70 pesquisadores. À esquerda, o estagiário de pós-doutorado Fabio Novaes conversa com o professor Dmitry Melnikov
sidade de Kyoto (Japão), ou o Centro Internacional de Física Teórica – ICTP, em Trieste (Itália). Em comum, tais centros promovem eventos que envolvem pesquisadores de vários países. O corpo de pesquisadores permanentes do IIF ainda está em formação. Além de Álvaro Ferraz, há outros dois líderes de pesquisa: o russo Dmitry Melnikov, especialista em Teoria de Cordas, e o italiano Pasquale Sodano, físico estatístico. Completam o quadro o russo Mark Minieev-Weinstein, pesquisador visitante, e 11 pós-doutorandos de várias nacionalidades. Dezessete cientistas de outros países mantêm relação com o IIF e passam temporadas anuais de até três meses na instituição, participando de eventos.
A relação do instituto com o curso de física da UFRN começa a se intensificar. “Até o ano passado, eu só havia orientado um aluno de doutorado. Neste ano já comecei a orientar dois alunos de doutorado e um de mestrado”, afirma Dmitry Melnikov, pesquisador do IIF desde 2010. “A distância entre a antiga sede e o campus da universidade atrapalhava.” Melnikov organizou no instituto, em 2013, um grande evento internacional sobre Teoria de Cordas e se prepara para promover mais um. Também coordenou encontros em que reuniu todos os pesquisadores e estudantes de universidades da região Nordeste interessados na área de pesquisa. O pesquisador russo se graduou numa universidade de Mos-
cou em 2003 e é PhD pela Universidade Rutgers, nos Estados Unidos. “Ouvi falar no IIF pela primeira vez quando fazia um estágio de pós-doutorado na Universidade de Tel Aviv, em Israel, e procurava um novo lugar para trabalhar. Resolvi concorrer a uma vaga de pesquisador visitante e fui selecionado em 2010”, conta Melnikov. Em breve, três novos professores devem integrar-se aos quadros do instituto, depois de passarem por um processo de seleção de que participaram 99 candidatos. Dois são brasileiros: Rodrigo Pereira, pesquisador da área de Teoria da Matéria Condensada, oriundo do Instituto de Física de São Carlos da USP; e Rafael Chaves, que está na Alemanha e é especialista em informação quântica. Outro que chegará ao IIF é o italiano Riccardo Sturani, atualmente pesquisador do Instituto Sul-americano para Pesquisa Fundamental/Centro Internacional de Física Teórica (ICTP-SAIFR, na sigla em inglês), da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Sturani é vinculado ao Observatório Interferométrico de Ondas Gravitacionais (Ligo), nos Estados Unidos, que recentemente registrou pela primeira vez a passagem de ondas gravitacionais pela Terra (ver Pesquisa FAPESP nº 241). “Meu contrato com o ICTP-SAIFR termina em 2017 e comecei a procurar uma nova posição. O instituto em Natal me interessou porque tem cada vez mais visibilidade internacional”, afirma. Para se consolidar, o IIF tem obstáculos a enfrentar relacionados a seu financiamento. A ideia é torná-lo um instituto autônomo com recursos garantidos pelos ministérios da Ciência, Tecnologia e Inovação e da Educação. Segundo Álvaro Ferraz, cogita-se uma nova personalidade jurídica para o instituto, que pode se tornar uma organização social, e assim diversificar suas fontes de financiamento. “Torcemos para que a crise econômica do país não demore a se resolver”, afirma Ferraz. n Fabrício Marques pESQUISA FAPESP 242 z 35
legislação y
Expectativa de mudança Lei da Biodiversidade cria novas regras para pesquisadores e empresas, mas regulamentação atrasa
Bruno de Pierro
U
m impasse burocrático criou um obstáculo inusitado para cientistas e empresas que fazem pesquisas com material genético de organismos terrestres e marinhos – plantas, animais, algas e microrganismos – provenientes da biodiversidade brasileira. Há cinco meses eles estão impedidos de enviar amostras para estudos no exterior ou publicar resultados científicos desses materiais. Ocorre que a nova Lei da Biodiversidade (nº 13.123) entrou em vigor em novembro de 2015, mas sua regulamentação atrasou. Isso gerou um vazio jurídico, impedindo que órgãos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) apreciem pedidos para envio de amostras de pesquisas em curso, como faziam anteriormente. Novas autorizações para iniciar pesquisas também estão suspensas. “Interromperam, do dia para a noite, o nosso trabalho. É inadmissível que não
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se tenha pensado em regras para a transição de uma legislação para outra”, afirma Luís Fábio Silveira, curador de coleções ornitológicas do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP). Em dezembro, ele recebeu um comunicado do Ibama negando solicitação para enviar amostras de tecidos de aves a um laboratório nos Estados Unidos, no qual seria feito o sequenciamento genético do material. O órgão justificou que está sem amparo legal para emitir licenças. O problema aconteceu depois que o governo optou por fazer consultas informais sobre o decreto de regulamentação após a sanção da lei, em maio de 2015. As sugestões recolhidas foram consolidadas num texto apresentado em novembro, às vésperas da data em que a lei entrou em vigor. O decreto, porém, teve pontos contestados pelo Ministério Público e entidades da comunidade científica e dos ambientalistas e seu texto foi recolhido. Uma nova proposta foi aberta somente em abril para consulta pública até o dia
fotos eduardo cesar e léo ramos
2 de maio. “Esse problema poderia ter sido evitado se o governo tivesse aberto a consulta pública formal no dia seguinte à sanção da lei e discutido todas as sugestões previamente, já que ela tinha 180 dias para entrar em vigor. Dessa forma, no dia seguinte à entrada em vigor da nova lei, a regulamentação já estaria publicada”, diz Bruno Sabbag, professor de direito ambiental da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Não se pensou em manter a legislação anterior, porque havia muitos problemas na sua aplicação. Tinha pedido de autorização de empresas tramitando há anos por conta da burocracia excessiva.” Quando houver regulamentação, instituições de pesquisa e empresas terão novas regras para realizar estudos com a biodiversidade brasileira. Já é possível destacar um conjunto de mudanças que deverá afetar o trabalho de pesquisadores e empresas que dependem do acesso ao patrimônio genético, como indústrias farmacêuticas e de cosméticos. Povos in-
dígenas, pequenos agricultores e comunidades tradicionais, como os quilombolas, também serão afetados pela lei. Isso porque eles podem ser detentores dos chamados conhecimentos tradicionais, isto é, de informações e práticas relacionadas ao uso de espécies nativas, como plantas com propriedades medicinais, e serão recompensados pelo seu uso. A principal novidade da lei é que, para ter acesso ao material biológico de espécies, passa a ser necessário apenas um cadastro eletrônico do pesquisador ou da empresa, que deverá ser realizado nas etapas mais avançadas da pesquisa, isto é, antes da remessa de material ao exterior, do requerimento de direito de propriedade intelectual, da comercialização do produto ou da divulgação de resultados em meios científicos ou de comunicação. A legislação anterior, uma medida provisória de 2001, obrigava o pesquisador ou a empresa a fazer solicitação prévia a órgãos como o Ibama e o CNPq e, sem tal autorização, não era
possível iniciar a pesquisa. “Ao desburocratizar o acesso à biodiversidade, a medida deverá agilizar o processo de desenvolvimento de novos produtos”, diz Elisa Romano, especialista em política e indústria da Confederação Nacional da Indústria (CNI), uma das instituições que representaram o setor empresarial durante a elaboração da lei. A medida atende a um pleito antigo da comunidade científica e das empresas, que nos últimos tempos trabalharam sem seguir à risca a legislação. “Isso aconteceu devido às dificuldades impostas pela medida provisória de 2001 e pela insegurança jurídica que ela causava”, explica Elisa Romano. Em alguns casos, empresas tiveram de pagar multas vultosas. Em 2010, por exemplo, a empresa de cosméticos Natura foi autuada em R$ 21 milhões por uso da biodiversidade sem autorização. “O cadastro representa um avanço. Será possível iniciar uma pesquisa sem a necessidade de aguardar a permissão de algum órgão público”, pESQUISA FAPESP 242 z 37
O que muda com a nova Lei da Biodiversidade
mento cuja origem pode ser atribuída a uma comunidade. A autorização poderá ser feita por escrito, assinada por um representante da comunidade, ou por meio de recursos audiovisuais, com um depoimento gravado em vídeo do representante dando anuência. Caberá ao Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), ligado ao MMA, fiscalizar a autorização e a distribuição da compensação financeira. Compensação econômica
Cadastro Para ter acesso a material biológico
Consentimento prévio
de espécies, passa a ser necessário apenas um cadastro eletrônico do pesquisador ou da empresa. Ele será exigido antes da
Cientistas e empresas serão
remessa de material ao exterior,
obrigados a pedir
do requerimento de direito
autorização a povos
de propriedade intelectual, da
indígenas e comunidades
comercialização do produto ou da
tradicionais quando a
divulgação de resultados em meios
espécie a ser estudada
científicos ou de comunicação
estiver associada a um conhecimento cuja origem for atribuída a eles
Compensação Como regra geral, a empresa deverá depositar 1% da receita líquida do produto no Fundo Nacional de Repartição de Benefícios. Mas, caso a espécie estiver associada a um conhecimento tradicional, a empresa deverá negociar uma compensação diretamente com os povos indígenas ou comunidades envolvidos. Além disso, terá de repassar 0,5% da receita líquida do produto ao fundo
avalia Helena Nader, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). O texto da regulamentação prevê a criação do Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético (SISGen), vinculado ao Ministério do Meio Ambiente (MMA), que será responsável, entre outras funções, por gerenciar o cadastro. “O objetivo é simplificar a pesquisa e facilitar a fiscalização dos cadastrados”, 38 z abril DE 2016
diz Rafael Marques, diretor do Departamento de Patrimônio Genético do MMA. Outra exigência é que, em certos casos, cientistas e empresas serão obrigados a pedir autorização diretamente a povos indígenas e comunidades tradicionais envolvidos antes de começar a fazer uma pesquisa com o patrimônio genético. Isso será feito apenas quando for possível identificar que uma espécie a ser estudada está associada a um conheci-
A lei traz também novas diretrizes referentes à repartição de benefícios. Como regra geral, a empresa deverá depositar 1% da receita líquida do produto no Fundo Nacional de Repartição de Benefícios. O dinheiro será distribuído pela União a povos indígenas e comunidades tradicionais. Mas, caso a espécie estudada estiver comprovadamente associada a um conhecimento tradicional, a empresa terá de negociar uma compensação diretamente com o grupo que detém esse conhecimento. Além disso, terá de repassar 0,5% da receita líquida do produto ao fundo. Estão isentos de compensação econômica fornecedores de produtos intermediários, como insumos e matérias-primas, microempresas, microempreendedores individuais e pesquisadores. Elisa Romano, da CNI, explica que a lei permite que a compensação seja feita sem envolver dinheiro. “A empresa pode fazer um acordo com a comunidade tradicional e transferir a ela alguma tecnologia. São possíveis ainda outras formas de cooperação entre as partes envolvidas, como capacitações e projetos de conservação da biodiversidade”, diz. Vanderlan Bolzani, professora do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Araraquara, e membro da coordenação do Programa Biota-FAPESP, destaca o fato de a lei exigir que apenas empresas, e não os pesquisadores, façam a repartição de benefícios. “A pesquisa básica será beneficiada, por exemplo, em estudos da estrutura molecular de plantas. A ciência não acessa a biodiversidade apenas para fins econômicos”, explica. Outras questões ainda dependem da regulamentação da lei para serem definidas. A proposta apresentada inicialmente pela Casa Civil, feita pelo MMA após consultas públicas, preocupa diversas entidades. A SBPC, por exemplo, queixa-
“A pesquisa básica será beneficiada. A ciência não acessa a biodiversidade só para fins econômicos”, diz Vanderlan Bolzani
foto eduardo cesar ilustraçãO bit.ly/1NbQS1M
-se do ponto que obriga o pesquisador a fazer um cadastramento prévio, junto ao governo brasileiro, se quiser utilizar bancos de dados públicos de sequências de DNA e de proteína do exterior, como o GenBank. “Em nenhum outro país exige-se que o pesquisador faça um cadastro para utilizar informações de bancos internacionais públicos”, diz Beatriz Bulhões, especialista em política científica e representante da SBPC no Congresso Nacional. A SBPC também é contrária à criação do SISGen, que está previsto na regulamentação, mas não era citado na lei. E defende que o novo cadastro seja centralizado no CNPq. “Já existe hoje uma plataforma do CNPq na qual são registradas as pesquisas com biodiversidade. Bastaria apenas ampliá-la, em vez de se criar um sistema do zero. Isso vai gerar custos desnecessários à administração pública”, observa Helena Nader. Rastreamento
Organizações não governamentais, como o Instituto Socioambiental (ISA), também têm restrições à proposta. O argumento é de que a nova legislação e o decreto que a regulamentaria excluem questões de interesse de povos indígenas e comunidades tradicionais. Pela lei, se uma empresa encontrar uma aplicação inovadora de uma planta medicinal que não tenha relação com o uso feito pela
Árvore de copaíba no Instituto de Botânica em São Paulo: planta é usada há séculos para tratar ferimentos na pele
comunidade tradicional, não precisaria dar compensação alguma. O ISA defende uma compensação mais abrangente. “Nesses casos, as comunidades tiveram um papel no manejo da espécie, sem o que ela não estaria disponível para exploração”, diz Nurit Bensusan, coordenadora adjunta de Política e Direito do ISA. O ISA também propõe que se invista em iniciativas para rastrear com eficiência a origem do conhecimento tradicional para produzir compensações mais justas. O problema é que esse conhecimento, com frequência, difundiu-se por várias comunidades. “No caso de povos mais antigos, costuma ser difícil
rastrear a origem exata do conhecimento”, diz Maria das Graças Lins Brandão, coordenadora do Centro Especializado em Plantas Aromáticas, Medicinais e Tóxicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ela cita o exemplo de uma árvore típica do Cerrado, o barbatimão, cuja casca é rica em uma substância utilizada para tratar feridas e doenças da pele. “A bibliografia antiga mostra que esse conhecimento era compartilhado por várias populações que viviam no Cerrado. Não há registros suficientes para determinar a origem exata de quem começou a explorar o barbatimão”, explica. n pESQUISA FAPESP 242 z 39
Comunicação científica y
Atalho para chegar ao paper Ferramenta ajuda a encontrar artigos em acesso aberto ou cópias gratuitas de manuscritos publicados em revistas comerciais
U
ma nova plataforma on-line foi criada para ajudar a encontrar artigos científicos divulgados em acesso aberto ou cópias gratuitas de papers publicados em periódicos comerciais. O DOAI (sigla em inglês para Identificador Digital de Acesso Aberto), disponível no endereço doai.io, é um serviço capaz de rastrear a existência de versões disponíveis na internet de trabalhos científicos. É preciso fornecer o código identificador do artigo desejado, no padrão conhecido como DOI, para que a ferramenta mostre, quando existirem, versões armazenadas em coleções de universidades ou perfis de seus autores. O banco de dados que alimenta o DOAI é o Base, da Universidade de Bielefeld, na Alemanha, que indexa quase 90 milhões de registros de 4 mil repositórios acadêmicos e outras fontes de acesso aberto no mundo inteiro. “A abrangência é impressionante”, disse Roger Schonfeld, diretor da Ithaca S+R, empresa de comunicação científica, em seu blog no portal The Scholarly Kitchen. “E a busca parece não privilegiar canais oficiais, como grandes repositórios de acesso aberto”, diz ele, que encontrou na
40 z abril DE 2016
plataforma textos de sua autoria indexados no repositório de uma biblioteca da Universidade do Norte do Texas. A quantidade de artigos científicos disponíveis na internet é crescente. Estima-se que 40% dos papers sejam publicados atualmente em regime de acesso aberto. Esse quinhão é maior quando se analisa o universo de artigos publicados no passado. Ocorre que um conjunto cada vez maior de manuscritos migra ao longo do tempo do acesso fechado, em que só podem ser vistos por assinantes das revistas que os publicaram, para o acesso aberto, em que são franqueados na internet. Um estudo divulgado em 2013 pela União Europeia mostrou que 50% de todos os artigos publicados entre 2004 e 2011 estavam naquele momento disponíveis gratuitamente. Um dos méritos da ferramenta DOAI é difundir os artigos em acesso aberto sem exigir que o usuário compreenda as regras e a terminologia que regem esse modelo. O acesso aberto se divide em duas grandes vertentes. Uma delas é a “via dourada” (golden road), aquela em que os periódicos são abertos e oferecem o acesso gratuito a seu conteúdo. Entre os exemplos
dessa estratégia destacam-se as revistas da Public Library of Science (PLoS) ou a coleção de periódicos da biblioteca SciELO Brasil, um programa financiado pela FAPESP. A segunda vertente é conhecida como “via verde” (green road). Nessa modalidade, um autor é autorizado a arquivar no banco de dados de sua instituição ou em seu perfil profissional uma cópia de seus artigos científicos publicados numa revista comercial. Quem quiser ler o artigo sem pagar pode recorrer a esses repositórios – e a maioria deles está no banco de dados do DOAI. Há diversas outras variantes. Algumas publicações permitem que os autores depositem cópias de seus artigos em repositórios, mas exigem que a divulgação só seja feita de seis meses a um ano após a publicação, para preservar seus ganhos nesse período inicial. Instituições de apoio, como a Wellcome Trust, fundação britânica de apoio à pesquisa biomédica, e os National Institutes of Health (NIH), dos Estados Unidos, exigem que os pesquisadores financiados por elas disponibilizem seus artigos em bases de dados de acesso aberto, como o PubMed Central, após um ano da pu-
blicação original em revistas científicas de acesso fechado. Outras revistas abrem mão do embargo e divulgam artigos na internet até mesmo antes da publicação do periódico em papel – mas cobram uma taxa adicional do autor para fazer a divulgação livre e antecipada.
ilustraçãO negreiros
difusão
“O sistema de comunicação científica é complexo. O DOAI pode tornar-se uma ferramenta de localização importante, mas ainda é necessário consolidar a plataforma”, diz Abel Packer, diretor do programa SciELO. De acordo com ele, o DOAI ainda não é muito conhecido e é cedo para saber se terá uma aceitação generalizada. “A difusão deve levar um tempo. Se tudo der certo, todos os artigos indexados no SciELO terão código identificador”, diz Packer.
O DOAI é uma alternativa legal ao site Sci-Hub, criado em 2011 pela programadora e estudante do Casaquistão Alexandra Elbakyan e sediado em São Petersburgo, na Rússia. Trata-se de um repositório on-line com 48 milhões de artigos, na maioria com direitos autorais protegidos, que em fevereiro chegou a registrar 200 mil consultas por dia. O funcionamento do Sci-Hub tem semelhanças com o DOAI, além de uma busca mais abrangente, que não se limita ao código DOI. Seu gigantesco banco de dados oferece artigos que foram baixados por meio do uso de senhas cedidas por assinantes e são disponibilizados livremente. A editora acadêmica Elsevier iniciou em 2015 um processo contra a idealizadora do Sci-Hub numa corte em Nova York por violação de direitos autorais, mas encontra dificuldade em
cercear juridicamente uma iniciativa sediada num país distante. "Uma única mulher conseguiu realizar uma colossal disponibilização pública de milhões de artigos antes restritos", diz Moreno Barros, bibliotecário e doutor em História da Ciência pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Para ele, iniciativas como o DOAI e o Sci-Hub indicam que a comunicação científica está mudando num ritmo lento e que o movimento do Acesso Aberto, lançado em 2002 com o objetivo de franquear o acesso à produção científica, teve resultados limitados. “Coletivamente, o esforço de 14 anos para tirar o conhecimento das mãos das editoras, um artigo de cada vez, resultou por ora em 40% de novos artigos livres”, afirma Moreno Barros. n Fabrício Marques e Bruno de Pierro pESQUISA FAPESP 242 z 41
ciência ECOLOGIA y
Impactos vis Poluição à vista: os resíduos que vazaram do reservatório de Mariana formam mancha acastanhada na foz do rio Doce 42 z abril DE 2016
Carlos Fioravanti
Poluentes chegam a 200 km ao norte e ao sul da foz do rio Doce, atingem unidades de conservação, alteram equilíbrio ecológico e se acumulam no assoalho marinho
íveis no mar GABRIELA BILó / ESTADãO CONTEúDO
E
m janeiro deste ano, ao sobrevoarem o litoral do Espírito Santo e do sul da Bahia, biólogos, oceanógrafos e técnicos de órgãos ambientais do governo federal reconheceram os borrões escuros na superfície do mar formados pelo acúmulo de resíduos metálicos que vazaram do reservatório da mineradora Samarco em Mariana, Minas Gerais, em novembro de 2015. A mancha de resíduos, também chamada de pluma, aproximava-se do arquipélago de Abrolhos, uma das principais reservas de vida silvestre marinha da costa brasileira. Os borrões não eram apenas os indesejados resquícios da extração de minério de ferro de Minas Gerais, mas uma de suas consequências, como se verificou logo depois. Em meio às manchas verde-escuro havia colônias de algas e outros organismos marinhos microscópicos – o fitoplâncton – com dezenas de quilômetros de extensão, muito maiores que as observadas nos anos anteriores, de acordo com as análises de pesquisadores da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). pESQUISA FAPESP 242 z 43
Outra peculiaridade é que os organismos cresciam e se multiplicavam rapidamente, em decorrência do excesso de ferro dos rejeitos da mineradora de Mariana que se espalham pelo mar a partir da foz do rio Doce, onde chegaram no final de novembro. Desde então, levados continuamente ao mar pelo rio, os resíduos formam uma mancha móvel que oscila ao longo de 200 quilômetros (km) ao norte e ao sul da foz do rio Doce, que alterou o equilíbrio marinho, como indicado pela massa de fitoplâncton, e atingiu pelo menos três unidades de conservação de organismos marinhos. “As manchas de fitoplâncton são comuns no verão, mas não desse modo”, explica Alex Bastos, professor de oceanografia da Ufes, no final de fevereiro. Análises preliminares indicaram que as colônias de algas são constituídas por organismos que se formam e morrem em poucos dias, mais rapidamente que o habitual. A decomposição acelerada dos organismos consome oxigênio da água do mar, com consequências imprevisíveis sobre as comunidades de organismos marinhos. Além disso, a diversidade de espécies havia sido reduzida quase à metade. Camilo Dias Júnior, com sua equipe de oceanografia da Ufes, encontrou no máximo 40 espécies de fitoplâncton por 44 z abril DE 2016
amostra analisada; antes da chegada dos resíduos os pesquisadores reconheciam de 50 a 70 espécies. A hipótese dos pesquisadores e técnicos é de que já poderia ter ocorrido uma seleção de variedades mais adaptadas ao excesso de ferro trazido com a descarga dos resíduos no mar. Nos sobrevoos do litoral do Espírito Santo e da Bahia, Claudio Dupas, coordenador do Núcleo de Geoprocessamento e Monitoramento Ambiental da Superintendência do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em São Paulo, observou muitos barcos de pesca próximos às manchas de fitoplâncton na foz do rio Doce. Atraídos pela abundância de alimento, o grande número de peixes chamou a atenção dos pescadores. Com base nas análises preliminares da qualidade de água e na observação do cenário, a equipe do Ibama elaborou um relatório técnico alertando sobre alterações na qualidade da água, prejudicada com a descarga de resíduos no mar. Com base no documento e no princípio da precaução – para evitar que a população seja prejudicada pelo consumo de peixes contaminados –, no dia 22 de fevereiro um juiz federal de Vitória proibiu por tempo indeterminado a pesca na região da foz
Em Governador Valadares, MG: a lama ocupou o rio Doce em novembro, prejudicando o abastecimento de água para os moradores da cidade
a mancha móvel A lama oscila ao norte e ao sul, de acordo com os ventos A pluma de resíduos começou a se espalhar em novembro, a partir da foz do rio Doce,
bahia
deslocou-se para o sul em dezembro, chegou a Abrolhos em janeiro e
Abrolhos
à APA Costa das Algas em fevereiro e avançou para além de Vitória, ao sul, em março
ESpírito santo
Limites incertos
Minas gerais
Foz do rio Doce
foto GABRIELA BILÓ / ESTADãO CONTEúDO mapa pedro hamdan
Vitória, ES
ambiente, a vida dos organismos marinhos e dos moradores da região”, diz Dupas. Desde que vazou da barragem de Fundão, em 5 de novembro, até chegar ao mar, a enorme massa de resíduos da extração de minério de ferro causou uma transformação profunda. Destruiu casas e matas às margens do rio Doce, provocando a morte de 18 pessoas e de toneladas de peixes e outros organismos aquáticos. A bióloga Flávia Bottino participou das expedições do Grupo Independente para Análise do Impacto Ambiental (Giaia) ao longo do rio Doce em novembro e observou uma intensa turbidez da água, que dificultava a penetração da luz e a sobrevivência dos organismos. Os biólogos encontraram camarões de água doce que sobreviveram ao desastre, mas os organismos bentônicos, que viviam no fundo do rio, tinham sido soterrados.
APA Costa das Algas
do rio Doce. “Assim que saiu a decisão do juiz, o superintendente do Ibama em Vitória, Guanadir Gonçalves, pediu-me para fazer um mapa com a delimitação da área de proibição, que foi para a internet e para os celulares dos fiscais em campo no mesmo dia”, diz Dupas. Desde janeiro os movimentos da mancha de resíduos podem ser acompanhados por meio de mapas gerados pelo Ibama a partir de imagens de satélites no site governancapelodoce.com.br (aba acompanhamento da pluma do mar), mantido pela Samarco. Já o site siscom.ibama.gov. br/mariana contém imagens de satélite de alta resolução de antes e depois do incidente, da barragem à foz. Os mapas indicam que os resíduos já chegaram a 50 km ao sul de Vitória, capital do Espírito Santo, e atingiram três unidades de conservação do ambiente marinho, o Refúgio de Vida Silvestre de Santa Cruz, a Área de Proteção Ambiental (APA) Costa das Algas e uma das principais áreas de desova da tartaruga-cabeçuda (Caretta caretta), uma faixa de 37 km de praias conhecida como Reserva Biológica Comboios. “Ainda não é possível avaliar o impacto sobre o
A alta concentração de partículas sólidas que absorvem calor pode ter causado o aumento da temperatura da água para cerca de 30º Celsius. “A água do rio estava quente”, ela notou. As análises das amostras de água coletadas em dezembro ao longo de um trecho de cerca de 800 km do rio, realizadas nas unidades das universidades de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, Federal de São Carlos (UFSCar) em São Carlos e Sorocaba, Estadual Paulista (Unesp) em São Vicente, e na de Brasília (UnB), indicaram concentrações elevadas de manganês, ferro, arsênio e chumbo. As chuvas podem agravar a situação ao lavar as margens dos rios, cobertas de resíduos, e transportá-los ao mar. Por meio de coletas realizadas com o navio Vital de Oliveira Moura, da Marinha, a equipe da Ufes verificou que 25 km a leste da foz do Rio Doce os resíduos formam uma camada de 1 a 2 centímetros sobre a lama do fundo do mar, a 25 metros de profundidade. “Está havendo um acúmulo rápido do rejeito no assoalho marinho”, diz Bastos, da Ufes, com base em coletas realizadas desde novembro, logo após o rompimento da barragem (ver Pesquisa FAPESP no 239). “Nem nas maiores cheias o acúmulo de sedimentos no rio no fundo do mar foi tão alto.” No início de fevereiro, em uma reunião dos pesquisadores da Ufes com representantes do Ibama, Instituto Estadual do Meio Ambiente (Iema) e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Bastos comentou que a concentração de ferro no fundo do mar havia aumentado 20 vezes, em comparação com os níveis de antes do acidente, a de alumínio 10 vezes e a de cromo e manganês, cinco. Outro professor da Ufes, Renato Rodrigues Neto, observou que a vazão do rio passou de 300 metros cúbicos por segundo (m³/s), antes do rompimento da barpESQUISA FAPESP 242 z 45
A poluição gerada em terra pode ir muito mais longe do que se pensava ragem, para cerca de 4.000 m³/s, aumentando a quantidade de lama com resíduos metálicos despejada no mar. As imagens de satélite indicam que os resíduos metálicos podem ter chegado até o arquipélago de Abrolhos no início de janeiro, embora, ressalta Dupas, ainda não seja possível diferenciar os sedimentos vindos do rio Doce, a cerca de 200 km de distância, dos do rio Caravelas, que deságua na região. Segundo ele, os resultados das análises em andamento devem ser anunciados em abril. Vários estudos em outras áreas marinhas têm indicado que os resíduos industriais podem ir muito além dos lugares onde foram produzidos, misturar-se com os sedimentos do fundo do mar, aflorando se revolvidos por redes de pesca, ou ser absorvidos por organismos marinhos. Uma equipe do Instituto Oceanográfico (IO) da USP identificou metais pesados (chumbo, cobre e zinco) e compostos orgânicos derivados de petróleo produzidos na zona industrial de Santos e do polo industrial de Cubatão, a 15 km do mar, misturados com a lama do assoalho marinho a uma profundidade de 100 metros e a uma distância de 200 km da costa. Não se pensava que a poluição gerada em terra pudesse chegar tão longe. Condições ambientais
As conclusões ajudam a pensar o que poderia se passar no litoral do Espírito Santo e dos estados vizinhos, à medida que a lama da mineradora se espalha. “Os eventos, a rigor, não têm conexão à primeira vista”, disse Michel Mahiques, professor de oceanografia do IO-USP que coordenou os estudos em Santos. O vazamento da Samarco em Mariana foi um fenômeno agudo, com uma descarga intensa de resíduos, enquanto Santos e outros, como a baía da Guanabara, são casos crônicos, de décadas de liberação contínua de poluentes. “O 46 z abril DE 2016
fato comum”, ele diz, “é que existem porções do fundo marinho nas quais as condições ambientais permitem a deposição de materiais gerados pela atividade humana, ainda que a grandes distâncias”. Em um estudo anterior no litoral de Santos, seu grupo identificou isótopos de césio 137 originários de explosões atômicas ou de usinas nucleares, nas quais esse tipo de material é gerado. “O césio foi transportado pela atmosfera e aderiu a partículas muito pequenas do fundo do mar”, conta. “Podemos chamar esses casos de teleconexões, em que um evento em um determinado ponto do planeta pode afetar regiões muito distantes.” Segundo ele, os casos clássicos são os acidentes das usinas nucleares de Chernobyl em 1986 e de Fukushima em 2011. “Precisamos lançar outro olhar para o potencial de acumulação de material no meio marinho”, comenta Mahiques. Seus estudos indicaram que os poluentes se acumulam principalmente nos cinturões de lama, faixas em geral com 3 a 4 km de largura e dezenas de quilômetros de extensão, na chamada plataforma continental, sobre estruturas antigas de relevo. “Há um efeito a distância. Os sedimentos permanecem em pontos bem distantes da origem. Duzentos quilômetros foi o limite a que chegamos, mas ainda não sabemos se poderiam ir mais longe.” Mahiques argumenta que dois conceitos básicos sobre o funcionamento da plataforma continental deveriam ser revistos. O primeiro é que a quantidade de materiais do continente que chega ao mar seria pequena. O segundo é que os ambientes costeiros retêm a sujeira. “A quantidade não é pequena, nem os estuários são um filtro perfeito dos resíduos gerados no continente.” Os pesquisadores analisaram 21 amostras de sedimentos coletadas em 2005 e outras, mais recentes, reunidas por meio do navio oceanográfico Alpha Crucis. Os resultados indicaram que os níveis de chumbo, zinco e cobre a 100 metros de profundidade a mais de 100 km da costa eram próximos aos encontrados na baía de Santos, embora mais baixos que os limites mais altos do estuário santista, um ambiente próximo à terra que mistura água de rios e do mar. No estuário, a concentração de chumbo no sedimento marinho variava de 9 miligramas por quilograma (mg/ kg) em áreas não contaminadas a 59 mg/kg em amostras do fundo do porto, indicando um aumento de cinco a 10 vezes em comparação com os valores anteriores ao processo de industrialização. Os autores desse trabalho afirmaram que os poluentes industriais misturados com a lama no fundo do mar poderiam facilmente voltar à circulação, como resultado de movimentos intensos da água ou de atividade humana como a dragagem para a ampliação de portos ou a pesca com redes pesadas que revolvem o fundo do mar.
Vila de Mariana devastada pela lama da barragem de Fundão: efeito a mais de 800 km de distância na terra, no rio e no mar
Daniel Marenco / Agência O Globo
Estudos anteriores de pesquisadores do IO-USP já haviam mostrado que a descarga contínua de esgotos domésticos e de poluentes industriais na baía de Santos era provavelmente uma das causas da reduzida diversidade de organismos marinhos na região, em comparação com áreas menos poluídas. Em paralelo, uma equipe da Unesp em São Vicente encontrou níveis acima dos permitidos em lei de quatro metais pesados – cádmio, cobre, chumbo e mercúrio – em amostras de água, sedimento e em caranguejos-uçá dos manguezais dos municípios de Cubatão, Bertioga, Iguape, São Vicente e Cananeia. Nas regiões com maior concentração desses metais, os caranguejos apresentavam uma proporção maior de células com alterações genéticas associadas à ocorrência de malformações (ver Pesquisa FAPESP n o 225). Estudo de uma equipe da Universidade Federal do Rio Grande publicado em novembro de 2015 associou a contaminação por metal como possível causa da fibropapilomatose, uma doença específica de tartarugas marinhas, caracterizada pela formação de tumores benignos sobre a pele, em tartarugas-verde (Chelonia mydas) de Ubatu-
ba, SP, já que os animais examinados apresentavam um nível acima do normal de cobre, ferro e chumbo, em comparação com animais saudáveis. “Quando pensarmos em legislação e políticas públicas, para fazer uma projeção do impacto de eventuais acidentes ambientais, temos de olhar mais longe e rever o conceito de área de influência, já que o efeito pode ser muito maior do que o imaginado”, disse Mahiques. Bastos, da Ufes, observou que os danos ambientais podem ser intensos em consequência de pequenas alterações na concentração de metais na água do mar, mesmo que os limites ainda estejam abaixo dos máximos estabelecidos pela legislação ambiental. n
Artigos científicos FIGUEIRA, R.C.L. et al. Distribution of 137Cs, 238Pu and 239 + 240Pu in sediments of the southeastern Brazilian shelf – SW Atlantic margin. Science of the Total Environment. v. 357, p. 146-59. 2006. MAHIQUES, M. M. et al. Mud depocentres on the continental shelf: a neglected sink for anthropogenic contaminants from the coastal zone. Environmental Earth Sciences. v. 75, n. 1, p. 44-55. 2016. SILVA, C.C. da et al. Metal contamination as a possible etiology of fibropapillomatosis in juvenile female green sea turtles Chelonia mydas from the southern Atlantic Ocean. Aquatic Toxicology. v. 170, p. 42-51. 2016.
pESQUISA FAPESP 242 z 47
48 z abril DE 2016
SAÚDE y
As conexões do zika Equipes no Brasil e no exterior registram evidências de que o vírus causa microcefalia Ricardo Zorzetto e
imagem elizabeth di lullo
Rodrigo de Oliveira Andrade
Zika no minicérebro: receptor AXL (verde), possível chave para o vírus penetrar nas células precursoras (vermelho) do tecido cerebral
N
o final de março, a Organização Mundial da Saúde (OMS) mudou seu discurso sobre a conexão do vírus zika com os casos recentes de microcefalia e outros problemas neurológicos. Em um relatório divulgado no dia 31, afirmou que há um “forte consenso científico” de que o zika causa a microcefalia, condição em que as crianças nascem com a cabeça pequena demais para o tempo de gestação, e a síndrome de Guillain-Barré, degeneração da bai nha de mielina dos nervos que pode causar paralisia. É uma mudança de posição importante, adotada dois meses depois de considerar que havia uma “possível associação” do vírus com esses problemas e declarar situação de emergência de saúde pública de interesse internacional. O reconhecimento da chamada relação de causalidade resulta do acúmulo de dois tipos de evidências. O primeiro tipo é epidemiológico. Desde que foi identificado no país em 2015, o vírus já se disseminou por outros 32 países das Américas, não necessariamente a partir do Brasil, além de alguns da Ásia, da Europa e da África – em seis países a transmissão parece ser exclusivamente sexual. Soma-se a isso o aumento de casos de microcefalia associados à infecção por zika, já registrados em oito países. Até 26 de março, o Brasil reunia o maior número de bebês (944) com microcefalia – o vírus foi detectado em 130 deles. Em segundo lugar, vêm Colômbia e Polinésia Francesa, com oito casos cada uma. O segundo tipo de evidência é biológica. Desde que o assunto ganhou relevância internacional, em novembro
passado, o número de trabalhos científicos sobre zika aumentou exponencialmente. O Pubmed, base de artigos na área biomédica, registrava 218 trabalhos de 1952 a 2015. Apenas em 2016 surgiram outros 307. A causa do aumento é a união de pesquisadores de diferentes especialidades e países em torno de um problema em comum. “Raramente cientistas se engajaram em uma nova agenda de pesquisa com tal senso de urgência”, escreveu a epidemiologista brasileira Laura Rodrigues, da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, em um comentário sobre o tema na Lancet. Um dos estudos que começou a alterar a visão da comunidade científica sobre a causalidade da microcefalia foi conduzido por pesquisadores da Eslovênia. O grupo da virologista Tatjana Avsic-Zupanc, da Universidade de Liubliana, encontrou o vírus e quantificou sua presença no cérebro de um bebê de 8 meses com microcefalia. A mãe da criança havia morado em Natal, no Rio Grande do Norte, onde engravidou em fevereiro de 2015. Três meses depois ela apresentou sinais de infecção por zika – febre, manchas vermelhas pelo corpo, coceira, dores musculares e nos olhos. O terceiro exame de ultrassom, feito na 29a semana de gestação, identificou restrição de crescimento do bebê e tamanho reduzido do crânio. Além da microcefalia, os pesquisadores observaram lesões (calcificações) no cérebro. Publicado em fevereiro no New England Journal of Medicine, o trabalho foi considerado uma das primeiras evidências sólidas da conexão entre o vírus e a microcefalia, embora o virologista brasileiro Pedro Vasconcelos, do Instituto Evandro Chagas, no Pará, já tivesse isolado o vírus do cérebro e de outros tecidos de um bebê com microcefalia do Ceará (ver Pesquisa FAPESP nº 239). De lá para cá, outros estudos acumularam indicações de que o zika transpõe a placenta e infecta o líquido aminiótico, algo que poucos vírus conseguem fazer. A presença do vírus em diferentes tecidos, entretanto, não é suficiente para confirmar a causalidade. Ele poderia estar ali sem causar danos. Dois estudos apresenpESQUISA FAPESP 242 z 49
tados no início de março demonstraram que o zika é capaz de infectar células neurais humanas e matá-las. Em um deles, depositado no dia 2 no repositório Peer J Preprints, pesquisadores do Rio de Janeiro e de São Paulo verificaram que o zika invade e mata as células-tronco precursoras de células neurais. O grupo coordenado por Stevens Rehen e Patrícia Garcez, neurocientistas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor), induziu quimicamente células da pele a se tornar células-tronco pluripotentes, capazes de originar diferentes tecidos, e depois as estimularam a se transformar em células cerebrais. Sob as condições adequadas, essas células se organizam em camadas e geram as neuroesferas e os organoides cerebrais (minicérebros), modelos do cérebro em diferentes estágios de desenvolvimento. As primeiras mimetizam o cérebro de um embrião em um estágio rudimentar; os minicérebros equivalem ao cérebro de um feto de 3 meses. Em laboratório, os pesquisadores infectaram as células-tronco com amostras da linhagem africana do zika, isolada em 1947 e aparentemente distinta da que circula hoje no Brasil, e analisaram como elas se desenvolviam em comparação com células não expostas ao vírus. Após três dias, Rehen e sua equipe observaram que o zika havia comprometido a capacidade das células-tronco de gerar neuroesferas. “As poucas neuroesferas formadas se degradaram em até seis dias, enquanto as originadas de células não infectadas se desenvolveram normalmente”, conta Rehen. Imagens de microscopia eletrônica mostraram que o vírus havia se multipli-
Células-tronco infectadas com zika originaram minicérebros 40% menores que os obtidos de células-tronco sadias
cado rapidamente no interior das células e disparado a morte celular programada (apoptose). E os minicérebros infectados eram 40% menores do que os saudáveis 11 dias após o início dos testes. Além de crescerem menos, eles também eram deformados. Em uma versão estendida do estudo, publicada em abril na Science, o grupo do Rio infectou as células-tronco com o vírus da dengue, geneticamente muito semelhante ao zika e também amplamente disseminado no Brasil. O vírus invadiu as células progenitoras neurais de modo ainda mais eficaz que o zika, mas não causou problemas. “Diferentemente do zika, o vírus da dengue não comprometeu o desenvolvimento das neuroesferas e dos organoides”, afirma Rehen.
Dois dias após o grupo do Rio depositar o trabalho no Peer J Preprints, pesquisadores dos Estados Unidos apresentaram na revista Cell Stem Cell uma confirmação da afinidade do zika pelas células do tecido cerebral. Eles colocaram células-tronco precursoras das células neurais em contato com o vírus e verificaram que, três dias depois, 85% delas estavam infectadas e haviam ativado as vias bioquímicas da apoptose. O experimento foi repetido com células imaturas de rim e o vírus invadiu pouco mais de 10% delas, indicando sua preferência por células do sistema nervoso. “Mostramos que o zika infecta in vitro as células neurais que correspondem às que formam o córtex”, disse o neurocientista Hongjun Song, da Universidade Johns Hopkins, em um comunicado à imprensa. Evidências semelhantes foram obtidas por pesquisadores da Rede de Pesquisa sobre Zika Vírus em São Paulo (Rede Zika), apoiada pela FAPESP. Além do zika africano, eles usaram a cepa brasileira do vírus para infectar células-tronco precursoras das células neurais, neuroesferas, minicérebros e fêmeas de camundongo prenhes. Submetidos para publicação, os resultados, segundo os autores, confirmam que o vírus causa microcefalia. Critérios de causalidade
“Canonicamente, usam-se os critérios de Hill para demonstrar que um vírus causa uma doença”, explica o virologista Paolo Zanotto, da Universidade de São Paulo (USP). Propostos em 1965 pelo epidemiologista britânico Austin Bradford Hill, esses critérios são uma lista de nove características que em geral devem ser satisfeitas. São eles: força ou efeito
Efeito devastador: neuroesfera saudável (à esq.) e neuroesfera gerada a partir de células infectadas pelo vírus zika
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Sósia da dengue: cópias congeladas do vírus zika (ao lado) usadas para determinar a sua estrutura detalhada (abaixo)
fotos 1 e 2 patricia garcez / ufrj e idor 3 e 4 grupo de pesquisa de kuhn e rossmann / Universidade purdue
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de tamanho (quanto mais ampla a associação maior a probabilidade causal); consistência (observações semelhantes feitas por grupos diferentes em locais distintos aumentam a probabilidade de o efeito existir); especificidade (quanto maior a associação entre um fator e seu efeito, maior é a probabilidade de haver relação causal); temporalidade (o efeito deve ocorrer após exposição ao fator que o provoca); gradiente biológico (quanto maior a exposição ao fator causador, maior o efeito); plausibilidade (existência de mecanismo biológico que explica a relação entre causa e feito); coerência (a conexão entre os achados laboratoriais e epidemiológicos aumenta a probabilidade de o fator provocar o efeito); experimentação (ocasionalmente é possível buscar evidências experimentais); analogia (o efeito de fatores semelhantes deve ser levado em consideração). Apesar desses avanços, não se sabe ao certo como o vírus, uma vez no organismo do feto, chega ao tecido cerebral. Arnold Kriegstein e seu grupo na Universidade da Califórnia em São Francisco suspeitam que o vírus alcance o sistema nervoso por meio do líquido que banha o sistema nervoso central (líquor) e use o receptor AXL expresso nas células precursoras do cérebro para invadi-las (leia explicação detalhada no texto on-line). A confirmação mais importante de que o zika causa microcefalia vem de estudos como o feito pela infectologista Patrícia Brasil, da Fiocruz no Rio de Janeiro. Desde setembro, ela acompanha grávidas que apresentaram sinais de infecção por zika em diferentes momentos da gestação. Em março, Patrícia revelou seus primeiros resultados no New England Journal of Medicine. Os pesquisadores identificaram o vírus em 72 das 88 participantes – só 42
continuaram no estudo e aceitaram realizar exames de imagem nos bebês. Das 42 crianças, 12 (29% do total) apresentavam graus diferentes de comprometimento: de restrição de crescimento intrauterino (cinco casos) a lesões cerebrais (sete) e morte do feto (dois) – alguns tinham mais de um problema. risco no primeiro trimestre
Mais evidências de causalidade vieram de um estudo que analisou retrospectivamente o surto de zika na Polinésia Francesa. Simon Cauchemez, do Instituto Pasteur em Paris, estimou o total de casos da infecção a partir dos dados de testes sorológicos. Em uma busca nos registros médicos, ele e colegas identificaram oito casos de microcefalia entre setembro de 2013 e julho de 2015. Usando um modelo matemático, eles concluíram que a infecção no primeiro trimestre de gestação é a que mais aumenta a probabilidade de ter um bebê com microcefalia. Segundo os resultados, apresentados na Lancet, esse risco é de 1%. Os estudos medem fenômenos diferentes e não podem ser comparados. Mas
parecem suficientes para comprovar a causalidade. “É prematuro calcular o risco de a infecção levar ao nascimento de um bebê com microcefalia com base nos dados do estudo do Rio e da Polinésia, já que o número de pessoas é pequeno”, diz o epidemiologista Cesar Victora, da Universidade Federal de Pelotas. “Sobre a relação causal, não há dúvida”, afirma. “Ambos os trabalhos são importantes, mas não exaurem a questão”, diz Zanotto, da USP. “Ainda é preciso saber se o risco depende da pré-exposição a outros patógenos, da existência anterior de outras doenças, das características genéticas e do estado nutricional da mãe”, conta. Zanotto coordena a Rede Zika, que desenvolveu um teste capaz de identificar no sangue anticorpos contra o vírus. Embora não permitam estimar o risco de uma gestante brasileira com zika ter um bebê com microcefalia, os dados da Fiocruz vão além de confirmar a causalidade. O trabalho reforça a ideia de que o zika não provoca só microcefalia, mas uma síndrome congênita, como alguns já haviam sugerido. Nessa síndrome, o tipo de problema apresentado pelo bebê depende do período da gravidez em que ocorreu a infecção. “Uma vez que a gestante é diagnosticada com zika”, diz Patrícia Brasil, “o obstetra deve monitorar o bebê realizando exames a intervalos mais curtos”. Foi assim que seu grupo identificou a tempo um caso em que o líquido amniótico secou. O bebê foi salvo por meio de um parto cirúrgico. n
Artigos científicos MLAKAR, J. et al. Zika virus associated with microcephaly. New England Journal of Medicine. 10 fev. 2016. GARCEZ, P. P. et al. Zika virus impairs growth in human neurospheres and brain organoids. Peer J Preprints. TANG, H. et al. Zika virus infects human cortical neural progenitors and attenuates their growth. Cell Stem Cell. mai. 2016. SIROHI, D. et al. The 3.8 Å resolution cryo-EM structure of zika virus. Science. 31 mar. 2016. BRASIL, P. et al. Zika virus infection in pregnant women in Rio de Janeiro – preliminary report. New England Journal of Medicine. 4 mar. 2016. CAUCHEMEZ, S. et al. Association between zika virus and microcephaly in French Polynesia, 2013-15: a retrospective study. Lancet. 15 mar. 2016.
pESQUISA FAPESP 242 z 51
NEUROCIêNCIAS y
Na raiz do infanticídio animal Odor de filhotes ativa em camundongos adultos células de órgão nasal associado a comportamentos instintivos
Q
uem trabalha com roedores em laboratório sabe que colocar no mesmo ambiente animais de ninhadas diferentes costuma não dar certo. Em geral os machos adultos se agridem mutuamente e eliminam os filhotes mais novos, mesmo quando todos, adultos e recém-nascidos, são filhos dos mesmos pais. O comportamento, chamado de infanticídio, é frequente entre ratos e camundongos e, segundo estudo publicado em 2014 na revista Science, é compartilhado com pouco mais de uma centena de espécies de mamíferos – de predadores como ursos e leões a primatas como chimpanzés, babuínos e gorilas. Experimentos feitos pelo biólogo Fabio Papes e sua equipe no Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (IB-Unicamp) começam a desvendar parte do mistério que cerca esse comportamento e a identificar os mecanismos moleculares que, em certas situações, levam os camundongos a cometerem infanticídio. Papes e seu grupo estão seguros de que o sinal que leva os machos a matarem os
52 z abril DE 2016
filhotes mais novos chega pelo ar. Nas primeiras semanas de vida, o corpo dos filhotes libera moléculas de odor ainda desconhecidas que ativam um grupo particular de células no nariz dos animais mais velhos. Essas células, identificadas pelo grupo da Unicamp e descritas em fevereiro na revista BMC Biology, transformam a informação química em sinais elétricos que mobilizam as áreas cerebrais associadas à agressividade. As células especializadas em perceber o cheiro dos filhotes são neurônios, assim como as demais células sensoriais que permitem aos mamíferos identificar os aromas do ambiente. Mas algumas diferenças as tornam únicas no sistema olfativo. A primeira e mais importante é que elas só existem nos camundongos adultos e estão mais ativas nos machos virgens, que nunca tiveram filhotes, do que nas fêmeas (que já pariram ou não) e nos machos que já se reproduziram. “Esse é o primeiro caso documentado de células do sistema olfativo com esse padrão de ativação”, conta Papes. “Essa diferença ajudou a definir as hipó-
teses sobre a função que elas poderiam desempenhar.” As células que detectam o odor dos filhotes expressam em sua superfície a proteína OLFr692, sigla de membro 692 da família de receptores olfativos. Essa proteína transpassa a membrana celular do neurônio e capta compostos químicos emanados pelos filhotes. Os receptores olfativos integram uma extensa família de 1.300 proteínas especializadas na identificação de moléculas orgânicas pequenas e voláteis, os odorantes. Com exceção do OLFr692, esses receptores em geral estão presentes nas células sensoriais do maior órgão olfativo do nariz, o epitélio olfativo principal. Nos camundongos, esse epitélio é formado por 1.300 tipos de células sensitivas que, como um tapete, forram a porção mais profunda da cavidade nasal e permitem o reconhecimento do ambiente e a criação de uma memória aromática dele. Um aspecto peculiar das células descritas na BMC Biology é que elas possuem proteínas da família dos receptores olfativos, mas não estão no epi-
Combinação singular Células que detectam o cheiro de filhotes só existem nos animais adultos e são mais ativas nos machos virgens
Cérebro Epitélio olfativo principal
Cavidade nasal
Órgão vomeronasal
foto léo ramos infográfico Thiago Nakahara / unicamp
Localizadas no órgão vomeronasal, as células OLFr692 exibem característica de células de outro tecido, o epitélio olfativo
télio olfativo principal. Em vez disso, o biólogo Thiago Nakahara, aluno de doutorado orientado por Papes, encontrou-as somente no órgão vomeronasal, outro tecido olfativo no nariz, com feições moleculares distintas. Nos camundongos, esse órgão é formado por duas estruturas cilíndricas com 2 milímetros de comprimento, uma de cada lado do nariz. Até então, os pesquisadores imaginavam que suas células apresentavam apenas proteínas de superfície da família dos receptores vomeronasais (VRs), especializados na detecção de feromônios, moléculas orgânicas que deflagram comportamentos instintivos de defesa, acasalamento, agressividade e alarme. “Técnicas mais sensíveis começam a mostrar que células expressando as proteínas OLFr podem estar também em tecidos distantes do nariz”, conta a bioquímica Bettina Malnic, pesquisadora da Universidade de São Paulo que ajudou a decifrar como as moléculas de odor interagem com as células do epitélio olfativo e disparam as informações que serão interpretadas pelo cérebro. Como
exemplo, Bettina lembra que no final de 2015 pesquisadores dos Estados Unidos identificaram células com o receptor OLFr78 em uma estrutura sensitiva da artéria carótida, onde elas monitoram os níveis de oxigenação do sangue. mediadores da agressividade
Em Campinas, identificada a população de células OLFr692 no órgão vomeronasal, veio o passo mais desafiador: descobrir qual função essas células desempenham no sistema olfativo dos roedores. A pista inicial de que camundongos nas primeiras semanas de vida não apresentavam essas células levou os pesquisadores a imaginar que estariam envolvidas na sinalização de comportamentos característicos dos animais adultos. O grupo de Papes iniciou, então, testes com camundongos de diferentes idades para analisar o padrão de ativação das células OLFr692. Em alguns experimentos, machos foram colocados para conviver com fêmeas, a fim de verificar se essas células mediavam a atração sexual. Em outros, machos interagiram por um período
com outros machos na mesma gaiola. O objetivo era averiguar se as células OLFr692 estariam ativas e participariam da indução do comportamento agressivo comum no contato entre machos. Alguns animais foram expostos ainda a odores de predadores (gatos, ratos, cobras e aranhas), para avaliar se as células estariam envolvidas em reações instintivas de defesa e medo (ver Pesquisa FAPESP nº 172). Em nenhum caso, porém, houve ativação das células OLFr692. A última hipótese foi de que essas células poderiam modular alguma interação entre adultos e filhotes. Assim como outros roedores, os camundongos adultos machos e fêmeas exibem cuidado parental: limpam os filhotes, lambendo-os, e os trazem de volta ao ninho quando tentam escapar – as mães também os alimentam. Nakahara mediu a ativação das células OLFr692 em animais adultos e verificou que, nos machos virgens, elas participavam da detecção de odor dos recém-nascidos. Quando interagem com os filhotes, esses machos, ao invés de os proteger, matam-nos. “É um comportamento comum em camundongos”, diz Papes. “Quem cuida de biotério sabe que não deve colocar um macho estranho com os filhotes.” Os pesquisadores buscam agora comprovar que as células OLFr692 são necessárias para gerar esse comportamento. Para isso, repetirão os testes com camundongos geneticamente alterados para não produzir a OLFr692. “Nosso palpite é que o comportamento infanticida deve desaparecer”, conta Papes. “Estudar como um circuito neuronal como o ativado pelas células OLFr692 gera comportamentos específicos”, diz Bettina, “pode contribuir para compreender como o cérebro é organizado e revelar como alterações em circuitos neurais levam a desordens neurológicas e comportamentais em seres humanos”. n Ricardo Zorzetto Projeto Molecular biology of the olfactory system in mammals: study on the detection of odors and their neural representation in the brain (nº 2009/00473-0); Modalidade Programa Jovens Pesquisadores em Centros Emergentes; Pesquisador responsável Fabio Papes (IB-Unicamp); Investimento R$ 780.405,02.
Artigo científico NAKAHARA, T. S. et al. Detection of pup odors by non-canonical adult vomeronasal neurons expressing an odorant receptor gene is influenced by sex and parenting status. BMC Biology. v. 14. 15 fev. 2016.
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paleontologia y
Na água com o espinossauro Estudo reforça hipótese de que o maior dinossauro carnívoro também vivia em ambientes semiaquáticos Marcos Pivetta
N
o imaginário popular, o Tyrannosaurus rex, com seus 13 metros de comprimento e 7 toneladas, é a representação máxima da ferocidade dos dinossauros. Mas, nos últimos anos, estudos sucessivos têm se dedicado a caracterizar melhor os atributos anatômicos e em especial o modo de vida de um grupo de dinossauros, igualmente carnívoros, cujos maiores exemplares ultrapassavam as medidas do “rei dos lagartos tiranos”: os espinossauros, gigantes de esqueleto alongado como crocodilos, dotados de uma sequência de vértebras no dorso com formato parecido ao de uma vela náutica. No filme Jurassic Park III, de 2001, um desses “lagartos-espinhos”, que podiam chegar a 15 metros de comprimento e talvez 20 toneladas, vence uma batalha contra um T. rex. A rivalidade entre ambos 54 z abril DE 2016
Espinossauro não passa de ficção. Os dois grupos de dinossauros não coexistiram no tempo ou no espaço. Não foi apenas por suas medidas superlativas que os espinossauros se tornaram recentemente um interessante objeto de estudo. Alguns trabalhos desta década, como um artigo de pesquisadores da Universidade de Chicago publicado na revista Science em setembro de 2014, indicam que eles parecem ser os únicos representantes de uma linhagem de dinossauros adaptada tanto à vida terrestre como ao meio aquático, nos arredores da costa, de rios ou de lagos. Certos traços ósseos da espécie Spinosaurus aegyptiacus, como o focinho de crocodilo, os dentes cônicos e os pés em formato de pá, e restos de peixe encontrados em seu intestino sugerem que essa família de dinossauros podia nadar e caçar no ambiente aquático. Um es-
Algumas formas do maior dinossauro carnívoro eram adaptadas ao ambiente terrestre (acima) e ao aquático (à dir.) do Cretáceo
imagens 1 Renata Cunha 2 Durbed / Wikimedia Commons
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tudo recente de paleontólogos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) corrobora essa ideia por meio de um outro tipo de evidência. Cálculos estatísticos sugerem que a chance de um “lagarto-espinho” ter habitado ambientes aquáticos era significativamente maior do que a de um abelissauro ou de um carcarodontossauro, duas famílias de grandes dinossauros carnívoros, de hábitos sabidamente terrestres, mais ou menos contemporâneas aos espinossauros. “De acordo com nossos testes estatísticos, apenas os espinossauros apresentaram uma correlação positiva com ambientes costeiros do passado”, afirma César Schultz, da UFRGS, um dos autores do estudo, cujos resultados saíram em 1º de fevereiro na revista Plos One. “Mas eles não devem ter sido exclusivos das áreas com água. Devem também ter habitado zonas terrestres, a exemplo
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dos abelissauros e carcarodontossauros.” Os três grupos de dinossauros alcançaram seu auge em distintos intervalos de tempo do período Cretáceo, entre 145 e 66 milhões de anos atrás, e habitaram terras do antigo supercontinente austral Gondwana, hoje equivalentes ao norte
da África e à América do Sul, inclusive o Nordeste do Brasil. Para fazer o trabalho, os pesquisadores coletaram dados sobre as ocorrências de fósseis das três famílias de dinossauros disponíveis até o final de 2014 no Paleobiology Database, um banco de dados inpESQUISA FAPESP 242 z 55
Crocodilo com orelhas Forma extinta e terrestre do réptil que viveu no interior paulista pode ter tido um grande pavilhão auditivo externo
Um grupo extinto de crocodilos carnívoros típicos da América do Sul, os baurusuquídeos, tinha provavelmente orelhas similares às dos mamíferos de hoje e um sistema auditivo mais refinado do que os pesquisadores da área imaginavam. A ideia é proposta por pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Universidade McGill (Canadá) em um trabalho publicado em 4 de fevereiro no Journal of Anatomy. Segundo os autores do estudo, esses répteis, que viveram em ambientes terrestres no período Cretáceo Superior, entre 100 e 66 milhões de anos atrás, apresentavam um ouvido externo
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Jacaré-do-papo-amarelo tem um “tampão” de tecido mole onde no passado haveria orelhas
avantajado, bem maior do que
ternacional que reúne mais de 58 mil referências sobre achados paleontológicos. Depois de separarem os registros mais duvidosos, chegaram a um total de 198 lugares no globo onde foram encontrados vestígios razoavelmente confiáveis de, ao menos, um exemplar de espinossauro, abelissauro ou carcarodontossauro. “As localidades podiam apresentar desde apenas um fóssil de uma das famílias até vários representantes dos três grupos de dinossauros”, diz Marcos Sales, principal autor do trabalho, que faz doutorado sob orientação de Schultz. Os espinossauros foram os campeões de ocorrência, com 81 registros. A seguir vieram os abelissauros (72) e os carcarondotossauros (66). Dos lugares conhecidos com fósseis de espinossauros, 16 estavam em camadas geológicas que representavam ambientes costeiros do Cretáceo e 65 em registros associados a hábitats terrestres, situados na parte mais interna dos antigos continentes. O banco de dados também reúne informações sobre fósseis de abelissauros e de carcarondotossauros achados em se-
o de seus antecessores e do que o encontrado nos atuais jacarés
de tecidos moles, um traço
e crocodilos. “Ter a capacidade
anatômico muito mais funcional
de ouvir sons no ar deve ter sido
em seu novo hábitat aquático.
importante para a origem
Hoje todas as espécies de
e evolução dos crocodiliformes”,
crocodilos e jacarés vivem perto
Grupo de carnívoros com dentes
afirma o paleontólogo
da água. A maioria é encontrada
afiados, similares aos do tubarão,
Felipe Montefeltro, professor do
à beira de rios, embora existam
tinha hábitos terrestres.
Departamento de Biologia e
formas marinhas.
Abaixo, ilustração da espécie
Zootecnia do campus de Ilha
Para embasar as conclusões
Solteira da Unesp, autor principal
do estudo, Montefeltro analisou
do estudo. “Naquela época, alguns
coleções de fósseis de
deles viviam fora da água.” Uma boa
baurusuquídeos, abundantes no
audição facilita, por exemplo, a
estado de São Paulo, e de outras
localização de presas em terra firme.
formas extintas de crocodilos
À medida que os crocodilos
e dissecou exemplares de jacarés
foram deixando os ambientes
pertencentes a espécies
secos e migrando para
viventes, como o jacaré-do-papo-
o entorno do meio aquático, seu
amarelo (Caiman latirostris).
pavilhão auditivo teria sofrido
A estrutura anatômica analisada
modificações anatômicas e
mais detalhadamente pelos
assumido outras funções. “O
pesquisadores foi a câmara meatal,
aparecimento de novas formas de
nome técnico da caixa de
crocodiliformes esteve associada
ressonância que constitui o ouvido
a uma dramática alteração no
externo desses répteis. O trabalho
ouvido externo”, diz o biólogo
foi feito no âmbito de um projeto
Hans Larsson, da universidade
temático sobre a origem e evolução
canadense. No lugar das antigas
dos dinossauros e outros répteis,
orelhas, os répteis, ao se tornarem
coordenado por Max Langer, da
anfíbios, teriam passado a exibir
Universidade de São Paulo (USP),
uma espécie de tampão composto
campus de Ribeirão Preto.
56 z abril DE 2016
Carcarodontossauro
Concavenator corcovatus
fotos 1 Lauro Sirgado / Wikimedia Commons 2 Kumiko / Wikimedia Commons 3 Emily Willoughby / Wikimedia Commons
dimentos de origem costeira, ainda que em menor número do que no caso dos espinossauros (três registros para o primeiro grupo de dinossauros e 10 para o segundo). “Mas, segundo nossos testes estatísticos, as ocorrências de fósseis dessas duas famílias em paleoambientes costeiros se deve provavelmente ao acaso, a algum fator aleatório”, afirma Sales. Teste do qui-quadrado
Encontrar fósseis de espinossauros, ou de qualquer dinossauro ou vertebrado, em sedimentos associados a antigos lagos ou áreas litorâneas não quer dizer necessariamente que esse tipo de lugar era um de seus nichos ecológicos. Os animais podem ter vivido e morrido no interior dos continentes e seus fósseis simplesmente transportados para uma região costeira. Em tese, processos sedimentares e o acaso — e não a hipótese de que realmente viveram perto ou dentro da água — podem ser os responsáveis por haver um certo número de vestígios de espinossauros em camadas geológicas representativas de zonas de vida aquática do Cretáceo. É esperado que haja um número bem maior de registros fósseis de dinossauros associados a antigos ambientes terrestres do que ligados a áreas de vida aquática. O processo de sedimentação, necessário para a formação de fósseis, é muito mais comum nas regiões internas de um continente, distantes dos grandes corpos de água, do
3
2
Abelissauro Reconstituição do esqueleto de um Majungasaurus crenatissimus, espécie desse grupo de bípedes carnívoros terrestres com pequenos membros anteriores
que em suas zonas costeiras ou fluviais. “Há muito mais espaço no interior do que na costa e isso, com certeza, deve enviesar o registro de muitos grupos de animais terrestres”, diz Sales. Uma forma de contornar esse problema é usar métodos estatísticos que permitem uma análise mais criteriosa dos dados. No estudo com os dinossauros, os paleontólogos da UFRGS usaram uma ferramenta matemática denominada teste do qui-quadrado. Grosso modo, essa abordagem visa determinar se as variáveis de um conjunto de dados são independentes — ou seja, se seus valores variam aleatoriamente, de maneira fortuita — ou apresentam alguma associação, um nexo causal, entre si. No caso dos dinossauros, o objetivo era averiguar se a quantidade de fósseis de cada grupo encontrada em depósitos que representam ambientes costeiros (e terrestres) do Cretáceo pode ser interpretada como uma evidência de que algum desses répteis realmente habitou esses lugares ou deve ser encarada como um capricho da natureza. Para ambientes costeiros,
apenas o conjunto de ocorrências dos espinossauros apresentou a robustez necessária para passar no teste. Abelissauros e carcarodontossauros exibiram afinidades estatísticas com hábitats exclusivamente terrestres. O trabalho de Sales e Schultz fornece mais um tipo de indício de que os “lagartos-espinhos” podem ter exibido hábitos semiaquáticos durante o Cretáceo. “O estudo é interessante e corrobora essa ideia”, afirma Alexander Kellner, paleontólogo do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Mas o tema é extremamente polêmico.” Segundo Kellner, que descobriu espécies de espinossauros, como o Angaturama limae e o Oxalaia quilombensis, na bacia do Araripe em sedimentos do Cretáceo, as camadas geológicas em que são encontrados muitos fósseis dessa família de dinossauros nem sempre estão bem delimitadas. Por isso pode ser difícil associá-las com precisão a ambientes marinhos do passado remoto. n Projeto A origem e irradiação dos dinossauros no Gondwana (Neotriássico – Eojurássico) (nº 2014/03825-3); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Max Langer (USP-Ribeirão Preto); Investimento R$ 1.706.876,45 (para todo o projeto).
Artigos científicos SALES, M. A. F. et al. The “χ” of the matter: Testing the relationship between paleoenvironments and three theropod clades. PLoS One. 1° fev. 2016. MONTEFELTRO, F. C. et al. The evolution of the meatal chamber in crocodyliforms. Journal of Anatomy. 4 fev. 2016.
pESQUISA FAPESP 242 z 57
Astronomia y
A
Planetas com cauda Gigantes gasosos situados próximo a suas estrelas podem lançar ao espaço moléculas essenciais à vida
Igor Zolnerkevic
lgumas estrelas não muito distantes do Sol abrigam planetas com uma cauda semelhante à dos cometas. Identificados pelos astrônomos nos últimos 13 anos, esses planetas são gigantes gasosos das dimensões de Júpiter, o maior planeta do Sistema Solar. A principal diferença é que, em geral, eles se encontram muito próximos de suas estrelas, que erodem a atmosfera planetária lançando um rastro de gás e poeira no espaço. Dois astrônomos brasileiros especialistas em química do meio interestelar resolveram investigar as reações que poderiam acontecer na cauda de alguns desses planetas e verificaram que, sob certas condições, ali podem se formar moléculas muito simples, como a de água, essencial à vida. A astrônoma Heloísa Boechat-Roberty e seu aluno de doutorado Rafael Pinotti chegaram a essa conclusão ao simular o que ocorre na cauda do planeta Osíris, um gigante gasoso semelhante a Júpiter que orbita a estrela HD 209458, localizada na direção da constelação de Pégaso e distante 154 anos-luz do Sistema Solar. A HD 209458 tem características muito próximas às do Sol. Mas Osíris se encontra tão próximo dela que a HD 209458 aquece e erode a atmosfera do planeta, formando uma cauda gigantesca de gás e poeira no espaço. Osíris foi descoberto em 1999 e já foi observado pelos telescópios espaciais Hubble e Spitzer, da Nasa. É um planeta como Júpiter que se encontra mais perto de sua estrela do que Mercúrio está do Sol. Em 2003 astrônomos identificaram a cauda de Osíris, uma correnteza de mais de 10 mil toneladas de gás escapando da atmosfera do planeta a cada segundo, a velocidades de até 130 quilômetros por segundo. “Achamos instigante investigar as reações químicas que poderiam acontecer ali”, diz Heloisa, professora e pesquisadora do Observatório do Valongo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Heloisa e Pinotti imaginavam que as partículas presentes na corrente de gás lançada no espaço podiam interagir e gerar moléculas estáveis. Antes deles, outros astrônomos já haviam confirmado a presença de diferentes moléculas na
imagens NASA, ESA, STScI, and G. Bacon
atmosfera de Osíris. Lá existe hidrogênio molecular (H2) em abundância na forma de gás e também moléculas simples de carbono e vapor-d’água, além de moléculas de carbeto de silício, óxido de titânio e vanádio, que formariam grãos de poeira. Mas muitos imaginavam que essas moléculas seriam destruídas à medida que fossem arrastadas para a cauda de Osíris. Uma das razões é que, logo acima da atmosfera do planeta, na base de sua cauda, a temperatura do gás alcança 10 mil graus Celsius. Além da alta temperatura, a radiação ultravioleta da estrela seria intensa o bastante para desmanchar qualquer molécula de gás vinda da atmosfera de Osíris. “Estudos feitos por outros pesquisadores apontavam para a inexistência de moléculas ali”, diz Pinotti. “A radiação seria tão forte que o gás seria composto apenas por átomos e íons isolados.” O pesquisador explica, entretanto, que a maioria dos estudos teóricos anteriores se concentrava em calcular as temperaturas, as velocidades e as densidades do gás da cauda a uma distância relativamente próxima do planeta. Um modelo físico criado pelo astrofísico francês Vincent Bourrier, do Observatório de Genebra, na Suíça, chamou a atenção de Pinotti por estimar densidades e veloci-
pode arrastar consigo um dades em uma região da pouco da poeira de Osíris, cauda bem mais afastada Semeadores do espaço: concepção o que poderia proteger do planeta, onde a temartística dos planetas uma proporção das moperatura do gás seria baiOsíris (à esq.) e Gliese léculas de hidrogênio dos xa o suficiente para que 436b, que estão efeitos da radiação. átomos e íons pudessem perdendo a atmosfera “No caso de Osíris, as se combinar novamente moléculas de água se e formar moléculas. Todesfazem logo depois de mando esse modelo como base, Heloisa e Pinotti simularam 566 formadas, dissipando-se no meio interreações químicas diferentes envolven- planetário como íons”, explica Pinotti. do 56 moléculas e íons que poderiam Existem outros planetas com caudas, porém, atingidos por doses mais suaves de acontecer na cauda de Osíris. Apresentados em fevereiro na revista radiação ultravioleta do que Osíris. Um Planetary and Space Science, os resul- deles é Gliese 436b, um planeta gasoso tados dessa análise indicam que, caso menor, semelhante a Netuno, orbitando uma fração do hidrogênio molecular da uma estrela anã vermelha, a 30 anos-luz atmosfera de Osíris sobreviva aos efeitos da Terra, cuja cauda foi descoberta ano da radiação, moléculas de água poderiam passado. “É pura especulação no mose formar na cauda do planeta. Segundo mento”, diz o pesquisador, “mas vejo a os cálculos da dupla, telescópios espa- possibilidade de que moléculas de água, ciais podem comprovar essa hipótese ou até mesmo moléculas orgânicas simcaso busquem na cauda de Osíris sinais ples, sobrevivam e façam uma pequena de íons OH+, as moléculas mais abun- viagem interplanetária pela cauda, acadantes ali, de acordo com as simulações. bando na atmosfera de um planeta mais Por enquanto, as observações feitas exterior, na zona habitável da estrela”. n por meio dos telescópios espaciais só confirmaram a existência de hidrogênio, carbono e oxigênio na forma de átomos Artigo científico PINOTTI, R. e BOECHAT-ROBERTY, H. M. Molecular fore íons isolados na cauda de Osíris. Mas mation along the atmospheric mass loss of HD 209458b evidências observacionais ainda controand similar Hot Jupiters. Planetary and Space Science. versas sugerem que a cauda do planeta v. 121, p. 83-93. 2016. pESQUISA FAPESP 242 z 59
física y
Os quarks e suas combinações exóticas
60 z abril DE 2016
Partículas recém-descobertas revelam novos arranjos possíveis para os principais componentes da matéria
Fermilab Visual Media Services
Igor Zolnerkevic
N
o dia 25 de fevereiro, físicos da colaboração internacional DZero anunciaram a descoberta de uma nova partícula subatômica: a X(5568). A nova partícula não é elementar – ou seja, indivisível – como o elétron, o fóton ou o bóson de Higgs. Em vez disso, a X(5568) é composta de quatro partículas menores de um tipo já conhecido: os quarks, razão por que é classificada como tetraquark. A novidade da X(5568) é a combinação incomum de seus quatro quarks. Esse tipo raro de partícula – as mais comuns são formadas por dois ou três quarks – vem sendo observado desde 2003. Mas a X(5568) é o primeiro tetraquark feito de tipos totalmente distintos. Verificar todas as possíveis maneiras como os quarks podem se combinar ajuda os físicos a entenderem melhor a chamada interação nuclear forte. Ela é a força fundamental que mantém os quarks unidos e origina a maior parte da massa e da energia dos prótons e nêutrons que constituem os núcleos atômicos.
O acelerador de partículas Tevatron, em Batavia, Estados Unidos: o mais poderoso antes do LHC pESQUISA FAPESP 2XX z 61
No coração da matéria
Elétron Partícula elementar (indivisível)
cores e sabores As partículas elementares têm massa, spin e carga elétrica. Os quarks possuem ainda duas outras propriedades: sabor e cor
Os núcleos dos átomos são compostos de prótons e nêutrons, partículas feitas de quarks
Hádrons
Nêutron Núcleo Próton + nêutron (partículas compostas)
átomo de Deutério (hidrogênio pesado)
Os pesquisadores observaram indícios da existência do novo tetraquark ao analisar os dados coletados durante nove anos pelo detector de partículas DZero, um dos instrumentos do acelerador Tevatron no Laboratório Nacional Fermi (Fermilab), nos Estados Unidos. O acelerador foi desativado em 2011, três anos depois de perder o título de acelerador de partículas mais energético do mundo para o Grande Colisor de Hádrons (LHC), da Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (Cern), na Suíça. A colaboração DZero conta com a participação de pesquisadores de sete instituições de pesquisa brasileiras, entre elas o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro. O anúncio da descoberta motivou outras colaborações internacionais de físicos a buscarem evidências da existência da X(5568) em seus dados. Até o término desta edição, apenas o grupo que opera o experimento LHCb, um dos quatro detectores de partículas do LHC, havia anunciado o resultado de suas análises. “Procuramos indícios do tetraquark encontrado pelo DZero e não achamos nada”, diz Ignácio Bediaga, coordenador dos físicos do CBPF que colaboram com o LHCb. “O resultado do DZero, entretanto, é muito bom e sua análise bastante consistente”, ressalta. “Meu palpite é que estejamos diante de um novo fenômeno.” Bediaga explica que a equipe do LHCb procurou sinais da existência da X(5568) em seus dados da criação das partículas chamadas de méson b e méson pi, cada uma formada por dois quarks. Equipamentos como o LHC costumam acelerar partículas formadas por muitos quarks, como os prótons, a velocidades 62 z abril DE 2016
d
próximas à da luz. Quando se chocam, os prótons se desfazem e originam partículas fugidias de toda espécie possível, algumas formadas por quarks. Uma delas poderia ser a X(5568), uma partícula de vida muito breve, que em uma fração de segundo se desmancharia em dois tipos de partículas de massa menor. Cada X(5568) poderia originar um méson b e um méson pi, ambos com valores de energia bastante específicos. Os físicos observariam, então, um excesso de mésons b e pi com essa energia – algo que o DZero viu e o LHCb não. Há, porém, uma diferença estrutural importante entre os dois detectores que pode estar permitindo ao tetraquark escapar do LHCb, explica Bediaga. O LHCb foi construído para detectar as partículas que surgem muito próximo à direção de propagação dos feixes de prótons que colidem. Já o DZero era um detector semelhante ao CMS e ao Atlas, dois outros detectores do LHC. Esses detectores têm o formato de um barril e foram projetados para captar as partículas que surgem em todas as direções ao redor do feixe. É possível que a X(5568) esteja sendo criada nas colisões do LHC, mas percorra apenas trajetórias fora do alcance do LHCb. “Se o CMS ou o Atlas encontrarem a X(5568), estaremos diante de um quebra-cabeça muito interessante”, diz Bediaga. “Se não acharem, pode ser que a análise do DZero tenha algum problema que passou despercebido.” Dinâmicas coloridas
“Quando apenas uma colaboração experimental vê um novo tetraquark, ficamos com um pé atrás”, diz a física teórica
u
Cor
d
3 quarks
Próton Fonte marina nielsen / usp
u
u d
3 quarks
Quarks não existem isolados na natureza. Eles se unem por meio de uma propriedade chamada "carga de cor". Os quarks mudam de cor trocando partículas (glúons), de acordo com as leis da cromodinâmica quântica (ao lado) Sabor u
Up
d
Down
s
Strange
c
Charm
b
Bottom
t
Top
Há seis tipos (ou sabores) de quarks. Prótons e nêutrons são feitos de quarks up e down. Os demais sabores de quarks foram observados compondo partículas que duram frações de segundo, criadas em aceleradores de partículas
Partículas raras, os tetraquarks só começaram a ser observados com o uso de aceleradores mais potentes e detectores mais sensíveis
algumas harmonizações Segundo a cromodinâmica quântica, os
cores
quarks têm uma das três cores possíveis.
anticores
Vermelho
Antivermelho (ciano)
Já os antiquarks, uma das anticores, que se combinam como se vê ao lado. As
Cor neutra
partículas compostas são formadas por conjuntos de quarks e/ou antiquarks que, combinados, têm uma cor neutra
Verde
Azul
Antiverde (magenta)
Antiazul (amarelo)
Bárions Partículas formadas por trios de quarks ou de antiquarks
Anula-se a cor do trio ao se combinar quarks de cores diferentes e antiquarks de anticores distintas
mésons
Anula-se a cor do par ao combinar um quark de certa cor com um antiquark de anticor complementar
Partículas formadas por pares de quarks e antiquarks
Há dois modos de neutralizar um quarteto de quarks contendo dois quarks e dois antiquarks
quark combina com um antiquark produzindo dois mésons de cores neutras. Os mésons 1 Cada interagem entre si e se mantêm fracamente unidos, gerando uma "molécula de mésons"
Méson
Méson
Molécula de mésons
Quarks se unem em um quark duplo (di-quark) com uma anticor. Os antiquarks interagem produzindo
2 um antiquark duplo (di-antiquark) com uma cor. Di-quark e di-antiquark geram um tetraquark Cores somadas dão uma anticor
infográfico ana paula campos
Anticores somadas resultam numa cor
Di-quark
Marina Nielsen, da Universidade de São Paulo (USP). Ela coordena uma equipe que foi uma das primeiras no mundo a realizar cálculos verificando que, caso seja confirmada, a X(5568) observada pelo DZero pode mesmo ser um tetraquark. Marina e seus colegas Jorgivan Dias e Alberto Torres, da USP, e Kanchan Khemchandani e Carina Zanetti, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, correram contra o tempo entre os dias 25 e 29 de fevereiro para verificar se a massa e outras propriedades do novo tetraquark poderiam ser explicadas pela interação nuclear forte. Tetraquarks são partículas extremamente raras, que começaram a ser observadas apenas nos últimos anos com o aumento da energia das colisões dos aceleradores de partículas e da sensibilidade de seus detectores. Sua existência foi prevista em 1964 pelos físicos teóricos
Di-antiquark
Tetraquark
George Zweig e Murray Gell-Mann, os primeiros a conceberem a ideia de que várias das dezenas de partículas observadas nos aceleradores da época, incluindo os prótons e os nêutrons, seriam feitas de duplas ou trios de quarks. As teorias de Zweig e Gell-Mann foram comprovadas e refinadas por vários físicos nas décadas seguintes, dando origem à cromodinâmica quântica, teoria que também prevê a existência de quartetos e quintetos de quarks (ver infográfico acima). Foi só a partir de 2003 que experimentos em diferentes aceleradores de partículas comprovaram a existência de um tetraquark, o X(3872). De lá para cá, colaborações internacionais já confirmaram a observação de 15 candidatos a tetraquarks e, em julho do ano passado, o grupo que opera o experimento LHCb anunciou a descoberta de dois pentaquarks: o Pc(4450) e o Pc(4380).
Podem ainda existir outras partículas formadas pela combinação de mais quarks e suas antipartículas, os antiquarks, desde que os arranjos sigam as regras da cromodinâmica quântica. “Essa teoria permite que exista qualquer combinação formada por quatro, cinco ou mais quarks, desde que uma propriedade chamada carga de cor seja sempre neutra”, diz Marina. Ela e seus colegas são especialistas em um método matemático chamado de “regras de somas”, que permite realizar cálculos próximos aos propostos pela cromodinâmica quântica. Esse método é necessário porque a cromodinâmica quântica apresenta princípios gerais aparentemente simples, mas as suas equações matemáticas estão entre as mais intratáveis de toda a física, sendo impossível de resolvê-las com exatidão, mesmo com a ajuda de supercomputadores. Com base nas regras de somas, Marina e seu grupo calcularam a massa e as outras propriedades observadas da X(5568) e concluíram que elas podem ser explicadas se a partícula for composta por dois quarks (up e bottom) e dois antiquarks (strange e down). Seus cálculos, porém, não descartam outra possibilidade. Em vez de formar um verdadeiro tetraquark, a X(5568) poderia ser interpretada como dois mésons (cada um contendo dois quarks) unidos muito fracamente. Essa combinação, chamada de molécula de mésons, é uma maneira alternativa de se anularem as cargas de cor sendo, portanto, permitida pela cromodinâmica quântica. Os colaboradores de Marina devem concluir em breve novos cálculos nos quais assumem que a X(5568) é uma molécula de mésons. Se chegarem a uma massa diferente da medida pelo DZero, saberão que a X(5568) não é uma molécula de mésons. Já se o valor calculado for próximo ao medido, a dúvida permanecerá. n Igor Zolnerkevic Projeto Física de hádrons (nº 2012/50984-4); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Marina Nielsen (IF-USP); Investimento R$ 290.720,00.
Artigos científicos ABAZOV, V. M. et al. Observation of a new B0s π ± state. Physical Review Letters. No prelo. DIAS, J. M. et al. A QCD sum rule calculation oftheX±(5568) → B0s π ± decay width. arxiv.org pdf/1603.02249v1.pdf. ZANETTI, C. M.; NIELSEN, M. e KHEMCHANDANI, K. P. A QCD sum rule study for a charged bottom-strange scalar meson. arxiv.org/pdf/1602.09041.pdf.
pESQUISA FAPESP 242 z 63
INFORME PUBLICITÁRIO
ED. 03 - ABRIL 2016
Cientistas do CNPEM avançam nas pesquisas sobre o zika vírus
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esquisadores do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio) descobriram uma proteína ligada ao zika vírus que pode ser a chave para o desenvolvimento de medicamentos e vacinas para combater a doença. Usando técnicas de bioinformática e bioquímica, os cientistas observaram que o vírus da zika é bastante similar ao da dengue. Três proteínas seriam responsáveis por manter a estrutura das membranas que revestem o material genético do zika e da dengue. No entanto, a diferença entre os dois vírus estaria na proteína E.
permita a detecção de traços do vírus em pessoas que foram infectadas anteriormente e que já não apresentam os sintomas da doença e a produção de uma molécula capaz de combater a infecção provocada pelo zika. A ideia é produzir um anticorpo monoclonal para tratar exclusivamente da enfermidade. O pesquisador alerta, no entanto, que o desenvolvimento desse “antídoto” é uma medida paliativa até que seja desenvolvida uma vacina eficaz contra o zika vírus.
“Uma das pistas é procurar nessa proteína se ela tem alguma diferença, se apresenta alguma peculiaridade que vá determinar essas características que estamos procurando. Utilizamos uma série de técnicas para identificar possíveis regiões que vão determinar as diferenças entre o que é zika e o que é dengue. Isso é insumo para uma série de desenvolvimentos adicionais”, explicou o diretor do LNBio, Kleber Franchini. Ainda, segundo Franchini, as pesquisas têm pelo menos dois impactos: a produção de insumos para um kit diagnóstico que
MCTI integra força-tarefa do clima para os Jogos Olímpicos de 2016
O
Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) colocou à disposição da organização dos Jogos Olímpicos 2016 uma infraestrutura de monitoramento meteorológico para a preparação do evento e realização das provas. Sistemas meteorológicos avançados e recursos de supercomputação, somados à expertise de modelagem dos cientistas, resultam em previsões com alto índice de acerto. Os dados, fornecidos com pontualidade e precisão, podem fazer a diferença no desempenho de um atleta olímpico, além, é claro, da técnica e do preparo físico. Dois institutos de pesquisa do MCTI, o Centro de Previsão e Estudos
Climáticos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (CPTEC/Inpe/ MCTI) e o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden/MCTI), participam do Serviço Meteorológico Esportivo, uma força-tarefa coordenada pela Autoridade Pública Olímpica, responsável por fornecer, reunir e consolidar as previsões de tempo e oceânicas com informações sobre temperatura, maré, umidade, ventos e correntes. “Não existe competição de vela sem vento”, afirma o pesquisador Sérgio Henrique Ferreira, do CPTEC/Inpe. “Uma prova pode mudar de local ou até ser cancelada em função das condições desfavoráveis do tempo.”
INFORME PUBLICITÁRIO
Mulheres na Ciência é lançado para reduzir desigualdade de gênero
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o dia 7 de março, foi lançado, em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, o programa Mulheres na Ciência, com ações de combate à desigualdade entre homens e mulheres no ambiente de pesquisa, além da ampliação da participação feminina na produção científica e tecnológica do Brasil por meio de atividades de promoção da paridade, de inserção social e de conhecimento e difusão no âmbito da CT&I. Para isso, o programa prevê ações de promoção da igualdade no MCTI e o lançamento da quarta edição do edital de pesquisas sobre relações de gênero, mulheres e feminismos. Além disso, devem ser lançadas publicações com análises demográficas de dados de gênero no ministério e em grupos de pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq/MCTI) e a instalação do Comitê de Gênero do MCTI que, dentre as atribuições, destacam-se a elaboração e coordenação das políticas de combate à discriminação de gênero na pasta, a proposição de ferramentas de prevenção, o fomento à transversalidade da abordagem de gênero em pesquisas nacionais e internacionais e a elaboração e disponibilização da publicação anual Gênero no MCTI.
A Olimpíada da Matemática está mudando o ensino nas escolas do país
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Obmep é uma iniciativa do Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (Impa), organização social ligada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). O objetivo é revelar e estimular talentos, além de incentivar o estudo da matemática no Brasil. Em 2015, a olimpíada teve a participação de 47.580 escolas de quase todos os municípios do país. Na primeira fase, 17.972.333 estudantes foram inscritos. Os números revelam um entusiasmo de estudantes e professores com a matemática nem sempre visto nas salas de aula. Segundo Marcelo Viana, diretor do Impa, muito mais que descobrir talentos, a iniciativa está mudando o ensino dessa disciplina. “Em muitas escolas e municípios a Obmep vem ajudando a mudar a cultura em torno da matemática, estimulando professores a ensinar e os alunos a aprender a disciplina de modo muito mais motivador e ajudando a conectar com a experiência diária”, afirma.
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tecnologia bioengenharia y
Para ampliar a autonomia Bengalas eletrônicas, exoesqueletos e máquinas de escrever em braille procuram melhorar a vida de pessoas com deficiência
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ítima de um acidente de trânsito em 2014, que resultou na perda de parte dos movimentos das pernas, o motoboy Reginaldo Santos Ferreira, de 33 anos, começa a dar alguns passos com a ajuda de um exoesqueleto robótico desenvolvido por pesquisadores da Faculdade de Medicina (FM) e da Escola Politécnica (Poli) da Universidade de São Paulo (USP). Desde maio do ano passado ele participa de testes com um protótipo desse aparelho no Instituto de Medicina Física e Reabilitação (Imrea) da Rede de Reabilitação Lucy Montoro, no bairro da Vila Mariana, em São Paulo. “Quando uso o exoesqueleto, sinto mais firmeza para caminhar. Meu quadril fica alinhado e estável”, relata Ferreira. O retorno dado pelo paciente tem sido fundamental para que médicos, fisioterapeutas e engenheiros envolvidos no projeto possam fazer ajustes necessários no equipamento. O objetivo é torná-lo mais funcional, quando comparado a 66 z abril DE 2016
modelos disponíveis no mercado. “Os exoesqueletos convencionais exigem que o usuário se sustente com os dois braços em um andador ou muletas. Isso leva o paciente a ter que fazer muita força para se equilibrar”, explica Linamara Rizzo Battistella, professora da FM-USP. O exoesqueleto é um dos 75 projetos contemplados em um edital lançado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) em 2013, que disponibilizou R$ 13 milhões com a finalidade de apoiar iniciativas em tecnologia assistiva. O termo é empregado para identificar o arsenal de recursos e serviços que contribuem para proporcionar ou ampliar as habilidades de pessoas com algum tipo de deficiência física, visual, auditiva, mental ou intelectual. Em novembro de 2015, em um evento realizado em Brasília, foram apresentados resultados parciais de projetos apoiados pelo ministério. Antes de chegar ao mercado, o exoesqueleto ainda precisa passar por mais testes. Para assegurar a estabilidade do
paciente, os pesquisadores trabalham em um novo sistema, capaz de controlar a marcha daqueles que sofreram lesão medular ou acidente vascular cerebral (AVC). A partir da análise laboratorial da função do joelho e do tornozelo durante a caminhada, foi projetado um exoesqueleto em que é possível ajustar a altura de um motor elétrico acoplado ao aparelho e controlado por um software que define a intensidade dos movimentos. O motor, a parte mais cara do equipamento, custa cerca de US$ 2,5 mil. Por enquanto, o exoesqueleto passa por testes com o aparelho desligado. Mesmo assim o paciente ganha estabilidade com a estrutura. Essa etapa serve para avaliar com precisão se o peso do motor atrapalha os movimentos ou se há risco de deslocamento. “A expectativa é de que os testes com o equipamento em funcionamento comecem até o final do ano, depois de análise do Comitê de Ética da FM-USP”, diz Arturo Forner-Cordero, coordenador do Laboratório de Biomecatrônica da Poli-USP.
fotos léo ramos
Bruno de Pierro
Testes do exoesqueleto desenvolvido na USP: objetivo é garantir que pacientes com lesão medular ou que sofreram AVC possam voltar a caminhar com mais firmeza e estabilidade durante sessões de reabilitação
Outras iniciativas que participaram do edital do MCTI estão próximas de conquistar o mercado. Uma delas é a bengala eletrônica desenvolvida na Universidade do Vale do Itajaí (Univali), em Santa Catarina. Ela é equipada com sensores semelhantes a um sonar, que avisam por meio de sons e vibrações no próprio cabo se há obstáculos à frente. “Uma queixa das pessoas com deficiência visual é que a bengala convencional não ajuda a identificar objetos acima da cintura, como orelhões, caixas de correio e vasos de flor suspensos no teto”, diz Alejandro Rafael Garcia Ramirez, coordenador do projeto e professor de engenharia da computação na Univali. Com o apoio do MCTI, foram produzidas 30 unidades, que serão testadas este ano. O projeto é desenvolvido em parceria com a Produza, empresa catarinense que atua na montagem de placas e componentes eletrônicos, e a Fastparts, que fabrica componentes de plástico . “A inovação em tecnologia assistiva depende do diálogo entre universidades, empresas e pessoas com deficiência. É preciso saber identificar as demandas dos usuários”, afirma Ramirez, lembrando que no país existem 6,5 milhões de pessoas com deficiência visual, sendo mais de 500 mil cegas e 6 milhões com baixa visão, segundo dados do Censo Demográfico de 2010, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Produção nacional
Dados do instituto mostram aproximadamente 45 milhões de pessoas com deficiência física, mental ou intelectual no Brasil, o que corresponde a 24% da população. Nos Estados Unidos, por exemplo,
Uma das dificuldades das empresas é a necessidade de os produtos, em grande parte, precisarem atender às particularidades de cada usuário
são 54 milhões de pessoas, equivalentes a 17% da população. Ocorre que aqui a demanda por dispositivos assistivos, como cadeiras de rodas e próteses, para citar os mais comuns, é atendida por meio de produtos importados. “Existe produção nacional, mas muito pequena e pouco conhecida”, avalia Linamara Battistella. “Muitos projetos ficam restritos ao âmbito acadêmico. Quanto mais disponibilizarmos tecnologia nacional, menor será o custo a longo prazo para o país”, acrescenta Linamara, ressaltando que os maiores compradores de produtos assis-
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68 z abril DE 2016
tivos no país são o Ministério da Educação e o Sistema Único de Saúde (SUS). Em São Paulo, há projetos apoiados pela FAPESP dentro do Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) que tentam responder a esses desafios. Uma das iniciativas une pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e a empresa e-Sense Biomedical Engineering Innovation no desenvolvimento de um dispositivo portátil que monitora, por meio de sensores, sinais vitais, tais como níveis de glicose e pressão arterial em pessoas com dificuldade de movimento ou totalmente imobilizadas, e disponibiliza os dados em tempo real para profissionais da saúde utilizando a internet. “Isso facilita o monitoramento de idosos, obesos mórbidos ou pessoas com deficiência física, possibilitando um diagnóstico precoce”, explica André Luiz Jardini Munhoz, pesquisador da Faculdade de Engenharia Química da Unicamp, responsável pelo projeto. Também é possível localizar o paciente por GPS, para que o médico possa acionar uma ambulância em caso de emergência. “Temos um protótipo pronto para ser testado em pacientes do Hospital de Clínicas da Unicamp. Estamos aguardando a autorização do comitê de ética da universidade”, diz Alexandre Chiachiri Rodrigues Silva, engenheiro e sócio da e-Sense. Em Rio Claro, interior de São Paulo, a Tece, empresa fundada pela bióloga Aline Piccoli Otalara, desenvolveu, com apoio do Pipe, uma nova versão de um instrumento de escrita manual em braille, a reglete, que ainda hoje é a única forma de leitura para deficientes visuais. Nesse modelo o tempo de aprendizado do sistema braille diminui em 60%. A empresa já comercializa o produto, inclusive para países da Europa. A reglete convencional existe desde 1837 e funciona da seguinte maneira: os pontos que formam os caracteres em braille são escritos em baixo-relevo (pontos côncavos), enquanto a leitura desses sinais é feita em alto-relevo (pontos convexos). Isso faz com que o usuário tenha que escrever de for-
Máquina de escrever em braille, da Tece, empresa de Rio Claro (SP): mais barata e leve do que modelos convencionais
Teste da bengala eletrônica desenvolvida por pesquisadores da Univali, nas ruas de Florianópolis
ma espelhada, começando da direita para a esquerda, exigindo um esforço maior de quem está aprendendo – tanto pessoas com deficiência quanto professores e familiares. “O que fizemos foi desenvolver uma reglete muito parecida com a convencional, mas que permite escrever os pontos já em alto-relevo, sem que seja necessário escrever de forma espelhada ou inverter o lado do papel para a leitura, o que também facilita a escrita de equações matemáticas”, explica Aline, que fundou a Tece com colegas da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Em outro projeto mais recente, também com apoio do Pipe, a Tece começou a desenvolver uma máquina de escrever em braille. Modelos disponíveis no mercado são utilizados em ambientes como salas de aula e escritórios. “Apesar de ser muito utilizada, as pessoas geralmente não têm uma máquina em casa, principalmente em razão do custo elevado”, diz Aline. De acordo com ela, a máquina mais utilizada pelos deficientes visuais é importada e custa R$ 6,5 mil. “A máquina que estamos desenvolvendo será mais leve, produzirá menos ruído e não deverá ultrapassar R$ 800.” Para reduzir os custos, a Tece investe em pesquisas com novos materiais e em design. As seis teclas que correspondem aos pontos braille e o material impresso seguem o padrão da reglete positiva desenvolvido pela empresa.
fotos 1 tece 2 Daniel Queiroz
impressora em braille
Outro exemplo de tecnologia desenvolvida a partir da demanda apresentada por pessoas com deficiência visual é uma impressora em braille que poderá ser instalada em caixas eletrônicos em agências bancárias. O sistema foi criado pela empresa Tecassistiva, de São Paulo. “Percebemos que quando o deficiente visual vai ao banco retirar um extrato, ele precisa
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da ajuda de outra pessoa para ter acesso às informações de sua conta. Com uma impressora em braille, ele terá mais autonomia e segurança”, diz Guilherme Lira, diretor da empresa, que começou a testar um protótipo em outubro em parceria com o Centro de Referência em Inovação Tecnológica (Certi) Amazônia, em Manaus. O desafio encarado pela Tecassistiva foi desenvolver uma impressora em braille em escala reduzida, capaz de ser instalada nos caixas eletrônicos. As impressoras convencionais são bem maiores. Além disso, era preciso que o papel fosse impresso na horizontal, e não na vertical. Foi necessário criar um software próprio e também realizar pesquisas para o desenvolvimento de novos componentes eletrônicos. “Estabelecemos parceria com empresas da Suécia e dos Estados Unidos, que nos forneceram parte do sistema de hardware para ser avaliado”, diz Lira, que teve apoio financeiro da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Desde 2005 a Finep tem realizado chamadas públicas para apoiar projetos de tecnologia assistiva envolvendo instituições de pesquisa e empresas. “Reconhecemos que as empresas precisam ser estimuladas a ocupar um mercado que ainda é incipiente no país”, afirma Maurício França, superintendente da área de Tecnologia para o Desenvolvimento Sustentável da Finep. De acordo com ele, uma dificuldade enfrentada pelas empresas desse setor é que os produtos
assistivos geralmente necessitam atender às particularidades de cada usuário. Há produtos, como próteses, encostos ortopédicos ou mesmo cadeiras de rodas que são feitos sob medida para cada usuário, o que demanda um maior grau de customização e exige da empresa a oferta de um amplo portfólio de produtos, bem como uma rede de profissionais para prescrição e assistência. “Apenas algumas empresas têm estrutura para atender a essa exigência”, explica. Outra particularidade do setor é que o mercado ainda é muito dependente das compras públicas. “Uma forma de melhorar essa situação seria promover uma maior inclusão das pessoas com deficiência no mundo do trabalho. Isso obrigaria muitas empresas a terem que se adaptar e, assim, comprar produtos de tecnologia assistiva”, sugere França. n
Projetos 1. Desenvolvimento de um monitor multiparamétrico portátil (nº 2012/50124-5); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável André Luiz Jardini Munhoz (Unicamp/e-Sense); Investimento R$ 75.847,50 e US$ 2.500,00. 2. Desenvolvimento de tecnologias assistivas voltadas para pessoas cegas ou com visão subnormal (Prover) (nº 2009/52626-5); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisadora responsável Aline Piccoli Otalara (Tece); Investimento R$ 163.524,00. 3. Dati Braille: pesquisa, desenvolvimento e inovação de máquina de datilografia em braille (nº 2012/50389-9); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisadora responsável Aline Piccoli Otalara (Tece); Investimento R$ 117.725,00.
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Sons submarinos
Na Laje de Santos, a 20 metros de profundidade, equipamento com hidrofone grava sons de barcos e peixes
o Parque Estadual Ma alguns exemplares que foram cerinho da Laje de Sandidos, em parceria, para grupos tos, distante 42 quilôde pesquisa e estamos monitometros da costa, é proirando experimentalmente a Laje bido pescar. O local serve para de Santos e Alcatrazes [arquireprodução de organismos aquápélago no litoral norte paulista Hidrofones revelam a paisagem ticos e permite-se apenas o merintegrante da Estação Ecológisonora do fundo do mar gulho com guias em dias e horáca Federal Tupinambás, onde rios delimitados. Como essa também não é possível pescar determinação nem sempre é e navegar nas proximidades].” Marcos de Oliveira seguida, a equipe do professor Esses últimos possuem quatro Linilson Padovese usa o local cartões SD com capacidade para para testar um equipamento au128 gigabytes (GB) cada e pilhas tônomo de monitoramento acúspara uma autonomia de até cinco tico submarino instalado no meses de monitoramento contífundo do mar, desenvolvido no nuo. “O equipamento pode ser Laboratório de Dinâmica e Insprogramado para realizar uma trumentação (Ladin) da Escola gravação contínua ou agendaPolitécnica da Universidade de da”, diz. Com essa estratégia, é São Paulo (Poli-USP). “Detectapossível manter o equipamento mos, por exemplo, o ruído dos embaixo d’água por até um ano. motores dos barcos entre 20h30 O aparelho foi testado em relação e 23 horas. Os pescadores cheà vedação em até 300 metros de gam, desligam o motor, demoram profundidade, mas a instalação de duas a três horas e vão emboe a retirada na Laje de Santos e ra”, diz Padovese. em Alcatrazes foram realizadas O equipamento é composto por mergulhadores a 20 metros. por um hidrofone, uma espéSaber o horário de invasão do cie de microfone especial para espaço marítimo do parque macaptar ondas sonoras embaixo rinho facilita a abordagem das d’água, além de um conjunto elelanchas de fiscalização da Funtrônico de gravação e baterias. dação Florestal, da Secretaria do “O teste na Laje de Santos foi um Meio Ambiente estadual, gestodos primeiros experimentos que ra do Parque da Laje de Santos, realizamos com o aparelho”, diz ou da Polícia Militar AmbienPadovese. Tudo começou quantal. “Também já pensamos em do o pesquisador pensava em estudar o restrição comercial, precisando da au- um sistema de monitoramento acústico processamento de sinais acústicos mari- torização de venda dos governos onde submarino em tempo real, com a conenhos, uma área ainda incipiente no Bra- estão as fábricas. xão do hidrofone a um equipamento de sil. “O problema é que não existe fábrica Padovese decidiu então desenvolver transmissão por rádio a partir da Laje de hidrofones e de equipamentos para tecnologia própria nessa área. “Proje- até a sede da fundação em São Vicente hidroacústica no país e, no exterior, os tamos um gravador eletrônico, de bai- [SP]”, diz Padovese. aparelhos custam entre US$ 5 mil e US$ xíssimo consumo de energia, que regisPara o gestor do Parque da Laje de 30 mil, dependendo da configuração e tra os sons em cartões SD, iguais aos de Santos, José Edmilson Mello Júnior, o uso.” Outro empecilho é que os hidro- câmeras fotográficas, que é instalado hidrofone mostrou-se importante para fones mais sofisticados, por terem uso com pilhas alcalinas em um recipiente a fiscalização e proteção ambiental. “O militar em navios e submarinos, sofrem cilíndrico vedado”, explica. “Fizemos local é uma unidade de conservação de 70 z abril DE 2016
foto lúcio Júnior / poli-usp imagens linilson Padovese / poli-usp
Acústica y
Frequências reveladoras No software é feita a identificação dos sons submarinos 2 Uruçuca (BA)
cardume de peixes
1 cardume de peixes vocalização de baleia jubarte
Frequência (KHz)
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2,5 laje de santos (SP) cardume de peixes
2 som dos motores das embarcações
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1 cardume de peixes
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Tempo (horário)
proteção integral e se a fiscalização parar um barco, mesmo que esteja apenas passando com apetrechos de pesca, os ocupantes podem ter os equipamentos apreendidos e recebem multa”, explica Mello Júnior. Padovese conta que é possível registrar e estudar vários outros tipos de eventos acústicos, alguns a muitos quilômetros de distância – na água, o som viaja quase cinco vezes mais rápido e pode ser detectado a distâncias muito maiores do que no ar. Vocalizações de baleias e movimentos de cardumes de peixes podem ser identificados. Em geral, os dados são estudados na forma de gráficos, chamados de espectrogramas, que mostram como o conteúdo de frequências acústicas varia com o tempo. Processamento de dados
O volume de dados obtidos com um hidrofone é grande. Para processar as informações, o grupo da Poli desenvolveu
um software que permite essa visualização tempo-frequência do som e possibilita o reconhecimento de padrões de sinais. Os pesquisadores conseguem, por exemplo, identificar diferentes espécies de peixes utilizando apenas esses sinais acústicos, assim como de baleias, que têm um registro bem característico das vocalizações. No caso particular de cardumes de peixes, associar os diferentes padrões acústicos com as espécies ainda depende de um estudo multidisciplinar, com pesquisadores das áreas de biologia, oceanografia ou ciências do mar. Para Mello Júnior, a necessidade inicial é fazer um levantamento dos animais que frequentam a Laje, como as baleias e golfinhos. “Três ruídos podem atrapalhar a vida desses mamíferos na bacia de Santos: a prospecção de petróleo na região do pré-sal, o emissário submarino [que leva o esgoto tratado para o alto-mar] e a área relacionada ao fundeio de navios
do Porto de Santo.” Padovese estabeleceu uma parceria e cedeu os hidrofones para um grupo que estuda baleias jubarte (Megaptera novaeangliae) no município de Uruçuca, próximo a Ilhéus (BA). “Acompanhamos visualmente entre julho e novembro as baleias a partir de um morro na serra Grande a 90 metros acima do mar. O registro acústico com o equipamento foi importante porque complementa o visual, principalmente nessa fase em que elas estão parindo e nadam com os filhotes”, diz Júlio Baumgarten, professor da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), de Ilhéus. Duas vezes no ano foram instalados três aparelhos no fundo do mar capazes de fazer o registro acústico de uma área de cerca de 200 quilômetros quadrados. “Com a gravação podemos acompanhar a atividade das baleias inclusive à noite”, diz. O equipamento autônomo para uso no fundo do mar já está pronto, teve financiamento da FAPESP e é similar aos que existem no exterior. Padovese estima que o modelo construído por sua equipe custaria no mercado entre US$ 2 mil e US$ 4 mil. A tecnologia desenvolvida também está sendo utilizada e otimizada em parceria com o Instituto de Pesquisas da Marinha (IPqM), no Rio de Janeiro. “Tem crescido muito a demanda por estudos de impacto de ruído acústico submarino na fauna marinha, gerados por empreendimentos, como ampliações de portos, rios e hidrelétricas”, diz Padovese. Além de continuar a agregar informações ao software de processamento de sinais, ele tem incentivado seus alunos a estruturar uma empresa. “A ideia é prestar serviços em acústica submarina nas áreas de infraestrutura e pesquisa científica. Mas também há perspectivas para uma associação com uma indústria de equipamentos eletrônicos, que demonstrou interesse na comercialização desses aparelhos. São planos que ainda estão sendo avaliados.” n Projetos 1. Observatório Acústico Submarino para Monitoramento de Parques Marinhos (n° 2012/04785-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Linilson Rodrigues Padovese (USP); Investimento R$ 238.194,70 e US$ 24.207,17. 2. Plataforma de sensoriamento acústico submarino para redes de monitoramento (n° 2012/23016-7); Modalidade Bolsa no País – Regular – Pós-doutorado; Bolsista Manuel Alfredo Caldas Morgan (USP); Pesquisador responsável Linilson Rodrigues Padovese (USP); Investimento R$ 166.859,21.
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Goiaba ao lado de plástico comestível feito com substâncias extraídas da polpa e da casca da fruta 72 z abril DE 2016
novos materiais y
Embalagens verdes Frutas e legumes são matéria-prima de plásticos que protegem alimentos e são comestíveis Evanildo da Silveira
léo ramos
I
maginar um futuro com embalagens plásticas comestíveis, que podem fazer parte de sopas e sucos sem causar mal à saúde, não é estar descolado da realidade. Novas possibilidades de armazenagem de alimentos que evitem o descarte pós-consumo das embalagens e ainda ajudam a nutrir os consumidores estão se concretizando de forma experimental em laboratórios de universidades e centros de pesquisa. No Brasil, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) estuda novos materiais que poderão ser transformados em embalagens ou mesmo ingredientes alimentícios. São chamados pelos pesquisadores de bioplásticos ou biopolímeros e podem fazer parte também de embalagens biodegradáveis. “Esses materiais têm características nutricionais, sabor e cor dos vegetais, ou podem ser transparentes, finos e com a mesma aparência que os plásticos comuns”, explica Luiz Henrique Capparelli Mattoso, pesquisador da Embrapa Instrumentação Agropecuária, localizada em São Carlos (SP). Esses bioplásticos são feitos a partir de alimentos frescos ou de resíduos da fabricação de sucos ou de outros processos industriais. Dessas matérias-primas são extraídos compostos, como os polissacarídeos, considerados polímeros naturais. De modo similar aos plásticos produzidos com derivados de petróleo, eles são formados por macromoléculas de longas ca-
deias de carboidratos. A maioria dos biopolímeros é também biodegradável: as embalagens que não tiverem a função de ser levadas à mesa se deterioram no lixo naturalmente em poucos dias ou semanas. Para Mattoso, que estuda esses materiais há 20 anos, os bioplásticos degradáveis e comestíveis são uma resposta ao impacto ambiental provocado pelo plástico sintético. “Diminuir a quantidade de embalagens plásticas sintéticas em lixões e aterros é uma necessidade”, diz Mattoso. Dentro da mesma versatilidade dos plásticos tradicionais, os novos materiais abrem uma infinidade de uso e possibilidades de formulações para atender as áreas de embalagens e alimentos funcionais. Os plásticos comestíveis do grupo de Mattoso começaram a ser criados há oito anos no âmbito da Rede de Nanotecnologia Aplicada ao Agronegócio (AgroNano), formada por pesquisadores de empresas e de várias instituições de pesquisa, como a professora Márcia Aouada, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Ilha Solteira, a pesquisadora Henriette Monteiro Cordeiro de Azeredo, da Embrapa Agroindústria Tropical, localizada em Fortaleza (CE), além de Tara McHugh, do grupo de pesquisadores do Serviço de Pesquisa do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos. Os filmes plásticos são feitos basicamente de tipos de polissacarídeos como amido, pectina pESQUISA FAPESP 242 z 73
e hidroxipropil metilcelulose. A extração desses componentes é feita, por exemplo, da polpa e cascas de frutas – como goiaba, mamão, maracujá, banana, açaí, kiwi e pêssego – ou de legumes – beterraba e cenoura. As aplicações são múltiplas. Comestíveis ou biodegradáveis, eles poderiam embalar vários tipos de alimento, inclusive rações para animais. Uma questão ainda não resolvida é um eventual risco de o biopolímero atrair animais na estocagem ou nas gôndolas dos supermercados. “Não sabemos se atrairia ratos e baratas, não fizemos testes específicos, mas não tivemos esse tipo de problema ao longo desses anos de pesquisa”, diz Mattoso. A possibilidade de as embalagens ficarem contaminadas com bactérias e outras sujidades poderia ser resolvida, segundo o pesquisador, com a adição de substâncias como quitosana, canela e própolis, que têm efeito bactericida. “Outra solução seria utilizar por fora uma embalagem apenas biodegradável, e não comestível, para embalar alguns alimentos consumidos in natura”, explica. Os biopolímeros podem ser lavados com água, mas não com sabão. “Colegas norte-americanos, como Tara McHugh, já utilizam filmes comestíveis em restaurantes de comida japonesa”, conta. “Alguns fregueses são alérgicos às algas utilizadas para envolver um tipo de sushi. As películas as substituem, sem que se percam o sabor e a qualidade do alimento.” O pesquisador solta a imaginação com as novas possibilidades que os biopolímeros trazem para a in74 z abril DE 2016
dústria alimentícia. “É possível produzir plásticos com sabor de qualquer tempero e adicioná-los à comida.” Um frango poderia ser embalado com um tipo de bioplástico que teria em suas moléculas o próprio tempero para o alimento. “Ao levá-lo ao forno, a evaporação da água da carne solubiliza o filme, fragmentando-o e temperando o alimento durante o cozimento”, explica. A vantagem em levar o tempero na embalagem seria a de usá-la como alimento e evitar o descarte. Algumas embalagens também poderiam ser batidas no liquidificador para preparar sucos. “É possível trabalhar com novos conceitos de alimento”, diz Mattoso. Nos estudos sobre plásticos comestíveis realizados em São Carlos, nos últimos oito anos, foram investidos R$ 200 mil, da Embrapa, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da FAPESP.
ção científica com instituições de outros países. “A romã é muito apreciada e consumida na Inglaterra, e eu sabia do apelo mercadológico da fruta por causa de suas alegadas propriedades benéficas à saúde, como a de ser um antioxidante”, explica. “Pensei que seria interessante aproveitar a cor atraente da sua polpa para incorporar a um biopolímero.” Essa pesquisa foi realizada em 2014, mas a pesquisadora trabalha com plásticos comestíveis e biodegradáveis desde 2007. Quanto às aplicações, Henriette diz que o filme desenvolvido na Inglaterra, a exemplo dos similares criados por Mattoso, também poderia ser usado por restaurantes para envolver sushis, formar falsos pastéis ou raviólis transparentes, que seriam pequenos saquinhos recheados de carne para consumo ou mesmo para efeito decorativo em refeições. “O produto também poderia ser comercializado em forma de pó, para ser dissolvido em água e revestir frutas”, explica. “Para isso, os bioplásticos seriam imersos e retirados do líquido para a formação de uma película após a secagem.” Segundo Henriette, o filme formado agiria como barreira de proteção – uma espécie de casca fina que diminuiria a entrada e saída de gases e umidade –, ajudando a aumentar a estabilidade do alimento. Outra possível aplicação é a produção de fitas de frutas semelhantes aos fruit by the foot, ou fruta por metro, existentes nos Estados Unidos, formadas por tiras de goma enroladas e vendidas na forma de uma fita adesiva. São bioplásticos feitos de frutas e acréscimo de vitaminas. “Nos Estados Unidos existe uma empresa que produz filmes à base de polpa de diversas frutas e hortaliças e os comercializa para que o consumidor prepare na forma de sushis ou wraps [sanduíches
Ravióli de romã
Em Fortaleza, Henriette desenvolveu um plástico comestível a partir de pectina, além de suco de romã, ácido cítrico e glicerol, uma substância que pode ser um subproduto do processamento de óleos vegetais. “Ele tem boas propriedades mecânicas, cor e sabor de romã”, explica. “Criamos o produto para ser ingerido junto com o alimento.” De acordo com Henriette, a ideia de desenvolver o filme surgiu em 2014, quando ela passou um período como pesquisadora visitante em Norwich, na Inglaterra, por meio do programa Embrapa Labex, de coopera-
Acima, bioplástico feito de açaí e nanopartículas de quitosana, substância que tem efeito bactericida. Ao lado, plásticos comestíveis desenvolvidos na Embrapa
fotos léo ramos
Etapa da produção de plástico comestível de morango para uso em embalagens
enrolados em pães de massa bem fina, no caso substituída pelo plástico comestível] de vários sabores.” Desenvolver um filme que evite a oxidação de frutas cortadas em pedaços é objetivo do grupo de pesquisa da professora Florencia Cecília Menegalli, da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ela e sua aluna de doutorado Tanara Sartori utilizam amido de banana verde da variedade terra como matéria-prima para filmes que preservam frutas cortadas em pedaços. A esse material foram acrescidas micropartículas lipídicas (mistura de ácidos graxos) contendo um
antioxidante (vitamina C). “Já havíamos utilizado anteriormente o amido de banana para o desenvolvimento de embalagens biodegradáveis. Agora optamos por uma embalagem ativa a partir da adição do antioxidante à formulação”, explica Tanara. Antes, elas precisaram encapsular essas substâncias para inseri-las no filme. “Encapsular o antioxidante dentro das micropartículas é importante para manter a liberação controlada da substância durante o armazenamento dos produtos, preservando-os até chegar ao consumidor final.” O uso de micropartículas também é utilizado na cobertura, que é um líquido viscoso no qual as frutas a serem protegidas devem ser imersas. Em seguida, elas são retiradas para secagem durante alguns minutos. Ao final, forma-se uma película de proteção sobre as frutas. Segundo Tanara, resultados do trabalho ainda não publicados mostram efetiva preservação da cor das maçãs, mesmo cortadas
ao meio, sobre as quais a cobertura com propriedades antioxidantes foi aplicada. O passo para todos esses produtos chegarem ao mercado depende de alguns fatores. Henriette, da Embrapa, na década passada desenvolveu um filme à base de polpa de manga, com a adição de nanofibras de celulose obtidas da fibra do algodão (ver Pesquisa Fapesp nº 176), que não chegou a gerar patentes nem produto comercial. “Na época, algumas empresas me contataram, mas nenhuma se interessou em levar a tecnologia para o mercado”, conta. “Os filmes ainda não são produzidos industrialmente. Não foram feitos estudos de ampliação de escala e, portanto, seu custo é apenas estimado e considerado elevado. Por isso, são de difícil competição com os plásticos sintéticos”, comenta o professor Paulo Sobral, da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos, da Universidade de São Paulo (USP), de Pirassununga. “O uso de resíduos poderia reduzir o preço final do bioplástico, mas é muito difícil quantificar o valor porque depende da formulação, da escala e do tipo de biopolímero”, diz Mattoso. Os trabalhos dos três grupos geraram artigos recentes publicados em periódicos científicos. Os que estão mais próximos de serem transformados em produtos comerciais são os filmes criados por Mattoso. “Já realizamos a prova de conceito, desenvolvemos várias formulações de embalagens e um processo de produção em escala piloto”, conta. Até o momento, sete empresas interessadas nos filmes comestíveis entraram em contato com a Embrapa. “Estamos em negociação com algumas delas. Ao acertar com uma empresa e fazer um contrato de parceria, partiríamos para adequar a formulação e desenvolver o produto final”, diz Mattoso. n
Projeto Estudo e otimização de biocompósitos poliméricos comestíveis formulados com resíduos do processamento de frutas e hortaliças e reforçados com fibras vegetais (nº 2014/23098-9); Modalidade Bolsa no País – Regular – Doutorado Direto; Bolsista Caio Gomide Otoni (Embrapa); Pesquisador responsável Luiz Henrique Capparelli Mattoso (Embrapa); Investimento R$ 92.264,64.
Artigos científicos Sartori, T. et al. Development and characterization of unripe banana starch films incorporated with solid lipid microparticles containing ascorbic acid. Food Hydrocolloids. v.55, p. 210-19. abr. 2016. Azeredo, H. M. C. et al. Development of pectin films with pomegranate juice and citric acid. Food Chemistry. v. 198, p. 101-6. mai. 2016.
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química y
Diagnóstico precoce de câncer Novos biossensores devem detectar tumor no pâncreas e ovário com mais rapidez
eduardo cesar
Yuri Vasconcelos
76 z abril DE 2016
O
Dispositivo eletrônico desenvolvido no Instituto de Física de São Carlos da USP: sobre ele uma camada de anticorpos que reconhecem o antígeno relacionado ao câncer de pâncreas
Brasil deverá ter 600 mil novos casos de câncer em 2016, segundo estimativa do Instituto Nacional do Câncer (Inca). Como o diagnóstico precoce é uma das principais armas para combater a doença, duas equipes de pesquisa de São Paulo desenvolveram um novo dispositivo para a detecção de tumores no estágio inicial. Um grupo do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP), em colaboração com o Hospital de Câncer de Barretos, no interior paulista, criou um biossensor para diagnóstico do câncer de pâncreas. Em Araraquara, pesquisadores do Centro de Desenvolvimento de Materiais Funcionais (CDMF), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP, desenvolveram outro biossensor capaz de detectar tumores de ovário e hepatite C, outra enfermidade prevalente no país. Os dois dispositivos estão em fase de protótipo e ainda precisam da aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para serem usados em hospitais, laboratórios de análises clínicas e consultórios médicos. Os biossensor são dispositivos que utilizam em sua estrutura um elemento biológico de reconhecimento, como uma enzima, um anticorpo ou um antígeno, para medir de modo seletivo determinadas substâncias relacionadas ao câncer e outras enfermidades presentes em amostras de sangue. A ideia dos dois grupos que pesquisam biossensores e trabalham de forma independente, é criar também aparelhos portáteis, similares aos glicosímetros usados hoje para medição das taxas de glicose no sangue, que façam a leitura do resultado do teste e indiquem se o paciente é ou não portador de câncer (ver infográfico). Um dos métodos mais conhecidos para diagnóstico de câncer, já implementado em grande escala, é o teste Elisa. Trata-se de um exame de sangue que se baseia também na interação espe-
cífica entre antígenos e anticorpos e a detecção é feita por meio de reagentes e reações enzimáticas. Nos biossensores não há necessidade de enzimas intermediárias, mas apenas a interação entre moléculas do antígeno e do anticorpo. O tempo de duração do teste Elisa é de 1h30 a 2 horas, enquanto no biossensor o tempo pode ser reduzido para 30 minutos. Outras vantagens são o uso de sangue no biossensor, cerca de quatro vezes menor em relação ao Elisa, e a sensibilidade maior, em mil vezes, do novo tipo de exame. “O objetivo do nosso trabalho é criar um método mais barato e simples”, explica o físico Andrey Soares, doutorando do Grupo de Polímeros Bernhard Gross do IFSC e responsável pela criação do biodispositivo para detecção de câncer de pâncreas. “Na literatura científica, há relatos de diferentes biossensores para essa doença utilizando técnicas eletroquímicas ou ópticas. O nosso é baseado em medidas elétricas.” O estudo foi feito sob a orientação de Osvaldo Novais de Oliveira Junior, professor no IFSC, com a participação de pesquisadores do Hospital de Câncer de Barretos. Na análise dos dados colhidos pelo biossensor foram empregados métodos computacionais para visualização, desenvolvidos pelos professores Fernando Vieira Paulovich e Maria Cristina Ferreira de Oliveira, do Instituto de Ciências Matemáticas e da Computação (ICMC) da USP de São Carlos. O dispositivo eletrônico criado na USP é formado por duas finas películas: uma contendo quitosana (polissacarídeo retirado da casca do camarão) e concanavalina A (proteína extraída das sementes de feijão-de-porco) e outra com uma camada ativa de anticorpos capazes de reconhecer o antígeno CA19-9. Presente no organismo humano, esse antígeno tem sua concentração aumentada em pessoas acometidas de câncer de pâncreas. Essas duas películas em escala nanométrica repousam sobre um eletrodo (material pESQUISA FAPESP 242 z 77
condutor de eletricidade) impresso em uma fita, parecida com as usadas em testes rápidos de índice glicêmico. “Ao colocarmos a amostra de sangue do paciente sobre o biossensor, há uma interação com a camada ativa de anticorpos, gerando um sinal elétrico que nos permite saber se existe ou não uma quantidade excessiva de CA199 no material coletado”, diz Soares. Um dos principais desafios na produção de um biossensor, explica Osvaldo, é preservar a função das biomoléculas que servem como elementos ativos do dispositivo. Para tanto, empregam-se matrizes feitas com materiais que ajudam na preservação da atividade da biomolécula. “Em nosso biossensor, o papel de matriz é desempenhado pela quitosana e concanavalina A, dois materiais de baixo custo e que podem ser obtidos de fontes naturais. A concanavalina A interage com a quitosana formando um filme fino estável na superfície do eletrodo”, diz o físico Osvaldo, eleito em janeiro deste ano presidente da Sociedade Brasileira de Pesquisa em Materiais (SBPMat). “A estabilidade é importante para a imobilização mecânica da camada ativa, permitindo a construção de dispositivos com alta sensibilidade e seletividade.” A pesquisa conta com financiamento da FAPESP e parceria com o Hospital de Câncer de Barretos. “Até o momento, nossos ensaios foram feitos com células cancerosas produzidas em laboratório. O próximo passo será a realização de testes com amostras reais de sangue de pacientes”, conta Andrey Soares. Segundo ele, ainda não foi definido o número de amostras de pacientes.
N
o CDMF, instalado no Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (IQ-Unesp) de Araraquara, a investigação para desenvolvimento do biossensor para detecção de câncer de ovário e hepatite C foi coordenada pela professora Maria Aparecida Zaghete Bertochi, com a colaboração do mestrando João Paulo de Campos da Costa e das doutorandas Gisane Gasparotto e Glenda Biasotto. O professor Paulo Inácio da Costa, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unesp, e a pesquisadora Talita Mazon, do Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer (CTI), também colaboraram com o trabalho. O biossensor tem uma arquitetura similar à do dispositivo da USP: uma camada ativa com biomoléculas, uma matriz estabilizadora – nesse caso, formada por cistamina e glutaraldeído – e um eletrodo de trabalho, responsável por converter o sinal gerado pela interação química entre as biomoléculas e os marcadores das doenças-alvo em um sinal elétrico. “Nosso biossensor é um dispositivo analítico que converte a resposta de uma reação imunoquímica, bioquímica ou biológica em um sinal mensurável. Ele é descartável e
78 z abril DE 2016
Teste biotecnológico Com uma gota de sangue, os biossensores podem detectar um tipo de câncer específico. Eles têm camadas ultrafinas que interagem e emitem um sinal elétrico
1
Os biossensores
Nanopartículas de ouro
2
As biomoléculas são
são dotados de
depositadas em
biomoléculas, como
filmes ultrafinos, em
antígenos, anticorpos
geral de espessura
ou enzimas, que têm
nanométrica,
interação específica
formando a
com marcadores de
camada ativa
Nanobastão de zinco
doenças
3 Uma matriz formada por diferentes materiais como quitosana e concanavalina ou Camada de ouro Substrato de vidro
cistamina e glutaraldeído é usada para fixar as biomoléculas no dispositivo
Fonte: IFSC/USP e IQ/Unicamp
seu método de medida eletroquímica faz com que o diagnóstico tenha um custo reduzido quando comparado aos sistemas atuais”, explica o engenheiro eletricista João Paulo. Hoje, o resultado no biossensor é dado em uma hora e os pesquisadores trabalham em modificações para reduzir esse tempo para 10 minutos. Os testes atuais para detecção de No diagnóstico hepatite são o Elisa e outros, que para hepatite C, servem para confirmar o resultado positivo, baseados em proteío sensor detecta nas do vírus. Ao todo demoram mais de duas horas. anticorpos Por enquanto, o biossensor é capaz de diagnosticar o cânespecíficos da cer de ovário e a hepatite C proteína do vírus de forma individual – ou seja, uma doença por vez. O objetivo é aprimorá-lo para a detecção conjunta de mais doenças. No caso do câncer de ovário, o dispositivo permite a detecção de uma glicoproteína de alto peso molecular, denominada antígeno CA 125, que é associada ao aparecimento do câncer. Estudos apontam que 90% das mulheres que apresentaram elevada concentração
Antígeno Anticorpo
Antígenos Anticorpos
Nanobastão de zinco
6
4
5
Esse sistema de transdução do sinal é
do biossensor, indicando a
a matriz de imobilização
capaz de transformar as alterações
presenca ou não dos
se liga quimicamente
causadas pela interação entre as
biomarcadores – e, em caso
sobre o eletrodo, que
biomoléculas e os marcadores presentes
positivo, a concentração da
funciona como um sistema
na amostra sob análise em um sinal
substância no sangue ou no fluido
de transdução do sinal
elétrico, eletroquímico ou óptico
que serviu de amostra
A camada ativa contendo
infográfico ana paula campos ilustração Alexandre Affonso
Camada de imobilização
dessa glicoproteína no sangue desenvolveram a doença. “Um anticorpo monoclonal foi ligado à superfície do eletrodo de trabalho com a finalidade de, na presença do antígeno CA 125, ligar-se especificamente a essa glicoproteína e promover uma interferência na corrente elétrica do dispositivo”, explica João Paulo. Para diagnóstico de infecções virais da hepatite C, o mesmo sensor possibilita a detecção de anticorpos específicos para uma proteína presente no vírus. “Se a proteína de interesse estiver presente no sangue, a ligação entre ela e o anticorpo incubado no eletrodo produz um sinal que altera o potencial elétrico do eletrodo. Um software interpreta esse sinal e o diagnóstico é realizado”, diz o pesquisador da Unesp. O Ministério da Saúde estima que entre 1,4 milhão e 1,7 milhão de pessoas no país podem ter tido contato com o vírus causador da hepatite C, sendo que parte desse contingente desenvolverá a infecção crônica. De acordo com os pesquisadores da Unesp, um pedido de patente do biodispositivo será submetido em breve ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi). O projeto para desenvolver um equipamento portátil para a leitura do biossensor já está em andamento em colaboração com a área de Processamento de Sinais e Instrumentação do Programa de Pós-graduação em Engenharia Elétrica da USP de São Carlos. Quando tudo estiver pronto, os pesquisadores da Unesp pensam em criar uma empresa para produzir e comercializar o aparelho.
Um aparelho portátil faz a leitura
Segundo o professor Emanuel Carrilho, do Instituto de Química da USP de São Carlos e membro do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Bioanalítica (INCT Bioanalítica), os biossensores para detecção de câncer constituem uma linha de pesquisa que teve forte desenvolvimento nos últimos anos. “O maior desafio hoje é identificarmos as moléculas que indiquem que o câncer está em seu estágio inicial”, diz Carrilho. “Uma vez que tenhamos, de fato, esses biomarcadores preditivos, os biossensores serão ferramentas importantes para o diagnóstico precoce da doença.” n
Projetos 1. CDMF – Centro de Desenvolvimento de Materiais Funcionais (n° 2013/07296-2); Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisador responsável Elson Longo (Unesp); Investimento: R$ 20.965.210,37 (durante cinco anos). 2. Filmes nanoestruturados de materiais de interesse biológico (nº 2013/14262-7); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Osvaldo Novais de Oliveira Junior (USP); Investimento R$ 2.539.907,03. 3. Desenvolvimento de nanoestruturas e filmes de ZnO para aplicação em sensores e nanogeradores (nº 2011/19561-7); Modalidade Bolsa no País – Regular – Doutorado; Bolsista Glenda Biasotto (IQ-Unesp); Pesquisadora responsável Maria Aparecida Zaghete Bertochi (IQ-Unesp); Investimento R$ 31.239,12. 4. Desenvolvimento de nanoestruturas e filmes de ZnO para extração de energia: nanogeradores e piezotrônicos (nº 2012/11979-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Maria Aparecida Zaghete Bertochi (Unesp); Investimento R$ 296.813,67.
Artigo científico Soares, A.C. et al. Controlled film architectures to detect a biomarker for pancreatic cancer using impedance spectroscopy. ACS Applied Materials & Interfaces. v. 7, n. 46, p. 25930-7. nov. 2015.
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humanidades história y
Saída de escravos da senzala para a roça em 1861: atividade agrícola serviria de aprendizado para sustento econômico dos quilombos
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A economia dos quilombos Trocas de excedentes agrícolas com o entorno ainda sobrevivem nas comunidades rurais negras da atualidade Márcio Ferrari
Foto Victor frond – litografada pelos artistas de paris, 1861. Paris, lemercier, imprimeur-litographe. biblioteca brasiliana guita e josé Mindlin reprodução renato parada
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á no Brasil hoje, segundo levantamento do pesquisador Flávio dos Santos Gomes, quase 5 mil comunidades negras rurais remanescentes de antigos quilombos de escravos fugidos. Ao tentar estudar o fio de continuidade entre a atualidade e o passado escravista, Gomes encontrou um hiato desde a abolição da escravidão (1888) até pouco menos de 100 anos depois, quando as comunidades quilombolas vieram a ganhar visibilidade com a oficialização do termo “remanescente de quilombos” na Constituição de 1988. Historiador e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o pesquisador estuda a escravidão desde o início dos anos 1990. As fontes habituais sobre o assunto, como processos-crimes, registros policiais e relatos de jornais, “falavam dos quilombos e das tentativas de destruí-los e capturar seus habitantes”, de acordo com o pesquisador, mas não do modo como sobreviviam. “Resolvi partir de outra perspectiva”, conta Gomes. “Fui estudar as comunidades negras rurais em todo o país, suas origens e transformações, principalmen-
te no período pós-abolição. Vi que era possível avaliar a formação de um campesinato negro no Brasil.” O resultado do trabalho está no livro recém-lançado Mocambos e quilombos – Uma história do campesinato negro no Brasil (Companhia das Letras), baseado principalmente na pesquisa “Cartografias da plantation: demografia, cultura material e arqueologia da escravidão e do pós-emancipação do Brasil”, em curso no Instituto de História da UFRJ, com o apoio da Fundação Guggenheim, dos Estados Unidos, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O livro inclui a lista de todos os quilombos remanescentes no país. O traço de continuidade entre o passado e o presente foi encontrado na atividade comercial. A visão tradicional é de que os mocambos e quilombos – denominações que, em épocas e lugares diferentes, designaram o mesmo fenômeno – eram redutos isolados de negros fugitivos que apenas produziam para consumo próprio. “O tempo todo pESQUISA FAPESP 242 z 81
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as comunidades estavam conectadas com agentes da sociedade do seu entorno, como taberneiros, vendeiros e redes mercantis”, afirma Gomes. “Eram aglomerados agrários articulados, e os excedentes de sua produção abasteciam as redes locais, compostas por fazendas, vilas, feiras e entrepostos de trocas.” Com as transações comerciais, vieram também intercâmbios religiosos e culturais e miscigenação étnica. A atividade econômica nos quilombos, que sobrevive, em essência, nos atuais aglomerados remanescentes, teria sua origem numa peculiaridade da escravidão no Brasil: o hábito dos senhores de conceder parcelas de terra e um ou dois dias por semana aos escravos para o cultivo de alimentos, a fim de se manterem. Era um modo de os proprietários se eximirem dos gastos com o sustento dos cativos, pelo menos em parte, mas havia outras razões, como reforçar o “amor à terra” para desestimular as insurreições e fugas em grupo. Nesse aspecto, o efeito foi o oposto: o hábito e o domínio da agricultura, incluindo a comercialização de excedentes, inspiraram escravos a fugir e a construir uma vida sustentada pelo cultivo da terra. “A economia dentro da fazenda foi também fundamental para 82 z abril DE 2016
a constituição de famílias e a criação de uma margem de autonomia financeira, com uma lógica contrária à da plantation, que era a da monocultura”, diz Maria Helena Machado, professora do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e especialista em história social da escravidão. ATAQUE E DEFESA
A experiência da roça nas propriedades dos senhores de escravos brasileiros já havia sido analisada pelo historiador Ciro Flamarion Cardoso (1942-2013) e pelo antropólogo norte-americano Sidney Mintz (1922-2015), ambos nos anos 1970. Cardoso criou a expressão “protocampesinato” e utilizou o conceito de “brecha camponesa” em referência ao fenômeno. Para Gomes, que explorou a questão no livro A hidra e os pântanos (Unesp/Polis, 2005), tais termos revelam uma subavaliação da importância das roças permitidas pelos proprietários de escravos na formação de um campesinato negro autônomo. Também não havia naqueles estudiosos a dimensão de continuidade que chegaria até os dias de hoje. “A importância dos estudos de
Mulheres escravas preparam comida durante a colheita do café no século XIX
Flávio Gomes é ligar a experiência da roça ao quilombo e este à comunidade camponesa”, comenta Maria Helena. Quilombos existem desde pelo menos 1575, quando se deu o primeiro registro da existência de um “mocambo” na Bahia. Gomes explica essa precocidade pela ideia de que não havia forma de protesto mais eficaz contra o escravismo do que a fuga. “Muitas escapadas coletivas foram antecedidas de levantes ou motins”, diz o historiador. Os quilombos nunca eram totalmente fixos e contavam com os locais de difícil acesso, como montanhas, cavernas, florestas e manguezais, como refúgio. Diante dos grandes prejuízos com a perda de mão de obra, fazendeiros mandavam capitães do mato e tropas irem ao encalço dos fugitivos, o que não impedia as comunidades de se multiplicarem. “O surgimento de um quilombo atraía a repressão, assim como mais fugas para ele”, conta Gomes. Além disso, quilombolas, portando armas artesanais
fotos 1 victor frond – litografada pelos artistas de paris, 1861, paris lemercier, imprimeur-litographe. biblioteca brasiliana guita e josé mindlin. reprodução renato parada 2 e 3 eduardo cesar
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ou pistolas e espingardas roubadas ou cedidas por parceiros comerciais, faziam expedições que induziam os cativos das senzalas a escapar e realizavam sequestros para aumentar a população da comunidade fugitiva. A articulação entre quilombolas e escravos das senzalas de grandes engenhos provocou uma rebelião no engenho de Santana, na Bahia, em 1789. Ocorreram sucessivos levantes até 1828, período em que se formou, de acordo com Gomes, uma economia camponesa de negros fugidos. Os quilombos costumavam ser cercados por valas e madeiras pontiagudas, mas seus habitantes não se limitavam a se proteger. “Circunstâncias de tempo e lugar faziam de alguns quilombos unidades de guerrilha, espalhando o medo nas fazendas”, diz o pesquisador. A forma mais eficaz e lucrativa de proteção, entretanto, era a formação da rede de parceiros econômicos, incluindo outros roceiros, garimpeiros, pescadores, mascates e quitandeiros, indígenas e soldados desertores, além de escravos ao ganho, aqueles que compravam a alforria dos senhores. Na década de 1870, a lenha que abastecia a Corte imperial era produzida por quilombolas do mangue do rio Iguaçu, no estado do Rio de Janeiro, e comercializada por escravos recém-libertos. “Os quilombos continuaram a se reproduzir mesmo com o fim da escravidão, porém não foram mais encontrados na documentação da polícia e nas denún-
Trabalhadores transportam produtos e colhem arroz no quilombo de Morro Seco (SP), em 2015
cias dos jornais”, diz Gomes. Nos primeiros tempos pós-Lei Áurea, “continuaram migrando, desaparecendo, emergindo e se dissolvendo no emaranhado das formas camponesas do Brasil”, mantendo a característica de interagir e misturar-se com seus entornos. O pesquisador atribui a invisibilidade dos quilombos depois da abolição aos recenseamentos populacionais e censos agrícolas que não tinham critérios claros e constantes sobre raça ou cor e não sabiam como classificar atividades econômicas “entre a agricultura familiar, o trabalho sazonal e o extrativismo”. Além disso, as comunidades negras rurais do início do século XX eram marcadas por deslocamentos determinados por arranjos de moradia e trabalho. O sustento principal continuou sendo o comércio da produção agrícola. “Muitas comunidades fabricam farinha e, como no passado, vendem parte da produção”, diz Gomes. A antropóloga Neusa Gusmão, professora aposentada da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), relativiza a continuidade estrita entre os aglomerados de escravos fugidos e as atuais comunidades negras
rurais. “Não se pode dizer com certeza que o campesinato negro atual seja originário de antigos quilombos”, diz ela, que pesquisou e escreveu sobre cultura negra no campo. “A denominação atual de quilombo obedece a uma reconfiguração do termo que os identifica como ligados à terra e a práticas culturais próprias.” Ela concorda, entretanto, que a invisibilidade desses grupos nos anos de 1970 e 1980 “era quase absoluta, tanto no meio social quanto no acadêmico”. O ganho de visibilidade, para o qual contribuiu o aperfeiçoamento dos métodos de pesquisa demográfica, teve na Constituição de 1988 apenas uma de suas etapas. No mesmo ano, a questão dos quilombos associados à identidade negra foi trazida à tona pelos eventos e protestos organizados para lembrar os 100 anos da abolição. Algo semelhante ocorreu em 1995, nos 300 anos da morte de Zumbi, líder de Palmares, o quilombo mais conhecido. Segundo o pesquisador, tem sido importante a atuação de entidades como a Fundação Cultural Palmares, ligada ao Ministério da Cultura, que reconhece e certifica as comunidades remanescentes de quilombos, e principalmente dos estudos acadêmicos em várias áreas que “têm ajudado a articular os movimentos sociais em torno dessas comunidades”. n
Livro Gomes, F. S. Mocambos e quilombos – Uma história do campesinato negro no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, 238 p.
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Diante do silêncio sobre a morte Profissionais da saúde deveriam falar sobre o assunto entre si e com a família dos pacientes, sugerem especialistas
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m agosto de 2015, Regina Szylit Bousso, professora da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP), voltou de uma temporada de seis meses de pesquisa em um hospital pediátrico da Universidade George Washington, Estados Unidos, disposta a motivar médicos, enfermeiros e outros especialistas a falar mais, com mais segurança e mais naturalidade sobre a morte. “Lidamos com essa possibilidade [de morte do paciente] o tempo todo, mas os profissionais da saúde ainda falam pouco sobre o fim da vida entre eles e com as famílias”, observa Regina, agora à frente de cursos e de entrevistas com equipes de hospitais para rever a forma de tratar esse assunto. Desde 1985 trabalhando em unidades de terapias intensivas, onde o risco de morte dos pacientes é sempre alto, ela tem visto que em geral as equipes dos hospitais continuam retraídas, expondo pouco as opiniões, o que, a seu ver, poderia levar a decisões erradas sobre o melhor tratamento ou cuidados a serem oferecidos a um paciente no fim da vida. Da comunicação precária resultam também lembranças inesquecíveis para quem perdeu um familiar em um hospital. Em uma das pesquisas do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em Perdas
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e Luto (Nippel) da Escola de Enfermagem da USP, que ela coordena, Maiara Rodrigues dos Santos entrevistou mulheres de São José dos Campos, no interior paulista, cujos filhos haviam morrido em hospitais. Dez anos depois, as mulheres se lembravam com gratidão ou ressentimento de detalhes do atendimento e dos nomes de médicos e enfermeiros que elas acharam que haviam lhes tratado bem ou mal. Procurando enfrentar essa situação, Regina coordenou um curso extracurricular para cerca de 40 enfermeiros, psicólogos e terapeutas ocupacionais interessados em se preparar melhor para atender os doentes e as famílias. Na primeira aula, no dia 2 de fevereiro, uma de suas primeiras perguntas aos participantes foi: “Vocês já estiveram ao lado de uma pessoa morrendo?” Aos poucos brotaram relatos pessoais que indicavam a necessidade de mais informação sobre como lidar com o fim da vida, algo pouco lembrado nos cursos de medicina e enfermagem. Uma das enfermeiras relatou que não sabia o que fazer para amparar uma mulher que havia perdido o bebê no parto, teve de ficar entre as mulheres que amamentavam enquanto se recuperava e se sentia envergonhada de voltar para casa e ter de explicar para a família que o filho tinha morrido ao
eduardo cesar
Carlos Fioravanti
Retrato da dor: escultura em cemitério da cidade de São Paulo expressa a solidão e a angústia de uma mulher diante da morte
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nascer. Para Regina, “a dor da outra pessoa deve ser reconhecida e respeitada, para que a perda possa ser atravessada com menos sofrimento”. Outra pergunta feita aos participantes do curso promovido na Escola de Enfermagem da USP: “Quem conversa sobre a morte em sua família?”. Poucos. A maioria conhecia o Testamento Vital, uma declaração aprovada pelo Conselho Federal de Medicina em 2012 que determina os tratamentos ou procedimentos aos quais uma pessoa aceita ou não ser submetida quando não puder mais escolher de modo consciente. Poucos participantes, porém, haviam feito o testamento para eles próprios ou para familiares, indicando que esse assunto raramente é lembrado, inclusive nos cursos de enfermagem e medicina. O mesmo acontece nas escolas de ensino fundamental e médio. “Nas escolas hoje se fala de sexo, antes um assunto proibido, mas quase não se toca em assuntos como morte e luto, mesmo quando as crianças perdem amigos ou professores”, comenta Regina. Não se trata de um fenômeno exclusivo do Brasil. Com base em 15.617 entrevistas com pessoas com pelo menos 65 anos de 11 países (Austrália, Canadá, França, Alemanha, Holanda, Nova Zelândia, Noruega, Suécia, Suíça, Reino Unido e Estados Unidos), uma equipe da Commonwealth Fund, fundação americana que apoia pesquisas em saúde, verificou que apenas 12% dos entrevistados na França falam com os familiares e amigos sobre os cuidados que aceitariam receber se estivessem muito doentes e não pudessem decidir por conta própria; inversamente, a porcentagem é de 78% nos Estados Unidos e 72% na Alemanha. Em 10 de dezembro de 2014, falando para um programa de rádio da BBC, Tony Walter, diretor do Centro da Morte e Sociedade da Universidade de Bath, Inglaterra, observou que as pessoas ainda se sentem inseguras sobre como expressar seus sentimentos com relação à morte de familiares. Seu comentário marcava o lançamento de uma campanha com sugestões de medidas de apoio a pessoas que perderam familiares e poderiam precisar de mais atenção principalmente em épocas como o Natal, em que a perda é sentida com maior intensidade. Cuidados paliativos
“Muitos médicos acham que falar em insucesso de tratamento é se declarar fracassado. Eles preferem sempre animar o paciente, muitas vezes o submetendo a procedimentos dolorosos e desnecessários, sem brecha para falar da morte, até se ver à porta dela”, observa Maria Goretti Sales Maciel, diretora do Serviço de Cuidados Paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo e presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP). Cuidados paliativos 86 z abril DE 2016
são as medidas de apoio que procuram melhorar a qualidade de vida de uma pessoa com uma doença grave, e de seus familiares. A ausência de diálogo sobre o fim da vida pode levar ao que ela chama de transferência de responsabilidade: quando o médico, diante da morte iminente, pergunta aos familiares o que gostariam que ele fizesse pelo paciente. “Quando as possibilidades de tratamento são conversadas entre a equipe, os familiares e o paciente desde o início, é muito mais confortável para todos.” Ela lembra de uma situação recente: a equipe de cuidados paliativos reconheceu que estava em dúvida se haveria benefícios compensadores em tratar uma mulher com câncer avançado no cérebro com radioterapia e decidiu conversar com a paciente. “Ela também não queria passar pela radioterapia e voltou para casa. Temos de decidir em conjunto”, diz Maria Goretti, que tem formação em medicina da família e da comunidade. Em um estudo realizado com 300 famílias de pessoas com câncer internadas na unidade de terapia intensiva do A.C.Camargo Cancer Center, em São Paulo, a psicóloga Renata Fumis, atualmente pesquisadora no Hospital Sírio-Libanês, verificou que a maioria dos familiares de pacientes (78,6%) deseja participar da decisão sobre a eventual retirada do tratamento de suporte de vida, como a ventilação artificial, principalmente em casos muito graves. Em outro estudo no A.C. Camargo, ela verificou que metade das 164 famílias entrevistadas não entendia o diagnóstico, o tratamento ou o prognóstico dos pacientes internados, uma proporção muito próxima à verificada em levantamentos realizados na França e na Índia. “Quanto mais tempo a equipe do hospital dedicar à família, ouvindo o que dizem, reconhecendo suas emoções e respondendo às dúvidas, maior será a satisfação com o atendimento e menor o estresse emocional”, diz Renata. A “comunicação sensível e empática entre profissionais, pacientes, parentes e colegas” é uma das ações propostas às equipes que cuidam de pacientes sem possibilidades de cura, segundo o manual publicado em 2012 pela ANCP, mas ainda há muitos desafios nessa área. “A prática [dos cuidados paliativos] ainda carece de regulamentação, definições e inserção nas políticas assistenciais, tanto no setor público como no privado”, reconhece o documento. “A maioria das equipes trabalha sem educação formal e o conhecimento se baseia nas iniciativas autodidatas de profissionais dedicados e cursos de curta duração, muitas vezes sem adequação à nossa realidade.” Uma das estratégias adotadas pela equipe da USP para ajudar as famílias a lidar com os sentimentos ligados à perda, como a tristeza, a ansiedade e a angústia, são as chamadas cartas terapêuticas, enviadas geralmente às mães alguns
meses depois da perda de um filho, reconhecendo a coragem das mulheres ao longo dos meses de internação, por meio de um vocabulário que elas próprias usaram nas conversas com a equipe do hospital, como descrito em um artigo da equipe da USP publicado na Online Brazilian Journal of Nursing em 2010.
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Tensão contínua
“Os pais precisam reconstruir o significado das perdas que sofreram e encontrar novos sentidos para a vida”, diz Regina. Ela conta que nos Estados Unidos as pessoas falam mais abertamente sobre morte. Hospitais que ela visitou durante seis meses em Washington promovem ações com o propósito de aliviar a angústia dos familiares, como acampamentos ou celebrações, quando os participantes escrevem um bilhete para pessoas que morreram; depois a mensagem é colocada em um balão, solto no pátio do hospital. “Podemos falar de morte de muitos modos, sem necessariamente mencionar a palavra morte. Por exemplo: ‘Como está sendo passar por este momento? Como podemos planejar os próximos dias? Que cuidados vocês esperam para o seu filho agora e nos próximos dias?’ .”
Tanto quanto os familiares dos pacientes, médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem e fisioterapeutas que trabalham com pacientes em estado grave necessitam de cuidados, por apresentarem exaustão emocional, baixa realização pessoal e outros sintomas de uma síndrome chamada burnout, concluiu Renata Fumis, com base em um levantamento recém-concluído. “O burnout está associado ao sofrimento moral quando, por exemplo, a equipe assiste o prolongamento da vida dos pacientes inutilmente”, disse ela. O pneumologista Pedro Paulo Ayres pretende começar neste mês de abril exercícios de simulação de atendimento a pacientes em unidades de terapia intensiva com médicos, enfermeiros, fisioterapeutas e farmacêuticos em uma das salas do centro de treinamento do Sírio-Libanês. Por meio de monitores, os profissionais mais experientes acompanham as decisões e o comportamento da equipe. Desse modo se pretende promover a liderança, o respeito à equipe e a comunicação clara. “Queremos reduzir o desequilíbrio de poder nas decisões, resolver os conflitos e dar voz a todos os integrantes das equipes”, disse ele. Há um ano, a oncologista Ana Lucia Coradazzi, do hospital Amaral Carvalho, de Jaú, interior paulista, mantém um blog (nofinaldocorredor. com) para apresentar histórias de pessoas que perderam familiares e mostrar que “a morte não precisa ser tão triste e tão amarga”. A médica tomou a iniciativa depois de anos observando colegas sem preparo para lidar com a morte evitando os pacientes e as famílias. Para ela, o sofrimento pode ser amenizado por meio do diálogo, da empatia e do reconhecimento dos desejos e dos valores dos pacientes e de seus familiares. “Temos de reconhecer os limites da ação médica e ver quando é necessário indicar outros profissionais para atender as famílias”, disse ela. n
Momento de conforto: o contato físico contribui para amenizar as inquietações das pessoas em hospitais
Projetos 1. A experiência da família e de profissionais em relação ao cuidado no final de vida da criança: a enfermagem na prevenção do luto complicado (nº 2014/19361-6); Modalidade Bolsas no Exterior – Regular (Children’s Research Institute, Estados Unidos); Pesquisadora responsável Regina Szylit Bousso (EE-USP); Investimento R$ 51.327,43. 2. Avaliação das condições físicas e psíquicas dos pacientes e familiares após a alta da UTI: análise das diferenças entre pacientes oncológicos e não oncológicos (nº 2011/05672-1); Modalidade Programa Jovens Pesquisadores em Centros Emergentes; Pesquisadora responsável Renata Rego Lins Fumis (Hospital Sírio-Libanês); Investimento R$ 321.467,40.
Artigos científicos BOUSSO, R. S. et al. A arte das cartas terapêuticas no cuidado de famílias enlutadas. Online Brazilian Journal of Nursing. v. 9, n. 2, 2010. CARVALHO, R. T. de e PARSONS, H. A. (orgs.). Manual de cuidados paliativos ANCP. 2ª ed. São Paulo: Academia Nacional de Cuidados Paliativos. 2012. FUMIS, R. R. L. e DEHEINZELIN, D. Respiratory support withdrawal in intensive care units: families, physicians and nurses views on two hypothetical clinical scenarios. Critical Care. v. 14, p. 1-8. 2010. OSBORN, R. et al. International survey of older adults finds shortcomings in access, coordination, and patient-centered care. Health Affairs. v. 33, n. 12, p. 2247-55. 2014.
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História da saúde y
Laboratório paulista
Preventivismo orientou a prática médica no estado de São Paulo na segunda metade do século XX
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fotos MUSEU HISTÓRICO DA FM-USP desenhos www.medicalantiques.com
Prédio atual da FM-USP em construção em 1931, Arnaldo Vieira de Carvalho durante o lançamento da pedra fundamental e aula no laboratório da instituição nos anos 1910
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os anos 1960 e 1970, o estado de São Paulo passou por uma reformulação nas políticas públicas de saúde, representada por novos modelos de gestão e produção científica, que vieram a definir o campo da saúde coletiva no Brasil e a influenciar a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) pela Constituição de 1988. Essa é a conclusão da pesquisa, em fase de finalização, “História da saúde coletiva no estado de São Paulo: Emergência e desenvolvimento de um campo de saber e práticas”, do historiador André Mota, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) e coordenador do Museu Histórico da
instituição. Foram feitas, segundo a metodologia da história oral, dezenas de entrevistas com agentes do campo da saúde coletiva em escolas e associações médicas paulistas e formuladores de políticas públicas de várias regiões, complementadas pela leitura de documentação institucional. “As diversas faculdades de medicina criadas no estado sob o impacto do preventivismo, entre as décadas de 1950 e 1960, criaram perspectivas para o surgimento, nos anos seguintes, de uma agenda pública que articulou relações entre medicina, saúde e sociedade”, argumenta Mota. Até o fim da década de 1950 só havia três faculdades de medicina no esta-
do: na capital, a da USP (1913) e a Escola Paulista de Medicina (1933) – que deu origem à Universidade Federal de São Paulo, Unifesp –, e a de Ribeirão Preto, um braço da USP no interior. Nos anos seguintes foram fundadas as faculdades de medicina de Botucatu (1962, hoje incorporada à Universidade Estadual Paulista, Unesp, criada em 1976), a de Campinas (em 1963, que foi a primeira unidade da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp, criada em 1966) e a Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de Misericórdia do Estado de São Paulo (1963), na capital. Foi na escola de Ribeirão Preto que a medicina preventiva ganhou imporpESQUISA FAPESP 242 z 89
tância e foi institucionalizada. “A criação do programa de residência médica, em 1962, foi um marco importante para a formação de um profissional com foco nas ações preventivas de saúde”, diz o professor Carlos Henrique Assunção Paiva, coordenador do Observatório História e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), citando um estudo do pesquisador Everardo Nunes, professor do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Unicamp. Em maior ou menor grau, todas as demais faculdades citadas também estruturaram seus currículos com base nas diretrizes da medicina preventiva. “Até então prevalecia a ideia de que o bom médico era um especialista em doenças que, como tal, teria o conhecimento para atuar no corpo do paciente”, conta Mota. “Depois, nos anos 1960 e 1970, passava-se a esperar dos profissionais uma intervenção social, para prevenir o surgimento de enfermidades.”
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Flexner, educador norte-americano cujos estudos orientaram a reforma da saúde brasileira no início do século XX
APOIO NORTE-AMERICANO
A medicina que se praticava em São Paulo desde a terceira década do século XX era fortemente marcada pelo modelo flexneriano, referência a Abraham Flex ner (1866-1959), educador norte-americano. Em 1908, Flexner publicou um relatório sobre os currículos de todas as 155 faculdades de medicina dos Estados Unidos e do Canadá que provocou uma reformulação do ensino médico nos dois países, marcada por padronização, treinamento prático e formação científica, com os hospitais-escola fazendo as vezes de laboratório de formação de novos médicos. Era essa a orientação da comissão da Fundação Rockefeller que veio ao Brasil em 1916 para uma avaliação do estudo da medicina no país, conjugada ao oferecimento de bolsas para brasileiros se formarem nos Estados Unidos. Em 1918, por intermédio do diretor da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo (futura FM-USP), Arnaldo Vieira de Carvalho (1867-1920), o governo de São Paulo assinou acordos com a fundação norte-americana e recebeu um aporte do qual US$ 1 milhão foi destinado à FM-USP. No mesmo ano foi criado o Instituto de Higiene (hoje Faculdade de Saúde Pública), anexo à Faculdade de Medicina e Cirurgia. “Até então o médico atuava no leito do paciente; com as novas concepções 90 z abril DE 2016
do âmbito da medicina, passou a ser necessário aos recém-formados o conhecimento de laboratório”, relata Mota, referindo-se à reforma Flexner. Já existia nessa época no Brasil a figura do médico sanitarista, que respondia à necessidade de uma atuação de profilaxia, entre eles Oswaldo Cruz e Vital Brazil, no Rio de Janeiro. “Surgiu um serviço sanitário nas principais capitais para fazer frente aos surtos epidemiológicos e criar um ambiente que não desestimulasse a vinda da mão de obra imigrante”, diz Tânia de Luca, professora do Departamento de História da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Assis, e pesquisadora da medicina paulista do início do século XX. A cidade de São Paulo, que crescia vertiginosamente – o que aumentava o risco de doenças contagiosas –, passou a contar com o Instituto Butantan (1901) e o Instituto Pasteur (1903), e o sistema médico passou por um aparelhamento, com a criação de laboratórios e bibliotecas. A instituição de cadeiras de especialida-
des demorou pelo menos uma década. Na FM-USP só ocorreu nos anos 1930. O quadro mudou depois da Segunda Guerra Mundial, quando emergiu mundialmente a ideia de estado de bem-estar social. É a fase da medicina preventiva. Os serviços de saúde começam a mapear as áreas urbanas carentes e vulneráveis e a deixar mais clara a relação entre pobreza e doença. “Embora fosse dado forte peso à prevenção, não se tratava de uma visão necessariamente democratizante”, observa Mota. “As ações públicas eram essencialmente intervencionistas, sem compartilhamento com os cidadãos. Não se reconheciam diferentes culturas e modos de vida. O saber ainda era cindido entre o normal e o patológico.” O surgimento das várias faculdades de medicina nos anos 1960 obedeceu à demanda feita por uma nova classe média surgida de uma fase de desenvolvimento no estado – a capital paulistana transformou-se definitivamente em centro financeiro e o interior ganhou impulso com a mecanização da agricultura. André Mota destaca a atuação nesse período de Walter Leser (1909-2004), professor do Departamento de Saúde Coletiva da FM-USP e duas vezes secretário estadual da Saúde, nos governos de Roberto de Abreu Sodré (1967-1970) e Paulo Egydio Martins (1975-1979).
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chamada reforma Leser, lançada em seu primeiro mandato, instituiu centros de saúde em todo o estado como “eixo da organização sanitária” e a criação de 622 postos de médicos sanitaristas, que só viriam a ser preenchidos integralmente em seu segundo mandato. Leser também criou cursos formadores para essa função na Faculdade de Saúde Pública. Foi com esse pano de fundo que se criou, com algum atraso em relação às instituições fundadas no início dos anos 1960, um Departamento de Medicina Preventiva na FM-USP em 1969. Segundo Mota, o ativismo político dos agentes envolvidos, de oposição ao regime militar, foi fundamental para a compreensão de uma visão de “saúde como dever do Estado”, lema incorporado à estruturação legal do SUS. Outra das “particularidades paulistas” que influiria no sistema de saúde nacional foi a descentralização do sistema. Sob a administração de Leser, alguns serviços, como pré-natal e puericultura,
Cursos criados no início dos anos 1960 incorporaram princípios da medicina preventiva 2
fotos 1 wikicommons 2 reprodução desenhos www.medicalantiques.com
Walter Leser (esq.), futuro secretário da Saúde, ao lado dos médicos Abrahão Rotberg e Julio Abramczyk em 1962
deixaram de ser da alçada de hospitais e foram assumidos pelos centros de saúde, aos quais coube também implementar medidas de medicina preventiva. Carlos Henrique Assunção Paiva cita ainda como avanço que viria a inspirar políticas de âmbito federal, “uma perspectiva que, ao legar profissionais como o parasitologista Samuel Pessoa, preocupado com questões sociais, colocou a ideia do saneamento rural como questão-chave a ser enfrentada”. Lina de Faria, professora da Universidade Federal do Sul da Bahia, campus Sosígenes Costa, e doutora em Saúde Coletiva, percebe a origem da medicina preventiva no Brasil num momento anterior. Segundo ela, “aquilo que depois ficou conhecido como medicina preventiva deu passos decisivos com a criação, em 1918, do Instituto de Higiene em São Paulo”. A pesquisadora vê ainda uma continuidade entre aquele período e as leis aprovadas na década de 1980. “A universalização da saúde já era uma bandeira dos sanitaristas dos anos 1920”, afirma
Lina. “O modelo de assistência básica, portanto, tem raiz profunda na história da saúde pública paulista e brasileira.” De acordo com Mota, os anos 1970 veem os conceitos da medicina preventiva serem em parte e lentamente contestados com o surgimento do campo da saúde coletiva. “A teoria deixa de ser tão normativa e a função dos profissionais da saúde perde em parte o caráter intervencionista e normativo para ganhar a de intérpretes do social”, diz o pesquisador. Segundo ele, uma característica central da saúde coletiva é a incorporação no campo do saber médico, inclusive no corpo docente das faculdades, de profissionais de outras áreas, como psicólogos, sociólogos, enfermeiros, antropólogos e historiadores. “Ampliou-se o raio de explicação da saúde”, afirma o pesquisador.
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ara Mota, trata-se de uma superação da dualidade entre as ideias de normalidade e patologia, próprias de uma perspectiva conservadora ao olhar para o paciente. Essa polarização, segundo ele, favorecia a ideia de um “corpo-máquina” voltado para a produtividade social e concepções moralistas em relação aos comportamentos “fora do padrão”. Exemplos de novidades trazidas pela saúde coletiva seriam a percepção de como os pacientes falam sobre o próprio corpo nas consultas, a compreensão da complementaridade entre o social e o corporal e o olhar para segmentos específicos da sociedade, como as mulheres negras. Um sinal representativo das mudanças de concep-
ções ocorreu na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, que trocou em 2011 o nome de seu Departamento de Medicina Preventiva para Departamento de Saúde Coletiva. O estudo é circunscrito a São Paulo, mas o pesquisador não subestima a importância de outros estados na formulação da política nacional de saúde. Para ele, a medicina paulista se destacou pela tecnologia, enquanto o Rio de Janeiro influiu nas políticas públicas, entre outros motivos por ter sido capital federal até 1960. Nesse aspecto, o Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), criado como Instituto Soroterápico em 1900, tem protagonismo nacional. Mota ressalta a atuação, na construção do SUS, do sanitarista e parlamentar Sergio Arouca (1941-2003), que foi presidente do IOC/Fiocruz entre 1995 e 1998. “No Rio de Janeiro as iniciativas em saúde modernas foram principalmente estatais, enquanto em São Paulo a benemerência exerceu um papel mais destacado”, conclui Mota. Para Paiva, “a trajetória da saúde pública brasileira pode ser percebida como um processo cumulativo, ainda que não linear, de longa duração”. Segundo ele, “nesse aspecto uma ‘herança paulista’ ganharia um lugar mais privilegiado na linha do tempo da saúde coletiva brasileira”. n Márcio Ferrari
Projeto História da saúde coletiva no estado de São Paulo: Emergência e desenvolvimento de um campo de saber e práticas (nº 2013/12137-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável André Mota (FM-USP); Investimento R$ 151.882,75.
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Arte
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Aprendizado no museu Mostra celebra 20 anos do setor educativo do MAM de São Paulo Maria Hirszman
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ducação como matéria-prima, exposição em cartaz no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, ilumina um aspecto pouco visível, mas fundamental para as instituições museológicas: a relação entre a experiência artística e a produção de conhecimento. A mostra, que celebra os 20 anos de atividade do setor educativo do museu, lida com aspectos importantes da criação e da percepção estética. Uma equipe fixa de sete educadores, responsáveis, entre outras tarefas, por uma agenda de programas permanentes e temporários, além de atendimento a escolas e formação de professores, constitui o setor. Na exposição atual, a educação não é apenas um tema ou um mote curatorial, mas um conjunto de obras em diálogo, de sete autores, que compartilham o fato de terem o conhecimento, o aprendizado e a relação entre o público e a obra como elementos constitutivos do próprio trabalho artístico.
Sem título, 1946, do fotógrafo esloveno Evgen Bavcar, figura central da exposição
fotos 1 Evgen Bavcar / divulgação 2 Rafael Roncato 3 Everton Ballardin
“O museu é uma escola: o artista aprende a se comunicar e o público aprende a fazer conexões.” Esta frase do artista uruguaio Luis Camnitzer, estampada na fachada do museu, sintetiza a proposta da mostra. “Nosso objetivo é levar o visitante a desenvolver uma percepção própria, com atribuição e ampliação de sentido”, explica Daina Leyton, curadora da mostra e docente convidada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ao lado de Felipe Chaimovich, professor titular do curso de Artes Plásticas da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap). Toda a exposição foi concebida para reforçar essa abertura perceptiva, que orientou a seleção das obras e as atividades para o público dos educadores e dos artistas, encarregados de uma série de debates, oficinas e outras atividades até o encerramento da mostra, em 5 de junho. Dois trabalhos pertencentes ao acervo do museu foram escolhidos como eixos centrais do projeto curatorial: as obras Café educativo, de Jorge Menna Barreto, e Expediente, de Paulo Bruscky. Ambas dependem da presença e da ação do público para serem ativadas. Como só adquirem significado quando vivenciadas pelo público, tornam-se instrumentos de mobilização da percepção poética. Café educativo, uma obra em curso, alterada a cada apresentação, consiste na instalação de um café no espaço expositivo, que funciona como uma ilha de mediação não diretiva entre os educadores e o público. Na atual versão o artista optou por adotar móveis baixos, almofadas e mesinhas de leitura, podendo-se andar descalço e folhear livros enquanto se toma um café. Expediente traz para dentro da sala de expo-
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Acima e abaixo, duas visões da obra Café educativo, de Jorge Menna Barreto, que aproxima educadores e visitantes
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sições o ambiente de trabalho dos educadores do museu. Seus escritórios foram transferidos para o espaço expositivo, e é lá que estão trabalhando até o fim da exposição. “A presença do setor educativo ali é visível, está acontecendo de fato. Não é uma obra de arte passiva”, destaca Chaimovich. O diálogo entre arte e público prossegue nos outros trabalhos da mostra. Stephan Doitschinoff, por exemplo, criou especialmente para a exposição um videogame que lida com noções inspiradas no pensador francês Michel Foucault. Com ironia, as fases do jogo estão associadas àquilo que Foucault classificava de instituições disciplinares, como a escola, a indústria, o manicômio ou o condomínio. Para jogar, é preciso ajoelhar-se num genuflexório. Amilcar Packer lida com questões ligadas à colonização, ao consumismo e à exploração comercial em Constelações, instalação formada por objetos de uso cotidiano pendurados no teto e acessíveis por meio de roldanas, com informações sobre suas origens e nomenclaturas. “Ver é saber; se você não sabe, não vê”, costuma dizer o fotógrafo e filósofo esloveno Evgen Bavcar, figura central no amadurecimento da reflexão sobre acessibilidade e liberdade poética que orienta a mostra. Cego desde os 12 anos, ele desenvolve um trabalho de ampliação da percepção além dos limites da visão e está representado na mostra por uma seleção de fotos que registrou e um conjunto de reproduções em 3D de objetos presentes em suas imagens, que podem ser tocadas pelo público. Além da exposição e de um ciclo de conferências e atividades propostas pelos artistas convidados, a celebração do aniversário do setor educativo inclui o lançamento do livro Obras mediadas, no qual 10 educadores elegem uma obra do acervo para analisar, demonstrando na prática a importância da investigação nessa área. “Cada educador é um pesquisador”, afirma Daina. n PESQUISA FAPESP 242 | 93
memória
Tulipas, prímulas e rosas ilustram o estudo de Goethe A metamorfose das plantas (página ao lado)
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Goethe à brasileira Produção literária do poeta alemão foi influenciada por obras de naturalistas que viajaram pelo Brasil no século XIX Rodrigo de Oliveira Andrade
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Goethe: constante intercâmbio científico com naturalistas alemães
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Gênero de malvácea ao qual Martius e o botânico Nees von Esenbeck deram o nome de Goethea
m 1817, em vista do casamento da arquiduquesa Leopoldina com o príncipe herdeiro e futuro imperador do Brasil, dom Pedro, começou a ser planejado na Áustria o que ficou conhecido como expedição austríaca, investigação científica que trouxe ao país pesquisadores e artistas para estudar e retratar espécies e paisagens próprias da biodiversidade brasileira. Entre os membros da comitiva que acompanhou a arquiduquesa na viagem nupcial ao Brasil, estavam o zoólogo Johann Baptist von Spix e o botânico Carl Friedrich von Martius, que iniciaram no Rio de Janeiro uma longa jornada pelo interior do país. A viagem deu origem à Flora brasiliensis, obra que revelou detalhes do Brasil ao Velho Mundo. Essa história, bem documentada, deu origem a outra, menos conhecida: as literaturas de viagem incluíram o Brasil no círculo de estudos e interesses do poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), que não só se correspondeu com Martius como também o encontrou várias vezes após seu retorno à Alemanha. No dia 13 de setembro de 1824, Goethe registrou em seu diário a visita de Martius a sua casa em Weimar, Alemanha. Entre outros detalhes do encontro, o poeta menciona ter pendurado em seu escritório um grande mapa do Brasil para saudar o naturalista, ao qual se referia como “o brasileiro Martius”. “Podemos tomar esse gesto como símbolo do interesse que Goethe demonstrou pelo Brasil em vários momentos de sua vida”, diz o pesquisador Marcus Mazzari, do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo (USP). Mazzari estudou os diários de Goethe e consultou suas fichas de empréstimos na biblioteca de Weimar, que registram a
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fotos 1 e 7 wikipedia 2, 4 e 5 reprodução do livro lebensfluten – tatensturm 3 reprodução do livro bis and die sterne weit 6 reprodução do livro flora brasiliensis
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retirada de vários livros sobre o Brasil, entre eles Viagem ao Brasil nos anos de 1815 a 1817, do príncipe Maximilian zu Wied-Neuwied, primeiro naturalista de renome vindo da Alemanha para estudar o Brasil. Na obra de 1820, Wied-Neuwied apresenta um registro dos locais por onde passou, com descrições sobre geologia, fauna e flora, além dos habitantes e seus costumes. Em outro trecho de seu diário, Goethe assinala a leitura do livro Viagem ao interior do Brasil, publicado em 1812 pelo geólogo inglês John Mawe. Mazzari apresentou esses e outros aspectos de suas pesquisas sobre as relações de Goethe com cientistas que viajaram pela América do Sul no século XIX em um colóquio na Biblioteca Brasiliana Mindlin, em março, na USP. Segundo o pesquisador, o poeta alemão começou a se interessar pelo Brasil em 1782, quando escreveu dois poemas, com o subtítulo Brasilianisch, inspirados no ensaio “Dos canibais”, do filósofo francês Michel de Montaigne (1533-1592). Nele, Montaigne faz sua interpretação de duas canções em tupi que ouvira em Rouen, França, de três índios brasileiros. A relação de Goethe com o Brasil intensificou-se quatro décadas mais tarde, a partir
Reprodução de espécie no livro Flora brasiliensis, de Martius, autor de uma teoria sobre a “tendência espiral das plantas”
de seu contato pessoal com Martius e as primeiras versões do que viria a ser a Flora brasiliensis, que o poeta alemão leu e releu enquanto elaborava a conclusão de Fausto II, segunda parte de sua obra clássica. “No Fausto II há diversas metáforas botânicas, que talvez possam ser tributárias do intenso intercâmbio científico que Goethe estabeleceu com Martius”, explica Mazzari. O naturalista chegou a enviar a Goethe amostras do material recolhido durante a expedição no Brasil, o que teria influenciado as 7
A leitura das obras de Goethe aperfeiçoou o talento literário de Martius, observado no relato Viagem pelo Brasil
concepções do poeta sobre o formato das plantas e seu processo de metamorfose. Em março de 1831, Goethe retirou mais uma vez da biblioteca de Weimar o atlas da descrição da viagem de Spix e Martius pelo Brasil, enquanto se ocupava com os estudos feitos pelo botânico sobre a vegetação brasileira. Ao estudar o Brasil, o escritor estava interessado em dois assuntos: geologia e botânica, especialmente a teoria de Martius sobre a “tendência espiral das plantas”. Para Mazzari, isso mostra a amplitude dos interesses de Goethe, que pesquisou várias áreas do conhecimento e se correspondeu com os mais influentes cientistas de seu tempo até o fim da vida. As obras de Goethe também ajudaram a aperfeiçoar os recursos literários de Martius. O jovem botânico, em seus anos brasileiros, carregava consigo os livros Fausto I e Metamorfose das plantas, investigação botânica de Goethe publicada pela primeira vez em 1790. “Os escritos de Martius revelam excelentes recursos literários, como demonstra o relato Viagem pelo Brasil 1817-1820”, destaca Mazzari. A leitura das obras de Goethe, principalmente do Fausto I, parece ter sido importante para o Martius escritor. Durante a expedição brasileira, sobretudo na etapa amazônica, o naturalista escreveu poemas sobre os ambientes que visitou e os enviou a Goethe. Outro exemplo do interesse literário de Martius é observado em Frei Apolônio – Um romance do Brasil, escrito em 1831 e ambientado no país. n PESQUISA FAPESP 242 | 95
resenha
Alberto Nepomuceno e a canção brasileira Mário Videira
Canto da língua: Alberto Nepomuceno e a invenção da canção brasileira Dante Pignatari Edusp 464 páginas | R$ 64,00
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maneira Nepomuceno “valeu-se da musicalidade inerente ao idioma para flexionar a linguagem musical europeia e, assim, criar música brasileira”. O livro está dividido em três partes: a primeira explora as relações entre música e texto desde o Lied romântico, passando pela mélodie francesa até as origens da canção brasileira, com as modinhas do final do século XVIII. Além disso, o autor realiza um estudo sobre a formação artística e intelectual de Nepomuceno, fortemente marcada pelo seu contato com a figura de Tobias Barreto e a Escola de Recife. A segunda parte do livro analisa a primeira canção publicada por Nepomuceno em 1887, bem como aquelas produzidas durante seus anos de estudo na Europa. Chama a atenção a análise de Oraison, sobre texto de Maurice Maeterlinck, que demonstra a modernidade de Nepomuceno, que estava alinhado ao que havia de mais avançado nas vanguardas europeias da época. Como bem ressaltou o compositor Rodolfo Coelho de Souza, “a contribuição efetiva de Nepomuceno foi ter incorporado organicamente à música brasileira as novas linguagens da vanguarda europeia: o abundante cromatismo pós-wagneriano, o gosto francês pelo modalismo exótico, a tonalidade suspensa ultrarromântica, as escalas simétricas de tons inteiros e pentatônicas”. Por fim, a terceira parte do livro dedica-se à análise minuciosa das canções brasileiras do autor. Com escrita elegante e clara, Pignatari demonstra que o estilo de Nepomuceno se constitui “mediante a incorporação e a mistura de ingredientes muito diversos oriundos da musicalidade da língua portuguesa falada e cantada no Brasil, da música folclórica tradicional, da música popular urbana e das práticas europeias contemporâneas”. Corrigindo as visões tradicionais sobre a música do autor, o livro Canto da língua constitui-se numa importante contribuição aos estudos sobre o compositor Alberto Nepomuceno, mostrando que sua grandeza consiste “em ter fincado as raízes da música brasileira na vanguarda europeia, de um lado, e, de outro, na musicalidade da língua portuguesa”. Mário Videira é professor de piano, estética musical e história da ópera no Departamento de Música da USP. Publicou o livro O romantismo e o belo musical (Editora Unesp, 2006). É coordenador do Programa de Pós-graduação em Música da ECA-USP.
eduardo cesar
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urante muito tempo a figura do compositor cearense Alberto Nepomuceno (18641920) foi considerada predominantemente sob o prisma de uma certa ideologia do que deveria ser a música brasileira. Dessa forma, tal como ocorrera com outros compositores do romantismo musical brasileiro – como Carlos Gomes, Henrique Oswald e Alexandre Levy –, muito da bibliografia tradicional sobre Nepomuceno foi contaminada por essa perspectiva, segundo a qual o valor de determinadas obras seria diretamente proporcional às preocupações nacionalistas de seu autor. Luiz Heitor Corrêa de Azevedo definia Nepomuceno como “artista de transição entre o espírito do século XIX na música brasileira, que era o da servidão à Europa, e o do século XX, que era o da libertação”; Vasco Mariz, por sua vez, em sua célebre História da música no Brasil, afirmava que Nepomuceno “não chegou a ser moderno, apesar de haver falecido em 1920”, e que grande parte de seu valor estava em “ter aberto o caminho para Villa-Lobos”, de modo que, sem ele, “talvez ficasse retardada a aceitação da corrente nacionalista”. Desde meados dos anos 1990, uma nova geração de musicólogos tem contribuído decisivamente para a revisão da figura de Nepomuceno como um mero “precursor” do nacionalismo musical. Trabalhos como os de Luiz Guilherme Goldberg, Avelino Romero Pereira e João Vidal, dentre outros, são paradigmáticos nesse sentido. É nessa nova leva de estudos que se insere o livro Canto da língua: Alberto Nepomuceno e a invenção da canção brasileira, de Dante Pignatari. Resultado de uma pesquisa de doutoramento defendida em 2009 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), o autor se concentra no estudo das canções de Alberto Nepomuceno. Cabe lembrar que já em 2004 Pignatari publicou Canções para voz e piano (Edusp), de Nepomuceno, primeira edição moderna dessas partituras. Gênero de destaque no conjunto das obras do artista cearense, que compôs cerca de 70 canções para canto e piano ao longo de toda a sua vida, essas obras refletem de maneira privilegiada as transformações estilísticas do compositor. Ao longo de suas análises, Pignatari procura demonstrar de que
carreiras
Terceiro setor
Alternativa à vista
ilustraçãO daniel almeida
ONGs emergem como potencial mercado de trabalho para pesquisadores no Brasil e no exterior Atraídos pela possibilidade de transformar os resultados de suas pesquisas em soluções concretas e viáveis para problemas socioambientais, alguns pesquisadores estão deixando as universidades para trabalhar em organizações não governamentais (ONGs). Estas, por sua vez, investem na contratação de profissionais qualificados na expectativa de que produzam dados e conhecimento que deem maior respaldo a seus projetos. As ONGs emergem, desse modo, como um mercado de trabalho alternativo para pesquisadores. Entre as vantagens estão a influência e a visibilidade que algumas dessas organizações adquiriram nas últimas décadas em setores políticos e na mídia. É possível criar condições favoráveis para que os estudos científicos tenham um impacto maior no processo de tomada de decisão e elaboração de políticas públicas.
As atividades nas ONGs são abrangentes. No IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas, em Nazaré Paulista (SP), os pesquisadores são encorajados a participar de reuniões com moradores da região em que a ONG desenvolve seus projetos, permitindo um contato maior com a realidade local. “Isso é importante para que o pesquisador desenvolva seus projetos tendo em perspectiva as demandas locais”, diz o engenheiro agrônomo Eduardo Ditt, secretário-executivo do IPÊ. Ele se juntou à ONG ainda na graduação, na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP). Mesmo durante o mestrado, no Programa de Pós-graduação em Ciência Ambiental da USP, e no doutorado em Pesquisa Ambiental no Imperial College London, na Inglaterra, Ditt sempre procurou adequar suas pesquisas ao trabalho no IPÊ.
“O objetivo das pesquisas feitas dentro das ONGs é a obtenção de resultados que possam ser revertidos em ações para a implantação de políticas de conservação ambiental”, explica. Além de questões envolvendo a pesquisa científica, os pesquisadores do IPÊ lidam com aspectos administrativos e institucionais da ONG e dedicam parte de seu tempo à elaboração de estratégias para captação de recursos financeiros. Esse talvez seja um dos principais desafios relacionados ao trabalho dentro dessas organizações. Muitas instituições têm políticas específicas de arrecadação. No Greenpeace, por exemplo, todas as pesquisas são feitas com dinheiro próprio, de doações de pessoas físicas, conforme explica a bióloga Renata Nitta, coordenadora de pesquisa da ONG. No caso do IPÊ, o esforço para captação de recursos é compartilhado entre os pesquisadores. “Por esses motivos, é difícil uma ONG fazer pesquisa isoladamente, sem a universidade”, comenta Osvaldo Stella, fundador da ONG Iniciativa Verde e também responsável pelo Departamento de Mudanças Climáticas do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). Como Ditt, Stella seguiu a trajetória acadêmica e concluiu o doutorado em 2004 em Ecologia e Recursos Naturais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), no interior paulista. “Em qualquer ONG é quase impossível atingir os mesmos níveis de financiamento da universidade ou de grandes centros de pesquisa”, ele diz. A solução é investir em projetos conjuntos. “Enquanto a vocação da universidade é a produção de conhecimento, nas ONGs o objetivo é transformar esse conhecimento em ações concretas e viáveis”, explica Stella. “São características distintas, mas complementares e com grande potencial de expansão.” n Rodrigo de Oliveira Andrade PESQUISA FAPESP 242 | 97
Começou a operar em março o Escritório de Desenvolvimento de Carreiras da Universidade de São Paulo (USP). O objetivo é assessorar os alunos da USP na reflexão, preparação e planejamento de carreira. “Temos, tanto na graduação como na pós-graduação, problemas específicos em relação às vocações acadêmicas”, explica a professora Tania Casado, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA), que coordena o escritório vinculado à Pró-reitoria de Graduação. Tania explica que a prioridade, neste primeiro momento, é atender à demanda dos alunos de graduação. Ela conta com 30 voluntários para assessorar os alunos da graduação e da pós. São profissionais com mestrado, doutorado e experiência de mercado. “Alguns são executivos de grandes empresas na área de gestão de carreiras e vão nos ajudar a preparar e participar de oficinas coletivas de carreiras e workshops sobre o tema que serão oferecidos aos alunos”, diz a professora da FEA. Contatos com o Escritório de Carreiras: (11) 2648-0991 e carreiras@usp.br.
Congresso sobre patentes Acontece em São Paulo, entre os dias 28 e 30 de agosto, o 36º Congresso Internacional de Propriedade Intelectual, promovido pela Associação Brasileira da Propriedade Intelectual (ABPI) com apoio da Associação Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento das Empresas Inovadoras (Anpei). O tema é “Inovação e competitividade no cenário econômico global”. Entre os subtemas, estão assuntos como direito autoral, transferência de tecnologia, biotecnologia, cultivares, internet e esportes. Inscrições: www.abpi.org.br. 98 | abril DE 2016
perfil
A arte de comunicar Biólogo Glauco Machado viaja pelo país ministrando curso de redação científica para alunos de pós-graduação Em 2004, aos 29 anos, o biólogo carioca Glauco Machado, na época pesquisador em estágio de pós-doutorado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), foi convidado para coordenar um curso de campo de ecologia no Amazonas em reservas florestais nas cercanias de Manaus. Um grupo de 20 estudantes de mestrado e doutorado, sob sua orientação e de outros professores, passou quase um mês na floresta coletando e analisando dados. O trabalho final deveria ser um texto na forma de um artigo científico escrito pelos próprios estudantes. “Os alunos não conseguiram discutir os resultados dos estudos que haviam desenvolvido em campo”, conta Machado. Ele, então, resolveu organizar um curso de escrita científica, a princípio voltado à apresentação de métodos para a redação de artigos. O resultado foi satisfatório e o curso cresceu. Em 2007, em São Paulo, já como professor do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), Machado organizou a mesma dinâmica para estudantes do curso de campo de ecologia na Mata Atlântica, que coordena em parceria com os biólogos Paulo Inácio Prado e Adriana Martini, do mesmo instituto. Nas aulas, ele verificou que as dificuldades dos estudantes iam além da redação do artigo científico. “A elaboração de um paper exige do pesquisador o domínio de aspectos básicos do método científico”, explica. “A maioria dos pós-graduandos, contudo, sequer consegue escrever
uma introdução ou mesmo encadear argumentos lógicos que ponham seus resultados em perspectiva na discussão.” Muitos estudantes não sabiam como formular uma hipótese, segundo ele. O curso, que antes durava um dia, teve de ser ampliado; hoje tem duração média de uma semana. Nesse período, os alunos aprendem a comunicar os resultados de seus trabalhos, a escrever uma introdução e a organizar a descrição da metodologia, entre outros aspectos que envolvem a elaboração de artigos científicos. “Passamos por todos os desdobramentos do processo de redação do artigo até chegar à submissão para as revistas especializadas”, conta. “Também discutimos como escolher as publicações mais adequadas para o tipo de pesquisa que fizeram, de acordo com o perfil do trabalho.” Em 2009, Machado cruzou as fronteiras da universidade. O IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas, em Nazaré Paulista, interior paulista, foi o primeiro a receber uma edição do curso, que se tornou itinerante. Além do trabalho no IB-USP, onde estuda o comportamento de opiliões (ver Pesquisa FAPESP nº 144), o biólogo, hoje aos 40 anos, também viaja pelo país ministrando aulas sobre redação científica em universidades, ONGs e institutos de pesquisa. “Ao todo, já visitei 10 estados no Brasil”, diz. Um aspecto importante do curso, segundo ele, é a questão da ética em pesquisa. “Os estudantes têm muitas dúvidas sobre questões de má conduta”, explica. “Ainda não sabem bem o que se configura como plágio e autoplágio, por exemplo.” n R.O.A.
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