Genética do esporte

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junho de 2016  www.revistapesquisa.fapesp.br

Sociedades médicas propõem uso de cirurgia bariátrica para controlar diabetes Ruínas das Missões Jesuíticas guardam história do campo magnético da Terra

Artigos de baixo impacto e limites metodológicos de rankings influenciam performance de universidades do país Centenária, Academia Brasileira de Ciências quer mais expressão pública Robôs submarinos são testados para exploração de petróleo e pesquisas oceanográficas

Genética do esporte

Mutações no DNA de atletas fornecem pistas sobre pontos fortes e fracos em seu desempenho


FAPESP oferece recursos para Pesquisa em Pequenas Empresas em São Paulo Chamada de Propostas para o Programa FAPESP Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (PIPE) As solicitações de financiamento devem apresentar projetos de pesquisa, que podem ser desenvolvidos em duas etapas:

A FAPESP reservou até R$ 15 milhões às propostas consideradas meritórias nesta chamada.

• Fase 1: pesquisa para demonstrar a viabilidade tecnológica de um produto ou processo, com duração máxima de nove meses e recursos de até R$ 200 mil. • Fase 2: pesquisa para desenvolver o produto ou processo inovador, com duração máxima de 24 meses e recursos de até R$ 1 milhão. Se os proponentes já tiverem realizado atividades tecnológicas que demonstrem a viabilidade do projeto, podem submeter propostas diretamente à Fase 2. Condições para participação • Podem apresentar solicitações de financiamento pesquisadores vinculados a empresas de pequeno porte (com até 250 empregados) com unidade de P&D no Estado de São Paulo; • Empresas ainda não constituídas formalmente podem apresentar propostas na condição de “empresa a constituir”, devendo essa formalização ocorrer após a aprovação da proposta e antes da celebração do Termo de Outorga; • O pesquisador proponente deverá demonstrar conhecimento e competência técnica no tema do projeto, mas não é exigido nenhum título formal (seja de graduação ou pós-graduação); • A empresa deverá comprometer-se a oferecer condições adequadas para o desenvolvimento do projeto de pesquisa durante o período de sua execução e envidar os melhores esforços para a comercialização bem sucedida dos resultados. As normas para submissão de propostas estão disponíveis em www.fapesp.br/pipe. As solicitacões de financiamento serão recebidas exclusivamente por meio eletrônico, no sítio www.fapesp.br/sage. A FAPESP divulgará o resultado enviando a cada proponente os pareceres técnicos dos avaliadores. Em caso de não aprovação, o proponente poderá aperfeiçoar a proposta, corrigindo as falhas apontadas, e submeter nova solicitação em edital subsequente.

Data limite para apresentação de propostas no SAGe 1º de agosto de 2016 Previsão de divulgação do resultado da chamada 30 de novembro de 2016

TIRE SUAS DÚVIDAS Participe do “Diálogo sobre apoio à pesquisa para inovação na Pequena Empresa”, reunião organizada pela FAPESP, o CIESP, a ANPEI e o SIMPI para esclarecimentos sobre a Chamada de Propostas. 29 DE JUNHO DE 2016 das 9h às 12h na sede da FAPESP INSCRIÇÕES www.fapesp.br/eventos/dialogo-3-2016

Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia

FAPESP – Rua Pio XI, 1500 – Alto da Lapa – São Paulo, SP – CEP 05468-901 • (11) 3838-4000 – www.fapesp.br


fotolab

Química sustentável O que parecem ser flores na verdade são catalisadores muito pequenos. Em escala nanométrica, na verdade, feitos de óxido de zinco. “Usamos para produzir compostos químicos de maior valor agregado a partir de açúcares que vêm do bagaço da cana-de-açúcar”, conta o engenheiro químico Marco André Fraga, chefe da Divisão de Catálise e Processos Químicos do Instituto Nacional de Tecnologia (INT), no Rio de Janeiro. Dependendo da maneira como são sintetizadas em laboratório, essas estruturas podem ter formatos completamente diferentes, como algo semelhante a lápis apontados nas duas extremidades.

Foto enviada por Francisco Rangel, técnico em microscopia eletrônica do INT Se você tiver uma imagem relacionada à sua pesquisa, envie para imagempesquisa@fapesp.br, com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.

PESQUISA FAPESP 244 | 3


junho  244

54 84 CAPA 14 Estudos tentam mostrar que mutações em certos genes podem fazer a diferença na prática esportiva ENTREVISTA 20 Yara Schaeffer Novelli Transitando entre ecologia, políticas públicas e educação, a bióloga aposentada não pensa em parar

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA 26 Indicadores Tese investiga metodologia dos rankings de excelência acadêmica para compreender o desempenho das universidades brasileiras 30 Unesp 40 anos Instituto de Araraquara é destaque em ciência aplicada e parcerias com empresas 34 Obituário Pioneiro na pesquisa de materiais no país, José Arana Varela morre aos 72 anos

CIÊNCIA 42 Medicina Novas diretrizes indicam cirurgia de redução do estômago para combater doenças como diabetes

HUMANIDADES

46 Saúde Pesquisadores investigam fatores do vírus zika que podem contribuir para danos neurológicos

76 Literatura Análise da musicalidade dos versos de Mário de Andrade revela a evolução de sua concepção dos sentimentos

50 Ecologia Temperatura e umidade do ambiente influenciam as estratégias reprodutivas dos animais

80 Sociologia Conflitos entre o mundo do crime, a religião e o Estado definem as relações sociais nas periferias

54 Geomagnetismo Geofísicos recuperam informações de como era o campo magnético terrestre nas missões jesuíticas, há 350 anos 58 Astrofísica Estrela Eta Carinae B provoca buraco em sua companheira maior, Eta Carinae A

TECNOLOGIA

36 Difusão Competição de divulgação científica realizada em 32 países chega ao Brasil

62 Engenharia naval Robôs subaquáticos são testados na exploração de petróleo e pesquisas oceanográficas

40 Digitalização Iniciativa dos mórmons recupera antigos registros de cartórios de municípios paulistas

66 Pesquisa empresarial Centro de P&D do Grupo PSA no Brasil trabalha no aprimoramento de motores a etanol

foto da capa  Mike Powell / getty images

72 Empreendedorismo Startups apoiadas pela FAPESP recebem treinamento para elaboração de planos de negócio

84 Economia Condições de trabalho afetam a saúde dos trabalhadores portuários de Santos e Lisboa

seçÕes 3 Fotolab 5 Cartas 6 On-line 7 Carta do editor 8 Dados e projetos 9 Boas práticas 10 Estratégias 12 Tecnociência 88 Arte 90 Memória 94 Resenhas 96 Carreiras 99 Classificados

56


cartas

contatos Internet revistapesquisa.fapesp.br redacao@fapesp.br PesquisaFapesp PesquisaFapesp pesquisa_fapesp

Pesquisa Fapesp

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cartas@fapesp.br

Fosfoetanolamina

Independentemente de questões políticas, a favor e contra, envolvidas na questão da fosfoetanolamina, são imprescindíveis estudos clínicos antes da comercialização para toda a população (“A prova final da fosfoetanolamina”, edição 243). Somente deverá ser liberada a comercialização da droga após a obtenção de resultados positivos na pesquisa e a aprovação das agências reguladoras, como a Anvisa. Não é o presidente ou qualquer outro político que tem que autorizar ou não.

de segunda a sexta, das 9h às 19h Para anunciar  Contate Júlio César Ferreira na Mídia Office Por e-mail: julinho@midiaoffice.com.br Por telefone: (11) 99222-4497

Vale a leitura da reportagem sobre a fosfoetanolamina. Achei interessante a explicação de todo o processo para fazer um medicamento. As pessoas poderão entender que nada é tão simples assim. Carolina Mittelstaedt

Guido Levi

A recusa às vacinas é uma evidência de que a estupidez humana não tem limites (“Reação inesperada”, edição 243). A entrevista com Guido Carlos Levi mostra que a estupidez atinge qualquer classe social e nível de escolaridade. Ivano Casagrande Jr.

Classificados  Por e-mail: publicidade@fapesp.br Por telefone: (11) 3087-4212 Edições anteriores Preço atual de capa acrescido do custo de

Fungos

Vale a nossa atenção para o desenvolvimento de estudos nesta área (“O ataque silencioso dos fungos”, edição 243). Regiane Rosa

postagem. Peça pelo e-mail: clair@fapesp.br Licenciamento de conteúdo Adquira os direitos de reprodução de textos e imagens de Pesquisa FAPESP. Por e-mail: mpiliadis@fapesp.br Por telefone: (11) 3087-4212

Roberto Pereira

Vídeos

Ótima reflexão sobre a relação entre o cotidiano urbano e a saúde (vídeo “Perfil Paulo Saldiva”). Luiz Kohara

Bárbara Kawamura

assinaturaspesquisa@fapesp.br ou ligue para (11) 3087-4237,

um “jedi”: publicar, fazer relatórios científicos e financeiros, cotações de preços e administrar laboratórios. E, agora, ser um show researcher para dar visibilidade aos seus trabalhos e ter fundos. Nas horas vagas sobra tempo para pesquisar.

Youtubers

Ciência e tecnologia divertem, ensinam e trazem dinheiro para youtubers e, quem sabe, para o país (“Youtubers na ciência”, edição 243).

Repensar mobilidade e planejamento urbano em São Paulo é também uma questão urgente de saúde e qualidade de vida (vídeo “Perfil Paulo Saldiva”). Paula Castrillo

Interessante para patologias. Para morte violenta não creio que possa ser aplicada em todos os casos (vídeo “Autópsia minimamente invasiva”). Paulo Roberto

Geogenômica Importante informação sobre a associação das disciplinas geologia e biologia no estudo da origem das florestas e a consequente geração de uma nova disciplina, a geogenômica (“Para entender a origem da floresta”, edição 242). O trabalho do geólogo Paul Baker, da Universidade Duke, Estados Unidos, e da bióloga Lúcia Lohmann, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), representa um importante passo no estudo da origem das florestas nativas, especialmente a Floresta Amazônica. Francisco J. B. Sá Salvador, Ba

Luiz Alberto Luz Almeida

É importante divulgar mais e falar de forma mais acessível para o público. Ao mesmo tempo, fica tudo mais complexo. O pesquisador cada vez mais tem que ser

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar – CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza. Via facebook.com/PesquisaFapesp

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on-line

No site de Pesquisa Fapesp estão disponíveis todos os textos da revista em

A mais vista do mês no Facebook

Galeria de imagens

Estudo comprova que zika causa microcefalia

1.121 curtidas

Neuroesfera infectada por vírus zika (esq.) e sadia (dir.)

53 comentários 906 compartilhamentos

1

Exclusivo no site

Rádio Regina Szylit, da Escola de Enfermagem da USP, explica a importância de falar sobre a morte com pacientes e suas famílias

x Pesquisadores do Departamento de Matemática da Faculdade de Engenharia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Guaratinguetá, interior de São Paulo, identificaram novas características de Chariklo, um

Veja nas fotos de Eduardo Cesar o trabalho de coleta e análise de amostras de rejeitos de mineração no rio Doce

pequeno asteroide com dois anéis descoberto no sistema solar em 1997, entre Saturno e Urano.

Vídeos do mês

Em um estudo publicado na revista

youtube.com/user/PesquisaFAPESP

The Astrophysical Journal, eles verificaram que os anéis são bastante estáveis e capazes de resistir à ação gravitacional de planetas gigantes, com os quais o corpo celeste cruza com frequência. Os resultados sugerem Assista ao vídeo:

que outros asteroides desse tipo também podem exibir essa peculiaridade.  bit.ly/1P2oMXu

Assista ao vídeo:

2

Representação artística de Chariklo com dois anéis ao seu redor 6 | junho DE 2016

Paulo Saldiva fala sobre saúde, poluição e atividade física na cidade de São Paulo Pesquisadores testam o uso de ressonância magnética em autópsias

fotos 1 CUGOLA ET AL. / NATURE  2 LUCIE MAQUET

português, inglês e espanhol, além de conteúdo exclusivo

w w w . r e v i s ta p e s q u i s a . f a p e s p. b r


carta do editor fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo José Goldemberg Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior Carmino Antonio de Souza, Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, João Fernando Gomes de Oliveira, joão grandino rodas, José Goldemberg, Maria José Soares Mendes Giannini, Marilza Vieira Cunha Rudge, José de Souza Martins, Pedro Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski, Suely Vilela Sampaio Conselho Técnico-Administrativo Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico Joaquim J. de Camargo Engler Diretor Administrativo

issn 1519-8774

Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Anamaria Aranha Camargo, Ana Maria Fonseca Almeida, Carlos Eduardo Negrão, Fabio Kon, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Joaquim J. de Camargo Engler, José Goldemberg, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Lucio Angnes, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner Caradori do Amaral, Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos diretora de redação Alexandra Ozorio de Almeida editor-chefe Neldson Marcolin Editores Fabrício Marques (Política), Márcio Ferrari (Humanidades), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência); Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores espe­ciais); Bruno de Pierro (Editor-assistente) revisão Margô Negro arte Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos (Editora de infografia), Alvaro Felippe Jr., Júlia Cherem Rodrigues e Maria Cecilia Felli (Assistentes) fotógrafos Eduardo Cesar, Léo Ramos Mídias eletrônicas Fabrício Marques (Coordenador) Internet Pesquisa FAPESP online Maria Guimarães (Editora) Rodrigo de Oliveira Andrade (Repórter) Renata Oliveira do Prado (Mídias sociais) Rádio Pesquisa Brasil Biancamaria Binazzi (Produtora) Colaboradores Alexandre Affonso, Amarílis Lage, André Julião, Angela Alonso, Cicero Araujo, Daniel Bueno, Elisa Carareto, Evanildo da Silveira, Flávia Fontes, Igor Zolnerkevic, Jayne Oliveira, Mônica Pileggi, Nelson Provazi, O Silva, Sandro Castelli, Valter Rodrigues, Veridiana Scarpelli, Yuri Vasconcelos, Zé Vicente. É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização Para falar com a redação (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br Para anunciar Midia Office - Júlio César Ferreira (11) 99222-4497 julinho@midiaoffice.com.br Classificados: (11) 3087-4212 publicidade@fapesp.br Para assinar (11) 3087-4237 assinaturaspesquisa@fapesp.br Tiragem 30.100 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo

Mutações esportivas

O

s geneticistas sabem há algum tempo que a maioria das alterações nos genes não faz mal nem bem – é apenas neutra ou não patológica. A expressão “mutação genética”, no entanto, normalmente traz à imaginação sua conotação mais negativa, que diz respeito a doenças difíceis de ser tratadas. Os Jogos Olimpícos, a serem disputados em agosto, iluminam o lado positivo da expressão ao nos lembrar que algumas mutações podem favorecer o surgimento de atletas de ponta, como relata a reportagem de capa desta edição (página 14). No Brasil, um projeto em curso analisa o cruzamento de quatro genes que podem servir como marcadores genéticos do DNA de esportistas. Uma equipe da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) criou a primeira versão nacional de um índice genético que sinalizaria qual é o ponto forte do atleta. O objetivo é saber se o esportista tem sua maior vantagem física na resistência – importante para provas de longa duração –, na força muscular – fundamental quando se necessita de grande velocidade – ou se é um caso intermediário. Com essas informações genômicas específicas, será possível montar um banco de dados que possibilite ao atleta escolher a atividade na qual será mais competitivo. Também poderá ajudar a selecionar talentos esportivos em idade precoce, além de orientar o treinamento de quem já compete. O conhecimento das características genéticas passou a ser levado em conta pelos especialistas porque, às vezes, as informações de um único gene são suficientes para obter um ganho expressivo no rendimento esportivo. Os pesquisadores sabem também que o lado positivo das mutações genéticas é apenas um dos elementos que podem levar um atleta a quebrar recordes e a ganhar medalhas. Fatores ambientais, psicológicos,

ambientais e culturais são igualmente importantes. *** O tratamento do diabetes pode ganhar novas armas com a proposta de regulamentação do que se convencionou chamar de cirurgia metabólica. As diretrizes, publicadas em maio, resultaram de uma reunião de especialistas no ano passado em Londres (página 42). A rigor, trata-se da cirurgia bariátrica, já usada para redução de peso em pessoas com obesidade mórbida. A proposta de alteração na indicação para pacientes que têm diabetes e estão abaixo da categoria de obesos mórbidos se baseia em centenas de artigos sobre os efeitos metabólicos benéficos da operação. No Brasil há uma leve divergência sobre em quais casos vale realmente a pena realizar o procedimento. A discussão é importante para a saúde pública e ocorre em todo o mundo: segundo estimativas, cerca de 415 milhões de pessoas foram afetadas pela doença em 2015. *** Três iniciativas tecnológicas de instituições e empresas diferentes começam a desenvolver no país robôs submarinos. Os veículos autônomos submersos, como são chamados, podem ser usados de modo seguro e mais barato nas pesquisas científicas oceanográficas, na exploração de gás e petróleo em águas profundas e para inspecionar estruturas que estão embaixo d’água. No exterior, os equipamentos são fabricados e vendidos comercialmente por algumas empresas, enquanto no Brasil as pesquisas e o desenvolvimento nessa área são recentes. A boa-nova é que há três protótipos já em testes. A reportagem sobre os robôs aquáticos brasileiros começa na página 62. Neldson Marcolin | editor-chefe PESQUISA FAPESP 244 | 7


Dados e projetos Temáticos e Jovens Pesquisadores recentes Projetos contratados em abril e maio de 2016

temáticos  Pescadores & garoupas (Epinephelus marginatus): Ecologia, etnoecologia e segurança alimentar na costa brasileira Pesquisadora responsável: Alpina Begossi Instituição: Nepa/Unicamp Processo: 2014/16939-7 Vigência: 01/04/2016 a 31/03/2020

 Matriz extracelular na saúde e matriz placentária na regeneração de tecidos Pesquisadora responsável: Maria Angélica Miglino Instituição: FMVZ/USP Processo: 2014/50844-3 Vigência: 01/04/2016 a 31/03/2020  Disponibilidade hídrica e riscos de contaminação em áreas de afloramento do Sistema Aquífero Guarani Pesquisador responsável: Edson Cezar Wendland Instituição: EESC/USP Processo: 2015/03806-1 Vigência: 01/04/2016 a 31/03/2021  Sepse e tolerância ao lipopolissacarídeo – Papel da tolerância regulando o estresse oxidativo e suas consequências sobre a função mitocondrial, nitrosilação proteica e alterações do DNA

Pesquisador responsável: Francisco Garcia Soriano Instituição: FM/USP Processo: 2015/04138-2 Vigência: 01/04/2016 a 31/03/2021

 Ecologia, evolução e desenvolvimento (eco-evo-devo) na herpetofauna brasileira Pesquisadora responsável: Tiana Kohlsdorf Instituição: FFCLRP/USP Processo: 2015/07650-6 Vigência: 01/05/2016 a 30/04/2020  Regulando transreguladores: Investigação da via molecular de PRMT7 como regulador epigenético da virulência em leishmania Pesquisadora responsável: Angela Kaysel Cruz Instituição: FMRP/USP Processo: 2015/13618-8 Vigência: 01/12/2015 a 30/11/2018  Efeitos antiobesidade de nutrientes por meio da ativação dos receptores hipotalâmicos FFAR1 e FFAR4 (FAPESP-Denmark) Pesquisador responsável: Licio Augusto Velloso Instituição: FCM/Unicamp Processo: 2015/50278-0 Vigência: 01/04/2016 a 31/03/2019

epigenética para a esclerose lateral amiotrófica e esquizofrenia Pesquisadora responsável: Tatiana Rosado Rosenstock Instituição: FCM Santa Casa SP/FAVC Processo: 2015/02041-1 Vigência: 01/04/2016 a 31/03/2020

 Mosaic: The multi-object spectrograph for the Eso Extremely Large Telescope (FAPESP-NWO 2015) Pesquisadora responsável: Silvia Cristina Fernandes Rossi Instituição: IAG/USP Processo: 2015/50374-0 Vigência: 01/04/2016 a 31/03/2021

 Avaliação do papel do estrógeno no desenvolvimento dentofacial Pesquisadora responsável: Erika Calvano Kuchler Instituição: Forp/USP Processo: 2015/06866-5 Vigência: 01/04/2016 a 31/03/2020

 How do common and diverged features of the replicative stress response shape the biology of tritryp parasites? (FAPESP-RCUK-BBSRC) Pesquisadora responsável: Maria Carolina Quartim Barbosa Elias Sabbaga Instituição: Instituto Butantan/SSSP Processo: 2016/50050-2 Vigência: 01/04/2016 a 31/03/2019

 O papel da gametogênesis na origem e evolução dos genes novos Pesquisadora responsável: Maria Dulcetti Vibranovski Instituição: IB/USP Processo: 2015/20844-4 Vigência: 01/04/2016 a 31/03/2020

JOVENS PESQUISADORES  Screening sistematizado de transcritos e alterações moleculares e morfofuncionais induzidas por disfunções metabólicas em neurônios responsivos à leptina no hipocampo Pesquisadora responsável: Beatriz de Carvalho Borges Instituição: FMRP/USP Processo: 2014/24113-1 Vigência: 01/07/2016 a 30/06/2020

“Cicatriz imunológica” pós-infecção intestinal aguda e desenvolvimento de desordens metabólicas: Estudo das interações entre a microbiota e sistema imunológico do mesentério Pesquisadora responsável: Denise Morais da Fonseca Instituição: ICB/USP Processo: 2015/25364-0 Vigência: 01/05/2016 a 30/04/2020

 O papel das lisinas(K)-deacetilases para a neuroproteção de desordens mitocondriais: perspectivas de terapia

Cursos de pós-graduação Matrículas e graus conferidos nos cursos de doutorado e mestrado no Brasil e em São Paulo, por categoria administrativa da instituição, 2014 Brasil doutorado Matrículas

58%

Títulos

57 %

são paulo mestrado

Matrículas

58%

doutorado

Títulos

Títulos

Matrículas

Títulos

12%

11%

14%

14%

7 3%

76%

0% 14%

0% 13%

58%

n  Federal

n  Federal

n  Estadual

n  Estadual

n  Municipal n  Particular

63%

62%

n  Municipal 31%

33%

0% 11%

0% 10%

Total 95.315

17.048

26%

26%

1% 16%

1% 16%

115.552

45.602

n  Particular

Total 31.435

6.181

Obs.: as somas dos percentuais por coluna podem ser distintas de 100%, por efeito de arredondamento dos valores parciais.  Fonte: GeoCapes/Capes/MEC – acessado em 24/05/2016.

8 | junho DE 2016

mestrado

Matrículas

1%

1%

21%

22%

28.573

11.166


Boas práticas

ilustração  daniel bueno

Conflitos de interesse mais transparentes Um grupo de especialistas em informática médica propôs a criação de um registro público mundial de declarações de conflitos de interesse feitas por pesquisadores da área biomédica. Tais declarações, exigidas por exemplo quando investigadores submetem um paper a uma revista científica ou um projeto a uma agência de fomento, apontam as ligações do autor com partes potencialmente interessadas na pesquisa, como indústrias farmacêuticas ou grupos de pressão, que em tese poderiam produzir algum viés nos resultados. A proposta do registro mundial foi lançada num artigo de revisão na edição inaugural da revista Research Integrity and Peer Review, assinado por Adam Dunn, editor-associado da nova publicação e pesquisador do Instituto Australiano de Inovação em Saúde, e por colegas da Escola de Medicina da Universidade Harvard, nos Estados Unidos. A proposta baseia-se em cinco premissas. A primeira é estabelecer um compromisso entre agências de fomento, empresas e editores de revistas científicas para fazer valer regras já existentes sobre conflitos de interesse, mas que nem sempre são seguidas – a literatura científica citada por Dunn estima que entre 43% e 69% de artigos e relatórios sobre testes clínicos contêm falhas na informação sobre conflitos de interesse. O artigo menciona o exemplo da iniciativa ClinicalTrials. gov, que tornou obrigatório, em 2000, o registro prévio de todos os testes clínicos feitos nos Estados Unidos. Ela, porém, só se tornou efetiva depois de alguns anos, quando agências e instituições públicas passaram a fiscalizar o cumprimento da medida. A segunda premissa é a definição de regras para o fornecimento e

a atualização das declarações, além de um corpo de auditores que verifique a autenticidade dos dados. A terceira é a possibilidade de interligar registros de declarações de conflitos de interesse disponíveis em bancos de dados de revistas científicas, universidades e agências. Uma ideia é adotar nas declarações um sistema eficiente de identificação de pesquisadores, que poderia ser o Orcid, sigla para Open Researcher and Contributor ID (ver Pesquisa FAPESP nº 238). Tal recurso permitiria visualizar facilmente todos os conflitos de interesse envolvendo cada autor. A quarta é a criação de uma taxonomia de conflitos, capaz de distinguir os diversos tipos de interesses envolvidos e ter uma ideia precisa de suas implicações. A quinta envolve o desenvolvimento de ferramentas eletrônicas para preencher de forma automatizada as declarações com base em informações prestadas previamente.

Dunn e seus colegas admitem que a criação do registro público pode não ser suficiente para impedir a divulgação de pesquisas com viés, mas ajudará a compreender melhor os efeitos do problema e dará mais confiança e transparência ao trabalho dos pesquisadores da área biomédica.

A roleta-russa do plagiador Uma experiência insólita levou Serdar Sayan, professor da Universidade de Economia e Tecnologia Tobb, da Turquia, a escrever um artigo sobre plágio para a revista Review of Social Science. No texto, Sayan conta como foi convidado pelo Scandinavian Journal of Economics a avaliar, em 2007, um paper integralmente plagiado de um artigo que ele próprio escrevera anos antes, em parceria com um aluno, numa revista científica bilíngue turca. Os textos eram idênticos. As únicas diferenças envolviam a inclusão do nome do plagiador (cuja identidade Sayan preferiu não revelar) e a remoção da lista de

agradecimentos e do resumo escrito em turco. A publicação do artigo foi abortada e o plagiador denunciado à sua instituição, mas Sayan continuou a pensar no assunto. “Eu me perguntava: por que alguém assumiria tamanho risco? Mesmo que o manuscrito fosse enviado a outro revisor, a revista possivelmente descobriria”, diz. Debruçou-se sobre o tema e concluiu que a lógica é semelhante à de uma roleta-russa: pressionado a aumentar sua produção, o plagiador apostou toda a sua reputação na chance de não ser pego e imaginou que falhas no processo de revisão e dificuldades de acesso a fontes originais o salvariam. PESQUISA FAPESP 244 | 9


Estratégias Precursor da bioética Morreu em Botucatu, aos 89 anos, o médico William Saad Hossne, professor emérito da Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Conhecido por seu trabalho em bioética, Hossne participou da Gilberto Kassab: ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações

1

criação da FAPESP e se tornou o segundo diretor científico da Fundação, entre 1964 e 1967. Voltou a desempenhar a função entre 1975 e 1979 e foi vice-presidente do

Dois ministérios em um

FAPESP de 1985 a 1989. A fusão do Ministério da

das Comunicações,

Ciência e Tecnologia.

Nascido em São Paulo,

Ciência, Tecnologia e

que envolve relações

O contingenciamento

formou-se pela Faculdade

Inovação (MCTI) com

políticas e práticas de

de recursos é outra

de Medicina da USP em

o das Comunicações,

gestão distantes da vida

preocupação. O

1951. Em 1962, ajudou a

resultado de uma

cotidiana do MCTI”.

orçamento previsto

fundar a Faculdade de

reforma que reduziu o

A reforma busca reduzir

em 2016 para o

Ciências Médicas e

número de pastas do

gastos do governo.

Fundo Nacional de

Biológicas de Botucatu,

governo federal de

A nova pasta tem como

Desenvolvimento

uma das unidades que

32 para 24, recebeu

titular o ex-prefeito

Científico e Tecnológico

comporiam a Unesp em

críticas da comunidade

de São Paulo Gilberto

(FNDCT) é de cerca de

1976. Também foi reitor

científica. Um manifesto

Kassab. O ministro

R$ 1 bilhão, diante de

da Universidade Federal

lançado pela Sociedade

defendeu a fusão numa

R$ 3,01 bilhões em 2015.

de São Carlos (UFSCar)

Brasileira para o

reunião no dia 25 de

“Conversamos sobre

entre 1979 e 1983. Autor

Progresso da Ciência

maio com pesquisadores,

a continuidade dos

de obra de referência

(SBPC) e pela Academia

entre os quais Helena

programas e a

sobre bioética, o livro

Brasileira de Ciências

Nader, da SBPC, o reitor

manutenção do

Experimentação em

(ABC) classificou a

da Universidade de

orçamento do ministério

seres humanos, Hossne

fusão de artificial.

São Paulo (USP), Marco

nos níveis dos últimos

criou nos anos 1990 a

O documento assinado

Antonio Zago, e a

anos”, disse Helena

Sociedade Brasileira de

pela bioquímica Helena

geneticista Mayana Zatz.

Nader. Alguns cargos do

Bioética. Em 1995, foi

Nader e o físico

“Existe muita sinergia

ministério já ganharam

um dos idealizadores da

Luiz Davidovich, que

e vinculação entre as

novos titulares. O

Comissão Nacional de

presidem a SBPC e a

comunicações, a ciência,

engenheiro Elton Santa

Ética em Pesquisa (Conep),

ABC, respectivamente,

a inovação e a pesquisa”,

Fé Zacarias assumiu a

que coordenou entre

ponderou que “a agenda

sustentou Kassab.

Secretaria Executiva e

1996 e 2007. A Conep

do MCTI é baseada

Os cientistas

Álvaro Prata, ex-reitor

organizou um sistema de

em critérios de mérito

argumentaram que a

da Universidade Federal

monitoramento da ética

científico e tecnológico

fusão pode influenciar

de Santa Catarina,

[...]. Essa sistemática

estados e municípios,

a Secretaria de

é bem diferente da

levando-os a desarticular

Desenvolvimento

adotada pelo Ministério

suas secretarias de

Tecnológico e Inovação.

10 | junho DE 2016

na pesquisa a que estão ligados mais de 600

2

William Saad Hossne: criador da Conep

comitês de hospitais e universidades do país.

fotos 1 Gilberto Soares / Flickr / MCTI 2 eduardo cesar  3  Pete Bucktrout  4 Institute of Marine Research  5 Dutch Government / Valerie Kuypers

Conselho Superior da


3

Novos navios de pesquisa polar

Participação premiada

Com previsão para operar a partir de

O Brasil conquistou 12

2019, o futuro navio de pesquisa polar

prêmios na última edição

do Reino Unido já tem nome. O RRS Sir

da Feira Internacional de

David Attenborough homenageia o na-

o navio, mas acabou preterido pela ho-

Ciências e Engenharia,

turalista britânico de 90 anos, conheci-

menagem a Attenborough – não sem

que acontece desde 1950

do por programas e documentários sobre

render um protesto engraçado. Uma

história natural que apresenta desde os

petição com 2 mil assinaturas pediu a

anos 1950 na rede BBC. Com 129 metros

Attenborough que mudasse seu nome

de comprimento, o navio custará US$

para Sir Boaty McBoatface, em nome da

290 milhões, poderá receber até 60

“democracia e do humor”. Além do Rei-

cientistas e substituirá duas embarcações

no Unido, cinco países preparam a cons-

de pesquisa em atividade há mais de 20

trução de navios polares. O maior deles

anos. Também levará um pequeno sub-

vai pertencer à Austrália. Com capaci-

marino não tripulado capaz de captar

dade para abrigar 116 cientistas, deve

imagens em até 6 mil metros de profun-

ficar pronto em 2020 ao custo de US$

na 14ª Feira Brasileira

didade, o Boaty McBoatface. Esse nome,

380 milhões. A Noruega é o país mais

de Ciências e Engenharia

na verdade, foi o mais votado numa

adiantado: o Kronprins Haakon, que po-

(Febrace), em São Paulo.

consulta feita pela internet para batizar

derá receber até 35 pesquisadores, será

“Foi a primeira vez

lançado em 2017. A China deve lançar

que estudantes brasileiros

o seu novo navio polar em 2019 e a Ale-

acumularam tantos

manha, em 2020.

prêmios neste evento.

nos Estados Unidos. O Concepção artística do RRS Sir David Attenborough, do Reino Unido (acima), e do norueguês Kronprins Haakon (abaixo)

evento, realizado entre os dias 8 e 13 de maio no estado do Arizona, reuniu 1.700 estudantes de 77 países. A delegação brasileira apresentou 18 projetos, dos quais nove haviam sido selecionados

Feiras de ciência são capazes de incentivar futuros pesquisadores”, contou Roseli de Deus Lopes, coordenadora da Febrace. Um dos projetos premiados foi apresentado 4

pelos estudantes gaúchos João Vitor Kingeski Ferri e Maria Eduarda

Acesso aberto para estimular inovação

Santos de Almeida. O projeto mostrou formas

A União Europeia assumiu

reutilizados livremente,

para desafios sociais e

uma meta ambiciosa:

quando não houver

econômicos do futuro”,

até 2020, todos os

restrições legais ou

disse Sander Dekker,

artigos científicos

éticas. A decisão não

secretário de Educação,

produzidos em seus

busca apenas difundir os

Cultura e Ciência da

estados-membros serão

resultados de pesquisa

Holanda, país que

disponibilizados

financiada com recursos

atualmente preside a

livremente, no regime

públicos. Para os

União Europeia. “O

conhecido como acesso

ministros europeus, a

acesso aberto assegura

aberto. A decisão foi

circulação livre do

que a sociedade se

tomada pelo Conselho de

conhecimento é parte de

beneficie tanto quanto

Competitividade, órgão

uma estratégia para

possível das descobertas

que reúne ministros

desenvolver a economia

científicas.” O conselho

de Ciência, Inovação,

e atrair empresas e

não deu detalhes de

Indústria e Comércio,

startups tecnológicas.

como será feita a

num encontro realizado

Eles se comprometeram,

transição. A Liga das

em Bruxelas. A meta faz

também, a aperfeiçoar a

Universidades de

parte de um conjunto

legislação sobre

Pesquisa da Europa

de recomendações, que

inovação para melhorar

elogiou a decisão, mas

também inclui armazenar

o ambiente de negócios.

alertou que não será fácil

dados de pesquisa de

“A pesquisa e a inovação

viabilizá-la em apenas

modo que possam ser

fornecem soluções

quatro anos.

Sander Dekker, secretário de Educação, Cultura e Ciência da Holanda: meta ambiciosa

de aproveitar integralmente o fruto da palmeira juçara.

5

PESQUISA FAPESP 244 | 11


Tecnociência Um flagrante de luto entre macacos Algumas espécies de macaco exibem comportamentos semelhantes à empatia e à compaixão que os seres humanos expressam na morte de um amigo ou parente. Em raras ocasiões, já se havia observado que chimpanzés e saguis tomam cuidados especiais com os membros moribundos do bando. Agora, pesquisadores chineses descrevem esse comportamento entre macacos-dourados-de-

1

(Rhinopithecus roxellana)

líder, os outros se

de uma reserva na região

aproximaram de DM. Por

central da China. Em 17

50 minutos os macacos

de dezembro de 2013,

a olharam de perto,

Bin Yang e Bao-Guo Li,

cheiraram seu rosto e

do Laboratório de

tocaram suas mãos.

Conservação Animal de

Quando o interesse

Shaanxi, documentaram

Crônica de uma morte: as imagens mostram DM (alto) do momento de seu retorno até o seu fim, acompanhada de perto por ZBD (centro), o líder do bando

Ladrões de caça Com seus pequenos

A equipe analisou ao

tentáculos vermelhos

microscópio eletrônico

revestidos por uma

de varredura a morfologia

substância gosmenta,

de larvas encontradas

diminuiu, eles se

as plantas carnívoras

em plantas no pico do

as reações de oito

afastaram, exceto ZBD

do gênero Drosera são

Padre Ângelo, em Minas

macacos à morte de uma

e três fêmeas. DM ainda

caçadoras de pequenos

Gerais, e fez análises

das principais fêmeas do

se ergueu e deu alguns

insetos. Ao pousar

genéticas para

bando, identificada pela

passos antes morrer.

em sua flor, eles ficam

confirmar a sua identidade

sigla DM. Naquele dia, por

ZBD ficou outros cinco

grudados e acabam

(PLoS One, 4 de maio).

volta das 13 horas, DM

minutos com o corpo.

digeridos. Alguns

Os pesquisadores

reapareceu após três dias

De vez em quando, ele

invertebrados, no

descreveram e

de ausência. Estava fraca

puxava DM gentilmente

entanto, conseguem

confirmaram a observação

e emitia chamados de

pelo braço. No outro dia,

burlar a armadilha

feita 20 anos antes pelo

contato. Minutos mais

o bando voltou ao local e

mortífera e, em vez de

biólogo Fernando

tarde, o macho ZBD, líder

ZBD sentou-se por alguns

virarem comida,

Rivadavia, da empresa

do grupo, aproximou-se e

minutos onde a fêmea

roubam as presas,

norte-americana de

tocou a mão de DM duas

havia morrido (Current

uma estratégia de

biotecnologia Illumina,

vezes, emitindo um grito

Biology, 23 de maio). Os

alimentação conhecida

à época estudante de

de alerta para o resto do

pesquisadores atribuem

como cleptoparasitismo.

graduação apaixonado

bando. Quando os dois

os cuidados aos fortes

É o caso de larvas de

por plantas carnívoras.

alcançaram os demais,

laços de ZBD com DM,

moscas-das-flores da

É o primeiro registro

DM escalou uma árvore e

mãe de um de seus

espécie Toxomerus

de larvas de moscas

sentou-se a uns 20 metros

filhotes. “Essas e outras

basalis, conforme

cleptoparasitas em

do solo, seguida por ZBD.

observações sugerem que

descreveu um grupo

plantas com tentáculos

Meia hora depois DM

o cuidado compassivo

liderado pelo botânico

adesivos. O achado

despencou inerte e bateu

não é exclusivo de

alemão Andreas

sugere que a estratégia

a cabeça em uma pedra.

humanos e grandes

Fleischmann, da Coleção

pode ser mais comum

Com um chamado do

símios”, escrevem.

Botânica de Munique.

do que se sabe.

12 | junho DE 2016

Armadilha para os outros: larva de mosca desliza sobre os tentáculos de Drosera graomogolensis

2

fotos 1 Yang et al. Current Biology, 2016 2 Paulo Gonella / USP  3 léo ramos  4 Erik Daniel Drost / Wikipedia

-nariz-arrebitado


Indicadores de virulência

Radiação na medida certa Um dos desafios da

laser, o novo material

Depois de identificar

radioterapia no

emite uma quantidade

mutações nos genes

tratamento do câncer é

de luz proporcional à

BRCA1 e BRCA2 em 9%

expor o paciente apenas

dose de radiação a que

dos casos de câncer de

à dose de radiação

foi exposto (Scientific

mama sem antecedentes

necessária para eliminar

Reports, abril). Esse

familiares, um grupo de

as células tumorais,

material é cerca de

pesquisadores da

tomando o cuidado

20 vezes mais sensível à

Universidade de São

de não afetar o tecido

radiação do que o usado

Paulo e do A.C. Camargo

sadio ao redor.

nos melhores sensores

Cancer Center,

Físicos brasileiros

atuais, feitos de óxido

coordenado por Maria

desenvolveram um novo

de alumínio (Al2O3)

Mitzi Brentani, decidiu

material que pode servir

enriquecido com

de base para sensores

carbono, e responde à

de radiação mais rápidos

estimulação com laser

e sensíveis que os

muito rapidamente. “O

usados pelos radiologistas.

novo material é bastante

Luiz Carlos Oliveira

sensível à radiação e

e Oswaldo Baffa, da

tem um tempo de leitura

Universidade de São

rápido”, explica Baffa.

Paulo em Ribeirão Preto,

“Isso deve permitir a

e Eduardo Yukihara, da

varredura de uma área

investigar outros

3

mecanismos biológicos que poderiam explicar

proteínas foram

por que os tumores

indicados como possíveis

de mama são mais

marcadores biológicos

agressivos nas mulheres

de agressividade do

jovens, com até 35 anos,

tumor e uma ferramenta

do que nas de meia­-

adicional para realizar o

-idade (50-65 anos). Com

prognóstico no grupo de

base em análises de 25

mulheres jovens (PLoS

Universidade do Estado

extensa e a obtenção

amostras de tumores de

One, 6 de maio). Os

do Oklahoma, Estados

de uma imagem da dose

mulheres jovens e 25 de

pesquisadores alertaram

Unidos, fabricaram um

distribuída no corpo do

mulheres de meia-idade,

que uma amostra maior

composto à base de

paciente”, conta o

o grupo encontrou uma

de tecidos tumorais

óxido de magnésio

pesquisador, que está

combinação de 8

deveria ser analisada

(MgO), misturado a

patenteando o material

microRNAs, 602 genes,

para confirmar os

pequenas porções de

e espera licenciá-lo

24 proteínas e 306

resultados obtidos nesse

lítio, cério e samário.

para uma empresa de

genes do microambiente

estudo, antes da

Quando iluminado por

tecnologia nascente.

tumoral que, juntos,

utilização desses

revelaram um perfil

possíveis marcadores

biológico característico

genéticos na prática

dos tumores de pacientes

clínica, para adequar

jovens. Desse total, 8

os tratamentos das

microRNAs, 8 genes e 8

mulheres jovens.

Questão de perfil: conjunto de genes, microRNAs e proteínas indica a agressividade do tumor

Enterrada: Anthony Bennett pontua para o Cleveland Cavaliers, em jogo da NBA

4

Cestas mais rápidas em casa Análises estatísticas de campeonatos de

16 mil jogos de basquete das temporadas

esportes coletivos como o futebol já com-

de 2001 a 2014 da National Basketball

provaram que o fenômeno da “vantagem

Association (NBA). Avaliando as partidas

de jogar em casa” existe mesmo. Jogar em

jogada por jogada, os pesquisadores con-

sua própria arena não é garantia de vitó-

firmaram que todos os times tendem a

ria, mas tende a ajudar. “Examinamos o

pontuar mais e mais rapidamente quando

que ocorre em uma partida para dar essa

atuam em casa, sobretudo no primeiro

vantagem”, diz Haroldo Ribeiro, físico da

tempo da partida (Plos One, 25 de março).

Universidade Estadual de Maringá. Ribei-

“O tempo entre uma cesta e outra diminui”,

ro e seus colegas Satyam Mukherjee, da

conta Ribeiro, especulando que talvez o

que alguns times parecem aproveitar essa

Universidade Northwestern, em Illinois,

calor da torcida e a familiaridade com a

vantagem melhor que outros, embora, no

Estados Unidos, e Xiao Han Zeng, da em-

quadra deem uma vantagem inicial ao

geral, esse efeito tenha diminuído nas

presa Groupon, Estados Unidos, analisaram

time da casa. Os físicos também notaram

últimas temporadas da NBA.

PESQUISA FAPESP 244 | 13


capa

DNA de campeão? Estudos tentam mostrar que mutações em certos genes podem fazer a diferença na prática esportiva Marcos Pivetta

14 | junho DE 2016


Rainer Martini / LOOK-foto / getty images

A

expressão mutação genética é comumente interpretada como um sinal de alerta sobre o risco de desenvolver doenças ou a causa direta de certos problemas de saúde. Mas a maioria das alterações nos genes é neutra ou não patológica. São vistas como polimorfismos: como as possíveis formas alternativas, variantes, que um gene pode apresentar. Em mais de 3 mil trabalhos científicos publicados nos últimos 10 anos, polimorfismos em 240 genes humanos, cerca de 1% do total de nossa espécie, foram associados ao menos uma vez a uma questão que será extensamente debatida nas Olimpíadas no Rio de Janeiro, em agosto: o desempenho esportivo dos atletas. A despeito desse elevado número de publicações, a possível influência da maioria dessas alterações genéticas sobre a prática de esportes ainda é vista como tênue ou de difícil comprovação. Algumas dessas mutações, no entanto, seriam promissoras candidatas a se tornarem marcadores genéticos, uma assinatura molecular, do DNA de potenciais campeões.

Cruzando as informações sobre os polimorfismos presentes em quatro genes (ACTN3, ECA, AGT e BDKRB2), a equipe do biólogo molecular João Bosco Pesquero, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenador do projeto Atletas do Futuro, criou a primeira versão nacional de um índice genético que sinalizaria qual é o ponto forte de um atleta. Grosso modo, o escore molecular indicaria se a maior vantagem física do esportista é a resistência, um requisito para provas de longa duração, ou a força/explosão muscular, que geralmente se traduz em grande velocidade em termos competitivos. Ou, ainda, se ele seria um caso intermediário entre os dois extremos. O objetivo do projeto da Unifesp é montar um banco de dados com informações genômicas específicas de esportistas brasileiros que possam ser úteis para nortear a escolha da atividade esportiva mais indicada para cada indivíduo, além de ajudar na descoberta de talentos esportivos em idade precoce e servir de guia para melhorar o treinamento e o desempenho dos atletas em atividade. “Sempre PESQUISA FAPESP 244 | 15


o exame apontou que o atleta tinha genes com mutações que lhe conferiam mais força muscular, esse deveria ser o aspecto enfatizado na sua preparação. Se o ponto forte era a resistência aeróbica, o foco principal dos treinos seria manter em alta a capacidade de demorar para se cansar. “O esquema era exatamente o oposto do que costuma ser colocado em prática nas equipes”, afirma o fisiologista do exercício Paulo Correia, da Unifesp, um dos pesquisadores do Atletas do Futuro e ex-velocista que disputou as Olimpíadas esde 2009, a iniciativa já colheu amostras de Moscou (1980) e de Los Angeles (1984). “Nor­ do DNA de aproximadamente mil atletas e malmente, os times tentam aumentar a resistência ex-atletas brasileiros de diversas modali- dos atletas de força e conferir força aos jogadodades, como Oscar e Hortência, do basquete, Gus- res de resistência.” Ou seja, agem para melhorar tavo Kuerten, do tênis, Aurélio Miguel, do judô, os pontos fracos em vez de aprimorar os fortes. Houve situações desafiae Joaquim Cruz, do atletismo. doras para os pesquisadoTambém foi coletado material res, como a do pivô Margenético de atletas de modalicão, então com 28 anos, que dades coletivas como futebol e sofria lesões com frequênbeisebol, além de 13 times que cia e tinha dificuldades em disputaram a liga brasileira Equipe da quadra. Os dados dos quade basquete em 2013. A maior Unifesp criou tro genes apontaram que parte desse material ainda esele tinha mais resistência tá sendo analisada. Mas alguns índice genético do que força, um probleresultados ilustram o potenma para quem joga em uma cial da abordagem, de acorque mostraria posição perto do garrafão, do com os pesquisadores. Um próximo à cesta, e tem de dos casos mais expressivos de o ponto forte disputar a bola com atletas emprego do índice molecular do atleta, se altos e fortes. A saída nesse ocorreu durante a temporada caso foi reduzir os traba2012/2013 do Novo Basquete velocidade ou lhos musculares de força Brasil (NBB), a liga brasileira nos treinamentos. Se o atleda modalidade, quando a forresistência ta levantava, por exemplo, ma de treinar de uma equipe 10 vezes 100 quilos no sufoi alterada com base em inpino, aparelho que exercita formações genômicas. os músculos peitorais, pasNo primeiro turno do campeonato, o time do Palmeiras perdera 15 das 17 sou a usar metade da carga e a repetir o exercípartidas e estava em último lugar. Diante dessa cio mais vezes. Dessa forma, a comissão técnica situação desesperadora, a comissão técnica, sob privilegiou a resistência e evitou expor o atleta orientação do preparador físico Chiaretto Costa, a lesões por excesso de carga no treinamento. que faz parte do projeto Atletas do Futuro, deci- Em quadra, o jogador também foi instruído a se diu mudar o esquema de trabalho para o segundo movimentar mais e a jogar mais fora do garrafão. turno. Implantou um treinamento individualiza- Assim, seus oponentes tendiam a ficar cansados do para cada um dos atletas a partir do perfil ge- antes dele e o pivô podia se destacar no fim das nético obtido nos testes da Unifesp. A equipe da partidas. Na temporada seguinte, a equipe do universidade já havia colhido e analisado o DNA Atletas do Futuro repetiu o experimento com dos jogadores e tinha em mãos os resultados. A outro time do NBB, o de São José dos Campos, estratégia deu certo. O Palmeiras venceu 10 de 17 sob a orientação do preparador físico Adilson jogos no segundo turno e seus atletas, que viviam Doretto, e os resultados foram semelhantes aos lesionados, não se machucaram mais. O resulta- verificados no Palmeiras. do do trabalho na equipe paulista foi relatado em um artigo publicado em maio do ano passado na Gene da velocidade revista Medicine & Science in Sports & Exercise. Apesar de muitos marcadores genéticos terem A lógica do novo esquema de treinamento guia- sido associados ao bom desempenho em certos do pela genética era simples: não brigar com a esportes, alguns pesquisadores da área são caubiologia molecular e investir no parâmetro em telosos a respeito do significado prático dessas que o jogador se destacava no teste de DNA. Se correlações. “Replicar esses trabalhos é sempre pesquisei alterações genéticas que causam perdas de funções, doenças em especial na parte muscular”, explica Pesquero, que expôs alguns dos resultados de seus estudos no workshop Research on Sports and Healthy Living, organizado pela FAPESP em parceria com a Netherlands Organisation for Scientific Research (NWO) em março deste ano. “Decidi estudar o outro lado da moeda: mutações que causam ganho de funções e criam habilidades benéficas para a prática esportiva.”

D

16 | junho DE 2016


Diego Padgurschi / Folhapress

Saltadora brasileira Fabiana Murer em ação: cópias do alelo R do gene ACTN3 seriam benéficas para a prática de esportes que dependem de velocidade e força

difícil”, afirma o médico Masashi Tanaka, do Hospital Geriátrico Metropolitano de Tóquio, estudioso da ligação dos genes com a prática de esportes. O pesquisador japonês está iniciando um trabalho em que vai sequenciar o genoma completo de um pequeno número de fundistas do Quênia e da Etiópia, dois países africanos famosos pelos corredores de provas de longa distância. “Para ter uma amostra maior nos estudos, é preciso também incluir esportistas amadores ao lado dos atletas de elite”, diz o médico. Allun Williams, especialista em esporte e genômica do exercício da Universidade Metropolitana de Manchester (Reino Unido), pensa de modo semelhante. “Muitos resultados que associam variantes de genes ao desempenho esportivo são provavelmente ‘falsos positivos’ e de difícil intepretação”, afirma Williams. “Esses estudos não foram reproduzidos por outros grupos de pesquisa e foram feitos com pequenas amostras de esportistas, frequentemente juntando dados de atletas de diferentes esportes.” Por ora, o gene considerado como o mais confiável para discriminar se um atleta tem mais força ou resistência é o ACTN3, provavelmente o mais pesquisado para esse fim. A equipe de Pesquero publicou em maio do ano passado no periódico Genetic Testing and molecular biomarkers um novo método, mais simples, segundo eles, de sequenciar especificamente esse gene. Localizado no cromossomo 11, o ACTN3 é responsável pela

produção da proteína alfa actinina 3, ativada exclusivamente em fibras musculares de contração rápida, que se retraem entre 40 e 90 milissegundos. O funcionamento dessas fibras prescinde da presença de oxigênio e gera a energia necessária para impulsionar, por no máximo dois ou três minutos, ações físicas que requerem grande força ou intensidade. É esse mecanismo fugaz que sustenta movimentos extremos, mas de curta duração, como se lançar em uma corrida de 100 ou 200 metros em alta velocidade ou levantar pesos descomunais acima da cabeça por alguns segundos.

U

ma alteração em uma única base nitrogenada faz com que esse gene possa apresentar duas formas na população humana: a versão “normal”, funcional, denominada R, que produz alfa actinina 3; e a variante alterada, chamada X, em que tal proteína não é sintetizada. As pessoas carregam duas cópias do ACTN3. Podem ser, portanto, homozigotas (RR ou XX) ou heterozigotas (RX). Muitos estudos internacionais com esportistas de alto nível indicam que corredores de provas de curtas distâncias, os chamados velocistas, tendem a possuir ao menos uma cópia, às vezes duas, da variante R, a forma funcional, do gene. A maior quantidade da proteína melhoraria o desempenho dos atletas em tarefas que dependem da ação das fibras rápidas. Os fundistas, que precisam ser resistentes ao cansaço, tendem a ser XX. A ausência total da proteína levaria o organismo a se adaptar PESQUISA FAPESP 244 | 17


melhor a exercícios de longa duração, que retiram energia do consumo de oxigênio. A constatação levou o ACTN3 a ser apelidado, certamente com exagero, de gene da velocidade.

A

professora Sandra Lia do Amaral Cardoso, do Laboratório Experimental de Fisiologia do Exercício da Universidade Estadual Paulista (Unesp), de Bauru, e seu ex-aluno de doutorado Thiago José Dionísio, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), analisaram a frequência das variantes do gene ACTN3 presentes em 100 jogadores de 14 a 20 anos das categorias de base do São Paulo Futebol Clube. A maior parte dos atletas (57%) tinha o genótipo RX, em que uma cópia do gene era normal e a outra apresentava a mutação. Outros 29% eram RR, em tese, com mais força ou explosão, e 14% eram XX, com um perfil molecular mais próximo ao dos corredores de provas longas. Eles observaram que os jogadores com ao menos uma cópia do alelo R tinham melhores resultados nos testes de corridas curtas e de salto, enquanto aqueles com um alelo X se destacaram no quesito resistência. “Nos jogadores mais velhos, essa relação era mais evidente do que nos mais novos”, afirma Sandra, cuja pesquisa foi financiada pela FAPESP. No estudo, cujos resultados foram divulgados apenas em congressos científicos, também foi constatada a associação de uma variante do gene ECA com melhor desempenho no parâmetro de força e explosão. Uma versão ampliada do trabalho, com 220 jogadores do São Paulo, está em fase final para ser submetida a um periódico científico.

O processo de usar o perfil genético como guia para encontrar o esporte ideal para uma pessoa parece mecânico e certeiro. Os pesquisadores, no entanto, sabem que essa linha de raciocínio, simplista e determinista, não se sustenta sozinha. “A genética é muito importante, mas não se pode esquecer os fatores ambientais e a parte psicológica do atleta”, afirma o médico Victor Matsudo, coordenador científico do Centro de Estudos do Laboratório de Aptidão Física de São Caetano do Sul (Celafiscs). “Seria ingenuidade achar que se encontra um campeão olhando apenas para um gene ou uma enzima.” Além da biologia inata, outros fatores influenciam a prática e o desempenho esportivo: a nutrição, o tipo e a quantidade de treinos, aspectos psicológicos e motivacionais, políticas públicas, a cultura local. Enfim, como em boa parte das doenças, o peso dos aspectos externos não pode ser desprezado e deve ser analisado ao lado das informações moleculares. “Mas é importante mapear os genes-chave para a prática esportiva”, diz Pesquero. “Às vezes, as informações de um único gene podem ser suficientes para produzirmos efeitos perceptíveis.” Pesquero cita o caso da hipertensão, tema de muitas de suas pesquisas. Embora seja sabidamente um problema de saúde ligado ao estilo de vida e à ação e interação de vários genes, boa parte dos remédios que mantêm sob controle a pressão arterial de pessoas hipertensas atua em apenas um gene, o ECA, que codifica a enzima conversora de angiotensina. Ao lado do ACTN3, o ECA faz parte do índice genético composto de quatro marcadores moleculares para prática es-

Etíope Dawit Fikadu Admasu, vencedor da corrida de São Silvestre em 2014: alterações em certos genes de africanos favoreceriam performance em provas de resistência

18 | junho DE 2016


fotos 1 Ricardo Nogueira / Folhapress 2 Lalo de Almeida / Folhapress

Elenco de basquete do Palmeiras em 2013: treinamento baseado no perfil genético dos jogadores melhorou o desempenho da equipe

portiva adotado no Atletas do Futuro. Os outros dois genes são o AGT (que codifica a proteína angiotensinogênio, também importante na regulação da pressão) e o BDKRB2 (que produz um receptor da bradicinina, um composto vasodilatador).

N

em sempre é possível fazer testes genéticos e alterar a rotina de treinos de atletas de alto desempenho. Nesses casos, é mais factível estudar pessoas que fazem esporte por prazer ou como hobby. A professora de educação física Ana Sierra estuda desde 2006 as reações cardíacas que ocorrem em maratonistas amadores. Ela está terminando seu doutorado sobre o tema na Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (EEFE-USP). Ana recentemente introduziu as análises genéticas em seus trabalhos, graças a uma colaboração com a equipe de Pesquero. Em um estudo ainda não publicado, feito a partir do DNA de 49 maratonistas do sexo masculino com idade entre 20 e 55 anos, ela constatou que certos indivíduos com mutações no gene ECA e em outro denominado BNP parecem se recuperar mais lentamente após terem percorrido os 42 quilômetros da prova. “A fadiga cardíaca decorrente de uma maratona pode se prolongar por até 15 dias”, afirma Ana. Outro trabalho recente de pesquisadores da EEFE envolveu 150 homens sadios que foram submetidos a testes de corrida em duas velocidades constantes, a 10 e 12 quilômetros por hora (km/h). O resultado surpreendeu os autores do estudo, publicado on-line em julho do ano passado no Annals of Human Biology. Os indivíduos que tinham o perfil RX para o gene ACTN3, em tese menos aptos do que os XX para encarar esforços físicos dependentes da resistência à fadiga, se destacam por terem consumido significativamente menos energia para se locomover durante as corridas. “Em média, o gasto energético dos

heterozigotos com genótipo RX foi 7% menor a 10 km/h e 9% menor a 12 km/h, quando comparado ao dos homozigotos RR e XX”, diz Leonardo Pasqua, principal autor do trabalho, que fez parte do seu mestrado sob a orientação do professor Rômulo Cássio de Moraes Bertuzzi. Obter dados genômicos de atletas brasileiros e da população nacional é importante: a incidência de mutações “benéficas” à prática de certos esportes pode variar muito em função das etnias presentes em um país. A forma do gene ACTN3 que parece conferir maior resistência em provas longas é, por exemplo, mais comum em africanos do que nos caucasianos. Por isso há mais de uma dezena de iniciativas internacionais, sobretudo na Europa, Estados Unidos e Ásia, fazendo a genotipagem de seus atletas. Pesquero está se dedicando a esse trabalho no Brasil ao mesmo tempo que desenvolve um novo índice genético associado à prática esportiva, agora com 16 em vez dos atuais quatro genes. Para essa versão aumentada do escore molecular, sua equipe sequenciou o material genético de 69 competidores da elite do atletismo brasileiro. “Estamos incluindo genes ligados a outros fatores além de força e resistência, como a questão da motivação entre os atletas e a capacidade de recuperação diante de certos tipos de lesão”, afirma o biólogo molecular da Unifesp. O gene responsável por fabricar o fator neurotrófico derivado do cérebro (BNDF), proteína que ajuda a estimular a manutenção e o crescimento dos neurônios, parece, por exemplo, ter repercussões sobre a motivação dos esportistas. Já o CKM, outro gene em análise, seria importante para o processo de recuperação de lesões musculares e inflamações. Com seus estudos, o projeto Atletas do Futuro espera introduzir o arsenal genético a serviço da atividade física em iniciativas que buscam garimpar talentos esportivos entre as crianças do país e melhorar o nível de saúde da população brasileira por meio da prática de atividade física. n Projetos 1. Correlação entre desempenho motor e polimorfismos genéticos em jogadores de futebol (nº 2011/21586-8); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Sandra Lia do Amaral Cardoso (Unesp); Investimento R$ 139.420,00. 2. Análise de polimorfismos em genes ligados a força muscular em atletas de elite brasileiros (2012/14056-5) Modalidade Bolsas no país – Mestrado; Pesquisador responsável João Bosco Pesquero (Unifesp); Beneficiário Elton Dias da Silva; Investimento R$ 45.194,00.

Artigos científicos LIMA, G. H. 0. et al. Association between gene ACTN3 and basketball position in elite athletes of Brazilian League. Medicine & Science in Sports & Exercise. v. 47. n. 5s, p. 424. mai. 2015. SCHADOCK I. et al. Simple method to genotype the ACTN3 r577x polymorphism. Genetic Testing and Molecular Biomarkers. v. 19, n. 5, p. 253-7. mai. 2015. PASQUA, L. A. et al. The genetics of human running: ACTN3 polymorphism as an evolutionary tool improving the energy economy during locomotion. Annals of Human Biology. 6 jul. 2015.

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entrevista Yara Schaeffer Novelli

No atoleiro do manguezal Transitando entre ecologia, políticas públicas e educação, a aposentadoria não é motivo para repouso

Maria Guimarães  |

retrato

Léo Ramos

A

paixão de Yara Schaeffer Novelli pelos manguezais está longe de ser romantismo diante de uma paisagem bucólica ou de animais peculiares. Sua visão abrange a paisagem, a flora, a fauna, o mar, a terra, as pessoas, a economia, a legislação. Para ela, o ecossistema na fronteira entre o continente e o oceano, que funciona como berçário para uma infinidade de organismos marinhos, só pode ser enxergado e trabalhado com uma visão múltipla. Foi isso que ensinou aos estudantes no Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP), onde montou o laboratório batizado como Bioecologia de Manguezais (Bioma), que geriu até a aposentadoria em 1998. De lá para cá mantém atividades de docência e orientação, tanto no IO como no Programa de Pós-graduação em Ciência Ambiental, também da USP, e no âmbito da entidade não governamental que criou para continuar sua batalha. Nestes tempos em que o uso desordenado da terra e as mudanças climáticas ameaçam o território dos manguezais, não dá para descansar. Por que você escolheu os manguezais, que muita gente descreve como um lamaçal malcheiroso? 20 | junho DE 2016

Começou com uma visão de recursos pesqueiros. É um berçário, uma área abrigada, protegida, cheia de larvas e animais jovens. No meio daquelas raízes meio estranhas há jovens de peixes de valor comercial e as primeiras fases de vida de camarões. Esse crustáceo se reproduz em mar aberto e entra no estuário para comer e crescer. E tem aquelas árvores muito esquisitas, vivíparas, das quais caem plantas já brotando, prontas para se enterrarem na lama. Fui cativada depois de adulta. No mundo da ocea­nografia não se percebiam essas coisas, então me vali da botânica: como funcionam essas árvores? Como se instalam nesse lugar? Aí se amplia o horizonte e a complexidade aumenta. Fui de trás para a frente: do produto do manguezal para o grande cenário. No início você estudava fauna litorânea, não necessariamente de manguezal. Como foi parar lá dentro? Em 1976 participei de um simpósio sobre oceanografia biológica em El Salvador, quando a comunidade científica estava alarmada com a perda dos manguezais para a criação de camarão, a carcinocultura. Eu tinha meu universo “mar, mar, mar” e pensei: “Temos muitos manguezais no Brasil, como estarão?”. Ao voltar, me propus a ver quanto


idade 72 anos especialidade Ecologia de manguezais formação Graduação na Universidade do Brasil (atual UFRJ), mestrado e doutorado na Universidade de São Paulo (USP) instituição Instituto Oceanográfico da USP e Instituto BiomaBrasil produção científica Participou como autora ou coautora de 36 artigos científicos, 3 livros e 23 capítulos de livros; 25 laudos como perita judicial; orientou 31 mestrados e 20 doutorados PESQUISA FAPESP 244 | 21


deles estaria comprometido com essas práticas. Na oceanografia não tratavam dos manguezais e na botânica terrestre também não, porque se atola para pegar amostras. Pensei: “Temos manguezal do extremo norte do Brasil até Santa Catarina. Quantos anos eu tenho de vida pela frente? Não vai dar para estudar tudo isso sozinha”. Quantos anos você tinha? Tinha 33 anos. Eu tinha trabalhado com vermes marinhos da família dos equiurídeos, na região da Ilha Grande [RJ]. Depois havia monitorado a população de Anomalocardia, o vôngole, numa praia de Ubatuba, litoral paulista. Estava lidando com dinâmicas costeiras e de repente surge uma dinâmica ainda mais rápida. Nos dois anos em que medi comprimento, largura e altura das conchas do vôngole os manguezais estavam acabando e ninguém os estudava como ecossistema. Você se manteve em contato com os pesquisadores que conheceu na América Central? Eles já estavam envolvidos com o estudo do manguezal, com uma metodologia muito bem estabelecida: Gilberto Cintrón, Samuel Snedaker, Ariel Lugo, entre outros. Eu teria que aprender muita coisa sozinha e vi que era melhor pegar fiadores fortes. Eles vieram nos dar cursos, ajudar a estabelecer locais de trabalho. Começamos a ver o que precisava ser adaptado em termos de Brasil, porque os manguezais daqui não eram iguais aos do Caribe. Nossas amplitudes de maré são muito maiores, por exemplo. Havia novidade para eles também? Sim, houve uma verdadeira simbiose. Quando comecei tinha um belo trabalho da Feema [Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente], do Rio de Janeiro. A Norma Crud Maciel estudava os manguezais do recôncavo da baía de Guanabara, um trabalho belíssimo de 1979. Ela logo se associou a nós, porque não tinha tanto espaço para a pesquisa acadêmica em um órgão da administração pública. Foi um início que rendeu muito, inclusive porque temos um laboratório em Cananeia, no litoral sul de São Paulo, com estação meteorológica-padrão e uma série de dados privilegiada. O manguezal é essa mistura de compartimentos: você pode trabalhar 22 | junho DE 2016

nele como arquiteta, médica, engenheira, botânica, geóloga, oceanógrafa. Sua graduação foi em história natural. Essa formação ajudou a integrar esses compartimentos? Muito. Tanto a graduação em História Natural quanto a pós-graduação em Oceanografia sem limites, não só biológica. Para ler o manguezal é preciso estar aberto. Não é só botânica, nem só dinâmica sedimentar ou zoologia. É um pouco mais. Você também trabalhou com análise de impacto ambiental. Se falava disso na época? Não. Era visível que alguma coisa estava interferindo no sistema, como quando terminei meu doutorado no Saco da Ribeira, no litoral norte paulista. A rodovia Rio-Santos estava em construção e ao mesmo tempo iniciavam o primeiro píer, no Saco da Ribeira. Nessa época tive minha primeira mestranda, a Sônia Lopes, hoje professora do Instituto de Biociências, que foi trabalhar com as alterações na fauna de bivalves nessa praia. A área já estava sendo alterada pela instalação de mourões com produtos químicos para proteger a madeira contra apodrecimento, pela alteração da granulometria da praia, e começaram a aparecer espécies oportunistas. Vimos a dinâmica do ambiente respondendo a essas mudanças. Quando comecei a trabalhar com manguezal, a lei brasileira havia consolidado

uma política nacional de meio ambiente, a Lei 6.938/81. Tudo acontecia quase ao mesmo tempo. Além de todos os aspectos presentes no manguezal, tem mais esse: é preciso conhecer legislação. Exatamente. É uma corrida contra o tempo. Correndo e me valendo de pesquisadores e pós-graduandos do Instituto Oceanográfico. Eu punha os artigos novos em uma mesa no laboratório. Cada um pegava um livro ou artigo para ler e apresentar para os outros, era preciso multiplicar os esforços para tentar acertar o passo. Tudo acontecia muito rápido nesse campo novo, da dinâmica do uso da zona costeira. Em apenas cinco anos se abre uma estrada, se constrói um píer, se processa uma dragagem, ocorrem derramamentos de óleo. Quando você se tornou uma perita em análises de impacto ambiental? Fui a perita em dano ambiental da primeira ação civil pública movida no Brasil. Foi o rompimento do oleoduto da Petrobras próximo ao rio Iriri, canal de Bertioga, no litoral de São Paulo. A lei é de 1981 e a regulamentação da lei é de 1983. Em 14 de outubro de 1983 houve esse rompimento e fui nomeada perita judicial por um juiz da vara de Santos. Como era o trabalho? Em primeiro lugar, tinha que descobrir o que medir para monitorar um impacto de óleo sem nunca ter trabalhado com isso. Minha experiência era com manguezais lindos, limpos, de Cananeia ou de outras áreas do Brasil. De repente estava num manguezal cheio de óleo. Chegou a 1 metro de altura no tronco das árvores, o sedimento empapado de óleo. Nós seguimos até hoje o monitoramento da área mais impactada, um bosque inteiramente morto. São mais de 30 anos e ainda há óleo enterrado. Quando colhemos amostra de sedimento a uns 80 centímetros, tiramos o testemunho e ainda saem bolinhas de óleo. O manguezal ali nunca voltou ao normal, as árvores que nasceram eram de outra espécie, cresceram pouco e estão morrendo. Foi esse histórico como perita em impacto ambiental que a levou a trabalhar na Secretaria do Meio Ambiente de São Paulo nos anos 1990?


Eram, eu conhecia bem o litoral. Não tinha conhecimento acerca das Unidades de Produção e de Conservação do interior do estado. Os limites entre os produtores, o agrossilvipastoril, são muito complicados. Uma pessoa põe uma cerca e diz que a área está protegida, mas não está porque o vizinho não foi indenizado. Uma onça-parda come a galinha de alguém, que mata a onça-parda. Comecei a viajar e fui alertada de que estava muito ausente, então esclareci que nossos problemas estavam fora da capital. Quando passou o primeiro ano, as coisas começaram a se repetir, já não era novidade. Aí era a persistência, quanto tempo eu conseguiria seguir. Cheguei ao final do mandato.

fotos  arquivo pessoal

Aos 3 anos (esquerda) e em 2013, no manguezal do rio Iriri três décadas após o derramamento de óleo

Eu mantinha contato com o Ministério Público de São Paulo desde 1983, quando o Édis Milaré, um dos promotores que havia participado da petição da ação cível no caso do rompimento do oleoduto, tornou-se secretário do Meio Ambiente. Ele cumpriu uma representatividade de gênero nas coordenações, escolhendo duas mulheres e dois homens. Eu tinha sob os meus cuidados três institutos de pesquisa [Botânico, Florestal e Geológico], a área de informática e a biblioteca. Era um desafio, não se coordena um grupo de instituições centenárias de qualquer maneira. É preciso entender o ritmo das pesquisas e dos pesquisadores e melhorar, se puder. A biblioteca da secretaria era no 11º andar. Consegui passar para o térreo e o número de visitantes aumentou rapidamente. Biblioteca tem que ser uma coisa chamativa, e no térreo tinha uma sala envidraçada com um jardim lindo fora. No período em que fiquei na secretaria, meu currículo acadêmico não aumentou uma linha, embora saísse de casa às 6h30 da manhã e voltasse às 10 ou 11 da noite. Os problemas eram muito diferentes do que você conhecia?

Seu laboratório trabalhou com valoração econômica do manguezal. Era uma abordagem nova? Era um dos quesitos das ações civis. Uma das perguntas versava sobre o valor do dano ambiental. Fui orientada a dizer que os danos eram de inestimável valor e que seriam alvo de um futuro arbitramento. Depois de escrever isso muitas vezes, comecei a achar que precisava me preparar para quando chegasse esse futuro. Nessa época duas Monicas estavam no laboratório Bioma, Tognella e Grasso, que tinham um instinto mais economicista. Primeiro tinham bolsa de aperfeiçoamento e foram à Faculdade de Economia e Administração [FEA-USP] cursar a disciplina básica de graduação para microeconomia. Na época, cada pesquisador que fazia valoração econômica usava um método diferente. No mestrado, cada Monica adotou um conjunto de métodos. Uma foi trabalhar em Cananeia e outra em Bertioga: um mangue intocado e outro muito comprometido. Nos primeiros resultados, o manguezal de Bertioga, bastante alterado, valia muito mais que o de Cananeia. Descobrimos que isso acontecia porque nessa situação se tem um substituto para calcular um valor monetário. Quando o manguezal é alterado, começa-se a pagar pelos serviços ecossistêmicos que até então eram gratuitos. Descobri que era essa a charada: os números só ficam aparentes quando os serviços deixam de existir. E como se faz para pôr uma etiqueta de preço no manguezal? Sou contra o preço. Uma coisa é precificação, outra é valoração. O preço é uma

parte muito pequena do valor. É muito mais correto transformar a pena em ações que o poluidor ou degradador precisa cumprir. Quanto mais rápido for o processo de condená-lo a cumprir, menos ele pagará. É um processo educativo, o poluidor aprende que, se empurrar com a barriga a tarefa de recompor, só vai lhe custar mais caro. Em 2011 o Ministério Público do estado de São Paulo criou um grupo de trabalho para valorar danos ambientais. Eu era a coordenadora acadêmica dessa equipe mista, Ministério Público e academia, que por mais de dois anos trabalhou toda uma diversidade de impactos ambientais e produziu guias de como responder. Depois buscamos equações de como representá-los. O manguezal, por exemplo, leva um número de anos para funcionar como ecossistema. Não basta plantar. Antes de 20 ou 30 anos as árvores ainda não constituem um ecossistema. A mesma coisa ocorre com a Mata Atlântica ou com o Cerrado. No caso do manguezal é fácil imaginar que os recursos pesqueiros têm um preço. Mais do que isso, têm um valor. Das florestas tropicais, o manguezal é a mais eficiente na fixação de carbono. Isso tem grande importância. Junte a isso pousio para aves migratórias, área de berçário para espécies comerciais de peixes, crustáceos e moluscos, a função cultural de sincretismo religioso, de atividades artesanais do povo caiçara. Aquele cenário verde meio estranho é, para eles, uma garantia de vida. Eu não posso dar preço para esses serviços. Tive muita dificuldade com essa questão dentro do Ministério Público, até que um dia tomei coragem com um dos procuradores e pedi licença para um exercício rápido. Eu disse: “Estamos falando de preço e valor. Veja o senhor, um procurador do estado de São Paulo. Como ser humano, seu corpo é 70% água. Quanto custa água? O senhor tem carbonato de cálcio, tem proteínas (podemos ver quanto custa o ovo), o senhor tem alguns nutrientes, tudo isso tem um preço de mercado. Posso ir em juízo e depositar esse preço que a gente auferiu e então posso matá-lo. Agora, qual o valor? O senhor estudou em quantas escolas? Teve atendimento médico desde pequeno. Foi para a faculdade de direito, fez toda a evolução na carreira – advogado, promotor, procuraPESQUISA FAPESP 244 | 23


Em 1966 com a bióloga Junia Quitete, em curso no Navio Oceanográfico Alte. Saldanha, da Marinha

dor... Isso é o seu valor, que não está no seu preço”. Acho que consegui mostrar que o preço não representa nada. E ao longo dessa trajetória você angariou brigas importantes, como o cultivo de camarão em área de manguezal, que foi o que a levou para essa área. Quais são as maiores ameaças aos manguezais? Hoje eu acho que o maior dano é social. Já perdemos manguezais e nos últimos anos estamos perdendo gente, é isso que me preocupa. Os pescadores não podem mais chegar no estuário para pescar porque está com cerca elétrica e podem ser mortos por jagunços. É um problema social e de saúde. Os pescadores que vão trabalhar na despesca [recolhimento dos adultos nos tanques] da carcinocultura ganham como boia-fria da cana, sem garantias trabalhistas. Têm que lidar com o metabissulfito, usado para o camarão não ficar preto, e trabalham sem máscara nem luva. Se vai para o pulmão, essa substância mata. Um biólogo pode servir a várias fazendas, o veterinário também, por isso gera muito pouco emprego e menos renda ainda. O Renato de Almeida, à época pós-graduando do Bioma, trabalhou com o Índice de Desenvolvimento Humano [IDH] entre 1990 e 2000 nos municípios principalmente do Ceará com muitas fazendas de carcinocultura. O IDH não melhorou nada nesse período. O dinheiro que sai da produção de camarão naquele município não é aplicado ali, é investido em outros mercados. 24 | junho DE 2016

E dá para combater isso? Doenças como as viroses do camarão cultivado dificultam a venda para o mercado externo. Desde o começo se trabalha com um camarão nativo do Equador, o Litopenaus vannamei. É uma espécie exótica, o que é proibido, mas trazem em avião especial carregado com larvas, ou são produzidas em laboratórios aqui no Brasil. Fungos e vírus deixam o sistema menos complexo, mais vulnerável e se começa a perder biodiversidade. E o mercado começa a rejeitar? Com a mancha branca, causada por um fungo, é preciso adensar menos as larvas nos tanques. Também tem que despescar antes, porque chega a um ponto em que os camarões comem muito e não aumentam proporcionalmente de peso, por causa da doença. Vendem-se então os camarões menores, que o mercado internacional não aceita e essa produção em menor escala fica para o mercado interno. Estive em uma carcinocultura no Piauí e vi que no canal de entrada da água tem uma diversidade riquíssima de formas de vida estuarina. Macroalgas, ofiuroides, até cavalo-marinho, uma coisa linda. O canal de saída para o estuário não tem nada. Como a nova lei florestal afeta o manguezal? Eu me inscrevi para ser expositora na audiência pública do dia 18 de abril no Supremo Tribunal Federal, mas não fui habilitada. Foram 22 expositores, com um peso muito grande para os defensores da lei. Da área de manguezal da Amazônia Legal, Amapá e Pará, 10% estão disponíveis para a carcinocultura. Do Maranhão para o sul, a proporção sobe para 35%. A nova lei florestal concedeu uma porção do manguezal, o apicum, antes considerado de preservação permanente. O que eu teria contestado nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade é

que eles dizem que o manguezal urbano, quando não tem mais função ecológica, pode ser colonizado. Mas o que é função ecológica? Se o manguezal está lá, ele tem função ecológica. Era isso que eu queria explicar. No resto do mundo o quadro dos manguezais é diferente? É um ecossistema típico de regiões tropicais e subtropicais. No mundo, equivale a litorais com alta densidade populacional. São áreas costeiras, também altamente valorizadas por serem locais de portos e resorts. No Sudeste Asiático instalaram muitas fazendas de cultivo de camarão em cativeiro. Na China, no Vietnã, na Malásia e na Indonésia o prejuízo social é impressionante. Quando começam a grassar as viroses nesses crustáceos, os danos são muito grandes. Mas nesses países a renda é muito baixa, os prejuízos não chegam a fazer diferença na economia mundial. O litoral da América Central está arrasado pela carcinocultura, mas tem também tráfico de drogas e guerrilha que comprometem muito mais a sociedade e o meio ambiente do que aqui no Brasil. Vários colegas pescadores já perderam a vida como resultado desses conflitos. Como foi a formação do curso de pós-graduação em ciências ambientais, aqui na USP? Em 1990 o professor José Goldemberg, enquanto reitor, sentiu necessidade desse tipo de pós-graduação interdiscipli-

Em curso de mergulho durante a graduação em História Natural na Universidade do Brasil, RJ

fotos  arquivo pessoal

E em termos de danos ao manguezal, imagino que tenha duas partes: a retirada das árvores para pôr os tanques de criação e os contaminantes químicos. Exatamente. E em cinco anos, no máximo sete anos, aquela área já não serve e eles avançam para outro manguezal. Em fazendas abandonadas, quando se rompem os muros da carcinocultura, nasce mangue outra vez.


nar e solicitou ao então pró-reitor de Pós-graduação – o professor Ubríaco Lopes, da Faculdade de Medicina – que formasse esse grupo. Ele chamou docentes de várias áreas, que formularam um projeto e apresentaram ao Conselho Universitário. No final de 1991 começou a primeira turma. É um programa muito interessante, que até uns anos atrás era adido diretamente à Pró-reitoria de Pós-graduação. Mas a reitora Suely Vilela exigiu que todos os cursos de pós-graduação fossem albergados em unidades. Com a presença do próprio professor Goldemberg no Instituto de Eletrotécnica e Energia [IEE], fomos bem recebidos. O IEE manteve a sigla, mas passou a se chamar Instituto de Energia e Ambiente. Fora da universidade, você sempre teve envolvimento com extensão, com educação ambiental. Quais foram as melhores experiências? Participar do Encontro Nacional de Educação Ambiental em Áreas de Manguezal [Eneaam] desde a sua criação em 1993. As reu­niões são sempre em áreas de manguezal. Já aconteceram encontros em vários estados do país, sempre em municípios onde tem gente que vive associada ao manguezal. É muito interessante o tipo de trabalho que dá para fazer com o pescador, a marisqueira, o escritor de cordel, o indígena... O primeiro passo é resgatar a experiência de todos. Tenho oferecido minicursos nos quais não é preciso formação acadêmica. Dependendo de onde é feito, o público é completamente diferente. Em Bragança, no Pará, tem um público diferente de quando estamos no Espírito Santo. No Sudeste o manguezal é visto como fedido e podre, lá no extremo norte é a riqueza deles. Tem todo um sincretismo religioso entre os moradores do manguezal, “os operários da maré”, é lindo.

sas com manguezais, precisaríamos de uma maneira de manter essa identidade. Então combinamos que eu participaria com meu nome, meu currículo. Mas eles que fazem o trabalho: o Clemente Coelho Junior, professor da Universidade Federal de Pernambuco, o Renato de Almeida, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, o Ricardo Menghini, que está no Ministério Público do Estado de São Paulo, a Marília Lignon, da Universidade Estadual Paulista em Registro, e minha filha Claudia, que faz a parte multimídia e de marketing. Não temos nenhum funcionário, manter uma ONG correta sai muito caro. O IBB está absolutamente legal e tem tido projetos da Fundação Grupo Boticário e do SOS Mata Atlântica. Os recursos financeiros

Das florestas tropicais, o manguezal é o mais eficiente na fixação de carbono

Nos últimos anos você fundou uma ONG, o Instituto BiomaBrasil [IBB]. O que vocês fazem? O IBB foi um desejo de meus ex-alunos. Como eu tinha me aposentado e o IO decidiu que não continuaria as pesqui-

vão integralmente para as atividades de campo, com educação e pesquisa, nós não somos remunerados. Atuamos na área de gestão e conservação de zonas costeiras tropicais com ênfase no manguezal, usando o nome que já era do laboratório. Trabalhamos com pessoas e com projetos em áreas costeiras como coleta de lixo e melhoria de qualidade de vida. O carro-chefe tem sido o guia Maravilhosos manguezais do Brasil. É um guia do Mangrove Action Project [MAP], um projeto internacional, que foi traduzido e aplicado em outros países. Aqui resolvemos fazer a adequação dessa filosofia para a realidade brasileira. Porque nossa realidade é diferente da do Caribe, da América Central. Então foi reescrito:

são 40 atividades práticas, sempre com um texto introdutório e os conceitos. Damos cursos de capacitação usando esse material, com dois dias e meio de atividades teórico-práticas com professores da rede pública estadual e municipal de escolas em áreas com manguezal. Também montamos uma rede em que os professores que participam depois podem seguir trocando expe­riências. Tem dado muito certo. Ao mesmo tempo você participa de um projeto grande que é o da baía do Araçá, financiado pela FAPESP. Como está? Vai terminar no ano que vem, tivemos um ano de prorrogação. Estamos escrevendo os artigos e eu estou plantando mangue nas pedras que enrocam o aterramento do porto. Temos uma batalha porque o porto queria aterrar a área da baía do Araçá. Como houve protestos veementes, o porto propôs fazer uma laje a 1 metro de altura. Mas acaba de ser divulgada a sentença judicial confirmando as duas liminares. Isto é: manteve as liminares que cassaram a licença dada pelo Ibama. O órgão concedeu licença para a laje porque a baía do Araçá estaria morta, mas foi comprovada a vitalidade do ambiente. Nosso projeto é de ciência, não de consultoria sobre o porto, mas como pesquisadores individuais nos unimos ao Centro de Biologia Marinha da USP [Cebimar] para preparar os documentos que embasam a defesa do Ministério Público Federal e Estadual. Há poucos meses o Ricardo Lewandowski, presidente do Supremo Tribunal Federal, decidiu pela não construção da laje. Enquanto isso você planta manguezal. É. Medimos todas as árvores. São 400 e tantas árvores vivas. Uma que eu plantei está indo em frente. A ideia é que seja emblemático, não pretendo instalar um manguezal, é paisagismo. Mas ajuda a recuperar a autoestima dos pescadores. Uma amiga me perguntou por que eu vou plantar mangue ali, com o porto atrás. Eu disse: “Lembra daquele garoto chinês da praça da Paz Celestial, de pé em frente à coluna de tanques? Eu sou essa”. n PESQUISA FAPESP 244 | 25


política c&T  Indicadores y

Critérios para entrar no clube Tese investiga metodologia dos rankings de excelência acadêmica para compreender o desempenho das universidades brasileiras

U

ma tese de doutorado defendida em 2015 na Universidade de São Paulo (USP) reuniu um conjunto de dados e argumentos que ajuda a compreender por que o Brasil tem um desempenho relativamente modesto em rankings internacionais de universidades. A pesquisa, feita por Solange Maria dos Santos, coordenadora de produção e publicação da biblioteca eletrônica SciELO, analisou uma década de produção científica brasileira (20032012) e esmiuçou a metodologia adotada por seis desses rankings para entender, por exemplo, por que há discrepância no número de instituições brasileiras entre as melhores do mundo – um deles registra apenas duas instituições nesse clube, enquanto outros enxergam até 22. Outra questão abordada envolve um aparente paradoxo: se o Brasil tem bom desempenho em rankings vinculados a certas áreas do conhecimento, como medicina e agronomia, por que isso não se reflete nos rankings gerais? Segundo a pesquisadora, parâmetros de seleção adotados pelos rankings limitam a participação de mais universidades do país. “Um dos critérios de corte é o volu-

26  z  junho DE 2016

me da produção indexada em bases internacionais. Por isso, grandes instituições, com indicadores robustos de pesquisa e ensino, têm mais chance de classificação. Os rankings selecionam um número restrito de instituições – na maioria das vezes, as 500 melhores – num universo de mais de 16 mil universidades no mundo”, diz Solange, que defendeu a tese na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e realizou parte da pesquisa na Espanha, na Universidade Carlos III, de Madri. Curiosamente, a relevância do volume da produção científica indexada também ajuda a explicar por que há mais universidades brasileiras em rankings hoje do que há 10 anos: o país investiu na profissionalização das revistas nacionais, por meio de iniciativas como a biblioteca eletrônica SciELO, e conseguiu aumentar o número de periódicos do Brasil em bases internacionais em meados dos anos 2000. Na Web of Science, por exemplo, o número de publicações brasileiras indexadas saltou de 26 em 2006 para 103 em 2008. “Um conjunto maior de artigos passou a ser considerado nos indicadores e mais universidades brasileiras tornaram-se visíveis para os rankings”, afirma.

Isso é perceptível, por exemplo, no ARWU, sigla para Academic Ranking of World Universities (arwu.org), da China. Quando ele foi criado, em 2003, apenas a USP, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a Estadual Paulista (Unesp) e a Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) apareciam entre as 500 melhores do mundo. Em 2007, a classificação passou a incluir a Federal de Minas Gerais (UFMG) e, em 2008, também a Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A classificação do ARWU se baseia em parâmetros mais objetivos, como publicações e citações, número de pesquisadores com artigos altamente citados, existência de ex-alunos e professores que receberam um Prêmio Nobel ou uma Medalha Fields e proporção de professores com dedicação integral à universidade. Já o ranking da britânica THE, sigla para Times Higher Education (times­ highereducation.com), registra apenas duas brasileiras entre as 500 melhores do mundo (USP e Unicamp). Entre 2008 e 2009, a UFRJ também apareceu na lista, mas não permaneceu. Parte de seus critérios tem um viés subjetivo: um terço dos pontos vem de uma pesquisa

ilustraçãO veridiana scarpelli

Fabrício Marques


Pontuação obtida por universidades brasileiras * 5,5 usp

94

89,1

45,3

36,6

11,1

6,4 unicamp

75,4

75,8

33,5

39,5

12,6

5,6 ufrj

68,5

42,9

unesp

51,7

17,7 13,3

41,2

15,9

n Pesquisa de reputação acadêmica n Pesquisa de reputação entre empregadores n Número de alunos por docente n Estudantes estrangeiros n Citações por docente n Professores estrangeiros

2,3

unifesp

38,1

71,5

11,1

3 ufmg

27,9

ufrgs

33

21,2

Quacquarelli Symonds (QS) World University Ranking

5,7

3,8

14,5

20,7

Origem: Reino Unido Número atual

*Dados disponíveis apenas para as universidades classificadas entre as 500 melhores

de universidades brasileiras: 22

A evolução do desempenho 2010

2011

2012

2013

2014

usp unicamp ufrj

Posição no ranking

unifesp unesp ufmg ufrgs puc-rj puc-sp unb ufscar ufba puc-Rs ufsc UFPR ufv ufc ufsm UEL uerj ufpe uff

Origem: Reino Unido

Pontuação obtida por universidades brasileiras

Número atual usp

de universidades

Times Higher Education

51,6 43,4

51,6 38,8

32,3 28

20,7

25,3

40,1

44,5

A evolução do desempenho 2004

Posição no ranking

brasileiras: 2

unicamp

n Ensino (reputação, orçamento, recursos humanos formados) n Pesquisa (reputação, orçamento e volume de publicações) n Citações (influência da pesquisa) n Alunos e professores estrangeiros, colaborações internacionais n Captação de recursos da indústria

2005

2006

2007

2008

2009

2010

2011

2012

2013

2014

usp

unicamp

ufrj

pESQUISA FAPESP 244  z  27


de reputação acadêmica feita com pesquisadores em 133 países. A pontuação também leva em conta citações, presença de professores e alunos estrangeiros e orçamento para pesquisa. O estudo constatou que mudanças de metodologia nos rankings costumam ser responsáveis por oscilações bruscas no desempenho das universidades. “Eu desconfio quando uma manchete de jornal diz que uma universidade caiu ou subiu 100 posições num ranking. Nenhuma instituição muda tanto de um ano para o outro”, explica. Um caso de mudança de metodologia envolveu o ranking da consultoria Quacquarelli Symonds (QS). A partir de 2010, ela passou a utilizar a base Scopus, da editora Elsevier, que reúne um número maior de revis-

Academic Ranking of World Universities

tas latino-americanas que o banco de dados usado anteriormente, o Web of Science, da Thomson Reuters. Como parte dos pontos atribuídos vincula-se a citações dos artigos de docentes, o número de instituições brasileiras entre as mil melhores saltou de seis em 2010 para 22 em 2013. Neste ranking, 40% dos pontos têm origem numa pesquisa de reputação acadêmica e outros 10% em uma avaliação de empregadores da mão de obra formada pelas instituições. Tais pesquisas mudam a base de entrevistados periodicamente, o que gera oscilações nos resultados. O fenômeno também foi detectado por uma dissertação de mestrado defendida em 2015 por Carlos Marshal França, professor de administração da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Ele comparou três rankings universitários de caráter nacional organizados por jornais ibero-americanos: o chileno El Mercurio, o espanhol El Mundo e o brasileiro Folha de S.Paulo – RUF. Observou que cada um tem uma forma de coletar dados. Enquanto o chileno se baseia em fontes de informação públicas e indicadores bibliométricos, o espanhol usa questio-

Origem: China Número atual de universidades brasileiras: 6

Pontuação obtida por universidades brasileiras usp 12,2

12,0

72,9

unesp 7,9

43,9

unicamp 3,6 4,6

42,6

ufrj 8,1

40,5

15,4

20,7

n Pesquisadores entre os mais citados do mundo n Artigos em Nature e Science nos cinco anos anteriores n Artigos no ano anterior n Desempenho segundo tamanho da instituição n * Ex-alunos ganhadores do Nobel ou da Medalha Fields n * Docentes ganhadores do Nobel ou da Medalha Fields

20,0 19,2

ufmg 3,6 4,9

37,9

17,9

ufrgs 4,7

38,9

18,2

(*critérios em que as brasileiras não marcaram pontos)

A evolução do desempenho

0

2003

2004

2005

2006

2007

2008

2009

2010

2011

2012

100

2013

2014

usp unicamp

Posição no ranking

200

300

ufrj ufmg

400 ufrgs unesp 500

28  z  junho DE 2016

nários respondidos pelas instituições e por professores. Já o brasileiro mescla dados públicos e entrevistas com professores e profissionais do mercado de trabalho – e tem promovido mudanças para aperfeiçoar a sua metodologia. O chileno apresentou os resultados mais estáveis: eventuais variações de um ano para o outro limitavam-se à perda ou à conquista de uma ou duas posições na escala. No Folha RUF, entre as 20 melhores universidades, houve mudanças de até sete posições de um ano para o outro. Interpretação grosseira

A principal contribuição da tese de Solange é mapear o que cada um dos rankings está medindo, diz Samile Vanz, professora da Faculdade de Biblioteconomia da UFRGS. “Frequentemente, os rankings são interpretados de forma grosseira, sem que se entenda o que indicam”, diz. Para Samile, que atualmente estuda os rankings num estágio de pós-doutorado na mesma universidade espanhola onde Solange Santos realizou parte do doutorado, a produção brasileira continua a ser sub­ avaliada. “Estou observando que vários rankings que utilizam como referência a base de dados Web of Science não levam em conta todas as coleções de revistas que estão lá dentro. É comum que selecionem duas ou três coleções principais e deixem de fora, por exemplo, o SciELO Citation Index, coleção na qual está boa parte da produção do país”, diz. Samile destaca que rankings não são instrumentos neutros. “É comum que empresas responsáveis pelos levantamentos vendam serviços associados aos dados e que as instituições listadas os utilizem em suas estratégias de marketing”, diz. Segundo Solange Santos, as classificações têm dificuldade de mensurar todas as dimensões da qualidade acadêmica. “Os rankings medem o que é possível medir, não o que gostariam”, afirma. Indicadores objetivos, como produção científica, citações e pesquisadores premiados, podem ser apropriados para comparar instituições de todo o mundo, mas há dificuldades com parâmetros como reputação acadêmica e qualidade da formação dos recursos humanos. “Os rankings ainda não conseguem medir bem a qualidade do ensino, o engajamento regional das universidades e o impacto na sociedade”, exemplifica. Cada ranking tem uma metodologia própria. A classificação da


National Taiwan University Ranking

Pontuação obtida por universidades brasileiras usp 64,8 ufrj

88,9

49,4 55,6 unicamp 49,3

Origem: Taiwan

61,7

62,6

42

57,3

48,4

49,6 41,3

50,3

56

48,9

48,3

46,4 46,9 48,8

57,6

47,4

48,4 37,4 49,5

41

47,6

54,3

59,4

47,4

48,8

de universidades

45,8

46,7

ufmg

brasileiras: 6

46,6

52,8

47,2 46,6 40,6 44,8

46

45,8

40,6 42,5 45,5

46,7

ufrgs 47,2

n Artigos publicados no ano corrente n Citações recebidas nos últimos 11 anos n Citações recebidas nos dois últimos anos n Média de citações em 11 anos

unesp

Número atual

n Artigos publicados nos últimos 11 anos

52

46,7

46

n Índice-h dos últimos dois anos n Artigos altamente citados nos últimos 11 anos n Artigos em revistas de alto impacto no ano corrente

A evolução do desempenho 0

2007

2008

2009

2010

2011

2012

2013

2014

usp

100

200

Posição no ranking

300

unicamp

ufrj unesp

400 unifesp 500

Universidade Nacional de Taiwan, o NTU Ranking (nturanking.lis.ntu.edu.tw), hierarquiza as universidades com base em indicadores de pesquisa, como o índice-h, o número de artigos altamente citados e o de artigos publicados em revistas de alto impacto. O ranking da Universidade de Leiden, da Holanda (leidenranking.com), utiliza indicadores sobre o número de publicações e citações, com destaque para os que medem ciência de alto impacto e colaborações no exterior e com indústrias. A parte mais demorada da pesquisa de Solange foi a análise de 10 anos de produção científica brasileira em bases de dados internacionais, por área do conhecimento. Constatou, em primeiro lugar, que as universidades do país não alcançam posições muito elevadas nos rankings porque, em geral, produzem ciência com baixo impacto. Em 2003, 37,5% das revistas brasileiras estavam no primeiro quartil, grupo que reúne as mais citadas nas respectivas disciplinas. Em 2012, esse percentual havia caído para 28,8%. Já o número de revistas brasileiras no quarto quartil, de menor impacto, cresceu 137% no perío-

ufrgs ufmg

do. A análise, porém, detectou áreas de excelência. A principal é a Medicina Clínica, graças a uma grande comunidade de pesquisadores que publicou 20,83% de toda a produção científica brasileira entre 2003 e 2012, segundo dados compilados pela pesquisadora. Apenas a USP é responsável por quase um terço dessa produção. No ranking temático da Times Higher Education de 2014, a USP apareceu em 79º lugar em Ciências Clínicas, Pré-Clínicas e da Saúde, e na 92ª posição em Ciências da Vida – no ranking geral, a universidade se classificou no intervalo entre a 201ª e a 225ª colocação. Outras três áreas em que a pesquisa brasileira se distingue são Física, Geociências e Ciências Espaciais, que, assim como a Medicina, exibem boa capacidade de publicar em revistas de alto impacto. “Nessas áreas, pesquisadores brasileiros mantêm colaborações internacionais com grupos de alto nível. Mas, como a produção é relativamente pequena, isso não tem força para impulsionar as universidades nos rankings gerais”, diz Solange. Outro destaque são as Ciências Agrárias, com

9,62% da produção nacional, embora não se concentrem em publicações de alto impacto. “A produção em ciências agrárias faz com que universidades dedicadas a essa área, como a Federal de Viçosa, se destaquem em rankings temáticos”, afirma. No ranking por área da QS, algumas universidades brasileiras se destacam em Artes e Humanidades. Em Filosofia, Sociologia e História, USP e Unicamp aparecem entre as 100 melhores do mundo (ver Pesquisa FAPESP nº 186). Rogério Mugnaini, professor da ECA-USP, chama atenção para um efeito dos rankings: eles reafirmam a influência de um conjunto de universidades de origem anglo-saxã utilizando critérios que nem sempre fazem sentido para instituições brasileiras. Um exemplo é o peso que alguns deles conferem à existência de cursos ministrados em inglês, algo frequentemente visto no Brasil como um fator de elitização do ensino superior. “As instituições de maior prestígio tendem a reforçar esse instrumento que ratifica sua posição original de domínio”, diz Mugnaini. Ele trabalha no desenvolvimento de indicadores da produção científica brasileira baseados nas referências do Currículo Lattes, que contêm teses, livros e documentos não usualmente indexados (ver Pesquisa FAPESP nº 233). Para Samile Vanz, é preciso aprofundar estudos sobre os rankings e propor formas de medir dimensões que interessem a comunidades científicas distantes dos países centrais. Ela observa, porém, que ignorar os rankings não é uma alternativa. “Eles servem como referência para a circulação de estudantes e pesquisadores estrangeiros e são importantes para a estratégia de internacionalização das nossas universidades”, diz. n pESQUISA FAPESP 244  z  29


Instituição y

Química da inovação Instituto de Araraquara é destaque entre as unidades da Unesp em ciência aplicada e parcerias com empresas Esta é a quarta reportagem de uma série sobre os 40 anos da Universidade Estadual Paulista, a Unesp


Fotos  divulgação unesp e léo ramos

O

Instituto de Química (IQ) de Araraquara é reconhecido entre as unidades que compõem a Universidade Estadual Paulista (Unesp) como uma referência em aplicações da ciência e em inovação. Pesquisas sobre novos materiais, algumas das quais feitas em parceria com empresas, e estudos sobre a química de produtos naturais ampliaram a produção científica e a inserção internacional do instituto, cujas origens nos anos 1960 remontam à criação do primeiro curso de graduação de química no interior paulista. “Ao longo de nossa trajetória, também reunimos uma massa crítica que garantiu excelência ao nosso programa de pós-graduação em química, em pé de igualdade com os programas da USP e da Unicamp”, afirma Leonardo Pezza, atual diretor do IQ. A criação, em 1988, do Laboratório Interdisciplinar de Eletroquímica e Cerâmica (Liec) foi um catalisador da experiência do instituto em novos materiais. O Liec surgiu de uma parceria entre o grupo do físico José Arana Varela, professor do IQ, com dois colegas que na época estavam na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Elson Longo e Luiz Otávio Bulhões. O laboratório se especializou no desenvolvimento de materiais como argila para louças e peças artesanais, revestimentos de fornos da indústria siderúrgica, pisos, azulejos, sensores e semicondutores. “Eu trabalhava com fármacos e o José Arana Varela me transformou num tijoleiro. Fui para o Liec trabalhar com cerâmicas”, conta Elson Longo, referindo-se ao amigo de mais de seis décadas, diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo da FAPESP, que morreu no dia 17 de maio (ver reportagem na página 34). Com sede na Unesp e na UFSCar, o Liec fez parcerias com dezenas de empresas e criou, por exemplo, revestimentos e materiais para a indústria siderúrgica. A colaboração com a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) rendeu mais de 40 projetos envolvendo novos processos e desenvolvimento de materiais refratários. Um entre vários exemplos foi o uso de revestimento refratário de magnésio e carbono no chamado carro torpedo, encarregado de transportar o ferro-gusa líquido retirado dos altos-fornos. O uso do material diminuiu a perda de calor durante o transporte e per-

mitiu a quase duplicação da carga transportada. Outra parceria, esta com a Companhia Brasileira de Metalurgia e Metais (CBMM), viabilizou a construção do prédio do Liec. Entre as empresas com as quais o laboratório manteve colaborações figuram a White Martins e a Faber-Castell, além de grupos de pequenas e médias indústrias em polos cerâmicos de cidades paulistas como Porto Ferreira, Santa Gertrudes e Pedreira. “Graças à nossa interação com indústrias, conseguimos recursos e pudemos comprar equipamentos sofisticados. Isso nos colocou em condições de conduzir pesquisa de alto nível e semear boas colaborações com grupos internacionais”, diz Elson Longo, que há nove anos deixou a UFSCar e integrou-se ao IQ de Araraquara, onde havia feito a graduação, nos anos 1960. O Liec se destaca também em produção científica. A última edição do Webometrics Ranking of World Universities apontou os cientistas brasileiros mais citados de acordo com o Google Scholar Citations (GSC), indexador acadêmico do Google. Elson Longo e José Arana Varela são, respectivamente, o segundo e o terceiro pesquisadores da Unesp com maior índice de citações, atrás apenas do físico Sérgio Novaes, do Instituto de Física Teórica, que trabalha no projeto internacional do Grande Colisor de Hadrons (LHC), na França. Na comparação entre pesquisadores brasileiros, Longo é o 25º mais citado do país e Varela, o 35º. Em 2001, os pesquisadores ligados ao Liec foram contemplados no primeiro edital dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP, programa que financia por até 11 anos equipes de pesquisadores, trabalhando na fronteira do conhecimento e com vocação para transferir tecnologia para a sociedade e o setor produtivo. Já no segundo edital do Cepid, em 2013, o Centro Multidisciplinar para Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos foi reformulado para se tornar o Centro de Desenvolvimento de Materiais Funcionais, com foco em materiais nanoestruturados, talhados para solucionar problemas relacionados a energia, saúde e meio ambiente. Outra linha de pesquisa de destaque no Instituto de Química envolve o Laboratório de Materiais Fotônicos (Lamf ). O grupo surgiu em 1994, graças a uma parceria entre os químicos Sidney Ribeiro, que acabara de concluir seu doutorado, pESQUISA FAPESP 244  z  31


1 e Química Superior, Saffioti ore Younès Messaddeq, marroquino com formação Físico-Química na França que fazia um estágio de pós-doutorado ganizou o que seria o primeiro curso de química em São Carlos. Hoje ambos são professores do no interior do Estado. “Ele foi um desbravador. IQ. Um dos marcos da atuação do laboratório foi A criação do curso de Araraquara era vista com a chegada de um equipamento capaz de fabricar certa desconfiança pelos professores da USP, fibras ópticas, doado pelo Centro de Pesquisa e que na época era a única instituição do estado Desenvolvimento (CPqD) da Telebrás, em Cam- a formar químicos”, diz Leonardo Pezza, atual pinas, em 1998. “Para nosso grupo foi maravilho- diretor do IQ. “Naquela época, Araraquara tinha so, pois propiciou entrarmos num circuito de ônibus elétricos, mas eles não chegavam até o pesquisa de nível internacional”, diz Ribeiro. O Departamento de Química. Era comum que o grupo trabalha hoje com polímeros naturais, fi- professor Saffioti transportasse os alunos até lá bras ópticas e filmes finos, além de marcadores na sua perua DKW”, conta. O objetivo declarado era formar professores luminescentes para medicina. Em 2005, o laboratório desenvolveu um tipo de material vítreo, da disciplina para a rede de ensino, que se resproduzido com alta concentração de óxido de sentia da falta de profissionais – com frequência tungstênio, capaz de armazenar informações em as aulas de química eram ministradas por farmatrês dimensões (ver Pesquisa FAPESP nº 112). cêuticos, médicos e engenheiros. Os quadros do Recentemente, outra pesquisa do Lamf rendeu departamento nos primeiros tempos mesclavam um artigo científico sobre o desenvolvimento pesquisadores da USP recrutados por Saffioti, de um dispositivo flexível capaz de emitir luz. caso do engenheiro químico Rubens Molinari, e Sua matéria-prima são dois polímeros de fontes professores estrangeiros, a exemplo dos belgas Denise e Jean Pierre Gastmans naturais – celulose produzida e do espanhol Manuel Molina. por bactérias e poliuretano – Em meados dos anos 1960, com potencial para ser usaos primeiros alunos formados do em telas de computador. A ajudaram a reforçar o quadro pesquisa foi feita em colaboO curso de docente do departamento, que ração com Agnieszka Tercjak, Química logo começou a se preocupar pesquisadora da Universidade também com pesquisa. Um dos do País Basco. de Araraquara, precursores foi o professor Vicente Toscano, contratado em grupo tem uma boa o primeiro do 1967 para dar aulas de química inserção internacional. O professor Youinterior paulista, orgânica ao retornar ao país de um doutorado feito na Univernès Messaddeq afastou-se em foi criado sidade Johannes Gutenberg, 2010 dos quadros da Unesp em Mainz, na Alemanha. À luz para comandar um laboratópara formar de sua experiência na Europa, rio na Universidade de Laval, Toscano sugeriu que os prono Canadá. Um acordo entre a professores fessores fizessem projetos de Unesp e a instituição canadenpesquisa envolvendo temas da se transformou o Lamf em unidade mista de pesquisa, parceira do laboratório comandado por Messaddeq no Canadá. “Temos três alunos no Canadá agora”, diz Ribeiro. “Nosso grupo já formou uma centena de mestres e doutores. Atualmente, contamos com 40 pessoas, entre estudantes de iniciação científica, mestrado, doutorado e estagiários de pós-doutorado”, diz. A trajetória do IQ teve início com a criação, nos anos 1960, do Departamento de Química na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara, instituto isolado de ensino superior fundado pelo governo paulista em 1957. Uma figura-chave foi o químico Waldemar Saffioti (1922-1999), à época um professor e pesquisador da Universidade de São Paulo bastante conhecido como autor de livros didáticos em química adotados no ensino médio. Contratado pela faculdade em 1961 para a recém-criada cadeira de

O

32  z  junho DE 2016


Instalações do Instituto de Química (dir.) e material cerâmico desenvolvido pelo Centro de Desenvolvimento de Materiais Funcionais (abaixo): parcerias com empresas e colaborações com pesquisadores estrangeiros

literatura científica e oferecessem aos alunos estágios nos laboratórios do departamento. Em 1964, o Departamento de Química separou-se fisicamente dos demais cursos da faculdade, em meio a uma rivalidade alimentada pela divisão dos recursos disponíveis, e transferiu-se para as instalações no bairro Quitandinha. Após a criação da Unesp, em 1976, ganhou administração própria ao se tornar um instituto. Dois anos mais tarde, foi criado o programa de pós-graduação, dividido em várias áreas da química. Nos anos 1990, o professor José Arana Varela assumiu a coordenação do programa e propôs uma reforma. “Em vez de ter várias linhas fragmentadas, unificamos num único programa de pós-graduação em química, que ganhou consistência”, disse Varela em entrevista realizada em fevereiro, para a primeira reportagem desta série.

E

m vários momentos de sua trajetória, o IQ soube nuclear equipes de pesquisadores em áreas nas quais não tinha experiência e dar respaldo para sua consolidação. No final da década de 1970, por exemplo, duas ex-alunas do químico e professor da USP Otto Gottlieb, um dos pioneiros em química de produtos naturais no Brasil, encontraram-se em Araraquara e vislumbraram a possibilidade de criar um grupo de pesquisa sobre o tema. Ligia Maria Vettorato Trevisan era professora do IQ e Vanderlan Bolzani acabara de ser contratada para a Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Araraquara, também vinculada à Unesp. “A Ligia queria apoio para a pesquisa em produtos naturais no Departamento de Química Orgânica e sugeriu que eu me mudasse para o IQ”, recorda Vanderlan, que se transferiu para o instituto, onde trabalha há 40 anos. Nos primeiros tempos, ela se dedicou a pesquisas no campo da quimiossistemática, que busca classificar plantas segundo sua composição bioquímica, o que lhe permitiu publicar artigos científicos sem ainda ter uma boa infraestrutu-

ra de laboratório. Com a contratação de Lúcia Xavier Lopes, atualmente aposentada, formou-se um trio de professoras que trabalhou para montar uma base de pesquisa em produtos naturais. Mais tarde, Vanderlan e outra professora, Maysa Furlan, passaram temporadas nos Estados Unidos em estágios de pós-doutorado. “Apesar de haver poucos docentes, eu e Maysa tivemos apoio da Unesp para ir ao exterior”, recorda-se a pesquisadora, cujo trabalho concentrou-se na busca de substâncias com atividade farmacológica em espécies de rubiáceas brasileiras, família de plantas a que pertence o cafeeiro. O grupo hoje tem seis pesquisadores que respondem pelo Núcleo de Bioensaio, Biossíntese e Ecofisiologia de Produtos Naturais (NuBBE), responsável pela identificação e análise de mais de 640 compostos químicos extraídos da biodiversidade brasileira, descritos em mais de 250 artigos científicos. Tal experiência qualificou Vanderlan a liderar uma das vertentes do Programa Biota-FAPESP, criado em 1999 para mapear a diversidade do estado de São Paulo. Trata-se da Rede Biota de Bioprospecção e Bioensaios (BIOprospecTA), iniciativa voltada para o desenvolvimento de modelos fármacos e outros produtos a partir de extratos de plantas, fungos e organismos marinhos. Vanderlan atualmente é diretora da Agência Unesp de Inovação, criada pela universidade em 2009 para cuidar da política de proteção e de licenciamento da propriedade intelectual do conhecimento produzido pelos docentes. n Fabrício Marques

Projetos 1. Centro de Desenvolvimento de Materiais Funcionais (nº 2013/ 07296-2); Modalidade Programa Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisador responsável Elson Longo (IQ-Unesp); Investimento R$ 20.913.320,27 (para todo o projeto). 2. Materiais híbridos multifuncionais à base de celulose bacteriana (nº 2014/24692-1); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Pesquisador Visitante – Agnieszka Tercjak; Pesquisador responsável Sidney José Lima Ribeiro (IQ-Unesp); Investimento R$ 45.756,20.

pESQUISA FAPESP 244  z  33


obituário y

Cientista interdisciplinar Pioneiro na pesquisa de materiais no país, José Arana Varela morre aos 72 anos

U

m dos mais importantes pesquisadores brasileiros da área de ciência dos materiais, o físico José Arana Varela morreu de câncer no dia 17 de maio, em São Paulo. Desde 2012, ele ocupava o cargo de diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo da FAPESP, órgão que constitui a diretoria executiva da Fundação. Varela também foi membro do Conselho Superior da FAPESP de 2004 a 2010 e seu vice-presidente de 2007 a 2010. Professor titular do Instituto de Química de Araraquara, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), presidiu a Sociedade Brasileira de Pesquisa em Materiais (SBPMat), foi o fundador e primeiro diretor da Agência Unesp de Inovação e era vice-diretor do Centro de Desenvolvimento de Materiais Funcionais (CDMF), um dos centros de pesquisa, inovação e difusão (Cepid) da FAPESP. “O professor Varela foi um cientista de elevadíssimos padrões e tê-lo como presidente do Conselho Técnico-Administrativo não só fez jus às suas qualidades como também contribuiu

34  z  junho DE 2016

para a manutenção dos altos níveis científicos da Fundação”, disse o presidente da FAPESP, José Goldemberg. Nascido em Martinópolis, interior de São Paulo, Varela graduou-se em física pela Universidade de São Paulo (USP) em 1968 e fez mestrado também em física pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), concluído em 1975. No último ano de mestrado, conheceu um pesquisador norte-americano, o especialista em cerâmicas Osgood James Whittemore Jr. (1919-2010), da Universidade de Washington, em Seattle, que à época atuava como professor visitante da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). “Whittemore se interessou por minha pesquisa de mestrado, relacionada à físico-química da decomposição térmica do talco, matéria-prima cerâmica, e fez várias considerações sobre ela”, disse Varela numa entrevista concedida em 2014, quando recebeu o prêmio Bridge Building Award da American Ceramic Society. Do contato, nasceu o convite para fazer o doutorado em Seattle, entre 1977 e 1981, sobre modelos

de sinterização, o método mais antigo de fabricação de cerâmicas. A colaboração com Whittemore se estendeu por mais de uma década. “Ao lado de Whittemore, o professor Varela foi responsável por dar sustentação à pesquisa dos materiais cerâmicos no Brasil e pelo desenvolvimento dessa área no país em termos de semicondutores”, disse Elson Longo, diretor do Centro de Desenvolvimento de Materiais Funcionais, com quem Varela manteve uma parceria de cinco décadas. Em 1988, José Arana Varela foi um dos fundadores do Laboratório Interdisciplinar de Eletroquímica e Cerâmica (Liec), em parceria com dois colegas que na época estavam na UFSCar, Elson Longo e Luiz Otávio Bulhões. O laboratório, com sedes em Araraquara e São Carlos, especializou-se no desenvolvimento de novos materiais (ver reportagem à página 30). Um exemplo foi o desenvolvimento, no final dos anos 1990, de filmes ferroelétricos, constituídos de finíssimas camadas de material semicondutor, com grande capacidade de armazenar informações (ver Pesquisa FAPESP nº 52). Outro, mais recente, foi a descoberta de um material com propriedade bactericida a partir da síntese do óxido de prata com o tungstênio. Em artigo publicado na Scientific Reports em 2013, o grupo de Varela e Longo observou um crescimento exponencial de filamentos de prata metálica em escala nanométrica em diferentes regiões da superfície de cristais de tungstato de prata. liderança

Autor de mais de 500 artigos em revistas internacionais, Varela foi um pioneiro no desenvolvimento de aplicações da nanociência. “Ele muito precocemente começou a resolver problemas tradicionais da ciência dos materiais utilizando a nanotecnologia. Fazia modelagens em nível nanoscópico em busca de materiais com novas propriedades”, diz o físico Osvaldo Novais de Oliveira Júnior,


léo ramos

professor da UFSCar e atual presidente da Sociedade Brasileira de Pesquisa em Materiais. Oliveira Júnior destaca três características pessoais de Varela que moldaram sua contribuição científica. “Em primeiro lugar, era um cientista de formação refinada. Em segundo, foi um incentivador da integração de pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento para promover a ciência de materiais, uma ciência que é interdisciplinar por natureza. Ele próprio era um exemplo disso: formou-se em física, trabalhou muitos anos em química e tinha noções de engenharia. Em terceiro, exercia uma liderança natural. Ao redor dele se aglutinaram os pesquisadores no Liec e do Cepid de Materiais Funcionais.” Também ressalta a colaboração duradoura com Elson Longo. “Parcerias tão longas e frutíferas entre pesquisadores de alto nível não são comuns no ambiente acadêmico e requerem amizade, confiança e lealdade”, afirma. Na Unesp, José Arana Varela foi coordenador do programa de pós-graduação do Instituto de Química, nos anos 1990,

Autor de mais de 500 artigos, foi um dos primeiros a desenvolver aplicações da nanociência

quando promoveu uma reforma que unificou os vários programas existentes. “O professor Varela teve um papel fundamental na consolidação do programa de pós-graduação, que hoje é um dos mais respeitados do país”, diz o vice-diretor do instituto, Eduardo Maffud Cilli. Em

2006, o reitor da Unesp, Marcos Macari, desmembrou a Pró-reitoria de Pós-graduação e Pesquisa em duas e convidou Varela para cuidar da pesquisa. Coube a ele criar programas de incentivo para que pesquisadores da universidade publicassem artigos em revistas consagradas, que existem até hoje. “A cada paper publicado, o pesquisador recebia uma quantia e podia usá-la em qualquer atividade de seu grupo: mandar um aluno para fora, fazer uma viagem ou usar no laboratório”, relembrou Varela, em entrevista realizada em fevereiro. Nessa época, ajudou a montar o núcleo de inovação tecnológica para ajudar pesquisadores a obter patentes e fazer acordos de transferência de tecnologia com empresas. Foi o embrião da Agência Unesp de Inovação, criada em 2010, da qual Varela foi o primeiro diretor. Mesmo com afazeres executivos na Unesp e na FAPESP, seguia orientando alunos de mestrado e doutorado e supervisionando estagiários de pós-doutorado. Um de seus últimos alunos foi Thiago Sequinel, 32 anos, hoje professor da Universidade Federal da Grande Dourados, no Mato Grosso do Sul, que em 2013 defendeu tese de doutorado sobre o comportamento fotoluminescente de filmes finos. “Conheci o professor Varela num congresso de cerâmica. Era um pesquisador muito admirado, com quem todo mundo queria tirar fotografia”, lembra Sequinel. O orientador de mestrado de Sequinel, Sergio Mazurek Tebcherani, professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa, havia sido aluno de Varela – e serviu de elo entre o veterano pesquisador e o jovem doutorando. “O professor Varela traçou caminhos para a minha pesquisa que eu nunca imaginei serem possíveis. Ele passava a semana em São Paulo, mas na sexta-feira ia a Araraquara e não era incomum que me atendesse no laboratório nos sábados ou domingos”, lembra Sequinel. n Fabrício Marques pESQUISA FAPESP 244  z  35


Difusão y

Talento de comunicador

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Competição de divulgação científica realizada em 32 países chega ao Brasil Bruno de Pierro

ada de apresentações com PowerPoint ou recursos audiovisuais como vídeos ou fotos. Num palco montado no Centro Brasileiro Britânico, em São Paulo, a voz, o corpo e a imaginação eram os únicos recursos de que nove pesquisadores dispunham para explicar em três minutos conceitos científicos às vezes bastante complexos. A oceanógrafa Manoela Romanó de Orte, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), relacionou o aumento da acidez dos oceanos às mudanças climáticas no planeta – e mostrou como isso pode prejudicar a economia da pesca. Cibele dos Santos Borges, aluna de doutorado da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Botucatu, comparou espermatozoides com corredores e explicou como os mais fortes, e não necessariamente os mais velozes, conseguem fertilizar os óvulos. João Victor Cabral Costa, mestrando no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo (USP), comparou o cérebro a um computador para falar de seu funcionamento – e mostrou como

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exercícios físicos podem influenciar a plasticidade das sinapses. A explicação do matemático Jackson Itikawa foi a que agradou mais ao público e à bancada de jurados, que reunia cientistas e profissionais de comunicação. O assunto era o mais abstrato de todos: a teoria dos conjuntos elaborada pelo matemático russo Georg Cantor (1845-1918), particularmente o conceito de conjuntos infinitos. Para explicar as propriedades surpreendentes desses conjuntos, Itikawa recorreu ao paradoxo do Hotel de Hilbert, um experimento mental proposto pelo matemático alemão David Hilbert (1862-1943). Ele imaginou um hotel com infinitos quartos que, embora totalmente ocupado, sempre teria um vago para um novo hóspede. “Ao mover os hóspedes para quartos com números correspondentes ao dobro daqueles em que estavam, ou seja, para quartos com números pares, haveria infinitos quartos livres no hotel, correspondentes aos de números ímpares.” A apresentação deu a Itikawa a vitória na edição brasileira do FameLab, uma das maiores competições de comu-


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O matemático Jackson Itikawa (1) venceu a primeira edição do FameLab no Brasil. Entre os finalistas, estavam a engenheira Cibele dos Santos Borges (2), o farmacêutico João Victor Cabral Costa (3), a bióloga Ingrid Regina Avanzi (4) e a biomédica Gisele Antoniazzi Cardoso (5)

fotos  eduardo cesar

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nicação científica no mundo. Realizado pela primeira vez no Brasil pelo British Council em parceria com a FAPESP, o evento reuniu nove finalistas, de um total de 20 candidatos, na última etapa, que aconteceu no dia 11 de maio. O FameLab foi lançado em 2004 no Festival de Ciência de Cheltenham, na Inglaterra, e neste ano teve edições em 32 países. O objetivo tem duas mãos: incentivar o desenvolvimento de competências de comunicação entre pesquisadores e despertar o interesse do público pela ciência. “A comunicação deve ser encarada pelo cientista como parte do seu trabalho”, afirma Julia Knights, diretora de Ciência e Inovação da Embaixada Britânica em Brasília. “É cada vez mais importante que os pesquisadores aprimorem sua capacidade de comu-

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nicação para que o conhecimento possa ter maior impacto, por exemplo, no processo de tomada de decisão na administração pública. No Reino Unido, jovens pesquisadores recebem treinamento específico para dar palestras ao público leigo”, diz ela. A ideia de trazer o FameLab ao país nasceu no simpósio FAPESP Week Barcelona, realizado em maio de 2015. “Assisti às apresentações de duas participantes do FameLab na Espanha e achei muito divertido”, conta Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP. “Quando retornei, procurei o British Council e propus a realização da competição no Brasil.” Nesta primeira edição, considerada uma experiência-piloto, participaram apenas bolsistas de mestrado, doutorado e pós-doutorado da

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pESQUISA FAPESP 244  z  37


Cibele dos Santos Borges, da Unesp de Botucatu, fez uma apresentação sobre o comportamento dos espermatozoides durante a final do FameLab em São Paulo

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FAPESP. A partir do ano que vem, poderão participar pesquisadores de todo o país, sublinha Claudio Anjos, diretor de Educação e Sociedade do British Council Brasil. “Estamos envolvendo fundações de amparo à pesquisa de outros estados”, diz. “Temos interesse em firmar parceria com alguma emissora de televisão, para a transmissão ao vivo da final, como acontece, por exemplo, no FameLab do Egito”, completa Anjos. entretenimento

O formato da competição de fato lembra um concurso de talentos da TV. Mas não é o caso de cantar ou dançar e sim de explicar conceitos científicos da forma mais clara e atraente possível. Primeiro, os participantes enviam um vídeo de seis minutos com uma explicação em português e outra em inglês sobre um tema de sua pesquisa. Os vídeos não podem ter efeitos especiais e música de fundo, sendo permitido apenas o uso de objetos portáteis, como, por exemplo, uma bola para simular o Sol. Na final nacional, as apresentações são orais, diante do público e de um júri de especialistas que avalia a clareza, o conteúdo e o carisma dos candidatos. O ganhador vai à final internacional na Inglaterra, programada para a semana de 7 a 12 de junho. Representante do Brasil do evento, Itikawa diz que seu objetivo é despertar o interesse do público pela matemática. “Trata-se de um campo do conhecimento que nos permite enxergar o mundo com outros olhos. No caso da teoria dos conjuntos, ela influenciou as ciências e a filosofia. Até mesmo a religião se envolveu no debate a respeito da ideia de um Deus in38  z  junho DE 2016

“A comunicação deve ser encarada pelo cientista como parte de seu trabalho”, disse Julia Knights, da Embaixada Britânica

finito”, afirma Itikawa, que atualmente faz estágio de pós-doutorado no Instituto de Ciências Matemáticas e Computação da Universidade de São Paulo (USP), em São Carlos. Este ano, Itikawa está lecionando uma disciplina para alunos de graduação, como professor voluntário. “Dar aulas certamente ajudou a me soltar um pouco e a treinar minha oratória”, diz o matemático. “Com as dicas do Malcolm Love eu melhorei muito.” Itikawa se refere ao especialista britânico responsável pelos treinamentos em comunicação científica do FameLab em diversos países. Professor da University of the West of England e produtor e apresentador de programas de rádio e

TV em emissoras como a BBC, Malcolm Love foi o encarregado de preparar os candidatos brasileiros para a competição. Em dois dias de treinamento intensivo na sede da FAPESP, o inglês fez exercícios para melhorar as habilidades de comunicação dos participantes, tais como olhar diretamente para a plateia, usar linguagem corporal, falar com poucas palavras e fazer analogias que estimulem a imaginação das pessoas. “É preciso saber encarar o público de frente”, explicou Love, no treinamento. Uma das finalistas, a bióloga Ingrid Regina Avanzi, doutoranda em ciência ambiental na USP, diz que as dicas de Love a encorajaram a elaborar uma apresentação lúdica. Estudante de teatro na adolescência, Ingrid interpretou o papel de uma bactéria que viaja em uma nanonave espacial, para explicar a capacidade das bactérias de degradar metais pesados que contaminam rios. “Prazer, eu sou uma micronauta, e agora vamos explorar o mundo das bactérias”, disse na abertura de sua apresentação. “Cada espécie de bactéria possui sua caixa de ferramentas própria. As ferramentas são os genes, utilizados conforme a necessidade. Por exemplo, se uma bactéria vive em uma área contaminada, ela vai procurar dentro de sua caixinha algo que ajude a se alimentar da substância contaminante”, explicou. “Quis desfazer a ideia de que fazer ciência é sempre ficar atrás de uma bancada de laboratório e escrever artigos”, diz a bióloga. O educador físico Leonardo Coelho Rabello, aluno de doutorado em desenvolvimento humano e tecnologias na Unesp, em Rio Claro, falou sobre o desempenho das


Final internacional do FameLab no Festival de Ciência de Cheltenham, na Inglaterra, em 2014

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fotos 1 eduardo cesar 2 flickr 3 FIL / Paola Villanueva Bidault

Equipe do grupo de divulgação científica The Big Van Theory, formado em 2013 após a realização do FameLab em Barcelona

fibras musculares em atividades físicas, fazendo referência a modalidades olímpicas. “A ciência do esporte mostra que a realização de agachamentos na preparação de um atleta de voleibol pode levar a um aumento de 5,7% na altura de saltos”, disse Leonardo, que utilizou fios luminosos em suas pernas para simular os movimentos dos músculos. vídeos e vans

Nos dias que antecederam a final do FameLab, os candidatos conheceram-se pessoalmente e criaram vínculos. “Um passou a dar sugestões para o outro”, conta Ingrid. Eles ainda mantêm contato por meio do aplicativo WhatsApp.

Um dos assuntos mais discutidos entre eles é a ideia de criar um canal de vídeos no YouTube (ver Pesquisa FAPESP nº 243). “Hoje, a produção de vídeos na internet é uma boa ferramenta de divulgação científica e acreditamos que pode ser uma oportunidade de colocar em prática o que aprendemos com o FameLab”, diz Ingrid. Uma experiência desse tipo aconteceu na Espanha em 2013, quando foi realizada a primeira edição do FameLab no país. Na final, o vencedor, o matemático Eduardo Sáenz de Cabezón, sugeriu aos demais participantes que se apresentassem todos em um bar, como num espetáculo de stand-up comedy. A iniciativa deu certo e o grupo foi convidado a repetir a experiência em outras cidades da Espanha. Surgiu então a ideia de batizar o espetáculo de The Big Van Theory (TBVT), uma alusão ao seriado nerd de televisão The Big Bang Theory, criado em 2007. O

logotipo do grupo é uma perua Kombi, dessas que conduzem trupes de artistas itinerantes. Hoje o grupo é formado por 19 pesquisadores de áreas como biologia, química e astronomia. As apresentações, que incluem esquetes cômicas e música, já passaram por vários países europeus e da América Latina. Desde 2007, quando a competição ganhou caráter internacional, mais de 7 mil pesquisadores (ou famelabers) de vários países participaram do evento. A formação dessa rede foi possível graças a parcerias entre o British Council e instituições científicas. O órgão britânico foi o responsável por internacionalizar a competição. Nos Estados Unidos, por exemplo, o evento é organizado junto com a Nasa, a agência espacial norte-americana, e são definidos temas específicos para cada temporada. Em 2012, o mote foi a astrobiologia. Neste ano, tratou-se da exploração da Terra e do espaço ao redor. A vencedora foi Ilissa Ocko, pesquisadora do clima no Environmental Defense Fund, organização não governamental sediada em Nova York. Ela falou da relação entre gases de efeito estufa e câncer. Em outros países, como Egito, Turquia e Bulgária, foram feitas parcerias com emissoras de TV, que exibem ao vivo a final do FameLab a milhares de pessoas. “O FameLab tem demonstrado ser um modelo para apresentar conteúdo científico a grandes audiências em um formato de entretenimento”, escreveu George Zarkadakis em um artigo publicado em 2010 na revista Science Communication, no qual analisou o impacto da competição entre 2007 e 2010. n pESQUISA FAPESP 244  z  39


Digitalização y

Resgate do passado Iniciativa dos mórmons recupera antigos registros de cartórios de municípios paulistas

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ma parceria entre os mórmons e um órgão do governo paulista que preserva documentos públicos vai disponibilizar para cidadãos e pesquisadores um conjunto de 25 milhões de imagens digitalizadas de registros de nascimento, casamento e morte anteriores a 1940. Um convênio celebrado em abril entre o FamilySearch, organização de pesquisa genealógica ligada à Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, e o Arquivo Público do Estado de São Paulo prevê a limpeza, digitalização e indexação de 199.664 livros cartorários de dezenas de municípios paulistas. Quarenta e dois técnicos foram contratados para a empreitada, prevista para terminar em abril de 2018. O custo, bancado integralmente pelo Family-Search, deve chegar a R$ 20 milhões. Depois de digitalizados, os documentos ficarão disponíveis gratuitamente para consulta na internet no site da organização (familysearch.org). O arquivo paulista também poderá oferecê-los em seu site, a exemplo do que faz com cerca de 400 mil imagens de vários de seus acervos, como as fichas e prontuários produzidos pelo Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops), a polícia política paulista, entre 1924 e 1983.

40  z  junho DE 2016

O acordo garante outros benefícios para o arquivo e seus usuários. Além da digitalização de registros civis, o Family-Search se comprometeu a limpar e catalogar centenas de livros de registros de imóveis, que ficarão disponíveis para consulta na sede do Arquivo Público – esse material não será, contudo, digitalizado, porque não interessa à organização. “A higienização mecânica é muito importante, pois são livros antigos, anteriores a 1940, que por isso se tornaram de guarda permanente”, diz o historiador Wilson Ricardo Mingorance, diretor do Centro de Arquivo Administrativo do órgão paulista. Os livros estavam guardados sem catalogação. À medida que o trabalho de limpeza e indexação avançar, será possível ter uma ideia de quantos municípios são abrangidos pelo material. A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias especializou-se em reunir e disponibilizar documentos para pesquisa genealógica desde o século XIX. “Na doutrina mórmon, as relações familiares são eternas. Acreditamos que, no momento da ressurreição, todos nos reencontraremos com nossos antepassados. Então incentivamos nossos fiéis a saberem quem eles foram”, diz Mario Silva, gerente de relacionamentos do FamilySearch, organização fundada em

1894. Até cerca de 10 anos atrás, o trabalho se concentrava na produção de microfilmes em diversos países, que estão armazenados na cidade norte-americana da Salt Lake City, Utah, onde fica a sede da igreja. A partir dos anos 2000, os microfilmes cederam espaço às imagens digitais, mais fáceis e baratas de registrar. Atualmente, a organização dispõe, somente no Brasil, de 41 câmeras digitais reproduzindo documentos em diversas localidades – 20 delas estão dedicadas à parceria celebrada em São Paulo. Esse trabalho já atingiu cidades de 17 dos 27 estados brasileiros. Parte do acervo do FamilySearch pode ser consultada de forma gratuita. Quando a informação requerida está em microfilmes, paga-se apenas o custo do transporte ou a reprodução de documentos. A consulta aos microfilmes pode ser feita em capelas mórmons.


fotos  eduardo cesar

Equipe do FamilySearch cataloga documentos de livros cartorários no Arquivo do Estado (esq.): trabalho é precedido pela limpeza do material (acima) e sua digitalização (dir.)

de dados sobre sua genealogia. “Esses documentos têm efeito probatório e podem comprovar direitos, podendo ser usados, por exemplo, por pessoas interessadas em obter a cidadania estrangeira”, diz Ieda. fichas consulares

Não é a primeira vez que o Arquivo do Estado e a organização vinculada aos mórmons fazem um convênio. Em 2014, o FamilySearch digitalizou 4 milhões de imagens, como os cartões de imigração de estrangeiros que chegaram a São Paulo entre 1902 e 1980. Esse material está disponível na internet, assim como parte de um acervo de 2 milhões de fichas consulares de qualificação que o FamilySearch digitalizou no Rio de Janeiro, por meio de um convênio com o Arquivo Nacional. A historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, vem consultando as Documentos podem ser úteis fichas consulares sob em pesquisas sobre imigração, a guarda do Arquivo Nacional com o objeurbanização ou saúde pública tivo de completar as pesquisas para o Arquivo Virtual sobre A expectativa de Ieda Pimenta Bernar- Holocausto (arqshoah.com). Sua equides, diretora do Departamento de Ges- pe continua em busca de judeus sobretão do Sistema de Arquivos do Estado viventes da perseguição nazista desde de São Paulo, é de que o acervo dos livros 1933 para gravar testemunhos sobre suas de cartórios seja aproveitado por pes- trajetórias de vida. “As fichas consulares quisadores de várias áreas. “Os registros digitalizadas fornecem informações vade imóveis podem ser úteis em estudos liosas para estas pesquisas, que extraposobre a história da urbanização em São lam a memória individual, pois são parte Paulo. Os de nascimento, em pesquisas da história de um genocídio único na sobre a imigração e até em filologia. Os de história da humanidade. Por meio delas, óbito, em estudos sobre saúde pública”, é possível reconstruir as rotas de fuga, a exemplifica. A maior parte das consultas, chegada desses imigrantes no Brasil, saporém, deve partir de cidadãos em busca ber se ingressaram no país como apátri-

das e que cônsul chancelou sua entrada, além de recuperar a data ou o navio que os trouxeram”, diz a pesquisadora. Ela prevê usos nobres para os documentos de cartórios que começam a ser digitalizados em São Paulo. “Em pesquisas sobre imigrantes, esses documentos vão permitir dizer que bens eles adquiriram no Brasil, com quem casaram, por exemplo, oferecendo dados significativos para os estudos acerca da integração e ascensão na sociedade brasileira”, afirma. O FamilySearch atesta que seus documentos têm tido vários tipos de serventia. “Há alguns anos, fomos procurados por pesquisadores do Centro de Documentação e Pesquisa dos Domínios Portugueses da Universidade Federal do Paraná. Eles estavam interessados nos livros de nascimento de dioceses católicas do estado que havíamos digitalizado e que eram mais fáceis de consultar do que presencialmente. Perguntamos à arquidiocese se poderíamos repassar os dados e ela autorizou”, diz Mario Silva. Em outras situações, documentos perdidos foram resgatados. “Havíamos microfilmado livros de um cartório de São Luís do Paraitinga, que se perderam na enchente de 2010. Recuperamos os registros em Salt Lake City e os devolvemos para o cartório”, conta. n Fabrício Marques pESQUISA FAPESP 244  z  41


ciência  medicina y

Operação antidiabetes Novas diretrizes indicam cirurgia de redução do estômago para combater doenças metabólicas Maria Guimarães

S

e depender dos cerca de 50 especialistas em diabetes que se reuniram em Londres no ano passado, a cirurgia de redução de estômago deixará de ser apenas assunto de obesos. Por meio de questionários, discussões e votação, a Segunda Cúpula de Cirurgia do Diabetes (DSS-II, na sigla em inglês) traçou diretrizes para o que chamam de cirurgia metabólica, relatadas em artigo publicado em junho na revista Diabetes Care. Na prática, a cirurgia pode ser a mesma usada para redução de peso, conhecida como bariátrica, mas o cirurgião Ricardo Cohen, coordenador do Centro de Obesidade e Diabetes do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo, defende o uso de um termo distinto que ressalte a intenção. “Não queremos regulamentar uma cirurgia, isso já existe há décadas”, explica o médico, que participou da DSS-II. “O que queremos é pôr a cirurgia metabólica no algoritmo do tratamento do diabetes.” A ideia é desvincular a indicação de cirurgia de quadros de obesidade, já que dados internacionais afirmam que 50% dos pacientes de diabetes do tipo 2 têm índice de massa corpórea (IMC) abaixo de 35 quilogramas por metro quadrado (kg/m2). 42  z  junho DE 2016

Atualmente, a cirurgia bariátrica é recomendada para quem tem obesidade considerada mórbida, caracterizada por IMC acima de 40 kg/m2, e pode ser aceita para pacientes com diabetes ou problemas cardiovasculares sérios e IMC entre 35 e 40 kg/m2. A proposta de alteração na indicação se baseia em centenas de artigos sobre os efeitos metabólicos da cirurgia bariátrica. Um deles é um estudo feito pelo grupo de Cohen com 66 pacientes que tinham IMC entre 30 e 35 kg/m2, com diagnóstico de diabetes feito em média 13 anos antes, que passaram por cirurgia bariátrica e foram acompanhados por seis anos. Os resultados, publicados em 2012 na Diabetes Care, mostraram melhora nos índices de diabetes. Ao final do estudo, 88% dos operados continuavam independentes de medicação e 11% tinham voltado a manifestar a doença, em grau mais leve. De acordo com o artigo publicado este mês, aqueles que passam pela cirurgia podem viver, em média, oito anos sem diabetes. Um acompanhamento de maior escala e mais longo prazo foi feito na Suécia, onde mais de 2 mil pessoas operadas foram acompanhadas por um período de 10 a 20 anos e comparadas a um grupo similar que recebeu tratamento clínico. O estu-


Cirurgia bariátrica

Cirurgia metabólica

Objetivo Perda de peso e redução

Controle metabólico e de

de comorbidades

risco cardiovascular

Indicação Índice de Massa Corpórea

Diabetes do tipo 2 não

(IMC) ≥ 40 kg/m2 ou

controlado, outros

IMC ≥ 35 kg/m2 com

problemas metabólicos

problemas associados

e cardiovasculares, IMC ≥ 30 kg/m2

ilustraçãO  o silva

Mecanismos de ação Restrição do estômago e

Mecanismos complexos

da absorção instestinal

neuroendócrinos

do, conhecido como Sujeitos Obesos Suecos (SOS), vem mostrando melhoras importantes nos índices de diabetes e cardiovasculares. Em conjunto, os dados analisados pelo grupo reunido em Londres, que para aumentar a credibilidade era composto por uma maioria (75%) de não cirurgiões (endocrinologistas, clínicos, gastroenterologistas, diabetologistas, pesquisadores em fisiologia), são indícios suficientes de que os mecanismos desencadeados pela cirurgia – que incluem alterações hormonais, na microbiota intestinal e na resistência dos tecidos à insulina – têm efeito direto no metabolismo. “Em geral a perda de peso acontece com a cirurgia e a consideramos bem-vinda, mas a recidiva do diabetes não parece depender diretamente disso”, diz o médico do Hospital Oswaldo Cruz. No Brasil, a classificação proposta para avaliar o benefício da cirurgia se daria com base no escore de risco metabólico, um questionário de avaliação dos pacientes. “Os sistemas propostos em outros países são semelhantes”, conta Cohen. Ele estava à espera da publicação das diretrizes da DSS-II, chanceladas por 46 sociedades médicas do mundo todo, para retomar a argumentação no Conselho Federal de Medicina pESQUISA FAPESP 244  z  43


Principais procedimentos cirúrgicos Os três modelos podem ser usados tanto para perda de peso como para controle metabólico Gastroplastia em Y de Roux

Gastroplastia vertical (sleeve)

Considerada a cirurgia-padrão por seus bons resultados, pode ser feita por laparoscopia. Uma porção menor do estômago recebe o alimento, que segue por um atalho para uma parte mais adiantada do intestino

O estômago é grampeado e reduzido ao formato de um tubo. Além do volume menor, a alteração também leva à redução de apetite por mecanismos hormonais. É menos radical e mais simples, feita por laparoscopia

estômago

estômago

pâncreas

pâncreas intestino delgado

intestino delgado intestino grosso trajeto do alimento trajeto dos sucos digestivos

(CFM) pedindo a regulamentação da cirurgia metabólica no Brasil. Os argumentos são fortes, mas não há um consenso. De acordo com o endocrinologista Bruno Geloneze, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), não existe uma cirurgia puramente metabólica. “O impacto metabólico da cirurgia vem em grande parte da perda de peso”, defende. “A pessoa pode ter diabetes com um IMC mais baixo, mas quanto menor o IMC, menores as chances de obter um resultado bom.” Para ele, nesses casos a cirurgia pode não valer a pena.

O

procedimento em si é hoje considerado seguro e pode ser feito por laparoscopia, com um baixo índice de complicações durante a cirurgia e logo depois dela. Mas uma avaliação pós-cirúrgica ou clínica pode não corresponder à realidade cotidiana da pessoa – ela terá de alterar a alimentação e talvez não possa mais consumir certos tipos de alimentos, nem grandes quantidades. Feijoadas no fim de semana, daquelas que deixam a pessoa estufada, ou fartas ceias de Natal, passam a ser memórias. “Valer a pena ou não depende de um exame minucioso do potencial benefício de longo prazo com as complicações que podem ocorrer, como aumento de desnutrição, fraturas por osteoporose e suicídio, entre outras”, afirma o médico da Unicamp. 44  z  junho DE 2016

O grupo de Geloneze testou em seres humanos não obesos um modelo de cirurgia metabólica desenvolvido pelo cirurgião Francesco Rubino, do King’s College London, na Inglaterra (que também é primeiro autor do artigo com as diretrizes do DSS-II). O procedimento apenas muda uma porção do intestino de lugar, sem reduzir o estômago, e por isso não envolve perda de peso. “Um ano depois os pacientes tinham reduzido a tomada de insulina”, conta ele sobre os resultados publicados em 2012 na revista Annals of Surgery. Os pesquisadores da Unicamp preparam agora o relato do seguimento de cinco anos. Geloneze adianta: a melhora não se manteve. O resultado não o satisfaz. “É uma doença crônica, o efeito do tratamento também tem que ser crônico.” Para pessoas com obesidade leve, conhecida como classe I (IMC entre 30 e 35 kg/m2), ele concorda que a cirurgia é eficaz em reduzir hipertensão, diabetes e outros problemas metabólicos. Tudo isso vem junto com perda de peso, e por isso ele insiste em continuar chamando a operação de bariátrica. Em estudo feito com 36 pessoas nessa classe de obesidade leve, a cirurgia Y de Roux (ver infográfico) teve bons efeitos no primeiro ano em todos os índices metabólicos, conforme artigo de 2015 na Obesity Surgery. Dois anos depois, o peso e a glicemia continuavam bem controlados e os índices de diabetes estavam pro-

Fonte  bruno geloneze e ricardo cohen


Derivação biliopancreática O estômago é reduzido e um desvio faz com que o alimento e os sucos digestivos só se encontrem próximo ao fim do trato intestinal. Não pode ser feita por laparoscopia e por isso é considerada mais difícil

infográfico ana paula campos  ilustraçãO  o silva

pâncreas

intestino grosso

têm um aumento expressivo no risco de desenvolver diabetes. “Os remédios têm melhorado, mas a doença é desgraçada”, diz Cohen. E é uma ameaça global. A Federação Internacional de Diabetes estimou em 2015 cerca de 415 estômago milhões de pessoas afetadas pela doença, com potencial de aumentar para 642 milhões até 2040, de acordo A Federação com artigo de revisão pelo Internacional grupo de Cohen aceito para publicação na revista Arquide Diabetes vos Brasileiros de Cirurgia Digestiva. O Brasil é o quarestimou em to país nesse ranking letal, com mais de 14 milhões de 2015 cerca de diabéticos no ano passado. 415 milhões A mortalidade mundial associada à doença, em 2015, de pessoas foi de 5 milhões: mais do que Aids, tuberculose e maafetadas pela lária juntas. Com novas linhas de pesdoença quisa, Geloneze está interessado em alternativas à intestino cirurgia e ressalta desendelgado volvimentos farmacológicos promissores, que em sua opinião podem tornar esta discussão anacrônica. Em vavelmente melhores do que teria sido atingido parceria com o médico Licio Velloso, também com um tratamento puramente clínico. Mas, para da Unicamp, ele pretende estudar o que acona maior parte dos pacientes, não se podia falar tece com a gordura marrom, um tipo de tecido em cura ou remissão da doença, principalmente adiposo considerado benéfico, em pessoas que naqueles que conviviam com o diabetes há mais fizeram cirurgia bariátrica. “Depois da cirurgia, tempo. “Quando falamos em 25% ou 30% de re- aumenta a produção de GLP-1”, diz, referindo-se versão, é preciso discutir caso a caso se vale o ao peptídeo semelhante a glucagon-1, que estimula o tecido adiposo marrom. Segundo Geloneze, risco da cirurgia”, avalia o médico. a gordura marrom causa um aumento nos ácidos s divergências de opinião parecem estar biliares, por sua vez associados à perda de peso mais enraizadas no foco de trabalho de e melhora no diabetes. Entender melhor esses cada um dos pesquisadores do que em mecanismos, ele espera, pode indicar o caminho disputas dos resultados propriamente ditos. Como para se encontrar métodos clínicos que possam pesquisador e clínico, Geloneze busca entender vir a substituir a cirurgia. n os mecanismos pelos quais a cirurgia atua no funcionamento metabólico. Uma visão que vai de enArtigos científicos contro às considerações do DSS-II, que ressaltam RUBINO, F. et al. Metabolic surgery in the treatment algorithm for type a necessidade de pesquisa que explique os aspec2 diabetes: A joint statement by international diabetes organizations. tos funcionais das partes do intestino no desenDiabetes Care. v. 39, n. 6, p. 861-77. jun. 2016. COHEN, R. V. et al. Effects of gastric bypass surgery in patients with volvimento e no combate ao diabetes. Enquanto type 2 diabetes and only mild obesity. Diabetes Care. v. 35, n. 7, p. esse conhecimento não é alcançado, a prioridade 1420-8. jul. 2012. do grupo que se reuniu em Londres é garantir o FELLICI, A. C. et al. Surgical treatment of type 2 diabetes in subjects with mild obesity: Mechanisms underlying metabolic improvements. acesso à cirurgia (inclusive por meio de regulaObesity Surgery. v. 25, n. 1, p. 36-44. jan. 2015. mentação que permita a cobertura por planos de GELONEZE, B. et al. Metabolic surgery for non-obese type 2 diabetes: saúde) dos pacientes sem obesidade mórbida que incretines, adipocytokines, and insulin secretion/resistance changes in a 1-year interventional clinical controlled study. Annals of Surgery. não conseguem controlar o diabetes unicamente v. 256, n. 1, p. 72-8. jul. 2012. com medicamentos. O IMC mínimo seria 30 kg/ CAMPOS, J. et al. O papel da cirurgia metabólica para tratamento de m2 para boa parte do mundo e um pouco menor pacientes com obesidade grau I e diabetes tipo 2 não controlados clinicamente. Arquivos Brasileiros de Cirurgia Digestiva. No prelo. para os asiáticos, que com menos sobrepeso já

A

pESQUISA FAPESP 244  z  45


Cérebros em miniatura: organoides cultivados no Laboratório de Células-tronco da USP e usados em testes com o vírus zika 46  z  junho DE 2016

léo ramos

saúde y


BR Zika

Após demonstrarem que vírus brasileiro causa microcefalia, pesquisadores começam a investigar outros fatores que podem contribuir para danos neurológicos

Ricardo Zorzetto

P

esquisadores de São Paulo e de outros estados dão por encerrada a fase inicial da investigação da influência do vírus zika sobre os casos de microcefalia. Seis meses após surgirem as primeiras evidências de que esse agente infeccioso estaria por trás do nascimento de crianças com o cérebro pequeno demais para a idade gestacional, as equipes brasileiras que estudam essa conexão julgam que já existe informação suficiente para afirmar que o zika causa microcefalia e danos neurológicos. Várias condições necessárias para comprovar a relação de causa e efeito foram atendidas. Nesse período, registraram-se casos de mulheres infectadas na gestação que tiveram bebês com microcefalia e se verificou que o vírus atravessa a placenta. Identificaram-se particularidades que diferenciam a microcefalia associada ao zika de outras formas do problema e se confirmou a predileção do vírus pelas células do sistema nervoso. Em maio, veio a comprovação que faltava: uma equipe paulista apresentou um modelo animal de microcefalia. Os pesquisadores usaram a variedade do vírus em circulação no Brasil e demonstraram que ela é mais agressiva do que a africana, isolada em 1947 de um macaco. Na Universidade de São Paulo (USP), o grupo do neuroimunologista Jean Pierre Peron inoculou o vírus em

fêmeas de camundongo grávidas e acompanhou a gestação. A cepa brasileira, a ZIKVBR, atravessa a placenta de fêmeas de uma variedade de roedores mais suscetível à infecção por vírus e prejudica o desenvolvimento dos filhotes. Os roedores nascem com menos da metade do peso normal, têm o cérebro menor e apresentam danos no tecido cerebral semelhantes aos causados pelo zika nos seres humanos. Assim como o vírus africano, o zika brasileiro invade e danifica preferencialmente os progenitores neurais, células que originam os diferentes tipos de células cerebrais e são abundantes no início do desenvolvimento do feto. Mas a variedade brasileira causa morte celular mais acentuada. Apresentado em 11 de maio na revista Nature, esse modelo permitirá, segundo os pesquisadores, investigar detalhes do mecanismo de lesão do vírus e fazer testes iniciais de compostos candidatos a vacina e a medicamento contra o zika. “Antes não era possível saber se era realmente o zika ou se havia outro fator associado provocando os casos de malformação no Brasil”, conta o neurocientista brasileiro Alysson Muotri, pesquisador da Universidade da Califórnia em San Diego e coautor do estudo. “Nosso trabalho mostra que o zika brasileiro é suficiente para causar microcefalia e outros problemas congênitos”, diz.

“Equacionamos um problema importantíssimo”, afirma o virologista Paolo Zanotto, da USP, um dos autores do estudo. Zanotto coordena a Rede Zika, um consórcio de quase 50 laboratórios paulistas que investigam o vírus com apoio da FAPESP. Ele sabe que nem tudo está resolvido. “Agora”, diz, “precisamos entender a complexidade da epidemia e acompanhar a evolução cognitiva das crianças com microcefalia”. Fragilidade imune

Mesmo a variedade mais agressiva do vírus só causou microcefalia nos filhotes de roedores de uma linhagem menos resistente a infecções virais. No Laboratório de Interações Neuroimunes da USP, Peron e sua equipe injetaram o vírus na corrente sanguínea de fêmeas de camundongo prenhes de duas linhagens – a C57BL/6, com sistema de defesa mais robusto, e a SLJ, cujas células produzem menos interferon, um sinalizador químico que as protege da invasão viral. Só os filhotes da linhagem SLJ nasceram menores, sinal de que sofreram restrição de crescimento no útero, e apresentavam danos no cérebro. “Esse modelo parece simular bem o que ocorre na gestação, período em que o sistema imunológico sofre alguma supressão e pode ficar mais suscetível a infecções”, conta a neurocientista Patrícia Beltrão Braga, chefe do pESQUISA FAPESP 244  z  47


Zika brasileiro causou mais danos a neuroesferas e minicérebros do que o africano

Mais agressivo

A confirmação mais contundente de que o zika brasileiro é mais agressivo do que o africano veio dos experimentos feitos no laboratório de Patrícia Braga. Ela e sua equipe extraem células-tronco do dente de leite de crianças saudáveis e as reprogramam quimicamente para se transformarem em células mais versáteis, os progenitores neurais. Cultivados em suspensão em um líquido nutritivo, os progenitores formam esferas microscópicas (neuroesferas). Com o tempo, as células da neuroesfera originam diferentes tipos celulares que se organizam em camadas como se fossem minicérebros.

No laboratório de Patrícia, as biólogas Fernanda Cugola, Isabella Fernandes e Fabiele Russo infectaram as neuroesferas e os minicérebros com a variedade brasileira e a africana do zika. Já no primeiro dia, os dois tipos de vírus invadiram os progenitores neurais e começaram a se multiplicar. No quarto dia, as neuroesferas infectadas pelo ZIKVBR tinham um quarto do tamanho das infectadas pelo vírus africano e quase um décimo do tamanho das que não tinham vírus. O zika também causou deformações em sua

Destruição em massa Zika mata as células e causa alterações no tamanho e na estrutura das neuroesferas

Neuroesferas saudáveis Progenitores neurais se multiplicam e formam neuroesferas. Em certo estágio, as células se destacam e migram. O deslocamento permite que povoem diferentes regiões do cérebro

Neuroesferas com zika Progenitores neurais infectados pelo zika geram neuroesferas menores e disformes, com células que não conseguem migrar como deveriam Fonte patrícia beltrão braga / usp

48  z  junho DE 2016

Com o tempo, as células imaturas se especializam e originam neurônios

Por razão desconhecida, o material genético (DNA) se distribui pela periferia do núcleo de neurônios com zika

estrutura. E, quanto maior a quantidade de vírus, mais intensos eram os danos. Além de deformar as neuroesferas, o vírus impediu que suas células migrassem, fenômeno em que se deslocam e povoam diferentes regiões cerebrais. Minicérebros com zika brasileiro apresentaram redução da espessura da camada que origina o córtex, a camada mais superficial do cérebro e a mais afetada nos bebês com microcefalia causada por zika. As alterações no tamanho e na estrutura das neuroesferas e dos minicérebros são decorrentes da morte de suas células, que parecem ocorrer de duas formas: apoptose ou morte programada, na qual a célula murcha em face de sinais indicando que não poderá recuperar seu funcionamento normal; e autofagia, em que bolsas contendo ácidos e enzimas se rompem e digerem o conteúdo celular. No caso do zika, a morte por apoptose é precedida de desarranjos identificados pelo grupo de Patricia Garcez e Stevens Rehen, neurocientistas da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino. A equipe do Rio infectou progenitores neurais com zika e, três dias depois, pediu para Janaina Vasconcelos e João Vianez Júnior, do Instituto Evandro Chagas, em Belém, analisarem o padrão de ativação dos genes, e para Juliana Nascimento, Juliana Cassoli e Daniel Martins de Souza, da Universidade Estadual de Campinas, identificarem as proteínas que estavam sendo produzidas. Combinadas, essas estratégias revelaram que, uma vez nas células, o vírus zika passa a controlar o funcionamento delas. Ele impede os progenitores neurais de se multiplicarem e evita que as ordens para o reparo de danos sejam executadas. Também obriga a maquinaria da célula a produzir cópias do vírus. Impossibilitada de retomar a rotina, a célula aciona os mecanismos de autodestruição. A morte dos progenitores neurais, entretanto, explica apenas parte da redução no número de neurônios. O vírus também desativa a programação que orienta essas células a se transformarem em neurônios. “Já sabíamos que as células morriam, mas a morte celular pode afetar de modos distintos a produção de neurônios”, diz Patricia Garcez. “Identificar essas vias moleculares talvez nos leve a descobrir formas de bloquear a infecção”, diz a neurocientista, que planeja

infográfico  ana paula campos  ilustraçãO  alexandre affonso  fotos  cugola et al. nature 2016

Laboratório de Células-tronco da USP e uma das coordenadoras do estudo. Segundo Peron, esses resultados podem explicar por que nem toda mulher infectada por zika na gestação vai ter um filho com microcefalia. “As características genéticas da mãe parecem importantes para impedir o vírus de chegar ao feto”, diz. Uma de suas hipóteses é de que mulheres com certas variações nos genes que contêm a receita para produzir interferon ou que regulam sua síntese sejam mais suscetíveis à infecção pelo vírus e a ter bebê com microcefalia.


ZIka africano

controle (sem vírus) Um dia após a infecção, o zika brasileiro (em verde, à esquerda) e o africano (em verde, no centro) se multiplicaram vigorosamente no interior de progenitores neurais

24 h

ZIka brasileiro

96 h

No quarto dia do experimento, variedade brasileira do vírus (esquerda) causou mais lesões e mortes do que a africana (centro)

investigar fatores que podem favorecer a passagem do vírus da mãe para o feto. Esse é, aliás, um dos interesses atuais de Zanotto. Ele e seus colaboradores tentam descobrir se e como outras infecções que a mãe teve antes da gestação ou na gravidez facilitam o acesso do vírus ao feto. Em maio, Zanotto e o médico Mauro Hanaoka descreveram um dos primeiros casos de microcefalia por zika registrados no estado de São Paulo. O bebê é uma menina que nasceu em novembro, na 38ª semana de gestação. Ela é filha de uma mulher de 32 anos que mora em Santos e teve dengue em 2013, além de sinais de infecção por zika no início da gestação. Em julho, quando a mulher tratou uma infecção respiratória, os médicos notaram que o bebê tinha microcefalia e encaminharam o caso para São Paulo. Análises do sangue materno revelaram a presença de anticorpos contra dengue e zika. E ainda contra o citomegalovírus, o vírus do herpes e o parasita da toxoplasmose – agentes infecciosos que podem causar microcefalia e integram a lista dos Storch (acrônimo de sífilis, toxoplasmose, rubéola, citomegalovirose e herpes). Com o avanço da gestação, Zanotto e seus colaboradores notaram que a concentração de anticorpos contra Toxoplasma gondii alcançou níveis de uma infecção recente. Os pesquisadores não sabem se a elevação representou uma reação do organismo materno ao ressurgimento dos parasitas, que pode ocorrer

com a queda da imunidade, ou à proliferação de células produtoras de anticorpos (expansão policlonal) contra Toxoplasma. Mas imaginam que não tenha sido um bom sinal. “Podem ter ocorrido lesões na placenta, tornando mais fácil para o zika invadir os tecidos do feto”, supõe Zanotto. outras infecções

O caso de Santos reforça a suspeita de que a ocorrência de outras infecções ajude a explicar a concentração de microcefalia em algumas regiões do país e entre as pessoas mais pobres. A toxoplasmose parece ser uma delas. Entre 13 fatores de risco comuns na gestação, ela foi o único que aumentou a probabilidade de microcefalia causada por zika, segundo estudo publicado no Bulletin of the World Health Organization. Estima-se que, em certas regiões do país, até 70% da população já tenha tido contato com o parasita. “Recentemente um ministério informou que 77% dos casos de microcefalia no Nordeste ocorrem em famílias com o IDH [índice de desenvolvimento humano] mais baixo”, conta Zanotto. “Essas pessoas estão mais suscetíveis a esses agentes infecciosos.” A dengue também preocupa. Calcula-se que de 50% a 80% dos brasileiros já tenham sido infectados pelo vírus e tenham anticorpos contra dengue. Um estudo norte-americano indica que os anticorpos contra a dengue aumentam em até 200 vezes a infectividade do zika.

“Todo esse contexto não pode ser desprezado”, afirma Zanotto, que planeja testar para os agentes Storch os casos de microcefalia a que tem acesso. “A mãe que vive em Santos mora em uma região de IDH baixo”, conta. E explica: “Só saberemos se esses fatores exercem uma influência real à medida que compararmos a ocorrência de manifestações congênitas nos filhos de mães infectadas e com diferentes IDHs”. n

Projetos 1. O papel do eixo triptofano-kinureninas na regulação da resposta imune através de receptores de glutamato tipo NMDA na encefalomielite experimental autoimune e na lesão por isquemia e reperfusão cerebral (nº2011/18703-2); Modalidade Programa Jovens Pesquisadores; Pesquisador responsável Jean Pierre Schatzmann Peron (ICB-USP); Investimento R$ 1.077.384,82. 2. Abordagem sistêmica no estudo da permissividade do Anticarsia gemmatalis múltiplo nucleopoliedrovírus (AgMNPV) (nº2014/17766-9); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Paolo Marinho Zanotto (ICB-USP); Investimento R$ 500.009,45. 3. Desenvolvimento de um teste preditivo para medicação bem-sucedida e compreensão das bases moleculares da esquizofrenia através da proteômica (nº2013/08711-3); Modalidade Programa Jovens Pesquisadores; Pesquisador responsável Daniel Martins de Souza (IB-Unicamp); Investimento R$ 1.379.511,67.

Artigos científicos CUGOLA, F. R. et al. The Brazilian zika virus strain causes birth defects in experimental models. Nature. On-line. 11 mai. 2016. GARCEZ, P. P. et al. Combined proteome and transcriptome analyses reveal that Zika virus circulating in Brazil alters cell cycle and neurogenic programs in human neurospheres. PeerJ Preprints. 9 mai. 2016. HANAOKA, M. M. et al. A zika virus-associated microcephaly case with background exposure to Storch agents. bioRxiv. 10 mai. 2016.

pESQUISA FAPESP 244  z  49


ECOLOGIA y

Clima de sedução Temperatura e umidade do ambiente influenciam as estratégias reprodutivas dos animais

André Julião

U

ns são coloridos, maiores que as fêmeas, brandem “armas” e defendem territórios a todo custo; outros têm cores discretas, são muito parecidos com as parceiras e não perdem tempo em brigas por espaço – vão direto ao ponto quando chega a hora de se reproduzir. Com algumas variações, esses dois perfis são usados para explicar o comportamento sexual de machos de várias espécies. Generalizando (o que nem sempre corresponde à realidade), os primeiros seriam os habitantes dos trópicos, e os segundos, das regiões tem-

50  z  junho DE 2016

peradas. O que essa dicotomia não leva em conta é que em regiões tão distintas como a Caatinga brasileira e os Alpes europeus – tropical e temperada, respectivamente – há características semelhantes a ponto de abrigar espécies com comportamentos sexuais parecidos. Em teoria proposta por pesquisadores como Glauco Machado, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), o que define o comportamento sexual das espécies não é apenas a temperatura e a umidade, mas a estabilidade do clima: a duração do período em que esses parâmetros são ideais para a ati-

vidade de animais e plantas e, portanto, para a reprodução. Segundo a teoria, quanto mais tempo duram a temperatura e a umidade favoráveis para o desenvolvimento dos organismos em uma região – a chamada janela reprodutiva –, mais tempo há para disputas entre machos pelo acesso às fêmeas e para que elas escolham seus parceiros: a seleção sexual. No caso dos opiliões, aracnídeos menos famosos que as aranhas e objeto de estudo de Machado, esse alto grau de seleção é visível em alguns comportamentos que os machos exibem ao defender um território – eles lutam por


foto  Bruno A. Buzatto

Opiliões: com espinhos e pernas que usam como chicote, machos de Serracutisoma proximum brigam por territórios onde as fêmeas põem ovos

áreas com atrativos para a fêmea, como água, alimento ou abrigo. Também pode ser observado em características físicas apresentadas por eles, como “armas” (espinhos nas patas). Se o clima é imprevisível, a tendência é que os seres vivos se reproduzam em poucos dias, já que o intervalo de temperatura e umidade adequadas (sem neve ou com chuva) é tão curto que a janela reprodutiva não daria margem para tanta escolha e os animais seriam menos briguentos e chamativos. “Há uma visão simplista de que os trópicos são uma região homogênea, com temperaturas quentes e bastante chuva

o ano inteiro”, diz Machado, estudioso dos opiliões (ver Pesquisa Fapesp nº 144). Outra simplificação frequente, diz ele, é a que define o clima temperado basicamente como tudo que não é tropical. No entanto, as regiões tropical e temperada abrangem uma grande variedade de condições ambientais, como climas quentes e secos em áreas desérticas e frios e úmidos nas florestas boreais. Não se leva em conta, por exemplo, que tanto na Caatinga quanto nos Alpes o período adequado à reprodução, em termos de temperatura e umidade, é curto e, em alguns casos, imprevisível.

Para testar a hipótese de que as estratégias reprodutivas variam de acordo com as condições de temperatura e umidade, um grupo liderado por Machado analisou cerca de 100 espécies de opilião distribuídas em cinco continentes, que vivem sob condições climáticas distintas e apresentam comportamentos sexuais variados. Na maior parte delas os machos disputam o acesso às fêmeas em um sistema chamado de scramble competition (competição desordenada, numa tradução livre). Na competição desordenada, machos e fêmeas se tornam férteis ao mesmo tempo e saem em buspESQUISA FAPESP 244  z  51


favorece a exuberância reprodutiva. “É claro que não é só a seleção sexual que molda as espécies”, explica Machado. “Existem outros fatores como a seleção natural, mas comprovamos que quanto maior a janela reprodutiva mais competição por fêmeas existe”, diz, diferenciando a força evolutiva que se baseia na escolha de parceiros daquela mais famosa, em que o central na capacidade de deixar descendentes é a sobrevivência (ver quadro abaixo). No caso dos opiliões, a janela pode durar de um mês, em climas muito frios, a um ano nas espécies que habitam florestas tropicais.

Nos sapos Rhinella crucifer a fêmea (vermelha) é maior do que o macho

ca de parceiros antes que o tempo fique seco ou frio demais. Segundo a teoria de Machado e colegas, essa estratégia seria observada quando a janela reprodutiva é tão curta que não há tempo para proteger um território onde a fêmea possa pôr os ovos com segurança. O levantamento, prestes a ser publicado em volume especial da American Naturalist, inclui dados de estudos já publicados e outros coletados pela equipe de Machado ou de seus colaboradores. Os pesquisadores tabularam informações sobre comportamento e morfologia (presença ou não de “armas” e tamanho do macho em relação à fêmea), assim como características das regiões onde vivem, como temperatura e pluviosidade. O cruzamento de dados corroborou as previsões de que a estabilidade climática

1

Os dados corroboram a previsão de que a estabilidade climática favorece a exuberância reprodutiva

Um dos objetivos do grupo é que outros pesquisadores testem a teoria com outras espécies de animais e até mesmo plantas. O artigo sobre os opiliões é um desdobramento do livro Sexual selection: Perspectives and models from the Neotropics (Academic Press), editado em 2013 por Machado e pela bióloga Regina Macedo, da Universidade de Brasília (UnB), onde foi apresentada uma primeira versão da ideia. No ano seguinte à publicação, os ecólogos Paulo Enrique Cardoso Peixoto, da Universidade Estadual de Feira de Santana, na Bahia, e Luis Mendoza-Cuenca, da Universidad Michoacana de San Nicolás de Hidalgo, no México, dois dos colaboradores do livro, testaram algumas hipóteses derivadas da teoria em trabalho com borboletas depois publicado na Behavioural Processes e assinado ainda por Anderson Matos Medina, doutorando em ecologia da Universidade Federal de Goiás.

Fêmeas de visão Capacidade de ver cores pode estar associada às seleções sexual e natural no macaco uacari O rosto vermelho carmesim e sem

ao clima. Como esses macacos estão

durante o doutorado pela Universidade

pelos rendeu ao uacari (Cacajao calvus)

sujeitos a doenças como a malária,

Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),

o apelido de macaco-inglês, em alusão

que os torna pálidos, o vermelho

sob orientação dos geneticistas

às queimaduras em turistas europeus

é um indicador de saúde estampado

Thales de Freitas e Nelson Fagundes.

que esquecem de usar protetor solar.

no rosto. Mas nem todas as fêmeas

Para as fêmeas da espécie amazônica,

conseguem enxergá-lo. “Nós

que os machos só têm um e

porém, o tom de vermelho pode ajudar

analisamos pela primeira vez nesse

as fêmeas, dois, todos eles têm visão

a decidir se um macho seria um pai

gênero um gene conhecido em outros

dicromática (que não diferencia

adequado para seus filhotes – uma

primatas por produzir um pigmento

tons de vermelho), enquanto elas

ferramenta da seleção sexual, embora

visual, a opsina”, conta o biólogo

podem ter duas cópias do gene e assim

não tenha sido analisada com relação

Josmael Corso, que realizou a pesquisa

desenvolver a visão tricromática

52  z  junho DE 2016

Como está no cromossomo X,

fotos  1 célio haddad  2 mark bowler / proceedings b

Prova de resistência


Com dados compilados de 30 espécies de borboleta, eles avaliaram o tempo gasto pelos machos em lutas pela posse de territórios que são visitados pelas fêmeas na época de reprodução. A previsão era de que em locais com uma janela reprodutiva grande os machos brigariam mais intensamente, enquanto onde as janelas são curtas, os conflitos seriam menos intensos. Em grande parte, as previsões se confirmaram, exceto para borboletas de climas intermediários, com janelas reprodutivas por volta de seis meses: ali, os machos investem tão pouco nas batalhas aéreas quanto os de hábitats de clima instável, onde a janela reprodutiva é pequena. “Isso mostra que há outros fatores agindo além da janela reprodutiva, que podemos investigar a partir de agora”, diz Peixoto. As brigas de borboletas são provas de resistência nas quais um macho voa em volta do outro até que um se canse e desista. Na espécie Celaenorrhinus approximatus, esses embates foram observados na Costa Rica e duram em média 46 segundos. Já a Lycaena hippothoe, habitante de climas secos e frios nos Alpes do norte da Itália, não pode se dar ao luxo de gastar tempo e energia em longas

batalhas aéreas e reduz esses embates a três ou quatro segundos. Uma diferença marcante que corrobora o que foi observado nos opiliões. “O importante é que demonstramos que a teoria pode ser usada para outras espécies territoriais”, avalia o pesquisador. Seleção tropical

Por enquanto, os trabalhos usando a nova teoria, que leva em conta uma variação mais detalhada em fatores climáticos, e não apenas a distinção entre regiões de clima temperado e tropical, ainda estão focados em artrópodes. O modelo se aplica parcialmente aos anfíbios anuros (sapos, rãs e pererecas), de acordo com o zoólogo Célio Haddad, do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro. Em áreas de umidade prolongada, ele explica, há proporcionalmente mais espécies territoriais, com padrão temporal reprodutivo prolongado e machos com tamanho corpóreo maior (que aumenta a eficiência nos combates com outros machos). No entanto, ele não acredita que esse dimorfismo ou outros como cor, presença de calos, espinhos e de saco vocal exteriorizado sejam mais evidentes nessas espécies.

“Pelo contrário, em ambientes onde há menos chuva e umidade há geralmente forte dimorfismo em tamanho. Nessas condições, as fêmeas precisam transportar grandes quantidades de ovócitos e, por isso, são maiores em relação aos machos. Além disso, os machos costumam desenvolver calosidades nas patas que aderem firmemente às fêmeas e dificultam que competidores as roubem”, explica. Ou seja, nos anfíbios existe, sim, mais defesa de território pelos machos nas áreas úmidas. Mas o dimorfismo sexual também está sujeito a outros fatores, também ligados à seleção natural. n

Projeto Macroecologia da seleção sexual: Influência do clima sobre caracteres sexualmente selecionados em uma ampla escala geográfica (nº 2012/50229-1); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Glauco Machado (IB-USP); Investimento R$ 138.988,84.

Artigos científicos MACHADO, G. et al. Macroecology of sexual selection: A predictive conceptual framework for large-scale variation in reproductive traits. American Naturalist. No prelo. PEIXOTO, P. E. C. et al. Do territorial butterflies show a macroecological fighting pattern in response to environmental stability? Behavioural Processes. v. 109, p. 14-20. nov. 2014.

2

Uma imagem, três versões: uacari visto pelo olho humano (esq.), por fêmeas (visão tricromática) e por machos de uacari (dicromática)

(colorida, como a dos seres humanos).

selecionar machos saudáveis, mas as

com coloração muito parecida, como

No estudo, publicado em abril na revista

que têm apenas uma cópia do gene e

folhas e alguns frutos”, diz Corso.

Proceedings of the Royal Society B,

enxergam uma diversidade menor de

A conclusão do estudo é de que a seleção

ele levanta a hipótese de que no caso

cores teriam outras vantagens.

natural seria responsável por manter

do uacari ocorre uma seleção

“Experimentos com outros primatas

nessas populações tanto as macacas

balanceadora. A visão tricromática de

mostram que a visão dicromática é

que sabem selecionar machos como as

algumas fêmeas pode servir para

vantajosa para distinguir alimentos

que são boas em encontrar alimentos.

pESQUISA FAPESP 244  z  53


geomagnetismo y

Memórias magnéticas das missões jesuítas Em ruínas no sul do Brasil, geofísicos recuperam informações de como era o campo magnético terrestre 350 anos atrás Igor Zolnerkevic

O

piso de argila cozida das ruínas dos Sete Povos das Missões, no noroeste do Rio Grande do Sul, preserva mais do que a memória do traumático processo de catequização dos índios guaranis pelos padres jesuítas, que terminou em uma guerra sangrenta e na expulsão da ordem religiosa e dos seus seguidores daquela região em meados do século XVIII. O material guarda também um registro precioso para entender como o campo magnético natural da Terra varia ao longo dos séculos. Analisando fragmentos de pisos de três missões jesuítas, os geofísicos Wilbor Poletti, Gelvam Hartmann e Ricardo Trindade, todos da Universidade de São Paulo (USP), descobriram qual era a intensidade do campo magnético terrestre no sul do Brasil na segunda metade do século XVII. “São os primeiros dados da região Sul naquela época”, diz Wilbor Poletti, um dos autores do estudo. “Em trabalhos anteriores, haviam sido analisadas amostras apenas das regiões Nordeste e Sudeste.”

54  z  junho DE 2016

Ao combinar os dados desse estudo e dos anteriores, a equipe de Trindade concluiu que no século XVII a intensidade do campo magnético no sul do país era significativamente menor do que no norte. Essa conclusão indica que um importante fenômeno magnético em atividade no planeta, a Anomalia Magnética do Atlântico Sul (Sama, na sigla em inglês), começou a influenciar a intensidade do campo magnético no continente sul-americano cerca de 200 anos mais cedo do que se supunha. “Diferentemente do que os modelos atuais sugerem, a anomalia já se fazia presente no continente entre 1650 e 1700”, diz Trindade. “Precisamos aprimorar os modelos incorporando esses dados.” De acordo com a teoria mais aceita pelos geofísicos, o campo magnético da Terra é gerado pela movimentação da camada de ferro líquido que envolve o núcleo sólido de ferro do planeta. Como o núcleo da Terra gira mais rapidamente do que a superfície, surgem correntezas nesse oceano de ferro líquido que produzem um campo com dois po-

Missão de São Miguel, fundada em 1632 no Rio Grande do Sul: pistas da intensidade do campo magnético no século XVII


eduardo cesar

los magnéticos opostos, cada um deles mais ou menos próximo aos polos Norte e Sul geográficos da Terra. Embora o campo na superfície do planeta seja cerca de mil vezes mais fraco que o de um ímã de geladeira, sua intensidade é suficiente para ser detectada pelas bússolas que ajudam navegantes e exploradores a se orientarem pelo globo. Mais acima, no topo da atmosfera, esse campo magnético, ainda mais fraco, age como um escudo antipartículas e desvia para os polos magnéticos da Terra grande parte das partículas eletricamente carregadas que atingiriam a superfície do planeta.

O campo magnético terrestre tem ainda outras peculiaridades além dos dois polos. Algumas regiões do globo possuem um campo magnético mais fraco – e outras, mais forte – do que seria de se esperar, caso o campo fosse um dipolo perfeito. A maior e mais intensa dessas imperfeições é justamente a Sama. A intensidade média do campo terrestre é de 40 microteslas, enquanto seu valor médio é de apenas 28 microteslas na região coberta pela Sama, que ocupa boa parte da faixa austral do oceano Atlântico, além de uma vasta área no centro e no sul da América do Sul. No

centro da anomalia, atualmente situado no Paraguai, o campo baixa para 22 microteslas. Essa intensidade menor afeta o funcionamento de satélites de comunicação e até as observações de telescópios espaciais. O telescópio Hubble, da agência espacial norte-americana, Nasa, não funciona quando passa sobre a Sama. Para os geofísicos, estudar em detalhe anomalias magnéticas como essa pode ajudar a entender melhor como variações no movimento do ferro líquido no interior do planeta alteram o campo terrestre ao longo do tempo. “A Sama é muito debatida porque pode ser a causa da pESQUISA FAPESP 244  z  55


O campo magnético da Terra Mapa atual de intensidade, medida em nanoteslas, mostra extensão da anomalia magnética no Atlântico Sul

Limites da intensidade

Evolução das anomalias

do campo magnético 28 microteslas 32 microteslas

2005

1905

1890

1790

1690

1590

40 microteslas Ponto menos intenso do campo magnético Valor médio: 40 microteslas Valor máximo: 60 microteslas nova geometria

1650

Fonte  gelvam hartmann, ricardo trindade e igor pacca / iag-usp

redução geral na intensidade de todo o campo magnético da Terra que vem sendo observada nos últimos séculos”, explica Poletti. “O campo terrestre é hoje uns 10% menos intenso do que era quando começou a ser medido com precisão, em 1839, por Carl Friedrich Gauss.” A Sama também já ocupou uma área menor e esteve em outro lugar. Em 2009, Hartmann e Igor Pacca, professor emérito da USP, pioneiro dos estudos em geomagnetismo no Brasil, usaram modelos baseados em registros magnéticos históricos do campo terrestre para reconstituir a evolução da Sama desde o ano 1590. De acordo com o resultado obtido por eles, no fim do século XVI a anomalia cobria apenas uma porção pequena do sul da África e do Atlântico. 56  z  junho DE 2016

Dados mais recentes sugerem que, entre 1650 e 1700, a anomalia do Atlântico Sul já havia alcançado parte do Brasil

De lá para cá, ela expandiu e se deslocou para oeste. Ainda segundo essa reconstituição, a anomalia só teria começado a influenciar o campo brasileiro nas primeiras décadas do século XIX. Em 2011, Hartmann e Trindade publicaram novos dados indicando que a Sama teria se deslocado e se expandido mais rapidamente do que o modelo anterior sugeria. Trabalhando com arqueólogos brasileiros e com pesquisadores do Instituto da Física do Globo de Paris (IPGP), na França, os geofísicos da USP reconstituíram a história do campo magnético sobre o Brasil desde o século XVI ao analisar fragmentos de tijolos de construções antigas da Bahia, de São Paulo, do Rio de Janeiro e do Espírito Santo (ver Pesquisa Fapesp nº 185). Os dados do Rio Grande do Sul, obtidos agora por Poletti, Hartmann e Trindade, dão mais solidez às conclusões anteriores. O grupo verificou que, antes de 1600, o campo terrestre tinha quase a mesma intensidade em todo o Brasil. Entre os séculos XVII e XVIII, porém, ele diminuiu ligeiramente nas regiões Sul e Sudeste, provavelmente porque a Sama já estaria cobrindo essas porções do país. O campo de todas as regiões brasileiras teria voltado a apresentar mais ou menos a mesma intensidade apenas a partir do século XIX, quando, supostamente, a maior parte do país já estaria sob a Sama. Sete Povos das Missões

Foi Pacca que, após uma viagem a passeio pela região dos Sete Povos das Missões, sugeriu a Trindade, Hartmann e Poletti que contatassem no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) os responsáveis por essas construções históricas. Pacca percebeu que as ruínas das missões tinham a idade e a localização ideais para preencher uma lacuna importante nos dados sobre a Sama. As missões foram grandes povoados construídos por índios guaranis catequizados por padres da Companhia de Jesus. O auge das missões ocorreu entre os séculos XVII e XVIII, quando os jesuítas, patrocinados pelas coroas portuguesa e espanhola, mantinham 30 missões na República Jesuítica Guarani, região que atualmente se encontra nas fronteiras entre Brasil, Argentina e Paraguai. Cada missão era governada por dois padres e reunia de 5 a 6 mil índios. “Os padres conduziam a população com disciplina


foto  wilbor poletti / iag-usp  ilustraçãO  sandro castelli  mapa wikipedia

religiosa e com auxílio dos caciques”, diz Raquel Rech, arqueóloga do Iphan que colaborou com a equipe de Trindade. A ordem religiosa já havia perdido sua influência junto às coroas ibéricas quando Espanha e Portugal assinaram o Tratado de Madri, em 1750, redefinindo as fronteiras entre suas colônias sul-americanas. As sete missões no atual território brasileiro foram abandonadas e destruídas na Guerra Guaranítica, de 1754 a 1756. Em quatro delas algumas construções permanecem de pé: São Miguel, São Lourenço, São João Batista e São Nicolau. Das missões de Santo Ângelo, São Luiz Gonzaga e São Borja, só restam ruínas no subsolo de cidades modernas – parte do material foi recuperado por meio de escavações arqueológicas. Todas as missões tinham o mesmo plano arquitetônico, com uma grande praça central de terra batida onde aconteciam as atividades diárias da comunidade. Em uma das faces da praça, ficava o complexo principal de edifícios, com uma igreja no centro, o cemitério em um dos lados, e o pátio do colégio e o da oficina dos índios no outro. As paredes desses prédios eram feitas de blocos de rochas de cantaria, talhados e assentados pelos índios, um material inútil para o estudo do campo magnético da época de construção das missões. A casa dos padres, porém, tinha um pátio interno com piso coberto de ladrillos, placas feitas de argila queimada em fornos a temperaturas em torno de 1.000 graus Celsius. Poletti explica que, a temperaturas superiores a 580 graus, os momentos magnéticos do mineral magnetita, presente na argila, alinham-se com o do campo magnético terrestre. O grau de alinhamento depende da intensidade no campo magnético no local onde a argila foi queimada. Com o resfriamento, do material, os momentos magnéticos se estabilizam, preservando a intensidade do campo magnético terrestre daquele momento. Raquel e a historiadora Nadir Damiani, da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, auxiliaram os geofísicos da USP a coletar o material de que precisavam. A equipe selecionou fragmentos de ladrillos das missões de São Luiz Gonzaga, São João Batista e Santo Ângelo, construídas entre 1657 e 1706. Também conseguiu fragmentos de telhas de argila cozida da missão de Santo Ângelo.

Ruínas da missão La Santísima Trinidad de Paraná, no Paraguai: pátio calçado com ladrillos

Ladrilhos e telhas de argila mantêm registro do campo magnético do momento em que foram cozidos Essas medições representam uma nova fase da pesquisa em arqueomagnetismo no Brasil. Em 2011, Hartmann obteve os primeiros registros arqueomagnéticos do país ao estudar o material de construções históricas de São Paulo, Rio, Espírito Santo e Bahia. Na época, só uma pequena parte do material foi analisada na USP. A maior parte dos dados foi obtida no IPGP de Paris. Mais recentemente Poletti usou um mesmo conjunto de amostras para comparar análises feitas no IPGP e na Universidade de Liverpool, na Inglaterra, e calibrar os instrumentos da USP para produzir medidas mais confiáveis. “Podemos agora fazer as análises integralmente em nosso laboratório”, diz Trindade.

Poletti também realizou uma revisão detalhada do banco de dados das medidas arqueomagnéticas já feitas na América do Sul e concluiu que muitos dos dados do continente foram obtidos sem levar em conta fenômenos físicos que, hoje se sabe, podem distorcer as medidas. Pelos critérios atuais, quase todas as medidas de intensidade do campo magnético terrestre obtidas a partir de cerâmicas pré-colombianas precisariam ser refeitas. “Começamos recentemente uma parceria com os arqueólogos Eduardo Góes Neves e Marisa Afonso, da USP, para obter amostras de cerâmicas indígenas da Amazônia”, conta Poletti. “Queremos aprofundar no tempo nossas medições e preencher as lacunas nos dados dos últimos 3 mil anos.” n

Projetos 1. Análise do campo geomagnético histórico da América do Sul (nº 2013/16382-0); Modalidade Bolsa no País – Doutorado Direto; Beneficiário Wilbor Poletti Silva; Pesquisador responsável Ricardo Ivan Ferreira da Trindade (IAG-USP); Investimento R$ 102.005,40. 2. Evolução do campo magnético terrestre na América do Sul para os últimos 500 anos (nº 2010/10754-4); Modalidade Bolsa no País – Pós-doutorado; Beneficiário Gelvam André Hartmann; Investimento R$ 228.027,05.

Artigo científico POLETTI, W. et al. Archeomagnetism of Jesuit Missions in South Brazil (1657-1706 AD) and assessment of the South American database. Earth and Planetary Science Letters. v. 445, p. 36-47. 2016.

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ASTROFÍSICA y

O buraco de Eta Carinae Estrela menor fura a maior e permite ver abaixo de sua superfície Carlos Fioravanti

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ta Carinae, a estrela mais estudada da Via Láctea depois do Sol e uma das maiores e mais luminosas já vistas, continua surpreendendo. Primeiramente os astrônomos verificaram que ela era na verdade formada por duas estrelas muito grandes: a principal e maior, Eta Carinae A, com cerca de 90 massas solares, e a secundária, dois terços menor e 10 vezes menos brilhante, Eta Carinae B. Depois, viram que a cada cinco anos e meio a estrela maior deixa de brilhar por cerca de 90 dias consecutivos em certas faixas do espectro eletromagnético, em especial nos raios X. Agora, especialistas do Brasil, dos Estados Unidos e de outros países, depois de examinarem as informações obtidas no apagão de 2014, o mais recente, descreveram um novo fenômeno: a formação de um buraco causado pela estrela menor na superfície da estrela maior. A colisão dos fortes ventos das duas estrelas, que já havia sido descrita (ver Pesquisa FAPESP no 191), e a formação de um buraco em Eta Carinae A elucidam a liberação intensa e até agora não inteiramente explicada de luz produzida por uma das formas do elemento químico hélio observada durante os apagões. Essa forma é o hélio duplamente ionizado ou He++, assim chamado por ter perdido os dois elétrons e ficado apenas com o núcleo, que contém dois prótons e dois nêutrons. Em 2014, dados obtidos por telescópios terrestres localizados no Chile, no Brasil, nos Estados Unidos, na Austrália e na Nova Zelândia e pelo telescópio espacial Hubble detalharam a variação da intensidade da luz emitida em uma frequência específica pela transformação do He++ em He+, com apenas um elétron. “Apenas a colisão entre os ventos estelares não era o suficiente para produzir a quantidade ne58  z  junho DE 2016

cessária de He++ para explicar a intensa liberação de luz nessa frequência”, diz o astrofísico Mairan Teodoro, pesquisador no Goddard Space Flight Center da Nasa, a agência espacial norte-americana. Logo após o apagão de 2009, ainda na Universidade de São Paulo, ele começou a planejar a coleta de informações do apagão de 2014 com seu então supervisor de pós-doutorado, Augusto Damineli. Teodoro fez uma chamada internacional, convidando astrônomos profissionais e amadores, criou um site com informações sobre o projeto e afinou os métodos de trabalho dos grupos que se dispuseram a participar. Em 2012, já nos Estados Unidos, em busca de explicações para os fenômenos observados, Teodoro trabalhou com seu colega da Nasa Thomas Madura, físico teórico que formulou a hipótese de que a estrela menor, ao se aproximar da maior, a cada cinco anos e meio, como resultado de sua órbita elíptica, cavaria um buraco que poderia atingir as camadas mais internas da estrela maior, onde existe He++ em abundância. Faltavam, porém, evidências que alimentassem ou derrubassem essa possibilidade. As informações reunidas durante o apagão de 2014 confirmaram e ajustaram essa hipótese e indicaram que a emissão de luz pelo He++ é o resultado da colisão dos ventos estelares e da formação do buraco na estrela maior. PERTO DO FIM

“O vento estelar funciona como um cobertor, cobrindo a estrela primária”, diz Teodoro, primeiro autor do artigo publicado em março de 2016 na Astrophysical Journal descrevendo esses resultados. De acordo com esse trabalho, a estrela menor vence


a resistência dos ventos estelares da maior, já que seus próprios ventos têm uma velocidade maior, mergulha em uma espécie de voo rasante e cava um buraco na maior, deixando ver um pouco do gás em alta temperatura, o plasma, que a compõe. “A luz que sai do buraco é somente de cerca de 100 luminosidades solares, 50 mil vezes mais fraca que a luz da estrela. É como ver um fósforo aceso na frente do Sol”, diz Damineli. Além de tênue, o sinal é escasso, porque a fenda da estrela por onde a luz sai fica aberta pouco mais de um mês a cada cinco anos e meio. Damineli previu que Eta Carinae, que ele estuda desde 1989, sofreria um eclipse ou apagão – uma redução equivalente ao brilho de 60 sóis num único dia – em 2003. Suas previsões se confirmaram, atraindo um número crescente de astrônomos interessados em observar a estrela (ver Pesquisa FAPESP nos 54, 94 e 154). O fenômeno agora está mais claro. “O apagão começa com o mergulho da estrela menor na maior e se completa com o fechamento do buraco, quando desaparecem os sinais de emissão eletromagnética”, diz ele. “Este é um fenômeno completamente novo na astrofísica.” Os pesquisadores esperam detalhar as dimensões do buraco no próximo apagão, em 2020. Será também uma oportunidade para conhecer um pouco mais sobre a luminosidade e a variação de temperatura das duas estrelas; a menor ainda não foi observada diretamente. Gigantesca e muito brilhante, com uma luminosidade 5 milhões de vezes maior que a do Sol, Eta Carinae é “uma representante da primeira geração de estrelas, formadas 200 milhões de anos depois do Big Bang e que morreram logo em seguida, quando havia matéria-prima abundante”, afirma Damineli. “Eta Carinae e outras maiores, inicialmente sempre binárias, iluminaram o Universo, que era opaco, durante a chamada idade das trevas.” Por ser a única desse porte e com essas singularidades em nossa galáxia, Eta Carinae, diz ele, “é como um dinossauro vivo no quintal”. A elevada densidade e a composição dos ventos indicam que ela está perdendo massa rapidamente. Os astrônomos preveem que a estrela, talvez em algumas décadas, deve explodir e gerar um buraco negro. “Pode ser que Eta Carinae já tenha morrido e ainda não soubemos”, observa Teodoro, “porque a luz que sai de lá demora 7.500 anos para chegar até a Terra”. n

ilustraçãO sandro castelli

Projeto Steles: Espectrógrafo de alta resolução para o Soar (nº 2007/02933-3) Modalidade Projeto Temático; Coordenador Augusto Damineli Neto (IAG-USP); Investimento R$ 1.373.456,33.

Artigo científico MAIRAN, T. et al. He II λ4686 emission from the massive binary system in η Car: Constraints to the orbital elements and the nature of the periodic minima. The Astrophysical Journal. v. 819, n. 2, p. 131-55. 2016.

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INFORME PUBLICITÁRIO

ED. 05 - JUNHO 2016

Brasil reduz em mais de 50% emissão de gás carbônico entre 2005 e 2010

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queda é atribuída ao controle do desmatamento da Amazônia e do Cerrado. Além disso, um documento elaborado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) apresenta nova metodologia para cálculo das emissões de gases.

A Terceira Comunicação Nacional do Brasil (TCN), submetida à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC, na sigla em inglês), aponta redução de 53,5% no total de gás carbônico (CO2) emitido pelo Brasil na atmosfera, entre 2005 e 2010. Segundo o levantamento, os números caíram de 2,73 bilhões de toneladas de CO2 para 1,27 bilhão. A metodologia de cálculo desenvolvida pelo ministério é de última geração e será capaz de transmitir conhecimento para estudo do clima e efeito do gás carbônico no mundo todo. A TCN traduz o esforço brasileiro para atingir a meta de reduzir entre 36,1% e 38,9% as emissões projetadas até 2020. O estudo avalia os impactos das mudanças climáticas distribuídos em cinco setores: uso da terra, mudança do uso da terra e florestas; agropecuária; energia; processos industriais e tratamento de resíduos.

Sirene Além da Terceira Comunicação Nacional, o MCTI também lançou o Sistema de Registro Nacional de Emissões (Sirene), um sistema computacional desenvolvido para disponibilizar resultados do Inventário Brasileiro de Emissões Antrópicas por Fontes e Remoções por Sumidouros de Gases de Efeito Estufa não Controlados pelo Protocolo de Montreal e informações oriundas de outras iniciativas de contabilização de emissões.

O portal do Sirene está disponível no endereço: http://sirene.mcti.gov.br, bem como o sumário executivo da Terceira Comunicação em português e inglês, e a versão completa do documento em inglês.

A ciência na corrida por medalhas do Time Brasil

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menos de três meses dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, institutos de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) estão ajudando os atletas a alcançar a excelência esportiva na busca por medalhas. Recursos de supercomputação e equipamentos adaptados às necessidades dos atletas são importantes aliados para quem disputa um lugar no pódio. O Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC) integra uma das maiores iniciativas do País pelo esporte: o Laboratório Olímpico. Instalado no Parque Aquático Maria Lenk, no Rio de Janeiro, o LNCC serve

para dar suporte aos atletas em diferentes áreas do conhecimento. São sete ao todo: bioquímica, biomecânica, nutrição, psicologia, fisiologia, treinamento esportivo e modelagem computacional. O primeiro passo foi desenvolver o Sistema para Acompanhamento Holístico de Atletas (Saha), rodado em um dos supercomputadores do LNCC, em Petrópolis (RJ). A ferramenta cruza os dados levantados pelas diferentes áreas do conhecimento e faz sugestões para melhorar a performance do atleta. Assim, uma braçada na piscina, um golpe no tatame ou uma corrida na pista de atletismo podem ser aperfeiçoados, aumentando as chances de medalha.


INFORME PUBLICITÁRIO

Navio Vital de Oliveira aporta nos 100 anos da Academia Brasileira de Ciências

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Navio Vital de Oliveira, uma das embarcações de pesquisa mais modernas do mundo, foi aportado no Museu do Amanhã, no centro do Rio de Janeiro, durante as comemorações dos 100 anos da Academia Brasileira de Ciências (ABC), e recebeu a visita de cerca de 1.300 pessoas apenas no primeiro dia.

Com o desenvolvimento da ciência nós hoje podemos ter esse navio maravilhoso de pesquisas e muitos outros desenvolvimentos que servem à sociedade brasileira”, disse.

Durante o evento, o novo presidente da ABC, Luiz Davidovich, lembrou a importância do Almirante Álvaro Alberto, fundador do CNPq, para o desenvolvimento da ciência, tecnologia e inovação (CT&I) brasileira. “Eu queria lembrar um grande nome da ciência nacional, da ABC e da Marinha do Brasil que foi o Almirante Álvaro Alberto. Ele teve participação importantíssima no desenvolvimento e na inovação do Brasil. É importante lembrá-lo. Isso aqui é um resultado da ação dele.

MCTI lança Start-Up Brasil 2.0 em apoio a projetos de software e hardware

O

Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) lançou nova etapa do programa Start-Up Brasil, batizada de StartUp Brasil 2.0. Os investimentos totalizam R$ 40 milhões – R$ 20 milhões para aceleração de 100 empresas nascentes de base tecnológica, R$ 10 milhões em apoio a Start-Ups de hardware e R$ 10 milhões de incentivo ao nascimento de ideias inovadoras. As empresas candidatas a participar da principal chamada, responsável por selecionar as turmas 5 e 6 do Start-Up Brasil, devem ter, no máximo, quatro anos de existência. Após serem escolhidas, as Start-Ups precisam negociar sua adesão a uma das 12 aceleradoras qualificadas pelo último edital do programa. A aceleração tem duração estimada de até 12 meses para empresas de software e 18 meses para as companhias de hardware, com apoio a pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I), apoio à modelagem de negócios, participação em atividades de capacitação e programas de acesso ao mercado. O coordenador-geral de Serviços e Programas de Computador do MCTI, José Henrique Dieguez, ressaltou a importância do desenvolvimento de itens físicos de computação para a nova etapa do programa. “Nós já temos empresas de hardware sendo beneficiadas e aceleradoras com ‘pegada’ de hardware, mas queremos dar apoio integral a partir de agora”, apontou. “Trabalhar com hardware significa dizer que você tem etapas mais complexas e que demoram mais e necessitam de mais investimento por conta disso.”

A segunda iniciativa prevê apoio adicional às Start-Ups de hardware. O auxílio complementa necessidades de PD&I e engenharia, tais como prototipagem, desenvolvimento de pré-produtos e testes – atividades reconhecidamente mais densas e complexas, que geralmente exigem mais tempo de maturação. Já a terceira vertente estimula o surgimento de empreendedores em tecnologias da informação e comunicação (TICs), por meio do apoio a ações de concepção, em conjunto com incubadoras de empresas. A linha deve oferecer atividades como competições locais e testes de conceito.

Start-Up Brasil Criado pelo MCTI, o Start-Up Brasil é um programa do governo federal com gestão operacional da Softex, que busca agregar um conjunto de atores e instituições em favor do empreendedorismo de base tecnológica. As chamadas nacionais e internacionais ocorrem pelo CNPq e pela Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil), respectivamente.

Siga as ações do Ministério e as contribuições da ciência e da tecnologia para o desenvolvimento do Brasil. Acesse nosso site e nossas páginas nas redes sociais.

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www.mcti.gov.br


tecnologia  engenharia naval y

Veículos subaquáticos Protótipos de robôs para uso embaixo d’água são testados na exploração de petróleo e pesquisas oceanográficas Evanildo da Silveira

A

partir da década de 1990, robôs submarinos que navegam de forma autônoma, sem precisar estar ligados a uma embarcação por cabos, começaram a surgir para auxiliar nas pesquisas oceanográficas e na exploração de petróleo e gás no fundo do mar. Com sensores para navegação submersa e GPS, quando estão na superfície, além de motores e equipamentos de comunicação por rádio, eles podem ser programados para ir e voltar de um local predeterminado. Receberam o nome de Veículos Autônomos Submersos (AUV, sigla para Autonomous Underwater Vehicle) e são produzidos por empresas de países como Estados Unidos, Noruega, Japão e França. No Brasil, as pesquisas e os desenvolvimentos nessa área são recentes, e ainda não foi produzido um robô submarino que possa ser fabricado comercialmente. Mas existem pelo menos três protótipos atualmente em fase de testes. O mais recente é destinado à exploração de petróleo e gás, a área que mais oferece oportunidades tecnológicas e de aplicações operacionais de robôs AUV no país. A BG Brasil, uma subsidiária do Grupo Shell, desenvolveu um AUV chamado

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FlatFish em parceria com o Senai – Campus Integrado de Manufatura e Tecnologia (Cimatec), em Salvador (BA), e com o apoio da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii) e da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). O robô será usado para inspeção visual em três dimensões (3D) de alta resolução de estruturas submarinas de exploração de gás e petróleo, como tubulações e oleodutos, cascos de navio e plataformas. “É o primeiro protótipo desse tipo produzido no país”, avalia Rosane Zagatti, gerente de Tecnologia Subsea da empresa. “O veículo submarino autônomo irá contribuir na exploração em águas profundas, com redução de custos de operação entre 30% e 50%, e trazer maior segurança e menor impacto ambiental.” Ela explica que hoje as inspeções submarinas na indústria de óleo e gás são realizadas por veículos operados remotamente (ROV, sigla de Remotely Operated Vehicle), que precisam de um barco de apoio. O ROV é lançado ao mar por cabos a partir da embarcação, da qual é operado por controle remoto, por duas pessoas (piloto e copiloto). Dependendo do local onde é feita a inspeção, os custos do


foto BG Group

FlatFish: desenvolvido para verificar tubulações e plataformas no fundo do mar. Tem 2,20 m de comprimento e desce a 300 m de profundidade

ROV podem chegar a cerca de US$ 200 mil por dia. “O FlatFish não requer barco de apoio, o que reduz muito os gastos”, diz Rosane. Para Marcos Reis, coordenador do projeto pelo Cimatec, o veículo apresenta grandes desafios tecnológicos e as vantagens de desenvolvê-lo são numerosas. “O robô diminui os riscos à integridade de navios, plataformas, tubulações e outras estruturas submersas por causa do aumento da frequência das inspeções, além de proporcionar melhores resultados no controle de qualidade”, diz. “Ele também reduz os riscos de segurança pessoal, eliminando a necessidade de tarefas perigosas para mergulhadores, em operações de apoio.” A função do FlatFish é transmitir informações em tempo real, com imagens e dados. Para realizar essas tarefas, o robô conta com sensores, propulsores, computadores embarcados e inteligência computacional, com sistemas de identificação e tomada de decisão, se for preciso. “Ele foi desenvolvido para que possa navegar com grande estabilidade e capacidade de chegar muito próximo dos equipamentos que inspeciona ou até mesmo tocar neles”, explica Rosane. “O nosso veículo é capaz de residir no fundo do mar,

em uma espécie de garagem. Desse local, depois de programado, ele sai para executar a missão de forma autônoma, coletando e enviando para um operador os dados de inspeção.” O equipamento é impulsionado por motores que funcionam com baterias de lítio, passíveis de ser recarregadas no fundo do mar, na garagem subaquática. A autonomia do FlatFish é de 35 quilômetros (km) a 60 km, dependendo da missão e das correntes marítimas. A cada seis meses o AUV precisa ser levado à terra para manutenção. O protótipo foi testado e pode operar a uma profundidade de 300 metros. Segundo Reis, a equipe do Cimatec trabalha para que, em quatro ou cinco anos, o FlatFish consiga operar em uma profundidade de até 3 mil metros, tornando-o útil à exploração do pré-sal. Até agora foram investidos R$ 30 milhões no projeto, divididos igualmente entre a BG Brasil, a Embrapii e o Senai, cuja contribuição é contabilizada em salários de profissionais da entidade e uso de equipamentos e infraestrutura. O projeto teve ainda o apoio técnico do Instituto Alemão de Robótica e Inteligência Artificial (DFKI). A BG Brasil ainda não firmou parcerias para uma futura produção do robô submarino. pESQUISA FAPESP 244  z  63


Pirajuba: testes no mar de Ubatuba (SP). A versão para estudar plânctons tem 2,20 m de comprimento

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Outra vertente atual do uso de robôs submarinos está na exploração dos oceanos. O engenheiro naval Ettore Apolonio de Barros, professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), começou a desenvolver um AUV em 2005, o Pirajuba (peixe amarelo, em tupi), com financiamento da FAPESP, para estudar a hidrodinâmica de um veículo autônomo submerso com formato de um torpedo, o que fez durante nove anos no Laboratório de Veículos Não Tripulados. O desenvolvimento do Pirajuba continuou com pesquisas realizadas sob a coordenação do biólogo Rubens Lopes, professor e chefe do Laboratório de Sistemas Planctônicos (Laps) do Instituto Oceanográfico (IO) da USP. Ele estuda a distribuição de plânctons (microrganismos que servem de alimento a várias espécies de peixes e outros animais marinhos) em partes da costa brasileira. “Em fevereiro de 2014, demos início a um projeto para modificar nosso AUV Pirajuba, dando a ele uma aplicação prática”, conta Barros. “Agora o objetivo é obter dados de plânctons.” 3

HROV: esteiras para explorar estruturas submarinas como cascos de navios. Tem 1,20 m de comprimento e 1 m de altura 64  z  junho DE 2016

A maneira tradicional de coletar dados nesse tipo de estudo é lançar, em vários pontos da área a ser pesquisada, uma sonda com sensores específicos a partir de uma embarcação. “Com um AUV basta programar a rota e largar a máquina na água”, diz o pesquisador. O minissubmarino não tripulado possui sete microprocessadores a bordo, que se comunicam entre si, além de sensores para navegação e outros específicos para pesquisa de microrganismos, como indicadores de condutividade e temperatura da água e profundidade. “O veículo também inclui sensores ópticos, que emitem luz ultravioleta para medir partículas suspensas na água, além da presença de clorofila e cianobactérias.” Baterias de lítio garantem uma autonomia aproximada de 10 horas. Depois de 2014, o veículo tem sido avaliado no mar, ao redor da ilha Anchieta, na região de Ubatuba, no litoral norte de São Paulo. No ano passado, o veículo coletou dados para a caracterização de plânctons na região. Ettore conta que o seu laboratório está aberto à cooperação com empresas para a transferência de tecnologia e possível produção do equipamento. Grudado no casco

Na Universidade Federal do ABC (UFABC), o engenheiro mecânico Juan Pablo Julca Avila, professor do curso de Engenharia Aeroespacial, desenvolveu, com apoio da FAPESP, um robô submarino diferente. Trata-se de um veículo híbrido (HROV, sigla de Hybrid Remotely Operated Vehicle). “Ele é semiautônomo, com dois modos de operação, navegação livre e rastejamento”, explica o pesquisador. “Quando é lançado no mar, o veículo entra em modo autônomo, baseado em propulsores para se dirigir e se aproximar da estrutura submersa a ser inspecionada. O HROV atraca automaticamente e a partir daí entra em modo de rastejamento, com esteiras e a direção remota de um operador.” O veículo consiste em uma estrutura feita de placas de polipropileno com seis propulsores a hélice para o movimento de navegação livre em cinco direções: avanço, profundidade, balanço longitudinal, transversal e guinada, e duas esteiras motorizadas de borracha para sua locomoção na superfície submersa. Um conjunto de sensores torna possível medir os movimentos do veículo em trajetórias predefinidas. “O protótipo já passou por vários testes hidrodinâmicos e de controle em tanque de provas”, diz Avila. “Estamos na segunda

fotos 1 eduardo cesar 2 ettore barros/poli-usp 3 juan avila/ufabc  4 frederic osada e teddy seguin/drassm/universidade stanford

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OceanOne: traços humanos, câmeras nos olhos e sensores nas mãos para alcançar lugares perigosos para mergulhadores

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fase de desenvolvimento, na qual o sistema de controle de navegação e de rastejamento está sendo implementado. Depois, vamos testá-lo no mar.” A locomoção do veículo é feita por motores alimentados por eletricidade fornecida por meio de um cabo umbilical com uma embarcação, que também serve para controle e comunicação. O HROV será usado como plataforma experimental para conduzir pesquisas em dinâmica e controle dessa classe de veículos em ambiente marinho e para análise de espessuras de estruturas submarinas. Ao chegar perto de um navio, por exemplo, o robô se posiciona de maneira que sua base Parcerias serão fique em contato com o casco. A partir necessárias daí, as esteiras motorizadas são acionadas para o deslocamento. O contato para que os é mantido por força mecânica gerada pelos propulsores. Quando giram num protótipos sentido, o robô se “gruda” no casco; quando giram em outro, ele desgruda. desenvolvidos Segundo Avila, essa classe de equipano Brasil mento com atracamento baseado em esteiras já é comercializada por uma possam ir para empresa no exterior. Como os outros projetos, Avila ainda não tem perspectio mercado vas de produção de seu robô. “Estamos abertos aos interessados, que podem ser alunos ou pesquisadores qualificados para trabalhar no desenvolvimento do equipamento”, explica Avila. “Atualmente buscamos parcerias com empresas de robótica para a conclusão do desenvolvimento dos sistemas de localização acústica e de calibração de espessuras.” As formas dos robôs submarinos são diversas, como mostram os três projetos brasileiros. O mais curioso e avançado é um projeto norte-americano que fez o seu primeiro mergulho em abril deste ano no mar Mediterrâneo. Elaborado

por um grupo de pesquisadores da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, o OceanOne é um robô humanoide mergulhador. Com tamanho e aparência aproximados de um ser humano, ele é dotado de inteligência artificial, com softwares que fazem identificação de padrões e realizam associações. A cabeça tem câmeras com visão estereoscópica no lugar dos olhos, dois braços articulados e mãos com dedos cheios de sensores que dão respostas táteis. No lugar das pernas, aparece uma “cauda” que abriga baterias, computadores e oito propulsores multidirecionais. É operado remotamente por meio de joystick. O robô é um mergulhador virtual, uma espécie de avatar. Quando o OceanOne pega um objeto, por exemplo, o operador pode sentir o peso e a força da pegada. A ideia de desenvolvê-lo surgiu da necessidade de pesquisadores da Universidade Rei Abdullah de Ciência e Tecnologia (Kaust), da Arábia Saudita, de estudar e monitorar recifes de corais no mar Vermelho. O primeiro mergulho oficial do robô foi uma visita aos destroços do galeão La Luna, navio da frota do rei francês Luís XIV, que naufragou em 1664 a 32 km da costa e está a 100 metros de profundidade. O OceanOne mostrou imagens do barco afundado e trouxe um vaso para a superfície. n Projetos 1. Detecção de camadas finas por veículo autônomo submersível em um ecossistema costeiro – Projeto Ecoauv (nº 2013/16669-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Ettore Apolonio de Barros (USP); Investimento R$ 198.851,41 e US$ 50.583,98. 2. Desenvolvimento de veículos autônomos submarinos de baixo custo. Parte A: Manobrabilidade e sistema de propulsão (nº 2005/558471); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Ettore Apolonio de Barros (Poli-USP); Investimento R$ 71.726,87. 3. Desenvolvimento de um veículo robótico submarino para inspeção de cascos de navio (nº 2011/51955-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Juan Pablo Julca Avila (UFABC); Investimento R$ 288.274,93.

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pesquisa empresarial y

Carros menos poluentes Centro de P&D do Grupo PSA no Brasil trabalha no aprimoramento de motores a etanol e na criação de peças feitas com materiais recicláveis Yuri Vasconcelos

empresa

A

profundar a pesquisa sobre motores automotivos, adaptados ou projetados para um melhor uso do etanol, e estudar em detalhe as formas de produção ambientalmente sustentável dos biocombustíveis são os focos principais da atividade de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) do Grupo PSA no Brasil. O conglomerado, de origem francesa, é dono das marcas Peugeot, Citroën e DS e está presente no Brasil desde 1992. Com uma fábrica no município fluminense de Porto Real, a empresa mantém, com unidades no país e na Argentina, um dos seis centros globais de P&D, batizado de Tech Center América Latina. A unidade atua em estreita colaboração com unidades semelhantes localizadas na França e na China – um sétimo laboratório global, com sede no Marrocos, está programado para iniciar as operações neste ano. “Nós inauguramos, dentro do Grupo PSA, a pesquisa na área de biocombustíveis e somos uma referência mundial no estudo de motores movidos a etanol e no desenvolvimento de

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peugeot

Centro de P&D São Paulo, SP, e Porto Real, RJ

Nº de funcionários 500

Principais produtos Motores a biocombustíveis e veículos


léo ramos

materiais sustentáveis para fabricação de peças e componentes automotivos”, diz o engenheiro mecânico Franck Turkovics, executivo responsável por Inovação de Powertrain e Biocombustíveis no Brasil – powertrain é o termo usado para designar o conjunto responsável pela tração do veículo, composto por motor e transmissão. “Na área de motores, um de nossos principais objetivos é a redução de emissão de CO2”, afirma Turkovics. Há 25 anos na empresa e há 10 no país, ele se formou engenheiro mecânico e térmico com uma pós-graduação lato sensu no IFP School, na França, e foi o responsável pela montagem, em 2011, da equipe de pesquisadores da empresa no Brasil para estudo de inovações em biocombustíveis. Para dar impulso às pesquisas nessa área, o Grupo PSA e a FAPESP assinaram no final de 2014 um termo de convênio de cooperação com qua-

tro universidades brasileiras para o lançamento do Centro de Pesquisa em Engenharia Professor Urbano Ernesto Stumpf. Entre os temas investigados pelos pesquisadores das universidades Estadual de Campinas (Unicamp), de São Paulo (USP), dos institutos Tecnológico de Aeronáutica (ITA), em São José dos Campos (SP), e Mauá de Tecnologia (IMT), em São Caetano do Sul (SP), estão novas configurações de motores, redução de consumo, de emissão de gases e seus impactos e a viabilidade econômica e ambiental. “Somos o primeiro centro de pesquisa multi-institucional criado pela FAPESP nesse formato. O trabalho com importantes instituições de ensino enriquece e valoriza ainda mais o nosso know-how e nos permite evoluir”, diz Turkovics. “O conceito do centro é que os pesquisadores das quatro instituições desenvolvam estudos de

Pesquisadores da Peugeot: a partir da esquerda, Marcelo Airoldi, Franck Turkovics, Renata Pradelle e Rafael Serralvo Neto

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Análise computacional do teste de combustão de etanol. No detalhe, estudo aprofundado da chama do motor a álcool

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forma integrada em suas áreas de especialização”, conta Waldyr Gallo, professor da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp e coordenador do Centro de Pesquisa. “Queremos aproveitar e fazer avançar as pesquisas que cada um dos parceiros já realiza sobre diferentes aspectos da engenharia de motores para impulsionarmos o desenvolvimento de motores a etanol.” O investimento no projeto, de R$ 16 milhões por um período de quatro anos, renováveis por mais seis, é dividido igualmente entre o Grupo PSA e a FAPESP, mais a contrapartida oferecida pelas instituições que sediam a pesquisa em valor equivalente, quando são computados os salários dos pesquisadores, técnicos e equipamentos das universidades e institutos. “No Grupo PSA, montamos uma equipe com três pesquisadores, além de mim, para tocar esse

Instituições que formaram os pesquisadores da empresa Franck Turkovics, engenheiro mecânico e térmico, executivo responsável por Inovação de Powertrain e Biocombustíveis no Brasil

IFP School (França): pós-graduação lato sensu em motores e combustíveis

Rafael Serralvo Neto, engenheiro mecânico automobilístico, coordenador do projeto FAPESP-Peugeot

Centro Universitário FEI: graduação e mestrado

Marcelo Laurentys Airoldi, engenheiro mecânico, especialista em combustão do setor Inovação no Grupo Moto-Propulsor

Universidade de São Paulo (USP): graduação, mestrado e doutorado (em andamento)

Renata Nohra Chaar Pradelle, engenheira química, especialista em química do setor Inovação no Grupo Moto-Propulsor

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e École Nationale Supérieure de Chimie de Paris: graduação Université Pierre et Marie Curie – Paris 6 (UPMC): mestrado

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projeto”, conta Turkovics. Segundo ele, o objetivo final do grupo não é desenvolver um novo motor dedicado a etanol, mas otimizar os já existentes para que alcancem maior eficiência energética e reduzam a emissão de gases poluentes. “Percebemos que havia no país uma lacuna na pesquisa voltada à melhoria de motores a álcool. É bom lembrar que as máquinas que hoje rodam com esse combustível foram, originalmente, projetadas para usar gasolina.” As pesquisas com biocombustíveis também vão ajudar o Grupo PSA a se adequar às metas relativas à emissão de poluentes de motores automotivos constantes do Programa de Incentivo à Inovação Tecnológica e Adensamento da Cadeia Produtiva de Veículos Automotores. Mais conhecido como Inovar-Auto, este programa foi lançado pelo governo federal em 2012 e tem como meta aumentar a competitividade da indústria automobilística brasileira por meio da


Estudos e testes de materiais para compor motores realizados no Laboratório de Materiais do Grupo PSA em Porto Real (RJ)

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produção de veículos mais econômicos e seguros. Entre as metas, o Inovar-Auto prevê desconto de 1% no Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) se a montadora produzir veículos que consumam 15,46% menos combustível, a partir de 2017. Se o consumo diminuir 18,84%, o desconto será de 2% do IPI. “A perspectiva dessa mudança reforçou a necessidade de realizarmos pesquisas com motores a etanol no Brasil”, comenta Serão testados Turkovics. Ele destaca que as pesnos motores quisas são acompanhadas por um comitê internacional formado por cinco tipos de cientistas do Institut des Sciences et Technologies (ParisTech), da configurações França, do Instituto Politécnico de Turim, na Itália, das universidades de combustível Técnica de Darmstadt, na Alemaà base de nha, e de Cambridge e do College London, ambos no Reino Unido.

fotos 1 e 2 léo ramos  3 e 4 peugeot

CONHECIMENTO EM REDE

etanol, puro ou com gasolina

Responsável pela coordenação do projeto dentro do Grupo PSA, o engenheiro mecânico Rafael Serralvo Neto, de 36 anos, ressalta que o Brasil é o único país do mundo com veículos que rodam com etanol puro, o chamado E100. “Quem mais se aproxima de nós são os Estados Unidos, que comercializam uma mistura com 85% de etanol e 15% de gasolina. Na França existem motores projetados para usar E20, um combustível com 20% de etanol”, diz ele. “Só no Brasil são fabricados motores etanol 100% e, por

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isso, somos referência mundial nessa tecnologia. É nosso interesse estar à frente nas pesquisas em biocombustíveis.” Sobre o papel de cada instituição no projeto, Serralvo explica que cabe ao ITA estudar o fenômeno da combustão. “Eles possuem um motor que vai nos permitir visualizar no seu interior, por fibras ópticas, o processo de combustão nos mínimos detalhes. Esse já é um recurso usado na Europa. O laboratório do ITA, coordenado pelo professor Pedro Teixeira Lacava, é um dos poucos no Brasil que têm esse equipamento”, conta. No Instituto Mauá são realizados, sob a coordenação dos professores Celso Argachoy e Clayton Barcelos Zabeu, testes no motor em desenvolvimento pelo grupo, enquanto na USP são processados os estudos de visualização do spray – o combustível que é injetado na câmara de combustão do motor na forma de um jato de gotículas. “A forma como o combustível é injetado na câmara torna o motor mais ou menos eficiente”, explica o engenheiro mecânico Marcelo Laurentys Airoldi, de 30 anos, especialista em combustão e um dos membros da equipe de Turkovics. Segundo ele, serão testados cinco tipos de combustível: anidro (E100 com menos de 1% de água), hidratado (E100 com cerca de 4% de água), E85, E50 e um etanol com alta concentração de água. “O tipo de etanol tem relação direta com o rendimento do motor”, afirma Airoldi. Na Unicamp, por fim, são realizados testes com um motor experimental com taxa de compressão do ar variável. “Para o álcool, o melhor é que essa taxa seja mais alta do que a da gasolina. Quanto mais elevada ela for, melhor o rendimento térmico do motor e pESQUISA FAPESP 244  z  69


sua eficiência. Embora uma taxa excessivamente alta possa levar o motor à degradação”, explica Airoldi. Os estudos na Unicamp são conduzidos pelos professores Waldyr Gallo, Marco Lucio Bittencourt e Janito Vaqueiro Ferreira, todos da Faculdade de Engenharia Mecânica. A quarta integrante da equipe de pesquisa coordenada por Turkovics é a engenheira química Renata Nohra Chaar Pradelle, 27 anos, responsável pelos assuntos ligados a combustíveis, como análises para controle de qualidade, definição e pesquisa de combustíveis especiais para desenvolvimento dos projetos tocados pelo grupo e pesquisa de novas fontes de biocombustíveis. “A maioria dos projetos são confidenciais, mas entre os que podem ser divulgados estão os oriundos de convênio com a Faperj [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro] para apoiar o desenvolvimento de motores flex, que aceita os derivados de petróleo e o etanol, por exemplo”, diz ela. Segundo maior fabricante de automóveis na Europa, o Grupo PSA vendeu 3 milhões de veículos no mundo em 2015 e atingiu um fatura-

Novos materiais são compartilhados entre todos os seis Tech Centers da empresa no mundo

mento de € 54 bilhões (cerca de R$ 215 bilhões). No Brasil, o conglomerado comercializou 58 mil veículos no mesmo período. A equipe de pesquisadores que estuda biocombustíveis e motores a álcool trabalha no São Paulo Tech Center, na capital paulista, uma das três unidades do Tech Center América Latina – as outras duas estão localizadas no Polo Industrial Brasil, em Porto Real (RJ), e no Centro de Produção Palomar, em Buenos Aires. Esses centros agem de forma integrada e têm aproximadamente 700 profissionais, cerca de 500 deles no Brasil. Um quarto desses funcionários tem pós-graduação. Em todo o mundo, o Grupo PSA tem 12 mil funcionários dedicados às atividades de P&D. Em 2015, o orçamento da área foi de € 1,8 bilhão (cerca de R$ 7,1 bilhões) – a empresa não divulga o valor destinado à P&D no Brasil. Na França, o Grupo PSA liderou em 2015, pelo nono ano consecutivo, o ranking do Instituto Nacional de Propriedade Industrial, com 1.012 patentes depositadas. Entre as inovações surgidas nos laboratórios do Tech Center América Latina destacam-se um motor flexfuel de produção em série sem tanquinho de gasolina para a partida nos dias de frio, batizado de FlexStart EC5, o para-brisa Zenith do novo Citroën C3, cujo formato inovador permite maior visibilidade ao motorista, e o teto panorâmico Cielo dos Peugeot 208 e 308.

Análise por laser de chama em sistema de injeção de combustível realizada na USP

Eficiência VERDE

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Em 2015, a unidade de P&D da América Latina participou dos lançamentos de quatro modelos de carro: o Peugeot 2008 e as novas versões do Citroën Aircross e dos Peugeot 308 e 408. Em sua segunda geração, o Citroën Aircross foi desenvolvido e lançado exclusivamente na região. “O novo Citroën Aircross é um exemplo da eficiência dos pesquisadores que atuam nas unidades de P&D do Brasil e da Argentina, capazes de trabalhar em todas as etapas do desenvolvimento de um novo veículo, desde os seus primeiros traços de estilo até o processo produtivo final”, afirma François Sigot, diretor de Desenvolvimento, Estilo, Industrial e Supply Chain do Grupo PSA na América Latina. “Todo o trabalho de desenvolvimento de nossos produtos e novos materiais é com-


Testes realizados em um veículo Peugeot no Laboratório de Emissões Veiculares na fábrica de Porto Real (RJ)

fotos  peugeot

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partilhado nos países latino-americanos e pelos outros Tech Centers do Grupo PSA no mundo.” A estrutura do Tech Center no Brasil conta com vários laboratórios de pesquisa, entre os quais se destacam o de Materiais Verdes e o recém-inaugurado Laboratório de Emissões Veiculares, ambos na fábrica de Porto Real, além do Ateliê de Estilo da América Latina e de uma sala de projeção numérica, localizados em São Paulo, em Pesquisas que são projetadas imagens de alta para encontrar resolução em 3D de veículos em desenvolvimento em escala real. substitutos O laboratório dispõe de equipamentos para realização de testes para o plástico do nível de emissão de poluentes dos veículos fabricados em Porto de origem Real. Esses ensaios são feitos tanto petrolífera nas etapas de desenvolvimento dos veículos quanto nas homologações e privilegiar exigidas pelos órgãos competentes. Esses testes indicam que os fibras naturais gases expelidos estão dentro dos limites permitidos pela legislação brasileira. No Laboratório de Materiais Verdes – outra área em que a P&D brasileira se destaca globalmente – são pesquisadas alternativas que permitam reduzir o emprego de plásticos de origem petrolífera e privilegiar o uso de matérias-primas renováveis, como fibras naturais, materiais reciclados não metálicos e

biomateriais.Além de reduzir a emissão de CO2 da cadeia de produção de plásticos de origem fóssil, os materiais verdes permitem diminuir o peso de algumas peças automotivas. “Existe um planejamento no Grupo PSA de integrar cada vez mais materiais verdes em seus novos projetos. Essa proposta também se aplica aos veículos já existentes, que devem adicioná-los durante a evolução dos modelos de série. Os pesquisadores do laboratório de materiais verdes trabalham em colaboração estreita com fornecedores a fim de selecionar novos produtos a serem usados”, diz Sigot. O Citroën C3, por exemplo, tem 39 quilos de materiais verdes em seu peso total. Um exemplo são os carpetes do porta-malas fabricados com resíduos da indústria têxtil como fibras naturais e feltro de algodão. Segundo Sigot, os veículos da montadora também saem da fábrica com outros componentes produzidos com materiais reciclados, tais como o revestimento do teto, feito a partir de PET (material plástico usado em garrafas descartáveis), a proteção para-barro dos para-lamas, fabricada de polipropileno (um tipo de plástico) reciclado, e o revestimento lateral do porta-malas, produzido com PET, polipropileno e fibras naturais. n

Projeto Estudo conceitual de um motor avançado a etanol (nº 2013/502383); Modalidade Pesquisa em Bioenergia (Bioen) – Parceria para Inovação Tecnológica (Pite); Pesquisador responsável Waldyr Luiz Ribeiro Gallo (Unicamp); Investimento R$ 3.983.973,53 (FAPESP) e R$ 3.983.973,53 (Grupo PSA).

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Empreendedorismo y

Ouvindo o mercado Startups apoiadas pela FAPESP recebem treinamento para elaboração de planos de negócio Bruno de Pierro

ilustraçãO  nelson provazi

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DPR Engenharia, startup fundada em 2008 na incubadora de empresas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), precisou alterar radicalmente o modelo de negócio de uma nova tecnologia, sob pena de não conseguir inseri-la no mercado. A mudança aconteceu durante o programa FAPESP-Pipe High-Tech Entrepreneurial Training Program, realizado entre março e maio deste ano, com empresas que participam do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da Fundação. Desde o final do ano passado, a empresa desenvolve um software de simulação computacional para avaliar a dimensão de dutos de petróleo submarinos e prevenir danos causados pelo fenômeno das vibrações induzidas por vórtices – movimentos na água provocados pelas correntes marinhas, que geram tensões capazes de causar a ruptura de tubulações. Os sócios da empresa acreditavam que a ferramenta atenderia a demandas de companhias de perfuração de poços, mas não foi isso que ocorreu. Após a

rea­lização de consultas com potenciais clientes, constataram que o segmento não tinha interesse pelo produto. “Foi frustrante”, diz o engenheiro Denis Antonio Shiguemoto, um dos fundadores da DPR. De acordo com o engenheiro, a justificativa de alguns empresários foi de que o custo de manutenção é muito baixo quando comparado com o custo de operação da sonda. “Portanto, sairia mais barato as empresas continuarem fazendo manutenções regulares, quando necessárias, do que utilizar nosso sistema”, explica. Porém a frustração durou pouco. Ao entrar em contato com outras empresas do setor, Shiguemoto e seu sócio, o engenheiro Raphael Issamu Tsukada, enxergaram a oportunidade de aplicar a tecnologia em outro segmento. “Ao contrário da perfuração de poços, a produção de petróleo utiliza tubulações por mais de 20 anos, o que as torna mais suscetíveis ao desgaste a longo prazo. Nesse caso, as empresas produtoras de petróleo poderiam se interessar pela nossa tecnologia”, explica Shiguemoto.

A DPR é uma das 21 startups que participaram da primeira edição do treinamento, oferecido pela FAPESP em parceria com a Universidade George Washington (GWU, na sigla em inglês), dos Estados Unidos, com a finalidade de encontrar um modelo de negócio eficaz para as tecnologias desenvolvidas com apoio do programa Pipe. Ao longo de sete semanas, as empresas foram estimuladas a realizar entrevistas com potenciais clientes, parceiros e concorrentes, com o objetivo de compreender suas demandas, obstáculos e problemas. No total, foram realizadas 1.729 entrevistas. “Identificamos que a principal dificuldade encontrada pelas startups é, quase sempre, saber identificar o tipo de cliente para sua tecnologia e se realmente o produto atende a uma necessidade específica do mercado”, diz Fabio Kon, professor do Instituto de Matemática e Estatística (IME) da Universidade de São Paulo (USP) e membro da Coordenação Adjunta – Pesquisa para Inovação da FAPESP. O programa utiliza uma metodologia chamada Customer Development, elapESQUISA FAPESP 244  z  73


borada por Steve Blank, professor da Universidade da Califórnia em Berkeley e fundador de várias startups no Vale do Silício, nos Estados Unidos. De acordo com ele, muitas empresas desenvolvem tecnologias e definem um modelo de negócio com base apenas em suposições sobre o mercado. “A finalidade é orientar empreendedores e pesquisadores a enfrentar os desafios do mundo real”, afirma Daniel Kunitz, diretor do programa de treinamento pela GWU. Shiguemoto reconhece que, antes do curso, não tinha o costume de realizar entrevistas com potenciais clientes. “Confiávamos na nossa percepção. Dávamos mais atenção ao desenvolvimento tecnológico em si, deixando em segundo plano o mercado”, diz.

Fazer entrevistas com potenciais clientes evita que a empresa perca tempo com erros na formatação de um novo projeto

mapa do negócio

Depois da seleção feita pela área de pesquisa para inovação da FAPESP, cada empresa montou uma equipe composta por um pesquisador principal, um representante da área de negócios e um mentor externo, indicado pela Fundação a partir de uma lista de executivos com experiência em grandes empresas e startups no estado de São Paulo. Os times prepararam um Business Model Canvas, um mapa descrevendo os principais elementos do modelo de negócio do produto inovador que a empresa pretende comercializar. Depois, foi realizado um

encontro de três dias na sede da FAPESP, em que os instrutores norte-americanos deram recomendações de como realizar as entrevistas de forma sistemática e incorporar as respostas aos modelos de negócio. Após essa etapa, cada startup fez cerca de 100 entrevistas com potenciais clientes. A FAPESP disponibilizou R$ 10 mil para cada time. O recurso foi usado, por exemplo, na cobertura de custos de viagens para conhecer possíveis clien-

tes. A DPR aplicou parte da verba para participar de uma feira internacional do setor de petróleo e gás na cidade de Houston, nos Estados Unidos. “Foi importante porque cerca de 2.800 empresas participaram do evento. Conseguimos conversar com mais de 50 pessoas em apenas três dias e foi lá que percebemos a necessidade de mudar o rumo de nosso plano de negócios”, conta Shiguemoto. No decorrer das semanas, o desempenho das empresas foi acompanhado de perto por três instrutores da GWU e três instrutores-adjuntos da FAPESP. Eles acessavam uma plataforma on-line com informações sobre as entrevistas submetidas pelos participantes do programa. Em videoconferências semanais, foi possível discutir particularmente cada caso e apontar falhas e acertos. “Os instrutores foram rigorosos. Houve uma semana em que não conseguimos realizar muitas entrevistas e levamos um puxão de orelha”, conta Silvia Mayumi Takey, sócia da DEV Tecnologia, startup criada em 2013 no Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia (Cietec), em São Paulo. Assim como a DPR Engenharia, a DEV também mudou o foco de seu modelo de negócios após passar pelo treinamento. A empresa desenvolveu um dispositivo que coleta dados sobre o funcionamento de máquinas industriais e os disponibiliza em uma plataforma on-line. A tecnologia poderá facilitar o monitoramento em tempo real de equipamentos industriais a fim de identificar defeitos e falhas. “Acreditávamos que esse sistema poderia atender ao mercado de fabricantes de máquinas. Mas, quando entrevistamos representantes dessas empresas, descobrimos que eles não tinham interesse em adotar a tecnologia”, conta Silvia Takey. Seguindo os conselhos dos instrutores, a DEV direcionou o produto para outros possíveis clientes. “Ao conversar com usuários de máquinas, como gerentes industriais de empresas de alta produção, como alimentos e bebidas, soubemos

Instrutores da Universidade George Washington na sede da FAPESP: enfrentando as dificuldades 74  z  junho DE 2016


A startup DPR desenvolveu um software para a área de perfurações de poços de petróleo, mas durante o treinamento detectou que as simulações computacionais desenvolvidas pela empresa têm mais chances no mercado de produção de óleo e gás

que havia um interesse da parte deles em obter nossa tecnologia para acessar informações específicas da linha de produção de maneira mais ágil e simples”, afirma Silvia, que tinha pouca familiaridade com as metodologias propostas no treinamento. “A realização de entrevistas evita que a empresa gaste tempo com estratégias que depois podem dar errado. É uma forma de diminuir os riscos em torno de um novo projeto”, avalia.

fotos 1 Phelipe Janning / Agência fapesp 2 petrobras

dimensão do mercado

Na avaliação do norte-americano Daniel Gordon, um dos instrutores do programa, a realização do treinamento no Brasil apresentou saldo positivo. “Apesar das recentes dificuldades econômicas enfrentadas pelo país, as startups brasileiras têm à disposição um grande mercado interno, que favorece novos empreendimentos”, diz. “A equipe da Universidade George Washington tem experiência para ajudar empresários a dimensionar suas perspectivas de negócio. No meu

caso, nos últimos 12 anos, tive contato com mais de 10 mil planos de negócio”, diz Gordon, ao explicar que a atividade realizada no Brasil é similar ao I-Corps, programa que busca incentivar o desenvolvimento de um ecossistema empresarial inovador nos Estados Unidos. A iniciativa surgiu quando a National Science Foundation (NSF), uma das principais agências norte-americanas de apoio à pesquisa, verificou há quatro anos que startups apoiadas por meio do programa Small Business Innovation Research (SBIR) estavam apresentando dificuldades para elaborar seus planos de negócio. O I-Corps foi criado em conjunto com instituições de pesquisa que oferecem treinamento nessa área, entre elas a GWU, o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e a Universidade Stanford. O programa fez sucesso e, no ano passado, começou a ser exportado para outros países, como México, Coreia do Sul e Japão. “O Pipe foi inspirado no SBIR e também enfrentamos o desafio

de estimular a visão de mercado entre as startups. A FAPESP procurou a GWU e firmou um convênio para trazer o programa a São Paulo. A FAPESP está absorvendo esse conhecimento e possivelmente será capaz de oferecer seu próprio treinamento no futuro”, explica Fabio Kon. O treinamento não se aplica apenas a startups com dificuldade para fixar um modelo de negócio. Mesmo aquelas com alguma experiência no assunto podem se beneficiar dos cursos. É o caso da SmarToys, startup com sede em Sorocaba (SP), voltada à produção de brinquedos inteligentes. “Já tínhamos experiência na realização de entrevistas para identificar potenciais clientes de forma ágil e entender o mercado. Mas, com o treinamento, conseguimos expandir nosso escopo, conversar com mais parceiros e ter uma visão mais ampla do mercado”, diz Alexandre Alvaro, pesquisador da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e fundador da empresa. Com base em pesquisas na área de tecnologia da informação (TI), a SmarToys desenvolve brinquedos tecnológicos. Um deles, já na fase de protótipo, é um bicho de pelúcia que pretende facilitar a comunicação entre pais e filhos. Ele vem acoplado a uma tela interativa, como a de um tablet, pela qual a criança pode gravar sons, trocar mensagens com os pais, que ficam conectados ao brinquedo por meio de um aplicativo instalado no celular, e também ouvir músicas e assistir a vídeos de conteúdo educativo. “O mercado de brinquedos é composto por vários atores. Por isso, nossas entrevistas envolveram não apenas pais e filhos, mas também todo o segmento de brinquedos. É uma relação complexa, e isso será levado em consideração na nossa estratégia daqui para frente”, afirma Alvaro. n Projetos 1. Desenvolvimento de um programa para previsão do movimento por vórtices (vim) em boias submersas utilizando uma abordagem empírica (nº 2012/50440-4); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Raphael Issamu Tsukada (DPR Engenharia); Investimento R$ 42.498,89. 2. Aplicação de tecnologia de internet das coisas para viabilização de sistemas produto-serviço (PSS) (nº 2014/505686); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisadora responsável Silvia Mayumi Takey (DEV Tecnologia); Investimento R$ 50.766,24. 3. Brinquedos conectados inteligentes (nº 2015/010855); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Paulo Tadeu Matheus de Camargo (SmarToys); Investimento R$ 119.696,35.

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humanidades   LITERATURA y

O amor segundo

Mário de Andrade Análise da musicalidade dos versos do poeta revela também a evolução de sua concepção dos sentimentos e do fazer artístico Márcio Ferrari

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ilustraçãO elisa carareto

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inda há muito a descobrir, recuperar e estudar entre os escritos e documentos deixados por Mário de Andrade (1893-1945) como escritor, musicólogo, pesquisador de cultura popular, ensaísta, crítico literário e gestor cultural. Uma vertente que promete render, pelo volume e diversidade da produção, é o cruzamento das muitas faces de suas atividades. Por meio de estudos das influências das pesquisas musicais do escritor sobre as estruturas de seus poemas, iniciados há 15 anos, a pesquisadora Cristiane Rodrigues de Souza, do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), percebeu que a análise dos recursos formais do poeta, em sua relação com a música, revela o conceito de amor em toda a sua obra em versos. Segundo a pesquisa de pós-doutorado de Cristiane, “O lirismo amoroso e o fazer poético de Mário de Andrade”, em fase de conclusão, a ideia de amor como conflito de forças, presente nas primeiras reuniões de poemas do autor, dá lugar a um sentimento sereno e de repouso nos seus últimos trabalhos. Cristiane encontrou caminhos para a compreensão da obra do escritor analisando, entre outras fontes, livros que faziam parte da sua biblioteca, preservada no IEB. Vários pesquisadores vêm fazendo trabalhos semelhantes de cotejo. Uma especialista de longa data em Mário de Andrade, a professora Telê Ancona Lopez, do IEB e da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, supervisora do pós-doutorado de Cristiane, vê nessa atividade – que descreve como “a formação do escritor leitor” – uma das três principais vertentes atuais dos estudos sobre o poeta. As outras são a do correspondente – Mário trocou cartas com um grande número de intelectuais de seu tempo – e a edição de obras inéditas. “Nesses projetos, a análise e a interpretação, no âmbito da crítica literária, são enriquecidas com o estudo do processo criativo, fundamentado na crítica genética”, explica Telê. A crítica genética procura reconstituir a obra de um escritor por meio de vestígios de seu processo criador, o que só é possível com a preservação, pelo menos em parte, de seu legado material. Entre as vertentes da obra de Mário que ainda faltam estudar, a professora destaca a do crítico na imprensa, em artigos sobre literatura, artes plásticas e música, entre outros assuntos. Cristiane diz a respeito de sua atual pesquisa que “é um momento de amadurecimento de um longo período de reflexões acerca da poesia de Mário de Andrade, sempre procurando ligações entre poesia e música”. Em suas primeiras pesquisas, ela havia destacado o aproveitamento de estruturas e recursos musicais na obra do poeta modernista. Em duas delas, CrispESQUISA FAPESP 244  z  77


tiane se deteve nos poemas do livro Clã do jabuti (1927). A análise procurou estudar na “voz lírica” de Mário a presença de elementos da música popular e do folclore – palavra usada pelo poeta para designar o que hoje se chama mais comumente de cultura popular. Foram procurados nos poemas o ritmo e a organização de timbres fonéticos que criam musicalidade, assim como a presença da estrutura de gêneros musicais cantados, como a moda e a louvação, e de técnicas como o tema e a variação. Segundo Cristiane, os poemas de Clã do jabuti incorporam definitivamente nos versos do escritor “as formas, técnicas e temas musicais populares”. Essa aproximação de elementos variados e muitas vezes opostos seria uma busca por “definir a multiplicidade de seu país e de si mesmo”. VIAGENS PELO BRASIL

Durante toda a vida, Mário manteve atividade intensa de pesquisador da cultura popular, em particular da música, enquanto construía sua obra literária e exercia funções públicas. Na década de 1920, ele fez duas viagens com essa finalidade às regiões Norte e Nordeste, primeiramente por conta própria (1927) e depois conjugando o trabalho de etnógrafo com o de colaborador do Diário Nacional (1928). Em 1935 o escritor passou a dirigir na cidade de São Paulo o Departamento de Cultura (equivalente a uma secretaria municipal), onde instituiu a Missão de Pesquisas Folclóricas. Três anos depois, a missão partiu para sua primeira viagem em busca de material etnográfico. Após percorrer seis estados, a pesquisa foi interrompida quando o escritor foi afastado do cargo pela ditadura de Getúlio Vargas. A par de influir na poesia de Mário, a música folclórica também é fundamental na narrativa de Macunaíma, que o autor definiu como uma rapsódia – em vez de romance –, gênero musical caracterizado pela justaposição de vários temas, entre eles aqueles derivados de melodias populares. Em um enredo em que se misturam tradições populares, lendas e mitos de várias regiões brasileiras, o estilo rapsódico corresponde à ideia de um país múltiplo, complexo e “sem caráter” (isto é, sem identidade definida), como o escritor qualificou seu personagem. Macunaíma completa este ano nove décadas de sua criação. Mário, segundo ele mesmo, escreveu o livro em seis dias de dezembro de 1926 numa chácara em Araraquara (SP). O lançamento só ocorreu em 1928. Dando prosseguimento à sua investigação sobre a musicalidade dos poemas do escritor, Cristiane percebeu, quando fazia sua pesquisa de doutorado – defendido na FFLCH-USP, sob a orientação do professor Alcides Villaça –, que, nos poemas em que a música aparecia mais marcadamente no livro Remate de males (1930), 78  z  junho DE 2016

o amor era presença constante. Nesse livro, “em tom mais comedido, o poeta maduro, ao mesmo tempo que busca conhecer e incorporar as manifestações da cultura brasileira, volta o olhar para sua música interior, múltipla e complexa como o país”, afirma a pesquisadora. Da “música interior” a pesquisadora depreendeu a concepção do amor como uma das faces do poeta múltiplo de “Eu sou trezentos...”, poema que abre a coletânea. Nos versos amorosos, Cristiane identificou a estrutura de bailados populares, ou “danças dramáticas”, como classificou Mário, entre eles o bumba meu boi e os reisados. As sequências dessas danças são marcadas por representação de lutas, que a pesquisadora relaciona com “o embate entre o desejo do poeta e a proibição do amor”, no grupo de poemas “Tempo da Maria”. Já em “Poemas da negra”, a estrutura é de fuga, terminando numa “resolução tonal” que, em determinados momentos, Cristiane identifica, no encontro amoroso, com a “conjugação dos corpos”. A pesquisadora estendeu a análise a versos contidos em Poesias (1941) e Lira paulistana (1945, póstumo). Do primeiro, destaca o grupo de poemas “Girassol da madrugada”. “A experiência amorosa do poeta é feita sem os embates de forças contrárias das danças dramáticas, encenada de forma amena”, diz Cristiane, exemplificando com os versos “Não há senão Narciso entre nós dois, lagoa,/ Já se perdeu saciado o desperdício das uiaras”. A pesquisadora vê aqui uma su-


Nos versos amorosos, a pesquisadora identificou a estrutura de “danças dramáticas” como o bumba meu boi

peração da “carência que move Eros” (o desejo amoroso), dando lugar ao “êxtase pleno e sem impaciência” do amor philia (amizade em grego antigo). Na analogia com as danças dramáticas, a tradicional sequência de “morte ritual do gozo” e subsequente ressurreição é transformada num repouso contínuo imaginado como “cessar ardentíssimo”. A música das danças dramáticas, com seus embates épicos, dá ainda lugar às melodias populares classificadas por Mário como “música de feitiçaria”, que sugerem torpor. A preguiça – o sentimento próprio do personagem Macunaíma – é evocada em “Rito do irmão pequeno”, outro grupo de poemas da coletânea de 1941. Nele, o poeta exorta o irmão menor a “exercer a preguiça, com vagar”. Desta vez, segundo a pesquisadora, “é exercido o prazer pleno, que não almeja a consumação sexual, mas o estado de contemplação e de totalidade”, próximo do “amor do belo em si” apontado por Sócrates no diálogo O banquete, de Platão. RAZÃO E SENSIBILIDADE

Cristiane identifica nesses poemas da fase final da obra de Mário de Andrade também o desejo da convivência dos contrários que leva a pensar na construção artística, já que as obras de arte são capazes de conjugar razão e sensibilidade. Essa ambição teria se baseado na tese do filósofo e poeta alemão Friedrich Schiller (1759-1805) de que a arte seria o único meio de desfazer, criando uma harmonia de contrários, a fratura provocada

no ser humano pelo distanciamento entre uma ingenuidade primordial e o racionalismo da modernidade. Mário teria encontrado nas ideias de Schiller uma referência para sua atuação como artista, ao mesmo tempo estudioso da música folclórica e professor do Conservatório Dramático e Musical da cidade de São Paulo. Quanto aos inéditos do autor que estão sendo recuperados, um lançamento importante foi o do romance inacabado Café, em edição preparada durante vários anos por Tatiana Longo Figueiredo, também pesquisadora do IEB-USP. O volume teve lançamento pela editora Nova Fronteira em meados de 2015, período em que foram lembrados os 70 anos da morte de Mário e, com isso, a entrada em domínio público de toda sua obra. Para realizar a edição do romance, que correspondeu à sua pesquisa de doutorado, apresentada em 2009 no IEB, Tatiana conseguiu recuperar entre os documentos do IEB 11 fases de sua criação. O escritor, que tinha um projeto grandioso para o romance, mas passou por vários momentos de insatisfação com o que havia escrito, trabalhou nele entre as décadas de 1920 e 1940. “Foi um imenso trabalho de quebra-cabeças”, diz Tatiana. A música tem papel predominante também em Café. “O texto é recheado de musicalidade desde a própria escolha do protagonista, Chico Antônio”, afirma a pesquisadora, lembrando que, nos anos 1940, em um momento em que o escritor previa que não iria terminar a obra, ele a transformou numa ópera. Chico Antônio, que inspirou o personagem homônimo, foi um cantador de coco que Mário conheceu em sua segunda viagem de pesquisa folclórica, em 1928. Comparava a maestria que encontrou nesse artista com a de tenores de ópera como Beniamino Gigli e Enrico Caruso. Via nele, segundo Tatiana, “o ócio criador e a preguiça elevada que considerava ingredientes ideais para a criação poética”. Em algumas cenas do livro, como nos poemas estudados por Cristiane, “o narrador funde o próprio discurso de poeta ao do cantador”. Tatiana dá um exemplo: “O ganzá chiou num soluço. Ai, seu doutô, quando chegar em sua terra, vá dizer que Chico Antônio é danado pra embolar! Adeus casa, adeus amigo, adeus sala de estar! Adeus lápis de escrever! Adeus papel de assentar! Adeus as moças sensatas, adeus luz de alumiar, adeus casa de alicerce e a honra deste lugar!” n

Projeto 1. O lirismo amoroso e o fazer poético de Mário de Andrade (nº 2013/25992-6); Modalidade Bolsa no país – Regular – Pós-doutorado; Pesquisadora responsável Telê Ancona Lopez (IEB-USP); Beneficiária Cristiane Rodrigues de Souza; Investimento R$ 123.459,28.

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sociologiay

O poder dividido nas periferias

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Conflitos entre o mundo do crime, a religião e o Estado definem as relações sociais nas margens das cidades

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Mônica Pileggi

tualmente, a periferia urbana no Brasil é regida por três tipos de “governo” ou regimes normativos: o estatal, o religioso e o do crime. Embora possuam lógicas distintas, são coexistentes. A constatação faz parte do projeto de pesquisa “As margens da cidade”, coordenado por Gabriel de Santis Feltran, professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). “Para além da Justiça estatal, há normas que emanam do mundo do crime e dos reli80  z  junho DE 2016

giosos, muito presentes e atuantes nas margens urbanas”, afirma Feltran. “Se uma pessoa está doente, vai ao posto de saúde; se o filho usa drogas, os pais tentam convencê-lo a se converter; se a casa foi roubada, vai ao crime para tentar a reparação. Portanto, de certa forma, o crime também tem seu papel de justiça.” Segundo o pesquisador, o desentendimento entre essas lógicas distintas é um dos principais fatores de desencadeamento da violência. “Na pesquisa, todas essas lógicas são consideradas legítimas aos olhos de nossos interlocutores,

os moradores da periferia”, diz Feltran, cujo projeto foi realizado no Centro de Estudos da Metrópole (CEM), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP. Para os fiéis, por exemplo, o “governo” religioso pode ser mais importante do que o do Estado. Essa influência no cotidiano da periferia passou a ser observada, principalmente, com o crescimento do cristianismo pentecostal, comumente referido apenas como evangélico. A visão religiosa define a vida dos fiéis, seja nos hábitos cotidianos, como o modo de se vestir conservador, seja


Helicóptero da Polícia Militar realiza operação de busca em São Paulo; ao lado, bairro da periferia na zona leste da cidade

fotos 1 VINICIUS PEREIRA / Folhapress  2 Mário Ângelo / Folhapress

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na maneira de ver o mundo. “Quando o fiel faz algo errado, é o diabo que está agindo. Em situação feliz, é Deus quem está presente. Trata-se de uma forma de pensamento que se transforma em norma na vida cotidiana.” Para quem integra a maior facção criminosa de São Paulo, o Primeiro Comando da Capital (PCC), a preocupação é com seus pares, que, de acordo com o pesquisador, são como eles: negros, jovens, pobres e moradores da periferia. Criado em 1993, após o massacre no presídio do Carandiru, o PCC surgiu como uma estratégia de sobrevivência nas

prisões, pela qual os detentos buscam a proteção de membros da facção para se proteger de torturas praticadas por agentes prisionais ou outros presos e ter garantido o acesso a refeições e banhos, direitos às vezes suprimidos por agentes carcerários como forma de punição. A ação do grupo ocorre por meio de rebeliões e atividades criminosas comandadas da prisão, como assaltos, narcotráfico, sequestros e assassinatos. “Diante do domínio dessas forças, o princípio da legalidade é minimizado”, explica Feltran. “A violência vem do descompasso entre os dois mundos, porque

as leis que não são estatais sempre vão ser reprimidas pelo Estado, e isso gera um conflito social pesado.” Em artigo publicado no final de 2014 no Caderno CRH, revista de ciências sociais editada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Feltran diz que os três regimes de “governo” – o do Estado, o religioso e o do crime – regulam os mercados, legais ou ilegais, e favorecem o crescimento da economia. “No governo religioso, por exemplo, os fiéis pagam pelo menos 10% do salário para as igrejas como dízimo. No caso do Estado, são os impostos, diretos ou indiretos, que todos somos obrigapESQUISA FAPESP 244  z  81


Estado, igrejas e crime regulam os mercados, legais ou ilegais, e favorecem o crescimento da economia

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Missionários da Igreja de Jesus Cristo dos Santos tran, é de que, quando se dos a pagar. E, no mundos Últimos Dias na olha pelo ponto de visdo do crime, o jovem que periferia da zona sul ta dos marginalizados, ganha comissões de até paulistana à procura de observam-se todos esses 50% vendendo drogas novos adeptos regimes atuando juntos. gasta seu dinheiro com E a norma estatal nem mercadorias legais em sempre é a dominante, principalmenshopping centers.” Em linhas gerais, o projeto de pesquisa te nos casos dos mais marginalizados, busca entender o conflito social contem- como usuários de drogas e prostitutas. Ao todo, trabalham no projeto 17 pesporâneo sob a perspectiva dos grupos fortemente marginalizados, todos eles quisadores etnógrafos, atuando em oito mais ou menos criminalizados: mora- cidades de diferentes portes e estados – dores de rua, encarcerados, usuários de com destaque para o Rio de Janeiro e São drogas e prostitutas, entre outros, e seus Paulo. Nas cidades do interior, por enfamiliares. A conclusão, segundo Fel- volver crianças e adolescentes, os locais 82  z  junho DE 2016

pesquisados não podem ser revelados. “Trabalhamos para formular, em conjunto com uma rede ampla de colaboradores nacionais e internacionais, novos pressupostos para entender questões como violência, criminalidade, marginalidade e drogas”, ressalta o sociólogo. O tema das fontes de poder nas periferias foi objeto de debate realizado no final de abril, no qual professores e pesquisadores de diferentes partes do mundo se reuniram na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) para discutir os padrões de governo e governança nas grandes metrópoles – como São Paulo, Paris, Londres, Milão e Cidade do México. Foi o quarto seminário internacional do CEM, que teve por objetivo a busca, por meio de estudos de caso, de regularidades e diferenças entre essas cidades. Entre os elementos comuns das análises dos pesquisadores está a baixa presença federal nas políticas públicas que incidem diretamente sobre a segurança nas cidades analisadas. CAMINHOS DIFERENTES

Durante a década de 1990, São Paulo foi o primeiro estado a implementar a política de encarceramento em massa e a criar um regime de segurança máxima nas prisões, além de ter sido o primeiro a assistir à expansão da maior e mais organizada facção criminosa do país, o PCC. Mais de 20 anos depois, Feltran


destaca que tal modelo, ao contrário de duzir a reincidência dessas pessoas no reduzir, tem impulsionado a criminali- sistema carcerário e na criminalidade. dade. Por outro lado, estudos realizados “Criamos um sistema perverso, em que anteriormente mostram que na década garantimos a reincidência pelo surgide 2000 o mundo do crime foi respon- mento dessas organizações e pela adsável por uma redução significativa – ministração desses locais.” cerca de 70% no estado de São Paulo, Feltran lembra que o modo como o entre 2000 e 2010 – dos homicídios de “mundo do crime” opera varia de acorjovens negros (considerando a soma de do com o contexto. Em São Paulo, por pretos e pardos da categoria do IBGE) exemplo, há mais semelhanças entre a e favelados ao proteger comunidades e capital e o interior do que se comparado impedir o assassinato por vingança entre ao Rio de Janeiro. “As políticas de seguos integrantes da facção. rança são estaduais”, lembra. “No Rio, Para a pesquisadora Nancy Cardia, com outra história local e mais ênfase no coordenadora-adjunta do Núcleo de Es- controle militar de territórios – seja pelo tudos da Violência (NEV) da USP, tam- crime ou pelo Estado –, há ao menos três bém um Cepid, a relação do PCC com facções criminais importantes, além de o entorno na periferia de São Paulo é milícias.” Enquanto o PCC monopoliza mais complexa e atua somente sobre o território paulista e se capilariza por uma parcela da população. “Os homicí- outros estados, o Rio é dominado por dios continuam a ocorrer e isso mostra um oligopólio: o mercado de drogas é que o PCC não determina quem morre liderado principalmente pelas facções ou não.” Nancy diz também que o encar- Comando Vermelho (CV), Amigos dos ceramento contribui para o problema no Amigos (ADA) e Terceiro Comando. “Por estado ao tecer uma rede de vulnerabili- conta disso, não houve uma pacificação dade – envolvendo detentos e familiares nas disputas do Rio como em São Pau–, ao tirar essas pessoas da lo”, explica João Maproximidade do relacionanoel Pinho de Mello, mento familiar que, segunprofessor de economia Integrantes do grupo do a pesquisadora, poderia do Insper, do Rio, que Marcha da Periferia protestam contra a ajudar na reintegração dos estuda criminalidade e violência policial no presos e, dessa forma, repolíticas públicas. Rio de Janeiro, em 2013

Outra configuração peculiar carioca é a ocupação das comunidades pelas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), o que vem colocando a segurança como carro-chefe das políticas de Estado, obrigando os demais atores sociais dessas áreas a se readequar diante de um cenário de ocupação militar. “A venda de drogas, por exemplo, continua ocorrendo em todas as favelas no Rio ocupadas pelas UPPs”, conta Feltran. “Porém não pode mais ser feita com fuzis em punho.” As relações nas periferias brasileiras, entretanto, são mais complexas e exigem outros estudos para que possam ser elucidadas, destaca Nancy. “É difícil ter uma explicação única ou mais simples para o que acontece nas periferias brasileiras. Trata-se de uma situação de transição e de construção da sociedade e das cidades.” n

Projeto CEM – Centro de Estudos da Metrópole (nº 2013-076167); Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisadora responsável Marta Arretche (FFLCH-USP); Investimento 7.124.108,20 (para todo o projeto).

Artigo científico FELTRAN, G. S. Valor dos pobres: A aposta no dinheiro como mediação para o conflito social contemporâneo. Caderno CRH. v. 27, p. 495-512. 2014.

fotos 1 Raimundo Pacco / Folhapress 2 MARCOS ARCOVERDE /AE

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economia y

Vida de estivador trabalhadores portuários de Santos e Lisboa Amarílis Lage

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ombalgias, dores no joelho, fadiga crônica. Estes são alguns dos problemas que vêm afetando a saúde de estivadores nos portos de Santos e de Lisboa. Porém, ainda que os sintomas sejam os mesmos, os motivos que levam a eles e a frequência com que aparecem são diferentes. E a situação, hoje, é pior entre os portugueses. Essas são as conclusões de “Trabalho e saúde dos trabalhadores portuários de Lisboa: estudo comparativo com o porto de Santos – Brasil”, desenvolvido por Maria de Fátima Ferreira Queiroz, formada em fisioterapia e professora do Departamento de Políticas Públicas e Saúde Coletiva da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Os problemas de saúde que acometem os estivadores já foram identificados por alguns estudos acadêmicos. O trabalho realizado por Fátima inova ao comparar a situação entre portos distintos e identificar quais são, em cada local estudado, os fatores associados ao adoecimento. Ela acompanhou os estivadores do porto de Santos entre 2008 e 2011, em um trabalho apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Durante 2015, observou e entrevistou os profissionais ligados ao Sindicato dos Estivadores, Trabalhadores do Tráfego e Conferentes Marítimos do Centro-Sul de Portugal (Sect) em três portos: Lisboa, Figueira da Foz e Sines. Essa parte da pesquisa se de84  z  junho DE 2016

senvolveu sob a supervisão da historiadora Raquel Varela, coordenadora do Grupo de Estudos do Trabalho e dos Conflitos Sociais do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa. Em Santos, o trabalho coletou dados sobre 453 estivadores, dentre os mais de 3 mil que hoje estão na ativa no porto. A maioria é composta por “avulsos”, e no estudo apenas eles foram acompanhados. Diariamente, esses profissionais comparecem a um local conhecido como “parede”, onde são feitas as tomadas de trabalho daquele período e da madrugada seguinte. Os trabalhadores selecionados recebem um tíquete que autoriza sua entrada no porto para prestar serviço a uma determinada operadora. Os turnos têm duração de seis horas, e o pagamento relativo a cada turno é depositado nas contas bancárias dos trabalhadores dois dias depois. Os estivadores possuem os mesmos direitos de quem é contratado no regime da CLT, como 13º salário, férias, vale-transporte e vale-alimentação. Como o regime é de contrato a termo, esses benefícios são incluídos proporcionalmente em cada pagamento. Em Portugal, Fátima reuniu informações sobre 140 estivadores. Esses homens, diferentemente dos de Santos, contam com um contrato de trabalho sem previsão de término, que estabelece um turno de oito horas diárias e prevê plano de carreira.

fotos  maria de fátima queiroz

Condições de trabalho afetam a saúde dos


Ambiente de trabalho no porto de Santos: profissionais avulsos acertam a empreitada diariamente

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Nos dois grupos, os objetivos da pesquisa eram os mesmos: conhecer o processo de construção histórica dos estivadores, entender as implicações da organização do trabalho sobre suas vidas e contribuir para a construção de uma política de trabalho e de saúde para essa categoria. A metodologia englobou levantamento de dados históricos, conhecimento das condições de trabalho e aplicação de um questionário com 191 questões relacionadas tanto à organização do trabalho como à ocorrência de acidentes, doenças, fadiga, sintomas osteomusculares e lombalgias. Além disso, a pesquisa incluiu observação ergonômica do trabalho realizado nos portos e uma abordagem qualitativa, com entrevistas semiestruturadas, das quais participaram 60 homens em Santos e 21 em Portugal. Segundo Fátima, em Portugal, assim como em vários outros países, entre eles Itália e Espanha, vigorava o modelo de closed shop, em que o acesso às vagas era condicionado à filiação a um sindicato que definia a seleção de trabalhadores, a composição das equipes e o prazo para as tarefas serem executadas, entre outros aspectos. O modelo começou a mudar para aquele controlado pelas empresas a partir da década de 1980, quando o uso dos contêineres se tornou mais comum, exigindo a adoção de novos equipamentos no ambiente portuário. Utilizados na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) para transporte de material bélico, os contêineres despertaram novo interesse na medida em que o processo globalizado de transações comerciais se intensificou, apoiado no transporte marítimo de cargas. Em 1993, com a privatização dos portos, a gestão do trabalho passou para a Associação de Empresas de Trabalho

Contêineres chegaram junto com mudanças no regime de trabalho em portos como o de Lisboa

Portuário (AETPL). Desde então, praticamente todos os estivadores têm vínculo empregatício, seja com operadores portuários ou com a AETPL. NÚMERO DE ACIDENTES

No Brasil, o marco da nova fase do sistema portuário foi a Lei 8.630, de 1993 – que ficou conhecida como Lei de Modernização dos Portos. Fátima questiona esse epíteto. “A lei não modernizou o porto: ela veio normatizar o moderno”, afirma. A partir da nova legislação, a gestão do trabalho passou dos sindicatos para o Órgão Gestor de Mão de Obra (Ogmo), constituído pelas empresas que operam cada porto. A medida encontrou muita resistência entre os dirigentes sindicais, que queriam manter o poder de escalação dos trabalhadores avulsos, como relata o

Apresentação de carteiras de trabalho em Lisboa, onde a regulamentação é maior do que no Brasil 86  z  junho DE 2016

livro Trabalho portuário – A modernização dos portos e as relações de trabalho no Brasil (editora Elsevier/Método, 2008), de Cristiano Paixão e Ronaldo Fleury. A expectativa de Fátima era encontrar, entre os trabalhadores portugueses, uma situação melhor que a dos santistas, graças à estabilidade empregatícia e à probabilidade de haver equipamentos mais modernos. Porém a análise dos dados mostrou o oposto: eles estão mais sujeitos a acidentes e adoecimento. Dos trabalhadores avaliados em Santos, 62% sentiam dor lombar, 40,2% nos joelhos e 43% no pescoço e na região cervical. Entre os trabalhadores portugueses, esses índices foram de 72,9%, 50% e 66,4%. A diferença é ainda mais acentuada quando se trata de fadiga generalizada. O problema atinge 18,4% dos trabalhadores do porto de Santos, e, destes, 18,8% apresentam fadiga crônica (há mais de seis meses). Em Portugal, 39,3% sofrem de fadiga generalizada; em 19,3% a situação é crônica. Por meio dos questionários, Fátima também identificou aspectos da organização do trabalho que poderiam estar relacionados ao adoecimento dos estivadores. Quase todos declararam repetir turno de trabalho (97,9% em Lisboa e 86,5% em Santos). A maioria relatou situações frequentes de tensão no ambiente profissional (68,8% em Lisboa e 74,6% em Santos), conflitos na equipe (59,3% em Lisboa e 61,4% em Santos) e exigências rígidas por parte de coor-


denadores ou superintendentes (82,1% em Lisboa e 61,4% em Santos). De modo geral, sentem-se vulneráveis aos riscos à saúde (85% em Lisboa e 75,2% em Santos). Quase metade não tem autonomia para fazer uma pausa quando necessita (47,1% em Lisboa e 41,3% em Santos). Associando os dados, Fátima encontrou relações estatisticamente significativas entre os problemas de saúde e outros fatores. Em Santos, a dor lombar foi associada à repetição da jornada de trabalho e à existência de conflito de mando na equipe, ou seja, entre os próprios estivadores escalados para um trabalho, o que pode gerar estresse. Já a fadiga generalizada foi relacionada ao tempo insuficiente e ao número também insuficiente de trabalhadores na equipe para execução das tarefas. Em Portugal, a dor lombar foi associada à falta de autonomia para fazer uma pausa quando necessário, ao número reduzido de trabalhadores, à ocorrência de acidentes e às situações frequentes de tensão. A fadiga generalizada se deveria, ainda, a esses fatores, além do tempo inadequado para a realização das tarefas. Quanto aos acidentes, a situação também é pior entre os portugueses. Em Santos, 47% dos participantes relataram já ter sofrido acidente de trabalho – o problema está associado ao tempo insuficiente para execução das tarefas e à impossibilidade de trocar de equipe quando se quer. Em Portugal, 85,7% já se acidentaram. Entre os estivadores de Lisboa, mais de um quarto (26,7%) dos acidentes relatados aconteceu enquanto o profissional operava algum equipamento.

fotos  maria de fátima queiroz

DESATUALIZAÇÃO

Segundo Fátima, parte das explicações para o adoecimento em Lisboa pode estar relacionada à idade e à falta de manutenção do maquinário utilizado, assim como a problemas de conservação no porto, como buracos na pavimentação. “O porto de Lisboa passa por um processo de desinvestimento e precarização do trabalho”, afirma a pesquisadora. Enquanto isso, o porto de Sines, que fica a 90 quilômetros de distância e é concessionado à Port Singapore Authority (PSA) pelo governo português, vem sendo renovado. Em Santos, o maquinário é mais conservado e o turno, de seis horas, mais curto. Além disso, enquanto 78,6% dos participantes de Lisboa acham que

Trabalhadores do porto de Santos, onde 47% dos entrevistados pela pesquisa relataram já ter sofrido acidentes de trabalho

o número de trabalhadores por equipe não é suficiente para a execução das tarefas, em Santos esse número é de 45,3%. Fátima também destaca outro aspecto. Segundo ela, os trabalhadores de Santos dispõem de mais autonomia que os estivadores lisboetas. “Os estivadores de Lisboa trabalham de segunda a sexta-feira em jornadas de oito horas, estando potencialmente expostos a fatores associados a adoecimento por tempo mais prolongado. Os de Santos, por serem avulsos, têm mais flexibilidade. Dias de trabalho são intercalados com dias sem trabalho, o que ajuda na recuperação dos esforços.” Sua percepção dialoga com a da socióloga Carla Diéguez, professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Carla pesquisou o trabalho dos estivadores do porto de Santos em seu doutorado, com foco em alguns momentos de resistência por parte da categoria. Um deles se referia aos protestos realizados em 2013 contra a contratação direta de funcionários, via CLT, pela Empresa Brasileira de Terminais Portuários (Embraport). “Os estivadores conseguiam, em média, R$ 4 mil, e a Embraport oferecia salários de R$ 1,8 mil”, relata Carla. “Ou

seja, ao permanecer avulso, o trabalhador mantém remuneração média maior.” Segundo a socióloga, “além disso, para eles é importante serem operários sem patrões”. O principal motivo é que assim ainda podem ter liberdade de construir o próprio tempo de trabalho. Não obstante, Carla também observou precarização do trabalho em Santos. “Os estivadores citam como indicações disso a queda na remuneração e o aumento da incidência de adoecimento e de acidentes”, relata a pesquisadora. “Na opinião deles, o sindicato teve uma ação importante durante a privatização e sem ele o impacto desse processo para os trabalhadores teria sido muito maior.” Fátima pretende que a comparação entre o trabalho e a saúde dos estivadores portugueses e santistas ajude a identificar quais são os aspectos que conferem vulnerabilidade a esse tipo de profissional – uma informação que pode ser relevante para outros portos. “Na atualidade, fortes grupos econômicos, formados por armadores e operadoras, empenham-se em dominar esse tipo de atividade. Isso leva os portos do mundo a terem cada vez mais características em comum.” n

Projeto Trabalho e saúde dos trabalhadores portuários de Lisboa: Estudo comparativo com o porto de Santos – Brasil (nº 2014/22654-5); Modalidade Bolsa no Exterior – Regular; Pesquisadora responsável Maria de Fátima Pereira Queiroz (Unifesp); Investimento R$ 128.625,76.

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Arte

Cenas do espetáculo Suportar: bailarinos se baseiam na própria experiência

Dança na rua Companhia de coreógrafa da Unicamp usa jogos e improvisação nas apresentações em lugares públicos Flávia Fontes Oliveira

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uando a norte-americana Holly Cavrell chegou ao Brasil, em 1989, com uma bolsa Fulbright de pesquisador visitante, encontrou no Departamento de Artes Corporais do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (IA-Unicamp) um ambiente que hoje define como “bruto”. Ela vinha de uma experiência de oito anos na Suécia como bailarina e coreógrafa, depois de ter dançado em companhias estáveis nos Estados Unidos. Chamou a sua atenção a ausência no Brasil de continuidade entre as atividades didáticas e a prática fora da universidade. Em grande medida, sua atuação procurou meios para desfazer essa barreira. Holly nunca se desligou da Unicamp. Primeiramente foi professora visitante (de 1989 a 1998) e em seguida professora plena. Desde 2012 ela é chefe do Departamento de Artes Corporais. Já nos 88 | junho DE 2016

anos iniciais, percebeu que, nos encontros com alunos, poderia colocar em prática o processo que vinha desenvolvendo no exterior, valorizando a história e as referências técnicas de cada um, sem procurar homogeneidade, como elementos centrais na composição dos espetáculos. “Nunca tive a intenção de ter uma companhia convencional”, diz Holly. “No início dos anos 1990, comecei a experimentar jogos e improvisações com um grupo de bailarinos e foi dando certo.” Antes desses exercícios, a coreógrafa costuma propor aos membros do grupo leituras e materiais visuais em torno de um tema. “Muitas vezes, nas conversas, surgem outros rumos, novas sugestões, que experimentamos nos encontros seguintes”, conta. As experiências chegaram a um público externo à Unicamp, de maneira contínua, quando, em 1995, nasceu a Cia. Domínio Público,


fotos  divulgação

com alunos da graduação e da pós-graduação do Departamento de Artes Corporais, embora o grupo não estivesse vinculado formalmente à universidade. Há cerca de 10 anos, o elenco, de 11 pessoas, segue junto e colabora na criação e na execução dos projetos. Calcular orçamento, escrever e pensar no figurino, por exemplo, são tarefas divididas. “É um grupo muito heterogêneo”, conta Holly. “Em comum, cada um busca ferramentas próprias como bailarino e criador.” Ao dirigir um espetáculo, Holly gosta de trabalhar com indicações de roteiro e não com sequências coreografadas movimento a movimento. “Isso permite intervenções e invenções em tempo real, incluindo acidentes bem-vindos, coisas que acontecem sem ser planejadas, mas acabam mostrando organicidade”, afirma. Espetáculos do grupo, entre eles Suportar (2013) e Posso dançar para você? (2012), acontecem em lugares abertos, como praças, ruas e rodoviárias, e usam na prática artística o aprendizado adquirido nas pesquisas. Holly nasceu em Nova York, em 1955, e cresceu em um lar no qual se cultivava o gosto pela arte, incluindo a dança. Otis Cavrell, seu pai, era cineasta, frequentou o Black Mountain College – instituição que existiu entre 1933 e 1957, voltada principalmente ao ensino das artes –, e estudou com Alwin Nikolais (1910-1993), criador experimental cujos trabalhos são marcados pela interação da dança com elementos cênicos como iluminação intensa ou jogos de espelhos

Posso dançar para você?: coreografia criada para apresentação em locais abertos

no palco. Otis foi do conselho da Companhia de Alwin Nikolais até sua morte, em 1982. A mãe de Holly, Jean Cavrell, foi atriz, formada pela Old Vic Theater School de Londres, e teve como uma de suas professoras Selma Jeanne Cohen, historiadora da dança responsável pela primeira enciclopédia dessa arte. Foram os pais, em um esforço para tirá-la “de casa e da frente da TV nas manhãs de sábado”, que incentivaram Holly a começar a fazer aulas de dança, aos 8 anos. Ela foi matriculada no curso preparatório da Juilliard School, de Nova York, recebendo aulas de dança e música, e iniciou sua carreira profissional na companhia de Martha Graham (1894-1991) aos 17 anos. Depois dançou com o grupo de Paul Sanasardo, ex-aluno de Martha e parceiro da bailarina e coreógrafa alemã Pina Bausch (1940-2009), nome de referência na dança contemporânea. O doutorado de Holly, Dando corpo à história, defendido na própria Unicamp em 2012 e publicado em livro no fim do ano passado pela editora Prismas, traduz essa trajetória. O estudo não apenas revela as relações entre os artistas da dança e seus contextos ao longo da história como também fala da própria experiência de Holly como pesquisadora do corpo. “Mapear a grande história da qual deriva a minha própria história é uma forma de me situar no passado, e também uma forma de traçar esse passado em mim”, escreveu em sua tese. n PESQUISA FAPESP 244 | 89


memória

Em nome dos pesquisadores Com vocação para difundir conhecimento e aconselhar governos, Academia Brasileira de Ciências comemora centenário Bruno de Pierro

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o dia 3 de maio de 1916, nas dependências da Escola Polytechnica do Rio de Janeiro, um grupo de pesquisadores fundou a Sociedade Brasileira de Ciências, com o objetivo de defender a cultura científica e a pesquisa básica no país. A iniciativa teve o respaldo de intelectuais e pesquisadores de áreas como geologia, arqueologia e matemática, sob a liderança de Henrique Morize (1860-1930), geógrafo, engenheiro e astrônomo francês naturalizado brasileiro que dirigiu o Observatório Nacional por 20 anos. Em 1921, espelhando-se nas tradicionais academias científicas de países como França e Estados Unidos, a sociedade mudou de nome para Academia Brasileira de Ciências (ABC), que no mês passado comemorou seu centenário. No Congresso Nacional, em Brasília, foi montada uma exposição sobre as principais descobertas científicas dos últimos 100 anos. No Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, uma mostra com painéis interativos narra a história da instituição e destaca 18 cientistas brasileiros de diversas áreas, como o físico César Lattes e a geógrafa Bertha Becker. 1

Exposição celebra o centenário da Academia Brasileira de Ciências no Museu do Amanhã, no Rio

90 | junho DE 2016


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fotos 1 fernando frazão / agência brasil 2 acervo abc  3 augusto malta / acervo mis rj 4 acervo abc

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Nos primeiros anos, a instituição dedicou-se a promover conferências e a receber visitas de cientistas ilustres. Em 1925, por exemplo, Albert Einstein esteve no Brasil e participou de um encontro com membros da ABC no Rio. Um ano depois, a academia recebeu a cientista polonesa Marie Curie, ganhadora de dois prêmios Nobel e a primeira mulher a ser laureada. Tanto Einstein quanto Marie Curie se tornaram membros correspondentes da instituição. “Diferentemente de outros países, o Brasil consolidou suas práticas de pesquisa tardiamente, no final do século XIX. Não existia uma cultura capaz de atribuir valor e justificar investimentos na atividade científica”, explica o historiador Shozo Motoyama, do Centro Interunidade de História da Ciência da USP.

Em 1924, o Pavilhão da Tchecoslováquia, no Rio, foi cedido pelo governo brasileiro para se tornar a primeira sede própria da ABC; decreto de 1934, assinado por Getúlio Vargas, reconheceu a academia como instituição de utilidade pública

“Uma das principais bandeiras da ABC, em sua origem, era lutar pela institucionalização da ciência brasileira, por meio da difusão do conhecimento.” A partir da década de 1920, a ABC dedicou-se a apoiar iniciativas de educação científica. Uma das primeiras ações foi participar, em 1923, da criação da Rádio Sociedade (atual Rádio MEC), a primeira emissora de rádio do país. Membro da academia na época, 4

Henrique Morize: primeiro presidente da ABC

o médico, antropólogo e escritor Edgar Roquette-Pinto, um dos pioneiros da radiodifusão, convenceu a ABC a comprar equipamentos para montar a rádio no Rio. A emissora tinha um propósito educacional, com programas de literatura, música clássica e ciência. “Os fundadores da ABC argumentavam que, para conseguir o desenvolvimento do país, inclusive o econômico, seria necessário difundir a cultura científica”, conta Motoyama. Segundo o historiador, em sua origem a instituição não tinha a finalidade de prestar assessoria científica ao governo brasileiro, ao contrário da missão original das academias de outros lugares do mundo. A Académie des Sciences, na França, por exemplo, foi fundada por Luís XIV em 1666 com o objetivo de patrocinar a pesquisa científica. Nos Estados Unidos, a National Academy of Sciences foi criada graças a uma lei aprovada no Congresso e assinada pelo presidente Abraham Lincoln em 1863. PESQUISA FAPESP 244 | 91


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“Nesses casos, os governos já reconheciam a importância da ciência. No Brasil, a ABC foi uma iniciativa civil, dos próprios cientistas, em busca de reconhecimento”, explica o físico e historiador da ciência Olival Freire Junior, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Em 1924, a entidade participou da fundação da Sociedade Brasileira de Educação, que teve grande influência na criação do Ministério da Educação e Saúde, em 1930. Foi nessa época que a ABC começou a ganhar expressão política. Nos anos seguintes, liderou o movimento que reivindicou a criação, em 1951, do Conselho Nacional de Pesquisas, atual Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A proposta de criação do órgão foi elaborada por uma comissão da ABC presidida pelo almirante Álvaro Alberto da Motta e Silva, engenheiro formado pela Escola Polytechnica do Rio de Janeiro que 92 | junho DE 2016

realizou pesquisas em explosivos químicos. Álvaro Alberto esteve à frente da ABC em dois períodos: de 1935 a 1937 e de 1949 a 1951, ano em que deixou a entidade para assumir a presidência do recém-criado CNPq. Também em 1951, meses depois, membros da ABC participaram da fundação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Pouco antes, em 1948, a academia havia apoiado a criação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Com o objetivo de representar diversas sociedades científicas do país, a SBPC passou a atuar em conjunto com a ABC na defesa dos interesses da comunidade científica. O trabalho de aconselhar órgãos do governo federal em assuntos científicos ganhou expressão na década de 1970, ainda durante o regime militar. Nesse período, o governo federal elaborou o primeiro e o segundo Plano Básico de Desenvolvimento

Em 1923, diretores da ABC participaram da criação da Rádio Sociedade, que passou a funcionar nas dependências da academia

Capa da primeira edição da Revista da Sociedade Brasileira de Ciências

Científico e Tecnológico e reconheceu o papel da ABC como parte central do sistema de ciência e tecnologia do país. “A academia começou a emitir pareceres e a realizar estudos para o governo. Os recursos recebidos do governo passaram a contribuir para a manutenção da ABC”, conta Eduardo Moacyr Krieger, vice-presidente da FAPESP e presidente da ABC entre 1993 e 2007. Em sua gestão, Krieger deu novo fôlego a essa missão ao criar grupos de trabalho dedicados à elaboração de estudos e simpósios. Seus resultados foram publicados em livros, para consolidar o conhecimento em torno dos temas abordados e auxiliar gestores na condução de políticas públicas. Em 2004, por exemplo, a instituição apresentou ao governo federal propostas para a reforma do ensino superior. Uma delas era privilegiar a interdisciplinaridade nas

2


fotos 1 acervo roquette-pinto/abl 2 acervo abc  3 e 4 acervo mast

grades curriculares. O documento serviu de subsídio à criação de novas universidades federais. Em 2010, outro documento abordou a questão das águas ao analisar o funcionamento e a gestão dos sistemas hídricos no país. No campo da energia, especialistas ligados à ABC elaboraram diagnóstico sobre biocombustíveis mostrando que a produção do etanol de cana-de-açúcar não prejudicaria a segurança alimentar do planeta. O último trabalho foi publicado em 2014, sobre medicina translacional, que busca acelerar a interação entre a pesquisa de laboratório e a pesquisa clínica. Atualmente, a ABC tem 960 acadêmicos em seus quadros. Desse total, 535 são membros titulares, 198, correspondentes estrangeiros e 58, associados. Outros 167 são jovens cientistas que ficam ligados à academia pelo período de cinco anos e há dois membros colaboradores. A maioria dos acadêmicos atua nas áreas de ciências biomédicas, física,

3

matemática e química. De acordo com o novo presidente da ABC, Luiz Davidovich, professor do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IF-UFRJ), a instituição pretende ampliar seu contato com a sociedade. “Vamos investir em iniciativas de comunicação científica capazes de tornar a ABC mais conhecida. Queremos estar mais presentes na internet e nas redes sociais”.

Em visita ao Observatório Nacional, em 1925, o físico Albert Einstein reuniu-se com membros da ABC

A primeira reunião do CNPq, em 1951: ABC teve papel importante na fundação da instituição

4

Para Shozo Motoyama, o trabalho de divulgação científica da ABC poderia ser mais expressivo. “Para o brasileiro em geral, a ABC ainda é uma ilustre desconhecida. A National Academy of Sciences dos Estados Unidos tem um museu aberto à população, o Marian Koshland Science Museum, em Washington, com exposições que mostram ao público a relação entre a ciência e o cotidiano”, diz Motoyama. Outro desafio da ABC foi lembrado pelo matemático Jacob Palis, professor titular do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa) e presidente da ABC entre 2007 e maio de 2016. Em sua apresentação na cerimônia do centenário no Museu do Amanhã, no Rio, ele contou que uma das atuais prioridades da instituição é encorajar a atuação das mulheres na ciência. “Queremos descobrir mulheres para serem eleitas pela academia. A presença feminina deve ser mais marcante.” Hoje, a ABC abriga 826 homens e apenas 134 mulheres. n PESQUISA FAPESP 244 | 93


resenhas

As engrenagens da crise política

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Impasses da democracia no Brasil Leonardo Avritzer Civilização Brasileira 154 páginas | R$ 29,90

94 | junho DE 2016

m Impasses da democracia no Brasil um dos mais destacados cientistas políticos brasileiros projeta seu olhar clínico sobre a crise em curso, nos ajudando a compreender por que continua tão difícil superá-la. Leonardo Avritzer examina certas marcas da constitucionalidade democrática brasileira que dão inteligência ao imbróglio. O autor destaca as virtudes dessas marcas e também seus limites, os quais puseram em questão a própria legitimidade do regime político vigente. Chamo a atenção para duas dessas marcas. A primeira é o chamado “presidencialismo de coalizão”. Trata-se de um arranjo que, devido a uma combinação peculiar do sistema de governo com o sistema eleitoral, induz o presidente da República a articular, no Congresso, uma base de apoio mais ampla do que a dos partidos que o elegeram. Tornou-se prática corrente após o impeachment de Fernando Collor, que deixou claro o quanto a “governabilidade” do sistema dependeria de um sólido apoio parlamentar. As amplas coalizões partidárias garantiram não só a estabilidade política nos anos subsequentes, mas também decisões, especialmente no campo econômico e social, que deram lastro popular ao regime em seu conjunto. Essas características positivas do arranjo, no entanto, cobraram seu preço. É que a governabilidade só se fazia refletir na capacidade decisória do sistema, mas não na reprodução, a médio e longo prazo, de sua legitimidade. Avritzer vê um jogo contraditório entre essas duas facetas do presidencialismo de coalizão, pouco observadas pela ciência política brasileira no período. O problema da legitimidade reside em que, para produzir decisões em sintonia com a vontade do Poder Executivo, o Congresso, em particular seu “centro” (o PMDB), passa a impor pressões cada vez maiores à lisura da administração pública e à consistência programática dos governos. O problema teria se aprofundado nos governos do PT. A distância ideológica entre as forças que elegeram o presidente Lula e a maioria no Congresso era muito maior do que a coalizão que havia sustentado as gestões do PSDB. Distância que só poderia ser coberta por doses maciças e contínuas de barganhas fisiológicas ou por renúncias programáticas. Ambos os remédios minavam a legitimidade do sistema político.

A segunda marca concerne às práticas participativas. Embora acolhida na Constituição de 1988, a questão da democracia participativa sempre foi mais cara ao campo da esquerda. O vínculo orgânico com os movimentos sociais, especialmente o sindical, é uma característica do PT. Ao disputar governos, o partido buscou preservar esse vínculo construindo-lhes uma institucionalidade: orçamentos participativos, conselhos para subsidiar a formulação de políticas em certas áreas da administração pública etc. No governo federal, a oposição entre os compromissos com a agenda desses movimentos e os de preservação da base de apoio no Congresso ficou patente. Todas as vezes que punha em risco os segundos, o governo via-se obrigado a enfraquecer ou sacrificar os primeiros. O resultado é que o PT acabou perdendo a influência hegemônica que exercia sobre os movimentos sociais. Primeiro, abalou-o forças de contestação mais à esquerda. Em seguida, uma contestação ainda mais massiva, porém de cunho conservador, fez com que todo o campo de esquerda, e não apenas o PT, perdesse o monopólio que detinha sobre as mobilizações e o protesto social. A marca participativa deslocou então sua ênfase para a pauta da corrupção. Esta logo se transformou em paralisia, na medida em que os órgãos de controle do Estado, judiciais e parajudiciais, aprofundavam a devassa de casos concretos de corrupção. De quebra, porém, seu encaminhamento expunha a face mais vulnerável e odiosa não apenas de um governo ou um partido, mas de todo o sistema político. Eis que o presidencialismo de coalizão se esgarça, sem um arranjo praticável alternativo. A análise desenvolvida neste livro não esconde sua intenção polêmica. Ocorre que ali se expõem as fragilidades de um certo modo de fazer política, mas também os embaraços de uma ciência política que até então observava com irreservado otimismo – e, portanto, com pouco gume crítico – o movimento de suas engrenagens. Ao inquirir as lições da crise, Avritzer convida também a um reexame dos pontos de vista predominantes em sua própria área de atuação acadêmica. Cicero Araujo é professor titular de Teoria Política do Departamento de Ciência Política da FFLCH-USP.

eduardo cesar

Cicero Araujo


A senhora da história Angela Alonso

G

Brasil: História, textos e contextos Emília Viotti da Costa Unesp 352 páginas | R$ 64,00

rande dama da historiografia nacional, Emília Viotti fez parte da carreira no exílio. Desse dissabor que o regime militar lhe impôs ela fala em duas entrevistas de arremate em Brasil: História, textos e contextos. Aí emerge como historiadora pioneira, estudante contestadora, docente engajada. Carreira de mulher dona do seu nariz, quando isso era desusado. E construída em par com o papel de mãe, conciliação problemática até hoje e quase impraticável no mundo masculino de outrora. Nos anos 1940, quando ingressou na Universidade de São Paulo, os professores eram senhores. Nos 1970, contratada pela Universidade Yale, nos Estados Unidos, topou com clubes exclusivos para gentlemen. O universo de machos jamais a intimidou. Ao contrário. Sua ascensão célere se coroou com livre-docência sobre o escravismo brasileiro e sua crise, em 1964. O reconhecimento veio no convite para a aula inaugural da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP noutro ano fatídico, 1968. Ao que então disse sobre o projeto universitário do regime militar, Viotti tributa sua aposentadoria compulsória – um dos talentos que a ditadura expeliu dos campi e do país. O golpe cortou vida e carreira. Da inflexão derivaram as purgações de imigrante, percalços de língua e costumes que, entretanto, não a impediram de galgar à posição cobiçada de professora da Universidade Yale. Aposentada desse Olimpo, Viotti retoma o fio de sua meada. Esta coletânea de ensaios, arranjados sem sequência óbvia, com variadas datas (dos anos 1960 até hoje) e temáticas (da cultura à economia). Eles se amarram por remissões mútuas e à trajetória da autora e na recorrência de tópicas, que atravessam o livro. Biografia é uma delas. Comparece no texto clássico sobre José Bonifácio, no qual vida e ações do homem se tecem com as da nação. O interesse pelos atores reaparece ao abordar Getúlio Vargas. Nos dois casos, líderes políticos fazem a história, mas não a fazem como querem. Suas estratégias e decisões são reconstruídas no esquadro de possibilidades e limites de suas sociedades, nos seus tempos. Vários ensaios do livro tramam biografia e contexto. O esquadro reassoma nos capítulos sobre intelectuais e ideias. Em um, que discute Raízes do

Brasil, sobra admiração por Sérgio Buarque de Holanda, a despeito da dissonância entre o ensaísmo virtuosístico dele e a preferência dela por um estilo seco, analítico. Noutro, de 1967, surge a tese, desenvolvida por Roberto Schwarz, das vicissitudes das ideias liberais entre nós: “Quando iniciei minha tese, queria entender como foi possível conciliar liberalismo e escravidão”, diz à página 293. E há ainda texto surpreendente que problematiza o ideário romântico e a questão de gênero no Império do Brasil. Outra linha a atravessar os escritos é a orientação marxista, à qual a autora segue fiel. É o que arma Da senzala à colônia, de merecida fama, reavaliado aqui em ensaio autorreflexivo, mas que acaba nos dando o contexto historiográfico da produção de um clássico da historiografia. A temática da abolição gruda em vários artigos, ao falar do Partido Republicano Paulista ou no comentário ao trabalho de George Reid Andrews sobre o pós1888. Viotti aí organiza a literatura que a sucedeu e dialoga com as novas gerações de historiadores que ora aprofundaram, ora se desviaram da trilha que abriu. Reconhece avanços, mas aponta limites das abordagens que trouxeram a cultura ao primeiro plano. De sua parte, segue atenta à dinâmica capitalista. Seu olho pende para os processos estruturais que constrangem os atores. São constantes as conexões entre política e economia e, em ensaios recentes, entre nacional e global. Terceiro fio do livro é a política. Está por toda parte, na escolha de estadistas como assunto e na reconstrução de conjunturas brasileiras cruciais – Independência, Regência, Império, movimento republicano, Estado Novo, Revolução de 1932. Movimento que a leva à história do presente, discutindo o 11 de setembro, o Fórum Social de Porto Alegre, o neoliberalismo, os protestos de 2013. Os ensaios provam a versatilidade de Viotti. Pouquíssimos trafegariam com igual desenvoltura por tantos campos e tempos. Seu trabalho lhe assegura posto de honra na historiografia brasileira. Uma senhora historiadora.

Angela Alonso é professora do Departamento de Sociologia da USP e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). É autora, entre outros, de Flores, votos e balas: O movimento abolicionista brasileiro (Companhia das Letras, 2015).

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carreiras

Artigos Científicos

Para publicar com critério Escolher a revista científica mais apropriada é importante para aumentar o impacto dos resultados das pesquisas Os artigos científicos constituem o principal caminho para a exposição, pelos pesquisadores, dos resultados de estudos. O reconhecimento do trabalho pelos pares é essencial para a construção de uma carreira científica, o que requer a divulgação adequada das pesquisas. Nos últimos anos, a pressão para que se publique a todo custo foi sintetizada no lema “publique ou pereça”, induzindo à publicação todo e qualquer resultado. Em um ambiente acadêmico cada vez mais competitivo, diversos pesquisadores foram de certa forma induzidos a pensar que é preciso publicar muito. Esse cenário parece estar mudando. O que se espera hoje é que eles publiquem um número razoável de trabalhos, mas de qualidade, 96 | junho DE 2016

apresentando resultados que sejam reconhecidos por suas contribuições. A escolha da revista mais apropriada para divulgar uma pesquisa é, assim, importante para que o estudo seja lido pelas pessoas certas, aumentando o impacto dos resultados. A maioria dos cientistas experientes sabe quais são as melhores revistas da sua área. A dificuldade maior recai sobre os pesquisadores mais jovens, com pouca experiência e que por vezes selecionam as revistas de acordo com a chance de seus artigos serem aceitos, e não pelo seu prestígio e relevância para a comunidade científica de sua especialidade. Um pré-requisito básico para a escolha de uma revista científica, segundo especialistas ouvidos, seria o próprio conteúdo que elas

publicam. O contato diário com a literatura científica aos poucos permite ao pesquisador perceber que algumas revistas publicam trabalhos consistentes e interessantes, enquanto outras, não. “Essa deve ser a primeira triagem, sob o julgamento de cada cientista segundo seus próprios critérios do que é ciência de qualidade”, diz Gilson Volpato, do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (IB-Unesp), em Botucatu, e autor de livros sobre redação científica. Do ponto de vista prático, um aspecto importante na hora de escolher o periódico é que ele esteja indexado em bases de dados como Web of Science, da empresa Thomson Reuters, ou Scopus e Mendeley, ambas da editora Elsevier. Segundo Rogério Meneghini, coordenador


Caminhos para a publicação Algumas dicas para encontrar a revista mais apropriada para sua pesquisa e garantir que ela seja lida pelas pessoas certas

1

A avaliação do conteúdo das revistas científicas segundo o referencial de ciência de cada pesquisador, a partir de

seu contato diário com a literatura científica, pode ajudar na identificação dos periódicos que costumam publicar trabalhos mais consistentes e interessantes.

2

As revistas de maior impacto costumam ser internacionais e publicam artigos de várias áreas, como a Science e a Nature. No entanto, a publicação em revistas cujo

conteúdo pode ser lido gratuitamente, como as do grupo PLOS, pode ajudar na divulgação internacional de um artigo científico.

3

Privilegie revistas científicas que estejam indexadas em base de dados internacionais como Web of

Science, Scopus ou Mendeley. Para uma revista científica, a indexação significa reconhecimento da qualidade dos padrões

ilustrações  zé vicente

gráficos e dos artigos que publica.

científico da biblioteca virtual SciELO Brasil, para uma revista científica, a indexação significa reconhecimento, entre outras coisas, da qualidade dos padrões gráficos e dos artigos que ela publica. Os critérios para que elas sejam indexadas costumam ser rigorosos – ser indexada no Web of Science é muito mais difícil do que no Scopus. Para atender às exigências dessas bases de dados, as revistas dispõem de revisores, membros da própria comunidade científica, que qualificam e credenciam os artigos, pedindo detalhes, explicações ou experimentos complementares antes de darem um parecer favorável à publicação do estudo. O rigor na avaliação dos artigos pretende assegurar que as revistas publiquem estudos de qualidade, que sejam lidos e usados em

outros trabalhos, elevando o fator de impacto da publicação, o número médio de citações que os artigos de uma revista recebe em um período. Nas últimas décadas, o número de citações consagrou-se como um parâmetro universal para avaliar a relevância e o impacto da produção científica. Via de regra, quanto maior o número de citações de uma revista, maior também será o número de artigos submetidos a ela, e mais seletiva ela será. Não há consenso sobre até que ponto o fator de impacto deve ser levado em conta. Para Meneghini, esse índice constitui um critério importante que deve ser considerado na hora de escolher a revista científica. Volpato, porém, ressalta que é preciso ser cauteloso quanto à avaliação do fator de impacto, uma vez que

esse sistema pode criar condições favoráveis à má conduta científica. “Há casos de pesquisadores que se autocitam, revisores e editores que forçam a citação de determinados artigos, o que denota falta de seriedade científica de autores que citam por citar, sem entender o real papel de uma citação.” Para José Roberto Arruda, da Faculdade de Engenharia Mecânica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador-adjunto da área de ciências exatas e engenharias da FAPESP, alguns pesquisadores privilegiam publicações com alto fator de impacto, mas com pouca relevância na própria área. “Não se deve escolher a revista com base no fator de impacto, apenas”, diz. Para ele, cada área tem suas características de desempenho, inclusive de citações. “O pesquisador deve tentar publicar em revistas nas quais costuma encontrar os artigos que lhe são úteis.” A bióloga Maria Tereza Thomé, do IB-Unesp de Rio Claro, segue o mesmo raciocínio. “Prefiro publicar em uma revista específica da minha área, mesmo que ela tenha um fator de impacto menor”, diz. As revistas de maior impacto costumam ser internacionais e publicam artigos de várias áreas, como as revistas Nature e Science. No entanto, a publicação em revistas de acesso aberto, como as do grupo PLOS, pode ajudar na divulgação internacional de um artigo, segundo Arruda. “Quanto mais fácil for para o leitor obter o estudo, melhor”, comenta. Muitos pesquisadores de países em desenvolvimento não podem pagar para ter acesso a artigos publicados em revistas com modelo de assinatura, o que diminui a visibilidade do trabalho. “Muitas agências de financiamento custeiam e incentivam a publicação de artigos científicos em publicações de acesso aberto.” De modo geral, ele conclui, o pesquisador precisa ter clareza quanto ao público que pretende alcançar com sua pesquisa e, então, traçar as estratégias para encontrar a revista certa para seu estudo. n Rodrigo de Oliveira Andrade PESQUISA FAPESP 244 | 97


Foi sancionada em abril a lei que regulamenta a criação e o funcionamento das empresas juniores, instituições criadas por estudantes universitários com o propósito de aplicar na prática, com clientes reais, o conhecimento adquirido em sala de aula. A partir de agora, toda empresa júnior deve ser formada apenas por estudantes de graduação. Eles têm de estar matriculados em instituições de ensino superior e devem exercer trabalho voluntário sem remuneração na empresa júnior. Em contrapartida, a lei garante que essas empresas não percam o caráter de associações civis sem fins lucrativos e apenas realizem projetos que contribuam para o desenvolvimento acadêmico e profissional de seus membros, amparando juridicamente esse tipo de iniciativa e assegurando imunidade tributária. A lei favorece ainda o relacionamento das empresas juniores com as universidades, e cria regras e prevê benefícios, como a cessão de espaço físico gratuito para o funcionamento das empresas nas universidades e a inclusão de atividades no conteúdo acadêmico do curso ao qual pertencem. Em 2004, existiam no país 119 empresas e 1.417 empresários juniores (ver Pesquisa FAPESP nº 212). Hoje são 1.262 empresas desse tipo. No ano passado, as empresas juniores realizaram cerca de 2.700 projetos e consultorias com a participação de mais de 11 mil universitários. Os serviços, em geral, foram prestados a pequenas e microempresas que não têm condições de contratar empresas do mercado. O faturamento é usado na infraestrutura e em cursos, eventos e conferências dos membros das empresas. Leia a lei na íntegra em bit.ly/1Y2VYWk n R.O.A. 98 | junho DE 2016

perfil

Pelos jardins do mundo Após 23 anos entre Londres e Cingapura, a botânica Daniela Zappi volta ao Brasil para trabalhar no Jardim Botânico do Rio Em 1986, pouco antes de começar o mestrado na Universidade de São Paulo (USP), a botânica Daniela Zappi ganhou de presente de sua orientadora um par de luvas de couro. “Fui estudar cactos”, lembra. Então com 21 anos de idade, ela embarcou para Minas Gerais para coletar e estudar espécies de cactáceas nos campos da cadeia do Espinhaço, região montanhosa que ocupa parte do Brasil central. Nesse período, conheceu o botânico inglês Nigel Taylor, com quem mais tarde se casou. As luvas foram úteis durante esse período, mas tiveram de ser aposentadas. Em 1992, após concluir o doutorado, também na USP, e trabalhar como professora no curso de graduação em biologia na Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro, Daniela mudou-se para a Inglaterra acompanhando o marido, à época pesquisador do Jardim Botânico Real de Kew, em Londres. Não demorou muito para a botânica paulista ser contratada pelo Jardim Botânico Real, no qual ocupou cargos de pesquisa e de chefia nas áreas de taxonomia e sistemática neotropical. “Meu objetivo era desenvolver estratégias e metodologias para promover a conservação de espécies brasileiras por meio de informações taxonômicas”, diz. Daniela iniciou e supervisionou a digitalização de coleções do herbário da instituição, que conta com inúmeras plantas coletadas

no Brasil e depositadas em seu acervo. No ano passado, esse programa de repatriamento de informações sobre plantas brasileiras liberou para acesso público on-line cerca de 100 mil imagens de espécies nativas que estão no jardim botânico inglês (ver Pesquisa FAPESP nº 229). Enquanto esteve na Inglaterra, Daniela não deixou de trabalhar em projetos com pesquisadores brasileiros, entre eles botânicos do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Em 2011, a pesquisadora mudou-se para a Ásia, novamente acompanhando o marido, que havia se tornado diretor do Jardim Botânico de Cingapura, um importante centro de investigação e conservação de plantas. Daniela passou três anos trabalhando nos Jardins da Baía, em Cingapura, onde foi responsável por projetos de educação, interpretação e pesquisa sobre plantas tropicais. Em 2014, ela voltou a Kew, agora como pesquisadora no Departamento de Conservação. No ano seguinte, mais de duas décadas após deixar o Brasil, Daniela foi nomeada diretora de pesquisa no Jardim Botânico do Rio. Aos 51 anos, ela se diz motivada para voltar ao país. “Vamos planejar as estratégias de pesquisa científica para os próximos cinco anos”, explica. Os desafios vão além. Segundo ela, a parte educativa precisa ser afinada com o conhecimento gerado pela instituição e o corpo de pesquisadores precisa ser renovado. “Sinto-me mais segura e preparada para contribuir e desenvolver pesquisa no Brasil.” Desta vez, será seu marido que a acompanhará no retorno ao país. n R.O.A

arquivo pessoal

Lei regulamenta empresas juniores no Brasil


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