Povos de Lagoa Santa

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Pesquisa FAPESP setembro de 2016

Exposição de esculturas e pinturas resgata o trabalho do médico Osório Cesar no hospital Juquery setembro de 2016  www.revistapesquisa.fapesp.br

Centros de pesquisa aplicada e bolsas no exterior são destaque no relatório 2015 da FAPESP Trabalhos de Sylvio Ferraz Mello ajudaram a entender a órbita de asteroides e planetas Nanocircuito pode atuar como processador e memória de micro Bonecos e modelos de partes do corpo facilitam o ensino e o planejamento de cirurgias

Povos de Lagoa Santa n.247

Rituais funerários revelam cultura de 10 mil a 8 mil anos atrás

> neurocientistas investigam a morte súbita de pessoas com epilepsia


ESTIVEMOS TRABALHANDO JUNTOS DESDE O COMEÇO

É HORA DE NOS CONHECERMOS Nós somos os cientistas, tecnólogos e líderes empresariais por trás do CAS e de ferramentas como SciFinder® e STN®. Há mais de um século contribuímos para os grandes avanços científicos, mas é o futuro que nos motiva. Estamos sempre buscando novos conhecimentos. Juntos, faremos grandes descobertas. Descubra o CAS | www.cas.org


fotolab

A beleza do conhecimento em imagens

Sua pesquisa rende fotos bonitas? Mande para imagempesquisa@fapesp.br Seu trabalho poderá ser publicado na revista.

Um verme luminoso Soterrados na areia e escondidos em tubos feitos por eles mesmos, de um material que parece um pergaminho, os poliquetas da espécie Chaetopterus variopedatus têm uma estratégia curiosa em caso de emergência: soltam um muco pegajoso e emitem uma luz azul. Falta confirmar que a reação sirva como defesa desses animais com cerca de 10 centímetros de comprimento, um pitéu macio para muitos peixes. “Quando entendermos a parte química, poderemos explicar a função ecológica do comportamento”, prevê o químico Anderson Garbuglio de Oliveira, que estuda o processo responsável pela bioluminescência, incomum em outras espécies desse tipo de organismo.

Imagem enviada por Anderson Garbuglio de Oliveira, professor do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo

PESQUISA FAPESP 247 | 3


setembro  247

66 Energia Células solares orgânicas começam a ser produzidas no Brasil CAPA 16 Sepultamentos humanos em Lagoa Santa (MG) revelam costumes entre 10 mil e 8 mil anos atrás

22 Ameríndios capturavam

tubarões e corvinas há 5 mil anos na costa do Rio de Janeiro

ENTREVISTA 26 Sylvio Ferraz Mello Estudos do astrofísico ajudaram a entender características e anomalias na órbita de asteroides

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA 32 Instituição UFABC completa 10 anos com 15 mil alunos e indicadores de pesquisa consistentes 36 Indicadores Relatório de atividades 2015 da FAPESP destaca criação de centros de pesquisa aplicada e bolsas no exterior 40 Bioengenharia Clube de estudantes prepara equipes para participar de disputa internacional em biologia sintética

CIÊNCIA 42 Neurologia Grupos buscam as causas de óbitos súbitos e inesperados de pessoas com epilepsia 46 Saúde pública Número de acidentes com escorpiões cresceu quase 600% em 15 anos foto da capa  andré strauss

50 Zoologia Desmatamento promove encontro entre espécies distintas de raposa e propicia surgimento de híbridos 52 Nanotecnologia Pesquisadores tentam mostrar qual mecanismo está por trás do memoristor, um componente eletrônico 56 Fotônica Luz de intensidade variável revela conexões inesperadas entre áreas da física 59 Física Simulações em computador ajudam a entender a flexibilidade dos cristais de hélio

TECNOLOGIA 62 Engenharia biomédica Bonecos e reproduções de partes do corpo humano produzidos em impressoras 3D auxiliam no planejamento de cirurgias

70 Pesquisa empresarial Tecnologia da Atech para gestão de tráfego aéreo aumenta a segurança de voos no país 74 Indústria do petróleo Instituições de pesquisa em parceria com a Petrobras desenvolvem equipamentos para o pré-sal 76 Entomologia Armadilha captura insetos e identifica a espécie por meio do batimento das asas

HUMANIDADES 78 Saúde mental Esculturas e pinturas resgatam o trabalho do médico Osório Cesar, que valorizou a produção artística em um hospital psiquiátrico 84 Planejamento familiar Estudo da atuação de uma clínica de assistência à mulher recupera a história dos direitos reprodutivos 87 Educação Pesquisa relaciona reflexões de Hannah Arendt sobre o ensino com conceitos de sua obra política seçÕes 3 Fotolab 5 Cartas 6 On-line 7 Carta da editora 8 Dados e projetos 9 Boas práticas 10 Estratégias 12 Tecnociência 90 Memória 92 Resenha 94 Carreiras 98 Classificados


cartas

contatos Internet revistapesquisa.fapesp.br redacao@fapesp.br PesquisaFapesp PesquisaFapesp pesquisa_fapesp

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Anibal Faúndes

Parabéns pela entrevista com Anibal Faúndes (edição 245). Que personalidade! Em uma cultura na qual o machismo ainda predomina, este homem de 85 anos reconhece publicamente o quanto uma mulher – sua primeira esposa, a socióloga Ellen Hardy – mudou seu ponto de vista sobre as próprias mulheres, influenciando profundamente o direcionamento de sua carreira. Que tenhamos outros “Anibals” na nossa comunidade científica.

Opiniões ou sugestões

Fátima Nunes

Por e-mail:

EACH-USP

cartas@fapesp.br

São Paulo, SP

Pelo correio: Rua Joaquim Antunes, 727 – 10º andar CEP 05415-012, São Paulo, SP

Carro híbrido

Por e-mail: publicidade@fapesp.br

Com respeito à reportagem “Apresentado protótipo de carro movido a etanol e a célula a combustível”, publicada no site de Pesquisa FAPESP em 5 de agosto, achei muito curioso, para não dizer negativo, que a montadora Nissan seja referenciada no parágrafo introdutório apenas como “uma fabricante japonesa de veículos”. O nome Nissan só aparece no quinto parágrafo da reportagem, obviamente de modo proposital. Veículos que procuram respeitar o ambiente, como os elétricos ou híbridos, não recebem incentivos dos governos federal e estadual. O que se viu na reportagem é uma atitude que parece algo envergonhada em apoiar uma pesquisa em que a iniciativa privada está presente.

Por telefone: (11) 3087-4212

Antonio Mario Magalhães

Assinaturas, renovação e mudança de endereço Envie um e-mail para assinaturaspesquisa@fapesp.br ou ligue para (11) 3087-4237, de segunda a sexta, das 9h às 19h Para anunciar  Contate Júlio César Ferreira na Mídia Office Por e-mail: julinho@midiaoffice.com.br Por telefone: (11) 99222-4497 Classificados

a medicina trouxe, estão, ironicamente, sendo as mais empenhadas em tirar dos próprios filhos a segurança que tiveram. Caetano Julio Neto

Fui uma das proprietárias de um berçário classe “AA” e pude constatar o que Guido Carlos Levi diz no vídeo sobre vacinas. Havia um grande número de mães “naturebas” que não vacinavam seus filhos, mas que brigavam para que a alimentação que servíamos fosse estritamente orgânica. Maria Amelia Nogueira

Acho que a melhor forma como a história do acidente do rio Doce já foi contada está no vídeo “Open science: O futuro da ciência e o desastre de Mariana”. Parabéns a toda a equipe pelo trabalho. Dante Pavan

Correções

Na tabela “A divisão dos orçamentos”, que consta da reportagem “Os impactos do investimento” (edição 246), o subtítulo correto é “Desembolso da FAPESP por objetivo de fomento, em 2015, em R$ mil”, e não milhões como foi publicado. Veja abaixo a versão correta da tabela. Desembolso da FAPESP por objetivo de fomento, em 2015, em R$ mil*

IAG/USP

Edições anteriores

São Paulo, SP

Preço atual de capa

Xylella

acrescido do custo de postagem. Peça pelo e-mail: clair@fapesp.br Licenciamento de conteúdo Adquira os direitos de

Precisamos cobrar investimentos em ciência, tecnologia e inovação. Como no caso do sequenciamento da bactéria Xylella fastidiosa, os resultados levam tempo para aparecer, mas vale a pena (“Ousadia recompensada”, edição 246).

*Não inclui desembolsos com infraestrutura de pesquisa, que foram de R$ 93.813.340

Diferentemente do que afirmamos na nota “O supertelescópio chinês” (edição 246), o radiotelescópio Fast não será o maior do mundo. O maior é o Ratan-600, com um espelho de 576 metros de diâ­ metro, em funcionamento na Rússia.

Claudia Lage

reprodução de textos e imagens de Pesquisa FAPESP. Por e-mail: mpiliadis@fapesp.br Por telefone: (11) 3087-4212

Vídeos

O vídeo com Guido Carlos Levi, sobre vacinação, mostra como as últimas duas gerações, mimadas pelos confortos que

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar – CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza. Via facebook.com/PesquisaFapesp

PESQUISA FAPESP 247 | 5


w w w . r e v i s ta p e s q u i s a . f a p e s p. b r

No site de Pesquisa Fapesp estão disponíveis todos os textos da revista em português, inglês e espanhol, além de conteúdo exclusivo

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Galeria de imagens

boas práticas

O espectro das imagens duplicadas

381 curtidas 20 comentários 169 compartilhamentos

Exclusivo no site

Rádio

pode continuar ativo no organismo

Bióloga Erika Hingst-Zaher fala sobre o trabalho colaborativo entre pesquisadores e observadores de aves

dos bebês por semanas após o

bit.ly/2bOF7mi

x Em meio à relativa calmaria que o inverno impôs à epidemia de zika, uma notícia deixou todos em alerta: o vírus

Confira nas fotos de Eduardo Cesar o contraste entre áreas verdes e áridas da cidade de São Paulo  bit.ly/2bCFLTr

nascimento. Em agosto, pesquisadores de São Paulo publicaram no New England Journal of Medicine a descrição do caso de um bebê do sexo

Vídeos do mês

youtube.com/user/PesquisaFAPESP

masculino que foi infectado pelo vírus durante a gestação. Seu organismo continuou a apresentar o zika até o

com esse tipo de câncer, eles acharam

Infectologista Guido Levi expõe causas e consequências da recusa à vacinação no Brasil

uma correlação entre a baixa

bit.ly/2c8qkna

67º dia após o parto bit.ly/2bzrkPi

x Pesquisadores identificaram um mecanismo molecular que pode ajudar na obtenção de um tratamento para

Assista ao vídeo

o câncer de pulmão de células não pequenas. Ao analisar 490 indivíduos

expressão do fator de transcrição C/EBPα, associado à supressão de

baixa expressão do C/EBPα, conforme

Conheça o trabalho de análise da contaminação do rio Doce feito pelo Grupo Independente para Análise do Impacto Ambiental

descreveram em um estudo na Science

bit.ly/2bXxKMl

tumores, e a superexpressão da BMI1, proteína associada à proliferação celular. Um composto em fase de testes, administrado em camundongos com câncer de pulmão induzido, inibiu a expressão da BMI1 e interrompeu o crescimento do tumor nos animais com

Translational Medicine bit.ly/2bz1hLs 6 | setembro DE 2016

Assista ao vídeo

ilustração daniel bueno

on-line


fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo

carta da editora

José Goldemberg Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior Carmino Antonio de Souza, Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, João Fernando Gomes de Oliveira, joão grandino rodas, José Goldemberg, Marilza Vieira Cunha Rudge, José de Souza Martins, julio cezar durigan, Pedro Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski, Suely Vilela Sampaio Conselho Técnico-Administrativo

Visita à pré-história brasileira Alexandra Ozorio de Almeida |

diretora de redação

Carlos américo pacheco Diretor-presidente Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico Joaquim J. de Camargo Engler Diretor Administrativo

issn 1519-8774

Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Anamaria Aranha Camargo, Ana Maria Fonseca Almeida, Carlos Américo Pacheco, Carlos Eduardo Negrão, Fabio Kon, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Joaquim J. de Camargo Engler, José Goldemberg, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Lucio Angnes, Marie-Anne Van Sluys, Maria Julia Manso Alves, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner Caradori do Amaral, Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos diretora de redação Alexandra Ozorio de Almeida editor-chefe Neldson Marcolin Editores Fabrício Marques (Política), Márcio Ferrari (Humanidades), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência); Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores espe­ciais); Bruno de Pierro (Editor-assistente) revisão Alexandre Oliveira e Margô Negro arte Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos (Editora de infografia), Júlia Cherem Rodrigues e Maria Cecilia Felli (Assistentes) fotógrafos Eduardo Cesar, Léo Ramos Mídias eletrônicas Fabrício Marques (Coordenador) Internet Pesquisa FAPESP online Maria Guimarães (Editora) Rodrigo de Oliveira Andrade (Repórter) Jayne Oliveira (Redatora) Renata Oliveira do Prado (Mídias sociais) Rádio Pesquisa Brasil Biancamaria Binazzi (Produtora) Colaboradores Daniel Almeida, Daniel Bueno, Evanildo da Silveira, Everton Lopes, Fabio Otubo, Igor Zolnerkevic, Larissa Ribeiro, Marcelo Cipis, Paulo Lumatti, Veridiana Scarpelli, Valter Rodrigues, Yuri Vasconcelos

É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização Para falar com a redação (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br Para anunciar Midia Office - Júlio César Ferreira (11) 99222-4497 julinho@midiaoffice.com.br Classificados: (11) 3087-4212 publicidade@fapesp.br Para assinar (11) 3087-4237 assinaturaspesquisa@fapesp.br Tiragem 29.600 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo

O

fascínio sobre a morte é possivelmente uma característica atemporal da humanidade. Uma maneira de o homem lidar com a própria finitude é entender como as gerações anteriores cuidaram de seus mortos, o que por sua vez significa entender como viviam e enxergavam o mundo. Pesquisas recentes baseadas em escavações ainda em andamento no sítio arqueológico da Lapa do Santo, na região de Lagoa Santa, MG, oferecem um amplo retrato sobre os costumes funerários dos povos que viveram na região entre 12 mil e 8 mil anos atrás. O período, que antes era considerado homogêneo em termos de ocupação humana, mostrou-se dividido em três culturas bastante distintas. Cada uma apresentou padrões de sepultamento complexos, com rituais ligados à morte que seguiam regras precisas, mostra a reportagem de capa desta edição (página 16). A riqueza arqueológica do conjunto de sítios de Lagoa Santa tem sido estudada para responder a perguntas diversas, formuladas no decorrer dos anos. O projeto multidisciplinar hoje em andamento na Lapa do Santo procura contribuir para a explicação dos modos de vida desses povos. O potencial da região é conhecido desde o século XIX, quando o naturalista dinamarquês Peter Lund descobriu ossos humanos associados aos de grandes animais. O problema de então dizia respeito à possível coexistência dos hominídeos com a megafauna que habitou o continente. Depois, os resultados das escavações foram usados para tentar entender o processo de povoamento da América. O crânio de Luzia, de aproximadamente 11 mil anos atrás, escavado na Lapa Vermelha na década de 1970 por uma missão franco-brasileira, permitiu ao bioantropólogo da USP Walter Ne-

ves propor que o continente teria sido ocupado não por uma, mas sim por duas levas distintas: uma com morfologia mais parecida com a dos africanos e aborígenes australianos, e outra parecida com a dos asiáticos, dos quais descendem os índios de hoje. O principal interesse da arqueologia é a cultura material. Como exemplo, a diversidade de adornos em peças de cerâmica escavadas revela muito sobre a vida de seus donos. As variadas formas de viver resultam em modos diferentes de ver o mundo, por sua vez representadas nos ritos e nos objetos, a principal evidência dos povos antigos a que temos acesso. Nos trópicos, artefatos orgânicos, como de palha e madeira, podem não sobreviver para se tornar objeto de estudo. No sítio da Lapa do Santo, os complexos ritos de sepultamento encontrados não estão acompanhados por adornos ou objetos sofisticados. Sofreram decomposição ou nunca existiram? É uma de muitas perguntas que as equipes atuais e futuras procurarão responder. Foram objetos e restos de comida deixados por antigos habitantes do litoral fluminense em um período um pouco mais recente (5 mil anos) que permitiram a pesquisadores entender os hábitos alimentares desses ameríndios. Os sambaquis, vestígios arqueológicos também relacionados com práticas funerárias, são registro da dieta daqueles habitantes. Pesquisa reportada à página 22 mostra que esses pescadores-coletores pré-coloniais tinham uma atividade de coleta de peixes muito desenvolvida e diversificada. Os indícios da pesca excessiva ou de espécimes muito jovens de peixes como corvinas e tubarões sugerem que a prática possa ter representado a primeira ameaça significativa aos estoques naturais dessas populações marítimas. PESQUISA FAPESP 247 | 7


Dados e projetos Temáticos e Jovens Pesquisadores recentes Projetos contratados pela FAPESP em julho e agosto de 2016 Instituição: Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/USP Processo: 2015/18031-5 Vigência: 01/08/2016 a 31/07/2021

temáticos  Interação Xylella fastidiosa-inseto-vetor-planta hospedeira e abordagens para o controle da clorose variegada dos citros e cancro cítrico Pesquisadora responsável: Alessandra Alves de Souza Instituição: Instituto Agronômico de Campinas/SAASP Processo: 2013/10957-0 Vigência: 01/11/2016 a 31/10/2021

 Controle luminoso e hormonal da qualidade nutricional em Solanum lycopersicum Pesquisadora responsável: Maria Magdalena Rossi Instituição: Instituto de Biociências/USP Processo: 2016/01128-9 Vigência: 01/08/2016 a 31/07/2021

 Mudbelts do Sul e Sudeste do Brasil: Implicações sobre as influências antrópicas no ambiente marinho Pesquisadora responsável: Marcia Caruso Bicego Instituição: Instituto Oceanográfico/USP Processo: 2015/17763-2 Vigência: 01/08/2016 a 31/07/2021

 O sistema Terra e a evolução da vida durante o Neoproterozoico Pesquisador responsável: Ricardo Ivan Ferreira da Trindade Instituição: IAG/USP Processo: 2016/06114-6 Vigência: 01/08/2016 a 31/07/2021

 Estudo da associação de aspectos clínicos, funcionais e de neuroimagem em mulheres com migrânea Pesquisadora responsável: Debora Bevilaqua Grossi

JOVENS PESQUISADORES  Desenvolvimento e processamento de compósito de al2o3-zro2 para

próteses monolíticas CAD/CAM: Efeito do envelhecimento na resistência à flexão biaxial Pesquisador responsável: Estevam Augusto Bonfante Instituição: FO Bauru/USP Processo: 2012/19078-7 Vigência: 01/08/2016 a 31/07/2020

 Vulnerabilidade de biomas brasileiros ao aquecimento climático (FAPESP-Nerc-Biome) Pesquisadora responsável: Immaculada Oliveras Menor Instituição: IB/Unicamp Processo: 2015/50517-5 Vigência: 01/11/2016 a 31/10/2019

 Mecanismos de egresso em P. falciparum: Identificação de novos alvos terapêuticos Pesquisador responsável: Mauro Ferreira de Azevedo Instituição: ISS/Unifesp Processo: 2015/19316-3 Vigência: 01/08/2016 a 31/07/2020

 Papel de galectina-3 na infecção por Cryptococcus neoformans Pesquisador responsável: Fausto Bruno dos Reis Almeida Instituição: FMRP/USP Processo: 2016/03322-7 Vigência: 01/07/2016 a 30/06/2020  Transcriptômica para identificação de genes de interesse comercial em cana-de-açúcar (Bioen) Pesquisador responsável: Gabriel Rodrigues Alves Margarido Instituição: Esalq/USP Processo: 2015/22993-7 Vigência: 01/08/2016 a 31/07/2020

 Física além do Modelo Padrão: Desafios teoréticos e fenomenológicos Pesquisador responsável: Enrico Bertuzzo Instituição: IF/USP Processo: 2015/25884-4 Vigência: 01/08/2016 a 31/07/2020

De onde vêm os coordenadores dos projetos Pipe Instituições líderes na formação acadêmica dos responsáveis pelos projetos do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP entre 1997 e 2014 Graduação

mestrado

doutorado

n USP  n Unicamp  n Unesp

n USP  n Unicamp  n Unesp

n USP  n Unicamp  n UFSCar

n UFSCar  n ITA  n Outras

n UFSCar  n ITA  n Outras

n Unesp  n Unifesp  n Outras

11 119 224

10%

31

265 51

83

65 8%

73 9%

41%

8%

14%

7%

285

39

52%

7%

58 9%

77

38

4%

41%

4%

19%

26

28%

326

2%

99 120

18%

19%

Base pesquisada: 802 coordenadores com dados sobre a formação acadêmica, Pipe, 1997-2014. Todos com título de graduação, 639 (79,7%) com mestrado e 549 (68,5%) com doutorado. Fontes: Elaboração da Coordenação de Indicadores/Fapesp a partir de dados coletados por M. A. Loureiro (aluno de pós-graduação, DPCT/IG/Unicamp) a partir das bases: Fapesp/Biblioteca Virtual e Currículo Lattes/CNPq/MCTIC.

8 | setembro DE 2016


Boas práticas

ilustração  veridiana scarpelli

Falta de cuidado em artigos de revisão Os artigos de revisão, aqueles trabalhos científicos que organizam dados da literatura existente em uma determinada área do conhecimento, nem sempre são escritos com o cuidado necessário para evitar a citação de papers com dados incorretos ou com suspeita de má conduta. A conclusão é de um estudo realizado por pesquisadores da Suíça, França e Alemanha, publicado pela revista BMJ Open. Foram analisados 118 artigos de revisão publicados em 2013 em quatro periódicos da área médica: Annals of Internal Medicine, The British Medical Journal, The Journal of the American Medical Association e The Lancet. Os pesquisadores investigaram se os autores haviam seguido seis procedimentos importantes para prevenir a inclusão de dados equivocados ou fraudados nos artigos de revisão. A conclusão é que em apenas metade dos trabalhos os autores adotaram três ou mais desses procedimentos capazes de detectar problemas. Os procedimentos são os seguintes: cotejar resultados de papers citados com dados brutos de testes clínicos; entrar em contato com os responsáveis pelos artigos para ter acesso a resultados não publicados; avaliar se há publicações duplicadas sobre o mesmo achado; verificar se houve interferência dos patrocinadores nos artigos; analisar possíveis conflitos de interesse; e checar se as pesquisas descritas nos papers passaram por comitês de ética. Para verificar se as recomendações foram adotadas, os pesquisadores analisaram os artigos de revisão, em busca de relatos dos métodos utilizados, e entraram em contato com os autores para fazer perguntas adicionais.

O estudo observou que 11 dos 118 trabalhos de revisão não levaram em consideração nenhum dos procedimentos. Em 79 (66%), seus autores buscaram dados brutos; em 73 (62%), fez-se contato com autores dos papers originais; em 81 (69%), procuraram-se artigos duplicados e apenas em 5 (4%) foram analisados conflitos de interesse. Verificou-se também que somente três trabalhos de revisão (2,5%) checaram se os estudos revisados passaram por comitês de ética. Os pesquisadores observaram que poucos autores de artigos de revisão denunciam sinais de má conduta que encontram durante a revisão da literatura. Sete autores admitiram ter incluído na revisão papers sobre os quais havia alguma suspeita, como sinais de plágio ou manipulação de imagens, mas apenas dois fizeram advertências no artigo de revisão. “Quando autores de

revisão suspeitam de má conduta em algum artigo, parece que eles não sabem o que fazer com essa informação”, disse Nadia Elia, pesquisadora da Universidade de Genebra, na Suíça, e autora principal do estudo, ao site Retraction Watch.

A dose exata de plágio A revista Nanomaterials adotou uma nova política editorial e agora realiza checagem para detectar indícios de plágio antes de enviar aos revisores os manuscritos submetidos à publicação. A medida busca evitar casos como o de um estudo sobre a toxicidade de nanopartículas publicado no periódico em 2014, assinado por pesquisadores da Universidade de Hokkaido, no Japão. O trabalho foi retratado após uma investigação concluir que 56% de seu conteúdo não era original. Um software detectou que 46% do texto se caracterizava como autoplágio, que é a repetição de trechos presentes em

manuscritos anteriores do mesmo autor, e mais 10% do conteúdo foi classificado como plágio ou apropriação de ideias alheias. Observou-se também que quatro das seis imagens do artigo foram reproduzidas de outros papers, ainda que os autores tenham atribuído a fonte corretamente. Thomas Nann, editor-chefe da Nanomaterials, lamentou não ter descoberto o problema antes. “Os autores revisaram o manuscrito e um editor o aceitou. Dado o grande número de submissões recebidas pelos periódicos, pode acontecer de o plágio ser descoberto após a publicação do artigo”, desculpou-se Nann. PESQUISA FAPESP 247 | 9


Estratégias Perda na física

Visão sobre os transgênicos Um levantamento feito pelo Ibope, encomendado pelo Conselho de Informações sobre Biotecnologia

O físico norte-americano

(CIB), mostra que a maioria dos brasileiros (80%)

James Watson Cronin,

tem noção de que alimentos transgênicos são

ganhador do Nobel em

aqueles que tiveram genes modificados. No entanto,

1980, morreu no dia 25 de

sua segurança não é reconhecida por uma parcela

agosto, aos 84 anos.

da população. Pouco menos da metade (44%)

Professor da Universidade

concordou parcial ou totalmente com a afirmação

de Chicago, Estados

de que os transgênicos são pouco testados e

Unidos, Cronin dividiu o

33%, que fazem mal à saúde. Foram ouvidos 2 mil

prêmio com Val Logsdon

entrevistados de todas as classes sociais, sem

Fitch pela descoberta de

vínculo com a área de biotecnologia. “As pessoas

violações de princípios

têm pouco acesso a estudos sobre a segurança

fundamentais de simetria

dos transgênicos compilados por órgãos como a

no decaimento de

Comissão Técnica Nacional de Biossegurança

partículas subatômicas

[CTNBio]”, diz Adriana Brondani, diretora executiva

conhecidas como

do CIB. A pesquisa mostra que apenas 23%

mésons-k neutros.

acreditam que a ciência possa auxiliar a produção

Ele foi um dos idealizadores

de alimentos, enquanto 84% reconhecem que ela

do Observatório Pierre

contribui para a cura de doenças e 51%, para o

Auger de Raios Cósmicos,

desenvolvimento de medicamentos. Para o

que começou a ser construído em 1998 em

médico e bioquímico Walter Colli, ex-presidente da CTNBio, o debate em torno dos transgênicos é

uma área de 3 mil

Mudas de cana-de-açúcar geneticamente modificadas em laboratório da USP

complexo e envolve embates políticos e ideológicos. “É preciso que empresas e pesquisadores saibam esclarecer as dúvidas da população com o respaldo da ciência”, recomenda Colli.

quilômetros quadrados em Malargüe, na Argentina. O observatório reúne hoje cerca de 500 1

pesquisadores de 16 países, entre eles o Brasil, que contribuiu no

Ameaças de demissão na Rússia

projeto com a compra de equipamentos com

A notícia de que o

empregam mais de

Em carta aberta ao

o apoio de instituições

governo da Rússia

49 mil pesquisadores.

presidente Vladimir

como a FAPESP e

pretende demitir, nos

A medida está sendo

Putin, cerca de

próximos três anos, cerca

preparada pela

150 pesquisadores

de 10 mil pesquisadores

Agência Federal de

criticaram a proposta.

vinculados a órgãos

Organizações Científicas

Segundo eles, as

públicos deixou apreensiva

(Faso, em inglês),

reformas previstas

a comunidade científica

órgão criado em 2013

podem comprometer

do país. A maior parte

para gerenciar e

a imagem da ciência

das demissões deve

regulamentar a atividade

russa e provocar

acontecer em institutos

de pesquisa realizada

uma fuga de cérebros

ligados à Academia Russa

por institutos federais.

sem precedentes.

de Ciências, informou

Recentemente, a

Uma fonte do Kremlin

a revista Science.

agência anunciou

ouvida pela Science

Os cortes representariam

que cortará gastos

disse que o governo

17% da força de

para tornar os

se preocupa com os

trabalho dos institutos,

institutos mais enxutos

cientistas e dará “grande

que atualmente

e eficientes.

atenção” ao caso.

10 | setembro DE 2016

James Cronin, vencedor do Nobel de Física em 1980, morreu aos 84 anos

2


Acesso à nuvem computacional da USP A Universidade de São Paulo (USP) abriu

PESP, o pesquisador proponente pode

on-line oferecido pela USP poderá custar

acesso a seu serviço de computação em

incluir na rubrica ‘serviços de terceiros’,

de 30% a 50% menos que o valor co-

nuvem, o InterNuvem USP, para utilização

do orçamento solicitado, os custos para

brado por empresas como o Google”,

de pesquisadores de outras universidades

uso da nuvem como serviço, adicionan-

explica João Eduardo Ferreira, superin-

ou instituições de pesquisa. Eles poderão

do a justificativa da necessidade para o

tendente de tecnologia da informação

contratar serviços de armazenamento

projeto”, disse à Agência FAPESP Carlos

da USP. Implementada em 2012 com

de dados de pesquisa, tendo acesso a

Henrique de Brito Cruz, diretor científico

apoio da FAPESP, o InterNuvem atende

servidores e discos rígidos pela internet.

da Fundação. O objetivo da abertura da

às demandas dos pesquisadores da uni-

O serviço pode ser pago com recursos

nuvem computacional é racionalizar o

versidade e da administração da insti-

de projetos de pesquisa financiados por

uso dos serviços disponibilizados pelo

tuição. Também hospeda a infraestrutu-

agências de fomento ou empresas. “Nas

sistema e dos recursos públicos aplicados

ra de ensino a distância da universidade.

propostas de projetos submetidos à FA-

em computação para realização de pes-

O serviço está disponível no endereço

quisas. “O serviço de armazenamento

nuvem.uspdigital.usp.br/client/.

Diplomacia científica no Oriente Médio O Synchrotron-light for

radiação para investigar

diversas áreas, incluindo

Experimental Science

átomos e células. O

biologia, química,

and Applications in the

Sesame é considerado

geologia, medicina

Middle East (Sesame),

um marco da diplomacia

e arqueologia. “Esse

a primeira fonte de luz

internacional, já que

projeto mostra que

síncrotron do Oriente

o projeto é fruto

a ciência é uma ótima

Médio, em construção na

de uma cooperação

maneira de estabelecer

Jordânia, deverá entrar

entre Bahrein, Chipre,

relações diplomáticas

a Financiadora de

em operação em

Irã, Israel, Jordânia,

e superar barreiras

Estudos e Projetos

dezembro deste ano.

Paquistão, Palestina e

políticas”, afirma o físico

(Finep). “Cronin nos

O anúncio foi feito por

Turquia. “Trata-se da

brasileiro Antonio José

inspirou a ir em busca do

Chris Llewellyn Smith,

única iniciativa, depois da

Roque da Silva, diretor do

desconhecido, com

presidente do Conselho

Organização das Nações

Laboratório Nacional de

profunda intuição,

do Sesame, em evento

Unidas [ONU], que coloca

Luz Síncrotron (LNLS),

respaldo científico e visão

realizado em julho no

Israel e Irã na mesma

em Campinas. Anos atrás,

poética”, declarou ao

Reino Unido. Segundo

sala”, disse Llewellyn

o LNLS recebeu e treinou

jornal New York Times

o físico, em breve será

Smith ao site SciDev.net.

três pesquisadores do

Angela Olinto, professora

divulgada uma primeira

O equipamento poderá

Oriente Médio ligados ao

da Universidade de

chamada de projetos que

ser utilizado por

Sesame para trabalhar

Chicago. Em nota à

privilegiem o uso de

pesquisadores de

com luz síncrotron.

fotos 1 léo ramos 2 universidade de chicago  3 mikel martinez de osaba / flickr  4 sesame

3

imprensa, Ronald Shellard, diretor do

4

Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), disse que Cronin era “uma pessoa inspiradora”. “Quando dava palestras, tinha sempre o cacoete de esfregar um dedo no outro. Os amigos sabiam que isso era um sinal de que deveriam prestar atenção no que diria a seguir”, escreveu Shellard, que conheceu Cronin no Observatório Pierre Auger.

Construção do Sesame em 2014: fonte de luz síncrotron entrará em operação até dezembro na Jordânia PESQUISA FAPESP 247 | 11


Tecnociência Fármaco em nova função

Esperança de vida extraterrestre Um planeta recém-

nave que viajasse

a temperatura

A clorpromazina,

-descoberto é o mais

a uma velocidade

permitiria a existência

um medicamento

novo foco das buscas

correspondente a 20%

de água líquida,

antipsicótico, utilizado

por vida fora da Terra.

da velocidade da luz.

característica

no tratamento da

Batizado de Proxima

Essa estrela faz parte de

considerada essencial

esquizofrenia, está

Centauri b, foi descrito

uma família classificada

para o surgimento e

sendo testada contra

por uma equipe

como anãs M, muito

a evolução da vida.

a leucemia, um tipo de

internacional liderada

estudada porque seus

Resta saber se existe

câncer que tem início na

pelo astrofísico Guillem

planetas podem ser

uma atmosfera e um

medula óssea e acomete

Anglada-Escudé, do

detectados quando, pela

campo magnético,

os glóbulos brancos.

Queen Mary College

atração gravitacional,

como o da Terra,

Pesquisadores do

da Universidade

causam uma

que protejam a

Centro de Ciências

de Londres, e tem

irregularidade no

superfície do planeta

Naturais e Humanas da

uma massa apenas

movimento da estrela

das explosões da

Universidade Federal

ligeiramente maior que a

que orbitam. No caso

Proxima Centauri e dos

do ABC (UFABC), em

da Terra (Nature, 25 de

de Proxima Centauri b,

raios X que ela emite.

Santo André, usaram

agosto). O planeta leva

o efeito foi detectado

Novos instrumentos,

um polímero para

pouco mais de 11 dias

pela equipe de

como o telescópio

encapsular a

para completar uma

Anglada-Escudé

espacial James Webb,

clorpromazina e, assim,

volta em torno de sua

usando telescópios do

a ser lançado em 2018

criar um sistema

estrela, a Proxima

Observatório Europeu

pela agência espacial

nanoestruturado que

Centauri, a mais próxima

do Sul (ESO), no Chile.

norte-americana (Nasa),

facilite a entrada do

do Sol, e poderia ser

O novo planeta

podem contribuir para

medicamento nas

alcançado em cerca de

está a uma distância

encontrar essas

células. O sistema

20 anos por uma

de sua estrela em que

respostas.

mostrou-se eficaz no combate a células de leucemia in vitro (Pharmacological

Concepção artística do planeta Proxima Centauri b, semelhante à Terra, que orbita a estrela Proxima Centauri

Research, setembro). “O efeito contra as células tumorais foi maior quando o fármaco atuou com a nanoestrutura e não sozinho”, diz o farmacêutico Tiago Rodrigues, professor na UFABC e coordenador do estudo junto com a professora Daniele Ribeiro de Araújo. Atualmente, os pesquisadores da universidade estão realizando testes em animais e estudando o mecanismo de ação da droga em parceria com a Universidade Federal 1

12 | setembro DE 2016

de São Paulo (Unifesp).


2

Das rochas para o mar

fotos 1 m. kommesser / eso 2 2 Diego Delso / WIKICommons  3 Universidade Rice

Cochilos em pleno voo

Fêmea de tesourão-grande (Fregata minor): sonecas breves nas alturas em viagens que duram dias seguidos

No final da era

fundamental para o

Neoproterozoica, que

surgimento dos seres

durou de 850 milhões a

pluricelulares (Nature

541 milhões de anos

Communications, 22 de

atrás, a concentração de

julho). Os pesquisadores

oxigênio nos oceanos

chegaram a essa

e na atmosfera terrestre

conclusão examinando

apresentou um aumento

a proporção de

acentuado e, pela

isótopos de sulfatos de

primeira vez, atingiu

amostras de minerais

um valor próximo

de depósitos glaciais

do atual. Os geólogos

com 635 milhões de

associavam essa

anos na região central do

elevação à atividade de

Brasil e a taxa com que

microrganismos capazes

são decompostos por

de fazer fotossíntese,

bactérias, formando

como algumas

oxigênio. “A

bactérias, e ao rápido

decomposição dos

soterramento de matéria

minerais ocorreu de

Há algum tempo já se

pássaros adormecia,

suspeitava, mas faltava a

enquanto a outra metade

comprovação que agora

permanecia desperta.

veio: aves que voam

Esse padrão de sono já

orgânica. Agora, uma

forma rápida e exauriu

por dias seguidos tiram

havia sido observado em

equipe franco-brasileira

quase 60% do sulfato

cochilos breves durante

patos durante testes

sugere que o mineral

disponível nos oceanos

o voo. Pesquisadores do

feitos em terra. O

pirita, formado por ferro

da época, algo sem

Instituto Max Planck de

surpreendente foi que

e enxofre, também

precedentes na história

Ornitologia, na Alemanha,

houve instantes em que

poderia ter contribuído

do planeta”, diz o geólogo

desenvolveram

as aves permaneceram

para o aumento da

Ricardo Trindade,

miniaturas de aparelhos

voando mesmo com os

concentração de

professor da Universidade

que registram a

dois hemisférios cerebrais

oxigênio nos oceanos

de São Paulo e um dos

atividade elétrica do

adormecidos – em alguns

e na atmosfera,

autores do trabalho.

cérebro e monitoraram

momentos o cérebro

a viagem de 15 fêmeas

entrou em sono REM, a

de tesourão-grande

fase em que os músculos

(Fregata minor). Em

relaxam e ocorrem

10 dias, as aves voaram

os sonhos (Nature

quase 3 mil quilômetros

Communications, 3 de

sobre o oceano.

agosto). Elas dormiram

Após o anoitecer, em

40 minutos por dia

diferentes momentos,

na viagem, cerca de 10%

metade do cérebro dos

do que dormem em terra.

3

Bloco de camadas de óxido de grafeno soldadas: mais leve que o titânio

Grafeno para uso em implantes Grande resistência mecânica, alta poro-

foi criar um grafeno 3D usando pedaços

çada de Metalurgia do Pó e Novos Mate-

sidade e ao mesmo tempo rigidez e bio-

de 2D”, conta Douglas Galvão, professor

riais (Arci), da Índia. “O material agora

compatibilidade são características de

da Universidade Estadual de Campinas

parece uma cortiça porosa”, explica Gal-

uma nova concepção de óxido de grafeno

(Unicamp). Ele e os pós-doutorandos Pe-

vão. “A alta porosidade é importante

com potencial para uso em implantes ós-

dro Autreto, da Universidade Federal do

porque a rugosidade em nanoescala fa-

seos. O grafeno 3D, resultado da junção

ABC (UFABC), e Cristiano Woellner, da

cilita a integração com as células do cor-

de camadas desse material por meio de

Unicamp, participaram do desenvolvimen-

po.” O trabalho dos brasileiros foi finan-

soldagem por plasma, é mais leve que o

to dessa configuração de óxido de grafe-

ciado pelo Centro de Pesquisa em

titânio, material utilizado em próteses. O

no com pesquisadores das universidades

Engenharia e Ciências Computacionais

grafeno é uma folha de átomos de carbo-

Rice e do Texas, nos Estados Unidos, e do

(CCES), um dos Centros de Pesquisa, Ino-

no dispostos de forma hexagonal. “A ideia

Centro Internacional de Pesquisa Avan-

vação e Difusão (Cepid) da FAPESP.

PESQUISA FAPESP 247 | 13


1

Um mundo mais alto As populações humanas

com estatura média de

ganharam alguns

1,70 m, e as mais baixas,

centímetros no último

da Guatemala, cuja

século em todo o mundo,

altura não chega a

segundo um grande

1,50 m. Nesses

estudo que compilou

100 anos, os grupos

informações sobre a

que mais cresceram

estatura de 18,6 milhões

foram as mulheres

de pessoas nascidas

sul-coreanas, que

entre 1896 e 1996.

ganharam 20,2 cm,

Os pesquisadores do

e os homens iranianos,

consórcio internacional

que se tornaram 16,5 cm

NCD Risk Factor

mais altos. Homens e

Collaboration, do qual

mulheres brasileiros

participam grupos

ganharam cerca de

brasileiros, reuniram os

10 cm de altura e hoje

dados sobre a estatura

têm, respectivamente,

Sem placas de circuito eletrônico rígidas ou sistemas

de indivíduos de

cerca de 1,70 m e

de articulação motora, o Octobot é um robô macio e

200 nacionalidades

1,60 m em média.

apresentados em

O ganho geral de altura

1.472 artigos científicos

reflete uma melhoria

e constataram que

nas condições de

o aumento variou

vida. Embora as

bastante de uma

características genéticas

população para outra.

de uma população

foi produzido com um sistema interno de microcanais

De modo geral,

influenciem a estatura

(Nature, de 26 de agosto). O combustível do Octobot

os homens cresceram

de seus indivíduos,

é água oxigenada (peróxido de hidrogênio). Por meio

entre 1 centímetro (cm)

estudos sugerem que

de uma reação química com um catalisador de platina,

e 15 cm ao longo desse

a diferença de altura

a água oxigenada se transforma em gás, que se dissipa

período, enquanto as

seja decorrente da

pelos microcanais e infla os atuadores, uma espécie de

mulheres se tornaram

nutrição durante a

pequenos balões localizados no interior dos braços do

de 2 cm a 20 cm mais

gravidez e na infância

Octobot. Essa reação faz o robô se mover. Um circuito

altas (eLife, julho).

e adolescência.

impresso com tinta especial para condução de elétrons

Os holandeses são

Alguns estudos sugerem

funciona como um oscilador eletrônico simples, que

hoje os homens mais

ainda que as pessoas

envia impulsos repetitivos e controla a transformação

altos do mundo, com

mais altas vivem mais e

do peróxido de hidrogênio líquido em gás. O reserva-

1,83 metro (m) em

têm menos risco de

tório de água oxigenada quando cheio representa 50%

média. Os mais baixos

desenvolver doenças

do peso do Octobot. Para melhor visualizar as carac-

são os do Timor-Leste,

cardiovasculares e

terísticas internas do dispositivo foram adicionados

com 1,60 m. Já as

respiratórias. Outros

corantes fluorescentes no interior do robô.

mulheres mais altas

trabalhos indicam

são as da Letônia,

também que elas

Robô macio e sem esqueleto

de corpo mole que imita os polvos. Foi desenvolvido, sob a coordenação do professor Robert Wood, na Universidade Harvard, nos Estados Unidos, para ser um robô-conceito e abrir novas frentes na robótica. Em sua construção, foram usados três métodos de fabricação: litografia, moldagem e impressão 3D. O corpo

Octobot: corantes fluorescentes e água oxigenada como combustível

alcançam níveis educacionais mais elevados e recebem melhores salários. Na África subsaariana e no sul da Ásia estão as populações que cresceram menos (algumas até encolheram), possivelmente em consequência da piora nas condições de vida nas últimas décadas. 14 | setembro DE 2016


Célula na palma da mão As aulas sobre as

da pesquisa científica

tomografia para

estruturas celulares

para disponibilizar o

desmembrá-las em

podem se tornar menos

material fora do meio

camadas virtuais e

abstratas, se depender do

acadêmico”, explica

vetorização de imagens

veterinário especializado

Guimarães. As impressoras

2D. “Os protótipos

em imunologia Marco

3D estão se tornando

impressos foram gerados a

Guimarães e do biofísico

comuns, e imprimir é a

partir de modelos virtuais

Kildare Miranda,

parte simples da história.

de células de verdade, e

respectivamente, das

O complicado é digitalizar

não de modelos artísticos.

universidades federais do

as células e saber quanto

Isso os torna mais

Espírito Santo (Ufes) e

suas estruturas devem

realistas”, afirma o

do Rio de Janeiro (UFRJ).

ser ampliadas. Eles

veterinário. A dupla

Eles produziram modelos

reproduziram células

pretende montar um site

digitais tridimensionais

com um aumento de até

para receber arquivos

de células sanguíneas

34 mil vezes (PLoS One,

digitalizados de

e as transformaram em

15 de agosto). Usaram

colaboradores. As imagens

O excesso de peso pode

peças reais usando

três técnicas: fatiar as

ficarão disponíveis para

alterar algumas estruturas

impressoras 3D.

células para obter

serem baixadas e

do cérebro, concluíram

“Usamos ferramentas

imagens de seu interior,

impressas livremente.

pesquisadores da

2

Protótipo de monócito, impresso em 3D: 15 mil vezes maior que o original

O sobrepeso e o cérebro

Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Eles compararam a

Contra a distrofia muscular

substância branca do cérebro de pessoas com

fotos 1 Universidade Harvard 2 Augusto, I. et al. Plos One  3 Mayra Pellati / USP  4 eduardo cesar  ilustraçãO daniel bueno

Um experimento com

sobrepeso com a de

3

cinco cães indica que o

indivíduos com peso

transplante de células-

normal (Neurobiology of

-tronco humanas para

Aging, 27 de julho).

tratamento da distrofia

A substância branca é

muscular de Duchenne, a

formada por células que

mais frequente e severa

auxiliam a sustentação e

forma de degeneração

a nutrição dos neurônios

muscular, pode ser seguro

e por fibras que conectam

(Stem Cell Reviews and

diferentes áreas cerebrais.

Reports, agosto). Uma

Os pesquisadores

equipe do Instituto de

examinaram 473 pessoas

Biociências da

com 20 a 87 anos de

Universidade de São

idade e observaram que

Paulo coordenada pela

o cérebro daquelas com

geneticista Mayana Zatz

veia da pata dianteira

Os pesquisadores

extraiu células-tronco de

dos cães em nove

atribuem a longevidade

tecido adiposo de

aplicações feitas em

de dois cães

doadores humanos,

seis meses. Os cães

aos benefícios do

cultivou-as e depois as

receberam a primeira

tratamento. Estudos com

implantou em cinco cães

injeção com 2 a 3 meses

animais são importantes

da raça golden retriever

de idade. Os exames

para tratá-los e para

com distrofia muscular e

clínicos e os de sangue,

determinar a segurança

sistema imune intacto.

de imagem e as

de terapias antes de

Esses animais podem

avaliações cardiológicas

serem avaliadas em

diferenças se tornaram

nascer com uma mutação

indicaram que o

seres humanos. De

detectáveis a partir dos 45.

genética que causa uma

tratamento foi bem

origem hereditária, a

A despeito da redução

distrofia semelhante à

tolerado, aparentemente

distrofia muscular de

da substância branca

humana e permitem um

sem efeito indesejado de

Duchenne pode

cerebral, as pessoas com

acompanhamento de

longo prazo – os animais

levar à perda dos

sobrepeso aparentemente

longo prazo. As células

foram acompanhados

movimentos a partir

não perdem as

foram injetadas em uma

por sete anos.

dos 10 anos de idade.

habilidades cognitivas.

4

sobrepeso ou obesas tinha um menor volume de substância branca,

Células-tronco humanas usadas para tratar distrofia em cães da raça golden retriever

similar ao de indivíduos magros 10 anos mais velhos. O cérebro de uma pessoa gorda com 50 anos parecia o de uma magra com 60. As

PESQUISA FAPESP 247 | 15


capa

Os povos de Lagoa Santa Sepultamentos humanos em Minas Gerais revelam uma sucessão de costumes entre 10 mil e 8 mil anos atrás Maria Guimarães

Um abrigo em meio ao Cerrado, Lapa do Santo parece ter sido um importante centro de rituais ligados à morte 16 | setembro DE 2016


Carste de Lagoa Santa

MG Lapa do Santo

mauricio de paiva

.

.

.

Matozinhos Aeroporto de Confins .

.

U

ma abertura na face de um penhasco em meio ao Cerrado na região de Lagoa Santa, Minas Gerais, tem revelado surpresas a arqueólogos, biólogos e antropólogos. Essa caverna, a Lapa do Santo, já foi um importante centro de rituais ligados à morte, como revelam escavações descritas em artigo em processo de publicação na revista Antiquity, uma das mais prestigiadas da área. Padrões de sepultamento complexos, com desmembramento de corpos e disposição seguindo regras precisas, revelam uma sucessão de culturas muito distintas em um período que se considerava homogêneo, por volta de 10 mil anos atrás. “O maior mérito foi enxergar essas transformações culturais ao longo do tempo, que por algum motivo ninguém tinha percebido”, avalia o arqueólogo brasileiro André Strauss, professor visitante na Universidade de Tübingen e doutorando no Instituto Max Planck, ambos na Alemanha, autor principal do artigo. O estudo vai além da morte e permite uma espiadela em como viviam e quem eram essas pessoas. Strauss sentiu que ali havia algo especial no primeiro ano do curso de geologia na Universidade de São Paulo (USP), quando teve sua primeira expedição de campo como estagiário do bioantropólogo Walter Neves, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), em 2005. “Eu ficava no fundo de uma trincheira de 2 metros de profundidade, cavando e peneirando o que encontrava.” Foi desse posto que Strauss se encantou com o que havia por descobrir ali e queria fazer algo diferente de se concentrar na medição de crânios e na busca por indícios de coexistência com grandes animais, a megafauna. Esse era o foco das pesquisas realizadas ainda no século XIX, quando o naturalista dinamarquês Peter Lund descobriu ossos humanos associados aos de grandes animais numa caverna de Lagoa Santa e iniciou uma tradição de escavação no

.

Sítios arqueológicos em cavernas

Lagoa Santa

Cidades

que se tornou uma das mais longevas regiões arqueológicas no país. Cinco anos depois, já no mestrado sob a orientação de Neves, Strauss viu que havia alguma ordem na confusão aparente do sítio: o que parecia uma mistura de ossos sem sentido na verdade seguia um padrão. “É difícil perceber as sutilezas, os sepultamentos são muito complexos.” “Isso foi possível porque o Walter inverteu a ordem habitual dos procedimentos de campo”, afirma Strauss. A arqueologia brasileira, segundo ele, concentra-se em artefatos, de maneira geral, e apenas chama especialistas em fósseis humanos quando ossos são encontrados. “Muitos esqueletos são danificados no processo.” Nos projetos de Neves, que desde 1988 analisa a evolução humana na América, com estudo de caso nessa região, são os bioantropólogos que coordenam a escavação e documentam tudo o que aparece, com especialistas para analisar os artefatos – na Lapa do Santo, lascas de pedra e ferramentas de osso como espátulas, buris e (raramente) anzóis. Nessa caverna, onde há paredes decoradas com desenhos em relevo que indicam rituais de fertilidade (imagens fálicas), o resultado foi marcante. Strauss, Neves e colegas identificaram três períodos distintos de ocupação humana, o mais antigo entre 12,7 mil e 11,7 mil anos atrás. Entre 2001 e 2009, foram exumados e analisados 26 sepultamentos humanos ocorridos aproximadamente PESQUISA FAPESP 247 | 17


entre 10.500 e 8 mil anos atrás que revelam práticas mortuárias altamente variáveis e nunca antes descobertas nas terras baixas da América do Sul, descritas no artigo da Antiquity e em outro assinado apenas por André Strauss, publicado na edição de janeiro-abril do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. “Existiram práticas funerárias altamente sofisticadas nos Andes”, conta Neves, “mas as múmias chilenas já estudadas são mais recentes do que o material da Lapa do Santo”. Outra distinção é que na caverna mineira não há oferendas mortuárias, enquanto a prática habitual de caçadores-coletores era sepultar os mortos acompanhados ao menos de seus pertences. “A complexidade das práticas da Lapa do Santo não reside nos objetos, mas numa alta manipulação do corpo e do esqueleto de maneira muito sofisticada”, afirma o professor da USP.

Culturas sucessivas Padrões funerários mudaram ao longo do tempo

10.600 a 9.700 anos Sepultamentos simples e sem sinais de manipulação

Rituais de morte

O padrão de sepultamento mais antigo, datado entre 10.600 e 9.700 anos atrás, foi descrito com base em um homem e uma criança de cerca de 5 anos, ambos enterrados inteiros. A criança foi posta sentada, com as pernas dobradas e os joelhos próximos à cabeça. A mandíbula afastada, como se a boca estivesse aberta, indica que a cova não foi completamente preenchida. A remoção de partes dos cadáveres em seguida à morte caracteriza o período seguinte, entre 9.600 e 9.400 anos atrás. Representado por sete sepultamentos, mais alguns ossos avulsos, esse conjunto ficou descrito como o segundo padrão. Alguns dos esqueletos estavam articulados, mas com partes faltando. Um caso marcante foi o de um homem cuja cabeça parece ter sido removida horas depois da morte e enterrada com as duas mãos (também decepadas, como atestam marcas de corte em ossos do punho) cobrindo o rosto – uma voltada para cima e outra para baixo, como Strauss e colaboradores descreveram em 2015 na revista PLoS One (ver notícia em bit.ly/DecapMG). Outros esqueletos estavam completamente desmembrados e arrumados em fardos, indicando que os ossos foram armazenados juntos, talvez embrulhados, e enterrados apenas depois de descarnados e secos. Muitos dos ossos isolados também passaram por alterações como queima, cortes, aplicação de pigmento 18 | setembro DE 2016

do corpo. Neste caso, um homem e uma mulher

Os achados representam uma mudança no paradigma de como se vê a habitação humana por ali nesse período

vermelho e remoção dos dentes. Em alguns casos, eram combinados ossos de criança (uma ou duas) com o crânio de um adulto, ou vice-versa, de uma maneira que sugere regras muito precisas de como esse sepultamento deveria acontecer. Dentes removidos também eram sepultados com os restos mortais de outra pessoa. O terceiro padrão de sepultamento, datado entre 8.600 e 8.200 anos atrás, envolve nove ossadas dispostas com-

pletamente desarticuladas em covas circulares (entre 30 e 40 centímetros de diâmetro) e apenas 20 centímetros de profundidade. Cada cova, preenchida por inteiro, abrigava um único indivíduo. No caso dos adultos, os ossos mais longos em geral eram quebrados após a morte e só assim cabiam nas exíguas tumbas. Mesmo em meio a tantos desmembramentos, não há indícios de que a violência em vida fosse uma prática corrente. “Nós lemos os ossos, tudo fica registrado neles”, conta Strauss. E eles guardam níveis muito baixos de fraturas recompostas, que indicariam terem acontecido em vida. De maneira geral, Strauss considera que os achados representam uma mudança no paradigma de como se vê a habitação humana por ali nesse período, o início do Holoceno. “Por muito tempo a grande questão era se a Luzia era a mais antiga da América e se era parecida com africanos”, afirma, referindo-se ao crânio de 11 mil anos descrito por Neves e que redefiniu como se deveria pensar a ocupação humana dessa região (ver edição 50 anos de FAPESP, bit.ly/AmLuzia). “Agora sabemos que não houve um povo de Luzia em Lagoa Santa; foi uma sucessão de povos que habitaram a região com transformações culturais muito claras.” Afinal, trata-se de um período de cerca

1


8.600 a 8.200 anos Covas circulares rasas abrigavam ossos de uma única

9.600 a 9.400 anos

2

pessoa e eram cobertas por blocos de pedra

Corpos sofriam alterações e podiam ser sepultados misturando partes de várias pessoas. Cabeça disposta

fotos 1 Rodrigo e. oliveira/usp 2 e 3 arquivo leeeh-usp

com as mãos decepadas é o exemplo mais marcante

de 5 mil anos, tempo suficiente para povoamentos muito diversos, mesmo que fossem até certo ponto descendentes uns dos outros. Estudos com DNA devem em breve começar a render resultados e trazer algumas respostas sobre como esses grupos se sucederam e qual o parentesco entre eles. “A morfologia craniana mostra que eles tinham a mesma ‘arquitetura’ geral”, conta Walter Neves. Há uma variação contínua nesse grande grupo que ele define como paleoamericano. De acordo com sua teoria, de que duas migrações distintas deram origem aos habitantes da América, as primeiras pessoas com características asiáticas teriam chegado por ali há cerca de 7 mil anos – e não há resquícios humanos em Lagoa Santa datados entre 7 mil e 2 mil anos atrás. Mesmo assim, o que há de indícios de lá e de outros lugares aos poucos vem refinando a hipótese. “Eu achava que a segunda leva migratória teria substituído o povo de Luzia”, admite. “Mas hoje temos evidências muito fortes de que aquela morfologia sobreviveu praticamente intacta até o século XIX.” É o caso, por exemplo, dos índios Botocudos (que foram dizimados no período colonial), de acordo com crânios armazenados no Museu Nacional do Rio de Janeiro, como

defendem Strauss, Neves e colegas em artigo publicado em 2015 na revista American Journal of Physical Anthropology. Práticas de vida

Desde o início do doutorado, em 2011, Strauss coordena os trabalhos na Lapa do Santo, com financiamento alemão. A riqueza arqueológica garante o interesse da colaboração pelos dois países, que inclui parcerias para estudos genéticos. A contrapartida brasileira no projeto é Walter Neves, e seu Laboratório de Estudos Evolutivos e Ecológicos Humanos (LEEEH) recebe todo o material coletado nas expedições. Nos últimos anos, não foram encontrados vestígios de cerâmica no local, um indício forte de que eram populações de caçadores-coletores que moravam ali uma parte do tempo, e não agricultores, corroborando o que já se acreditava. Os animais caçados eram peixes, lagartos, roedores, tatus, porcos selvagens e pequenos cervos, todos carregados inteiros para a caverna. Nada de bichos um pouco maiores, como antas, e dos imensos mamíferos representantes da megafauna, que se acreditava associada aos humanos de Lagoa Santa desde que Peter Lund encontrou essa associação em outra caverna da região, entre 1835 e 1844. Nem sempre, pelo jeito.

“Eles comiam até mocó”, exclama Neves, referindo-se ao roedor pouco maior do que um porquinho-da-índia. Para ele, não há nada mais precário do que incluir esses animais na dieta, indicação de que os grupos de Lagoa Santa não tinham melhores fontes de proteína à disposição e viviam numa situação limite para garantir a subsistência. É uma teoria apenas, mas a escassez de pertences nos sepultamentos pode ser sinal de que não havia espaço para desperdício, e as ferramentas – como anzóis, de que só foram encontrados sete na Lapa do Santo – eram necessárias aos vivos. “O tempo deles era dedicado a viabilizar a existência do grupo”, especula Neves. E eram grandes grupos, estima ele. O modo de vida pode estar agora mais definido, mas a conclusão também propõe um enigma: análises químicas que refletem a dieta por meio da quantificação de isótopos de carbono e nitrogênio, feitas pelo biólogo brasileiro Tiago Hermenegildo como parte do doutorado na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, mostraram que os habitantes da região comiam muitos vegetais e complementavam a dieta com caça. Esse alto grau de consumo de vegetais é inesperado para caçadores-coletores, sobretudo com a dieta rica em carboiPESQUISA FAPESP 247 | 19

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dratos indicada pelas frequentes cáries nos dentes encontrados. O dentista Rodrigo Elias de Oliveira, pesquisador do grupo de Neves, é coautor de um artigo liderado por Pedro Tótora da Glória, também do LEEEH, sobre a saúde dental na Lapa do Santo, a ser publicado na revista Annals of the Brazilian Academy of Sciences. Parceiro de Strauss desde 2006 nas escavações da Lapa do Santo, Elias explica as discrepâncias entre a incidência de cáries que tem observado e a documentada para outras populações de caçadores-coletores por ser Lagoa Santa uma região de clima tropical, com vegetação de Cerrado. “Os outros exemplos que temos são de climas temperados”, compara. “Aqui os alimentos naturalmente disponíveis – muitas frutas e tubérculos – podem gerar mais cáries.” Ele aposta no pequi e no jatobá, muito usados até hoje na região, como uma fonte alimentar já naquele tempo. São frutos ricos em carboidratos e fragmentos carbonizados foram encontrados nos sítios de Lagoa Santa. Elias, que fez doutorado com Walter Neves e agora realiza estágio de pós-doutorado em periodontia na Faculdade de Odontologia da USP, traz ao projeto um detalhamento no estudo dos dentes, cujo material mais resistente do que os ossos os torna abundantes em sítios arqueológicos. “O dente é como uma cápsula, acaba virando nosso cofrinho”, afirma. Ele explica que os ossos se renovam constantemente, a ponto de se dizer que a cada 10 anos uma pessoa substitui seu esqueleto por inteiro. Os dentes de um adulto, no entanto, são testemunho do período da vida em que se formam os dentes permanentes. Ele espera que estudos com isótopos, em andamento agora em colaboração com Hermenegildo, ajudem a aprofundar aspectos da dieta até o

Crânio com dentes removidos (dir.), anzóis feitos de osso (outra página) e cenas de campo e laboratório

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detalhe de que tipos de planta comiam, de migrações ao longo da vida, de quanto tempo as crianças eram alimentadas com leite materno. O dentista adianta que isótopos de estrôncio, assim como o formato do fêmur, que responde à ação da musculatura, indicam que as pessoas encontradas na Lapa do Santo eram nativas de Lagoa Santa. “Eles tinham mobilidade, mas não eram errantes.” chão de cinzas

A inferência de intensa ocupação humana vem da confirmação de que muitas fogueiras foram acesas na Lapa do Santo. “Eles usavam fogo o tempo todo, sabiam o que estavam fazendo”, afirma a arqueóloga Ximena Villagran, do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP. Ela fez análises ao microscópio do sedimento da caverna e mostrou uma grande quantidade de cinzas até

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uma profundidade de 1 metro, conforme mostra em artigo publicado em julho no site da revista Journal of Archaeological Science. Mais do que controlar o fogo, os habitantes da região aparentemente planejavam seu uso, armazenando madeira em processo de decomposição. Esse nível de detalhe é possível graças a análises de petrologia orgânica, uma técnica que recentemente passou a ser usada em arqueologia, à qual Ximena teve acesso por meio da parceria com o geólogo francês Bertrand Ligouis durante estágio de pós-doutorado na Universidade de Tübingen, onde ele dirige o Laboratório de Petrologia Orgânica Aplicada. Outra técnica de ponta usada por ela foi a Espectrometria de Infravermelho por Transformada de Fourier (FTIR), normalmente usada para analisar sedimento solto. Ximena dispôs suas amostras em lâminas de vidro, de maneira que

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Fotos  1, 2 e 7 Mauricio de Paiva 3 e 4 André Strauss / Universidade de Tübingen  5 Adriano Gambarini 6 Arquivo LEEEH-USP

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conseguia investigar com precisão por que o sedimento é composto por agregados de vários tons de amarelo, laranja e vermelho. Ao caracterizar o sedimento dentro da caverna e em torno dela, ficou claro que a produção de cinzas acontecia dentro do abrigo. Ela também identificou fragmentos de cupinzeiros, indicando que por algum motivo o material era trazido para dentro da caverna. “Talvez eles os usassem como pedras quentes para cozinhar ou como forno do lado de fora, como os xavantes usam para fazer seu bolo de milho”, especula. Depois da revelação na escala microscópica, passou a dar-se conta de que os campos de Lagoa Santa são repletos de cupinzeiros. Um enigma surgiu ao verificar que a coloração vermelho-escura que observava em certas partes do sedimento teria exigido altas temperaturas, mais de 600 graus Celsius (°C). Em experimentos nos quais acendia fogueiras e inseria nas chamas um termômetro de cabo bem longo, Ximena verificou que o solo embaixo do fogo não era sujeito a tão altas temperaturas. A explicação literalmente lhe caiu na cabeça na segunda vez em que

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visitou o sítio arqueológico. “Percebi que uma chuva de sedimento cai do paredão de rocha acima da entrada da caverna”, conta. Se caíssem diretamente sobre uma fogueira, essas partículas encontrariam temperaturas entre 800 °C e 1000 °C. Ao analisar a microestrutura do sedimento em torno dos sepultamentos, Ximena percebeu uma continuidade perturbada em certos pontos, como se alguém tivesse cavado para fazer uma cova. Ela pretende continuar as análises para detalhar como os sepultamentos eram feitos. Strauss também quer saber se as práticas funerárias sofisticadas só existiam na Lapa do Santo: ele aposta que era uma cultura mais disseminada. “Fui olhar as publicações passadas e os sinais estão lá, faltou analisar dessa maneira”, afirma o arqueólogo, que quer ampliar os estudos para outras regiões do país. Uma limitação é que o que já foi escavado não pode ser recuperado, a não ser que a documentação tenha sido extremamente meticulosa. E até recentemente os registros eram falhos, até por falta de recursos. “Fazer uma escavação é como ler um livro e queimar as páginas”, compara Strauss, que se especializou em documentação arqueológica. Ele conta que retirar um sepultamento leva de 20 a 25 dias, nos quais o sedimento é retirado aos poucos enquanto se gera um modelo tridimensional dos achados e registra-se tudo com fotos e vídeo. As cadernetas de campo dos arqueólogos, segundo ele, devem trazer as informações e observações detalhadamente e serem públicas: nada de diário pessoal. “Essa percepção ainda está crescendo na arqueologia brasileira.” De 2011 para cá mais 11 sepultamentos foram exumados, corroborando os padrões descritos anteriormente, e estão em processo de estudo. As escavações

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continuam na Lapa do Santo e prometem revelar ainda outras camadas de tempo e costumes. De acordo com o arqueólogo norte-americano Kurt Rademaker, professor na Universidade do Norte de Illinois e especialista em caçadores-coletores, o trabalho em Lagoa Santa está se somando ao que é feito na região dos Andes em revelar uma grande diversidade cultural. “Strauss e sua equipe interdisciplinar estão fazendo ciência arqueológica de ponta e enriquecendo nosso conhecimento sobre a aparência física, a ancestralidade e os modos de vida dos sul-americanos antigos, em particular suas interessantíssimas práticas rituais”, afirma. É impossível saber o que se passava na cabeça desses antigos habitantes do que hoje é Minas Gerais, mas a equipe envolvida nos estudos está empenhada em construir um retrato aproximado. n

Projeto Origens e microevolução do homem na América: Uma abordagem paleoantropológica (III) (nº 2004/01321-6); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Temático; Pesquisador responsável Walter Alves Neves (IB-USP); Investimento R$ 2.032.930,19.

Artigos científicos STRAUSS, A. et al. Early Holocene funerary complexity in South America: The archaeological record of Lapa do Santo (east-central Brazil). Antiquity. No prelo. DA-GLORIA, P. J. T. et al. Dental caries at Lapa do Santo, central-eastern Brazil: An Early Holocene archaeological site. Annals of the Brazilian Academy of Sciences. No prelo. STRAUSS, A. et al. Os padrões de sepultamento do sítio arqueológico Lapa do Santo (Holoceno Inicial, Brasil). Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. v. 11, n. 1, p. 243-76. jan.-abr. 2016. STRAUSS, A. et al. The oldest case of decapitation in the New World (Lapa do Santo, east-central Brazil). PLoS One. set. 2015. STRAUSS, A. et al. The cranial morphology of the Botocudo indians, Brazil. American Journal of Physical Anthropology. v. 157, n. 2, p. 202-16. jun. 2015. VILLAGRAN, X. S. et al. Buried in ashes: Site formation processes at Lapa do Santo rockshelter, east-central Brazil. Journal of Archaelogical Science. On-line. 26 jul. 2016.

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capa

Pesca pré-histórica Ameríndios capturavam tubarões e corvinas, talvez de forma excessiva, 5 mil anos atrás na costa do Rio de Janeiro Marcos Pivetta

Usiminas e Ilha do Cabo Frio são dois sambaquis localizados na ilha homônima: o primeiro fica em assentamento rochoso e o segundo em dunas

Usiminas Ilha do Cabo Frio

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Tubarão-branco: umas das mais de 20 espécies desses peixes que os povos dos sambaquis pescavam

fotos 1 elias levy / flickr 2 Aaron O’Dea  mapa  fabio otubo

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costa brasileira apresenta mais de 2 mil sambaquis conhecidos, um tipo de vestígio arqueológico que remete às práticas funerárias e à dieta dos primeiros habitantes do litoral. Em tupi, sambaqui quer dizer amontoado de conchas. Pescadores-coletores pré-históricos, que ocuparam as margens do Atlântico, enterravam seus mortos em covas rasas, recobertas por conchas e restos de peixes, acompanhadas de artefatos de pedra e de osso. Com o tempo, os lugares mais usados para sepultamentos acumularam grande quantidade de materiais e formaram montes, alguns com até 30 metros (m) de altura, como se verifica em sítios arqueológicos de Santa Catarina. Segundo um estudo feito por pesquisadores do Rio de Janeiro, de São Paulo e do Rio Grande do Sul, a pesca conduzida pelos ameríndios em trechos do litoral fluminense, cujos vestígios se encontram registrados nos sambaquis, pode ter representado a primeira ameaça significativa aos estoques naturais de certos peixes, como corvinas e tubarões.

Brasil

A localização dos sambaquis Os sítios fluminenses estudados ficam entre a Ilha Grande e a Ilha do Cabo Frio em área de ressurgência, rica em peixes

Algodão Bigode Caieira Major Peri Ilha Grande

Baía da Guanabara

Niterói

Camboinhas Acaiá

Os autores do trabalho examinaram mais de 6 mil fragmentos ósseos, dentes e otólitos (cálculos calcários formados no ouvido interno) de peixes encontrados em 13 sambaquis da costa do Rio de Janeiro. Os sítios se localizam entre as baías da Ilha Grande, em Angra dos Reis, e da Ilha do Cabo Frio, em Arraial do Cabo, com idade de 5.600 a 700 anos (ver mapa). A análise desse material, que faz parte do acervo arqueológico do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN-UFRJ), levou-os a ter uma ideia aproximada da quantidade e do tamanho dos exemplares capturados ao longo de

Manitiba Beirada Ponte do Girau Saquarema Usiminas

Ilha do Cabo Frio

alguns milhares de anos. Também serviu de base para concluírem que a captura de peixes era uma atividade muito desenvolvida e diversificada antes da chegada dos europeus ao Brasil. No acervo, foram identificadas 97 espécies de peixe. “Esse número representa 37% de todas as espécies de peixe registradas até hoje naquele trecho do litoral fluminense”, comenta o paleontólogo marinho Orangel Aguilera, da Universidade Federal Fluminense (UFF), de Niterói, coordenador do estudo, publicado em 29 de julho no periódico Plos One. “Os sambaquieiros realmente dominavam a arte da pesca.” PESQUISA FAPESP 247 | 23


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Dentes de tubarão: usados como adorno de colar 24 | setembro DE 2016

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Corvina: espécie era a mais pescada entre os sambaquieiros fluminenses

Ameríndios capturaram exemplares de quase 40% das espécies atualmente encontradas na região

quisador do Instituto de Pesca de Santos, coautor do estudo. “Os povos ancestrais também devem ter pescado sardinhas, mas infelizmente não temos registros da espécie no material coletado nos sambaquis fluminenses”, explica Tomás. Onze dos 13 sítios arqueológicos estudados apresentavam vestígios de M. furnieri. A ubiquidade da espécie nos sambaquis possibilitou estimar o impacto causado pela pesca nos estoques de corvina nos últimos 5 mil anos. Segundo os cálculos dos pesquisadores, houve uma redução de 28% no tamanho médio das corvinas desde aquela época até hoje, em razão da exploração continuada da espécie. A presença marcante de vestígios de tubarões adultos e de filhotes, sobretudo de algumas espécies de ocorrência oceânica (longe da costa), também chamou a atenção de Aguilera e seus colaboradores. Eles examinaram 660 vértebras fossilizadas, além de dentes e ossos do crânio, de mais de 20 espécies diferentes desse peixe, como o tubarão-branco (Carcharodon carcharias), a mango-

na (Carcharias taurus), o tubarão-tigre (Galeocerdo cuvier) e o tubarão-martelo (Sphyrna lewini). A abundância de registros é interpretada pelos autores do trabalho como um indício de que as populações dos sambaquis tinham uma grande capacidade de pesca. De acordo com estimativas dos pesquisadores, os ossos estudados pertenceram a exemplares cujo comprimento variava de 30 cm, no caso de filhotes, a 2,5 m, entre os espécimes maduros. Os tubarões capturados pelos sambaquieiros eram quase sempre menores do que o tamanho médio estimado atualmente para essas mesmas espécies, consideradas hoje vulneráveis ou em risco de extinção. Eles provavelmente são fruto de uma pesca excessiva em áreas de berçário, importante para a manutenção da capacidade reprodutiva dos animais. Entre os resquícios de arraias presentes nos sambaquis, os mais abundantes foram da arraia-pintada (Aetobatus narinari). Canoas e redes de pesca?

A localização dos sítios arqueológicos é um indicador de que os ameríndios não se instalaram por acaso nessas latitudes. Os 13 sambaquis se espalham por uma faixa de cerca de 270 quilômetros do litoral fluminense conhecida por ser uma área de ressurgência, em que águas mais profundas, ricas em nutrientes, afloram. Nos pontos do litoral onde ocorre esse fenômeno oceanográfico tende a haver maiores concentrações de peixes. “Os sambaquieiros eram grandes coletores de mariscos, mas esse alimento não era suficiente para alimentá-los. Eram os peixes que basicamente os sustentavam”, diz a arqueóloga Tania Andrade Lima, do MN-UFRJ, outra coautora do estudo. “Eles conheciam bem o ambiente marinho e pescavam tanto na costa como perto do alto-mar.” Além de serem a base da dieta dos sambaquieiros, os seres marinhos capturados também podiam ser usados em rituais funerários, como as conchas enterradas com os mortos, ou na confecção de objetos decorativos. Dentes

fotos 1 Cláudio D. Timm / wikipedia 2 E 3 Lopes et al. 2016. Plos One.

As características do registro arqueológico de algumas espécies marinhas comumente encontradas em sambaquis indicam que certos tipos de peixe teriam sido capturados em excesso ou na forma de exemplares muito jovens, pescados, às vezes, em áreas que funcionavam como berçários desses animais. Essa prática teria inaugurado o processo de vulnerabilidade ou até de diminuição das populações costeiras de alguns peixes. Segundo Aguilera, os povos concheiros, também denominados sambaquieiros, pescavam em distintos ambientes marinhos, rasos e mais profundos, desde praias arenosas coladas à costa até o leito rochoso do oceano repleto de peixes. Apesar de haver registros arqueológicos de que o homem pesca há pelo menos 40 mil anos, existem poucos estudos sobre eventuais impactos ambientais da captura de peixes na pré-história. Um raro trabalho, feito em 2010 pelo Centro de Investigaciones Pesqueras de Cuba, sugere até que os ameríndios não disporiam da tecnologia necessária para explorar a maior parte dos estoques de seres marinhos do Caribe — conclusão agora refutada pelo pesquisador da UFF. Os vestígios marinhos recuperados nos sambaquis fluminenses atestam que a pesca era uma atividade dominante naquela região. A espécie com maior número de registros, e provavelmente a mais intensamente capturada pelos pescadores-coletores do litoral fluminense, é a corvina (Micropogonias furnieri). Foram estudados 5.532 otólitos da espécie, que habita fundos lodosos e arenosos de águas costeiras ou de estuários e pode chegar a 70 centímetros (cm) de comprimento. “A corvina é atualmente a segunda espécie mais pescada no litoral brasileiro, atrás apenas da sardinha”, informa o oceanógrafo Acácio Tomás, pes-


Vértebras de tubarões e arraias (à esq.) e vestígios de outros peixes (à dir.) dos sambaquis fluminenses: mais de 6 mil peças foram analisadas

de tubarão eram perfurados e usados como peças de colares, um tipo de adorno comumente encontrado em sambaquis. Embora todos os sambaquis analisados no estudo se situem sob a influência de uma zona de ressurgência, os sítios podem ser agrupados de acordo com algumas particularidades geográficas. O sambaqui de Acaiá se situa na Ilha Grande. Os sítios do Algodão, Major, Bigode, Caieira e Peri ficam em ilhotas ou em áreas costeiras rochosas da baía do Ribeira, em Angra dos Reis. Camboinhas

Ossos diversos de arraias: a espécie mais pescada era Aetobatus narinari, a arraia-pintada

se encontra em uma planície arenosa costeira dominada por lagoas na região oceânica de Niterói. Os sambaquis de Saquarema, Beirada, Manitiba e Ponte do Girau ocupam uma parte da planície arenosa, também pontuada por lagoas costeiras, da região de Saquarema. Por fim, a Ilha do Cabo Frio, no município de Arraial do Cabo, abriga dois sítios: Usiminas, em um assentamento rochoso, e o homônimo Ilha do Cabo Frio, em área de dunas. Para explorar essa diversidade de ambientes marinhos, os pesquisadores sustentam a hipótese de que os povos do passado desenvolveram estratégias e ferramentas de pesca. A captura de seres marinhos se beneficiava provavelmente do emprego de linhas e redes de espera (emalhe) feitas de fibras vegetais, anzóis e arpões confeccionados com ossos de animais. A busca por espécies que viviam longe da costa ou por ilhas estratégicas para a pesca em mar aberto requeria o emprego de alguma forma de embarcação. “Não temos registros arqueológicos de canoas ou redes, que eram feitas de madeira e fibras vegetais que não se preservam com o tempo”, explica Aguilera, que contou com o apoio de duas alunas da pós-graduação da UFF na produção do artigo, Mariana Lopes e Thayse Bertucci. No entanto, há evidências indiretas de que os ameríndios eram bons de pesca: projéteis feitos de ossos, encontrados

em sambaquis, parecem ter sido usados para dar o golpe final em espécimes de grande porte; artefatos de pedra, também presentes em alguns sítios, podem ter sido empregados na confecção de canoas. Estudioso dos sambaquis da costa brasileira, em especial os de Santa Catarina, o arqueólogo Paulo DeBlasis, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), elogia o trabalho de Aguilera e seus colegas. “O artigo adota uma abordagem muito interessante sobre a relação dos sambaquieiros com a pesca marinha”, afirma. Segundo o arqueólogo do MAE, ainda hoje alguns pesquisadores mais tradicionalistas acreditam que, devido à abundância de conchas nos sambaquis, a base da dieta dos habitantes pré-históricos do litoral eram frutos do mar. “Em Santa Catarina, também há sítios arqueológicos em ilhas. Há tempos, temos a percepção de que eles eram grandes pescadores, além de caçar mamíferos marinhos e terrestres.” Não se sabe até que ponto plantas e cultivos agrícolas também fizeram parte do cardápio dos ameríndios da beira-mar. Cinco anos atrás, a bioantropóloga Sabine Eggers, do Instituto de Biociências (IB) da USP, reconstituiu a dieta de Luzio, um ameríndio que habitou há aproximadamente 10 mil anos em um sambaqui de rio do Vale do Ribeira (SP), distante cerca de 100 quilômetros da costa atual. O resultado do estudo foi surpreendente: Luzio comia carne de caça, tubérculos, frutas e quase nenhum peixe ou crustáceo, seja de água doce ou marinha. Mas, a julgar pelo novo trabalho feito com material dos sambaquis do Rio de Janeiro, os povos antigos da costa fluminense gostavam mesmo era de um bom pescado. n

Artigo científico 3

LOPES, M. S. et al. The path towards endangered species: Prehistoric fisheries in Southeastern Brazil. Plos One. 29 jun. 2016.

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entrevista Sylvio Ferraz Mello

Uma trajetória singular Estudos do astrofísico ajudaram a entender características e anomalias na órbita de asteroides e outros corpos celestes Marcos Pivetta e Igor Zolnerkevic  |

E

retrato

Léo Ramos

m 22 de maio, o paulistano Sylvio Ferraz Mello, professor emérito e ex-diretor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), esteve em Nashville. A visita à meca da música country não era para assistir a shows. Ferraz Mello foi aos Estados Unidos para participar da reunião anual da Divisão de Astronomia Dinâmica da Sociedade Americana de Astronomia, que o agraciara com o Brouwer Award, prêmio concedido a pesquisadores que deram uma contribuição de destaque na área. A astronomia dinâmica estuda os movimentos dos corpos celestes, como satélites, planetas e asteroides, regidos principalmente pelas interações gravitacionais entre esses objetos. Não é uma área que costuma gerar manchetes em publicações não especializadas. Mas suas teorias, equações e modelos são a base para explicar por que o Sistema Solar e, mais recentemente, os conjuntos de exoplanetas exibem suas atuais configurações. Físico de origem, Ferraz Mello é o associado número 1 da Sociedade Astronômica Brasileira (SAB). Fez doutorado na Universidade de Paris (Sorbonne) em 1967. De 1987 a 1994, foi coordenador adjunto da área de Exatas e Engenharias da FAPESP. Em sua carreira, estudou as órbitas de satélites, de asteroides e, ultimamente, de exoplanetas. Seus modelos ajudaram a entender, entre outras questões, por que há muitos asteroides no Sistema Solar com período orbital de oito anos e poucos ou quase nenhum com período de quatro e seis anos. 26 | setembro DE 2016

idade 80 anos especialidade Dinâmica do Sistema Solar e sistemas planetários extrassolares formação Graduação em física pela Universidade de São Paulo (1959); doutorado em astronomia pela Universidade de Paris/ Sorbonne (1966) instituição IAG-USP produção científica 137 artigos, 40 capítulos de livros, 19 livros como autor ou organizador. Orientou 17 mestrados e 23 doutorados (1 em andamento)



Um dos fenômenos mais estudados por Ferraz Mello é a ressonância, um tipo de influência gravitacional que um corpo celeste exerce sobre outro quando seus períodos orbitais são comensuráveis. Ou seja, quando o período de um é uma proporção racional do outro, como no caso de asteroides que demoram seis anos para dar uma volta ao Sol, metade do tempo necessário para Júpiter completar a mesma tarefa. Nesta entrevista, além das pesquisas, Ferraz Mello conta um pouco de sua trajetória, que inclui a passagem pela astronomia do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), pelo Observatório Nacional (ON), a longa carreira na USP e a participação no trabalho de prospecção do sítio em que seria instalado nos anos 1970 o Observatório do Pico dos Dias, do Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA). “Descobrimos o lugar quase por acaso”, lembra, ativo, em sua sala no IAG, às vésperas de completar 80 anos em outubro. O senhor recebeu o Brouwer Award por algum trabalho específico ou pelo conjunto da obra? Foi fundamentalmente pelo meu trabalho sobre asteroides. Duas outras questões também devem ter influenciado. Uma foi o peso que a comunidade de astronomia dinâmica tem hoje na América Latina. Há três anos, a Divisão de Astronomia Dinâmica da Sociedade Americana de Astronomia fez sua reunião anual em Paraty e levou um susto. Foi o maior encontro deles em número de participantes. Aqui há poucas reuniões. Então, quando tem uma, vai todo mundo. Acho que também pesou a atuação na revista da comunidade, a Celestial Mechanics and Dynamical Astronomy. Desde 2001, sou o editor-chefe, cargo que deixarei no próximo ano. Em 1983, um asteroide ganhou seu nome, o 5201 Ferraz-Mello. Por que recebeu essa homenagem? Praticamente todos os colegas da comunidade de astronomia dinâmica tem o seu asteroide. Não é uma exclusividade. O descobridor desse, Ted Bowell, é uma pessoa com quem sempre me dei bem e ele me deu esse prêmio. É um asteroide muito peculiar. Fiquei muito feliz e comecei a trabalhar com esse asteroide. Descobri nele características dinâmicas notáveis. Ele tem um período próximo 28 | setembro DE 2016

A ressonância provoca reações caóticas em um corpo. O asteroide roda ao redor de Júpiter, mas sua órbita começa a se deformar

de seis anos, é ressonante, e está numa órbita bem alongada. Foi observado no Soar [Observatório Austral de Pesquisa Astrofísica, no Chile] por colegas do Rio de Janeiro e descobrimos que pode se tratar de um cometa extinto ou de um que nunca se acendeu. Daqui a dois anos, ele se aproximará bastante da Terra e poderá ser bem observado. Poderemos verificar se aparece uma auréola de gás em volta dele. Quando chegar mais perto do Sol, ele poderá se aquecer e formar uma cabeleira. Isso seria um indicativo de que ele tem algo de cometa. Por que resolveu estudar o fenômeno da ressonância orbital em asteroides? Antes, eu trabalhava com a dinâmica de satélites, área relativamente ingrata, extremamente importante, mas pequena.

Eu conhecia quase todo mundo. Devia haver menos de 100 pesquisadores seniores no mundo nessa área. É um setor que necessita de conhecimentos muito precisos para embasar as missões espaciais. Em determinado momento, vi que havia uma similaridade entre um problema específico dos satélites e dos asteroides. Pensei em aproveitar o gancho. Naquele tempo, eram conhecidos talvez 40 ou 50 satélites enquanto já se conheciam mais de mil asteroides. Esse era, portanto, um assunto mais rico, com uma comunidade muito maior. Comecei a trabalhar com asteroides na década de 1980. Mas o que o atraiu exatamente para esse campo? Vi que havia problemas com asteroides não resolvidos que mereciam um estudo sistemático. Houve também uma circunstância favorável. Eu estava com um grupo muito bom de alunos de pós-graduação no IAG. Quase todos eram bolsistas da FAPESP e dois deles depois do doutorado receberam vários prêmios. Com esse grupo, montei um projeto temático que me permitiu comprar uma workstation com alta capacidade de processamento, era top de linha. Tinha então um poder de cálculo maior do que muitos colegas do exterior. Os processadores Risc da HP tinham acabado de sair e uma das primeiras máquinas veio para cá. Conseguimos estudar vários problemas dos asteroides e resolver alguns. Como eram esses problemas? Sempre falo em números redondos para ficar mais fácil. Júpiter leva um período de 12 anos para dar uma volta ao redor do Sol. Os períodos dos asteroides se situam entre dois e 12 anos. Alguns deles estão em ressonância orbital com o planeta. Tem períodos comensuráveis com o de Júpiter. Então se encontram com Júpiter sempre no mesmo ponto de sua órbita. Asteroides que não estão em ressonância cruzam com Júpiter cada vez em um lugar diferente. A ressonância altera de forma significativa o movimento do asteroide, amplificando sua órbita. Essa saga começou com estudos de outros pesquisadores sobre asteroides com período de quatro anos, um terço do de Júpiter. Eles queriam saber por que não existem asteroides com período de quatro anos no Sistema Solar. Essa particularidade é denominada falhas de Kirkwood.


Como assim? Quando olhamos a distribuição dos asteroides, encontramos corpos com período maior ou menor, mas não de quatro anos. Por que no ponto que seria um terço do período de Júpiter não há asteroides? Essa questão foi resolvida nos anos 1980 antes de eu começar a estudar asteroides. A ressonância provoca reações chamadas de caóticas na órbita de um corpo. O asteroide roda ao redor de Júpiter, mas, como recebe um impulso gravitacional do planeta gasoso sempre no mesmo lugar, sua órbita começa a se deformar. Ela vai ficando extremamente alongada. O asteroide começa a excursionar em uma área muito maior do Sistema Solar. Isso pode levá-lo a uma quase colisão com Marte. Ao colidir, deixa de ser um asteroide com período de quatro anos. Continua existindo, mas em outra órbita. Em nosso primeiro trabalho estudando essa questão, vimos que a situação era muito mais drástica do que os colegas haviam verificado.

arquivo Pessoal

Drástica em que sentido? Nessa situação, o asteroide não só podia cruzar a órbita de Marte, mas também a da Terra. Ele pode passar a menos de 1 milhão de quilômetros (km) de distância da Terra, o que é muito perto. Nada impede que um dia um objeto desses venha a colidir com a Terra. Isso não quer dizer necessariamente uma colisão física, mas passar muito perto. Se isso ocorrer, o asteroide será desviado de sua trajetória para uma outra órbita. Esse tipo de instabilidade está presente em muitos asteroides. Em seguida, tentei estudar com o mesmo método asteroides com período de seis anos, mas a abordagem não funcionou. A órbita desses asteroides não crescia o suficiente para levar a uma colisão com outros planetas. O que o senhor fez então? Comecei a trabalhar com a família de asteroides com período de oito anos, equivalente a dois terços do de Júpiter. Esse caso é um pouco diferente. Em vez de existir uma falha, há um grupo de asteroides com esse período. Muita gente tentava entender por que era assim. Então, como eu disse antes, compramos um bom computador e melhoramos o modelo para essa situação. Quanto mais complicado o modelo, mais complexas ficam as equações. Para estudar a ausên-

Ferraz Mello em 1997 com os ex-alunos Daniela Lazzaro, Tatiana Michtchenko, Fernando Roig, Cristian Beaugé, Alessandro Simula, Roberto Vieira Martins, Tadashi Yokoyama e Rodney Gomes

cia de asteroides de quatro anos, havíamos adotado um modelo simples, com três corpos. Colocamos o Sol, Júpiter e um asteroide em órbita. Mas, graças ao novo equipamento, fizemos um modelo mais complexo, com um corpo a mais, para os asteroides com período de oito anos. Havia o Sol, o asteroide, Júpiter e Saturno. Quando introduzimos esse planeta a mais no modelo, tudo se resolveu tranquilamente. Conseguimos inclusive explicar até por que não há grandes asteroides com período de seis anos. Não há asteroides antigos nessa ressonância, apenas pedrinhas que entraram lá recentemente. Quer dizer que o modelo servia para explicar tanto a ausência de grandes asteroides com período de seis anos quanto o excesso de asteroides com período de oito anos? Quando escrevemos as equações para os asteroides de seis e de oito anos, vimos que elas eram rigorosamente as mesmas. Mas por que havia falta de asteroides de um tipo e excesso de outro? Por que alguns podiam ser desviados para perto de um planeta e outros não? Para responder a essa questão, tivemos de fazer o nosso trabalho mais longo até então. Concluímos que os dois casos eram idênticos, mas a escala de tempo associada a cada situação era diferente. Era uma questão numérica. O lugar onde estão os asteroides de oito anos também vai se esvaziar desses corpos, só que isso ainda não ocorreu. Calculamos que sejam necessários 10 bilhões ou 20 bilhões de

anos para que isso ocorra na região com os asteroides de oito anos. Mas o Sistema Solar tem só 5 bilhões de anos. Na região onde estavam os asteroides com período de seis anos o tempo de esvaziamento é de 100 milhões a 1 bilhão de anos. Já deu tempo para isso ocorrer. Assim matamos a charada. A sua resposta foi logo aceita pela comunidade científica? A primeira vez que apresentei esse trabalho foi em Belgirate, na Itália, em 1993. Estávamos em um evento, no segundo andar de um prédio, e quase me jogaram pela janela quando expus meus resultados. Me obrigaram mesmo a eliminar várias passagens no artigo que publiquei nos anais desse evento. Qual era a crítica fundamental ao trabalho? Acho que era ter encontrado algo que os outros não tinham achado e ter mostrado as órbitas em que os asteroides dão esses grandes pulos gravitacionais. Para chegar a esse cálculo, de que a região com os asteroides de seis anos se esvaziava em no máximo 1 bilhão de anos, usei uma fórmula empírica, que havia sido deduzida por pesquisadores de Harvard a partir de experimentos numéricos. Sabemos que a fórmula é uma verdade prática, estatística, mas não há um teorema matemático que a prove. Logo depois, recebi um excelente aluno da República Tcheca, David Nesvorny, que ficou encarregado de estudar essa questão com uma metodologia mais robusta e de mais fácil aceiPESQUISA FAPESP 247 | 29


Em frente ao Palais de L‘Institut, em Paris, por volta de 1970: doutorado na Sorbonne

tação pelos meus colegas europeus, de formação mais matemática. Ele fez um grande trabalho. Ficou anos programando e calculando e mostrou de maneira irrefutável, por A mais B, que um tipo de asteroide sumia da ressonância em menos de 1 bilhão de anos enquanto o outro precisaria de pelo menos 10 ou 20 bilhões de anos para sumir. Nessa história, houve algo divertido. Uma das pessoas que estavam na reunião de Belgirate e que me colocou várias questões – amigavelmente, pois éramos todos amigos – era um estudante, um recém-doutor de Milão, Alessandro Morbidelli. Mais tarde, ele se rendeu aos nossos argumentos e usou até uma figura nossa para ilustrar a capa do livro que escreveu sobre a dinâmica do Sistema Solar. Como o senhor começou a estudar a órbita dos exoplanetas? Houve uma situação gozada. Fiquei dois anos no Observatório Nacional, no Rio, entre 1999 e 2001, e depois voltei para a USP. Quando retornei, a professora Tatiana Michtchenko, que fez parte da minha equipe de alunos e que hoje trabalha na sala ao lado da minha, estava estudando os movimentos em sistemas ressonantes de exoplanetas, com outro ex-integrante da equipe, o pesquisador argentino Cristian Beaugé. Eu também estava começando a pesquisar essa questão, mas com outra abordagem, estudando a evolução de sistemas ressonantes sob o efeito da maré [efeito secundário da gravidade que faz as partes mais próximas de um corpo serem mais atraídas do que as mais dis30 | setembro DE 2016

Foi a melhora dos espectrógrafos que permitiu a descoberta dos planetas extrassolares? Exatamente. Hoje um espectrógrafo mede velocidades radiais com precisão de 1 metro por segundo. O Usain Bolt corre 10 metros por segundo. O equipamento mede o efeito Doppler do Usain Bolt. Realmente a precisão é fantástica. Como o senhor avalia hoje a astronomia brasileira? É uma astronomia de boa qualidade. Temos vários colegas que são muito respeitados em suas áreas. O problema, como o de toda ciência brasileira, é que temos um pesquisador que é referência internacional em cada área. Tem um na especialidade A, outro na B e outro na C. Mas não existe massa crítica para formar equipes. Sofremos do mal da universidade. Quando abre uma vaga, ela deve procurar a melhor pessoa possível para o posto. O concurso para aquela vaga tem de ser amplo. Só que, às vezes, a pessoa escolhida, que é a melhor, não está interessada em nada do que os outros pesquisadores da universidade fazem. Para a universidade, está tudo bem. A diversificação é importante para ela. Mas, do ponto de vista do estabelecimento científico, isso não contribui para a manutenção de equipes. Elas se formam, têm um certo tempo de vida, mas o trabalho não tem continuidade. Mesmo os institutos ligados aos CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], que poderiam pensar diferente, acabam fazendo exatamente como as universidades. Como surgiu seu interesse pela astronomia? Alguém na família era pesquisador? Um tio, Ary Ferraz Mello, era químico e teve uma grande influência no que fiz. Ele trabalhava em cursos técnicos e tam-

bém foi professor universitário. Escreveu um livro de química analítica que foi usado em várias universidades e chegou a ser convidado para vir para a USP, mas já estava com a vida toda encaminhada e não aceitou. Naquele tempo, nos anos 1960, trabalhar na USP era para rico. Podia-se ficar três, quatro meses sem receber até que a burocracia da contratação terminasse. Mas a entrada na astronomia foi meio por acaso. Até hoje tenho dificuldade em me considerar astrônomo. Sou físico, não astrônomo. Minha física tem muita matemática. Na França, onde fiz doutorado, a astronomia fundamental era colocada dentro da matemática. Não sei como é hoje. Acho que hoje seria um doutorado em astronomia, nem em física, nem em matemática. O senhor foi funcionário técnico da USP antes de ser professor. Como ocorreu isso? Em 1955, entrei no curso de física da USP, que funcionava no prédio da rua Maria Antônia, no centro de São Paulo, e ali fiquei cinco anos. Um dia fomos tomar café no bar da esquina com o professor de mecânica, Abrahão de Mo­raes. Ele estava com um caderno na mão e colocou em cima da mesa. Havia um carimbo no caderno, no qual estava escrito Observatório de São Paulo. Nem sabia que existia um observatório em São Paulo. Então comecei a fazer perguntas para ele sobre astronomia. Alguns meses

Com Luiz Muniz Barreto, Abrahão de Moraes e o belga Sylvain Arend: reunião de astrônomos em Hamburgo em 1964

fotos arquivo pessoal

tantes]. Um dia mostrei uma figura para eles e eles me mostraram outra, idêntica à minha. Tínhamos chegado aos mesmos resultados. Acho que fomos os primeiros a estudar sistemas de exoplanetas cujas órbitas são ressonantes entre si. Um dos sistemas estudados foi o Gliese 876, cujo planeta mais interno precisa de 200 dias para dar a volta ao redor de sua estrela, enquanto o outro planeta demora 400 dias, exatamente o dobro.


depois, ele me convidou para ser técnico no observatório, que fica no Parque do Estado, no bairro da Água Funda [o IAG funcionou lá até o início deste século]. Eu estava no segundo ano da faculdade e era estagiário no acelerador Van de Graaff, com o professor Oscar Sala. No IAG, fiquei vários anos como técnico, fazendo cálculos para publicações do instituto. A história é mais complexa do que isso, com um longo período lecionando no Colégio Bandeirantes, depois na Física da USP, mas, mais tarde, acabei vinculado ao IAG e aqui estou até hoje. Houve um estudo interessante sobre o primeiro satélite artificial soviético, o Sputnik? Luiz de Queiroz Orsini e Antônio Hélio Guerra Vieira, da Escola Politécnica, fizeram uma antena para medir as radiações que atravessam a ionosfera e chegam até aqui quando o centro da galáxia passa pelo meridiano. A antena era uma rede de fios, não uma parabólica. Eles queriam fazer a medida todos os dias e ver como variava a ionosfera. Quando lançaram o Sputnik em 1957, apareceu no registrador a passagem do satélite. Acompanhamos o Sputnik 1 e o 2. Como técnico, o senhor já pensava em ser pesquisador? Fiz o curso de física para ser pesquisador. Tinha isso na cabeça. O que era a astronomia brasileira nessa época? Não existia. Fui um dos primeiros a sair do país para estudar e a voltar. Trabalhei com o professor Abrahão de Moraes [físico e astrônomo, dirigiu o Instituto Astronômico e Geofísico, primeira designação do atual IAG-USP, de 1955 a 1970] de 1956 até ir para a França em 1962. Estava com ele o tempo inteiro. No início, até dividia a mesa de trabalho com ele. Depois do doutorado fora, como foi o retorno ao Brasil, já com a ditadura instalada? Foi um período meio cinzento. Quando terminei o doutorado, não tinha emprego na USP. Estava a ponto de voltar para o Brasil, mas não sabia o que ia fazer. Muitos anos depois fiquei sabendo que circulara a notícia de que eu seria comunista e tinha até ficha no Dops. De fato, eu havia sido do Partido Socialista antes de

A astronomia brasileira é boa. Mas temos um pesquisador que é referência internacional em cada área. Falta massa crítica para formar equipes

sair do Brasil. Isso pode ter influenciando as coisas por aqui, mas, certamente, não da parte do Abrahão. Um dia, ainda em Paris, encontrei uns professores do ITA que lá estavam fazendo estágio e falei das minhas dificuldades. Eles sugeriram que eu fosse para o ITA. Dei risada e pensei o que faria no meio dos militares. Então me contaram que o ITA tinha acabado de instalar um telescópio e o reitor, professor Francisco Antônio Lacaz Netto, queria desenvolver a astronomia. Escrevi uma carta para ele e pedi para dar aula no departamento de matemática. Respondeu que na matemática não haveria emprego, mas, se eu viesse para desenvolver a astronomia, me empregaria. Fui para o ITA, onde fiquei oito anos. Lá criei a primeira pós-graduação

em astronomia no Brasil, em 1968. Logo depois apareceu a do Mackenzie, criada pelo Pierre Kaufmann. Voltei a trabalhar de novo no IAG quando criaram a pós-graduação aqui em 1973, primeiro só em tempo parcial, para dar aulas. Mas continuei também no ITA até 1975, quando vim definitivamente para a USP. É verdade que o senhor é o sócio número 1 da SAB, criada em 1974? Sim, sou. Mas foi porque eu que fiz a lista dos associados iniciais. Se você tivesse feito, também seria o número 1. O número inicial de sócios era da ordem de 60 pessoas. Enchia uma sala. Estávamos tentando organizar a astronomia de algum modo no Brasil. Fizemos uma reunião no prédio da reitoria velha da USP, onde o IAG tinha algumas salas. Ali tivemos a reunião em que decidimos formar uma sociedade. Nessa época, havia um trabalho conjunto da USP, do Observatório Nacional, do ITA, da Universidade Federal de Minas Gerais, do Mackenzie, para dotar o Brasil de um observatório. Estávamos procurando o sítio para montar o Laboratório Nacional de Astrofísica, o LNA. Quando ainda estava no ITA, coordenei os anos finais dessa procura. Foi fácil escolher o Pico dos Dias, em Brazópolis (MG)? Não foi, não. Descobrimos a área por acaso. Havia um problema: estávamos fazendo prospecção do melhor lugar para instalar o observatório no Brasil, mas não tínhamos um bom mapa da região onde estava o pico. Tínhamos de adivinhar onde as coisas estavam. Na época, os melhores mapas publicados eram as cartas aeronáuticas. Elas tinham todo o relevo marcado, o lugar onde estavam os picos, as serras. O estado de Minas Gerais ocupava várias folhas enormes do mapa, com muitos detalhes. Mas, por azar, Brazópolis ficava na área de exclusão aérea da escola de aeronáutica de Guaratinguetá. Nessa área, o mapa era todo hachurado e ali não se via nenhum pico. Quando estávamos estudando um pico próximo dali, em Maria da Fé, Germano Rodrigo Quast, que se aposentou recentemente do LNA, disse, segurando um binóculo: “Que pico é aquele que estou vendo daqui?”. Assim se descobriu, para a astronomia brasileira, a existência do Pico dos Dias, em Brazópolis. n PESQUISA FAPESP 247 | 31


política c&T  Instituição y

Universidade sem departamentos com 15 mil alunos e indicadores de pesquisa consistentes

Fabrício Marques

U

fotos  léo ramos

UFABC completa 10 anos

ma experiência inovadora entre as universidades públicas do país está completando uma década de existência com indicadores científicos e acadêmicos consistentes. No dia 11 de setembro de 2006, a Universidade Federal do ABC (UFABC) iniciou suas atividades num campus provisório no município de Santo André, a 19 quilômetros de São Paulo, recebendo os primeiros 500 alunos de graduação. Eles estavam matriculados em um mesmo curso, o bacharelado em ciência e tecnologia, e tinham aulas com 80 professores vinculados não a faculdades e departamentos, mas a três centros interdisciplinares, o de Ciências Naturais e Humanas, o de Matemática, Computação e Cognição, e o de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas. Passados 10 anos, a UFABC abriga hoje cerca de 15 mil alunos que frequentam dois campi com mais de 110 mil metros quadrados (m2) instala-


dos nas cidades de Santo André e São Bernardo do Campo e oferece 26 diferentes cursos de graduação. A porta de entrada são dois bacharelados interdisciplinares, em ciência e tecnologia e ciências e humanidades, mas após três anos de formação generalista, que já garantem um diploma de nível superior, os estudantes podem optar por 24 cursos, tais como ciências biológicas, física, matemática, química, relações internacionais, políticas públicas, neurociência e engenharias. Os 24 programas de pós-graduação da instituição, 13 deles com doutorado, já produziram mais de mil teses e dissertações. Todos os 660 docentes da UFABC têm título de doutor, situação incomum em universidades federais recém-criadas, e a maioria é jovem – a média de idade é inferior a 40 anos. Houve um esforço para atrair pesquisadores do exterior para os quadros da instituição – 12% dos professores são estrangeiros. Na universidade, é permitido

que aspirantes a docente façam concursos em inglês, assim como o idioma pode ser utilizado em disciplinas de graduação e pós-graduação, principalmente em cursos de engenharias. O atual reitor, o físico Klaus Werner Capelle, nasceu na Alemanha e radicou-se no Brasil em 1997. “Adotamos diversas medidas para estimular a pesquisa na universidade. Mesmo pesquisadores tão bem qualificados e motivados como a maioria dos docentes da UFABC precisam de incentivo”, diz Capelle, que antes de assumir o comando da universidade, em 2014, passou quatro anos à frente da Pró-reitoria de Pesquisa. O reitor se refere a editais internos para apoiar projetos de pesquisa de recém-doutores, à criação de laboratórios multiusuários e a incentivos no campo da iniciação científica que incluíram até mesmo dar bolsas para calouros, em um programa batizado de Pesquisando desde o Primeiro Dia (PDPD).

Campus da UFABC em Santo André: 26 cursos de graduação e 24 programas de pós-graduação

pESQUISA FAPESP 247  z  33


A

atividade de pesquisa se consolidou na UFABC não apenas pela formação de grupos de investigação, mas também por meio de núcleos interdisciplinares, criados a partir da demanda dos pesquisadores contemplada em editais da universidade. Hoje, existem cinco deles nas áreas de bioquímica e biotecnologia; cognição e sistemas complexos; ciência, tecnologia e sociedade; democracia, desenvolvimento e sustentabilidade; e universos virtuais, entretenimento e mobilidade. “A ideia dos núcleos é forçar a interação entre pesquisadores de várias áreas”, explica a biomédica Marcela Sorelli Carneiro Ramos, professora do Centro de Ciências Naturais e Humanas, atual pró-reitora de Pesquisa. A experiência de um desses núcleos, o de Cognição e Sistemas Complexos, inspirou a criação de curso de graduação na área e outro de pós-graduação. O núcleo, criado em 2008, reúne biólogos, físicos, farmacologistas e especialistas em modelagem matemática e computacional em torno de pesquisas sobre o funcionamento do cérebro (ver Pesquisa FAPESP nº 232). A pesquisa e a formação dos alunos têm interação com o setor privado da região. Dos 41 registros de patentes pedidos por pesquisadores da UFABC, quatro são fruto de colaborações com empresas, no caso Braskem, Cristália e STC Silicones. A universidade também criou, juntamente com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o Doutorado 34  z  setembro DE 2016

Microscópio eletrônico de varredura da Central Experimental Multiusuário da UFABC

Acadêmico Industrial (DAI), iniciativa voltada para a interação com o setor produtivo por meio da qual os alunos desenvolvem seus projetos de pesquisa dentro de empresas conveniadas, tais como a Thyssenkrupp, de elevadores, as montadoras General Motors e Mercedes-Benz, ou a Suzano de Papel e Celulose. Atualmente, há 26 alunos atuando em 14 empresas. “Nossa região é uma das mais industrializadas do país e somos procurados pelas empresas para ajudar na solução de problemas tecnológicos”, afirma o físico Fabio Furlan Ferreira, coordenador do Laboratório de Cristalografia e Caracterização Estrutural de Materiais da UFABC. Furlan foi beneficiado pelo programa Jovens Pesquisadores em Centros Emergentes, da FAPESP, entre 2010 e 2014, período em que montou o laboratório. O incentivo à interdisciplinaridade permitiu que a UFABC expandisse sua atividade de pesquisa de uma forma diferente da que acontece nas universidades brasileiras. Para amparar a atividade dos pesquisadores, foi criado, nos primeiros anos da universidade, um complexo de laboratórios com equipamentos multiusuários, em Santo André e São Bernardo, com mais de 50 equipamentos compartilhados de médio e grande porte para experimentos nas áreas de física, química, biologia e engenharias, tais como microscópios de varredura, ressonância magnética nuclear, difração de raios X, espectroscopia Raman, entre outros. “O objetivo é oferecer um conjunto de técnicas que permitisse aos nossos docentes

fotos  léo ramos

A produção científica ainda é modesta quando comparada à de universidades de pesquisa já consolidadas. Em 2015, os 660 docentes da UFABC publicaram 683 artigos em periódicos, segundo dados da Plataforma Lattes, marca distante, por exemplo, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que acaba de completar 50 anos e cujos 2,4 mil docentes publicaram pouco mais de 4 mil artigos em 2015, de acordo com a mesma plataforma. Mas a instituição obteve destaque em alguns indicadores internacionais de qualidade. Um exemplo foi a edição 2015 do ranking internacional Scimago, que contabilizou 179 instituições brasileiras com 100 ou mais artigos científicos publicados de 2009 a 2013, indexados na base de dados Scopus. Nesse universo, a UFABC é a mais bem colocada do país em quesitos como publicações de alta qualidade, que mede a proporção de artigos de uma instituição nas revistas científicas mais prestigiadas do mundo. Outro ranking, feito pela Universidade de Leiden, na Holanda, listou as universidades que mais publicaram artigos científicos de 2003 a 2012 e colocou a UFABC como a número 1 do Brasil em colaborações internacionais. Já o ranking da Times Higher Education listou a UFABC como a 18ª melhor universidade da América Latina.


Sistema avançado de difração de raios X utilizado pelos pesquisadores da universidade

nas, e sugeria no lugar uma estrutura mais ágil e flexível, capaz de responder melhor às tendências interdisciplinares da ciência na fronteira do conhecimento. Esse trabalho foi considerado quando o governo federal decidiu criar uma universidade no ABC paulista, região contígua à capital paulista que foi berço da indústria automobilística e reúne uma população de 2,5 milhões de habitantes. A criação da UFABC foi garantida em seus primeiros anos por uma oferta contínua de recursos federais, por meio do Ministério da Educação e de órgãos de fomento como a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). A universidade agora se ressente de restrições orçamentárias, que colocam um ponto de interrogação em sua capacidade de seguir crescendo no ritmo da primeira década. “A infância da universidade se desenvolveu num Núcleo de pesquisa em cognição cenário favorável, mas a deu origem a um curso de graduação adolescência está sendo influenciada pela crise fie um de pós-graduação nessa área nanceira, que chegou antes de o projeto ser completamente consolidado”, afirma o reitor Klaus Cafazer pesquisa competitiva internacionalmente”, pelle. Vários programas perderam recursos – o diz o físico Herculano Martinho, coordenador das número atual de bolsas do PDPD, de iniciação centrais experimentais multiusuário da UFABC. científica, é de 120, ante 400 há cerca de quatro “A cultura do compartilhamento de equipamen- anos. É provável que atrase a planejada ampliação tos, que tem pouca tradição no Brasil, faz parte dos campi – há planos, por exemplo, de construir dos valores da UFABC desde o início e permitiu novos prédios no campus de Santo André do lado aproveitar recursos e adquirir equipamentos de oposto do rio Tamanduateí, interligando os dois grande performance”, diz Martinho. Os equi- terrenos por meio de uma passarela sobre o rio pamentos eventualmente podem ser utilizados e a avenida marginal. Outros desafios estão sendo enfrentados. Logo por empresas conveniadas e por pesquisadores em seu primeiro ano de funcionamento, em 2007, de outras universidades. o Programa de Pós-graduação em Nanociências e m novo prédio com 6 mil m2 dedicados Materiais Avançados recebeu nota 5, numa escala apenas à pesquisa deverá ser entregue nos de 3 a 7 adotada pela Coordenação de Aperfeiçoapróximos meses. A cultura de comparti- mento de Pessoal de Nível Superior (Capes). O delhamento também está presente nos laboratórios sempenho foi bastante comemorado, uma vez que menores. “Divido um laboratório com outros programas nascentes costumam partir de notas dois colegas e adquirimos equipamentos de uso menores. Mas a nota caiu para 4 na avaliação mais comum”, informa a pró-reitora Marcela Sorelli, recente. “Os avaliadores da Capes consideraram também beneficiada pelo programa Jovens Pes- que as nossas publicações científicas estão muito quisadores em Centros Emergentes, da FAPESP. concentradas nos docentes e deveriam envolver “Pudemos fazer isso porque utilizamos técnicas e mais os estudantes”, diz Fábio Furlan Ferreira, metodologias semelhantes, embora a minha pes- ex-coordenador do programa. “Diversas ações quisa seja sobre fisiologia cardiovascular e a dos foram tomadas após a divulgação da avaliação, como a execução de um planejamento estratégicolegas sobre reprodução bovina e obesidade.” O modelo interdisciplinar adotado pela UFABC co, principalmente para fortalecer a maior mobiinspirou-se num documento produzido em 2004 lização do corpo discente nas publicações de alta pela Academia Brasileira de Ciências (ABC) com qualidade, marca característica do programa.” O sugestões para uma reforma no ensino superior jovem sistema de pós-graduação da UFABC dá do país. Esse documento criticava a propensão sinais de consolidação: a avaliação do programa dos departamentos a se fecharem em si mesmos, de mestrado e doutorado em física, por exemplo, assumindo o controle permanente de discipli- subiu de nota 4 para 5. n

U

pESQUISA FAPESP 247  z  35


indicadores y

Investimento contínuo Relatório de atividades 2015 da FAPESP destaca criação de centros de pesquisa aplicada e crescimento de bolsas no exterior

Paulo Pasta, sem título, 2015, óleo sobre tela

A

FAPESP aplicou em 2015 R$ 1.188.693.702 no apoio à pesquisa científica e tecnológica no estado de São Paulo. Apesar da queda da arrecadação tributária do estado e, consequentemente, do repasse de recursos estabelecido pela Constituição estadual à Fundação, o desembolso com pesquisa foi 3,1% superior a 2014, em termos nominais. Os dados são parte do Relatório de atividades 2015, com lançamento programado para o dia 14 de setembro, na sede da Fundação, com uma exposição de obras do pintor Paulo Pasta, que ilustram o documento e essa reportagem. A íntegra dos relatórios anuais desde a criação da FAPESP, em 1962, está disponível em www.fapesp.br/publicacoes. A receita da Fundação em 2015 foi de R$ 1.350.088.934. Desse total, 77,4%, ou R$ 1.045.335.370, foram transferidos pelo Tesouro estadual, repasse equivalente a 1% da receita de impostos do estado de São Paulo. Outros 5,5% (R$ 73.996.678) vieram de recursos patrimoniais da Fundação e 17,1% (R$ 230.756.885) referem-se a outras fontes de recursos, como convênios com instituições para finan36  z  setembro DE 2016

ciamento conjunto de pesquisas em que a FAPESP administra o desembolso. Uma novidade do Relatório de atividades 2015 é o capítulo que dimensiona o sistema paulista de ciência e tecnologia, composto por 62 entidades com missão orientada a atividades de pesquisa, entre universidades, instituições isoladas de ensino superior, institutos de pesquisa públicos e particulares, e por 14.787 empresas que desenvolvem atividades de inovação. O estado dispunha, em 2015, de 74 mil pesquisadores e respondeu pela publicação de 21.783 trabalhos científicos. Um total de R$ 27,5 bilhões foi aplicado em pesquisa e desenvolvimento no estado naquele ano. As empresas foram responsáveis por 57,2% desse montante, enquanto 22,7% vieram do governo estadual, 17,7% do governo federal e 2,4% de instituições de ensino superior particulares (ver quadro na página 39). Do total de recursos investidos pela FAPESP, 52% foram destinados a Pesquisas com Vistas a Aplicações, 40% em Pesquisas para o Avanço do Conhecimento e 8% no Apoio à Infraestrutura de Pesquisa paulista. “É dominante a

atividade voltada a aplicações, a qual inclui uma carteira especialmente intensa em saúde, agricultura e engenharia”, escreveram na apresentação do relatório o presidente da FAPESP, José Goldemberg, e o vice-presidente, Eduardo Moacyr Krieger. A Fundação financia diversas categorias de pesquisa aplicada, como as que estimulam a inovação em pequenas empresas e a parceria entre empresas e universidades para o desenvolvimento conjunto de conhecimento e de novas tecnologias, assim como os estudos que contribuem para a formulação de políticas públicas. Também se enquadram nesse rol programas de pesquisa voltados para temas específicos como bioenergia, mudanças climáticas globais, biodiversidade e ciência aplicada com base em grandes bancos de dados, entre outros. Um destaque de 2015 foi a criação de três novos Centros de Pesquisa Aplicada Colaborativa, que envolvem grandes parcerias entre empresas e universidades ou institutos, todas elas com um contrato por até 10 anos para desenvolver atividades de pesquisa avançada. Cada R$ 1 investido pela FAPESP mobiliza mais R$ 1


da empresa e R$ 2 da universidade ou instituto de pesquisa. A multinacional farmacêutica GlaxoSmithKline (GSK) é parceira de dois desses novos centros. Serão feitos investimentos da ordem de R$ 88,4 milhões, dos quais a FAPESP e a GSK vão compartilhar igualmente R$ 34,6 milhões. Outros R$ 53,7 milhões serão investidos pelas instituições que sediarão os centros. “Nosso objetivo é, no futuro, lançar um produto orgulhosamente descoberto no Brasil”, afirmou Cesar Rengifo, presidente da GSK, em novembro, segundo a Agência FAPESP.

Como os recursos foram aplicados Desembolso da Fundação em 2015 segundo quatro classificações

R$ 1,188 bilhão Desembolso da FAPESP em apoio a projetos de pesquisa Segundo a natureza da aplicação 52%

40%

Apoio à pesquisa com vistas a aplicações

8%

Apoio ao avanço do conhecimento

Apoio à infraestrutura de pesquisa

segundo a área do conhecimento 51%

28%

Ciências da vida

Ciências exatas e da terra e engenharias

segundo o vínculo institucional do pesquisador 48%

13%

USP

Unesp

13% Unicamp

11%

10%

Ciências Interdisciplinar humanas e sociais

13%

6% 4% 3%

Instituições federais Instituições estaduais

Empresas particulares Instituições particulares

segundo os programas da fundação 40% Bolsas regulares no país e no exterior

36%

14%

Auxílios regulares

Programas especiais

10% Programas de pesquisa para inovação tecnológica

auxílios em acordos para

colaboração internacional em pesquisa

0

auxílios e bolsas no programa pesquisa inovativa em pequenas empresas –

20 40 60 80 100 120 140 160 180

pipe

1996 1997 1998 1999 2000

2011

71

2001 2002 2003

2012

80

2004 2005 2006

2013

167

2007 2008 2009

2014

182

2010 2011 2012 2013 2014 2015

2015

236

química sustentável

Um dos centros, o de química sustentável, está sediado na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e busca descobrir insumos farmacêuticos e desenvolver sua produção sustentável. Outra meta é encontrar solventes, reagentes e matérias-primas sustentáveis, já que mais de um terço das emissões de carbono da cadeia de suprimentos da GSK é atribuído a esses materiais. O segundo centro, voltado para a identificação de alvos moleculares que permitam o desenvolvimento de fármacos para doenças inflamatórias, tem o Instituto Butantan como instituição sede. Já o terceiro centro, de pesquisa e inovação em gás natural, é uma parceria entre o BG Group-Shell, a Escola Politécnica (Poli) e o Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEE), ambos da Universidade de São Paulo (USP), além do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen). O centro foi concebido para desenvolver pesquisas sobre uso e aplicações de gás natural. A meta é intensificar sua presença na matriz energética paulista e brasileira e contribuir para a redução de emissões de gases de efeito estufa. “Nossas linhas de pesquisa serão voltadas para o transporte e para o uso do gás, além da prospecção de novos insumos a partir dele”, conta Julio Meneghini, professor da Poli-USP e coordenador do centro. O modelo desses centros, com financiamento de longo prazo e abordagem de temas de fronteira, foi adotado em iniciativas com outras empresas, como a montadora Peugeot Citröen e a empresa de cosméticos Natura. Também houve, em 2015, um crescimento significativo do apoio ao Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe). A cada semana, foram pESQUISA FAPESP 247  z  37


Programas que apoiam pesquisas com caráter mais ousado receberam R$ 391,3 milhões em 2015

Paulo Pasta, sem título, 2013, óleo sobre papel

aprovados três projetos de pesquisa em pequenas empresas de base tecnológica no estado. No total, foram contratados 159 projetos e 77 bolsas vinculadas a eles, em um total de 236 contratações – no ano anterior, a soma foi de 182 contratações. Contando os projetos que estavam em curso em 2015, 271 pequenas e médias empresas de 50 cidades foram apoiadas pelo programa. A capital paulista concentra 30% dessas empresas. As demais estão em Campinas (16%), São Carlos (15%), São José dos Campos (7%), Ribeirão Preto (6,5%), Piracicaba (4%), entre outras. O Pipe procurou responder a demandas específicas do desenvolvimento tecnológico do estado. Um exemplo de 2015 foi um edital lançado pela FAPESP e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) para a seleção de empresas qualificadas para o desenvolvimento de peças, produtos, processos e serviços do Sirius, nova fonte brasileira de luz síncrotron (ver Pesquisa FAPESP nº 234). competitividade

A FAPESP criou e mantém um conjunto de programas que busca apoiar pesquisas com caráter mais ousado e competitivo em nível internacional, tais como os Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid), os Projetos Temáticos, o Programa Jovens Pesquisadores em Centros Emergentes (JP), o São Paulo Excellence Chairs (Spec) e os Centros de Pesquisa Aplicada Colaborativa. O de38  z  setembro DE 2016

sembolso em 2015 com esse conjunto foi de R$ 391,3 milhões. O valor inclui gastos com equipamentos multiusuários, bolsas e auxílios vinculados a projetos desses programas, uma novidade do relatório de 2015 em relação aos anteriores. No caso dos temáticos, que têm duração de até cinco anos e envolvem frequentemente equipes com vários pesquisadores, foram desembolsados R$ 152,9 milhões nos projetos e quase R$ 100 milhões em itens vinculados a eles: R$ 62,6 milhões em bolsas no país, R$ 14,1 milhões em bolsas no exterior e R$ 20,8 milhões em outros auxílios. No total, os 482 projetos temáticos vigentes receberam R$ 250,6 milhões. Em 2015 foram contratados 82 novos temáticos. Há também os Spec, financiamentos que trazem cientistas de alto nível de outros países para liderar projetos em instituições do estado. Em 2015, oito projetos receberam um total de R$ 6,2 milhões. Os 17 Cepid receberam R$ 66,1 milhões. O objetivo desses centros, financiados por até 11 anos, é produzir pesquisa de classe internacional e caráter multidisciplinar, na fronteira do conhecimento. Já os 326 pesquisadores beneficiados pelo programa JP receberam R$ 67,4 milhões. Esse programa busca atrair e fixar no estado de São Paulo jovens doutores com grande potencial, estimulando a criação de laboratórios e núcleos de pesquisa em centros ainda sem uma tradição em investigação científica ou a implantação

de novas linhas de estudo em instituições consolidadas. Saúde, biologia, física e engenharia foram as principais áreas de foco de pesquisa. O programa também procura atrair jovens cientistas estrangeiros, com inserção internacional e que atuam em temas de fronteira ainda não cobertos por pesquisadores no estado. Nove projetos vigentes em 2015 são de pesquisadores estrangeiros. Algumas áreas do conhecimento, com uma comunidade de pesquisadores mais densa e numerosa, tradicionalmente têm um número maior de projetos, como é o caso de saúde, que ficou com 27,9% do total desembolsado, seguida por biologia, 14,9%, ciências humanas e sociais, com 10,3%, engenharia, 8,6%, agronomia e veterinária, 7,8%, química, 5%, física, 4,9%, astronomia, 3,1%, entre outros. Em 2015, pela primeira vez, as pesquisas interdisciplinares ficaram com o terceiro maior desembolso, com 10,4% do dispêndio total. Dos 26.445 projetos em andamento em 2015, 40,6% estavam vinculados a pesquisadores da USP, que receberam o maior volume de recursos (R$ 576,3 milhões), enquanto os das universidades estaduais Paulista (Unesp) e de Campinas (Unicamp) receberam quase R$ 156 milhões cada uma. Os pesquisadores das instituições federais sediadas em São Paulo receberam 12,6% do total, ou R$ 149,5 milhões, com destaque para as universidades federais de São Paulo (Unifesp), com R$ 57,8 milhões, e de São


Carlos (UFSCar), com R$ 44,4 milhões. No ano, foram gastos R$ 65,6 milhões com 1.316 projetos nas instituições de ensino e pesquisa estaduais – o Instituto Butantan ficou com R$ 15,2 milhões. O restante do desembolso, R$ 35,9 milhões, foi aplicado em 2.117 projetos de instituições particulares, municipais, empresas e associações. demanda espontânea

Pouco mais de 40% do desembolso da FAPESP em 2015, o equivalente a R$ 477,7 milhões, foi destinado a bolsas regulares no país e no exterior, uma das linhas de fomento por meio das quais a Fundação atende à demanda espontânea de estudantes e pesquisadores. Estavam vigentes no ano passado 16.200 bolsas regulares, sendo 14.282 projetos realizados no país e 1.918 no exterior. No ano, foram contratadas 5.448 novas bolsas. As bolsas no país receberam R$ 373,1 milhões. Duas modalidades ficaram com 81% desse desembolso: pós-doutorado, com R$ 157,4 milhões, e doutorado, com R$ 146 milhões. Já as modalidades de bolsas no exterior receberam R$ 104,6 milhões. Embora representem apenas 21,9% do desembolso com bolsas regulares, os recursos destinados às modalidades no exterior tiveram aumento nominal de 32,9% em relação a 2014, compensando os resultados das bolsas regulares no país, que receberam 7,6% a menos. Parte significativa dos recursos foi direcionada às Bolsas Estágio de Pesquisa no Exterior (Bepe), destinadas a bolsistas da FAPESP, da iniciação científica ao pós-doutorado, interessados em realizar em outro país estágios de pesquisa de até um ano de duração. O montante em 2015 foi de R$ 81,2 milhões. Mas foi a modalidade Bolsa de Pesquisa no Exterior (BPE), de nível de pós-doutorado, que registrou o maior crescimento de desembolso: 52,1%. A área de ciências humanas e sociais lidera em número de projetos vigentes nas BPE, com 142 (36%), e em volume de recursos (R$ 7,0 milhões ou 30%). Também registrou o maior volume de projetos vigentes de mestrado (80) e doutorado (181) das bolsas Bepe. Engenharia teve o maior número de bolsas Bepe em iniciação científica, com 21 projetos. A área da saúde destacou-se no número de estágios de pesquisa de doutorado direto e pós-doutorado no exterior e recebeu o maior volume de recursos na modalidade Bepe.

O sistema paulista de C&T Instituições, pesquisadores, recursos e outros indicadores compilados no Relatório de atividades da FAPESP 34

62 entidades de pesquisa

Institutos de Pesquisa

18 6 4

Institutos de Pesquisa Particulares

Universidades Instituições Isoladas de Ensino Superior

1.486

14.787

Produtos de metal

1.140

empresas inovadoras

Artigos de borracha e plástico

1.082

Produtos alimentícios

11.079

6.777

1.714

doutores

11.168 mestres foram titulados em 2015

Outras

patentes de invenção foram solicitadas ao INPI por pesquisadores do estado

74 mil pesquisadores no estado 43,2 mil Em instituições de ensino superior

27,9 mil Em empresas

3,1 mil Em institutos de pesquisa estaduais, federais e particulares

R$ 27,5 bilhões aplicados em p&D no estado 57,2 % R$ 15,73 bilhões Empresas

22,7 %

17,7 %

2,4 %

R$ 6,26 bilhões

R$ 4,86 bilhões

R$ 0,66 bilhão

Governo estadual

Governo federal

Instituições de ensino superior particulares

O relatório registra, ainda, um avanço no apoio a iniciativas de colaboração internacional. Foram 355 auxílios a pesquisa e 1.185 bolsas em vários programas de estímulo à cooperação internacional. Ao todo, foram investidos R$ 139 milhões, sendo R$ 59 milhões em cofinanciamento de pesquisa resultante

de convênios com universidades e agências de fomento do exterior – a FAPESP mantinha no ano passado 142 acordos de cooperação vigentes com instituições de 27 países, sendo 26 assinados em 2015 – e R$ 80 milhões em projetos de intercâmbio científico não vinculados a esses convênios. n Fabrício Marques pESQUISA FAPESP 247  z  39


Bioengenharia y

Prontos para competir Clube de estudantes prepara equipes para participar de disputa internacional em biologia sintética e enfrenta falta de recursos

Bruno de Pierro

U

m grupo de estudantes da Universidade de São Paulo (USP) especializou-se em organizar equipes para participar de competições científicas internacionais. Desde 2012, o Clube de Biologia Sintética da USP prepara alunos de graduação e pós-graduação, estagiários de pós-doutorado e docentes para disputar a International Genetically Engineered Machine Competition (iGEM), realizada anualmente nos Estados Unidos. Há dois anos, um time que tinha integrantes também das universidades Estadual Paulista (Unesp) e Federal de São Carlos (UFSCar) foi premiado com medalha de bronze pelo projeto que propôs uma forma de diagnóstico de doença renal crônica (DRC) a partir de biomarcadores. Agora, outras duas equipes formadas na USP, em reuniões promovidas dentro do clube, participarão da edição 2016 da iGEM, que será realizada entre os dias 27 e 31 de outubro em Boston. A competição, lançada em 2004 no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), objetiva incentivar o avanço de pesquisas em biologia sintética, campo que desenvolve dispositivos biológi-

40  z  setembro DE 2016

cos, como sensores, equipamentos e softwares, voltados à solução de problemas nas áreas de ambiente, saúde, alimentos e energia. Neste ano, deverá contar com mais de 300 equipes formadas por estudantes e pesquisadores de instituições de ensino superior de todo o mundo. “O Clube de Biologia Sintética da USP funciona como um agregador de pessoas para viabilizar projetos, organizar equipes para competições e promover discussões sobre novas ideias relacionadas à pesquisa em biologia molecular e sintética”, explica Otto Heringer, aluno de graduação em química na USP e um dos coordenadores do clube. Uma das equipes que participarão da iGEM utilizou lâminas de madeira MDF, chapas de acrílico e moldes de silicone para construir artesanalmente uma cuba de eletroforese e uma microcentrífuga, equipamentos que permitem a separação de moléculas e amostras biológicas em experimentos de laboratório. Um estudo iniciado em janeiro utiliza os aparelhos no desenvolvimento de um curativo para queimaduras com propriedades antimicrobianas. A manipulação genética de microalgas

marinhas faz com que sintetizem proteínas de teia de aranha, utilizadas como matéria-prima. O grupo, formado por pesquisadores da USP, da Unesp e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), apresentará os primeiros resultados do trabalho na iGEM. “Uma das categorias da iGEM premia equipes que desenvolvem seus próprios hardwares. Por isso, além de concorrermos com o projeto, esperamos conquistar alguma medalha com os equipamentos que fabricamos”, conta João Vitor Dutra Molino, doutorando da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da USP e integrante da equipe. Os times que participam da iGEM não precisam necessariamente apresentar resultados finais ou protótipos. No entanto, espera-se que mostrem o que há de promissor no projeto em andamento e os achados preliminares já obtidos. “Começamos a segunda etapa da pesquisa, que consiste em expressar a proteína da teia de aranha em microalgas. Estamos correndo contra o tempo para concluir essa fase até a data da competição”, diz Molino, que já participou de outras edições da iGEM.


FOTOS EDUARDO CESAR

Pesquisadores da USP buscam sintetizar proteínas de teia de aranha (esq.) a partir de microalgas. Acima, da esquerda para a direita, parte da equipe que irá à competição em Boston: Mireia Mitter, Tiago Lubiana, Allan Tanaka, João Vitor Dutra Molino e Livia Camargo. Ao lado, equipamento de eletroforese feito pelo grupo

Os 25 integrantes da equipe, que inclui professores, pesquisadores e alunos de graduação e pós-graduação, enfrentam não apenas desafios científicos, mas também a dificuldade em conseguir recursos para financiar o projeto e a viagem de parte do grupo aos Estados Unidos. “Tenho contribuído com a equipe entrando em contato com empresas que possam nos ajudar doando dinheiro ou insumos para pesquisa, como reagentes”, conta Lívia Seno Ferreira Camargo, pós-doutoranda na FCF-USP e uma das coordenadoras do time. O primeiro obstáculo da equipe foi a inscrição do projeto na competição. “O valor da inscrição para participar da iGEM é de US$ 5 mil (cerca de R$ 16 mil) por equipe. Conseguimos apoio da multinacional farmacêutica Merck, na Alemanha, que pagou nossa inscrição.” Os pesquisadores também lançaram uma campanha de financiamento coletivo na internet (crowdfunding) e conse-

guiram angariar cerca de R$ 5 mil. A USP disponibilizou mais de R$ 20 mil para cobrir despesas de alunos da instituição. De acordo com Lívia, a dificuldade em levantar recursos suficientes ajuda a explicar a baixa participação do Brasil na iGEM. Neste ano, serão apenas três equipes brasileiras disputando prêmios. “Há muitos grupos de pesquisa em biologia sintética no país, com competência para participar da iGEM, mas sem condições financeiras de se inscrever e participar da competição”, informa. modelo replicado

A USP tem tradição na iGEM graças à organização estudantil. “Uma das maneiras de se organizar é por meio dos clubes, cujo modelo brasileiro nasceu no campus da capital e foi replicado nas unidades de Lorena e Ribeirão Preto, bem como em outras universidades, como a Federal do Amazonas [Ufam] e a Unesp de Assis”, explica Otto Heringer, lembrando

que clubes estudantis são comuns em universidades de outros países. No caso da Escola de Engenharia de Lorena (EEL) da USP, alunos de graduação e pós-graduação organizaram-se pela primeira vez em torno de um projeto para a iGEM. Sob coordenação do geneticista Fernando Segato, professor da EEL, a equipe trabalha na produção de alcanos, componentes na produção de diesel de petróleo, a partir de bactérias Escherichia coli geneticamente modificadas para resistir aos ácidos graxos. Isso permitiria produzir um óleo livre de oxigênio, aumentando a eficiência dos motores. O outro projeto brasileiro que participará da iGEM é desenvolvido na Ufam em parceria com a Universidade do Estado do Amazonas (UEA), em Manaus. O grupo participou da edição de 2014 da competição e foi laureado com medalha de ouro em sua categoria, ao criar uma linhagem de bactérias geneticamente modificadas capazes de detectar, absorver e quebrar compostos de mercúrio presentes na água. A ideia é usar os microrganismos que, de acordo com os pesquisadores, podem ser classificados como máquinas geneticamente modificadas, para livrar os mananciais da Amazônia desse metal pesado, altamente prejudicial à saúde. A contaminação dos rios da região por mercúrio ocorre principalmente por causa de sua utilização na atividade de mineração do ouro. Agora, a mesma equipe irá a Boston apresentar uma nova etapa do estudo: o protótipo de um biorreator para limpar água contaminada com mercúrio. Para participar da competição, o time arrecadou R$ 42 mil via crowdfunding e conseguiu apoio de empresas privadas: o Google doou R$ 15 mil e a Natura, R$ 13 mil. A Ufam bancou o custo da inscrição e a UEA também ajudou em passagens de avião para seus estudantes. “Envolver alunos de graduação em competições como a iGEM traz benefícios concretos para a formação de novos pesquisadores. Eles passam a se comprometer com o trabalho em equipe e tentam dar sentido prático ao conhecimento aprendido em sala de aula”, afirma Carlos Gustavo Nunes da Silva, professor de engenharia genética da Ufam e coordenador do projeto, que envolve 10 alunos e três professores. n pESQUISA FAPESP 247  z  41


ciência  NEUROLOGIA y

Mortes cercadas de mistério 42  z  setembro DE 2016


zorzetto vai arrumar outra imagem de eletro

Grupos no Brasil e no exterior buscam identificar as causas de óbitos súbitos e inesperados de pessoas com epilepsia Ricardo Zorzetto

ilustraçãO atribuída a jean jouvenet / wikipedia

O

Pessoa com epilepsia durante crise em uma maca, obra atribuída a Jean Jouvenet (1644-1717); e registro de crise epiléptica (no alto), com redução da atividade cerebral

neurofisiologista Fulvio Scorza, coordenador do Laboratório de Pesquisa em Morte Súbita nas Epilepsias da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), está interessado em identificar as possíveis alterações moleculares que as crises epilépticas podem provocar no coração de ratos. Nos próximos meses, sua equipe realizará em 40 animais um longo processo de sensibilização do cérebro que leva os roedores a desenvolver epilepsia. O estudo deverá ajudar na investigação que ele faz há quase 15 anos sobre a causa das mortes associadas à epilepsia, especialmente a morte súbita e inesperada ou Sudep, na abreviatura em inglês, um problema poucas vezes citado pelos médicos nas consultas com pacientes e seus familiares. A suspeita é que a atividade elétrica anormal do cérebro durante as crises leve o coração a adoecer e, eventualmente, a parar de funcionar. Scorza espera encontrar no coração desses animais algumas moléculas produzidas em níveis alterados que funcionem como sinalizadoras do dano cardíaco provocado pela epilepsia. Caso as identifique, como outros estudos já indicaram ser possível, e consiga quantificá-las por meio de um simples exame de sangue, ele, por fim, estará perto de um marcador de risco cardíaco específico para a epilepsia. Essa ferramenta, buscada nos últimos tempos por diferentes grupos internacionais, pode ajudar a conhecer quais são as pessoas com essa enfermidade neurológica que apresentam maior probabilidade de sofrer uma parada cardíaca durante uma crise epiléptica. “Se formos capazes de identificar esses pacientes, podemos orientá-los a passar por um acompanhamento cardiológico mais rigoroso ou, quando for o caso, indicar ao neurologista a necessidade de alterar a medicação para o controle das crises”, explica o pesquisador.

Estudos internacionais indicam que a Sudep responde por algo entre 8% e 17% das mortes entre indivíduos com epilepsia. O que mais surpreende e intriga, no entanto, é que suas vítimas em geral têm menos de 40 anos e não apresentam problema de saúde além da epilepsia. Algumas estimativas indicam que, em média, uma em cada mil pessoas com epilepsia sofre morte súbita. Se esses dados valerem para o Brasil, onde cerca de 2 milhões de pessoas (1% da população) têm epilepsia ativa, a projeção é que ocorram por aqui 2 mil casos de Sudep por ano. Especialistas suspeitam que a parada do coração seja a causa imediata de uma parcela relativamente grande desses óbitos. “Calculo que, em um terço dos casos, a morte súbita seja decorrente de arritmia e posterior parada cardíaca”, afirma o neurologista brasileiro Josemir Sander, uma das mais importantes referências internacionais na investigação da Sudep. Sander vive há 33 anos na Inglaterra, onde é professor na University College London (UCL), e já publicou mais de 600 artigos científicos, quase 10% deles relacionados à Sudep. Seu interesse no assunto surgiu de uma eventualidade ocorrida em 1993, quando Sander trabalhava como residente médico no hospital universitário da UCL. Durante um passeio, encontrou o irmão de um paciente que não havia comparecido a consultas recentes. Sander perguntou ao rapaz sobre a saúde do irmão e se surpreendeu ao saber que o paciente havia morrido inesperadamente. A notícia o deixou atônito. “Corri para o hospital e comecei a procurar o nome dos pacientes que haviam faltado às últimas consultas”, conta Sander. Ele identificou cerca de 30 indivíduos que haviam deixado de ir ao hospital e escreveu uma carta para o médico de família de cada um deles. A descoberta de que a maioria estava morta transformou o seu modo de ver a epilepsia. Boa parte dos neurologistas considerava a doença um problema de saúde pouco grave. Muitos ainda pensam assim, mas não mais Sander. Nem Scorza. “Se não for tratada adequadamente, a epilepsia pode matar”, enfatiza o neurofisiologista da Unifesp, um dos poucos que investiga Sudep no Brasil. Estima-se que existam 50 milhões de pessoas com epilepsia no mundo, cerca de 80% vivendo em países em desenvolvimento. Estudos feitos nos pESQUISA FAPESP 247  z  43


anos 1990 e no início da década passada indicam ralizadas. Elas se iniciam com o funcionamento que a frequência de Sudep pode variar muito, de- anormal de um grupo de neurônios altamente pendendo da gravidade da epilepsia. Os números excitáveis, que passam a disparar sinais elétrimais baixos, obtidos em levantamentos menos cos de modo sincronizado, gerando uma onda rigorosos, mostram que, a cada ano, entre uma de ativação que toma o cérebro. Essa tormene quatro pessoas podem morrer repentinamente ta elétrica é acompanhada de uma descarga de em cada grupo de 10 mil indivíduos com epilepsia. compostos químicos que inunda o corpo. Vários As estatísticas mais aceitas, porém, apresentam hormônios são liberados, os batimentos cardíanúmeros até 10 vezes mais elevados: haveria de cos podem saltar de 60 para 180 por minuto e uma a duas mortes por ano em cada grupo de mil. a pressão arterial sistólica, passar de 12 para 21 Essa proporção pode chegar a um em cada 100 milímetros de mercúrio. Durante esse tipo de crise é comum perder-se entre as pessoas com epilepsia de difícil controle e número elevado de crises, candidatas a uma a consciência. A excitação dos neurônios faz os cirurgia que remove a área cerebral disparadora músculos contraírem vigorosamente e permanecerem retesados por alguns instantes – é a chadas tempestades elétricas no cérebro. Ainda nos anos 1990, Sander e seus colabora- mada fase tônica. A seguir, com a diminuição das dores na UCL iniciaram o acompanhamento de descargas elétricas, inicia a fase clônica, em que os músculos relaxam e se condiferentes grupos de pacientraem sucessivamente, fazendo tes, alguns deles seguidos até o corpo contorcer. “É um períohoje, e revisaram informações do de horror que em geral dura sobre centenas de pessoas com de um a dois minutos”, resume epilepsia que morreram. Eles Quem tem a neurologista Elza Yacubian, também estabeleceram colaepilepsia não professora da Unifesp e espeborações com pesquisadores cialista em epilepsia. da Europa, da África e da Ásia controlada por Os médicos imaginam que, por meio das quais buscam como forma de evitar a morte, conhecer quão comum é a Sumedicamentos o cérebro reage à ativação exdep. Nesse tempo, Sander e sua cessiva liberando neurotransequipe descobriram padrões deve dormir missores que acalmam os neuimportantes que ajudaram a caacompanhado rônios. Se essa reação for inracterizar essa forma de morte. tensa demais, porém, ela pode Um de seus primeiros achade um adulto, desligar as áreas cerebrais que dos, confirmado recentemente, coordenam os batimentos caré o de que a maioria das mordizem médicos díacos e a respiração, levando tes repentinas ocorre à noite, à morte por parada cardíaca, em geral durante o sono. Quase respiratória ou ambas. sempre quem morre está soziHá seis anos Sander particinho e é encontrado com lesões que indicam a ocorrência recente de um surto, pou de um trabalho que analisou conjuntamente os como marcas de mordida na língua. Essa cons- resultados de quatro grandes estudos que haviam tatação levou os médicos a fazerem uma reco- comparado as características das vítimas de Sudep mendação geral: quem tem epilepsia, em especial com as de indivíduos com epilepsia que continuanão controlada por medicamentos, deve sempre vam vivos. Ao confrontar os sinais apresentados que possível dormir acompanhado de um adulto. por 289 pessoas que morreram subitamente com “Uma pessoa que esteja por perto pode impedir os de 958 que haviam sobrevivido, os pesquisadoque o indivíduo se sufoque, caso sofra uma crise res encontraram diferenças importantes. Um dos fatores que mais aumentou o risco enquanto dorme de bruços. Também é possível que o simples toque de quem acompanha o pa- de morte foi o número de crises epilépticas por ciente seja suficiente para que recobre os sentidos ano. Ter de uma a duas crises tônico-clônicas generalizadas elevou em três vezes o risco de e volte a respirar depois da crise”, diz Sander. morrer repentinamente, de acordo com o trabalho, publicado em 2011 na revista Epilepsia. A Tormenta elétrica A diversidade e a duração das crises variam mui- probabilidade de morte súbita, porém, era oito to. Algumas levam segundos e quase não são per- vezes maior entre as pessoas que tinham de três cebidas, por causarem apenas leves tremores a 12 crises por ano do que entre aquelas que perou um ligeiro movimento da cabeça, enquanto maneciam livres dos surtos. Acima de 13 crises o outras podem se estender por minutos e provo- risco de morte era 10 vezes maior. Outros dois fatores também influenciaram o car desmaios e fortes contrações musculares. As mais graves são as crises tônico-clônicas gene- risco de morte: o início precoce da epilepsia e 44  z  setembro DE 2016


sa análise, identificou-se que logo após a crise epiléptica a respiração se tornava acelerada e, por vezes, era temporariamente interrompida, antes de cessar definitivamente, de acordo com os resultados iniciais do estudo apresentado em 2013 na revista Lancet Neurology. quase parando

reprodução de Guido da Vigevano, Anathomia (1345)

Na imagem do século XIV, médico realiza trepanação, cirurgia que era usada para tratar epilepsia

o número de medicamentos usados para tentar manter a pessoa livre das crises, um indicador indireto da gravidade do problema. De modo geral, quanto mais grave a epilepsia, mais remédios precisam ser associados para controlar o problema, embora também exista uma suspeita não confirmada de que certas medicações possam aumentar o risco de morte. Esse estudo mostrou também que o risco de morte crescia ainda mais se, apesar do uso da medicação, a pessoa continuasse a apresentar crises. Levantamentos que investigavam casos de paradas cardíacas súbitas, ocorridas sem que o coração estivesse previamente doente, sugeriam que o problema era até 20 vezes mais comum entre as pessoas com epilepsia do que entre aquelas sem o problema neurológico. Mais recentemente, a equipe do neurologista francês Philippe Ryvlin constatou que a interrupção da atividade cardíaca em geral era precedida de uma parada respiratória. Ryvlin é pesquisador do Centro de Pesquisa em Neurociência de Lyon, na França, e do Centro Hospitalar Universitário Vaudois, em Lausanne, na Suíça, e coordena o projeto Mortemus, que acompanha em cinco países pessoas com epilepsia refratária ao tratamento. Na tentativa de descobrir os mecanismos por trás das mortes, ele e colaboradores reuniram informações sobre 29 casos de paradas cardiorrespiratórias e 16 de Sudep ocorridos após crises epilépticas. Nes-

Em 2013, o neurologista Veriano Alexandre, médico-assistente do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), passou um ano em Lyon, na França, trabalhando com a equipe de Ryvlin em outro projeto. Lá, analisou os dados do eletroencefalograma de 69 franceses com epilepsia resistente aos medicamentos e constatou que, em alguns casos, a atividade elétrica do cérebro diminuía muito após a crise, como se o órgão estivesse parando de funcionar. Ele viu ainda que a diminuição dessa atividade poderia ser evitada se o paciente recebesse logo após o surto um suprimento de ar rico em oxigênio. Não se sabe se o problema aumenta o risco de Sudep, mas os pesquisadores recomendaram que, sempre que possível, se administre oxigênio durante e após a crise. Sander conta que já desistiu de buscar uma causa única para as paradas cardíaca e respiratória associadas à epilepsia. “Está ficando claro que a Sudep é um problema multifatorial”, avalia. Enquanto não se descobre mais sobre o problema, os médicos são unânimes em suas recomendações. O mais importante, dizem, é fazer o tratamento adequado para evitar as crises – os medicamentos controlam a epilepsia de modo eficaz em 70% dos casos. Eles também aconselham a manter hábitos saudáveis, como dormir em horários regulares e praticar atividade física, além de evitar o estresse excessivo, que pode desencadear crises. Em estudos com animais de laboratório, Scorza, da Unifesp, encontrou evidências de que o consumo de suplementos ricos em ácidos graxos ômega 3 exercem uma ação protetora sobre o cérebro e o coração. n

Projeto O impacto da frequência de crises epilépticas no coração e na variabilidade da frequência cardíaca (nº 2015/19279-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Fulvio Alexandre Scorza (Unifesp); Investimento R$ 77.883,90.

Artigos científicos HERSDORFFER, D. C.; et al. Combined analysis of risk factors for Sudep. Epilepsia. 28 jan. 2011. RYVLIN, P. et al. Incidence and mechanisms of cardiorespiratory arrests in epilepsy monitoring units (Mortemus): A retrospective study. Lancet Neurology. out. 2013. ALEXANDRE, V. et al. Risk factors of postictal generalized EEG suppression in generalized convulsive seizures. Neurology. set. 2015. BORGES, M. A. et al. Urban prevalence of epilepsy: Populational study in São José do Rio Preto, a medium-sized city in Brazil. Arquivos de Neuropsiquiatria. v. 62 (2-A), p. 199-205. 2004.

pESQUISA FAPESP 247  z  45


SAÚDE PÚBLICA y

Por que os escorpiões agora preocupam Número de casos de envenenamento cresceu 600% em 15 anos

eduardo cesar

Everton Lopes Batista


D

O escorpião-amarelo, causador da maioria dos acidentes graves

ezenas de caixas de plástico empilhadas do piso ao teto em uma sala climatizada de uma ala nova do biotério do Instituto Butantan abrigam cerca de 5 mil exemplares vivos de Tityus serrulatus, o escorpião-amarelo, a espécie que mais causa envenenamento em pessoas no país. Técnicos e pesquisadores do laboratório de artrópodes transitam entre as caixas com cuidado, mas sem receio, para alimentar os animais com baratas e grilos, retirados diariamente de um estoque de milhares de insetos mantido nas salas ao lado. Os escorpiões – tanto o amarelo quanto os de outras espécies – são mantidos ali com duas finalidades. A primeira é a produção do soro usado para neutralizar a ação do veneno – ou peçonha—, cada vez mais importante em vista do aumento de quase 600% no número de acidentes e mortes causados por esses animais nos últimos 15 anos. Esse aumento é o resultado da expansão urbana sobre áreas antes ocupadas por matas, do acúmulo de lixo e entulho que atraem insetos que servem de alimento, e da capacidade desses animais de se adaptarem a ambientes variados, de florestas úmidas até desertos. De acordo com os registros do Ministério da Saúde, os escorpiões provocaram a maior parte dos acidentes com animais peçonhentos no país, com 74.598 casos registrados, e causaram mais mortes (119) que as serpentes (107), em 2015 (ver gráfico). A segunda finalidade é a pesquisa dos efeitos – muitas vezes inesperados – do veneno de escorpiões no organismo humano. “O conhecimento sobre os componentes do veneno e seus efeitos ainda tem lacunas”, afirma a médica Fan Hui Wen, gestora de projetos do Butantan, que acompanha a produção de soro contra picadas de escorpiões. “Algumas espécies estão causando acidentes com manifestações clínicas diferentes das que até agora eram conhecidas.”

Em um estudo publicado neste mês de setembro na revista Toxicon, pesquisadores da Fundação de Medicina Tropical, de Manaus, apresentaram o provável primeiro registro de um caso de acidente classificado como grave, com espasmos musculares e alterações neurológicas, causado por Tityus silvestris, uma espécie comum na Amazônia, em geral associada a acidentes sem gravidade. Um homem de 39 anos, com problemas no fígado causados por hepatite B – estava à espera de um transplante –, foi picado no cotovelo e no ombro enquanto dormia em sua casa na periferia de Manaus. Três horas depois, chegou ao hospital da Fundação Medicina Tropical relatando apenas dor e parestesia (formigamento) na região da picada, no braço esquerdo. Em duas horas, porém, o homem apresentou dificuldade para respirar, taquicardia, hipertensão e espasmos musculares. O quadro se agravou. Ele foi internado em uma unidade de terapia intensiva, recebeu soro e outros medicamentos e foi liberado apenas sete dias depois. “Esse caso indica que o quadro clínico pode se complicar independentemente da espécie que causa o envenenamento”, diz o farmacêutico bioquímico Wuelton Marcelo Monteiro, pesquisador da fundação e um dos responsáveis pelo estudo. “Ainda há poucos trabalhos sobre as consequências e a variação dos efeitos dessa espécie de ampla distribuição geográfica na Amazônia.” Entre as cerca de 160 espécies de escorpião encontradas no Brasil, apenas 10 causam envenenamento em seres humanos. De modo geral, o veneno – formado por proteínas, enzimas, lipídeos, ácidos graxos e sais – age sobre o sistema nervoso, causando dor intensa e dormência muscular no local da picada. Com menor frequência se observam efeitos sistêmicos como vômitos, taquicardia, hipertensão arterial, sudorese intensa, agitação e sonolência. A dificuldade de respirar caracteriza os quadros mais pESQUISA FAPESP 247  z  47


graves, verificados principalmente em crianças. As picadas por Tityus obscurus, comum na região amazônica, podem causar também efeitos neurológicos, com espasmos, tremores e uma sensação de choque elétrico. “Como o veneno escorpiônico pode ser rapidamente absorvido na corrente sanguínea”, diz o pediatra Fábio Bucaretchi, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp), “as manifestações clínicas indicativas de envenenamento grave se iniciam em geral nas primeiras duas horas após a picada”. Em um estudo amplo, publicado em 2014 na Toxicon, Bucaretchi e outros pesquisadores examinaram 1.327 casos de acidentes com escorpiões atendidos no Hospital de Clínicas da Unicamp de 1994 a 2011. Nesse levantamento, predominaram os acidentes apenas com reações locais (79,6%) e sistêmicas, com vômitos, sudorese e alterações no ritmo cardíaco (15,1%). A chamada picada seca – sem sinais de envenenamento – respondeu por 3,4% do total de casos analisados, enquanto os casos mais graves, com risco de morte, foram de 1,8%. “Todos os casos graves e o único caso letal ocorreram em crianças com idade menor que 15 anos”, diz Bucaretchi. A maioria dos acidentes provocados por animais identificados foi atribuída ao

sangue, os linfócitos T, quanto a produção de uma citocina – molécula de comunicação do sistema imune – conhecida como interferon-gama. De acordo com esse trabalho, publicado em fevereiro deste ano na Immunology, essa propriedade poderia qualificar as duas toxinas como candidatas a medicamentos contra doenças autoimunes. “Os testes já estão sendo realizados e se apresentaram promissores”, diz ela. Sob orientação do médico José Elpidio Barbosa, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FM-RP) da USP, Manuela desenvolveu um anticorpo monoclonal humano (produzido a partir de técnicas de clonagem de DNA), que deteve a ação do veneno do escorpião-amarelo em testes em células e em modelos animais (camundongos). Com base nos resultados, os pesquisadores propuseram o uso do anticorpo como uma alternativa ao soro usado atualmente contra picadas de escorpiões. Segundo ela, uma das principais limitações do novo anticorpo é o custo de produção, estimado em R$ 3 mil por ampola. “Queremos melhorar o antídoto, mas também procuramos por novos medicamentos que possam surgir de moléculas isoladas do veneno”, diz a química Fernanda Portaro, pesquisadora do Butantan. Ela e sua equipe e colegas de outros

escorpião-preto, Tityus bahiensis (27,7%), e ao amarelo (19,5%), normalmente o principal causador de acidentes e, neste estudo, responsável pelas ocorrências mais graves. O escorpião-amarelo inquieta também em razão de sua capacidade de adaptação ao ambiente urbano e ao tipo de reprodução. As fêmeas dessa espécie conseguem se reproduzir sozinhas, sem precisar de machos, por meio de um processo conhecido como partenogênese; cada ninhada pode resultar em até 30 filhotes. Em laboratório

“Os estudos com a peçonha de Tityus serrulatus ajudam a entender o quadro de envenenamento, direcionam a produção de melhores antivenenos e possibilitam a descoberta de novas drogas terapêuticas”, explica a biomédica Manuela Berto Pucca, contratada como professora em julho deste ano pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Roraima (UFRR). Em seu pós-doutorado na Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FCF-RP-USP), ela isolou duas toxinas, chamadas Ts6 e Ts15, do veneno do escorpião-amarelo. Em testes in vitro, as duas toxinas inibiram tanto a proliferação de um grupo de células brancas do

Perigo crescente Total de acidentes causados por escorpiões em 2015 é três vezes maior que o provocado por serpentes

Choque elétrico de baixa intensidade induz liberação de veneno

Acidentes com 88.437

escorpiões 79.713

74.598 64.162 60.142 50.830 52.509

Acidentes com

serpentes

40.287

36.965 29.722 37.370 35.395 24.146 22.341 17.944 12.552

11.479

25.849 23.011

27.707

27.995 26.754 26.599 27.725

30.580

30.386

28.392

31.145

27.279

24.467

28.458

18.283

2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 Fonte  Ministério da Saúde

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2011

2012

2013

2014 2015


laboratórios do instituto isolaram e estão caracterizando dois compostos extraídos do veneno: um com ação pró-inflamatória e outro com atividade analgésica. “O veneno dos escorpiões é como uma orquestra executando uma sinfonia, em que cada elemento tem uma função específica, sobre os músculos, o sistema nervoso ou o coração”, afirma a bióloga Daniela Carvalho, da equipe de Fernanda.

Fêmea de escorpião-amarelo com filhotes após se reproduzir sozinha, por partenogênese

fotos  eduardo cesar

Prevenção

Estima-se em 2,5 bilhões o número de pessoas em áreas de risco para escorpiões no mundo e em 1,2 milhão os casos anuais de envenenamento, com 3.500 mortes, causadas essencialmente pela demora em buscar o atendimento médico. “Os casos fatais podem ser evitados quando se busca ajuda médica com urgência e o tratamento é iniciado logo após o acidente”, ressalta Fan Hui Wen, do Butantan. Depois de apresentar as salas dos escorpiões, ela mostra, em outra sala, a extração feita de modo manual. Cada animal recebe um choque elétrico de baixa intensidade na cauda e, em resposta, solta uma pequena gota esbranquiçada de veneno. É preciso manter uma grande população de escorpiões porque os animais não resistem a mais de cinco extrações induzidas por choque elétrico, explica Denise Candido, bióloga responsável pela extração de venenos dos escorpiões. Os animais provêm de hospitais (em geral as pessoas os levam após picadas para identificação), de centros de controle de zoonoses ou de expedições dos próprios pesquisadores, e só entram na linha de produção após passarem por uma quarentena, que elimina aqueles com eventuais doenças. Depois, o método usado para produção de soros é o mesmo usado contra picadas de serpentes e aranhas: o veneno é diluído e aplicado nos cavalos da fazenda São Joaquim, no município de Araçariguama. Os 850 cavalos produzem anticorpos contra o veneno, que depois são extraídos de seu sangue para formar o soro, em um processo que leva de seis a oito meses. Segundo Hui, o Ministério da Saúde necessita de 80 mil ampolas de soro antiescorpiônico por ano, produzido no Butantan, no Instituto Vital Brasil, no Rio de Janeiro, e na Fundação Ezequiel Dias, em Minas Gerais.

Casos fatais podem ser evitados quando se busca ajuda médica com urgência, alerta especialista do Butantan

“É muito importante prevenir acidentes, limpando os terrenos que possam abrigar escorpiões e evitando o acúmulo de lixo”, recomenda Bucaretchi, da Unicamp. Os especialistas consideram de baixa eficácia uma estratégia adotada em cidades do interior paulista e noticiada nos últimos meses: a criação de galinhas nos quintais de casas ou em condomínios. A razão é simples: apesar de serem predadores naturais dos artrópodes, as galinhas têm hábitos diurnos e os escorpiões são animais noturnos. No passado, as soluções eram ainda mais inusitadas. No início da década de 1950, os moradores de Ribeirão Preto, então com uma população de quase 80 mil pessoas (hoje são cerca de 600 mil), usaram dois inseticidas hoje proibidos, o benzeno hexaclorado (BHC) e o diclo-

rodifeniltricloroetano (DDT), para deter uma infestação de escorpiões – cerca de 10 mil foram capturados em banheiros, quartos de dormir, cozinhas e quintais de 1949 a 1951, de acordo com um relato na American Journal of Tropical Medicine and Hygiene. Havia campanhas em rádios e jornais, palestras em escolas, pontos de coleta espalhados pela cidade e um prêmio, promovido pelo prefeito, para o estudante que coletasse o maior número de escorpiões. n

Projetos 1. Estudo das toxinas Ts6 e Ts15 do escorpião Tityus serrulatus como potenciais drogas terapêuticas para o tratamento de doenças autoimunes (no 2012/129546); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisadora responsável Eliane Candiani Arantes – Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCF-RP) da Universidade de São Paulo (USP); Beneficiária Manuela Berto Pucca; Investimento R$ 235.699,44. 2. Análise do potencial tóxico de proteases e peptídeos presentes no veneno do escorpião Tityus serrulatus e do poder neutralizante dos antivenenos comerciais: Aprimorando o conhecimento do veneno e seu mecanismo de ação (no 2015/15364-3); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Fernanda Calheta Vieira Portaro – Instituto Butantan; Investimento R$ 97.681,32.

Artigos científicos MONTEIRO, W. M. et al. Scorpion envenoming caused by Tityus cf. silvestris evolving with severe muscle spasms in the Brazilian Amazon. Toxicon. v. 119, p. 266-9. 2016. BUCARETCHI, F. et al. Clinical consequences of Tityus bahiensis and Tityus serrulatus scorpion stings in the region of Campinas, southeastern Brazil. Toxicon. v. 89, p. 17-25. 2014. PUCCA, M. B. et al. Immunosuppressive evidence of Tityus serrulatus toxins Ts6 and Ts15: Insights of a novel K+ channel pattern in T cells. Immunology. v. 147, n. 2, p. 240-50. 2016. SILVA, T. L. da. The scorpion problem in Ribeirão Preto, São Paulo, Brazil. Notes on epidemiology and prophylaxis. American Journal of Tropical Medicine and Hygiene. v. 1, n. 3, p. 508-13. 1952.

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Zoologia y

As raposas da América Desmatamento promove encontro entre espécies distintas e propicia surgimento de híbridos Maria Guimarães

C

om espécies distribuídas em todos os continentes, exceto o antártico, as raposas não gozam de muita popularidade no Brasil. Não que tenham má fama: na verdade sua existência quase passa despercebida, apesar de serem vítimas frequentes de atropelamento em estradas. Mesmo os biólogos não costumam lhes dar atenção, mas o grupo do geneticista Eduardo Eizirik, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), começou a reconstruir a história da diversificação desses animais na América do Sul e indica como alterações no ambiente podem afetar geneticamente essas espécies – embora seja incerto que isso cause problemas aos animais. De acordo com artigo publicado na edição de julho/setembro da revista Genetics and Molecular


Graxaim-do-campo (esq.) e raposinha-do-cerrado (dir.) procriam no estado de São Paulo

Biology, a raposinha-do-cerrado (Lycalopex vetulus) foi a primeira espécie desse grupo de canídeos a divergir evolutivamente das linhagens norte-americanas, entre 1 milhão e 1,3 milhão de anos atrás, depois que um ancestral comum atravessou o istmo do Panamá rumo ao sul. Entre as oito espécies de raposas sul-americanas, essa é a única restrita ao Brasil, habitante de toda a extensão do Cerrado e por isso afeita a paisagens abertas. As análises realizadas pela geneticista Ligia Tchaicka como parte do doutorado orientado por Thales de Freitas, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e coorientado por Eizirik, mostram que o surgimento e a diversificação do gênero Lycalopex aconteceram já na América do Sul. A conclusão se encaixa na hipótese desenvolvida por outros grupos de que uma elevação no nível do mar teria separado a América do Sul em duas partes durante o Pleistoceno. A divisão teria deixado um grupo no leste brasileiro, que deu origem à raposinha-do-cerrado, e outro ocidental, que se expandiu até a região dos Andes e ali se diversificou, dando origem às outras espécies.

fotos 1 jarbas mattos  2 Cintia Possas

Híbridos

Ao comparar o material genético de cinco espécies de raposas da América do Sul, Ligia, hoje professora na Universidade Estadual do Maranhão (Uema), notou outro enigma: alguns indivíduos que haviam sido classificados como graxaim-do-campo (L. gymnocercus) – típico da região Sul brasileira, além de Uruguai, Argentina, Paraguai e Bolívia – tinham o DNA mitocondrial (recebido apenas da mãe) mais aparentado à raposa-cinzenta-argentina, L. griseus, amplamente distribuída no Chile e na Argentina – nas duas vertentes dos Andes, portanto. Uma explicação possível seria que essas raposas fossem na verdade híbridas, uma conclusão surpreendente já que, apesar de haver sobreposição entre as distribui-

ções das duas espécies, não há registros de locais onde ambas existam. Estudos mais recentes, ainda não publicados, apontaram outro foco de hibridização, desta vez entre o graxaim-do-campo e a raposinha-do-cerrado, em São Paulo. “Com o desaparecimento gradual da Mata Atlântica, a raposa vai ocupando áreas abertas e expandindo sua distribuição para fora do domínio do Cerrado”, explica o geneticista. “Já havíamos imaginado a possibilidade de que ela poderia acabar se encontrando com o graxaim-do-campo.” A formação de híbridos não é novidade para ele, que já encontrou resultados semelhantes em gatos-do-mato (ver Pesquisa FAPESP nº 159). É exatamente o que vem mostrando o trabalho do biólogo Fabricio Garcez durante o mestrado e agora o doutorado, em andamento no laboratório de Eizirik, na PUC-RS. Alguns animais com aparência de L. vetulus têm o DNA mitocondrial de L. gymnocercus, uma mistura corroborada por marcadores no material genético nuclear, que cada animal recebe tanto do pai quanto da mãe. Garcez agora está fazendo análises genômicas, com resultados preliminares que indicam que todas as raposas paulistas amostradas até o momento combinam material genético das duas espécies. Os resultados também sugerem que ao menos alguns desses animais já não eram da primeira geração mestiça. Sinal de que os híbridos, nesse caso, são ao menos parcialmente férteis.

“Estamos vendo que o DNA de L. gymnocercus está invadindo mais as populações de L. vetulus do que o contrário”, conta o professor da PUC. É uma hibridação muito provavelmente causada pelas alterações resultantes da ocupação humana, o que lhe causa preocupação. “Ainda não sabemos se esse processo causará mudanças genéticas profundas que possam afetar a existência da espécie”, reflete Eizirik, que apresentou essas descobertas no simpósio sobre os 20 anos da genética da conservação no Brasil no congresso da Sociedade Brasileira de Genética ocorrido este mês em Caxambu, Minas Gerais. Para ampliar os estudos e aprofundar o entendimento genético do que está acontecendo com essas raposas, Eizirik defende que o ideal seria a formação de uma rede – tanto de pesquisadores como de cidadãos não ligados à esfera acadêmica – que pudesse coletar e compartilhar informações, fotografias e até amostras de material biológico adquiridas de animais atropelados (os doadores involuntários mais frequentes de material genético), assim como dados obtidos em expedições de campo e animais mantidos em cativeiro. n

Artigo científico TCHAICKA, L. et al. Molecular assessment of the phylogeny and biogeography of a recently diversified endemic group of South American canids (Mammalia: Carnivora: Canidae). Genetics and Molecular Biology. v. 39, n. 3, p. 442-51. jul./set. 2016.

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nanotecnologia y

Ilustração de rede neuronal baseada em memoristores: nanocomponentes funcionariam de forma similar às sinapses

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O segredo do memoristor

IBM

E

m 1971, um professor de engenha­ ria elétrica e ciências da com­pu­ tação da Universidade da Califór­ nia em Berkeley (EUA) publicou um trabalho em que propunha a existên­ cia de um novo componente básico da eletrônica. Leon Chua defendeu a ideia de que poderia haver um resistor com memória, o memoristor, com proprie­ dades únicas desde que fosse confec­ cionado na escala nanométrica. Então um conceito teórico e matemático, esse elemento seria capaz de oscilar, quase instantaneamente, entre o comporta­ mento de um isolante e o de um semi­ condutor e de “lembrar” seu último nível de resistência elétrica quando deixasse de receber uma corrente. Apenas em 2008, 37 anos mais tarde, uma equipe dos HP Labs, dos Estados Unidos, pro­ duziu o primeiro circuito baseado no componente elusivo. Os pesquisadores fizeram um nanofilme de óxido de titânio com memoristores de 15 nanômetros. A partir desse trabalho, o memoristor pas­ sou a ser divulgado como um curinga em potencial da nascente nanoeletrônica. Ele seria capaz de desempenhar, mais rapidamente, com menor consumo de energia e de espaço físico, as duas tarefas mais básicas de um computador: pro­ cessar (como um chip com transistores de silício) e armazenar (como os discos rígidos de PCs e a memória flash de pen drives) informação. Até hoje, não se sabe ao certo por que os memoristores funcionam de manei­ ra singular, embora algumas empresas, como a gigante Panasonic e a pequena Knowm, do Novo México (EUA), já este­ jam comercializando timidamente ver­ sões modestas de chips baseados nesse

Pesquisadores tentam mostrar qual mecanismo está por trás da capacidade de processar e armazenar dados desse componente da eletrônica Marcos Pivetta

componente. A movimentação de alguns átomos de oxigênio no interior de nano­ filmes feitos de óxidos metálicos, quando submetidos a distintas correntes elétri­ cas, é a tese mais aceita para justificar as propriedades singulares dos memoristo­ res. Uma equipe de físicos teóricos das universidades Federal do ABC (UFABC), Estadual Paulista (Unesp) e Nacional de Yokohama (Japão) propôs no início de julho, em um artigo no periódico Scientific Reports, uma explicação alternativa para o fenômeno: a circulação de elé­ trons seria a principal responsável pelas características desse componente, visto que o “andar” de átomos não seria rápi­ do o bastante para produzir os efeitos atribuídos aos memoristores. Esses componentes podem mudar sua resistência em razão da passagem de uma corrente elétrica em poucos picos­ segundos (a trilhonésima parte de um segundo equivale a um picossegundo). “Não estamos afirmando que esse efeito se deva apenas a um fenômeno eletrô­ nico”, explica Gustavo Dalpian, físico da UFABC, coordenador da equipe que produziu o estudo teórico, feito no âm­ bito de um projeto temático da FAPESP. “Mas acreditamos que só a oscilação dos átomos no interior do material não se­ ria suficiente para explicar as caracte­ rísticas dos memoristores.” Segundo o artigo, em determinadas configurações internas de seus átomos, como nas cha­ madas fases deficientes em oxigênio do óxido de titânio, os memoristores con­ seguem armazenar carga. “Isso altera suas propriedades eletrônicas e, conse­ quentemente, sua capacidade de con­ duzir ou não a eletricidade”, afirma o físico Antonio Claudio Padilha, outro pESQUISA FAPESP 247  z  53


coautor do estudo, que fez doutorado sobre o tema na UFABC e hoje realiza um pós-doutorado na Universidade de York, na Inglaterra.

A

nova proposta de teoria para es­ clarecer a natureza do funcio­ namento do memoristor ainda precisa ser amparada por dados prove­ nientes de experimentos. Alguns pesqui­ sadores que trabalham há mais tempo na área se mostram céticos em relação a mudar o foco explicativo do fenômeno dos átomos para os elétrons. Esse é o ca­ so do físico Gilberto Medeiros-Ribeiro, da Universidade Federal de Minas Ge­ rais (UFMG). Em abril deste ano, três meses antes do artigo de Dalpian e seus colaboradores, Ribeiro e uma equipe de pesquisadores da HP reforçaram a hi­ pótese tradicional sobre o mecanismo de funcionamento desse tipo de com­ ponente com novas evidências. Em artigo publicado na Nature Communications, os cientistas relataram a medição de um ruído interno origina­

do pela movimentação de íons (átomos que perderam ou ganharam elétrons) em um sistema com memoristores fei­ tos de óxido de tântalo. “O ruído era 10 mil vezes maior nos pontos de contato entre os átomos e os eletrodos do circui­ to”, informa Ribeiro, que trabalhou por quatro anos e meio nos HP Labs como gerente de pesquisa com memoristores antes de ser contratado pela universida­ de mineira. “Nas dimensões de nossos dispositivos, basta um átomo de oxigê­ nio ‘andar’ uma posição atômica dentro do memoristor para que sua resistência diminua 10 vezes.” No estudo, Ribeiro e os colegas da empresa norte-americana criaram memoristores em que o canal interno, o espaço em que os íons pode­ riam se mover, equivalia à espessura de um átomo. Como a radiação cósmica de fundo é um dos indícios da existência do Big Bang, esse ruído interno excessivo dos memoristores, que ocorre apenas em condições de contato atômico, seria uma evidência do movimento dos íons dentro do material.

Computadores baseados em memoristores consumiriam menos energia e seriam mais rápidos

Apesar de os memoristores não ne­ cessitarem de condições especiais para funcionarem, trabalhos anteriores de Ribeiro e outros pesquisadores indicam que podem ocorrer enormes variações de temperatura em pontos específicos desses componentes. “O circuito como um todo está em temperatura ambiente, mas os pontos de contato entre os óxidos metálicos e os eletrodos podem atingir 800 graus Celsius”, explica Ribeiro. Es­ se acúmulo de calor em certas regiões também explica a rápida movimentação dos átomos dentro desses componentes, segundo o físico da UFMG. A estrutura de um memoristor é ex­ tremamente simples. Trata-se de um na­ nofilme, composto por fios de um óxido metálico de largura entre 20 e 50 nanô­ metros, conectado a dois eletrodos de metal, os tais pontos ou polos de contato. Não fosse por sua diminuta escala, essen­ cial para que apresente suas particulari­ dades, o memoristor poderia ser confun­ dido com um resistor convencional, um dos três componentes passivos (que não geram energia) fundamentais dos circui­ tos eletrônicos, ao lado dos capacitores e indutores. “É um componente relati­ vamente fácil de ser fabricado, embora ainda haja muitas questões sem resposta a respeito de seu funcionamento”, co­ menta Dalpian. Folhas nanométricas de memoristores podem ser empilhadas e originar colmeias com esse componente.

E Metal Óxido Metal

Imagem de circuito com 17 memoristores (ao lado) e desenho com esquema do nanocomponente: filme de um óxido com dois eletrodos de metal

1

54  z  setembro DE 2016

m termos funcionais, um memoris­ tor, cujas propriedades de proces­ samento e armazenamento costu­ mam ser comparadas às dos neurônios, pode fazer muito mais do que um re­ sistor. Este apresenta uma resistência elétrica constante. Sua capacidade de se opor à passagem da corrente elétrica em um circuito é constante, indepen­ dentemente da voltagem em que opera. Em outras palavras, sua condutividade elétrica, grande ou pequena, de acordo com o material usado em sua fabricação, nunca muda. Por isso, o resistor é um componente fundamental para limitar e estabilizar a corrente em um sistema. O memoristor exibe um comporta­ mento diferente. Quando submetido a uma determinada tensão em um cer­ to sentido, ele se comporta quase como um isolante: a corrente elétrica passa com dificuldade pelo material. Ou se­ ja, é muito resistente a ela, com baixa


condutividade. Se a tensão e o sentido da corrente são alterados, o componen­ te se transforma em um semicondutor ou mesmo metal, com baixa resistência elétrica. A corrente flui com facilida­ de. A capacidade de alternar sua con­ dutividade-resistência faz com que o memoristor possa codificar informação na forma binária (0 e 1), como os chips atuais dos computadores. O modo iso­ lante equivaleria ao 0 e o semicondutor ao 1, ou vice-versa.

Protótipo de componente com a nova tecnologia da HP (à dir.), circuito comercial com oito memoristores da empresa Knowm (abaixo) e chip criado por universidade alemã: nanocircuitos mais perto do mercado

fotos  1 R. Stanley Williams / HP Labs 2 Knowm  3 HP Labs  4 Universidade de Bielefeld   ilustraçãO fabio otubo

O

surpreendente é que, além de processar dados, o memoristor também consegue armazená-los. Isso é possível porque o componente se “recorda” do seu último estado de con­ dutividade, se era o modo equivalente ao 0 ou ao 1. Quando é desligada a corrente que o alimenta, o memoristor se “lem­ bra” se estava trabalhando no regime de quase isolante ou de semicondutor. Essa capacidade é denominada proprie­ dade não volátil. Em termos computa­ cionais, significa que um circuito basea­ do em um tipo de memória não volátil pode ser desligado e ligado novamente e, ainda assim, ele consegue recuperar as informações arquivadas. A maioria das memórias de armazenamento dos computadores atuais, como os discos rígidos e a memória flash, é desse tipo. “O tempo de gravação de dados em um memoristor é baixíssimo, da ordem de nanossegundos, e a retenção das infor­ mações dura anos”, comenta Padilha. Além de atuar como um disco rígido para guardar informações a longo prazo, o memoristor também pode funcionar co­ mo o outro tipo de memória presente nos computadores, a RAM (memória de aces­ so aleatório). Esse é um tipo de memória volátil. Quando a máquina é desligada, tudo que está na RAM é perdido. É ela que permite carregar os programas que estão instalados no computador. “Ao pos­ sibilitar a integração das memorias volá­ teis e não voláteis em um único disposi­ tivo, um computador hipotético baseado em memoristores poderia simplesmente ser desligado da tomada sem que fossem perdidos os programas e as informações armazenadas”, comenta Padilha. E, quan­ do fosse religada, a máquina instantanea­ mente começaria a exibir os dados no ponto em que parou de funcionar. A chance de os memoristores se tor­ narem o coração de uma nova geração

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Novo componente da nanoeletrônica poderia substituir processadores e memórias das máquinas

de computadores, com uma arquitetu­ ra que integre chips de processamen­ to e dois tipos de memória em um só componente, parece razoável diante dos avanços da nanotecnologia. Pesquisa­ dores acadêmicos e de empresas, como a IBM, trabalham com a ideia de que esses componentes são os que mais se assemelham a redes neurais humanas e seriam capazes de imitar as sinapses. A HP, companhia referência nos estudos com os memoristores, havia prometido lançar neste ano um computador, deno­ minado “The Machine”, baseado nessa nova tecnologia. Mas os planos foram adiados, oficialmente por questões de economia de escala.

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“Os computadores baseados em me­ moristores são muito mais viáveis do que as promessas de computação quân­ tica, que necessitam de condições extre­ mamente controladas para funcionar”, opina Ribeiro. “Mas ainda não é trivial transferir a tecnologia dos memoristores para uma linha de produção e fabricar um produto comercial.” Independente­ mente de eventuais divergências sobre os mecanismos que geram as proprieda­ des características desses componentes, seu colega Dalpian pensa de maneira semelhante. “Embora seja fácil, em tese, construir memoristores, há questões de controle de qualidade dos componen­ tes ainda não totalmente resolvidos”, ressalva ele. n

Projeto Propriedades eletrônicas, magnéticas e de transporte em nanoestruturas (nº 2010/16202-3); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Adalberto Fazzio (IF-USP); Investimento R$ 1.327.201,88.

Artigos científicos PADILHA, A. C. M. et al. Charge storage in oxygen deficient phases of TiO2: Defect Physics without defects. Scientific Reports. 1º jul. 2016. YI, W. et al. Quantized conductance coincides with state instability and excess noise in tantalum oxide memristors. Nature Communications. 4 abr. 2016.

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Laser convencional (verde) incide sobre material que o converte em laser aleatório (vermelho), capaz de se propagar em várias direções

FOTÔNICA y

Um laser nada convencional Luz de intensidade variável revela conexões inesperadas entre áreas da física e promete imagens microscópicas mais nítidas Igor Zolnerkevic

O

físico Cid Araújo, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), gosta de dizer em suas palestras que realiza experiências astrofísicas bem em cima de sua bancada de trabalho. Nas mesas de seu laboratório de óptica, ele e seus colegas exploram as propriedades de alguns materiais fazendo-os emitir uma forma de laser diferente da convencional. São os chamados lasers aleatórios, que podem ser emitidos naturalmente por objetos no espaço interestelar e cuja produção começa agora a ser mais bem compreendida por causa de resultados recentes obtidos por grupos como o da UFPE. O laser convencional é gerado ao se aprisionar um feixe de luz entre dois espelhos e fazê-lo atravessar um cristal que emite luz com eficiência. O vaivém da luz entre os espelhos estimula os átomos 56  z  setembro DE 2016

do cristal a emitirem ainda mais luz (ver infográfico na página 60). Ao escapar por um dos espelhos, que é semitransparente, essa luz sai com grande intensidade. Suas ondas eletromagnéticas oscilam em sincronia, na mesma frequência, e se propagam na mesma direção. É uma luz completamente ordenada, bem diferente da emitida por uma lâmpada incandescente, cujas ondas apresentam diferentes frequências e viajam em diferentes direções. Já a produção do laser aleatório não utiliza espelhos. Para criá-lo, os pesquisadores da UFPE usam um laser comum para iluminar um material com propriedades ópticas especiais, em geral um pó ou coloide contendo partículas capazes de absorver, emitir e espalhar luz de maneira desordenada. Entre os materiais usados estão nanopartículas contendo íons de neodímio ou óxido de titânio, como as preparadas e caracterizadas pelo

físico Lauro Maia, da Universidade Federal de Goiás, integrante da equipe da UFPE. Iluminadas por um laser comum, essas nanopartículas, misturadas a outros materiais no estado sólido ou líquido, podem gerar laser aleatório. “O laser aleatório é uma fonte de luz com propriedades intermediárias entre as de uma lâmpada incandescente, cujas ondas eletromagnéticas são emitidas ao acaso, e um laser convencional, cujas ondas estão em sincronia e condensadas em um feixe unidirecional”, explica Araújo. No laser convencional, as ondulações da luz são ordenadas e adquirem um comportamento extremamente bem organizado. Já no laser aleatório, a radiação oscila de maneira desordenada, como em uma das raras fontes naturais de laser já descobertas no Universo: as nuvens ao redor da estrela gigante Eta Carinae, situada a 7.500 anos-luz da Ter-


Diederik Wiersma / LENS – Florença

ra. Além da semelhança com as emissões de laser do meio interestelar, os lasers aleatórios acabam de revelar similaridades inesperadas com fenômenos naturais totalmente distintos. Uma das propriedades dos lasers aleatórios é que, cada vez que um pulso é disparado, sua intensidade varia ao acaso. Em um artigo publicado em agosto deste ano na revista Optics Letters e em outro publicado em junho na Scientific Reports, a equipe coordenada por Araújo e pelos físicos Anderson Gomes e Ernesto Raposo, ambos da UFPE, mostrou como explicar e caracterizar as propriedades estatísticas dessas intensidades aleatórias a partir das propriedades dos materiais emissores de laser. Raposo, que é físico teórico, explica que em geral a intensidade dos diferentes tipos de luz varia seguindo dois padrões: um regido pela chamada distribuição

estatística gaussiana e outro pela distribuição estatística de Lévy. No primeiro caso, as flutuações estatísticas são bem menos intensas do que no segundo. É o que acontece com a intensidade da luz comum e a do laser convencional, que apresentam flutuações gaussianas. Já a intensidade dos lasers aleatórios também segue a estatística gaussiana, mas, sob certas condições, ela pode se ampliar e se comportar segundo a estatística de Lévy. “Eles encontraram uma maneira simples de investigar a transição da estatística gaussiana, mais comum, para a do tipo de Lévy nas flutuações”, diz o físico Diederik Wiersma, especialista em emissões de laser aleatório da Universidade de Florença, na Itália. A distribuição estatística de Lévy é a mesma que Raposo e outros colegas já haviam mostrado estar por trás da flutuação nas distâncias que aves pescado-

ras, como o albatroz, percorrem em suas excursões em busca de alimento. Em um artigo publicado na Nature, em 1999, eles haviam demonstrado que o albatroz voa em direções aleatórias, na maioria das vezes não indo muito longe de seu ponto de partida, quando sai atrás de peixes. De vez em quando, porém, ele percorre distâncias bem maiores. Nos experimentos realizados na UFPE, os pesquisadores verificaram que o aumento repentino na variação de intensidade do laser depende de uma súbita e complexa mudança no comportamento óptico influenciado pelas nanopartículas. À medida que a luz atravessa o material, as ondas eletromagnéticas interagem e se somam em alguns trechos e se aniquilam em outros. Quando as flutuações aumentam, as propriedades das ondas eletromagnéticas mudam de um padrão mais ordenado para outro, pESQUISA FAPESP 247  z  57


As propriedades dessa luz especial dependem das características do meio que lhe fornece energia CONVENCIONAL

aleatório

fonte de luz externa

fonte de luz externa Nanopartículas amplificadoras e dispersoras

Cristal amplificador Espelho

Espelho semitransparente

Um feixe de luz aprisionado entre dois espelhos sofre um aumento na sua intensidade cada vez que atravessa um cristal amplificador. A partir de certa intensidade, uma luz bem ordenada e intensa (laser) escapa por um dos espelhos

Um feixe de luz, às vezes um laser convencional, incide sobre um material com nanopartículas que absorvem luz e a reemitem com maior intensidade. O laser emitido pelo material sai em direções aleatórias

Fonte cid araújo / ufpe

mais desordenado, que lembra aos físicos a estrutura microscópica de certos materiais, como o vidro. Essa mudança segue um comportamento previsto por um modelo matemático conhecido como teoria dos vidros de spin, usado para entender diversos fenômenos que envolvem muitas partes interagindo entre si de forma complexa: do comportamento coletivo dos átomos em um material magnético desordenado à dinâmica das redes de neurônios em um cérebro. “Uma das vantagens dos lasers aleatórios é que eles servem de plataforma para estudar problemas multidisciplinares”, comenta o físico Anderson Gomes, que participou dos experimentos ao lado de André Moura, físico atualmente na Universidade Federal de Alagoas e de doutorandos do Departamento de Física da UFPE. A conexão das flutuações na intensidade do laser com a teoria dos vidros de spin investigada pelos pesquisadores da UFPE pode ainda ajudar a desenvolver fontes de laser com a aleatoriedade variável, que poderia ser adequada a diferentes usos tecnológicos. Uma possível aplicação é na transmissão de dados por fibra óptica. Em 2007, Araújo, Gomes e colaboradores preencheram fibras ópticas com um líquido capaz de emitir ra58  z  setembro DE 2016

Os lasers aleatórios podem aumentar a eficiência na transmissão de dados via fibras ópticas

diação laser aleatória. A fibra preenchida transmitiu sinais luminosos com eficiência 100 vezes maior que a convencional. Os físicos da UFPE e de outras instituições também investigam as propriedades do laser aleatório por sua potencial aplicação na detecção de substâncias químicas ou em diagnósticos médicos. Em 2004, o grupo do físico Randal Polson, da Universidade de Utah, nos Estados Unidos, verificou que tecidos contendo células cancerígenas tingidos com corantes especiais, quando iluminados por um laser convencional,

emitem uma luz laser mais aleatória do que a produzida por tecidos de células sadias. Mais recentemente, em 2012, um estudo coordenado pela física Hui Cao, da Universidade Yale, nos Estados Unidos, demonstrou que objetos microscópicos iluminados com laser aleatório produzem imagens mais nítidas (com resolução espacial maior) do que as de um objeto iluminado por led ou laser convencional. Isso porque, ao incidir sobre um objeto, o laser convencional cria ilusões de óptica na forma de uma nuvem de pontos luminosos que embaçam a imagem captada por uma câmera. A desordem das ondas do laser aleatório atenua esse efeito. Em princípio, explica Araújo, quanto mais as amplitudes do laser variarem aleatoriamente, mais nítida será a imagem gerada. A pesquisa com lasers aleatórios deslanchou em 1994, quando físicos da Universidade Brown, Estados Unidos, reportaram na Nature a criação do primeiro laser aleatório de alta eficiência. Gomes participou desse estudo, que demonstrou pela primeira vez de modo inequívoco a possibilidade de gerar laser a partir da emissão e do espalhamento desordenado de luz no interior de um material, como proposto em 1966 por físicos russos liderados por Nicolay Basov, um dos ganhadores do Prêmio Nobel de Física de 1964 pela invenção do laser convencional. Um dos colegas de Basov, o físico Vladilen Letokhov, propôs logo em seguida que a emissão de laser aleatório poderia explicar por que a luz emitida em certas frequências por algumas nuvens interestelares era mais intensa do que o esperado teoricamente. A teoria ajudou o astrônomo brasileiro Augusto Damineli, da Universidade de São Paulo, a explicar a origem de algumas das emissões de luz infravermelha vindas de uma região nebulosa próxima à estrela Eta Carinae. Essas emissões vez ou outra se apagam, um fenômeno que a teoria dos lasers ajuda a entender. Damineli e Letokhov trabalharam nesse problema juntos em 2005. n

Artigos científicos GOMES, A. S. L. et al. Observation of Lévy distribution and replica symmetry breaking in random lasers from a single set of measurements. Scientific Reports. 13 jun. 2016. PINCHEIRA, P. I. R. et al. Observation of photonic paramagnetic to spin-glass transition in a specially designed TiO2 particle-based dye-colloidal random laser. Optics Letters. v. 41 (15). 1º ago. 2016.

infográfico  ana paula campos  ilustraçãO fabio otubo

Duas formas de produzir laser


FÍSICA y

Sólidos bem maleáveis

C

computador ajudam a entender a flexibilidade dos cristais de hélio

do. Essa mudança de estado ocorre tanto com a sua variedade de massa atômica 3, em que o átomo é formado por dois prótons e um nêutron, quanto com a de massa atômica 4, contendo dois prótons e dois nêutrons. Se, além de resfriado, ele também for submetido a altas pressões, o hélio-4 congela, transformando-se em um sólido cristalino. No cristal, seus átomos se arranjam em um padrão geométrico mais ou menos uniforme, formado por camadas planas empilhadas. Como todo cristal, porém, essa estrutura possui defeitos ou discordâncias: ausência de átomos em alguns pontos ou átomos deslocados da posição ideal em outros. Alguns desses defeitos têm a forma de linhas finas e alongadas. Quando determinada força é aplicada sobre o cristal, essas discordâncias podem migrar ao longo de uma mesma camada, fazendo os planos se deslocarem uns em relação aos outros e deformando o material. “Quanto mais facilmente essas discordâncias puderem se mover, menos força é necessária para deformar o material”, explica De Koning. Aplicando as leis da mecânica quântica, De Koning e dois colaboradores dos Estados Unidos simularam em compu-

imagem maurice de koning / unicamp

ristais compostos de átomos do elemento químico hélio-4 apresentam um comportamento espantoso. Quando atingem temperaturas próximas do zero absoluto (-273 °C), esses cristais, criados em laboratório, adquirem inesperada plasticidade. Deixam de ser rígidos como uma rocha para se tornarem tão maleáveis quanto massa de modelar. Descoberta em 2013, essa propriedade – a plasticidade gigante do hélio sólido – ainda é pouco entendida. Simulações em computador do comportamento dos átomos de hélio começam a revelar como ela surge. “Nossas simulações sugerem que pequenos defeitos na estrutura do cristal desempenham um papel importante em definir a capacidade do hélio sólido de se deformar plasticamente”, diz o físico Maurice de Koning, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), um dos autores do estudo publicado em julho na Physical Review Letters. O hélio é o elemento químico mais leve, depois do hidrogênio. À temperatura ambiente e sob a pressão atmosférica, ele existe na forma de gás. Só quando resfriado a temperaturas próximas ao zero absoluto, o hélio se transforma em líqui-

Simulações em

tador o que ocorre em um cristal de hélio-4 contendo 8 mil átomos (um cristal de milímetros crescido em laboratório contém bilhões de átomos). O cristal virtual era formado por camadas perfeitas, exceto por duas discordâncias, cada uma com algumas dezenas de átomos de comprimento. As simulações indicaram que, mesmo a temperaturas tão baixas, flutuações na posição dos átomos de hélio fazem as discordâncias mudarem de lugar o tempo todo de modo espontâneo, mesmo quando nenhuma força age sobre o cristal. “A mobilidade delas é extremamente alta”, diz De Koning. “Em temperaturas baixas o suficiente, não é preciso muita força para que elas comecem a se mover.” “Os cálculos deles concordam precisamente com o observado [em testes com amostras reais de cristal]”, diz o físico Sébastien Balibar, da Escola Normal Superior de Paris, na França, cuja equipe descobriu a plasticidade gigante do hélio. Segundo Balibar, o deslocamento de discordâncias no cristal é o mesmo fenômeno que faz ligas metálicas convencionais, como o aço, tornarem-se maleáveis a altas temperaturas. “Enquanto nesses materiais as discordâncias precisam de altas temperaturas e grandes forças para se moverem, efeitos quânticos fazem as discordâncias do hélio sólido se moverem rapidamente em condições opostas”, observa. n Igor Zolnerkevic

Projeto Centro de Engenharia e Ciências Computacionais – Cecc (nº 2013/08293-7); Modalidade Programa Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisador responsável Munir Salomão Skaf (Unicamp); Investimento R$ 14.009.150,98 (para todo o projeto).

Artigo científico

No hélio sólido, os defeitos (esferas azuis, brancas e verdes) se deslocam ao longo das camadas do cristal

BORDA, E. J. L.; CAI, W. E DE KONING, M. Dislocation structure and mobility in hcp 4He. Physical Review Letters. 22 jul. 2016.

pESQUISA FAPESP 247  z  59


CIÊNCIA EMDIA

O ESPAÇO DA CIÊNCIA BRASILEIRA SETEMBRO DE 2016

A Semana Nacional de Ciência e Tecnologia está saindo do forno Com o tema “Ciência alimentando o Brasil”, a 13ª edição da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia (SNCT) vai agitar mais de mil municípios brasileiros entre os dias 17 e 23 de outubro. O objetivo, neste ano, é mostrar como o conhecimento científico e tecnológico é um importante aliado na promoção do acesso aos alimentos e à nutrição saudável. Para o coordenador do evento, Douglas Falcão, a SNCT vem para mostrar que as técnicas de agropecuária combinadas corretamente com a inovação são suficientes para alimentar os mais de 7 bilhões de humanos que habitam o planeta. “Nesse sentido, o Brasil é uma potência mundial. Nossa agricultura é muito pautada

nas tecnologias e nas pesquisas científicas”. Por meio de um edital inédito, o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) destinou R$ 4,3 milhões para realização da SNCT 2016. O Distrito Federal e mais 24 estados foram contemplados, ampliando a distribuição dos recursos e estimulando o surgimento de novos organizadores. Em 2015, cerca de 147 mil atividades ocorreram em mais de 2,6 mil instituições espalhadas pelo País. Para fazer parte da programação oficial, basta se cadastrar no site http://semanact.mcti.gov.br/ a partir de setembro. É nesse canal que você também fica por dentro de tudo o que está acontecendo antes e durante o evento.


INFORME PUBLICITÁRIO

Água de reúso vira adubo líquido no semiárido Uma alternativa viável para aumentar a produção de alimentos em zonas secas é o reúso do esgoto doméstico. Estudo realizado na Paraíba pelo Instituto Nacional do Semiárido (Insa) – unidade de pesquisa do MCTIC – mostrou que

irrigar o solo com água de reúso faz crescer a fertilidade em até 800%. A técnica aumentou as quantidades de fósforo, nitrogênio, cálcio e magnésio no solo, ao mesmo tempo em que reduziu a presença do alumínio.

Combate à desnutrição: um legado dos Jogos Rio 2016 O MCTIC e a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) lançaram uma plataforma digital que vai unir pesquisadores de diversos países. A iniciativa é fruto da parceria entre os dois últimos países-sede das Olimpíadas, Brasil e Reino Unido, firmada para enfrentar o problema que mata

3 milhões de crianças no mundo a cada ano. A Rede Global de Ensino, Pesquisa e Extensão em Nutrição, Soberania e Segurança Alimentar (Nutri SSAN) foi desenvolvida pelo Ministério e estará em funcionamento pleno até o início de 2017.

Na mídia O Google escolheu o Brasil para receber o seu primeiro campus latino-americano para o desenvolvimento de startups. Localizado em São Paulo, o espaço vai receber 15 empresas nacionais que contarão com o apoio da gigante da internet e seus experts para turbinarem os projetos. A visita rendeu ainda novas parcerias entre o MCTIC e o Google, especialmente na área de educação e sistemas para equipamentos públicos.

@mctic

mctic

@mctic.gov.br

www.mcti.gov.br


tecnologia  Engenharia biomédica y

Simuladores para a medicina Bonecos que imitam bebês e reproduções de partes do corpo humano produzidos em impressoras 3D inovam o ensino e o planejamento de cirurgias Marcos de Oliveira

P

arece um boneco de bebê daqueles que as crianças gostam de brincar. Tem peso e pele de um recém-nascido verdadeiro, mas a cabeça apresenta alongamentos ou deformidades típicas de humanos que nascem com cranioestenose, fusão precoce das suturas dos ossos cranianos. Modelos de bebês com essa doença e também com hidrocefalia, em que a criança apresenta cabeça aumentada devido ao acúmulo irregular de líquor (líquido cefalorraquidiano) em cavidades do cérebro, foram idealizados pela neurocirurgiã pediátrica Giselle Coelho, do Hospital Santa Marcelina, em São Paulo, que faz doutorado na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) e, parte dele, no Boston Children’s Hospital da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, no chamado formato sanduíche. Desde os tempos da formação na residência médica em neurologia, Giselle sentia falta de modelos mais evoluídos para treinar as cirurgias.

62  z  setembro DE 2016

Chamado por Giselle de simulador, o modelo permite que o médico-residente treine os procedimentos de várias técnicas, com bisturi e outros instrumentos cirúrgicos. Quando ocorre algum erro, como o corte de uma veia, por exemplo, o modelo “sangra”. Com o bebê simulador, Giselle ganhou em 2015, aos 36 anos, o prêmio Jovem Neurocirurgião concedido pela Federação Mundial de Sociedades de Neurocirurgia (WFNS, na sigla em inglês). Feitas de silicone e resina, as peças foram produzidas com financiamento do Instituto de Desenvolvimento da Educação e Inovação Científica (Siedi, na sigla em inglês), de São Paulo, pela Prodhelphus, de Olinda (PE), empresa que fabrica material para ensino médico. A figura do bebê-modelo foi produzida pelos artistas plásticos Jair Lyra, Josemi Fabrício e Georgina Barreto, daí o nome Gigi, que uniu os nomes da médica e da artista. O projeto contou também com a parceria científica do professor Benjamin Warf, da Universidade Harvard. O de-

Bebê Gigi, acima, modelo para cirurgias de cranioestenose e hidrocefalia. Ao lado, modelo de seio para visualização de pequenos tumores e cistos com equipamentos de ultrassom


fotos  léo ramos

senvolvimento e a validação tiveram a colaboração da professora Nelci Zanon, do Departamento de Neurocirurgia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Os bebês são parte do doutorado de Giselle, orientado pelo professor Manoel Jacobsen, da FM-USP. Os simuladores têm a estrutura do crânio, sensível aos raios X porque aparecem nas radiografias. “A parte óssea do modelo é importante para definir e treinar a melhor técnica cirúrgica de acordo com a anatomia do paciente, principalmente na osteotomia, parte da operação em que é preciso cortar o osso e remodelá-lo”, explica Giselle. Mas tal característica trouxe problemas para ela em uma viagem aos Estados Unidos. Com o bebê-modelo dentro da mala, foi parada no aeroporto sob suspeita de estar viajando com um crânio na bagagem. Depois de muita explicação ela foi dispensada. O uso de simuladores vem crescendo na medicina. Antes, o mais usado no aprendizado nas escolas de medicina eram os cadáveres, que continuam, mas em menor número. Os indigentes – origem mais comum dos corpos – diminuíram muito devido a novas formas de identificação, como o exame do DNA, e, em alguns procedimentos, o uso de cadáveres não se aplica. “Os mortos não têm pele e músculos com a consistência e resistência de uma pessoa viva. O simulador consegue reproduzir ao máximo o paciente com patologia específica”, comenta Giselle. Os Gigis passam agora por validações de dois grupos de cirurgiões: os experientes, que já deram o sinal positivo para o uso do simulador, e os médicos-residentes, que atualmente estão testando o equipamento. Depois de finalizada essa fase, Giselle vai decidir como esses simuladores poderão ser usados em outros hospitais e universidades. Outra iniciativa brasileira na área de simuladores médicos é da empresa Gphantom, de Ribeirão Preto, que desenvolveu e lançou recentemente produtos para uso em treinamento de ultrassom. Um deles é de uma mama, na qual o aluno de medicina consegue visualizar pequenos tumores ou cistos, além de treinar a biópsia no modelo utilizando uma agulha. O outro modelo é uma peça que simula uma parte de tecido humano para testes de acesso venoso, prática de biópsias, treinamento de ultrassom e aplicação de anestesia. A empresa foi formada em 2013 por dois alunos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP), o físico-médico e doutorando Felipe Grillo e a química e mestranda Michelle Ferreira da Costa Abrãao. “No meu mestrado comecei a estudar esses modelos, que no exterior são chamados de phantoms [fantasmas, em inglês], e desenvolvi um para treinamento de biópsia de tireoide. Esses modelos eram uma linha de pespESQUISA FAPESP 247  z  63


quisa do Grupo de Inovação e Instrumentação Médica e Ultrassom [Giimus] que participei na USP ”, diz Grillo. Os modelos desse tipo eram, até então, importados. O empresário diz que empresas que fabricam aparelhos de ultrassom, como Ericsson, GE e Konica-Minolta, já utilizaram os simuladores da Gphantom com o objetivo de demonstrar seus equipamentos em feiras e congressos, por exemplo. Cerca de 200 modelos foram disponibilizados no mercado. Até agora, das instituições de ensino, a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) comprou, a pedido de um professor, modelos para uso de um aluno de mestrado. Cada peça que simula uma mama custa R$ 550,00 e as usadas em treinamento de procedimentos de anestesia e biópsia, R$ 600,00. Grillo explica que o material é reciclável. “Depois de um desgaste natural, com furos de agulha, a peça pode retornar à empresa e vale até a metade do valor de uma nova ra. A criança com 10 meses de aquisição.” idade recebeu o diagnóstico de O avanço da tecnologia em atresia das vias biliares. Para impressoras 3D, capazes de melhor preparar a cirurgia que imprimir com polímeros todo Os modelos vai extrair um pedaço do fígado tipo de peça plástica, também 3D podem ser do pai e implantá-lo no bebê, o propicia a feitura de modelos médico enviou para São Paulo médicos personalizados de usados para as imagens de tomografia da um local do corpo do paciencriança para a BioArchitects. te que passará por cirurgia. A verificar a Depois de cinco dias, o material BioArchitects, empresa paulisestava pronto e foi enviado para tana de tecnologia de medicina posição de um Curitiba. “Nesse tipo de cirurque produz biomodelos com tumor no fígado gia, o tamanho certo é muito impressoras 3D desde o final importante porque se o órgão de 2015, fez parcerias com ale as estruturas ficar maior pode ocorrer uma guns médicos, que são professíndrome de compressão em sores em universidades, para ao redor que o abdômen tem que ficar oferecer os modelos para tesaberto até diminuir o edema”, te. Em troca, os cirurgiões se explica o cirurgião Júlio Cesar comprometem a relatar em arWiederkehr, professor do Detigos científicos a experiência em trabalhar com as réplicas em 3D. “A partir de partamento de Cirurgia da Universidade Federal exames de ressonância magnética ou tomogra- do Paraná (UFPR), que vivenciou essa situação fia, nossos bioengenheiros transformam as ima- no início do ano. Além dessa operação, ele fez gens em modelos tridimensionais que retratam outra para extrair um tumor no fígado de um a situação do paciente”, conta Felipe Marques, paciente. “Nos deparamos frequentemente com diretor executivo da empresa. A produção do variações anatômicas no momento da cirurgia; o biomodelo com formatos, textura, flexibilidade mais importante é saber a posição do tumor em e consistência muito próximas do real é possível relação às estruturas do órgão e também às adporque a impressora de origem israelense pode jacentes”, explica. “O uso dos modelos 3D pode utilizar nove tipos de polímeros em uma única ter aplicações variadas em neurocirurgia, ortoimpressão, misturando dosagens de cada um, pedia, cirurgia cardíaca, cirurgia hepatobiliar, para formar pele, tecidos subcutâneos e ossos. entre outras”, explica Wiederkehr. No geral, o uso desses modelos médicos em As cores que diferenciam órgãos, tecidos e ossos também podem ser escolhidas com a mistura 3D personalizados é indicado para cirurgias mais complexas, quando é necessário um planejamendos polímeros. Em Curitiba, um biomodelo da empresa contri- to prévio. “As cirurgias de cardiopatias congênibuiu no planejamento de uma cirurgia de trans- tas e as que utilizam mais de uma técnica serão plante de fígado em que parte da cavidade abdo- mais bem planejadas se tivermos um biomodelo minal de um bebê foi reproduzida na impresso- para simular a correção mais adequada”, afirma 64  z  setembro DE 2016

Coração impresso: a partir de imagem de ressonância, peça mostra áreas de calcificação, em branco no interior do órgão. Ao lado, processo de finalização de modelo para aplicação de placa de titânio nas costelas


fotos  léo ramos

o cardiologista Luiz Antônio Rivetti, professor da Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo, que também experimentou os produtos da empresa. Ele utilizou o modelo em 3D para visualizar um aneurisma de ventrículo esquerdo, uma patologia que ocorre entre 10% e 15% de pessoas que têm infarto do miocárdio. “Com o modelo, soubemos com precisão a extensão do problema, além de ter a certeza sobre a extensão da fibrose a ser extraída”, diz Rivetti. “Foram três casos operados, com resultados muito bons, nos quais conseguimos escolher previamente a melhor técnica.” O cardiologista apresentará os resultados com os biomodelos no congresso mundial da The World Society of Cardiothoracic Surgeons, este mês, na África do Sul. benefícios adicionais

Os biomodelos da BioArchitects custam entre R$ 4 mil e R$ 5 mil. O diretor da empresa, Felipe Marques, prevê que o preço deve cair com o aumento da demanda. “Em algumas cirurgias, como a de múltiplas fraturas de costela, na qual o cirurgião molda as placas de titânio conforme a curvatura anatômica dos ossos de cada paciente, os biomodelos têm apresentado redução de custos e de tempo cirúrgico com o planejamento prévio da patologia do paciente. Em uma dessas cirurgias, o médico utilizou o biomodelo no dia anterior ao procedimento para treinar e levou as placas já personalizadas para a fixação nas costelas.” Segundo Marques, há benefícios em todas as esferas: o hospital aumenta o número de cirurgias por sala, a seguradora tem previsi-

bilidade de uso e redução de material, os cirurgiões podem planejar e prever possíveis dificuldades na operação e o paciente fica menos suscetível à infecção. O mercado de impressão 3D movimenta atualmente cerca de U$ 4,5 bilhões no mundo, segundo a consultoria norte-americana ATKearney. A expectativa é de U$ 17,2 bilhões até 2020. O setor de saúde representa em torno de 15% desse total e deve crescer em até 25% nos próximos quatro anos. A utilização dos modelos médicos foi medida em um artigo científico publicado na revista Surgery, em junho deste ano, que analisou 158 artigos científicos sobre o uso de produtos em 3D, entre 2005 e 2015. Foi realizado por pesquisadores do Hospital Georges Pompidou e da Universidade Paris-Sud, na França. O estudo indicou que a impressão tridimensional está se tornando cada vez mais importante na medicina, especialmente nas cirurgias, e avaliou vantagens e desvantagens do uso dos modelos. O procedimento já foi experimentado em 37 países, como China, Alemanha e Estados Unidos. Os estudos indicam que 50% dos modelos foram utilizados em cirurgias na área bucomaxilofacial e 24,7% em operações ortopédicas. Do total, 71,5% dos estudos reportaram usos desses modelos em cirurgias. Uma porcentagem menor, de 9,5%, mostrou o uso de impressoras 3D para produzir implantes ou próteses personalizadas, e 6,3%, no projeto de moldes ou próteses faciais como orelha e nariz. Entre as vantagens para os médicos nas cirurgias, o estudo identificou a melhor visualização de malformações e antecipações de dificuldades anatômicas, além da diminuição do tempo da cirurgia e de complicações no pós-operatório como hemorragias e infecções. As desvantagens estão no longo tempo de preparação do modelo e na necessidade de tempo adicional para o planejamento do pré-operatório, além dos custos adicionais referentes à aquisição do modelo. n

Projeto Análise de viabilidade técnica-comercial de simuladores sintéticos do tecido biológico para treinamento em procedimentos médicos guiados por ultrassom (nº 2014/50414-9); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Felipe Grillo (Gphantom); Investimento R$ 100.875,00.

Artigos científicos Martelli, N. et al. Advantages and disadvantages of 3-dimensional printing in surgery: A systematic review. Surgery. On-line. jan. 2016. Coelho, G. et al. New anatomical simulator for pediatric neuroendoscopic practice. Child’s Nervous System. v. 31, n. 2. fev. 2015.

pESQUISA FAPESP 247  z  65


Energia y

Filmes captam

a energia do Sol A Flexíveis, ao contrário dos painéis fotovoltaicos tradicionais, células solares orgânicas começam a ser produzidas no Brasil em pequena escala Evanildo da Silveira

cada ano, a Terra recebe o equi­ va­lente, em forma de luz e ca­ lor, a 10 mil vezes o consumo mundial de energia elétrica. O problema é transformar toda essa po­tência em eletricidade. A tecnologia mais eficiente e usada hoje, emprega­ da desde os anos 1980, são as células fotovoltaicas de silício, com aplicações limitadas, por serem pesadas e rígidas. A busca atual é por dispositivos na forma de filmes finos que possam ser aplica­ dos e moldados em vários locais como vidros de janelas, por exemplo, como as células orgânicas OPV (do inglês Or­ ganic Photovoltaic), feitas de material semicondutor à base de carbono. No


csem brasil

Em forma de filme, células solares da CSEM Brasil

Brasil, há vários grupos de pesquisa e empresas trabalhando no desenvolvi­ mento de células orgânicas. A empresa nChemi, de São Carlos, produz nanopartículas de óxido de mo­ libdênio, ferro, titânio e zircônio, por exemplo. Entre suas aplicações diver­ sas, elas podem integrar algumas das camadas das células solares orgânicas. A nChemi foi criada há um ano em la­ boratório do Departamento de Química da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), que é parte do Centro de Pes­ quisa para o Desenvolvimento de Ma­ teriais Funcionais (CDFM), um dos 17 Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP.

As nanopartículas da nChemi estão sob análise, no nível de Pesquisa e De­ senvolvimento (P&D), no CSEM Bra­ sil para futura utilização pela empresa mineira Sunew, que começou em agos­ to a produção das células fotovoltaicas orgânicas. A Sunew foi criada em no­ vembro de 2015 como spin-off do CSEM Brasil em composição com gestoras de fundos de capital empreendedor. O CSEM Brasil é uma instituição sem fins lucrativos que tem o objetivo de desen­ volver pesquisa tecnológica e repassar para a indústria. Foi o que aconteceu com a tecnologia das OPVs licenciada para produção e comercialização pela Sunew. Para chegar a essa maturidade

tecnológica, o CSEM recebeu apoio fi­ nanceiro para pesquisa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), entre outras institui­ ções públicas e privadas. A nChemi tem financiamento do Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pi­ pe) da FAPESP. “Pela parceria que firmamos, somos responsáveis pelo design e pela produ­ ção das nanopartículas e o CSEM pela análise de seu desempenho nos disposi­ tivos fotovoltaicos”, conta Bruno Lima, um dos sócios-fundadores da nChemi. “Esse acordo tem sido um modelo que queremos seguir, com a participação ati­ va do parceiro no desenvolvimento de pESQUISA FAPESP 247  z  67


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À esquerda, nanopartículas em solução na nChemi. Acima, protótipos de células solares no CTI Renato Archer. Na página ao lado, prédio em São Paulo com filmes orgânicos da CSEM Brasil

nanopartículas sob demanda.” O pes­ quisador Edson Leite, do CDFM, que foi professor de Lima e de seu sócio, Tiago de Goes Conti, orientou os dois na apli­ cação das nanopartículas em OPV e na criação da nChemi. “Os elétrons são ge­ rados no material ativo da célula, que é um polímero semicondutor”, explica Leite. “Eles surgem quando o polímero absorve a luz solar e são responsáveis pela geração da energia elétrica.” As na­ nopartículas são atualmente importadas pelo CSEM Brasil e a ideia principal do trabalho da empresa de São Carlos é ser

um fornecedor nacional para oferecer vantagens em termos de custos e logísti­ ca. “Esse desenvolvimento visa também obter materiais com melhor desempe­ nho”, acrescenta Leite. “As nanopartículas podem ter diver­ sas funções, como aumento de proprie­ dade mecânica, barreira contra entra­ da de umidade externa, ou até mesmo melhora das propriedades elétricas das células fotovoltaicas orgânicas”, explica Luiza Correa, pesquisadora do CSEM Brasil. “Dependendo de onde elas são aplicadas, existe um alto potencial pa­

China tem maior potência instalada 1

ra aumentar a eficiência e o tempo de vida dos módulos.” Luiza esclarece que o OPV é um conjunto de camadas poli­ méricas impressas por meio de solução sobre um substrato, que pode ser rígido, como vidro, ou flexível, como plástico. Segundo Filipe Ivo, gerente de Novos Negócios do CSEM Brasil, um dos pri­ meiros projetos com OPV desenvolvidos é a fachada de vidro do novo prédio da Totvs, em São Paulo, uma empresa bra­ sileira de software, que será entregue em novembro deste ano. “É a instalação da primeira fachada de célula orgâni­ ca encapsulada em vidro e geradora de energia elétrica do país”, garante Ivo. “Os vidros externos do novo edifício vão gerar energia elétrica para consumo in­ terno.” O CSEM mantém ainda projetos de pesquisa e desenvolvimento (P&D) com a Fiat, para integração de OPVs no teto de automóveis; com a Votorantim, para aplicação em estruturas flutuantes em usinas hidrelétricas; e com a Meda­ bil, para aplicação em telhas metálicas, entre outros projetos.

A utilização de energia solar cresce

instalada de geração solar,

em todo o mundo. Segundo o boletim

correspondentes a 3.851 instalações

Energia solar no Brasil e no mundo 2015,

(o triplo do que havia oito meses

publicado em julho deste ano

antes), principalmente residências,

pelo Ministério das Minas e Energia

empresas e fábricas. Ainda de acordo

(MME), a potência instalada

com o boletim do MME, o Plano

no mundo no ano passado era de 234

Decenal de Expansão de Energia

GW (Gigawatts), o que corresponde a

prevê que a capacidade instalada de

nanopartículas semicondutoras

16,7 usinas de Itaipu. A China é a

geração solar chegue a 1% do

primeira colocada, com 43,4 GW,

total da energia produzida no país em

No Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer (CTI) em Campinas, o pesquisador Fernando Ely desde 2007 trabalha no desenvolvimento de OPVs. Elas são produzidas a partir de tintas de nanopartículas semicondutoras na camada ativa. “As células que desenvol­ vemos no laboratório possuem, em ge­

seguida da Alemanha, com 39,6 GW,

2024. Em julho, esse índice era de

e do Japão, com 35,4 GW. O Brasil, em

apenas 0,01%, segundo o Banco de

julho, contava com apenas 51

Informações de Geração, da Agência

Megawatts (MW) de potência

Nacional de Energia Elétrica.

68  z  setembro DE 2016


fotos  1 e 2 léo ramos  3 csem

3

ral, cinco camadas, cada uma delas com função específica de geração, transporte e coleta de cargas”, explica. “O uso de tintas viabiliza a fabricação por técni­ cas baratas de impressão da indústria gráfica, reduzindo o custo de produção e aumentando as possibilidades de apli­ cações, quando feitas sobre materiais leves e flexíveis.” Além de ter uma variedade maior de aplicações, as células fotovoltaicas orgâ­ nicas têm outras vantagens. “Diferente­ mente das de silício cristalino, que são caracterizadas por serem monolíticas, em forma de lâminas, a maior parte das células OPV é constituída de filmes de algumas centenas de nanômetros de es­ pessura, depositados sobre substratos de vidro ou plástico”, informa Ely. “As­ sim, enquanto para fabricar um painel de silício é preciso soldar as células in­

gânicas têm outra grande desvantagem, que é menor tempo de vida útil que as de silício. “Ao passar a usar as nanopar­ tículas, nosso objetivo é aumentar seu tempo de duração”, diz Leite. “É nisso que a nChemi trabalha, em parceria com o CSEM e o CDFM. As células orgânicas hoje duram entre 5 e 10 anos, enquanto as de silício passam de 10 anos.” Ainda em relação à menor eficiência energética das células orgânicas, Filipe Ivo, do CSEM Brasil, ressalva que nessa nova tecnologia se leva em conta outras variáveis, como as próprias características físicas do ma­ terial: leveza, transparência, flexibilidade, baixa pegada As células de carbono e ser reciclável, solares flexíveis por exemplo. “Por esses fa­ tores, as OPVs são a melhor ainda têm opção de utilização em vá­ rios cenários de aplicação, menor eficiência como, por exemplo, no teto de automóveis ou em facha­ energética das de vidro”, afirma Ivo. “É em relação às importante ressaltar que a tecnologia do silício é uma tradicionais indústria madura com mais de 40 anos de existência. Já a de silício, que orgânica impressa é recente e vem conquistando espaço são rígidas agora.” Para ele, a produção em grande escala trará me­ lhoria dos processos produ­ tivos para ter impacto na efi­ ciência e na vida útil. Ely, do CTI, é cauteloso quanto ao avanço das OPVs. dividuais, os de OPV são fabricados di­ “Para tornar essas células comercial­ retamente sobre os substratos a partir mente viáveis ainda é preciso superar de um desenho predefinido.” A medida, desafios importantes, como aumentar de acordo com ele, simplifica o processo a confiabilidade, a durabilidade e a efi­ produtivo. O consumo de energia (elé­ ciência”, alerta. “Existe também a difi­ trica e térmica) para criar painéis foto­ culdade econômica comum à maioria voltaicos do tipo OPV é menor do que das fontes de energias renováveis porque para fazer os convencionais de silício, ainda levam desvantagem no preço em que consomem mais, especialmente na relação às fontes mais tradicionais como etapa de purificação da matéria-prima. a hidrelétrica ou a térmica.” n Leite, do CDFM, acrescenta que, di­ ferentemente das células orgânicas, as convencionais de silício, por não serem Projetos flexíveis, são bem mais frágeis mecani­ 1. Tinta nanoestruturada para células fotovoltaicas camente. Em compensação apresentam orgânicas (nº 2015/15921-0); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador uma melhor eficiência na conversão so­ responsável Tiago de Goes Conti (nChemi); Investimento lar, mais de 15%, ante algo entre 4% e 8% R$ 124.450,00. das OPVs. Essas porcentagens indicam 2. Síntese de nanopartículas funcionalizadas em escala piloto (nº 2014/21682-5); Modalidade Pesquisa Inovativa o quanto do total de energia recebida do em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Sol é convertido em eletricidade. Além Bruno Henrique Ramos de Lima (nChemi); Investimento da menor eficiência energética, as or­ R$ R$ 113.157,00. pESQUISA FAPESP 247  z  69


pesquisa empresarial y

Mais controle O no céu Novas tecnologias da Atech para gestão de tráfego aéreo diminuem os atrasos e aumentam a segurança dos voos no país

Yuri Vasconcelos

70  z  setembro DE 2016

setor aéreo nacional cresceu de forma acentuada nos últimos anos. O número de passageiros transportados passou de 50 milhões, em 2005, para 120 milhões em 2015. O movimento de aviões no espaço aéreo brasileiro, relativo a pousos e decolagens, subiu de 2,7 milhões, em 2008, para 3,8 milhões, em 2015, segundo estimativa da Força Aérea Brasileira (FAB). Para dar conta dessa evolução em um período de tempo relativamente curto, a FAB, responsável pelo controle e pela vigilância do espaço aéreo nacional, adotou uma série de medidas para modernizar o setor. Entre elas, foram implantadas duas novas tecnologias nacionais para gestão da navegação aérea: os sistemas Sagitario, para controle das aeronaves em tempo real, e Sigma, uma ferramenta para otimização do fluxo aéreo. Atuando em conjunto, essas soluções permitiram que o tráfego aéreo crescesse, nos últimos anos, sem os graves problemas ocorridos em 2006 e 2007, quando uma série de falhas na infraestrutura fez com que milhares de passageiros lotassem os aeroportos sem saber se conseguiriam embarcar. O desenvolvimento dos novos sistemas tecnológicos foi importante para ajudar a normalizar a situação e a suprir as necessidades da grande movimentação aérea durante a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos deste ano. A Concessionária Rio-Galeão, que administra o Aeroporto Internacional Tom Jobim, o Galeão, no Rio de Janeiro, informou que 90 mil passageiros passaram pelo terminal em 22 de agosto, dia seguinte ao término dos Jogos Olímpicos – o dobro da média diária – sem que se registrassem atrasos. “As características operacionais do Sagitario se baseiam em referências de entidades internacionais de controle de tráfego, como a norte-americana FAA [Federal Aviation Administration], e a europeia Eurocontrol [European Organization for the Safety of Air Navigation]”, afirma Edson Carlos Mallaco, presidente


O sistema foi concebido pela equipe de pesquisadores da Atech formada por 180 profissionais, dedicados às áreas de desenvolvimento de produto e inovação tecnológica. Cerca de 90% dos colaboradores da empresa, com sede em São Paulo, têm nível superior em diversas áreas do conhecimento, tais como engenharias (civil, mecânica, elétrica, eletrônica, infraestrutura aeronáutica e de computação), ciências exatas (matemática, estatística e física) e ciências humanas (administração de empresas, economia, marketing e gestão de projetos). A maioria dos funcionários conta com mais de 10 anos de experiência, sendo que 27 possuem mestrado e seis têm doutorado. A Atech investe cerca de 9% de seu faturamento em pesquisa, desenvolvimento e inovação. TELA CINZENTA

Uma das inovações mais visíveis do Sagitario é o modo como as informações são apresentadas nas telas dos computadores na sala de controle de voo. Enquanto no sistema antigo, conhecido pela sigla X-4000 (e que também foi feito pela Atech), o fundo de tela era preto, no novo sistema ganhou a cor cinza. “Essa alteração é parte da nova padronização de uso de cores adotada para o Sagitario ancorada em estudos e recomendações

Decolagem na pista do aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Ao fundo, tela do sistema Sagitario de controle de aeronaves

empresa Atech

Centro de P&D São Paulo, SP

Nº de funcionários 180 em P&D&I

Principais produtos Sistemas de controle de tráfego aéreo, sistemas de monitoramento, gerenciamento e de informações, além de sistemas de controle meteorológicos

fotos  edurado cesar

da Atech, que tem sede em São Paulo. A empresa pertence 100% ao Grupo Embraer desde 2013. O projeto do Sagitario, sigla de Sistema Avançado de Gerenciamento de Informações de Tráfego Aéreo e Relatórios de Interesse Operacional, foi iniciado em 2007 e, durante todo o período de desenvolvimento, a empresa manteve uma parceria com o Laboratório de Simulação do Instituto de Controle do Espaço Aéreo (Icea), em São José dos Campos, que faz o treinamento dos controladores, onde foi instalado um protótipo do Sagitario para avaliação, críticas e sugestões de profissionais de vários centros de controle do país. “Essa parceria nos ajudou a atingir rapidamente um estágio de maturidade operacional”, conta Mallaco. O Sagitario é usado pelos controladores de voo para monitorar o movimento de aviões no espaço aéreo brasileiro. Desenvolvido a partir do conceito gate to gate (portão a portão), ele é formatado para garantir operações mais seguras desde a decolagem da aeronave, passando pelo voo em rota e finalizando com o pouso no aeroporto de destino. Trata-se de um sistema de controle de aviões e helicópteros que utiliza informações de radares e outros tipos de sensores de vigilância aérea, proporcionando ao controlador informações precisas.

pESQUISA FAPESP 247  z  71


Funcionários no Centro de Controle de Aproximação de São Paulo. Abaixo, tela do sistema Sagitario mostra as posições das aeronaves

internacionais. A cor cinza, quando comparada com outras, reduz a fadiga visual do controlador”, afirma Marcos Ribeiro Resende, diretor de Tecnologia e Inovação da Atech. A mudança também faz com que a tela propicie mais contraste de cores, facilitando a identificação de cada funcionalidade do sistema. A nova ferramenta também inova no console, mais ergonômico e fácil de operar. Antes, as orientações transmitidas pelos controladores aos pilotos – pedidos de mudança de rota, de velocidade ou de nível de voo, por exemplo – precisavam ser digitadas no teclado. Agora, esses comandos podem ser feitos mais rapidamente com a ajuda do mouse. Os planos de voo – documento com dados essenciais, como identificação do avião, horário de partida e chegada e informações sobre a rota – são também visuali-

zados na tela em um recurso chamado de “etiqueta inteligente”. Até há poucos anos, o plano era visualizado numa tela à parte ou era impresso em uma etiqueta de papel, que ficava na frente do controlador. Quando precisava checar dados do voo, era preciso tirar os olhos da tela, deixando de acompanhar a movimentação dos aviões. Além do alto nível de automação, o novo sistema tem uma função conhecida como coordenação silenciosa. Durante o voo, o avião precisa ser continuamente transferido de um controlador, que cuida de determinado setor do espaço aéreo, para outro. “Antes, essa transferência era feita por telefone, em uma comunicação sujeita a ruídos e problemas de fonia. Com o Sagitario, ela ocorre por meio de uma interface disponível na etiqueta inteligente onde o sistema

Instituições que formaram os pesquisadores da empresa Edson Carlos Mallaco, engenheiro mecânico, presidente da Atech

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG): graduação

Marcos Ribeiro Resende, engenheiro da computação, diretor de Tecnologia e Inovação

Universidade Federal de Uberlândia (UFU): graduação Universidade de São Paulo (USP): mestrado

Fábio Kawaoka Takase, engenheiro mecânico, gerente técnico

USP: graduação, mestrado, doutorado, pós-doutorado Universidade Nacional de Yokohama (Japão): pós doutorado

Eric Conrado de Souza, engenheiro mecatrônico, desenvolvedor sênior

USP: graduação, mestrado e doutorado

Claudinei Walker da Silva, cientista da computação, analista de sistemas

Universidade Estadual Paulista (Unesp): graduação Universidade Presbiteriana Mackenzie: mestrado Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe): doutorado

Edson Fagundes Gomes, matemático, especialista em sistemas de controle de tráfego aéreo, gerente comercial

Universidade Federal do Paraná (UFPR): graduação

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gera mensagens padronizadas internacionalmente”, explica o especialista em sistemas de controle de tráfego aéreo Edson Fagundes, gerente comercial da Atech. “Todas essas inovações diminuíram o uso do telefone pelo controlador e reduziram o estresse contínuo a que o profissional está sujeito, garantindo assim um maior conforto e segurança operacional”, afirma Fagundes. Segundo o especialista em transportes aéreos Jorge Eduardo Leal Medeiros, professor do Departamento de Engenharia de Transportes da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), o Sagitario, com suas novas funcionalidades, põe o país no grupo de nações que dominam a fabricação das mais modernas tecnologias de gestão de tráfego aéreo. “A solução da Atech está no mesmo nível de sistemas similares desenvolvidos no exterior”, afirma Medeiros, engenheiro aeronáutico e de aeronaves formado no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). Segundo ele, os requisitos de gerenciamento de fluxo aéreo são estabelecidos pela Organização da Aviação Civil Internacional (Icao, na sigla em inglês) e as soluções tecnológicas desenvolvidas pelos fabricantes devem estar de acordo com as normas da entidade.


Ordem no ar Como funciona o sistema de tráfego aéreo brasileiro

A torre de controle dos aeroportos coordena a movimentação dos aviões em solo e nas proximidades do aeroporto. Os controladores conduzem os pilotos pela pista, autorizam as decolagens e orientam os pousos

Quando o avião perde contato visual com a torre, a uma distância entre 5 e 10 quilômetros (km) do aeroporto, o controlador transfere o voo para o Centro de Controle de Aproximação (APP). O APP controla o avião até cerca de 100 km do aeroporto

A partir desse ponto, quando a aeronave já está voando em nível de cruzeiro, ela passa a ser gerenciada pelo Centro de Controle de Área (ACC). O espaço aéreo brasileiro está dividido em cinco ACCs

Cada ACC, por sua vez, é dividido em setores. Assim, durante o voo em rota, o avião é transferido entre os controladores sempre que sai de um setor e entra em outro

Os cinco centros de controle de área (ACC) no país

ACC Amazônico

ACC Brasília ACC Curitiba

ACC Recife

ACC Atlântico

fotos Eduardo Cesar  infográfico  ana paula campos   ilustraçãO fabio otubo

Fonte Anuário Estatístico de Tráfego Aéreo 2015, DECEA

O pesquisador destaca ainda que o Sagitario é resultado de um investimento feito pelo governo brasileiro ao longo dos anos a fim de formar profissionais capazes de desenvolver novas tecnologias para o setor aéreo – a Atech foi formada em 1997 por um grupo de engenheiros que trabalharam no Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam), programa elaborado pelos órgãos de defesa do país para assegurar o controle do espaço aéreo da região amazônica. O Sagitario está instalado em quatro dos cinco Centros de Controle de Área (ACC, em inglês) que gerenciam o espaço aéreo do país – falta ser instalado apenas no centro de controle da região do oceano Atlântico sob responsabilidade do Brasil. O primeiro ACC a receber o sistema, em 2010, foi o de Curitiba, que cuida da navegação aérea na região Sul e parte do Sudeste. Em seguida, versões atualizadas foram instaladas nos centros sediados em Brasília (que cobre a região Centro-Oeste e parte do Sudeste), Manaus (que abrange a região Norte) e Recife (que cuida da região Nordeste, além do oceano Atlântico). O sistema também já funciona em nove Centros de Controle de Aproximação (APP) do país e nas instituições de formação e capacitação do Comando da Aeronáutica,

em São José dos Campos e na Escola de Especialistas da Aeronáutica (EEAR) em Guaratinguetá (SP), e deve substituir o sistema X-4000 em mais 16 APPs nos próximos três anos. Enquanto os APPs gerenciam o espaço aéreo em torno dos aeroportos, durante a decolagem e a aproximação para o pouso, os ACCs monitoram as aeronaves quando atingem o nível de cruzeiro (ver infográfico). Um dos últimos lugares a receber o sistema da Atech foi o Centro de Controle de Aproximação de São Paulo, que é o maior do país e responsável por controlar as saídas e chegadas de aeronaves dos aeroportos de Congonhas, Guarulhos, Campo de Marte, Campinas e São José dos Campos. “Por enquanto, o Sagitario só está em operação no país, mas buscamos oportunidades para exportá-lo. Nossos mercados-alvo são países da Ásia, África e Oriente Médio”, explica Mallaco. FLUXO ORGANIZADO

A outra solução criada pela Atech para tornar mais eficiente o gerenciamento de tráfego aéreo é o Sistema Integrado de Gestão de Movimentos Aéreos (Sigma). Empregado no planejamento estratégico para fins de cálculo de demanda dos voos e capacidade do espaço aéreo, inclusive

nos aeroportos, o Sigma integra informações de companhias aéreas, aeroportos e órgãos de controle, permitindo adequar o crescimento da demanda do setor à capacidade de infraestrutura aeronáutica brasileira. “Enquanto o Sagitario faz a gestão em tempo real dos aviões que voam de um ponto a outro, o Sigma é usado para planejar, com antecedência, o fluxo de aviões nos céus do Brasil e para atuar em tempo real, no movimento aéreo corrente, resolvendo de forma colaborativa, com companhias aéreas e órgãos de controle, eventuais problemas que gerem mudanças nos voos, provocados pelas condições meteorológicas, por exemplo. Ele foi criado a partir do aumento do tráfego aéreo nacional”, diz Mallaco, destacando que se trata da primeira ferramenta do gênero desenvolvida no país e uma das poucas do mundo. A produção do Sigma foi realizada em parceria com a FAB e o sistema também está em operação na Índia. Uma unidade do Sigma foi comercializada para a Autoridade de Aeroportos da Índia (AAI). “Vencemos uma concorrência internacional com fornecedores norte-americanos e europeus e implementamos o sistema na Índia em 2014. Lá, ele se chama SkyFlow”, conta Resende. n pESQUISA FAPESP 247  z  73


Indústria do Petróleo y

soluções para o

pré-sal

Instituições de pesquisa em parceria com a Petrobras desenvolvem equipamentos para operar em áreas ultraprofundas

Q

uanto mais profundas são as águas do oceano e mais espessa a camada terrestre submersa sob a qual se encontram os depósitos de gás e petróleo, maiores os desafios tecnológicos para extraí-los. Para a extração desses produtos do pré-sal – depósitos localizados abaixo da camada de sal que está situada entre 3.500 e 5.500 metros de profundidade do solo marinho –, os dutos descem a mais de 3 mil metros de profundidade no mar. Um dos pontos críticos da extração é ter métodos confiáveis de análise e monitoramento de tubos e sistemas que suportem altas pressões e grandes diferenças de temperatura. Para operar nesse ambiente hostil, a Petrobras, pioneira na exploração de combustíveis fósseis em águas profundas (de 300 a 1.500 metros) e ultraprofundas (mais de 1.500 metros), por meio do seu Centro de Pesquisas (Cenpes), fez parcerias com instituições para o desenvolvimento de tecnologias para exploração do pré-sal. Dois desses projetos foram realizados com a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e um com o Laboratório Nacional de Nanotecnologia (LNNano), localizado em Campinas (SP). Um dos trabalhos conjuntos com a PUC-Rio resultou em um equipamento

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pig palito Equipamento para inspeção interna de tubulações de óleo e gás. Tem vários sensores em forma de hastes – daí o nome – espetados ao seu redor. Um sistema de molas faz o conjunto de sensores encolher e se expandir. Esse movimento detecta as mínimas diferenças de relevo interno que podem ser áreas de corrosão

para a inspeção interna dos dutos apoiados no leito marinho ou inseridos no solo abaixo do oceano. O equipamento criado para a inspeção interna dos dutos é um tipo de PIG, dispositivo que se desloca no interior dos tubos impulsionado pelo próprio fluido (óleo ou gás) com o objetivo de limpar ou inspecionar, por meio de sensores, suas paredes. “Os tubos utilizados em águas profundas têm espessuras grandes de parede e diâmetros pequenos, percursos longos e podem ter curvas fechadas, além de estarem sujeitos a altas pressões e grandes variações de temperatura”, diz Jean Pierre von der Weid,

do Centro de Pesquisa em Tecnologia de Inspeção (CPTI) da PUC-Rio. “Por isso, e por ser um mercado relativamente pequeno, não há PIGs comerciais para essa aplicação.” Para atender a demanda da Petrobrás, o grupo da PUC-Rio desenvolveu o PIG Palito, um equipamento cilíndrico dotado de vários sensores em forma de hastes. O sistema possui um hodômetro que mede o local exato do problema encontrado pelos sensores. A equipe desenvolveu dois protótipos do PIG Palito capazes de inspecionar tubos com diâmetro entre 20 centímetros (cm) e 120 cm. “Testamos um deles com sucesso na Bacia de Santos, em uma linha de transporte de gás entre os campos de Uruguá e Mexilhão, com 190 quilômetros (km) de comprimento”, conta o pesquisador. No Laboratório de Sensores a Fibra Óptica (LFSO) da PUC-Rio foi desenvolvido o sistema de Monitoramento da Integridade Estrutural de Risers Flexíveis (Moda). Segundo o coordenador do pro-


método analítico Faz a análise da presença de monoetilenoglicol (MEG) em amostras de óleo e gás. Utiliza frascos de vidro ou plástico e análise visual. Ao ser separado do gás, o MEG apresenta-se em meio líquido. Aparecem dois tipos de resultado: turvo ou transparente, que indica a

fotos 1 puc-rio 2 lnnano

ausência de MEG

jeto, Arthur Braga, a Petrobras é uma das maiores operadoras de dutos flexíveis do mundo, com a maioria deles operando em águas profundas ou ultraprofundas da costa brasileira. “Os primeiros foram instalados no fim da década de 1970 e hoje a empresa tem uma rede de mais de uma dezena de quilômetros, com mais de mil risers”, diz. “Alguns deles estão chegando ao fim de sua vida útil, por isso a capacidade de detecção antecipada da propagação ou surgimento de danos estruturais tornou-se fundamental para garantir e prolongar o uso desses equipamentos.” Braga explica que os risers são feitos de camadas poliméricas e metálicas intercaladas. Entre essas últimas estão as armaduras de tração, feitas de arame de aço, que suportam os esforços causados pelo próprio peso do duto, do óleo e do gás transportados e pelo movimento do mar. “Com o passar do tempo, os arames se desgastam e podem se romper”, explica. “Por essa razão, a Petrobras agora exige que os tubos flexíveis que operam no pré-sal sejam equipados com sistemas para o monitoramento em tempo real dos risers.” Entre os componentes do Moda estão sensores feitos de fibras ópticas, instalados nos arames da camada de tração externa, no trecho do riser entre a plataforma e a linha d’água. O sistema pode ser instalado durante a fabricação do tubo flexível ou em dutos que estão em operação. “Se um deles sofre uma ruptura, os sensores de fibra óptica detectam essas alterações e as informações são enviadas para um computador na sala de controle.”

O projeto começou em 2007, com financiamento de R$ 8,5 milhões da Petrobras. Entre 2008 e 2013 foram realizados vários testes com o sistema Moda em laboratório e em campo. Recentemente, o sistema foi incorporado pela companhia em todos os campos do pré-sal. A tecnologia foi licenciada para a empresa Ouro Negro, spin-off do Laboratório de Sensores a Fibra Óptica da PUC-Rio. “Até o final de 2016 o número de sistemas Moda instalados nos dutos das plataformas operando no pré-sal deverá chegar a algo em torno de 200 unidades, com cerca de 13 mil sensores de fibra óptica.” No caso do PIG Palito, o investimento da Petrobras foi de cerca de R$ 15 milhões e a tecnologia também deverá ser transferida para uma empresa, que irá produzir o equipamento em escala comercial. As duas tecnologias receberam o Prêmio ANP, da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, na categoria “Inovação tecnológica desenvolvida no Brasil por instituição de ciência e tecnologia nacional em colaboração com empresa petrolífera” – o Moda em 2014 e o PIG Palito em 2016.

tâncias sólidas denominadas de hidratos que podem entupir os dutos. O MEG é adicionado ao combustível para evitar a formação desses hidratos. O problema é que essas substâncias são um contaminante que precisa ser retirado do GNL. Por meio de processos químicos, a Petrobras consegue fazer essa remoção do MEG presente no GNL em suas Unidades de Tratamento de Gás (UTG). A empresa precisa saber com precisão e rapidez, no entanto, qual a eficiência do processo de regeneração do MEG no GNL. “Criamos um método, que chamamos de Microemulsification-Based Method (MEC)”, conta Renato Sousa Lima, pesquisador do Laboratório de Microfabricação do LLNano, coordenador do projeto. Lima explica que, ao ser separado do gás, o MEG fica dissolvido em um meio líquido composto de água, açúcares, ácidos e diversos metais. O teste ocorre com a adição de ácido oleico a esse líquido rico em MEG, gerando uma mistura insolúvel água-óleo. Em seguida, é adicionado etanol à mistura sob agitação. Aparecem dois tipos de resultado: turvo ou transparente. É possível saber a quantidade de MEG e a eficiência do sistema pela quantidade de etanol que foi necessário acrescentar à mistura para ela se tornar transparente. O MEC dura de 5 a 10 minutos enquanto a téc­nica utilizada pela Petrobras envolve uma série de reagentes químicos e demora algumas horas. O projeto que levou ao método desenvolvido por Lima recebeu financiamento da FAPESP e da Petrobras, no valor de R$ 1 milhão, e gerou um pedido de patente e quatro publicações científicas. A nova técnica ainda não entrou na rotina operacional da empresa. “Fizemos três demonstrações para os engenheiros e técnicos da companhia”, conta Lima. “Acreditamos que em breve o método possa ser utilizado como rotina pela Petrobras.” n Evanildo da Silveira

análise do gás

No projeto com o LNNano foi desenvolvido um método de análise química quantitativa para determinar o teor de monoetilenoglicol (MEG) em amostras do processamento de gás natural liquefeito (GNL). Ao ser transportado dos poços submarinos – tanto em águas profundas como nas ultraprofundas – para as plataformas ou navios offshore, são geradas nas tubulações de gás subs-

Projeto Microemulsificação em química analítica para o desenvolvimento de plataformas point-of-care: Estudo de fatores intervenientes e automação em microfluídica (nº 2014/24126-6); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Renato Sousa Lima (LNNano); Investimento R$ 61.425,00.

Artigo científico DA CUNHA, J. G. et al. Microemulsification-based method: Analysis of monoethylene glycol in samples related to natural gas processing. Energy & Fuels. v. 29, p. 564954. 2015.

pESQUISA FAPESP 247  z  75


Aparato para a análise do ritmo de batimento de asas de diferentes espécies de mosquito

ENTOMOLOGIA y

Aedes flagrado em tempo real Armadilha inteligente captura insetos e identifica a espécie por meio do batimento das asas Ricardo Zorzetto

76  z  setembro DE 2016

E

m agosto, começou a ser testado na Flórida e na Califórnia o protótipo mais avançado de uma armadilha inteligente que, além de atrair e capturar insetos, identifica automaticamente a espécie e o sexo a que pertencem. Criado por dois pesquisadores brasileiros e um norte-americano, o equipamento pode simplificar o monitoramento das populações de mosquitos transmissores de doenças, como o Aedes aegypti, responsável pela disseminação de dengue, chikungunya e zika. “Desde que começamos a desenvolver a armadilha, ela tem passado por aprimoramentos constantes”, afirma o entomologista Agenor Mafra-Neto, presidente da empresa brasileira Isca Tecnologias, especializada no controle de pragas, e um dos integrantes do projeto. Ele e os cientistas da computação Gustavo Batista, da Universidade de São Paulo (USP) em São Carlos, e Eamonn Keogh, da Universidade da Califórnia em Riverside, já produziram versões que usavam laser no mecanismo de detecção, antes de obterem resultados melhores com led. Também construíram modelos alimentados por baterias e cabos de força conectados à rede elétrica e estudam conectar um painel solar ao equipamento. Simultaneamente a esses ajustes, eles testaram diferentes versões do software que reconhece a espécie e o sexo dos mosquitos pela batida das asas. “Esperamos até


fotos  léo ramos

o final do ano ter um protótipo robusto adaptado ao uso em campo para testar no Brasil”, diz Mafra-Neto. A armadilha é simples: um cilindro de tecido preto de quase 60 centímetros de comprimento, fechado na extremidade inferior. Sua aparência austera, porém, não dá pistas de seu conteúdo tecnológico. Na extremidade superior, um tubo negro serve de entrada para os insetos e traz acoplado um sensor eletrônico que usa luz para detectar a passagem dos mosquitos e identificar a espécie e o gênero a que pertencem a partir da frequência com que batem as asas. Os insetos são atraídos por um aroma artificial, desenvolvido pela Isca Tecnologias, que lembra o de plantas frescas. Sempre que um mosquito entra na armadilha, ele atravessa um cone de luz infravermelha, emitido por um led. Sua passagem pela região iluminada projeta uma sombra no sensor, que é transformada nos sinais elétricos que alimentam o programa de computador responsável por reconhecer a espécie e o sexo. Imediatamente são registradas a hora do evento, a temperatura e a umidade do ar. Uma vez no interior da armadilha, o mosquito não consegue escapar e morre desidratado. Usar luz para medir o batimento de asas foi uma grande sacada do projeto. Desde os anos 1940, buscam-se estratégias automáticas de se fazer isso. Mas as anteriores registravam o som com microfones, que captavam ruídos do ambiente. Tanto o aparato de detecção quanto o software de reconhecimento foram desenvolvidos pela equipe de Batista na USP. Seu grupo, com o da Isca Tecnologias e o de Keogh, usou uma abordagem computacional, chamada aprendizado de

Protótipo da armadilha: 99% de acerto na identificação do Aedes aegypti

máquina, para desenvolver um software que aprende a reconhecer os padrões de batimento das asas de cada espécie depois de exposto a alguns exemplos. Ao mesmo tempo que trabalhavam na programação, os pesquisadores começaram a criar bibliotecas de referência para ensinar o programa a identificar o ritmo de batimento de asa de diferentes espécies. Os pesquisadores já avaliaram a capacidade do programa de identificar ao menos seis espécies de mosquitos. De modo geral, a taxa de acerto foi alta: variou de 80% para as moscas-da-fruta da espécie Drosophila simulans a 99% para o Aedes aegypti, segundo artigo publicado em 2014 no Journal of Insect Behavior. aprimoramento e aplicativo

Batista e Mafra-Neto calculam que já foram investidos US$ 5 milhões no desenvolvimento da armadilha, financiados pela FAPESP, pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pelo governo dos Estados Unidos. Em agosto, o projeto foi um dos 21 selecionados entre 900 concorrentes para receber financiamento da Agência Internacional de Desenvolvimento dos Estados Unidos (Usaid) para combater a zika. Os pesquisadores terão US$ 500 mil dólares para aprimorar a armadilha. O dinheiro já tem destino. Mafra-Neto e seu grupo na Isca Tecnologias devem finalizar o desenvolvimento da isca atrativa de longa duração, um blend de com-

postos que atrai os mosquitos e repele polinizadores. Em São Carlos, Batista e sua equipe trabalharão no aprimoramento do sensor, para barateá-lo, e na finalização de um aplicativo móvel, que permitirá receber via celular informações sobre as espécies de mosquitos e sua densidade populacional nas áreas monitoradas pela armadilha. O aplicativo também deverá fornecer dados sobre o comportamento das espécies e dicas para combatê-las. “Esse tipo de informação pode estimular as pessoas a controlar os mosquitos e os ovos em casa”, diz Batista. O objetivo é chegar a um produto de valor acessível, que possa ser facilmente usado pelas autoridades de saúde e pela população. “Hoje, a contagem e a identificação dos mosquitos são feitas manualmente por especialistas em taxonomia e entomologia”, explica Mafra-Neto. “Esses profissionais são um recurso caro e escasso, o que provoca gargalos na detecção de focos de transmissão de doenças.” As armadilhas disponíveis para o monitoramento de insetos apenas os capturam. “Desconheço alguma que faça a identificação automática”, afirma o biólogo Delsio Natal, estudioso da ecologia de mosquitos da família Culicidae e professor aposentado da Faculdade de Saúde Pública da USP em São Paulo. “Se esse projeto funcionar, será pioneiro”, diz. Para a bióloga da USP Margareth Capurro, que desenvolveu uma linhagem de Aedes geneticamente alterada para produzir machos estéreis, uma armadilha que identifique os mosquitos permitiria saber quando uma nova espécie entra no local. “Esse tipo de monitoramento é importante, ainda que não permita saber se os mosquitos estão infectados”, afirma. A versão atual da armadilha sai por US$ 100 e os pesquisadores querem barateá-la. “Estamos próximos de chegar a uma versão que possa ir para o mercado internacional”, afirma Mafra-Neto. n

Projeto Sensores inteligentes para controle de pragas agrícolas e insetos vetores de doenças (FAPESP-PPP/2012) (nº 2012/50714-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Gustavo Enrique de Almeida Prado Alves Batista (USP); Investimento R$ 137.402,06.

Artigo científico CHEN, Y. et al. Flying insect classification with inexpensive sensors. Journal of Insect Behavior. v. 27 (5). p. 657-77. set. 2014.

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humanidades   SAÚDE MENTAL y

Ateliê Juquery Esculturas e pinturas resgatam o trabalho do médico Osório Cesar, que valorizou a produção artística em um hospital psiquiátrico Carlos Fioravanti

Em exposição: obras de autores desconhecidos espelham as emoções dos pacientes do hospital psiquiátrico


Museu Osório Cesar / Acervo Juquery / Reprodução Eduardo Cesar

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etratos em cores vivas apresentam homens e mulheres com olhos grandes e olhar desconfiado. Em uma pintura, uma faca atravessa uma cabeça; em outra o vermelho intenso espirra como sangue pela tela. Entre os quase 100 trabalhos reunidos em uma exposição no Museu de Saúde Pública Emílio Ribas, ligado ao Instituto Butantan, poucos são assinados. Todos os autores, porém, tinham distúrbios mentais e foram pacientes do hospital psiquiátrico do Juquery, um dos maiores centros de atendimento nessa área no país. O hoje chamado Complexo Hospitalar do Juquery atingiu sua ocupação máxima na década de 1970, com cerca de 15 mil pacientes, incluindo os detidos por razões políticas. As obras tacitamente trazem à tona perguntas com respostas incertas – o que é arte? Quem é ou pode ser artista? – e, explicitamente, expressam o trabalho inovador do médico, crítico de arte e músico paraibano Osório Thaumaturgo Cesar (1895-1979). A partir da década de 1920, como responsável pela seção de artes e depois como fundador e diretor da Escola Livre de Artes Plásticas do Juquery, ele valorizou a produção artística das pessoas com distúrbios mentais, em paralelo ao trabalho iniciado pela psiquiatra alagoana Nise da Silveira (1905-1999) duas décadas depois no Centro Psiquiátrico Nacional, no Rio de Janeiro. Os dois conviveram com artistas, escritores e outros intelectuais, eram comunistas – foram presos várias vezes – e defendiam a livre expressão artística como possibilidade de reequilíbrio das emoções das pessoas com distúrbios mentais, com base nos estudos sobre o inconsciente do médico neurologista austríaco Sigmund Freud

Escultura de Maria Aparecida Dias

(1856-1939), criador da psicanálise, e do psiquiatra Carl Gustav Jung (1875-1961), criador da psicologia analítica. Esse uso da arte despontava na Europa, nos Estados Unidos e em outros países, como o Brasil, como uma eventual alternativa aos tratamentos violentos usados no início do século passado, como a lobotomia, o eletrochoque e a indução de febres para amenizar o descontrole mental. O uso de medicamentos para tratar distúrbios mentais só começou na década de 1950. Embora com as mesmas motivações, Osório Cesar e Nise da Silveira seguiram abordagens diferentes, ressalta a terapeuta ocupacional Elizabeth Araújo Lima, professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) e autora do livro Arte, clínica e loucura: Território em mutação (Summus Editorial/FAPESP, 2009), resultado de seu doutorado em psicologia clínica na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Adepto da psicanálise de Freud, Osório Cesar dirigiu a Escola Livre de Artes Plásticas com o propósito principal de ensinar um ofício que os pacientes pudessem exercer depois de deixar o hospital. Nise adotou a psicologia analítica de Jung e se opunha aos traumáticos tratamentos da época. Em 1946, ao assumir a seção de terapêutica ocupacional do hospital do Rio de Janeiro, ela começou a desenvolver seu próprio método de tratamento, valendo-se da produção de pinturas e esculturas para promover a reorganização mental dos pacientes. O trabalho dela se tornou mais conhecido que o de Osório Cesar por várias razões, segundo Elizabeth. Retratada em vários filmes – o mais recente, Nise, o coração da loucura, de 2015, dirigido por Roberto Berliner –, a psiquiatra criou em 1952 uma instituição que se mantém até hoje, o Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de pESQUISA FAPESP 247  z  79


Produção intensa: a oficina de artes na década de 1950

Janeiro, e guardava os trabalhos com cuidado para documentar a eventual melhoria do estado mental dos pacientes. Osório Cesar, por sua vez, vendeu algumas obras para ajudar a manter sua escola, permaneceu no hospital até 1965, quando se aposentou por razões políticas, e a escola foi desativada na década de 1970. Os trabalhos se espalharam, até serem reunidos na década de 1980 pela historiadora de arte Maria Heloisa Corrêa de Toledo Ferraz, atualmente professora aposentada da Escola de Comunicações e Artes da USP, com a ajuda de outros pesquisadores. Autora do livro Arte e loucura: Limites do imprevisível (Lemos Editorial, 1998), Maria Heloisa participou do resgate de 2.258 trabalhos e da organização do Museu Osório Cesar, inaugurado em 1985 em um dos antigos pavilhões do hospital. “Com seu olhar de crítico de arte”, diz a historiadora Josiane Oliveira, diretora do Museu Emílio Ribas, “Osório Cesar ressaltou a qualidade da produção artística das pessoas com distúrbios mentais a ponto de promover exposições em espaços públicos e museus de arte das obras produzidas no Juquery”. A primeira foi em 1933, integrando o Mês dos loucos e das crianças, organizado pelo artista Flávio de Carvalho (1899-1973) no Clube dos Artistas Modernos. O Museu de Arte de São Paulo (Masp) organizou três exposições de obras do Juquery, a primeira em 1948, outra em 1954 e, com o acervo doado por Osório Cesar, a mais recente, em 2015. 80  z  setembro DE 2016

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Osório Cesar cresceu em meio à música em João Pessoa, capital da Paraíba. Neto de um maestro de bandas que incentivava os moradores a ouvirem ópera, sobrinho de um violonista e compositor de valsas e filho de um regente de coral e professor de teoria musical, ele ganhou dinheiro como violinista e professor de violino para se manter enquanto estudava odontologia em São Paulo, de 1912 a 1916. Depois ele cursou medicina no Rio de Janeiro e começou a trabalhar em 1925 no Juquery como médico-assistente do laboratório de anatomopatologia. Violinista e anatomista

Ele era um dos responsáveis pelas autópsias, por meio das quais se procurava associar eventuais alterações cerebrais ao desequilíbrio mental. Restaram cerca de 200 cérebros e outras peças anatômicas de pacientes das décadas de 1920 e 1930, mantidas em vidros com formol em prateleiras de madeira em seis salas de um dos prédios do Juquery; logo à entrada de uma delas está um cérebro de um paciente de 35 anos com microcefalia em data não registrada. Em uma sala em frente está outro material pouco explorado: os livros de autópsias de 1921 a 1979 e dezenas de caixas empilhadas com cerca de 5 mil negativos fotográficos em vidro. Logo depois de chegar ao Juquery, Osório Cesar observou que os pacientes desenhavam no chão e nas paredes ou faziam esculturas com miolo de pão. “Ele se admirou com a proximidade


fotos 1 Alice Brill/ Acervo Instituto Moreira Salles  2 e 3 Museu Osório Cesar/ Acervo Juquery/ Reprodução Eduardo Cesar

dos trabalhos com a arte moderna, valorizando o trabalho dos pacientes”, conta Elizabeth. Na Alemanha, o efeito foi inverso, ela observa. Os nazistas usaram a proximidade da então chamada arte dos loucos com a arte moderna para combater a arte moderna, vista como indesejável e prejudicial ao povo. Segundo Elizabeth, o médico brasileiro acreditava que a expressão artística dos denominados alienados “era uma necessidade indispensável à vida de enclausuramento a que estavam submetidos, possibilitando que se refugiassem em um mundo de beleza”. Em 1929 Osório Cesar publicou seu primeiro livro, A expressão artística nos alienados, no qual analisava desenhos, pinturas, esculturas e poesias de pacientes do Juquery à luz da psicanálise. “O louco não é um indivíduo desprezível que mereça desinteresse da sociedade”, ele escreveu. “Dentro do seu mundo circundante e do seu ‘eu’ interior, tem seu ponto de vista anormal. Fora daí é um homem tão perfeito como qualquer outro.” O livro “foi uma obra de referência obrigatória não só para aqueles que se dedicavam à psiquiatria, mas também para a intelectualidade de nosso país”, comenta Maria Heloisa em seu livro. Psiquiatras de São Paulo e do Rio de Janeiro o incentivaram a prosseguir em seus estudos. Desde 2015 examinando os prontuários de pacientes, João Fernando Marcolan, professor de enfermagem psiquiátrica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), encontrou registros de médicos encaminhando pacientes para as aulas de arte, indicando que os benefícios dessas atividades eram reconhecidos no final da década de 1920. Acolhido entre intelectuais e artistas, Osório Cesar conheceu escritores como Mário de Andrade e artistas como Di Cavalcanti e Tarsila do Amaral,

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com quem viveu e viajou para a Europa. “Osório Cesar foi um divulgador da produção dos modernistas na Europa”, disse Rodrigo Lopes de Barros Oliveira, professor de literatura latino-americana na Universidade de Boston, nos Estados Unidos, em uma apresentação realizada na USP em 1º de setembro. Em julho de 1931, argumenta Oliveira, Osório Cesar enviou de Leningrado, Rússia, uma carta para Mário de Andrade, pedindo que o escritor mandasse com urgência os livros dele para o crítico e tradutor russo David Vygodski (18931943), que estava reunindo a produção literária da América do Sul e ainda não tinha nada do Brasil. Desafiando os conceitos clássicos da época sobre o que era arte e quem poderia ser artista, Osório Cesar considerava artistas os internados do Juquery que pintavam e esculpiam. Eram mesmo? “O fato de serem chamados de loucos e estarem internados não impedia que fossem artistas, mas também não garantia que fossem”, diz Elizabeth. “Osório Cesar avaliava as obras a partir de sua qualidade estética, não do estado psíquico das pessoas que as haviam criado.” Havia controvérsia. Em uma conferência no encerramento da exposição de trabalhos do Centro Psiquiátrico Nacional, organizada por Nise da Silveira no Rio de Janeiro em 1947, o crítico de arte pernambucano Mario Pedrosa (1901-1981) atribuiu o estranhamento até mesmo de artistas de vanguarda a “um resto de preconceito intelectua-

Registro funcional de Osório Cesar, em 1937 (acima), e retrato de Freud feito por um dos pacientes, Istvan Csibák (abaixo)

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Hospital central do Juquery no início do século XX

lista” e a uma “noção de certo modo anacrônica da questão”. Segundo Elizabeth, a interação de Mário Pedrosa e Nise da Silveira facilitou a aceitação de artistas que viveram em hospitais psiquiátricos. Um dos mais conhecidos é o sergipano Arthur Bispo do Rosário (1909-1989). Hoje, uma de suas obras integra a exposição The keeper, em cartaz até setembro no New Museum, de Nova York. A arteterapia foi sistematizada pela psicóloga norte-americana Margareth Naumburg (18901983) e pelo artista inglês Adrian Hill (1895-1977) na década de 1940. Atualmente no Brasil as atividades artísticas são utilizadas principalmente para promover a integração social e o enriquecimento cultural de pessoas com distúrbios mentais e dos profissionais da saúde que os assistem, indica um estudo de uma equipe da FM-USP publicado em janeiro deste ano na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Responsável pelo levantamento, a terapeuta ocupacional Ana Tereza Galvanese acompanhou 126 atividades desse tipo promovidas por 21 Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) da cidade de São Paulo e verificou que as chamadas oficinas de arte e cultura abrangem não só a produção artística, mas também visitas a museus, música, dança, cinema, vídeo, fotografia e jogos dramáticos, dentro e fora das unidades de atendimento.

Em um artigo na Psychology and Psycotherapy de junho de 2016, pesquisadores da Universidade de Sheffield, Inglaterra, reconhecem a utilidade da produção artística como estratégia de tratamento em saúde mental, destacam a importância de o próprio paciente escolher a forma com que deseja ser tratado (por medicamentos ou por arteterapia), alertam para a necessidade de os profissionais selecionarem as estratégias mais adequadas para cada paciente. Em transformação

Projetado pelo arquiteto Francisco Ramos de Azevedo e construído em 1898 no atual município de Franco da Rocha, na Grande São Paulo, o Juquery foi um lugar assustador. Apesar de iniciativas como a de Osório Cesar para criar espaços amigáveis, há relatos de pacientes nus abandonados nos pátios e de outros que morriam logo após serem internados, em geral por desinteria, refletindo o descaso com que eram tratados. Há um ano Marcolan explora com deslumbramento crescente o ainda pouco estudado acervo de 80 mil prontuários dos pacientes internados desde 1895, organizados em uma sala em frente ao museu. Examinando os registros, ele verificou como as internações refletiam os hábitos e valores da sociedade do início do século passado. 1

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fotos 1 Museu Osório Cesar/ Acervo Juquery 2 eduardo cesar

Prédio da diretoria, ainda sem restauração após o incêndio de 2005

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“Era comum a internação de mulheres com comportamento considerado inaceitável, como querer ir a bailes desacompanhadas, desejar se divertir ou ter perdido a virgindade sem estarem casadas”, ele conta. “No início do século XX, boa parte dos internados era de negros, considerados vagabundos e degenerados, devido à crença na eugenia, de purificação da raça. O simples fato de ser negro e não ter trabalho já era motivo de internação por vadiagem.” Marcolan encontrou registros dos internados por razões políticas durante o governo de Getúlio Vargas (1930-1945), mas não localizou ainda os prontuários da época dos governos militares (1964-1985). A situação começou a mudar a partir da década de 1980, com a redefinição das normas de tratamento psiquiátrico, valorizando a desinternação, e a intervenção de médicos apoiados pelo governador André Franco Montoro (1983-1987), que abriram as celas e as alas mais degradantes, das quais os internados só saíam quando morriam. Hoje, mais da metade do terreno é ocupada pelo Parque Estadual do Juquery, como forma de preservar as raras matas nativas de Cerrado. As equipes de serviços da prefeitura e do governo estadual ocupam nove dos 60 prédios, em geral cercados de árvores e gramados. Um hospital de traumas ocupa um prédio novo, concluído em 2011, e um centro de atendimento integral à saúde mental, com leitos para internação por até 45 dias, funciona em um dos antigos pavilhões, com 1.500 metros quadrados. Em seis pavilhões ainda moram 123 pacientes, a maioria com esquizofrenia ou deficiência intelectual, com, em média, 60 anos de idade e 35 de internação. Sem famílias ou espaços exter-

nos adequados, são “remanescentes do modelo de internação de longa duração”, afirma o farmacêutico Glalco Cyriaco, diretor do complexo hospitalar do Juquery desde 2010, quando havia 260 residentes. Ele acredita que em alguns anos não haverá mais nenhum paciente morador no Juquery. A maioria dos 60 prédios está fechada e desocupada, às vezes com paredes exibindo rachaduras ou largas manchas de bolor – o prédio da diretoria continua sem restauração após ter sido destruído por um incêndio em 2005 –, aguardando a definição de novos usos. Segundo o arquiteto Pier Paolo Bertuzzi Pizzolato, diretor do núcleo de acervo, o Plano Diretor prevê a ocupação da maior parte dos prédios hoje vazios por uma universidade pública e a construção de um hospital de reabilitação física de pacientes que necessitam de internação prolongada. O projeto de renovação, ainda sem financiamento, prevê também a construção de jardins com árvores frutíferas e canteiros de flores nos antigos pátios murados entre os pavilhões do hospital psiquiátrico. n

Artigos científicos 1. GALVANESE, A. T. C. et al. Arte, saúde mental e atenção pública: Traços de uma cultura de cuidado na história da cidade de São Paulo. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. v. 23, n. 2, p. 431-52. 2016. 2. SCOPE, A. et al. A qualitative systematic review of service user and service provider perspectives on the acceptability, relative benefits, and potential harms of art therapy for people with non-psychotic mental health disorders. Psychology and Psycotherapy. On-line. 2016.

Livros LIMA, E. A. Arte, clínica e loucura: Território em mutação. São Paulo: Summus Editorial/FAPESP. 2009. FERRAZ, M. H. C. de T. Arte e loucura: Limites do imprevisível. São Paulo: Lemos Editorial. 1998.

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PLANEJAMENTO FAMILIAR y

Leis no

feminino

Estudo da atuação de uma clínica de assistência à mulher recupera a história dos direitos reprodutivos no Brasil Márcio Ferrari

U

m período de cerca de 35 anos separa as primeiras articulações de setores da sociedade brasileira em favor de políticas relacionadas à regulação da fecundidade e os dias de hoje, em que as reivindicações se efetivaram, pelo menos parcialmente, na forma de leis e serviços oferecidos pelas redes públicas de saúde. “Houve um avanço notável nessas quase quatro décadas”, diz a psicóloga Margareth Arilha, pesquisadora do Núcleo de Estudos de População (Nepo) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A primeira reivindicação atendida, segundo a antropóloga Andrea Moraes Alves, professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foi a criação, em 1983, do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (Paism). Uma importante inflexão do período foi a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) instaurada no Congresso em 1992 e encerrada em 1993, para investigar denúncias de esterilização em

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massa de mulheres no Brasil que teriam sido promovidas, entre outras instituições, pelo Centro de Pesquisas de Assistência Integrada à Mulher e à Criança (CPAIMC), entidade privada do Rio de Janeiro. O inquérito terminou inconcluso quanto a essas acusações, mas teria marcado uma guinada histórica que influenciou o teor da Lei de Planejamento Familiar (1996), de acordo com Andrea. “A denúncia contra o CPAIMC, capitaneada por parlamentares, entidades feministas e especialistas na área da saúde e de estudos populacionais, contribuiu para a promoção do conceito de direito reprodutivo das mulheres, então discutido na sociedade, mas ainda não estabelecido legalmente”, afirma a pesquisadora, que analisou o desenrolar da CPMI na pesquisa “A trajetória do CPAIMC: A introdução da esterilização feminina no Brasil”. Além do acompanhamento das sessões parlamentares e seu contexto, o estudo percorreu a trajetória do fundador e diretor do centro, o médico Helio Aguinaga, entrevistado

por Andrea em 2013, aos 97 anos. Ele morreu dois anos depois. O CPAIMC foi criado em 1974 por um grupo de médicos, enfermeiros e assistentes sociais do Hospital São Francisco de Assis, no Rio, e registrado no ano seguinte como “sociedade civil sem fins lucrativos”. Os recursos financeiros vieram, de início, do Fundo da População das Nações Unidas e em seguida da agência do governo norte-americano para ajuda internacional (USAID) e de várias organizações internacionais, sobretudo dos Estados Unidos. Nessa época, o grande debate internacional sobre controle da natalidade tinha como motor a preocupação com a então chamada “bomba populacional” – a ideia, baseada em projeções estatísticas, de que o crescimento do número de habitantes do planeta superaria a capacidade de geração de alimentos para todos. No Brasil, o pensamento nas fileiras do regime militar se dividia entre os que abraçavam essa ideia e os que consideravam as grandes taxas de fecundidade locais oportunas para fazer a ocupação


ilustraçãO larissa ribeiro

do território nacional. Nos órgãos de representação da comunidade médica das instituições privadas, segundo Andrea, havia uma forte tendência de privilegiar a perspectiva da saúde pública, com o argumento de que o controle da natalidade contribuiria para o bem-estar da população, principalmente das mulheres, que deveriam ter filhos apenas quando quisessem. Para a Igreja católica, então mais influente do que hoje, é responsabilidade dos casais regular a fertilidade por meios “naturais”, para não terem filhos sem condições de criá-los, mas considerava contrário à natureza qualquer método de contracepção artificial. Segundo Andrea, a presença estrangeira – bastante explorada na CPMI como “ingerência externa” – tinha como principal motivação o interesse em desarmar a “bomba populacional” onde parecia mais perigosa, os países em desenvolvimento (na Europa, as taxas de fecundidade estavam caindo), e o temor, em tempos de Guerra Fria, de que o aumento do número de miseráveis viesse a dar pESQUISA FAPESP 247  z  85


sustentação a movimentos de insurgência de orientação comunista. O objetivo declarado das doações de entidades internacionais era humanitário: promover o controle da natalidade para favorecer a qualidade de vida da população. Um dado objetivo ajudou a mudar o foco da discussão: a queda abrupta da taxa de fecundidade no Brasil, que passou de 5,8 filhos por mulher, em 1970, para 4,4, em 1980, e 2,9, em 1990. As práticas de esterilização, entretanto, continuaram. “Com a expansão das atividades do CPAIMC em favelas da cidade do Rio de Janeiro, começaram a surgir denúncias de ações praticadas nos postos comunitários”, conta Andrea. A atuação do centro se apoiava em convênios com as administrações municipais e na criação de polos autônomos nas comunidades pobres. Em 1984, o jornal O Globo noticiou o fechamento de uma unidade da instituição que funcionava dentro de uma escola municipal no bairro de Acari, por incompatibilidade entre a atividade médica e a educacional. Uma moradora de baixa renda do bairro se disse coagida a submeter-se à cirurgia de esterilização. Na ocasião, Aguinaga declarou ao jornal: “O que nós queremos é trazer melhorias para essas pessoas que vivem mal, em condições sub-humanas.” Em 1986, o Ministério da Saúde suspendeu os testes do anticoncepcional Norplant realizados pelo centro entre mulheres pobres. Durante os debates para a redação da Constituição de 1988, Aguinaga se dedicou a uma campanha pessoal pela inclusão do planejamento familiar no 86  z  setembro DE 2015

texto constitucional. As argumentações públicas do médico, que continuavam vinculando o tema às condições de desenvolvimento do país, começaram a ser abertamente contestadas pelos defensores da perspectiva individual dos direitos de reprodução. Essa era a orientação unânime das organizações feministas, que tiveram uma vitória com a aprovação do texto do artigo 226 da nova Constituição, segundo o qual o planejamento familiar é “de livre decisão do casal” e fica “vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”. Três anos depois, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro abriu uma CPI sobre esterilização de mulheres no estado, e Aguinaga foi convidado a depor. Ainda em 1991, isolado e sem apoio financeiro, o CPAIMC fechou suas portas. OMISSÃO DO ESTADO

Nas investigações parlamentares foi levantada a suspeita de que as atividades do CPAIMC se orientavam por propósitos eugenistas, dados os indícios de que a “esterilização em massa” visava prioritariamente às mulheres negras. A CPI estadual recomendou, em seu relatório final, a abertura de inquérito parlamentar em âmbito federal, que foi solicitada pela deputada federal Benedita da Silva e pelo senador Eduardo Suplicy, ambos do PT. Benedita, identificada com o feminismo e o movimento negro, assumiu a presidência da comissão mista. Disputas acerca de metodologia estatística sobre a proporção de mulheres negras entre as esterilizadas deixaram em aberto as

Artigo ALVES, A. M. A trajetória do Centro de Pesquisas e Atenção Integrada à Mulher e à Criança (1975-1992). Século XXI, Revista de Ciências Sociais. v. 4, p. 180-216. jul./ dez. 2014.

ilustraçãO larissa ribeiro

No inquérito parlamentar, em 1992, surgiu a suspeita de eugenia, com a suposta esterilização em massa de mulheres negras

conclusões relacionadas às acusações de eugenia. O relatório final da CPMI constatou alta incidência (44%) de esterilizações cirúrgicas “em detrimento de alternativas contraceptivas menos invasivas” e apontou “omissão do governo brasileiro” por não investigar as iniciativas privadas de controle da natalidade. Margareth Arilha, que esteve presente a algumas das etapas cruciais de mudança de perspectivas, como a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, em 1994 no Cairo, localiza as origens da construção do conceito de planejamento familiar como direito individual no crescimento dos movimentos feministas no Brasil no final dos anos 1970, período de distensão da ditadura militar. “Muitas feministas voltaram do exílio trazendo um debate em torno da máxima ‘nosso corpo nos pertence’”, diz Margareth. Outro marco importante, segundo a pesquisadora, foi a criação do Conselho da Condição Feminina em São Paulo, na gestão de André Franco Montoro, o primeiro governador eleito por voto direto, em 1982, desde a instalação do regime militar. Duas conferências internacionais sobre população são destacadas como momentos históricos por Cristiane da Silva Cabral, docente do Departamento de Saúde Materno-Infantil da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e colaboradora do Nepo. “A conferência de Bucareste, em 1974, concluiu que o melhor contraceptivo é o desenvolvimento, e a do Cairo, em 1994, definiu a reprodução como direito humano fundamental”, diz ela. A Constituição de 1988 e a Lei de Pla­nejamento Familiar de 1996 seriam consolidações dessas iniciativas. Para a aprovação da lei, houve uma negociação com os setores mais conservadores do Congresso e da sociedade, o que resultou em restrições ao acesso à esterilização cirúrgica, entre elas a condição de que a mulher tenha mais de 25 anos ou dois filhos e a necessidade da autorização do cônjuge. “Mesmo assim, a lei é satisfatória ao garantir acesso amplo e legal a métodos contraceptivos”, afirma Cristiane. n


EDUCAÇÃO y

Filósofa alemã participa, em 1969, de palestra em Nova York: críticas ao sistema educacional norte-americano

A criança Neal Boenzi / New York Times Co. / Getty Images

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mundo Pesquisa relaciona reflexões de Hannah Arendt sobre o ensino com conceitos de sua obra política

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filósofa alemã Hannah Arendt (19061975) escreveu apenas um ensaio sobre educação em meio a uma obra eminentemente política. O texto, intitulado “A crise na educação” (1958), publicado no Brasil em 1974 no livro Entre o passado e o futuro, contesta as orientações de ensino tidas como as mais avançadas à época por pedagogos e educadores nos Estados Unidos, onde a pensadora vivia. Hannah Arendt ia intencionalmente na contramão do que se pensava ao defender um sistema educacional que não se voltasse acima de tudo para a prática, mas sim para a tarefa de apresentar à criança um legado cultural de realizações históricas. “A filósofa mostra que mudar métodos não resolve o problema da educação se não houver uma discussão sobre sua própria substância”, explica Celso Lafer, professor emérito da Faculdade de Direito da USP e ex-presidente da FAPESP. pESQUISA FAPESP 247  z  87


“A função da escola é ensinar às crianças como é o mundo, e não instruí-las na arte de viver”, afirma um trecho do ensaio em referência ao movimento Escola Nova, que tem no filósofo pragmatista norte-americano John Dewey (18591952) seu nome mais importante. Essa vertente educacional ficou conhecida por propor “uma educação para a vida”. Segundo a professora Carlota Boto, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP), “o texto de Arendt é uma referência importante pela crítica que faz aos modismos da educação e por apontar alguns equívocos que estavam em voga, como só valorizar em sala de aula o que a própria criança criou”.

Aula numa escola de São Paulo: adultos devem transmitir o legado da humanidade

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ensaio da filósofa alemã apresenta vários desafios. “As reflexões presentes no ensaio sobre educação são intricadas e pressupõem uma razoável familiaridade do leitor com a complexa teia conceitual de que ela se vale em seus escritos políticos”, afirma José Sergio Fonseca de Carvalho, professor da FE-USP. Investigar tais relações na obra da autora, e assim entender em maior profundidade seu pensamento sobre educação, tem sido o objetivo dos estudos do pesquisador há 15 anos. O mais recente, sua tese de livre-docência “Educação: uma herança sem testamento” (2013), deve sair em livro até o início de 2017, com o mesmo título, pela editora Perspectiva. “Meu trabalho não procura apresentar soluções técnicas, mas pôr em questão a própria razão de ser do processo educativo”, diz Carvalho, em consonância com a afirmação da filósofa de que a relação entre crianças e adultos “não pode ficar restrita à ciência específica da pedagogia” porque “diz respeito a todos”. Ao procurar uma compreensão mais profunda da dicotomia entre os conceitos de mundo e vida apresentada por Arendt em “A crise na educação”, o pesquisador encontrou a distinção entre domínio público e privado em obras como A condição humana (1958) e O que é política? (1955). No âmbito privado, caberia aos cuidados destinados à criança dar conta das atividades de sobrevivência e manutenção da vida, enquanto a escola exerceria a função de imortalizar e superar uma herança recebida do mundo. “Para Hannah Arendt, é assim que a formação e a experiência educativas 88  z  setembro DE 2015

ganham um sentido público, e não no preparo do indivíduo para a inserção na economia”, explica Carvalho. Segundo a especialista em psicologia escolar Maria Helena Patto, do Instituto de Psicologia da USP, a filósofa defende nesse ponto do texto que a tarefa de adaptação à sociedade que as escolas muitas vezes se atribuem “é antes uma deformação do que uma formação”. Arendt rejeitava a ideia de uma educação a serviço de qualquer finalidade política. “Ela denunciou a instrumentalização da educação para fins políticos e a ideia de que caberia aos educadores preparar as crianças para uma ideia predefinida de cidadania”, diz Yara Frateschi, professora do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp). “Isso pode sempre ocultar o desejo de tirar das mãos das novas gerações a possibilidade de criar o novo.” A crise na educação referida no título do ensaio não tem por consequência necessária um desastre, como a filósofa

adverte no texto. Crises, escreveu ela, são situações em que se perderam as respostas aceitas anteriormente, mas sem que a sociedade perceba quais eram as questões que pediam essas respostas. Dessa forma, diz Carvalho, o “mundo moderno não se mantém coeso nem pela tradição nem pela autoridade, das quais a educação, segundo Hannah Arendt, não pode abrir mão”. Segundo a filósofa, as crises nos forçam a regressar às questões originais. A complexidade da situação da educação contemporânea, diz ela, é que se trata de um prolongamento de uma “crise do mundo moderno”. Yara explica que essa perda da tradição é uma preocupação da filósofa provocada pelo impacto de seus estudos sobre o totalitarismo nazifascista. “Sua obra é uma busca incansável dos motivos que teriam levado a humanidade a um grau de barbárie que todos os recursos teóricos disponíveis são insuficientes para explicar”, diz a pesquisadora. O mundo a que se refere a filósofa em seu ensaio não corresponde ao planeta Terra, nem mesmo à esfera pública por


Para a filósofa, a mudança de métodos é inútil se a própria razão de ser da educação não for discutida

mera contraposição ao espaço privado. “É antes uma criação do artifício humano, um legado ao qual os recém-chegados devem ser iniciados por meio da educação”, explica Carvalho. No processo educacional, essa iniciação levará o legado público a se tornar um legado de cada criança, “transformando o que lhe pertence por direito em algo que lhe pertence de fato”.

fotos  léo ramos

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m conceito da obra de Arendt articulado a sua concepção da escola é o de amor mundi, que ela desenvolveu a partir de sua tese de doutorado sobre a ideia de amor na filosofia de Santo Agostinho (354-430), defendida na Universidade de Heidelberg (Alemanha) em 1928. Amor ao mundo é o que se espera dos educadores ao transmitir e se responsabilizar pelo legado humano. Segundo Carvalho, isso tem três implicações: compartilhar o apreço pelo esforço da humanidade em imortalizar sua existência mortal, criar a sensação de pertencimento e recepcionar as crianças a um

mundo “em que se sintam confortáveis, mas não muito”. O “não muito” produziria um incômodo que seria o motor da ação, até mesmo a ação revolucionária. Para que se realize a inclusão da crian­ ça em um mundo pelo qual ela ainda não pode se responsabilizar, é indispensável que os adultos tomem as rédeas, na escola ou fora dela. “Mesmo que não gostem do mundo como ele é, os adultos não podem, na tarefa educativa, abrir mão de se responsabilizar por ele como herança”, afirma Carvalho. “Se não tivermos enraizamento no passado, que é o que define nossa humanidade, seremos seres rasos, que vivem apenas no presente, como mais uma peça de uma engrenagem.” Sobre essa missão, Arendt afirma que “a educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele”. Tal responsabilidade é necessária porque, de acordo com a filósofa, o mundo não é das crianças, mas dos adultos. “Ela argumenta que um grupo de crianças deixadas livres para fazer o que quise-

rem cria uma tirania de muitos contra poucos, cujo exemplo claro é a prática do bullying”, diz Lafer. Na origem do papel dinâmico da educação na história humana, estaria, para Fonseca, a noção de natalidade, que Arendt também desenvolveu a partir de Agostinho e que está presente em A condição humana. “O significado e a natureza da educação, para Arendt, decorrem do fato de que o nascer de cada criança representa, simultaneamente, que há um novo ser no ciclo vital da natureza, mas que há também um ser novo no mundo dos homens”, diz Fonseca. A simultaneidade pode ser desdobrada, à luz do pensamento da filósofa, em dois momentos: a do nascimento biológico e a do nascimento para o mundo, função da escola. Hannah Arendt propunha uma separação radical entre os domínios da educação e da política. “Ela sustentava que a educação se inscreve num âmbito pré-político, por dever salvaguardar os novos de assumir uma responsabilidade pelo mundo que ainda não podem assumir”, esclarece Adriano Correia Silva, professor de filosofia da Universidade Federal de Goiás (UFG). Em consequência, a pensadora afirmava que “é preciso proteger a criança do mundo e o mundo da criança”. Para isso, é indispensável que o educador detenha uma autoridade – definida por Lafer como “mais que um conselho e menos do que um comando” – que só se alcança por meio do respeito despertado nos alunos pela responsabilidade que a escola deve abraçar. “A proteção tem de ser retirada gradualmente”, diz Carvalho. “Isso é o processo educacional.” n Márcio Ferrari pESQUISA FAPESP 247  z  89


memória

Raízes da genética no Brasil Ensino do mendelismo começou nas escolas de agronomia de São Paulo na década de 1910, com Carlos Teixeira Mendes Rodrigo de Oliveira Andrade

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Aulas de Mendes sobre genética mendeliana na Esalq baseavam-se em sua tese de cátedra, apresentada em 1917

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redescoberta por cientistas europeus dos trabalhos do monge austríaco Gregor Mendel (1822-1884), em 1901, sobre a transmissão de características em ervilhas ampliou as possibilidades de pesquisa em uma então nova e promissora área da biologia moderna, a genética. A partir daquele começo de século, pesquisadores de várias partes do mundo se voltaram para os estudos sobre hereditariedade e variabilidade genética em espécies animais e vegetais. No Brasil, as ideias de Mendel começaram a ser disseminadas em fins dos anos 1910 por meio das atividades de ensino e pesquisa do agrônomo paulista Carlos Teixeira Mendes (1888-1950), professor da Escola Agrícola Prática de Piracicaba, à época vinculada à Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo. Em 1934, ela se tornou uma das unidades da nascente Universidade de São Paulo, já com o nome de Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP). Em 1918, quatro anos após voltar de uma temporada de estudos no Instituto Nacional de Agronomia de Grignon, França, e reassumir suas funções como professor na Escola Agrícola, Mendes proferiu suas primeiras palestras sobre genética mendeliana nos cursos de agronomia e de zootecnia, este último coordenado por seu ex-aluno Otávio Domingues (1897-1972), que viria a ser um dos divulgadores das leis de Mendel no Brasil e um dos pioneiros na pesquisa de melhoramento genético de animais no país. As aulas sobre o mendelismo e a nova ciência da hibridização baseavam-se na tese de cátedra de Mendes, apresentada em 1917 como resultado de suas pesquisas nos campos de experimentação da Esalq. Seus estudos lhe permitiram ir além dos clássicos exemplos de transmissão


fotos  1, 2 e 4 acervo esalq 3 instituto histórico e geográfico de piracicaba

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de características em ervilhas para tratar do melhoramento de culturas importantes para a agricultura brasileira, conforme verificou a historiadora da ciência Paula Arantes Habib, da Universidade de Brasília (UnB), ao analisar as cadernetas de aulas e livros com anotações de Mendes. “O ensino e a pesquisa envolvendo as leis da hereditariedade na Esalq podem ser compreendidos como o início da institucionalização da genética no Brasil”, afirma. Segundo Paula, Mendes reconhecia o mendelismo como uma teoria válida para o melhoramento de plantas. Ainda assim defendia a seleção empírica como sendo a melhor maneira de desenvolver a agricultura brasileira. O pesquisador considerava essa técnica mais simples que a hibridação mendeliana,

Antiga Escola Agrícola de Piracicaba

No Brasil, geneticista alemão Friedrich Brieger elaborou um ambicioso programa de pesquisa em genética

segundo ele, inviável para a criação e estabilização de variedades satisfatórias de plantas para serem cultivadas em larga escala. A seleção empírica consistia basicamente na escolha e no cruzamento das melhores sementes da colheita. Requeria, para isso, que o selecionador soubesse escolher qual a melhor semente possível do ponto de vista do fenótipo (característica que pode ser visível), e não do genótipo (composição genética). Além disso, essa técnica poderia ser ensinada facilmente aos pequenos agricultores. Os trabalhos de Mendes na Esalq abriram caminho para que quase 10 anos depois, em 1928, a genética passasse a ser empregada pelo Instituto Agronômico de Campinas (IAC) no melhoramento de produtos como café e milho, ou na adaptação de outras sementes, como as de trigo e cevada, ao ambiente brasileiro. Com a criação da USP, a atividade de pesquisa em genética recebeu um novo impulso. André Dreyfus (1897-1952), médico formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, foi o responsável pela

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criação de um núcleo de estudos de genética na nova universidade. Sob sua orientação, formaram-se no Departamento de Biologia Geral da USP muitos pesquisadores interessados em citologia e genética, entre eles Crodowaldo Pavan (1919-2009), outro membro importante do grupo que ajudou a institucionalizar a genética no Brasil (ver Especial Crodowaldo Pavan em Pesquisa FAPESP nº 168). Anos mais tarde, Dreyfus se articularia com a Fundação Rockefeller para trazer ao país o russo naturalizado norte-americano Theodosius Dobzhansky, da Universidade Columbia, nos Estados Unidos, introdutor do estudo da genética das drosófilas (a mosca-da-fruta) no Brasil. Em 1936, em um novo esforço de institucionalização da pesquisa em genética no país, a Esalq convidou o geneticista alemão Friedrich Gustav Brieger (1900-1985) para organizar um departamento de genética na instituição. Poucos anos antes, Brieger havia trabalhado no Instituto Kaiser Wilhelm, Alemanha, com Carl Correns, um dos cientistas que redescobriram os escritos de Mendel (ver Pesquisa FAPESP nº 239). Brieger aceitou o convite e, com a ajuda da Fundação Rockefeller, elaborou um ambicioso programa de pesquisa em genética das plantas e um intercâmbio com estudiosos estrangeiros. “Esses cientistas atuaram no debate científico nacional de forma a contribuir para a discussão, divulgação e institucionalização da genética no Brasil”, conclui Paula. n PESQUISA FAPESP 247 | 91


resenha

A biografia política de Caio Prado Jr. Paulo Iumatti

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Caio Prado Júnior: Uma biografia política Luiz Bernardo Pericás Boitempo 504 páginas | R$ 63,00

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o livro Caio Prado Júnior: Uma biografia política, Luiz Bernardo Pericás, professor do Departamento de História da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), procura dar uma nova interpretação para a trajetória do historiador, filósofo e editor Caio Prado Jr., com ênfase em sua dimensão política. Nela, fica ressaltada a fidelidade do intelectual aos autores clássicos do marxismo – Marx, Engels e Lenin – e ao comunismo (para Pericás, Caio Prado foi um pensador livre e heterodoxo e, nisso, mais fiel aos “clássicos” do que muitos de seus interlocutores). Destaca-se o detalhamento factual de episódios ou – e aqui está, talvez, sua maior contribuição – de fases inteiras da vida de Caio Prado, relacionados a sua militância e a outros eventos até hoje ignorados ou pouco valorizados pelos estudiosos: suas viagens a países socialistas; as várias prisões; o exílio no Chile; a atuação em diversas organizações; e as muitas intervenções em palestras, cursos e eventos de todo tipo etc. Ao mesmo tempo, o autor esmiúça todo um universo de relações intelectuais, políticas e mesmo familiares. Em relação aos anos de 1920 a 1940, a biografia faz leituras seletivas (o autor optou, por exemplo, por não utilizar as partes inéditas dos Diários políticos, bem como outros textos políticos do intelectual), sobressaindo, além do detalhamento de alguns episódios biográficos, a análise da primeira viagem à extinta URSS e o peso dado à leitura que Caio Prado fez dos escritos do intelectual russo Nikolai Bukharin. A maior contribuição da obra diz respeito ao pós-Segunda Guerra (embora não se demore muito na atuação do biografado como parlamentar, em 1947). Com relação ao período, o livro consegue mostrar, para além da idealização, por Caio Prado, os regimes totalitários do “socialismo real”, a importância e a complexidade de suas relações com tais regimes ao longo da vida. Ademais, é relevante a ênfase dada às reações do historiador às revelações de Kruschev e, depois, à repressão à Primavera de Praga. De uma forma geral, Pericás consegue adentrar o intrincado mundo das concepções políticas, dos debates e do contexto social e ideológico do Caio Prado militante – e, ao mesmo tempo, voz dissonante – do Partido Comunista Brasileiro (PCB),

colaborando para situar traços de seu pensamento político, como sua defesa da “democracia parlamentar” (voltada para a construção do socialismo) e seu conceito de revolução, e evidenciando, noutro plano, suas conexões com intelectuais latino-americanos e do mundo socialista. Nesse sentido, o livro dá subsídio à história do marxismo, abordando algumas interlocuções e parte da recepção internacional das obras de Caio Prado. Procura, por outro lado, transcender tal enfoque, ao inserir o intelectual em meio a certa linhagem marxista nas Américas (Daniel De Leon, José Carlos Mariátegui, Octávio Brandão etc.), para além das evidências efetivas de contato e diálogo. A escassa ou seletiva atenção à bibliografia secundária é de certa forma compensada pela exploração das fontes primárias. Entre estas, destacam-se os documentos do Fundo Caio Prado Jr. do Instituto de Estudos Brasileiros da USP – onde o autor fez pós-doutorado com bolsa FAPESP. Trata-se do primeiro estudo publicado que se beneficia de forma mais ampla e sistemática da organização quase completa do fundo. O uso de avultada documentação primária (memórias, “depoimentos” e, em especial, correspondência) merece algumas ponderações. Sem chegar a comprometer as muitas qualidades da obra, é importante notar que, com algumas exceções (os documentos produzidos pela polícia política, por exemplo), não há nela uma reflexão mais detida sobre a natureza das fontes em que se apoia. Documentos como as cartas parecem ser tomados, por vezes, como manifestações excessivamente transparentes. Já em relação aos depoimentos e memórias do próprio biografado, seria interessante levar em conta a possibilidade de racionalizações a posteriori, ainda maior em contextos de luta política. Tudo isso, porém, não chega a prejudicar as contribuições que o livro, em esmerada edição da Boitempo, traz não só aos estudos sobre Caio Prado, mas também à reflexão sobre o Brasil contemporâneo, no que tange à natureza das nossas instituições e aos impasses das lutas contra as desigualdades sociais e do próprio pensamento de esquerda no país. Paulo Iumatti é professor do Instituto de Estudos Brasileiros da USP.


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Divulgação Científica

À procura de visibilidade

Apesar das tensões e da dissonância de ritmos e expectativas, a relação entre cientistas e jornalistas melhorou nas últimas duas décadas no Brasil. Os pesquisadores, aos poucos, reconhecem a importância de se comunicar com públicos mais amplos e também percebem que a divulgação de seus trabalhos na imprensa pode ajudá-los a avançar na carreira, aumentando a visibilidade de suas pesquisas e seu prestígio entre os colegas acadêmicos. Essa foi uma das conclusões de um estudo publicado em março deste ano nos Anais da Academia Brasileira de Ciências. Nele, a jornalista Luisa Massarani, do Núcleo de Estudos da Divulgação Científica do Museu da Vida da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, e o cientista social Hans Peters, professor da Universidade Livre de Berlim, na Alemanha, avaliaram as percepções de pesquisadores brasileiros sobre os benefícios de se relacionar mais e melhor com a imprensa. Luisa e Peters entrevistaram 956 pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento. Verificaram que 66% dos cientistas qualificam como profícua sua 94 | setembro DE 2016

relação com a mídia e que 67% consideram que a divulgação de seus trabalhos na imprensa poderia aumentar a notoriedade de suas pesquisas dentro e fora da universidade. Ao mesmo tempo, constataram que 24% dos pesquisadores entrevistados julgam que a interação com os jornalistas pode ampliar as possibilidades de se conseguir novos colaboradores ou mesmo apoio financeiro para seus projetos, além de atrair a atenção do público para seu campo de investigação. Diante disso, todos reconhecem que deveriam interagir mais com os jornalistas, tomando a iniciativa de comunicá-los sobre o andamento de suas pesquisas e sobre a publicação de artigos em revistas científicas, colocando-se à disposição, sempre que possível, para dar entrevistas e comentar assuntos relacionados à sua área de investigação. Os resultados do estudo de Luisa e Peters parecem refletir a percepção de cientistas de outros países. Em um artigo publicado em 2015 na revista Journal of Science Communication, pesquisadores da Universidade de Twente, Holanda, avaliaram as percepções de 21 pesquisadores sobre os benefícios de se

ilustrações  daniel almeida

Investir na divulgação de trabalhos na mídia pode ajudar pesquisadores a avançar na profissão e serem reconhecidos por um público mais amplo


comunicar com audiências mais amplas. Os cientistas daquele país consideram que a divulgação de seus trabalhos na mídia, entre outras ações, poderia contribuir para que suas pesquisas influenciem a formulação de políticas públicas. De modo mais amplo, os pesquisadores disseram que investir no aperfeiçoamento da relação com a mídia contribuiria para que as pessoas desenvolvessem uma compreensão mais apurada dos processos de produção do conhecimento científico, amenizando a ansiedade de certos setores da sociedade e de governantes pela obtenção rápida de novos resultados ou técnicas. menos sensacionalismo

Para que possam tirar proveito dessa interação, os pesquisadores precisam antes aprender a atender às necessidades dos jornalistas, recomenda Marta Entradas, pesquisadora do Centro de Estudos sobre a Mudança Socioeconômica e o Território, do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, em Lisboa, Portugal. Atualmente, ela é bolsista no Programa Marie Curie Fellow na London School of Economics and Political Science, na Inglaterra. Marta tem um histórico de pesquisas em comunicação científica. Foi professora assistente de comunicação de ciência e política científica na University College London, Inglaterra, e educadora na European Network for Science Communication, que ensina cientistas a se comunicar melhor com públicos mais amplos que o acadêmico. Segundo ela, um dos principais problemas que permeia a relação dos pesquisadores com a mídia é a dificuldade de encontrar um reconhecimento por parte dos meios de comunicação de que temas menos sensacionalistas, mas de interesse para

a sociedade, deverão ser também merecedores de cobertura. “A verdade é que a maioria das pesquisas conduzidas em instituições científicas não chega aos meios de comunicação e nem à sociedade”, diz Marta. Há também, segundo Marta, um trabalho que pode ser feito pelas próprias universidades, como a criação de cursos que ensinem pesquisadores a lidar com jornalistas, mantendo-os informados sobre o que estão fazendo. Ao mesmo tempo, ela diz, é importante que os pesquisadores se aproximem das assessorias de comunicação de suas próprias instituições, uma vez que elas frequentemente interagem com os jornalistas e, por isso, podem auxiliar os pesquisadores a lidar melhor com a mídia. Além disso, cada vez mais as assessorias de comunicação valorizam o diálogo direto com o público, por meio de atividades que promovem e dos seus próprios sites e perfis em redes sociais. “O amadurecimento dessas relações poderá significar o reconhecimento da importância da ciência na sociedade e um maior apoio social, político e financeiro”, afirma. A expansão da mídia on-line também abriu novos caminhos de divulgação para os próprios pesquisadores escreverem sobre ciência. Já se tornou comum cientistas falarem a respeito de seus trabalhos mais recentes por meio de perfis pessoais em redes sociais, blogs ou colunas de jornais e revistas. Ou, ainda, em portais de acesso aberto, como o ResearchGate e o Academia.edu. O físico Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP), é um dos que seguem essa estratégia há algum tempo. Atualmente ele mantém uma página com seus trabalhos no ResearchGate. Com 507 artigos disponibilizados para download, ele acumula mais de 18 mil citações — apenas nessa base de dados — e 26 mil leituras contabilizadas. Artaxo considera quase como um dever a divulgação mais ampla possível de seus trabalhos científicos, sobretudo pelo fato de serem financiados com recursos públicos. O físico tem uma longa experiência em falar com jornalistas, sempre disposto a dar entrevistas ou a comentar assuntos relacionados a sua área. Além dos mais de 500 trabalhos científicos publicados, o gosto por problemas de importância social o tornou um dos pesquisadores mais requisitados pelos jornalistas para analisar questões ambientais ligadas à poluição atmosférica ou às mudanças climáticas. Para ele, apesar de trabalharem com base em regras e ritmo distintos, cientistas e jornalistas precisam de um diálogo mais intenso e maduro, de modo que o PESQUISA FAPESP 247 | 95


Do laboratório para a imprensa Investir no aprimoramento da relação com a imprensa e se comunicar com audiências mais amplas pode ser benéfico para a carreira dos cientistas

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Manter jornalistas informados sobre o andamento de suas

Colocar-se à disposição para dar entrevistas e comentar assuntos relacionados a sua área de

pesquisas e a publicação de artigos

investigação pode atrair a atenção

em revistas especializadas melhora

do público para campos de

a visibilidade dos papers

investigação menos conhecidos

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Explicar o trabalho científico de forma clara e direta,

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evitando o uso excessivo de termos técnicos, ajuda a

Aproximar-se das

assegurar a compreensão

assessorias de comunicação

do que foi dito

de sua própria instituição de pesquisa facilita o contato com a imprensa

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Falar sobre seus trabalhos mais recentes por meio de perfis pessoais em redes sociais, blogs ou colunas de jornais e revistas​amplia a possibilidade de se conseguir novos colaboradores

conhecimento científico chegue à população de forma mais fluida e completa. “Quanto maior o impacto de um determinado trabalho científico na sociedade, mais conhecido será o pesquisador que o fez, tanto pelo público quanto pelos seus colegas na academia”, avalia Artaxo. O astrônomo e astrofísico Augusto Damineli, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, vai na mesma linha: “Se o público tivesse uma percepção positiva do trabalho dos cientistas, teríamos mais apoio político e financeiro para a pesquisa científica no Brasil”. Segundo ele, a divulgação de suas pesquisas na imprensa e os artigos que ele próprio escreveu em diversos veículos de comunicação o ajudaram a ampliar a ressonância de seus trabalhos, inclusive incentivando alguns jovens a ingressar no curso de astronomia. Segundo Luisa Massarani, essa mudança de 96 | setembro DE 2016

percepção por parte dos cientistas no Brasil e na Europa é resultado de um esforço da própria comunidade científica para valorizar a divulgação da ciência. Um exemplo nesse sentido é a publicação, em 1985, pela Royal Society (academia britânica de ciências), em Londres, de um dos primeiros documentos pedindo aos cientistas que se comunicassem mais, e melhor, com a imprensa. “No Brasil, a atuação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) tem sido importante para disseminar assuntos de ciência e tecnologia no país, por meio da criação de um Comitê Deliberativo em Divulgação Científica e uma aba no Currículo Lattes [banco on-line de currículos de pesquisadores mantido pelo órgão] que dá visibilidade a ações de divulgação científica feita pelos próprios cientistas”, ela avalia. n Rodrigo de Oliveira Andrade


arquivo pessoal

Novas perspectivas de emprego para pós-graduados Com o propósito de auxiliar pesquisadores a pensar em novas possibilidades de carreira, a Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS) lançou o Individual Development Plan (bit.ly/1HEKgIe), uma plataforma on-line criada para ajudá-los a examinar suas próprias habilidades, identificar seus interesses, determinar seus valores e, a partir daí, explorar opções de carreira fora da universidade que melhor se adaptem ao seu perfil. A AAAS também lançou um documento com relatos de profissionais de áreas distintas sobre transições de carreiras bem-sucedidas e impulsionadas por motivações diversas (bit.ly/2bzmCSm). A criação da plataforma se dá em um momento delicado. Um estudo recente da National Science Foundation (NSF), a principal agência de fomento à pesquisa dos Estados Unidos, verificou um aumento do índice de desemprego naquele país entre indivíduos que recém-concluíram o doutorado em áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática (Stem, em inglês). Paralelamente, apenas 16% dos que terminaram o doutorado em áreas de ciência, engenharia e saúde conseguiram se estabelecer em universidades ou centros de pesquisa. Esse cenário está fazendo com que profissionais da pesquisa repensem suas carreiras e considerem mudar de área, arriscando-se em setores que não têm a ver diretamente com ciência e tecnologia. De acordo com o estudo da NSF, ao procurar emprego, os candidatos devem levar em conta que a experiência adquirida durante o mestrado e o doutorado gerou habilidades que os tornam qualificados para uma série de cargos também fora das atividades de pesquisa. n R.O.A.

perfil

Defensora dos cítricos Bióloga abre empresa de fertilizantes contra pragas do campo com base em 16 anos de pesquisas sobre a Xylella fastidiosa A bióloga Simone Picchi decidiu a que iria se dedicar em fins de 1997, ao visitar um dos laboratórios do Centro de Biologia Agrícola da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), em Piracicaba. Então no último ano do curso de biologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Bauru, ela ficou fascinada pelas técnicas de cultura de tecidos e de biologia molecular desenvolvidas por lá. Antes de partir, pediu estágio à engenheira-agrônoma Helaine Carrer, à época responsável pelo laboratório, que pouco depois integrou a Rede de Organização para o Sequenciamento e Análise de Nucleotídeos (Onsa, em inglês), criada pela FAPESP para sequenciar o genoma da bactéria Xylella fastidiosa, causadora da clorose variegada dos citros (CVC), o “amarelinho”, praga que ataca os laranjais. Simone conseguiu o estágio, e a partir daí se envolveu cada vez mais com os estudos sobre a Xylella. De 1999 a 2006 fez mestrado e doutorado em agronomia genética e melhoramento de plantas na Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp, em Jaboticabal. Em 2009, ela foi para os Estados Unidos, onde trabalhou com bacteriófagos, um tipo de vírus que ataca bactérias, durante um estágio de pós-doutorado na Escola de Medicina Veterinária da Universidade Cornell. A pesquisa foi feita no âmbito de uma parceria entre a universidade e a empresa Geneweave Biosciences.

“Foi então que comecei a ter uma visão mais empresarial sobre minha própria pesquisa”, ela conta. Em 2010, de volta ao Brasil, Simone começou um novo estágio de pós-doutorado no Centro de Citricultura Sylvio Moreira do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), na área de biofilme bacteriano, sob supervisão da bióloga Alessandra Alves de Souza, que estudava uma molécula chamada N-acetilcisteína (NAC) como uma possível alternativa sustentável de controle do amarelinho. A NAC é um composto usado para reduzir a secreção nasal e desobstruir as vias respiratórias, sendo inofensivo para o meio ambiente (ver Pesquisa FAPESP nº 214). “Após infectar a planta, a Xylella forma um biofilme que une a comunidade de microrganismos invasores”, explica. “Pensamos que romper esse biofilme no início de sua formação com a NAC seria uma forma de combater a doença.” Os experimentos renderam bons resultados e Simone resolveu ampliar o uso da NAC também no combate à bactéria Xanthomonas citri subsp. citri, causadora do cancro cítrico. Além de seguir desenvolvendo suas pesquisas na área de genética e microrganismos no IAC, Simone abriu a CiaCamp, empresa voltada à pesquisa e ao desenvolvimento de fertilizante à base de NAC para ser usado na citricultura como uma alternativa sustentável no manejo de doenças fitopatogênicas. Recentemente a empresa conseguiu financiamento da FAPESP por meio do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe). “O objetivo é levar o conhecimento gerado na pesquisa para o produtor”, define a pesquisadora. n R.O.A.

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Condições para participação   O proponente deve ser pesquisador vinculado a empresas com até 250 empregados e unidade de P&D no Estado de São Paulo n

n  O proponente deve demonstrar conhecimento e As normas competência técnica no tema do projeto para submissão n  A empresa não precisa estar formalmente de propostas constituída na submissão da proposta estão n disponíveis em   A empresa deve oferecer condições adequadas fapesp.br/pipe para o desenvolvimento do projeto de pesquisa

A FAPESP reservou até R$ 15 milhões às propostas consideradas meritórias nesta chamada

Data-limite para apresentação de propostas 31 de outubro de 2016

TIRE SUAS DÚVIDAS Participe do “Diálogo sobre apoio à pesquisa para inovação na Pequena Empresa”, reunião organizada pela FAPESP, CIESP, ANPEI e SIMPI para esclarecimentos sobre a Chamada de Propostas. 30 DE SETEMBRO DE 2016 das 9h às 12h na sede da FAPESP INSCRIÇÕES fapesp.br/eventos/ dialogo42016

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*Atualizado pelo IPCA. Verifique as demais condições das linhas de financiamento no site desenvolvesp.com.br

Ouvidoria: 0800 770 6272

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