Pesquisa FAPESP dezembro de 2016
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Equipe multidisciplinar busca desaparecidos políticos entre ossadas de Perus dezembro de 2016 | n. 250
Ranking feito por estudantes mostra universidades com ambiente empreendedor Novos indicadores medem alcance da ciência nas mídias sociais
AIDS reforçando a Prevenção
Experimento oferece vale-compras para dependentes ficarem longe do crack Entrevistas
Neil Turok, do Instituto Perimeter: “Precisamos de pessoas incomuns, que vejam a física de maneira diferente” Gabriela González, do Ligo, conta os bastidores da detecção das ondas gravitacionais
O aumento no número de casos impõe novas estratégias para reduzir a transmissão do HIV e a discriminação contra os grupos
n.250
mais vulneráveis à infecção
exemplar de assinante venda proibida
n.250
> memória Dr. Benignus, o primeiro romance de ficção científica no Brasil
fotolab
A beleza do conhecimento em imagens
Sua pesquisa rende fotos bonitas? Mande para imagempesquisa@fapesp.br Seu trabalho poderá ser publicado na revista.
Rebuscado paladar Um tubarão consegue detectar uma profusão de sabores no oceano e assim encontrar possíveis refeições. Isso é possível porque esses predadores contam com grande quantidade de papilas gustativas (azul-escuro) e dentículos (verde) que revestem a cavidade oral, como é o caso do tubarão-mako (Isurus oxyrhinchus), registrada em um microscópio eletrônico de varredura. O projeto coordenado pela veterinária Rose Eli Rici, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (USP), concentra-se em descrever essas estruturas em diferentes espécies de tubarão e buscar relações com a dieta e a ecologia de cada uma.
Imagem enviada por Bianca Rangel, estudante de mestrado no Instituto de Biociências da USP
PESQUISA FAPESP 250 | 3
dezembro 250 TECNOLOGIA 66 Engenharia biomédica Projetos de novas cadeiras de rodas prometem tornar mais fácil a vida de quem depende desses veículos
18 Capa 18 Reduzir a transmissão do vírus da Aids e a discriminação são os desafios para deter a epidemia que continua se espalhando Entrevista 24 Neil Turok Diretor de instituto canadense quer atrair físicos inovadores de todo o mundo
POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA 30 Ranking Índice feito por estudantes aponta 42 instituições do país com ambiente favorável à inovação 34 Difusão Disputa entre PLOS One e Scientific Reports aponta mudanças no mercado das publicações científicas
52 Imunologia Detalhados os mecanismos que disparam a inflamação associada à malária cerebral
74 Medicina Capacete com gás carbônico resfria a cabeça de bebês com falta de oxigenação no cérebro
54 Geologia Riqueza mineral da Amazônia pode ter origem em vulcões que existiram há bilhões de anos
HUMANIDADES 76 Antropologia forense Projeto multidisciplinar tenta identificar desaparecidos da ditadura a partir de restos mortais de Perus
56 Geofísica Parte considerável do carbono do planeta estaria escondida nas profundezas da Terra 58 Entrevista A física Gabriela González, porta-voz da colaboração científica Ligo, conta como foi o processo de detecção das ondas gravitacionais
58
82 Teoria política Aos 110 anos do nascimento de Hannah Arendt, os fundamentos lançados pela pensadora continuam férteis 85 Literatura Segundo estudo, prestígio dos escritores russos na primeira era Vargas oscilou ao sabor da política seçÕes 3 Fotolab 5 Cartas 6 On-line 7 Carta da editora 8 Boas práticas 11 Dados 12 Estratégias 14 Tecnociência 88 Memória 92 Resenha 93 Obituário 94 Carreiras
38 Cientometria Indicadores alternativos avaliam o alcance da ciência entre público leigo
CIÊNCIA 42 Saúde mental Oferta de vale-compras ajuda dependentes de crack a evitar o consumo da droga 50 Cardiologia Aumento de açúcar no sangue pode auxiliar recuperação após infarto foto da capa William King / Getty Images
70 Pesquisa empresarial Iacit constrói radar capaz de localizar embarcações no mar após o limite do campo de visão
24
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Lagoa Santa
Na reportagem “Os povos de Lagoa Santa” (edição 247), André Strauss argumentou que não existiu em Lagoa Santa um “povo de Luzia” propriamente dito. Tendo em vista que na Lapa do Santo existem supostamente três padrões de enterramento distintos, o pesquisador propõe que a região foi ocupada por várias levas de populações. Não poderíamos discordar mais. Se há algo que o registro arqueológico em Lagoa Santa demonstra é que entre 12,5 mil anos e 4 mil anos houve uma grande continuidade cultural. Essa continuidade se expressa por meio de vários elementos: a formação dos sítios é extremamente similar, com a deposição de grande quantidade de cinzas; a indústria lítica e óssea permanece a mesma, assim como o uso dos recursos da paisagem. Sem falar na absoluta continuidade biológica da população. O fato do padrão de enterramento ter mudado ao longo do tempo não necessariamente implica a interveniência de culturas distintas. Modos de enterrar os mortos estão entre os aspectos mais variáveis dentro de uma cultura. Portanto, se algo é claro no registro de Lagoa Santa é que houve, de fato, um “povo de Luzia”.
so, entendo que os editores-chefes das revistas bilíngues deveriam aumentar a exigência no uso da redação científica pelos profissionais que prestam serviços aos escritórios editoriais. E os reitores deveriam incluir em seus campi um treinamento continuado em redação científica, seja em cursos ou escritórios de apoio. Paulo Boschcov, São Paulo, SP
Caça ilegal
Sobre a reportagem “Os efeitos danosos da caça ilegal” (edição 249), a imagem da pele de onça na página 47 nos dá a dimensão da destruição. Não só em quantidade, mas a qualidade do que foi dizimado só amplia esse quadro.
João Parma
50 anos da Unicamp
Walter Neves – Instituto de Biociências/USP
Sinto orgulho dessa universidade (a respeito do artigo “Unicamp, 50 anos servindo o Brasil”, de Carlos Henrique de Brito Cruz, na edição especial Unicamp 50 Anos)! Parte do que sou devo a tudo que vivi, vi e aprendi nessa instituição modelo.
Astolfo Araujo – Museu de Arqueologia e Etnologia/USP
Marcela Aldrovani
São Paulo, SP
Redação científica
Parabéns pela oportuna reportagem “A ciência em palavras” (seção Carreiras, edição 249). Entretanto, o texto não deixa claro que redação correta de textos contendo termos científicos não é o mesmo que redação científica. Já atendi a centenas de pesquisadores revisando ou traduzindo seus manuscritos. Em nossa rotina de serviços, manuscritos com redação científica pobre (mesmo tendo redação correta e conteúdo científico) chegam a receber uma ou mais sugestões por linha de texto para que a qualidade da redação científica no manuscrito final venha a ser comparável àquela dos artigos citados nas referências. Os autores reconhecem a pertinência das nossas sugestões, incluindo a maior parte (70-95%) delas em seus manuscritos. Portanto, redação científica é muito mais que correção ortográfica e gramatical. Diante dis-
Integralismo
Muito importante para a pesquisa, quase não há material disponível (sobre a nota “Acervo sobre integralismo doado à Unicamp”, edição 248). Siglia Zambrotti
Correção
O salmão não é o peixe mais cultivado do mundo nem a tilápia, o segundo, como publicado na reportagem “A vez da tilápia” (edição 249). Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), três espécies de carpa estão nos primeiros lugares, vindo a seguir, em quarto, a tilápia. O salmão está em sétimo lugar.
Sua opinião é bem-vinda. As mensagens poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.
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on-line
No site de Pesquisa Fapesp estão disponíveis todos os textos da revista em
A mais vista do mês no Facebook
Exclusivo no site x Uma equipe de paleontólogos brasileiros descreveu em um estudo publicado na revista
tecnologia
Current Biology uma associação rara de fósseis:
Combate à terra seca
um novo gênero e espécie de um dinossauro
1.389 curtidas
e também um novo gênero e espécie de um
132 comentários
pequeno réptil em forma de lagarto, cujo grupo
208 compartilhamentos
muito primitivo e antigo, o Buriolestes schultzi, lagerpetídeo, o Lxalerpeton polesinensis, um é considerado precursor dos dinossauros. Os ancestrais diretos dos dinossauros podem ter se originado a partir de formas de lagerpetídeos. Os vestígios de ambas as espécies foram encontrados em rochas do período Triássico Superior, com idade entre 238 e 227 milhões de
Vídeos do mês
anos, em um sítio paleontológico em São João do Polêsine, no centro do Rio Grande do Sul.
youtube.com/user/PesquisaFAPESP
bit.ly/2gHvv2J
Rádio Assista ao vídeo:
Exposição resgata esculturas e pinturas feitas por pacientes do hospital psiquiátrico Juquery
Biólogo Tiago Falótico fala sobre como os macacos-pregos já usavam ferramentas para obter alimentos há 700 anos bit.ly/2fIYFNl
Assista ao vídeo:
Astrônoma da Nasa apresenta resultados de missão espacial a Titã, maior lua de Saturno 6 | dezembro DE 2016
Reconstituição artística mostra grupo de três dinossauros da espécie Buriolestes schultzi
x Na Floresta Amazônica, sapos às vezes cantam em lugares inusitados: dentro de formigueiros. São os sapinhos-listrados da espécie Lithodytes lineatus, cujas fêmeas depositam os ovos em ninhos de espuma dentro das galerias construídas pelas saúvas do gênero Atta. O segredo da convivência está em uma substância que reveste o corpo dos anfíbios, segundo mostrou o trabalho do biólogo André de Lima Barros, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Em um experimento em que depositou 10 sapinhos-listrados na entrada de formigueiros, ele mostrou que as saúvas não os atacavam, conforme descreve em artigo publicado em outubro no site da revista Behavioral Ecology & Sociobiology. bit.ly/2fhcak1
foto léo ramos ilustração Maurílio oliveira
português, inglês e espanhol, além de conteúdo exclusivo
w w w . r e v i s ta p e s q u i s a . f a p e s p. b r
carta da editora
Tratando de temas difíceis Alexandra Ozorio de Almeida |
N
a reunião de pauta realizada pela equipe da Pesquisa FAPESP para definir as reportagens que compõem esta edição, uma das discussões foi sobre o equilíbrio dos principais temas abordados: capa sobre Aids, tratamentos para dependentes de crack, acompanhamento do trabalho de identificação das ossadas desenterradas no cemitério de Perus em 1990, na capital paulista. A última edição do ano ficaria pesada demais? Pelos temas, a resposta é afirmativa. Cogitou-se adiar alguma das pautas, mas todas tinham justificativa para permanecer: 1º de dezembro é o dia internacional de luta contra a Aids, momento adequado para uma discussão sobre os rumos do combate à epidemia. As reportagens sobre crack e Perus tratam de programas em parte dependentes de recursos municipais; a mudança de gestão que ocorrerá em janeiro torna oportuno apresentar os resultados alcançados até aqui. A existência do chamado “gancho”, no jargão jornalístico, não é o único motivo de termos mantido as três no menu desta edição: apesar de tratarem de assuntos que podem ser considerados difíceis, as reportagens contribuem para a compreensão desses temas pelo público leitor e apresentam perspectivas e resultados animadores. A reportagem de capa (página 18) mostra que a epidemia de Aids continua se alastrando. Enormes avanços permitiram o aumento da longevidade e a melhoria da qualidade de vida dos pacientes HIV positivos nas últimas décadas. As pesquisas continuam, com destaque para a prevenção da transmissão entre grupos mais vulneráveis, inclusive por meio do uso de medicamentos. Estudos mostram que prevenir a infecção poderia reduzir em 30% os gastos com o atendimento de pessoas com Aids. Ao mesmo tempo, aten-
diretora de redação
ção especial tem sido dedicada a combater a discriminação desses grupos. A reportagem sobre os esforços municipal e estadual de São Paulo para o atendimento a dependentes de crack mostra que, apesar das diferenças de posicionamento entre as esferas de governo, a abordagem é semelhante. Oferecer espaços onde os dependentes possam receber cuidados básicos, como um banho ou corte de cabelo, permitindo que se sintam confortáveis para, com o tempo, procurar ali atendimento para tratar a dependência, é um traço comum dos programas. O foco da reportagem (página 42) é uma estratégia inovadora, mal compreendida e (talvez por isso) polêmica chamada manejo de contingências, que consiste em recompensar financeiramente, por meio de vale-compras, a abstinência. A experiência de aplicar pela primeira vez esse princípio ao tratamento da dependência do crack foi bem-sucedida: 21% dos que foram submetidos à estratégia ficaram abstinentes durante todo o período do estudo, de três meses. Em comparação, nenhum dos integrantes do grupo de controle permaneceu em abstinência durante todo esse tempo. Os números podem parecer pouco significativos, mas, nesse campo, outra posição compartilhada é que não há um único caminho: o tratamento que vale para um pode não ter efeito para outro. As ossadas desenterradas de uma vala no cemitério de Perus são um difícil capítulo – em aberto – da história recente do país. Mais de mil caixas, hoje sob a custódia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), são analisadas por uma equipe multidisciplinar de arqueólogos, médicos legistas, bioantropólogos e odontolegistas que cuidadosamente limpa, organiza e classifica as peças para tentar identificá-
-las, casando as informações reveladas pelos ossos com os dados obtidos com os familiares dos desaparecidos. Resultado de uma parceria da Unifesp com a prefeitura de São Paulo e o governo federal, o Grupo de Trabalho Perus deve concluir até o final de 2017 essa história, que já dura décadas, contribuindo também para o avanço das ciências forenses no país (página 76). Pouco depois da reunião de pauta, recebemos uma ligação de um observador atento das discussões sobre política científica: “Vocês precisam entrevistar uma pessoa”. Tratava-se do físico sul-africano Neil Turok, diretor do Instituto Perimeter, no Canadá. Turok esteve no Brasil para o simpósio comemorativo dos cinco anos do Instituto Sul-americano para Pesquisa Fundamental (SAIFR), sediado em São Paulo, que conta com apoio da FAPESP. Segundo Turok, para serem criativos, é preciso que os jovens estudantes sejam colocados diretamente em contato com a fronteira do conhecimento – quando necessário, podem aprender pontualmente o que precisam para avançar. O Perimeter não procura pesquisadores que tenham trabalhos com alto índice de impacto, mas sim os que são pouco convencionais, de origens diferentes, e com diversidade de gênero. Em entrevista, Turok contou também sua experiência ao criar um instituto interdisciplinar na África voltado para a análise matemática de dados científicos em qualquer área (página 24). Essa instigante entrevista ganhou seu lugar na edição, junto com a da também física Gabriela González, argentina que é porta-voz do Ligo, experimento responsável pela detecção de ondas gravitacionais. Ela contou como foi o processo do acontecimento científico mais fascinante de 2016 (página 58). PESQUISA FAPESP 250 | 7
Boas práticas
brispe
Mais vozes no debate Quarta edição de encontro sobre integridade científica mostra que a discussão se amplia no Brasil Cerca de 250 pessoas, entre estudantes, pesquisadores e gestores, participaram em Goiânia nos dias 17 e 18 de novembro do 4º Brispe (Brazilian Meeting on Research Integrity, Science and Publication Ethics), principal encontro sobre integridade científica do país. O evento, realizado no campus da Universidade Federal de Goiás (UFG), discutiu o papel de professores, editoras científicas e agências de fomento na promoção de uma cultura de integridade em universidades e instituições de pesquisa. Segundo Sonia Vasconcelos, professora do Programa de Educação, Gestão e Difusão em Biociências do Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e presidente do comitê organizador do evento, o tema reflete um dos 8 | dezembro DE 2016
grandes desafios para consolidar no país noções sobre conduta responsável na pesquisa: “É preciso fortalecer a confiança e a transparência na relação entre orientadores e alunos, autores e revisores, e pesquisadores e financiadores. As percepções sobre a conduta responsável na pesquisa nessas relações nem sempre são compartilhadas”. O 1º e o 2º Brispe, realizados respectivamente em 2010 e 2012, tiveram como foco a promoção de boas práticas relacionadas à conduta de pesquisadores e à produção científica. Já a 3ª edição, sediada na FAPESP em 2014, abordou o papel das instituições em promover uma cultura de integridade (ver Pesquisa FAPESP nº 223). “Nos primeiros eventos, muitos participantes tomavam contato pela primeira vez com o tema. Agora, o conhecimento é maior e as
Ariadne Furnival, professora da Universidade Federal de São Carlos, faz uma apresentação sobre licenças livres em periódicos científicos
fotos Divulgação IV BRISPE
discussões se sofisticam”, avalia Edson Watanabe, diretor do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa em Engenharia (Coppe) da UFRJ, que também presidiu a organização do evento. “Problemas relacionados à ética e à integridade estão sendo considerados quase ‘crimes’ e suas consequências são graves. Muita gente quer entender o problema para saber como se portar corretamente.” Segundo os organizadores, em boa parte dos países há sinais de que a mobilização para estimular a integridade científica se dissemina por diversas áreas do conhecimento. “No Brasil, vimos isso refletido nas plenárias e nas sessões”, informa Sonia. “As questões não se concentravam em pesquisadores das áreas de saúde e biomédica, em que boa parte dessa discussão se iniciou, mas também vinham de vozes das ciências biológicas, humanas, sociais aplicadas e das engenharias.” A candidatura da UFG para sediar o 4º Brispe foi vista como uma evidência de que a preocupação se espalha por outros lugares do país. Sheila Teles, coordenadora de pesquisa da universidade e presidente do comitê local do Brispe, conta que a instituição decidiu criar um grupo para formular e executar políticas de integridade científica ao conhecer a experiência pioneira da UFRJ e de sua Câmara Técnica de Ética em Pesquisa. “Tomamos contato com essa experiência no Brispe de 2014, em São Paulo”, diz Sheila. “Para a nossa universidade, sediar o 4º Brispe foi uma chance de discutir problemas reais, que muitas vezes ficam escondidos na experiência pessoal de cada um.” Um tema inovador foi o elo entre integridade científica e criatividade na produção do conhecimento. Os trabalhos que conquistaram o primeiro e o segundo lugar no concurso de pôsteres do Brispe abordam esse assunto. A bióloga Christiane Coelho Santos, professora de biologia do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, venceu o concurso com a apresentação de uma pesquisa sobre percepções de plágio entre alunos e professores do ensino médio, realizada
Participantes do Brispe no campus da Universidade Federal de Goiás (acima) puderam apresentar trabalhos numa sessão de pôsteres (à dir.)
para a tese de doutorado que defenderá em 2017 na UFRJ. Uma amostra de 419 alunos e 42 professores de ensino médio do Colégio Pedro II participou da pesquisa sobre plágio e, posteriormente, de grupos de discussão sobre o assunto. “Todos concordaram que roubar uma ideia ou copiar um texto sem dar crédito é plágio. Mas surgiram discordâncias, por exemplo, em relação a uma prática comum em trabalhos escolares: copiar literalmente trechos inteiros de textos encontrados na internet, dando apenas um crédito tímido à origem da informação. Para muitos professores, é plágio. Já para os alunos, não é”, diz Christiane. Esse achado, segundo a pesquisadora, coloca uma questão incômoda para as escolas: a forma de ensinar e de avaliar o aprendizado favorece a criatividade dos estudantes ou estimula a imitação e a reprodução? “A maioria dos professores concorda
que o ensino no Brasil não estimula a criatividade. Se essa é a realidade no ensino médio, como querer que o estudante se torne criativo quando chega à graduação?” A pesquisa de Christiane será ampliada para outros dois colégios do Rio. O outro pôster premiado, de autoria de Rosemeire Amaral, aluna de mestrado da UFRJ e professora de ciências da rede pública municipal de Búzios, envolve a produção de um Livreto sobre o plágio na escola. Esse livreto foi idealizado a partir de oficinas realizadas com 38 professores de ciências, biologia, matemática, física, química e língua portuguesa, organizadas pela mestranda. Quando ficar pronto, o material será distribuído em escolas de municípios vizinhos. Rosemeire impressionou-se com as reflexões feitas pelos docentes nas oficinas. “Eles perceberam que o plágio está mais arraigado na escola do que imaginavam e muitos se dispuseram a mudar suas práticas na abordagem do problema.” PESQUISA FAPESP 250 | 9
Em um processo judicial que contrapõe alegações de abuso da liberdade de expressão ao uso de mecanismos de autocorreção da ciência, uma corte dos Estados Unidos está avaliando até que ponto acusações de má conduta contra pesquisadores podem ser feitas de forma anônima. De um lado da briga está Fazlul Sarkar, pesquisador da área de oncologia que trabalhou até recentemente na Wayne State University, em Detroit, Michigan. Do lado oposto, está o site PubPeer, dedicado a um tipo de avaliação por pares realizada após a publicação de um artigo científico: nele, os usuários podem publicar comentários sobre papers e apontar eventuais falhas, sem precisar revelar a identidade. Sarkar processou o PubPeer em 2014. Ele exige que o site revele a identidade de usuários anônimos que, segundo diz, insinuaram que ele usou imagens fraudulentas em artigos científicos. O oncologista também acusa os detratores de reiterar as acusações em e-mails anônimos endereçados à Universidade do Mississipi, o que abortou sua transferência para a instituição. A União Americana pelas Liberdades Civis saiu em defesa do PubPeer. Alex Abdo, advogado da entidade, disse à revista The Economist que o anonimato nos comentários é protegido pela constituição norte-americana, a não ser que as alegações sejam falsas. Uma análise feita pelo especialista John Krueger indicou que duas imagens publicadas no artigo comentado no PubPeer realmente têm problemas. Sarkar afirma no paper que elas representam dois experimentos diferentes quando, na verdade, são a mesma imagem. Em março de 2015, um juiz de Michigan concordou que o PubPeer não precisa revelar a identidade de usuários que avaliaram o artigo de Sarkar, com exceção de um deles, que admitiu no comentário ter 10 | dezembro DE 2016
enviado um e-mail à Wayne State University alertando para o problema. Sabe-se que a universidade recebeu denúncias sobre Sarkar remetidas por uma certa Clare Francis, um pseudônimo que frequenta a caixa de entrada do e-mail de editores de várias revistas científicas. O personagem é responsável por apontar inúmeras suspeitas de fraude, falsificação ou plágio em artigos científicos (ver Pesquisa FAPESP nº 216). O PubPeer recorreu da decisão do juiz de revelar a identidade do usuário. Em janeiro, recebeu o apoio de instituições de peso, como o Google e o Twitter, e de pesquisadores respeitados, como Harold Varmus, vencedor do Nobel de Medicina de 1989, e Bruce Alberts, ex-presidente da Academia Nacional de Ciências. O caso ainda está em análise, mas em outubro a revista de divulgação científica The Scientist publicou os resultados de uma investigação feita em 2015 por um painel da Wayne State University segundo a qual Sarkar se engajou em práticas de “fabricação, falsificação e plágio”.
ilustração augusto Zambonato
Os limites da denúncia anônima
O resultado do painel já levou à retratação de 18 artigos de Sarkar. Ele afirma que erros cometidos em alguns artigos não abalam a solidez dos mais de 500 papers que publicou. Apesar dos protestos dos advogados do oncologista, a Justiça de Michigan permitiu que o PubPeer, mesmo vencido o prazo para apresentação de provas, anexasse a reportagem do The Scientist a sua defesa.
Incongruências estatísticas Métodos estatísticos podem ser úteis para auxiliar investigações de má conduta científica, mostrou um estudo de Mark Bolland, professor da Escola de Medicina da Universidade de Auckland, na Nova Zelândia, publicado na revista Neurology. Ele analisou 33 estudos clínicos de terapias para doenças ósseas realizados por um grupo liderado pelo médico Yoshihiro Sato, do Hospital Mitate, em Tagawa, no Japão. Encontrou várias incongruências. As características dos grupos de pessoas escolhidas para participar dos ensaios eram muito parecidas, algo difícil de acontecer ao acaso.
Os estudos tiveram resultados impressionantes, com uma redução de 78% no risco de os pacientes sofrerem fraturas de quadril em relação ao grupo de controle. Trabalhos de outros grupos apontaram resultados mais tímidos, com redução de risco de fratura entre 0% e 40%. A escolha dos estudos de Sato como alvo não foi ocasional. Em junho, três artigos de autoria do japonês foram retratados pela própria revista Neurology. Sato admitiu ter fabricado dados nos papers, que avaliaram tratamentos para reduzir fraturas em pacientes que tiveram derrames ou sofrem de doença de Parkinson.
Dados
Áreas do conhecimento e publicações científicas do Brasil
autores sediados no país Na base do sistema Web of Science foram registradas, em 2015, 43.859 publicações(1) (articles/reviews) com pelo menos um autor sediado no país, por área do conhecimento da FAPESP (1995-2015). Isso corresponde a 2,71% do total registrado naquela base
14.141 Ciências biológicas 12.872 Ciências da saúde 12.048 Ciências exatas e da Terra
14.000 12.000
Porcentagem de publicações com pelo menos um autor sediado no Brasil sobre o total de publicações do mundo – 1995, 0,78%; 2005, 1,74%; 2015, 2,71%
10.000 8.000 6.617 Ciências agrárias 6.087 Engenharias
6.000 4.000
1.445 810 148 106
2.000
O número médio de citações acompanha a frequência de colaboração internacional entre
15
13
11
colaborações internacionais
20
20
09
20
07
20
05
20
20
03
01
20
99
20
97
19
19
19
95
0
Ciências humanas Ciências sociais aplicadas Linguística, letras, artes Interdisciplinar
os autores, como indica o gráfico abaixo(3)
impacto de citações
% Colaboração internacional
As publicações com autores sediados no Brasil apresentam número
1,8
médio de citações menor do que a média mundial – abaixo de 1,0(2) –
n Estados Unidos n África do Sul
1
n Chile
1
n China
0,8
Média mundial n Coreia do Sul n Argentina n México n Índia Brasil n Rússia
0,8 0,6 0,4 0,2 19861990
19911995
19962000
20012005
20062010
EUA Ciências exatas e da Terra
China Ciências da saúde
África do Sul Chile Argentina
Engenharias
Índia
Brasil (todas as áreas)
0,6 0,4
Alemanha França
Espanha
1,2
n Espanha
1,2
19811985
1,4
n Reino Unido
1,4
Reino Unido
Ciências agrárias
Ciências biológicas
Rússia
Impacto relativo de citações
1,6
Suíça
1,6
ao longo de todo o período considerado
0,2 n Brasil
20112015
0
10
20
30
40
50
60
70
80
Observações (1) A soma dos números de publicações por área pode ser maior do que o total, uma vez que há publicações que são classificadas em mais de uma área do conhecimento. (2) O impacto de citações relativo das publicações é medido pela razão entre o número médio de citações por publicação do país e o recebido por todas as publicações catalogadas, por área (utiliza-se o Category Normalized Citation Impact, calculado no sistema Incites 2/TR). O valor 1,0 indica que o país estaria na média mundial de citações por artigo, acima de 1,0, um número maior e, abaixo de 1,0, um número menor de citações por artigo do que a média mundial, para os artigos da área. (3) Inclui os países com pelo menos 50 mil publicações, mais Argentina e Chile. Para o Brasil, inclui as áreas de conhecimento da FAPESP com pelo menos 5 mil publicações no período 2011-2015. Fonte Os documentos considerados são aqueles classificados como articles ou reviews das bases do Incites2/Web of Science, ThomsonReuters, pesquisadas em 24/11/2016.
fapesp – fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo
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Presidente José Goldemberg | Vice-Presidente Eduardo Moacyr Krieger | Conselho Superior Carmino Antonio de Souza, Eduardo Moacyr Krieger, Fernando Ferreira Costa, João Fernando Gomes de Oliveira, João Grandino Rodas, José Goldemberg, Marilza Vieira Cunha Rudge, José de Souza Martins, Julio Cezar Durigan, Pedro Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski, Suely Vilela Sampaio | Conselho Técnico-Administrativo Carlos Américo
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Estratégias Vencedores do Prêmio FCW O matemático Jacob
carreira nos anos 1960
Palis e o compositor Edu
e compôs sucessos
Lobo são os ganhadores
para festivais de música
do 15º Prêmio FCW,
popular como “Arrastão”,
respectivamente nas
cantado por Elis Regina
categorias Ciência e
em 1965, e “Ponteio”,
Cultura. Cada um deles
parceria com Capinam
receberá um prêmio
que o próprio Lobo e a
de R$ 300 mil e um
cantora Marília Medalha
troféu comemorativo.
defenderam no Festival
Concedido anualmente
da Música Popular
pela Fundação Conrado
Brasileira da TV Record,
Wessel (FCW), o
em 1967 – a canção
prêmio já reconheceu a
venceu o festival. Em
contribuição de dezenas
1983, criou com Chico
de cientistas e artistas,
Buarque a trilha do
entre os quais o
espetáculo musical
Na virada do ano, deve
sincronizar informações.
parasitologista Luiz
O grande circo místico
começar a funcionar em
“Do ponto de vista
Hildebrando Pereira da
para o Balé Guaíra. Em
caráter experimental o
técnico, estamos prontos
Silva, o físico José
2002, o disco Cambaio,
novo sistema global de
e a performance do
Goldemberg, o escritor
outra parceria com
navegação criado pela
sistema é muito boa”,
Ariano Suassuna e a atriz
Chico Buarque, ganhou
União Europeia. Com o
disse à BBC Paul Verhoef,
Fernanda Montenegro.
o Grammy Latino. O júri
sucesso do lançamento
diretor de programas de
Mineiro de Uberaba,
que escolheu Palis e
de quatro satélites a
navegação da Agência
Jacob Palis tem 76 anos
Lobo teve a participação
bordo de um foguete
Espacial Europeia.
e foi diretor do Instituto
de representantes da
Ariane no dia 17 de
A promessa é garantir
de Matemática Pura e
FCW e de instituições
novembro, o sistema
o posicionamento em
Aplicada (Impa), da
parceiras, entre elas
Galileo alcançou a marca
tempo real numa escala
Academia Brasileira de
a FAPESP, a ABC, a
de 18 satélites em órbita.
de precisão menor do que
Ciências (ABC) e da
Academia Brasileira
Em 2020, quando estiver
1 metro – a acurácia do
Academia de Ciências
de Letras (ABL) e a
em fase operacional,
sistema norte-americano
do Mundo em
Sociedade Brasileira
deverá contar com
GPS é próxima de
Desenvolvimento
para o Progresso da
uma constelação de
8 metros. O Galileo foi
(TWAS). Formado em
Ciência (SBPC). O prêmio
30 satélites – são
idealizado no início dos
engenharia, doutorou-se
será entregue numa
necessários 24, mas
anos 2000 e desde então
em matemática pela
cerimônia em São Paulo,
haverá outros seis extras
conviveu com críticas
Universidade da Califórnia,
no segundo semestre
para dar mais segurança.
relacionadas ao seu alto
nos Estados Unidos, e se
de 2017.
Construídos por
custo, estimado em
tornou um dos principais
um consórcio
€ 5 bilhões, e à real
pesquisadores do país
anglo-germânico, os
necessidade de
em sistemas dinâmicos,
18 satélites atuais são
a Europa ter um sistema
área da matemática que
suficientes para que o
de posicionamento
sistema comece a ser
próprio. Ao contrário do
testado. Nas próximas
GPS e do Glonass russo,
semanas, smartphones
que têm administração
de geração recente e
militar, o Galileo é
outros equipamentos
um programa civil.
devem começar a captar
Os satélites estão
os sistemas planetários.
os sinais do sistema,
instalados em planos
Carioca, Edu Lobo, de
utilizando-os para
orbitais a 23 mil metros
atualizar sua posição e
da superfície.
Representação da constelação de satélites Galileo, que entra em fase experimental nas próximas semanas
Vem aí o GPS europeu
estuda trajetórias de
2
equações a longo prazo
Jacob Palis (à esq.) e Edu Lobo foram agraciados nas categorias Ciência e Cultura, respectivamente
e é utilizada para modelar fenômenos que evoluem no tempo, como o clima, as reações químicas e
73 anos, começou a 12 | dezembro DE 2016
3
1
Ferramentas para inovação
Alguns dos emojis sugeridos por pesquisadores (à esq.) e crianças caçando pokémons
O Chemical Abstracts Service (CAS), divisão da Sociedade Americana de Química responsável pela indexação de informações científicas, promoveu no dia 22 de novembro em São Paulo um fórum para discutir estratégias de fomento
Emojis e pokémons pela ciência
à inovação no setor
fotos 1 agência brasil 2 Roberto Filho / Wikimedia 3 P. Carril / ESA 4 Bengt Oberger / Wikicommons emojis Anna Smylie 5 divulgação
empresarial brasileiro. O evento apresentou um
Aplicativos de celular e ferramentas visuais
das universidades de Cambridge, de Oxford
conjunto de ferramentas
da internet podem ser úteis para a popula-
e da University College London, no Reino
desenvolvidas pelo
rização da ciência? A resposta é afirmativa,
Unido, que estudaram o game para celular
CAS para auxiliar
segundo duas iniciativas divulgadas em
Pokémon Go e publicaram suas conclusões
escritórios de patentes,
novembro. Uma delas teve como pano de
em um artigo na revista Conservation Letters.
empresas, órgãos de
fundo uma conferência na Califórnia dedi-
Eles discutiram se o sucesso do jogo em
pesquisa e universidades
cada ao desenvolvimento de emojis – cari-
tirar milhões de pessoas de casa para inte-
no desenvolvimento
nhas e símbolos usados em mensagens e
ragir com animais virtuais poderia ajudar a
de novos produtos e
páginas da internet. Um grupo de pesqui-
aumentar o interesse pelo mundo natural.
tecnologias e na proteção
sadores foi à conferência propor a adoção
Segundo o trabalho, o jogo ampliou o tem-
de sua propriedade
de mais ideogramas ligados ao universo da
po em que os usuários ficam ao ar livre e
intelectual. Uma dessas
ciência, como a proveta, a hélice de DNA,
promove contato com animais de verdade
ferramentas é a
planetas e micróbios. O pleito será analisa-
– a hashtag do Twitter #Pokeblitz ajuda os
PatentPak. A plataforma
do por um consórcio internacional que apro-
usuários a identificar bichos reais fotogra-
permite acesso
va novos emojis. “Quero um emoji de cien-
fados durante a brincadeira. Os autores
instantâneo a arquivos
tista com cara franzida para mostrar que
sugerem aperfeiçoamentos no jogo, como
de patentes na área
meu experimento deu errado”, disse à Na-
adicionar espécies de verdade à galeria dos
de química de 31 dos
ture Jessica Morrison, química e editora da
Pokémons e distribuir animais virtuais em
maiores escritórios de
revista Chemical & Engineering News. A se-
áreas remotas para estimular passeios fora
registros intelectuais
gunda iniciativa envolveu pesquisadores
das regiões urbanizadas.
do mundo, facilitando
4
a localização de substâncias, reações,
Unesp tem novo reitor
registros, entre outras informações. Outra ferramenta é a SciFinder,
O governador Geraldo
e biologia molecular da
Universidade Estadual
que oferece um serviço
Alckmin nomeou o
Faculdade de Ciências
de Campinas (Unicamp),
de busca de moléculas
farmacêutico-bioquímico
Farmacêuticas da Unesp
Sergio Nobre, de 59
descritas em artigos
Sandro Valentini para
em Araraquara, unidade
anos, é o atual diretor do
publicados em
o cargo de reitor da
da qual foi diretor.
Instituto de Geociências
periódicos científicos
Universidade Estadual
Fez doutorado em
e Ciências Exatas (IGCE)
indexados pelo CAS.
Paulista (Unesp), com
bioquímica e
do campus de Rio Claro.
“Esperamos ampliar
mandato de quatro anos,
pós-doutorado na
Doutor em história da
nossa presença no
em substituição ao
Universidade Harvard.
matemática pela
Brasil como fonte de
atual reitor, Julio Cezar
Autor de 75 artigos em
Universidade de Leipzig,
informação no âmbito
Durigan. No mesmo ato,
periódicos indexados, foi
com pós-doutorado
da pesquisa científica
o matemático Sergio
beneficiário do programa
na Ludwig-Maximilians-
Nobre foi nomeado
Jovens Pesquisadores
Universität Munique,
vice-reitor. Formado em
em Centros Emergentes,
é professor titular em
farmácia-bioquímica
da FAPESP, e coordenador
história da matemática.
pela Unesp, Valentini,
de dois projetos
A posse de Valentini e
de 52 anos, é professor
temáticos. Matemático
Nobre está marcada
titular em microbiologia
formado pela
para o dia 16 de janeiro.
envolvendo substâncias químicas, e estimulando a pesquisa e a inovação no setor empresarial”, disse Manuel Guzman, presidente do CAS.
5
Sandro Valentini é professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas, em Araraquara
PESQUISA FAPESP 250 | 13
Tecnociência O médico e o café no Brasil do século XIX
Um mapa nacional das grandes tempestades de granizo Quem mora na região Sul do país
central e também a faixa litorânea,
tradas pela Defesa Civil nacional
deve ficar de olho no tempo nos
do Rio Grande do Sul, de Santa
de 1999 a 2012. Eles identificaram
finais de tarde de setembro e ou-
Catarina e do Paraná. Essa con-
1.630 tempestades e analisaram
A análise de teses
tubro e se preparar para os sérios
clusão integra um mapeamento
a distribuição de 732 sobre as quais
defendidas na Faculdade
transtornos causados pelas tem-
nacional das tempestades de gra-
havia informações detalhadas,
de Medicina do Rio de
pestades. É nesse período do dia,
nizo mais destrutivas (Atmospheric
como horário do dia, local em que
Janeiro entre 1850 e
em especial no início da primave-
Research, 21 de outubro). No tra-
ocorreram e a dimensão dos es-
1880 indica que os
ra, que ocorrem as mais destrui-
balho, pesquisadores do Instituto
tragos. O registro in loco é impor-
médicos da segunda
doras chuvas de granizo no Brasil,
Federal do Paraná (IFPR) e da
tante para corroborar os mapea-
metade do século XIX
aquelas que costumam causar
Universidade de São Paulo (USP),
mentos feitos por satélite e corrigir
receitavam café por seu
danos a plantações, criações e
em parceria com colegas da agên-
os modelos de previsão climática.
suposto valor nutritivo e
construções e deixam pessoas
cia espacial norte-americana
O mapa confirma que o Sul é uma
para o tratamento de
desabrigadas. Elas atingem prin-
(Nasa), fizeram o levantamento
das regiões do planeta com mais
doenças, como cólera
cipalmente as regiões oeste e
das tempestades de granizo regis-
tempestades intensas de granizo.
e febres, inclusive as intermitentes causadas pela malária
O interior do Rio Grande do Sul é um dos lugares mais afetados pelo fenômeno
(Circumscribere, volume 17, junho). Embora a alegada eficácia terapêutica da bebida já fosse um tema bastante controverso na Europa, os doutores da antiga capital nacional advogavam a favor dos benefícios para a saúde decorrentes do consumo do café. No entanto, o discurso dos médicos não se apoiava nas pesquisas químicas 1
de então. “Eles se
Emaranhamento recorde Um experimento
auxílio de uma fonte de
maneira tão íntima
coordenado pelo físico
laser capaz de gerar lotes
que as modificações
Jian-Wei Pan, da
de fótons de forma 100
sofridas por uma
Universidade de Ciência
vezes mais rápida do que
também se refletem
e Tecnologia da China,
o normal e o emprego de
nas propriedades da
em Hefei, elevou de oito
um complexo esquema
outra. Importante para
para 10 o recorde do
com cristais e divisores
o desenvolvimento da
número de fótons
da luz polarizada.
computação quântica, o
emaranhados (Physical
O emaranhamento,
efeito, que fora previsto
Review Letters, 15 de
também denominado
por Albert Einstein
novembro). A equipe
entrelaçamento, é um
nos anos 1930, ocorre
chinesa criou cinco pares
estado quântico em que
independentemente
de partículas de luz
duas partículas estão
da distância física que
entrelaçadas com o
conectadas de uma
separa as partículas.
14 | dezembro DE 2016
2
Complexo esquema com cristais e divisores de luz permitiu entrelaçar 10 fótons
3
Cupim como aliado da restauração
Médicos do Rio indicavam café pelo valor nutritivo e para tratar febres
A terra de cupinzeiro, de
Investigaciones de
à erosão e à água
preferência umedecida
Arquitectura de Tierra
realizados na fazenda
com a saliva de seus
Cruda, da Argentina,
Catadupa, em São José
ocupantes, mostrou-se
testou várias combinações
do Barreiro, reúne vários
um ingrediente valioso de
a partir de matérias-
ingredientes: terra
uma nova formulação
-primas encontradas com
de cupinzeiro e areia fina
de argamassa usada para
facilidade no chamado
em dobro (peneiradas
restaurar as características
Vale Histórico Paulista.
e misturadas com fibras
originais de paredes
Essa é a primeira região
de uma gramínea
de construções históricas
ocupada pelas plantações
comum da região),
feitas com terra crua.
de café no estado de
além de extrato aquoso
A equipe coordenada
São Paulo, no início do
de cactos do gênero
pelo químico Andrea
século XIX, cujas
Opuntia. O resultado do
Cavicchioli, professor
construções mais antigas
estudo foi apresentado
da Universidade de
se encontram em estado
em um congresso
São Paulo (USP), com
precário de conservação.
sobre arquitetura e
pesquisadores do
A formulação que
construções feitas de
Instituto Socioambiental
apresentou o melhor
terra realizado em
Fazenda Catadupa
desempenho nos testes
outubro em Assunção,
e do Centro Regional de
de adesão e resistência
no Paraguai.
baseavam em relações centenárias entre dieta,
fotos 1 paulo lANZETTA 2 X.-L. Wang et al., Phys. Rev. Lett. (2016) 3 Reprodução de Les Français peints par eux-mêmes (1840-42) 4 eduardo cesar
saúde, fatores climáticos e temperamento”, diz a historiadora da ciência Cristiana Couto, principal autora do estudo, que
Formulação com terra de cupinzeiro pode ser usada no restauro de construções históricas
fez parte de seu estágio de pós-doutorado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). O café era mais recomendável para pessoas que exibiam os temperamentos linfático (ou fleugmático)
4
e sanguíneo. Em contrapartida, deveria ser evitado por indivíduos
Cresce desmatamento na Amazônia
que eram muito nervosos. Mais até do que os
Entre agosto de 2015 e
7 mil km2 desflorestados.
Rondônia (1.394) e
humores da pessoa, os
julho deste ano, 7.989
As estimativas foram
Amazonas (1.099). Com
médicos levavam em
quilômetros quadrados
divulgadas no mês
exceção do Amapá
conta a geografia local
(km2) de floresta foram
passado pelo Projeto
e de Mato Grosso, houve
para defender a bebida.
totalmente removidos
de Monitoramento do
aumento da área de
Segundo as teses
por corte raso nos nove
Desmatamento na
vegetação cortada
analisadas, a população
estados da Amazônia
Amazônia Legal por
nas demais unidades
de áreas tropicais, como
Legal. Houve um
Satélite (Prodes), tocado
federativas da Amazônia.
o Rio, deveria ingerir café
crescimento de 29%
pelo Instituto Nacional
O mapeamento usa
porque ele alimentaria
do desmatamento
de Pesquisas Espaciais
imagens do Landsat e
sem provocar excitação
em relação ao período
(Inpe). No período, o
de outros satélites para
em demasia, facilitaria
anteriormente analisado.
Pará foi o estado com
quantificar os episódios
a digestão, ativaria
Foi a primeira vez,
maior área desflorestada
de desmatamento
secreções renais e
desde 2010, que a região
(3.025 km2), seguido por
em áreas maiores do que
moderaria a transpiração.
ultrapassou a casa dos
Mato Grosso (1.508),
6,25 hectares. PESQUISA FAPESP 250 | 15
1
A lua e a fome dos morcegos
Propriedades acústicas da guitarra com fibras vegetais lembram as do mogno
Malte da cerveja vira guitarra
Em noites de luar nos
Säugetierkunde, 11 de
trópicos, os morcegos
novembro). Apenas uma
insetívoros reduziriam
delas, a Myotis riparius,
sua procura por comida,
reduziu sua procura
segundo uma hipótese
por insetos em função
bastante difundida.
do luar. Duas, a
A diminuição na busca
Cormura brevirostris e a
por alimento seria
Saccopteryx bilineata,
uma resposta à menor
não alteraram seu ritmo
presença de insetos em
de busca por insetos.
noites claras e também
As outras duas,
ao risco aumentado
Pteronotus parnellii e
de os morcegos se
Saccopteryx leptura,
tornarem alvos fáceis
até intensificaram sua
de seus predadores em
atividade alimentar nas
um ambiente mais
noites menos escuras.
iluminado. Um estudo,
Com o emprego de
no entanto, colocou à
gravadores de som,
prova essa associação
os pesquisadores
de comportamento
registraram as atividades
desses mamíferos
dos morcegos em
voadores com a
10 pontos distintos da
intensidade do brilho da
reserva entre janeiro
Lua. Por um período
e maio de 2013, durante
de 53 dias, biólogos do
a estação chuvosa.
Instituto Nacional de
No total, foram
Pesquisas da Amazônia
monitoradas 636 horas
(Inpa) acompanharam os
de atividade dos
Em vez de mogno,
trabalho final do
hábitos alimentares de
morcegos, sempre das
alder, ash ou basswood,
curso de desenho
cinco diferentes espécies
18 às 6 horas. Em cada
madeiras frequentemente
industrial que Novaes
de morcego dentro da
ponto escolhido, os
usadas na fabricação do
concluiu em 2014 na
Reserva Florestal
movimentos dos animais
corpo de guitarras, o
Escola de Belas Artes
Adolpho Ducke, no norte
foram acompanhados
músico Rodrigo Novaes
da Universidade Federal
de Manaus (Mammalian
por entre quatro e
desenvolveu uma versão
do Rio de Janeiro (UFRJ).
Biology – Zeitschrift für
seis noites seguidas.
do instrumento feita
O material, que junta
com um compósito
uma base de resina epóxi
polimérico reforçado
e os restos de malte,
por uma fibra vegetal
foi apresentado durante
inusitada: os resíduos
o 12º Congresso
do malte de cereais
Brasileiro de Pesquisa
que foram empregados
e Desenvolvimento
na fabricação da
em Design, realizado
cerveja. Em testes, as
em outubro. “A ideia é
propriedades acústicas
trocar a base polimérica
do material se
de epóxi por uma
assemelharam às do caro
resina à base de óleo
e nobre mogno e foram
de mamona para tornar
ligeiramente superiores
o material compósito
às do marupá, madeira
completamente
empregada no Brasil
sustentável”, diz Novaes,
para a confecção de
que entrou com o
certas guitarras.
pedido de patente do
O desenvolvimento do
compósito no Instituto
instrumento com pegada
Nacional de Propriedade
ecológica fez parte do
Industrial (Inpi).
16 | dezembro DE 2016
Intensidade do luar não modificou a busca por insetos em quatro de cinco espécies de morcego estudadas
2
Gelo a 105 graus Celsius A água confinada
“Se confinarmos um fluido
em ambientes ínfimos
em uma nanocavidade,
pode apresentar
poderemos distorcer o
comportamentos
seu comportamento em
surpreendentes, como
relação às fases da
alterações na
matéria”, diz o engenheiro
temperatura em que
químico Michael Strano,
muda de estado físico.
principal autor do
Estudo de pesquisadores
trabalho. “Mas o efeito
do Instituto de Tecnologia
com a água foi maior do
de Massachusetts (MIT),
que havíamos antecipado.”
nos Estados Unidos,
A própria entrada da água
mostrou que a água,
no interior dos nanotubos
em vez de evaporar, se
de carbono foi uma
solidifica entre 105 e 151
surpresa, visto que essas
graus Celsius desde que
diminutas estruturas são
seja mantida no interior
consideradas hidrofóbicas.
de nanotubos de carbono
A descoberta talvez
com diâmetro entre
possa ser usada no futuro
1,05 e 1,06 nanômetro
para a construção de
(Nature Nanotechnology,
fios de gelo condutores
28 de novembro).
de eletricidade.
3
Surgida há 270 milhões de anos, a árvore tem quase 41 mil genes e é considerada um fóssil vivo
O genoma da Ginkgo biloba Foi um desafio concluir a primeira versão
Vacinas conservadas à temperatura ambiente
do genoma da Ginkgo biloba, uma das mais antigas espécies de árvore ainda existentes na natureza. Formado por 10
fotos 1 Liz Guimarães 2 Ruestz / Wikimedia Commons 3 Wikimedia Commons 4 Eduardo Cesar
Uma equipe de
bilhões de pares de bases, seu genoma
4
pesquisadores da Europa
é três vezes mais extenso do que o hu-
e dos Estados Unidos
mano e 80 vezes maior que o da Arabi-
identificou três
dopsis thaliana, uma das plantas mais
compostos químicos
estudadas pelos biólogos. Na tarefa de
baratos e fáceis de obter
sequenciar os quase 41 mil genes da
que poderiam ser
Ginkgo – a espécie humana tem cerca de
adicionados a vacinas
23 mil –, pesquisadores chineses conta-
para aumentar a
ram com uma grande capacidade com-
estabilidade de seus
putacional para recompor o genoma da planta, que apresenta um nível bastante
componentes e, consequentemente, seu
Adititivos baratos, como o açúcar, podem aumentar a durabilidade de imunizantes
tempo de conservação, mesmo se estocadas à temperatura ambiente relativamente alta.
elevado de repetições (Gigascience, 21 de novembro). Mas valeu o esforço. Essa árvore de quase 30 metros de altura originária da China é considerada uma das espécies vivas de planta mais antigas do mundo. Há fósseis de 270 milhões de
Esses aditivos podem ser úteis para aumentar a
Nos testes, os cientistas
compostos mantiveram
anos atrás e, nesse tempo todo, sua for-
durabilidade das vacinas,
acrescentaram
a estabilidade do vírus
ma e sua estrutura mudaram muito pou-
em especial das que
nanopartículas de ouro, o
por dias ou semanas
co, razão de a espécie ser considerada
contêm vírus atenuados,
polímero polietilenoglicol
a 25 e a 37 graus Celsius.
um fóssil vivo. Conhecer em detalhes seu
inativos ou geneticamente
ou açúcar comum a uma
Os aditivos também
genoma, dizem os pesquisadores, pode
alterados. Boa parte dos
formulação contendo o
preservaram por até
ajudar a compreender melhor a evolução
imunizantes disponíveis
adenovírus tipo 5,
10 dias a estabilidade
das plantas terrestres e a entender a ele
usa vírus e precisa ser
associado a infecções
de uma formulação
vada resistência da Ginkgo a pragas e
mantida a temperaturas
respiratórias e usado para
contendo adenovírus
condições ambientais adversas. Com
baixas, o que dificulta a
apresentar distintos
candidata a vacina contra
longevidade de milhares de anos, a ár-
distribuição para lugares
antígenos em algumas
a febre chikungunya
vore suportou períodos glaciais que eli-
distantes ou com
vacinas. Em diferentes
(Nature Communications,
minaram outras espécies.
infraestrutura precária.
concentrações, os
30 de novembro). PESQUISA FAPESP 250 | 17
capa
Aids
1
Novas batalhas pela prevenção Reduzir a transmissão do vírus e a discriminação contra os grupos mais vulneráveis à infecção são desafios para deter a epidemia que continua se espalhando Carlos Fioravanti *
Jovem da comunidade de cerca de 150 pessoas com HIV mantida pela organização não governamental Fraternidade Assistencial Lucas Evangelista em Recanto das Emas, no Distrito Federal
2
O carioca Leandro Fernandes Jacob, HIV positivo,já deu palestras sobre suas experiências de vida para jogadores de vários clubes de futebol
fotos 1 sergio lima / folhapress 2 rafael andrade / folhapress
D
ois centros de pesquisa e atendimento médico em São Paulo, um no Rio de Janeiro e outro em Porto Alegre devem começar em fevereiro de 2017 a selecionar interessados em participar de um estudo internacional de avaliação de um medicamento preventivo contra a Aids. Os candidatos devem pertencer a um dos dois grupos com alto risco de infecção – homens que fazem sexo com homens (homo e bissexuais) ou travestis e mulheres transexuais (que se identificam como sendo do sexo feminino, embora ao nascer tenham sido designadas como do sexo masculino) – e não podem estar infectados com o HIV. O que se deseja é avaliar a eficácia de um medicamento antiviral injetável conhecido pelo nome de seu princípio ativo, cabotegravir. Se funcionar de modo satisfatório, poderá substituir, por meio de injeções bimensais, o remédio já utilizado em alguns países – a combinação dos antirretrovirais tenofovir e emtricitabina – na forma de comprimidos diários para evitar a transmissão do vírus e conter a epidemia. A Aids silenciou, mas continua se espalhando. Hoje raramente aparece no noticiário e não remete mais a imagens de celebridades com as faces encovadas e o olhar de agonia como há 30 anos, quando a epidemia emergiu. Porém, como em outros países, no Brasil o número de casos novos voltou a crescer – passou de 43 mil em 2010 para 44 mil em 2015 –, principalmente entre homosse* O jornalista viajou a Chicago a convite do Congresso HIV Research for Prevention (HIVR4P).
xuais, aos quais a epidemia esteve mais associada inicialmente, antes de se disseminar entre os heterossexuais, um grupo que tem apresentado uma queda no número de casos (ver gráfico na página 21). Um estudo realizado na capital paulista por uma equipe da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCM-SCSP) indicou que um em cada quatro homens que fazem sexo com homens era portador do HIV ou da bactéria da sífilis, outra doença sexualmente transmissível. “Encontramos jovens homossexuais em condições precárias de vida, com histórias pessoais marcadas por discriminação e violência sexual e policial”, diz a médica epidemiologista Maria Amélia Veras, professora da FCM-SCSP e coordenadora do estudo. Não é só no Brasil. “Os homens que fazem sexo com homens, principalmente os mais jovens, subestimam o risco de contraírem o HIV”, comentou o médico Hyman Scott, professor da Universidade da Califórnia em São Francisco, Estados Unidos, em uma das apresentações do Congresso HIV Research for Prevention (HIVR4P), realizado no final de outubro em Chicago, Estados Unidos. Diante dessa situação, pesquisadores, profissionais e gestores da área de saúde, seguindo a tendência internacional, agora enfatizam as estratégias para evitar a transmissão do HIV para as pessoas que apresentam alto risco de contraí-lo por viverem entre outras que já adquiriram a infecção. Em dezembro de 2013, uma decisão do Ministério da Saúde (MS) estabeleceu que qualquer pessoa que fosse diagnosticada com HIV deveria começar o tratamento imediatamente. Em conPESQUISA FAPESP 250 | 19
Travestis distribuem preservativos e folhetos no vão do Museu de Arte de São Paulo aos participantes do Dia do Orgulho Gay em dezembro de 2015, em uma ação promovida por órgãos públicos e ONGs
impasses
Uma das abordagens preventivas mais debatidas atualmente consiste no uso de medicamentos antirretrovirais por quem não tem o vírus, mas poderia se contaminar ao ter contato sexual com HIV positivos. O medicamento que inaugurou a chamada profilaxia pré-exposição (PrEP), a combinação de tenofovir e emtricitabina em um único comprimido, foi aprovado em 2012 para uso nos Estados Unidos, onde 80 mil pessoas já o adotaram como forma adicional de evitar a infecção pelo HIV. A PrEP pode ter uma eficácia próxima a 100% e poucos efeitos colaterais (enjoo e flatulência), mas, alertam os especialistas, deve complementar – e não substituir – as outras formas de prevenção do contágio, como os preservativos, valorizados desde o início da epidemia, na década de 1980. “A PrEP não é uma bala mágica”, disse Carl Dieffenbach, diretor da Divisão de Aids do Ins20 | dezembro DE 2016
“Temos de tratar as travestis por seus nomes sociais para acabar com a discriminação”, sugere Madruga tituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas (Niaid) dos Estados Unidos, em uma conversa com jornalistas antes do início do congresso em Chicago. Segundo ele, a adesão é baixa e o uso em geral é descontinuado por duas razões. A primeira é que as pessoas que não têm HIV, por se considerarem sadias, podem se esquecer facilmente de que a medicação deve ser tomada diariamente (outro modo é o chamado sob demanda, com dois comprimidos até duas horas antes da relação sexual, outro 24 horas depois e outro 48 horas depois). A segunda razão é que as pessoas que tomam ou tomariam a PrEP temem a discriminação social, caso sejam vistas como HIV positivas, já que essa combinação de fármacos é usada também como tratamento por quem já adquiriu o vírus. O acesso a medicamentos preventivos contra o HIV no Brasil esbarra em várias dificuldades. Em 2014, a empresa fabricante da combinação tenofovir e emtricitabina – conhecida com o nome comercial de Truvada e já utilizada no tratamento de pessoas com HIV/Aids – encaminhou à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) uma solicitação de uso também como medicamento preventivo para pessoas sem HIV. Até agora não
DARIO OLIVEIRA / CóDIGO 19 / AE
sequência, 73 mil pessoas começaram a receber medicamentos antivirais, o chamado coquetel, por meio do sistema público de saúde em 2014, outras 74 mil em 2015 e 58 mil até outubro de 2016, formando o contingente de 489 mil pessoas em tratamento até 31 de outubro deste ano. “Das pessoas em tratamento, 90% estão com a carga viral indetectável, o que reduz a transmissão de HIV”, diz a médica epidemiologista Adele Benzaken, diretora do Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Doenças Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais do MS. Segundo ela, o ministério compra e distribui gratuitamente 700 milhões de preservativos masculinos por ano, cujo uso também reduz o risco de transmissão do HIV.
Movimentos inversos Em 2005, a proporção de novos casos de Aids adquiridos por transmissão entre homossexuais voltou a crescer, enquanto entre os bissexuais, heterossexuais e outras categorias* está diminuindo * Usuários de drogas, hemofílicos, transfusão de sangue, acidentes com material biológico e transmissão vertical
Porcentagens de cada grupo em relação ao total de casos registrados em todo o país, desconsiderados os de origem desconhecida
70,1%
67,0%
heterossexuais
14.623 casos em 2013
33,3% 26,6%
21,6%
20,0%
12,3%
20,0%
10,6%
6,8%
homossexuais 6,0%
bissexuais
5,2%
outros
4.732
1.311
1.143
1983 1985 1987 1989 1991 1993 1995 1997 1999 2001 2003 2005 2007 2009 2011 2013
Fonte Ministério da Saúde
saiu a decisão. Segundo a Anvisa, consultada por Pesquisa FAPESP, o pedido “está em curso em caráter prioritário”. Outras duas empresas farmacêuticas também aguardam o resultado da análise de solicitação de registro da formulação com os dois fármacos como medicamento profilático. Na conferência internacional de Aids realizada em julho em Durban, na África do Sul, uma equipe com integrantes do MS, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Universidade Harvard, Estados Unidos, apresentou um trabalho mostrando que o tratamento preventivo poderia reduzir em 30% os gastos com o atendimento de pessoas com Aids. “Ainda há resistência, mas hoje a evidência científica dos benefícios da PrEP é tão sólida que algumas cidades, como São Francisco, nos Estados Unidos, e mesmo países, como a França, adotaram essa estratégia de prevenção contra o HIV, que foi também recomendada pela Organização Mundial da Saúde em 2015”, diz o infectologista Esper Georges Kallas, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP). Kallas participou do primeiro estudo internacional, chamado iPrEx, que mostrou a efetividade dessa estratégia. Os resultados, publicados em 2010 na revista The New England Journal of Medicine, indicaram que o uso diário de tenofovir e emtricitabina por 2.499 homens gays, travestis e mulheres transgênero de seis países reduziu em 44% a transmissão do vírus, quando complementado por outras medidas de prevenção, como aconselhamento sobre práticas sexuais de risco, testes frequentes de HIV, uso de preservativos e tratamento de outras doenças sexualmente transmissíveis (DSTs).
Há também ganhos psicológicos. “As pessoas que participam dos estudos, recebem PrEP e tomam outros cuidados com a prevenção relatam que sentem uma redução no medo e na ansiedade nas relações sexuais”, comenta a psicóloga Natália Barros Cerqueira, pesquisadora da FM-USP, com base em seu trabalho de aconselhamento a pessoas em risco de contágio pelo HIV. Natália coordenou a equipe da USP no estudo PrEP Brasil, que registrou uma adesão de 61% ao tratamento preventivo entre os 1.187 participantes, principalmente entre os de maior escolaridade, atendidos em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Amazonas. De acordo com um artigo publicado em agosto de 2016 na Aids and Behavior, o PrEP Brasil indicou a necessidade de mais informação entre jovens e pessoas com baixa escolaridade. Natália é uma das coordenadoras da equipe da USP no estudo internacional da HIV Prevention Trial Network chamado HPTN 083. Em fevereiro deve começar o recrutamento de um total previsto de 584 participantes no Brasil em quatro centros de pesquisa: a própria USP, o Centro de Referência e Treinamento em Aids (CRT-Aids) da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo, a Fiocruz e o Hospital Conceição de Porto Alegre. Desenvolvido em 43 centros de pesquisa de oito países, o estudo prevê a participação de 4.500 homens que fazem sexo com homens, sendo metade de jovens com até 30 anos de idade, e mulheres transexuais que ainda não tenham colocado implante de silicone, que poderia prejudicar a ação do medicamento injetável. Além do HPTN 083, a equipe da Fiocruz planeja outros dois estudos clínicos. O primeiro é a avaliação da segurança de uso e eficácia do anPESQUISA FAPESP 250 | 21
ticorpo VRC01 para prevenir a transmissão do HIV por meio de uma injeção intravenosa uma vez por mês. O segundo deve examinar as eventuais interações entre os medicamentos preventivos e os hormônios habitualmente aplicados em travestis e mulheres trans. “Se houver interação e se essas pessoas tiverem de escolher, talvez escolham o hormônio”, receia a infectologista Beatriz Grinsztejn, pesquisadora da Fiocruz e coordenadora desses estudos. Um dos trabalhos de seu grupo mostrou uma prevalência de 31% de infecção por HIV na população de travestis e mulheres transexuais da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. “É muito maior que em outros grupos atingidos pela epidemia”, disse ela. O preparo das equipes de saúde ainda é limitado para lidar com as pessoas mais vulneráveis à infecção pelo HIV. “Temos de tratar as travestis por seus nomes sociais para acabar com a discriminação, garantir o acesso aos serviços de saúde e evitar o abandono do tratamento”, sugere o infectologista José Valdez Ramalho Madruga, diretor da unidade de pesquisa do CRT-Aids de São Paulo. “O sucesso do tratamento individual é um sucesso coletivo, porque reduz a transmissão do vírus para outras pessoas.” As equipes do CRT-Aids atendem cerca de 6 mil pessoas no ambulatório de HIV e outras 3 mil em um específico para travestis e transexuais e registram 40 novos casos de infecção por HIV a cada mês. discriminação
As pessoas com maior risco de transmitir ou de ser infectadas pelo HIV – homens que fazem sexo com homens, travestis, mulheres transexuais, prostitutas, usuários de drogas e moradores de rua – sofrem “uma intensa violação de seus direitos e dificuldade de acesso à escola, à formação profissional e aos serviços de saúde”, alerta Maria Amélia Veras, da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Seu grupo terminou em julho as análises de entrevistas com 673 travestis e transexuais de sete municípios paulistas, realizadas de novembro de 2014 a outubro de 2015. Nesse estudo, 26% se autodeclararam infectadas pelo HIV. Uma em cada cinco das entrevistadas relatou ter sido levada a delegacias e submetida à prisão por pelo menos uma noite, mesmo sem flagrante ou ordem judicial. Maria Amélia, com sua equipe, iniciou dois novos estudos que devem detalhar alguns aspectos sociais da Aids. Um deles consiste no acompanhamento de 500 pessoas de grupos mais vulneráveis, durante cinco anos, para examinar as formas de acesso ao serviço de saúde. O outro é uma avaliação da eficácia de uma estratégia de incentivo ao tratamento médico de mulheres transexuais por meio de acompanhantes do próprio grupo, chamados navegadores. “Cada 22 | dezembro DE 2016
O governo da Tanzânia quer cancelar programas internacionais que apoiam testes de HIV com homossexuais
participante HIV positivo será acompanhada por um navegador, que a motivará a fazer exames e tratamento, como um tutor ou irmão, para reforçar a vinculação com serviços de saúde e adesão ao tratamento”, diz ela. No mundo, a situação da Aids é trágica. “Hoje, 37 milhões de pessoas não sabem que vivem com o vírus e 18 milhões não têm acesso a tratamento”, disse Mark Feinberg, presidente da International Aids Vaccine Initiative (Iavi). O número de casos voltou a crescer depois de 2011, após ter caído continuamente desde o início da epidemia, e cerca de 2 milhões de novos casos de pessoas com Aids são registrados por ano. A África responde por metade desse total. Nos países da África Subsaariana, as adolescentes de 15 a 24 anos representam 40% dos novos casos, o equivalente a 450 mil casos por ano ou quase 10 mil por semana, segundo Kawango Agot, diretora da Impact Research and Development Organization (Irdo), do Quênia. “As estudantes fazem sexo com homens mais velhos, às vezes os próprios professores, em troca de comida, roupa ou aparelhos eletrônicos”, relatou Sinead Delany-Moretlwe, diretora do Wits Reproductive Health & HIV Institute, da África do Sul. Além da PrEP, o método preventivo em fase mais avançada de testes é o anel vaginal – um círculo flexível de silicone com o antiviral dapivirina –, que reduziu em 60% a transmissão do vírus para as mulheres. Renovado uma vez por
Adolescentes participam de atividades extracurriculares sobre prevenção de Aids, incluindo testes para detecção do vírus, em um centro para jovens em Moundou, no Chade 1
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Jabu Shezi, HIV positivo e educador comunitário, faz uma demonstração sobre o uso de preservativos entre mulheres esperando por serviços médicos em um distrito da província de KwaZulu-Natal, na África do Sul
fotos 1 UNICEF / P. Esteve 2 Gideon Mendel / getty images
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mês, o anel poderia ser importante especialmente para mulheres jovens na África, já bastante atingidas pela epidemia. Sharon Hillier, da Universidade de Pittsburgh, Estados Unidos, disse que a adesão ao anel vaginal tem sido alta e as mulheres que participaram dos testes de avaliação ressaltaram que ganharam autonomia, porque os homens não usavam preservativos e elas sabiam que estavam em risco de se contaminar com o HIV. “Ninguém vê, a família não sabe, o parceiro não percebe”, disse ela. Vários especialistas relataram que os testes com as possíveis vacinas contra o HIV, vistas com grande esperança desde a década de 1990, continuam apresentando uma eficácia abaixo do aceitável e ao menos as atualmente em avaliação dificilmente serão usadas em larga escala. Mas outras estratégias estão emergindo. Anthony Fauci, diretor-geral do Niaid, apresentou os resultados de um estudo realizado com 15 macacos e publicado em outubro na revista Science que, se avançar como esperado, poderá representar uma nova forma de tratamento da Aids. É o uso de anticorpos já aprovados para tratamento de doenças inflamatórias intestinais que bloquearam a ação da integrina α4β7, uma proteína que controla a ação de células CD4, importantes no combate ao vírus HIV. “É uma prova de conceito em modelos animais, e estamos planejando agora os testes em seres humanos”, comentou ele a Pesquisa FAPESP. “Temos de avaliar a segurança e a eficácia da droga com muito cuidado, porque foi aprovada contra outra doença, não contra a Aids.” Tanto quanto a resistência do vírus às medicações, a discriminação contra homossexuais e as pessoas com HIV dificulta o controle da epidemia
no mundo. Um artigo de junho de 2016 na Lancet assinado pelo epidemiologista Chris Beyrer, da Universidade Johns Hopkins, alertou para o crescente estigma das pessoas com HIV e para a criminalização do comportamento homossexual em países como Índia, Rússia, Nigéria, Gâmbia e Uganda. Em 23 de novembro, o jornal norte-americano Washington Post noticiou que o governo da Tanzânia pretende cancelar os programas internacionais, financiados principalmente pelos Estados Unidos, que apoiam testes, preservativos e cuidados médicos a homossexuais. Na Tanzânia, onde se estima que 30% dos homens gays sejam HIV positivos, quem tiver relações sexuais com parceiros do mesmo sexo pode ser condenado a até 30 anos de prisão. n
Projetos 1. Implementação da profilaxia pré-exposição (PrEP) ao HIV: Um projeto demonstrativo (no 2012/51743-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Programa Pesquisa para o SUS – Políticas Públicas; Pesquisador responsável Esper Georges Kallas – FM-USP; Investimento R$ 444.842,91. 2. Vulnerabilidades, demandas de saúde e acesso a serviços da população de travestis e transexuais do Estado de São Paulo (no 2013/22366-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Maria Amélia de Sousa Mascena Veras – FCMSC; Investimento R$ 297.076,46.
Artigos científicos GRANT, R. M. et al. Preexposure chemoprophylaxis for HIV prevention in men who have sex with men. The New England Journal of Medicine. v. 363, n. 27, p. 2587-99. 2010. SIDDAPPA, N. B. et al. Sustained virologic control in SIV+ macaques after antiretroviral and α4β7 antibody therapy. Science. v. 354, n. 6309, p. 197-202. 2016. HOAGLAND, B. et al. Awareness and willingness to use pre-exposure prophylaxis (PrEP) among men who have sex with men and transgender women in Brazil. Aids Behavior. 2016 (no prelo). BEYRER, C. et al. The global response to HIV in men who have sex with men. The Lancet. v. 388, n. 10040, p. 198-206. 2016.
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entrevista Neil Geoffrey Turok
Em busca de jovens brilhantes Diretor de instituto canadense quer atrair físicos inovadores de todo o mundo e os motivar a fazer as descobertas fundamentais para as próximas décadas Igor Zolnerkevic |
E
retrato
Léo Ramos
m 2002, o político sul-africano Ben Turok, aos 75 anos, ligou da Cidade do Cabo para o filho Neil Turok, professor de cosmologia na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, para pedir que o ajudasse a melhorar a educação universitária na África. Então com 44 anos, Neil começou a idealizar um novo modelo de instituição acadêmica. Um ano depois nascia o African Institute for Mathematical Sciences (Aims), um instituto interdisciplinar criado em Muizenberg, próximo à Cidade do Cabo, onde estudantes de graduação de toda a África fazem cursos breves, em geral de um ano, centrados na análise matemática de dados científicos em qualquer área. A ousadia de Neil Turok fez com que ele fosse convidado, cinco anos depois, a dirigir o Perimeter Institute for Theoretical Physics, um dos mais inovadores centros de física teórica, sediado em Waterloo, na província de Ontário, no Canadá. Criado em 1999 a partir de uma doação de US$ 100 milhões de Mike Lazaridis, fundador da empresa de celulares Blackberry, e mantido por doações particulares e pelo governo canadense, o instituto recruta físicos jovens e entusiasmados de
24 | dezembro DE 2016
todo o mundo – seis estudantes de graduação da América do Sul foram selecionados entre os 100 participantes de um workshop realizado em julho em São Paulo para fazer o mestrado conjunto entre o Perimeter e o Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (IFT-Unesp). “Precisamos de pessoas incomuns, com maneiras completamente diferentes de ver as coisas”, disse Turok, especialista em modelos teóricos sobre a origem do universo. Em 1996, com seu grupo, ele apresentou uma previsão das propriedades da radiação cósmica de fundo, confirmadas pelo satélite WMAP 10 anos depois. Coautor do livro de divulgação científica Endless Universe: Beyond the Big Bang (2006, não traduzido para o português), Turok esteve em São Paulo em novembro para participar de um simpósio internacional promovido pelo Instituto Sul-americano para Pesquisa Fundamental (SAIFR), que funciona em conjunto com o IFT e o Centro Internacional de Física Teórica (ICTP) em São Paulo. Após sua apresentação, ele conversou com Pesquisa FAPESP sobre suas estratégias para atrair e motivar os melhores físicos do mundo, em busca de avanços notáveis.
idade 58 anos especialidade Cosmologia formação Graduação em física pelo Churchill College, Universidade de Cambridge, e doutorado em física no Imperial College, ambos no Reino Unido instituições Professor de física na Universidade de Princeton, Estados Unidos, de 1994 a 1997. Cátedra de física matemática da Universidade de Cambridge, de 1997 a 2008. Diretor do Instituto Perimeter desde 2008 produção científica 219 artigos, índice-h de 69
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Você já disse várias vezes, em outras entrevistas, que seu maior sonho é ajudar a revelar o próximo Einstein. Como quer fazer isso? Esse é meu objetivo de vida: quero criar um ambiente ótimo onde o próximo Einstein virá e conseguirá o que precisa para realizar a próxima revolução na física. Meu trabalho e o de todos no Perimeter é criar o ambiente em que um jovem brilhante possa um dia dizer: “Aha! Eu sei o que está faltando!”. Daqui 10 ou 20 anos, tenho certeza de que olharei para trás e pensarei: “Ajudei X a realizar essa descoberta”. E essa única descoberta vai justificar tudo. Como descobrimos a teoria da relatividade? O conceito é extremamente simples depois que você o entende, mas quase impossível antes de Einstein descobri-lo. Precisamos de pessoas incomuns, com maneiras completamente diferentes de ver as coisas. Digo a todos os funcionários do Perimeter: “Vamos tratar todo mundo, do mais sênior ao mais júnior, como se um deles pudesse ser o próximo Einstein”. As novas ideias provavelmente virão de novas comunidades, que trazem novas abordagens, frescor e entusiasmo, que são essenciais. O investimento em jovens tentando resolver os problemas mais difíceis é de retorno quase garantido. E esses jovens vão se tornar intelectuais e físicos bem-sucedidos e serão modelos para toda a sociedade. De certa maneira, as realizações de um Einstein são simbólicas e mostram o que os seres humanos podem alcançar. Ver um brasileiro fazer isso seria incrível, daria orgulho para todo mundo. Os cientistas deveriam ser tão valorizados pela sociedade quanto os atletas e os músicos. A diferença entre eles é que as descobertas da ciência afetam a sociedade para sempre. Antes de ir para o Perimeter, você criou o Instituto Africano para Ciências Matemáticas. Como foi? Meus pais, Mary Butcher e Ben Turok, faziam parte de um grupo de ativistas políticos contra o regime do apartheid [segregação racial] e corriam sério risco de morte. Foram presos, quando eu ainda era pequeno, e tivemos de deixar o país. Tive uma infância difícil como refugiado na Inglaterra. Mas eles estavam comprometidos com uma boa causa, com uma visão de longo prazo, e o que aconteceu em 1994, com as primeiras eleições ge26 | dezembro DE 2016
Coloque os estudantes em trabalhos criativos. A ciência é feita por quem tem espírito de aventura
rais na África do Sul, provou que eles estavam certos. O exemplo político de meus pais foi fundamental para a minha atitude em ciência. Em 2002, quando era professor em Cambridge, meus pais, na época parlamentares na África do Sul, me ligaram perguntando se eu poderia fazer algo para elevar o nível da educação no continente africano. Respondi que não sabia o que fazer, eu era um cosmólogo estudando o Big Bang. Eles insistiram. Tive então a ideia de criar um instituto pan-africano em que estudantes brilhantes de qualquer lugar da África pudessem frequentar, de graça, por um ano. Traríamos os melhores professores do mundo para visitar o instituto, cada um por três semanas, para dar aulas, discutir e conviver com os estudantes. Para me ajudar a pensar como fazer isso na prática, tive ajuda de meu irmão, Fred Turok, um homem de negócios, gerente de uma das maiores cadeias de academias do Reino Unido, a LA Fitness. Como seu irmão o ajudou? Ele me deu conselhos valiosos sobre como fazer um plano de negócios e arrecadar recursos. Então, em um momento
mágico, percebi, como físico teórico, que o planejamento é um exercício teórico. Você tem uma ideia e começa a planejar como fazer essa ideia funcionar, calcula quanto dinheiro precisa, tenta antecipar todos os riscos, coloca tudo no papel de maneira cada vez mais rigorosa até atingir o ponto em que é capaz de convencer qualquer investidor de que esse é o melhor investimento que pode fazer. Passei um ano planejando e testando ideias com meus colegas até entender por que os sistemas tradicionais fracassam. A África forma 1 milhão de estudantes de graduação por ano, mas a graduação oferece cursos muito tradicionais e não os prepara para o mercado de trabalho. É muito raro um departamento de universidade oferecer um curso em análise de dados, que é uma habilidade necessária em todas as ciências. Pensei então em fazer disso a base do instituto na África. Quando os estudantes chegam, a primeira coisa que ensinamos é como usar bem um computador, aprender os fundamentos de como programar e analisar dados. Depois temos cursos em resolução de problemas. Se lhe dão algum problema novo, você diz que essa não é sua área ou pede para examinar? Criamos um curso de mestrado focado nas habilidades de que os jovens cientistas precisam na prática, especialmente as relacionadas a dados. Foi um sucesso. E os professores, o que acharam? Os professores também se empolgaram em participar dessa abordagem interdisciplinar. Pensamento livre, resolução de problemas, abordagens novas. Criar novas instituições acadêmicas nos dá a oportunidade de revisitar as noções que assumimos como verdadeiras e ultrapassá-las. Em lugares na África sem linhas telefônicas fixas instaladas, começaram a usar telefones celulares. Não precisaram instalar cabos telefônicos na África, pularam essa etapa. Podemos fazer a mesma coisa intelectualmente. Não faça os estudantes aprenderem uma quantidade enorme de física clássica. Coloque-os direto na fronteira do conhecimento, para realizar trabalho criativo, agora. Se descobrirem que precisam aprender alguma coisa, eles vão parar e aprender ou encontrar quem conheça o assunto. Queremos transformar os jovens em empreendedores do conhecimento. A melhor ciência é feita hoje por gente
perimeter
Turok festeja com os estudantes no African Institute for Mathematical Sciences, no Senegal, em 2011
com espírito de aventura, não por pessoas seguindo treinamento tradicional. Vocês têm histórias de sucesso? Muitas. Vou dar um exemplo: Martial Loth Ndeffo Mbah. É de Camarões, um país africano muito forte em matemática, em parte por causa do legado colonial francês, mas também por causa da cultura local, que valoriza o trabalho intelectual. Esse rapaz veio até nós querendo fazer matemática pura e aprendeu epidemiologia. Por ter uma consciência social muito forte, ele percebeu que poderia usar matemática para modelar doenças e informar ao governo quais intervenções de saúde pública seriam mais eficazes. Ele fez doutorado em Cambridge em biologia matemática e hoje trabalha como professor sênior em Yale, nos Estados Unidos, e é conselheiro dos países da África Ocidental para a crise do vírus ebola. Quando o surto do ebola eclodiu, ele foi chamado imediatamente para a África Ocidental e começou a levantar dados clínicos sobre os efeitos das intervenções. O trabalho dele teve um enorme efeito positivo. Martial Loth é uma pessoa muito religiosa e, como a igreja dele atua em bairros pobres do Rio de Janeiro, ele vem ao Brasil todo ano como voluntário para ensinar crianças. O Perimeter é famoso por apoiar abordagens ousadas. Como fazem isso? Em junho de 2016, no Perimeter Day, os pesquisadores do instituto apresentaram seus trabalhos aos colegas em um ambiente informal, promovendo uma
discussão sincera entre amigos. O tema foi gravitação quântica, o cálice sagrado da física. Cada pesquisador, não apenas os especialistas, mas também os de outras áreas, apresentou sua perspectiva. Assim que cada um terminava de falar, a plateia respondia, indicando o que estava errado, inconsistente ou incompleto. Fiquei muito satisfeito. Em outros lugares, geralmente todos reforçam as ideias uns dos outros. Dessa maneira ninguém progride, apenas continua sustentando uma visão limitada. Sou muito crítico da maioria das linhas de pesquisa que perseguimos em física teórica, inclusive com muitas das ideias em cosmologia com as quais trabalhei. Nossas teorias não são boas o suficiente. Não estão nem perto do nível das ideias de James Maxwell [18311879], Max Planck [1858-1947], Einstein [1879-1955] ou Paul Dirac [1902-1984]. Temos de buscar teorias poderosas, que sejam comprovadas pelos dados experimentais de maneira indisputável, e isso é muito, muito difícil. A maioria dos meus colegas me pede para dar um tempo, mas não podemos. Não podemos dar espaço para baboseira e para especulações não construtivas. Em 2012, o Perimeter patrocinou uma série de animações de grande sucesso no YouTube, o Minute Physics [animações curtas e bem-humoradas sobre conceitos de física], produzida pelo ex-aluno Henry Reich. Aceitamos Henry porque era um cara interessante. Gostamos dos motivos que ele apresentou para ser aceito em nos-
so programa de mestrado: era curioso, queria aprender mais, gostava de cinema, não sabia se faria física, mas se empolgava com o assunto. No Perimeter ele desenvolveu um projeto de pesquisa com o físico Lee Smolin, mas uma hora decidiu sair e estudar cinema. Ele começou o Minute Physics em seu tempo livre e rapidamente abandonou a escola de cinema para trabalhar em tempo integral no seu canal no YouTube. Foi então que o contratamos de volta, para ficar por um ano, desenvolvendo o Minute Physics, porque é um serviço fantástico para o mundo. Pudemos fazer isso porque queríamos explorar nossa liberdade para fazer coisas que os outros não estão fazendo ou deveriam fazer, como compartilhar com o público nossa empolgação com a física, com o que estamos aprendendo sobre o Universo. Tento resumir o que o Perimeter está fazendo em um pequeno slogan: acesso à excelência. Devemos buscar a excelência, mas de maneira que a sociedade se sinta conectada. Como vocês se conectam com outros grupos sociais? Waterloo, no Canadá, é uma comunidade única, tem menos de 100 mil habitantes, mas todo mundo ama matemática e física. Todo mês, o Perimeter Institute oferece uma palestra pública sobre ciência. Já trouxemos Stephen Hawking, Roger Penrose e outros gurus. Os 600 ingressos de cada apresentação se esgotam assim que os colocamos à venda no site. Waterloo era uma cidade de pequenos fazendeiros até os anos 1950. Nessa época as companhias de seguro de Toronto, a cidade grande mais próxima, começaram a se mudar para lá, para reduzir custos. Mas as empresas de seguro precisavam de matemáticos, já que o negócio delas é todo baseado em cálculo de risco. Essas empresas e outras decidiram fundar a Universidade de Waterloo, uma instituição pública diferente, centrada na matemática e suas aplicações. Para criar o departamento de matemática, contrataram alguns membros da equipe de decifradores de códigos do matemático britânico Alan Turing [1912-1954], que decifrou o código usado pelos alemães para transmitir mensagens secretas durante a Segunda Guerra Mundial. O trabalho desses pesquisadores e seus alunos levou ao desenvolvimento da criptoPESQUISA FAPESP 250 | 27
fotos perimeter
Os estudantes discutem em grupo problemas propostos no Perimeter
grafia que permite os telefones celulares funcionarem de maneira segura. Desde o começo a universidade era a melhor em criptografia e em aplicações da matemática em codificação. Ao redor da universidade se desenvolveu o Vale do Silício canadense, com cerca de 2.500 empresas de alta tecnologia. A empresa de celulares BlackBerry começou em Waterloo, criada por um ex-aluno da universidade, Mike Lazaridis, o idealizador do Perimeter Institute. Ele doou US$ 100 milhões para fundar o Perimeter, em 2000. O governo canadense também financia o instituto, não? Desde que o instituto começou a operar, em 2001, o governo federal canadense e o governo da província de Ontário contribuem cada um com US$ 10 milhões. Enquanto isso, levantamos dinheiro com doadores particulares e investimos os recursos. Nosso patrimônio atual é de US$ 320 milhões e esperamos que seja de US$ 400 milhões em 10 anos. Assim, em uma década, retirando todo ano 5% do patrimônio e mais os US$ 20 milhões anuais do governo, teremos um orçamento anual de US$ 40 milhões. Somos uma instituição sem fins lucrativos e não estamos interessados em propriedade intelectual. Se descobrirmos algo, tomaremos a mesma atitude dos inventores da world wide web. Eles a fizeram pública, para que todos se beneficiassem dela. Acredito que um dia seremos capazes de conseguir doadores privados para pagar por todo o crescimento do instituto. Fazer física teórica custa pouco. Os gastos são essencialmente com as pessoas. No 28 | dezembro DE 2016
longo prazo esse tipo de investimento é garantido, pois um grande avanço em física teórica pode mudar tudo. Alguns colegas no Perimeter trabalham em computação quântica, elaborando formas de corrigir erros em cálculos realizados por meio de partículas subatômicas. É uma tarefa desafiadora, mas, quando funcionar, será a base para a indústria de computação do século XXI. Como o Perimeter cresceu? Em 2001, o instituto contratou os dois primeiros professores. Em 2008, quando assumi a direção, eram sete. Agora são 23 em tempo integral, mais 13 compartilhados com outras instituições. É assim que tem de ser, contratar lentamente, sem pressa, um ou dois por ano, convidando apenas pessoas excepcionais. Quando alcança uma massa crítica de 10 docentes fantásticos, começa a atrair os estudantes mais brilhantes e a qualidade se multiplica. Se você quer criar um centro de excelência espetacular, siga o exemplo das empresas start up. Precisamos de empreendedorismo aplicado à ciência fundamental, seguir assuntos de pesquisa não convencionais e desenvolver direções completamente novas. Os verdadeiros progressos em ciência acontecem por causa de ideias audaciosas. Noventa e nove por cento delas se mostrarão erradas, mas ocasionalmente uma dessas ideias criativas vai acertar e transformar tudo. A mecânica quântica, por exemplo, é uma ideia maluca. Sem ela, a física não teria progredido. Como você administra o instituto para criar um ambiente não convencional?
Quando assumi a direção, em 2008, não havia nenhum programa de pós-gradua ção no instituto. Criei um programa de mestrado diferente, porque já tinha visto todas as coisas que Princeton, Cambridge e outros lugares excelentes fazem errado. Fizemos pesquisas de marketing e estratégias, como fazem as grandes empresas, para recrutar os estudantes mais brilhantes, animados e empreendedores do mundo. E os recrutamos de países diferentes, com culturas diferentes, garantindo uma boa proporção de mulheres. Em seguida, damos a eles um apoio muito especial. No Perimeter os estudantes têm três refeições diárias excelentes, um ginásio de esportes, concertos de música maravilhosos, um ambiente muito animado. Quando chegam, eles sentem que têm de fazer o melhor, porque sentem que é um lugar de alto nível. O prédio dos dormitórios tem uma sala em comum, com quadros-negros, na qual discutem ideias o tempo todo. A cada manhã assistem a aulas e à tarde trabalham em problemas em grupo. Seus tutores realmente cuidam deles, todos os dias, observando, ajudando e desafiando-os com novos problemas. Eles se sentem parte de todo o ambiente de pesquisa e interagem com os professores o tempo todo. Hoje, 68% de nossos convites são aceitos pelos estudantes. É uma das maiores porcentagens do mundo. Isso não acontece porque somos professores mais brilhantes que os outros. É porque todas as outras instituições têm programas muito tradicionais, que não mudam, não se modernizam. E como atraem os pesquisadores?
Em 2010 criamos o programa Distinguished Visiting Research Chair (cátedra de pesquisador visitante distinto). Em física, quem é convidado a visitar uma instituição apresenta um seminário, mas só recebe reembolso pelas despesas, não ganha nenhum honorário. Fizemos diferente. Dissemos aos mais experientes físicos teóricos do mundo: “Por favor, venham, fiquem conosco por três ou quatro semanas por ano que vamos lhes pagar por semana”. É uma fração do salário deles, mas eles se sentiram respeitados, especialmente depois de Stephen Hawking ter sido o primeiro a aceitar nossa oferta e receber o título de catedrático visitante. Agora temos 52 dos mais importantes físicos do mundo passando pelo Perimeter todo o ano. Não custa muito trazê-los por quatro semanas. Eles vêm, discutem com os estudantes e dão aulas, a maioria deles simplesmente ama dar aulas o dia inteiro. E voltam. Você mantém a excelência fazendo com que as melhores pessoas do mundo passem por sua instituição. Exato, você precisa renovar o tempo todo. Ninguém pode ser complacente. Esse é um dos meus desafios. Digo ao nosso corpo docente que o maior perigo para o instituto é nos acomodarmos. Não podemos relaxar. Cada um de nós precisa manter os outros acordados, criticar os colegas. Somos avaliados todo ano. Cada um de nós entrevista seus colegas: sua pesquisa é ambiciosa o suficiente? Está realmente avançando nos limites de sua área de pesquisa? Talvez você devesse largar essa abordagem porque o resultado é muito previsível. Vá e arrisque. Achamos que pode fazer melhor. Se alguém o critica, você não toma isso como um insulto. Outra maneira de manter todo mundo desperto é um de meus slogans no Perimeter: Aqui não há grupos. Como assim? Quando cheguei ao Perimeter todo mundo se via em grupos de pesquisa. “Somos o grupo de gravitação quântica”, diziam. “Não há grupos”, disse a eles, “aqui estamos todos no mesmo barco”. Não é um professor que escolhe os estagiários de pós-doutorado. O instituto, coletivamente, recruta-os, sob o entendimento de que eles não estão trabalhando para ninguém. São pesquisadores independentes,
As teorias do século XX estão fracassando. A natureza é mais simples e mais unificada do que jamais acreditamos
livres para fazer o que quiserem, podem trabalhar com o corpo docente, mas nunca serão usados para fazer o trabalho deles. Os próprios pós-doutorandos podem convidar visitantes ou viajar para onde quiserem. Os pós-docs e os professores seniores são tratados de maneira muito similar. E funciona, porque quando damos todo esse apoio e liberdade eles entendem que nossas expectativas são altas, que esperamos que façam algo realmente interessante. A evidência disso é que quatro de nossos pós-docs já ganharam o prêmio New Horizons [prêmio de US$ 100 mil para jovens pesquisadores promissores, instituído em 2013 pela fundação Breakthrough Prize, dos Estados Unidos]. Além do Perimeter e da Universidade Stanford, nenhuma outra instituição ganhou esse prêmio mais de uma vez. O diretor da Breakthrough me ligou semana passada perguntando como conseguimos isso. A resposta é que estamos em busca de jovens incomuns, fazendo algo brilhante, mas que ainda não é totalmente reconhecido. Nove de cada 10 jovens fazem coisas incríveis. Enquanto isso as grandes universida-
des perseguem os pós-docs populares, requisitados em conferências e que publicam muitos artigos por ano. E dessa maneira elas não encorajam de fato os jovens a realizarem trabalhos originais. Somos o oposto, porque sabemos que são as pessoas que arriscam mais que realizam os grandes avanços e ganham os grandes prêmios. O que você faz em cosmologia? Tento compreender a origem do Universo. Agora temos observações a partir das quais podemos testar teorias com precisão. O futuro do Universo parece que será extremamente simples, dominado pela energia escura. Quais foram suas principais contribuições? Fiz previsões que foram confirmadas por observações. Em particular, a correlação entre a polarização [propriedade da radiação eletromagnética oscilar em direções preferenciais] e a temperatura da radiação cósmica de fundo. Previ também uma evidência independente [da evidência principal da energia escura, que é o afastamento acelerado das galáxias distantes], recentemente confirmada por observações [o chamado efeito Sachs-Wolfe integrado, segundo o qual pequenas variações nas frequências da radiação cósmica de fundo estão relacionadas à distribuição dos aglomerados de galáxias e são influenciadas pela energia escura]. Estou entre os primeiros que investigaram a ideia de que relíquias da época da grande unificação [período em que as forças fundamentais da física eram como uma só, logo após o Big Bang] poderiam ter sobrevivido até hoje. Propus vários cenários teóricos para explicar o Big Bang. Um deles é a idea de que podemos estar vivendo em uma bolha em um universo inflacionado. Outro, a ideia de que o Big Bang foi o resultado de uma colisão entre dois universos. O terceiro é o cenário do universo cíclico, que morre e se refaz continuamente. Como você vê o futuro da cosmologia? Com muito entusiasmo. As observações nos ensinaram mais nos últimos quatro anos do que nas últimas três décadas. As teorias do século XX estão fracassando em toda parte. A natureza é mais simples e mais unificada do que jamais acreditamos. n PESQUISA FAPESP 250 | 29
política c&T Ranking y 1 2 3 4
Estudantes empreendedores
5 6 7 8 9 10 11 12 13
Índice feito por alunos de graduação aponta 42 universidades do país com ambiente favorável à inovação
14 15 16 17 18
Fabrício Marques
19 20
U
m grupo de organizações de estudantes lançou em Brasília no dia 10 de novembro um ranking com 42 universidades brasileiras que se destacam no estímulo à inovação e ao empreendedorismo, de acordo com um conjunto de 14 indicadores. Trata-se do Índice de Universidades Empreendedoras 2016, que exibe nas duas primeiras posições instituições consagradas em vários rankings acadêmicos: as universidades de São Paulo (USP) e a Estadual de Campinas (Unicamp). Se os líderes não chegam a causar surpresa, o ranking inova ao identificar os esforços de instituições de vários estados, como as universidades Federal do Ceará (UFC) e Estadual de Maringá (UEM), na construção de um ambiente empreendedor. O ranking está disponível em bit.do/brasiljunior. “Além de ensinar e fazer pesquisa, a universidade deve favorecer o trabalho conjunto com empresas e estimular alunos e professores a empreender e a gerar riqueza”, diz Daniel Pimentel Neves, 24 anos, um dos coordenadores do índice. Ele é o atual diretor de impacto de ecossistema da 30 z dezembro DE 2016
Brasil Júnior, confederação de empresas juniores instaladas em universidades do país. Formado em direito na Universidade Federal de Juiz de Fora, ele foi fundador da empresa júnior Colucci, que oferece consultoria jurídica. Como toda empresa do gênero, presta serviços a clientes e reinveste em suas atividades o que arrecada. O ranking realizado pelos estudantes chama a atenção pelo formato e pela rapidez com que foi feito. O planejamento, a coleta e a análise de dados demoraram apenas seis meses. A construção do índice envolveu o trabalho voluntário de jovens vinculados a associações como a Brasil Júnior e a Rede CsF, que congrega bolsistas e ex-bolsistas do Ciência sem Fronteiras, programa de intercâmbio internacional criado pelo governo federal. Também participaram da iniciativa duas entidades estudantis internacionais, a Aiesec e a Enactus, voltadas para atividades de intercâmbio, extensão e empreendedorismo, além da Brasa, associação de estudantes que estão fora do país. Esses parceiros selecionaram estudos de caso que ilustram o livro em que o índice foi publicado.
As notas das 20 primeiras colocadas As instituições com melhor classificação no Índice de Universidades Empreendedoras 2016
Instituição
Pontuação
Univ. de São Paulo _ USP
Como o ranking é calculado
7,67
Univ. Estadual de Campinas _ Unicamp
6,91
Pontifícia Univ. Católica do Rio de Janeiro _ PUC-Rio
6,30
Univ. Federal de São Carlos _ UFSCar
6,25
Univ. Federal do Ceará _ UFC
Os indicadores utilizados para medir o grau de empreendedorismo de uma universidade se dividem em seis categorias
6,10
Univ. Federal de Minas Gerais _ UFMG
6,09
Univ. Federal de Viçosa _ UFV
6,04
Univ. Federal de Santa Maria _ UFSM
6,03
Cultura empreendedora Indicadores: pesquisa de percepção nas
Univ. Estadual de Maringá _ UEM
5,87
universidades sobre a postura
Univ. Federal do Rio Grande do Sul _ UFRGS
5,85
empreendedora de alunos e professores,
Univ. Federal de Santa Catarina _ UFSC Univ. Federal do Pará _ UFPA
5,50
Univ. Estadual Paulista _ Unesp
5,49
Univ. Federal de Lavras _ Ufla
5,31
Univ. Federal de Goiás _ UFG
5,30 5,20
Univ. de Brasília _ UnB
4,98
Univ. Federal do Espírito Santo _ Ufes
4,95
Univ. Federal do Rio Grande do Norte _
UFRN
dividido pelo número de cursos. Destaque: Universidade Federal Rural de Pernambuco, com 50 disciplinas de empreendedorismo em 60 cursos, teve a
5,38
Univ. Federal de Pernambuco _ UFPE Univ. Federal do Rio de Janeiro _ UFRJ
número de matérias de empreendedorismo
5,80
4,83
nota mais alta na categoria (8,15) Inovação Indicadores: produção científica e patentes segundo o Ranking Universitário da Folha; número de empresas incubadas por grupo de mil alunos. Destaque: Universidade Federal do Ceará, com maior proporção de empresas incubadas, teve a nota mais alta na categoria (9,54)
Extensão Indicadores: presença de empresas juniores e de organizações estudantis, como Brasil Júnior, Aiesec, Enactus e Rede Ciência sem Fronteiras, e avaliação dos estudantes sobre a contribuição dessas organizações; razão entre o número de projetos de extensão e o número de alunos.
lustraçãO CC 3.0 BY / flaticon.com
Destaque: Universidade de São Paulo, com Infraestrutura
Internacionalização
Indicadores: percepção dos
Indicadores: proporção de
alunos sobre a qualidade da
alunos de universidade que
infraestrutura (salas, biblioteca,
fizeram intercâmbio no
laboratórios) e da internet;
exterior; publicações de
existência de parque tecnológico
docentes em coautoria
Capital financeiro
na cidade e de parceria entre
internacional e citações.
Indicadores: orçamento da instituição dividido por
o parque e a universidade.
Destaque: Universidade
número de alunos; existência de fundos de doações.
Destaque: Pontifícia Universidade
Estadual de Campinas, com
Destaques: Universidade Estadual de Campinas,
Católica do Rio de Janeiro, com a
o melhor desempenho em
com a melhor relação entre orçamento e número
melhor avaliação de qualidade da
intercâmbios internacionais,
de alunos, teve a nota mais alta na categoria (7,50).
infraestrutura e da internet, teve
teve a nota mais alta na
Apenas a USP recebeu pontos no indicador sobre
a maior nota da categoria (9,05)
categoria (9,33)
fundos de doações
$
maior número de organizações estudantis, teve a nota mais alta na categoria (8,10)
pESQUISA FAPESP 250 z 31
32 z dezembro DE 2016
fotos leonor calasans / iea / usp
“Usamos nossa capacidade de articulação para agilizar o processo. Em vários momentos, conseguíamos em poucas horas mobilizar estudantes em todos os cantos do país para levantar dados e aplicar pesquisas”, diz Guilherme Rosso, 22 anos, cofundador da Rede CsF. Recém-graduado em ciências e tecnologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, atualmente é aluno de mestrado da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP. A ideia de fazer o índice surgiu no início do ano, quando a direção da Brasil Júnior fez um balanço de um programa voltado para disseminar o empreenem 4,7 mil respostas, surgiram dedorismo nas universidades quatro características sobre as e concluiu que seus resultaquais havia consenso: a existêndos estavam aquém do esperaAs mesmas cia de cultura empreendedora do. “Esse programa, o Escolas entidades entre professores e estudantes; Empreendedoras, promoveu atividades de extensão em emnos últimos três anos mais de estudantis preendedorismo; a intensidade 80 eventos sobre empreendede inovação, medida pelo númedorismo em universidades do atuaram juntas ro de patentes, existência de inpaís. Mas, apesar de terem aucubadoras de empresas e produdiência, não contribuíram para para aprovar ção científica; e a infraestrutura transformar o ambiente acadêno Congresso física, traduzida na presença de mico como esperávamos”, afirparques tecnológicos e na oferta ma Daniel Pimentel. “A ideia a Lei da de boas redes de internet. Cada de criar o índice foi natural uma delas se transformou em porque rankings mobilizam Empresa Júnior, uma categoria do índice, avaas universidades e as estimuliada por meio de indicadores lam a competir e a melhorar.” de 2016 e/ou resultados de pesquisas. A articulação com as outras Outras duas categorias foentidades repetiu a estratégia ram adicionadas, embora não adotada entre 2014 e 2015, quando as mesmas organizações atuaram jun- tenham sido julgadas relevantes por todos os entas para aprovar no Congresso a Lei da Empresa trevistados. Uma delas é o grau de internacionaJúnior, sancionada em abril de 2016. “Todas as lização da universidade, avaliado pelo número entidades se prontificaram a colaborar, mas havia de intercâmbios de alunos e de publicações de uma limitação: nenhum de nós sabia produzir um docentes em coautoria com pesquisadores de ouranking”, conta Guilherme Rosso. Para dar con- tros países. “O fator internacionalização apareceu sistência metodológica, os estudantes pediram de forma expressiva apenas entre os entrevistados ajuda a quem conhece o assunto, a empresa de com alguma vivência no exterior. Resolvemos inconsultoria McKinsey e o pesquisador Guilher- cluir essa categoria porque ficou claro que a expeme Ary Plonski, professor da Escola Politécni- riência internacional proporciona aos jovens uma ca e da Faculdade de Economia, Administração perspectiva mais empreendedora”, diz Guilherme. e Contabilidade da USP. O inglês radicado no Já a categoria capital financeiro foi incluída por Brasil Justin Axel-Berg, estudioso de rankings sugestão dos especialistas, ante as evidências de de universidades, também se juntou ao grupo e que o tamanho do orçamento das universidades e a existência de fundos de doações são importancontribuiu com sugestões metodológicas. Em maio, o grupo se reuniu para planejar o tes para impulsionar a inovação nas instituições. O passo seguinte foi escolher indicadores. Em ranking. O primeiro passo foi fazer uma pesquisa on-line com estudantes e professores de diversas alguns casos, as informações foram coletadas em universidades do país para entender o que carac- cada instituição por cerca de 80 “embaixadores”, teriza uma universidade de perfil empreendedor. estudantes vinculados às organizações que ela“Os estudantes responsáveis pelo ranking tiveram boraram o índice. Foi o caso, por exemplo, do núeles próprios um comportamento empreende- mero de disciplinas sobre empreendedorismo nos dor, procurando respostas às perguntas: afinal cursos ou a presença de incubadoras e parques de contas, o que é uma universidade empreen- tecnológicos nas redondezas da universidade. dedora e onde estão as universidades empreen- Em outros casos, foram aproveitados dados codedoras no Brasil?”, conta Plonski. Com base letados pelo Ranking Universitário Folha (RUF),
Guilherme Rosso (à esq.) e Daniel Pimentel Neves coordenaram a coleta de dados e a produção do índice
$
O que define uma universidade empreendedora Cerca de 4,7 mil alunos e professores de várias universidades responderam a uma pesquisa on-line e apontaram os fatores que mais influenciam na criação de um ambiente empreendedor
Presença de organizações estudantis pró-empreendedorismo Postura empreendedora do corpo docente e discente Infraestrutura (sala de aula, biblioteca, laboratórios, espaços comuns, incubadoras, parques tecnológicos, aceleradoras etc.) Proximidade universidade-empresa Formação empreendedora (disciplinas de empreendedorismo) Pesquisa aplicada a soluções de demandas sociais e de mercado Eventos pró-empreendedorismo
Apoio institucional ao empreendedorismo Projetos de extensão Valorização/ reconhecimento do empreendedor Internacionalização Investimento público Investimento privado 10 20 30 40 50 60 70%
organizado pelo jornal Folha de S.Paulo, como indicadores de produção científica e de patentes. Nas 42 instituições selecionadas, os embaixadores realizaram uma pesquisa de opinião com mais de 6 mil estudantes e professores, que serviu de base para várias categorias do ranking. Foi o caso da pontuação sobre a postura empreendedora de estudantes e professores. Os alunos se autoavaliaram e também avaliaram os docentes – e o resultado dessa percepção foi registrado no índice. Algumas categorias trouxeram resultados surpreendentes. No quesito Cultura Empreendedora, o primeiro lugar coube à Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), por conta da concentração de disciplinas sobre empreendedo-
rismo – foram identificadas 50 em um universo de 60 cursos. Já a UFC foi a que mais pontuou na categoria Inovação, graças à grande concentração de empresas incubadas. A PUC-Rio liderou em Infraestrutura, por estar associada a um parque tecnológico e receber a nota mais alta na pesquisa de percepção sobre a qualidade da infraestrutura física e a velocidade da internet. A grande proporção de alunos em intercâmbios no exterior colocou a Unicamp em primeiro lugar em Internacionalização. A instituição também foi a primeira na categoria Capital Financeiro por apresentar a melhor relação entre orçamento e número de alunos. A USP teve igualmente bom desempenho nesse quesito por ser a única universidade da lista com um fundo de doação – o Amigos da Poli (ver Pesquisa FAPESP nº 219). Também foi a primeira em Extensão, graças à presença em seus campi de várias organizações estudantis ligadas ao empreendedorismo. Um insuspeito reconhecimento do esforço dos estudantes veio do norte-americano Henry Etzkowitz, professor da Universidade Stanford, um dos formuladores nos anos 1990 do modelo de inovação conhecido como Hélice Tríplice, calcado na relação entre universidades, empresas e governo. Atualmente engajado em uma iniciativa de vários países, o Brasil inclusive, que busca desenvolver métricas globais para avaliar universidades empreendedoras, Etzkowitz assina o prefácio do livro que apresenta os resultados do índice. “Novas métricas são necessárias para complementar as já existentes e reconhecer o papel emergente da universidade na promoção de desenvolvimento socioeconômico”, escreveu o professor no prefácio. Etzkowitz esteve no Brasil em novembro e participou de debates em que o ranking foi apresentado, em São Paulo e no Rio de Janeiro. “Além de nos prestigiar, fomos juntos a um bar em Ipanema e ele foi uma ótima companhia”, conta Guilherme Rosso. Há planos de lançar uma nova edição do índice, dentro de um ou dois anos. “A ideia é criar indicadores mais sofisticados, solicitar mais dados às universidades e criar novas categorias das pesquisas de percepção”, adianta Daniel. Uma ideia, segundo ele, é analisar toda a grade curricular dos cursos para saber em que medida o conteúdo e as formas de avaliação estimulam uma postura empreendedora dos alunos, em vez de apenas contar o número de disciplinas sobre empreendedorismo. Tanto Daniel quanto Guilherme ficarão disponíveis para orientar a produção do índice, mas, como estão de saída da universidade e ingressando no mercado de trabalho, devem ser substituídos por estudantes mais jovens. “A rotatividade não é um problema para o nosso movimento, que ganha força na mesma medida em que se renova”, diz Daniel. n pESQUISA FAPESP 250 z 33
Difusão y
O duelo dos
mega-journals Disputa entre PLOS One e Scientific Reports aponta mudanças no mercado das publicações científicas
O
s mega-journals, revistas científicas que publicam um grande número de artigos em acesso aberto na internet, vivem um momento de ebulição. Em setembro, a liderança nesse nicho de periódicos mudou de mãos pela primeira vez, quando a Scientific Reports, lançada pelo grupo Springer Nature em 2011, publicou, no intervalo de 30 dias, um total de 1.940 papers. A revista superou a PLOS One, respeitada publicação lançada em 2006 pela organização sem fins lucrativos Public Library of Science (PLOS), que publicou 1.746 artigos em setembro. Em agosto, a PLOS One conseguira manter a dianteira por estreitos 40 artigos. Ambas as publicações disseminam papers de um largo espectro de disciplinas, que incluem as ciências, as engenharias e a matemática, embora a PLOS One reúna um conjunto maior de artigos no campo das ciências da vida e a nova líder, no das ciências naturais. A ascensão da Scientific Reports é explicada por um conjunto de fatores. Uma das vantagens competitivas é o fator de impacto, indicador da repercussão da produção científica publicada. Atualmente, o índice é de 5,2. Significa que os artigos publicados na revista em 2013 e 2014 receberam, em média, 5,2 citações em outros 34 z dezembro DE 2016
papers em 2015. O índice parece baixo quando comparado a outros periódicos do grupo – o fator de impacto da Nature é de 38,1. Mas, na verdade, é um índice vigoroso para um tipo de revista que só existe na internet, publica uma grande massa de artigos e não exige que os autores apresentem novidades em seus manuscritos – basta que os dados sejam sólidos. Já a PLOS One tem visto seu fator de impacto cair ao longo do tempo – hoje, o índice é de 3, ante 4,4 em 2010. Para a bióloga Véronique Kiermer, editora executiva das revistas PLOS, a importância do fator de impacto deve ser relativizada em uma categoria de revistas que publica artigos de áreas variadas, cada qual com uma tradição de citação, e é menos restritiva do que periódicos tradicionais, admitindo até mesmo papers sobre pesquisas que chegaram a resultados negativos ou inconclusivos. “Esse tipo de artigo recebe naturalmente poucas citações”, escreveu Kiermer no blog da PLOS em julho. Ela, contudo, defende a divulgação desse tipo de paper como forma de evitar a publicação de resultados parciais ou enviesados de pesquisas. O auge da PLOS One foi registrado no ano de 2013, quando publicou 31.509 artigos. Em 2015, o total anual foi 28.105.
Os números da rivalidade A evolução da quantidade mensal de artigos publicados pelas revistas PLOS ONE e Scientific Reports PLOS ONE n Scientific Reports n
Fonte phil Davis/ scholarly kitchen
3.500
3.000
2.500
2.000
1.500
1.000
07/2016
09/2016
04/2016
01/2016
10/2015
07/2015
04/2015
01/2015
10/2014
07/2014
04/2014
01/2014
10/2013
07/2013
04/2013
01/2013
10/2012
07/2012
04/2012
01/2012
10/2011
07/2011
04/2011
0 01/2011
ilustrações luana Geiger
500
Outro ponto do duelo entre as revistas tem a ver com a capacidade de publicar artigos rapidamente, qualidade muito valorizada por autores que recorrem aos mega-journals. Um estudo recente feito pelo especialista norte-americano em bibliometria Phil Davis comparou os prazos de aceitação e de publicação nos dois periódicos, depois de analisar um conjunto de 100 artigos de cada uma delas. O trâmite de um artigo na Scientific Reports, incluindo todas as etapas do processo de revisão por pares, demorou 99 dias, ante 132 na PLOS One. Depois que o artigo é aceito, a PLOS One publica mais rapidamente: em média em 19 dias, diante de 27 da concorrente. Mas, somando os dois prazos, a vantagem da Scientific Reports foi de 25 dias. Um estudo feito em 2013 por pesquisadores da Finlândia mostrou que o prazo de publicação em revistas científicas tradicionais oscila de nove a 18 meses, dependendo da área do conhecimento. dados brutos
Outra diferença da revista do grupo Springer Nature está relacionada às exigências feitas aos autores. Enquan-
to a PLOS One obriga os pesquisadores a disponibilizarem os dados brutos de suas pesquisas em repositórios abertos, a fim de que possam ser consultados por outros pesquisadores, a concorrente do grupo Nature apenas recomenda essa medida de transparência. Os mega-journals foram uma grande novidade no universo das publicações científicas dos últimos 10 anos. Eles despontaram com um modelo de negócios diferente dos periódicos tradicionais, voltado para a difusão de informação científica na internet. Funcionam em acesso aberto, no qual qualquer interessado pode ler os artigos na web sem pagar por isso. A remuneração não vem de assinaturas nem da comercialização de anúncios, mas exclusivamente de uma taxa paga pelos autores dos artigos – cada paper, depois de submetido à revisão por pares e aceito para publicação, custa determinada quantia. Um fator importante desse modelo é a baixa rejeição de artigos. A PLOS One, por exemplo, publica entre 65% e 70% dos manuscritos que recebe. A Scientific Reports é mais seletiva: publica em torno de 55% dos papers submetidos.
A PLOS One dominou o universo dos mega-journals por 10 anos. Com um corpo de revisores de alto nível, desafiou a ideia de que o meio digital on-line era impróprio para a divulgação de conteúdo científico de qualidade, ainda que aceite artigos independentemente do grau de novidade de seus achados. Com isso, acumulou prestígio. “Pesquisadores brasileiros de várias disciplinas sentem-se estimulados a publicar na PLOS One porque a revista é valorizada pela avaliação de vários programas de pós-graduação”, afirma Abel Packer, coordenador da biblioteca eletrônica Scielo Brasil, referindo-se ao sistema Qualis, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), que dá um peso elevado para papers publicados nesse periódico em áreas como biotecnologia e engenharias. “Isso não se observa ainda com a Scientific Reports, que é uma revista bem mais nova.” Na PLOS One, autores brasileiros são responsáveis por 1,77% dos registros de artigos, segundo o Science Citation Index Expanded da base de dados Web of Science. Já na Scientific Reports, o país é responsável por 0,6% dos registros de artigos.
988
940
Artigos do Brasil Evolução de registros de artigos com autor brasileiro na PLOS One e na Scientific Reports, segundo o Science Citation Index Expanded (Scie) da base de dados Web of Science (WoS)
776 673
n Plos One
486
n Scientific Reports
285
234 135 0
2011 36 z dezembro DE 2016
29
14 2012
2013
49 2014
2015
2016
O modelo dos mega-journals foi celebrado como uma alternativa mais democrática aos periódicos tradicionais, pois é capaz de publicar uma enorme quantidade de pesquisas, deixando para a comunidade científica a missão de identificar o que há de relevante nesse universo, tarefa que cabe, nos periódicos tradicionais, a um conjunto restrito de revisores. Essa visão dos mega-journals como ferramenta de popularização da informação científica hoje divide espaço com outra avaliação, a de que se tornaram um nicho de mercado altamente lucrativo para editoras. Tanto para a PLOS One quanto para a Scientific Reports, a taxa de processamento de artigo (APC, na sigla em inglês) é de US$ 1.495, o equivalente a pouco mais de R$ 5 mil. Uma particularidade é que o faturamento da revista avança na mesma medida em que ela publica mais artigos. “Multiplique-se isso pelo número de artigos e se chega a mais de US$ 2,5 milhões de receita mensal de um mega-journal. É um negócio tremendamente lucrativo”, diz Rogério Meneghini, coordenador científico da biblioteca eletrônica SciELO Brasil.
Revistas comparadas Porcentagem de artigos aceitos e valores cobrados em cinco periódicos
US$
US$
1.495
1.200
69%
68%
US$
1.875
60%
US$
1.495
55%
US$
1.350
51%
Taxa de processamento de artigo (APC)
Percentual de artigos aceitos para publicação
ilustrações luana Geiger
lucratividade
No lugar de competir com títulos convencionais, os mega-journals passaram a ter uma relação simbiótica com as revistas mais seletivas, criando economias de escala para as editoras, pondera Stephen Pinfield, professor da Universidade de Sheffield, no Reino Unido, líder de um projeto de pesquisa que investiga a trajetória e o futuro dos mega-journals, que deve ser concluído em 2017. Manter um mega-journal pode ajudar uma editora a financiar a operação de publicações que lhe dão muito mais prestígio do que dinheiro. Isso é verdade no caso da PLOS One, cuja lucratividade ajuda a manter publicações do mesmo grupo, mas de escopo mais restrito, como PLOS Biology e PLOS Medicine. Um outro lado dessa simbiose é que os mega-journals também podem se beneficiar do prestígio das revistas irmãs – o sucesso do Scientific Reports dentro do grupo Nature parece ser um exemplo disso. A rapidez da Scientific Reports em publicar artigos também gerou arranhões na imagem da revista. Em maio de 2015, o então editor da publicação, Mark Maslin, renunciou ao cargo em protesto contra uma nova política do grupo Nature, que
PLOS One
FEBS Bio Open
BMJ Open
Scientific Reports
Biology Open
Fonte Bo-Christer Björk/ “Have the mega-journals reached the limits to growth?” (2015)
passou a oferecer a autores a possibilidade de acelerar o processo de revisão por pares por meio do pagamento de uma taxa extra. Segundo Maslin, que é professor de biogeografia da University College London, o novo sistema permite a quem tem dinheiro publicar mais depressa e subverte a igualdade de condições na avaliação que é tradicional no funcionamento das publicações científicas. À parte o duelo entre os dois princi pais mega-journals, o futuro desse tipo de publicação envolve um certo grau de incerteza. “Tudo dependerá da forma como o acesso aberto das publicações científicas irá ganhar espaço nos próximos anos”, observa Abel Packer. Ele ressalta o crescimento da tendência de publicar em repositórios de artigos ainda não submetidos à revisão por pa-
res, os chamados pré-prints, levando-os ao escrutínio imediato da comunidade científica. “Um dos principais atrativos dos mega-journals é a publicação rápida, mas nos repositórios a publicação é imediata”, diz. Esse modelo era adotado por poucas áreas da comunidade científica – o repositório arXiv, utilizado pelos físicos há 25 anos, é o principal exemplo –, mas começa a ser adotado em outras disciplinas, como a biologia e as ciências sociais. “Num cenário que parece cada vez mais provável, pes quisadores vão publicar seus achados preliminares em repositórios para só depois, se for o caso, procurar um periódico de prestígio para divulgar um artigo elaborado. Nesse ambiente, os mega-journals poderiam perder seus atrativos”, avalia Packer. n Fabrício Marques pESQUISA FAPESP 250 z 37
cientometria y
Impacto além da academia
Número de visitas às páginas da internet que contêm o paper ou de downloads de seu arquivo em PDF
Indicadores alternativos avaliam o alcance da ciência entre leitores de mídias sociais
O
físico e biólogo Uri Alon, pes quisador do Instituto de Ciên cia Weizmann, de Israel, pu blicou em 2009 um artigo na revista Molecular Cell em que sugere uma série de fatores a serem considera dos por pesquisadores e estudantes na hora de escolher um objeto de pesquisa. Em poucas páginas e com certo tom de autoajuda, ele faz recomendações aos que começam na carreira, tais como só se comprometer para valer com um te ma depois de três meses de reflexão ou tentar identificar entre assuntos emer gentes de seu campo de pesquisa aquele que mais desperta interesse pessoal. O trabalho foi pouco mencionado em ou tros artigos: recebeu apenas 14 citações, de acordo com a base de dados Web of Science, da empresa Thomson Reuters. Mas, ao contrário do que parece, teve um impacto notável. É um dos trabalhos mais populares do Mendeley, uma rede social acadêmica por meio da qual os usuários podem armazenar e compar 38 z dezembro DE 2016
tilhar artigos em seus perfis e saber que papers estão despertando interesse de outros pesquisadores. No Mendeley, o ensaio de Alon já foi baixado por 130 mil pessoas. Situação semelhante envolveu o presidente norte -americano, Barack Obama. Em julho, ele assinou um artigo sobre a reforma do sistema de saúde dos Estados Uni dos no Journal of the American Medical Association (Jama). Recebeu apenas sete citações em trabalhos acadêmicos, mas foi mencionado em mais de 8 mil posts no Twitter e em 197 páginas no Face book. “Esses casos são indicativos de que a forma como a ciência é publicada e divulgada está mudando com a expan são das mídias sociais”, avalia o biólogo Atila Iamarino, um dos criadores da rede de blogs científicos ScienceBlogs Brasil. O número de citações que um artigo recebe em outros papers ou o fator de im pacto de uma publicação são parâmetros consagrados para avaliar a relevância da produção científica. Nos últimos anos,
contudo, despontaram novos indicadores dedicados a registrar o alcance da ciência entre públicos variados. Essa tendência fez surgir a altmetria (do inglês altmetrics, ou métricas alternativas), um ramo da cientometria que busca medir a in fluência da produção científica por meio da análise de menções em sites, redes sociais, número de downloads, compar tilhamento de apresentações científicas em PowerPoint, entre outros exemplos. O termo foi proposto pela primeira vez em um tuíte de setembro de 2010 por Jason Priem, então doutorando de ciência da informação da Universidade da Carolina do Norte, em Chapel Hill, nos Estados Unidos, e um dos criado res de uma ferramenta de código aberto que fornece dados altmétricos, o Im pactStory. Atualmente, vários serviços agrupam informações desse tipo. Antes mesmo de o termo ser cunhado, em mar ço de 2009, a editora de periódicos de acesso aberto Public Library of Science (PLOS) criou o PLOS Article Level Me
ilustrações veridiana scarpelli
Bruno de Pierro
Todas as métricas Os diferentes tipos de repercussão de um artigo científico que são considerados pela altmetria Armazenamentos e compartilhamentos do artigo em perfis de pesquisadores associados a serviços e redes sociais acadêmicas, como o Mendeley e o CiteULike
Comentários sobre o artigo em revistas acadêmicas, blogs científicos, referências na Wikipédia, posts do Twitter, do Facebook e de outras redes sociais
Indicações do artigo feitas por especialistas por meio de serviços como o F1000Prime, que reúne sugestões compiladas por uma comunidade de 6 mil médicos e cientistas sobre os melhores papers publicados em 3,7 mil revistas das áreas de medicina e biologia
Fonte ImpactStory e PLOS
Referências sobre o artigo encontradas na literatura acadêmica, rastreadas por bases de dados como Web of Science, Scopus e CrossRef
trics (PLOS ALM), sistema que utiliza uma variedade de indicadores, tais como estatísticas de uso, citações acadêmicas, menções em blogs ou em verbetes na Wikipedia e compartilhamento em re des sociais, para monitorar a influência de papers publicados em suas revistas sobre diferentes audiências. Outras editoras seguiram o mesmo caminho. A holandesa Elsevier comprou em 2013 a Mendeley, que hoje reúne mais de 5 milhões de usuários. Recentemen te, adquiriu a Social Science Research Network (SSRN), repositório de acesso aberto no qual mais de 300 mil pesqui sadores de ciências sociais e humanas já divulgaram artigos e trabalhos ainda não publicados, os preprints (ver Pesqui sa FAPESP nº 245). As duas aquisições buscaram ampliar os negócios da edito ra no mercado digital e fornecer novos indicadores a seus clientes. O interesse crescente por métricas al ternativas levou a Organização Nacional de Normas de Informação dos Estados
Unidos (Niso, em inglês) a lançar um guia com diretrizes para a produção e dis seminação das métricas alternativas. O documento, divulgado em fevereiro, enfa tiza a preocupação em gerar indicadores precisos e estabelece que a origem das in formações e a metodologia adotada para interpretá-las devem ser transparentes. O Wellcome Trust, fundação que finan cia pesquisa biomédica no Reino Uni do, adotou parâmetros altmétricos para complementar a avaliação de pesquisas que financia. Um documento publicado no ano passado pela fundação ressalta que esses indicadores permitem acom panhar a repercussão de um artigo cien tífico instantaneamente e mensurar um tipo de impacto das pesquisas no cam po da saúde que costuma ser ignorado. Segundo o texto, a detecção precoce do interesse de cidadãos e de tomadores de decisão por certos temas de pesquisa aju da o Wellcome Trust a encontrar pontos de conexão nas agendas da ciência e da política. “Há muita gente que lê e utiliza pESQUISA FAPESP 250 z 39
artigos científicos sem que isso resulte em citações, como profissionais da saú de, divulgadores científicos, estudantes, jornalistas e gestores públicos”, ressalta Iara Vidal Pereira de Souza, doutoranda do Programa de Pós-graduação em Ciên cia da Informação do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict) e da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. As novas formas de avaliar o alcance de uma pesquisa nem de longe substi tuem os meios tradicionais de medir a sua relevância. Sérgio Salles-Filho, pro fessor do Departamento de Política Cien tífica e Tecnológica da Universidade Es tadual de Campinas (DPCT-Unicamp) e coordenador adjunto de Programas Es peciais da FAPESP, ressalta que iniciati vas como a do Wellcome Trust ainda são pontuais. “Em 2009, o Reino Unido ado tou um novo sistema de avaliação da pes quisa, o Research Excellence Framework [REF], que segue fazendo grande uso de indicadores bibliométricos, como o nú mero de citações, e é bastante baseado em avaliação por pares”, exemplifica. heterogeneidade
O espanhol Rodrigo Costas, pesquisador do Centro de Estudos para a Ciência e Tecnologia (CWTS) da Universidade de Leiden, na Holanda, chama a atenção para a heterogeneidade das fontes de indicadores da altmetria. “O Mendeley é basicamente um gerenciador de refe rências bibliográficas on-line utilizado 40 z dezembro DE 2016
No Facebook, as pesquisas que mais repercutem são as que têm apelo popular. Já o Twitter é bastante usado por cientistas por pesquisadores. O tipo de interação que observamos nessa plataforma é mui to diferente de como os conteúdos são compartilhados no Twitter e no Face book, que são mais propícios à disse minação de pesquisas de interesse do público em geral”, diz Costas. Para Fábio Castro Gouveia, pesquisador do Museu da Vida da Fundação Oswaldo Cruz (Fio cruz), mesmo entre o Facebook e o Twit ter há nuanças que devem ser levadas em consideração. “No Facebook, as pes quisas que repercutem mais são aquelas com apelo popular. Já o Twitter é o mais utilizado por pesquisadores”, afirma. Gouveia analisou, da perspectiva de métricas alternativas, os trabalhos pu
blicados por pesquisadores da Fiocruz na revista PLOS One. No total, foram examinados 416 artigos, publicados entre 2007 e 2015, utilizando o sistema da Alt metric, empresa fundada em 2011 pelo especialista em bioinformática britâni co Euan Adie, que oferece ferramentas para monitorar referências na internet a pessoas, corporações e artigos cientí ficos. Também foi selecionada aleatoria mente uma amostra de controle de 500 artigos publicados na mesma revista, para efeito de comparação. Quando ob servado o desempenho dos artigos em páginas no Facebook, notou-se que o percentual de menções nessa plataforma foi de 15,4% para trabalhos da Fiocruz e 14,8% para a amostra de controle. Já no caso do Twitter, 56,5% dos artigos da Fiocruz receberam ao menos uma menção, diante de 46,6% dos artigos da amostra de controle. Apenas 2,4% dos ar tigos da Fiocruz foram citados em blogs, ante 5,4% da amostra de controle. “O de sempenho altmétrico da Fiocruz pare ce acompanhar a tendência global. Por outro lado, impressionou o percentual de tuítes obtidos”, diz Gouveia. Em ou tro estudo publicado em fevereiro na revista Scientometrics, pesquisadores alemães utilizaram dados da Altmetric para identificar os países com o maior número de artigos compartilhados no Twitter. Os três primeiros no ranking são Dinamarca, Finlândia e Noruega. O Brasil aparece na 14ª posição (de um to tal de 22) à frente de países como China, Coreia do Sul, Índia e Japão. Segundo os autores, o Twitter é uma das redes sociais mais utilizadas por pesquisado res e, por isso, propõem a criação de um índice próprio para medir o impacto da produção nessa plataforma. Pesquisa concluída recentemente ana lisou os 100 artigos com maiores escores altmétricos, a partir da base de dados SciELO, utilizando a ferramenta da Alt metric. Em vez de analisar os dados dos artigos, João de Melo Maricato, profes sor da Universidade de Brasília (UnB), debruçou-se sobre os perfis das pessoas que compartilharam os trabalhos no Facebook e no Twitter. Os perfis foram organizados em dois grupos: impacto acadêmico, que concentrou pessoas que se identificam como pesquisadores em seus perfis, e impacto social, reunindo aqueles que não se identificam como pesquisadores. Maricato observou fortes
indícios de que o impacto medido pela altmetria ainda se concentra na relação entre cientistas. “Ainda assim, é inte ressante observar que 36% das ações de divulgação dos artigos foram feitas por perfis de não acadêmicos”, diz. Outro resultado do estudo mostra que os artigos com maiores pontuações alt métricas foram os das áreas de ciências da saúde (57%), seguidos pelos das ciên cias sociais aplicadas (14%), ciências bio lógicas (13%), ciências humanas (11%) e ciências agrárias (5%). Segundo Maricato, as métricas alternativas parecem ajudar na avaliação da produção científica de pesquisadores que atuam em áreas sem muita tradição na publicação de artigos em periódicos internacionais, como é o caso das ciências humanas e sociais apli cadas. “Nessas áreas, os pesquisadores publicam mais em livros ou capítulos de livros e tendem a se concentrar em assun tos locais ou nacionais”, explica Maricato.
O espectro da repercussão Como dois artigos científicos foram mencionados ou compartilhados em sites e redes sociais, segundo o serviço Altmetric.com Número de citações on-line
O artigo “Cosmic sculpture: A new way to visualise the cosmic microwave background”, publicado em outubro de 2016 no European Journal of Physics, propôs o uso da tecnologia em impressão 3D na representação de mapas astrofísicos
pontuação
O sistema desenvolvido pela Altmetric é hoje um dos mais utilizados por pesqui sadores que buscam gerar conhecimen to a partir de indicadores alternativos. A empresa desenvolveu um sistema de pontuação, o Altmetric Attention Score, que indica o volume de atenção que o trabalho recebeu em diversas platafor mas. Isso é medido pela quantidade de menções e compartilhamentos na inter net e ponderado pelo peso atribuído ao perfil que dissemina o artigo nas redes sociais. Por exemplo, uma menção na página de um jornal de grande circula ção pontua bem mais do que um tuíte. De acordo com Euan Adie, da Altme trics, uma alta pontuação não significa necessariamente que o artigo repercutiu de forma positiva, tampouco isso atesta sua qualidade. “Há casos de papers que foram muito comentados nas redes so ciais devido a erros ou fraudes detec tadas após a publicação”, lembra ele. Em outros casos, o artigo é amplamente disseminado na internet porque o as sunto tratado é polêmico. Em 2014, por exemplo, Philippe Grandjean, da Univer sidade Harvard, nos Estados Unidos, e Philip Landrigan, pesquisador do Cen tro Médico Monte Sinai, em Nova York, publicaram um controverso paper na revista The Lancet que obteve uma alta pontuação, segundo a metodologia da Altmetric. No artigo, os autores sugerem
Publicado em janeiro de 2012 na revista Ecology Letters, o artigo de revisão “Impacts of climate change on the future of biodiversity” apresenta cenários sobre a influência das mudanças climáticas no futuro das espécies
que a humanidade enfrenta uma pande mia silenciosa causada por neurotoxinas encontradas em produtos de uso diário, como cosméticos, capazes de afetar o desenvolvimento do cérebro e contri buir para o aumento da prevalência de doenças como autismo e dislexia. O paper foi recebido com alarme na imprensa e seus resultados foram contestados por pesquisadores e sociedades científicas.
As métricas alternativas ainda estão em desenvolvimento, mas já apontam ca minhos para mensurar melhor o impac to da ciência na sociedade. “A altmetria abre oportunidades para estudar novas perspectivas do acesso e da dissemina ção de publicações científicas em plata formas sociais na internet, alcançando audiências mais amplas”, conclui o pes quisador Rodrigo Costas. n pESQUISA FAPESP 250 z 41
ciência Saúde mental y
Cachimbo de metal usado para consumir crack, a versão fumada da cocaína 42 z dezembro DE 2016
O preço da abstinência Oferta de vale-compras ajuda dependentes de crack a evitar o consumo da droga Texto Ricardo Zorzetto Fotos Léo Ramos
E
m 2010, o psicólogo André Constantino Miguel decidiu tentar algo ousado. Aprovado na seleção para o doutorado, propôs à equipe que começava a integrar na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) a avaliação de uma técnica motivacional da psicologia que ainda não havia sido testada no Brasil nem em dependentes de crack. Ele retornava de dois anos de estudos na Itália, onde havia trabalhado com dependentes de heroína, e não se conformava com o fato de que essa estratégia – o manejo de contingências, útil para reduzir a dependência de álcool, tabaco e cocaína, segundo estudos feitos no exterior – ainda não fosse usada por aqui. Neste ano, ele concluiu sua missão ao publicar na revista Psychology of Addictive Behaviors os resultados do primeiro estudo avaliando o uso do manejo de contingências para auxiliar o tratamento da dependência do crack. Apenas mais recentemente adotado no tratamento da dependência de drogas, possivelmente por sua natureza polêmica, pESQUISA FAPESP 250 z 43
44 z dezembro DE 2016
Zanone Fraissat / Folhapress
o manejo de contingências consiste em oferecer tes ou no tratamento da dependência de heroína, uma recompensa sempre que uma pessoa exibe álcool, tabaco e cocaína aspirada, mas não crack. um comportamento considerado desejável. De agosto de 2012 a julho de 2014, Miguel e Essa estratégia, que pode ser usada em várias outros especialistas convidaram 65 dependentes outras situações, foi desenvolvida a partir do de crack encaminhados para tratamento no AMEtrabalho do psicólogo norte-americano Burrhus -Vila Maria a participar de um experimento. SeFrederic Skinner. Em experimentos com animais lecionados de modo aleatório, 32 receberam por de laboratório, ele havia demonstrado que a con- 12 semanas o tratamento padrão do ambulatório. sequência de uma determinaCada participante tinha direito da ação pode moldar um coma uma consulta individual por portamento. Por exemplo, ratos semana com um clínico-geral, que recebiam comida (consepsicólogo, psiquiatra, terapeuquência) ao apertar uma alata ocupacional ou enfermeiro e Com incentivo vanca (ação) tendiam a repetir poderia participar de atividades financeiro, esse ato. Nos anos 1960, outros em grupo para prevenir recaípsicólogos adaptaram o manejo das. Essas pessoas integraram 20% dos de contingências a tratamentos o chamado grupo de controle de dependência química, nos e eram encorajadas a coletar dependentes quais a meta a ser conquistada uma amostra de urina às seguncostuma ser a abstinência ou a das, quartas e sextas e entregápassaram ao adesão ao tratamento. -la para os pesquisadores submenos três O dependente que consegue meterem a testes que indicam passar um período sem cona presença de metabólitos da meses sem sumir a droga que o escraviza cocaína ou da maconha. recebe um incentivo, em ge“Toda vez que o participanconsumir crack ral financeiro. Por ficar de cara te submetia um exame negatilimpa, é remunerado com valevo para cocaína ou crack, sua -compras, ingressos para shows, abstinência era valorizada”, cinema ou teatro e até dinheiro. conta Miguel. “Se o resultado É uma maneira simples de estiindicava o consumo da droga, mular uma pessoa a repetir um comportamento. o grupo elogiava a adesão ao tratamento e o enMiguel encontrou uma oportunidade de medir corajava a tentar ficar abstinente.” a eficácia do manejo de contingências no dia a Os demais 33 integraram o grupo experimental, dia dos dependentes de crack, a cocaína fumada, ao qual, além do tratamento padrão, foi aplicado ao ser convidado a atuar no ambulatório médico o manejo de contingências. Eles tinham de ir ao de especialidades (AME) psiquiátricas da Vila AME-Vila Maria três vezes por semana para reaMaria, na zona norte de São Paulo. Até então, a lizar os testes de urina para cocaína e maconha e técnica havia sido adotada em tratamentos ex- passar pelo bafômetro para avaliar o uso de álcool. perimentais para aumentar a participação ou a Toda vez que entregavam uma amostra de uripermanência em terapias para obesidade e diabe- na livre de cocaína recebiam uma recompensa na
Atenção especializada: dependentes de crack em ala de desintoxicação (à esq.) do Cratod, onde também recebem tratamento odontológico
Consumidores e vendedores de crack na alameda Dino Bueno, no centro de São Paulo, onde as pedras são compradas por valores que variam de R$ 5 a R$ 10
forma de vale-compras. Os valores começavam em R$ 5, para o primeiro exame negativo, e aumentavam R$ 2 para cada teste subsequente em que não fosse identificado consumo da droga, até chegar ao máximo de R$ 15 por exame. Mais R$ 2 eram acrescentados se, além de abstinente de cocaína, o usuário também não tivesse consumido bebidas alcoólicas. Quem apresentava os três exames semanais negativos para cocaína recebia R$ 20 de bônus. Também havia uma premiação no valor de R$ 10 se os três testes de urina da semana não indicassem uso de maconha. Desse modo, quem permanecesse as 12 semanas completamente limpo recebia um total de R$ 942. Se houvesse uma recaída – e elas são comuns no tratamento das dependências químicas –, o participante não perdia o dinheiro acumulado. Em vez disso, deixava de receber no momento do teste positivo e o valor retornava aos R$ 5 iniciais no próximo exame negativo. Das 33 pessoas do grupo dos vale-compras, 7 (21,2%) ficaram as 12 semanas sem usar crack, relatam os pesquisadores na Psychology of Addictive Behaviors. Ninguém do grupo de controle se manteve abstinente durante todo o estudo – só uma (3%) permaneceu oito semanas sem consumir crack, enquanto 9 (27%) das que receberam
o estímulo financeiro passaram dois meses abstêmias. Quem ganhou vale-compras, de modo geral, também consumiu menos álcool e maconha. “À medida que conseguiam manter a abstinência e concordavam em acumular os prêmios para receber valores mais altos, alguns participantes usavam os vales para comprar cesta básica para a mãe ou presente para o filho”, lembra Miguel. Segundo a psicóloga Clarice Madruga, professora da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas (Uniad) da Unifesp e coautora do estudo, a aceitação de acumular os prêmios com o prolongamento da abstinência indica que essas pessoas começaram a suportar o adiamento da gratificação, perdido com a dependência. “O consumo de crack e outras drogas proporciona uma recompensa imediata, que pode ser uma sensação passageira de bem-estar ou alívio, à qual o corpo se habitua”, explica. “É preciso um novo condicionamento para estender o prazo de gratificação.” Seis meses após o fim do experimento, os pesquisadores ofereceram às pessoas do grupo de controle a possibilidade de serem submetidas ao manejo de contingências. Outra vez, cerca de 20% concluíram o tratamento sem consumir crack. Ainda que só uma proporção pequena tenha conseguido ficar sem crack, Miguel lembra que pESQUISA FAPESP 250 z 45
Oficina de culinária ajuda a criar vínculos com quem ainda não se trata e a capacitar os abstinentes na Unidade Helvétia do programa Recomeço
coordena o Recomeço, programa de enfrentamento ao crack e outras drogas criado em 2013 pelo governo do estado de São Paulo. “Espero que, em breve, possamos ver isso acontecendo na Cracolândia.” a Espiral do vício
isso foi possível em uma situação de vida real, com exposição a riscos, diferente da que ocorre nas internações. “Essas pessoas conseguiram isso mesmo estando no olho do furacão, com a pedra ao lado”, ressalta o pesquisador, que desenvolveu o trabalho sob a orientação do psiquiatra Ronaldo Laranjeira, especialista no tratamento da dependência de álcool e drogas e professor na Unifesp. A eficácia do manejo de contingências em diferentes estágios do tratamento da dependência é hoje reconhecida pelo Instituto Nacional de Abuso de Drogas (Nida) dos Estados Unidos, um dos principais centros internacionais de estudos sobre abuso de substâncias, que recomenda seu uso. “Recentemente estive em uma reunião no Nida e ninguém mais questiona a efetividade da técnica, adotada em mais de 60% dos serviços norte-americanos de tratamento da dependência de álcool e drogas”, conta Laranjeira. “O debate atual é como implementá-la de modo adequado.” O manejo de contingências não é, por si só, um tratamento. Está mais para uma ferramenta psicológica destinada a estimular a adoção de comportamentos saudáveis ou desejáveis. “Essa técnica poderia ser implantada desde as ruas até as internações”, afirma Laranjeira, que 46 z dezembro DE 2016
Cracolândia é o nome pelo qual se tornou conhecida uma área de uns poucos quarteirões no bairro dos Campos Elíseos, região central de São Paulo. Ali, um público que varia de 600 a mil pessoas, dependendo da hora do dia, fuma pedras de crack pelas ruas – compradas lá mesmo por algo entre R$ 5 e R$ 10. Sujas e com roupas rasgadas, elas caminham muitas vezes descalças, com os pés machucados e feridas pelo corpo que não cicatrizam (analgésicos misturados à droga as impedem de sentir a dor). A redução da imunidade, consequência do uso continuado da cocaína, explica o número elevado de casos de tuberculose entre essas pessoas. Já a prostituição e a prática de sexo inseguro em troca de algumas pedras elevam a frequência de doenças sexualmente transmissíveis, como sífilis e Aids, bem mais comum entre os frequentadores da Cracolândia do que no resto da população. Foi nessa região que o crack surgiu no Brasil no final dos anos 1980, antes de se espalhar pelo país. Tanto a cocaína aspirada (em pó) como a fumada (crack) agem de modo semelhante no cérebro: suas moléculas, de modo indireto, aumentam a concentração do neurotransmissor dopamina nas áreas ligadas à motivação e à recompensa. O resultado é uma sensação de extrema euforia e bem-estar, que, no entanto, é fugaz.
Uma das principais diferenças entre a cocaína aspirada e a fumada está na velocidade de absorção, que influencia a rapidez com que a droga chega ao cérebro e o tempo que permanecerá ativa, fatores determinantes para o poder de gerar dependência. Ao cheirar uma carreira de coca, a droga é absorvida lentamente pela mucosa nasal, entra na corrente sanguínea e é parcialmente processada pelo fígado antes de alcançar o cérebro. Passam-se alguns minutos até começarem os efeitos, que podem durar mais de meia hora. Já com o crack, tudo é mais rápido e intenso. Tão logo a fumaça chega aos pulmões, a droga passa para o sangue e é levada para o cérebro em concentrações mais elevadas. O efeito é quase imediato: há uma explosão de prazer e euforia, que desaparece em minutos e leva a uma depressão intensa. Aí começam os problemas. Em busca da sensação de bem-estar, fuma-se outra pedra. Com o tempo, as células cerebrais tentam alcançar o reequilíbrio reduzindo a quantidade de dopamina disponível. Então, torna-se necessário fumar mais para obter o mesmo
Realizados duas vezes por dia, os ensaios da bateria Coração Valente, do programa Recomeço, inserem ritmo e organização no dia a dia dos dependentes
resultado. Com o consumo contínuo, a cocaína passa a ser necessária para manter os níveis de dopamina a que o organismo se habituou. Sem a droga, surgem sintomas desagradáveis: agitação, ansiedade, dificuldade de concentração, explosões de raiva e depressão. Nesse ponto, fuma-se não mais pelo prazer, mas para evitar o sofrimento. jovens, pretos e pobres
Um levantamento nacional sobre o consumo de drogas, feito em 2012 sob a coordenação de Clarice Madruga e Ronaldo Laranjeira, estimou que 1,5% dos brasileiros com mais de 14 anos (quase 2,2 milhões de pessoas) havia consumido crack ao menos uma vez na vida. Uma proporção menor (0,8% ou 1,2 milhão de brasileiros) tinha usado a droga no ano anterior à pesquisa, um indicador de consumo atual. Esse dado torna o Brasil um dos países com maior número de consumidores no mundo. Nos Estados Unidos, onde a cocaína e o crack vêm sendo substituídos por drogas sintéticas, os usuários atuais somam 0,3% da população maior de 12 anos, totalizando 8 milhões. Também em 2012 o psiquiatra Francisco Inácio Bastos e a estatística Neilane Bertoni, ambos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, traçaram o perfil dos usuários de crack. Os pesquisadores foram às cracolândias e entrevistaram, em todos os estados brasileiros, 7,3 mil pessoas que faziam uso frequente de crack. Eles verificaram que as cracolândias são ocupadas por jovens pretos e pobres: 78% eram homens, 85% tinham entre 18 e 40 anos, 80% eram pretos ou pardos e 58% só haviam estudado até a 8a série do ensino fundamental. Quatro de cada 10 moravam nas ruas, 65% trabalhavam por conta própria, 10% cometiam furtos ou roubos e 7% se prostituíam para conseguir a droga, que consumiam havia bastante tempo (6,5 anos, em média) e em grandes quantidades (13 pedras por dia). Na cidade de São Paulo, dois programas – o Recomeço, do governo estadual, e o De Braços Abertos, da prefeitura – tentam auxiliar os usuários a abandonar o consumo de crack. Criado em 2013, o programa estadual inaugurou em meados do ano seguinte a Unidade Recomeço Helvétia, um dos pilares de sua atuação, onde os pesquisadores pretendem adotar em breve o manejo de contingências. Instalada em um prédio de 11 andares no número 55 da alameda Helvétia, essa unidade oferece aos usuários acesso a um centro de convivência, no qual é possível tomar banho, cortar os cabelos, receber cuidados especiais para os pés machucados, fazer ginástica e participar de grupos terapêuticos de culinária e música. Em dois dos andares funciona uma enfermaria de desintoxicação com 21 leitos, destinada às pessoas que aceitam passar um período internadas para tentar se afastar do crack. Quem já pESQUISA FAPESP 250 z 47
No programa De Braços Abertos, as oficinas de pintura, costura e conserto de bicicletas servem de espaço para aprendizagem profissional em que os participantes recebem cerca de R$ 15 por dia de trabalho
superou essa fase tem a chance de tentar uma das 30 vagas para passar uma temporada nos apartamentos da moradia monitorada, situados no mesmo prédio, nos quais a única exigência é manter-se abstêmio. Esse sistema de acompanhamento segue um modelo já adotado na Inglaterra e nos Estados Unidos e tem como meta iniciar o processo de reinserção social para que essas pessoas consigam uma renda e um lugar para viver fora da região. Antes de chegar à Unidade Helvétia, as pessoas da Cracolândia que aceitam o tratamento são encaminhadas para o Centro de Referência de Tabaco, Álcool e Outras Drogas (Cratod), em frente ao Parque da Luz, a uns 900 metros dali. Por ser um centro de atenção psicossocial de alta complexidade em álcool e drogas, o Cratod oferece a participação em grupos terapêuticos, atendimento odontológico, encaminhamento para comunidades terapêuticas e internação. De abril a junho deste ano, o Cratod atendeu cerca de 2,6 mil usuários de crack, encaminhados para diferentes tipos de tratamento: 42% para atendimento ambulatorial; 14% para comunidades terapêuticas; e 39% para internação para a desintoxicação. “O esforço de nossos serviços é ajudar o paciente a atravessar os primeiros 90 dias de abstinência”, conta o psiquiatra Marcelo Ribeiro, professor da Unifesp e diretor técnico do Cratod. comida e abrigo
Na rua Helvétia, em frente ao prédio do Recomeço, funciona uma das unidades do programa De Braços Abertos, criado no início de 2014 pela Prefeitura de São Paulo. Sob uma ampla cobertura metálica instalada em um terreno do município, os usuários de crack têm acesso a banheiro, alimentação e um espaço para descansar. É uma espécie de porta de entrada de um serviço pensado exclusivamente sob 48 z dezembro DE 2016
o princípio da redução de danos, que nada exige em troca de quem aceita participar, nem mesmo a abstinência. “O que embasa a redução de danos é a constatação de que boa parte das pessoas que têm problemas com drogas não consegue ficar abstinente”, afirma o psiquiatra Leon Garcia, médico do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (IPq-USP) e um dos coordenadores da área da saúde do programa De Braços Abertos. No tratamento da dependência química, a estratégia de redução de danos consiste em substituir aos poucos o uso de droga muito nociva por outra menos danosa. Para o crack, porém, não há um substituto eficiente. Por essa razão, segundo Garcia, o De Braços Abertos apostou em oferecer alimentação, segurança e abrigo para ajudar os dependentes a sair do mundo das drogas – o programa Recomeço, por sua vez, adota a redução de danos para evitar a gravidez indesejada, oferecendo implantes de anticoncepcionais. “A exclusão social e a miséria precedem o uso do crack”, explica o psiquiatra Dartiu Xavier da
O tratamento exige a adoção de múltiplas abordagens para ser eficaz e produzir efeitos duradouros
Silveira, também professor da Unifesp, onde há 30 anos coordena um programa de tratamento de dependência química. Considerado um dos introdutores da redução de danos no país, Silveira participou da formulação inicial do De Braços Abertos. “Na Cracolândia, a droga é consequência, e não a causa do problema”, afirma. Cerca de 500 pessoas atualmente participam – há outras 200 na fila – do programa municipal, que, além de alimentação, moradia e trabalho remunerado, oferece também oficinas de capacitação. Recentemente, a equipe do De Braços Abertos concluiu um levantamento no qual avaliou o padrão do uso de drogas. Os dados indicam que, depois de seis meses a um ano no programa, 88% dos participantes tinham reduzido o consumo de crack, 85% tinham diminuído o de outras drogas e 83% haviam iniciado o tratamento para outros problemas de saúde, como sífilis e tuberculose, frequentes por ali. Cerca de metade também tinha retomado o contato com familiares. “Quando entraram para o programa, 14% das pessoas usavam de 80 a 100 pedras de crack por semana, hoje essa proporção é de 2%, já o número que consumia de 1 a 10 pedras passou de 22% para 47%”, conta a psicóloga Maria Angélica Comis, assessora de política de drogas do município e membro da coordenação do De Braços Abertos.
Aparentemente, nenhuma estratégia alcança índices elevados de sucesso, em especial se aplicada sozinha. Durante a avaliação do manejo de contingências, o próprio André Miguel constatou que a técnica não funcionava para todos. “Cerca de 30% das pessoas que recebiam esse tipo de intervenção nunca entregaram uma amostra de urina livre de cocaína”, conta. Seus efeitos também parecem ter uma duração limitada. Estudos de meta-análise (que combinam os dados de várias pesquisas) do manejo de contingências para tratar a dependência de cocaína sugerem que três meses após o fim do tratamento 67% das pessoas voltam a consumir a droga. Uma forma de prolongar a abstinência seria aumentar a duração do manejo de contingências, que, além de usado para induzir a abstinência, pode ser adotado para estimular a reconexão com a família e a adesão ao tratamento, como já é feito no Canadá com os dependentes de heroína. “A fase inicial da saída de uma dependência pode gerar muita frustração, porque há muitos danos a serem reparados”, conta Clarice Madruga. Quem investiga dependência química e formas de combatê-la sabe que, de modo geral, o tratamento exige a adoção de múltiplas abordagens para ser eficaz e produzir efeitos duradouros. “No mundo ideal, deveriam ser usadas várias estratégias”, explica o psiquiatra Frederico Duarte Garcia, coordenador do Centro de Referência em Drogas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Inicialmente, é preciso estabelecer um vínculo com o dependente e motivá-lo a entrar na cadeia de tratamento.” O tratamento pode incluir medidas que vão da redução de danos à internação, além da participação em grupos como os dos alcoólicos anônimos (AAs) e narcóticos anônimos (NAs). “O objetivo”, diz o pesquisador da UFMG, “deve ser reestruturar a vida do indivíduo entre uma recaída e outra e promover a sua reinserção na sociedade”. n
Projetos 1. Avaliação de eficácia do manejo de contingências no tratamento ambulatorial padrão para indivíduos com diagnóstico de dependência por crack (nº 2013/04138-7); Modalidade Bolsa no Brasil – Doutorado Direto; Beneficiário André de Queiroz Constantino Miguel; Pesquisador responsável Ronaldo Ramos Laranjeira (Unifesp); Investimento R$ 93.378,54. 2. Avaliação de eficácia do manejo de contingências no tratamento ambulatorial padrão para indivíduos com diagnóstico de dependência por crack (nº 2011/01469-7); Modalidade à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Ronaldo Ramos Laranjeira (Unifesp); Investimento R$ 80.870,99.
Artigos científicos MIGUEL, A. Q. et al. Contingency management is effective in promoting abstinence and retention in treatment among crack cocaine users in Brazil: A randomized controlled trial. Psychology of Addictive Behaviors. v. 30 (5). p. 536-43. Ago. 2016. ABDALLA, R. et al. Prevalence of cocaine use in Brazil: Data from the II Brazilian National Alcohol and Drugs Survey. Addictive Behaviors. 2014. BASTOS, F. I. e BERTONI, N. (org.). Pesquisa nacional sobre o uso de crack. Rio de Janeiro: Editora ICICT/Fiocruz. 2014.
pESQUISA FAPESP 250 z 49
cardiologia y
Energia para o coração Aumento de açúcar no sangue pode auxiliar recuperação após infarto Everton Lopes Batista
50 z dezembro DE 2016
SCIENCE PHOTO LIBRARY
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ma das possíveis consequências de um infarto do miocárdio é a resistência transitória à insulina, uma alteração que leva ao aumento nas concentrações de açúcar (glicose) na corrente sanguínea. Esse efeito metabólico costuma ser visto negativamente pelos médicos: o quadro normalmente está associado ao risco de desenvolver diabetes e a uma maior mortalidade. Um novo estudo indica que pode haver uma solução onde antes parecia existir um problema. Os resultados mais recentes do grupo do médico Andrei Sposito, cardiologista e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), indicam que a resistência à insulina seria essencial para fornecer mais energia ao coração, auxiliando na recuperação do órgão. Os pesquisadores da Unicamp coletaram amostras de sangue de cerca de 500 pessoas atendidas no Hospital de Base de Brasília, em dois momentos: nas primeiras 24 horas após o infarto e outra vez cinco dias depois. Nos pacientes cuja resistência à insulina aumentou inicialmente e depois diminuiu de forma gradual e moderada após cinco dias, a evolução do quadro clínico foi melhor e a recuperação, mais rápida. Mas a alteração não ocorreu em todos os pacientes, de acor-
evolução do quadro clínico
Risco de complicações cardiovasculares
A relação entre a mudança na resistência à insulina e a mortalidade não é linear
Nos primeiros dias após um infarto, os pacientes que se recuperam melhor são os que mantêm alta glicemia
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se biológico de proteger o coração, fornecendo mais glicose e controlando a sua disponibilidade por meio da resistência à insulina”, afirma Sposito. De acordo com ele, a pesquisa abre novas possibilidades, cujos mecanismos deverão ser elucidados por estudos futuros. Para a médica Maria Lúcia Corrêa Giannella, endocrinologista e professora na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), que não participou da pesquisa, a hipótese de que a resistência à insulina possa ter ação benéfica é plausível. Mas ela reserva a possibilidade de ser um fenômeno coincidente, sem relação de causa e efeito. “A resistência à insulina surge em situações de estresse intenso, como um infarto do miocárdio ou infecções muito fortes”, explica. Segundo ela, nesses momentos são liberados hormônios que se contrapõem à ação da insulina, como o glucagon e o cortisol, conhecidos como “hormônios do estresse”. DIAGNÓSTICO TARDIO
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redução da resistência à insulina
Fonte Filipe azevedo moura / unicamp
do com os resultados descritos em artigo ainda não publicado, que integra a tese de doutorado do médico Filipe Azevedo Moura, do grupo de Sposito, defendida em maio deste ano. Em algumas pessoas, a resistência à insulina aumentava subitamente e em seguida diminuía muito rápido, ou aumentava muito pouco e se mantinha assim por vários dias. Nesses casos, considerados extremos, a evolução do quadro clínico era pior e o risco de óbito crescia. “Os dados apontam que não há relação linear entre mortalidade e aumento da resistência à insulina”, diz Sposito. O maior risco de complicações cardiovasculares estava igualmente distribuído nos dois extremos de um gráfico em forma de U (acima), no qual a redução da resistência à insulina nos primeiros dias após o infarto é muito alta ou muito baixa. A hipótese do cardiologista é de que essa seja uma maneira que o corpo encontrou para suprir o coração com energia para a própria recuperação. O infarto resulta de um entupimento por placas de gordura que bloqueiam a chegada de sangue ao coração. Com o fluxo reduzido, falta ao órgão oxigênio para produzir ácidos graxos, o combustível ideal para que continue a bater. O jeito é usar glicose. “Esse mecanismo parece ser uma função do metabolismo. Há um interes-
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A relação direta entre o diabetes e o risco de problemas cardiovasculares já foi demonstrada em uma profusão de estudos, inclusive do grupo da Unicamp. Um artigo publicado por Sposito em 2013 na revista Current Medical Research and Opinion em parceria com colegas de sua instituição e da Universidade de Brasília (UnB) apontou que a taxa de mortalidade como consequência de infarto era duas vezes maior entre diabéticos do que não diabéticos. Para os portadores não diagnosticados com a doença, que por isso não fazem tratamento, o risco de óbito chega a ser até quatro vezes maior. “Mesmo o tratamento com medicamentos mais simples, como os distribuídos pelo SUS [Sistema Único de Saúde], reduz pela metade o risco de morte”, diz Sposito. Maria Lúcia lembra que o diabetes tipo 2, que representa cerca de 90% do total de casos da doença, começa de maneira sutil e assintomática, e por isso o diagnóstico pode acontecer com vários anos de atraso. Um estudo de 2014 da International Diabetes Federation (Federação Internacional do Diabetes) estimou que, apenas no Brasil, cerca de 3,2 milhões de diabéticos não estão diagnosticados. “É importante estar atento aos fatores de risco para o diabetes, para que o diagnóstico seja feito e o tratamento adequado instituído. Muitas pessoas só descobrem que têm a doença quando procuram atendimento médico para um infarto agudo do miocárdio e as complicações podem ser fatais”, alerta a médica. n
Artigo científico FIGUEIREDO, V. N. et al. Diabetes mellitus unawareness is a strong determinant of mortality in patients manifesting myocardial infarction. Current Medical Research and Opinion. v. 29, p. 1423-27. 2013.
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Imunologia y Foto de microscopia de baço de camundongo: os pontos coloridos evidenciam as células dendríticas
Equipe de Minas Gerais detalha os mecanismos que disparam a inflamação intensa associada à malária Ricardo Aguiar e Carlos Fioravanti
52 z dezembro DE 2016
fotos Isabella Hirako / Fiocruz
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ma equipe da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Belo Horizonte, Minas Gerais, detalhou os mecanismos pelos quais as células de defesa podem agir de modo inverso a sua função primordial de proteger o organismo. Na malária cerebral, ao combater a multiplicação dos protozoários do gênero Plasmodium no sistema nervoso central, essas células causam um intenso processo inflamatório que agrava a infecção, provoca hemorragias e frequentemente leva à morte. Coordenado pelo imunologista Ricardo Gazzinelli, o trabalho elucida a origem de um dos tipos de células de defesa – as células dendríticas, que disparam a inflamação no sistema nervoso –, expõem novas rotas de defesa do organismo e podem ajudar a entender melhor o desenvolvimento de doenças associadas à neuroinflamação, como a doença de Alzheimer e a esclerose múltipla. Por meio de biomarcadores específicos e de experimentos com camundongos, a equipe de Minas esclareceu a origem das células dendríticas associadas à malária cerebral e peculiaridades da inflamação intensa que a caracteriza. De acordo com esse estudo, as células dendríticas que iniciam a inflamação no cérebro são formadas a partir de outro tipo de glóbulo branco do sangue, os monócitos, em um órgão secundário de defesa, o baço. Segundo Gazzinelli, esse caminho é incomum, porque normalmente os monócitos, produzidos em grande quantidade na medula óssea, são recrutados para o campo de batalha – ou sítio de infecção – e ali é que se transformam em células dendríticas, que reconhecem os microrganismos invasores e migram para os linfonodos (gânglios linfáticos), onde ativam outras células de defesa, que por sua vez vão combater os
micróbios. “Na malária, os monócitos já alojados no baço se diferenciam em células dendríticas e depois é que migram para o cérebro”, diz o imunologista. Depois de vencer a chamada barreira hematoencefálica, que isola o sistema nervoso central dificultando a passagem de células do sistema imune e mesmo medicamentos, as células dendríticas chegam ao sistema nervoso central e produzem moléculas conhecidas como quimiocinas CXCL9 e CXCL10, que atraem outro tipo de glóbulos brancos do sangue, os linfócitos T ativados. Estimulados a combater os Plasmodium alojados em hemácias aderidas às paredes dos vasos sanguíneos, os linfócitos causam uma inflamação exacerbada que contribui para o rompimento dos pequenos vasos. Como a barreira hematoencefálica também se desfaz, mais células dendríticas e linfócitos T se deslocam para os tecidos do sistema nervoso central. Segundo Gazzinelli, a consequência dessa mobilização das células de defesa contra o parasita é uma ampliação do processo inflamatório, que provoca extensas lesões teciduais e os sinais clínicos característicos dessa forma de malária, como a paralisia dos membros inferiores, perda de equilíbrio, convulsões e morte. “Um processo inflamatório similar é observado em outros órgãos como pulmão e placenta em gestantes, também atingidos pela infeção causada pelo Plasmodium, mas a forma mais grave da malária é a cerebral por causa das funções e da sensibilidade dos tecidos do sistema nervoso central”, explica a biomédica Isabella Hirako, autora principal do trabalho, detalhado em um artigo publicado em outubro na Nature Communications. Segundo o biólogo Marco Ataíde, que também esteve à frente desse artigo, atualmente na Universidade de Bonn, Alemanha, o estudo ajuda a compreender os mecanismos de infecções diversas causadas por vírus ou outros protozoários, como o da leishmaniose, que também poderiam apresentar essa mesma rota das células de defesa. Os pesquisadores acreditam que a caracterização do processo autodestrutivo mediado pelas células dendríticas derivadas de monócitos pode esclarecer melhor também a origem e evolução de doenças degenerativas causadas por pro-
Medicamentos que bloqueiam o receptor CCR5 e previnem a infecção por HIV poderiam ser testados contra as formas graves da malária
cessos inflamatórios como o Alzheimer e as respostas autoimunes, pelas quais o organismo destrói o próprio tecido nervoso, como a esclerose múltipla. Possibilidade Terapêutica
“Se esse processo for confirmado em seres humanos, talvez seja possível interferirmos no processo de diferenciação ou migração destas células dendríticas derivadas de monócitos, para aumentar a resistência a agentes infecciosos, ou prevenir uma reação inflamatória deletéria, como parece ser o caso da malária cerebral e das doenças autoimunes”, diz Gazzinelli, que coordena o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Vacinas e participa de um convênio para a instalação de uma unidade da Fiocruz no campus da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP). Todo ano, cerca de 200 milhões de pessoas são infectadas pelo Plasmodium falciparum, espécie mais virulenta causadora da malária – no Brasil a espécie predominante é a P. vivax. A forma mais grave, a malária cerebral, causa aproximadamente 570 mil mortes por ano, a maioria de crianças da África com menos de 5 anos, e é tratada apenas com dro-
gas de uso geral contra o Plasmodium. A equipe da Fiocruz pode ter encontrado novas possibilidades terapêuticas ao verificar que as células dendríticas que vão para o cérebro apresentam um tipo específico de receptor de membrana externa, conhecido como receptor CC-quimiocina 5 (CCR5). Em camundongos geneticamente modificados que não expressam o CCR5, a quantidade de células dendríticas no cérebro após a infeção causada pelo Plasmodium era drasticamente menor que a de animais normais, chegando próxima a zero, ocasionando uma menor mobilização de linfócitos T. Em consequência, os animais do primeiro grupo apresentaram uma inflamação menos intensa e eram mais resistentes à malária cerebral. Esse mesmo receptor é a porta de entrada do vírus HIV, o causador da Aids, nas células do sistema imune. “Medicamentos que bloqueiam o receptor CCR5 previnem a infecção celular com HIV e são utilizados rotineiramente no tratamento da Aids. Como não apresentam grandes efeitos colaterais, poderiam ser avaliados como medicamentos adjuvantes contra as formas graves da malária”, sugere Gazzinelli. Para a bióloga Maria Regina Lima, pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) que estuda a diferenciação de células de defesa e seu papel no combate a doenças como malária, Chagas e tuberculose, o esclarecimento do mecanismo da malária cerebral pode ajudar a entender melhor o próprio sistema imune, responsável pela defesa do organismo contra tumores, microrganismos e toxinas. “O trabalho aumenta o conhecimento sobre o papel danoso das células de defesa, mas pode também abrir portas para novos estudos sobre o papel protetor de monócitos e das células dendríticas e ajudar a esclarecer a resposta imune, tanto da malária cerebral como de outras doenças”, diz ela. n
Artigos científicos HIRAKO, IC et al. Splenic differentiation and emergence of CCR5+ CXCL9+ CXCL10+ monocyte-derived dendritic cells in the brain during cerebral malaria. Nature Communications. v. 7, n. 13277, p. 1-19. 2016. GAZZINELLI, RT et al. Innate sensing of malaria parasites. Nature Reviews Immunology. v. 14, p. 744-57. 2014.
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GEOLOGIA y
Erupções preciosas Riqueza mineral da Amazônia pode ter origem em vulcões que existiram bilhões de anos atrás Everton Lopes Batista
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erca de 4 mil quilômetros separam a sala repleta de caixas com fragmentos de rochas dentro da Universidade de São Paulo (USP) do local de onde elas foram retiradas – a Floresta Amazônica. Caetano Juliani, o geólogo que faz do pequeno espaço no Departamento de Geologia Sedimentar e Ambiental, no Instituto de Geociências, seu local de trabalho, toma um pedaço de rocha na mão medindo não mais do que 15 centímetros de comprimento, que cintila com pequenos pontos prateados. “Pode tocar. Isso aqui brilhando é molibdênio”, diz o pesquisador, apontando para o elemento usado na confecção de ligas metálicas muito resistentes, com boa demanda no mercado internacional. Desde 1998 o geólogo pesquisa feições que poucos brasileiros associam ao norte do país: os vulcões que existiram no território onde hoje está a Amazônia (ver Pesquisa FAPESP nº 174). O festival de
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erupções começou há cerca de 2 bilhões de anos, na era geológica conhecida como Paleoproterozoica, mas suas consequências perduram até hoje. A região presenciou eventos intensos de diferentes formas de vulcanismo, sobrepostos ao longo de milhões de anos, que presentearam o solo de uma área estimada em cerca de 1,2 milhão de quilômetros quadrados com depósitos de ouro e diversas ocorrências de cobre e molibdênio trazidos das profundezas da Terra à superfície pela lava. “Essa foi provavelmente a maior área de vulcanismo com tamanha intensidade no mundo”, afirma o geólogo. Recentemente o grupo da USP estuda vestígios de vulcões carbonatíticos, que dão origem a rochas com minerais como calcita e dolomita, no município de São Félix do Xingu, no Pará. A região está na parte sul do cráton amazônico, uma área tectonicamente estável nos últimos 800 milhões de anos que começou a se formar há cerca de 3 bilhões de
anos. Esses vulcões, de um tipo raro no mundo, lançavam magma associado a grandes depósitos de fósforo, elemento utilizado na produção de fertilizantes para a agricultura. De acordo com Juliani, os vulcões amazônicos foram formados por diferentes processos entre 2 e 1,87 bilhão de anos atrás. Até os anos 1980 acreditava-se que o vulcanismo na região havia sido apenas aquele típico de regiões estáveis, com poucos terremotos e vulcões – chamado de anorogênico. Com a obtenção de mais material e novos estudos, ficou claro que essas formações foram mais complexas, acrescentando ao pacote o vulcanismo orogênico, característico de áreas instáveis, semelhantes às dos Andes, às do México e às do oeste dos Estados Unidos. A água quente liberada durante a consolidação do magma dá origem às mineralizações conhecidas como hidrotermais, estudadas pelo grupo de Juliani. Essas alterações na região sul do Pará
Rochas com pontos brilhantes de molibdênio, além de cobre e outros minerais em menor quantidade
estão descritas em artigo publicado em abril deste ano no Journal of Volcanology and Geothermal Research. Para que o processo aconteça, é necessário que uma fonte transporte os metais para mais perto da superfície, papel desempenhado pelo vapor-d’água que acompanha o magma. A criação de um depósito mineral, como de fósforo ou de molibdênio, pode levar mais de 500 mil anos, nos quais os metais são carregados para próximo à superfície, onde ficam acumulados. Mas isso só ocorre se as condições geológicas do local permitirem. “Não conhecemos o tamanho dos depósitos na Amazônia. O que sabemos é que os metais certamente foram transportados e, pelas características mapeadas, temos fortes indícios de que houve acumulações nas regiões entre o rio Tapajós e o rio Xingu”, afirma.
léo ramos
Na estrada
A rotina dos pesquisadores na região é pesada, com grandes dificuldades de acesso a certas partes da floresta. O material que precisa ser transportado de volta ao laboratório para análise são pedaços de rochas e, para não correr o risco de perder fragmentos no caminho ou deixar algo para trás no aeroporto, Juliani conta que muitas vezes preferiu fazer o longo trajeto de caminhonete. O potencial da região para a descoberta de depósitos de minérios, reafirmado com os recentes estudos, é uma das motivações, embora seja necessário cuidado para evitar danos excessivos à floresta. “Não existem novas descobertas de recursos minerais suficientes para manter
A região presenciou eventos intensos de vulcanismo que presentearam o solo com ouro e outros metais
a produção de quase tudo que é utilizado nos dias de hoje, incluindo os equipamentos eletrônicos. Encontrar novas jazidas é uma necessidade para manter o bem-estar da sociedade”, diz o geólogo. “Por causa da dificuldade de acesso, pouca gente se interessa em fazer pesquisa como essa na região”, afirma Carlos Marcello Dias Fernandes, geólogo do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Pará, que desenvolve pesquisas com Juliani. Segundo ele, nenhum outro lugar no mundo apresenta vestígios de eventos vulcânicos tão antigos com tão boa preservação. “Nem todos os locais mapeados se tornarão minas para ser exploradas economicamente, mas esses estudos nos dão informações
importantes sobre como a Amazônia se formou. É uma questão para a qual ainda faltam muitas respostas”, diz. Fernandes destaca ainda o trabalho em conjunto que geólogos têm estabelecido com mineradoras brasileiras e estrangeiras na região. Os cientistas ajudam as empresas a encontrar os locais onde mais provavelmente estão os depósitos, e as companhias podem iniciar a sondagem, cara demais para os pesquisadores bancarem sozinhos. Cada metro de sondagem – perfuração das rochas para coleta de amostras – custa mais de R$ 2 mil e algumas delas podem atingir mais de 300 metros de profundidade. Em contrapartida, os geólogos ganham novas e melhores informações do que está debaixo da terra e foi encoberto pelo tempo para continuar a jornada e, quem sabe, desvendar novos mistérios dos ancestrais vulcões amazônicos. n
Artigo científico CRUZ, R. S. et al. Paleoproterozoic volcanic centers of the São Félix do Xingu region, Amazonian craton, Brazil: Hydrothermal alteration and metallogenetic potential. Journal of Volcanology and Geothermal Research. v. 320, p. 75-87. jan 2016.
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GEOFÍSICA y
O elemento subterrâneo Simulações sugerem que parte considerável do carbono do planeta estaria escondida
Crosta
nas profundezas da Terra Igor Zolnerkevic
Litosfera Manto superior Zona de transição
0 km 410 km 660 km
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álculos de um trio de físicos teóricos da Universidade de São Paulo (USP) forneceram uma nova pista que pode ser útil para desvendar um dos principais enigmas sobre a composição e o funcionamento do interior da Terra: onde estão as reservas ultraprofundas que contêm 90% do carbono do planeta? As simulações computacionais feitas por Michel Marcondes e Lucy Assali, do Instituto de Física (IF), e João Francisco Justo Filho, da Escola Politécnica, sugerem que alguns desses depósitos de carbono poderiam estar escondidos em manchas subterrâneas com cerca de mil quilômetros (km) de extensão e 100 km de espessura por onde as ondas sísmicas viajam relativamente mais devagar. Essas manchas, chamadas zonas de baixas velocidades sísmicas ou simplesmente ULVZ (Ultra Low Velocity Zones), encontram-se sobretudo no segmento final de uma camada da Terra conhecida como manto inferior, de profundidade entre 660 km e 2.890 km (ver figura). De acordo com um estudo publicado pelos brasileiros em setembro na revista científica Physical Review B, o elemento carbono tende a não se misturar como uma impureza no meio dos depósitos de minerais à base de silício, as chamadas perovskitas silicáticas, predominantes no manto inferior. Ao invés de se unir, ele se separa das perovskitas silicáticas e forma seus próprios depósitos de minerais, como a magnesita (MgCO3) e o carbonato de cálcio (CaCO3).
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Manto inferior
2.390 km 2.890 km
Núcleo externo
5.150 km
Núcleo interno
6.370 km
Amostra de magnesita, mineral carbonático que parece se originar no manto inferior
O carbono profundo estaria concentrado nos últimos 500 km do manto inferior
Fonte adaptado de Robert M. Hazen e Craig M. Schiffries, 2013 (Why Deep Carbon?)
foto Didier Descouens/ wikimedia commons ilustraçãO bárbara malagoli
Os físicos aplicaram as leis da mecânica quântica para simular em computador a estrutura atômica de alguns tipos de minerais nas condições do manto inferior, onde as temperaturas chegam a milhares de graus Celsius e as pressões são milhões de vezes maiores do que na superfície terrestre. Em seguida, calcularam como esses minerais se comportariam quando fossem atravessados por uma onda sísmica gerada por um terremoto. “A presença dos minerais de carbono diminui consideravelmente a velocidade de propagação das ondas, como ocorre nas ULVZs”, diz Marcondes. Nos depósitos de minerais à base de silício, os abalos sísmicos viajaram mais rapidamente. Marcondes utilizou as técnicas que aprendeu com Renata Wentzcovitch, física brasileira da Universidade de Minnesota, Estados Unidos, que desenvolve métodos computacionais para estudar a estrutura atômica de materiais nas condições extremas de temperatura e pressão do interior da Terra, muito difíceis de ser reproduzidas em laboratório (ver Pesquisa Fapesp nº 198). “Nos últimos 500 km do manto inferior, há grandes regiões em que as velocidades das ondas sísmicas são cerca de 5% mais lentas do que a média”, explica o geofísico Marcelo Assumpção, do Centro de Sismologia do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP. “Antes, achava-se que a origem delas eram flutuações de temperatura no manto inferior. Mas estudos recentes vêm mostrando que variações na composição química das camadas geológicas, como a presença de mais ou menos sílica, ferro ou carbonatos, são necessárias para explicar as observações.” O trabalho de Marcondes e seus colegas sinaliza que uma maior porcentagem de minerais ricos em carbono, como as magnesitas e os carbonatos de cálcio, poderia ser a explicação para a ocorrência de ULVZs. “Resta saber como essa concentração de carbonatos teria se acumulado no manto inferior, mas isso é outra história.” O outro ciclo do carbono
As teorias sobre a origem do Sistema Solar sugerem que a concentração total de carbono na Terra deveria ser mais ou
O carbono pode estar inserido em diversos materiais, como diamantes, líquidos e sólidos misturados ao manto e ao núcleo terrestre, ou em microrganismos
menos a mesma das rochas de um tipo de meteorito, os condritos carbonáceos, cuja composição química permaneceu praticamente inalterada desde a época de formação do planeta, há cerca de 4,5 bilhões de anos. Mas, quando os pesquisadores somam a quantidade de carbono presente em todas as fontes conhecidas – na atmosfera, nos oceanos, na superfície da crosta terrestre e a algumas dezenas de quilômetros logo abaixo dela –, o valor chega a apenas 10% do esperado. “Esse carbono faltante tem de estar em algum lugar”, diz Marcondes, que abordou o problema em sua tese de doutorado, defendida em setembro. “Há evidências de que os 90% restantes estão armazenados em regiões profundas do interior da Terra.” Base química da vida, o carbono circula pela superfície terrestre de maneira já bem conhecida pelos pesquisadores. Como gás metano (CH4), monóxido (CO) ou dióxido de carbono (CO2) está na atmosfera. Por meio da fotossíntese, algas e plantas retiram CO2 do ar e fixam carbono na forma de matéria orgânica, que eventualmente vai se decompor e ser depositado em reservas de combustíveis
fósseis em camadas de rocha da crosta continental e oceânica. A respiração de vegetais e de animais, além de processos de combustão, devolve o carbono ao ar. Pesquisas recentes nas áreas de sismologia e geoquímica, porém, têm indicado que esse ciclo superficial do carbono deve estar ligado a outro, mais lento e mais profundo. Ao longo de dezenas de milhões de anos, as rochas do manto se comportam como um fluido. Suas correntes descendentes poderiam arrastar consigo grandes pedaços da crosta oceânica, cheias de carbono, que afundariam até o manto inferior. Já as correntes ascendentes do manto poderiam levar parte do carbono ultraprofundo à superfície. Uma evidência disso, explica Marcondes, são os chamados diamantes ultraprofundos, como os descobertos nas minas do município de Juína, em Mato Grosso. São pequenos pedaços de diamante cujas impurezas químicas indicam que, antes de serem trazidos à superfície por erupções vulcânicas, eles se originaram em profundidades superiores a 670 km. A maioria dos diamantes se forma a cerca de 150 km abaixo da superfície. Segundo um relatório publicado em 2014 pelo Observatório do Carbono Profundo, um programa de pesquisa coordenado por Robert Hazen, geofísico do Instituto Carnegie, Estados Unidos, a localização exata das reservas de carbono profundo e sua extensão ainda são uma grande incógnita. O relatório conclui, entretanto, que o carbono pode estar inserido em uma grande variedade de materiais, além dos diamantes ultraprofundos e dos minerais carbonáticos. Ele pode se encontrar na forma de microrganismos vivendo nas profundezas da crosta terrestre ou em uma dúzia de tipos de sólidos e líquidos que estão misturados ao manto e ao núcleo terrestre. “É uma questão muito complicada”, diz Marcondes. “Ainda vamos demorar muito para chegar a uma resposta definitiva.” n
Artigo científico MARCONDES, M. L. et al. Carbonates at high pressures: Possible carriers for deep carbon reservoirs in the Earth’s lower mantle. Physical Review B. v. 94, n. 10. Set. 2016.
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entrevista Gabriela González
Quando o espaço se curva Porta-voz da colaboração científica Ligo, física argentina fala sobre como foi o processo de detecção das ondas gravitacionais Marcos Pivetta e Ricardo Zorzetto |
N
retrato
Léo Ramos
a manhã do dia 11 de fevereiro deste ano, a argentina Gabriela González, uma simpática cordobesa radicada nos Estados Unidos há quase três décadas, tinha um compromisso inadiável no National Press Club, em Washington. A professora de física e astronomia da Universidade Estadual da Lousiana e porta-voz da colaboração científica do Observatório Interferométrico de Ondas Gravitacionais (Ligo) fora escalada para, ao lado de outros quatro renomados pesquisadores, divulgar um aguardado anúncio: pela primeira vez, havia sido detectada a passagem de ondas gravitacionais pela Terra. Coube a Gaby, como a chamam amigos e colegas, detalhar a descoberta, feita 100 anos depois de Albert Einstein ter previsto, na teoria da relatividade geral, a existência desse fenômeno, que deforma o espaço. Separados por 3 mil quilômetros (km) de distância, os dois detectores gêmeos de segunda geração do Ligo – um em Hanford, no estado de Washington, e outro em Livingston, na Lousiana, ambos com braços em L de 4 km de extensão e dotados de espelhos e lasers – registraram quase simultaneamente as ondas geradas pela colisão e fusão de dois buracos negros distantes 1,3 bilhão de anos-luz da Terra. A detecção, ocorrida no dia 14 de setembro de 2015, é mais uma forte evidência da existência de buracos negros, dos quais nada, nem mesmo a luz, escapa (ver Pesquisa FAPESP nº 241). Gaby esteve no início de novembro em São Paulo, onde deu uma palestra sobre o registro de ondas gravitacionais produzidas pela fusão de buracos negros durante o simpósio promovido
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idade 51 anos especialidade Detecção de ondas gravitacionais formação Graduação em física na Universidade Nacional de Córdoba (Argentina) em 1988. Doutorado em física na Universidade de Syracuse (EUA), de 1989 a 1995 instituição Universidade Estadual da Lousiana (EUA) produção científica 114 artigos. Orientou um mestrado, 6 doutorados e 10 pós-doutorados
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para celebrar os cinco anos do Centro Internacional de Física Teórica/Instituto Sul-americano para Pesquisa Fundamental (ICTP-SAIFR, em inglês). O centro é uma colaboração entre o Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (IFT-Unesp), onde está sediado, o Centro Internacional de Física Teórica Abdus Salam (ICTP), em Trieste, na Itália, e a FAPESP. “Estamos diante de uma nova astronomia, a das ondas gravitacionais”, afirma a pesquisadora, de 51 anos, casada com o compatriota Jorge Pullin, também professor (de física teórica) da Universidade Estadual da Lousiana. “Estamos descobrindo o lado escuro do Universo.” Nesta entrevista, concedida durante sua passagem pela capital paulista, Gaby fala da importância da detecção das ondas gravitacionais, comenta detalhes dos bastidores do trabalho no Ligo, um projeto que consumiu US$ 1,1 bilhão ao longo de três décadas, e vislumbra o futuro dessa nova forma de observar o Universo. As ondas gravitacionais foram detectadas pouco tempo depois de a segunda geração de detectores do Ligo entrar em funcionamento. Não desconfiaram que poderia ser um falso resultado positivo? Na verdade, havia várias semanas que estávamos registrando dados, mas em um modo de diagnóstico. Estávamos calibrando os detectores para eles ficarem mais sensíveis. É preciso empurrar os espelhos, simulando sinais em diferentes frequências. Estávamos tentando entender como as medições eram afetadas por ruídos [interferências] externos, sísmicos ou acústicos. Algumas horas antes de detectarmos as ondas, havia gente no laboratório de Livingston averiguando se a frenagem de um automóvel perto do edifício poderia afetar a medição. E pode? Sim, se o carro frear muito forte, mas a interferência não ocorre na banda de frequência que medimos, entre 20 hertz e 5 quilo-hertz. Os aviões também afetam, mas em menor medida e também em outras frequências. O ruído sísmico a baixas frequências é bem grande e procuramos formas de neutralizá-lo. A forma como empurramos os espelhos, sobretudo para deixá-los alinhados, pode introduzir ruídos. O ruído quântico da luz é outro problema a ser contornado. O laser é feito 60 z dezembro DE 2016
ocorrido nada que pudesse ter originado o sinal. Encontramos várias ocorrências que tiveram de ser investigadas a fundo.
Estamos diante de uma nova astronomia, a das ondas gravitacionais, e descobrindo o lado escuro do Universo
de fótons. Na fotocélula, contamos fótons e há uma incerteza quântica sobre quantos fótons detectamos. Esse ruído é muito conhecido, o shot noise. Combatemos o shot noise aumentando a potência do laser, usando muitos fótons. Outro ruído que nos limita é o movimento browniano, que é aleatório e produzido porque os átomos se movem e vibram se a temperatura não é zero. Vocês logo se convenceram de que o sinal detectado em setembro passado eram ondas gravitacionais? Não de imediato. Primeiro, sabíamos que não era um sinal falso, criado por uma equipe do próprio experimento. Ainda não havíamos aprendido a criar um sinal falso com a segunda geração do Ligo. Ainda assim, passei horas ligando para meus colegas para me certificar de que não era um teste. Podiam ter esquecido de anotar algum teste. O sinal era muito óbvio, bom demais para ser verdade. Tínhamos de nos certificar e eliminar todas as outras alternativas. Demoramos meses para ter certeza absoluta. Tivemos de afinar e revisar todos os códigos e softwares para registrar dados, algo que ainda não tínhamos tido tempo de fazer. Tomou muito tempo analisar todos os registros de magnetômetros, de sismógrafos e de raios cósmicos. Tínhamos de ter certeza de que não havia
Por exemplo? Encontramos uma tormenta elétrica na África que produziu um dos raios mais potentes que já se registrou com instrumentos modernos. Isso ocorreu segundos antes da detecção das ondas gravitacionais. Mas, com nossas análises, vimos que o raio não estava por trás da nossa detecção. Em paralelo, também tomou tempo interpretar o sinal das ondas gravitacionais, deduzir qual era a massa dos buracos negros, sua energia. Não queríamos ter nenhuma dúvida. Havíamos decidido, antes mesmo de começar a tomar dados com a segunda geração de detectores, que iríamos escrever um artigo e mandar para os revisores quando tivéssemos um possível registro das ondas. Precisávamos ouvir gente externa ao projeto. Somos mais de mil pessoas – todas querendo que o experimento desse certo. Mas, antes de vocês fazerem o anúncio da descoberta, houve uma segunda e uma terceira detecção de ondas gravitacionais. Isso ocorreu antes de o paper do Ligo ser aceito? Na verdade, desde o princípio, sabíamos que não tínhamos dados suficientes para excluir a possibilidade de que o sinal de setembro fosse uma flutuação estatística aleatória. Precisávamos registrar ao menos um mês de dados no Ligo, 15 dias para cada detector. Mas o sinal era tão forte que todos pensamos que era difícil extrapolar e saber quantos mais deveriam ocorrer. Então, em 12 de outubro, houve um novo sinal, mas muito fraco. Não servia de confirmação e não nos tranquilizou. Em 26 de dezembro houve outro sinal. Não tão forte como o primeiro, mas era estatisticamente muito significativo. Foi esse o sinal que nos convenceu. Era de um outro sistema de buracos negros, diferente do que havía mos visto. Esse sinal nos deixou mais tranquilos, embora tenha sido preciso mais alguns meses para confirmá-lo. Mas, quando fizeram o anúncio da descoberta das ondas gravitacionais em fevereiro deste ano, só falaram do primeiro sinal. Sim. Embora já tivéssemos registrado o terceiro sinal, ainda estávamos anali-
National Science Foundation
tem oito massas solares. Então concluímos que devem ser ondas gravitacionais originadas pela fusão de buracos negros.
France Córdova, diretora da NSF, David Reitze, diretor executivo do Ligo, e os físicos Gabriela González, Rainer Weiss e Kip Thorne se preparam para anunciar a descoberta das ondas gravitacionais
sando os dados. Não tínhamos certeza de sua natureza. Se, depois da primeira detecção, não tivessem registrado mais nenhum sinal, vocês iriam divulgar a descoberta assim mesmo? Sim. Mesmo que não tivéssemos registrado nem o de outubro ou o de dezembro, não teríamos nenhuma razão para não divulgar a descoberta. Todas as evidências que tínhamos era de que se tratava de ondas gravitacionais produzidas por buracos negros. Seria um pouco incômodo se só tivéssemos registrado um sinal, mas anunciaríamos mesmo assim. Nos três casos, a fonte das ondas gravitacionais está situada em lugares distintos do Cosmos? Sim, mas os três sinais são consistentes com a hipótese de que foram produzidos por um sistema com dois buracos negros. Como sabem isso? O primeiro sinal, de setembro, é mais claro. Qualquer sistema binário, com um par de massas girando – estrelas de nêutrons, anãs brancas, buracos negros ou a Terra e o Sol –, produz ondas gravitacionais oscilatórias. Conforme as estrelas se aproximam, elas giram mais rápido. O período diminui, mas a frequência e a amplitude são maiores. Quando estão próximas o suficiente, fundem-se em um só objeto. Nesse caso, espera-se uma oscilação que cresce e rapidamente decresce. Temos um banco de dados com cen-
tenas de milhares de modelos de sinal. Para cada par de massa distinta, há uma frequência distinta, um sinal distinto. Fazemos uma correlação do modelo com os dados de cada detector em função do tempo. Se encontramos um sinal em um detector, vemos se há, com uma diferença de não mais do que 10 milissegundos (que é a velocidade da luz entre os dois detectores), um sinal consistente com o mesmo modelo. É isso o que chamamos de uma coincidência. Tivemos cerca de mil coincidências nos primeiros meses em que registramos dados na segunda geração do Ligo. A maioria delas não é coincidência astrofísica. São flutuações aleatórias produzidas por um detector. As duas detecções mais fortes, a de setembro e a de dezembro, são muito significativas. É quase impossível que tenham sido produzidas pela flutuação de um detector. Estimamos que pode haver uma coincidência aleatória dessa magnitude a cada 200 mil anos. Já o sinal de outubro é muito menos significativo. Nesse caso, achamos que a cada par de anos pode haver uma coincidência desse tipo sem que seja de origem astrofísica. Como se diferencia um sinal de um par de buracos negros e outro de um sistema de estrelas de nêutrons? Pela massa. As estrelas de nêutrons são menores, têm geralmente uma massa solar. No máximo, estima-se que possam ter menos de três massas. Todos os sistemas associados aos sinais que vimos são bem maiores. O menor deles
Como evitar que haja um vazamento de informação em um experimento que envolve tantos pesquisadores? Em janeiro, um pesquisador de fora do Ligo escreveu no Twitter que vocês tinham descoberto as ondas gravitacionais. Todos nós temos de seguir um termo de confidencialidade até que um anúncio seja feito. Todos os membros do experimento estavam informados do andamento das análises. Apenas em 21 de janeiro nos sentimos seguros para enviar o artigo para publicação. Em dezembro, ainda estávamos investigando a natureza do tal raio na África. Mas as pessoas falam com colegas. Muita gente sabia que havia algo, mas todos tinham cuidado, pois era um dado que precisava ser confirmado. Seria uma vergonha dizer para um jornalista que havíamos descoberto algo e, mais tarde, ter de vir a público para desmentir. Esse anúncio no Twitter foi muito infeliz. Dizíamos aos jornalistas que não havia nada a dizer e que estávamos ainda analisando dados – e estávamos mesmo. O que ocorre quando os detectores do Ligo registram um sinal que pode ser de ondas gravitacionais? Acende uma luz vermelha, aparece um aviso em um computador? Temos programas de computador que analisam de forma rápida, mas não tão profunda, os dados para detectar sinais que podem ser de origem astrofísica. Tudo isso é eletrônico. Uma vez que haja um candidato a sinal, aparece em minutos em uma página de internet o alerta. Mas não estávamos prontos para a detecção do dia 14 de setembro. Vocês não tinham um procedimento interno de injetar dados falsos para verificar se os pesquisadores do Ligo conseguiam diferenciar um sinal plantado de um verdadeiro? Sim, tínhamos uma equipe que fazia isso desde a primeira geração do Ligo. Alguns projetos lançam mão desse tipo de expediente para evitar que a equipe tenha uma atitude inconscientemente comprometida com o resultado que se almeja. No nosso caso, achávamos que estávamos demasiadamente acostumados aos resultados nulos e não estávamos preparados pESQUISA FAPESP 250 z 61
Os dois observatórios do Ligo têm braços em formato de L com 4 km de extensão, um em Hanford, no estado de Washington, e outro em Livingston, na Lousiana (à esq.)
para um resultado positivo. Então, para ajudar esse processo psicológico e científico – afinal, a ciência é feita por seres humanos – enviamos sinais falsos em 2007 e também em 2010, quando trabalhávamos com a primeira geração de detectores. Enviamos em 2007 dois sinais: um marginal, que foi muito discutido por nossa equipe, e outro que simplesmente não vimos, passou despercebido. Essa não detecção não era por causa da baixa sensibilidade da primeira fase do Ligo? Não, era porque adotávamos um procedimento em que, primeiro, víamos os dados de mais qualidade e, depois, examinávamos o resto. Mas, em 2007, acabamos esquecendo de ver o resto dos dados. Isso foi uma prova de que não estávamos prontos. Depois em 2010 houve essa injeção de dados falsos, que ficou conhecida como Big Dog. Mais tarde descobrimos que era um sinal falso, mas não estávamos preparados para interpretá-lo. Vocês fizeram até um paper sobre o Big Dog, não? Sim, mas esse procedimento estava previsto no projeto. O combinado era não perguntar se o sinal era falso ou verdadeiro e escrever um artigo falando dos dados. Esse processo nos tomou muito mais tempo do que o previsto. Na segunda vez, estávamos preparados para descobrir o sinal, mas não para interpretá-lo, para medir seus parâmetros e dizer 62 z dezembro DE 2016
quão grandes eram os buracos negros ou estrelas por trás do sinal. Depois dos três registros de ondas gravitacionais no ano passado, houve novas detecções? O Ligo não está fazendo detecções desde janeiro deste ano. Devemos retomar as medições neste mês, provavelmente com uma sensibilidade parecida com a que tínhamos antes, talvez uns 10% melhor. Não fizemos progressos nesse sentido tão rapidamente como queríamos. A segunda geração de detectores do Virgo [observatório de ondas gravitacionais perto de Pisa, na Itália] deve começar a funcionar no próximo semestre. Então, em algum momento do próximo ano, teremos três detectores em funcionamento. Com a descoberta das ondas gravitacionais, muda o conhecimento do Cosmos? Tenho a impressão de que esse evento foi como quando Galileu observou o céu com um telescópio e descobriu que Saturno tinha anéis. É algo assim. É ter um instrumento que agora pode ver o céu de uma maneira completamente distinta. Podemos ver buracos negros que não emitem luz. Estamos descobrindo o lado escuro do Universo. Posso dizer que também estamos escutando o Universo. A banda de frequência com que trabalhamos é audível. Com as ondas eletromagnéticas, vemos o Universo. Agora o escutamos também com as ondas gravitacionais. É uma revolução na astronomia. Os buracos
Recentemente, foi assinado um acordo para a construção de um terceiro observatório do Ligo na Índia. Quando ele deve começar a funcionar? Os Estados Unidos haviam aprovado inicialmente a construção de dois detectores em Hanford e um em Livingston. Depois surgiu a ideia de fazer o terceiro observatório em outro lugar, primeiro na Austrália e depois na Índia. Esse detector já existe e será instalado no observatório que vai ser construído na Índia. Acreditamos que ele só começará a registrar dados em 2024. Antes do Ligo Índia, deve entrar em operação em 2019 um observatório no Japão, o Kagra, que também vai cooperar conosco. Com o Virgo, na Itália, cooperamos desde a nossa primeira geração de detectores. Eles também assinam conosco o artigo deste ano sobre a descoberta das ondas gravitacionais. Então, em algum momento, teremos cinco observatórios de ondas gravitacionais. Como começou a trabalhar no Ligo? Em 1989, acabei minha licenciatura em física na Argentina e fui aos Estados Unidos fazer doutorado. Estava estudando a teoria da relatividade. Um professor que tinha acabado de ir para a Universidade de Syracuse, Peter Saulson, falava de como se podia medir com precisão as flutuações do espaço-tempo. Não era física experimental, mas isso me encantou. Naquela época, o Ligo era um projeto para o futuro. Sabíamos que seriam necessários muito anos para ele começar. Comecei a trabalhar com o Ligo em 1992, quando o projeto foi aprovado nos Estados Unidos. Em 1995, começou a sua construção. Em 1999, ficaram prontos os detectores. Em 2001, passamos a registrar os primeiros dados. Em todo esse tempo, trabalhei em diferentes aspectos do Ligo. Quando ainda era teórica, trabalhava com qual aspecto da teoria de Einstein? Buscava soluções para as equações. Quando comecei a trabalhar no Ligo, minha tese foi sobre o movimento browniano
Ligo Laboratory
negros de estrelas que encontramos são muito grandes, de 30 massas solares. Há buracos negros enormes, mas no centro das galáxias. Os buracos negros estelares, acreditava-se, deveriam ter umas poucas massas solares. Pode haver fenômenos desconhecidos que não emitem luz, mas que emitem ondas gravitacionais.
de pêndulos e como ele afeta diferentes frequências. O importante era saber como o movimento browniano, entre todos os ruídos, afetava a banda de frequências em que o Ligo toma dados. O que medimos no Ligo são distâncias entre os espelhos dos detectores. Mas os espelhos são feitos de átomos e ligados por fibras, que têm átomos. Tudo isso vibra. O que era difícil, na minha tese, era medir quanto desse ruído aparecia na banda de frequência do Ligo. Depois de terminar o doutorado em 1995, fui ao MIT [Massachusetts Institute of Technology] trabalhar com o professor Rainer Weiss no grupo do Ligo. Lá trabalhava no desenho dos pêndulos para a primeira geração de detectores. Esperavam ter ganho neste ano o Nobel de Física pelo descobrimento das ondas gravitacionais? Não. Na verdade, não sabemos exatamente como é o processo de escolha, quais são os critérios. O bóson de Higgs foi para os autores da teoria, não para os descobridores da partícula. Então, se Einstein estivesse vivo, ele poderia receber o Nobel outra vez pela predição das ondas gravitacionais. Não tivemos nenhuma desilusão por não ter ganho. Mas, claro, ficaria muito contente se algumas das pessoas que trabalham nesse campo há 40 anos recebessem o prêmio. É a terceira vez que é porta-voz do Ligo. Por que se candidatou ao cargo? É um cargo para o qual se é eleito. Sempre houve mais de um candidato. Lidero a colaboração científica desde 2011, época em que havíamos terminado de registrar dados com a primeira geração de detectores, mas ainda sem analisá-los totalmente. Me parecia importante que a colaboração não se dissolvesse. Nesse último período em que tenho sido porta-voz, minha prioridade foi estarmos preparados para registrar dados em setembro do ano passado, como realmente fizemos, e nos reorganizarmos para trabalhar de forma mais eficiente. Somos demasiado grandes. A reorganização, contudo, não foi possível de ser feita. Dedicamos muito tempo para nos preparar para tomar dados e, quando começamos, veio a detecção das ondas, o que nos tomou mais tempo ainda. Em março, deixo o cargo. Há possibilidade de o Brasil participar mais do Ligo?
Não tivemos nenhuma desilusão por não ter ganho o Nobel. Se vivo, Einstein poderia receber de novo o prêmio
Sim. Além de já tomar parte dos experimentos e das análises de dados atuais, penso que o Brasil poderia contribuir para o desenvolvimento de uma terceira geração de detectores, que poderia registrar buracos negros muito mais distantes, ou seja, muito mais velhos, que surgiram no início do Universo. Assim, poderíamos saber como eram os buracos negros ao longo do tempo no Universo. Esse projeto seria muito caro e provavelmente precisaria de uma colaboração ainda mais internacionalizada. Isso me parece uma oportunidade para a América Latina. Por que não poderíamos instalar um detector aqui? Poderia instalar um nos Estados Unidos e outro aqui. Gosto de sonhar com isso. Para quando seria essa terceira geração de detectores? Esses projetos demoram décadas. São mais ou menos uns 10 anos para fechar as parcerias e a parte financeira e mais 10 para construí-los. A concepção do Ligo começou nos anos 1970. Acho que hoje não demoraria 40 anos, mas pelo menos uns 20. Um projeto assim não envolve apenas pesquisadores de astrofísica, mas
também engenheiros para o desenvolvimento de tecnologias para uma nova geração de detectores. É algo que gera muitos recursos humanos para a ciência e a tecnologia. Nessa terceira geração, precisaríamos de detectores novos. Não dá para atualizar os atuais. Esses detectores seriam provavelmente maiores, o que os tornaria mais sensíveis. Em vez de 3 ou 4 km, teriam 10 ou 40 km. Como deve ser o lugar para abrigar um detector assim? Depende, se ele for de superfície ou subterrâneo. Nesse último caso, ele não precisaria ser tão grande, mas provavelmente seria mais caro. Para um detector de superfície, o ideal é encontrar um lugar plano ou fácil de ser aplainado que tenha baixa sismicidade. Não estamos preocupados com terremotos porque os abalos de terra afetam as medições do observatório independentemente de sua localização. Registramos nos observatórios dos Estados Unidos um terremoto na China ou no oceano Índico. Depois de termos construído os dois observatórios, descobrimos que é melhor estarmos assentados sobre um solo firme e rochoso, que transmite menos os movimentos da Terra. A zona dos oceanos golpeia a costa e produz um ruído microssísmico. Quando se está perto da costa e o solo não é rochoso, a amplitude desse ruído é maior. Também é importante estar perto de um centro com estrutura, internet e recursos humanos. Quais países da América Latina colaboram com o Ligo? No momento, só o Brasil. Há dois grupos que colaboram com o Ligo. Um grupo experimental do Inpe, de São Paulo, chefiado por Odylio Aguiar, pesquisa outras maneiras de detectar as ondas gravitacionais, com um detector esférico. Eles têm muita experiência em como suspender objetos com baixo ruído e trabalhar em baixas temperaturas. Esse é o tipo de experiência que levam para o Ligo. O outro grupo, do Riccardo Sturani, que estava em São Paulo [no IFT-Unesp] e se mudou para o Instituto Internacional de Física de Natal, faz análise de dados buscando sistemas binários. Na América Latina, há muita gente pesquisando a teoria da relatividade e das ondas gravitacionais. Mas não fazendo análise de dados. Espero que isso mude. n pESQUISA FAPESP 250 z 63
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Cadeira da UFABC com três rodas em cada ponta dos eixos sobe escada
Soluções para os cadeirantes
Projetos de novas cadeiras de rodas prometem tornar mais fácil a vida de quem depende desses veículos
Texto
Evanildo da Silveira
Fotos
Eduardo Cesar
66 z dezembro DE 2016
A
cadeira de rodas manual de assento dobrável foi inventada em 1933 pelo engenheiro mecânico norte-americano Harry Jennings. Hoje existe uma grande variedade de modelos, tanto movidos pela força dos braços como motorizados. Apesar de ajudar muito na mobilidade de seus usuários, elas apresentam dificuldades em situações como subidas acentuadas, calçadas esburacadas e meios-fios sem rebaixamento, por exemplo. Para superar esses obstáculos, pesquisadores e empresas procuram soluções para tornar a cadeira de rodas mais eficiente e fácil de controlar. No Brasil, há vários projetos de pesquisa em andamento, que vão desde a criação de kits de motorização até sistemas de controle por meio de expressões faciais. Um dos mais adiantados, que já está no mercado, foi desenvolvido pelo engenheiro mecânico Júlio Oliveto Alves quando realizava seu mestrado na Faculdade de Engenharia de Guaratinguetá (FEG), da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Trata-se de um sistema de tração elétrica para cadeira de rodas manual. Denominado Kit Livre, é um acessório portátil, dobrável, composto por uma roda e um motor elétrico recarregável. “Quando acoplado a uma cadeira de rodas comum, ele a
Facilidade de manobras com cadeira que se desloca em todas as direções (acima). Com quatro rodas iguais e onidirecionais, o equipamento tem pequenos roletes que permitem movimentos em qualquer sentido (à esq.)
transforma num triciclo motorizado, que pode atingir velocidade de até 20 quilômetros por hora (km/h), com autonomia média de 25 km”, explica Alves. “Com o Kit Livre, a pessoa com deficiência pode subir e descer o meio-fio de calçadas e andar por terrenos arenosos, irregulares e gramados, além de subir ladeiras com inclinação de até 40%.” A ideia de transformar uma cadeira de rodas em triciclo começou em 2009, quando Alves fazia o mestrado, sob a orientação de Victor Orlando Gamarra Rosado. Em 2012, a patente da invenção foi depositada no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) e Alves começou a pensar em um produto comercial. “Durante 2013 e 2014 meu irmão Lúcio e eu trabalhamos para desenvolver um modelo de negócios que pudesse nos garantir a distribuição do Kit Livre em todo o país”, diz. “Ainda em 2014, funda-
mos, em São José dos Campos [SP], a empresa Livre – Soluções em Mobilidade.” No final desse mesmo ano, eles venceram o Prêmio Santander Empreendedorismo, no valor de R$ 100 mil. Com esse dinheiro foi possível fabricar o primeiro lote comercial e começar a fase operacional da empresa, o que ocorreu em abril de 2015. “Desde então distribuímos nossos equipamentos em 19 estados brasileiros, com vendas em nossas lojas virtual e física e em grandes redes varejistas”, informa Alves. “Até agora vendemos cerca de 250 unidades, a R$ 4.990 cada uma.” Além do Santander, a empresa conquistou outras premiações, como Acelera Startup, organizada pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), e o Prêmio FedEx para Pequenas Empresas, concedido pela FedEx Brasil. “É um produto que garante mais independência e autonomia à pes-
soa com deficiência, o que amplia sua integração à sociedade, com um desenho inovador e conforto”, diz Victor Rosado. Dois protótipos em avaliação, também para acoplagem a simples cadeiras de rodas manuais e flexíveis, foram desenvolvidos no âmbito do Projeto Mobilidade de um grupo de professores e alunos da Faculdade de Engenharia Mecânica da Universidade Estadual de Campinas (FEM-Unicamp), liderados pelo professor Franco Giuseppe Dedini. Um deles, chamado Módulo Líbero, é composto por um motor elétrico recarregável e duas rodas. Foi projetado para ser acoplado na parte de baixo da cadeira, o que faz com que ela fique com seis rodas. “São as duas rodas extras, acopladas ao motor elétrico, que vão sustentar a maior parte do peso do conjunto, facilitando o trânsito das rodas originais sobre as irregularidades e obstáculos do terreno”, explica Dedini. Outro kit é chamado de Mochila. Mais leve e menos potente, o dispositivo é fixado na parte de trás da cadeira e, por meio de rodinhas ligadas a um motor, impulsiona o veículo. Esses kits apresentam algumas vantagens em relação às cadeiras motorizadas tradicionais, como menor peso e maior facilidade de manobrá-las e dobrá-las para transporte em automóveis. “Outra vantagem dos dois modelos é a facilidade que o cadeirante tem em acoplar ou retirar a motorização quando quiser”, diz a engenheira mecânica Flávia Bonilha Alvarenga, que fez doutorado sob a orientação de Dedini, uma das responsáveis pelo projeto do Líbero. Os kits de motorização têm outra vantagem importante: o preço menor. “Hoje no Brasil, cadeiras motorizadas custam de R$ 5 mil a R$ 40 mil, dependendo das características e aplicações, enquanto as manuais variam de R$ 400 a R$ 6 mil”, informa Dedini. “O nosso protótipo Mochila custou R$ 1 mil e o Módulo Libero, em torno de R$ 1,5 mil. A meta de preço de venda desses produtos é entre R$ 1,2 mil e R$ 1,8 mil. Mas isso é apenas uma estimativa.” Pesquisador da área de bioengenharia Fausto Orsi Medola, professor da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação (Faac), do campus de Bauru da Unesp, está desenvolvendo um sistema de motorização um pouco diferente. Ele participa de um grupo que conta também com os professores Carlos Alberto FortupESQUISA FAPESP 250 z 67
lan, da Escola de Engenharia de São Carlos (Eesc), e Valéria Elui, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, ambas da Universidade de São Paulo (USP). “O que fizemos é uma cadeira de rodas manual com assistência motorizada”, explica. “Ela é manual e tem um motor elétrico, com bateria recarregável, que pode ser ligado somente para auxiliar o usuário na mobilidade em rampas, subidas e por longas distâncias, reduzindo o esforço muscular nos membros superiores.” Para levar adiante o projeto, o grupo contou com financiamento de R$ 27 mil do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). De acordo com Medola, a cadeira manual com assistência motorizada que ele desenvolveu é semelhante a modelos existentes no mercado internacional. “São conhecidas como cadeiras de rodas com assistência motorizada ativada pelo aro propulsor”, diz. “No entanto, elas têm dois motores, um em cada roda traseira, que funcionam de forma independente, amplificando a força que o usuário aplica nas rodas. A nossa proposta difere pela motorização única das rodas traseiras, o que garante condições de dirigibilidade mais próximas a uma cadeira de rodas manual convencional.” O protótipo ainda necessita de aprimoramentos para eventualmente chegar ao mercado. Em qualquer direção
Na Universidade Federal do ABC (UFABC), em Santo André (SP), o pesquisador Luís Alberto Martinez Riascos desenvolve dois projetos ousados: uma cadeira com rodas onidirecionais (que rodam em qualquer direção) e outra que sobe escadas. “As cadeiras com rodas convencionais são difíceis de locomover e manobrar em espaços pequenos ou congestionados”, diz. “Manobras simples necessitam de um espaço livre grande. Com as rodas onidirecionais, a cadeira pode se deslocar em todas as direções, incluindo movimentos diagonais e laterais. Fica mais fácil se locomover em ambientes pequenos.” Nesse tipo de cadeira, todas as quatro rodas têm o mesmo tamanho, de forma diferente das comuns em que as traseiras são maiores. Riascos explica que a cadeira usa rodas onidirecionais chamadas Mecanum wheel-45° ou Swedish-45°. “Elas têm roletes no contorno da roda com eixo de rotação a 45° em relação ao da cadeira, mas com tração 68 z dezembro DE 2016
Kit Livre: acessório composto por roda, guidão e motor elétrico recarregável para ser acoplado a uma cadeira de rodas manual
no sentido transversal. Combinando adequadamente a tração das quatro rodas, é possível obter qualquer movimento ou rotação”, explica. Além dos espaços apertados, os usuários de cadeira de rodas enfrentam outras dificuldades em seu dia a dia, como, por exemplo, escadas, meios-fios, irregularidades e buracos no terreno. “Criamos uma cadeira de rodas capaz de subir escadas, além de superar outros obstáculos”, diz Riascos. O projeto começou em 2011 e em 2012 o pesquisador recebeu financiamento da FAPESP. Essa cadeira é baseada no princípio de rodas delta ou estrela. Elas são compostas por três rodas pequenas que giram sobre um eixo comum, tornando possível a subida e a descida de degraus. “Já existe uma patente de roda estrela sem acionamento, usada em carrinhos manuais de carga”, diz. “Mas o sistema de acionamento motorizado é protegido por patente, por isso tivemos que projetar o nosso próprio modelo.” Cada roda delta tem um motor elétrico acionado de forma independente. Em superfícies planas, tem a mesma
autonomia de uma cadeira de rodas convencional, cerca de três a quatro horas. “Ela tem ainda outro motor, um pouco menor, para o sistema de inclinação do banco que garante conforto e segurança ao usuário”, diz Riascos. Por enquanto não há previsão de quando os protótipos se transformarão em produtos comerciais, nem estimativa de preço. “Eles ainda têm problemas que devem ser resolvidos, tais como controle e capacidade de fazer manobras”, afirma Riascos. De acordo com o pesquisador, já existem no mercado mundial modelos de cadeiras que sobem e descem escadas. A melhor, segundo Riascos, é a Top Chair, francesa. O problema é o preço: custa R$ 75 mil. Há ainda a Observer, da China, e a iBOT, norte-americana, que foi retirada do mercado por problemas de segurança. “O protótipo que desenvolvemos apresenta transição instantânea das superfícies planas para escadas e vice-versa – enquanto a Top Chair tem rodas para o plano e um sistema semelhante a uma esteira dentada para as escadas”, explica.
Dois protótipos em desenvolvimento na Unicamp: o Mochila (ao lado, à esq.), que é um dispositivo para ser acoplado à cadeira comum e impulsionar o veículo, e o Líbero, com motor elétrico e duas rodas extras
foto Paulo Pinheiro
Software utiliza câmera 3D para capturar expressões da face que são relacionadas ao ao movimento da cadeira, como ir em frente ou para trás
“Outra vantagem é o peso. A que construímos pesa 78 kg, cerca da metade das concorrentes – 140 kg da Top Chair, 197 kg da Observer e 131 kg da iBOT.” Matemática do sorriso
Com o objetivo de atender um público com deficiências motoras mais severas, como tetraplégicos que só conseguem mover os músculos do rosto, o cientista da computação Paulo Gurgel Pinheiro desenvolveu um programa de computador capaz de traduzir expressões faciais, como beijo, sorriso ou levantar de sobrancelhas, em comandos de uma cadeira de rodas, como ir para frente, para trás e girar. “Dessa forma, pessoas que perderam o movimento das pernas e braços podem controlar uma cadeira de rodas motorizada”, diz. Chamado Wheelie, o software pode ser instalado em qualquer computador. Ele utiliza uma pequena câmera 3D pa-
ra capturar pontos da face, ao redor dos olhos, da boca e do nariz. “O programa utiliza quase 80 desses pontos”, diz Pinheiro. “A partir daí, ele os analisa para tentar extrair a expressão facial que o usuário possa estar fazendo.” É possível configurar um comando para cada expressão. Por exemplo, um beijo move a cadeira para frente, um levantar de sobrancelhas faz ela girar para a esquerda. “O usuário escolhe entre as expressões que consegue fazer quais são as mais confortáveis para ele e a relação que terá com o funcionamento da cadeira”, explica. Segundo Pinheiro, os modelos semelhantes no mercado internacional não apresentam a mesma eficiência. “Todas as soluções disponíveis no mundo para controlar uma cadeira de rodas sem as mãos exigem que a pessoa utilize algum sensor junto ao corpo”, garante. O programa Wheelie foi projetado para entender o rosto de qualquer usuário.
“Assim como nós humanos, ele reconhece o sorriso de alguém em tempo real, justamente porque a matemática por trás de todos os sorrisos é a mesma”, explica. Pinheiro conta que o projeto começou em agosto do ano passado. “Mesmo sem empresa constituída, desenvolvemos um protótipo simples e funcional para mostrar o potencial do programa”, explica. “Hoje, com menos de seis meses após o investimento do Pipe [Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas], nosso algoritmo classifica o dobro de expressões na metade do tempo”, assegura. “Além do apoio da FAPESP, contamos com o da Intel, por meio do Intel Innovator Program, que dá suporte a ideias inovadoras ao redor do mundo”, conta. “A empresa nos apoia em infraestrutura, divulgação e rede de relacionamentos.” A meta é ter o produto no mercado até o final de 2018. Para isso, foi criada a startup Hoobox Robotics. “A ideia é vender o software aos grandes fabricantes de cadeira de rodas que as equipariam com ele”, revela. n
Projetos 1. Projeto e construção de cadeiras de rodas mais acessíveis (nº 2012/04915-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Luis Alberto Martinez Riascos (UFABC); Investimento R$ 95.161,77. 2. Wheelie e Gimme, tecnologia inovadora para dirigir cadeira de rodas (nº 2015/22624-1); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Paulo Gurgel Pinheiro (Hoobox Robotics); Investimento R$ 26.700,00. 3. Mobilidade em cadeira de rodas: Implicações do design nos aspectos cinéticos, biomecânicos e perceptivos (nº 2016/05026-6); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Fausto Orsi Medola (Unesp); Investimento R$ 90.567,00.
pESQUISA FAPESP 250 z 69
pesquisa empresarial
Além do horizonte
Iacit constrói radar capaz de monitorar áreas oceânicas e detectar embarcações no mar após o limite do campo de visão Yuri Vasconcelos
empresa Iacit Centro de P&D São José dos Campos (SP)
Nº de funcionários 20
Principais produtos Desenvolvimento de radares e sistemas de segurança, defesa, navegação aérea e meteorologia
C
Iacit
apazes de detectar e identificar alvos localizados a grandes distâncias no mar, os radares conhecidos como além do horizonte, tradução da sigla OTH (Over the Horizon), são de domínio tecnológico de poucos países. O primeiro protótipo brasileiro do gênero foi montado este ano no Farol de Albardão, instalação da Marinha do Brasil situada no litoral do Rio Grande do Sul, onde passa por ajustes e ensaios de campo. A expectativa da Iacit Soluções Tecnológicas, empresa paulista responsável pelo desenvolvimento dos radares, é finalizar a etapa de testes até junho de 2017. O desenvolvimento do radar OTH conta com apoio logístico da Marinha e suporte financeiro da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) de R$ 4,5 milhões investidos no início do desenvolvimento do radar. O equipamento começou a ser concebido em 2013, com o objetivo de proporcionar autonomia ao país no controle e na vigilância de fronteiras e do espaço marítimo e aéreo de baixa altitude. “Nosso radar consegue monitorar embarcações a até 200 milhas náuticas da costa [cerca de 370 quilômetros (km)], ultrapassando a linha de visada direta dos radares convencionais”, explica Luiz Carlos Teixeira, presidente da Iacit. Os radares tradicionais emitem ondas eletromagnéticas que se deslocam em trajetória linear e só conseguem detectar objetos dentro de seu campo de visão. “O radar foi projetado com foco no Sistema de Gerenciamento da Amazônia Azul [SisGAAz] porque a empresa percebeu uma boa oportunidade de desenvolver o equipamento que vai ajudar a preservar as riquezas oceânicas dentro do nosso limite de jurisdição nacional.” O SisGAAz é um projeto de defesa nacional criado pelo governo brasileiro para monitorar e gerir uma área de 4,5 milhões de quilômetros quadrados da costa, conhecida como Amazônia Azul. Os radares OTH são divididos em duas categorias, conforme o modo de propagação de suas ondas eletromagnéticas: skywaves e surface waves. A maioria em operação no mundo pertence à categoria skywaves, que emite ondas de alta
potência em direção ao céu, daí o nome. O sinal é refletido pela ionosfera – a camada de plasma da atmosfera situada entre 60 e 1.000 km de altitude – e volta para a Terra, focando em determinada região do oceano. Dessa forma, o radar consegue “enxergar” alvos a centenas ou milhares de quilômetros de distância, após a linha do horizonte. O problema é que esse equipamento não opera bem na área equatorial da Terra, onde a ionosfera é instável e turbulenta, prejudicando a reflexão do sinal. Do ponto de vista eletromagnético, a zona equatorial do planeta é um pouco mais ao sul da Linha do Equador, exatamente na região subtropical em torno do Sul e Sudeste brasileiro. “Nessa região, a alternativa é empregar um sistema cujas ondas se propaguem entre as camadas de ar mais baixas da atmosfera e a superfície condutora do mar. São os surface waves. Essa é a tecnologia que empregamos no modelo OTH 0100 da Iacit”, explica o engenheiro eletrônico Pérsio Vitor Abrahão, gerente de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação da empresa. A companhia norte-americana Raytheon é uma das empresas que já têm um radar desse tipo em operação no oceano Índico e no mar Negro. O modelo da Iacit opera na faixa de alta frequência, entre 1 e 30 mega-hertz (MHz), e seu feixe de ondas fornece uma cobertura de 120 graus a partir da antena transmissora. A recepção utiliza um conjunto de antenas verticais em formação circular, instaladas próximas ao transmissor. Cada uma das antenas está ligada a um receptor digital de alta sensibilidade, responsável pelo envio dos sinais ao sistema central (ver infográfico na página 79). Segundo Luiz Teixeira, o OTH 0100 possui uma arquitetura de processamento digital capaz de suprimir diferentes interferências comuns na faixa de alta frequência, ruídos de sistemas de comunicação e da ionosfera. “Com isso, nosso radar detecta e acompanha os alvos em alto-mar”, diz ele. O sistema de processamento de sinal foi resultado de transferência tecnológica da Elta Systems, subsidiária da Israel Aerospace Industries (IAI), uma das principais companhias do setor de defesa de Israel. Especializada no desenvolvimento de
Torre do radar da Iacit instalado em base da Marinha no município de Santa Vitória do Palmar, no litoral do Rio Grande do Sul
pESQUISA FAPESP 250 z 71
Testes de equipamento para controle de aviação em aeroportos (à esq.) e tela com dados de desempenho do bloqueador
sensores eletromagnéticos, entre eles radares e sistemas de guerra eletrônica e de comunicação (usados para confundir os radares e as comunicações das tropas inimigas), a Elta adquiriu 40% do capital da Iacit em julho de 2013. “Foram eles que bateram na porta interessados no nosso negócio. Chamou a atenção deles nossa capacidade tecnológica, especialmente a plataforma de radares em alta frequência que havíamos desenvolvido entre 2010 e 2012”, conta Teixeira. Fechado o acordo, a Iacit recebeu aporte tecnológico da parceira israelense e passou a ser o braço técnico da Elta Systems no país.
Atualmente, os países que reconhecidamente detêm a tecnologia são Estados Unidos, Rússia, Inglaterra, França, Canadá, Austrália e China. A concepção dos primeiros radares OTH ganhou impulso após a Segunda Guerra Mundial, quando o mundo passou a viver sob o clima de tensão da Guerra Fria. Os soviéticos teriam conseguido criar o primeiro sistema operacional, em 1949, batizado de Veyer, mas pouco se sabe sobre ele. Na década de 1960, um consórcio anglo-americano criou o radar Cobra Mist, que entrou em testes em 1972, mas não logrou êxito. Na mesma época, a Força Aérea norte-
Instituições que formaram os pesquisadores da empresa Zvi Yizhaq Roseblun, engenheiro eletrônico, diretor de tecnologia
Universidade de Tel Aviv (Israel): graduação Universidade de Derby (Reino Unido): mestrado
Pérsio Vitor de Sena Abrahão, engenheiro eletrônico, gerente de projeto da área de pesquisa, desenvolvimento e inovação
Universidade de São Paulo (USP): graduação Universidade de Taubaté (Unitau): mestrado
Cesar Augusto Mayor Herrera, engenheiro eletrônico, líder de projeto da área de engenharia, pesquisa, desenvolvimento e inovação (EPDI)
Universidad del Valle (Colômbia): graduação USP: mestrado
Euclides Chaves Pimenta Jr., engenheiro de telecomunicações, líder de projeto EPDI
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG): graduação Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA): mestrado
Fernanda Menezes de Carvalho, engenheira da computação, gerente do Departamento EPDI
Universidade de Mogi das Cruzes (UMC): graduação ITA: mestrado
Leonardo Shikata Augusto Tubota, engenheiro eletrônico, líder de projeto EPDI
USP: graduação e mestrado
Rodrigo Corrá Dellu, analista de sistemas do setor de engenharia de produção de software
Instituto Brasileiro de Tecnologia Avançada (IBTA): graduação
72 z dezembro DE 2016
-americana apresentou o sistema AN/ FPS-118, considerado o primeiro projeto bem-sucedido de radar OTH. PRÊMIO POR INOVAR
Com sede em São José dos Campos, no interior paulista, a Iacit completou 30 anos em 2016. Desde 2013, é certificada pelo Ministério da Defesa como Empresa Estratégica de Defesa (EED). O selo confere vantagens competitivas à companhia – entre elas, alguns benefícios tributários – para comercialização de seus produtos. Um ano antes, a empresa venceu o Prêmio Finep de Inovação Nacional na categoria Média Empresa por desenvolver produtos com elevado conteúdo tecnológico. Com um setor de pesquisa e desenvolvimento (P&D) formado por 20 pesquisadores, a companhia dedica-se a criar sistemas não apenas para o setor de defesa, mas também para as áreas de segurança pública, navegação aérea e meteorologia. “Investimos anualmente cerca de 8% da nossa receita em P&D. Em 2015, faturamos R$ 15 milhões, valor que deve se repetir este ano”, afirma Luiz Teixeira. A estrutura de pesquisa é composta por três laboratórios em São José dos Campos (um de software, outro de hardware, processamento e eletrônica e um terceiro de teste de radares), um laboratório de campo no município vizinho de Pindamonhangaba, no qual são feitos os ensaios dos equipamentos de navegação aérea, e outro laboratório de testes de campo no Farol de Albardão, base da Marinha
Luiz Carlos Teixeira, presidente da empresa, Cesar Herrera, Rodrigo Corrá Dellu e Pércio Abrahão, da equipe de P&D
localizada em Santa Vitória do Palmar (RS), onde o radar OTH está instalado. Além do radar OTH, a Iacit tem em seu portfólio um radar oceânico que permite a observação em tempo real de grandes extensões do mar. O equipamento foi projetado para obtenção das medidas de correntes superficiais oceânicas por meio de sinais de alta frequência e pode ser empregado para diversas aplicações civis, científicas e de segurança nacional. Seu alcance é de cerca de 150 km da costa (antes da curvatura da Terra). “Os radares oceânicos são uma tecnologia relevante para um país como o Brasil, que tem larga extensão costeira”, afirma o professor Paulo Henrique Rezende Calil, coordenador do Laboratório de Dinâmica e Modelagem Oceânica do Instituto de Oceanografia da Universidade Federal do Rio Grande (Furg). O pesquisador explica que esses aparelhos fornecem informações sobre as condições do mar, como altura de ondas, direção e velocidade de correntes e vento. “Eles são úteis para a exploração da zona econômica exclusiva, o monito-
ramento de desastres ambientais, como vazamentos de petróleo, e as operações de resgate em alto-mar”, exemplifica. Zona econômica exclusiva é a faixa do oceano que se estende até 370 km da costa sobre a qual os países têm prioridade na exploração dos recursos naturais. A empresa negocia a venda do primeiro ra-
dar desse tipo para o governo brasileiro. O mercado mundial desses equipamentos é dominado por dois fabricantes, a norte-americana Codar e a alemã Helzel – esta última, parceira da Iacit, está transferindo para a empresa a tecnologia para processamento de sinais do radar. BLOQUEADOR DE DRONE
Visão oceânica
fotos léo ramos infográfico ana paula campos ilustraçãO fabio otubo
O radar OTH 0100 da Iacit detecta embarcações a 370 km da costa Antena emite ondas eletromagnéticas de alta frequência que se propagam junto à superfície do mar e seguem a curvatura do globo
Sistema analisa o sinal, suprimindo diferentes interferências encontradas na faixa de alta frequência, e identifica a embarcação
O feixe do radar é emitido e depois refletido na embarcação. É captado de volta por antenas receptoras instaladas em forma de círculo
3 S in al d e
1 120º
Sinal de radar convencional Antena de radar convencional emite ondas eletromagnéticas que não acompanham a curvatura da terra
0 km
rad
ar su rfa ce w av e
2
370 km
Outro produto desenvolvido recentemente foi um sistema de contramedida eletrônica para bloqueio de drones. Criado com tecnologia nacional, o modelo DroneBlocker é dotado de câmeras, sensores acústicos e de frequência capazes de detectar objetos voadores não tripulados até 1.500 metros de distância. Quando isso ocorre, o bloqueador interfere na comunicação entre o drone e o seu controlador provocando o pouso do aparelho ou seu retorno ao ponto de origem de forma independente em relação a quem controla o dispositivo. A empresa fechou um contrato com o Exército brasileiro para fornecimento de oito unidades do DroneBlocker e recebeu consultas de interessados de mais de 20 países, segundo Luiz Teixeira. “O aparelho foi usado durante os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro na proteção das instalações esportivas.” Ele custa cerca de R$ 450 mil e faz parte de um conjunto mais amplo de bloqueadores de celulares, rádios e outros sinais de radiofrequência. n pESQUISA FAPESP 250 z 73
Medicina y
Proteção para recém-nascidos Pesquisadores desenvolvem um capacete plástico capaz de resfriar a cabeça de bebês
U
ma touca inflável, desenvolvida pelo grupo do médico Renato Rozental, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), poderá salvar a vida de milhares de bebês com asfixia perinatal – falta de oxigenação no cérebro –, reduzir sequelas neurológicas permanentes ou, até mesmo, evitar que elas ocorram. A touca é feita de duas lâminas de material plástico flexível superpostas, com as bordas unidas, formando um espaço interno, que, quando inflado com dióxido de carbono (CO2), se molda à cabeça do recém-nascido, formando uma espécie de capacete. O objetivo é resfriar o cérebro da criança, interrompendo as atividades elétricas anormais causadas pela falta de oxigênio, que pode causar lesões irreversíveis ou até mesmo a morte. De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), que consta da publicação Neonatal and perinatal mortality: Country, regional and global estimates, de 2006, a estimativa de mortes por asfixia em bebês nos países em desenvolvimento é de sete mortes por mil nascimentos, enquanto nos países desenvolvidos essa proporção é inferior a uma morte. Dois estudos no início da década passada, no Brasil, mostraram a prevalência de asfixia em recém-nascidos. O professor de obstetrícia da UFRJ, Jorge Rezende Filho, lembra de um estudo de 2003 feito para uma tese de doutorado defendida na Fiocruz. “Na época, o número de casos de asfixia 74 z dezembro DE 2016
perinatal, sem ser necessariamente seguido de morte, no Brasil era de 2,1% ou 21 casos por mil partos”, diz. Outro estudo, de pesquisadoras da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), publicado na Revista Brasileira de Crescimento e Desenvolvimento Humano e coordenado pela médica Maria Esther Jurfest Rivero Ceccon, chefe do Centro de Tratamento Intensivo Neonatal 2 do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas (HC) da USP, mostrou uma prevalência geral de asfixia em recém-nascidos de 3,2 por mil nascimentos durante o período de janeiro de 2004 a janeiro de 2005 na Unidade Neonatal do Hospital Santa Marcelina, no bairro do Itaim Paulista, na capital paulista. Existem vários fatores que podem levar à asfixia de bebês durante a gestação ou no momento do parto, segundo Rozental, que é pesquisador do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS) da Fiocruz e professor de neurofisiologia da UFRJ. Entre os mais comuns está o estrangulamento causado pelo cordão umbilical enroscado no pescoço, chamado de circular do cordão. “Ela pode também ser originada pelo descolamento da placenta, problema que, às vezes, ocorre durante a gestação”, acrescenta. “A asfixia pode ser causada ainda por traumas que ocorrem durante o parto.” Seja qual for a causa, a consequência é a queda da taxa de oxigenação do cérebro. Nesse caso, a situação é de emergência médica, porque algu-
fotos fiocruz ilustração alexandre affonso
com falta de oxigenação no cérebro
Portátil e leve A touca pode ser levada a lugares com pouca infraestrutura hospitalar para reduzir a temperatura cerebral em até 34º C
sua equipe buscaram uma solução para ser usada em pequenas cidades e outros locais distantes, sem assistência médica hospitalar adequada, que pudesse, ao mesmo tempo, resfriar apenas o cérebro e dar tempo de o bebê ser transportado a um centro de atendimento médico bem equipado. O capacete flexível é inflado com dióxido de carbono, um gás acessível e barato usado em hospitais, misturado ao oxigênio. Protótipo e prêmio
O CO2 é o gás que infla a touca e a resfria
Protótipos prontos para testes que devem começar em 2017 com pacientes
Fonte fiocruz
mas áreas do tecido encefálico, que variam de caso a caso, ficam mais suscetíveis a lesões. “Se não agirmos rapidamente, podem ocorrer danos neurológicos irreparáveis”, explica Rozental. “Há um período crítico, chamado de janela terapêutica, que é de no máximo quatro horas, em que o recém-nascido precisa receber tratamento.” Além de medicamento, o procedimento padrão, usado há muito tempo, é a hipotermia terapêutica em que a temperatura do cérebro deve ser reduzida para interromper a atividade elétrica anormal, que ocorre quando o cérebro não está recebendo o oxigênio necessário. A médica Maria Esther explica que todo recém-nascido com asfixia deve ser resfriado imediatamente após o parto e permanecer assim por 72 horas. “O resfriamento diminui o metabolismo no cérebro, evitando ou minimizando lesões”, diz. “Ao mesmo tempo, enquanto é resfriado, é dado ao bebê fenobarbital, medicamento que evita convulsões e pode regenerar alguns lesões cerebrais causadas pela asfixia.” O problema é que o resfriamento só pode ser feito em máquinas e equipamentos mais comuns em grandes hospitais. “Além disso, mesmo nos grandes centros de atendimento, a hipotermia é feita no corpo inteiro, pois não há equipamento para resfriar apenas a cabeça”, explica Rozental. “O risco é que esse procedimento, de baixar a temperatura corporal do recém-nascido, cause arritmia cardíaca e leve o bebê à morte.” Por isso, Rozental e
Rozental conta que a ideia de desenvolver o dispositivo surgiu há 15 anos, quando ele era professor no Albert Einstein College of Medicine, nos Estados Unidos. “Desde então, meu trabalho consiste em desenvolver estratégias terapêuticas ou equipamentos para tratar casos de baixa oxigenação, deficiências de fluxo sanguíneo e traumas do sistema nervoso central”, explica. Mas somente em julho de 2015, quando recebeu financiamento do Ministério da Saúde, e posteriormente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), foi possível criar o primeiro protótipo. Em 2017, um lote desses protótipos deverá ser usado em testes com pacientes. O objetivo é conseguir a liberação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para que a touca possa ser usada no serviço público de saúde dentro de dois anos. A touca deverá ter um baixo custo de produção. “O preço das máquinas de hipotermia usadas nos hospitais é de US$ 5 mil a US$ 30 mil”, informa Rozental. “Nosso capacete custará no começo entre R$ 600 e R$ 700, preço que deverá cair em dois anos para algo entre R$ 200 e R$ 300, conforme o escalonamento da produção. Se o produto for adotado em larga escala no Sistema Único de Saúde (SUS), nossa expectativa é de que esse valor se reduza ainda mais.” O capacete criado por Rozental recebeu o prêmio de voto popular em 2016 do consórcio “Saving Lives at Birth”, composto pela Fundação Bill & Melinda Gates, Banco Mundial e entidades governamentais dos Estados Unidos, Noruega, Reino Unido e Coreia do Sul. “O projeto foi conceituado como de inovação radical, por não existir no mercado. Foi um dos 49 selecionados entre 750 projetos de 78 países e recebeu o diploma de reconhecimento científico do consórcio.” Alguns protótipos do capacete estão sendo desenvolvidos no Instituto Vital Brazil (IVB), em Niterói, do governo do estado do Rio de Janeiro. Depois de comprovadas a funcionalidade e a eficiência, o dispositivo será produzido comercialmente por uma empresa. “Ainda temos pela frente cerca de um ano para finalizar e aprimorar o protótipo funcional ideal”, diz Rozental. “Nesse período, estamos selecionando a empresa que irá fabricá-lo em larga escala.” n Evanildo da Silveira pESQUISA FAPESP 250 z 75
humanidades ANTROPOLOGIA FORENSE y
Uma luta contra o desaparecimento
Esqueleto em análise diante dos retratos de 42 homens e mulheres procurados entre as ossadas exumadas em 1990
Texto
Maria Guimarães
Fotos
Léo Ramos
Pesquisadores de várias especialidades compõem grupo que busca identificar desaparecidos da ditadura a partir de restos mortais da vala clandestina de Perus
O
nde estão os nossos desaparecidos?” Diante da pergunta afixada na parede, cercada pelos retratos de 42 homens e mulheres desaparecidos na época da ditadura militar, uma equipe que inclui arqueólogos, médicos legistas, odontolegistas, geneticistas e bioantropólogos trabalha organizando, analisando e registrando ossadas em um processo que envolve desde ciência e tecnologia à atenção aos princípios de direitos humanos. “O grande diferencial do trabalho é o foco na equipe multidisciplinar”, declara o médico-legista Samuel Ferreira, da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) do Ministério da Justiça e Cidadania (MJC) e coordenador científico do Grupo de Trabalho Perus (GTP). Nessa casa do bairro paulistano Vila Mariana, mantida pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), funciona o GTP, que pretende identificar rostos do trágico mural no conteúdo das 1.047 caixas que abrigam os ossos retirados em 1990 da vala clandestina do cemitério Dom Bosco, em Perus, zona norte de São Paulo. Nesse processo também se pretende contribuir para sedimentar a área da antropologia forense no Brasil. Fundado em 1971, o cemitério Dom Bosco teve em 1975 uma série de exumações. “Isso normalmente é feito quando há necessidade de espaço, mas na época uma parte substancial do cemitério ainda estava vazia”, conta a arqueóloga Márcia Hattori, coordenadora da parte ante mortem do trabalho, ressaltando o caráter suspeito do procedimento. A vala clandestina criada à época foi reaberta em 1990, em grande parte por pressão de familiares de desaparecidos, que sabiam
que ali haviam sido enterradas pessoas como desconhecidos. As ossadas foram então transferidas para a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sob a responsabilidade do médico-legista Badan Palhares, onde nos primeiros anos se chegou a duas identificações por meio de um método que sobrepõe uma fotografia ao crânio, com base em algumas medidas-padrão. Mas, em meio a disputas sobre financiamento, o trabalho foi interrompido e o abandono acabou sepultando as análises já realizadas. “A abordagem de agora, científica, é diferente da que veio antes”, ressalta Carla Borges, coordenadora de Direito à Memória e à Verdade da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC). Segundo ela, aconteceram iniciativas pontuais em diferentes gestões, com apenas um esforço constante: o das famílias dos desaparecidos, que nunca deixaram de cobrar respostas. Ela ressalta que o Estado (e não gestores individuais, como determinado prefeito ou presidente no exercício do mandato) tem a responsabilidade de procurar qualquer pessoa desaparecida naquela época. “Nunca estivemos tão perto de virar essa página”, afirma, argumentando pela continuidade do esforço. Foco
O universo de busca é amplo, mas há candidatos mais prováveis cuja identificação já seria um sucesso. “Temos indicação de que os corpos de Dimas Antônio Casemiro, Francisco José de Oliveira e Grenaldo Jesus da Silva entraram em Perus”, diz Márcia. Os registros não ajudam. “As ruas do cemitério mudaram de nome nos anos 1970, o mapa das sepulpESQUISA FAPESP 250 z 77
turas é um quadriculado feito à mão e, quando há registro de exumação, não se sabe para onde foi transferido.” Ela e sua equipe recolheram informações de uma série de fontes para elaborar a lista de procurados. “Olhamos de maneira sistemática para os casos de ‘desconhecidos’ de toda a década de 1970 com o objetivo de mapear o caminho da morte na cidade de São Paulo durante o período e compreender a política de desaparecimento.” No processo de pesquisa, a equipe encontrou fotografias fornecidas pelas famílias quando a vala de Perus foi aberta, na tentativa de contribuir para a identificação: eram documentos preciosos, em um período anterior à fotografia digital. “A investigação dos crimes de ocultação acabou aprofundando o desaparecimento”, lamenta Márcia, que devolveu cópias das imagens às famílias. O GTP iniciou um trabalho que, além de forense, envolve atenção à dor de quem nunca soube o que aconteceu com pessoas queridas. Realizar o trabalho fora do IML de São
Armazenadas em 1.047 caixas em salas climatizadas (à esq.), as ossadas são lavadas sob a coordenação de Ana Tauhyl (acima)
Paulo, um local no passado associado à ditadura, faz parte disso. Pelo mesmo motivo o projeto contou com a colaboração das Equipes Argentina e Peruana de Antropologia Forense (EAAF e Epaf ), que se formaram logo em seguida aos períodos de ditadura nos respectivos países. Os dados que a equipe ante mortem levantou formam um catálogo do que deve ser procurado nas análises das ossadas: características físicas ou acontecimentos que ficam gravados nos ossos, como fraturas ou perfuração por arma de fogo. “Procuramos materializar o morto que foi desaparecido”, esclarece.
O projeto envolve um tripé institucional: a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) do MJC, de que faz parte a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo (SMDHC) e a Unifesp. Neste momento, sua continuidade é incerta, devido à mudança de gestão na prefeitura paulistana e no governo federal. Na Unifesp, a reitora Soraya Smaili foi votada em novembro para permanecer no cargo e já se manifestou favoravelmente ao prosseguimento das atividades.
Maus-tratos continuados Ossadas sepultadas no cemitério Dom Bosco, em Perus, passaram por décadas de deterioração e esforços inconstantes de identificação
1971
1975
1990
2002
2014
Cemitério Dom Bosco é fundado em Perus, zona norte de São Paulo. Presos políticos estavam entre os sepultados
Uma extensa exumação sem motivo conhecido resulta no sepultamento de restos mortais em locais não declarados
Investigações e denúncias de familiares levam à abertura da vala clandestina e à retirada de mais de mil ossadas não identificadas
Devido à paralisação das análises e às más condições a que estavam sujeitos, os ossos são transferidos para o Cemitério do Araçá, na zona oeste paulistana
O trabalho com as ossadas recomeça no recém-criado Centro de Antropologia e Arqueologia Forense
78 z dezembro DE 2016
Em uma audiência pública no dia 28 de novembro, a secretária especial de Direitos Humanos do governo federal, Flávia Piovesan, afirmou o empenho da SEDH em garantir a continuidade do trabalho. “Me sensibilizou muito o compromisso com um trabalho tão necessário”, declarou, depois de ter conhecido o funcionamento do GTP. A contratação permanente dos profissionais ainda é um problema, já que vem sendo feita com recursos da SEDH por meio de uma cooperação internacional. Os contratos têm duração de um ano e é incerto o que acontecerá a partir de janeiro de 2017, quando vence a maior parte. A secretária disse estar buscando alternativas que garantam uma equipe permanente, essencial para manter a padronização do trabalho, em adição aos peritos oficiais que devem continuar o revezamento e a integrantes da Epaf. Há recursos garantidos para o próximo ano, mas insuficientes para o que precisa ser feito, de acordo com a reitora da Unifesp. Desde 2014, quando as caixas contendo as ossadas foram transferidas para a casa batizada como Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf ), o grupo recomeçou o trabalho do início e
O GTP iniciou um trabalho que, além de forense, envolve atenção à dor de quem nunca soube o que aconteceu com pessoas queridas
já examinou 580 delas. “Precisamos de mais um ano, pelo menos, para conseguir analisar tudo”, conta a arqueóloga Ana Tauhyl, responsável pela abertura das caixas e limpeza dos ossos. Arqueologia recente
O trabalho envolve um rigor bem diferente de quando as ossadas foram retiradas da vala por coveiros, sem atenção em manter a unidade de cada esqueleto. Ainda úmidos da terra, os ossos foram postos em sacos plásticos e logo começaram a ser degradados por mofo. E não foi o pior: os sacos, com cadeiras jogadas por cima, passaram até por uma inundação na Unicamp em consequência de uma torneira deixada aberta.
Os ossos são dispostos para secagem (à esq.) e em seguida analisados por Aline Oliveira e Marina Gratão (acima)
O processo segue um protocolo elaborado pela Epaf e validado pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha e pelo Comitê Científico do projeto, seguindo parâmetros nacionais e internacionais. Cada caixa é aberta por um integrante da equipe, que dispõe os ossos para serem fotografados e descritos por Ana em formulários. Além dos ossos, as caixas abrigam ainda pistas das etapas anteriores. Sacos de plástico azul com marcação do Serviço Funerário do Município de São Paulo algumas vezes aparecem esfacelados, sinal de que já estavam dentro da vala, e outras vezes estão íntegros, por serem posteriores. Outros sacos – de plástico, pano ou TNT – datam do trabalho na Unicamp, onde sempre que possível foram presos aos crânios discos de metal com o número de identificação gravado. Muitos dos ossos ainda estão recobertos de terra. Apesar de factual, o registro fotográfico não deixa de lado um cuidado que beira o artístico na disposição dos ossos e embalagens. Tudo em meio à poeira e ao cheiro de tinta da obra em andamento na casa, cujas instalações não estão finalizadas. Depois de lavados e secos, os esqueletos são dispostos em mesas na posição dita anatômica, com ossos alinhados conforme a sua organização no corpo. Medições feitas dessa maneira permitem estimar um perfil biológico, que inclui pESQUISA FAPESP 250 z 79
Ossos alinhados em posição anatômica permitem registrar particularidades e danos sofridos
estatura, faixa etária, sexo e outras características identificadoras, se comparadas com as informações ante mortem sobre os potenciais candidatos a identificação. O ideal seria que esse processo permitisse afunilar a busca, mas o conjunto dos desaparecidos políticos procurados coincide com o perfil de boa parte dos enterrados na vala analisados até o momento: homens entre 20 e 40 anos de idade. Por isso, cerca de 70% das ossadas não podem ser descartadas. Diante do volume de trabalho pela frente, é preciso aliar rigor e pressa. “É um trabalho atrasado por si só, já se passaram 40 anos de espera”, diz a arqueóloga Patricia Fischer, responsável pelo laboratório e coordenadora do trabalho post mortem. Ela também avalia que 25% das caixas contenham mais de um indivíduo. Quando aparecem ossos suplementares, é preciso decidir qual não se encaixa no esqueleto sob análise – por cor, tamanho ou outras características morfológicas. 80 z dezembro DE 2016
O banco de dados resultante auxiliará a busca de desaparecidos nos anos 1970
Quando é possível estimar o perfil biológico, os dados são registrados em uma ficha identificada como “indivíduo B” e os ossos, guardados em sacos separados. Com isso, até 701 indivíduos podem estar representados nas 580 caixas já abertas. Em uma tarde de trabalho em novembro, a bioantropóloga Mariana Inglez documentava uma série de fraturas fei-
tas por volta do momento da morte em todo o lado esquerdo de um homem: na cabeça, em várias costelas, no braço. A pesquisadora mostra uma fratura tipo “borboleta” no úmero, o osso do braço, uma indicação de impacto. “Ele foi atingido por algo bem grande”, afirma, concordando com a possibilidade de atropelamento, enquanto segura um crânio e desenha as fraturas em um esquema à sua frente. Ela aponta uma pequena irregularidade no lado esquerdo da mandíbula, onde ela se encaixa no crânio. “Talvez ele sentisse dor nessa articulação”, supõe, anotando como possível característica para auxiliar na identificação. Na mesa ao lado o odontolegista Marcos Paulo Machado, do IML do Rio de Janeiro, analisa a dentição de outro esqueleto. “É um caso incomum na vala”, conta ele, “por ser mulher, muito jovem e com acesso a tratamento dentário”. Ele mostra restaurações de amálgama e também a raiz incompleta do terceiro molar, que indica uma idade de menos de 21 anos. Ele faz parte do grupo de peritos de vários estados do país que se revezam para contribuir ao andamento do trabalho.
Em outra mesa a arqueóloga espanhola Candela Martínez consulta as colegas Marina Gratão e Aline Oliveira sobre duas vértebras fundidas, com uma fratura ocorrida próximo à morte. O desafio era descrever, sem interpretar em excesso, fraturas feitas em vários momentos da vida nas costelas, em vértebras, em um braço. Esta última se consolidou sem atendimento médico, deixando uma irregularidade no osso. “Ele sofreu muita violência em vida, agressões domésticas não bastariam para explicar”, diz Candela sobre o homem que parece ter morrido entre os 30 e os 47 anos de idade, uma estimativa com base em índices de maturidade e desgaste de partes específicas do esqueleto. Poderia ser um morador de rua ou alguém com um trabalho muito pesado, concluem. “Ele certamente tinha dificuldades de locomoção”, avalia Marina, mais uma característica que pode ajudar na identificação. Embora o GTP esteja concentrado em vítimas da ditadura, as consequências do trabalho podem ser muito maiores. Marina conta que logo no início dos trabalhos surgiu o esqueleto de uma idosa com o crânio despedaçado. Ao juntar as peças, foi possível enxergar a causa da morte: um tiro na cabeça. Não há idosas no mural, mas o achado reforçou a necessidade de estudar todos os esqueletos. Também há indícios de que ali tenham sido sepultadas vítimas de um surto de meningite abafado pelo governo entre 1972 e 1974. Sobretudo crianças, nesse caso. “Que essas pessoas tenham ou não sofrido tortura em uma prisão, elas podem ser vistas como vítimas de violência pelo Estado – no mínimo por omissão de assistência”, diz Patricia. O Caaf pretende se estabelecer como um centro de pesquisa que possa efetuar convênios com órgãos públicos ou instituições da sociedade civil na investigação de casos de violência. O banco de dados resultante do GTP pode possibilitar a
Documentação sempre acompanha o material já estudado, até que volte para a respectiva caixa
busca de qualquer pessoa desaparecida nos anos 1970, mesmo que sem ligações políticas. Outro projeto do centro, iniciado este ano sob coordenação do médico patologista Rimarcs Gomes Ferreira, da Unifesp, envolve um caso mais recente: os assassinatos ocorridos em maio de 2006 na Baixada Santista, por ocasião dos conflitos entre a polícia e o Primeiro Comando da Capital (PCC). Genética
Um dos próximos passos do GTP, essencial para a identificação dos desaparecidos, é recorrer ao DNA. Samuel Ferreira coleta pessoalmente amostras de sangue de familiares para comparação com o material genético a ser extraído dos restos mortais. “Vamos aonde os familiares preferirem”, explica ele, que já amostrou
31 famílias residentes em 16 cidades de vários estados. Uma vez reunidas as amostras dos familiares e das ossadas, elas serão enviadas a um laboratório em Sarajevo, na Bósnia-Herzegovina, especializado na análise de restos mortais degradados e relacionados a situações de violação de direitos humanos. “O Brasil teria condições técnicas de fazer esse trabalho, mas não análises em larga escala na velocidade que o projeto demanda”, explica. A extração do DNA dos ossos não será fácil, segundo ele, devido ao mau estado de conservação, e deve começar ainda este ano. A Unifesp pretende aproveitar o ensejo para investir na formação em antropologia forense, a começar por um curso de especialização planejado para ter início em 2017. No Brasil, a formação em bioantropologia depende da iniciativa de cada profissional. A união entre direitos humanos e ciência é um legado que o GTP pretende deixar ao país. “O procedimento científico que está sendo seguido nos dá segurança, alento”, afirma Amparo Araújo, que perdeu o marido e o irmão durante a ditadura. O corpo do marido, sem o crânio, foi encontrado no cemitério de Perus. Ela tem esperança de identificar o irmão entre as ossadas da vala, e para isso já teve seu sangue retirado algumas vezes, desde a fase da Unicamp. Com a falta de continuidade, porém, as primeiras amostras se perderam. “Nunca explicavam para que aquilo serviria, o que estava acontecendo”, lembra, em contraste com a transparência que destaca no processo atual. Recentemente, Amparo viu um homem na rua e por uma fração de segundo achou que fosse o irmão. “Mas não podia ser, se passaram 45 anos e ele teria 70 anos, seria diferente do que me lembro.” Ela define o desaparecimento como uma morte que não se conclui. “Não vamos abrir mão da presença da universidade”, afirma, em nome do Comitê de Acompanhamento, formado por familiares. n pESQUISA FAPESP 250 z 81
TEORIA POLÍTICA y
A permanência de
Hannah Arendt Aos 110 anos de seu nascimento, os fundamentos lançados pela pensadora continuam férteis Márcio Ferrari
P
assados 110 anos de seu nascimento, completados em 14 de outubro, e 41 anos de sua morte, a pensadora alemã Hannah Arendt adquiriu status de autor clássico e desfruta de consenso em torno da importância de sua obra, segundo Celso Lafer, professor emérito da Universidade de São Paulo (USP). Lafer foi aluno de Hannah Arendt em 1965 na Universidade Cornell (Estados Unidos), época em que, segundo ele, a pensadora era conhecida, mas controversa, entre outros motivos, por seu diagnóstico da atuação de Adolf Eichmann, alto funcionário da Alemanha nazista encarregado da deportação em massa de judeus para campos de concentração. Para Arendt, o militar era como a peça de uma engrenagem, que agia sem os benefícios da razão e do pensamento, um homem comum, o que a levou a cunhar a
expressão pela qual é mais conhecida do grande público, “a banalidade do mal”. Sua reflexão sobre o julgamento de Eichmann em Israel (1961) foi publicada primeiro como reportagem para a revista New Yorker e depois no livro Eichmann em Jerusalém (1963). Arendt foi acusada de minimizar ou relativizar a crueldade do nazismo, sem que se percebesse a coerência de uma obra que teve seu marco fundador no livro As origens do totalitarismo (1951), no qual descreveu os regimes nazista e stalinista como voltados para uma dominação absoluta e que não poderiam ser estudados com referências do passado, dadas suas características inéditas. É essa coerência, de acordo com Lafer, que hoje se reconhece e permite que sua obra produza reflexões em artigos e livros publicados anualmente. O ex-aluno recorre às condições
fotos youtube
Reprodução de cenas do documentário Hannah Arendt – Ein portrait (2006), do alemão Jochen Kölsch: escritos continuam atuais
reunidas pelo cientista político italiano Norberto Bobbio (1909-2004): sua obra é uma interpretação esclarecedora do século XX, instiga contínuas leituras e releituras, e seus conceitos se mantêm válidos para entender o mundo atual. “O que ela escreveu continua reverberando nos problemas com os quais nos defrontamos”, afirma Lafer, ex-presidente da FAPESP. Os escritos de Arendt hoje não se restringem aos estudos exclusivos sobre teoria política – que a pensadora reivindicava como sua área de atuação, rejeitando o epíteto de filósofa –, mas se tornam ferramentas para pensar a educação (ver Pesquisa FAPESP nº 247), a condição da mulher, as relações internacionais ou as instituições norte-americanas (a pensadora viveu nos Estados Unidos de 1941 até sua morte, em 1975). “O desafio que Hannah Arendt se impôs foi como lidar com um mundo que perdeu os andaimes conceituais da tradição, sem recorrer ao corrimão de conceitos corroídos pela realidade”, diz Lafer. “Vem daí a importância da atividade do julgar, em toda sua complexidade, atentando para as singularidades de cada caso, sem subsumi-los a categorias universais.” No lugar de conceitos utilizados de antemão, Hannah Arendt propôs a experiência. Nesse aspecto, foi uma autora privilegiada para a abordagem dos direitos humanos. A pensadora viveu a situação de apátrida desde que, por ser judia, foi
perseguida, presa e destituída da nacionalidade alemã pelo regime nazista, em 1937, até conseguir a nacionalidade norte-americana, em 1951. Não é por outro motivo que o Centro de Estudos Hannah Arendt, ligado à Faculdade de Direito da USP, escolheu, como tema do colóquio dedicado a marcar os 110 anos do nascimento da pensadora, o tema A questão das migrações e os direitos humanos. “Ela era muito crítica em relação aos direitos humanos estabelecidos pela Revolução Francesa”, diz Laura Mascaro, pesquisadora e coordenadora do centro, ao lado de Claudia Perrone-Moisés, professora da Faculdade de Direito da USP. “Para ela, esse conceito estaria vinculado ao pertencimento a um Estado e cessaria na medida em que estrangeiros não fossem mais úteis ao país em que se encontravam, o que levaria ao acolhimento de imigrantes apenas de forma precária.” Surge daí o conceito do “direito a ter direitos”, próprio de toda a humanidade e que deveria ser o fundamento de todo o direito internacional. Laura é, com os pesquisadores Luciana Garcia de Oliveira e Thiago Dias da Silva, a responsável pela tradução dos artigos reunidos em Escritos judaicos, lançado este ano pela primeira vez no Brasil pela editora Manole. São ensaios a respeito de “uma das poucas causas em que ela se engajou, a construção da Palestina como um Estado federado binacional”, e relacionados à obtenção pESQUISA FAPESP 250 z 83
de direitos pelo povo judeu, destituído de pátria ao longo de séculos. Segundo Laura, entre outros interesses atuais do texto, Hannah Arendt previa que, sem diálogos e acordos entre judeus e palestinos, além dos países vizinhos, Israel estaria destinado a se tornar um país em permanente estado de guerra. Sua proposta era a criação de um Estado binacional judeu-palestino estruturalmente diferente dos Estados-nações europeus. Seria uma democracia fundada em governos locais autônomos formados por judeus e árabes. As duas partes se organizariam para discutir os problemas comuns, em uma federação vertical de diversos níveis de conselhos. Mundo compartilhado
A ideia da organização política por meio de um mundo compartilhado era cara a Hannah Arendt e fazia parte da preocupação com a necessidade de ampliar a democracia dos Estados modernos. O principal fator para isso seria a ação política de todo ser humano. “A ação política transborda a ideia de democracia representativa por não se restringir ao campo das instâncias definidas pelo direito”, esclarece André Duarte, docente do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), estudioso da obra da alemã. De acordo com o pesquisador, o estudo da pensadora sobre o modus operandi do totalitarismo a fez detectar o estabelecimento da lógica de uma ideia – no caso do nazismo, a superioridade ariana. Essa lógica passa a ter condição de premissa, o que leva o Estado a prescindir de outros fundamentos, e isso produz solidão individualista e desconfiança geral na sociedade. “Um Estado não vinculado a fundamentos morais demandaria os espaços de compartilhamento, no qual a ação política constituiria sua própria essência”, afirma Duarte. Nem mesmo a liberdade seria uma finalidade em si, mas uma condição para a ação política. Adriano Correia, professor de ética e filosofia política da Universidade Federal de Goiás (UFG), lembra que, para Arendt, a ação política só se exerce por quem ama o mundo. “Uma política que não é amada pelos indivíduos não abre espaço para a participação”, explica. Correia é autor da revisão técnica da nova edição (a 13ª) de A condição humana (1958), lançada em outubro pelo selo Forense Universitária do Grupo Editorial Nacional (Gen), com introdução da cientista 84 z dezembro DE 2016
Escritos judaicos, livro recém-lançado, reúne ensaios traduzidos política inglesa Margaret Canovan, hoje aposentada. Segundo ele, um dos aspectos fundamentais do livro é a apresentação da crítica da autora às democracias modernas por terem promovido o primado da economia sobre o campo da política. Embora Hannah Arendt tenha escrito o livro no período da Guerra Fria, observa Correia, ele tem sido mais discutido após a queda do Muro de Berlim (1989), em grande medida devido ao poder alcançado pelo capital internacional. A filósofa Yara Frateschi, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp), considera o pensamento político de Arendt continuamente fértil “porque é muito crítico em relação ao funcionamento da sociedade, mas ao mesmo tempo interessado em seus potenciais”. De acordo com a pesquisadora, a pensadora defende que é preciso contrabalançar os conceitos universalistas com as diversidades, os contextos e as especificidades. “Para ela, o universalismo por si só poderia se tornar um fantasma que perpetuaria injustiças”, conta. Segundo Yara, Arendt era uma entusiasta da desobediência civil e via os períodos revolucionários como propícios a experiências políticas interessantes, mas rejeitava absolutamente a violência política por ser “a destruição de pontes que propiciam a construção de acordos e leis para uma vida comum – toda violência levaria ao perigo da dissolução absoluta do indivíduo, como no totalitarismo”. n
LITERATURA y
As flutuações de Dostoievski
Segundo estudo, prestígio dos escritores russos na primeira era Vargas oscilou ao sabor da política
reprodução sérgio guerini
E
Xilogravura de Axl Leskoschek ilustra passagem de Os demônios, publicado no anos 1940
m 1943, o jurista e jornalista Clovis Ramalhete, em artigo na revista Diretrizes intitulado “Dostoievski na rua do Ouvidor”, dizia que nos anos anteriores “sucessivamente foi Dostoievski no Brasil um romancista de morro, um novelista de beira-rio, um trocadilhista notívago e outros tipos frequentes no registro civil da literatura brasileira”. Não é possível saber ao certo a quem Ramalhete se referia cifradamente, mas a ironia é clara: o romancista russo Fiódor Dostoievski (1821-1881) havia se tornado uma referência literária onipresente no país, ainda que pudesse ser adaptado a contextos muito diferentes entre si. O pesquisador Bruno Barretto Gomide, professor de língua e literatura russa na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), tomou emprestado o título do artigo para sua tese de livre-docência, aprovada em agosto deste ano, que trata das relações entre a recepção da literatura russa nos meios políticos e culturais brasileiros e as “flutuações políticas da era Vargas” – referindo-se ao período de 1930 a 1945, em especial o regime ditatorial instaurado depois de 1937. Uma das conclusões da pesquisa é que, no fim dessa época (1944-1945), com a publicação de uma coleção de obras do autor pela editora José Olympio – que ficava na rua do Ouvidor, centro do Rio de Janeiro –, Dostoievski “ganhou um caráter ecumênico” no Brasil. pESQUISA FAPESP 250 z 85
Gomide, que havia estudado a recepção a Dostoievski no país entre 1888 e 1937 em seu doutorado, origem do livro Da estepe à caatinga (Edusp, 2011), dedicou-se durante oito anos à pesquisa da era Vargas, trabalhando em quatro eixos inter-relacionados: a crítica literária brasileira; o mercado editorial destinado aos russos, com destaque para a coleção da José Olympio; a atuação dos órgãos de censura estadonovistas em relação à literatura russa e a política cultural soviética para difusão internacional de seus escritores. Além do levantamento e da análise de textos de imprensa e livros publicados no Brasil, Gomide realizou, com apoio da FAPESP, viagens à Rússia (Moscou e São Petersburgo) e aos Estados Unidos (para consultas ao sistema de bibliotecas da Universidade Harvard), nas quais estudou, entre outros tópicos, a recepção à literatura russa em vários países “para detectar aproximações e diferenças em relação ao caso brasileiro”. Já com o objetivo de aferir os efeitos da censura estatal a Dostoievski no Brasil, Gomide verificou o aparecimento e desaparecimento do autor na coleção de livros didáticos da Faculdade de Educação da USP. queda abrupta
“A forma como os atores políticos e culturais se relacionaram com a literatura russa, mobilizando paixões pró e contra, permite traçar um bloco significativo da história cultural brasileira”, defende Gomide. Houve, segundo ele, entre o início e meados dos anos 1930, aquilo que o crítico Brito Broca qualificou de “febre de eslavismo”: várias editoras, muitas associadas a intelectuais e gráficas de esquerda, publicavam livros de escritores russos, coincidindo com as políticas de divulgação literária da União Soviética (URSS) e a formação, no plano internacional, de redes de apoio ao regime e ao povo do país. Com o levante comunista liderado por Luiz Carlos Prestes em 1935 e a instauração do Estado Novo em 1937, a publicação de obras russas sofreu uma queda abrupta, só voltando a ganhar força no final de 1942. Gomide observa que, mesmo com essa oscilação, a literatura russa nunca esteve totalmente ausente do cenário brasileiro, mas os autores publicados eram os do século XIX, não os posteriores à revolução comunista de 1917. Seja na alta ou na baixa, a recepção 86 z dezembro DE 2016
No Estado Novo, um tradutor foi chamado a depor e houve apreensão de materiais relativos à literatura russa
brasileira durante o período sempre esteve referenciada por matizes políticos. Durante a era Vargas, o pesquisador identifica três grupos de leitores críticos. Um deles defendia que a literatura russa do século XIX nada tinha a ver com o bolchevismo. Faziam parte desse grupo intelectuais católicos como Alceu Amoroso Lima e Tasso da Silveira, alguns deles vinculados ao integralismo (o movimento político brasileiro aparentado com o fascismo). “Para eles, a revolução havia enterrado a literatura russa”, afirma Gomide. Havia um segundo grupo que, apesar da dimensão antirrevolucionária de autores como o próprio Dostoievski, via uma relação direta entre suas obras e a revolução. “Eles consideravam que todos os escritores do período eram de esquerda e usavam como argumento o confronto de alguns, como Dostoievski e Leon Tolstoi (1828-1910), com o Estado”, diz Gomide. O terceiro grupo tinha uma visão intermediária: seus integrantes acreditavam que as obras desse conjunto
de escritores “profetizava” o futuro próximo, mas não podia ser responsabilizada pela revolução. Uma figura de proa dessa tendência – que via Dostoievski “com um misto de fascínio e terror”— foi Gustavo Barroso, teórico do integralismo. “A queda na publicação dos russos ocorrida com o Estado Novo coincide com a repressão policial violenta aos intelectuais de esquerda”, observa o pesquisador. “Os editores se assustaram e se viram dissuadidos de publicar os russos.” Um caso emblemático da mudança de cenário foi o do intelectual modernista Jaime Adour da Câmara, que, no final dos anos 1920, havia viajado para a URSS por interesse na literatura do país. Mas uma notícia na revista Dom Casmurro, em 1937, deu conta de que Adour havia abandonado um estudo sobre Tolstoi porque viajara “para o mato”. Gomide ressalta que vários outros intelectuais da época foram igualmente “para o mato”. “Os intelectuais de esquerda se calaram, e muitos vieram a trabalhar nas esferas do Estado Novo.”
reproduções sérgio guerini
Nesta e na outra página, xilogravuras de Axl Leskoschek, austríaco radicado no Brasil, para a edição brasileira de Os irmãos Karamazov
Um momento-chave nessa fase foi a convocação policial do único tradutor direto do russo na época, Georges Selzoff. “A polícia o aconselhou a parar”, conta Gomide. Prontuários encontrados pelo pesquisador nos arquivos do Departamento de Ordem Pública (Deops) registram ações diretas de apreensão de materiais relacionados a assuntos russos. Em 1945, uma crônica do poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Livros assassinados, lembrava a então recente perseguição a livros de todos os autores cujos sobrenomes terminassem em “ov” e “inski”. Mesmo o regime soviético, segundo Gomide, nunca viu com bons olhos a literatura de Dostoievski. Seu material de difusão cultural para o exterior não incluía livros nem textos do autor. “Dostoievski era visto como um gênio cruel,
um talento usado para o mal”, afirma o pesquisador. “Para o regime, as obras do autor eram pautadas por patologias e estados perversos que não correspondiam ao que uma sociedade do futuro desejava.” Gomide lembra que Dostoievski era, também do ponto de vista diretamente político, um personagem que o governo comunista preferia deixar de lado: todos os romances da fase final do escritor – os mais conhecidos, como Crime e castigo e Os irmãos Karamazov, e principalmente Os demônios – continham polêmicas com a esquerda russa. alma russa
As coisas começaram a mudar no Brasil conforme, no fim da ditadura Vargas, o governo se aproximou dos aliados durante a Segunda Guerra Mundial, em especial depois da batalha de Stalingra-
do, entre 1942 e 1943, na qual o Exército russo derrotou as tropas nazistas, marcando a virada do conflito. O mercado editorial brasileiro rapidamente reagiu aos novos tempos. A José Olympio lançou a coleção Dostoievski, a primeira no Brasil dedicada a um único escritor estrangeiro (simultaneamente a editora Globo publicava as obras do francês Honoré de Balzac). Nesse período de fim de ditadura, Gomide detecta uma conciliação entre as tendências de esquerda e direita. Nunca se publicou tanta literatura russa no Brasil como nessa época, embora na maioria das vezes por meio de traduções feitas do francês ou do inglês. O pesquisador contabilizou 83 títulos entre 1943 e 1945 – volume maior do que o da voga atual, iniciada em fins dos anos 1990, em que se destacam as traduções diretas consideradas de excelente qualidade feitas por nomes como Paulo Bezerra e Boris Schnaiderman (1917-2016). Este último, a rigor, já traduzia do russo desde a década de 1940. Para Bezerra, professor aposentado da Universidade Federal Fluminense, que traduziu, entre outros, Crime e castigo, com mais de 120 mil exemplares vendidos desde 2002, “a tradução direta faz o leitor sentir a autenticidade das personagens e o ritmo da narrativa”. Na atual “febre de eslavismo”, a avaliação da popularidade de Dostoievski, para Bezerra, se deve “à atualidade dos problemas não resolvidos pela sociedade moderna e à forma revolucionária de seus romances, em que os representantes dos vários segmentos da sociedade se manifestam com a mesma importância”. Andrea de Barros, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), que estudou a recepção de Dostoievski no Brasil, afirma que o início da boa acolhida internacional ao escritor, no século XIX, se deveu a uma ideia de que “havia naquela literatura uma espécie de redenção do positivismo europeu”. Segundo ela, “ainda hoje a ideia de uma ‘alma russa’, uma visão romântica da Rússia e dos russos, permeia o imaginário dos leitores brasileiros”. n Márcio Ferrari pESQUISA FAPESP 250 z 87
memória
Doutor Benignus e os
extraterrestres
Inspirado em Júlio Verne, o português Augusto Emílio Zaluar escreveu o primeiro romance de ficção científica publicado no Brasil Carlos Fioravanti
A
primeira edição do romance de aventuras A volta ao mundo em 80 dias começou a circular em Paris em 1873. A ilha misteriosa chegou no ano seguinte, ambos com a assinatura do escritor francês Júlio Verne (1828-1905), que o jornalista e escritor Sérgio Augusto, em um artigo de 2011 no jornal O Estado de S. Paulo, definiu como “o produto literário mais delirante que o cientificismo do século XIX gerou com os olhos voltados para o século XX”. Ele se referia aos artefatos que, embora ainda não existissem, Verne criou para suas histórias: do submarino ao canhão de longo alcance, da vitrola à bomba atômica. Em 1º de julho de 1875, O Globo, do Rio de Janeiro, começou a publicar os capítulos de O doutor Benignus, o primeiro livro de ficção científica de inspiração verniana escrito no Brasil, que saiu em livro no mesmo ano. Seu autor era o escritor e jornalista português naturalizado brasileiro Augusto Emílio Zaluar (1826-1882), admirador das obras de Verne. “O próprio Zaluar disse que Júlio Verne era um modelo a ser seguido, mas também afirmou que sua obra era original, porque valorizava, como ele mesmo escreveu, as ‘prodigiosas riquezas científicas do nosso continente’”, observa o historiador Lucas de Melo Andrade, professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Paraná (IFPR) em Paranavaí, 88 | dezembro DE 2016
O Globo de 1º de julho de 1875: capítulos diários se transformaram em livro no mesmo ano
Ilustrações de livros de Júlio Verne (ao lado e abaixo)
jornal reprodução ilustrações wikipedia
Júlio Verne e Augusto Zaluar (à dir.), seu discípulo português radicado no Rio de Janeiro
que analisou O doutor Benignus em 2014 como pesquisador da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop). Segundo ele, o livro participou do processo de expansão e institucionalização da ciência no Brasil – o Jardim Botânico havia sido inaugurado em 1808, a Academia Real Militar em 1810 e o Museu Nacional em 1818 – e da delimitação de áreas de especialização pelos cientistas profissionais. Além disso, expressa a preocupação em atingir o público geral por meio da então chamada vulgarização científica. Mesmo depois de sua publicação, Zaluar manteve um pé nessa área, ao dirigir O Vulgarisador, uma das primeiras publicações nacionais voltadas à divulgação de ciências, impressa no Rio de Janeiro de 1877 a 1880. Zaluar começou a construir sua base de conhecimentos científicos ao cursar, embora sem concluir, a Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, onde nasceu. Embarcou para o Brasil em
1849 e assumiu seu gosto pelo mundo das letras: traduziu obras literárias do francês para jornais do Rio, publicou o livro de poesias Dores e flores, foi redator de O Álbum Semanal e escreveu um relato de viagens, Peregrinação pela província de São Paulo, antes de mergulhar em sua obra de ficção científica. “O doutor Benignus é uma obra engajada politicamente, que defende o conhecimento científico como forma de chegar ao progresso e de construir a identidade do país”,
diz Andrade. Reeditado em 1994 pela Editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o livro relata as aventuras de doutor Benignus, médico e cientista amador, e uma comitiva de 30 pessoas – entre elas o francês M. Gustavo de Fronville, estudante de ciências naturais, e o inglês Jaime River, que participa da expedição com a esperança de encontrar seu pai, o inglês William River, que possivelmente havia sido preso por indígenas – pelo interior do Brasil. Enquanto percorrem as
matas de Minas Gerais e de Goiás à procura de indícios de extraterrestres, observam e descrevem o céu e os planetas. Ao observar Marte por seu telescópio, Benignus identifica florestas e conclui que o planeta avermelhado seria habitado. Adiante, ele reconhece as manchas da superfície do Sol e diz que seu núcleo também poderia ser habitado, pois não teria a mesma consistência que a superfície. Benignus pretende provar que o homem americano teria surgido no Brasil e daqui migrado para outros continentes, em consonância com um dos temas científicos debatidos naquela época no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Para fundamentar sua visão nacionalista, ele recorre primeiramente ao paleontólogo dinamarquês Peter Wilhelm Lund (1801-1880) (ver Pesquisa FAPESP no 247), que defendia essa proposta com base nos esqueletos humanos que havia encontrado em cavernas da região de Lagoa Santa, no estado de Minas Gerais. Ele argumenta também com base nos estudos do naturalista suíço Jean-Louis-Rodolphe Agassiz (1807-1873), adepto PESQUISA FAPESP 250 | 89
•• Apareceu diante dele uma figura luminosa, semelhante ao que se pode idear de mais perfeito na forma humana, massa cósmica, espécie de chama
Ilustração de A guerra dos mundos, de H. G. Wells
cor de ouro, que se agitava às mais ligeiras ondulações do ar, sem perder nunca a pureza dos contornos. — Dr. Benignus, disse-lhe a maravilhosa aparição, eu sou o habitante que tu procuravas inutilmente nas regiões do espaço.
90 | dezembro DE 2016
das ideias de Lund, que viajou pelo Brasil coletando peixes. Como lhe parecia impensável que brancos, índios e negros tivessem a mesma origem, Agassiz se opunha à teoria da evolução de Charles Darwin (1809-1882), também lembrado no livro. “Zaluar se inclina a uma defesa das teses de Darwin, o que em si só representa uma posição bastante distinta da de seus contemporâneos”, observou o antropólogo Edgar Indalecio Smaniotto, professor da Faculdade de Ensino Superior do Interior Paulista (Faip) e autor de A fantástica viagem imaginária de Augusto Emílio Zaluar (Editora Corifeu, 2007). “Há diversas referências indiretas à teoria da evolução no livro, até que, durante uma caçada, os homens que acompanham Benignus matam um orangotango para o jantar. Katine, o cozinheiro de Benignus, se recusa a cozinhar aquele que pode ser um de seus antepassados ‘em linha transversal’.”
•• É verdade, por que não será o Sol e os outros mundos habitados? A Terra em que nós existimos e encerra tantas maravilhas não passa no entanto de um ponto insignificante no espaço.
Em meio à viagem doutor Benignus encontra um alienígena vindo do Sol, suposto representante de civilizações mais evoluídas que a humana. O extraterrestre diz ao médico para continuar ensinando ciência ao povo e lhe assegura que ele, com sua luta pelo conhecimento, ajudará a transformar o continente em uma terra reconhecida “pelas nações civilizadas e pelo povo do Sol”. Smaniotto observa que o alienígena do livro não ficararia sozinho por muito tempo como personagem literário. Outros aparecem em livros como A guerra dos mundos, lançado em 1898 pelo escritor inglês Herbert George Wells (1866-1946). “A grande crítica que se faz a Zaluar é que ele não aproveitou a tecnologia como poderia, a não ser quando menciona os aparelhos elétricos de iluminação, em uma época em que a lâmpada incandescente ainda não havia sido inventada”, diz Smaniotto. Os jornais do Rio de Janeiro elogiaram o livro. Em 1875, a Revista Médica vaticinou: “Se corrigir um ou outro senão, como seja o sobrecarregar às vezes os períodos com grande número de citações técnicas, chegará a ter popularidade do talentoso escritor francês J. Verne”. Zaluar não chegou a tanto. “Se a estrutura picaresca de O doutor Benignus não foi suficiente para garantir o nome de seu autor nos compêndios de história da literatura, é justamente porque, como literatura, o texto realmente é fraco e enfadonho”, observa Ricardo Waizbort, pesquisador da Fiocruz especializado em literatura
•• Tudo na criação é coerente, lógico,
Capa da edição de 1994 e anúncio do livro na Gazeta de Notícias de 1875
existe em virtude de leis absolutas e universais, de princípios eternos;
2
menos o homem
jornal reprodução ilustrações wikipedia
que é um ser e na história da biologia, em um artigo de 2012 na Revista Brasileira de História da Ciência. Smaniotto discorda: “Zaluar de fato não entrou na elite dos grandes escritores brasileiros, mas O doutor Benignus não é fraco nem enfadonho”. O livro começou a circular quando romances (de ficção não científica) conquistavam com rapidez o gosto popular, como A mão e a luva, de Machado de Assis (1874), e Senhora, de José de Alencar (1875), que chegavam na esteira de Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, publicado inicialmente no Correio Mercantil de 1852 a 1853. Andrade reconhece traços românticos no livro de Zaluar, como a visão subjetiva dos fenômenos naturais e a ideia de que o mundo não poderia ser entendido apenas pela razão. “O livro é completamente religioso, já que a todo momento
fala na existência de Deus, outro traço romântico”, afirma Andrade. Foi também na forma de folhetim que o historiador, romancista e senador Joaquim Felício dos Santos (1828-1895) publicou de forma descontínua, de 1868 a 1872, em seu próprio jornal, O Jequitinhonha, da cidade mineira de Diamantina, suas duas viagens imaginárias, A história do Brasil escrita pelo dr. Jeremias no ano de 2862 e sua continuação, Páginas da história do Brasil escrita no ano de 2000. Em um artigo de 2012 na revista Remate de Males, Ana Cláudia Romano Ribeiro, graduada em letras, professora da Universidade Federal Paulista (Unifesp) e pesquisadora colaboradora do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), define os dois trabalhos de Santos como “protoficção especulativa e crônica política”, já que ambos
consistem em um “retrato cáustico do Brasil imperial de Pedro II”. Levado ao futuro por um médium, o imperador ganha um nome alemão, dr. Muller, e passeia por um Brasil republicano, com 122 estados e 142 milhões de habitantes, cuja capital é Guaicuí, em Minas Gerais. Depois de O doutor Benignus, a ficção científica emerge esporadicamente no Brasil, como no conto O imortal, de Machado de Assis, lançado em 1882 na revista feminina carioca A Estação, até se firmar na primeira metade do século XX com autores dedicados a essa área, como Jeronymo Monteiro (1908-1970), com Três meses no século 81, de 1947, e A cidade perdida, de 1948, e Berilo Neves (1901-1974), com seu A costela de Adão, de 1932, e alguns ocasionais, como o médico Gastão Cruls (1888-1959), que escreveu A Amazônia misteriosa, de 1925, considerado um clássico dessa área no Brasil. n
essencialmente contraditório. […] É por isto que quase sempre não nos entendemos uns aos outros.
Veja em revistapesquisa.fapesp.br os originais de O doutor Benignus publicados em O Globo de 1875 e indicações de livros recentes do Clube de Leitores de Ficção Científica PESQUISA FAPESP 250 | 91
resenha
O trágico das relações raciais no Brasil Laura Moutinho
O intelectual feiticeiro: Edison Carneiro e o campo de estudos das relações raciais no Brasil Gustavo Rossi Editora da Unicamp 280 páginas | R$ 48,00
92 | dezembro DE 2016
experimentações políticas e estéticas, foi o momento em que sua adesão aos ideais de esquerda começa a brotar. Carneiro provocou tensões no campo dos estudos afro-brasileiros ao interpretar a obra de Nina Rodrigues, as religiões e culturas afro, tomando como base o materialismo histórico. Religiões que ele defendeu lutando pela liberdade de manifestações religiosas e argumentando em favor dos direitos de seus praticantes se organizarem civil, política e autonomamente. Conspira de modo tenso nesse cenário tanto seu relacionamento amoroso e intelectual com a antropóloga norte-americana de origem judaica Ruth Landes (1903-1949), cujas teses elaboradas com seu auxílio contrariavam o mainstream da época, quanto as ambíguas relações com Arthur Ramos e Gilberto Freyre, que disputavam a hegemonia do campo intelectual daquele momento. A militância comunista diminuiu as chances de ingresso no magistério superior e ainda provocou prisões, difamações e perseguições. O percurso do “intelectual desabrigado”, não assistido pelas instituições acadêmicas e associado a modelos de análise gastos, permite-nos entrever a força do racismo e os limites de seu espaço de manobra. Nesse sentido, o trabalho de Rossi vem contribuir de modo eloquente para o campo da antropologia, das relações raciais e daqueles que se dedicam às “aldeias arquivos” – na feliz expressão de Sérgio Carrara –, especialmente em um país que não diferenciou seus cidadãos constitucionalmente com base na cor/raça, mas onde a raça atuou e atua de forma contundente como um mecanismo de subalternização e exclusão. O momento atual ganha perspectiva quando comparado ao espaço intelectual marcado por extremadas demandas políticas e simbólicas, envolvendo status social, oligarquia de gênero e raça, ruínas financeiras e pobreza. A antropologia e a sociologia têm se beneficiado enormemente de análises desse tipo pela possibilidade de dar inteligibilidade aos mecanismos produtores da desigualdade racial e social no Brasil. Laura Moutinho é professora do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-graduação em Antropologia da USP. É autora de Razão, cor e desejo: Uma análise dos relacionamentos afetivo-sexuais inter-raciais no Brasil e África do Sul (Editora Unesp, 2004), publicado graças ao prêmio Edusc\Anpocs de Melhor Tese de Doutorado de 2003.
eduardo cesar
A
ngustiante, tocante e intrigante. Adjetivos extraídos da própria obra e manejados habilmente por Gustavo Rossi ao longo da análise da trajetória de Edison Carneiro (19121972) – que ilumina o preconceito e o trágico das relações raciais no Brasil – marcam a leitura desse livro imprescindível. O retrato que vai se desenhando desde a introdução de O intelectual feiticeiro: Edison Carneiro e o campo de estudos das relações raciais no Brasil opera na gramática da perda e do dano, que se constrói na ausência da própria voz do personagem: o escritor, etnólogo e advogado Edison Carneiro não deixou material autobiográfico, apenas algumas poesias. Destas, o autor extrai o jogo dramático da classificação por cor/raça na Salvador da primeira metade do século XX. A morte precoce e o incêndio acidental que consumiu os escritos do intelectual, logo depois de seu falecimento, talvez sejam os responsáveis por mais esse apagamento. O emaranhado do itinerário social e intelectual de Carneiro remete a outras trajetórias marcadas pela dor e pela exclusão, como a do escritor Lima Barreto, mais distante em termos históricos, e de outras mulheres negras e homens negros, com trajetórias igualmente trágicas, que tiveram destaque nas décadas de 1970 e 1980: Lélia González e Beatriz Nascimento, Eduardo de Oliveira e Oliveira são intelectuais e militantes que enfrentaram a morte precoce, o racismo, o sexismo e o trágico. Essa combinação de marcadores da diferença não é autoevidente nem na vida de Carneiro nem na de outros intelectuais. A análise de Rossi permite que acompanhemos tanto o campo de manobras do escritor quanto seus limites e entraves, especialmente no que tange à questão racial que conspirou para a marginalidade, a subalternização e a falta de reconhecimento daquele que seu amigo Aydano do Couto Ferraz definiu como “uma vocação perdida” e um “talento desvirtuado”. O trágico não se confunde com vitimismo. O literato frustrado na juventude é desenhado por Rossi em paralelo ao ambiente familiar sempre tumultuado, no qual raça e cor (negritude e mestiçagem, produzidas entre homens mais escuros e mulheres mais claras) foram manejadas com o auxílio de toda sorte de distinções. A participação no movimento Acadêmica dos Rebeldes, com suas
obituário y
Uma vida pela anatomia Berta Lange de Morretes dedicou três quartos de século ao estudo e ensino da botânica |
Maria Guimarães
Francisco Emolo / Jornal da USP
F
aleceu no dia 30 de novembro, aos 99 anos, a botânica Berta Lange de Morretes, por mais de 70 anos professora no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP). “Até 2013 ela ainda dava aulas na pós-graduação”, conta a colega Gladys Flavia Melo de Pinna, que herdou sua sala no Departamento de Botânica. A partir de 2014 a professora quase centenária passou a ficar em casa, por dificuldades de locomoção. “A mente estava boa, o corpo não.” Por desejo da própria Berta, registrado em cartório, o instituto continuará a ser sua morada: suas cinzas foram depositadas na base da árvore que plantou por ocasião de seus 90 anos, em 2007 – um pau-brasil. Nascida na Alemanha, de pai brasileiro e mãe alemã, Berta veio para o Brasil aos 2 anos. Instalada inicialmente em Curitiba, a família se mudou para São Paulo alguns anos depois, quando o pai foi contratado como zoólogo no Museu Paulista. Berta integrou, junto com a irmã, a primeira turma do curso de história natural da USP, iniciada em 1938. Em 1941 se formou e tornou-se docente – o doutorado viria depois – e contribuiu para a formação do Departamento de Botânica, aprendendo com os fundadores. “Anatomia ecológica das plantas do Cerrado é quase sinônimo de seu nome”, avalia Gladys. Segundo ela, a professora, que era chamada de doutora Berta, se concentrava mais no funcionamento das folhas, mas investigava todos os aspectos da anatomia das plantas relacionados a como elas se adaptam às características do ambiente. Ao se tornar docente no IB, em 2003, Gladys logo se aproximou da colega por
A professora em 2011, em sua sala no Departamento de Botânica
interesses em comum. “Eu trabalhava com anatomia de plantas da Caatinga, ia muito conversar com ela.” Alguns anos depois as duas empreenderam um projeto de digitalizar todas as lâminas com cortes de tecidos vegetais para análise ao microscópio, que Berta usava em aulas na graduação e na pós-graduação. “São centenas de lâminas, é um acervo riquíssimo e muito antigo”, conta Gladys, que está estudando como montar um site para disponibilizar o material aos pesquisadores. Conhecimento compartilhado
Durante o processo de fotografar todas as lâminas, as duas trabalharam diariamente juntas por quase um ano em 2010. Quando deixou de usar a sala que fora sua por mais de 50 anos, Berta temeu perder todo o material bibliográfico e de pesquisa que tinha acumulado. A questão se resolveu com o compartilhamento oficial da sala com Gladys, que na prática assumiu o espaço e se comprometeu a manter o acervo.
Além das décadas de aulas, Berta também disseminou o conhecimento em sua área pela tradução, em 1973, do livro Anatomia das plantas com sementes, de Katherine Esau, supervisora de seu estágio de pós-doutorado nos anos 1960 na Universidade da Califórnia em Davis. “Foi o primeiro livro de anatomia publicado aqui, o que deu acesso à disciplina aos brasileiros de todos os cantos”, diz Gladys. Acesso ao conhecimento era uma prioridade para essa professora, que contava ter ajudado várias pessoas que cruzaram seu caminho a cursar uma faculdade. “Todos os anos ela convidava o IB inteiro para uma feijoada”, conta o jardineiro Erismaldo Carlos de Oliveira. Como não cabiam todos ao mesmo tempo em sua residência, iam grupos alternadamente, ao longo de um mês no início do ano. “Ela sempre tinha uma novidade de licor”, lembra ele. “Punha três garrafas na mesa, servia todo mundo e tínhamos que adivinhar de que fruta eram feitos.” Berta nunca se casou e não deixa filhos. n PESQUISA FAPESP 250 | 93
carreiras
No Museu de História Natural de Taubaté, interior paulista, especialistas mantêm a estética dos animais e simulam o ambiente em que viviam 1
Educação
Natureza no museu Profissão de taxidermista auxilia estudos taxonômicos, ecológicos, biogeográficos e ambientais Os olhos impávidos, as narinas umedecidas, a pelagem reluzente. O hiper-realismo promovido pela taxidermia, à primeira vista, causa fascínio e estranhamento. Ao fazer com que animais inanimados pareçam vivos, a área desperta o interesse de instituições de pesquisa e ensino do Brasil por possibilitar a conservação de espécies raras ou ameaçadas de extinção, além de auxiliar na identificação e na classificação de variedades muito parecidas entre si. Por sua vez, a exposição de animais taxidermizados em museus tem se revelado uma importante ferramenta didática para estudos ambientais. Pouco conhecida, a profissão de taxidermista — outrora denominada “empalhador” — apresenta-se como uma opção de carreira para aqueles interessados 94 | dezembro DE 2016
em preservar os animais para estudos científicos. A taxidermia tem como objetivo manter a estética dos animais, reconstruindo suas características físicas e, às vezes, simulando o ambiente em que viviam. Trata-se de uma profissão que exige habilidade manual e experiência teórica em diversas subáreas da biologia, como anatomia, morfologia e ecologia, segundo o taxidermista Marcelo Felix, do Laboratório de Ornitologia do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZ-USP). Ele explica que os profissionais que trabalham nessa área hoje no Brasil são muito especializados e escassos. “Como não existem cursos técnicos ou universitários, a maioria dos profissionais inicia a carreira em cursos informais ou em estágios em
institutos de pesquisa e museus”, conta. Segundo Felix, é possível encontrar cursos de taxidermia organizados esporadicamente pelo Museu Nacional do Rio de Janeiro e pelo Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém. A taxidermia também é oferecida no curso de pós-graduação na Universidade de Santo Amaro, em São Paulo (ver quadro ao lado). Apesar de ser uma carreira técnica, os interessados precisam cursar graduação em biologia, veterinária ou zootecnia, sendo recomendável fazer pós-graduação em zoologia e, em seguida, procurar por estágios em museus, na própria universidade ou nos institutos de pesquisa. Nesses estágios, o profissional irá aprender as técnicas de preparação dos animais. Por lei, a comercialização de peças taxidermizadas é proibida no Brasil. A prática é permitida apenas para fins de pesquisa ou ensino. O trabalho
do profissional só começa quando o animal, morto, é destinado a jardins zoológicos, instituições científicas ou museus. Marcelo Felix trabalha na profissão desde 2008. Ele entrou em contato com a atividade pela primeira vez pouco antes de concluir a graduação em biologia no Centro Universitário Adventista de São Paulo. “Participei de uma oficina sobre o assunto e conheci o museólogo e taxidermista Emerson Boaventura, que à época prestava serviços para o MZ-USP ”, conta. “Foi ele quem me orientou em meus primeiros passos nessa área.” Durante o estágio com Boaventura, Felix aprendeu as técnicas do processo de taxidermização de um animal. O primeiro passo consiste na retirada da pele, separando-a da carcaça ainda com as vísceras (ver infográfico na página 96). A pele é mergulhada em uma solução contendo ácido cítrico e sal, para descontaminação e preservação de suas características, enquanto a carcaça é congelada. Após alguns dias a carcaça é descongelada, e a pele, retirada da solução. Em uma nova fase, os taxidermistas revestem a carcaça com um papel filme e, posteriormente, engessam-na.
fotos 1 e 2 eduardo cesar 3 divisão de difusão cultural do mz-usp
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Para saber mais Curso de Aperfeiçoamento Profissional em Etologia e Taxidermia de Animais Silvestres da Universidade de Santo Amaro Duração: 12 semanas Valor: R$ 1.110,00 Mais informações: bit.ly/2gbsl6b Pesquisa e Coleções do Museu de Zoologia da USP bit.ly/MzUSP
Hiper-realismo pode auxiliar pesquisadores em estudos morfológicos
Algumas horas depois, o gesso é desprendido da carcaça e preenchido com espuma de poliuretano, tomando a forma exata do molde e se solidificando após algumas horas. Por fim, coloca-se em cada pata e na cabeça do animal um pedaço de arame fixado na espuma para que os membros e a cabeça permaneçam parcialmente
móveis, permitindo ao taxidermista colocar o animal na posição desejada. Ao fim do processo, costura-se a pele em volta do molde esculpido. O trabalho é definido como uma arte refinada e complexa pela taxidermista Maria da Graça Salomão, do Instituto Butantan. Ela também conheceu a profissão durante a graduação em biologia na Faculdade de Ciências e Letras Farias Brito, em Guarulhos. “Durante o mestrado, em 1983, meu orientador exigiu que eu guardasse e conservasse as amostras de animais analisadas em minha pesquisa.” Foi então que Maria da Graça começou a aprender as técnicas de preparação e conservação dos animais coletados. Quando foi para o Butantan, em 1987, trabalhou com a taxidermia de répteis e aracnídeos. “Nossa coleção tem animais preservados há mais de 100 anos”, diz. Sua experiência na área lhe permitiu escrever, junto com outros pesquisadores, o livro Técnicas de coleta e preparação de vertebrados Profissionais trabalham no estágio final de preparação de anta atropelada em rodovia PESQUISA FAPESP 250 | 95
Animais taxidermizados expostos em coleção do Museu de Zoologia da USP
Taxidermização passo a passo 2
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Pele e carcaça são separadas. A pele é mergulhada em um recipiente com ácido cítrico e sal e a carcaça é congelada
Após alguns dias a carcaça é
bom estado, são restaurados e expostos em museus. Em outros casos, são obtidos pelos próprios pesquisadores durante trabalho de campo. Não raro, os animais ficam expostos com dados sobre o local em que foram coletados, com informações científicas, comportamentais e registros fotográficos. As informações são usadas pelos cientistas como base para identificação de novas espécies. “Os pesquisadores comparam as características físicas entre o animal taxidermizado e o encontrado na natureza”, explica Felix. Além disso, os exemplares ajudam no desenvolvimento de estudos morfológicos sem a necessidade de o aluno ou o pesquisador ir ao hábitat do animal. n Rodrigo de Oliveira Andrade
descongelada, revestida com papel filme e engessada para virar um molde, que, em seguida, é preenchido com espuma de poliuretano
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Um pedaço de arame é fixado na espuma para que os membros e a cabeça permaneçam parcialmente móveis, possibilitando a modelagem
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Ao fim do processo, costura-se a pele em volta do molde esculpido 96 | dezembro DE 2016
ilustração caeto foto divisão de difusão cultural do mz-usp
(Instituto Pau Brasil de História Natural, 2002), no qual explica técnicas de conservação de aves, mamíferos, anfíbios, entre outros. A taxidermização de animais é uma prática antiga. Na Europa, sabe-se que a atividade teve grande desenvolvimento durante o período da Renascença, ganhando força no século XVIII, em consequência da intensificação das expedições científicas e do desejo de conhecer melhor, e detalhadamente, novas espécies animais. No Brasil, a atividade era bastante difundida entre as décadas de 1930 e 1960, devido à legalização da caça de animais silvestres. Em janeiro de 1967, uma lei federal determinou a proibição da caça e da comercialização de espécimes da fauna brasileira. Com isso, a taxidermia perdeu relevância no país. À época os animais eram preenchidos com arame e palha — daí o termo “empalhado” — e expostos como troféus. O problema é que o uso desses materiais comprometia a fidelidade corpórea do bicho, que acabava ficando levemente deformado. Os animais taxidermizados expostos em coleções didáticas de museus de história natural, laboratórios ou zoológicos, em geral, são encontrados mortos na natureza. Se estiverem em
Relatório analisa diretrizes para a inovação no país
Entre ossos e restaurações Dentista Rodrigo de Oliveira concilia agenda de atendimentos em seu consultório em São Paulo e escavações em Minas Gerais
léo ramos
A falta de mão de obra qualificada continua sendo um dos principais obstáculos para a formação de novos polos de inovação no Brasil. Essa é uma das conclusões apresentadas no relatório G20 Innovation Report 2016, elaborado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e discutido na última reunião de ministros de Ciência, Tecnologia e Inovação dos países-membros do G20, em Pequim, China. O documento apresenta uma série de análises diferenciando os países que mais investem em ciência, tecnologia e inovação (C,T&I), daqueles que ainda patinam quando se trata de incentivo à inovação e ao melhoramento do ambiente de negócios. O relatório assinala que o aumento dos investimentos em inovação e desenvolvimento tecnológico no Brasil precisa combinar esforços do setor público e da iniciativa privada: “Em economias mais avançadas, o setor empresarial é o principal gestor da inovação, direcionando seus esforços para o desenvolvimento de novos produtos e processos com base em novos conhecimentos”. O relatório reconhece o esforço do Brasil em patrocinar a ida de estudantes universitários das áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática (Stem, em inglês) a países como Estados Unidos, Reino Unido, França e Alemanha, por meio do Programa Brasileiro de Mobilidade Científica, antes conhecido como Ciência sem Fronteiras. De acordo com o texto, estudantes de graduação que têm a oportunidade de passar algum tempo em instituições de ensino superior estrangeira estabelecem ligações pessoais e adquirem competências que podem ser transferidas para outros locais ao longo da vida profissional. Mas o país ainda precisa traduzir esse conhecimento em desenvolvimento social, conclui o relatório. Para ler o documento, acesse bit.ly/2fflPra.n R.O.A.
perfil
Em 2005, durante uma viagem de fim de ano, o dentista Rodrigo Elias de Oliveira resolveu conhecer o Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, em Minas Gerais. Para entrar, inventou que a visita faria parte de seu projeto de doutorado sobre doenças da boca em materiais arqueológicos. À época, no entanto, Oliveira fazia mestrado na Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (FO-USP), sem nenhuma relação com arqueologia. “Perguntaram se eu conhecia Walter Neves”, ele conta. “Como não sabia de quem estavam falando, inventei qualquer coisa para conseguir entrar.” À noite, de volta ao hotel, resolveu pesquisar sobre o desconhecido na internet. Descobriu que o bioarqueólogo era chefe do Laboratório de Estudos Evolutivos e Ecológicos Humanos do Instituto de Biociências da USP e agendou uma visita para quando voltasse a São Paulo. A conversa com Neves resultou em um estágio de dois anos no laboratório, durante o qual Oliveira limpou, montou e analisou fragmentos de esqueletos escavados. “Transformei em verdade a mentira contada lá atrás”, comenta. Logo após terminar o mestrado, em 2008, Oliveira foi convidado por Walter Neves para fazer o doutorado
no laboratório. Ele aceitou o convite, levando adiante a proposta de analisar doenças bucais em materiais arqueológicos, de modo a inferir a dieta e a qualidade de vida dos habitantes do deserto de Atacama, ao norte do Chile. Paralelamente ao trabalho de arqueólogo, Oliveira não deixou de atender pacientes no consultório ou de se aperfeiçoar em técnicas de odontologia. Sob orientação de Neves, Oliveira concluiu o doutorado em 2013. No mesmo ano ingressou em sua segunda especialização, agora em periodontia — tratamento de problemas na região dos dentes próxima à gengiva. Em 2015 iniciou seu pós-doutorado na FO-USP mesclando as áreas de periodontia, nutrição e bioantropologia. O conhecimento adquirido contribuiu para seus estudos sobre os dentes de remanescentes de esqueletos humanos encontrados na região de Lagoa Santa, Minas Gerais (ver Pesquisa FAPESP nº 247). Além da odontologia e da arqueologia, Oliveira sempre se envolveu em questões sociais. De 2002 a 2008, antes e durante o mestrado, ajudou a desenvolver próteses para indivíduos acometidos por câncer de cabeça e pescoço tratados no âmbito do sistema público de saúde. Mais recentemente, Oliveira participou de um projeto de pesquisa voltado à saúde bucal dos ribeirinhos no Parque da Reserva Mamirauá, no Amazonas. “Fizemos o atendimento e a coleta de dados de saliva e de placa bacteriana dental dos moradores da região”, explica. Os dados estão sendo usados em seu estágio de pós-doutorado e no trabalho arqueológico em Lagoa Santa. R.O.A.
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classificados
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