maio de 2016 www.revistapesquisa.fapesp.br
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Pesquisa FAPESP maio de 2016
n.243
Infecções por fungos matam mais que malária e tuberculose No STF, regras e práticas internas podem prejudicar a qualidade dos debates Divulgação da ciência ganha expressão no YouTube
FOSFOETANOLAMINA Bioinseticida para agricultura usa vermes e bactérias como matéria-prima Empresas de cosméticos desenvolvem com o IPT plataforma de nanotecnologia
n.243
Pesquisadores discutem o início de uma nova época geológica, o Antropoceno
“Pílula do câncer” aprovada sem aval científico pelo governo federal agora será testada oficialmente em pacientes
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fotolab
Criaturas da selva Numa expedição em 2009 à Floresta Nacional de Pau-Rosa, no Amazonas, o biólogo Pedro Peloso e colegas encontraram pererecas cantando às margens do rio Paraconi. Tinham cerca de 2 centímetros de comprimento e eram uma espécie desconhecida, agora batizada como Dendropsophus mapinguari (South American Journal of Herpetology, abril). O nome homenageia a criatura mitológica peluda de um olho só que habita o imaginário amazônico. O anfíbio amarelo tem manchas ou listras marrom-avermelhadas. As duas formas parecem existir em proporções equivalentes, mas pouco se sabe de sua ecologia. “Na Amazônia, é raro termos os recursos para voltar a uma localidade”, conta o pesquisador.
Imagem enviada por Pedro Peloso, pesquisador de pós-doutorado do Museu Paraense Emílio Goeldi
Se você tiver uma imagem relacionada à sua pesquisa, envie para imagempesquisa@fapesp.br, com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.
PESQUISA FAPESP 243 | 3
maio 243
56
52 CAPA 16 Testes clínicos em seres humanos devem atestar se a fosfoetanolamina pode ser útil no tratamento de algum tipo de câncer ENTREVISTA 24 Guido Carlos Levi Infectologista diz que a recusa à vacinação se tornou fenômeno das classes mais altas e intelectualizadas no Brasil
70 Pesquisa empresarial 3M investe em pesquisa e desenvolvimento e cria métrica própria para impulsionar a inovação
46 Neurociência Exercício físico durante a gestação e a infância tem efeitos duradouros no desempenho intelectual 50 Virologia No Ceará, pesquisadores identificam o vírus zika em macacos habituados à presença humana
POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
52 Geologia Material plástico acumulado no fundo dos oceanos pode definir um novo período na história da Terra, o Antropoceno
30 Unesp 40 anos Centro internacional criado no IFT impulsiona pesquisa e promove cursos e eventos sobre física teórica
56 Meteorologia Lago de Maracaibo, na Venezuela, apresenta a concentração mais elevada de raios do mundo
34 Difusão Canais de vídeo ganham destaque na divulgação de ciência feita na internet
58 Ecologia Seis meses depois do vazamento da lama com rejeitos de mineração, rio Doce continua sem vida e medidas de restauração permanecem indefinidas
38 Entrevista Mark Walport, conselheiro-chefe do governo britânico, diz que seu trabalho é traduzir o conhecimento científico para quem toma decisões
62 Paleontologia Registro fóssil inédito revela um caminho inesperado da evolução do músculo cardíaco
CIÊNCIA
TECNOLOGIA
42 Medicina Fungos causam infecções resistentes a medicamentos e matam mais que malária e tuberculose no mundo
66 Nanotecnologia Boticário, Natura, Theraskin e Yamá se unem com o IPT e desenvolvem nanocápsulas para uso em cosméticos
foto da capa léo ramos
74 Medicamentos Pesquisadores desenvolvem moléculas capazes de gerar fármacos mais eficientes e combinam drogas já testadas para combater a doença de Chagas e a leishmaniose
77 Vacina contra esquistossomose desenvolvida pela Fiocruz está pronta para a fase 2 de testes clínicos 78 Controle de pragas Vermes e bactérias atuando juntos são matérias-primas de bioinseticida para uso comercial na lavoura
HUMANIDADES 80 Justiça Regras e práticas internas podem prejudicar qualidade e quantidade de debates dos ministros do STF 84 Educação Congregações católicas europeias supriram demanda por escolas no Brasil entre o fim do século XIX e a segunda metade do XX 88 Antropologia Projeto analisa o uso de fotos e filmes como estratégia ou resultado de pesquisa seçÕes 3 Fotolab 5 Cartas 6 On-line 7 Carta do editor 8 Dados e projetos 9 Boas práticas 10 Estratégias 12 Tecnociência 90 Arte 92 Memória 94 Resenhas 97 Carreiras 99 Classificados
56
cartas
contatos Internet revistapesquisa.fapesp.br redacao@fapesp.br PesquisaFapesp PesquisaFapesp pesquisa_fapesp
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Pesquisa Fapesp Opiniões ou sugestões Por e-mail: cartas@fapesp.br
Pelo correio: Rua Joaquim Antunes, 727 – 10º andar CEP 05415-012, São Paulo, SP
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Eunice Durham
A entrevista com Eunice Durham (edição 242) é rica em vários aspectos. Em tempos de conflitos quanto aos refugiados na Europa, é importante sua rememorização do estudo da imigração italiana no Brasil, revivendo a saga de muitas famílias brasileiras, como a minha. Também é um alento a discussão sobre a burocratização da função do professor. Por fim, ainda há vozes que discutem este nosso modelo de universidade, que não tem considerado a evolução dos últimos anos, com a implantação de sistemas federais mistos, técnicos e tecnológicos, por exemplo. Adilson Roberto Gonçalves Campinas, SP
assinaturaspesquisa@fapesp.br ou ligue para (11) 3087-4237,
Grace Gomes
de segunda a sexta, das 9h às 19h
São Carlos, SP
e mudança de endereço Envie um e-mail para
Paulo Eduardo Alves Camargo-Cruz Sorocaba, SP
Maternidade
Que horror as crianças vivendo no ambiente de presídio (“A maternidade na prisão”, edição 241). Deveriam haver medicamentos disponíveis para a mulher não engravidar no período em que estiver presa. Deve-se buscar medidas que não venham a prejudicar mães e filhos. Irani Almeida
Parabéns pela entrevista com Eunice Durham. Para nós, jovens docentes, é sempre muito rico compreender a trajetória de professores que nos representam com excelência em órgãos da área de ensino e pesquisa.
Assinaturas, renovação
o Protocolo Agroambiental estava em vigência. Os agravos à saúde afetaram diretamente a população de menores de 5 anos, conforme as conclusões de minha pesquisa.
Colaboração
Já estamos na era em que a distância não deveria ser limitante. Este ainda é um dos aspectos a amadurecer na pesquisa brasileira (“A importância de estar presente”, edição 241). Emerson Carraro
Para anunciar Contate Júlio César
Instituto XY
Por e-mail: publicidade@fapesp.br
Extraordinária iniciativa de apoio à ciên cia exemplarmente posta em prática por João e Branca Moreira Salles (“Apoio privado à ciência”, edição 242). Merece todo apoio da comunidade acadêmica brasileira. Eis um exemplo a ser seguido.
Por telefone: (11) 3087-4212
Antonio Dimas
Ferreira na Mídia Office Por e-mail: julinho@midiaoffice.com.br Por telefone: (11) 99222-4497 Classificados
Instituto de Estudos Brasileiros/USP
Edições anteriores Preço atual de capa acrescido do custo de postagem. Peça pelo e-mail: clair@fapesp.br Licenciamento de conteúdo Adquira os direitos de reprodução de textos e imagens de Pesquisa FAPESP. Por e-mail: mpiliadis@fapesp.br Por telefone: (11) 3087-4212
Cana-de-açúcar
Sobre a reportagem “As boas novas da cana-de-açúcar” (edição 239), tenho a dizer que minha dissertação de mestrado, defendida em dezembro de 2014 na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, indica que nas regiões agrícolas mais recentes no cultivo de cana (no caso do estudo, a região de Presidente Prudente, no oeste paulista) houve um aumento expressivo na extensão e no volume dessa cultura coletada com o método de queimada, entre 2008 e 2011, no período em que
Correções
Na reportagem “Laboratório paulista” (edição 242) foi inadvertidamente omitida a criação da Faculdade de Medicina de Sorocaba, fundada em 1950, nome original da atual Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (FCMS-PUC). Na nota “Apoio privado à ciência”, publicada na seção Estratégias (edição 242), os R$ 20 milhões mencionados correspondem ao orçamento anual do Instituto XY, e não à doação total feita por João e Branca Moreira Salles, como foi publicado.
Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar – CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza. Via facebook.com/PesquisaFapesp
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ciência
Impactos visíveis no mar
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Exclusivo no site x Um grupo internacional de pesquisadores, incluindo um brasileiro da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), analisou em detalhes os efeitos do LSD no cérebro humano por meio de diferentes técnicas de neuroimagem. Em estudo publicado na Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), voluntários relataram alucinações visuais e estados de consciência alterados pelo LSD. Os pesquisadores
Rádio Professor Walter Colli expõe o trabalho da rede de pesquisa sobre o vírus zika em São Paulo
Confira os detalhes do navio Prof. Besnard e da homenagem feita pelos pesquisadores em sua despedida nas fotos de Eduardo Cesar
associaram essas alucinações a alterações no córtex visual, incluindo o aumento do fluxo sanguíneo e a conectividade expandida com outras regiões do cérebro. Também associaram a diminuição dos índices de conectividade entre os neurônios de duas regiões – os córtices
Vídeo do mês
youtube.com/user/PesquisaFAPESP
para-hipocampal e retrosplenial – a alterações nos estados de consciência, expressas como uma sensação de “desintegração de si mesmo”. Os achados podem ampliar as perspectivas de estudos envolvendo o uso de LSD no tratamento de distúrbios psiquiátricos. bit.ly/1NH6UpP
x Paulo Artaxo Neto, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP), foi o vencedor da edição 2016 do prêmio Almirante Álvaro Alberto para Ciência e
Assista ao vídeo:
Tecnologia, uma das principais honrarias no campo da ciência e da tecnologia do país. Concedido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em parceria com a Fundação Conrado Wessel (FCW) e a Marinha do Brasil, o prêmio foi destinado neste ano à área de Ciências Exatas, da Terra e Engenharias. bit.ly/1SzPzzl 6 | maio DE 2016
Registros cinematográficos remotos servem de matéria-prima para filmes experimentais
GABRIELA BILó / ESTADãO CONTEúDO
on-line
carta do editor fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo José Goldemberg Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior Carmino Antonio de Souza, Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, João Fernando Gomes de Oliveira, joão grandino rodas, José Goldemberg, Maria José Soares Mendes Giannini, Marilza Vieira Cunha Rudge, José de Souza Martins, Pedro Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski, Suely Vilela Sampaio Conselho Técnico-Administrativo José Arana Varela Diretor-presidente Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico Joaquim J. de Camargo Engler Diretor Administrativo
issn 1519-8774
Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Anamaria Aranha Camargo, Ana Maria Fonseca Almeida, Carlos Eduardo Negrão, Fabio Kon, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Joaquim J. de Camargo Engler, José Arana Varela, José Goldemberg, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Lucio Angnes, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner Caradori do Amaral, Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos diretora de redação Alexandra Ozorio de Almeida editor-chefe Neldson Marcolin Editores Fabrício Marques (Política), Márcio Ferrari (Humanidades), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência); Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores especiais); Bruno de Pierro (Editor-assistente) revisão Margô Negro arte Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos (Editora de infografia), Alvaro Felippe Jr., Júlia Cherem Rodrigues e Maria Cecilia Felli (Assistentes) fotógrafos Eduardo Cesar, Léo Ramos Mídias eletrônicas Fabrício Marques (Coordenador) Internet Pesquisa FAPESP online Maria Guimarães (Editora) Rodrigo de Oliveira Andrade (Repórter) Renata Oliveira do Prado (Mídias sociais) Rádio Pesquisa Brasil Biancamaria Binazzi (Produtora) Colaboradores André Julião, Daniel Bueno, Christina Queiroz, Evanildo da Silveira, Everton Lopes, Fábio Otubo, Guilherme Grandi, Igor Zolnerkevic, Jayne Oliveira, Lauro Lisboa Garcia, Mauricio Puls, Negreiros, Nelson Provazi, Nina Ranieri, Paulo Artaxo, Pedro Franz, Valter Rodrigues, Veridiana Scarpelli, Yuri Vasconcelos É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização Para falar com a redação (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br Para anunciar Midia Office - Júlio César Ferreira (11) 99222-4497 julinho@midiaoffice.com.br Classificados: (11) 3087-4212 publicidade@fapesp.br Para assinar (11) 3087-4237 assinaturaspesquisa@fapesp.br Tiragem 34.500 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo
De volta ao método científico
A
pós uma longa série de equívocos, as cápsulas de fosfoetanolamina usadas informalmente por pessoas com câncer finalmente ganharão o status de droga testada cientificamente em seres humanos. Ainda neste semestre devem começar os testes clínicos com pacientes nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Ceará e só depois de concluída essa etapa os médicos poderão afirmar se de fato a substância é eficaz contra tumores. Sem esse trabalho controlado, demorado e caro, fica-se ao sabor de relatos meramente subjetivos, baseados em impressões pessoais, sem informações claras a respeito da eficácia real da droga. A história da fosfoetanolamina é incomum pela atenção que conseguiu da classe política, instada por um público que vê no composto uma possibilidade de cura para o câncer. Esse público foi alimentado por relatos positivos de pacientes e médicos que fizeram uso do medicamento fabricado de modo artesanal em um laboratório do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), no campus de São Carlos. A mobilização de doentes e familiares levou a substância a ser aprovada rapidamente por todas as instâncias do Congresso Nacional e liberada para uso pela Presidência da República mesmo com opiniões contrárias de associações científicas e médicas. O problema é que foi pulada exatamente a etapa em que o medicamento seria testado para se conhecer o efeito no organismo humano. Ou seja, se a droga é passível de causar algum tipo de problema ainda não registrado, se é inócua, ou se traz benefícios para doentes com câncer. A reportagem de capa desta edição (página 16) revê a acidentada trajetória da fosfoetanolamina. Agora, o primeiro protocolo científico será financiado pelo governo paulista. Iniciativas semelhantes ocorrerão em Fortaleza e no Rio. Até
o momento, todo o conhecimento sobre os possíveis efeitos terapêuticos do medicamento está baseado no que foi observado in vitro, em células de animais ou humanas cultivadas em laboratório, e in vivo, em modelos animais, geralmente camundongos. Ainda é muito pouco para saber se serve também para pessoas. *** Outras doenças graves preocupam especialistas da área da saúde. Entre as mais recentes estão aquelas provocadas por fungos, que nos últimos anos passaram a causar infecções cada vez mais resistentes. Estimativas oficiais indicam que morrem 1,5 milhão de pessoas no mundo anualmente infectadas por fungos, mais do que o total de óbitos decorrentes da malária e da tuberculose. No Brasil, 4 milhões devem ter infecções fúngicas a cada ano. Uma das razões para isso é a redução das defesas naturais de pacientes, em decorrência de doenças ou medicamentos. Pesquisadores brasileiros de universidades e estados diferentes, em consonância com colegas britânicos, trabalham para definir as melhores formas de diagnóstico e tratamento de pneumonias agudas e crônicas de origem fúngica (página 42). *** Fora da área da saúde, há outras reportagens interessantes no amplo cardápio de Pesquisa FAPESP. Destaco duas delas, bem distintas entre si. A primeira fala de uma nova tecnologia para o controle biológico de pragas (página 78) já pronta para uso comercial. Trata-se de um bioinseticida feito a partir de nematoides (vermes do solo) que combatem insetos de lavouras. Outro estudo indica que as normas e práticas internas podem prejudicar a qualidade e a quantidade dos debates dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), protagonista frequente do cenário nacional atual. Neldson Marcolin | editor-chefe PESQUISA FAPESP 243 | 7
Dados e projetos Temáticos e jps recentes
Educação superior completa
Projetos contratados em março e abril de 2016
Porcentagem de grupos etários de 25-34 anos e 55-64 anos em 2014 (ou ano mais recente) com curso superior concluído – países escolhidos
temáticos Estudo da contribuição do processo inflamatório na discinesia induzida por L-Dopa na doença de Parkinson Pesquisadora responsável: Elaine Aparecida del Bel Belluz Guimarães Instituição: Forp/USP Processo: 2014/25029-4 Vigência: 01/04/2016 a 31/03/2020
Consumo de alimentos ultraprocessados, perfil nutricional da dieta e obesidade em sete países Pesquisador responsável: Carlos Augusto Monteiro Instituição: FSP/USP Processo: 2015/14900-9 Vigência: 01/04/2016 a 31/03/2021 Anticorpos monoclonais recombinantes para uso terapêutico Pesquisadora responsável: Ana Maria Moro Instituição: Instituto Butantan/SSSP Processo: 2015/15611-0 Vigência: 01/04/2016 a 31/03/2021 Novas estratégias para o controle das periodontites Pesquisador responsável: Marcia Pinto Alves Mayer Instituição: ICB/USP Processo: 2015/18273-9 Vigência: 01/04/2016 a 31/03/2021 Sinalização celular em Trypanosoma durante a interação do parasita com o hospedeiro Pesquisador responsável: Sergio Schenkman Instituição: EPM/Unifesp Processo: 2015/22031-0 Vigência: 01/04/2016 a 31/03/2020 Resilience and vulnerability at the urban nexus of food, water, energy and the environment (Resnexus). (FAPESP-ESRC-NWO) Pesquisador responsável: Leandro Luiz Giatti Instituição: FSP/USP Processo: 2015/50132-6 Vigência: 01/03/2016 a 28/02/2019 Produção de oligossacarídeos a partir de resíduos do processamento de alimentos (FAPESP-Denmark) Pesquisador responsável: Jonas Contiero Instituição: IB-Rio Claro/Unesp Processo: 2015/50276-8 Vigência: 01/04/2016 a 31/03/2018 Cobra: nova plataforma de descoberta de compostos para identificação rápida e de baixo custo de bioativo com efeitos benéficos originários de plantas brasileiras (FAPESP-Denmark) Pesquisadora responsável: Glaucia Maria Pastore Instituição: FEA/Unicamp Processo: 2015/50333-1 Vigência: 01/04/2016 a 31/03/2020
8 | maio DE 2016
Vulnerabilidade de populações sob cenários externos (FAPESP/ Belmont-Mountains) Pesquisador responsável: Paulo Eduardo de Oliveira Instituição: IGc/USP Processo: 2015/50683-2 Vigência: 01/03/2016 a 28/02/2019
n Proporção da população de 25-34 anos com educação completa n Proporção da população de 55-64 anos com educação completa África do Sul (1) Indonésia (2)
5
4
Brasil (3)
Jovens Pesquisadores Influência da composição do efluente secundário na desinfecção por processos oxidativos avançados Pesquisador responsável: Renato Falcão Dantas Instituição: Faculdade de Tecnologia/ Unicamp Processo: 2014/17774-1 Vigência: 01/04/2016 a 31/03/2020
China (4)
7 10
18
4
Itália
24
12
México
25
13
Turquia Chile (3)
Imunometabolismo em macrófagos e em linfócitos T nas doenças inflamatórias e metabólicas Pesquisador responsável: Pedro Manoel Mendes de Moraes Vieira Instituição: IB/Unicamp Processo: 2015/15626-8 Vigência: 01/04/2016 a 31/03/2020
15
11
25
10
27
14
Colômbia
28
16
28 25
Alemanha República Tcheca Portugal
31
13
Hungria
Análise longitudinal multimodal de imagens por tensor de difusão do encéfalo de pacientes com lesão axonial difusa traumática moderada a severa Pesquisadora responsável: Celi Santos Andrade Instituição: Instituto de Radiologia do HC-SP/SSSP Processo: 2015/18136-1 Vigência: 01/04/2016 a 31/03/2019
30
15
32
17
Média países OCDE Espanha
41
21
Polônia
43
14
França (3)
44
20
Holanda
Comparando taxas evolutivas entre cantos e chamados nos olhos-de-fogo sul-americanos (Aves: Pyriglena): um teste de hipóteses em uma perspectiva filogenética Pesquisador responsável: Marcos Maldonado Coelho Instituição: ICAQF/Unifesp Processo: 2015/18287-0 Vigência: 01/04/2016 a 31/03/2019
41
25
44
27
Estados Unidos
41
Suécia
46
30
Suíça
46
31
46 47
Israel Austrália
33
Noruega
Desenvolvimento de novo candidato a fármaco para o tratamento do carcinoma de pulmão de células não pequenas: CHY-1, inibidor de autofagia e protótipo de nova classe de inibidores da enzima CTP: fosfoetanolamina citidililtransferase Pesquisador responsável: Adilson Kleber Ferreira Instituição: ICB/USP Processo: 2015/18528-7 Vigência: 01/04/2016 a 31/03/2019
32
Reino Unido
35
Irlanda
48 49 49 51
24
Canadá
58
45
Federação Russa (3) Coreia do Sul
46
50 17
58 68
0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70%
O MCT1 como alvo terapêutico e mediador de resposta no tratamento de melanomas Pesquisadora responsável: Celine Marques Pinheiro Instituição: Hospital do Câncer – Barretos/FP Processo: 2015/25351-6 Vigência: 01/05/2016 a 30/04/2020
(1)
África do Sul: ano de referência 2012. (2) Indonésia: ano de referência 2011. Brasil, Chile, França, Coreia do Sul, Federação Russa: ano de referência 2013. (4) China: ano de referência 2010. Obs.: Países ordenados pela proporção da população de 25-34 anos com educação superior completa. Fonte: Education at a Glance 2015, Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Paris – www.oecd.org/education/education-at-a-glance-19991487.htm (3)
Boas práticas
ilustração daniel bueno
Quando o plágio não aparenta má-fé Uma consulta feita recentemente ao Committee on Publication Ethics (Cope), fórum de editores de revistas científicas sobre ética na pesquisa, evidenciou os desafios de fazer uma avaliação justa em casos suspeitos de plágio. O editor de um periódico científico, cujas identidade e origem não foram reveladas, informou ao Cope que começou a utilizar softwares para detecção de plágio e registrou uma alta incidência de pequenos trechos ou sequências de frases copiados de outros artigos. O problema atinge entre 30% e 50% dos manuscritos submetidos e, em alguns papers, chega a comprometer a originalidade de até um terço do texto. Embora pareça assustador, segundo o editor não parece haver má-fé dos autores, uma vez que as sentenças copiadas são curtas e vêm de mais de 60 fontes diferentes – em um dos casos, chegou a mais de 120. “É como se a cópia de um trecho contendo o que se acredita ser uma expressão elegante pudesse compensar a falta de competência linguística do pesquisador”, escreveu o editor, referindo-se a uma grande quantidade de autores que não tem o inglês como língua nativa. “De todo modo, não é satisfatório que um texto contenha um terço de suas passagens inspiradas em outras fontes. Não é o que se possa considerar uma boa prática de escrita científica.” O Cope respondeu à consulta recomendando uma análise caso a caso, levando em conta as características do texto reciclado. Uma duplicação na seção de resultados é mais grave do que na introdução ou nos métodos. Frases copiadas num artigo de revisão, composto por avaliações críticas da literatura existente,
comprometem mais a sua originalidade do que sentenças duplicadas num paper tradicional, que traz resultados inéditos. Segundo o fórum, o editor deve pedir explicações ao autor caso falte atribuição de autoria em muitos trechos do artigo e tomar atitudes mais drásticas se as ideias defendidas pelo autor pertencerem a outras pessoas. “O editor deve seguir checando todos os manuscritos usando softwares antiplágio e rejeitar os artigos com sobreposição de textos moderada ou grande”, sugere o Cope. A instituição a que o autor pertence deve ser alertada se houver, de fato, uma suspeita de má conduta ou se o editor colher evidências de que o pesquisador trabalha num ambiente que não valoriza as boas práticas científicas.
“Caso os autores sejam jovens pesquisadores, o editor deve pedir a eles para reescrever as passagens copiadas e submeter de novo o artigo”, recomenda o Cope.
Cardápio variado de fraudes A revista científica Applied Catalysis B: Environmental anunciou a retratação de três artigos assinados pelo químico português Rodrigo Lopes, que foi estagiário de pós-doutorado do Centro de Investigação em Engenharia dos Processos Químicos e dos Produtos da Floresta da Universidade de Coimbra entre 2010 e 2013. Em dois dos artigos, Lopes é acusado de ter inventado nomes de coautores, supostamente vinculados ao California Institute of Technology (Caltech), cuja existência, contudo, não foi confirmada pela instituição norte-americana. Já o terceiro artigo foi cancelado por falsificação de resultados: o paper contém dados que não poderiam ter sido produzidos por Lopes, por falta de um equipamento necessário para obtê-los no laboratório em que ele atuava.
O periódico não foi o primeiro a ter problemas com o químico. Ele teve dois artigos retratados no Chemical Engineering Journal, um na Chemical Engineering Science e um na Industrial & Engineering Chemistry Research, por fabricação de dados, autoria atribuída a um pesquisador que não participou do estudo e plágio de figuras. Segundo Rosa Quinta-Ferreira, professora da Universidade de Coimbra com quem Lopes trabalhou, foi aberta uma investigação interna para avaliar a conduta do pesquisador. O caso foi também encaminhado para o Ministério Público para investigação de crimes. O site Retraction Watch tentou contato com Lopes por meio de seu e-mail pessoal, mas a conta havia sido desativada. PESQUISA FAPESP 243 | 9
Estratégias UNU tem novo conselho
1
O diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz, foi nomeado para o conselho de governança da Universidade das Nações Unidas (UNU), organização sediada no Japão que promove estudos colaborativos e ensino de pós-graduação e reúne 11 institutos de pesquisa e diversos programas. Os nomes de Brito Cruz e de outros 11 novos conselheiros foram anunciados pelo
Stanford oferece coleção de mapas
secretário-geral da
David Rumsey e um de seus mapas num monitor gigante
Organização das Nações Unidas (ONU), Ban Ki-moon, e pela diretora-
A Universidade
a trazer outras
Nas instalações
-geral da Organização
Stanford, nos Estados
informações, da
construídas para o
das Nações Unidas para
Unidos, criou um centro
prevalência de doenças
centro na divisão de
a Educação, a Ciência
cartográfico que oferece
num determinado
bibliotecas de Stanford,
e a Cultura (Unesco),
ao público uma das
território a dados
em Palo Alto, Califórnia,
Irina Bokova. No rol
maiores coleções
recolhidos em censos
qualquer usuário com
dos nomeados, também
privadas de mapas do
demográficos, como
interesse acadêmico
estão o vice-reitor da
mundo – são mais de
as características
pode solicitar um mapa
Universidade de Gana,
150 mil itens, entre
étnicas, religiosas ou
em papel e usar uma
Ernest Aryeetey; o diretor
mapas, atlas, globos
educacionais da
variedade de monitores,
do Instituto de Ciência e
terrestres e outros
população. Os mapas já
incluindo uma
Paz da Universidade de
objetos. O acervo foi
são bastante conhecidos.
tela de 3,6 metros de
Hiroshima, Tsuneo Nishida;
doado por David
Desde os anos 1990,
largura por 2 metros
o diretor do Instituto
Rumsey, 71 anos,
Rumsey se dedica a
de altura sensível ao
Chinês de Políticas para
empresário do
digitalizar a coleção
toque, para explorar
Ciência e Tecnologia, Lan
ramo da incorporação
e boa parte dela
os detalhes da imagem,
Xue; e o diretor executivo
de imóveis de
pode ser consultada
além de compará-la
da Iniciativa de Reforma
São Francisco, cujo
on-line no endereço
com outros mapas ou
Árabe, Bassma Kodmani,
nome batiza o centro.
davidrumsey.com.
imagens de satélite.
entre outros. Segundo
A coleção mostra a
“Não sou um
Também estão
a ONU, as principais
evolução da cartografia
colecionador possessivo.
disponíveis no centro
funções do conselho
entre o século XVIII,
Fico animado em
outras duas coleções
da UNU são formular
quando as
adquirir itens que outras
de Stanford, que
princípios e políticas
representações da
pessoas possam usar
reúnem mapas da
superfície em geral se
ou que gerem um
Califórnia e da África,
limitavam a descrever o
aprendizado”, disse o
além de mais de 10 mil
ambiente físico, e o XIX,
empresário à revista
itens adquiridos de
época em que passaram
National Geographic.
antiquários.
10 | maio DE 2016
da universidade, governar 2
Brito Cruz: no conselho de governança da Universidade das Nações Unidas
suas operações e avaliar e aprovar o orçamento bianual e o programa de trabalho da instituição.
A missão cumprida do nanossatélite O nanossatélite brasileiro Serpens en-
dados ambientais. O satélite, que media
aparelho teve grande utilidade pedagó-
cerrou sua missão no espaço de acordo
10 x 10 x 30 centímetros, custou R$ 800
gica. “A prática de construir um nanos-
com o que estava previsto e se desinte-
mil e é o primeiro de uma família vincu-
satélite é uma experiência que amplia o
grou na atmosfera no dia 27 de março,
lada ao projeto Sistema Espacial para
conhecimento dos estudantes”, disse ela,
depois de permanecer em órbita por seis
Realização de Pesquisas e Experimentos
segundo o site da AEB. Além dos alunos
meses. Desenvolvido pela Agência Es-
com Nanossatélites (cuja sigla também
da UnB, estudantes das universidades
pacial Brasileira (AEB) em parceria com
é Serpens), financiado pela AEB (ver
federais do ABC, de Santa Catarina e de
professores e estudantes de universida-
Pesquisa FAPESP nº 219). Segundo a
Minas Gerais, e do Instituto Federal Flu-
des e institutos de pesquisa federais, o
professora Chantal Cappelletti, coorde-
minense (IFF) ajudaram a desenvolver o
artefato deu mais de 3 mil voltas ao
nadora do projeto pela Universidade de
satélite, levado até a Estação Espacial
redor da Terra, coletando e transmitindo
Brasília (UnB), o desenvolvimento do
Internacional em agosto.
fotos 1 Linda A. Cicero / Stanford News Service 2 eduardo cesar 3 serpens 4 GlaxoSmithKline
Proteção a patentes flexível A GlaxoSmithKline
enfrentar as críticas de
(GSK), multinacional
que cobram muito caro
farmacêutica com sede
por produtos vendidos
no Reino Unido, anunciou
em países pobres – outras
que vai flexibilizar sua
companhias, como a
estratégia para a
Merck KGaA e a Roche,
proteção de patentes de
adotaram políticas
seus medicamentos. A
semelhantes. Andrew
ideia é abrir mão das
Witty, executivo-chefe
patentes em cerca de 50
da GSK, disse à revista
países muito pobres, como
Nature que também
Afeganistão e Zâmbia,
considera submeter
permitindo que sejam
pedidos de patentes de
O Instituto de
Faculdade de Economia,
fabricados livremente por
futuras drogas contra o
Estudos Avançados
Administração e
empresas locais. Já em
câncer a uma iniciativa
da Universidade de São
Contabilidade, vice-diretor.
outras 35 nações em
das Nações Unidas, a
Paulo (IEA-USP) tem uma
Entre as medidas que
desenvolvimento, a
Medicine Patent Pool,
nova direção. O médico
eles planejam adotar nos
intenção é manter a
que negocia contratos de
patologista Paulo Saldiva,
próximos quatro anos,
proteção à propriedade
licenciamento em larga
professor da Faculdade
destacam-se a
intelectual, mas facilitar
escala com fabricantes
de Medicina da USP,
criação de uma Escola
acordos de licenciamento
de genéricos para
foi designado diretor
Avançada de Formação
que garantam a
disseminar a produção
do instituto, e o
de Lideranças, que
comercialização dos
de remédios em mais de
engenheiro Guilherme
atenda interessados em
remédios por preços
uma centena de países.
Ary Plonski, professor da
questões relacionadas a
Representação do satélite Serpens: seis meses em órbita
3
IEA tem novos diretores
Distribuição de remédios para prevenir doenças parasitárias em Gana
baixos. A mudança não
políticas públicas; a
vale para países
promoção de estudos
desenvolvidos, nem para
sobre urbanidade e
os emergentes que estão
qualidade de vida; e o
entre as 20 maiores
aumento da articulação
economias do planeta,
da USP com o poder
como China, Índia e Brasil.
legislativo. Criado em
A iniciativa deve ter um
1986 como um fórum
impacto pequeno nos
interdisciplinar, o IEA
resultados da empresa,
reúne pesquisadores
que tem vendas limitadas
de várias áreas e busca
em países pobres, e
estimular discussões que,
marca a iniciativa mais
entre outros objetivos, ajudem a formular
recente de indústrias farmacêuticas para
4
políticas públicas. PESQUISA FAPESP 243 | 11
Tecnociência As formigas e as bromélias 1
Algumas espécies de formiga contribuem para a nutrição das plantas que as abrigam. É assim com a bromélia Quesnelia arvensis, de folhas verdes com bordas serrilhadas e flores púrpuras, comum na Mata Atlântica do Sudeste. Por meio de seus excrementos e de
Formiga Odontomachus hastatus transporta presa para o ninho: seus dejetos nutrem a bromélia Quesnelia arvensis, comum na Ilha do Cardoso
restos de alimentos, as
geral consomem
formigas Odontomachus
pequenos invertebrados.
hastatus, que fazem seus
Nos testes, elas foram
ninhos em meio às raízes
alimentadas com larvas
dessa bromélia, e as
de besouro tratadas com
Gnamptogenys moelleri,
ração rica em nitrogênio
que se abrigam em
15, variedade mais
suas folhas, fornecem
pesada e rara desse
Transportar um composto
As nanopartículas
para a planta boa parte
elemento químico. As
antitumoral por meio da
levavam em seu interior
do nitrogênio de que
formigas Camponotus
corrente sanguínea e
um composto para
necessita para produzir
crassus consomem néctar
fazê-lo atingir apenas
destruir as células
proteínas e crescer,
e líquidos adocicados
as células doentes, sem
cancerosas. “Os tumores
constataram
excretados por insetos
prejuízo às sadias, é uma
têm uma excelente
pesquisadores da
que se alimentam de seiva.
estratégia em estudo
recepção para o folato”,
Universidade Estadual de
Com 1,3 centímetro (cm)
em muitos laboratórios
diz Cardoso. As
Campinas (Unicamp).
de comprimento, a
do mundo. No Brasil, um
nanopartículas
Em um experimento em
espécie Odontomachus
experimento realizado
eram preenchidas com
laboratório, a bióloga
hastatus foi a que mais
sob a coordenação de
curcumina, uma
Ana Zangirolame
forneceu nitrogênio para
Mateus Borba Cardoso,
substância extraída
Gonçalves quantificou a
a bromélia: em média,
do Laboratório Nacional
do açafrão-da-índia
colaboração que três
19% do nitrogênio total
de Luz Síncrotron (LNLS),
(Curcuma longa) que
espécies de formiga dão
consumido pela planta.
utilizou folato, um tipo de
tem sido objeto de
para a dieta da bromélia.
Bem menores, com
vitamina B, para envolver
estudos como agente
Ela simulou no interior de
apenas 0,5 cm, as
nanopartículas de sílica e
anticancerígeno
uma estufa as condições
Gnamptogenys moelleri e
aumentar a capacidade
(ver Pesquisa FAPESP
de temperatura, umidade
as Camponotus crassus
de interagirem com as
nº 168). No experimento,
e solo em que a
contribuíram,
células tumorais.
que contou com a
Quesnelia é encontrada
respectivamente, com
participação de
nas restingas da Ilha do
16% e 11% (PLoS One, 22
pesquisadores dos
Cardoso, no litoral sul de
de março). “Os resultados
laboratórios nacionais
São Paulo. Em seguida,
reforçam a ideia de que
de Biociências (LNBio)
colocou exemplares da
as formigas podem
e de Nanotecnologia
bromélia para conviver por
redistribuir nutrientes
(LNNano) e
dois meses com colônias
entre diferentes áreas
financiamento da
de três espécies de
da floresta”, escrevem
FAPESP, as células
formigas – Odontomachus
os pesquisadores. “Esse
tumorais foram
hastatus, Gnamptogenys
papel”, afirma Ana, “é
destruídas e as
moelleri e Camponotus
ainda mais importante
sadias, pouco
crassus. As duas primeiras
em ambientes pobres em
são predadoras e em
nutrientes”.
12 | maio DE 2016
Representação gráfica das nanopartículas interagindo com uma célula tumoral
1
Somente células doentes
afetadas (Langmuir, 2
5 de abril).
fotos 1 Ana Zangirolame Gonçalves / Unicamp 2 Mateus Cardoso / LNLS 3 Letícia Roma / DKFZ ilustraçãO daniel bueno
Uma nave rumo a Alfa Centauri Uma nave pesando apenas alguns gramas deverá ser impulsionada por feixes de laser até Alfa Centauri, um grupo de estrelas a cerca de 4,3 anos-luz de distância da Terra, caso seja concluído um projeto ousado: o Breakthrough Starshot, que tem à frente o físico
As redes da cana
inglês Stephen Hawkings
comunicação com a
No anúncio do projeto,
e os empresários Yuri
Terra serão feitas por
em abril, seus criadores
Milner, russo, e Mark
meio do laser. Dezenas
disseram que a pesquisa e
Zuckerberg, norte-
de pesquisadores
a engenharia necessárias
-americano, criador do
participam do projeto,
para concretizar o plano
Segue a busca por genes
Facebook. Se a ideia de
cujo custo inicial é
serão desenvolvidas por
que ajudem a aumentar
acelerar a pequena nave
estimado em US$ 100
meio de colaborações
o teor de açúcares
até que alcance uma
milhões. A maioria dos
globais e com um sistema
da cana-de-açúcar.
velocidade equivalente a
integrantes são físicos
de dados abertos e
A ideia é incrementar a
20% da velocidade da luz
de várias universidades e
transparentes. A lista de
produtividade de
der certo, a viagem deve
empresas de tecnologia
desafios tecnológicos a
bioetanol. Um grupo
durar 20 anos. Tanto
dos Estados Unidos, da
serem vencidos está no site
liderado pela bioquímica
a propulsão como a
Europa e do Japão.
bit.ly/1rkTYfy.
Glaucia Souza, da Universidade de São Paulo (USP), comparou redes
3
de expressão gênica na variedade comercial e em
Para acompanhar reações químicas
três ancestrais da cana (Plant Molecular Biology, maio). O estudo identificou padrões de
Uma equipe do Centro Alemão de Pes-
atividade dos genes que
quisa do Câncer (DKFZ) desenvolveu
podem estar relacionados
uma estratégia que permite acompanhar
a uma maior biomassa e
a evolução de certas reações químicas
à construção da parede
– e quantificar seu resultado – em tecidos
celular. A regulação
de organismos relativamente grandes.
das funções do material
Por ora, essa estratégia experimental
genético também pode
foi usada em camundongos, animais-
estar associada, de
-modelo para o estudo de problemas de
funciona como um comunicador interno;
acordo com os resultados,
saúde humanos. Antes só era possível
em níveis elevados, provoca danos na
à forma como o DNA
acompanhar o desenrolar dessas reações
célula e até sua morte – suspeita-se que
químicas em organismos translúcidos,
a sua produção excessiva esteja por trás
com poucas camadas de tecidos, como
do envelhecimento dos organismos e do
embriões de peixes ou moscas-da-fruta.
desenvolvimento de doenças degenera-
O grupo do DKFZ, do qual participa a
tivas. Usando a estratégia, que inclui a
brasileira Letícia Roma, criou roedores
criopreservação do tecido e um banho
geneticamente alterados para produzir
químico, os pesquisadores mediram a
uma proteína fosforescente sensível aos
produção de H2O2 durante o desenvol-
níveis de água oxigenada (H2O2). Essas
vimento de um tumor e uma reação in-
moléculas são geradas por uma organe-
flamatória (Science Signaling, 15 de mar-
la celular – a mitocôndria – durante a
ço). Segundo Letícia, o grupo espera usar
a fabricação de bioetanol
conversão de nutrientes em energia. Em
a técnica para ver se alterações na pro-
e de novos materiais
pequenas quantidades, essa molécula
dução de H2O2 estão ligadas ao diabetes.
para biorrefinarias”,
é empacotado no Um mapa de reações químicas: pontos amarelos e vermelhos (destaque) indicam tecidos de embrião de camundongo com maior produção de H2O2
núcleo celular. “Nossas descobertas abrem caminho para a identificação de vias bioquímicas importantes que podem auxiliar na produção de variedades ou plantas transgênicas úteis para
explica Glaucia. PESQUISA FAPESP 243 | 13
1
Como dormir bem fora de casa Acordar cansado é uma
de atividade distintos.
reclamação comum de
Um alcançou estágios de
quem dorme fora de casa,
sono menos profundos do
efeito que costuma ser
que o outro. O hemisfério
mais intenso na primeira
mais acordado reagia
noite. Agora se sabe por
mais prontamente a sons
quê: nessas condições,
externos. O grau de
um dos hemisférios do
assimetria foi relacionado
cérebro permanece
à dificuldade de dormir
alerta, em vez de relaxar,
profundamente na
segundo estudo da
primeira noite. Nas noites
Universidade Brown,
seguintes não houve
Estados Unidos (Current
assimetria. O padrão
Biology, 21 de abril). Para
inicial, que permite ficar
entender o chamado
alerta em um ambiente
Uma placa fotográfica de
Observatórios Carnegie
efeito da primeira noite,
desconhecido, representa
vidro de 1917 guarda o
que localizasse a placa
os pesquisadores usaram
uma versão moderada do
primeiro registro de que
fotográfica de uma estrela
técnicas de neuroimagem
que se observa em
se tem notícia por ora de
descoberta em 1917 pelo
e polissonografia para
mamíferos marinhos e
um sistema planetário
astrônomo holandês
examinar a atividade
algumas aves: eles
distante do Sol. O
Adriaan van Maanen.
cerebral de 35 pessoas
desligam um dos
material ficou guardado
A placa apresenta dois
que dormiram no
hemisférios enquanto
por quase um século entre
traços escuros espessos,
laboratório por algumas
dormem. Para reduzir o
as 250 mil placas do
acompanhados de um
noites. As imagens
efeito da primeira noite,
acervo dos Observatórios
terceiro, tênue. O traço
revelaram que, na
os pesquisadores sugerem
Carnegie, nos Estados
mais fino é a linha
primeira noite, os dois
que se tente criar um
Unidos, e foi reanalisado
espectral da luz emitida
hemisférios cerebrais
ambiente similar àquele
agora pelo astrônomo
pela estrela e contém
mostraram padrões
em que se dorme em casa.
Jay Farihi, da University
pistas de sua composição
College London. Farihi
química e da dos objetos
preparava um trabalho de
que passam à sua frente.
revisão sobre a evolução
Segundo Farihi, a linha
de discos formados por
indica a presença de
detritos planetários ao
elementos químicos
redor de anãs brancas,
pesados, como cálcio,
estrelas em estágio final
magnésio e ferro, que,
de vida. Esses discos,
nos últimos anos, foram
segundo o astrônomo,
associados à existência
são uma evidência de que
de um sistema planetário
essas estrelas já foram
com vastos anéis de
orbitadas por planetas.
detritos rochosos (New
Farihi pediu à direção dos
Astronomy Reviews, abril).
Placa fotográfica de 1917 com as linhas espectrais da estrela de Van Maanen (acima), e anotações do astrônomo que a observou
2
Sucralose: aquecida a mais de 98ºC gera compostos potencialmente tóxicos
Um sistema planetário de 1917
Os derivados nocivos da sucralose Não convém adoçar o cafezinho recém-
potencialmente tóxicos e capazes de
pessoas e pelas indústrias alimentícia e
-coado ou a massa do bolo que vai ao
se acumular no organismo (Scientific Re
de medicamentos, a sucralose tem uma
forno com sucralose, o edulcorante arti-
ports, 15 de abril). Na Unicamp, o farma-
estrutura química semelhante à da sa-
ficial mais usado no mundo. Pesquisado-
cêutico Rodrigo Catharino e seus cola-
carose, o açúcar comum. Ambas as mo-
res da Universidade Estadual de Campi-
boradores Diogo de Oliveira e Maico de
léculas são formadas por carbono, hi-
nas (Unicamp) verificaram que, a partir
Menezes aqueceram amostras de sucra-
drogênio e oxigênio. A sucralose tem
de 98º Celsius, as moléculas do adoçan-
lose em banho-maria enquanto usavam
ainda três átomos de cloro, que lhe dão
te começam a sofrer uma transformação
equipamentos para medir os compostos
maior poder adoçante e facilitam a mo-
química e passam a gerar compostos
que surgiam. Largamente usada pelas
dificação de sua estrutura.
14 | maio DE 2016
Um jogo quântico
3
Jogadores de videogame com pouca ou nenhuma formação científica estão ajudando os pesquisadores a encontrar soluções mais eficientes para um problema da computação quântica: realizar operações no menor tempo possível sem comprometer a precisão do resultado. O grupo do físico Jacob Sherson, da Universidade Aarhus, na Dinamarca, obteve soluções eficientes ao transformar operações de computação
Grande Fonte Prismática, no Parque Nacional de Yellowstone: águas ricas em microrganismos ainda não identificados
quântica em um jogo de computador: o
A desconhecida biodiversidade da Terra
BringWaterHome, disponível no ambiente virtual Quantum Moves.
Para cada espécie de
O levantamento se
a biodiversidade se
No jogo, o desafio é mover
ser vivo conhecida no
baseou em informações
relaciona com
um átomo através de uma
planeta, há 100 mil
de bancos de dados
a abundância dos seres
barreira do modo mais
por serem identificadas,
governamentais e
vivos (PNAS, 2 de maio).
rápido e eficiente possível,
de acordo com a
acadêmicos sobre
De acordo com o trabalho,
sem alterar sua energia
projeção de um grupo
5,6 milhões de
financiado pelo
inicial. O átomo é
da Universidade de
microrganismos,
programa Dimensões
representado por um
Indiana, Estados Unidos.
plantas e animais de
da Biodiversidade da
líquido que precisa ser
Segundo esse trabalho,
35 localidades em terra
National Science
transportado sem
a Terra deve abrigar
firme e nos oceanos.
Foundation (NSF) dos
transbordar. As
1 trilhão de espécies
A estimativa do número
Estados Unidos, as
de microrganismos,
total de espécies
bactérias são os
das quais 99,999%
resultou da aplicação
microrganismos
permanecem
de modelos ecológicos
mais abundantes e
desconhecidas.
sobre como
capazes de viver em
propriedades do líquido imitam a capacidade dos átomos de se comportarem como ondas
fotos 1 instituição carnegie 2 eduardo cesar 3 nps 4 reprodução
e a de, ocasionalmente,
BringWaterHome: o desafio é transportar um átomo (líquido rosa) sem alterar sua energia
ambientes extremos.
atravessarem barreiras
O solo se mostrou o
intransponíveis no mundo
ambiente mais favorável
macroscópico. Os
ao desenvolvimento de
resultados de 12 mil
seres vivos (1 grama
partidas jogadas por 300
de terra pode conter
voluntários estão em um
mais de 1 bilhão de
artigo recente (Nature,
organismos). Identificar
14 de abril). A maioria das
a diversidade microbiana,
soluções era mais
porém, continua
eficiente do que as obtidas
sendo um desafio.
apenas por cálculos de
De todas as espécies
computador – duas delas
de microrganismos
eram mais rápidas do que
catalogadas, apenas
qualquer solução já
cerca de 10 mil crescem
obtida. O jogo está
em laboratório e o genoma de menos de
disponível em bit.ly/21xYIe3.
4
100 mil já foi sequenciado. PESQUISA FAPESP 243 | 15
capa
A prova final da
fosfoetanolamina
P铆lula da disc贸rdia: governo federal aprovou a fosfoetanolamina antes de o composto ter sido testado de forma adequada 16 | maio DE 2016
Testes clínicos em seres humanos devem atestar se o composto pode ser útil no tratamento de algum tipo de câncer Marcos Pivetta
foto léo ramos ilustração fabio otubo
N
as próximas semanas os supostos efeitos benéficos da fosfoetanolamina sintética, que vem sendo usada há mais de duas décadas sem aval científico como uma tentativa de tratar o câncer, começam a ser definitivamente postos à prova em dois estudos clínicos independentes. Produzido desde a década de 1990 de forma artesanal por Gilberto Chierice, professor titular (hoje aposentado) do Instituto de Química de São Carlos da Universidade de São Paulo (IQSC-USP), o polêmico composto será, pela primeira vez, testado de forma controlada, de acordo com os protocolos de pesquisa, em seres humanos nos estados de São Paulo, Ceará e Rio de Janeiro. Sua eventual ação sobre diferentes formas de tumores será acompanhada em detalhes por meses, talvez anos se os resultados forem promissores, por médicos e pesquisadores envolvidos nos experimentos. “Ao final dos testes, deveremos sair do campo subjetivo, em que algumas pessoas relatam melhora com o emprego da fosfoetanolamina, e ter informações objetivas sobre se o composto é benéfico ou não para algum tipo de câncer”, afirma Roger Chammas, professor de oncologia básica da Faculdade de Medicina da USP (FM-USP) e coordenador do Centro de Investigação Translacional em Oncologia do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp).
O primeiro estudo deverá ser o do Icesp. A candidata a droga anticâncer será ministrada, durante dois meses, a um grupo de 10 pacientes com a doença para confirmar sua aparente não toxicidade. “Precisamos validar esse ponto antes de prosseguir com os trabalhos”, diz Paulo Hoff, diretor-geral do Icesp e coordenador do estudo. Se não houver problemas de segurança, as pílulas de fosfoetanolamina passarão a ser dadas a um conjunto de 210 pacientes, divididos em grupos de 21 doentes, que têm os 10 tipos mais comuns de câncer: cabeça e pescoço, mama, próstata, colo do útero, cólon e reto, estômago, fígado, pulmão, pâncreas e melanoma. Caso o composto apresente algum benefício, o experimento poderá ser expandido e incluir até mil pacientes e se prolongar por dois anos. O protocolo científico desse estudo, financiado ao custo de R$ 2 milhões pelo governo paulista, já foi aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa do Conselho Nacional de Saúde (Conep-CNS) e pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão federal que regula o registro de medicamentos e alimentos. A fosfoetanolamina a ser empregada no estudo foi sintetizada pela empresa PDT Pharma, de Cravinhos, no interior paulista, e está sendo encapsulada pela Fundação para o Remédio Popular (Furp), laboratório farmacêutico oficial do estado de São Paulo. “Assim PESQUISA FAPESP 243 | 17
Como uma droga chega ao mercado Antes de ser liberada para uso em seres humanos, uma molécula candidata a ser reconhecida como medicamento precisa ser testada e aprovada em diferentes fases de pesquisa pré-clínica e clínica. Todo o processo raramente demora menos de uma década
fase pré-clínica O composto é testado em células de animais e/ou humanas cultivadas em laboratório (in vitro) e também em animais (in vivo), geralmente em camundongos, para averiguar sua possível atividade terapêutica e toxicidade. Cerca de 90% das moléculas pesquisadas não
Fonte anvisa / roger chammas
passam desta etapa
Os estudos até agora publicados pelo grupo do professor Chierice sobre a fosfoetanolamina se enquadram nesta fase. Contudo, nos trabalhos com animais, os a situação da fosfoetanolamina
pesquisadores administraram o composto por via endovenosa ou intraperitonial, e não de forma oral, como ocorreu com os
que recebermos as cápsulas, podemos começar o estudo”, diz Hoff. Seis meses depois de iniciados os testes, será possível ter uma ideia preliminar se o composto apresenta benefícios para algum tipo de tumor, segundo o diretor-geral do Icesp. A segunda iniciativa envolve o Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Medicamentos da Universidade Federal do Ceará (NPDM-UFC) e o Instituto Nacional de Câncer (Inca), do Rio de Janeiro. Em agosto, o NPDM pretende iniciar a chamada fase 1 da pesquisa clínica (testes em seres humanos) com a fosfoetanolamina, na qual quatro diferentes dosagens do composto serão dadas por via oral a um grupo de 60 a 120 voluntários sadios, sem câncer, para checar a sua toxicidade. “Até essa data, devemos ter em mãos todos os relatórios dos estudos pré-clínicos de nosso grupo de trabalho e obtido as autorizações necessárias para iniciar os testes”, diz o médico Manoel Odorico de Moraes, professor da UFC e coordenador do núcleo. Se aprovado nesse ensaio inicial, o composto avança para os estudos clínicos de fase 2 no Inca. Nessa etapa, ele será testado em até 200 pacientes, divididos em quatro grupos de 50 pessoas, cada um com um tipo de câncer que não responde bem 18 | maio DE 2016
ao tratamento-padrão: melanoma, colo do útero, adenocarcinoma de pulmão sem mutação no gene EGFR e de mama triplo negativo (sem três tipos de biomarcadores). “Primeiro vamos testar a fosfoetanolamina em um grupo de 20 pacientes com cada tipo de tumor”, afirma a médica Marisa Maria Dreyer Breitenbach, coordenadora de pesquisa do Inca. Se os resultados forem positivos em pelo menos 10% dos pacientes, o composto será dado ao restante dos doentes do grupo. Por fim, caso continue apresentando ação promissora em uma parcela significativa dos pacientes, a molécula poderá vir a ser testada em uma população maior com câncer. “Temos de fazer todos os testes. Não dá para simplesmente extrapolar para os seres humanos os resultados positivos obtidos em estudos feitos em animais ou em células cultivadas em laboratório”, diz Marisa. Os testes no NPDM-UFC e no Inca fazem parte do conjunto de estudos pré-clínicos e clínicos que estão sendo conduzidos por um grupo de trabalho criado em outubro do ano passado pelos ministérios da Saúde e da Ciência, Tecnologia e Inovação para estudar a fosfoetanolamina. Até R$ 10 milhões estão previstos para serem alocados para as iniciativas do grupo de trabalho, que podem se estender por
infográfico ana paula campos ilustração fabio otubo
pacientes que receberam as pílulas
fase 1 Começam os testes com seres humanos. Entre 20 e 100 voluntários saudáveis recebem a molécula a fim de determinar o grau de toxicidade do composto. Em estudos com doenças graves, como o
Os primeiros testes clínicos com a fosfoetanola mina a serem feitos no Icesp e
câncer, a toxicidade geralmente é avaliada
na UFC/Inca
em um pequeno grupo de pacientes.
se encaixam
No Brasil, desde 1996, todos os projetos
nesta fase
precisam ser aprovados pela Conep e, a partir de 1999, também pela Anvisa. Os estudos visam encontrar a maior dose tolerável, a menor dose efetiva, a relação dose/efeito terapêutico, a duração do efeito e efeitos colaterais. Outro objetivo é entender a farmacocinética do composto: como ele é administrado, absorvido, transformado, depositado e eliminado do organismo
A lei federal nº 13.269, sancionada em 14 de abril pela Presidência sem veto, autoriza a produção, importação, prescrição,
fase 2 É uma espécie de estudo terapêutico-piloto, que envolve entre 100 e 200 pacientes com a doença-alvo do composto. Mais testes de segurança são feitos e a ação da molécula sobre a doença-alvo começa a ser determinada em mais detalhes
posse ou uso da fosfoetanolamina antes de o composto ter sido avaliado em estudos clínicos das fases 1, 2 e 3 e de ter obtido o registro da Anvisa
fase 3 A candidata a droga participa de um grande estudo, às vezes conduzido em mais de um país ou centro de pesquisa, com pelo menos 800 pacientes, de diferentes etnias, idade e perfil médico. Avaliam-se os riscos e benefícios a curto e longo prazo do composto e sua vantagem terapêutica em relação aos fármacos existentes no mercado. A dose e a via de administração são determinadas, além de contraindicações e efeitos colaterais. Uma vez aprovada nesta etapa crucial, a droga é liberada para venda
fase 4 São estudos feitos depois que uma droga começa a ser vendida. Seu intuito é ver se não aparecem novos efeitos adversos e se o fármaco produz os efeitos terapêuticos esperados, além de levantar informações para o marketing do produto e sobre novas formas de administração do remédio
três anos. Essa verba, no entanto, não deve ser suficiente para cobrir todas as despesas se a fosfoetanolamina chegar aos estágios finais dos testes. Segundo Chierice, que se aposentou da USP em dezembro de 2013, a fosfoetanolamina produzida em seu laboratório teria sido testada em pacientes com câncer na segunda metade dos anos 1990 no Hospital Amaral Carvalho, de Jaú (SP), com o qual seu grupo celebrou um convênio de pesquisa. Por meio de sua assessoria de imprensa, o hospital, no entanto, nega que tenha administrado o composto em seres humanos naquela época. Definida pela fórmula química C2H8NO4P, a molécula da fosfoetanolamina é produzida naturalmente nos mamíferos, inclusive no homem. É fabricada no retículo endoplasmático, nas células eucariontes, que contêm um núcleo e organelas protegidas por membranas. Está presente em todos os tecidos e órgãos e no leite materno. O composto é definido com um precursor da fosfatidilcolina e fosfatidiletanolamina, moléculas envolvidas na síntese de fosfolipídeos, uma classe de gorduras que são o principal constituinte das membranas celulares. A ligação da fosfoetanolamina com o câncer remonta a 1936, quando foi isolada pela primeira vez de tumores bovinos. PESQUISA FAPESP 243 | 19
Células se dividindo: velocidade do processo aumenta o risco de câncer
Posteriormente, foi sintetizada em laboratório e hoje é vendida como ingrediente químico e aparece na fórmula de alguns suplementos de cálcio comercializados no exterior. Lances heterodoxos
Os testes em pacientes seriam uma etapa natural da pesquisa clínica se a fosfoetanolamina tivesse percorrido a trajetória legal clássica prevista no processo de registro de um novo remédio junto às autoridades sanitárias. Mas sua história é peculiar, com lances heterodoxos, e o composto se encontra em uma situação juridicamente inusitada desde 14 de abril. Nessa data, uma lei federal, encaminhada pelo Senado e sancionada sem nenhum veto pela Presidência da República, autorizou seu uso por pacientes com câncer amparados por um laudo médico com o diagnóstico da doença. A medida, de apelo popular, foi tomada a despeito de não ter sido publicado um único trabalho científico sobre a segurança e os alegados efeitos positivos da fosfoetanolamina em seres humanos, passando por cima das prerrogativas da Anvisa, órgão encarregado de regular o setor de medicamentos. A lei não especifica onde será fabricada a fosfoetanolamina. A PDT Pharma está responsável por fornecer as pílulas apenas para os testes no Icesp. A USP 20 | maio DE 2016
fechou no fim de março o antigo laboratório de Chierice no IQSC e o Supremo Tribunal Federal (STF) lhe concedeu, no início de abril, o direito de não mais fornecer o composto a doentes assim que o estoque das pílulas acabasse. A Anvisa, as sociedades médicas, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e outras entidades científicas posicionaram-se contra a lei. Afinal, a fosfoetanolamina não é registrada como remédio em nenhum lugar do mundo. Moléculas candidatas a serem reconhecidas como medicamento precisam passar pela pesquisa pré-clínica antes de serem testadas em pessoas sadias ou pacientes. Nessa etapa, a toxicidade e os possíveis efeitos terapêuticos do composto são observados in vitro, em células de animais ou humanas cultivadas em laboratório, e in vivo, em modelos animais, geralmente camundongos, com uma versão da doença humana a que o pretenso fármaco se destina. Sem apresentar resultados satisfatórios, cerca de 90% das moléculas pesquisadas não passam dessa fase. As que se mostram seguras e com potencial de combater alguma patologia podem se tornar alvo de estudos clínicos, ou seja, serem testadas em seres humanos. “Muitos compostos que exibem bons resultados em experimentos in vitro não apresentam o mesmo efeito em testes com
foto Thomas Ried/NCI Center for Cancer Research ilustração fabio otubo
pessoas”, afirma Marisa, do Inca. Se realmente se modificaria o funcionamento das mitocôndrias e mostrar eficiente para tratar uma patologia, com estimularia a apoptose (morte programada) das mais benefícios do que malefícios, o aspirante ao células com câncer e preservaria as sadias. De status legal de fármaco é aprovado e registrado acordo com Chierice, a fosfoetanolamina atua pela Anvisa como um remédio para um deter- como uma espécie de marcador das células com minado problema de saúde. Todo esse processo câncer, que trabalham de forma anaeróbica, sem dificilmente demora menos de 10 anos, pois é oxigênio, enquanto as sadias requerem oxigênio preciso ter certeza de que o medicamento produz para se manter. Assim – sempre segundo o quío efeito desejado sem ser tóxico (ver infográfico mico de São Carlos –, o composto ajudaria o sistema imunológico do paciente nas páginas 18 e 19). a combater a doença. “Os médiHá cerca de uma dezena de cos falam que há cerca de 150 estudos publicados em revistipos de câncer, mas só existem tas internacionais sobre o emesses dois tipos de células, as prego da fosfoetanolamina soComposto será anaeróbicas e aeróbicas”, afirmente em linhagens de células testado em ma Chierice. de animais e humanas cultivaPara Roger Chammas, o hidas em laboratório (in vitro) e pacientes com potético mecanismo de ação da também trabalhos em modelos fosfoetanolamina proposto por animais com câncer (in vivo). 10 diferentes Chierice e seu grupo é interesEm linhas gerais, esses trabasante e plausível, mas precisa lhos sugerem que a fosfoetatipos de tumor ser demonstrado por mais estunolamina não é tóxica a células no Instituto dos e denota desconhecimento sadias, sem câncer, e pode ter da complexidade dos sistemas ação contra alguns tipos de tudo Câncer do biológicos. “Eles acreditam que mores: melanoma, mama, leuo composto seria modificado cemia, fígado, pulmão, rim, ósEstado de SP pelo organismo e geraria fosfoseo e glioblastoma (cérebro). lipídeos que então produziriam Durvanei Augusto Maria, do efeitos contra os tumores”, diz Laboratório de Bioquímica e Chammas. “Essa hipótese não Biofísica do Instituto Butantan, é o autor da maioria desses trabalhos, em foi testada. Precisamos de mais estudos.” parceria com o próprio Chierice e seus colegas. Nos últimos 10 anos, Durvanei Maria tem se O conteúdo das cápsulas dedicado de forma sistemática a estudar a fos- Como etapa inicial de suas atividades, o grupo foetanolamina em experimentos pré-clínicos. de trabalho criado pelos ministérios da Saúde “Trabalho com a fosfoetanolamina pura, crista- e da Ciência, Tecnologia e Inovação analisou o lizada, que é solúvel em água e me foi fornecida conteúdo das cápsulas produzidas em São Carlos, pelo professor Chierice”, conta o pesquisador, sintetizou a fosfoetanolamina de acordo com o que atualmente orienta dois mestrandos e um método de Chierice e fez alguns estudos pré-clídoutorando, com bolsa da FAPESP, para estudar nicos. Com exceção da constatada ausência de too composto. “Eu a administro nos animais por via xicidade e da não promoção de mutações no DNA, endovenosa ou intraperitoneal, não por via oral, a fosfoetanolamina não apresentou resultados como ocorre nos pacientes que tomam a pílula.” animadores para seus defensores. O grupo de Esse detalhe é crucial. As taxas de disseminação, Luiz Carlos Dias, coordenador do Laboratório absorção, deposição e eliminação de uma droga de Química Orgânica Sintética da Universidade podem variar muito em função da maneira co- Estadual de Campinas (LQOS-Unicamp), analimo ela é ingerida. Entre os estudos recentes de sou o peso e o conteúdo de 16 pílulas. Nenhuma Durvanei Maria com a fosfoetanolamina desta- delas tinha o peso alegado, de 500 miligramas cam-se um artigo no British Journal of Cancer, (mg) – variou de 233 mg a 368 mg. “O processo em novembro de 2013, e outro que saiu em 18 de de fabricação das pílulas não tinha nenhum conabril de 2016 na versão eletrônica do Internatio- trole, é amador”, afirma o farmacêutico Eliezer nal Journal of Nanomedicine. J. Barreiro, da Universidade Federal do Rio de Segundo o pesquisador do Butantan, o suposto Janeiro (UFRJ) e coordenador do Instituto Namecanismo de ação da fosfoetanolamina contra cional de Ciência e Tecnologia de Fármacos e o câncer é diferente da forma como atuam os Medicamentos (INCT-Inofar), que assinou o requimioterápicos e a radioterapia. “Acreditamos latório sobre as cápsulas do composto com Dias. que ela promove a analgesia e altera a composição Dentro das pílulas havia, em média, 32,2% de lipídeos [gorduras] em torno das células com de fosfoetanolamina e mais quatro componencâncer”, diz Durvanei Maria. Assim, o composto tes: 34,9% de fosfatos de cálcio, magnésio, ferro, PESQUISA FAPESP 243 | 21
manganês, alumínio, zinco e bário; 3,6% de pi- até o fim dos anos 1980. Nessa época, durante rofosfatos de cálcio, magnésio, ferro, manganês, um experimento com um eletrodo seletivo para alumínio, zinco e bário; 18,2% de monoetanola- cálcio, deparou-se com o composto. Consultou mina protonada; e 3,9% de fosfobisetanolamina. a literatura científica e sua primeira impressão “Esperávamos um composto só e encontramos foi de que a fosfoetanolamina podia ser cancerícinco”, diz Dias. Ainda como parte dos estudos gena. Em seguida, passou a pensar exatamente pré-clínicos feitos pelo grupo de trabalho, o Cen- o contrário. “Achei que o organismo produzia a tro de Inovação de Ensaios Pré-Clínicos (CIEnP), fostoetanolamina para se defender do tumor”, instituto privado sem fins lucrativos localizado conta Chierice. Durante meses, tentou produem Florianópolis, constatou que a monoetano- zir em seu laboratório o composto. Obteve sulamina, e não a fosfoetanolamina, apresentou cesso em sintetizar a fosfoetanolamina ao comatividade tóxica in vitro contra células tumorais binar duas substâncias, a monoamina e o ácido de pele e do pâncreas. Mas a monoetanolamina fosfórico, por meio de um método cuja patente se mostrou útil contra células de câncer apenas pediria em 2008. Era uma forma barata e com em uma concentração elevada, cerca de 3 mil alto rendimento de fabricação do composto, de vezes maior do que a usada em quimioterápicos. acordo com Chierice. “A fosfoetanolamina pura é inativa”, afirma João Batista Calixto, professor tituCONVêNIO COM HOSPITAL lar aposentado de FarmacoloEm 1995, o químico de São Cargia da Universidade Federal de los fechou um convênio com o Santa Catarina (UFSC) e coorHospital Amaral Carvalho padenador do CIEnP. No Ceará, ra testar, durante cinco anos, A fosfoo núcleo coordenado por Matrês iniciativas de seu laboraetanolamina noel Odorico de Moraes, da tório: próteses de mamona, um UFC, também não registrou bactericida/fungicida, também não parece ser toxicidade da fosfoetanolaextraído dessa planta, e a fosmina contra cinco diferentes foetanolamina em pacientes tóxica, mas linhagens de células humanas e com câncer. Teria sido mais de camundongos cultivadas in ou menos nessa época que o seus alegados vitro, três com tumores e duas composto começou a chegar às efeitos sem câncer. mãos dos pacientes com câncer. Chierice e Durvanei Maria “Inicialmente, forneci a fosfoenunca foram contestam a maioria dos resultanolamina para o hospital fatados pré-clínicos apresentazer os testes”, afirma Chierice, comprovados dos pelo grupo de trabalho que tem uma cópia do convêmontado pelo governo fedenio. “Tudo foi aprovado pela em pacientes ral. “Nunca disse que as pílulas comissão de ética do hospital tinham só fosfoetanolamina”, e pelo Ministério da Saúde. A diz Chierice. “O composto é ácido e precisa ser neutralizado com bases para ser dado às pessoas.” Embora admita que o peso das cápsulas produzidas em seu antigo laboratório em São Carlos poderia apresentar alguma variação, ele estranhou a presença de bário nos testes feitos pela Unicamp. “Eles não devem ter feito os testes com a fosfoetanolamina das cápsulas. Devem ter sintetizado o composto por um método diferente do meu”, diz Chierice. Dias reitera que os testes foram feitos com o conteúdo das cápsulas fabricadas em São Carlos. Durvanei Maria também argumenta que os estudos feitos pelo grupo de trabalho usaram concentrações muito baixas da fosfoetanolamina. Por isso não deram resultados semelhantes às suas pesquisas feitas no Butantan. Especialista na síntese de polímeros derivados da mamona que podem ser usados em aplicações médicas (ver Pesquisa FAPESP nº 91), Chierice nunca havia trabalhado com a fosfoetanolamina 1 22 | maio DE 2016
O químico Gilberto Chierice: pílulas eram fabricadas em seu antigo laboratório na USP de São Carlos
fotos 1 léo ramos 2 Cecília bastos / usp imagens ilustração fabio otubo
Procura pela fosfoetanolamina em em frente ao IQSC: Justiça chegou a obrigar a USP a entregar o composto a alguns pacientes, mas hoje a distribuição das pílulas está proibida
Anvisa ainda não existia.” Com o tempo, segundo o químico, os médicos do hospital teriam visto que os resultados dos testes eram bons e passado a pedir para os próprios doentes retirarem as cápsulas do composto no laboratório de Chierice na USP. Se foram realmente feitos, os testes em pacientes no Amaral Carvalho nunca tiveram seus resultados divulgados e o hospital hoje nega ter dado a fosfoetanolamina aos doentes. Com o fim do convênio entre o grupo de Chierice e o hospital no ano 2000, doentes da região de São Carlos e de outras partes do estado e do país começaram a se dirigir ao laboratório do IQSC em busca das pílulas da USP que, segundo relatos de pacientes que teriam usado o composto, seriam capazes de curar o câncer. Chierice não se negava a ajudar os doentes e seu laboratório virou alvo de uma romaria silenciosa de pacientes e familiares, por vezes desesperados. O químico calcula ter fabricado por ano cerca de 40 mil cápsulas, suficientes para atender a demanda de aproximadamente 800 pessoas. “Nunca fiz nada escondido. Todos sabiam da fosfoetanolamina. Muitos colegas da USP pegaram as pílulas”, afirma o químico. A situação se manteve longe dos olhos do grande público durante anos. Em dezembro de 2013, Chierice fez 70 anos e se aposentou compulsoriamente da universidade. Em junho de 2014, uma portaria do IQSC reforçou a proibição federal a respeito da produção e distribuição, por pesquisadores da universidade, de substâncias não aprovadas como medicamento pela Anvisa e Ministério da Saúde. O ato administrativo não mencionava a fosfoetanolamina, mas esse era seu alvo. “Enquanto fui professor da USP, ninguém teve coragem de proibir a produção”, afirma Chierice. No início deste ano, a USP denunciou o
químico por curandeirismo e crime contra a saúde pública. Pacientes que estavam recebendo a fosfoetanolamina de modo informal (e irregular diante da legislação da Anvisa) conseguiram liminares na Justiça e obtiveram o direito legal de continuar a ganhar da USP as pílulas do composto. A USP argumentou que não era laboratório farmacêutico e que não havia pesquisas que autorizassem seu uso em seres humanos. No final do ano passado, as discussões chegaram à Câmara dos Deputados e ao Senado, onde Chierice e outros pesquisadores de seu grupo foram defender o uso do composto. Os ensaios clínicos que em breve começarão no país não devem 2 pôr fim à polêmica. Chierice não os reconhece totalmente e não dá sinais de que pretende mudar seu ponto de vista. “Estou fazendo testes no exterior com a fosfoetanolamina para confrontar com os resultados obtidos aqui”, afirma ele, sem nomear os laboratórios. “Tenho certeza de que descobri a cura do câncer.” Frases nesse tom criam expectativas que a maioria dos pesquisadores julga irreais. Os oncologistas não acreditam que exista uma única droga capaz de combater todos os cerca de 200 tipos de tumores. “Não desenhamos nossos testes com a esperança de que a fosfoetanolamina possa ser milagrosa, o que não seria justo com o composto”, diz Paulo Hoff, do Icesp. “Vamos analisar seus eventuais efeitos, de forma independente, em cada um dos 10 grupos de pacientes com tumores distintos.” n
Projetos 1. Avaliação dos efeitos antitumorais da formulação lipossomal Dodac/fosfoetanolamina sintética em modelo de hepatocarcinoma (nº 2015/02950-1); Modalidade Bolsas no Brasil – Doutorado Direto; Pesquisador responsável Durvanei Augusto Maria (Instituto Butantan); Beneficiário Arthur Cassio de Lima Luna; Investimento R$ 93.974,40. 2. Avaliação dos efeitos antiproliferativos e de apoptose da formulação lipossomal Dodac associados à fosfoetanolamina sintética em células de carcinoma espinocelular de cavidade oral (nº 2015/00547-5); Modalidade Bolsas no Brasil – Mestrado; Pesquisador responsável Durvanei Augusto Maria (Instituto Butantan); Beneficiário Larissa Kim Higashi de Carvalho; Investimento R$ 49.143,90. 3. Avaliação antitumoral da formulação lipossomal Dodac com o composto fosfoetanolamina sintética em células tumorais de mama humana (nº 2014/02344-1); Modalidade Bolsas no Brasil – Mestrado; Pesquisador responsável Durvanei Augusto Maria (Instituto Butantan); Beneficiário Manuela Garcia Laveli da Silva; Investimento R$ 47.624,90.
Artigos científicos LUNA, A. C. L. et al. Potential antitumor activity of novel Dodac/ PHO-S liposomes. International Jornal of Nanomedicine. 18 abr. 2016. FERREIRA, A. K. et al. Synthetic phosphoethanolamine has in vitro and in vivo anti-leukemia effects. British Journal of Cancer. v. 109. n. 11, p. 2819-28. 2013.
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24 | maio DE 2016
entrevista Guido Carlos Levi
Reação inesperada Infectologista diz que a recusa à vacinação se tornou fenômeno das classes mais altas e intelectualizadas no Brasil
Bruno de Pierro |
retrato
Léo Ramos
A idade 74 anos especialidade Infectologia formação Graduação na Faculdade de Medicina de Sorocaba (PUC) e doutorado em Medicina na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) produção científica Autor de mais de 100 artigos científicos; escreveu ou organizou cerca de 40 livros
os 74 anos de idade, o infectologista paulista Guido Carlos Levi dedica parte do seu tempo a esclarecer dúvidas de pessoas que ainda desconfiam dos benefícios das vacinas. Na semana em que recebeu a reportagem em seu consultório na capital paulista, teve de convencer a duras penas uma mulher de 85 anos, que jamais havia sido vacinada, a se imunizar contra a gripe a fim de evitar o vírus H1N1. Ela estava acompanhada do marido, que recorreu ao médico na esperança de que ela mudasse de ideia. Referindo-se a vacinas como um “veneno sujo”, a mulher finalmente capitulou ante as explicações de Levi. “Contei a ela que, graças às vacinas, foi possível erradicar doenças como a varíola, que matou milhões de pessoas na Europa e nas Américas”, diz. A rejeição às vacinas é tema do livro Recusa de vacinas – Causas e consequências, publicado por Levi em 2013. Historicamente associada a populações pouco esclarecidas, a resistência mudou de perfil e hoje se tornou um fenômeno das classes sociais mais altas, segundo o médico. “Trata-se da população que tem mais acesso a tratamentos alternativos, como a homeopatia ou a medicina antroposófica, que muitas vezes não recomendam a vacinação.” Doutor em Medicina pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde lecionou na Faculdade de Ciências MéPESQUISA FAPESP 243 | 25
dicas, Levi é membro do comitê técnico do Programa Nacional de Imunizações do Ministério da Saúde, estabelecido em 1973. “O programa é referência internacional. A cobertura vacinal no Brasil é, em média, superior a 95%, com doses disponibilizadas gratuitamente em mais de 35 mil postos da rede pública”, conta. Na gestão pública, dirigiu o Instituto de Infectologia Emílio Ribas entre 1995 e 2001. É diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações e um dos fundadores da Cedipi, em São Paulo, uma clínica particular estabelecida em 1972 que oferece vacinas, algumas das quais ainda não disponíveis na rede pública, como a de herpes-zóster. Na entrevista a seguir, Levi fala do problema da recusa às vacinas na população e de pesquisas em torno de novas imunizações. Como surgiu seu interesse por vacinas? Fiz residência no Hospital do Servidor Público do Estado de São Paulo na década de 1960 e lá participei de uma iniciativa a convite do professor Vicente Amato Neto. Tratava-se de um trabalho voluntário em comunidades carentes na serra do Mar, que não tinham acesso a saneamento básico. Eram milhares de pessoas com doenças que podiam ser tratadas com medicamentos simples para combater parasitas. Outras moléstias podiam ser evitadas por meio da vacinação. Montamos clínicas ambulantes e uma das ações era vacinar principalmente as crianças. O índice de internação daquelas pessoas diminuiu cerca de 90%. Nossa equipe cresceu e passamos a atender outros locais da periferia de São Paulo. Essa experiência também resultou na publicação de artigos científicos nas áreas de parasitologia, imunização e saúde pública.
das pessoas de se imunizarem ou não. Um exemplo: a vacina contra o vírus influenza A [H1N1], de origem suína, não contém mercúrio, como dizem por aí. O mercúrio é usado como conservante em quantidades microscópicas apenas nas vacinas que são disponibilizadas em frascos de 10 doses. Em vacinas individuais, como a da H1N1, não há. E mesmo em relação àquelas que levam mercúrio há estudos que mostram que a quantidade presente em algumas vacinas não é tóxica. Ainda assim há gente afirmando que a vacina da gripe faz mal porque contém mercúrio. Além da falta de informação, há também casos de má-fé, não? Sim. Um dos casos mais emblemáticos é
Há, na internet, informações equivocadas sobre os efeitos colaterais das vacinas
O senhor é autor de um livro sobre a recusa de vacinas. Qual o tamanho desse problema? Com a internet, circulam muitos dados imprecisos, que confundem a população. No caso das vacinas, é comum ver informações equivocadas sobre seus efeitos colaterais que influenciam a decisão 26 | maio DE 2016
o de Andrew Wakefield, um ex-pesquisador britânico que, em 1998, publicou um artigo na revista The Lancet estabelecendo uma suposta relação entre a vacina tríplice viral e o autismo em 12 crianças. De acordo com Wakefield, isso ocorreria por má absorção de vitaminas essenciais e outros nutrientes, facilitando, porém, a absorção de proteínas que poderiam causar encefalopatia, levando ao aparecimento de autismo. O estudo recebeu críticas e, como os autores eram prestigiados em suas áreas e houve ampla repercussão, várias investigações foram feitas para verificar a veracidade dessas conclusões. Pesquisas realizadas em vários locais, como Estados Unidos e Ásia, não encontraram relação entre a
vacina e o autismo. Descobriu-se então que Wakefield havia recebido pagamentos de um escritório de advogados que tinha interesse em processar laboratórios e médicos. Em 2010, a The Lancet cancelou o artigo, considerado fraudulento. Wakefield passou por um julgamento no Reino Unido e, em 2014, teve o registro profissional cassado. A resistência às vacinas é atribuída a um perfil específico na população? A resistência é curiosa. Observa-se que, atualmente, se trata de um fenômeno das classes mais altas e intelectualizadas. Há um estudo feito por um grupo da Universidade de São Paulo que reforça essa tese. Em épocas mais recentes, os movimentos antivacinacionistas perderam muito da base religiosa que tinham no passado. As classes mais altas têm mais acesso a tratamentos alternativos e às medicinas homeopática e antroposófica, que muitas vezes não recomendam a vacinação. Entre os homeopatas há uma divisão entre os favoráveis e os contrários às vacinas. Nenhum autor clássico da homeopatia se contrapôs à vacinação. O próprio Samuel Hahnemann, pai da homeopatia, era um entusiasta da vacina contra a varíola. Mesmo assim há muitos homeopatas que não recomendam. Já na medicina antroposófica, uma doutrina filosófica e mística fundada pelo austríaco Rudolf Steiner no início do século XX, existe um posicionamento desfavorável à vacinação, ainda que não encontremos literatura nem favorável nem contrária às imunizações. Há também uma comunidade chamada Christian Science, fundada nos Estados Unidos, da qual surgiu um caso de sarampo em 1994 que provocou uma epidemia nos estados de Missouri e Illinois. Essa comunidade proíbe o uso não só de vacina, mas de qualquer tipo de medicamento com o argumento de que “ninguém pode ir contra a vontade de Deus”. São grupos pequenos. São influentes? São minorias, de fato. O problema é que, quando uma pessoa toma uma vacina,
Em 1957, Levi (ao centro, de preto) era o goleiro do time de futebol no Colégio Dante Alighieri, em São Paulo. Em 1961, na Faculdade de Medicina de Sorocaba (abaixo)
não está protegendo apenas a si mesma, mas também sua comunidade. Se um grupo, por menor que seja, deixa de ser vacinado, há chances de desencadear um surto, afetando pessoas que ainda não foram vacinadas. Em 2011, por exemplo, houve um surto de sarampo em São Paulo, originado em uma escola de linha antroposófica no bairro do Butantã, onde muitas crianças não haviam sido vacinadas por opção dos pais. Segundo essa linha de pensamento, acredita-se que basta uma alimentação saudável para manter a saúde das crianças.
fotos arquivo pessoal
Há quem afirme que o excesso de vacinas poderia sobrecarregar o sistema imunológico. Há evidências disso?
Existem as controvérsias científicas, mas é preciso deixar claro que muitas vezes não há ciência por trás de vários argumentos. Por exemplo, o médico Robert Sears, autor do best-seller The vaccine book: Making the right decision for your child, de 2007, sugere que, nos atuais esquemas vacinais, ocorre sobrecarga imunológica com a administração combinada ou simultânea de vacinas. Isso ainda seria agravado por excesso de alumínio, albumina purificada de sangue humano e timerosal, uma substância usada como conservante de medicamentos. Sears propõe um esquema alternativo, em que as vacinas seriam aplicadas em um tempo mais espaçado e separadamente. Mas, se você analisa em profundidade o livro de Sears, não consegue achar pesquisa dando lastro a essas conclusões. Não há nada. Por exemplo, ao afirmar que a tríplice viral contém albumina purificada derivada de sangue humano ele revela desconhecer que esse produto é obtido por cultura de tecidos, e não derivado de sangue. Há argumentos que não resistem a uma análise baseada em evidências científicas. A alegada sobrecarga imunológica, então, não existe? A sobrecarga nunca foi comprovada. Se eu aplicar, hipoteticamente, 10 mil vacinas simultaneamente em uma criança, ela tem capacidade de responder a todas, sem ter sobrecarga. O argumento da sobrecarga diz o seguinte: ao ser vacinado
muitas vezes, o organismo sobrecarregaria todo o seu sistema imunológico para responder às vacinas, não conseguindo dar respostas a outras ameaças. Esse conceito pressuporia que seres humanos, particularmente os de mais baixa idade, seriam incapazes de responder eficazmente e com segurança ao grande número de antígenos vacinais administrados. Mas veja: a criança, quando nasce, tem em poucas horas o intestino inteiramente povoado por bactérias. A quantidade de antígenos que ela tem é milhares de vezes maior do que os antígenos que vêm por meio da vacinação. Se a sobrecarga imunológica existisse, as crianças morreriam nos primeiros dias de vida, porque a própria colonização de bactérias no pós-parto seria suficiente para matar o bebê. No passado, o que levava as pessoas a rejeitarem vacinas? Em 1904 tivemos a Revolta da Vacina, no Rio de Janeiro, marcada por conflitos e protestos populares. A principal causa foi a campanha de vacinação compulsória contra a varíola, realizada pelo governo brasileiro e coordenada pelo médico sanitarista Oswaldo Cruz. A maioria da população era pobre e não tinha informações sobre como funcionam as vacinas. Portanto, a revolta não era contra a vacina em si, mas contra a imposição da vacinação. No final do século XIX, a Inglaterra decidiu abolir a obrigatoriedade das vacinas. Em vez do número de PESQUISA FAPESP 243 | 27
arquivo pessoal
Guido Levi com o então governador Mário Covas na reinauguração da unidade de terapia intensiva do Instituto Emílio Ribas, em 2000
pessoas vacinadas cair, observou-se o contrário: as pessoas aceitaram vacinar-se voluntariamente. Obrigar a vacinar ainda é um problema? A vacinação compulsória é uma questão ética, moral e cultural. Nos Estados Unidos, 48 estados permitiam que se recusasse a vacinação dos filhos se fosse apresentado um argumento religioso ou filosófico, por exemplo, ou restrições médicas. As duas exceções eram os estados de West Virginia e Mississipi, onde a vacinação é compulsória. Lá, é necessário comprovar a vacinação das crianças para poder entrar na escola. Recentemente a Califórnia também passou a exigir a vacinação básica para matrícula escolar. A Austrália há três anos adotou outra estratégia, ao perceber que os índices de vacinação na população estavam caindo para níveis perigosos. A solução foi oferecer recompensas financeiras para os pais que vacinassem os filhos. O Brasil optou por recomendar e oferecer vacinas em vez de estabelecer obrigatoriedade. Está correto na sua opinião? No Brasil, fizemos uma discussão sobre isso no Ministério da Saúde. Minha opinião é de que, num país como o nosso, recusar a matrícula de uma criança na escola porque ela não está com as vaci28 | maio DE 2016
nas em dia é algo muito ruim. O acesso à educação aqui é lamentável e não há por que torná-lo mais difícil. Na Austrália, antes de adotarem o modelo de recompensa, permitiam que uma criança não vacinada frequentasse a escola. Mas, se tivesse algum surto de uma doença, essa criança poderia ser afastada das aulas, independentemente de isso durar um mês ou um ano. Aqui ainda temos muito trabalho a ser feito usando informação. Podemos solicitar, por exemplo, que os pais façam inscrição da criança na escola e apresentem a carteirinha de vacinação. Se a carteirinha não estiver em dia, os pais são chamados e se explica a eles a importância da vacinação, indicando os postos de saúde no bairro onde possam vacinar os filhos gratuitamente. Nesse caso, a escola não iria simplesmente recusar a matrícula do aluno, mas sim informar os pais e indicar minimamente como eles poderiam proceder. Se fizermos isso, poderemos melhorar os índices de vacinação no Brasil. Eles são bons, e podem melhorar.
je em dia há uma série de etapas, como a verificação de impurezas e os testes em humanos em diversas fases. É difícil, portanto, ter efeitos colaterais não previstos ou verificados durante os testes. As etapas de produção de uma vacina são semelhantes às de um medicamento e pode levar mais de 10 anos até que um imunizante chegue ao mercado. Já os efeitos colaterais das vacinas não são muito expressivos. Pode haver, eventualmente, por exemplo, uma convulsão febril em crianças, mas não é comum. Outro exemplo: quando se toma a vacina pneumocócica pela primeira vez, começa-se a formar anticorpos. Quando se toma a segunda dose, caso a pessoa tenha muito anticorpo, pode haver uma reação local na pele e ficar dolorido por uns três dias. O problema é que muitas pessoas tomam a vacina e não são informadas sobre esse efeito colateral. Assustadas com a reação, vão a um pronto-socorro e, no atendimento, acabam sendo tratadas como se estivessem com alguma infecção.
Há ressalvas com embasamento científico às vacinas? Existem alguns fenômenos históricos de falhas na produção de vacinas, hoje em dia bem raros. Por exemplo, no início da década de 1960, foi distribuído um lote contaminado da vacina Sabin. Ho-
Qual sua avaliação sobre as pesquisas com vacinas contra a dengue? Em breve deverá estar nas clínicas de todo o país uma vacina desenvolvida pela empresa Sanofi Pasteur. Mas é uma vacina de eficácia não muito elevada, de mais ou menos 60% de proteção. Os
estudos mostram que essa vacina tem uma eficácia maior nas populações que já tiveram dengue. São três doses com seis meses de intervalo entre uma dose e outra. Se você tem um surto, num determinado lugar, será difícil bloqueá-lo com uma vacina dessas. O Programa Nacional de Imunizações na atualidade não pensa em adquirir essa vacina. O fato é que existem outras vacinas contra a dengue sendo pesquisadas, que parecem ter eficácia maior. O Instituto Butantan desenvolveu uma delas em conjunto com os Institutos Nacionais de Saúde, maior agência financiadora de pesquisa médica dos Estados Unidos, que está na fase 3 de testes clínicos [a FAPESP, em parceria com o CNPq e o Ministério da Saúde, financiou o desenvolvimento inicial dessa vacina entre 2008 e 2011 no âmbito do Programa Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica, Pite]. O Centro de Processamento de Vacinas, o Bio-Manguinhos, da Fundação Oswaldo Cruz [Fiocruz], no Rio de Janeiro, também está processando uma vacina que promete ser eficiente para combater a dengue. Nos próximos anos, teremos boas vacinas contra a doença.
é preciso mais incentivos para esse tipo de colaboração. Como avalia a produção de vacinas no Brasil? Temos a produção de vacina para a febre amarela, pela Fiocruz, e a da gripe, pelo Instituto Butantan, ainda que parte dela seja feita pelo laboratório Sanofi Pasteur. Mas, no geral, a produção ainda está engatinhando. Não somos autossuficientes. Uma coisa inteligente que se está fazendo são as parcerias que envolvem transferência de tecnologia. Uma instituição brasileira compra, por exemplo, vacina pneumocócica de um laboratório internacional, com a condição de que o laboratório transfira a tecnologia. Assim, daqui a cinco anos, o Brasil poderá produzir a vacina.
e o desenvolvimento de um câncer. A ideia é que a vacina evite o avanço dessas etapas intermediárias. Daqui a 20 anos, por exemplo, saberemos com certeza se a vacina ajudou a evitar casos de câncer. Para evitar o contágio e reinfecções pelo HPV, estão sendo vacinadas meninas a partir dos 9 anos de idade. Para o controle ser mais eficiente, não deveriam ser levados em consideração também os meninos? Essa diferenciação é por razões econômicas. O Brasil fez um esforço enorme para promover a vacina. A primeira etapa da vacinação teve 100% do grupo-alvo atendido. O foco nas meninas é porque o câncer do colo do útero é o mais grave. Em países onde o dinheiro não é problema, os dois sexos são vacinados, como ocorre hoje na Austrália. Eu mesmo vacinei minhas netas e meus netos; não estou preocupado com estatísticas, que mostram que o câncer do colo do útero é mais incidente do que o de laringe. E daí? Deve-se combater todos os tipos de câncer.
Muitas vezes não há base científica por trás dos argumentos contrários às vacinas
A indústria farmacêutica não se sente atraída pela produção de vacinas. O que fazer para garantir o desenvolvimento e a fabricação de imunizantes? Antigamente, um país rico podia demonstrar pouco interesse em produzir um medicamento ou uma vacina para determinada doença típica de países em desenvolvimento, por exemplo. Mas agora o mundo está globalizado. As pessoas circulam mais e isso facilita a disseminação de vírus. A dengue não está mais restrita a países do hemisfério Sul, existem alguns casos nos Estados Unidos, assim como há registros de malária e ebola na Europa. Todos os países precisam estar preparados. Por isso, nos últimos anos, assistimos a um aumento das parcerias entre empresas, instituições de pesquisa e organizações não governamentais como forma de acelerar o desenvolvimento de vacinas e medicamentos. Mas ainda
A vacina contra o vírus HPV pode ajudar a combater alguns tipos de cânceres. A relação entre vírus e câncer está sendo mais aceita? A hipótese viral foi suficientemente importante para o governo federal ter incluído no calendário nacional a vacina contra o HPV, que é muito cara. O HPV está relacionado a casos de câncer de faringe, laringe, reto, pênis, ânus e colo do útero. Eu acho que essa perspectiva, que relaciona o câncer a causas virais, deveria ser mais levada a sério. Podemos dizer que a vacina de HPV é, indiretamente, contra o câncer. Há pessoas que dizem que faltam provas de que essa vacina combate o câncer. Mas, claro, há várias etapas entre a infecção pelo vírus
Se o país conta com uma rede pública de distribuição de vacinas, qual é o sentido de manter clínicas particulares, como a Cedipi? A clínica tem vacinas que ainda não estão disponíveis no sistema público. Nós adquirimos a vacina tríplice viral muito antes de ser incorporada pela rede pública. Conseguimos antecipar algumas vacinas negociando diretamente com os laboratórios. Por exemplo, a rede privada tem vacina contra a meningite B, que não existe na rede pública, assim como temos a destinada à prevenção do herpes-zóster, que também não foi, ainda, incorporada pelo SUS [Sistema Único de Saúde]. Além disso, embora a Cedipi não realize pesquisa, muitos de nossos profissionais têm atuação em instituições de pesquisa e de órgãos como a Secretaria Estadual de Saúde e o Ministério da Saúde. Não é porque somos uma clínica particular que deixamos de lutar para que mais vacinas sejam incorporadas pela rede pública. Pelo contrário. n PESQUISA FAPESP 243 | 29
política c&T Instituição y
De Trieste para São Paulo Centro internacional criado em instituto da Unesp impulsiona pesquisa e promove cursos e eventos sobre física teórica
Fabrício Marques
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auditório do Instituto de Física Teórica (IFT) da Universidade Estadual Paulista (Unesp) tornou-se, nos últimos quatro anos, um espaço para discussões vigorosas sobre temas avançados da física. Vinte e cinco eventos estão programados para acontecer ali ao longo de 2016, entre cursos, seminários e workshops. Só nas próximas semanas, duas escolas internacionais terão a participação de pesquisadores de países como Estados Unidos, Índia, Itália, República Checa, Suécia, França e Argentina, que irão treinar mais de uma centena de estudantes de mestrado e doutorado do Brasil e do exterior. A primeira escola, entre 23 e 31 de maio, abordará a Teoria das Cordas, modelo que concebe as interações atômicas por meio de entidades hipotéticas, as cordas, que dariam origem a partículas. A segunda, de 27 de junho a 9 de julho, terá como mote a matéria escura, substância ainda desconhecida e invisível que compõe ao menos 23% do Universo e parece não absorver nem emitir luz. 30 z maio DE 2016
Alguns dos workshops agendados tratarão de assuntos como modelagem matemática de sistemas urbanos, física matemática e empreendedorismo. Tais atividades são promovidas pelo Centro Internacional de Física Teórica/Instituto Sul-americano para Pesquisa Fundamental (ICTP/SAIFR, na sigla em inglês), uma iniciativa lançada em 2010 pelo Centro Internacional de Física Teórica Abdus Salam (ICTP), em Trieste, na Itália, pela Unesp e pela FAPESP. “Nossa programação é definida por um comitê científico composto por pesquisadores de alto nível do Brasil e do exterior que se reúnem todo mês de fevereiro”, diz o físico norte-americano naturalizado brasileiro Nathan Berkovits, professor do IFT da Unesp e diretor do ICTP/SAIFR. Trata-se do primeiro centro a repetir em um outro país a experiência do ICTP de Trieste, criado na década de 1960 pelo físico paquistanês e vencedor do Nobel de Física de 1979 Abdus Salam (1926-1996) para produzir ciência de classe mundial e treinar pesquisadores de países em
Esta é a terceira reportagem de uma série sobre os 40 anos da Universidade Estadual Paulista, a Unesp
Fotos léo ramos
desenvolvimento. Além de organizar eventos que atraem palestrantes e estudantes do país e do continente, o centro paulista busca fazer pesquisa em física teórica na fronteira do conhecimento. Para tanto, está reforçando os quadros do IFT, composto por 18 professores, com uma dezena de estagiários de pós-doutorado, na maioria estrangeiros, além de pesquisadores visitantes. Cinco pesquisadores estrangeiros foram recrutados num regime diferente do habitual nas universidades brasileiras. A seleção é feita por um comitê internacional, que avalia candidatos de várias partes do mundo analisando seus currículos e fazendo entrevistas. Os escolhidos são admitidos por um período experimental, em geral de dois anos. Se a experiência for bem-sucedida, abre-se concurso para docente na área daquele pesquisador – e ele, se quiser, pode disputá-lo. O colombiano Eduardo Pontón, 45 anos, foi o primeiro a cumprir esse caminho e se tornar professor do IFT e pesquisador permanente do ICTP/SAIFR. Doutor em Física pela Universidade
de Maryland e professor entre 2004 e 2012 da Universidade Colúmbia, Estados Unidos, Pontón é especialista em física de partículas, sobretudo naquela associada à operação do Grande Colisor de Hádrons (LHC). Há outros quatro pesquisadores trabalhando no ICTP paulista, ainda em regime temporário. Um deles é o italiano Fabio Iocco, 36 anos, especialista em física de astropartículas, que nos últimos anos produziu contribuições no estudo da matéria escura. Atualmente, Iocco é beneficiário do programa Jovens Pesquisadores em Centros Emergentes, da FAPESP, e de uma doação que a Fundação Simons, de Nova York, fez ao centro. Selecionado por um comitê composto por cientistas vinculados a instituições dos Estados Unidos e da Alemanha, como a Universidade de Princeton e o Instituto Max Planck de Astrofísica, Iocco chegou a São Paulo em 2014 e vem se dedicando a atividades variadas. No ano passado, foi o primeiro autor de um artigo, publicado na Nature Physics, que demonstrou a existência da chamada matéria pESQUISA FAPESP 243 z 31
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eduardo cesar
escura entre o Sol e o centro da Via Láctea. Iocco e colaboradores constataram, com precisão inédita, que a velocidade real da rotação de estrelas em torno do centro da galáxia é maior do que a velocidade que seria esperada, levando-se em conta a força de gravidade exercida pela massa visível de estrelas. A diferença é atribuída à presença da matéria escura.
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occo também organiza eventos e orienta estudantes. Atualmente, está envolvido na preparação da Escola Internacional sobre Matéria Escura, que deve reunir até 100 alunos no IFT em junho. “Trata-se de um curso com uma preocupação didática de apresentar os tópicos mais avançados sobre o tema para estudantes de mestrado e doutorado. Com a variedade de background dos estudantes que vêm de toda a América do Sul, é fundamental selecionar professores que, além de conhecerem profundamente o assunto, saibam traduzir o conhecimento para esses alunos, conservando o nível de excelência que o ICTP-SAIFR quer gerar”, diz. Assim como Iocco, o uruguaio Rafael Porto, 38 anos, assumiu uma posição temporária no ICTP em 2014, vindo da Universidade de Princeton, com financiamento da FAPESP e da Fundação Simons. A aquisição mais recente é o português Pedro Vieira, professor visitante do Perimeter Institute, do Canadá, que ganhou em 2015 a Medalha de Gribov, atribuída pela Sociedade Europeia de Física, por sua pesquisa em física teórica. Completa o quadro o italiano Riccardo Sturani, beneficiário do programa Jovens Pesquisadores da FAPESP desde 2013, que deve deixar o IFT no segundo semestre para trabalhar no Instituto Internacional de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (ver Pesquisa FAPESP nº 242). Sturani é vinculado ao Observatório Interferométrico de Ondas Gravitacionais (Ligo), nos Estados Unidos, que registrou de forma pioneira a passagem de ondas gravitacionais pela Terra (ver Pesquisa FAPESP nº 241). O programa de mestrado e doutorado do IFT-Unesp alcançou a nota máxima (7) nas duas últimas avaliações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) – a nota anterior na avaliação era 6. Atribui-se esse desempenho ao crescimento da articulação com universidades de outros países. A pós-graduação do IFT, criada na década de 1970, formou cerca de 300 mestres e 200 doutores e, atualmente, tem 60 alunos. “Já tivemos 28 professores, contingente suficiente para garantir a diversidade em áreas de pesquisa na nossa pós-graduação, mas muitos se aposentaram e ainda não houve reposição. Hoje somos apenas 18”, diz Rogério Rosenfeld, professor e atual diretor do IFT. O instituto não oferece cursos de graduação.
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É certo que os jovens pesquisadores estão semeando novas linhas de pesquisa em consonância com o que é feito nos melhores institutos do exterior, o que confirma a forte e tradicional articulação internacional do IFT. O instituto foi criado em 1951 por um grupo liderado pelo engenheiro civil José Hugo Leal Ferreira com o apoio de militares como o general Henrique Teixeira Lott, que seria candidato a presidente da República em 1960. “O país vivia o pós-guerra e havia um grande interesse na pesquisa em física, talvez pelos motivos errados”, diz Rosenfeld, referindo-se ao apelo da pesquisa nuclear. “Várias instituições ligadas à pesquisa foram criadas também nessa época, como o CNPq, a Capes e o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, o CBPF”, afirma. O alto custo de criar uma instituição de pesquisa em física experimental levou o grupo a propor um centro voltado à física teórica. O modelo adotado foi o do Instituto de Física Max Planck, de Göttingen, Alemanha, na época dirigido por Werner Heisenberg, Prêmio Nobel de Física de 1932, que foi um dos fundadores da teoria quântica e um dos responsáveis pelo programa nuclear da Alemanha nazista durante a Segunda Guerra. “José Hugo Leal Ferreira chegou a convidar Heisenberg para ser seu diretor”, lembra o físico Pedro Carlos de Oliveira, que em 2001 defendeu uma tese de doutorado na Universidade de São Paulo (USP) sobre a história do IFT. Depois de meses de tratativas, Heisenberg recusou o convite e sugeriu os nomes dos físicos Carl Friedrich von Weizsäcker, Wilhelm Macke
Antiga sede do Instituto de Física Teórica, na rua Pamplona, em São Paulo: pesquisa, formação de recursos humanos e colaborações internacionais
e Reinhard Oehme, que vieram para o Brasil. Weizsäcker foi o primeiro diretor do instituto. No final dos anos 1950, o instituto inaugurou sua fase japonesa. Em 1958, vieram para São Paulo Mituo Taketani, da Universidade de Rikkyo, e Yasuhisa Katayama, da Universidade de Tóquio. Esta colaboração possibilitou trabalhos como o modelo de partículas conhecido como Modelo São Paulo. Em 1962, Paulo Leal Ferreira, um dos filhos do fundador José Hugo, foi nomeado diretor científico – o primeiro brasileiro a assumir o cargo. Dedicado à pesquisa e à formação de pesquisadores, o IFT consolidou ao longo do tempo parcerias com universidades de países como Dinamarca, Chile, Argentina, Itália, França, Estados Unidos, Espanha e Inglaterra.
Novaes ingressou na Unesp no final da década de 1970 e se dedicou a campos da física teórica até o ano 2000, quando optou por uma área experimental. Sua participação no LHC – ele passa duas temporadas por ano na França – transformou-o em um dos pesquisadores mais produtivos da Unesp. Novaes aparece em terceiro lugar numa lista, produzida pelo ranking Webometrics, dos 100 pesquisadores brasileiros mais citados segundo o Google Scholar Citations (GSC). Seus artigos já obtiveram 47,5 mil citações. “Para tocar um experimento desse porte é preciso uma massa crítica considerável, com a participação conjunta de um grande número de pesquisadores. Mas a produção é sazonal. Enquanto o equipamento era construído, não publicamos por um longo tempo. Quando surgiram os dados, a produção cresceu”, diz. os anos 1980, sofreu uma O IFT funcionou até 2009 severa crise financeira, num antigo casarão na rua quando a Financiadora Pamplona, na capital paulisde Estudos e Projetos (Finep), A transferência ta, que ainda pertence à fundado governo federal, reduziu reda sede do IFT ção que mantinha o instituto. passes e determinou que seus Um dos marcos da integração recursos não poderiam ser usapara o campus com a Unesp foi a transferência dos para pagar salários. A sode sua sede para um campus lução aventada para o impasse na Barra Funda, construído pela universidade seria a vinculação do instituto a em frente à estação de ônibus uma universidade. Houve conem 2009, foi e trem da Barra Funda, em São versas com a USP e a Univerum marco de Paulo, que comporta também o sidade Estadual de Campinas Instituto de Artes e a Agência (Unicamp), mas elas evoluíram sua integração Unesp de Inovação. Em marcom a Unesp, que tinha pouca ço passado, os vizinhos IFT e tradição em física – a produção à Unesp Instituto de Artes promoveram científica do IFT era maior e seu primeiro evento conjunto. tinha mais impacto do que a Batizado de Encontro de Unide todos os departamentos de versos, teve palestras de físicos física das unidades da Unesp. Paulatinamente, o IFT integrou-se à estrutura e artistas plásticos sobre temas como “Einstein da Unesp. “Somos uma unidade complementar, e Picasso – Espaço, tempo e beleza” e “Bóson de ligada à reitoria, que sempre nos apoia bastante”, Higgs na perspectiva do artista”. n diz Rosenfeld. Um pesquisador do IFT engajado num front mais experimental do que teórico, o físico Sérgio Novaes liderou a criação do Núcleo Projetos 1. ICTP – Instituto Sul-americano para Pesquisa Fundamental: Um de Computação Científica da universidade, que centro regional para física teórica (nº 2011/11973-4); Modalidade hoje fornece processamento de dados para mais Projeto Temático; Pesquisador responsável Nathan Jacob Berkovits de 300 pesquisadores da Unesp. “Esse trabalho (IFT-Unesp); Investimento R$ 4.293.588,79. 2. Centro de Pesquisa e Análise de São Paulo (nº 2013/01907-0); é um resultado indireto de nossa participação no Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Sérgio Ferraz LHC”, diz Novaes, que coordena o braço paulista Novaes (IFT-Unesp); Investimento R$ 4.645.660,87 (para todo o de uma rede internacional de computadores que período do projeto). 3. Abordagem de teoria de campos efetiva em cosmologia (nº filtram e organizam os resultados das colisões atô2014/25212-3); Modalidade Programa Jovens Pesquisadores em micas geradas em aceleradores de partículas. Por Centros Emergentes; Pesquisador responsável Rafael Alejandro meio do projeto temático Centro de Pesquisa e Porto Pereira (IFT-Unesp); Investimento R$ 192.939,21 (para todo Análise de São Paulo (Sprace, na sigla em inglês), o período do projeto). 4. Matéria escura na Via Láctea: Uma era de precisão (nº físicos brasileiros participam desde 2003 da análi2014/22985-1); Modalidade Programa Jovens Pesquisadores em se das propriedades de milhões de partículas que Centros Emergentes; Pesquisador responsável Fabio Iocco (IFTnascem ou morrem ao se chocarem em altíssima -Unesp); Investimento R$ 183.616,51 (para todo o período do projeto). 5. Pesquisa em ondas gravitacionais (nº 2013/04538-5); Modavelocidade no acelerador Tevatron, do Fermilab, lidade Programa Jovens Pesquisadores em Centros Emergentes; nos Estados Unidos, desativado em 2011, e nos Pesquisador responsável Riccardo Sturani (IFT-Unesp); Investimento túneis do LHC, na fronteira franco-suíça. R$ 256.541,00.
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Difusão y
Youtubers Canais de vídeo ganham destaque na divulgação de pesquisas feita na internet Bruno de Pierro
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om a Teoria da Relatividade Restrita, Albert Einstein demonstrou em 1905 que a energia de um objeto varia em função de sua massa e velocidade. Cento e onze anos depois, a mesma teoria serviu para colocar ponto final numa controvérsia que inspira fãs de quadrinhos (HQs) há décadas: qual super-herói tem o soco mais forte? Em um dos primeiros vídeos publicados pelo canal Nerdologia, no YouTube, o biólogo Atila Iamarino sugere que é o Flash, e não o Hulk ou o Super-Homem. Em tom bem-humorado, citando HQs e fórmulas da física, Iamarino explica que, ao atingir velocidade próxima à da luz, Flash seria capaz de dar um soco com impacto equivalente à explosão de 4 milhões de bombas de fusão nuclear, liberando energia suficiente para atear fogo em toda a atmosfera terrestre. O vídeo “viralizou”, isto é, propagou-se rapidamente na internet e teve mais de 1 milhão de visualizações. “Conseguimos atingir um público amplo, não necessariamente interessado por ciência”, diz Iamarino, que acaba de encerrar um estágio de pós-doutorado no Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) e planeja dedicar-se à divulgação científica. “Isso foi possível porque os conceitos científicos podem dialogar com um público cujos interesses são outros, como histórias em quadrinhos, cinema e games”, completa. Nos últimos anos, canais de vídeo no YouTube (também chamados de vlogs) que abordam ciência e tecnologia ganharam expressão na divulgação científica feita na internet. Em países como os Estados Unidos, jovens que
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Na ciência
fotos léo ramos
agora são conhecidos como youtubers produzem vídeos de ciência curtos, de mais ou menos 5 minutos, muitas vezes com poucos recursos disponíveis, e que chegam a ter, em alguns casos, mais de 200 milhões de visualizações. O fenômeno é caracterizado pelo engajamento de um público jovem, incluindo crianças e adolescentes. Os donos dos canais de vídeo são, na maioria, pesquisadores em início de carreira ou estudantes de graduação e pós-graduação. “Os vlogs estão conseguindo conquistar uma audiência mais diversificada, ao contrário dos blogs científicos, que são mais restritos ao público interessado por ciência”, diz Rafael Evangelista, pesquisador do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Universidade Estadual de Campinas (Labjor-Unicamp). De acordo com ele, isso acontece porque os canais de vídeo tratam de ciência utilizando uma linguagem informal, próxima à do entretenimento, fazendo referências ao universo da cultura pop, representado, por exemplo, pelas séries de TV. Em março, youtubers brasileiros lançaram uma iniciativa para fortalecer esse modelo no país. Trata-se do ScienceVlogs Brasil (SvBr), uma rede on-line formada por 21 canais de vídeos de ciência. A ideia foi colocada em prática após um encontro realizado no início do ano em Campinas. “Percebemos a importância de nos unirmos em torno de um objetivo comum: tornar os canais mais conhecidos do grande público e incen-
tivar o surgimento de outros novos”, explica o biólogo Rafael Bento Soares, um dos idealizadores do SvBr. A iniciativa, diz Bento, também procura garantir um selo de qualidade aos vlogs. “Com um selo do ScienceVlogs, o usuário saberá que o conteúdo tem lastro da ciência e boa procedência”, diz o biólogo, que em janeiro fundou com colegas a NuminaLabs, empresa de gestão de conteúdo científico. Um dos objetivos da companhia é gerenciar os canais de vídeo de ciência e promover parcerias entre eles e instituições de pesquisa. Segundo ele, muitas dessas instituições têm interesse em elaborar projetos de divulgação científica, mas não sabem como. “Os youtubers têm experiência e poderiam atuar como prestadores de serviço, produzindo vídeos.” REFERÊNCIA
Em poucos meses, o SvBr recebeu quase 35 mil inscrições no YouTube e tornou-se porta de entrada para canais ainda pouco conhecidos do público. É o caso do iBioMovies, vlog de biologia criado em 2012 pelo professor de ensino médio Vinícius Camargo Penteado, também idealizador da plataforma. “No início o canal tinha 700 visualizações, sendo que 200 eram da minha mãe”, brinca. “Em 2014, a equipe que produzia os vídeos comigo desistiu temporariamente do projeto, que permaneceu no limbo.” Após vincular seu canal ao portal do SvBr, no entanto, Penteado observou um salto no número de visualizações. Há um mês, ele
anunciou que voltaria a produzir para o canal. “Estou animado, ainda que seja difícil fazer tudo sozinho”, diz. Um dos primeiros canais brasileiros a levar ciência ao YouTube foi o Manual do Mundo, criado em 2008 pelo jornalista Iberê Thenório e sua mulher, a terapeuta ocupacional Mariana Fulfaro. Nos vídeos, o casal aborda o conteúdo científico, mas de maneira pouco explícita, diluindo-o em experiências, receitas, pegadinhas, mágicas e outras atividades. O objetivo, segundo eles, é ajudar a estimular o interesse do público pela ciência, mas sem falar exclusivamente de ciência. O canal tem mais de 5,6 milhões de inscritos, o que fez de Thenório e Mariana celebridades da internet, hoje convidados para participar de programas de TV. Diferentemente do Manual do Mundo, que conta com uma equipe e patrocinadores, o trabalho solitário, com poucos recursos, é a realidade da maioria dos youtubers. Aluna de mestrado em ciência da computação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Camila Laranjeira, de 23 anos, passa boa parte de seu tempo livre escrevendo roteiros, editando ou gravando vídeos para seu canal, o Peixe Babel, dedicado à robótica. “Faço tudo sozinha, no meu quarto”, diz Camila, que começou o canal ainda na graduação. “Percebi que muitos amigos e parentes não compreendiam conceitos básicos de tecnologia. O canal nasceu da minha vontade de explicar.” Os assuntos abordados nos vídeos, publicados semanalmente, são escolhidos
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a partir de sugestões de amigos. Camila conta que boa parte de seu público é formada por alunos de graduação, crianças e adolescentes. Um de seus primeiros vídeos a ter repercussão chama-se O Homem de Ferro da vida real, uma referência ao herói da editora Marvel Comics. “O vídeo não é sobre o Homem de Ferro em si, mas sim sobre um exoesqueleto desenvolvido nos Estados Unidos, que será utilizado por soldados em combate. Se eu tivesse usado o termo ‘exoesqueleto’ no título, certamente espantaria muita gente, por ser um jargão técnico”, diz Camila. Apesar do caráter inovador dos youtubers, com suas referências à cultura pop e o desapego a formalismos, Rafael Evangelista, do Labjor-Unicamp, observa que muitos dos canais de ciência ainda estão presos a um modelo que predominou por quase duas décadas e que, de certa forma, ainda motiva várias ações de divulgação científica. Trata-se do chamado modelo do déficit, segundo o qual a população tem uma carência de conhecimento que só pode ser preenchida por meio da educação do público pelos cientistas. Nesse modelo, explica Evangelista, o público pode ocupar uma posição passiva, a de mero receptor do conhecimento, enquanto os cientistas aparecem em condição de superioridade. “Há o risco de criar uma comunicação de mão única e de cima para baixo, como se a falta de conhecimento da população fosse resultado de
“Youtubers têm experiência e podem produzir vídeos para instituições de pesquisa”, diz o biólogo Rafael Bento
falhas cognitivas. A realidade, porém, é mais complexa, e vários fatores sociais e políticos contribuem para dificultar o acesso do público à ciência”, diz Evangelista. Dono do canal Papo de Biólogo, Vinícius de Paula Ferreira, de 23 anos, procura evitar que o conteúdo seja passado dessa maneira em seus vídeos. “Não posso aparecer como se fosse o dono da verdade. Meu trabalho é mostrar como a ciência pode ser interessante”, diz Ferreira, que conta ter aprendido isso após trabalhar como monitor no Catavento Cultural, espaço para difusão da ciência e do conhecimento mantido pelo governo do estado de São Paulo no centro da capital paulista. “Depois de me formar em biologia, decidi trabalhar com divulgação científica”, afirma. Após receber elogios do público por seu desempenho na educação ambiental, resolveu criar, há 10 meses, um canal no YouTube no qual pudesse falar de animais exóticos. “No início, os vídeos do Papo de Biólogo eram feitos no meu quarto, usando a câmera do celular”, conta Ferreira,
que eventualmente pegava sua mãe de surpresa ao aparecer em casa com uma cobra ou um escorpião. Com o sucesso dos vídeos, ele fechou uma parceria com a produtora de um amigo, passando a produzir vídeos mais elaborados e ao ar livre. Nos últimos meses, ele também recebeu convites para participar de programas de TV e dar palestras, o que lhe dá algum retorno financeiro. “Os vídeos ainda não são rentáveis”, diz Ferreira. Ele explica que, por enquanto, são poucos os youtubers de ciência que ganham algum dinheiro com seus canais, por meio de doações, patrocínio ou pelo próprio YouTube, que divide parte da receita gerada com publicidade entre os produtores de conteúdo. A cada mil visualizações, a plataforma paga uma quantia que oscila de US$ 0,60 a US$ 5, dependendo da quantidade de anúncios veiculados. Há canais de entretenimento, de games e de moda que publicam vídeos todos os dias e conseguem alta rentabilidade. Um exemplo: um dos vídeos do gamer Pedro Rezende, 18 anos, cujo canal no YouTube dá dicas do jogo Minecraft, chegou a render R$ 12,3 mil, depois de ter 560 mil visualizações. CANAIS DO EXTERIOR
Enquanto no Brasil a maioria das experiências começa a tomar forma, países como os Estados Unidos reúnem exemplos que se tornaram modelos para quem quer divulgar ciência no YouTube. Lá, um único canal de ciência pode chegar a registrar mais de 270 milhões de visualizações, como é o caso do Veritasium, criado em 2011 pelo físico Derek Muller. Considerado uma das principais referências em divulgação científica da atualidade, o canal tem recursos e publica vídeos A voz por trás do canal Nerdologia, Atila Iamarino produz os vídeos em sua casa 36 z maio DE 2016
Vinícios Ferreira, do Papo de Biólogo: bichos exóticos na palma da mão para chamar a atenção do público
no YouTube desde 2011. Todos os meses são publicados de um a dois vídeos de temas científicos relacionados às reportagens da revista. O canal tem quase 9 mil inscritos e mais de 1 milhão de visualizações. O SP Pesquisa, série de programas de conteúdo científico exibida pela TV Cultura em parceria com a FAPESP, também está no YouTube, no canal da Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp).
fotos arquivo pessoal ilustraçãO flaticon
FIM DOS BLOGS?
com produção profissional, que em nada se parecem com videoaulas monótonas. Por exemplo, para falar sobre como um acidente nuclear pode ser devastador, Muller viajou até Chernobyl, na Ucrânia, e filmou ruínas de casas, hospitais e escolas atingidos pelo acidente em 1986. Em outro canal de destaque, o SmarterEveryDay, o engenheiro norte-americano Destin Sandlin filmou sua interação com cangurus para mostrar como as fêmeas abrigam e amamentam os filhotes numa bolsa de pele. Com mais de 3 milhões de visualizações, o vídeo rende boas risadas. Já outra referência, o Minute Physics, criado por Henry Reich, utiliza animações simples para explicar conceitos complicados da física. O canal tem mais de 3 milhões de inscritos e seus vídeos já foram exibidos em programas da televisão norte-americana. Em um estudo publicado em 2013 na revista PNAS, Dominique Brossard, pesquisadora do Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade de Wisconsin, Estados Unidos, afirma que o público leigo utiliza cada vez mais a internet para buscar informações que não podem ser encontradas em sites de notícia tradicionais. “Os próprios cientistas já estão confiando mais nas mídias sociais para se comunicarem com o grande público”, escreve Dominique. “Jovens pesquisadores estão criando canais de comunicação direta com o público não especializado, sem a necessidade
“Às vezes não fica claro o que é informação e o que é opinião nos vídeos”, pondera Rafael Evangelista, do Labjor-Unicamp
de intermediários, como sites de notícia ou jornais.” Esse fenômeno vem sendo observado há alguns anos em meios de comunicação on-line, como blogs e redes sociais (Facebook e Twitter, por exemplo), em que os textos são divulgados de modo quase instantâneo, escritos tanto por jornalistas quanto por cientistas. O YouTube também abriga iniciativas de divulgação científica criadas por veículos de comunicação e instituições, que recorrem à internet como forma de atingir um público mais amplo. Pesquisa FAPESP mantém um canal de vídeos
Uma discussão atual é se os blogs estão perdendo relevância para os canais do YouTube. “Por muito tempo, o blog foi a única forma de produção individual na internet. Com o avanço do YouTube e de outras mídias sociais, o blog perdeu a exclusividade. Posso recomendar artigos ou comentar um assunto de maneira muito mais rápida no Facebook ou no Instagram, por exemplo, ou gravando um vídeo curto no Snapchat”, avalia Atila Iamarino, que ainda mantém um blog na internet, o Rainha Vermelha. Segundo ele, os blogs continuam sendo necessários quando se quer dar explicações mais longas e detalhadas. O formato também possibilita que o texto seja localizado mais facilmente do que no Facebook, ele explica. Rafael Bento Soares, que também coordena a rede de blogs científicos ScienceBlogs Brasil, diz que a perda de popularidade dos blogs é uma realidade. “O ScienceBlogs tem 48 blogs, dos quais menos da metade está ativa. Alguns blogueiros estão migrando para o YouTube. E vários youtubers nunca tiveram antes um blog”, afirma. Rafael Evangelista, da Unicamp, acredita que esse novo modelo de divulgação é importante, pois engaja as pessoas que querem saber mais sobre ciência. No entanto, deve ser encarado como um modelo parcial. “Uma reportagem, por exemplo, pode conseguir apresentar outros lados, outras visões envolvidas na complexidade de um assunto, enquanto um canal de ciência muitas vezes apresenta o ponto de vista apenas do pesquisador que fala na frente da câmera. Nos vídeos, muitas vezes não fica claro o que é informação e o que é opinião”, diz Evangelista. n
> Para visitar os canais de vídeos citados na reportagem acesse bit.ly/YoutubersCiência pESQUISA FAPESP 243 z 37
Entrevista MARK WALPORT y
Uma ponte entre a pesquisa e a política Conselheiro-chefe do governo britânico diz que seu trabalho é traduzir o conhecimento científico para quem toma decisões Bruno de Pierro
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governo do Reino Unido tornou-se um dos primeiros no mundo a criar, há meio século, o cargo de conselheiro-chefe para assuntos científicos, cuja função principal é apontar soluções baseadas na ciência para enfrentar desafios da administração pública. O posto é ocupado hoje pelo imunologista Mark Walport, ex-diretor do Wellcome Trust, fundação que financia a pesquisa biomédica. Desde 2013, Walport assessora o premiê David Cameron em assuntos variados, como mudanças climáticas, envelhecimento populacional, biotecnologia e energia. Em 2014, após estatísticas mostrarem que o número de animais utilizados em testes pré-clínicos havia aumentado no Reino Unido, o governo anunciou medi-
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das para reduzir ou substituir seu uso. Walport atuou como ponte entre o governo e a comunidade científica. Reconheceu a necessidade de mudanças, mas salientou que a abolição de animais em experimentos ainda é inviável. Um diferencial do modelo britânico de aconselhamento científico é que o governo conta com cientistas-chefes em todos os departamentos e ministérios. Foi formada uma rede de conselheiros, comandada por Walport, que organiza reuniões semanais com o objetivo de discutir prioridades em cada área. O modelo serviu de inspiração para o governo de São Paulo anunciar a criação do cargo de cientista-chefe em cada secretaria estadual, em setembro de 2015. A iniciativa, cuja ideia partiu da FAPESP, deve começar a ser implementada em breve.
Ex-diretor do Wellcome Trust, o imunologista Mark Walport é responsável por assessorar o premiê britânico David Cameron em assuntos científicos desde 2013
léo ramos
Em abril, quando visitou o Brasil, Walport participou de um evento que marcou a renovação de um acordo de cooperação entre a FAPESP e os Conselhos de Pesquisa do Reino Unido (RCUK, na sigla em inglês), mantido desde 2009. Entre os 164 acordos e convênios internacionais de cooperação atualmente em vigor na FAPESP, 30 são com instituições britânicas, entre agências de fomento, empresas, universidades e instituições de ensino e pesquisa. Em entrevista à Pesquisa FAPESP, Walport falou sobre as parcerias com a ciência brasileira e tratou dos desafios enfrentados por um conselheiro científico.
O governo do estado de São Paulo vai criar o cargo de cientista-chefe em secretarias estaduais. O que é fundamental para colocar em prática o modelo de aconselhamento científico? Posso descrever o caso do Reino Unido, onde o posto de cientista-chefe está muito bem estabelecido. Vivemos em uma sociedade em que o desenvolvimento tecnológico avança rapidamente. Há a emergência de novos desafios para a ciência, a exemplo de doenças infecciosas como a causada pelo vírus zika. Há também os desafios de mais longo prazo, como as mudanças climáticas, a sustentabilidade, a necessidade de redu-
zir a demanda por energia. Todas essas questões são enfrentadas por autoridades e tomadores de decisão que, para elaborarem as melhores políticas, necessitam de evidências científicas. Por isso, o conselheiro científico precisa entender que a função dele é dar conselhos, não elaborar políticas, cuja responsabilidade é dos políticos eleitos pela população. Também é importante reconhecer que o trabalho de um conselheiro científico não implica saber tudo. O conselheiro precisa saber agir como um elo entre o mundo das ciências e o mundo da política. Meu trabalho consiste em identificar o que a ciência tem de melhor a oferecer pESQUISA FAPESP 243 z 39
A segunda é: “Se eu tomar essa decisão, ela será implementada?”. Uma política, por melhor que seja, só funciona se eu conseguir entregá-la à sociedade. A terceira lente é a dos valores políticos, alguns deles antigos e arraigados, que as pessoas têm. O trabalho do político e da autoridade consiste em integrar tudo isso. A ciência é uma parte no processo de decisão, mas não é a única. [Mais informações sobre a fosfoetalonamina na página 16.]
para orientar o governo em qualquer área. Às vezes, as informações de que preciso para fazer isso estão nas universidades, outras vezes na indústria. Em seguida eu traduzo as informações de forma clara para que os gestores e os políticos possam compreender. Qual é sua rotina de trabalho e quais dificuldades costuma enfrentar? Não há dificuldades propriamente ditas, mas sim desafios, que são enormes e diversos. Para enfrentá-los, temos um cientista-chefe em cada departamento do governo, abrangendo diferentes áreas. Temos pessoas da área médica, como é o meu caso, físicos nucleares como Robin Grimes, conselheiro-chefe do Ministério das Relações Exteriores, e também engenheiros no departamento que trata de mudanças climáticas. Nosso trabalho diário consiste em identificar questões importantes para o governo e, então, encontrar a melhor resposta científica. O governo brasileiro aprovou uma lei que autoriza o uso de uma substância, a fosfoetanolamina sintética, em tratamentos contra o câncer, embora ela ainda não tenha sido submetida a testes clínicos e seja vista com reservas pela comunidade científica. Como o governo deveria ter agido, na sua opinião? Não cabe a mim dizer o que o governo brasileiro deveria ter feito. Mas o ponto geral é que o gestor e o político enfrentam assuntos como esse da fosfoetanolamina por meio de três lentes diferentes. A primeira é a das evidências, ou seja, o que se sabe sobre determinado assunto.
É preciso aprender com a história. Se quisermos entender a transmissão de uma doença, é preciso olhar para os costumes dos povos
O que fazer quando a visão da sociedade diverge da visão científica? As evidências científicas são muito importantes. Por exemplo, o meu predecessor, John Beddington, precisou sugerir medidas quando um vulcão na Islândia entrou em erupção alguns anos atrás, afetando o espaço aéreo do Reino Unido. Era seguro autorizar voos naquela situação? Um político que ignorasse os conselhos científicos nesse caso teria que ser muito corajoso. Mas, em determinadas circunstâncias, os valores pessoais ou defasados da sociedade se sobrepõem à ciência.
Como dar um conselho quando os cientistas têm opiniões diversas sobre o assunto? Existem muitas situações em que o conhecimento científico é incompleto. Um bom exemplo é o vírus zika: nem os políticos nem os cientistas têm respostas suficientes para oferecer soluções imediatas. Por isso, é importante ter um bom sistema de saúde pública, capaz de atender aos casos e proviEm visita à Harborne Academy, denciar o tratamento possível no Reino Unido, no momento. Outra situação é em 2014, Walport quando o conjunto de conhefalou sobre ciência cimentos disponíveis é imenso. a estudantes Nesse caso, o que importa é a síntese das evidências, porque nem todos os trabalhos científicos vão dizer a mesma coisa. Um bom exemplo de síntese são os relatórios do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), nos quais são apresentadas evidências das mudanças climáticas de maneira rigorosa. Sempre há cientistas isolados ou pequenos grupos que podem ter opiniões contrárias. Mas, no final das contas, a ciência avança por meio das evidências e dos consensos. Meu trabalho é ir atrás dessas sínteses de evidências.
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A FAPESP é parceira de várias instituições de pesquisa do Reino Unido. Como o governo britânico vê essa parceria?
fotos 1 government office for science / flickr 2 iisd
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A FAPESP é uma boa parceira. Vim ao Brasil, entre outras razões, por causa do Fundo Newton. Por meio desse fundo o governo britânico mantém parcerias com 15 países, incluindo o Brasil. O Reino Unido está comprometido com investimentos de quase £ 10 milhões por ano [correspondentes a quase R$ 51,4 milhões], em projetos com a FAPESP e outras fundações de apoio à pesquisa no Brasil. Outra instituição com a qual mantemos parcerias de longa data é a Embrapa. Também estamos firmando acordos para a pesquisa de doenças infecciosas, como leishmaniose e mal de Chagas. Os acordos incluem bolsas e oportunidades de intercâmbio. Também o Conselho Britânico trabalha com parceiros internacionais para estabelecer colaborações entre cientistas do Reino Unido e de outros países. Visitei a Fundação Amazonas Sustentável, na Amazônia, e celebramos projetos com as comunidades locais, em busca de modelos econômicos sustentáveis. Uma de suas primeiras preocupações quando se tornou cientista-chefe do governo britânico foi em relação ao problema do envelhecimento populacional. Como o Reino Unido tem lidado com esse desafio? Eu não caracterizaria o envelhecimento populacional como um problema. Pelo contrário, é um dos sucessos da humanidade. Estamos vivendo muito mais.
Walport baseia-se no IPCC para dar conselhos ao governo britânico em relação às mudanças climáticas
Há maior qualidade de vida, as pessoas estão trabalhando por mais tempo e não querem chegar ao final da vida enfrentando longas batalhas contra doenças. Cientistas e governos precisam pensar em que condições as pessoas envelhecerão, em como as cidades irão se transformar nas próximas décadas. Como vamos preparar as pessoas para uma vida mais longa? O envelhecimento é um fenômeno global e traz desafios no campo da saúde, por exemplo, no aumento das doenças coronarianas e do diabetes. O senhor já disse que a solução de problemas como os surtos de Ebola depende também do trabalho de pesquisadores das ciências humanas. Por quê? Acredito que é preciso aprender com a história. Se quisermos entender a transmissão de uma doença, é preciso olhar para os fatos históricos e para os costumes dos povos. É preciso compreender o contexto social em torno de uma doença.
O senhor ainda tem tempo para fazer pesquisa? Eu aprendo a usar a ciência a cada instante do dia. Claro, tive que interromper meu trabalho de pesquisa desde que entrei no Wellcome Trust, em 2003, e isso continuou quando assumi a função de cientista-chefe. É um cargo que me deixa extremamente ocupado o tempo todo. O
privilégio é que aprendo muito, porque estou sempre fazendo perguntas a cientistas, consultando instituições de pesquisa, empresas e governo. Eu me esforço bastante em comunicar o conteúdo científico para leigos, como é o caso dos políticos, de forma a garantir, na medida do possível, que os benefícios da ciência sejam aproveitados na administração pública. O senhor também acompanha as discussões em torno da ética na ciência e de como evitar casos de má conduta científica? Sim, estamos envolvidos nessa área há algum tempo. O desafio é estabelecer valores muito claros entre cientistas. Em última instância, a ciência se autocorrige e os erros são descobertos. No Reino Unido, há acordos entre as agências de apoio, as academias nacionais e instituições de pesquisa para o estabelecimento de um conjunto de diretrizes que buscam diminuir os episódios de má conduta científica. Esse é um problema que deve ser tratado onde se faz pesquisa, ou seja, nos laboratórios. Portanto, as instituições de pesquisa precisam ter valores éticos fortes em relação ao comportamento que se espera do pesquisador. Mas a verdade é que os cientistas são seres humanos e, infelizmente, alguns são fracos e cometem deslizes deliberadamente. Nem todos os cientistas são bons cientistas. n pESQUISA FAPESP 243 z 41
ciência MEDICINA y
Candida sp. em placa de Petri: causadora de infecções em quase 3 milhões de pessoas por ano no Brasil 42 z maio DE 2016
O ataque silencioso
dos fungos Espécies de Candida e Aspergillus causam infecções resistentes a medicamentos e matam mais que malária e tuberculose Texto
Carlos Fioravanti
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Léo Ramos
uma jaula de bichos perigosos. Em caixas metálicas dentro de um freezer a 80º Celsius negativos em um dos laboratórios da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o infectologista Arnaldo Colombo mantém uma coleção com cerca de 4 mil amostras de leveduras e mil de fungos filamentosos colhidos de pacientes tratados em hospitais de todo o país. Os fungos eram considerados inofensivos até alguns anos atrás, mas – como resultado da redução das defesas naturais das pessoas, causada por doenças ou medicamentos – aos poucos se tornaram agressivos e estão se espalhando em silêncio e causando infecções graves, resistentes a antifúngicos, e fatais. Quase 4 milhões de pessoas no Brasil devem ter infecções fúngicas a cada ano, de acordo com um levantamento realizado por Juliana Giacomazzi, da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. Desse total, 2,8 milhões são infecções causadas por Candida e 1 milhão por Aspergillus, que avançam principalmente em pessoas com defesas orgânicas enfraquecidas em razão do uso de medicamentos contra rejeição de órgãos transplantados, câncer ou Aids, do uso intensivo de antibióticos ou de procedimentos invasivos como sondas e catéteres em unidades de terapia intensiva (UTI). No mundo, o número de casos registrados de meningite causadas por Cryptococcus neoformans e C. gattii passou de poucas centenas na década de 1950 para o atual 1 milhão por ano, principalmente em pessoas com HIV/Aids. Estima-se que todos os fungos patológicos provoquem 11,5 mi-
lhões de infecções graves e micoses superficiais recorrentes, com 1,5 milhão de mortes por ano, mais que o total de óbitos decorrentes da malária e da tuberculose. “Sabe o que aconteceu neste caso?”, perguntou Colombo ao mostrar uma placa em que vários fármacos foram aplicados sobre amostras de uma variedade de um fungo recém-chegado ao seu laboratório para identificação e análise. “Nenhum fármaco funcionou e o paciente morreu em decorrência da infecção.” Várias espécies de fungos estão se mostrando resistentes aos poucos medicamentos usados para combatê-los. Em 2013 a equipe da Unifesp indicou a Candida glabrata como uma das mais preocupantes entre os casos de infecções hospitalares, por ter se mostrado resistente a quase todos os antifúngicos, começando pelo fluconazol, o mais usado, ocasionando uma taxa de mortalidade próxima a 50% em pessoas internadas em UTI. Duas espécies de fungos, Aspergillus fumigatus e Fusarium solani, foram isoladas em 36 das 164 amostras de água usada em uma unidade oncológica pediátrica de um hospital da cidade de São Paulo, indicando que o próprio sistema de abastecimento poderia ser uma fonte de contaminação, já que os propágulos – ou esporos, estruturas reprodutivas semelhantes a sementes – dos fungos poderiam ser transmitidos durante o uso das torneiras ou do chuveiro. Estima-se que uma pessoa comum respire de 200 a 2 mil esporos por dia. Eles não estão apenas dispersos no ar, mas também dentro do corpo humano. “Temos milhões de colônias de Candida alpESQUISA FAPESP 243 z 43
EM ALERTA Medidas simples podem ajudar profissionais da saúde a identificar e evitar infecções causadas por fungos ✚ Lavar as mãos com mais frequência, antes e depois do contato com pacientes, em especial os expostos a procedimentos médicos invasivos, para evitar a transmissão de fungos que se alojam na pele como Candida parapsilosis. ✚ Reforçar os cuidados com o manuseio de cateteres e outros dispositivos invasivos usados principalmente em UTI. ✚ Investigar a possibilidade de origem fúngica das pneumonias de pacientes com defesas reduzidas, submetidos a transplantes de órgãos ou com leucemias. ✚ Incluir testes para diagnóstico de infecções por fungos na avaliação de pneumonias crônicas. ✚ Suspeitar que infecções resistentes a antibióticos em pacientes de UTI ou com leucemias por mais de sete dias possam ser causadas por fungos e merecem diagnóstico
bicans na boca, no intestino e na pele, que só crescem e causam problemas quando as defesas estão debilitadas”, disse o infectologista Márcio Nucci, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele participou de um estudo que avaliou a ocorrência de infecções abdominais provocadas principalmente por C. albicans e C. glabrata em 481 pacientes internados em 13 hospitais da Itália, Espanha, Grécia e do Brasil, de 2011 a 2013. A maioria (85%) dos pacientes apresentou candidíase. A mortalidade foi de 60% e poderia ser explicada, segundo Nucci, porque infecções desse tipo normalmente acometem pessoas com doenças graves em estado terminal e em razão do diagnóstico tardio da origem da infecção, que resulta no atraso do início do tratamento adequado. Infecções fúngicas são facilmente confundidas com as de origem bacteriana em pessoas que tiveram tuberculose. “Não se dá muita atenção para a possibilidade de diagnóstico de aspergilose crônica pulmonar, que aparece em 10% a 15% dos pacientes que apresentam sequelas da tuberculose, com cavidades no pulmão ou dilatação dos brônquios, e em geral são tratados novamente com antibióticos”, disse Colombo. Em seguida ele mostrou uma radiografia de um homem de 51 anos que perdeu peso, teve tosse crônica e febre durante meses e recebeu o tratamento contra tuberculose até saber que na verdade tinha uma pneumonia crônica associada ao fungo Histoplasma capsulatum, causa frequente de pneumonias de tratamento difícil. Outra espé-
e tratamento específicos. ✚ Familiarizar-se com as diretrizes de sociedades médicas para tratamentos de infecções fúngicas (há documentos brasileiros sobre infecções por Candida sp., Paracoccidioides sp. e Cryptococcus sp.) e fortalecer o treinamento prático das equipes de saúde para promover o diagnóstico precoce e o tratamento adequado desses problemas. ✚ Notificar as autoridades da saúde, como os centros de vigilância epidemiológica, em caso de surtos de infecções causadas por fungos. Fonte: Laboratórios de Micologia Médica da Unifesp e da UFRJ
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Aspergillus niger: em laboratório para identificação genética e testes de susceptibilidade a fármacos
cie, Paracoccidioides brasiliensis, causa pneumonia mesmo em pessoas com as defesas em ordem, que moram em áreas onde essa micose é comum.
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ara complicar, o mesmo fungo pode causar doenças diferentes, dependendo da capacidade de defesa do organismo em que se aloja. Aspergillus provoca dois tipos de pneumonia: a aguda e a crônica. Já se tem como certo que não são mais tão raras quanto há algumas décadas – a forma aguda, estima-se, deve se manifestar em até 12% das pessoas com leucemia mieloide aguda, de acordo com um levantamento realizado em oito hospitais públicos do país. Atualmente, um banco de dados internacional de acesso público, o International Society for Human and Animal Mycology (Isham, its. mycologylab.org), reúne 3.200 sequências de trechos de DNA, que permitiram a identificação molecular de 524 espécies causadoras de doenças em seres humanos, entre as mais de 500 mil descritas. As análises genéticas indicaram que, às vezes, as amostras do que se acreditava ser uma única espécie podem incluir espécies distintas, com diferentes níveis de resistência a medicamentos. É o caso de Candida parapsilosis, reclassificada em três espécies: C. parapsilosis senso stricto, C. orthopsilosis e C. metapsilosis. As três espécies podem ser encontradas nas mãos das equipes de atendimento médico em hospitais, resultando em infecções associadas à manipulação de cateteres e outros dispositivos de uso comum em unidades de terapia intensiva.
Micoteca: fungos coletados de pessoas tratadas em hospitais, imersos em óleo mineral
Não é simples descobrir como os fungos adquirem a capacidade de causar infecções – a chamada virulência – e resistência a medicamentos. Em seu laboratório na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto, Gustavo Goldman, biólogo de formação, verificou que Aspergillus fumigatus pode proliferar nos pulmões por meio de estratégias distintas, por causa da capacidade de escapar das defesas do organismo e dos principais antifúngicos, os azoles. Segundo ele, uma hipótese para explicar a resistência aos azoles é o uso de fungicidas para eliminar espécies danosas à agricultura em áreas próximas à cidade, que favoreceu a seleção e a disseminação de variedades nocivas às pessoas. “Fungos são organismos essencialmente oportunistas”, diz ele. “Variedades importantes para a reciclagem de carbono na natureza podem causar doenças se encontrarem hospedeiros debilitados. Além disso, têm muita plasticidade genotípica e grande poder de adaptação a diferentes ambientes.” Unidos, os fungos conseguem ser mais resistentes e virulentos, diz Maria José Giannini, professora de micologia da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara. Com sua equipe, ela verificou in vitro e in vivo que os aglomerados de fungos chama-
dos biofilmes de Cryptococcus são mais virulentos e resistentes a drogas que as formas isoladas, como já havia sido visto em outros gêneros como Paracoccidioides brasiliensis e Histoplasma capsulatum. A formação de biofilmes poderia explicar a dificuldade em eliminar a onicomicose – ou micose de unha, provocada por Candida e Cryptococcus –, verificada pela equipe de Araraquara, e a resistência de Trichosporon a dois medicamentos bastante usados contra infecções superficiais ou internas, o triazole e a anfotericina B, observada pelo grupo da Unifesp.
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m políticas públicas para se dimensionar e deter as infecções fúngicas os avanços não são tão consistentes quanto em pesquisa básica, observa Maria José. “Em consequência, podemos ter sérios problemas, relacionados ao aumento das doenças causadas por fungos”, diz ela. “Cresceu a população de risco – principalmente os imunodeprimidos –, e o uso de procedimentos médicos invasivos – como sondas e cateteres –, que podem facilitar a transmissão de fungos, mas não aumentou a capacidade de resposta do sistema de saúde, que deveria estar atento e articulado para bloquear esse fenômeno”, reforça Colombo. Como exemplo, ele lembra que não há um sistema de diagnóstico específico para pneumonias fúngicas pós-tuberculose, algo relativamente fácil de fazer.
Preocupados com a situação, os pesquisadores oferecem recomendações para outros profissionais da área (ver quadro ao lado) e procuram agir em conjunto de modo a disseminar informações sobre esses problemas de saúde. A Unifesp está trabalhando com uma equipe da Universidade de Manchester, Inglaterra, e com centros médicos dos estados de São Paulo, Paraná, Rio de Janeiro e Espírito Santo para definir o alcance na população e as melhores formas de diagnóstico e de tratamento das pneumonias agudas e crônicas de origem fúngica. Outra iniciativa foi a instalação, em 2015, da unidade brasileira do Global Action Fund for Fungal Infections (Gaffi, gaffi.org), para atualização contínua de profissionais da saúde responsáveis pela identificação ou tratamento dessas doenças. n Projeto Aspergilose pulmonar e correlação entre as formas clínicas e a expressão diferencial de atributos de virulência em Aspergillus fumigatus (no 2014/50294-3); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Arnaldo L. Colombo (Unifesp); Investimento R$ 42.905,00.
Artigos científicos BENADUCCI, T. et al. Virulence of Cryptococcus sp biofilms in vitro and in vivo using Galleria mellonella as an alternative model. Frontiers in Microbiology. v. 7, p. 290. 2016. COLOMBO, A. L. et al. Candida glabrata: An emerging pathogen in Brazilian tertiary care hospitals. Medical Mycology. v. 51, n. 1, p. 38-44. 2013. GIACOMAZZI, J. et al. The burden of serious human fungal infections in Brazil. Mycoses. v. 59, n. 3, p. 145-50. 2016.
PESQUISA PESQUISAFAPESP FAPESP243 243 z | 45
Neurociência y
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p e l o c ppelo elo ccérebro éréerberboro Exercício físico durante a gestação e a infância tem efeitos duradouros no desempenho intelectual Maria Guimarães
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e você quer aumentar as chances de seus filhos terem um bom desempenho intelectual e profissional, a pior coisa que pode fazer é substituir radicalmente exercício físico por tempo de estudo na cadeira. Mais do que isso, o ideal é a mãe ter suado a camisa desde a gestação, de acordo com o neurocientista Sérgio Gomes da Silva, pesquisador do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, em São Paulo. Gomes da Silva usa ratos como modelo de pesquisa para entender os efeitos da atividade física no desenvolvimento do cérebro. Nos resultados mais recentes, publicados em janeiro na revista PLoS One, ele e colaboradores mostram que filhotes de roedoras que se exercitaram numa esteira durante a gestação têm o hipocampo turbinado. Neles, essa região do cérebro especialmente envolvida com funções ligadas a memória, aprendizado e emoções apresenta mais células e mais fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF), uma proteína que regula processos de proliferação, desenvolvimento e diferenciação das células cerebrais. Longe de ser apenas detectada nas minúcias celulares, essa diferença se revela também no comportamento, como em testes que avaliam
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a velocidade com que o animal aprende a reconhecer um território experimental. Numa arena em que o ratinho precisava memorizar pontos de referência, os filhotes das mães de academia aprendiam mais rapidamente. “Os índices de inteligência são melhores”, conta o pesquisador. Em trabalhos anteriores feitos em colaboração com Ricardo Mario Arida, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em cujo laboratório Gomes da Silva fez doutorado e pós-doutorado, ele já tinha mostrado que o exercício físico na adolescência deixava os ratos mais espertos. Em testes de memória espacial feitos em pequenas piscinas nas quais os animais aprendem a encontrar uma plataforma submersa onde possam se apoiar, os roedores que tinham seguido um programa de exercícios se saíam melhor, de acordo com artigo publicado em 2012 na revista Hippocampus. O responsável aí também parece ser o BDNF, que aparece em maior quantidade e supostamente contribui para a formação de fibras nas células do hipocampo que melhoram o desempenho dessa região do cérebro. Além disso, de acordo com o pesquisador, esses animais também têm mais interneurônios, células que permitem cancelar informações irrelevantes no ambiente
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e concentrar-se em alguma tarefa. Numa analogia com uma situação humana, trata-se da capacidade de estudar sem prestar atenção na televisão ligada ou na pressão da cadeira nas costas. O mais importante é que esse efeito se mantém na idade adulta, no caso dos ratos. “Quando alguém para de fazer exercício físico, logo perde massa muscular”, compara Gomes da Silva. “Mostramos que com o cérebro é diferente: se ele foi formado de maneira enriquecida, as alterações no desenvolvimento causadas durante a infância se mantêm pela vida toda.” Faz sentido, porque o cérebro não nasce pronto. No caso humano o órgão, que tem um peso por volta de 300 gramas ao nascimento, só chega a seu tamanho final de 1,5 quilograma no final da adolescência.
O exercício físico ajuda a formar um cérebro mais plástico e robusto, em animais e seres humanos
O neurocientista também encontrou sinais de benefícios duradouros da atividade física na infância em testes de epilepsia induzida. Em artigo publicado em 2011 na revista International Journal of Developmental Neuroscience, ele mostrou que um grupo de 14 ratos que seguiu um programa de exercícios na esteira durante a infância e adolescência teve convulsões muito mais leves ao receber injeções de uma substância indutora, em relação aos 14 companheiros que levaram uma vida mais preguiçosa. O achado se encaixa na hipótese da reserva neural, que postula que o maior número de células resultante da formação do cérebro nessas condições enriquecidas gera estruturas mais complexas e versáteis. Se uma parte dos neurônios falha, há outros que podem assumir as funções e corrigir o erro. Do rato ao homem
A grande conquista desse trabalho veio em 2013. Naquele ano, Gomes da Silva viu seu artigo mencionado num estudo sueco liderado por Jenny Nyberg, da Universidade de Gotemburgo, mostrando que o exercício físico na adolescência resulta numa proteção contra epilepsia pelo resto da vida. Nesse caso, se tratava de uma grande população de seres humanos. “Meu estudo com 28 ratos encontrou eco em um grupo de mais de 1 milhão de pessoas”, diz. O grupo sueco tirou proveito de dados de alistamento militar entre 1968 e 2015 e avaliou as fichas médicas dessa população – no caso dos mais velhos, foi um acompanhamento de até 40 anos. Os resultados mostraram que um mau condicionamento físico aos 18 anos estava relacionado com um risco maior de epilepsia na idade adulta, e também que a boa forma tem um efeito protetor duradouro contra morte prematura, doenças cardiovasculares, depressão e diabetes. Para Jenny, esses resultados – e outros – são um indício convincente de que o exercício físico ajuda a formar um cérebro mais plástico e robusto, tanto em animais como em seres humanos. Para ela, a complementaridade entre estudos com pessoas e cobaias tem se mostrado produtiva. “Os mecanismos e processos fisiológicos são muito mais difíceis de estudar em seres humanos”, conta. “Nos animais podemos olhar o cérebro e ver o que de fato acontece e ter uma 48 z maio DE 2016
fotos sérgio gomes da silva / albert einstein ilustraçãO negreiros
Ratos exercitados (direita) formam mais conexões neuronais no giro dentado, uma parte do hipocampo ligada a certas memórias, como na exploração de ambientes
compreensão do porquê de a atividade física ser positiva para a saúde do cérebro.” Seu grupo também detectou uma correlação entre um mau desempenho físico e cognitivo aos 18 anos e a ocorrência de demência precoce, conforme mostra artigo publicado em 2014 na revista Brain. No Brasil, indícios da semelhança entre os resultados com roedores e o que acontece com pessoas vêm do trabalho do educador físico Marlos Domingues, da Universidade Federal de Pelotas, no Rio Grande do Sul. Ele tirou proveito de estudos de acompanhamento de longo prazo feitos nessa cidade gaúcha para avaliar os efeitos da atividade física durante a gestação no desenvolvimento neurológico dos fetos. Em um acompanhamento feito com quase 4 mil bebês nascidos em 2004, o grupo mostrou um melhor desempenho de filhos de mães ativas em testes cognitivos ao longo do primeiro ano de vida, uma diferença observada sobretudo nos meninos. Nos anos seguintes, o efeito gradualmente se perdeu, de acordo com artigo publicado em 2014 na PLoS One. “A partir dessa idade, outros fatores ambientais começam a influenciar”, explica Domingues. Nos seres humanos, uma imensa gama de fatores ambientais pode afetar o desenvolvimento cognitivo, como interações sociais e o acesso à leitura. Por isso, o pesquisador defende que a escolaridade da mãe influencia o QI dos filhos, além de ser associada à prática esportiva, em sua experiência. Essa dificuldade de destrinchar os fatores em humanos evidencia a importância dos estudos com roedores. “Nos ratos não há diferença de escolaridade”, brinca. O pesquisador gaúcho não descarta, porém, efeitos no longo prazo. “Daqui
a 30 anos pode haver uma diferença”, especula, em consonância com o que Gomes da Silva tem observado nos ratos adultos. Embora os pesquisadores de Pelotas monitorem a população do município gaúcho desde os anos 1980, só em 2004 eles questionaram as mães sobre a prática de atividade física durante a gravidez. Mesmo assim foi uma avaliação bastante superficial, baseada em questionário respondido depois que já tinham dado à luz. “Em 2015 coletamos uma informação mais qualificada, com medições em acelerômetros durante a gestação”, conta. Só daqui a alguns anos será possível saber se dessa maneira se detectará um sinal mais forte dos benefícios dessa prática de exercícios.
isso os benefícios ambientais encontram pouco espaço para contribuir. Sérgio Gomes da Silva alerta para a importância do conhecimento que se desenha a partir desses estudos no sentido de orientar as práticas escolares. “Por lei, as escolas brasileiras precisam oferecer atividade física duas horas por semana”, diz, “mas a Organização Mundial da Saúde recomenda uma hora todos os dias para adolescentes, que pode ser dividida em duas sessões”. É provável que o equilíbrio entre exercício e leitura precise ser revisto pelas escolas e famílias, se o objetivo é o bom aprendizado e o sucesso profissional futuro. n
Projetos distinção de gênero
A diferença entre meninos e meninas sugerida pelo estudo de Pelotas também foi detectada no estudo liderado por Irene Esteban-Cornejo, da Universidade de Madri, na Espanha, que analisou quase 2 mil crianças entre 6 e 18 anos de idade. Os resultados, publicados este ano na revista The Journal of Maternal-Fetal & Neonatal Medicine, mostram que mães fisicamente ativas têm filhos que se saem melhor na escola de acordo com vários índices de desempenho, inclusive em linguagem e matemática – mesmo que as próprias crianças não sigam o padrão de atividade das mães. O efeito se mostrou melhor se o exercício é uma prática anterior à gravidez e se mantém ao longo dela: não basta correr para a academia quando o teste dá positivo. Nas meninas, o mesmo efeito não parece acontecer. Ainda não se sabe exatamente a razão, mas a explicação mais aceita parece ser que elas já têm o cérebro naturalmente mais turbinado em termos de células e conexões, e por
1. Exercício físico e desenvolvimento cerebral pré-natal: um estudo em filhotes de ratas submetidas ao exercício físico durante a gestação (nº 2010/11353-3); Modalidade Bolsa no País – Regular – Pós-doutorado; Pesquisador responsável Ricardo Mario Arida (EPM-Unifesp); Beneficiário Sérgio Gomes da Silva; Investimento R$ 226.782,32. 2. Estudo da plasticidade cerebral induzida pelo exercício físico (nº 2009/06953-4); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Ricardo Mario Arida (EPM-Unifesp); Investimento R$ 324.748,94.
Artigos científicos GOMES DA SILVA, S. et al. Maternal exercise during pregnancy increases BDNF levels and cell numbers in the hippocampal formation but not in the cerebral cortex of adult rat offspring. PLoS One. v. 11, n. 1. 15 jan. 2016. GOMES DA SILVA, S. et al. Early exercise promotes positive hippocampal plasticity and improves spatial memory in the adult life of rats. Hippocampus. v. 22, n. 2, p. 347-58. fev. 2012. GOMES DA SILVA, S. et al. Early physical exercise and seizure susceptibility later in life. International Journal of Developmental Neuroscience. v. 29, n. 8, p. 861-65. dez. 2011. NYBERG, J. et al. Cardiovascular fitness and later risk of epilepsy – A Swedish population-based cohort study. Neurology. v. 81, n. 12, p. 1051-7. 17 set. 2013. DOMINGUES, M. R. et al. Physical activity during pregnancy and offspring neurodevelopment and IQ in the first 4 years of life. PLoS One. v. 9, n. 10. 28 out. 2014. ESTEBAN-CORNEJO, I. et al. Maternal physical activity before and during the prenatal period and the offspring’s academic performance in youth. The Journal of Maternal-Fetal & Neonatal Medicine. v. 29, n. 9, p. 1414-20. mai. 2016.
pESQUISA FAPESP 243 z 49
VIROLOGIA y
Macacos com zika No Ceará, pesquisadores identificam o vírus em animais habituados à presença humana Ricardo Zorzetto
E
m cinco municípios do Ceará, alguns distantes entre si quase 300 quilômetros, há macacos infectados com o vírus zika. Pesquisadores paulistas e cearenses identificaram o vírus em amostras de soro, mucosa oral e saliva de quatro saguis e três macacos-prego habituados ao convívio com seres humanos, encontrados nas áreas urbana e rural de Fortaleza, Limoeiro do Norte, Quixeré, São Benedito e Guaraciaba do Norte. Os sete animais infectados representam 29% dos 24 macacos cujo material biológico foi analisado pelos pesquisadores nos últimos meses – cerca de outras 30 amostras devem ser testadas nas próximas semanas. “Esta é a primeira vez que o vírus zika é encontrado em primatas do Novo Mundo”, afirma a bióloga Silvana Favoretto, pesquisadora do Instituto Pasteur de São Paulo e do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP). Silvana e outros seis pesquisadores de São Paulo que integram a Rede Zika, consórcio de laboratórios paulistas que investigam o vírus, descreveram o achado em um breve artigo depositado em 20 de abril no repositório bioRxiv. O zika foi isolado pela primeira vez em 1947, a partir do sangue de um macaco 50 z maio DE 2016
rhesus (Macaca mulatta) monitorado em uma floresta de Uganda para acompanhar a circulação do vírus da febre amarela. O macaco rhesus integra um grupo de primatas chamados catarrinos, que têm as narinas bem próximas e voltadas para baixo, o mesmo ao qual pertencem os chimpanzés, gorilas e também os seres humanos. Agora o vírus foi encontrado no Ceará em saguis-de-tufo-branco (Callithrix jacchus) e macacos-prego (Sapajus libidinosus), macacos classificados como platirrinos, primatas com narinas voltadas para os lados. Estima-se que platirrinos e catarrinos tenham compartilhado um ancestral comum entre 37 milhões e 34 milhões de anos atrás. Depois disso cada grupo evoluiu separadamente. A identificação do zika em primatas das Américas preocupa por uma questão de saúde pública. É que existe um risco de esses animais se tornarem o que os pesquisadores chamam de reservatório silvestre do vírus. Uma vez infectados, eles poderiam manter o vírus em circulação na natureza e, de tempos em tempos, voltar a disseminá-los entre os seres humanos – algo semelhante ao que acontece com a febre amarela em algumas regiões do Brasil.
Por ora, no entanto, isso é apenas uma suposição. Os animais do Ceará identificados com o vírus viviam próximos aos seres humanos. Segundo Silvana, no Nordeste é comum ver saguis visitando os quintais das casas. Também é frequente as pessoas terem saguis e macacos-prego como animais de estimação. “Esses animais são dóceis quando bebês e se tornam mais arredios e, às vezes, agressivos depois que crescem”, ela conta. Por causa dessa proximidade, a pesquisadora suspeita que os macacos tenham sido infectados por mosquitos que picaram pessoas com zika. “Essa também é minha aposta princi pal no momento”, diz o primatólogo Júlio César Bicca-Marques, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). “Se o vírus for encontrado posteriormente em animais silvestres sem contato com o homem, minha interpretação poderá mudar”, consente o pesquisador gaúcho que anos atrás acompanhou um surto de febre amarela silvestre que atingiu os bugios do sul do país. Na época, segundo Bicca-Marques, as pessoas imaginavam que os macacos estavam disseminando a doença e passaram a persegui-los. Bicca-Marques e Silvana temem que agora se inicie o mesmo
danielle araujo / instituto pasteur e icb-usp
Vítimas da proximidade: macacos-prego que conviviam com seres humanos foram identificados com o vírus zika
tipo de perseguição com os saguis e os macacos-prego. “Nossos resultados mostram que lugar de animal silvestre não é preso no quintal, mas solto na natureza, onde os ciclos das infecções acontecem sem prejuízo para as pessoas”, diz Silvana. Curiosidade e sorte
Os dois pesquisadores reconhecem que, por ora, quase nada se sabe sobre a ação do vírus zika em primatas não humanos – em especial os do Novo Mundo. “Não sabemos, por exemplo, se adoecem, se os filhotes podem nascer com microcefalia nem quanto tempo o vírus permanece no organismo deles”, conta Silvana. Ela e a veterinária Danielle Araujo, também do Pasteur e do ICB-USP, encontraram concentrações baixas de zika nos saguis e macacos-prego infectados. A identificação do vírus nesses animais ocorreu por uma combinação de curiosidade e sorte. No ICB-USP, Silvana coordena o Núcleo de Pesquisa em Raiva e há quase duas décadas estuda a doença no Ceará em parceria com a secretaria estadual da Saúde de lá. Causada por um vírus altamente letal para os seres
humanos, a raiva tem um ciclo silvestre nesse estado do Nordeste em que um dos reservatórios, identificado tempos atrás por Silvana, é o sagui-de-tufo-branco. No início deste ano, ao analisar a distribuição dos casos de zika e microcefalia no Ceará, a bióloga verificou que alguns deles coincidiam com as áreas de coleta de amostras do material biológico dos macacos e decidiu testá-las para a presença do zika. “Encontramos amostras positivas para zika em animais que viviam no litoral, em área de caatinga e na região serrana, onde a vegetação é mais densa”, diz a pesquisadora. “Isso mostra que a presença do vírus é disseminada por lá.” Depois de detectar o zika em algumas amostras, o material genético do vírus foi isolado e sequenciado no Laboratório de Virologia Clínica e Molecular da USP e analisado pelos virologistas Paolo Zanotto e Edison Durigon. O resultado confirmou que o zika encontrado nos animais é o mesmo que infecta os seres humanos no país e pode levar ao nascimento de bebês com problemas neurológicos e o cérebro anormalmente pequeno – do final de 2015 a 23 de abril deste
ano, o Ministério da Saúde identificou 1.198 casos de microcefalia, com o zika detectado em 194 deles. Silvana planeja fazer novas expedições ao Ceará em breve e retornar às cidades em que os animais com zika foram identificados para tentar recapturá-los (eles foram marcados com chips). Se os macacos continuarem a apresentar cópias do vírus no organismo, será um sinal de que podem funcionar como reservatório. “Caso isso se verifique, o zika terá mesmo vindo para ficar, uma vez que não se consegue erradicar doenças que têm reservatório silvestre”, diz Silvana. “Quando muito”, completa, “pode-se controlá-las”. n
Projeto Raiva em silvestres terrestres da região Nordeste do Brasil: Epidemiologia molecular e detecção da resposta imune (nº 2014/16333-1); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Silvana Regina Favoretto (Instituto Pasteur); Investimento R$ 296.307,41.
Artigo científico FAVORETTO, S. et al. First detection of Zika virus in neotropical primates in Brazil: a possible new reservoir. bioRxiv. 20 abr. 2016.
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GEOLOGIA y
A era humana Material plástico acumulado no fundo dos oceanos pode definir um novo período na história da Terra, o Antropoceno
Igor Zolnerkevic
N
o final de abril, um grupo internacional formado por geólogos, arqueólogos, geoquímicos, oceanógrafos e paleontólogos participou de um encontro em Oslo, na Noruega. O objetivo inicial da reunião, que fez sentar à mesma mesa pesquisadores de áreas tão distintas, era consolidar uma proposta a ser apresentada 52 z maio DE 2016
em agosto na África do Sul para marcar o início do processo de reconhecimento oficial de que a Terra vive uma nova época geológica: o Antropoceno, a era dos seres humanos. Após dois dias de discussão, porém, o grupo decidiu adiar para 2018 a proposta de formalização do Antropoceno. Até lá, devem ser reunidas mais evidências de que as transformações ambientais provocadas pela ação humana são tão intensas que já produziram marcas indeléveis no
registro geológico do planeta. “Queremos apresentar uma proposta suficientemente robusta para que a comunidade científica internacional não tenha dúvidas sobre a formalização do Antropoceno”, conta a oceanógrafa Juliana Ivar do Sul, pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande (Furg), no Rio Grande do Sul, que participou do encontro. Segundo o grupo que esteve na Noruega, dos anos 1950 para cá, as atividades humanas teriam causado alterações nos proces-
GIANLUIGI GUERCIA / afp
Produtos plásticos em lixão: fonte de material sintético que integra sedimentos depositados nas praias e nos oceanos
sos geológicos da Terra – modificando o ritmo de desgaste de rochas e acúmulo de sedimentos desde a superfície dos continentes até o fundo dos oceanos – muito mais intensas do que as que ocorrem naturalmente. Uma característica marcante desse novo estágio na história da Terra seria a presença cada vez mais abundante de um sedimento artificial, formado por lama e areia misturadas com grãos de materiais sintéticos, em especial o plástico, vindos do lixo produzido pelo ser humano.
“Propor uma nova época geológica é algo muito complexo”, afirma Juliana. “Precisamos das mais diversas evidências científicas e o efeito do plástico nos processos geológicos é só uma delas”, conta a pesquisadora. Especialista na investigação dos efeitos da poluição dos oceanos pelo plástico, Juliana integra o Grupo de Trabalho do Antropoceno, coordenado pelo paleontólogo Jan Zalasiewicz, da Universidade de Leicester, no Reino Unido, e pelo geólogo Colin
Waters, do Serviço Geológico Britânico. O grupo foi criado em 2009 pela União Internacional de Ciências Geológicas (Iugs, na sigla em inglês), que define a tabela cronoestratigráfica internacional. Essa tabela organiza as camadas de rochas que formam os continentes e o fundo dos oceanos seguindo a ordem cronológica em que elas surgiram – as camadas mais antigas aparecem na parte inferior da tabela. As convenções definidas nessa tabela permitem aos geólogos comparar sedimentos e rochas de locais diferentes e determinar suas idades relativas quando não há datação direta, reconstituindo, assim, a história da Terra. De acordo com a tabela, a época atual é o Holoceno, que começou há 11.700 anos. O início do Holoceno foi definido oficialmente apenas em 2008, quando um grupo de trabalho revisou as evidências científicas de que as camadas de rocha, sedimento e gelo com cerca de 11.700 anos de idade apresentavam marcas deixadas pelas mudanças climáticas que ocorreram no fim da última era glacial do planeta. A ideia de que o Holoceno teria chegado ao fim com mudanças ambientais provocadas pela civilização moderna, dando início ao Antropoceno, tornou-se conhecida no início da década passada por meio de artigos e conferências do holandês Paul Crutzen, ganhador do Prêmio Nobel de Química de 1995 por seus trabalhos sobre a formação do buraco na camada de ozônio da atmosfera. As ideias de Crutzen inspiraram Zalasiewicz a propor à Iugs um grupo de trabalho para debater o assunto e tentar definir o início do Antropoceno e as suas características. Embora as conclusões do grupo só devam ser sumarizadas e apresentadas em 2018, as principais evidências levantadas por ele vêm sendo divulgadas e discutidas há algum tempo. O trabalho mais recente a defender o Antropoceno é um artigo de revisão escrito por Waters, Zalasiewicz e mais 22 colaboradores e publicado em janeiro na Science. No paper, os pesquisadores defendem que as atividades humanas já mudaram o planeta a ponto de produzirem em todo o globo sedimentos e gelo com características distintas daqueles formados no restante do Holoceno. Segundo essa revisão, as camadas de gelo e sedimento depositadas recentepESQUISA FAPESP 243 z 53
mente contêm fragmentos de materiais artificiais produzidos em abundância nos últimos 50 anos: concreto, alumínio puro e plástico, além de traços de pesticidas e outros compostos químicos sintéticos. Mesmo em lugares remotos do planeta, como a Groenlândia, os sedimentos acumulados de 1950 para cá apresentam concentrações de carbono, resultado da queima de combustíveis fósseis, e de fósforo e nitrogênio, usados como fertilizantes na agricultura, muito mais elevadas do que nos últimos 11.700 anos. Waters, Zalasiewicz e seus colegas estimam ainda que o impacto das atividades humanas atuais pode permanecer registrado por dezenas de milhões de anos. A mineração, as mudanças no clima global e o aumento na taxa de extinção de espécies de plantas e animais também devem deixar suas marcas nas rochas. “O artigo causou muita polêmica”, lembra Juliana. “Muitos pesquisadores discordam de que o Holoceno tenha chegado ao fim e essa discussão ainda deve durar alguns anos.” Entre os críticos da proposta está o geólogo Stanley Finney, da Universidade do Estado da Califórnia em Long Beach, Estados Unidos. Ele é diretor do conselho executivo da Iugs que define a tabela cronoestratigráfica e, ao lado de Lucy
Para críticos do Antropoceno, a oficialização dessa possível nova época geológica teria razão mais política do que científica
Edwards, do United States Geological Survey, discordou da ideia de criação do Antropoceno em um artigo de opinião publicado na edição de março/abril do boletim GSA Today, da Associação Geológica Americana. No texto, Finney e Lucy afirmam que muitas das camadas depositadas nos últimos 70 anos nas porções mais profundas do oceano não têm
Um planeta de plástico Crescimento da produção mundial de materiais plásticos nas últimas décadas, em milhões de toneladas (Mt) por ano 300
299 Mt
288 Mt Legislação
250 Mt
250
204 Mt
200
mais de 1 milímetro (mm) de espessura. Eles dizem ainda que a maioria das evidências apresentadas pelos defensores do Antropoceno se baseia em previsões sobre o potencial registro em rochas de um futuro remoto. A inclusão do Antropoceno na tabela cronoestratigráfica teria uma razão mais política (denunciar o impacto ambiental da humanidade) do que científica. “Para se definir uma nova época é necessário que o material depositado tenha expressão na coluna de sedimento em muitos lugares do planeta e em ambientes diversos”, explica o geólogo Michel Mahiques, professor do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO-USP). “Não sabemos até que ponto o Antropoceno atende à Iugs nesse pressuposto, uma vez que a época já pode ter expressão em alguns ambientes, como as regiões costeiras, e quase nenhuma expressão em outros, como o fundo das bacias oceânicas.” Juliana lembra que não há consenso nem entre os que apoiam a oficialização do Antropoceno. O grupo de Zalasie wicz, por exemplo, defende um dia para o início dessa nova época: 16 de julho de 1945, o dia em que foi detonada a primeira bomba atômica, em Alamogordo, no estado norte-americano do Novo México. A data marca o início de uma contaminação da atmosfera por isótopos radioativos liberados em testes de armas termonucleares que já teriam tido tempo para se incorporar ao gelo e ao sedimento de toda a superfície do planeta, deixando um sinal claro para os geólogos do futuro. Outros pesquisadores sugerem, porém, datas mais remotas, como o início da Revolução Industrial, em torno de 1800, para englobar todas as transformações que a humanidade já provocou no ambiente terrestre. Microplásticos ao mar
150 Acúmulo em hábitats naturais
100
99 Mt
50
0
47 Mt 1,7 Mt
1950
1960
54 z maio DE 2016
1970
1980
1990
2000
2010
2020
Zalasiewicz e Waters convidaram Juliana para participar do Grupo de Trabalho do Antropoceno depois de lerem uma revisão que ela e a oceanógrafa Mônica Costa, da Universidade Federal de Pernambuco, publicaram em 2014 na Environmental Pollution sobre o acúmulo de microplásticos nos oceanos. Microplásticos são fragmentos com menos de 5 mm, em geral invisíveis a olho nu quando flutuam nos oceanos ou estão misturados na lama ou na areia. “Eles queriam
Amostra de plastiglomerado: rocha formada por sedimentos de origem mineral e material plástico, encontrada na praia de Kamilo, no Havaí
foto patricia corcoran / universidade de ontário ocidental gráfico ZALASIEWICZ, J. et al. anthropocene, 2016 foto Marcello Casal Jr / Agência Brasil
2
saber se poderiam usar os microplásticos como um marcador geológico para o Antropoceno”, conta a pesquisadora, que já coletou o material na superfície do mar em torno de todas as grandes ilhas oceânicas brasileiras, como Fernando de Noronha e Trindade. Com mais 16 membros do grupo, ela realizou um trabalho de revisão publicado em janeiro na Anthropocene resumindo tudo o que se sabe sobre o caminho que os plásticos percorrem pelo planeta. No artigo, os pesquisadores enfatizam que esse tipo de material tem um elevado potencial de ser preservado nos sedimentos marinhos. A origem dos microplásticos encontrados no mar é variada. Os chamados pellets, esferas do tamanho de uma lentilha, são usados como matéria-prima para fabricar objetos plásticos maiores. Outros resultam da degradação no ambiente de peças maiores. Os microplásticos mais abundantes, porém, são as fibras com 2 a 3 mm de comprimento por 0,1 mm de espessura que compõem o filtro dos cigarros ou se destacam de tecidos sintéticos durante a lavagem. De 1950 para cá, a produção mundial de plástico passou de 2 milhões de toneladas para 300 milhões de toneladas por ano. Estima-se que o total de plástico já produzido (algo da ordem de 5 bilhões de toneladas) seja suficiente para embrulhar o planeta em filme plástico algumas vezes. Descartados em lixões, os materiais plásticos chegam aos oceanos e às re-
giões costeiras. Um estudo coordenado pelo biólogo Alexander Turra, do IO-USP, indicou anos atrás que há 10 vezes mais partículas de microplástico enterradas na areia de uma praia do que na sua superfície. “Antes de nosso estudo, as pessoas subestimavam a quantidade de plástico na areia”, diz Turra. Como a tendência do plástico é boiar, os pesquisadores supunham que os microplásticos permanecessem sempre sobre a areia. Turra e seus colegas, porém, os encontraram enterrados a até 2 metros de profundidade em quatro praias do litoral paulista (ver Pesquisa Fapesp nº 219). Desde então a equipe confirmou o fenômeno em mais 13 praias. Pela distribuição das partículas, Turra suspeita que os microplásticos sejam enterrados pela força de ocasionais tempestades marítimas. Outra parte do plástico produzido e descartado está flutuando nos oceanos. E há, ainda, outro destino: o fundo do mar. Fósseis plásticos
Embora flutuem no início, os pedaços de plástico (grandes ou pequenos) que permanecem por muito tempo na água salgada acabam colonizados por microrganismos e afundam. Também podem ser engolidos por organismos maiores, de microscópicos zooplânctons a peixes, e submergir com suas fezes ou carcaças. Expedições já encontraram plásticos em diferentes profundidades no relevo
submarino. Robôs já fotografaram garrafas, sacolas e redes de pesca em cânions submarinos ao redor da Europa e, em 2015, pesquisadores encontraram microplásticos a mais de 5 quilômetros de profundidade sobre o sedimento da fossa de Karil-Kamchatka, no oceano Pacífico. Testemunhos de sedimentos marinhos indicam que há fibras plásticas por todo o assoalho oceânico. Zalasiewicz é especialista em microfósseis de 500 milhões de anos de idade, entre eles, os graptólitos, cuja estrutura era composta de moléculas orgânicas com estrutura semelhante à dos plásticos. Se esses microrganismos deixaram registros fossilizados, Zalasiewicz sus peita que o plástico depositado no fundo do mar, especialmente aquele presente no sedimento de cânions submarinos próximos às bordas das plataformas continentais, também tem grande chance de ser preservado por milhares de anos e, quem sabe, um dia intrigar futuros paleontólogos que encontrarem garrafas PET, CDs e bitucas de cigarro fossilizados. n
Artigos científicos ZALASIEWICZ, J. et al. The geological cycle of plastics and their use as a stratigraphic indicator of the Anthropocene. Anthropocene. 18 jan. 2016. TURRA, A. et al. Three-dimensional distribution of plastic pellets in sandy beaches: Shifting paradigms. Scientific Reports. 27 mar. 2014. IVAR DO SUL, J. A. e COSTA, M. F. The present and future of microplastic pollution in the marine environment. Environmental Pollution. fev. 2014.
pESQUISA FAPESP 243 z 55
METEOROLOGIA y
A capital dos raios Lago de Maracaibo, na Venezuela, apresenta a concentração mais elevada de descargas elétricas atmosféricas do mundo Everton Lopes
E
m algum lugar do mundo está caindo um raio neste momento. Na Terra, ocorrem 44 descargas elétricas atmosféricas a cada segundo (quase 4 milhões por dia). Estima-se que só 20% delas atinjam o solo e que o restante ocorra no interior das nuvens. O lugar do planeta onde há mais raios é o lago de Maracaibo, no oeste da Venezuela, o maior da América do Sul. As nuvens que se formam sobre os 13 mil quilômetros quadrados (km2) de sua superfície – o maior eixo tem 160 quilômetros – geram cerca de 8 mil raios por dia, segundo um levantamento publicado em fevereiro deste ano, que identificou os 500 pontos do planeta com maior número de descargas elétricas atmosféricas. Ali, a frequência desses eventos luminosos é tão grande que o escritor espanhol Lope de Vega já fazia referência ao lago e a seus numerosos raios no poema épico La dragontea, de 1598. Os raios, segundo a obra, teriam impedido uma invasão britânica à cidade de Maracaibo, nas proximidades do lago. Há ainda relatos de que, no passado, o lago servia de farol para os navegadores do Caribe, por causa dos clarões no céu durante a noite. 56 z maio DE 2016
O principal motivo para a grande frequência do fenômeno no local é a chamada convergência de brisa noturna, explica a meteorologista Rachel Albrecht, professora do Departamento de Ciências Atmosféricas do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP). Ela é a primeira autora do ranking mundial de descargas elétricas atmosféricas, elaborado em parceria com pesquisadores dos Estados Unidos e aceito para publicação no Bulletin of the American Meteorological Society. A tal convergência é fenômeno decorrente da combinação ambiental: a existência de um grande lago tropical envolto por um relevo bastante acidentado. Durante o dia, o continente aquece muito mais rápido que a água do lago. A diferença de temperatura faz o vento soprar do lago para o continente, em direção às montanhas que formam a baía de Maracaibo. Já à noite, o sentido da brisa se inverte. As montanhas e o continente se resfriam antes do lago, cujas águas quentes fornecem umidade para a atmosfera. À medida que sobe, o vapor condensa e forma nuvens de tempestade
A cada 10 segundos cai um raio no lago de Maracaibo, na Venezuela
O mapa-múndi das descargas elétricas África concentra o maior de número de lugares com alta densidade de raios (tons de vermelho)
0,01 0,1 0,2 0,4 0.6 0,8 1 2 4 6 8 10 20 30 40 >50
foto Ruzhugo27 / wikicommons mapa albrecht, r. et al. Bulletin of the american meteorological society, 2016
número de raios por km2 por ano
profundas, com cristais de gelo e granizo, que, ao colidirem entre si milhões e milhões de vezes no interior das nuvens, provocam transferência de cargas elétricas. Como consequência, o campo elétrico aumenta e se formam os raios. “Os raios caem com mais frequência por volta das 3 horas da manhã, no horário local”, conta Rachel. Segundo a meteorologista, a maioria das regiões continentais apresenta o máximo de raios à tarde, principalmente durante as chamadas tempestades de verão. raios pelo mundo
O estudo que definiu o lago de Maracaibo como líder mundial de descargas elétricas na atmosfera – nessa região ocorre, a cada ano, uma média de 232 raios por km² – usou dados coletados de 1998 a 2013 pelo satélite Tropical Rainfall Measuring Mission, da Nasa, a agência espacial norte-americana. Localizado a 405 quilômetros da superfície da Terra, o satélite tem sensores que captam pulsos ópticos que resultam da interação dos raios com os gases das nuvens. É importante ressaltar que esses sensores registram tanto as descargas
elétricas que ocorrem no interior das nuvens como as que atingem o solo. O estudo atual usou uma resolução cinco vezes maior que a dos anteriores, permitindo detectar descargas que ocorrem em áreas da superfície do globo que correspondem a 0,1 grau – próximo à linha do equador, essa medida equivale a um quadrado cujos lados medem cerca de 10 quilômetros. Embora o ponto do planeta com maior densidade de raios (número de eventos por km2 por ano) esteja na América do Sul, a região com o maior número de locais com muito raios é a África. Dos 500 locais analisados, mais da metade (283) está no continente africano, a maioria entre o centro e o oeste da África. Na Ásia, há 87 pontos com alta incidência de raios; na América do Sul são 67 e na América do Norte, 53. A Oceania é o continente com menos pontos, apenas 10. Na África, a região com maior densidade de raios (205 por km2 por ano) é a República Democrática do Congo. O país tem 2,3 milhões de km² e em seus céus se formam 95 milhões de descargas elétricas por ano. Embora as regiões brasileiras só apareçam a partir da 191ª posição nesse ranking, o país, com uma área territorial quase quatro vezes maior que a do Congo, é o campeão mundial em número absoluto de raios: são 108 milhões de descargas elétricas na atmosfera por ano. A região brasileira com maior densidade de raios fica a noroeste de Manaus, no meio da floresta amazônica. Nessa área ocorrem 68 raios por km² por ano, segundo o estudo do qual Rachel partici-
pou. Um levantamento anterior, realizado pelo Grupo de Eletricidade Atmosférica (Elat) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), indicava a cidade de Porto Real, no Rio de Janeiro, como o local onde mais incidiam raios no país. Ali, a frequência era de aproximadamente 20 descargas elétricas por km² por ano. A diferença, segundo Osmar Pinto Júnior, coordenador do Elat, é consequência de estratégias distintas de medição. O Elat usa redes de monitoramento que estão instaladas apenas nas regiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste do país. Além de ter uma distribuição mais restrita, essas redes são compostas por sensores de superfície que detectam radiação invisível a olho nu gerada pelas descargas que atingem o solo. O número registrado a noroeste de Manaus corresponde ao total de descargas, que inclui tanto as que ocorrem no interior das nuvens como as que atingem o solo. Já a densidade medida pelo Elat em Porto Real representa o máximo de descargas que atingem o solo. “São máximos de grandezas diferentes, para regiões diferentes”, explica Pinto Júnior. Apesar das estratégias de medição distintas, a concentração de raios é bastante elevada na região de Porto Real. “Resende, uma cidade vizinha”, diz Rachel, “aparece na 396ª posição no ranking global de raios e na 10ª posição entre as regiões brasileiras”. n Artigo científico ALBRECHT, R. et al. Where are the lightning hotspots on Earth? Bulletin of the American Meteorological Society. on-line. 17 fev. 2016.
pESQUISA FAPESP 243 z 57
ecologia y
Águas
mortas Seis meses depois do vazamento da lama com rejeitos de mineração, rio Doce continua sem vida e medidas de restauração permanecem indefinidas
Uma das margens do rio Gualaxo do Norte: a faixa marrom indica o limite alcançado pela lama com rejeitos de mineração
58 z maio DE 2016
Texto
Carlos Fioravanti
Fotos
Eduardo Cesar, de Mariana, MG
O
s pesquisadores do Grupo Independente para Análise do Impacto Ambiental (Giaia) fizeram algo incomum em expedições científicas, ao longo dos nove dias da viagem à região atingida pela lama com rejeitos de mineração que vazou da barragem da Samarco em novembro de 2015. Dos pontos de coleta – desde Mariana, em Minas Gerais, até a foz do rio Doce, no Espírito Santo –, trouxeram mais amostras de água e de sedimentos do que eles próprios pretendiam usar. Reuniam material também para equipes do Instituto de Pesca de São Paulo e das universidades Federal de São Carlos (UFSCar), Estadual Paulista (Unesp), de São Paulo (USP) e de Brasília (UnB) interessadas em participar das análises. Outra peculiaridade do grupo: “Queremos soltar os dados o mais rapidamente possível, por meio do site e da página do grupo no Facebook”, disse André Santos, professor da UFSCar em Sorocaba. Na manhã de 31 de março de 2016, segundo dia da expedição, enquanto falava do grupo, ele ajudava a organizar, em caixas de isopor, os potes com amostras de água e sedimentos colhidos em frente a uma cachoeira do rio Gualaxo do Norte, o primeiro a ser atingido pela lama que vazou do reservatório. “Quem nos acompanha pelo Facebook cobra pelos resultados das análises e das expedições”, acrescentou a bióloga Flávia Bottino, também da UFSCar. O modo de funcionamento resulta da história do grupo. Em novembro, logo após o rompimento da barragem, Dante Pavan, biólogo formado pela USP e consultor de empresas, comentou em sua página do Facebook que a situação era “demasiado grave para apenas ficarmos compartilhando notícias”. Ele contou que estava indo para campo por conta própria para registrar os impactos ambientais e perguntou quem mais estaria disposto a participar. Rapidamente se formou um grupo inicial, com Pavan, Viviane Schuch, bióloga da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Flávia e Alexandre Martensen, outro biólogo formado pela USP. Para pagar as despesas das viagens de coleta de materiais para análise, um amigo de Pavan, o arquiteto Dino Zammataro, estruturou uma campanha de financiamento coletivo, que arrecadou cerca de R$ 90 mil, quase o dobro do esperado, por meio de doações de 1.473 pessoas e empresas. Os gastos com as viagens e a compra de materiais para as análises também são apresentados com rapidez no site do grupo. Uma limitação, reconhece Pavan, é que o trabalho, por ser voluntário, depende do engajamento e do tempo livre de cada participante. pESQUISA FAPESP 243 z 59
Seis meses depois do acidente, turbidez ainda alta compromete a sobrevivência de organismos aquáticos
Turbidez (em UNT*)
*Unidade Nefelométrica de Turbidez
ES
498 (31 mar. 16)
269 (1 abr. 16)
176 (3 abr. 16)
67 (3 abr. 16)
37 (6 abr. 16)
+ 1 mil (6 dez. 15)
+ 1 mil (6 dez. 15)
+ 1 mil (8 dez. 15)
+ 1 mil (8 dez. 15)
1 mil (9 dez. 15)
2
Obs.: As medições de turbidez em Paracatu de Baixo, Rio Doce e Governador Valadares em dezembro de 2015 ultrapassaram o limite máximo de mil UNT Fonte gaia
Seis meses depois do acidente, uma das margens ao lado da cachoeira do rio Gualaxo do Norte mudou pouco: as bordas de uma mata expõem árvores caídas ou inclinadas, indicação da força da enxurrada de lama. Na lama seca misturada com terra da outra margem, germinavam grama e feijões, plantados pela mineradora para evitar que resíduos voltem para o rio e para recompor o solo. Era o início do trabalho de recuperação ambiental da bacia do rio Doce, que a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, no início de abril, estimou em 15 anos. O plantio de gramíneas e leguminosas é “parte de um plano emergencial e está sendo realizado com acompanhamento de órgãos públicos”, informou o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) por e-mail. “Uma recuperação definitiva depende de diagnósticos mais precisos que ainda não foram levantados, como altura do rejeito em cada trecho dos rios afetados”, acrescentou o comunicado. “Não podemos esperar que as matas próximas aos rios se restabeleçam naturalmente”, comentou Soraya Botelho, professora de restauração florestal da Universidade Federal de Lavras (Ufla), em Minas Gerais. Ela alertou para o risco de as gramíneas crescerem demais a ponto de prejudicar o desenvolvimento de outras plantas aptas a recompor a mata perdida das margens dos rios. Para ela, seria importante identificar as espécies 60 z maio DE 2016
Próximo à foz do rio Doce, a lama se espalhou mais do que nas áreas montanhosas do interior de Minas de plantas capazes de crescer nesse tipo de solo, muito diferente do natural. Sergius Gandolfi, pesquisador do laboratório de restauração florestal da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, propõe duas medidas adicionais. A primeira é o isolamento de trechos contaminados dos rios e a remoção dos resíduos do leito, que poderiam ser depositados em áreas próximas e cobertos com vegetação nativa. A segunda é a criação de canais paralelos ao rio principal para captação e distribuição de água de rios não degradados, que poderia servir também para irrigação rural.
Especialistas do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) propõem o o controle de erosão nas margens dos rios, com a construção de patamares, barreiras e valetas, para evitar que os rejeitos voltem aos rios. “As medidas de controle poderiam anteceder a proteção definitiva, com o plantio de gramíneas”, disse Omar Yazbek Bitar, geólogo do instituto. “Devemos pensar em soluções específicas para cada trecho.” A equipe do IPT propôs também ao Ministério Público de Minas Gerais a instalação de barreiras flutuantes, com as chamadas mantas geotêxteis, para reter os sedimentos em suspensão antes de a água ser captada e enviada para as estações de tratamento das cidades. As fundações de Amparo à Pesquisa de Minas (Fapemig) e do Espírito Santo (Fapes) lançaram um edital de R$ 6,6 milhões em busca de propostas de aplicação a curto prazo para promover a recuperação do solo, da água e da biodiversidade e para identificar e reduzir os impactos econômicos e sociais das populações da bacia do rio Doce. As propostas selecionadas devem ser anunciadas em breve. Uma vez selecionadas as melhores técnicas de restauração ambiental, a próxima etapa é ver quem cuidará da implantação. Alvo de uma ação civil pública que cobra R$ 20 bilhões pelos danos ambientais e sociais causados à região, a Samarco ameaçou deixar o estado de Minas, o que é indesejado pelas prefeituras da região de Mariana, que se ressentem da queda de arrecadação decorrente da paralisação das atividades da empresa, em novembro. Apesar do desastre, a mineradora é apoiada com discrição. Uma lanchonete no centro comercial de Mariana expõe um pequeno cartaz ao lado de uma das mesas: “#Fica Samarco# Aqui, posto de coleta de assinaturas”. Água Ácida
O vazamento de 32 milhões de metros cúbicos de lama com rejeitos de minérios agravou a situação de rios que já sofriam degradação com a descarga contínua de esgotos e resíduos de mineração, além da perda das matas que protegiam suas margens. “A bacia do rio Doce é hoje a mais impactada do Brasil”, comentou Pavan, com base nos trabalhos em campo e de laboratório do Giaia. Na manhã do dia 31 de março, de botas e macacão de borracha, com a água amarelada até os joelhos, Márcio Vicen-
mapa fabio otubo
O Doce desfigurado
Rio sem vida: a cachoeira do rio Gualaxo. Ao lado, Flávia examina a água e Vicente colhe sedimentos
te, professor de biologia em cursos pré-universitários, colheu sedimentos do fundo do rio enquanto Flávia, também de botas, segurava uma sonda multiparamétrica em formato de garrafa de champanhe. Da sonda saía um longo fio até o monitor, que Vinicius Rodrigues, em pé em um trecho firme do barranco do rio, segurava enquanto lia as características físico-químicas da água. Formado em monitoramento ambiental, Rodrigues observou que a água daquele ponto, logo abaixo da cachoeira, com um pH de 5,5, era mais ácida que a do primeiro ponto de amostra, próximo a uma ponte de madeira do rio Gualaxo do Norte, não contaminado pelos rejeitos. “Por ser ácida e carregada de metais, esta água pode causar dermatite de contato”, disse Natália Guimarães, graduada em farmácia, pela primeira vez em campo, para colher amostras para sua orientadora de mestrado, Vivian Santos, professora da Universidade de Brasília (UnB) que fez as primeiras análises das
concentrações de metais. As avaliações das amostras da primeira expedição indicaram níveis elevados de ferro, alumínio, manganês, zinco e arsênio, o que contribuía para fazer da água algo a ser evitado, como Natália já tinha verificado. Um colega esbarrou com uma luva molhada em seu braço e sua pele clara ficou vermelha e irritada em segundos. A turbidez ainda era alta: logo abaixo da cachoeira, variava de 490 a 500 unidades nefelométricas de turbidez (UNT), bem abaixo dos 15 mil registrados em novembro, mas acima das 25 UNT da água transparente do primeiro ponto de coleta. O excesso de partículas sólidas na água impede a entrada de luz, essencial para as plantas aquáticas micro e macroscópicas fazerem fotossíntese e sobreviverem. E, sem plantas, não há animais. “Por enquanto, nos trechos dos rios mais próximos da barragem, que receberam os rejeitos, não estamos vendo nenhum tipo de ser vivo”, disse Luciana Menezes, pesquisadora do Instituto de Pesca,
que examinava os microrganismos do fundo do rio. O vilarejo de Bento Rodrigues, o primeiro a ser atingido pela massa de lama, indicava que não foi apenas o rio que morreu. Havia poucas paredes em pé de casas sem teto numa comunidade em que viviam cerca de 300 pessoas. O antigo campo de futebol do vilarejo estava ocupado por uma represa de rejeitos, barrados por um dique de pedra. recém-construído pela mineradora. Técnicos do Ibama e do Ministério Público de Minas alegavam que diques como esse são ineficientes para conter o excesso de sedimentos e poderiam ser desfeitos com chuvas fortes. Seguindo o rio Doce, como as represas nos municípios de Rio Doce, Governador Valadares e Aimorés, em Minas, e Baixo Guandu, no Espírito Santo, barravam os sedimentos, aos poucos a água se tornava mais limpa. Os pesquisadores observaram o reaparecimento de fito e zooplâncton e ouviram relatos de pescadores de que já havia peixes outra vez, embora ainda escassos. “Próximo à foz, o rejeito foi para a várzea e as plantações de cacau, espalhando-se mais do que nas áreas montanhosas do interior de Minas”, disse Pavan. “Ao mar chegaram apenas os sedimentos de cor laranja, muito finos, que penetram profundamente na areia dos rios e das praias marinhas.” n pESQUISA FAPESP 243 z 61
PALEONTOLOGIA y
Coração de pedra Registro fóssil inédito revela um caminho inesperado da evolução do músculo cardíaco André Julião
A
Fóssil do peixe Rhacolepis buccalis, coletado no Araripe: órgãos internos em ótimo estado de preservação 62 z maio DE 2016
paleontologia agora tem um coração. Um grupo de pesquisadores brasileiros encontrou o órgão preservado no fóssil de um peixe que viveu há cerca de 115 milhões de anos no que é hoje o Nordeste brasileiro. Essa é a primeira vez, no mundo, que se descreve um coração fossilizado. Por estar em ótimo estado de preservação, o órgão petrificado do peixe Rhacolepis buccalis revela um estágio até então desconhecido da evolução do coração. Por meio de tomografias de altíssima resolução, foi possível fazer imagens em 3D de todo o corpo do animal – que tinha cerca de 15 centímetros (cm) de comprimento – e de seus órgãos internos. Para a surpresa dos pesquisadores, o coração tem cinco valvas, um tipo de válvula que controla a saída do sangue para o resto do corpo, enquanto os peixes atuais têm apenas uma. “Isso mostra que nem sempre os organismos ficam mais complexos à medida que evoluem. Em alguns casos, eles se tornam mais simples”, explica o médico José Xavier Neto, pesquisador do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), em Campinas, e coordenador do grupo que investigou o coração fossilizado. O R. buccalis pertence à classe dos actinopterígeos, ou peixes de nadadeiras raiadas. Seu coração parece estar no
meio do caminho da evolução entre os membros atuais desse grupo, como o zebrafish (ou paulistinha), que tem uma valva cardíaca, e os de outros que pouco se modificaram nos últimos 390 milhões de anos, como os peixes do gênero Polypterus, que têm dezenas delas. “Não sabemos o contexto em que ocorreu essa simplificação, mas ela costuma acontecer depois do que chamamos de surto de complexidade”, diz Xavier, que publicou os resultados em abril no periódico eLife. Também não se sabe se a perda de valvas representou uma vantagem evolutiva ou se aconteceu aleatoriamente. FÓSSIL 3D
Encontrar e descrever um coração fossilizado só foi possível graças à tecnologia de luz síncrotron, que vem contribuindo de forma significativa para a paleontologia nos últimos anos. “Tecidos moles, como o coração, são muito difíceis de serem preservados”, diz a paleontóloga Mírian Pacheco, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) em Sorocaba, que também usa a luz síncrotron para estudar fósseis de animais do período geológico Ediacarano, em sua maioria organismos de corpo mole que viveram há cerca de 540 milhões de anos e são dificilmente encontrados intactos. Cérebro, ovário, músculo, conteúdo intes-
n vísceras n escamas n ossos n coração n guelras
visão lateral
foto Murilo de carvalho / lnbio tomografia josé xavier neto / lnbio
visão inferior
tinal, cordão umbilical e bexiga natatória fossilizados já haviam sido achados, mas, segundo os pesquisadores, nunca um coração. Xavier entrou para o grupo seleto dos pesquisadores que descreveram tecidos moles fossilizados depois de ser convencido a focar suas buscas no R. buccalis alguns anos atrás. Durante férias no sul do Ceará, terra natal de sua família, ele conversou com os geólogos Francisco Idalécio Freitas, coordenador executivo do Geopark Araripe, e José Artur de Andrade, do Departamento Nacional de Produção Mineral, que o aconselharam a centrar suas análises nesse peixe, bastante comum na bacia do Araripe, área do interior do Ceará, de Pernambuco e do Piauí conhecida por conter fósseis do Cretáceo muito bem preservados. Os fósseis de R. buccalis têm a vantagem de normalmente serem encontrados em formato tridimensional, o que aumenta a probabilidade de manter os órgãos internos preservados. Xavier passou a visitar a região pelo menos uma vez por ano e reuniu 67 fósseis. Em Campinas, os biólogos Laura Maldanis e Murilo de Carvalho prepararam as amostras e analisaram o material. O síncrotron de segunda geração existente no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, vizinho do LNBio no Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), não tem capacidade para produzir imagens de amostras grandes como os fósseis dos peixes, em geral, com 15 cm de comprimento por 5 cm de espessura. Por essa razão, os fósseis foram enviados para o European Synchrotron Radiation Facility, em Grenoble, na
Rhacolepis buccalis em alta resolução: as imagens de tomografia permitem identificar as guelras, os intestinos e o coração do peixe (em vermelho, na visão inferior); ao lado, detalhes do coração, formado por quatro câmaras, uma delas, o cônus arterial, contendo quatro valvas
França, que dispõe de um equipamento de quarta geração, capaz de gerar feixes de radiação mais energéticos. “Nas primeiras tomografias não dava para ver as cavidades do coração, mas a resolução era tão boa que era possível visualizar, no trato intestinal dos peixes, os camarões que eles haviam comido”, lembra Xavier. Até que duas amostras mostraram claramente não só o coração, mas também detalhes internos do órgão. Tamanha precisão foi possível porque a tomografia feita pelo síncrotron tem uma resolução quase 100 vezes maior do que a dos tomógrafos médicos. Enquanto os tomógrafos convencionais só conseguem distinguir pontos que estão a 500 micrômetros de distância um do outro, nos aparelhos de luz síncrotron essa distância é de 6 micrômetros (cada micrômetro é 1 milésimo de milímetro). O aparelho faz uma sequência de radiografias em “fatias” da amostra, dando um retrato preciso do “relevo” interno dela. Depois, as fatias são reunidas por um programa de computador e formam uma imagem em três dimensões. “O re-
sultado é tão preciso que é quase como ver um coração dissecado”, conta Xavier. Outra vantagem é que a luz síncrotron não destrói as amostras. “Esse material pode ser analisado novamente sob outros aspectos. O que foi alcançado por essa equipe põe o Brasil num nível internacional de competitividade na paleontologia”, opina Mírian, que não faz parte do grupo de pesquisadores. Se o cronograma atual for mantido, espera-se que até 2018 o Sirius, nova fonte de luz síncrotron semelhante à francesa, seja concluído em Campinas, o que deve tornar possível analisar fósseis e outros materiais no próprio país. n
Projeto Evolução molecular de regiões regulatórias de genes HOX associados com a morfologia da nadadeira de peixes, com especial ênfase em Chondrichthyes (n° 2012/05152-0); Modalidade Bolsas no Brasil – Pós-doutorado; Pesquisador responsável Marcelo Rodrigues de Carvalho (USP); Bolsista Murilo de Carvalho; Investimento R$ 255.270,00.
Artigo científico MALDANIS, L. et. al. Heart fossilization is possible and informs the evolution of cardiac outflow tract in vertebrates. eLife. v. 5, e14698. 19 abr. 2016.
pESQUISA FAPESP 243 z 63
INFORME PUBLICITÁRIO
ED. 04 - MAIO 2016
Brasil quer estar no patamar de pesquisas de ponta contra Zika
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governo lançou, em março, as ações do eixo de desenvolvimento tecnológico, educação e pesquisa do Plano Nacional de Enfrentamento ao Aedes aegypti e à Microcefalia, com recursos de quase R$ 1,2 bilhão. Os recursos serão aplicados em cinco frentes: diagnóstico; controle vetorial; vírus zika e relação com doenças e agravos, como microcefalia e síndrome de Guillain-Barré; desenvolvimento de vacinas e tratamentos, a exemplo de um contrato de R$ 200 milhões estabelecido pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e Ministério da Saúde (MS) com o Instituto
Butantan para imunização à dengue; e inovação em gestão de serviços de saúde, saneamento e políticas públicas. Vinte editais para financiamento de pesquisas serão lançados. Estão previstos R$ 305,8 milhões para 2016, R$ 162,2 milhões para 2017 e R$ 136,2 milhões para 2018. Para os anos seguintes, o plano prevê R$ 44,9 milhões para custear toda a duração de bolsas de doutorado e pós-doutorado, por meio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq/MCTI) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes/MEC).
Eixo de enfrentamento As medidas começaram a ser discutidas no fim de 2015 no MCTI, em parceria com o MEC, MS, Casa Civil, BNDES, Capes, CNPq, Finep, institutos e pesquisadores. São parte de um projeto ímpar, que vai colocar o Brasil em um patamar de pesquisa de ponta, na área de combate à zika, à dengue, à chikungunya e seus vetores. Os resultados desse eixo de enfrentamento vão permitir ao governo brasileiro proteger, com mais eficácia, a saúde da nossa população.
INFORME PUBLICITÁRIO
MCTI já investiu R$ 200 milhões em tecnologias para o desenvolvimento do biodiesel
A
lei que aumenta os percentuais de adição de biodiesel vegetal ao óleo diesel fóssil, usado como combustível para vários tipos de veículos, foi sancionada pelo governo. O índice da mistura passará dos atuais 7% para 8% até 2017, com o incremento de um ponto percentual a cada 12 meses. Com isso, o índice passará para 9% até 2018 e para 10% até 2019, podendo chegar a até 15%, mediante testes. A medida representa uma garantia de demanda para o Brasil, segundo maior mercado consumidor de biodiesel do mundo. Essa nova lei representa avanços importantes para o país em muitos setores como a agricultura familiar, a agricultura comercial, as usinas produtoras de biodiesel, o consumidor e o meio ambiente. A expectativa é que a flexibilidade de
combinação acarrete preços mais baratos para o combustível. O Brasil assumiu compromissos ambiciosos na última Conferência do Clima, a COP 21, em Paris, tanto para a redução de emissões quanto para a ampliação das energias renováveis na matriz energética nacional. A nova lei vai ajudar o país a cumprir esses compromissos. Biodiesel, combustível renovável e biodegradável O biodiesel pode ser produzido a partir de plantas como o pinhão-manso e a palma. Atualmente, a soja é uma fonte de energia renovável que produz menos danos ambientais. Ele também pode ser produzido a partir de gordura animal.
Brasil alcança estado da arte em previsão do tempo
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previsão do tempo é uma ferramenta importante para uma série de atividades. Seja para agricultores planejarem plantios e colheitas de culturas, seja para prevenir possíveis desastres naturais nos perímetros urbanos. Os meteorologistas buscam, então, fazer previsões cada vez mais precisas para dar subsídios exatos para a população. Para tanto, se valem de softwares e códigos computacionais complexos. Um deles é o Brazilian Developments on the Regional Atmospheric Modeling System (Brams), desenvolvido pelo Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (Cptec) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe/MCTI). Com a nova versão, recentemente disponibilizada, a Brams 5.2, é possível fazer previsões mais precisas em toda a extensão da América do Sul. O principal diferencial desse sistema, de acordo com o pesquisador do Cptec Saulo Freitas, é que ele unifica os modelos de previsão do tempo e da qualidade do ar que a instituição utiliza atualmente. Outro ponto é que o Brams 5.2 permite uma avaliação simultânea do impacto das queimadas no ciclo de carbono. Em resumo, a ferramenta contabiliza fatores físicos, químicos e o ciclo de carbono para prever o clima.
“Por incluir processos físicos e biogeoquímicos mais realisticamente representados e integrados consistentemente em um único sistema de modelagem, temos condições de fazer uma previsão climática mais precisa. Esse sistema unifica diversos módulos, trazendo um sistema de modelagem de processos na atmosfera totalmente consistente, incluindo retroalimentações entre a superfície, atmosfera e biogeoquímica. Por isso, chegamos ao estado da arte”, explicou Saulo Freitas. “Isso significa que o Brasil está no estágio mais avançado da previsão climática.” Do menor para o maior Segundo o pesquisador, o Brams 5.2 permite uma avaliação mais regionalmente localizada das condições climáticas. É possível fazer previsões para áreas de até cinco quilômetros com antecedência de um dia. Já as análises mais completas – que levam em conta os fatores biogeoquímicos – servem para áreas de resolução de 20 quilômetros para um período de mais de três dias de antecedência. Juntando todas essas informações, é possível montar um mosaico de previsão climática para toda a América do Sul. A questão da delimitação da área é fundamental para a previsão do tempo. Isso porque quanto maior a área, maior a possibilidade de variação de cenários.
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tecnologia nanotecnologia y
Nas profundas camadas da pele
Boticário, Natura, Theraskin e Yamá se unem com o IPT e desenvolvem nanocápsulas para uso em cosméticos
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uatro grandes empresas do setor nacional de cosméticos se uniram para desenvolver em conjunto uma tecnologia de interesse comum, que po derá dar mais competitividade às parti cipantes do projeto. Realizado em parce ria com o Instituto de Pesquisas Tecno lógicas do Estado de São Paulo (IPT), o projeto cooperativo contou com as em presas Grupo Boticário, Natura, The raskin e Yamá e levou à criação de dois novos métodos de nanoencapsulação de princípios ativos de cosméticos. Sob a coordenação do IPT, o grupo, ao longo de dois anos, investiu R$ 2,4 milhões, di vididos em três partes iguais de R$ 800 mil entre o instituto (que contabiliza o uso dos laboratórios e o pessoal envolvi do), as quatro indústrias (que gastaram R$ 200 mil cada uma) e a Empresa Bra sileira de Pesquisa e Inovação Industrial 66 z maio DE 2016
(Embrapii), organização social mantida pelos ministérios da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e da Educação (MEC). O resultado final foi uma plataforma tecnológica que está disponível para as empresas participantes do projeto. Durante os estudos, cada empresa cola borou na pesquisa e aprimorou seus co nhecimentos nessa área. Por serem con correntes, nenhuma delas sabia o que as outras iriam colocar dentro das nano cápsulas. O que cada empresa pretende usar foi tratado apenas com a equipe do IPT, sob contrato de sigilo. A ideia do projeto surgiu em 2012, quando o IPT propôs ao Instituto de Tecnologia e Es tudos de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (Itehpec), braço tecnológico virtual da Associação Brasileira da In dústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (Abihpec), que congrega cerca de 380 empresas, identificar entre
os associados quais eram as principais demandas do setor na área de desenvol vimento de novas tecnologias. “Apresentamos nossas linhas de pes quisa e enviamos um questionário para as empresas em que procurávamos saber quais eram as demandas”, conta a farma cêutica Natália Cerize, do Laboratório de Biotecnologia Industrial do Núcleo de Bionanomanufatura do IPT, coorde nadora do projeto. “Constatamos que a maior demanda era na área de nanoen capsulação de cosméticos. No começo, 11 indústrias demonstraram interesse, número que depois se reduziu para nove e no fim chegou a quatro. Desenhamos então o projeto e assinamos o contrato em julho de 2013, para um trabalho de 21 meses”, conta Natália. Em 2015, o merca do brasileiro foi o quarto do mundo com faturamento de R$ 42 bilhões, atrás dos Estados Unidos, China e Japão.
eduardo cesar
Evanildo da Silveira
No IPT: detalhe de equipamento que permite medir experimentalmente a penetração das nanopartículas na pele
No projeto, foram desenvolvidos dois tipos de nanocápsulas ou nanoesferas. A primeira imita uma célula e a outra é ma ciça, como uma bola de bilhar. Elas têm tamanhos entre 100 nanômetros (nm) e 600 nm (1 nanômetro é a milionésima parte de 1 milímetro). Ambas são feitas de um tipo não revelado de polímero. Na primeira, a substância ativa do cosméti co é protegida por uma membrana e na segunda ela é misturada e distribuída por toda a massa da nanoesfera. Entre as vantagens dessa tecnologia estão a proteção do princípio ativo para evitar sua degradação durante a aplicação e a liberação controlada apenas nas cama das mais profundas da pele. “O material poderá ser liberado mais rápido ou mais devagar, conforme o efeito do cosméti co que se quer obter”, explica Natália. A técnica possibilita ainda a absorção cutâ nea mais direta e a ação mais localizada e duradoura dos compostos. Concepções diferentes
A encapsulação já é conhecida e usada por algumas empresas de produtos de beleza e higiene e de remédios no ex terior, como as francesas Anna Pegova, Chanel e L’Oréal. No caso da tecnologia desenvolvida pelo IPT e pelas quatro empresas, a novidade está na concep ção de uma plataforma para diferentes princípios ativos, o que gerou quatro depósitos de patentes. “Determinamos o melhor tamanho de partícula, pH, vis cosidade, teor de sólidos e estabilidade físico-química para cada ativo”, explica Natália. De acordo com ela, as técnicas de nanoencapsulação são inspiradas nas células dos seres vivos. “Elas são basica mente compostas por uma membrana, que protege o núcleo e as organelas in ternas”, diz. “Mas essa membrana tem também outras funções. Ela modula a atividade celular, permitindo, de for ma seletiva, que substâncias entrem ou saiam das células.” pESQUISA FAPESP 243 z 67
Nanoesferas, com forma mais rugosa, à esquerda na imagem de microscopia. Ao lado, nanocápsulas com superfície arredondada
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Além dos avanços tecnológicos, chama a atenção o fato de empresas concor rentes se unirem em torno de um mes mo objetivo, algo incomum no Brasil. “Nesse trabalho todos cooperam para conseguir fazer algo maior e melhor do que seria possível se fosse cada um por si.” Segundo Natália, a tecnologia desen volvida não será empregada apenas pa ra aqueles princípios ativos específicos testados durante a pesquisa, mas tam bém para novos produtos que possam vir a ser desenvolvidos por cada uma das empresas. “Para produtos cada vez mais comple xos é fundamental que, na fase de pes quisa e desenvolvimento [P&D] pré-com petitiva, empresas se associem, inclusive concorrentes, para dividirem os custos e também os riscos do desenvolvimento tecnológico de baixa maturidade”, avalia Humberto Pereira, vice-presidente da Associação Nacional de Pesquisa e De senvolvimento das Empresas Inovadoras (Anpei). “A parceria tecnológica entre concorrentes é bem difundida nos Esta dos Unidos, como o programa NextGen, para modernização do controle aéreo, e na União Europeia, o Programa-Quadro, também em parceria, que abrange áreas como saúde, nanotecnologia e transpor tes, entre outros.” A professora Rosiléia das Mercês Mi lagres, da Fundação Dom Cabral, em No va Lima (MG), lembra de um exemplo importante de empresas concorrentes participando de um projeto cooperativo. “O projeto Genolyptus [Rede Brasileira de Pesquisa do Genoma de Eucalyptus], 68 z maio DE 2016
Para as empresas foi uma oportunidade de obter conhecimento e internalizar a cultura de inovação
que realizou o mapeamento genético do eucalipto entre 2002 e 2008, contou com 12 empresas florestais, como Klabin Suzano, e Votorantim, sete universida des e a Embrapa”, diz Rosiléia. Entre as vantagens desses agrupamentos estão a redução de riscos e o compartilhamen to dos benefícios com menor custo. “Os projetos cooperativos produzem traba lhos com qualidade e valor numa veloci dade impressionante”, diz o engenheiro agrônomo Jefferson Luís da Silva Costa, pesquisador e assessor da Diretoria de Pesquisa e Desenvolvimento da Embra pa em Brasília. Conhecimento e capacitação
Na primeira fase do projeto foram de senvolvidas as duas plataformas de na noencapsulação. Nessa etapa, chamada de pré-competitiva, houve atividades conjuntas entre os pesquisadores do IPT e as equipes técnicas das empresas. Par ticiparam diretamente das atividades 10 pessoas do instituto e 23 das parceiras e do Itehpec. O avanço das pesquisas e o conhecimento gerado foram comparti lhados por meio de seis reuniões coleti
vas e dois cursos realizados no IPT, con templando teoria e prática. Aconteceram, ainda, mais de 30 encontros individuais (do pessoal do IPT com os representan tes de cada uma das empresas) e cerca de 500 horas, em várias atividades, de capa citação dos profissionais das indústrias. A segunda fase foi individual e sigilosa entre o IPT e cada uma das parceiras, que trabalharam com seus princípios ativos de interesse, em busca de solução sob medida para sua linha de produtos. Fo ram assinadas cláusulas de confidencia lidade para garantir o segredo industrial. A experiência foi positiva. “O modelo de trabalho do projeto despertou muito interesse, porque foi usada uma meto dologia que, além de propiciar o desen volvimento tecnológico, poderá trazer também vantagens competitivas e eco nômicas”, diz Deli Brito de Oliveira, ge rente de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação da Theraskin Farmacêutica. “O profissionalismo pautou as discussões e possibilitou o êxito, proporcionando ga nhos de todos os lados. Tivemos a opor tunidade de conhecer e internalizar uma nova cultura de inovação e tecnologia.”
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Laboratório de Biotecnologia Industrial do IPT: reator onde se preparam soluções de nanopartículas, ao lado. No alto, pesquisadora opera equipamento de permeação cutânea
Para o gerente de Pesquisa Tecnoló gica do Grupo Boticário, Gustavo Diea mant, o modelo de projeto cooperativo é muito bom para incentivar pesquisas aplicadas que necessitam de grande in vestimento. “Cada uma contribuiu com seu conhecimento e isso proporcionou resultados rápidos e efetivos. Apostamos em novos modelos colaborativos com divisão de recursos financeiros, econô micos e riscos”, diz Dieamant. Fabio Yamamora, diretor técnico da Yamá, conta que a participação da em presa no projeto foi uma decisão estraté gica tomada para atender o mercado de cosméticos que é também muito desafia dor. “A cada três meses havia uma reu nião geral em que se fazia o alinhamento do conhecimento gerado das rotas de encapsulação, porém sem dar detalhes dos ativos escolhidos por cada uma”, conta Yamamora. Para Luciana Hashiba, gerente de Inovação da Natura, o ganho maior foi a parceria com o IPT, que fez a interface com cada indústria e desen volveu a tecnologia. “Depois cada uma deu continuidade ao desenvolvimento da metodologia”, explica.
No caso da Natura, Luciana diz ainda que a nanotecnologia é fundamental pa ra entregar ao consumidor um cosméti co diferente no aspecto sensorial, com resultados de tratamento e proteção da pele cada vez mais efetivos, além de pro dutos seguros para o uso que permitem a liberação de ingredientes ativos de forma mais controlada. “Na nossa organização, a inovação nasce principalmente de di ferentes formas de colaboração”, explica Luciana. “A inovação aberta, como neste caso do trabalho com o IPT, tem grande potencial para alavancar resultados para nós e para a rede envolvida em projetos desse tipo.” domínio da tecnologia
Em relação à tecnologia propriamente dita, Luciana diz que a Natura espera incorporá-la caso ela se mostre viável nas etapas subsequentes ao desenvol vimento de novos cosméticos. “Ainda precisamos realizar diversos proces sos e metodologias voltados a sua se gurança e eficácia, como fazemos com todos os nossos produtos”, explica. “Se tudo correr bem, a inovação se
rá algo de impacto para nossa linha.” A Yamá também pretende usar a meto dologia como base para o desenvolvi mento futuro de outros ativos nanoen capsulados. “Esperamos obter melhoria da qualidade do processo de fabricação, redução da irritabilidade de alguns ati vos e aumento da compatibilidade entre matérias-primas”, enumera Yamamora. Simone Tiossi, diretora de Operações e Inovação da Theraskin, diz que a in trodução da nanotecnologia na empresa trará grandes benefícios, porque poderá estendê-la a outras linhas de produtos e também conduzir novos desenvolvi mentos depois da tecnologia implemen tada. “Esse projeto foi o primeiro passo para a construção do conhecimento ne cessário para o domínio da tecnologia, que tem sido bastante difundida mun do afora, proporcionando soluções de problemas anteriormente não vislum bradas”, explica Simone. Os resultados do trabalho com o IPT são considera dos igualmente promissores pelo Gru po Boticário. “O próximo passo será realizar um es tudo de escalonamento da metodologia, bem como estudos in vitro e clínicos para garantirmos sua segurança e eficácia”, informa Dieamant. “Até aqui o proje to foi conduzido em escala de bancada. Agora nós, o Itehpec e as quatro empre sas estamos avaliando a possibilidade de continuação de uma nova fase do pro jeto para trabalhar o escalonamento de produção dos encapsulados de interesse dentro da realidade de produção de cada uma”, diz Natália, do IPT. n pESQUISA FAPESP 243 z 69
pesquisa empresarial y
Renovação intensa 3M investe em pesquisa e desenvolvimento e cria métrica própria para impulsionar a inovação Camila Cruz Durlacher, diretora de P&D da empresa, à esquerda, com parte de sua equipe em Sumaré (SP)
Yuri Vasconcelos
U Equipamento utilizado para caracterização de fluidos
sar a ciência para melhorar a vida das pessoas e, ao mesmo tempo, trabalhar continuamente na atualização da linha de produtos. Essas diretrizes norteiam a atuação dos 8,2 mil profissionais que trabalham nas unidades de pesquisa e desenvolvimento (P&D) da norte-americana 3M ao redor do planeta. Presente no Brasil há 70 anos, a empresa mantém um centro de classe global no município de Sumaré, a cerca de 100 quilômetros de São Paulo. “Trata-se do principal laboratório de pesquisa da 3M no hemisfério Sul”, destaca Camila Cruz Durlacher, 42 anos, diretora de P&D do grupo no país. A linha de produtos da empresa é diversificada e inclui adesivos, filtros industriais, resinas odontológicas, equipamentos de proteção individual (EPIs), estetoscópios e cabos para transmissão de energia, além dos populares blocos de recado Post-it, as fitas adesivas Durex e as esponjas de limpeza Scotch-Brite. Uma prova de que a inovação é mesmo uma diretriz que orienta o negócio da empresa é o fato de 35% de suas vendas globais virem de produtos lançados nos últimos cinco anos – no Brasil, o percentual é um pouco inferior, de 28%. “Nossa meta global é elevar esse índice para 40% em 2020. A renovação
empresa
fotos léo ramos
3m
agressiva de produtos é uma de nossas marcas”, conta Camila, graduada em Química pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e mestre em Ciências e Engenharia de Materiais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). A métrica interna que direciona os processos de inovação da 3M foi batizada de Índice de Vitalidade de Novos Produtos (NPVI), que mede o percentual das vendas totais que advém de produtos inovadores lançados nos últimos cinco anos, em qualquer lugar do mundo. Criada pelos técnicos da empresa nos anos 1980, hoje ela é usada por outras companhias como Apple, Braskem, Dow e Natura, como forma de medir o nível de inovação das empresas. A constante renovação do portfólio está alicerçada em novos investimentos em P&D. Em 2015, eles responderam por US$ 1,8 bilhão, o equivalente a 6% das vendas mundiais, que atingiram US$ 30,3 bilhões
no ano passado. No Brasil, cerca de 5% do faturamento, de R$ 3,5 bilhões em 2015, foi destinado a P&D. O resultado desse investimento traduz-se na elaboração de dezenas de patentes e no lançamento de 80 a 100 novos produtos por ano no país. “Ao longo de nossa história, já depositamos 5,8 mil patentes [a maioria elaborada em outros países] no Brasil. Desde 2013, contabilizamos uma média anual de 47 patentes e registros de desenho industrial – cerca de quatro por mês”, diz Camila. Globalmente, a empresa conquistou no ano passado sua patente de número 100.000. O esforço contínuo voltado à criação de novas soluções tecnológicas tem sido reconhecido. Em 2015, a 3M foi apontada pela terceira vez como a companhia mais inovadora do país, segundo a pesquisa Best Innovator, realizada anualmente pela consultoria A.T. Kearney com
Centro de P&D Sumaré (SP)
Nº de funcionários 162 profissionais
Principais produtos Adesivos, filtros industriais, resinas, esponjas, estetoscópios e cabos de transmissão de energia
apoio da revista Época Negócios. “A 3M do Brasil é uma fonte de novidades para outras subsidiárias do mundo. A empresa não cria apenas produtos, mas sistemas completos em torno deles”, escreveram os organizadores do Best Innovator na apresentação do prêmio. As inovações da 3M são classificadas em três categorias: incremental, adjacente e radical. As de classe 3, relativas à inovação incremental, têm como exempESQUISA FAPESP 243 z 71
fotos léo ramos
Análise de microrganismos em laboratório de segurança alimentar
plo uma nova versão da Scotch-Brite com melhor desempenho. As de classe 4, da categoria adjacente, são produtos e tecnologias já existentes, mas que sofreram modificações ou passaram a ser direcionados a um novo mercado. Pode ser representada por um filtro industrial, desenvolvido pela empresa com base em outros filtros já existentes do seu portfólio, para o mercado brasileiro de petróleo e gás. A categoria de classe 5, a de inovação radical, representa os itens inéditos criados para atender a um segmento de mercado em que a empresa ainda não atuava, como um líquido supressor de poeira. No Brasil, as novidades são criadas por um time de 162 profissionais, formado por químicos, engenheiros (mecânicos,
químicos, de materiais e físicos), biólogos e farmacêuticos. Metade deles tem ou está cursando pós-graduação – 10% são doutores, 24% mestres, 7% mestrandos e 8% possuem cursos de Master of Business Administration (MBA). A equipe de P&D dá suporte às 23 unidades de negócios da companhia no país, sendo que as maiores contam com laboratórios dedicados. O grupo tem cinco fábricas em São Paulo e uma unidade em Manaus (AM), além das empresas Incavas, no Rio Grande do Sul, e Capital Safety, no Paraná. Ao todo, empregam 3,8 mil funcionários. Com operação em mais de 70 países, a 3M foi criada em 1902 nos Estados Unidos para atuar na exploração mineral com o nome de Minnesota Mining and Manufacturing Co. – daí a explicação pa-
Instituições que formaram os pesquisadores da empresa Camila Cruz Durlacher, química, diretora Universidade Estadual de Campinas (Unicamp): graduação de Pesquisa & Desenvolvimento Universidade Federal de São Carlos (UFSCar): mestrado João Roberto Talamoni, químico, coordenador técnico do Laboratório PSA (Pressure Sensitive Adhesive)
Universidade de São Paulo (USP): graduação Unicamp: mestrado e doutorado (em andamento)
Marcia Ferrarezi, engenheira química, pesquisadora
UFSCar: graduação, mestrado e doutorado Unicamp: pós-doutorado
Rosana Emi Tamagawa, engenheira química, supervisora de laboratório para a divisão de negócios 3M Purification
Escola de Engenharia de Lorena da USP (EEL): graduação Unicamp: mestrado e doutorado Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT): pós-doutorado
Edmilson Silva Cavalcanti, engenheiro químico, pesquisador da equipe de desenvolvimento de aplicação
Universidade de Mogi das Cruzes: graduação
72 z maio DE 2016
ra os três emes de sua marca. O negócio não prosperou e, poucos anos depois, a 3M passou a fabricar abrasivos. Esse foi o primeiro produto da empresa, que hoje é dona de um portfólio formado por mais de 55 mil itens. Mudanças na estrutura
A atividade de P&D no Brasil é uma das mais antigas – surgiu pouco tempo depois da criação da primeira fábrica no país, em 1946. “Nessas sete décadas em que a 3M atua por aqui, o que mudou foi a forma como estruturamos a P&D. No passado, o setor estava atrelado à área de manufatura. Depois, passou a reportar para as divisões de negócio e, no fim dos anos 1990, foi finalmente criada uma diretoria técnica de P&D”, afirma Camila. Um momento importante na trajetória da multinacional no Brasil ocorreu em 2008 com a inauguração do Laboratório de Pesquisa & Desenvolvimento em Sumaré (SP), que unificou as atividades inovativas desenvolvidas na fábrica e integrou a rede mundial de P&D, formada hoje por 35 unidades. Com isso, o Brasil passou a contar com um laboratório de classe global, além de não estar mais voltado exclusivamente à criação de produtos com base em demandas locais, como acontecia até então. Cinco anos depois, em 2013, a empresa investiu US$ 13 milhões na ampliação do Laboratório de P&D e de seu Centro Técnico para Clientes (CTC), este último inaugurado em 2005.
Ao lado, teste para caracterização de grãos minerais usados no desenvolvimento de abrasivos. Abaixo, avaliação morfológica de fitas dupla face
As inovações estão vinculadas, muitas vezes, a testes de validação e treinamento dos clientes
“O CTC é o elemento de ligação entre a P&D e o cliente”, explica o engenheiro químico Edmilson Silva Cavalcanti, 51 anos, responsável pelo desenvolvimento de novas aplicações para os produtos da divisão de fitas e adesivos industriais. “Nele fazemos avaliações de nossos produtos antes da entrega final, realizamos treinamentos com os clientes e executamos testes de validação”, diz Cavalcanti, na 3M desde 1990. Embraer, Natura, Vale e Santander estão entre os principais clientes da multinacional, que também atende montadoras automotivas, fabricantes de itens de linha branca, indústrias farmacêuticas, hospitais
e companhias dos setores de óleo e gás e de alimentos, entre outros. Entre as centenas de inovações criadas pelos pesquisadores da 3M no Brasil, vale destacar um líquido supressor de poeira dirigido às indústrias mineradoras. Esse produto é aspergido nos vagões transportadores de minério de ferro, que são abertos, formando uma película protetora para reter a poeira e impedir a perda de material pelo caminho durante o deslocamento do trem. “Criamos esse produto para o mercado local. Devido ao seu sucesso, hoje é vendido e produzido em outras subsidiárias”, conta o químico João Roberto Talamoni, 56 anos, um dos
pesquisadores mais experientes da 3M. Com 29 anos de casa, é o coordenador técnico de um dos laboratórios da empresa e dedica-se à síntese de polímeros. Outro produto marcante desenvolvido no Brasil foi um filtro industrial de alta vazão projetado para o mercado de petróleo e gás. O desenvolvimento local foi motivado principalmente pela regulamentação de conteúdo nos contratos de concessão no mercado de óleo e gás, com o objetivo de incrementar a participação da indústria nacional em bases competitivas nos programas de exploração e produção. “Estivemos na liderança desse desenvolvimento, que contou com um time envolvendo a 3M Estados Unidos, México e Cingapura”, ressalta a engenheira química Rosana Emi Tamagawa, 43 anos. “O produto nasceu de uma necessidade do mercado nacional, mas hoje está disponível globalmente.” Supervisora de laboratório que dá suporte à divisão de negócios da 3M, Rosana formou-se na Escola de Engenharia de Lorena e tem mestrado e doutorado pela Unicamp e pós-doutorado pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). O time de cientistas brasileiros também está envolvido na criação de uma nova geração de fitas acrílicas dupla face, conhecidas como VHB (very high bond). O produto tem alto poder de adesão para fixar diferentes materiais, reduzindo o tempo gasto para aplicação. Em substituição a pregos, rebites e parafusos, essas fitas são usadas, por exemplo, para colar vidros em fachadas de prédios, chapas na carroceria de ônibus, peças de cabines de aviões e componentes estruturais de produtos da linha branca. “Em janeiro deste ano, viajei para a Coreia do Sul para encontrar a equipe global envolvida no desenvolvimento das novas fitas VHB, previstas para ser lançadas no segundo semestre deste ano”, conta a engenheira química Márcia Ferrarezi, 37 anos, líder do projeto no país, que tem mestrado e doutorado em Ciências e Engenharia de Materiais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). n pESQUISA FAPESP 243 z 73
Medicamentos y
Domingos Zaparolli
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Pesquisadores desenvolvem moléculas capazes de gerar fármacos mais eficientes e combinam drogas já testadas para combater a doença de Chagas e a leishmaniose
O
tratamento para duas enfermidades infecciosas, o mal de Chagas e a leishmaniose, está ganhando novas drogas formuladas por pesquisadores brasileiros. Essas doenças são classificadas como negligenciadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) por não receberem grandes investimentos da indústria farmacêutica no desenvolvimento e comercialização de medicamentos. Elas afetam principalmente as populações de baixo poder aquisitivo das regiões tropicais do planeta. O combate a essas doenças pode estar no desenvolvimento de moléculas com novas formulações farmacêuticas, associação de drogas e também em formas menos tóxicas para aplicação de medicamentos já existentes. A doença de Chagas, causada pelo protozoário Trypanosoma cruzi, é transmitida pelo inseto barbeiro e atinge, segundo estimativas da OMS, 8 milhões de pessoas no mundo, com 12 mil mortes por ano e 65 milhões de pessoas com risco de exposição. A leishmaniose, transmitida por insetos hematófagos conhecidos como flebótomos ou flebotomíneos, tem duas formas de manifestação: a visceral, que pode ser fatal, e a cutânea. A OMS estima que existam 12 milhões de infectados no mundo, com 30 mil mortes por ano e 350 milhões de pessoas vivendo em áreas de risco. Um dos candidatos ao novo medicamento foi identificado pelos pesquisadores Wagner Vilegas, do Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em São Vicente (SP), Emerson Ferreira Queiroz, da Universidade de Genebra, na Suíça, e Cláudia Quintino da Rocha, da Universidade Fede-
imagens André tempone / instituto adolfo lutz
Novos remédios para velhas doenças
No microscópio eletrônico de transmissão,Trypanosoma cruzi em dois momentos sob o efeito do medicamento sertralina: com 30 minutos, na outra página, e com uma hora de tratamento (ao lado)
ral do Maranhão (UFMA). Eles isolaram uma nova família de moléculas a partir de uma planta do Cerrado, a Arrabidaea brachypoda, conhecida como cervejinha-do-campo e usada contra cálculos renais. A partir dos resultados de pesquisas in vitro e in vivo, com animais de laboratório, os pesquisadores avaliaram que uma molécula da família tem potencial para o desenvolvimento de um novo medicamento. “Um dado importante é que a substância não apresentou toxicidade nas doses testadas”, diz Cláudia. O benznidazol, droga mais usada hoje no Brasil contra a doença de Chagas, gera fortes efeitos colaterais, com reações alérgicas cutâneas, enjoos e vômitos. Cláudia Rocha afirma que a nova molécula testada pode ser produzida em laboratório, porque a rota sintética foi elaborada durante seu estágio de pós-doutorado no grupo da Universidade de Genebra. A equipe também já depositou o pedido de patente no Brasil, com extensão internacional. Por ora, os pesquisadores contam com o apoio da FAPESP e da ONG Drugs for Neglected Diseases (DNDi), instituição que é referência no
suporte a pesquisas nessa área. A equipe ainda busca parceiros na indústria farmacêutica para viabilizar os testes clínicos em seres humanos. O professor José Rodrigues Coura, chefe do Laboratório de Doenças Parasitárias do Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz), do Rio de Janeiro, diz que a iniciativa dos pesquisadores é importante diante das limitações das drogas existentes. “Não temos um medicamento ideal para o tratamento da doença de Chagas. Várias tentativas empíricas com antimaláricos, antibióticos e mais de 30 drogas não deram resultados”, diz. Como relata Coura, somente 50 anos depois da descoberta da doença de Chagas, em 1909, surgiu a primeira droga efetiva, quando o paulistano Zigman Brener, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte, mostrou que o nitrofurano furacin curava 95% dos camundongos com T. cruzi. Entretanto, essa droga produzia uma polineuropatia – distúrbio neurológico – grave nos pacientes tratados e foi proibida. Aperfeiçoados, os nitrofuranos levaram à droga nifurtimox. Logo depois surgiu
o benznidazol. As duas substâncias, diz o professor, podem curar de 70% a 80% dos casos agudos e 20% dos casos recentes ou crônicos, mas com um longo tratamento, 60 dias, e reações tóxicas importantes, obrigando a interrupção de 10% dos tratamentos. Coura avalia que a pesquisa com Arrabidaea brachypoda entrará agora na fase decisiva para saber se é mesmo funcional. “De cada 2 mil drogas promissoras, apenas uma se torna produto para tratamento humano”, diz. Reposicionamento de fármacos
O pesquisador André Tempone, do Instituto Adolfo Lutz, conduz outra linha de pesquisa, com equipes multidisciplinares trabalhando com o reposicionamento de fármacos já existentes e associações terapêuticas. Uma vantagem dessa abordagem, segundo Tempone, é reduzir o custo e o tempo da pesquisa, porque a droga utilizada já passou por testes toxicológicos. No momento ele estuda o potencial terapêutico de antidepressivos orais com base na sertralina para a leishmaniose visceral e cutânea e para a doença de Chagas. pESQUISA FAPESP 243 z 75
“Fazemos a triagem contínua de fármacos já existentes no mercado. Selecionamos um candidato a ganhar uma nova função quando a concentração que mata o parasita fica abaixo de 10 micromolares [medida equivalente à milionésima parte do molar, unidade usada para medir a concentração de moléculas]”, diz Tempone. O trabalho desenvolvido indicou que a sertralina se mostrou potente in vitro, em células, contra Leishmania infantum, agente da forma fatal da doença no Brasil, a leishmaniose visceral. O mesmo foi verificado para Leishmania amazonensis, uma das espécies que causa a forma tegumentar no Brasil. “E verificamos essa atividade também para T. cruzi, em que a sertralina matou o parasita e preservou a célula hospedeira.” Como frequentemente os resultados in vitro não se repetem in vivo, os testes com animais já começaram e estão sendo realizados pelo Instituto Adolfo Lutz, pelas universidades de Dundee, na Escócia, de San Pablo, na Espanha, e na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (FCF-USP), com o apoio da FAPESP. Se o resultado for positivo, o passo seguinte, relata Tempone, será usar a sertralina com o benznidazol para o combate à doença de Chagas. “A associação pode ampliar a eficácia, com uma redução da toxicidade e ainda obter uma menor resistência do parasita”, diz. Estudos pré-clínicos iniciais indicaram atividade no modelo animal de leishmaniose visceral e da doença de Chagas aguda, reduzindo o número de parasitas. “Esperamos que, utilizando diferentes doses com base nos estudos em andamento, possamos chegar a uma terapia que elimine mais de 95% dos parasitas no modelo animal”, diz Tempone. Para o combate à leishmaniose, a sertralina será testada em associação com as drogas anfotericina B e miltefosina, sendo que essa segunda droga ainda está em estudo clínico no Brasil. No país, o medicamento mais utilizado no combate à leishmaniose é um composto com antimônio, cuja descoberta de seu uso para esse fim foi do pesquisador paraense Gaspar Vianna, em 1912. O antimônio, informa Tempone, trata o paciente, mas não elimina 100% o parasita, e ainda possui efeitos colaterais adversos graves, principalmente para doentes cardíacos e renais. 76 z maio DE 2016
Molécula extraída de uma espécie de pimenta poderá se transformar em droga para combater a leishmaniose
O pesquisador também utiliza a biodiversidade brasileira como fonte de pesquisas para o desenvolvimento, ainda inicial, de duas moléculas bioativas para protótipos de fármacos contra as duas doenças tropicais. Uma, em parceria com Roberto Berlinck, da USP São Carlos, que prevê o desenvolvimento de moléculas a partir de organismos marinhos. A outra é feita com João Lago, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e tem como base a planta do Cerrado Nectandra leucantha, conhecida como canela-seca ou canela-branca. Nanopartículas na pele
O foco da pesquisadora Bartira Rossi-Bergmann, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é o combate à leishmaniose cutânea, que, apesar de não ser fatal, traz graves consequências sociais para 1,2 milhão de infectados por ano no mundo. Hoje o combate à moléstia é feito com injeções diárias de antimônio. A aplicação é realizada apenas em postos de saúde e hospitais. Além dos fortes efeitos colaterais, a dificuldade de acesso a centros de saúde, principalmente por parte de moradores de comunidades isoladas, provoca numerosas desistências do tratamento. O trabalho da professora Bartira prevê a aplicação de um medicamento em dose única, por meio de um implante de nanopartículas no local infectado, com a liberação gradual da droga na pele.
Bartira estuda duas possibilidades de drogas a serem utilizadas, que poderão, no futuro, ser conjugadas em um único implante. A mais promissora utiliza a síntese de uma molécula identificada da planta Piper aduncum, da família das pimentas. A molécula chalcona CH8, com pedido de patente da UFRJ junto com a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), tem característica lipofílica – solúvel em lipídios – que a torna mais fácil de encapsular. Mas, por tratar-se de uma molécula nova, ainda terá que passar por testes em animais e seres humanos. O estudo conta com apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). A cientista também aposta em uma linha de desenvolvimento que contaria com aprovação mais rápida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Para isso vai utilizar a droga anfotericina B, que já é usada no tratamento da leishmaniose, embora essa seja de difícil encapsulamento. Segundo Bartira, testes realizados com camundongos indicam que o implante da anfotericina B na pele não gera os efeitos colaterais comuns ao medicamento, quando a droga é injetada no músculo. Tanto as partículas de chalcona como as de anfotericina B estão protegidas com depósito de patente. As partículas serão agora sintetizadas em maior escala seguindo as normas de boas práticas de fabricação (BPF) para a produção de um lote-piloto certificado. Na sequência virão os testes pré-clínicos e clínicos em seres humanos. “Agora, precisaremos de apoio financeiro para dar continuidade”, diz Bartira. A estimativa é de um investimento de R$ 7 milhões até a conclusão da fase 1 dos testes pré-clínicos. “Estamos conversando com agências de fomento e também com indústrias como a Biolab, GlaxoSmithKline e GC-2”, diz. A equipe da professora Bartira também criou uma startup, a LeishNano, com o objetivo de atrair investidores para o projeto. n
Projetos 1. Fitoterápicos padronizados como alvo para o tratamento de doenças crônicas (nº 2009/52237-9); Modalidade Programa Biota – Projeto Temático; Pesquisador responsável Wagner Vilegas (Unesp); Investimento R$ 1.805.600,07 e US$ 1.163.945,04. 2. Estudo pré-clínico racional de novos candidatos a fármacos em protozooses negligenciadas utilizando abordagens farmacocinéticas (nº 2015/23403-9); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável André Gustavo Tempone Cardoso (Instituto Adolfo Lutz); Investimento R$ 147.545,00.
Vacina contra esquistossomose Imunizante desenvolvido pela Fiocruz está pronto para a fase 2 de testes clínicos
Marcos de Oliveira
fotos 1 Peter Ilicciev / fiocruz 2 Gutemberg Brito / fiocruz
A
candidata a uma vacina que poderá proteger os seres humanos da esquistossomose passou na fase inicial dos testes clínicos. Eles são necessários para que possa ser comprovada a segurança da futura vacina. Totalmente desenvolvida no Brasil, ela tem como alvo o verme Schistosoma mansoni, que provoca a doença. A transmissão ocorre no consumo de água contaminada com larvas do parasita. Febre, dor de cabeça, falta de apetite, calafrios, tosse e diarreia são alguns dos sintomas da doença, também chamada de barriga-d’água porque provoca um inchaço no abdômen, se não for tratada com medicamentos. A esquistossomose atinge cerca de 7 milhões de brasileiros e 200 milhões de pessoas no mundo, principalmente na África. Outros 800 milhões estão expostos ao risco de contrair a enfermidade no planeta. A vacina foi desenvolvida na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Rio de Janeiro, sob a coordenação da médica e pesquisadora Miriam Tendler, que esteve à frente dos estudos por 30 anos. O imunizante usa um antígeno – substância que estimula a produção de anticorpos – para neutralizar o ataque do parasita no corpo humano. O antígeno é uma proteína chamada de Sm14 e foi escolhido em 2014 pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um dos projetos prioritários no mundo para doenças que atingem as populações mais carentes.
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Na fase 1 dos testes clínicos a vacina foi administrada em seres humanos para verificar seu grau de segurança. “Testamos em 20 homens e 10 mulheres sadios no estado do Rio de Janeiro; os resultados foram muito bons e nos indicaram a passagem para a próxima fase, com mais pessoas”, explica Miriam. Na primeira fase, o estudo contou com a parceria da Universidade de Washington e do Instituto de Pesquisa em Doenças Infecciosas (Idri), nos Estados Unidos. “Foram analisados 486 parâmetros relativos à segurança da vacina.” Parte do estudo foi publicado em janeiro na revista Vaccine. A fase 2 está prevista para começar neste ano e deverá ser feita com voluntários no Brasil e na África. Os testes da fase 1 consumiram R$ 5 milhões, financiados por meio de parceria público-
-privada (PPP) com a empresa brasileira Ourofino, de Minas Gerais, especializada em medicamentos veterinários. No início deste ano, a Ourofino cedeu os direitos que tinha sobre a vacina humana, por ter licenciado o imunizante da Fiocruz, e ficou apenas com a versão veterinária. A Orygen, uma joint venture formada pelas empresas Biolab e Eurofarma, também brasileiras, assumiu a vacina humana. A segunda fase terá investimentos das empresas, da Fiocruz e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), que no total somam US$ 4,5 milhões. n
Artigo científico Santini-Oliveira, M. et. al. Schistosomiasis vaccine candidate Sm14/GLA-SE: Phase 1 safety and immunogenicity clinical trial in healthy, male adults. Vaccine. v. 34, p. 586-94. 20 jan. 2016.
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Produto feito na Fiocruz, no Rio de Janeiro. Se aprovado, será fabricado pela brasileira Orygen pESQUISA FAPESP 243 z 77
Controle de pragas y
Bioinseticida feito de microrganismos Vermes e bactérias atuando juntos são matérias-primas
D
epois de 15 anos de pesquisa, uma nova tecnologia para o controle biológico de pragas está pronta para uso comercial. Trata-se de um bioinseticida feito a partir de nematoides, vermes milimétricos que vivem no solo, para uso no combate a insetos e outros organismos que atacam cultivos como os de cana-de-açúcar, plantas ornamentais e eucalipto. O novo inseticida biológico foi desenvolvido pelo engenheiro agrônomo e entomologista Luís Garrigós Leite, da unidade de Campinas do Instituto Biológico, vinculado à Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo. Ele começou o trabalho em 2002 e, no ano seguinte, o estudo começou a ser feito em parceria com a empresa Bio Controle, de Indaiatuba (SP), que atua na área de monitoramento e controle de pragas agrícolas, por meio de um projeto do Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP. A empresa está prestes a comercializar o produto para os agricultores. A comercialização dos nematoides será feita com os vermes envoltos em diatomita, 78 z maio DE 2016
um pó de origem mineral, que deixa os vermes úmidos e em estado de latência. Só voltam à atividade quando o produto é diluído em água. “Os nematoides são usados nos Estados Unidos e na Europa para o controle principalmente de pragas de solo, que atacam a raiz, e de ambientes crípticos, aqueles fechados e com pouca luz, como furos em plantas feitos por brocas, por exemplo”, conta Leite. Para criar o bioinseticida, o primeiro passo foi isolar e selecionar os nematoides de interesse. Grande parte desses vermes é nociva a muitas culturas agrícolas como as de soja e cana. Leite escolheu as espécies que seriam úteis como os vermes dos gêneros Steinernema e Heterorhabditis e as bactérias dos gêneros Xenorhabdus e Photorhabdus, respectivamente, que formam uma simbiose natural para destruir as pragas das culturas. “Para cana-de-açúcar nós trabalhamos principalmente com Steinernema brazilense visando o controle do bicudo [Sphenophorus levis], que ataca essa planta. Para cultivo protegido de plantas ornamentais e cogumelos, utilizamos Steinernema feltiae, e Heterorhabditis indica, e Steiner-
nema rarum para controlar fungus gnat [Bradysia sp.].” Apesar do nome, fungus gnat é um inseto. Leite explica que quando os nematoides encontram os insetos eles penetram no corpo deles por seus orifícios naturais e, uma vez dentro do organismo, liberam as bactérias que causam septicemia, matando-os em 48 horas. “A simbiose é uma associação vantajosa para as duas espécies”, diz. “As bactérias não conseguem sobreviver em ambientes livres, apenas no intestino dos nematoides. Além de abrigá-las, eles as levam até um novo hospedeiro. Em troca, as bactérias produzem enzimas que digerem o tecido do inseto, disponibilizando alimento para o verme.” larga escala
Uma das maiores dificuldades para criar o novo bioinseticida foi desenvolver uma forma de produzir os nematoides em larga escala, a um custo que tornasse o produto competitivo em relação aos inseticidas químicos. Para isso, Leite passou um ano, entre 2014 e 2015, no Departamento de Agricultura dos Estados Uni-
fotos 1 luís leite / instituto biológico 2 miguel boyayan
de produto para uso comercial na lavoura
dos (Usda). “Foi para desenvolver meios de cultura e processos na produção in vitro de nematoides entomopatogênicos, os que estão em simbiose com as bactérias, procurando tornar viável a produção com baixo preço, para atender grandes lavouras, como a de cana”, conta. Usando um meio de cultura composto por gema de ovo, óleo vegetal e extrato de levedura, Leite diz que o custo de produção de nematoides é inferior a R$ 10 para o tratamento de 1 hectare. A esse valor devem ser acrescentados o da mão de obra e da logística, por exemplo, o que ainda torna o preço do produto competitivo com o dos agroquímicos. “No Brasil, muitos agricultores pensam que o controle biológico deve ser mais barato que o químico”, diz. “Essa mentalidade não é a mesma na Europa, onde os produtores rurais dão mais valor ao controle biológico devido a medidas restritivas aplicadas ao uso de produtos químicos, por causa de seus efeitos danosos.” Leite cita outras vantagens do uso de nematoides em vez dos agroquímicos. Entre elas estão a não indução de re-
sistência aos insetos, a segurança para o ambiente, para trabalhadores rurais e consumidores, uma vez que não faz mal à saúde humana. “Os vermes têm grande persistência no ambiente. Quando 100 deles invadem um inseto eles se alimentam e se multiplicam dentro do cadáver por até três gerações, podendo chegar a 100 mil indivíduos. Depois de esgotada essa fonte de alimento, eles saem e procuram outra praga para invadir e repetir o processo”, explica Leite. “Nematoides são muito utilizados no mun1 do, mas ainda pouco no Brasil”, diz José Roberto Parra, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), especialista em controle biológico. “Há dificuldades para criá-los em massa porque ainda não dominamos completamente a tecnologia de produção. Uma vez sanado esse problema, eles terão as mesmas vantagens de qualquer microrganismo usado no controle biológico de praga”, explica Parra. “A tecnologia está definida e aberta a qualquer empresa que tenha interesse, mas a produção em
larga escala ainda precisa evoluir. Por exemplo, a vida útil dos nematoides comerciais é de dois a três meses e sua aplicação depende da presença de chuva, o que complica a logística de distribuição em períodos de seca”, avalia Luís Leite. A Bio Controle aposta principalmente na cana. “Somos a única empresa que tem e está registrando um produto à base de nematoides entomopatogênicos no Brasil”, garante Fábio Silber Schmidt, pesquisador da empresa. “É o Bio Bacteriophora, feito à base do nematoide Heterorhabditis bacteriophora, que terá como um dos alvos o bicudo-da-cana.” A previsão da empresa é de que entre 2017 e 2018 estará com o registro definitivo, liberada para comercializar o produto. n Evanildo da Silveira
Projetos 1. Avaliação de metodologias e técnicas para a produção industrial de nematoides entomopatogênicos e estudo de mercado para a comercialização desses agentes (nº 2003/02137-1); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisadora responsável Carmen Maria Ambros Ginarte (Bio Controle); Investimento R$ 337.818,00. 2. Nematoides entomopatogênicos: Produção massal e potencial de uso no controle biológico de pragas (nº 2002/09506-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Luís Garrigos Leite (Instituto Biológico); Investimento R$ 17.400,00. 3. Produção massal in vitro de nematoides entomopatogênicos: Seleção de meios, produção bifásica, formulação e aproveitamento do resíduo industrial (nº 2014/006514); Modalidade Bolsa no Exterior – Regular; Pesquisador responsável Luís Garrigos Leite (Instituto Biológico); Investimento R$ 119.425,19.
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Produção de nematoides no Instituto Biológico de Campinas. Acima, cultivo de bactérias
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humanidades Justiça y
Déficit de deliberação Regras e práticas internas podem prejudicar qualidade e quantidade de debates dos ministros do STF Mauricio Puls e Márcio Ferrari
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m uma democracia representativa, a legitimidade dos cargos eletivos estaria assegurada constitucionalmente pela confiança que a população deposita, por meio do voto, em seus representantes. No Poder Judiciário os integrantes de sua cúpula nunca são eleitos, embora, no caso do Supremo Tribunal Federal (STF), sejam nomeados pelo presidente da República e a indicação passe por aprovação do Senado. Da corte da qual saem as decisões mais importantes do sistema judicial espera-se que a legitimidade emane do saber de seus 11 ministros. “Uma das fontes de legitimidade é a qualidade das deliberações do tribunal”, diz Virgílio Afonso da Silva, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Com decisões bem fundamentadas e centralizadas em poucas mãos, o STF, em seu papel principal de guardião da Constituição, faria o escrutínio necessário das leis votadas no Congresso, numerosas e muitas vezes confusas ou contraditórias entre si. O problema reside em saber se as deliberações do Supremo são, de fato, as melhores possíveis. Essa foi a motivação do estudo “A prática deliberativa do STF”, que Silva iniciou em 2011 e está em fase de finalização. As entrevistas da pesquisa
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tinham por objetivo compreender como os próprios ministros do STF encaram o processo deliberativo do qual participam, uma vez que, segundo o pesquisador, “cada ministro novo se vê compelido a seguir o rito ditado pela tradição e pelo regimento interno”. Silva entrevistou 17 integrantes e ex-integrantes do STF, assegurando que as informações seriam usadas de forma anônima, a fim de deixar “os ministros à vontade para expor suas opiniões” e, com isso, retratar o processo decisório do tribunal. O estudo conclui que regras e práticas internas do STF prejudicam a qualidade das deliberações. Não se trata de defender um modelo único de processo decisório. “As sessões podem ser públicas ou reservadas, o tribunal pode permitir ou proibir votos divergentes, produzir decisões únicas ou que apresentem os votos de todos os integrantes, ter liberdade nas escolhas de casos ou não”, diz Silva. O professor Diego Werneck Arguelhes, da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-RJ), lembra que as deliberações da suprema corte alemã, por exemplo, são sempre secretas, regra que talvez sofresse rejeição se fosse adotada no Brasil. “No entanto, a opinião pública confia naquelas pessoas por defenderem ideias sedimentadas em décadas de atuação”,
ilustrações nelson provazi
afirma. No tribunal constitucional alemão as decisões são pronunciadas apenas pelo presidente da corte e de modo quase sempre consensual. “O consenso é visto como sinal de que a decisão é a melhor tentativa de abordar a questão, feita por especialistas bem-intencionados.” É nesse ponto que a diferença entre os processos decisórios no Legislativo e no Judiciário fica mais clara. Enquanto os parlamentares foram escolhidos para expressar interesses parciais, por terem sido eleitos para representar segmentos da população, os ministros do STF têm, segundo Silva, a obrigação de interpretar e aplicar a Constituição de acordo com a convicção de que a Carta deve ser a expressão da razão pública, conceito do filósofo do direito norte-americano John Rawls (1921-2002) que se refere ao consenso em torno de uma concepção de justiça compartilhada pelo conjunto da sociedade. Uma deliberação de boa qualidade tomada em conjunto pressupõe enunciar e ouvir argumentos para que o grupo chegue a uma decisão comum, e não apenas à da maioria de seus integrantes. No caso do STF, vários fatores têm prejudicado a qualidade das deliberações. Os problemas começam no relator, tema analisado por Silva em artigo publicado no
ano passado na Revista Estudos Institucionais, periódico vinculado à Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na opinião da maioria dos ministros entrevistados pelo autor, o relator tem um papel decisivo no processo no STF, pois ele “baliza todo o debate”. Alguns ministros distinguem o papel do relator “nos casos corriqueiros” e naqueles “que atraem a opinião pública”. Um deles esclareceu que, quando a matéria não chama a atenção, o relator tem um papel decisivo, pois os demais tendem a acompanhar seu voto; contudo, quando o tema é polêmico, o voto do relator é apenas “um voto qualquer”, pois cada um dos demais ministros leva o seu já escrito. Esse é, como ressaltou Silva em outro artigo, publicado no International Journal of Constitutional Law, um fator que prejudica muito o processo de deliberação. O debate tende a ter um papel irrelevante, “na medida em que cada membro componente do tribunal se prepara para votar como se relator fosse”, nas palavras de um dos ministros. Segundo Silva, isso ocorre devido a uma prática peculiar do STF: o relator mantém sigilo sobre seu voto até o momento da sessão. Ele divulga apenas o relatório com os dados sobre o pESQUISA FAPESP 243 z 81
A instância máxima da Justiça STF foi criado em 1890, sob inspiração da Suprema Corte norte-americana Casos de insconstitucionalidade de onde vêm as ações
composição
Ministros nomeados pelo presidente da República após aprovação pelo Senado
Infrações penais comuns daqueles que têm foro privilegiado (presidente da República, vice-presidente, membros do Congresso, ministros e procurador- -geral da República)
O presidente do STF tem mandato de dois anos
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julgamentos Casos que galgaram todas as instâncias e tiveram repercussão geral
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Plenário Encontro presencial (ações mais importantes, inclusive as de inconstitucionalidade)
Plenário virtual Votação eletrônica (ações sem maiores implicações para a sociedade)
sequência No plenário
Turmas São formadas por dois grupos de cinco ministros (o presidente não participa) que deliberam sobre ações como pedidos de liberdade, habeas corpus e extradições
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1 Proposições de ação constitucional pelas
pessoas e instituições listadas no artigo 103 da Constituição
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2 Definição do relator (por sorteio) 3 Pedidos de informação e pareceres 4 Elaboração do voto do relator 5 Inclusão na pauta (definida pelo presidente do STF)
6 Leitura do relatório 7 Sustentações orais 8 Leitura dos votos dos ministros e votação (por ordem decrescente de antiguidade) *
9 Acórdão: decisão final do caso 5
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processo, mas não os seus argumentos. Como os demais ministros ignoram a posição do relator, precisam elaborar “do zero” os próprios votos nos casos polêmicos. Um dos ministros entrevistados declarou que, “se o relator enviasse seu voto com antecedência, haveria uma clara economia de tempo”. Se alguém estivesse de acordo com o relator, bastaria seguir seu voto, o que liberaria tempo para tratar dos demais processos. Ao mesmo tempo, isso propiciaria um diálogo com os ministros que divergissem de sua posição, pois os argumentos contrários partiriam de um solo comum. “Hoje o que temos é a somatória de 11 votos, e não decisões decorrentes de discussões aprofundadas entre os ministros”, conclui Oscar Vilhena Vieira, diretor da Escola de Direito da FGV de São Paulo. 82 z maio DE 2016
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“A divulgação do voto do relator, mesmo que desejada por boa parte dos ministros, ainda suscita alguns receios”, afirma Silva. “Há ministros que não querem correr o risco de divulgar seus argumentos com antecedência para que outros ministros não possam elaborar contra-argumentos mais robustos.” Mas o voto levado pronto também conta com defensores que vão além da praticidade. “O ministro relator levar o seu voto escrito me parece boa medida, revela que o magistrado estudou bem as teses jurídicas postas no recurso”, declarou à Pesquisa FAPESP o ex-ministro Carlos Velloso, membro do STF entre 1990 e 2006. “O ideal seria que, nos casos mais complexos, houvesse sessão reservada, a fim de debater a matéria, como ocorre na Suprema Corte norte-americana.”
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Pedido de vista: pode ser requerido por qualquer ministro (com exceção do relator) a qualquer momento do processo, independentemente da ordem de voto de cada um. O julgamento fica então suspenso até a liberação pelo autor do pedido de vista
Outros ministros do STF reconhecem que a ausência de um debate prévio é uma das causas do número elevado de votos discordantes. Alguns observaram que nem sempre foi assim. Antigamente, as sessões de votação eram precedidas pelas chamadas sessões de conselho, nas quais os casos eram apresentados previamente, o que permitia que os ministros conhecessem a posição uns dos outros. Isso ajudava a diminuir as divergências. Mas tais sessões caíram em desuso após a presidência (2001-2003) de Marco Aurélio Mello – nomeado em junho de 1990 para o tribunal –, que não as apreciava. ALTA EXPOSIÇÃO
Outro fator que aparentemente pesa nos julgamentos é o elevado grau de exposição a que os ministros estão submetidos. Desde 2002, as sessões do STF são transmitidas ao vivo pela TV Justiça, o que deixa os magistrados expostos diretamente ao grande público. Por essa razão, de acordo com Silva, hoje os integrantes do Supremo parecem estar mais preocupados com as opiniões vigentes fora do tribunal do que com os argumentos de seus colegas, por estarem preocupados com a reputação pública, que se baseia em grande parte no desempenho dos membros do tribunal como oradores. “Os magistrados são homens, não são anjos, e a vaidade é própria do ser humano”, diz Velloso. “A transmissão pela televisão tem banalizado os julgamentos e o próprio tribunal.” Conrado Hübner Mendes, professor da Faculdade de Direito da USP, considera grave o grande aumento de exposição pública. “A qualidade das deliberações piorou muito e expôs o tribunal à cacofonia das opiniões individuais dos ministros a respeito de qualquer assunto público sobre o qual são perguntados pela imprensa.” Virgílio Afonso da Silva considera que esse grau de exposição acentuou o individualismo dos ministros e tem prejudicado o funcionamento do colegiado. Sem tanta publicidade, seria razoável supor que os ministros se sentissem mais à vontade para discutir os argumentos e eventualmente mudar de opinião. Mas, diante das câmeras de TV, a disposição para acolher argumentos contrários diminui consideravelmente – especialmente nos casos mais polêmicos. Seria possível aprimorar o processo decisório no STF? “Algumas pequenas alterações já fariam uma enorme diferença”, diz Silva. “O debate antes da tomada de votos é uma possibilidade prevista no regimento, mas é pouco aplicada. Os ministros dizem que o problema é a carga de trabalho, que realmente é grande, mas penso que o STF poderia escolher os casos mais importantes e promover debate prévio.” Por várias razões, entre elas o aumento de atribuições do STF pela Constituição de 1988,
a quantidade de casos que chega ao tribunal é enorme. Em 2014, o número de processos novos foi de 78.110. “O Supremo ainda não compreendeu que só deve julgar o que Pesa nos votos interessa a milhões de pessoas; é dos ministros isso que a Constituição quer”, avalia Velloso. O ex-ministro acreso alto grau de centa que uma das atribuições do tribunal, julgar os membros do exposição Poder Executivo, do Congresso e o procurador-geral da República, a que estão “transformou o Supremo em corte submetidos com criminal”. Para Oscar Vilhena Vieira, o a exibição aperfeiçoamento do processo decisório exigiria uma redução do dos julgamentos número de competências do STF (ver quadro). “O acúmulo de tapela TV refas vem sendo enfrentado com a crescente ampliação das decisões monocráticas”, analisa Vilhena, referindo-se àquelas em que a decisão fica a cargo de apenas um magistrado. “Pelo fato de se tratar de um tribunal irrecorrível e, portanto, aquele que corre o risco de errar em último lugar, seria importante que as decisões fossem majoritariamente de natureza coletiva.” O excesso de trabalho teria origem, pelo menos em parte, nos procedimentos habituais do STF, argumenta Diego Werneck Arguelhes. “O Supremo sempre se recusou a perder competências”, diz. “Hoje alguns ministros começam a aceitar que será necessário fechar algumas portas. O que um tribunal constitucional deve fazer é discutir teses, não ser o corretor geral de injustiças da República.” O grande problema do STF, em sua opinião, é a inconstância nos próprios procedimentos, por “falta de iniciativa para sistematizar regras e colocá-las em prática”, ficando a cargo do relator decidir caso a caso. Para o pesquisador, falta transparência, por exemplo, no modo como a pauta é escolhida. “Qualquer proposta de mudança esbarra em dois problemas básicos: poderes individuais exacerbados e inexistência de instrumentos claros para controlar a conduta de seus integrantes”, afirma. n
Projeto A prática deliberativa do Supremo Tribunal Federal (nº 2011/01066-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Virgílio Afonso da Silva (Faculdade de Direito – USP); Investimento R$ 20.414,80.
Artigos científicos Silva, V. A. Um voto qualquer? O papel do ministro relator na deliberação no Supremo Tribunal Federal. Revista Estudos Institucionais. v. 1, n .1, 2015. Silva, V. A. Deciding without deliberating. International Journal of Constitutional Law. v. 11, n. 3, 2013.
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educação y
Alunos da escola Caetano de Campos, em São Paulo: diretores no início do século XX eram membros da Liga dos Professores Católicos
Religião e política no ensino Congregações católicas europeias supriram demanda por escolas no Brasil entre o fim do século XIX e a segunda metade do XX Christina Queiroz
ARQUIVO / ESTADãO CONTEúDO / AE
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otivadas pela secularização dos estados europeus, congregações católicas vieram para o Brasil dos anos 1890 até a segunda metade do século XX, trazendo conhecimentos técnicos em áreas como educação, saúde, produção editorial e arquitetura. No campo educacional, as congregações ofereceram conhecimento e experiência no ensino, tanto na elaboração de material didático quanto no desenvolvimento organizacional das escolas. Durante longo período da história republicana, o Estado brasileiro se apoiou nos serviços da Igreja para cumprir algumas de suas obrigações. Essas foram as conclusões do projeto temático “Congregações católicas, educação e Estado nacional no Brasil (1840-1950)”, coordenado por Agueda Bernardete Bittencourt, professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (FE-Unicamp). O projeto também realizou o levantamento das congregações católicas que atuaram
e atuam no Brasil, mapeando a existência de aproximadamente 500 delas. As informações sobre essas missões estarão acessíveis, nos próximos meses, em um banco de dados aberto à consulta pública. Em decorrência do projeto coordenado pela professora Agueda, que avançou além do período enunciado no título, chegando aos anos 1990, foram realizados colóquios anuais no exterior e no Brasil e elaborados dossiês publicados nas revistas Brasileira de História da Educação e Pro-posições. Esta publicará em 2017 um número especial com artigos de pesquisadores envolvidos no projeto. Estudos acadêmicos anteriores abordaram a história da Igreja no Brasil e mesmo da vida religiosa, sem contudo analisar o impacto da imigração em massa sobre as políticas do Estado brasileiro. Havia, também, pesquisas sobre o trabalho de congregações específicas, mas sem abarcar a presença das missões de maneira ampla, como propôs o projeto. pESQUISA FAPESP 243 z 85
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Segundo a pesquisadora, as congregações trouxeram e adaptaram à realidade local conhecimentos pedagógicos adquiridos durante os anos de trabalho em seus países de origem, participando do estabelecimento de serviços básicos em educação no Brasil. Nas monarquias europeias, assim como durante o Império no Brasil, a Igreja era vinculada ao Estado. Na medida em que países como França e Itália se tornaram repúblicas, procederam à separação entre Igreja e Estado, e a sobrevivência de ordens e mosteiros tornou-se muito difícil. Uma profunda reforma transformou ordens e mosteiros em congregações, levando sua missão religiosa a ampliar-se, acrescentando uma orientação social. Com as restrições de atuação na Europa, cujo processo de laicização se acelerava, no fim do século XIX a Igreja buscou alternativas fora do continente. Um marco significativo desse processo ocorreu com o Concílio Plenário Latino-americano de 1901, convocado pelo papa Leão XIII, no qual foi regulamentada a atuação da Igreja em países da América Latina, onde se deveria aproveitar a herança católica dos colonizadores europeus e também combater a entrada dos protestantes. No Brasil, apesar de a Igreja ter sido atuante desde a chegada dos portugueses, sua presença local havia se dado, princi86 z maio DE 2016
Capela do Cristo Operário, em São Paulo: referência à orientação assistencial da Igreja a partir dos anos 1950
palmente, por meio das paróquias, dos seminários de formação do próprio clero e de organizações leigas, como as ordens terceiras e as irmandades. Após a República, intensifica-se e profissionaliza-se a atividade da Igreja por meio do trabalho das congregações estrangeiras imigradas. “As congregações criaram escolas, dirigiram hospitais, fundaram santuários e editoras para uma atividade social que justificasse sua existência”, afirma Agueda. CULTURA ESTRANGEIRA
No começo da pesquisa, que teve início em 2012 e será finalizada em junho, o grupo de pesquisadores trabalhava com a hipótese de que as congregações imigraram por terem sido expulsas dos países europeus. Mas, com o desenvolvimento dos estudos, constatou distintos interesses em jogo nesse processo. A França, por exemplo, embora tenha restringido o espaço das congregações no seu sistema educacional, apoiou a vinda delas ao Brasil e a outros países da América Latina. “O Estado francês tinha interesse em difundir a língua e a cultura francesas”, diz a pesquisadora.
Por outro lado, enquanto as repúblicas europeias se fechavam para as congregações católicas, o Estado brasileiro, incapaz de atender toda a população em um sistema educacional público, deixava brechas na oferta escolar, que foram em parte preenchidas pelas congregações europeias. Nesse processo o clero, ligado às dioceses brasileiras e interessado em modernizar o catolicismo local, atento a essas lacunas, convidava as organizações religiosas estrangeiras para suprir as demandas, conforme a especialidade de cada uma: criação e gerenciamento de estabelecimentos de ensino, produção de material pedagógico, edição e publicação de livros, qualificação de professores, entre outras. Agueda explica que, na virada do século XIX para o XX, a instrução pública no Brasil era limitada à educação primária, umas poucas escolas secundárias e alguns cursos superiores isolados. Com a chegada das congregações católicas, foram fundadas escolas para todas as etapas da educação. Até meados dos anos 1950 o ensino secundário no país era majoritariamente privado e confessional. Esses colégios eram frequentados pela elite e instalados principalmente nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, além dos estados do Sul, cujos imigrantes demandavam assistência e educação católicas.
fotos 1 Leonardo Wen/Folhapress 2 reprodução
A pesquisadora observa que a convivência entre as escolas públicas e as escolas católicas gerou uma intensa troca de conhecimentos e ideias. Isso se deve à circulação dos professores entre os dois tipos de escolas e aos convênios entre os poderes públicos e as congregações. “Os professores militantes católicos que atuavam em escolas públicas levavam práticas pedagógicas e o ideário católico para a rede oficial de ensino”, afirma. Um exemplo da relação entre educação pública e Igreja é o que se dava no colégio Caetano de Campos – primeira instituição pública de formação de professores de São Paulo –, cujos diretores também dirigiam a Liga dos Professores Católicos entre os anos 1920 e 1930 e faziam circular pela escola materiais produzidos na liga. Além disso, estados como Santa Catarina e Mato Grosso firmaram convênios com algumas congregações para o ensino nas escolas rurais. No final dos anos 1950, o clero latino-americano começou a elaborar uma teologia voltada para os mais pobres. Alia-se aos movimentos iniciados pela Igreja francesa no pós-guerra, como o projeto dos padres operários, que deixaram os conventos para morar em bairros periféricos para praticar a evangelização. Mesmo colégios privados, destinados a atender às elites, passaram a oferecer serviços às populações menos favorecidas, iniciativa social que se mantém. A pesquisadora lembra que a história brasileira é diferente, por exemplo, da argentina, que universalizou a educação fundamental já no final do século XIX, deixando pouco espaço ao trabalho pedagógico das congregações. Enquanto no Brasil a universalização – atender à totalidade da demanda – mal se completou nos anos 1990. Segundo o Ministério da Educação, em 2014, ano dos últimos dados disponíveis, a cobertura era de 97,5%. As congregações adaptavam os conhecimentos pedagógicos e técnicos desenvolvidos em seus países de origem à sociedade brasileira. Um caso exemplar é o dos maristas, que lidavam tradicionalmente com educação na França. Quando vieram ao Brasil, utilizaram seu conhe-
Boletim da Liga do Professorado Católico, de 1949, e primeiro volume das Cartas encíclicas do papa Leão XIII, de 1901
cimento pedagógico para criar colégios e material didático. Os maristas foram responsáveis pela fundação, em 1901, da FTD (iniciais de Frade Théophane Durand, superior-geral da Congregação Marista de 1883 a 1907), editora paulista, até hoje uma das maiores do ramo de material didático. O Ministério da Educação e os governos estaduais e municipais são seus principais clientes. “Isso não quer dizer que os livros da FDT apresentem, necessariamente, teor religioso, mas que, em alguns temas, o conteúdo é abordado de uma perspectiva cristã”, explica. Outras editoras católicas foram abertas no país na virada do século XIX para o XX, como a Vozes, até hoje no mercado. MANUTENÇÃO DE PRIVILÉGIOS
Na visão de Carlos Roberto Jamil Cury, docente da Faculdade de Educação da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) e da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FE-UFMG), as congregações vieram ao Brasil tanto por causa dos conflitos políticos na Europa quanto porque a hierarquia católica queria estabelecer outro tipo de catolicismo no Brasil. Em vez das práticas “populares”, consideradas supersticiosas e “contaminadas” por outras crenças, a Igreja pretendia enfatizar o catolicismo romano,
mais hierárquico, sóbrio e tradicional. Além disso, a atuação das congregações contribuiu para certo recuo da presença do Estado na educação. “No Império, os padres eram funcionários públicos pagos pelo governo”, conta Cury. “Com a República, aproveitaram a insuficiência da rede pública de ensino para manter a influência e o prestígio na sociedade brasileira.” Luiz Antônio Cunha, professor emérito na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FE-UFRJ), entende a ocupação do espaço educativo pelas congregações católicas como uma disputa nos campos religioso e político. Segundo Cunha, antes da República, o Estado brasileiro mantinha financeiramente a Igreja católica. Os professores faziam juramento de 2 aceitação da religião e de que nenhuma outra fé seria ensinada nas escolas públicas. Com isso, até fins do século XIX, imigrantes e missionários protestantes vindos dos Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha e outros países enfrentavam restrições nos direitos civis. Ainda assim, de acordo com o pesquisador, antes mesmo da Proclamação, a oligarquia cafeeira paulista se articulava com pastores protestantes para oferecer educação em cidades do interior. Depois, quando paulistas como Prudente de Morais se tornaram presidentes, incorporaram a pedagogia protestante nas políticas governamentais. “Havia uma afinidade eletiva entre a ideologia declaradamente renovadora dos cafeicultores paulistas e o trabalho pedagógico dos protestantes”, diz Cunha. Em linhas gerais, o professor explica que a pedagogia católica se baseava na memorização de conteúdos e respeitava a tradição, enquanto a protestante se apoiava em um método em que o aluno ocupava uma posição menos passiva no aprendizado e permitia o questionamento da tradição. n
Projeto Congregações católicas, educação e Estado nacional no Brasil (1840-1950) (nº 2011/51829-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Projeto Temático; Pesquisadora responsável Agueda Bernardete Bittencourt (FE-Unicamp); Investimento R$ 246.113,00.
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Antropologia y
Projeto analisa o uso de fotos e filmes como estratégia ou resultado de pesquisa Márcio Ferrari
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O
uso da fotografia e dos meios audiovisuais na antropologia cultural vem dos tempos de formação da disciplina. A professora Sylvia Caiuby Novaes, do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), localiza as origens no trabalho dos antropólogos evolucionistas. Para eles, as sociedades se desenvolveriam de acordo com estágios e padrões semelhantes em qualquer época ou parte do mundo, do “primitivo” ao “civilizado”. Assim, o apoio visual seria apropriado para testemunhar os sinais evolutivos encontrados nos povos estudados e seus modos de vida. Desde então, a antropologia evolucionista foi suplantada por outras teorias que a sucederam, e a imagem só voltou à cena nos anos 1940 com os trabalhos dos norte-americanos Margaret Mead (1901-1978) e Gregory Bateson (1904-1980) em Bali, para se firmar efetivamente nos anos 1960, com a obra do francês Jean Rouch (1917-2004) na África. Muitas discussões se mantêm, como a que contrapõe as possibilidades de registro descritivo e a de uso da imagem de modo expressivo. Essas e outras questões foram discutidas pelo projeto temático “A experiência do filme na antropologia”, coordenado por Sylvia entre 2010 e 2015. Foi o terceiro e último de uma série interligada, totalizando 18 anos de pesquisa.
Quando surgiu, observa a pesquisadora, “a fotografia foi tomada como um recurso para suplantar a pintura, na medida em que captaria uma realidade objetiva, e até hoje é frequentemente abordada como se não ‘mentisse’”. Para a pesquisadora, “o que a antropologia visual busca é saber como utilizar as imagens, seja como estratégia ou resultado de pesquisa”. A busca de novas linguagens, segundo Sylvia, parte do princípio de que “nossa racionalidade científica, muitas vezes impregnada de positivismo, é muito pouco adequada para lidar com universos distintos do nosso”. O projeto seguiu duas linhas de pesquisa. A primeira, “Fotografia, filme etnográfico e reflexão antropológica – Teoria e prática”, procurou perceber as aproximações e distâncias entre a teoria antropológica e a realização de fotografias e filmes. Segundo Sylvia, “o grande desafio nessa linha de pesquisa é a possibilidade de incorporar às novas linguagens audiovisuais as grandes questões da antropologia contemporânea”. Um exemplo de filme produzido no âmbito do projeto temático e nessa linha de pesquisa é Pimenta nos olhos, que se originou do diálogo com os moradores de Pimentas, bairro na periferia de Guarulhos (SP), mediado pela realização de oficinas e exposições de fotografia com a intenção de explorar questões de espaço, imaginário e memória da comunidade. Outro estudo que aproxima as possibi-
fotos 1 joon ho kim 2 e 3 sandra rossi costilhes
O conhecimento pelas imagens
lidades da fotografia com a reflexão antropológica está em um dos artigos do livro Entre arte e ciência – A fotografia na antropologia, assinado pelo pesquisador Joon Ho Kim, doutor em antropologia pela FFLCH-USP. O livro é um dos prolongamentos do temático, com textos e fotos realizados por alguns dos pesquisadores. Joon recorreu à fotografia para um trabalho compartilhado com atletas em cadeiras de rodas que jogam rúgbi. A intenção com a pesquisa, que ganhou o Grande Prêmio Capes de Tese na área de Humanidades, foi buscar o registro dos detalhes precisos que revelam a violência, a agilidade e os choques de corpos e máquinas das partidas. Joon quis, assim, “capturar os aspectos capazes de desconstruir o estigma da imobilidade por meio da construção de imagens opostas àquelas que sugerem vitimização”. A segunda linha de pesquisa, “A expressão do conhecimento etnográfico: fronteiras e diálogos entre a antropologia e as artes”, estudou a realização audiovisual na produção de conhecimento antropológico. Segundo Sylvia, o aspecto híbrido das imagens (entre o real e o construído), em especial a fotografia, permite a conexão entre arte, conhecimento e informação. “Das ciências humanas, a mais próxima das artes é a antropologia, em parte porque lidamos com aspectos inconscientes da vida social.” Assim, alguns dos filmes superaram a distância tradicional entre a pesquisa
Acima, imagem do jogo dos para-atletas estudados e fotografados por Joon Ho Kim, e, ao lado, o trabalho de artesãs peruanas (no alto) e brasileiras registrado por Sandra Rossi Costilhes
científica e o trabalho artístico. Um estudo sobre a juventude em Cidade Tiradentes, na periferia de São Paulo, adotou o formato ficcional ao ser adaptado para o meio audiovisual. O filme, Fabrik funk, a realidade de um sonho, assinado por Rose Hikiji, por Sylvia e pela antropóloga Alexandrine Boudreault-Fournier, da Universidade de Victoria, no Canadá, conta a história de uma funkeira e foi feito pelo método de antropologia compartilhada, em que a comunidade estudada participou da elaboração da obra no roteiro e na produção. “Estão lá todos os dados da pesquisa mas, se tivéssemos feito um documentário nos moldes clássicos, a abordagem provavelmente seria menos rica”, afirma Sylvia. Mais de 50 filmes foram produzidos no âmbito dos três projetos temáticos. Estiveram envolvidos na fase mais recente 27 pesquisadores. Segundo a pesquisadora, o projeto consolidou na FFLCH-USP a área de antropologia das formas expressivas,
que estuda a relação entre a antropologia e as diversas áreas de manifestação artística. Foi por meio desses projetos temáticos que se efetivou a infraestrutura do Laboratório de Som e Imagem da Antropologia (Lisa), que mantém um acervo de 1.500 filmes e 8 mil imagens fotográficas e mais de 180 horas de material sonoro gravado, além de documentos de referência, parte dele com acesso pela internet. O Lisa reúne três setores de pesquisa: o Grupo de Antropologia Visual (Gravi), o Núcleo de Antropologia, Performance e Drama (Napedra) e o grupo Pesquisas em Antropologia Musical (PAM). n Projeto A experiência do filme na antropologia (nº 2009/52880); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Projeto Temático; Pesquisadora responsável Sylvia Caiuby Novaes (FFLCH-USP); Investimento R$ 528.441,00.
Livro CAIUBY NOVAES, S. (org.). Entre arte e ciência – A fotografia na antropologia. São Paulo: Edusp, 2015, 224 p.
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Arte
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Uma especialista em voz Regina Machado concilia pesquisa acadêmica e carreira de cantora Lauro Lisboa Garcia
90 | maio DE 2016
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ultiplicar-se única, título de uma canção de Tom Zé que dá nome ao CD independente que a cantora, compositora, pesquisadora e professora Regina Machado lançou no final de 2015 só com canções do compositor, diz bastante sobre sua atuação na área artística e acadêmica. Regina se desdobra em diversas funções musicais, trilhando caminhos a partir de um trabalho centrado no estudo da voz. Graduada em música popular pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde é professora no Instituto de Artes (IA), ela publicou em 2011 o livro A voz na canção popular brasileira – Um estudo sobre a Vanguarda Paulista (Ateliê Editorial). A obra, resultado de sua dissertação de mestrado apresentada em 2007 na Unicamp, investiga a abordagem vocal daquele movimento mu-
Regina e Tom Zé, parceria iniciada nos anos 1980, quando a cantora participava dos shows do compositor
fotos 1 gal oppido 2 reprodução
sical independente dos anos 1980. “Escolhi esse período porque revelou novas possibilidades de realização vocal em consequência da compreensão dos padrões entoativos da língua falada”, diz a cantora. O canto que incorpora o ritmo e os padrões de fala é um traço comum entre artistas da Vanguarda Paulista como Ná Ozzetti, Tetê Espíndola e Arrigo Barnabé. Há uma conexão notável entre as porções artística e acadêmica de Regina, que se reflete em seus discos, da escolha do repertório até o elaborado trabalho de arranjos e interpretação. A cantora ingressou no ambiente universitário “tardiamente”, aos 27 anos. Na idade em que os jovens costumam sair do ensino médio direto para a faculdade, ela havia se dedicado a tocar e cantar na noite. Entre outras atividades, fez vocais de apoio para Tom Zé. “Aquele universo musical me surpreendeu”, relata Regina. “Não era só música, havia também a performance, e ele falava de coisas como filosofia oriental, semiótica e literatura. Algo me mostrou que ali estava um caminho que eu queria seguir.” Nos anos 1990 a cantora fundou uma escola própria, Canto do Brasil, que existe até hoje no bairro paulistano da Lapa, e teve entre suas alunas a cantora Mônica Salmaso. Em seus quatro CDs, lançados desde 2000, entre autores menos conhecidos e composições próprias, ela também se dedicou a reinterpretar canções de Chico Buarque, Edu Lobo e Caetano Veloso, fugindo dos clássicos de cada um. “Minha carreira acadêmica foi se delinear de acordo com essas referências musicais. Acredito que tudo parte do ofício – fazer, ouvir, cantar.” Foi daí que veio a matéria-prima para o desenvolvimento acadêmico da cantora. “A música que sempre me encantou e foi o motivo do meu desejo de realização profissional me levou a estudar e entender os elos que me trouxeram até aqui.” Dois dos marcos dessa trajetória são Luiz Tatit e Dante Ozzetti, artistas independentes ligados ao ambiente alternativo do mercado da música de entretenimento em que se consolidou o movimento Vanguarda Paulista. Ozzetti é o produtor do disco em que Regina canta Tom Zé. Tatit escreveu o prefácio de seu livro. Sob orientação dele, Regina defendeu doutorado em linguística e semiótica na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) em 2012, com a tese Da intenção ao gesto interpretativo – Análise semiótica do canto popular brasileiro, ainda não publicada em livro. “Regina é uma cantora que se interessou em entender como as canções são compostas e foi por isso que procurou pesquisa e orientação”, conta Tatit. “Ela queria ter alguns critérios de análise sobre como extrair interpretações espe-
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CD recém-lançado, o quarto da carreira da cantora, no qual ela se desdobra em diversas funções musicais
cíficas para determinadas canções. O que está por trás disso talvez seja o estudo da semiótica, que a instiga a uma visão mais ampla de construção do sentido, nas modalidades auditivas ou visuais. E ela mergulhou nisso.” Além da satisfação que sente como pesquisadora, Regina valoriza em particular o trabalho de professora por causa do contato com os alunos. Entre eles cita destaques da nova geração, como os cantores Lineker e Lívia Nestrovski. “São artistas que ainda estão conquistando espaço”, observa. O contato entre gerações se dá também na pesquisa, como no projeto liderado por Regina no IA-Unicamp chamado “Vox Mundi – Grupo de estudos da voz popular midiatizada, erudita e dos povos tradicionais”. Ela se reúne semanalmente com nove alunos que orienta na pós-graduação, além da cantora Magda Pucci, diretora musical do grupo Mawaca, sua ex-aluna. “Cada aluno tem seu trabalho em uma pesquisa própria, mas todos estão conectados à minha, ou seja, trabalham com a voz e a construção dos sentidos”, diz Regina. Em 2013 e 2015, o grupo organizou dois eventos acadêmico-artísticos na Unicamp, denominados Encontro de Estudos do Canto e da Canção Popular, com shows, palestras, aulas e mesas de debate. Entre os artistas que participaram estavam Tatit, o músico, compositor e ensaísta José Miguel Wisnik, o cantor, compositor e violonista Roberto Mendes e o cantor, compositor, violonista e poeta Tiganá Santana. “Foram experiências incríveis para todos, dentro e fora da universidade, pela possibilidade de diálogo e para entendermos que as artes estão dentro da universidade porque são parte fundamental da produção humana”, conta Regina. n PESQUISA FAPESP 243 | 91
memória
Laboratório de um homem só
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Museu na Amazônia, de 1883, impulsionou a carreira científica do botânico João Barbosa Rodrigues Rodrigo de Oliveira Andrade
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Barbosa Rodrigues em seu escritório no Jardim Botânico do Rio de Janeiro (s/d) 92 | maio DE 2016
m 18 de junho de 1883, em meio ao desejo de popularizar a ciência e de conhecer mais o Brasil, foi inaugurado em Manaus o Museu Botânico do Amazonas, primeira instituição científica da então província do Amazonas. Idealizado para ser um centro especializado em estudos etnográficos e botânicos aplicados à medicina, o museu teve vida efêmera, encerrando suas atividades em 1890, sete anos após abrir as portas ao público. Apesar da breve existência, a instituição serviu para atender às aspirações profissionais de seu diretor, o botânico João Barbosa Rodrigues (1842-1909), figura polêmica e ambiciosa, que em busca de prestígio e reconhecimento da comunidade científica brasileira envolveu-se em várias controvérsias com cientistas e diretores do Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Barbosa Rodrigues nasceu no Rio, mas passou a infância no interior de Minas Gerais, onde iniciou seus estudos em artes e ciências. Voltou à capital em 1850. Nesse período, conheceu Guilherme Schüch, o barão de Capanema (1824-1908), engenheiro de minas bem relacionado com a família real e que acabou se tornando seu mentor. Em 1870, o botânico surpreendeu a comunidade científica do Rio ao pleitear verba do governo imperial para publicar um livro sobre orquídeas (ver Pesquisa FAPESP nº 210). O espanto se deu porque até então ele nunca havia participado do círculo de pesquisadores da cidade, centro científico do país. O pedido desencadeou discussões sobre sua competência na área e não foi atendido. A ideia de abrir um museu na Amazônia partiu de Capanema, que pretendia garantir um emprego de prestígio ao amigo botânico. À época, Barbosa Rodrigues já havia participado de várias expedições à região Norte, onde desenhou e descreveu orquídeas e palmeiras, fez anotações etnográficas e escreveu sobre o uso da flora local na medicina. O botânico também coletou material arqueológico e
fotos 1 Museu do Meio Ambiente / Jardim Botânico do Rio de janeiro 2 e 4 Biblioteca do Jardim Botânico do Rio de Janeiro 3 Herbário Virtual Reflora / Jardim Botânico do Rio de Janeiro
geológico e estudou o curare, veneno oriundo da combinação de várias plantas usado pelos indígenas. Anos mais tarde, a substância o ajudou a justificar a criação do Museu Botânico. Em seu plano apresentado ao governo imperial, Barbosa Rodrigues enfatizou o quanto o museu – em outras palavras, seus próprios estudos – contribuiria para o avanço da pesquisa sobre o curare. A estratégia deu certo, o museu foi inaugurado e Barbosa Rodrigues tornou-se seu diretor, apesar da resistência das autoridades locais, que não apoiavam a criação do museu. “Os políticos da província do Amazonas consideravam o botânico um estrangeiro em seu próprio país”, diz a historiadora Maria Margaret Lopes, do Núcleo de Estudos de Gênero da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que estudou o museu com Magali Romero Sá, historiadora da Casa Oswaldo Cruz, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Barbosa Rodrigues organizou o museu em três seções: botânica, química e etnográfica, além de um jardim botânico para cultivar e exibir plantas. A primeira coleção exposta exibia espécimes botânicas e etnográficas coletadas pelo 4
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Astrocaryum manoense: nova espécie de palmeira descrita pelo diretor do Museu Botânico do Amazonas
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Exemplar de Curarea toxicofera (acima) e desenhos de artefatos indígenas (abaixo) coletados por Barbosa Rodrigues em expedição no vale do rio Amazonas, em 1872
ele. Mesmo funcionando regularmente até 1888, o museu mudou de endereço três vezes, sempre com falta de recursos, equipamentos e funcionários. Com pouca gente para trabalhar, filhos, enteados e até a esposa de Barbosa Rodrigues o ajudavam na administração. O período em que esteve à frente da instituição amazonense foi muito produtivo para o pesquisador. “Barbosa Rodrigues produziu desenhos de plantas e de objetos etnográficos, catálogos para exposições e artigos científicos”, diz Margaret Lopes. Entre 1886 e 1887, o botânico fez ilustrações de pelo menos 394 plantas e 94 objetos etnográficos. “As pesquisas feitas nos anos como diretor do Museu Botânico foram decisivas para que, em 1890, ele fosse convidado para assumir a direção do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, consolidando sua carreira como botânico na comunidade científica nacional da época”, diz Magali em um artigo que detalha suas análises publicado na revista próprio pesquisador durante Museum History Journal. expedição no vale do rio Barbosa Rodrigues assumiu Amazonas, em 1872. Um mês o cargo no Jardim Botânico após a inauguração do do Rio em 1892 com o museu, Barbosa Rodrigues prestígio de ter sido diretor organizou uma nova de um museu no coração expedição à região do rio da floresta amazônica. Jauaperi, em Roraima, onde Ele deixou o cargo de coletou objetos e espécies diretor no Museu Botânico para sua instituição. ao perceber que a instituição O museu inaugurou o não teria futuro. Após sua jardim botânico em 1884 saída, parte do acervo foi e o laboratório de química, levada ao Liceu com equipamentos Amazonense, em Manaus, e importados de Paris, em depois transferida para o 1886. O empenho de Barbosa Instituto Nacional Rodrigues, porém, não foi o de Pesquisas da Amazônia suficiente para transformar (Inpa). Outros exemplares o empreendimento científico foram enviados para na moderna instituição instituições na Alemanha, de pesquisa idealizada por Itália e Estados Unidos. n PESQUISA FAPESP 243 | 93
resenhas
Cenários da gestão educacional
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O MEC pós-Constituição Célio da Cunha (coordenador) Liber Livro Editora 527 páginas Informações no site editora@liberlivro.com.br
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MEC pós-Constituição, coordenado por Célio da Cunha, é obra relevante e extremamente útil para o conhecimento e análise da história recente da educação brasileira. A publicação reúne, em 11 capítulos, ensaios sobre os nove ministros de Estado que estiveram à frente do Ministério da Educação (MEC) entre 1988 e 2014: Carlos Alberto Chiarelli (1990/1991); José Goldemberg (1991/1992); Murílio Hingel (1992/1995); Paulo Renato Souza (1995/2003); Cristovam Buarque (2003/2004); Tarso Genro (2004/2005); Fernando Haddad (2005/2012); Aloizio Mercadante (2012/2014); e Henrique Paim (2014/2015). Elaborados por docentes e pesquisadores da Universidade Católica de Brasília, os ensaios analisam projetos e programas ministeriais que consideraram significativos para a consolidação de uma “cultura brasileira de gestão educacional”. Embora os textos sejam de recorte acadêmico e componham um conjunto cronologicamente articulado e contextualizado, é possível consultá-los de forma aleatória como se fossem peças de um vasto quebra-cabeças que não se destina exclusivamente aos estudiosos da educação nacional. A obra se inicia com capítulo introdutório, no qual os autores assinalam as influências do Manifesto dos Pioneiros da Educação e de outros educadores nas normas relativas ao direito à educação na Constituição de 1988. Entre elas, sobressaem princípios, regras e metas voltados à erradicação do analfabetismo, à universalização da ensino básico, à garantia da qualidade do ensino, à valorização dos profissionais da educação. Nos capítulos seguintes, o objetivo é fazer um balanço do que foi realizado pelo MEC desde então. Os resultados são positivos, na visão dos autores. A aprovação dos Fundos de Desenvolvimento da Educação (Fundef e Fundeb), a consolidação de avaliações em larga escala, dos parâmetros curriculares nacionais, da edição da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, da criação do Programa Universidade para Todos, do Plano de Desenvolvimento da Escola, entre diversas iniciativas, foram medidas de inegável alcance para a educação nacional. Com elas, diz Célio da Cunha, “o MEC elevou-se ao status de ‘ministério de primeira linha’, diferentemente de outros tempos, em que a subordinação da pasta às esfe-
ras econômicas do poder limitava e reduzia sua autonomia e, por conseguinte, dificultava ou mesmo impedia o avanço de propostas inovadoras”. Registra, contudo, que, com razoável frequência, “um ministro (...) não consegue levar adiante seus projetos por falta de condições de infraestrutura, de financiamento ou de condições políticas”. A avaliação de Cunha não pode ser desvinculada do conhecimento que acumulou como professor universitário na área da educação ou como assessor especial da Unesco no Brasil, mas sobretudo como diretor e secretário adjunto de Política Educacional do MEC: “Ministros e dirigentes que passaram pelo MEC tiveram a intenção de operar mudanças que teriam sido importantes para a educação nacional, mas não conseguiram. Os que lograram atingir realizações relevantes tiveram, sem exceção, condições políticas e econômicas mais favoráveis, entre elas o apoio direto da Presidência da República”. A leitura dos capítulos revela que estas reflexões constituem um dos principais parâmetros de análise. É o que se nota, particularmente, nos capítulos dedicados a Fernando Haddad e Henrique Paim, que receberam tal apoio, em comparação, por exemplo, a José Goldemberg, que, deste ponto de vista, pouco pôde realizar, a despeito da qualidade e oportunidade de suas propostas. Nota-se, também, certa disparidade no tamanho dos textos, assim como na documentação e na quantidade de gráficos, tabelas e quadros que os ilustram. A ausência de indicadores educacionais semelhantes nos diversos capítulos não permite uma comparação mais aprofundada entre todos, nem entre os avanços obtidos com as diversas iniciativas adotadas ao longo do período analisado. Nada disso, porém, prejudica o alcance e a oportunidade da obra e sua importância no cenário da doutrina educacional contemporânea. Raros são os estudos acadêmicos dedicados aos atores de políticas educacionais e O MEC pós-Constituição vem preencher essa eloquente lacuna, além de nos propor vigorosa reflexão sobre problemas que continuam atuais. Nina Ranieri é professora-associada da Faculdade de Direito da USP e coordenadora da Cátedra Unesco de Direito à Educação da Faculdade de Direito da USP.
fotos eduardo cesar
Nina Ranieri
Impactos da humanidade no meio ambiente Paulo Artaxo
A espiral da morte – Como a humanidade alterou a máquina do clima Claudio Angelo Companhia das Letras 490 páginas | R$ 59,90
O livro A espiral da morte – Como a humanidade alterou a máquina do clima é um relato dinâmico, quase pessoal, de como um jornalista que cobre a área científica vivenciou, ao longo dos últimos anos, a evolução da ciência do clima em conjunto com suas observações em nosso planeta. O jornalista Claudio Angelo conversou com políticos, moradores de zonas críticas, cientistas, ativistas ambientais e negacionistas das mudanças climáticas para gerar um amplo panorama de uma das questões mais importantes com que a humanidade já teve que lidar. É muito interessante acompanhar os relatos de viagens a locais estratégicos do ponto de vista de mudanças globais (Antártida, Groenlândia, Ártico etc.) e ver o balanço entre observação local e ciência global. Vale ressaltar a importância, para o avanço dos debates sobre o tema, de um jornalista compartilhar as suas dúvidas com as dos cientistas que ainda não entendem em sua totalidade a complexidade do sistema climático global. O resultado dessa epopeia é um trabalho de fôlego, mas fácil e divertido de ler. Claudio Angelo discute não só o impacto de nossa sociedade no planeta, mas também as implicações sociais, geo políticas, culturais e econômicas. As diferentes escalas temporais e espaciais são abordadas com o cuidado necessário. O autor convida o leitor a refletir sobre questões importantes relacionadas ao derretimento acelerado de geleiras observado na Groenlândia e ao degelo no oceano Ártico, e como esses eventos afetam as populações. Também aborda as possibilidades para sair dessa armadilha que a estrutura socioeconômica que mantém a sociedade de hoje nos impôs. Em sua primeira componente (chamada de “Norte”), o autor narra em detalhes as fortes alterações no ecossistema Ártico e como isso impacta seus habitantes remotos. O relato do que acontece na Groenlândia e em Svalbard (Noruega) é fascinante. Questões científicas complexas, como a alteração do albedo de superfície e os hidratos de metano, são explicadas didaticamente. A exploração de petróleo no Ártico com seus riscos inerentes ao meio ambiente é destacada. A componente “Sul” explora as questões associadas ao meio ambiente antártico, em particular na estação brasileira Comandante Ferraz,
visitada pelo autor em 2001 e 2014. Discussões interessantes tanto sobre o “buraco de ozônio” na Antártida quanto sobre os pinguins colocam as fragilidades do meio físico e biológico naquela região. O forte aquecimento de 3 graus observado na península Antártica desde 1950 é testemunho da rapidez e força com que as mudanças globais chegaram àquele ambiente. O clima de nosso planeta é totalmente integrado e isso transparece na discussão sobre o efeito da Antártida no clima brasileiro, especialmente nas regiões Sul e Sudeste. O autor diz que um dos objetivos do livro é explicar como chegamos a essa situação, mas é exatamente este tópico que, acredito, poderia ter sido mais explorado. Os detalhados relatos de impactos não discutem com profundidade as reais razões pelas quais o planeta está passando por esse sufoco ambiental. A exploração inesgotável dos recursos naturais está sufocando rapidamente a vida na Terra. A busca pelo lucro sem limites coloca nosso planeta em risco e a questão fundamental é saber como sairemos dessa situação, em que, além do lucro, a sustentabilidade a longo prazo também seja uma variável a ser integrada ao sistema. Claro que o livro não chega a “soluções”, pois elas ainda não existem, embora a COP-21, que selou o Acordo de Paris, aponte para o caminho de reduzir fortemente as emissões de gases de efeito estufa com compromissos voluntários dos países. O livro traz críticas importantes: “O avanço do Acordo de Paris é ele existir, independentemente de ser bom ou ruim. Ele é ruim, na verdade, porque deixa tudo nas mãos dos países. Mas é um avanço político e geopolítico significativo”. Esta crítica sobre a questão da governança planetária é certamente o problema principal do Acordo de Paris e um enorme desafio para as próximas décadas. Todos vivemos no mesmo planeta, não em países isolados uns dos outros. Portanto, um sistema de governança global terá que ser implantado, se quisermos um planeta com clima estável ao longo das próximas décadas e séculos. Paulo Artaxo é professor titular e pesquisador do Instituto de Física da USP.
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Personagens e processos da história Guilherme Grandi
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Nem céu nem inferno: Ensaios para uma visão renovada da história Jorge Caldeira Três Estrelas 328 páginas | R$ 45,00
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o ler o livro Nem céu nem inferno, de Jorge Caldeira, o leitor descobrirá um novo olhar sobre a história do Brasil. Em linguagem clara e por meio de uma escrita fluida, o autor apresenta uma interpretação sobre diversos episódios e personagens da história do país que destoa dos livros mais convencionais de história, ainda presos ao imperativo cronológico. Doutor em ciência política, jornalista e escritor de livros sobre personagens históricos, a opção de Caldeira foi por um formato pouco usual aos escritos de história. O leitor será conduzido pelas mais de 300 páginas do livro, que, como o próprio subtítulo diz, é “uma visão renovada da história do Brasil”. Não somente devido ao conteúdo, isto é, às temáticas que foram elegidas pelo autor, mas, fundamentalmente, por conta do próprio formato de escrita adotado é que o livro adquire relevância dentre os novos estudos de história sobre a trajetória do Brasil como Estado e Nação. Mediante o levantamento de boas evidências históricas, o conjunto de ensaios é uma revelação acerca do caminho percorrido por figuras históricas do Brasil, como José Bonifácio e Visconde de Mauá, e de temas que são caros a todos que se aventuram na difícil tarefa de interpretar nossa singularidade, ou seja, aquilo que nos define como brasileiros. Esse esforço assumido por Caldeira demanda graus de liberdade ao ato de escrever que o autor foi buscar na forma ensaística, pois, como disse certa vez o filósofo T. W. Adorno, o ensaio não admite que seu âmbito de competência lhe seja prescrito. Garanto que o leitor deste livro não terá a desconfiança que, às vezes, nos acomete quando estamos diante de um texto ensaístico. Divididos em dois grandes blocos, os textos coligidos no volume demonstram a obstinação do autor em aprofundar o conhecimento sobre o conceito “Brasil” em toda sua complexidade. Se, num primeiro momento, na parte 1 do livro, Caldeira se dedica a narrar a atuação de figuras de relevo da nossa história, desde a época do Brasil Colônia até o alvorecer do regime republicano, no segundo instante o propósito passa a ser esmiuçar processos históricos mais amplos amparados por nossas instituições políticas, econômicas e religiosas.
Processos e fenômenos dos mais variados, como o descobrimento do Brasil, o carnaval, o futebol, os poderes imperial, parlamentar e militar, a catequese dos jesuítas, a formação do Estado nacional, o sufrágio universal e o empreendedorismo são acionados por Caldeira de modo extremamente inventivo, visando sempre reinterpretar a nossa história e, assim, incidir novas luzes sobre o sentido da especificidade brasileira. Até teorias econômicas do valor são instrumentalizadas nesse sentido. Dentre os ensaios que mais me chamaram a atenção estão os que versam sobre a tradição democrática do período colonial no Brasil, sobre o primeiro fundidor do país (Clemente Álvares) e o capítulo que encerra o livro, a respeito da ausência de dados estatísticos sobre o Brasil no aclamado livro de Thomas Piketty, O capital no século XXI. Há um outro ensaio que merece uma menção especial, “Diogo Antônio Feijó e a sociedade justa”. Qualquer semelhança com o quadro político do Brasil atual não é mera coincidência, uma vez que o que Caldeira parece querer nos mostrar, com sua narrativa sobre a trajetória e o pioneirismo de personalidades como Feijó, é um novo ethos brasileiro, o descortinar da nossa cultura, a gênese da nossa formação institucional e de alguns dos nossos principais obstáculos como sociedade e país jovem recém-emancipado. Como o próprio Caldeira observa na introdução do livro, os ensaios que o integram são o resultado de anos de reflexões sobre a história brasileira, que agora os interessados têm a oportunidade de conhecer uma versão interpretativa arejada e avessa a visões binárias adornadas por pretextos ideológicos que escondem juízos morais, postura tão comum nos dias de hoje e que está presente no debate público nacional sobre os desígnios do país. Nem ficção nem historiografia, nem cientificidade nem superficialidade, nem micro nem macro-história, Nem céu nem inferno é um livro sensato e equilibrado para quem está à procura de um olhar verdadeiramente renovado sobre história do Brasil. Guilherme Grandi é professor do Departamento de Economia da FEA-USP e do Programa de Pós-graduação em História Econômica.
carreiras
Propriedade Intelectual
Ferramentas para a inovação
ilustraçãO veridiana scarpelli
Plataformas eletrônicas ajudam pesquisadores a formar parcerias e a encontrar informações sobre patentes com mais facilidade O Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), associação sem fins lucrativos supervisionada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), desenvolveu uma série de ferramentas eletrônicas para auxiliar pesquisadores da academia e de empresas na gestão de atividades de ciência, tecnologia e inovação. Uma delas, chamada Insight Net, identifica profissionais com experiência específica em diferentes áreas para formar redes de colaboração. Para isso, vale-se dos mais de 4 milhões de currículos acadêmicos da Plataforma Lattes para elaborar redes baseadas em coautorias de publicações e similaridade de campos de atuação, indicando pessoas que trabalham com determinada tecnologia ou em áreas científicas específicas. Outra plataforma do CGEE, a Insight Data, ajuda os
pesquisadores a encontrar e analisar com mais facilidade um grande volume de informações sobre patentes em bancos de dados do Brasil e do mundo, partindo de palavras-chave para reunir também informações em repositórios de artigos técnico-científicos. “Nossa plataforma permite monitorar a evolução de patentes por área de conhecimento, entender quais são os países que lideram o desenvolvimento de uma dada tecnologia e obter outras informações estatísticas relevantes para a caracterização de panoramas tecnológicos”, diz Rodrigo Leonardi, assessor técnico do CGEE. Informações sobre essas e outras plataformas estão disponíveis no site do CGEE. Ao final de um projeto, é comum que os pesquisadores queiram proteger seus resultados intelectualmente. Como um
primeiro passo, Patrícia Leal Gestic, diretora de Inovação e Propriedade Intelectual da Agência de Inovação (Inova) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), recomenda que eles antes avaliem se os seus resultados representam uma novidade e se podem ser aplicados industrialmente. Para facilitar a busca, a Inova usa a Questel Orbit, ferramenta de busca de patentes em repositórios como a Derwent Innovations Index, da Thomson Reuters, e a instituição norte-americana onde se depositam patentes (Uspto). A Derwent reúne resumos de mais de 11 milhões de patentes, e a Uspto, de 7 milhões de patentes norte-americanas de várias áreas. Além dessas, existe também a Espacenet, mantida pelo Escritório Europeu de Patentes (EPO), com mais de 60 milhões de patentes de vários países. A Questel Orbit só está disponível em computadores da Unicamp. No Brasil, a principal base de dados desse tipo é a do Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI), acessível a qualquer pessoa. “É importante que os pesquisadores consultem essas bases antes de começarem suas pesquisas”, diz Patrícia. “Isso os ajudará a direcionar seus projetos tendo em conta o princípio da novidade tecnológica e suas possíveis aplicações.” A estratégia tem dado certo. Na FAPESP, o Núcleo de Patenteamento e Licenciamento de Tecnologias (Nuplitec) é o responsável pela gestão da propriedade intelectual de projetos financiados pela instituição. “Auxiliamos as universidades em questões envolvendo a propriedade intelectual resultante de projetos FAPESP por meio do Programa de Apoio à Propriedade Intelectual (Papi)”, diz Patricia Tedeschi, responsável pelo Nuplitec. n Rodrigo de Oliveira Andrade PESQUISA FAPESP 243 | 97
Talentos inovadores para atuar em empresas
A falta de preparo para ser empresário Entre os jovens empresários brasileiros, com idade entre 18 e 39 anos, o percentual daqueles que não se preparam para ser empreendedores é de 86%. Esse índice aparece na pesquisa “Perfil do Jovem Empreendedor Brasileiro”, realizada pela Confederação Nacional de Jovens Empresários (Conaje) em parceria com a revista Pequenas Empresas & Grandes Negócios. Cinco mil empresários de 26 estados e do Distrito Federal responderam ao formulário eletrônico no site da entidade. Entre os que buscaram ajuda, 27% procuraram o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), 17% consultorias, 6% universidades e 4% incubadoras de empresas. O resultado mostrou também que 39% desses empresários têm pós-graduação. 98 | maio DE 2016
Trajetórias complementares Engenheiro civil Étore Funchal de Faria concilia as demandas da vida acadêmica e profissional
arquivo pessoal
O Instituto Euvaldo Lodi do Distrito Federal e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) abriram chamada pública de projetos para o programa Trainee Inova Talentos, voltado à ampliação do número de profissionais qualificados em atividades de inovação no setor empresarial brasileiro. Empresas e institutos de pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I) públicos e privados, órgãos do governo e entidades do terceiro setor podem inscrever seus projetos no portal do Inova Talentos. O programa concede bolsas de desenvolvimento tecnológico e extensão inovadora para graduados, mestres e doutores com até cinco anos de titulação. Mais informações no site portaldaindustria.com.br/ inovatalentos.
perfil
No começo de 2015, a partir de um convênio entre a Universidade Corporativa das Empresas Eletrobras (Unise) e o programa Ciência Sem Fronteiras, do governo federal, o engenheiro civil Étore Funchal de Faria desenvolveu um projeto de pesquisa de pós-doutorado voltado à obtenção de materiais que aumentassem a durabilidade e a segurança de estruturas de concreto. A ideia surgiu de um problema recorrente na Usina Hidrelétrica de Itaipu, em Foz do Iguaçu, Paraná, onde trabalha: microfissuras que se formam nas barragens. Se não corrigido, esse problema, decorrente de substâncias presentes na água, reduz a vida útil da estrutura. Em fevereiro do ano passado, Faria foi para os Estados Unidos para fazer seu estágio de pós-doutorado em Estruturas e Materiais com ênfase em Segurança de Barragens na Universidade Estadual do Arizona. Lá, desenvolveu técnicas para avaliação de materiais que funcionassem como “selos” nas chamadas “fissuras vivas”, que se dilatam ou retraem de acordo com a variação térmica da estrutura. “Verificamos que materiais
formados por fibra têxtil e argamassa de cimento são capazes de resolver esse tipo de problema”, diz. Desde o fim da graduação, em 1995, na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), Faria procura conciliar as carreiras de pesquisador e engenheiro civil, adaptando suas pesquisas às necessidades das empresas em que trabalha. À época em que cursava o mestrado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), por exemplo, Faria era responsável pelo sistema de segurança de barragens de Furnas. Em sua dissertação, ele tratou do comportamento térmico dos concretos de estruturas de barragens. No doutorado, também realizado na UFRJ enquanto trabalhava como gestor de projetos executivos para refinarias da Petrobras, ele estudou tipos diferentes de concreto. Ao ingressar na Itaipu Binacional, em 2010, Faria não prescindiu da colaboração de outros pesquisadores. Para a elaboração do projeto de pós-doutorado sobre a durabilidade e a segurança de estruturas de concreto, ele contou com a ajuda do engenheiro civil Eduardo de Moraes Rego Fairbairn, seu orientador de mestrado e doutorado na UFRJ. Faria agora trabalha para viabilizar os testes nas barragens da Usina de Itaipu com o material estudado nos Estados Unidos. O projeto está em desenvolvimento no âmbito do Centro de Estudos Avançados em Segurança de Barragens, instalado no Parque Tecnológico Itaipu, e deverá envolver o uso de outros tipos de fibras, como a de poliéster, obtida de garrafas PET, com foco em menor custo e aproveitamento de resíduos. n R.O.A
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