Antes de Monteiro Lobato

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Pesquisa FAPESP março de 2017

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março de 2017 | Ano 18, n. 253

Antes

de Monteiro Lobat o O

Mapa mostra distribuição da capacidade científica no estado de SP Restaurações e descobertas de pinturas e esculturas revalorizam barroco paulista Populações pré-colombianas podem ter alterado flora amazônica Exame de sangue monitora evolução de câncer Número de casos de febre amarela é o maior em 70 anos Brasil investe em novo material, a nanocelulose

Autores nacionais começaram a publicar livros para

Ano 18  n.253

crianças no século XIX

> Site  veja o manuscrito Versos para os pequeninos, guardado por 120 anos


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ENCADERNADA L I V R O S E M C A PA D U R A C O M T O D A S A S E D I Ç Õ E S L A N Ç A D A S N O S Ú LT I M O S 4 A N O S

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A beleza do conhecimento em imagens

Sua pesquisa rende fotos bonitas? Mande para imagempesquisa@fapesp.br Seu trabalho poderá ser publicado na revista

Zoologia comunitária Entre as seis jiboias-do-ribeira (Corallus cropanii) registradas até recentemente, algumas acabaram na coleção científica do Instituto Butantan, preservadas em álcool e formol, e outras foram abatidas por habitantes do Vale do Ribeira. Depois de uma campanha de conscientização na comunidade de Guapiruvu, em Sete Barras (SP), biólogos liderados por Bruno Rocha, do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo e do Instituto Butantan, mostraram que essa jiboia é inofensiva para pessoas e em janeiro receberam notícia de um exemplar capturado. O plano agora é soltar o réptil equipado com um transmissor de rádio, para investigar seus hábitos.

Imagem de Bruno Rocha enviada pela bióloga Lívia Correa, técnica do Laboratório Especial de Coleções Zoológicas do Instituto Butantan

PESQUISA FAPESP 253 | 3


março  253

POLÍTICA DE C&T 32 Indicadores Estudo traça mapa de competências científicas no estado de São Paulo 36 Prêmio Honraria de £ 1 milhão reconhece talentos da engenharia 39 Inovação Maioria dos projetos de programa tecnológico do BNDES resultou em produtos 42 Estados Unidos Política anti-imigração de Trump assusta comunidade científica dos EUA 45 Obituário Pierre Kaufmann foi um dos precursores da radioastronomia no Brasil CIÊNCIA

CAPA Livros para crianças de autores brasileiros começaram a ser produzidos no século XIX p. 18

Foto de capa Acervo do Museu Paulista da USP. Créditos fotográficos da reprodução: Hélio Nobre/José Rosael

46 Arqueoecologia Populações pré-colombianas podem ter domesticado a floresta amazônica 51 Medicina Biópsia líquida ajuda a avaliar a evolução de tumores

60 Saúde Epidemia traz de volta o temor da febre amarela urbana no Brasil 64 Zoologia Girinos preservados em museus permitem descobrir a causa de mortandade de sapos nos anos 1980 68 Astronomia Emissão de partículas de luz faz a atmosfera do Sol girar mais lentamente

80 Engenharia naval Embarcação autônoma movida a energia solar faz medições e coleta dados HUMANIDADES 88 História Mulheres escravas usavam estratégias para conseguir comprar a alforria e trabalhar

TECNOLOGIA 70 Nanotecnologia Empresas brasileiras investem em nanocelulose, um novo material 74 Engenharia eletrônica Pesquisadores brasileiros desenvolvem dispositivo que será instalado no Cern 76 Pesquisa empresarial Fabricante das primeiras centrais telefônicas digitais brasileiras, a Trópico continua a inovar

ENTREVISTA João Zuffo Primeiro a produzir um chip no Brasil, engenheiro eletricista participou dos primórdios da computação no país p. 26


www.revistapesquisa.fapesp.br No site de Pesquisa Fapesp estão disponíveis gratuitamente todos os textos da revista em português, inglês e espanhol, além de conteúdo exclusivo

SEÇÕES 3 Fotolab

vídeos do mês youtube.com/user/pesquisafapesp

6 Comentários 7 Carta da editora 8 Boas práticas Software que refaz cálculos de artigos movimenta pesquisadores da área de psicologia 11 Dados Número de pesquisadores de São Paulo, do Brasil e países da OCDE

Arte Resgate de obras, artistas e documentos amplia o conhecimento sobre o barroco paulista p. 82

Técnica ajuda dependentes a evitar o consumo de crack  bit.ly/vCrackSP

92 Memória Instituto de Ginecologia aprimorou combate ao câncer de colo do útero 94 Resenha Executivos negros: Racismo e diversidade no mundo empresarial, de Pedro Jaime. Por Ivo de Santana 95 Carreiras Curso de engenharia deverá formar profissionais especializados em resolver problemas complexos

Grupo busca identificar desaparecidos da ditadura entre ossadas encontradas em vala clandestina em Perus  bit.ly/vPerus

rádio  bit.ly/PesquisaBr Professor Rogério Costa fala sobre improvisação livre, um tipo de música experimental que surgiu há cerca

Saúde Infecção por zika no início da gestação é mais perigosa para o feto p. 56

de 50 anos nos Estados Unidos  bit.ly/2mf3TDE


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Remédios na Justiça

O mapeamento da judicialização da saúde é importante para avaliar o quanto do individual é custeado pelo social. Fica um quê de falta de proatividade, pois governos poderiam ir a campo para resolver os casos fora do sistema jurídico ou mesmo estimular que decisões sejam mais objetivas e não subjetivas. O caso da fosfoetanolamina é um desses, no qual predominou o clamor popular sobre as evidências científicas. De qualquer forma, a judicialização, que acontece em todas as esferas da vivência humana, chega fortemente à saúde como um câncer para tentar curar outro. Adilson Roberto Gonçalves

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6 | março DE 2017

Eduardo Franco

Foi motivo de alegria e orgulho encontrar em Pesquisa FAPESP uma entrevista do professor Eduardo Franco. Por seus trabalhos pioneiros, juntamente com os da professora Luisa Villa, na década de 1980, e, atualmente, por seu estudo da epidemiologia e do comportamento clínico e pelo planejamento terapêutico do carcinoma epidermoide de cabeça e pescoço, o HPV está no centro das discussões.

recebeu na edição especial Unicamp 50 Anos, que circulou com a revista Pesquisa FAPESP de setembro de 2016 (edição 247). Esse instituto deixou de ser somente instrutor de disciplinas básicas, servindo outras áreas, e já há décadas é polo de pesquisa de excelência em matemática, com reputação internacional. Possui três programas de pós-gradua­ ção stricto sensu, dois deles com conceitos 6 e 7 na Capes. Recebe visitas de renomados matemáticos, além de vários outros indicadores de excelência acadêmica. Paulo Ruffino Departamento de Matemática, Imecc/Unicamp Campinas, SP

Vídeo

Impossível assistir ao vídeo “Desaparecimento e luta” e não lembrar de José Montenegro de Lima, Luís Maranhão, Elson Costa, David Capistrano... E tantos outros companheiros. É um trabalho para se respeitar.

Alice Duarte

Um trabalho muito importante para a identificação de ossada de pessoas que não tiveram um sepultamento digno. Higo Silva

Marcos Brasilino de Carvalho Depto. de Cirurgia de Cabeça e Pescoço/Hospital Heliópolis São Paulo, SP

Unicamp 50 Anos

Gostaria de registrar, ainda que tardiamente, minha surpresa pela pouquíssima cobertura que o Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica (Imecc)

Correção

A imagem da página 66 da reportagem “O passado revelado pela ciberarqueologia” (edição 252) foi feita por pesquisadores da Universidade de Ferrara, da Itália, e sem o uso de drone. Sua opinião é bem-vinda. As mensagens poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

A mais vista em fevereiro no Facebook tecnologia

Exoesqueleto têxtil auxilia indivíduos a caminharem com mais eficiência

32.544 pessoas alcançadas 353 reações 122 compartilhamentos

HARVARD BIODESIGN LAB

Reportagem on-line


fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo

carta da editora

José Goldemberg Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente

Precursores e pioneiros

Conselho Superior Carmino Antonio de Souza, Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, João Fernando Gomes de Oliveira, joão grandino rodas, José Goldemberg, Marilza Vieira Cunha Rudge, José de Souza Martins, julio cezar durigan, Pedro Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski, Suely Vilela Sampaio

Alexandra Ozorio de Almeida |

Conselho Técnico-Administrativo

diretora de redação

Carlos américo pacheco Diretor-presidente Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico Joaquim J. de Camargo Engler Diretor Administrativo

issn 1519-8774

Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Anamaria Aranha Camargo, Ana Maria Fonseca Almeida, Carlos Américo Pacheco, Carlos Eduardo Negrão, Fabio Kon, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Francisco Rafael Martins Laurindo, Joaquim J. de Camargo Engler, José Goldemberg, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Lucio Angnes, Luiz Nunes de Oliveira, Marie-Anne Van Sluys, Maria Julia Manso Alves, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner Caradori do Amaral, Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos diretora de redação Alexandra Ozorio de Almeida editor-chefe Neldson Marcolin Editores Fabrício Marques (Política), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência), Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores espe­ciais), Bruno de Pierro (Editor-assistente) revisão Alexandre Oliveira e Margô Negro arte Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos (Editora de infografia), Júlia Cherem Rodrigues e Maria Cecilia Felli (Assistentes) fotógrafos Eduardo Cesar e Léo Ramos Chaves Mídias eletrônicas Fabrício Marques (Coordenador) Internet Pesquisa FAPESP online Maria Guimarães (Editora) Rodrigo de Oliveira Andrade (Repórter) Jayne Oliveira (Redatora) Renata Oliveira do Prado (Mídias sociais) banco de imagens Valter Rodrigues Colaboradores Bárbara Malagoli, Christina Queiros, Daniel Almeida, Evanildo da Silveira, Fabio Otubo, Ivo de Santana, Mauricio Pierro, Yuri Vasconcelos, Zansky É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização Para falar com a redação (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br Para anunciar Paula Iliadis (11) 3087-4212 publicidade@fapesp.br Para assinar (11) 3087-4237 assinaturaspesquisa@fapesp.br Tiragem 23.900 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo

O

pioneirismo de Monteiro Loba­ to como autor de literatura in­ fantojuvenil brasileira é incon­ teste: sua importância é destacada por pesquisadores que se dedicam ao tema e evidenciada pelo sucesso de público que seus livros alcançaram. O próprio autor, hábil em autopromoção, ajudou a construir esse papel de protagonista. Por mais importantes que sejam, ex­ poentes como Lobato não são necessa­ riamente os primeiros: precursores fre­ quentemente abrem o caminho. Déca­ das antes da publicação de A menina do narizinho arrebitado (1920), o Brasil já contava com um mercado editorial in­ fantil, composto em grande parte por traduções de obras, e também com es­ critores locais. Na reportagem de capa desta edição (página 18), o editor especial Carlos Fio­ ravanti não apenas apresenta esse pouco conhecido panorama pré-lobatiano como traz uma obra infantil inédita, escrita há 120 anos pelo educador fluminense João Köpke. O fac-símile de Versos para pequeninos, que veio a público em 2013, quando o manuscrito foi citado em te­ se de doutorado defendida pela bisneta de Köpke, está disponível em formato de e-book no site de Pesquisa FAPESP (www. revistapesquisa.fapesp.br). * Um retrato regionalizado da capacida­ de científica das 15 regiões administrati­ vas paulistas foi divulgado em fevereiro pela Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp). O Mapa da ciência, cujo conteúdo é resumido e discutido em reportagem à página 32, evidencia perfis de especialização regional que podem contribuir para a orientação de investi­ mentos privados e de políticas públicas. Retrata, ainda, os acertos de políticas públicas de construção de capacidade

científica, algumas direta e indiretamente relacionadas com desafios econômicos e sociais do estado. Na busca por soluções agrícolas, por exemplo, há iniciativas cen­ tenárias: a partir da criação do Institu­ to Agronômico de Campinas (IAC), há 130 anos, concentraram-se no entorno de Campinas 22% dos pesquisadores do estado em Ciências Agrárias, embora os municípios da região abriguem 9,17% da população paulista; da mesma for­ ma, a presença da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da USP, aglutinou 15,33% dos pesquisadores paulistas em Ciências Agrárias na região de Piracicaba, que tem apenas 3,3% da população do estado. O pioneirismo e os contínuos investimentos na área de saúde na Região Metropolitana de São Paulo, onde está 51,27% da população estadual, criaram um protagonismo dessa área de conhecimento, concentrando 54,95% dos pesquisadores. Iniciativas estaduais e federais nos úl­ timos 20 anos levaram à criação de novas instituições e à expansão das já consoli­ dadas em São Paulo. O estudo também destaca algumas deficiências: em três das 15 regiões se constata uma fragilidade em termos de capacitação científica. * Quando se fala em barroco brasileiro, vem à mente a rica arte sacra presente em igrejas e museus de Minas Gerais, Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro. Nos últimos anos, grupos de pesquisa têm resgatado o barroco paulista não só na capital, mas também em cidades do interior do estado, por meio de estudos e restaurações de igrejas, pinturas e es­ culturas (página 82). O resultado é que obras foram redescobertas e artistas es­ quecidos vieram à tona, contrariando a percepção de que o barroco feito em São Paulo era pobre e inexpressivo. PESQUISA FAPESP 253 | 7


Boas práticas

Dúvidas estatísticas Software que refaz cálculos de artigos e detecta erros movimenta a comunidade de pesquisadores da área da psicologia Em agosto de 2016, um conjunto de cerca de 50 mil artigos científicos do campo da psicologia passou pelo escrutínio de um software capaz de detectar inconsistências estatísticas, desenvolvido por pesquisadores da Universidade de Tilburg, na Holanda. Batizado de statcheck, o programa refaz cálculos e observa se os resultados são robustos e correspondem ao que está publicado no manuscrito. Em metade dos papers foi detectado algum tipo de problema, desde erros de digitação e simples arredondamentos até resultados equivocados com potencial para comprometer conclusões de estudos. Os achados dessa gigantesca verificação foram comunicados de forma automática por e-mail aos autores de cada artigo e divulgados no PubPeer, plataforma on-line na qual qualquer usuário pode escrever comentários sobre papers já publicados e apontar eventuais falhas, num tipo de avaliação por pares realizado depois da divulgação do artigo. 8 | março DE 2017

O caráter da auditoria é inédito, tanto por ter sido feita por computador quanto pelo volume de dados conferido – praticamente todos os pesquisadores em psicologia que publicaram papers nos últimos 20 anos passaram pelo crivo do statcheck. A divulgação dos resultados provocou ondas de choque. A Sociedade de Psicologia da Alemanha publicou uma declaração, no dia 20 de outubro, reclamando da forma como a comunicação dos resultados foi feita. Segundo o texto, muito pesquisadores ficaram incomodados com a exposição sem que tivessem tido chance de se defender. “Vários colegas estão profundamente preocupados com o fato de que, obviamente, é muito difícil remover um comentário no PubPeer após um erro ‘detectado’ pelo statcheck revelar-se um falso positivo”, consta no texto divulgado. Num tom mais elevado, Susan Fiske, professora da Universidade de Princeton e ex-presidente da norte-americana Associação de Ciências


foto  reprodução  ilustração daniel almeida

Psicológicas, classificou como “uma nova forma de assédio” o trabalho de “polícia” que investiga dados de pesquisa de forma voluntarista. “Me senti um pouco assustado e exposto”, disse ao jornal britânico The Guardian o psicólogo alemão Mathias Kauff, que recebeu um e-mail do statcheck avisando que havia inconsistências num artigo que escreveu em 2013 sobre multiculturalismo e preconceito, publicado no Personality and Social Psychology Bulletin. Ele afirma que os erros eram fruto de arredondamentos que não comprometiam as conclusões. Muitos artigos na área de psicologia utilizam testes estatísticos padronizados, cujos resultados precisam ser averiguados. O statcheck identifica e inspeciona os testes que calculam os valores de p, uma medida que representa a probabilidade de o efeito observado dever-se ao acaso e não aos fatores que estão sendo estudados. Um valor de p menor ou igual a 0,05 é utilizado frequentemente como um indicador de significância estatística, pois sugere que os resultados são robustos. Há, de fato, evidências de que o software ainda não está maduro e alardeia problemas que não chegam a ser erros estatísticos. Em artigo depositado no repositório ArXiv, Thomas Schmidt, professor de psicologia experimental da Universidade de Kaiserslautern, na Alemanha, criticou a qualidade da análise que o statcheck fez em dois artigos de sua autoria. Segundo ele, o software encontrou 35 resultados estatísticos potencialmente incorretos, mas apenas cinco continham incongruências que, de acordo com o autor, não comprometiam os resultados finais. A metodologia utilizada pelo software já era conhecida desde 2015, quando um artigo sobre o assunto foi publicado no site da revista Behavior Research Methods, assinado pela

Chris Hartgerink, o estudante de doutorado que submeteu papers de psicologia ao statcheck

estudante de doutorado Michèle Nuijten e colegas do Centro de Metapesquisa da Escola de Ciências Sociais e do Comportamento da Universidade de Tilburg. No paper, o grupo mostrou que metade dos 16.695 artigos analisados pelo software apresentou algum tipo de inconsistência em suas análises estatísticas e 12% deles traziam conclusões comprometidas por erros. “O statcheck pode ser uma ferramenta de apoio à revisão por pares. A revista Psychological Science, por exemplo, já adotou o software para procurar inconsistências estatísticas nos manuscritos que recebe”, disse Michèle à Pesquisa FAPESP. A iniciativa de analisar os 50 mil artigos e tornar públicos os resultados no PubPeer foi do estudante de doutorado Chris Hartgerink, de 25 anos. Segundo ele, a intenção foi gerar benefícios imediatos para o campo da psicologia, que não seriam alcançados se apenas resultados gerais fossem divulgados. O fato de também detectar falsos positivos e erros sem importância, disse o pesquisador, não compromete esse objetivo. Hartgerink e o professor Marcel van Assen tentam agora desenvolver outro tipo de software, capaz de detectar se um artigo científico contém dados

fabricados. Para testar a eficiência do método, a dupla pediu a colegas para enviar versões de seus papers com dados deliberadamente alterados, que estão sendo avaliados. Entre os pesquisadores de psicologia, há também quem considere o statcheck uma ferramenta útil para melhorar a qualidade das publicações científicas. Simine Vazire, pesquisadora do Departamento de Psicologia da Universidade da Califórnia em Davis, prevê que os autores de artigos nessa área serão ainda mais cuidadosos com suas análises estatísticas agora que sabem da existência de um programa capaz de identificar descuidos, erros e fraudes. A Universidade de Tilburg, onde o programa foi desenvolvido, foi o cenário de um escândalo de má conduta científica. Em setembro de 2011, a instituição demitiu um de seus mais produtivos pesquisadores, o professor de psicologia social Diederik Stapel, acusado de fraudar mais de 30 artigos científicos ao longo de oito anos – uma investigação provou que ele fabricava dados, enganava coautores e até mesmo intimidava quem desconfiasse dele (ver Pesquisa FAPESP nº 190). Chris Hartgerink foi aluno de graduação de Stapel e tinha o professor como uma espécie de mentor – fora inclusive seu assistente de pesquisa. Ficou, na época, desorientado. “Era uma figura inspiradora e foi o responsável pelo meu entusiasmo em fazer pesquisa”, disse ao jornal The Guardian. A experiência amarga do escândalo levou parte do grupo de pesquisadores que investigou suas fraudes a montar o Centro de Metapesquisa, interessado no estudo de má conduta científica. Hartgerink uniu-se ao grupo em 2013, em seu projeto de doutorado sobre métodos para detectar a fabricação de dados de pesquisa. n PESQUISA FAPESP 253 | 9


Um dos temas que movimentaram a reunião anual da Associação Americana para o Avanço da Ciência, realizada em Boston em fevereiro, foi a proliferação de notícias falsas na internet. Uma palestra de Kevin Elliott, professor de ética da Universidade do Estado de Michigan, mostrou que o fenômeno, que ganhou destaque no mundo político dos Estados Unidos desde a última campanha eleitoral, é um antigo conhecido da ciência. Elliott mencionou os estudos enviesados patrocinados durante décadas pela indústria do tabaco para mascarar os efeitos deletérios do cigarro para a saúde, além de casos recentes, como a manipulação de testes de emissão de poluentes promovida pela Volkswagen, descoberta em 2015. Um bom antídoto contra as notícias científicas falsas, segundo o pesquisador, é manter algum ceticismo quando o responsável pela pesquisa tem algum interesse direto no resultado favorável. O mais seguro, quando se deseja saber o que a ciência tem a dizer sobre um problema específico, é consultar os relatórios temáticos que sociedades científicas respeitadas costumam produzir. “Assim, evitam-se interpretações excêntricas”, afirmou Elliott. Já a apresentação de Dominique Brossard, professora da Universidade de Wisconsin-Madison, propôs que, na divulgação de fatos científicos, é tênue a linha que separa a fraude pura e simples e os efeitos do jornalismo de má qualidade. A falsa informação, disse, é disseminada com o intuito de enganar e influenciar pessoas. Ela citou um estudo que realizou com um aluno da Universidade Yale sobre as notícias bizarras publicadas num tabloide sensacionalista distribuído em supermercados nos Estados Unidos, como recém-nascidos com 15 quilos de peso, ataques de alienígenas e insetos gigantes. 10 | março DE 2017

Segundo o estudo, a maioria das informações é inventada, mas uma parte é composta por histórias reais inusitadas, sem que o leitor possa separar uma coisa da outra. Já o jornalismo científico de má qualidade produz situações nebulosas. Dominique citou um estudo que ganhou repercussão nas redes sociais, segundo o qual a cafeína preveniria o câncer, mas que se baseava num ensaio com apenas 10 indivíduos. “Os jornalistas não são treinados para aferir a validade de um estudo. Eles tentam enfatizar o lado humano da notícia em manchetes como: ‘Novos estudos trazem esperança para familiares de vítimas do mal de Alzheimer’”, comentou, de acordo com o serviço de notícias EurekAlert. Como isso gera expectativas, espalha-se nas redes sociais. Dominique sugeriu três estratégias para enfrentar o problema. A primeira é uma convocação para que cientistas se disponham a explicar melhor o que estão fazendo e a ajudar jornalistas a avaliar os achados científicos. A segunda é envolver

ilustração  júlia cherem rodrigues

Antídotos contra notícias falsas

instituições científicas no monitoramento nas redes sociais de notícias falsas envolvendo suas pesquisas, divulgando esclarecimentos sempre que necessário. A terceira é convencer as ferramentas de busca na internet a retirar de seus registros referências a trabalhos científicos que sofreram retratação.

Yuans em troca de artigos O sociólogo Jeroen Huisman, professor da Universidade de Ghent, da Bélgica, recebeu um e-mail de um representante da Universidade Zhengzhou, da China, perguntando se ele teria interesse em passar uma temporada na instituição como professor visitante. Huisman ficou curioso e pediu mais detalhes. Para sua surpresa, recebeu a minuta de um contrato que previa o pagamento de 300 mil yuans, o equivalente a R$ 135 mil, caso ele produzisse três papers em revistas indexadas e declarasse a universidade chinesa como sua instituição de origem. O contrato previa apenas duas visitas a

Zhengzhou, capital da província de Henan. Ele rejeitou a oferta. “Não parecia ilegal, mas era evidentemente antiético. Tratava-se apenas de uma transação financeira”, disse. A revista Times Higher Education procurou a universidade chinesa, que não quis se pronunciar. Rui Yang, professor da Faculdade de Educação da Universidade de Hong Kong, disse à revista que esse tipo de contrato é comum em universidades chinesas – ele próprio já rejeitou ofertas. “Algumas universidades precisam de bons artigos em inglês para não ficarem mal nos processos de avaliação realizados no país.”


Dados

Número de pesquisadores

Comparação entre o número de pesquisadores do estado de São Paulo, Brasil e países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e seus respectivos PIBs (Produto Interno Bruto), medidos pela PPP (Paridade de Poder de Compra). Estados Unidos e China não aparecem nos gráficos porque os valores de PIB e de número de pesquisadores são bem mais altos que nos demais países com dados disponíveis (40), colocando-os fora das escalas utilizadas, mas seus dados foram utilizados para o cálculo das retas dos valores esperados.

700.000

Total de pesquisadores e PIB, países da OCDE, Brasil e São Paulo

Japão 600.000 500.000

Pesquisadores

São Paulo esperado 85.743

O valor é 68% do esperado, considerando-se o PIB do estado

400.000

Fed. Russa

São Paulo 58.609

Coreia do Sul

300.000

Austrália Canadá

Itália Espanha Polônia México África do Sul

100.000

Argentina 0

0

1.000

2.000

500.000

Pesquisadores

400.000 350.000

São Paulo 25.747

300.000 250.000

50.000 0

Canadá Austrália Espanha Itália México

Argentina 0

1.000

Pesquisadores em universidades e institutos de pesquisa e PIB, países da OCDE, Brasil e São Paulo

2.000

6.000

PIB (bilhões $PPP)

Pesquisadores em empresas e PIB, países da OCDE, Brasil e São Paulo

Brasil esperado 168.748 A quantidade é 24% do esperado para o seu PIB

Brasil 41.316

3.000

4.000

5.000

6.000

PIB (bilhões $PPP)

250.000

Fed. Russa

225.000

O valor é 9,3% acima do esperado, considerando-se o PIB do estado

200.000

Pesquisadores

África do Sul

5.000

Alemanha

França

Reino Unido Polônia

4.000

Fed. Russa

150.000 100.000

3.000

Coreia do Sul

São Paulo esperado 55.688

200.000

A quantidade é 52% do esperado para o seu PIB

Brasil 134.934

Japão

O valor é 46% do esperado, considerando-se o PIB do estado

450.000

Reino Unido Brasil esperado 259.821

França

200.000

Alemanha

175.000 150.000

São Paulo 32.862

125.000 100.000 75.000

Austrália

50.000 Argentina Suécia

Turquia México

1.000

A quantidade é 2,8% acima do esperado para o seu PIB

91.073

São Paulo esperado 30.055

África do Sul 0

Japão

Brasil

França 93.618 Espanha Coreia do Sul Brasil Itália esperado Polônia Canadá

25.000 0

Reino Unido Alemanha

2.000

3.000

4.000

5.000

6.000

PIB (bilhões $PPP)

Fonte  Pesquisadores, para Brasil e São Paulo, bases de dados da FAPESP, para demais países, OCDE (Main Science and Technology Indicators). PIB (em Paridade de Poder de Compra – $PPP) – Banco Mundial, exceto São Paulo, base de dados Fapesp. Dados de 2015 ou ano mais recente.


Notas Mutação que favoreceu adaptação à dieta gordurosa está presente em ameríndios Há cerca de 18 mil anos teria havido um grande evento

estudo internacional de 2015 encontrou tal mutação,

adaptativo entre a primeira leva de humanos que aca-

que permite digerir mais facilmente uma alimentação

bara de deixar a Ásia rumo às Américas e se encontra-

rica em ácidos graxos, apenas no DNA das atuais po-

va na Beríngia, uma vasta porção de terra firme que

pulações Inuit, da Groenlândia. Um novo trabalho, feito

então ligava a Sibéria ao Alasca. Durante sua estada

por uma equipe de pesquisadores brasileiros, identificou

na ponte natural entre os dois continentes, hoje majo-

essa variante genética no DNA de 53 povos ameríndios

ritariamente submersa pelo estreito de Bering, essa leva

atuais, que habitam o continente de norte a sul (PNAS,

primordial de caçadores-coletores teria sofrido pressões

13 de fevereiro). “Os Inuit são apenas uma das popula-

da seleção natural devido ao frio extremo e à adoção

ções que carregam o sinal de seleção natural nesse

de uma dieta rica em proteínas e gorduras. A nova

gene”, explica a geneticista Tábita Hünemeier, do Ins-

realidade teria levado a alterações em seu genoma.

tituto de Biociências da Universidade de São Paulo

Uma das marcas moleculares causadas pelo processo

(IB-USP), uma das autoras do artigo. A nova análise

adaptativo teria sido o aparecimento de uma mutação

também indica que a mutação teria ocorrido quando

em um gene da família FADS, ligado ao metabolismo

essa população estava na Beríngia e ainda não tinha se

de gorduras poli-insaturadas, como o ômega 3. Um

dispersado pelas Américas.

Alteração em um gene ligado à metabolização de gorduras poli-insaturadas teria ocorrido há 18 mil anos

1

Uma proposta esmagadora para explicar o Universo Q

u

c

t

g

d

S

b

W

e

μ

τ

ve

Ne

Z

y

As grandes questões em aberto sobre o

por que há mais matéria do que antima-

Universo poderão ser resolvidas caso seja

téria e a descoberta de um tipo de partí-

comprovada a existência de mais seis par-

cula 10 bilhões de vezes mais leve que o

tículas elementares, além das 17 descritas

elétron, o áxion, justificaria o conceito de

ρ

pelo modelo-padrão da física. Essa é a

matéria escura. O Smash também propõe

conclusão de um grupo de físicos teóricos

um quark extra, além dos seis do modelo-

A

liderados por Guillermo Ballesteros, do

-padrão, para confirmar propriedades

CNRS, na França (Physical Review Letters,

fundamentais da força que mantém essas

15 de fevereiro). Eles propõem um novo

partículas unidas dentro de prótons e

modelo para a física de partículas, o Smash,

nêutrons. Por fim, o modelo postula que a

trocadilho para o verbo esmagar em inglês,

interação entre o bóson de Higgs e uma

que significa Standard Model Axion See-

nova partícula chamada de rho seria a

-saw Higgs portal inflation. Segundo o

causa da inflação cósmica, um brevíssimo

trabalho, a existência de três novos tipos

período de rápida expansão do Universo

de neutrinos ultrapesados poderia explicar

logo após o Big Bang.

H

2

Modelo Smash propõe seis novas partículas, além das 17 já conhecidas 12 | março DE 2017


Estrela t r appis t- i

Como o macaco-prego quebra castanha

sis t e m a s o l a r Mercúrio

Ib

Os macacos-prego da espécie Sapajus libidinosus são cheios de recursos. No Parque

Ic

Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, usam

Vênus

pedras e galhos como ferramentas para processar e obter

Id

alimentos e garantem a atenção – por horas a fio

Terra

– de pesquisadores ocupados em estudar Ie

esses comportamentos raros no mundo animal. Um desses especialistas é

Marte

o biólogo Tiago Falótico,

If

do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e primeiro autor de

Ig

um artigo que descreve

Cinturão de asteroides

um aspecto de como os macacos quebram castanhas-de-caju (Folia Primatologica, 1º de

Ih

março). O pesquisador observou que seis

Comparação da quantidade de energia recebida pelos exoplanetas em torno da estrela Trappist-1 e pelos planetas mais internos do Sistema Solar. Cada faixa de cor corresponde a um nível de energia. Com exceção da estrela, todos os planetas estão em sua escala relativa à da Terra

macacos adultos (de um grupo de 30 animais) posicionam, às vezes, os frutos lateralmente, de maneira que possam ser fotos 1 Léo Ramos Chaves 2 APS / Alan Stonebraker 3 IoA / Amanda Smith e NASA / JPL-Caltech

quebrados por uma pedra com menos força. Em

Sete exoplanetas e uma estrela

alguns casos, o ato requer morder uma ponta da castanha para

Uma campanha de observações envolvendo

lho da Trappist-1, os pesquisadores consegui-

garantir o equilíbrio do

telescópios terrestres ao redor do mundo e

ram determinar a distância de cada exopla-

fruto sobre a rocha que

também espaciais, como o Hubble e o Spitzer,

neta da estrela e o período de rotação ao

lhe serve como base.

da agência espacial norte-americana, a Nasa,

redor dela. Também estimaram o tamanho e

Na interpretação dos

confirmou a presença de sete exoplanetas

a massa de todos, exceto do exoplaneta h.

pesquisadores, alguns

em órbita da estrela Trappist-1, a 40 anos-luz

Os novos mundos estão mais perto de sua

macacos adquirem, com

de distância da Terra, na direção da conste-

estrela do que a distância entre Mercúrio e

a idade, compreensão

lação de Aquário. Coordenada pelo astrôno-

o Sol. Como a pequena Trappist-1 é cerca de

de como romper mais

mo Michael Gillon, da Universidade de Liege,

mil vezes menos brilhante que o Sol, existe

facilmente a castanha.

na Bélgica, a iniciativa é a primeira a observar

a possibilidade de que os exoplanetas tenham

Essa percepção seria

esse número de planetas extrassolares ao

água líquida em suas superfícies rochosas,

mais um elemento do

redor de uma única estrela, todos com mas-

especialmente nos mundos c, d e e. Os astrô-

repertório de

sa e tamanho semelhantes aos da Terra (Na-

nomos esperam que o telescópio espacial

comportamento dos

ture, 22 de fevereiro). Os exoplanetas foram

James Webb, a ser lançado pela Nasa em

animais, que adaptam o

nomeados apenas por letras em ordem alfa-

2018, seja capaz de detectar a luz das at-

peso da pedra e o tipo

bética, conforme sua distância da estrela: b,

mosferas desses exoplanetas e deduzir sua

de ferramenta de acordo

c, d, e, f, g e h. Observando variações no bri-

composição química.

com a dureza do fruto.

3

PESQUISA FAPESP 253 | 13


Nanquim gera imagem em 3D de vasos sanguíneos No lugar de proteínas fluorescentes ou corantes complexos, tinta nanquim misturada com gelatina, produtos que podem ser comprados em um mercado. Com esses ingredientes baratos e fáceis de serem achados, pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Universidade de Surrey, na Inglaterra, desenvolveram uma técnica que permite examinar e quantificar os vasos sanguíneos no cérebro por meio da geração de imagens de alta resolução em 3D. Com o auxílio de um microscópio confocal, foi possível registrar em detalhes as ramificações de vasos em diversas regiões do encéfalo de ratos, como o córtex cerebral, o hipocampo e o cerebelo. Os animais receberam injeções do composto de nanquim e gelatina que preenche os vasos e se destaca nas imagens obtidas do cérebro (Journal of Anatomy, dezembro 2016). O método permite determinar o número, o comprimento e a área de superfície dos vasos, parâmetros que, quando alterados, podem indicar doenças circulatórias. “A técnica é simples de ser empregada e os materiais usados são muito acessíveis”, comenta o parasitologista Renato Mortara, professor da Escola Paulista

Técnica simples determina o número, o comprimento e a área de superfície dos vasos

de Medicina da Unifesp, um dos autores do estudo. A preparação da mistura usada no exame demora cerca de 24 horas. O próximo passo do projeto é testar o uso do procedimento em análises post-mortem e em biópsias de tecidos humanos. A técnica foi desenvolvida pelo pesquisador Robson Gutierre, 1

que faz estágio de pós-doutorado na Unifesp.

Poluição humana atinge as regiões mais profundas do oceano 2

Nem mesmo as profundezas dos oceanos, con-

Newcastle, Inglaterra, e seus colaboradores de-

sideradas as áreas mais intocadas do planeta,

tectaram níveis elevados de dois produtos quí-

estão livres de influência humana. Pesquisadores

micos: os bifenilpoliclorados, compostos bastan-

do Reino Unido identificaram níveis elevados de

tes estáveis, tóxicos e pouco inflamáveis, usados

poluentes orgânicos usados por décadas nas

por décadas em fluidos de refrigeração; e os

atividades industriais em crustáceos capturados

éteres difenil-polibromados, empregados como

nas regiões mais distantes da superfície. Usando

retardador da propagação de chamas em tintas,

armadilhas submergíveis, eles coletaram amos-

tecidos e materiais da indústria automobilística

tras de anfípodas, crustáceos semelhantes a

e aeronáutica. Anfípodas da fossa de Marianas

camarões, a profundidades que variaram de 7

apresentavam concentrações desses poluentes

mil metros (m) a 10 mil m em duas áreas do ocea-

ambientais mais elevadas do que as dos crustá-

no Pacífico: a fossa de Marianas, ao norte, pró-

ceos de Kermadec e, em ambos os casos, supe-

ximo às Filipinas, e a fossa de Kermadec, no sul,

riores às de regiões costeiras consideradas lim-

na vizinhança da Nova Zelândia. Essas duas

pas (Nature Ecology and Evolution, 13 de

zonas abissais se estendem por centenas de

fevereiro). Entre os anfípodas de Marianas, o

quilômetros e estão entre as mais profundas e

nível de bifenilpoliclorados foi 50 vezes superior

menos exploradas da Terra – a de Marianas tem

ao registrado em caranguejos do rio Liaohe, um

10.994 m de profundidade e a de Kermadec,

dos mais poluídos da China. Os dados, segundo

10.047 m. Ao analisar a composição química dos

o pesquisador, indicam que as águas profundas

anfípodas, Alan Jamieson, da Universidade de

e superficiais são altamente conectadas.

Anfípodas, que vivem a 10 mil metros de profundidade, apresentam níveis elevados de poluentes

2

14 | março DE 2017


Apesar de inaugurado em fevereiro, o detector de ondas gravitacionais ainda não está operando

Goldemberg recebe título de Professor Emérito da USP O físico José Goldemberg, de 88 anos, presidente da FAPESP, recebeu no dia 14 de fevereiro o título de Professor Emérito da Universidade de São Paulo (USP). A honraria foi concedida pelo Conselho Uni-

3

A nova geração do Virgo

para o desenvolvimento da universidade. A cerimônia espessura, devem atrasar

ocorreu no Palácio dos Bandeirantes, sede do gover-

em meses o seu pleno

no paulista, e teve a presença do governador Geral-

funcionamento. “A notícia

do Alckmin e do reitor Marco Antônio Zago, entre

O Virgo Advanced,

foi muito frustrante para

outras autoridades e lideranças acadêmicas. Este é

a segunda geração do

todos”, disse Bruce Allen

o 17º título de Professor Emérito concedido pela uni-

detector de ondas

à revista Science, diretor

versidade em seus 83 anos de história. Goldemberg

gravitacionais europeu

do Instituto Max Planck

já era Professor Emérito do Instituto de Física (IF-USP)

instalado na Itália, foi

de Física Gravitacional,

e do Instituto de Energia e Ambiente (IEE-USP). “Gol-

oficialmente inaugurado

da Alemanha, e membro

demberg é um cientista com uma ampla visão social

no dia 20 de fevereiro.

do consórcio Ligo.

da ciência, promovendo essa visão em todas as instituições pelas quais passou”, disse o reitor Zago

Composto por dois braços retos que se estendem (cada um deles) por 3 quilômetros nos arredores de Pisa, o interferômetro

fotos 1 EPM/Unifesp 2 Alan Jamieson/ Universidade de Newcastle 3 Colaboração Virgo  4 eduardo cesar

versitário em reconhecimento a suas contribuições

Gastroenterite assolou astecas

durante seu discurso em homenagem ao físico. Reitor da USP entre 1986 e 1990, Goldemberg teve papel importante na conquista da autonomia das três universidades paulistas ao negociar com o go-

passou por uma

Uma bactéria pode ter

verno estadual, em 1988, uma proposta de fixação

atualização de sua parte

matado milhões de

de uma fração do Imposto sobre Circulação de Mer-

óptica e eletrônica e

pessoas no século XVI

cadorias e Serviços (ICMS) para as instituições. A

também se tornou mais

onde hoje é o México

negociação ocorreu juntamente com Paulo Renato

protegido de influências

e contribuído para o

Souza e Jorge Nagle, à época reitores da Universida-

externas, como abalos

declínio do império

de Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universi-

sísmicos. O projeto, que

Asteca. A suspeita

dade Estadual Paulista (Unesp), respectivamente.

consumiu cinco anos de

é de pesquisadores do

“Devo à USP minha formação e como reitor da uni-

esforços e € 24 milhões

Instituto Max Planck,

versidade tentei contribuir para o reerguimento da

(R$ 79,6 milhões),

na Alemanha, que

instituição, afetada pelo período da ditadura militar,

tinha como objetivo

analisaram o material

de 1964 a 1985”, afirmou Goldemberg.

aumentar em 10 vezes

genético extraído dos

a sensibilidade do

dentes de 29 pessoas

equipamento. Dessa

enterradas no Sul do

forma, o Virgo pode

México. Quase todas

trabalhar em conjunto

haviam morrido entre

com os dois detectores

1545 e 1550 em um surto

do Ligo, que operam nos

infeccioso que se tornou

Estados Unidos e foram

conhecido como cocoliztli

os responsáveis pela

ou peste. Os fragmentos

confirmação da existência

de DNA encontrados

das ondas gravitacionais

correspondiam ao

no ano passado. Apesar

da Salmonella enterica,

do anúncio do início de

bactéria que causa

sua segunda fase, o

infecções intestinais

Virgo Advanced ainda

graves (gastroenterite)

não entrou em operação.

e que pode ter sido

Problemas com suas

levada para lá pelos

novas fibras de vidro,

conquistadores europeus

de 0,4 milímetro de

(bioRxiv, 8 de fevereiro).

4

O físico José Goldemberg com a honraria concebida pela universidade PESQUISA FAPESP 253 | 15


Mais nitrogênio na lavoura

as perdas de nitrogênio caíram para 13%, em ensaios laboratoriais,

O nitrogênio é um

num prazo de 42 dias”,

nutriente essencial para

conta ((Journal of Applied

vários cultivos, como

Polymer Science,

milho, trigo e café. Na

setembro 2016).

lavoura é fornecido às fertilizante, a ureia, que contém de 43% a 46% desse elemento

Diagnóstico da biodiversidade

em sua composição.

Uma equipe de 50

O problema é que o

pesquisadores de várias

nitrogênio se volatiza

universidades brasileiras

com facilidade, perdendo

pretende lançar até

até 50% de sua

julho de 2018 o primeiro

composição num prazo

diagnóstico nacional

de 14 dias após a

sobre a biodiversidade

aplicação. O doutorando

e os chamados serviços

Ricardo Bortoletto

ecossistêmicos,

Santos, do Instituto de

benefícios gerados direta

Química de São Carlos

ou indiretamente pela

da Universidade de

natureza, como a

O governo britânico escolheu o imunologista Mark

São Paulo (USP),

polinização das plantas

Walport, atual conselheiro-chefe para assuntos

pesquisa uma possível

ou a oferta de água e ar

científicos do Reino Unido, para assumir em 2018 a

solução para esse

puros. A iniciativa

direção da UK Research and Innovation (Ukri), novo

empecilho: revestir

está vinculada à

órgão de financiamento à ciência e tecnologia com

os grânulos de ureia

Plataforma Brasileira

orçamento anual de £ 6 bilhões, o equivalente a R$

com um polímero.

sobre Biodiversidade e

23,2 bilhões. Proposta há dois anos pelo bioquími-

Desenvolvendo seus

Serviços Ecossistêmicos

co Paul Nurse, vencedor do Nobel de Medicina em

estudos na Embrapa

(BPBES, na sigla em

2001 e presidente da Royal Society entre 2010 e

Instrumentação,

inglês), lançada

2015, a “superagência” está em processo de criação,

também em São Carlos,

em fevereiro. O objetivo

com o objetivo de centralizar as atividades de nove

na equipe do engenheiro

do grupo é sintetizar

agências de apoio à pesquisa, entre as quais os sete

de materais Cauê

o conhecimento sobre

Conselhos de Pesquisa do Reino Unido (RCUK, em

Ribeiro, Santos usou um

esses temas e ajudar

inglês). “O sistema britânico de financiamento à

poliuretano, feito a partir

autoridades na

pesquisa funciona bem, mas carece de uma voz

de óleo de mamona

elaboração de ações

única”, disse Walport à revista Nature. A criação do

e de soja, para recobrir

voltadas à conservação

Ukri ainda precisa ser aprovada pelo Parlamento do

a ureia. “Revestida

e ao desenvolvimento

com 7% de polímero

sustentável. “Queremos

(70 gramas de

produzir um documento

poliuretano para um

que de fato seja útil,

quilo do fertilizante),

que traga as principais

1

Um chefe para a superagência britânica de pesquisa

O imunologista Mark Walport vai comandar a UK Research and Innovation (Ukri), em processo de criação

Ureia (azul) revestida por polímero perde menos nitrogênio

Reino Unido. A escolha de Walport agradou boa parte da comunidade científica britânica, mas também gerou críticas. O astrônomo Martin Rees, ex-presidente da Royal Society, declarou que, como conselheiro científico, Walport foi um forte propo-

propostas de opções e

nente de “uma estrutura mais monolítica” para o

de caminhos a seguir”,

financiamento da ciência. Segundo um editorial da

disse à Agência FAPESP

Nature, além da preocupação com a consolidação

Carlos Joly, da

dos conselhos de pesquisa, há receio de interferên-

Universidade Estadual

cia do governo em órgãos que gozam de autonomia.

de Campinas e

“Nunca propus algo monolítico”, disse Walport.

coordenador do

Segundo ele, as atuais agências não perderão au-

programa Biota-FAPESP,

tonomia. “A ideia é trabalhar em conjunto. O todo

que apoia a plataforma

será maior do que a soma das partes.” Como con-

em parceria com o CNPq

selheiro, Walport esteve em São Paulo em duas

e a Fundação Brasileira

ocasiões, em maio de 2014 e em abril de 2016 – na última delas, participou de um evento na FAPESP. 16 | março DE 2017

para o Desenvolvimento 2

Sustentável.

fotos 1 léo ramos chaves 2 Ricardo Bortoletto-Santos  3 thinboyfatter / flickr  mapa Nick Mortimer / GSA Today

plantas por meio de um


Zelândia, o novo continente, quase todo submerso, proposto por geólogos

América do Norte

Eurásia

Zelândia África

Austrália

América do Sul Zelândia

Apesar de 94% do seu território estar debaixo do Pacífico, a Zelândia apresenta as principais características geológicas dos blocos da crosta terrestre. A Nova Zelândia (foto) e o arquipélago da Nova Caledônia são partes do continente acima do nível do mar

Antártida

Não é Atlântida, ilha lendária que teria afundado, mas Zelân-

Pacífico, apresenta as principais características geológicas

dia, um continente real, situado no sudoeste do oceano Pa-

e geofísicas que definem as áreas da crosta continental em

cífico, cujo território de 4,9 milhões de quilômetros quadra-

oposição às da crosta oceânica. Sua composição é essencial-

dos se encontra 94% submerso. Entre os 6% que estão

mente granítica, mais “leve” do que a da crosta oceânica,

acima do nível do mar, destacam-se as duas ilhas que formam

formada por basalto. Apresenta altitudes mais elevadas (por

a Nova Zelândia (inspiração para o nome do continente) e o

isso, a maior parte dos outros continentes está acima do

arquipélago da Nova Caledônia. A proposta de considerar

nível do mar). Sua espessura é maior, por volta de 35 quilô-

esse grande bloco da crosta terrestre como um continente

metros. A da crosta oceânica atinge, em média, 8 quilômetros.

— a exemplo da África, América do Norte, América do Sul,

A Terra é o único planeta do Sistema Solar cuja crosta é di-

Antártida, Austrália e Eurásia — foi feita por uma equipe

vidida em dois tipos, a continental e a oceânica. Ao movi-

coordenada por Nick Mortimer, do GNS Science, nome atual

mento das placas tectônicas, os geólogos atribuem o surgi-

do antigo Instituto de Ciências Geológicas e Nucleares neo-

mento da crosta granítica, ou seja, dos continentes. Além

zelandês (GSA Today, 9 de fevereiro). Segundo os autores do

dessa definição geológica de continente, há também outras,

estudo, a Zelândia, embora majoritariamente coberta pelo

como as geográficas e as geopolíticas.

3

PESQUISA FAPESP 253 | 17


Os precursores de Lobato

18 | marรงo DE 2017


capa

Livros para crianças escritos por

Ilustrações do livro João Felpudo, 1860

autores nacionais já circulavam no final do século XIX Carlos Fioravanti

reproduções  eduardo cesar

N

o final de fevereiro, os Versos para os pequeninos foram finalmente publicados, depois de permanecerem inéditos por pelo menos 120 anos. Com 24 poemas infantis escritos entre 1886 e 1897 pelo bacharel em direito e educador fluminense João Köpke (1852-1926) e resgatados por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), os Versos somam-se a descobertas de especialistas de outras universidades do país que revelam os autores nacionais e os mecanismos de funcionamento do mercado editorial de livros para crianças no final do século XIX e início do XX. A articulação entre editores, escritores, divulgadores e leitores começou a se formar décadas antes da publicação, em 1920, de A menina do narizinho arrebitado, o primeiro livro do escritor paulista José Bento Renato Monteiro Lobato (1882-1948), autor de uma obra ampla e reconhecida (ver Pesquisa FAPESP no 157 e Especial 50 Anos). Estudos recentes reiteram a conclusão de que Lobato modernizou a literatura infantil brasileira, mas não a criou, diferentemente do que diziam pesquisadores e escritores do passado. Um de seus primeiros biógrafos, o escritor paulista Edgard Cavalheiro (1911-1958), em um comentário bastante citado em estudos nessa área, afastou os precursores ao afirmar que antes de Lobato “a literatura infantil praticamente não existia entre nós” e “havia tão somente o conto com fundo folclórico”. “Em carta de 1919 para um amigo, Lobato comentou que não havia nada para ler para os filhos dele a não ser o livro de fábulas de João Köpke. Ele se

referia à qualidade das obras disponíveis, adaptações de obras europeias e mesmo livros de autores nacionais, mas não é a verdade absoluta”, diz Marisa Lajolo, professora da Unicamp e da Universidade Mackenzie, que retoma esse assunto no livro Literatura infantil brasileira: Uma nova/outra nova história (FTD-PUC Press, 2017), a ser lançado em abril, em coautoria com Regina Zimmermann. “Em 1920, Lobato recebe da gráfica que estava imprimindo a primeira edição de Narizinho arrebitado a informação de que o Primeiro livro de leitura, de Köpke, serviria de modelo para a impressão da história do sítio.” Segundo ela, Lobato fez mudanças radicais na literatura infantil, “como os modernistas de 1922 fizeram na literatura adulta”, e a partir da década de 1930 teve muito mais visibilidade que qualquer outro autor antes dele. O filho mais velho de Köpke, Winckelmann Köpke (1886-1951), foi quem inicialmente guardou o original de 54 páginas de Versos para os pequeninos, já com os poemas manuscritos organizados em sequência e as respectivas ilustrações de página inteira, recortadas de outros livros, para servir como referência a quem as refizesse. Provavelmente Winckelmann o entregou a seu filho José, que o deixou com sua filha mais velha, Maria Izabel Köpke Ramos, bisneta de João Köpke. Uma das irmãs de Maria Izabel, Maria Lygia Köpke Santos, mencionou o livro em sua tese de doutorado, apresentada em 2013 na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (FE-Unicamp). Depois ela entregou os originais a sua orientadora, Norma Ferreira, professora da FEPESQUISA FAPESP 253 | 19


-Unicamp. Norma analisou os Versos em sua tese de livre-docência, apresentada em 2014 e agora publicada na forma de livro, com os poemas. Depois de construir uma carreira respeitada de educador em escolas das cidades de São Paulo e Campinas, Köpke se mudou em 1886 para o Rio de Janeiro e criou o Instituto Henrique Köpke, assim chamado em homenagem a seu pai. O instituto era uma escola particular, que funcionou até 1897 e servia para ele lançar seus próprios livros de alfabetização e de leituras para crianças. Foi como diretor do instituto que Köpke se apresentou na abertura dos Versos, em grandes letras manuscritas. De acordo com Norma, seu propósito com o livro era oferecer uma leitura agradável para as crianças e aplicar o método analítico de alfabetização, que ele tinha desenvolvido em outros livros, o primeiro deles publicado em 1884 pela Francisco Alves. Os poemas consistem em histórias alegres e rimas simples, tratando da Lua, de avós, brincadeiras, brinquedos, animais e canções das crianças (leia ao lado trechos do poema O balanço). “Versos para os pequeninos, de forma mais contundente do que em suas obras editadas, oferecem outra faceta de João Köpke: a de um escritor que quer conquistar a criança-leitora com uma representação do universo infantil que questiona o conhecimento, a verdade e a realidade”, escreveu Norma em sua tese de livre-docência. A seu ver, a liberdade e a informalidade dos poemas não se encaixavam nas propostas pedagógicas predominantes no início do século XX, que valorizavam poemas edificantes e crianças bem-comportadas, como as do Livros das crianças, da educadora paulista Zalina Rolim (18671961), de 1897. “Köpke era bastante crítico das propostas educacionais daquele período, como o plano pedagógico, adotado para a criação do Jardim da Infância, que, segundo ele, apresentava salas superlotadas e fechadas, intervalos curtos entre as aulas e professores inexperientes”, diz Norma. “A irreverência nos poemas se tornou uma marca do estilo de Lobato, décadas depois.” João Felpudo no Brasil

Por sua vez, já no final de sua pesquisa de pós-doutorado na Universidade de São Paulo (USP), a historiadora Patrícia Raffaini investigava jornais antigos no site da Biblioteca Nacional no início de 2016 quando encontrou o anúncio “João Felpudo – Histórias alegres para crianças travessas com vinte e quatro pinturas esquisitas” na edição de 4 de dezembro de 1860 do Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro. O anúncio era um registro da primeira edição de um livro de muito sucesso lançado na Alemanha em 1844. Escrito pelo médico Heinrich Hoffmann para seu filho de 3 anos, trazia ilustrações generosas e histórias breves de 20 | março DE 2017


trícia. “Os editores investiam nesse segmento e muitas obras, como João Felpudo, já haviam sido traduzidas. A produção de obras com autores nacionais estava começando.” Ela iniciou sua pesquisa com uma lista de 20 títulos de livros infantis publicados entre 1860 e 1920 identificados na Biblioteca Nacional e no Real Gabinete Português de Leitura, ambos no Rio. Três anos depois, após garimpar por sebos de todo o país, tinha reunido 70 títulos diferentes. “Umas das precursoras da literatura infantil brasileira foi a romancista Júlia Lopes de Almeida (1862-1934)”, atestou Nelly Novaes Coelho, professora aposentada da USP e uma das maiores especialistas no assunto, no livro Panorama histórico da literatura infantil/juvenil (Amarilys, 2010). Em 1886, Júlia Lopes publicou Contos infantis, com 60 narrativas em verso e prosa escritas em colaboração com sua irmã Adelina Lopes Vieira, depois Histórias da nossa terra, de 1907, e Era uma vez, de 1917, todos com reedições. “Simultaneamente ao aumento de traduções e adaptações de livros literários para o público infantojuvenil”, Nelly Coelho escreveu em A leitura era seu livro, “começa a se firuma das maiores mar, no Brasil, a consciência de que uma literatura fontes de própria, que valorizasse o nacional, fazia-se urgente entretenimento para a criança e para a juventude brasileiras”. Ela nos séculos XVIII também reconhece Pie XIX, diz mentel como “o primeiro intelectual a popularizar Márcia Abreu o livro, através de edições mais acessíveis de autores clássicos”.

reproduções  eduardo cesar

Capa de Versos para os pequeninos e, na outra página, trecho do poema O balanço: livro inédito escrito entre 1886 e 1897

crianças que recebem castigos severos por não gostar de banho ou de sopa. Patrícia encontrava o tradutor original, o desembargador Henrique Velloso de Oliveira (1804-1861), possivelmente um dos responsáveis pela adaptação do título original, Der Struwwelpeter, cuja tradução literal resultaria em Pedro descabelado. Patrícia encontrou depois outros anúncios de João Felpudo no Jornal do Commercio, indicando uma das formas pelas quais a Editora Laemmert promovia a venda dos livros. Em 1894, como ela já tinha verificado, o editor fluminense Pedro Quaresma (1863-1921), dono da Livraria do Povo, investiu em anúncios de meia página para promover o relançamento de uma produção nacional, Contos da carochinha, já que os 5 mil exemplares da primeira edição teriam se esgotado em menos de um mês. Contos da carochinha inaugurava uma série de livros organizados pelo jornalista carioca Alberto Figueiredo Pimentel (1869-1914) com o propósito de apresentar em uma linguagem coloquial as fábulas de autores europeus, com animais falantes, lobisomens, santos e fadas. Com esses livros, Quaresma pretendia criar uma literatura infantil mais popular, com edições mais simples e de menor custo que as traduções refinadas das editoras Laemmert, de proprietários alemães, Garnier, de origem francesa, e da Francisco Alves, portuguesa. “O mercado de livros para crianças e jovens prosperava no final do século XIX, um período no qual se acreditava que pouco ou quase nada estava à disposição dos jovens leitores”, diz Pa-

Além da crítica literária

Veja a edição fac-similar de Versos para os pequeninos em revistapesquisa.fapesp.br

Os escritores anteriores a Lobato já eram citados em vários livros e sites, como o Memória de Leitura, da Unicamp (bit.ly/LiteraInfant), que reúne 19 autores de 1880 a 1910 e suas obras mais importantes. Uma investigação mais profunda levará a uma representante de uma época ainda mais remota, Nísia Floresta (1809-1885), educadora potiguar que criou um colégio para meninas no Rio de Janeiro e escreveu poemas, romances e novelas – Conselhos à minha filha é de 1842 e as novelas Fany ou o modelo das donzelas e Daciz ou a jovem completa, de 1847. O que pesquisadores de São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Ceará e outros estados têm feito é ampliar o olhar para além das narrativas dos livros. “Saímos do viés da crítica literária – que destaca apenas o que era bom – para a história cultural, que considera o que era lido, inPESQUISA FAPESP 253 | 21


dependentemente da qualidade, quem produzia, de que modo, em que lugar e quem consumia”, explica a historiadora Gabriela Pellegrino Soares, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e autora do livro Semear horizontes (Editora da UFMG, 2007), sobre a formação do mercado editorial de livros para crianças na Argentina e no Brasil. “Examinar as engrenagens da produção e circulação dos livros é um caminho muito fértil para conhecer as ideias e as representações do mundo em uma época”, ela acrescenta. Livros para adultos e crianças circulavam principalmente nas capitais do Brasil, ao longo do século XIX, apesar do alto analfabetismo, que chegava a 80% da população de quase 10 milhões de pessoas em 1872, quando foi feito o primeiro censo demográfico nacional. Estima-se que o analfabetismo fosse menor, talvez de 50%, no Rio de Janeiro, a então capital do país. “Há uma intensa importação de livros para o Brasil, entre os quais infantis, desde o século XVIII”, diz Márcia Abreu, professora do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, coordenadora de um projeto de pesquisa sobre a circulação transatlântica de impressos (ver Pesquisa FAPESP no 240) e autora de Os caminhos dos livros (Mercado de Letras, 2003). “A leitura era uma das

João Felpudo na capa da revista O Tico-Tico de 1925 (à esq.), anúncio da edição brasileira de 1860 (acima) e o desenho original, de 1844


Reproduções Eduardo Cesar  Anúncio de Lobato  Patrícia Hansen / Hemeroteca Biblioteca Nacional

Livros de autores nacionais: Álbum das crianças, de Figueiredo Pimentel, de 1897 (na outra página, no alto), e Cantigas das crianças e do povo, de Alexina Magalhães Pinto, de 1911 (à esq.). À direita, anúncio destacando a obra de Lobato

maiores fontes de entretenimento nessa época e os homens livres compravam vários livros por ano. Isso gerava uma forte movimentação editorial e comercial, com importação frequente de livros e, após 1808, também com muita impressão brasileira.” Havia um mercado consumidor em formação, composto por um contingente cada vez maior de imigrantes, homens livres e profissionais liberais ou assalariados. Estima-se que 17 livrarias e 30 tipografias funcionavam na cidade do Rio de Janeiro em 1860. Hoje, mesmo com o fechamento contínuo de livrarias, a literatura infantil constitui um mercado pujante. Em 2014 foram publicados 37 milhões de exemplares de 7.802 títulos de livros para crianças, segundo a Câmara Brasileira do Livro. Depois de Lobato

“Monteiro Lobato foi tão importante que apagou os escritores anteriores. Ninguém mais fala de Olavo Bilac e Tales de Andrade”, diz a jornalista Laura Sandroni, autora do livro De Lobato a Bojunga – As reinações renovadas (Agir, 1987), além de criadora e diretora por quase 20 anos da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Lobato se impôs com uma obra forma-

da por 22 livros escritos em linguagem coloquial, irreverente e vibrante, tratando de problemas da época e não de um distante país do futuro, como nos livros escolares anteriores. Apoiados por uma propaganda intensa – o próprio Lobato separou 500 exemplares de Narizinho para enviar para escolas e acelerar sua aceitação –, seus livros ultrapassaram a tiragem de 1 milhão em 1943. “Lobato era um gênio, como escritor e editor, e ele próprio construiu a ideia de que teria sido um pioneiro”, diz a historiadora Patrícia Hansen, atualmente vivendo em Lisboa. No acervo digital de jornais antigos da Biblioteca Nacional, ela encontrou um anúncio da edição de 15 de novembro de 1933 na revista O Tico-Tico, depois reproduzido em outras publicações, apresentando o História do mundo para crianças, o lançamento mais recente da Companhia Editora Nacional, e o escritor paulista como “o criador da literatura infantil no Brasil”. “Foi um marketing que deu certo”, concluiu Patrícia. “Não questionaram a fonte.” n Projeto Leitura ficcional na infância, 1880-1920 (no 13/00454-1); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Elias Thome Saliba (USP); Beneficiária Patrícia Tavares Raffaini; Investimento R$ 240.377,83.

Artigo científico HANSEN, P. S. A biblioteca dos jovens brasileiros: Do caráter didático da literatura infantil aos usos dos livros pelas crianças no início do século XX. Escritos. v. 5, n. 5, p. 79-96, 2011.

Livros SOARES, G. P. Semear horizontes: Uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil, 1915-1954. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. ABREU, M. Os caminhos dos livros. Campinas: Mercado de Letras/ ALB/FAPESP, 2003, 382 p. COELHO, N. N. Panorama histórico da literatura infantil/juvenil. São Paulo: Amarylis, 2010, 320 p. SANDRONI, L. De Lobato a Bojunga – As reinações renovadas. Rio de Janeiro: Agir, 1987, 181 p. FERREIRA, N. S. de A. Um estudo sobre os versos para os pequeninos, de João Köpke. Campinas: FAPESP/Mercado de Letras, 2017, 276 p.

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Cena familiar da década de 1920: ler para os filhos era um hábito

Intelectuais em ação Editores, professores, jornalistas e tradutores

A

o examinar a produção, distribuição e consumo dos chamados “livros para homens” – ou pornográficos –, Alessandra El Far, professora de antropologia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e autora do livro Páginas de sensação (Companhia das Letras, 2004), notou que “os livros para crianças também foram bastante populares no Rio de Janeiro, graças à iniciativa de Pedro da Silva Quaresma, proprietário da Livraria do Povo, de publicar a chamada Biblioteca Infantil”. Os dois segmentos editoriais se conectavam. Pimentel, que organizou a coleção de livros infantis, tinha conquistado grande visibilidade pública como autor do polêmico O aborto, de 1893, exemplo de livro voltado para os homens também editado por Quaresma, “com muitas cenas de sexo, luxúria e obscenidades, não aconselháveis às mulheres”, descreveu Alessandra. Segundo ela, O aborto e A mulata, do romancista português Carlos Malheiro Dias (1875-1941), que também

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fez livros infantis, venderam mais de 5 mil exemplares em poucos meses, permitindo a Quaresma tomar um fôlego financeiro para investir no mercado infantil. Ao mesmo tempo, a partir de 1860, os romances de José de Alencar e Machado de Assis começavam a chegar às livrarias, concentradas na rua do Ouvidor e nas ruas próximas do centro da cidade do Rio de Janeiro. Os editores, além de procurar novos autores, conectavam-se com a rede escolar em expansão, com o governo, que comprava material didático para os estudantes, e com os jornais, que se beneficiavam de imediato com os anúncios das obras. “Progressivamente, a imprensa assume o papel de ‘fiadora’ da qualidade dos livros e autores didáticos, o que antes era creditado basicamente pelo pertencimento a instituições, como Colégio Pedro II e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro”, comentou Alexandra Lima da Silva, professora do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT),

Foto Acervo do Museu Paulista da USP / Créditos fotográficos da reprodução: Hélio Nobre / José Rosael

se articulavam para produzir livros para crianças


Reproduções Eduardo Cesar

em um artigo publicado em 2014 na Revista Brasileira da História da Educação. “A divulgação era crucial no negócio de livros, variando de anúncios pagos pelas editoras e publicados na imprensa aos folhetos e extratos divulgados nos versos dos próprios livros”, ela observou. A socióloga Andréa Borges Leão, professora na Universidade Federal do Ceará (UFC), examinou a formação e a atuação da Livraria Garnier e, em um artigo publicado em 2007 na História da Educação, concluiu: “Afasto a hipótese que encerra a história da livraria francesa no Brasil como mera ação colonialista”. Segundo ela, o editor Baptiste-Louis Garnier (1823-1893), apesar da fama de mercenário, a ponto de lhe atribuírem as iniciais dos primeiros nomes como as correspondentes a Bom Ladrão, foi um personagem decisivo na produção de livros para crianças no Brasil, por ter publicado traduções de obras clássicas europeias, como os contos de Perrault e os romances de Júlio Verne, que abasteceram tantos os leitores quanto os futuros escritores das obras nacionais que se seguiram. “A maioria dos livros para crianças e jovens no final do século XIX era impressa na França e na Alemanha, porque os custos eram menores e a qualidade de impressão melhor que no Brasil”, diz Patrícia Raffaini, da USP. “Por navios, os livros chegavam ao Rio em pouco mais de 20 dias, e o serviço de telégrafos e correios permitia aos editores conhecer as obras de sucesso na Europa para publicá-las no Brasil poucos anos depois de terem sido lançadas em seus países.” Por causa dessa rede de produção e relações comerciais é que os livros de autores ingleses, italianos ou norteamericanos, como Alice no país das maravilhas, Pinocchio e As aventuras de Tom Sawyer, chegavam por meio das traduções francesas ou alemãs e foram editados no Brasil somente a partir de 1920. Os relatos dos especialistas que examinaram essa época destacam a qualidade do trabalho de Carlos Jansen (1829-1889), alemão que vivia no Rio

Clássicos europeus: Juca e Chico, traduzido por Olavo Bilac; Aventuras pasmosas do celebérrimo barão de Münchhausen, de 1901, e Robinson Crusoé, de 1884, ambos traduzidos por Carlos Jansen

desde 1878. Professor do Colégio Pedro II, ele fez traduções e adaptações bem-recebidas pelo público e pelos críticos, como As mil e uma noites, publicadas em 1884 com prefácio de Machado de Assis (1839-1908), e Viagens de Gulliver, de 1888, com prefácio de Rui Barbosa (1849-1923), além de escrever Contos para filhos e netos, de 1889, todos publicados pela Editora Laemmert. O editor português Francisco Alves (1848-1917), dono da livraria e editora com o mesmo nome, herdada de um tio, também publicou traduções, mas se destacou na produção intensiva de livros escolares e cartilhas a partir de 1860. Alguns livros eram lidos tanto nas escolas quanto nas casas, a exemplo de Coração, de Edmundo De Amicis (1846-1908), com histórias heroicas de meninos de várias regiões da Itália, publicado em 1886 em Milão e no Rio em 1891, em uma tradução de um prestigiado professor do Colégio Pedro II, o escritor sergipano João Ribeiro (1860-1934). Os intelectuais da época também escreviam livros de caráter cívico, “visando à construção de valores morais e éticos nas crianças”, observou Patrícia Hansen. “Aos livros e aos leitores era atribuído um papel de transformação social.” Em seu doutorado, concluído em 2007 na USP, ela analisou 18 livros escolares, como América, livro de 1897 do gaúcho Henrique Coelho Neto (1864-1934), inspirado em Coração; Poesias infantis, livro de 1904 do poeta e jornalista carioca Olavo Bilac (1865-1918), que assinou como Fantásio a tradução de Juca e Chico, publicado pela Laemmert três anos antes; e Saudade, de 1919, um dos raros a tratar da vida no campo, escrito pelo historiador e professor paulista Tales de Andrade (1890-1977), com tiragem de 15 mil exemplares já na primeira edição. n Artigos científicos LEAO, A. B. A Livraria Garnier e a história dos livros infantis no Brasil – Gênese e formação de um campo literário (1858-1920). História da Educação. v. 1, p. 159-84, 2007. SILVA, A. L. da. A carne do mercado: Livros didáticos e o florescimento do comércio livreiro na cidade do Rio de Janeiro. Revista Brasileira de História da Educação. v. 14, p. 223-49, 2014.

Livro EL FAR, A. Páginas de sensação. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, 408 p.

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entrevista João Antônio Zuffo

Da eletricidade para o mundo digital Primeiro a produzir um chip no Brasil, engenheiro eletricista participou ativamente de vários projetos nos primórdios da computação no país

Marcos de Oliveira  |

idade 77 anos especialidade Microeletrônica e computação formação Graduação e doutorado em engenharia elétrica na Universidade de São Paulo (USP) (1958-1968) instituição Escola Politécnica (Poli) da USP produção científica 8 artigos científicos, 16 livros, 5 capítulos de livros, 36 orientações de mestrado e 13 de doutorado

retrato

Léo Ramos Chaves

N

a década de 1950, no bairro paulistano do Cambuci, a vizinhança já sabia que quando estourava alguma bomba era coisa do Joãozinho. Com 10 anos de idade, João Antônio Zuffo gostava de química e fazia suas próprias bombas e foguetes para alegrar a si próprio e a molecada do bairro. Inspirado na corrida espacial e na bomba de hidrogênio, assuntos presentes no noticiário daquela época, fazia “experiências” até que um dia sofreu um acidente no “laboratório” construído por seu avô no fundo do quintal. Ferimentos com cacos de vidro espetados no peito fizeram sua mãe proibir as brincadeiras com química e matriculá-lo em um curso de eletrônica. Zuffo viria a se tornar um dos mais respeitados pesquisadores das áreas de microeletrônica e da computação no país. Na engenharia elétrica da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) fez o primeiro chip brasileiro, participou de projetos em uma época em que as válvulas eram substituídas por transistores e os processadores computacionais ganhavam maior velocidade e capacidade de armazenamento. Formou-se em 1963 e fez doutorado entre 1964 e 1968, tudo na Poli. PESQUISA FAPESP 253 | 27


Como foi a produção em laboratório do primeiro chip no Brasil, em abril 1971? Logo depois do meu doutoramento, em 1968, um grupo de professores da Poli propôs a criação de um laboratório de microeletrônica. Em seguida, houve uma visita na USP do professor Alberto Carvalho da Silva, da FAPESP [então diretor científico], José Pelúcio Ferreira [que era presidente da Finep – Financiadora de Estudos e Projetos] e Manoel da Frota Moreira [na época diretor do CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico]. Eles ficaram entusiasmados com o que foi proposto e recebemos um financiamento total de US$ 1 milhão. Isso permitiu a construção do laboratório, que foi inaugurado em abril de 1970. Um ano depois eu fiz o primeiro chip integrado. Sozinho? Sim. Tinha a estrutura do laboratório 28 | março DE 2017

manganês, que era um estabilizador de reações químicas, ácido sulfúrico e fabricava hidrogênio. Eu tinha também vidraria de experimentos de química.

João Zuffo em frente a seu “laboratório” onde fazia bombas e foguetes para ele e para as crianças do bairro

e um técnico muito bom, o Jean Serrano. Funcionou e mostrei para o pessoal da Poli. Antes, o senhor estudou o assunto no exterior? Nunca tinha ido ao exterior. Eu tinha um livro teórico de projeto da Motorola, que era especificamente sobre a construção de um chip. Como eu dava um curso sobre projeto de circuito integrado, já sabia mais ou menos como projetar um chip. Como começou o seu gosto pela eletrô­ nica? Desde pequeno eu gostava de fios e materiais elétricos. Depois me interessei pela química. Tinha livros antigos que mostravam como fabricar hidrogênio, oxigênio, e eu sonhava em fazer aquilo. Meu avô montou um barracão no fundo do quintal para, segundo ele, eu não colocar fogo na casa. Comprava materiais na botica Ao Veado D’Ouro [antiga farmácia de manipulação no centro de São Paulo]. Cheguei a comprar clorato de potássio, dióxido de

E por que não seguiu na química? A minha inclinação para química terminou no primeiro ano ginasial [atual 6º ano do ensino fundamental], porque meu laboratório explodiu. Eu fazia bombas para a vizinhança, misturava clorato de potássio com enxofre e outras coisas. Fazia para brincar. Estávamos na década de 1950, quando surgiu a bomba de hidrogênio, os americanos e soviéticos começaram a lançar satélites e a fabricar foguetes. A molecada adorava isso. Eu me machuquei na explosão, fiquei com o peito cheio de cacos de vidro e minha mãe me levou para a farmácia para fazer os curativos. Tinha 10 anos. As mesas eram de caixote e coloquei o tubo de ensaio em cima de um deles, que rolou, caiu no chão e explodiu. Depois disso minha mãe me proibiu de mexer com produtos químicos e me matriculou em um curso de rádio e televisão da Monitor. Foi quando comecei a montar circuitos elétricos. Tenho um até hoje, feito em 1954. Naquele tempo os transistores estavam começando a ser introduzidos nos apa­ relhos eletrônicos. Estavam começando, os rádios a transistores surgiram em 1950, era muito estranho ver as pessoas andando na rua e escutando rádio. Foi a época em que também a televisão começou no Brasil. O senhor entrou na Poli em 1958. Na graduação teve algum projeto impor­ tante? No quarto ano, o professor Jaime Gomes nos propôs fazer um projeto de amplificador de potência à válvula. Ficou muito bom e ele levou o processo para a Inbelsa, empresa que fabricava transmissores para as emissoras de rádio. Eu cheguei a publicar um artigo sobre o projeto em uma revista que na época se chamava Eléctron, da Ibrape [Indústria Brasileira de Produtos Eletrônicos e Elétricos]. A Inbelsa chegou a usar esse processo, mas depois fechou.

arquivo Pessoal

Em 1974 montou o Laboratório de Sistemas Integráveis (LSI) na Poli. Hoje com mais de 150 profissionais, entre professores e alunos de graduação e pós-graduação, o LSI esteve presente na elaboração de vários projetos de computadores nacionais, principalmente de computação paralela com microprocessadores, além da TV digital e cavernas [salas especiais com telas e projeções] de realidade virtual. Em 1976 participou da fase inicial do projeto do CPqD, que era o centro de pesquisa da Telebrás, que resultou na primeira central telefônica digital do país, chamada de Trópico (ver reportagem na seção Pesquisa Empresarial na página 76). Aos 77 anos e aposentado desde 2009, João Zuffo continua a ir todas as manhãs à Poli. Dos quatro filhos que teve, dois trabalham com engenharia (Marcelo e Cristina) e dois com administração de empresas (Paulo e Patrícia). Além de colaborar com o filho Marcelo, também na Poli, ele participa da Associação LSITec, que desenvolve projetos em parceria com empresas nas áreas de microeletrônica e processamento digital. Autor de 20 livros didáticos e técnicos sobre engenharia, nos últimos anos tem escrito sobre a evolução tecnológica e suas consequências econômicas e sociais futuras.


E depois de formado? Fui trabalhar na Brasele, do Rodolf Charles Thom, que fabricava uma linha para instrumentação nuclear. Ele me contratou para substituir as válvulas por transistores na linha de componentes. Tínhamos muito contato na época com o Ipen [Instituto de Pesquisas Tecnológicas e Energéticas] e com o Instituto de Física da USP. Nessa época fui pesquisador na empresa com bolsa da Fapesp. Era instrumentação para fazer reatores? Não, para testes, por exemplo, de detecção de raios cósmicos. Como voltou para a Poli como professor? Voltei a convite do professor Luiz de Queiroz Orsini. Eu queria fazer carreira universitária e terminei o doutorado em 1968. Naquele tempo a USP não exigia orientador. Apenas três meses antes de entregar a tese é que a universidade exigiu e o meu orientador foi o Louis Richard Anderson. Mas quem me ajudou muito na formulação matemática na tese foi o professor Léo Borges Vieira. Depois de ter entrado no laboratório de microeletrônica, o que o levou a montar o LSI em 1975? O excesso de trabalho, de 1968 até julho de 1974, resultou em um derrame na retina, um susto terrível. Eu dava aula aqui e na FEI [Centro Universitário da Fundação Educacional Inaciana, em São Bernardo do Campo]. Desenvolvia também outros projetos, como um quadro transistorizado de comando de elevador para a Átomo Elevadores, com o professor Walter Del Picchia – foi com esse projeto que entrei na área digital. Depois do problema no olho, eu tive de me convencer a trabalhar menos, não ficar trabalhando em vários projetos ao mesmo tempo. No final de 1975, entrei com um projeto, o IF 275, na Finep e fundei o LSI, que era um laboratório mesclando microeletrônica e sistemas digitais. O que era esse projeto? Era para construir uma máquina de calcular científica com componentes simples ainda sem circuitos integrados. Um dos projetos que fizemos foi o de uma impressora para gerar sinais em braile e fazer livros. Para isso, usei uma máquina de calcular da IBM.

A minha inclinação para a química terminou com uma explosão no meu laboratório em casa

E essa máquina foi para o mercado? Ganhamos um prêmio da Fundação Dorina Nowill para Cegos, mas a impressora de Braile não foi ao mercado. A evolução do setor foi muito rápida e outras empresas com projetos semelhantes acabaram saindo na frente. Por que deixou a área de microeletrô­ nica? Os chips que o senhor desenvolveu foram para frente? Infelizmente não. A única coisa que saiu do laboratório de microeletrônica na época foi o projeto de construção de transistores simples, que passou para uma empresa de Belo Horizonte, a Transit, que fechou. Até hoje nós não temos fábrica de microeletrônica no Brasil. Está sendo construída uma em Belo Horizonte e há um centro no Rio Grande do Sul, que ainda não se desenvolveram. O LSI não tratou de microeletrônica? Todo processo de microeletrônica é fotolitográfico e térmico e eu tinha visto

um artigo em 1966 sobre o uso de materiais refratários com circuito integrado em múltiplas camadas. Como não saiu mais nada publicado sobre processos térmicos de produção de chips, decidi me habilitar a entrar nessa área. Então em 1980, eu fiz um pedido à Finep sobre ampliar o laboratório. Nós precisávamos de um equipamento especial para a deposição simultânea de materiais, que era feito pela Edwards, uma empresa inglesa. Fui até eles para ajudar a especificar o equipamento, porque eles também não tinham feito nenhum do jeito que queríamos antes. Nesse meio tempo estourou a inflação no Brasil, entre 1982 e 1983, e eu tinha dinheiro fixo em cruzeiros. Também começou a guerra das Malvinas, entre Argentina e Reino Unido, e os ingleses não queriam mais exportar equipamento estratégico. Só mais tarde conseguimos trazer esse equipamento de deposição para o LSI. E vocês conseguiram se especializar nessa área da microeletrônica? Não. No início da década de 1980, começaram a surgir os supercomputadores, que eram caríssimos, custavam na faixa de US$ 20 milhões a US$ 30 milhões, e também os microcomputadores mais avançados. Então tivemos a ideia de, em vez de fazer um supercomputador baseado em um único processador superpotente, elaborar um com muitos microprocessadores. Seria como substituir um elefante por formiguinhas. Era o tempo também da computação paralela [vários processadores trabalhando ao mesmo tempo]. Eu tinha alguns alunos brilhantes e desenvolvemos vários tipos de computação paralela. Em 1996, nós apresentamos esses computadores no congresso de supercomputação em San Jose, na Califórnia. Causamos uma grande surpresa porque eles não esperavam que o Brasil pudesse ter essa tecnologia. Ainda na década de 1980, desenvolvemos, por exemplo, um supermicro para a Prológica, com sistema operacional Unix, uma empresa nacional de informática. A Prológica produziu esse computador? Chegou a produzir e vendeu alguns. Mas ela pirateou o sistema operacional DOS e foi processada pela Microsoft. Acabou fechando. Na época várias empresas piratearam sistemas operacionais. Outro projeto interessante na década de 1990 PESQUISA FAPESP 253 | 29


tratava de desenvolvimento de supercomputadores e realidade virtual, que está na moda hoje. Era um projeto de aplicação em medicina. O próprio médico veria, com esses visores [mostra o desenho], o corpo do paciente virtual. A ideia era que ele fizesse uma inspeção virtual para depois fazer a cirurgia real. O projeto aprovado em 1992 pela Finep gerou uma sucessão de modelos de computação paralela e um sistema de realidade virtual mas não conseguimos desenvolver o visor para o médico ver o paciente por dentro. A computação paralela foi adiante? Nós tínhamos os processadores prontos. Como a montagem teve sucesso, a Finep fez uma licitação para o mercado em 1995. Quem ganhou a licitação foi a Elebra e nós desenvolvemos um sistema para a empresa. Acontece que antes que a Elebra viesse a produzir, ela faliu. Foi feita uma nova licitação pela Finep e foi escolhida a Itautec. Desenvolvemos um computador personalizado para a empresa. A Itautec produziu vários equipamentos desse tipo em paralelo. Contribuímos também em um grande computador, do tipo mainframe, de computação paralela. Depois da computação paralela, quais foram os projetos? Com a parte de computação paralela pronta, partimos para a fase de realidade virtual e construímos a caverna digital, uma sala com projeções em que é possível ver imagens em 3D por meio de óculos especiais, isso em 2000. Para fazer a caverna, compramos as telas especiais, os projetores e faltava comprar o oscilador. Quem tinha esse equipamento na época era a empresa Silicon Graphics. Ela nos pediu US$ 1,5 milhão. Eu tinha apenas US$ 150 mil e disse para minha equipe: “Nós já fizemos computação paralela para o Itaú; vamos tentar fazer a computação paralela para computação gráfica”. Aí entrou o Marcelo [o filho, já professor na Poli]. Trabalhamos nisso, fizemos e funcionou. Quando o pessoal da Silicon viu aquilo, nos ofereceu a máquina deles por US$ 100 mil, mas aí não interessava mais. O Marcelo apresentou nosso trabalho em um congresso nos Estados Unidos. Depois a Silicon fechou e hoje todos usam computação paralela na parte de computação gráfica. 30 | março DE 2017

A tecnologia está chegando ao ponto de saturação. Um novo celular não é tão diferente de um aparelho de dois ou três anos atrás

O senhor participou da discussão sobre a Política Nacional de Informática que criava a reserva de mercado de informá­ tica para empresas brasileiras em 1984? Comecei a participar antes no congresso financiado pela antiga Capre [Comissão de Coordenação das Atividades de Processamento Eletrônico], ligada ao governo federal, integrada também por pesquisadores em microeletrônica. Tínhamos reuniões anuais, discutíamos se determinada política era boa para o Brasil ou não. Houve uma reunião importante, em 1975, em Fortaleza, na qual foram estabelecidas as bases de como seria a política governamental de desenvolvimento do setor. Mas, em 1979, nós fizemos uma reunião no Rio Grande do Sul e de repente a Capre foi dissolvida por uma intervenção do governo. Foi um choque para os pesquisadores. Em seguida foi criada a SEI [Secretaria Especial de Informática, ligada ao Conselho de Segurança Nacional]. Participei bastante da discussão, mas não da elaboração. Teve uma comissão de

microeletrônica dentro da SEI, criada em 1979, para implementar a microeletrônica no Brasil. Logo nos convidaram, eu, Carlos Inácio Mammana [professor da Unicamp], José Ellis Ripper Filho [professor da Unicamp], Carlos Morato de Andrade [Poli] e outros professores. Depois a SEI lançou um edital para escolha de empresas que receberiam investimentos do governo. Foram selecionadas quatro empresas: Elebra, Labo, Itautec e a SID Microeletrônica. Cada uma dessas empresas apresentou um projeto e eram mais ou menos simples. O único projeto para valer foi apresentado pelo Itaú, que pretendia construir uma fábrica de microeletrônica para funcionar em 1990. Segundo eles, haveria 2 mil doutores na fábrica. Só que para fazer essa fábrica a empresa teria prejuízo por uma década. Eles queriam abater o prejuízo no lucro do Itaú. Mas o Delfim Netto, ministro do Planejamento na época, não aceitou. Então eles fizeram um projeto pequeno em Jundiaí de montagem de memória. Hoje nós poderíamos ter uma fábrica maior do que a Samsung. Por quê? Porque em 1979 a diretoria da Samsung esteve no nosso laboratório perguntando qual era a vantagem de fazer circuito integrado, semicondutores ou não. Era outra Samsung, muito pequena ainda, não a gigante que é hoje. Lembro que a Philco fabricava transistores em 1966 no Brasil. Vinham os orientais fotografar aqui as salas limpas da empresa no Tatuapé [bairro paulistano]. Então perdemos muitas oportunidades em microeletrônica. O fato de eu ter feito um chip nessa época não era excepcional porque o Brasil estava no mesmo nível do que se fazia lá fora. Mesmo na área industrial existiam algumas fábricas na década de 1970 de circuito integrado. A Phillips fabricava circuitos integrados em Recife e a Texas em Campinas. Mas nós perdemos essa oportunidade. A entrada da reserva de mercado não era justamente para dar essa condição para o Brasil? Teoricamente era, mas infelizmente os empresários prometiam as coisas e não faziam. Compramos uma impressora de uma empresa brasileira e quando levantamos o selo da marca existia o original de uma fábrica japonesa. Eu não sei co-


arquivo Pessoal

mo a SEI permitiu isso. Ela inclusive nos proibiu de importar computadores. A própria universidade foi proibida, os primeiros PCs daqui foram comprados na rua Santa Ifigênia [tradicional rua de lojas de equipamentos eletrônicos em São Paulo que na época vendia computadores montados aqui, mas com peças contrabandeadas]. Queríamos experimentar, mas não deixavam importar. Não tínhamos liberdade de desenvolver projetos novos. O problema da Lei de Informática foi a execução, não foi a lei em si, em minha opinião. O senhor publicou mais de 20 livros téc­ nicos. Depois de aposentado continua a escrever? Sim, mas estou mais preocupado atualmente com os rumos que a sociedade vai tomar em função de toda essa tecnologia. Desde a década de 1970 eu escrevi livros da área digital, microeletrônica, computação, semicondutores, porque não existia literatura em português. E qual seu livro de maior sucesso? Há três deles: Subsistemas integrados e circuitos de pulso, de 1974; Dispositivos eletrônicos: Física e modelamento, de 1976, e Circuitos integrados de média e larga escala, de 1977, em várias edições. Vendi mais de 200 mil exemplares no total. Mas, a partir da década de 1990, comecei a me preocupar com o que vai acontecer com a sociedade com tudo mudando a grande velocidade. Em 1998 eu publiquei o livro A infoera: O imenso desafio do futuro, que foi pirateado e hoje está na internet, para quem quiser pegar. Em 2007 publiquei também um de ficção científica, Flagrantes da vida do futuro (Saraiva). Qual o futuro dos engenheiros? A fase do engenheiro superespecializado acabou. Ele tem que se aprofundar rapidamente em uma área, ter boa base de matemática, física, química e da área de humanidades. O mundo de amanhã não vai ter lugar para um profissional puramente técnico. Por quê? A tecnologia está chegando ao ponto de saturação. Isso já ocorre com a microeletrônica. Um celular moderno não é tão diferente de um aparelho de dois, três ou quatro anos atrás, está atingindo um patamar em que não tem quebra de paradig-

Turma de engenharia elétrica da Poli-USP em 1963. João Zuffo no destaque

ma. Isso já ocorre com outros produtos tecnológicos. As discussões passarão a ser mais sobre o aspecto humano e não sobre novas tecnologias. Assim, quem produz conteúdo, não apenas software, ganha importância. A produção de filmes, programas, documentários, jogos, ensino interativo é o grande mercado de emprego do futuro. É uma oportunidade para o Brasil. Também de uma forma virtual? Exatamente, criando avatares, participando, discutindo. Essa é a educação que eu penso daqui cinco, 10 anos. Meu sonho, por exemplo, seria fazer uma sala de realidade virtual de baixo custo. Acredito que hoje pode ser feita por cerca de R$ 40 mil e ser instalada em todas as escolas secundárias do Brasil. Daria para fazer, até de menor custo, imersiva, em que a pessoa pudesse entrar na sala. O senhor ajudou a montar departamen­ tos de computação em São Carlos? Foi na UFSCar [Universidade Federal de São Carlos]. Participei da montagem de cursos e da pós-graduação do Departamento de Engenharia Elétrica durante quatro anos, de 1976 a 1980, eu ia uma vez por semana com autorização da USP para São Carlos.

Dois dos seus filhos foram alunos do senhor. Como foi? O Paulo entrou na Poli, não gostou muito da engenharia mecânica e resolveu passar para a elétrica. Ele não suportava eletrônica e foi reprovado duas vezes comigo. Ele só passou quando outro professor começou a dar a disciplina porque tive uma licença médica. Aí ele me disse: “Não suporto mais eletrônica, mas eu vou me formar”. Formou-se e foi para a área de administração, fez mestrado e agora é doutorando na FGV [Fundação Getulio Vargas], onde já é professor. Minha filha Cristina também fez a Poli, na engenharia civil. Como foi ter seu filho Marcelo como aluno e depois como colega na Poli? Sempre foi bom aluno. Fez a Poli e entrou como estagiário no LSI. O problema era ele prestar concurso tendo o pai aqui na Poli, então primeiro fez concurso para professor na matemática,[no Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP] e conseguiu entrar em primeiro lugar. Era para mostrar que tinha competência. Logo depois saiu o concurso para professor na Poli na engenharia elétrica, ele prestou e entrou em primeiro também. É muito bom tê-lo aqui, conversamos muito. n PESQUISA FAPESP 253 | 31


política c&T  Indicadores y

Um mapa de competências

científicas

Estudo mostra onde se concentram os pesquisadores e o impacto de sua produção nas 15 regiões administrativas do estado de São Paulo Fabrício Marques

A

Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp) lançou em fevereiro um levantamento sobre as competências científicas presentes em cada uma das 15 regiões administrativas do território paulista. Intitulado Mapa da ciência de São Paulo, o estudo reúne um conjunto de indicadores sobre o período de 2002 a 2011 que mostra desde a concentração de pesquisadores em cada região e a área do conhecimento até o tamanho e o impacto de sua produção científica. Também há gráficos que agrupam os pesquisadores segundo o volume de artigos que publicaram em dois intervalos de tempo – nos 10 anos do levantamento e entre 2009 e 2011. “Trata-se de uma fotografia da ciência paulista na primeira década do século XXI que evidencia as expertises

32  z  março DE 2017

regionais de um estado que é responsável direto por 50% da produção científica nacional”, diz Marcos Buckeridge, professor do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP) e presidente da Aciesp. “A ideia é ter uma plataforma de dados que possa ser consultada, por exemplo, por empresários dispostos a abrir novos negócios. Ali, eles saberão onde há capacidade estabelecida para apoiar seus desafios”, afirma José Eduardo Krieger, pró-reitor de Pesquisa da USP e presidente da Aciesp até 2015, quando o levantamento foi encomendado. A íntegra do mapa está disponível em bit.ly/MapaCiênciaSP. Patrocinado pelo banco Bradesco, o mapeamento mostra, conforme já era esperado, que há uma grande concentração de pesquisadores no eixo entre a capital paulista e Campinas. Mas também


A densidade de pesquisadores As vocações científicas de cada uma das 15 regiões administrativas de São Paulo, comparando a porcentagem da população local com a porcentagem de pesquisadores em algumas áreas de conhecimento

51,27% da população do estado Destaques Ciências Sociais e Aplicadas, com 59% dos pesquisadores do estado; Ciências da Saúde, com 54,9%; Linguística, Letras e Artes, com 54,3%; e Ciências Humanas, com 51%

9,17%

5,76%

da população do estado

da população do estado

Destaques Ciências Agrárias, com 22% dos pesquisadores do estado; Engenharias, com 18,5%; Ciências Exatas e da Terra, com 16,6%; e Linguística, Letras e Artes, com 15,1%

Destaques Ciências Agrárias, com 13,6% dos pesquisadores do estado; Ciências Biológicas, com 11,4%; Ciências da Saúde, com 10,5%; e Ciências Humanas, com 6,3%

Fonte  Mapa da Ciência de São Paulo / Aciesp

5,48%

3,33%

da população do estado

da população do estado

Destaques Engenharias, com 15,2% dos pesquisadores do estado; e Ciências Exatas e da Terra, com 10,8%

Destaque Ciências Agrárias, com 15,3% dos pesquisadores do estado

3,8%

1,96%

da população do estado

da população do estado

Destaque Linguística, Letras e Artes, com 4,3% dos pesquisadores do estado

Destaques Ciências Exatas e da Terra, com 15,3% dos pesquisadores do estado; Engenharias, com 14,2%; e Linguística, Letras e Artes, com 7,9%

Destaques Ciências Agrárias, com 11,1% dos pesquisadores do estado; Ciências da Saúde, com 6,4%; e Ciências Biológicas, com 6,3%

1,69% da população do estado

2,05% da população do estado

ilustrações maurício pierro

Destaques Ciências Humanas, com 2,4% dos pesquisadores do estado; e Ciências Agrárias, com 2,1%

Destaques Ciências Agrárias, com 3,2% dos pesquisadores do estado; e Engenharias, com 2,4%

revela nuanças. A Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), que abriga dois campi da USP, além de universidades públicas como as federais de São Paulo (Unifesp) e a do ABC (UFABC) e privadas como o Mackenzie ou a Fundação Getulio Vargas, tem o maior número de cientistas em quase todas as áreas do conhecimento, mas em algumas delas a dianteira é mais expressiva, caso das Ciências Sociais Aplicadas, com 59% dos pesquisadores do estado, Ciências da Saúde, com 54,9%, Linguística, Letras e Artes com 54,3%, ou Ciências Humanas, com 51%. Em outras áreas, a liderança se dá com um percentual menor. Em Ciências Exatas e da Terra, 38% dos pesquisadores estão na RMSP – em seguida vêm as regiões de Campinas (16,6%) e de Araraquara (15,3%). Já nas Engenharias, São Paulo está à frente com 36,8% do total de pesquisadores,

3,53% da população do estado

1,1%

1,34% da população do estado

da população do estado

Destaques Linguística, Letras e Artes, com 3,3% dos pesquisadores do estado

Destaques Ciências Humanas, com 2,7% dos pesquisadores do estado; e Ciências Sociais Aplicadas, com 1,9%

Região de Jundiaí e Sorocaba

6,4%

2%

1,12%

da população do estado

da população do estado

da população do estado

Diagnóstico Densidade de pesquisadores limitada. Vai de 1,7% dos pesquisadores do estado em Ciências Exatas e da Terra até 2,6% em Ciências Humanas

Diagnóstico Densidade de pesquisadores muito baixa. Vai de 0,06% de pesquisadores do estado em Ciências da Saúde a 0,5% em Ciências Agrárias

Diagnóstico Densidade de pesquisadores muito baixa. Vai de 0% de pesquisadores do estado em Linguística, Letras e Artes até 0,5% em Ciências Agrárias

pESQUISA FAPESP 253  z  33


seguida por Campinas (18,5%) e a região do Vale do Paraíba (15,2%). “O estudo mostra claramente que, embora a RMSP concentre competências, outras regiões do estado têm expertises específicas”, diz Buckeridge, referindo-se à Região Metropolitana de Araraquara, que reúne campi da USP, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), ou ao Vale do Paraíba, com seu polo aeroespacial em torno de São José dos Campos.

Uma amostra do Mapa da ciência de São Paulo Número total de pesquisadores e sua produção científica (artigos, citações e citações por artigo) na área das Ciências da Saúde, entre 2002 e 2011, nas 15 regiões administrativas

H

á uma área do conhecimento em que a Região Metropolitana de São Paulo não reúne o maior quinhão de profissionais da ciência. Trata-se das Ciências Agrárias, em que Campinas aparece com 22% dos pesquisadores do estado, seguida por São Paulo, com 19,3%, Piracicaba, com 15,3%, e Ribeirão Preto, com 13,6%. “O equilíbrio se deve à presença, na região de Campinas, do Instituto Agronômico e da Unicamp [Universidade Estadual de Campinas]”, diz Buckeridge. “A expressão de Piracicaba está relacionada à Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da USP.” O economista Marcelo Pinho, professor da UFSCar, sugere cautela na análise comparativa das regiões. “A comparabilidade entre os dados é prejudicada pela enorme disparidade entre as dimensões das mesorregiões, em termos populacionais e econômicos”, afirma. Ele lembra que a RMSP tem cerca de 20 milhões de habitantes, enquanto a de Araraquara não alcança 1 milhão. “Seria mais adequado filtrar essa diferença, avaliando a produção científica por 100 mil habitantes ou pelo PIB”, afirma. Segundo ele, a concentração de pesquisadores na Grande São Paulo só deveria chamar a atenção quando passasse de 50%, que é a proporção da participação da capital e seu entorno na população paulista. “Isso só ocorre em Ciências da Saúde e no conjunto de campos vinculados às Humanidades e Ciências Sociais, incluindo-se Linguística, Letras e Artes.” Ressalvas feitas, Marcelo Pinho diz que os dados refletem concentrações regionais de competências já conhecidas. “Não surpreende que a região de Piracicaba, que tem menos de 4% da população do estado, concentre 15% dos pesquisadores das Ciências Agrárias e tenha posição ainda mais destacada quando são considerados os pesquisadores de maior 34  z  março DE 2017

7.708 pesquisadores 65.769 artigos 822.764 citações 12,51 citações por artigo

1.398 pesquisadores 10.916 artigos 130.672 citações 11,97 citações por artigo

296 pesquisadores 949 artigos 7.052 citações 7,43 citações por artigo Fonte  Mapa da Ciência de São Paulo / Aciesp

Leva 20 anos para uma competência científica se consolidar em uma região, diz Renato Garcia, da Unicamp

produtividade. Algo semelhante pode ser dito da mesorregião de Araraquara, que inclui São Carlos, em relação a Engenharias e Ciências Exatas e da Terra. Com cerca de 2% da população do estado, essa região concentra 14% e 15% dos pesquisadores desses dois campos do conhecimento, respectivamente”, afirma. De acordo com Pinho, os dados confirmam a existência de um nível razoável de distribuição espacial das capacidades científicas no estado. “É um resultado positivo

de políticas seguidas há muitas décadas de desconcentração das universidades e instituições de pesquisa.” Para Renato Garcia, professor do Instituto de Economia da Unicamp, os dados do mapa sugerem que, em anos recentes, as políticas estimularam uma maior concentração da atividade científica e não uma descentralização. “Houve uma expansão do ensino superior, mas a maior parte dela aconteceu próxima a São Paulo”, diz, referindo-se à criação da UFABC e da instalação de unidades da Unifesp em Santos, Diadema, Guarulhos, São José dos Campos e Osasco. “Na maioria dos casos, a expansão não teve como objetivo o desenvolvimento regional”, afirma. Mesmo no caso do campus da UFSCar instalado em 2011 em Sorocaba, afirma Garcia, o impacto local deve demorar um pouco para ser sentido. “Eles estão contratando pesquisadores com potencial e já atraem alunos de mestrado, mas os de doutorado ainda optam por centros consolidados. Leva uns 20 anos para uma competência científica se consolidar em uma região.” A análise teve como ponto de partida os dados do Diretório de Grupos de Pesquisa (DGP) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que reúne informações sobre pesquisadores brasileiros na Plataforma Lattes. Ao estudar a produção dos pesquisadores paulistas no DGP, surgiram nomes de outros colaboradores – ele-


1.473 pesquisadores 16.554 artigos 183.765 citações 11,10 citações por artigo

322 pesquisadores 1.510 artigos 10.615 citações 7,03 citações por artigo

898 pesquisadores 7.925 artigos 76.210 citações 9,62 citações por artigo

117 pesquisadores 386 artigos 2.523 citações 6,54 citações por artigo

462 pesquisadores 5.121 artigos 60.704 citações 11,85 citações por artigo

615 pesquisadores 4.858 artigos 43.270 citações 8,91 citações por artigo

182 pesquisadores 602 artigos 4.891 citações 8,12 citações por artigo

327 pesquisadores 1.809 artigos 12.550 citações 6,94 citações por artigo

38 pesquisadores 123 artigos 1.446 citações 11,76 citações por artigo

vando o universo avaliado para 1,2 milhão de currículos. Usando ferramentas computacionais, esse volume de informações foi checado, para evitar contagens repetidas, e cruzado com dados de citações do Google Scholar. O desenvolvimento da metodologia foi aperfeiçoado por meio de um projeto apoiado pela FAPESP no programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe). “Vínhamos desenvolvendo bases de informação científico-tecnológicas e ferramentas para tratamento e análise de dados há alguns anos e o projeto propiciou melhorias e sofisticações em nossas ferramentas que foram aplicados na construção do Mapa da ciência e em outros projetos”, diz o engenheiro da computação Luiz Daniel Lapolla, da Elabora P&D, Computação e Sistemas de Informática.

O

levantamento mostra que é pos­ sí­v el produzir conhecimento relevante mesmo em regiões onde a concentração de pesquisadores não é destacada. O estudo apresenta o número de artigos produzidos em cada região e área do conhecimento, as citações que esses papers obtiveram e as relações entre artigos e citações. Tomando-se, novamente, o caso das Ciências Agrárias, vê-se que a região do Vale do Paraíba produziu apenas 785 artigos entre 2002 e 2011, mas eles foram alvo de 10.707 citações, o que resulta em 13,64 citações

por artigo. Essa relação é melhor que a de Campinas (7.684 artigos e 67.451 citações), com 8,78 citações por artigo, ou de Piracicaba (7.118 artigos, 60.829 citações), com 8,55 citações por artigo. Há regiões em que a concentração de pesquisadores e a produção científica são baixas. Os casos extremos são a região do Litoral Sul Paulista, que reúne 17 municípios ao redor de Itanhaém e de Registro, e a contígua Itapetininga, com 35 municípios. Ambas reúnem poucas dezenas de pesquisadores em cada campo do conhecimento. Os vazios científicos coincidem com áreas de baixa atividade econômica. A região do Litoral Sul abriga o Vale do Ribeira, uma das áreas mais pobres do estado. Seu PIB per capita é de R$ 24,5 mil anuais, segundo dados de 2013 do IBGE. Em Itapetininga, a renda é ainda menor, de R$ 22,6 mil por habitante. Para efeito de comparação, o PIB per capita da RMSP é de R$ 44,4 mil anuais e o da de Campinas, de R$ 41,6 mil. Marcos Buckeridge comparou os dados do Mapa da ciência com o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) das regiões. “Há correlação com indicadores de renda do IDH, mas eles se descolam depois que o número de pesquisadores passa de 2 mil na região”, disse. Ele observou uma relação, embora menos expressiva, entre desempenho científico e indicadores de longevidade da população – e nenhuma correlação com os indicadores de educação.

3 pesquisadores 4 artigos 50 citações 12,5 citações por artigo

8 pesquisadores 30 artigos 106 citações 3,53 citações por artigo

178 pesquisadores 1.826 artigos 11.894 citações 6,51 citações por artigo

“O conhecimento gerado pelas universidades parece ter pouca influência no sistema de educação básica.” Estimular atividades científicas nessas áreas é um desafio a ser enfrentado, mas, para José Eduardo Krieger, não seria necessário criar novas universidades. “Os recursos precisam ser alocados onde há competências científicas. O fundamental é identificar vocações locais e apoiá-las”, afirma. Para Renato Garcia, não se pode negligenciar o efeito em uma cidade da criação de uma universidade ou um polo tecnológico. “Um campus pode mudar a face de um município. Produz um ganho de urbanização e atrai gente de nível intelectual elevado, o que gera novas demandas”, afirma. “Mesmo o risco de isolamento dos pesquisadores diminuiu com oportunidades de colaboração a distância por meio das tecnologias de informação.” Garcia adverte que não se deve esperar o mesmo efeito sobre a transferência de conhecimento para empresas. “Para que isso ocorra, é necessário que haja demanda. Se não há empresas na região, a demanda não vai existir.” n

Projeto Elabminer: Ordem e previsibilidade em workflows de mineração da web (nº 12/50119-1); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Gabriel Dieterich Cavalcante (Elabora); Investimento R$ 78.989,80.

pESQUISA FAPESP 253  z  35


Prêmio y

Para celebrar a engenharia Honraria britânica reconhece as realizações mais inovadoras da ciência aplicada e homenageia criadores da imagem digital

E

ngenheiros responsáveis por inovações disruptivas podem disputar um prêmio que, pelo rigor na seleção dos ganhadores e a recompensa em dinheiro que oferece, já é visto como uma espécie de Nobel dedicado às mais importantes aplicações da ciência. Trata-se do Queen Elizabeth Prize for Engineering (QEPrize), concedido desde 2013 por uma fundação britânica patrocinada por grandes corporações, como Siemens, BP, Toshiba e Sony, em parceria com a Royal Academy of Engineering, do Reino Unido. O prêmio, que está em sua terceira edição e é oferecido a cada dois anos, reconheceu no dia 1º de fevereiro a contribuição de quatro pesquisadores do Reino Unido, Estados Unidos e Japão na disseminação e popularização das imagens digitais, criando tecnologias que permitiram o acoplamento de câmeras em equipamentos portáteis e o compartilhamento de mais de 3 bilhões de fotos por dia. Os norte-americanos Eric Fossum e George Smith, o japonês Nobukazu Teranishi e o inglês Michael Tompsett vão 36  z  março DE 2017

dividir o prêmio de £ 1 milhão, o equivalente a R$ 3,8 milhões, a ser entregue em junho em uma cerimônia no Palácio de Buckingham, residência oficial da rai­ nha Elizabeth II e sede da monarquia britânica. O valor do QEPrize supera os 8 milhões de coroas suecas (R$ 2,7 milhões) concedidos em cada categoria do Nobel e os 6 milhões de coroas norueguesas (R$ 2,2 milhões) do Prêmio Abel, um dos mais importantes da matemática. Os vencedores também recebem um troféu cujo desenho muda a cada edição do prêmio e é objeto de uma competição: estudantes de vários países participam de um concurso de design e propõem estruturas em três dimensões feitas em computador. A escolha dos engenheiros laureados é feita com base em sugestões ou indicações de nomes para a The Queen Elizabeth Prize for Engineering Foundation, instituição responsável pelo prêmio. Para garantir que serão analisados bons candidatos, um comitê de busca composto por 16 pesquisadores, coordenado por Stephen Williamson, da Universidade

de Surrey, levanta nomes de cientistas com perfil adequado ao prêmio em vários lugares do mundo e encoraja suas indicações, que são feitas no site da fundação durante um período determinado e precisam ser apoiadas por duas cartas de recomendação de especialistas na área de pesquisa do indicado. A análise dos candidatos é feita por um painel internacional de 15 juízes. Liderado por Christopher Snowden, vice-chanceler da Universidade de Southampton, o grupo reúne engenheiros e pesquisadores com atuação na universidade e na iniciativa privada, como o cientista da computação John Hennessy, da Universidade Stanford, o físico Brian Cox, professor da Universidade de Manchester e apresentador de programas de divulgação científica na rede BBC, Choon Fong Shih, reitor da Universidade Nacional de Singapura entre 2000 e 2008, a bioengenheira Viola Vogel, professora do Instituto Federal de Tecnologia de Zurique, na Suíça, o físico Carlos Henrique de Brito Cruz, professor da Universidade Estadual de Campinas

fotos 1 Prolineserver 2010 / Wikimedia Commons  2,3 e 4 QEPrize

Desenho do troféu entregue


As descobertas laureadas na 3ª edição do qeprize 1969 O físico norte-americano George Smith desenvolveu, com Willard Boyle, tecnologia capaz de transferir carga na superfície de um supercondutor. Logo ficou claro que o sensor, 1

batizado de dispositivo de carga acoplado (CCD), poderia converter luz em eletricidade

1972 O britânico Michael Tompsett explorou o potencial do CCD e desenvolveu câmeras digitais. Criou a 2

primeira imagem colorida utilizando a tecnologia, uma foto de sua mulher, Margaret, usando uma câmera do tamanho de uma caixa de sapatos

1980 3

O engenheiro japonês Nobukazu Teranishi, da Nec Corporarion, criou o fotodiodo PIN (PPD), dispositivo que melhorou a eficiência das câmeras digitais, ampliando a resolução das imagens

1993 O norte-americano Eric Fossum, do Laboratório de Propulsão a Jato da Nasa, concebeu um novo tipo de sensor de imagens, 4

o CMOS (semicondutor óxido metálico complementar), que permitiu a miniaturização e o barateamento das câmeras

(Unicamp) e diretor científico da FAPESP, entre outros. Os juízes avaliaram as indicações levando em consideração três questões: 1) qual é a inovação disruptiva em engenharia que os candidatos (o prêmio pode ser dividido por até cinco pesquisadores) produziram?; 2) de que forma essa contribuição beneficiou a humanidade?; 3) há mais alguém que possa reivindicar um papel central no desenvolvimento dessa inovação? O resultado da análise foi uma lista de nomes recomendados para o conselho administrativo da fundação, a quem cabe definir os premiados.

E

m sua primeira edição, em 2013, o QEPrize reconheceu cinco engenheiros por suas contribuições no desenvolvimento da internet: Robert Kahn, Vint Cerf e Louis Pouzin, pela criação dos protocolos que formaram a arquitetura fundamental da internet, Tim Berners-Lee, pela criação da World Wide Web, e Marc Andreessen, pelo desenvolvimento, no início dos anos 1990, do Mosaic, o primeiro navegador usado no sistema operacional Windows. Em 2015, a segunda edição do prêmio laureou apenas um pesquisador: o químico Robert Langer, professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), criador de polímeros capazes de liberar de forma controlada no organismo a substância ativa de medicamentos. Utilizada em fármacos contra o câncer e doenças mentais, a técnica já beneficiou 2 bilhões de pessoas. Na terceira edição, a escolha da tecnologia dos sensores de imagem digital foi justificada pelo impacto gigantesco que ela produziu no comportamento da sociedade. “Uma foto é uma forma universal de comunicação”, disse Chris­topher Snowden, ao anunciar os premiados. “Ela pode ser compartilhada instantaneamente com qualquer pessoa em qualquer parte do mundo, não importa o idioma que se fale. Escolhemos essa inovação para ganhar o QEPrize porque ela resume o que o prêmio representa. Todo mundo, especialmente os jovens, compreende a importância das imagens. É uma inovação inspiradora.” Não foi por acaso a escolha de um grupo de pesquisadores que, ao longo de mais de 30 anos, produziram pESQUISA FAPESP 253  z  37


QEPrize

Tompsett, Teranishi e Fossum, na entrega do prêmio em reconhecimento à popularização das imagens digitais

uma cadeia de inovações e trabalharam em parceria. “Nesse ciclo, a premiação acabou por destacar também a importância da colaboração em pesquisa para a excelência em engenharia”, afirmou Carlos Henrique de Brito Cruz para a Agência FAPESP. “Celebrando as mais inovadoras realizações da engenharia, o prêmio destaca aquelas com enorme impacto intelectual e, ao mesmo tempo, social e econômico.”

U

m dos ganhadores já havia recebido o Nobel de Física, em 2009. O norte-americano George Elwood Smith, de 86 anos, foi reconhecido pelo desenvolvimento no final dos anos 1960 de um tipo de memória eletrônica nos Bell Laboratories, Estados Unidos. Seu trabalho, em parceria com Willard Boyle (1924-2011), com quem dividiu o Nobel, resultou na criação de um sensor semicondutor para a captação de imagens, o CCD (sigla para dispositivo de carga acoplado), utilizado em fotografia digital, produção de imagens de satélites, equipamentos médico-hospitalares e astronomia. Nos anos 1980, a tecnologia – concebida originalmente para a memória do computador – foi aperfeiçoada pelo físico Michael Francis Tompsett, inglês radicado nos Estados Unidos e diretor da empresa de software TheraManager, que desenhou e construiu a primeira câmera de vídeo com um sensor CCD. Já nos anos 1990, Nobukazu Teranishi, da japonesa NEC, criou o fotodiodo fixo (PPD), que permitiu reduzir o tamanho do pixel – menor ponto que forma uma imagem digital – e melhorar a qualidade da imagem. O sensor CMOS (sigla para semicondutor óxido metálico complementar), concebido por Eric Fossum, em 1992, então pesquisador da agência espacial norte-americana, a Nasa, resultou na fabricação de câmeras menores, mais baratas e com menor consumo de energia. A criação do prêmio, em 2011, integra uma estratégia mais ampla da QEPrize Foundation para destacar o traba38  z  março DE 2017

O interesse dos jovens pela engenharia é considerado baixo no Reino Unido e o prêmio busca estimular novas vocações

lho dos pesquisadores da engenharia e incentivar jovens a seguir a carreira. “É importante reconhecermos os engenheiros que mudaram o nosso mundo”, disse Edmund Browne à revista The Manufacturer, ex-diretor executivo da multinacional de óleo e gás BP e presidente do conselho de administração da fundação. Fez parte dessa estratégia a criação de uma rede de embaixadores do prêmio, formada por jovens engenheiros incumbidos de disseminar os objetivos do prêmio entre professores, estudantes, políticos e jornalistas, divulgando o trabalho que fazem e a importância da profissão de engenheiro. A fundação também produz relatórios sobre a situação da formação de engenheiros e da pesquisa em engenharia no Reino Unido e em outros países. Um desses documentos, divulgado em 2015, mostrou que o interesse dos jovens de 16 e 17 anos pela engenharia é maior em países em desenvolvimento, como Índia (80% dos que responderam), Turquia (78%), África do Sul (69%), China (68%) e Brasil (57%), do que em países desenvolvidos, como Alemanha (50%), Japão (39%), Estados Unidos (30%) e Reino Unido (20%). Os jovens respon-

deram a um questionário pela internet. Em contrapartida, os entrevistados em países emergentes relataram a existência de mais dificuldades para entrar na carreira e garantir financiamento para a formação do que a relatada por aqueles de nações desenvolvidas. A perspectiva de escassez de engenheiros qualificados preocupa as grandes empresas financiadoras do prêmio. “A falta de profissionais já é visível em algumas áreas, como engenheiros eletrônicos e de software, e vai se tornar um grande problema nos próximos 10 anos”, disse Jurgen Maier, executivo-chefe no Reino Unido da indústria Siemens, em entrevista ao site do QEPrize. Outra pesquisa encomendada pela fundação evidenciou um problema de gênero que atinge a engenharia no Reino Unido. Embora o país precise formar 1 milhão de novos engenheiros até 2020, o trabalho constatou que os pais de garotas com idade entre 5 e 18 anos ainda estão inclinados a incentivar suas filhas a seguir outras carreiras, em vez da engenharia. Um total de 73% das mães e dos pais disseram acreditar que outras disciplinas oferecem melhores oportunidades de carreira para as meninas. n Fabrício Marques


Inovação y

Do risco ao mercado Avaliação de programa do BNDES que estimula cooperação entre universidades e empresas mostra que 67% dos projetos resultaram em produtos Bruno de Pierro

fotos  eduardo cesar e Léo ramos chaves

O

Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) divulgou uma avaliação do Fundo Tecnológico (Funtec), o único programa do banco na área de inovação com oferta de recursos não reembolsáveis, que apoia instituições tecnológicas em projetos cooperativos com empresas. Publicada no ano passado na Revista do BNDES, a análise mostra que 67% dos casos estudados haviam conseguido levar novas tecnologias ao mercado – e havia a previsão de que esse índice poderia chegar a 93% no médio prazo. Entre as iniciativas destacam-se o desenvolvimento de chips usados para identificação e rastreamento de animais e tratamentos contra o câncer. Em todos

os casos, a concessão de recursos não reembolsáveis buscou atender projetos cujo risco era considerado muito alto para as empresas assumirem sozinhas. A avaliação envolveu uma amostra de 22 projetos, que correspondem a um total de R$ 198 milhões desembolsados entre 2007 e 2014, mobilizando 23 instituições tecnológicas e 15 empresas, públicas ou privadas. O esforço de avaliar o programa começou em 2013, com o desenvolvimento de uma metodologia nova para o BNDES, denominada Análise Sistêmica de Efetividade (ASE), que, além dos aspectos financeiros e da verificação do cumprimento de objetivos declarados, é capaz de avaliar outras dimensões, como o impacto dos projetos

na capacitação o pessoal das instituições, e também processos internos e de clientes. “A avaliação foi realizada a partir dos objetivos originais do Funtec, que eram qualitativos, como estimular a cooperação entre universidade-empresa, contribuir para a capacitação das instituições envolvidas e gerar novas tecnologias que possam ser inseridas no mercado”, explica Luciana Capanema, gerente de Inovação do BNDES. “A partir desses objetivos foram estabelecidos indicadores que captassem os efeitos do Funtec para atingí-los. Com base nos resultados apurados, pode-se concluir que o fundo tem sido bem-sucedido, tanto na sua finalidade quanto em seus efeitos sistêmicos”, explica Luciana. pESQUISA FAPESP 253  z  39


É desejável avaliar os impactos do Funtec e seu retorno à sociedade de forma sistemática, diz Salles-Filho

O Funtec apoia projetos em áreas consideradas estratégicas para o desenvolvimento econômico, como saúde, manufatura avançada, biotecnologia, semicondutores e energias renováveis. Trata-se de um entre vários instrumentos de financiamento público não reembolsável destinado à pesquisa aplicada disponíveis no país, ainda que seja o único do BNDES. Programas como a Subvenção Econômica da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e o Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP financiam pesquisas realizadas em empresas e repassam recursos diretamente para elas, enquanto, no caso do Funtec, são as instituições de pesquisa que recebem o dinheiro. De acordo com o sociólogo Glauco Arbix, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e presidente da Finep entre 2011 e 2015, avaliações regulares de programas de financiamento à pesquisa ainda são escassas, o que dificulta a comparação da eficiência das iniciativas em execução no país. “Nesse sentido, chama a atenção o fato de o BNDES ter realizado o acompanhamento sistemático do Funtec”, afirma Arbix. A falta de monitoramento dificulta a compreensão do impacto social e econômico dos projetos de pesquisa financiados com recursos públicos, diz Sérgio Salles-Filho, professor do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Universidade Estadual de Campinas (DPCT-Unicamp). “É um viés cultural no Brasil e em muitos outros países. Para boa parte dos gestores públicos basta analisar se os projetos merecem ser financiados e depois repassar o dinheiro. 40  z  março DE 2017

Não há muita preocupação em saber os efeitos dos resultados da pesquisa e verificar se os objetivos foram alcançados”, afirma o pesquisador, que em 1995 participou da fundação do Laboratório de Estudos sobre Organização da Pesquisa e da Inovação (Geopi), responsável por desenvolver indicadores e metodologias para avaliação de políticas, programas e instituições científicas. O grupo já avaliou diversos programas da FAPESP (ver Pesquisa FAPESP nºs 147 e 210). De acordo com Salles-Filho, a iniciativa do BNDES é muito bem-vinda e seria desejável que avançasse para avaliações sistemáticas de impactos e dos retornos dos investimentos à sociedade. gargalos de infraestrutura

A avaliação feita pelo BNDES mostra que os recursos do programa foram aproveitados de diferentes formas: no desenvolvimento de novas tecnologias, na capacitação de mão de obra, no aprimoramento do gerenciamento dos projetos e na solução de gargalos de infraestrutura por meio da modernização de laboratórios. O estudo também aponta que 90% das instituições de pesquisa foram induzidas a atuar nos temas dos projetos dos quais participaram. Isso indica, segundo o documento, que os projetos em parceria com empresas ajudaram a determinar novas linhas de atuação para os pesquisadores das instituições, além de estimular a realização de seminários e workshops e a produção de artigos científicos em conjunto. Outro dado mostra que 75% dos coordenadores dos projetos nas instituições de pesquisa consideraram que o apoio do Funtec serviu como trampolim para novas parcerias com empresas.

O físico Vanderlei Bagnato, coordenador do Centro de Pesquisas em Óptica e Fotônica (Cepof), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP, sediado no Instituto de Física da USP em São Carlos, explica que estreitou relações com a MM Optics, companhia sediada no polo tecnológico da cidade, a partir de um projeto selecionado em 2010 em edital do Funtec voltado para a área de saúde. “Com o apoio do fundo, aprofundamos a parceria, ligando o conhecimento produzido na universidade ao desenvolvimento realizado na MM Optics”, diz Bagnato. O Cepof e a MM Optics criaram um equipamento que aplica terapia fotodinâmica no tratamento de determinados tipos de câncer de pele utilizando um fármaco fotossensível capaz de apontar a localização de tumores. Com os recursos do Funtec, foi possível financiar os testes do equipamento em 100 centros espalhados pelo país. “Mais de 10 mil pacientes utilizaram o equipamento, que apresentou eficiência ao aumentar as chances de cura em 94%”, afirma Luiz Antonio de Oliveira, diretor da MM Optics. Cada equipamento custa R$ 23 mil. No total, foram aplicados R$ 3,5 milhões no projeto, dos quais 10% foram investidos pela MM Optics. Luciana Capanema, do BNDES, explica que o Funtec sempre exige alguma contrapartida da empresa que participa do projeto. “É para estimular o comprometimento da empresa com os resultados do projeto.” Promover a interação entre universidades e empresas não era a missão do Funtec quando foi criado pela primeira vez, em 1964. Sua função era financiar a implementação de programas de pós-graduação em universidades. A primeira


pesquisadora do Butantan. O objetivo na época era buscar na saliva do aracnídeo novos agentes para inibir a coagulação sanguínea. Mas, durante os ensaios, descobriu-se que uma molécula da glândula salivar do carrapato inibia a proliferação de células, com potencial para tratar alguns tipos de câncer. O projeto gerou uma patente e teve apoio da FAPESP.

O desempenho do programa A evolução da carteira do BNDES Funtec – em R$ milhões

1.000 923

900 800 691

700

Chip do boi

600 533

500 436

400

427 363

336

321

300

254

200 100

90 54

90

89

93

90

2011

2012

154

119 74

44

0

0

2006

Fonte bndes

2007

2008

2009

2010

2013

2014

2015

n valores solicitados pelas empresas  n valores contratados

fase durou até 1967, quando foi extinto. Em 2006, o BNDES recriou o Funtec, que passou a ter como foco o apoio à inovação. Nos primeiros anos, parte dos recursos ajudou a modernizar laboratórios de universidades que poderiam ser utilizados por empresas. Em 2012, a participação de empresas nos projetos tornou-se obrigatória. “A atuação da empresa amplia as possibilidades de a tecnologia chegar ao mercado”, ressalta Luciana. A aplicação de recursos não reembolsáveis é importante para viabilizar, dentro das empresas, determinado tipo de pesquisa que, além de ser cara, tem um risco elevado de não prosperar. “Caso um projeto que envolva risco tecnológico seja bem-sucedido, o retorno para a sociedade é muito grande. Essa lógica é o que move o investimento em pesquisa na fronteira do conhecimento em países desenvolvidos”, diz Miguel Giudicissi Filho, diretor médico-científico da União Química, que já participou de projetos financiados pelo Funtec. Um deles foi o desenvolvimento de um fármaco para o tratamento da tuberculose, em parceria com a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Coube à empresa produzir as cápsulas e testar a estabilidade do medicamento, que agora passa por testes pré-clínicos.

Recursos não reembolsáveis ajudam a viabilizar nas empresas pesquisas com alto risco tecnológico Outro projeto envolve o Instituto Butantan e o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), em São Paulo, no desenvolvimento de um medicamento biológico antitumoral. Trata-se de uma proteína recombinante capaz de provocar a morte de células malignas sem causar danos às saudáveis. “Vamos começar os testes clínicos com seres humanos”, diz Giudicissi. A pesquisa começou com o estudo do carrapato-estrela (Amblyomma cajennense), realizado há mais de 10 anos por Ana Marisa Chudzinski-Tavassi,

O Funtec apoiou projetos em outros setores, como o de tecnologia da informação. O Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada (Ceitec), transformado em empresa em 2008, em Porto Alegre, produziu o chamado chip do boi, usado para identificação e rastreamento de bovinos, comercializado desde 2012. Os recursos do Funtec – cerca de R$ 18 milhões – foram investidos na infraestrutura de fabricação do produto e na pesquisa e desenvolvimento do circuito integrado do chip. “Com a identificação individualizada e automatizada de cada animal, o proprietário melhora a eficiência dos diversos processos de manejo do rebanho, melhorando a rentabilidade do negócio”, explica Paulo Luna, presidente da Ceitec S/A. O projeto contou com a parceria de instituições de pesquisa, entre elas a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Foram produzidos cerca de 1 milhão de chips até hoje. Também existem ponderações sobre a própria concepção do programa. Glauco Arbix reconhece a importância do Funtec como indutor da pesquisa empresarial, mas afirma que não é adequado a coordenação do projeto ficar a cargo de instituições de pesquisa. “As universidades devem obrigatoriamente seguir certos rituais do setor público, como a burocracia dos processos de licitação e as dificuldades para contratação de pesquisadores, o que atrapalha um pouco o processo”, afirma. A legislação que permitiu o repasse de recursos públicos não reembolsáveis para projetos em empresas privadas é nova no país. Embora algumas agências de apoio já colocassem em prática programas de subvenção econômica para empresas, a base jurídica dessa modalidade surgiu em 2006, com a Lei de Inovação. “Quando o recurso vai diretamente para a empresa, ela passa a ditar o tom do projeto seguindo um cronograma mais veloz do que o das universidades”, prevê Arbix. n pESQUISA FAPESP 253  z  41


Manifestantes em Washington protestam contra a política de imigração do novo governo, em janeiro

Estados Unidos y

O temor do isolamento Dependente de talentos estrangeiros, comunidade científica norte-americana se mobiliza

A

disposição do novo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de reduzir o contingente de imigrantes no país assustou dirigentes de universidades, instituições de pesquisa e empresas tecnológicas norte-americanas. O primeiro movimento do presidente foi draconiano: uma semana depois da posse, decretou a suspensão do programa de admissão de refugiados e vetou a entrada de cidadãos de sete países muçulmanos, mesmo com documento de residência permanente. A Justiça norte-americana suspendeu os efeitos do decreto dias mais tarde. No dia 6 de março, Trump lançou uma versão mais branda do decreto, que respeita direitos adquiridos. A reação da comunidade científica foi instantânea. A reitora da Universidade Harvard, Drew Faust, divulgou uma declaração lembrando que, a cada ano, milhares de estrangeiros chegam à instituição para estudar, fazer pesquisa e compartilhar conhecimentos que, segundo suas palavras, “transcendem a nacionalidade”. O venezuelano Leo Rafael Reif, reitor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, também reiterou a importância dos imigrantes: “Mais de 40% dos nossos professores são de fora do país. Em uma nação que cresceu graças 42  z  março DE 2017

aos imigrantes, por que temos de dizer ao mundo que não queremos receber novos talentos?”.Executivos de empresas de tecnologia, como Google, Facebook, Apple e Microsoft, condenaram igualmente a política imigratória do novo presidente. O discurso isolacionista de Trump choca-se com uma estratégia que, historicamente, ajudou a construir o mais sólido sistema de ciência, tecnologia e inovação do planeta: a atração de talentos do exterior tornou-se um meio de financiar o funcionamento das universidades, fornecer mão de obra qualificada para as empresas e reunir pesquisadores de primeira linha. A dependência é grande. Em 2016, o número de estudantes estrangeiros em instituições de ensino superior dos Estados Unidos superou pela primeira vez a casa do milhão, de acordo com o Instituto de Educação Internacional (IEE). Esse contingente, vindo principalmente de países como China, Índia, Coreia do Sul, Arábia Saudita, Brasil e México, representa 5% dos 20 milhões de matriculados nas universidades e é uma fonte importante de financiamento das instituições. Do total de alunos estrangeiros, 17 mil vieram da Síria, do Irã, da Líbia, da Somália, do Iêmen, do Iraque e do Sudão, países alvo do banimento decretado por Trump.

Freelancer /AFP /Getty Images

contra a política anti-imigração de Trump


A presença de estrangeiros na ciência americana Estudo da National Science Foundation mostrou que cresceu entre 2003 e 2013 o contingente de imigrantes trabalhando como cientistas e engenheiros nos Estados Unidos Cientistas e engenheiros residentes nos Estados Unidos (em milhares) Imigrantes

Ano

2003

16%

2013 18%

Naturais dos EUA

3.352

18.295

5.179

23.771

Total

21.647

84%

82%

O perfil dos imigrantes

28.950

FORMAÇÃO

A origem dos cientistas e engenheiros imigrantes, sua formação, seus campos de atuação e os setores em que estavam empregados nos Estados Unidos em 2013

Bacharelado 50,7% Mestrado 32,1% Doutorado 9% Profissional

DE ONDE VIERAM (EM MILHARES)

8,2%

CAMPOS DE ATUAÇÃO

203

2.956

América do Norte (exceto EUA)

Ciências da computação e matemática

Ásia

18,1%

851

Engenharias

Europa

8,2%

Ciências da vida e agricultura

fotos  1 e 3 nonononono 2 nonononno  4 nonononono  ilustraçãO nnonono

4,2%

Ciências sociais 2%

32

249

Oceania

Caribe

Ciências físicas 1,9%

Outras áreas científicas 31,3%

Áreas não científicas* 34,2% * executivos, professores de escola, gestores públicos

203 América Central

303

323

América do Sul

África

ONDE TRABALHAM Indústria ou negócios 75,5% Universidades 10,8% Governo 8% Outras instituições de ensino

Fonte  national science foundation (NSF)

5,7% pESQUISA FAPESP 253  z  43


CÉREBROS RECONHECIDOS

fonte ANDERSON, S. Immigrant scientists: invaluable to the United States. International Educator, 2015

Como cresceu a proporção de imigrantes entre os cientistas dos Estados Unidos que venceram o Prêmio Nobel nas categorias química, física e medicina ou fisiologia

Participação de pesquisadores imigrantes em centros de excelência em câncer dos EUA University of Texas – MD Anderson Cancer Center

Entre 1901 e 1959

62%

25 imigrantes ganharam Prêmio Nobel para os EUA

Memorial Sloan-Kettering Cancer Center 56%

Entre 1960 e 2014

73 imigrantes ganharam o Prêmio Nobel para os EUA

Fox Chase Cancer Center 44% The Sidney Kimmel Comprehensive Cancer Center 35%

Dados da National Science Foundation mostram que o contingente de engenheiros e pesquisadores imigrantes cresceu nos Estados Unidos nos últimos anos. Em 2003, representavam 16% do total de engenheiros e cientistas. Em 2013, eram 18%. Outro estudo, esse da National Foundation for American Policy, revelou que 51% das startups norte-americanas avaliadas em ao menos US$ 1 bilhão tinham imigrantes entre seus fundadores. “Imigrantes altamente qualificados não estão roubando os nossos empregos, porque não temos profissionais nos Estados Unidos para ocupar esses empregos. Eles estão, isso sim, criando indústrias que não existem e gerando empregos”, disse o físico teórico Michio Kaku, da City University of New York, num vídeo de uma palestra disseminado nas redes sociais. Na avaliação de Reginaldo Moraes, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu), embora os cientistas não sejam o alvo, a ação de Trump pode desestimular a ida de estudantes e pesquisadores para os Estados Unidos. “Muitos imigrantes que planejavam estudar ou pesquisar lá provavelmente estão se sentindo ameaçados e suscetíveis a desistir da ideia”, diz Moraes. “Acredito que Trump quer acentuar a xenofobia em seu eleitorado, que olha para os imigrantes como competidores no mercado de trabalho. Não é o mundo da academia que está sendo visado, mas o dos trabalhadores imigrantes de baixa renda.” Em 28 de fevereiro, Trump foi ao Congresso e, pela primeira vez, contemporizou: “Se passarmos do atual sistema de imigração de pessoas com baixa capacitação e ado44  z  março DE 2017

tarmos um sistema baseado no mérito, teremos muitos benefícios: pouparemos dólares, elevaremos os salários e ajudaremos as famílias em dificuldades – incluindo as de imigrantes – a ingressar na classe média”, disse. Para Tullo Vigevani, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Marília, e também membro do INCT-Ineu, o bloqueio à entrada de pesquisadores estrangeiros traria consequências graves para os Estados Unidos. “As universidades e instituições de pesquisa perderiam não só massa crítica como também aumentariam o custo do país para formar novos pesquisadores”, analisa. “Uma das vantagens de receber alunos e pesquisadores é que se consegue aumentar o contingente com pessoas já preparadas. Trata-se do fenômeno chamado brain drain.” diplomacia científica

Uma preocupação da comunidade científica é saber se Trump seguirá a tradição de utilizar a diplomacia científica, que é o uso da ciência como um dos braços da política externa. Em janeiro, Rush Holt, presidente da Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS), enviou carta ao Senado lembrando episódios em que o país lançou mão da diplomacia científica, como a aproximação entre o país e a China nos anos 1970 por meio da colaboração entre pesquisadores e, atualmente, as parcerias entre cientistas norte-americanos e de Cuba em pesquisas sobre o câncer e na previsão de furacões. Com a carta, Holt procurava estimular os senadores a cobrarem do governo, na sabatina do novo secretário de Estado, Rex Tillerson, um compromisso de usar a ciência na política externa.

Dana-Farber Cancer Institute 33% UCSF H. Diller Family Comprehensive Cancer Center 32% Fred Hutchinson Cancer Research Center 30%

O conceito de diplomacia científica é abrangente. Engloba a formação de consórcios entre países para realizar programas científicos internacionais, o uso da cooperação científica para aproximar nações com relações estremecidas e o apoio que pesquisadores podem dar a negociações diplomáticas e tratados internacionais. De acordo com Robert Patman, professor de relações internacionais da Universidade de Otago, na Nova Zelândia, e autor de um livro sobre diplomacia científica, o governo Trump já demostrou desprezo por uma dessas vertentes: o engajamento de pesquisadores em negociações diplomáticas. Não se espera, por exemplo, que o presidente contemple o conhecimento científico nas conferências sobre mudanças climáticas. “Trump descreve a mudança climática como ‘boato’ e nomeou um procurador que nega sua existência para chefiar a Agência de Proteção Ambiental”, escreveu para o site jornalístico Noted. Para Tom Wang, diretor do Centro de Diplomacia Científica da AAAS, é cedo para avaliar os efeitos da política externa de Trump, mas ele enfatiza que o governo não é o único artífice de estratégias no campo da diplomacia científica. Segundo ele, o tema envolve, além do governo, universidades, academias e sociedades científicas. “Elas continuarão desempenhando papel vital na diplomacia da ciência nos Estados Unidos”, disse à Pesquisa FAPESP. n Bruno de Pierro


Obituário y Morto aos 78 anos, Kaufmann se tornou um expoente da radioastronomia no país

Como ouvir as estrelas Físico Pierre Kaufmann foi um dos precursores da radioastronomia e da física solar no Brasil

divulgação

O

fascínio de Pierre Kaufmann pela astronomia começou ainda criança, quando observava o rastro luminoso deixado pelas estrelas cadentes que cortavam o céu da fazenda onde vivia com os pais e o irmão, em Aix-en-Provence, sul da França. A curiosidade em entender esse e outros fenômenos celestes o levou a seguir a carreira de físico, área que anos mais tarde o consagraria como um dos precursores da radioastronomia no Brasil. Kaufmann morreu em São Paulo no dia 17 de fevereiro, aos 78 anos de idade. O pesquisador chegou ao Brasil com a família, em 1941, fugindo da Segunda Guerra Mundial. Em 1957, aos 19 anos, ini­ ciou a graduação em física na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Univer-

sidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo. Antes, desde 1954, já era membro da Associação dos Astrônomos Amadores, responsável pela instalação do primeiro radiotelescópio brasileiro, em 1962, no planetário do Parque do Ibirapuera. Em 1960, a associação se tornou parte do recém-criado Centro de Rádio Astronomia e Astrofísica do Mackenzie (Craam). “O professor Kaufmann estabeleceu a pesquisa em radioastronomia em São Paulo, tendo recebido apoio da FAPESP já em 1962 para um projeto sobre radioestrelas”, comentou à Agência FAPESP Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP. “Com uma carreira muito bem-sucedida, contribuiu decididamente para o desenvolvimento da ciência e da tecnologia no estado de

São Paulo.” Para o astrônomo Jacques Lepine, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), “Kaufmann teve papel fundamental na pesquisa em radioastronomia, ajudando a viabilizar a construção de um radiotelescópio em Campos do Jordão, em 1964, e, tempos depois, em Atibaia.” A antena construída em Atibaia foi a primeira do tipo no hemisfério Sul e ajudou Kaufmann a produzir uma extensa obra científica em radioastronomia e física solar. “A instalação do radiotelescópio foi muito importante para a consolidação da radioastronomia no Brasil e para o estabelecimento de Kaufmann como um expoente na área”, completa Lepine. O físico também foi pesquisador no Centro de Componentes Semicondutores (CCS) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor associado da Escola Politécnica da USP. Participou da construção do Telescópio Solar Submilimétrico, instalado nos Andes argentinos. Foi lá que, em 2004, Kaufmann e seus colegas identificaram um novo tipo de explosão solar, produzindo os chamados raios T (ver Pesquisa FAPESP nº 188). “Kaufmann conseguia antever nichos importantes nos quais o Brasil poderia realizar descobertas científicas inéditas e de grande impacto”, diz a física Adriana Valio, coordenadora do curso de pós-graduação em ciências e aplicações geoespaciais do Mackenzie e coordenadora da área de Astronomia e Ciência Espacial da Diretoria Científica da FAPESP. “Ele era um exemplo de determinação e lealdade”, completa. Kaufmann publicou mais de 200 artigos científicos, além do livro La atmósfera solar y su investigación a través de ondas radioeléctricas. Em 2016, ele e seus colaboradores haviam conseguido observar pela primeira vez explosões solares nas frequências de 3 e 7 terahertz (THz). O anúncio foi feito durante a Reunião Anual da Divisão de Física Solar da Sociedade Americana de Astronomia, em junho, no Colorado, Estados Unidos. n pESQUISA FAPESP 253  z  45


Árvores com uso humano dominam em área de terra preta na Fazenda Nacional de Humaitá, Amazonas 46  z  março DE 2017


ciência  Arqueoecologia y

Um imenso pomar

Distribuição de árvores e geoglifos ressaltam o impacto de populações humanas pré-colombianas na floresta amazônica

Maria Guimarães

fotos 1 Carolina Levis 2 edison caetano

B

em antes da chegada dos europeus à América, a Amazônia era coalhada de índios que sabiam muito bem usar a floresta em benefício próprio. Eles selecionavam e cultivavam plantas a ponto de alterar suas propriedades, escavavam valas circulares ou quadradas visíveis a quilômetros de altitude e faziam reservatórios de água. O resultado de milênios de alterações é uma floresta que pouco tem de virgem, de acordo com botânicos e arqueólogos. “Detectamos que perto de sítios arqueológicos há uma maior concentração e diversidade de árvores usadas pelos índios”, conta a bióloga Carolina Levis, doutoranda no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e na Universidade de Wageningen, na Holanda, e primeira autora de um artigo publicado este mês na revista Science, que pela primeira vez examinou correspondências entre dados arqueológicos e botânicos. As diferenças são tão marcantes que ela sugere usar a composição da flora como assinatura para localizar assentamentos humanos antigos. Levando em conta as árvores atuais, detectou 85 espécies usadas e domesticadas pelos índios, como o açaí-do-mato, a castanha-do-pará e a seringueira. Os resultados foram possíveis graças a dois extensos bancos de dados. Um compilado pelo

2

Geoglifo Hortigranjeira, no Acre, é considerado complexo por ter vários elementos

arqueólogo Eduardo Tamanaha, doutorando no Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (MAE-USP), e pelo ecólogo André Junqueira, agora em estágio de pós-doutorado na Universidade de Wageningen, que inclui dados de mais de 3 mil sítios arqueológicos. O outro foi criado pelo botânico Hans ter Steege, do Centro de Biodiversidade Naturalis, na Holanda, formando uma rede de pesquisadores que fizeram inventários botânicos em 1.170 parcelas de amostragem na pESQUISA FAPESP 253  z  47


1

Amazônia, com mais de 4 mil espécies de árvores. Quem já frequentou um pomar e aprendeu quais árvores rendem os melhores frutos consegue imaginar essa seleção como o primeiro passo da domesticação. Aos poucos, começa a haver um manejo diferenciado dessas plantas. O passo seguinte é cultivá-las fora do espaço da floresta, como quintais e roças. Com o tempo, a morfologia e a genética do fruto vão sendo alteradas, criando populações e indivíduos com características muito diferentes do original. itinerários

Na floresta, domesticar a paisagem pode gerar tanto alimento quanto lavouras em outros lugares do mundo

Procurar pistas do processo de domesticação no material genético dessas plantas é o foco do biólogo norte-americano Charles Clement, do Inpa, coorientador de Carolina junto com a bióloga Flávia Costa e um dos autores do artigo. Um exemplo é a pupunha (Bactris gasipaes), uma palmeira que ele ressalta ser apreciada pelos frutos, não apenas pelo palmito conhecido no Sudeste. Na variedade silvestre, cada fruto pesa por volta de 1 grama (g), mas pode chegar a 200 g na Amazônia ocidental, na versão domesticada. Os estudos, que vêm desde seu mestrado, indicam que a domesticação da pupunha começou onde hoje é a Amazônia boliviana e se espalhou por duas rotas distintas. A forma abundante na Amazônia ocidental é fonte de uma polpa boa para fermentação. “A cerveja de pupunha é a favorita dos índios”, conta. Na região de Manaus e Belém os frutos, ricos em óleo, não fermentam bem. Nesse caso, são cozidos e 48  z  março DE 2017

apreciados como tira-gosto. Os marcadores genéticos, porém, não permitem detalhar quando os eventos se deram. A botânica Priscila Moreira, doutoranda de Clement, conseguiu resultados mais detalhados com a cuia (Crescentia cujete), por meio de métodos de sequenciamento realizados em parceria com o geneticista Yves Vigouroux, do Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento, na França. Em artigo aceito para publicação na revista Evolutionary Applications, ela refuta que a cuia tenha sido domesticada na Amazônia ou no México. A planta chegou à Amazônia já domesticada e cruzou com a cuia silvestre, gerando híbridos que produzem cuias menores do que a domesticada. O formato também varia, e cada tipo é usado de maneira específica pelos índios de hoje. Para Clement, as pesquisas sugerem que a agricultura não é inerente a grandes sociedades. Para quem vive em uma floresta, domesticar a paisagem pode gerar tanto alimento quanto lavouras em outros lugares do mundo. A abundância das plantas usadas pelos índios sugere que muitas domesticações aconteceram no sudoeste da Amazônia, onde também teriam surgido famílias linguísticas importantes, como o Tupi e o Arawak. “Esses grupos podem ter levado as plantas por grandes distâncias”, sugere Carolina. A correlação entre

2

Cerâmicas de mais de mil anos no sítio Hatahara, próximo ao rio Solimões (à esq.), e arte rupestre em Hinkiori, Peru


3

fotos 1 Val Moraes / Central Amazon Project 2 William Farfan-Rios  3 jorge contreras  4 carolina levis

4

Frutos domesticados: biribá (Anonna mucosa, acima) e açaí-solitário (Euterpe precatoria)

árvores hiperdominantes e indícios de populações humanas antigas é mais forte no sudoeste da Amazônia, como Rondônia, e também na região da foz do Amazonas, mas conclusões definitivas esbarram em amplas extensões desconhecidas tanto do ponto de vista florístico quanto arqueológico. Uma das dificuldades é saber se a distribuição das árvores foi realmente alterada por gerações e gerações de índios, ou se os povos se estabeleceram onde havia recursos valiosos. Carolina aposta na primeira alternativa. “Encontramos árvores com preferências ecológicas distintas vivendo nas mesmas parcelas de amostragem, algo improvável de acontecer naturalmente.” vida na floresta

“Os resultados corroboram a visão de que sempre houve gente na Amazônia e a floresta atual não é tão natural assim”, provoca o arqueólogo Eduardo Góes Neves, professor do MAE e um dos autores do estudo. O próximo passo é trabalhar com mais refinamento, investigando a partir dos dados arqueológicos as espécies domesticadas no passado. “A arqueologia é uma ciência social, mas precisa dialogar com as ciências naturais.”

Segundo ele, uma dificuldade é a lentidão dos estudos arqueológicos. “Em uma semana os botânicos conseguem recolher amostras em vários pontos predefinidos”, afirma. “Nós passamos anos escavando o mesmo sítio, é um ritmo muito lento de produção de conhecimento.” Por isso o estudo da Science considerou apenas a ausência ou a presença de sítios arqueológicos. A variação, porém, pode ser imensa, tanto em características dos habitantes quanto no tempo. Uma parte importante dessa história antiga está em Rondônia, perto de Porto Velho, onde Neves há 10 anos começou a escavar com o arqueólogo Fernando Almeida, à época seu estudante e agora professor da Universidade Federal de Sergipe. Uma abundância de terra preta, resultado de sucessivas queimadas que desmancham a matéria orgânica, inclusive excrementos (ver Pesquisa FAPESP nº 183), sugere uma grande população por um período prolongado. É um solo mais fértil que não se desgasta com o passar do tempo e das águas. Além disso, seu pH quase neutro preserva vestígios de plantas, cerâmicas e outros indícios de vida humana, nesse caso de até 6,5 mil anos atrás. “Nessa época já havia plantas domesticadas”, conta o professor do MAE. Durante migrações nas imensas distâncias amazônicas, grupos humanos provavelmente encontravam uma barreira na cachoeira de Teotônio, no rio Madeira. Quantidades industriais de peixe estavam disponíveis até a área ser inundada pela represa da hidrelétrica de Santo Antônio, em 2011. “O sedentarismo era favorecido pela pesca”, conta Almeida. Mas também há indícios de que o cultivo da mandioca começou ali, segundo ele em grande parte para fazer cerveja. Há milênios a bebida não só é usada em rituais, mas também como alimento, conforme descreve em artigo de 2015 na revista Estudos Avançados. A fermentação deixa um craquelado típico nas cerâmicas, mas identificar as plantas usadas (mais frequentemente milho, além de mandioca) requer a análise de vestígios vegetais. A arqueóloga inglesa Jennifer Watling, em estágio de pós-doutorado no MAE sob supervisão de Neves, tem encontrado em Teotônio amostras antigas de plantas como abóbora, feijão e milho, inclusive no interior de fragmentos de cerâmica: indício de uso para alimentação. A cerca de 400 quilômetros dali, no Acre, Jennifer também estudou a vegetação – atual e antiga – em torno de trincheiras com até 11 metros (m) de largura e 4 m de profundidade formando figuras geométricas com até 300 m de diâmetro, os geoglifos. Os vestígios de plantas, conhecidos como fitólitos, permitiram entender um pouco mais da formação e do uso dessas estruturas, de acordo com artigo publicado em fevereiro na PNAS. “Os fitólitos são testemunhos de parte da floresta no pESQUISA FAPESP 253  z  49


Técnica de laser (LiDAR) a bordo de drones permite enxergar estruturas debaixo da floresta

passado”, resume a inglesa. Eles mostram que há 6 mil anos a região era coberta por bambus, dominantes ainda hoje, e que os geoglifos mais antigos foram construídos entre 3 mil e 3,5 mil anos atrás em uma paisagem já alterada pela atividade humana. Essa vegetação, mais fácil de cortar, era retirada apenas nos locais de escavação, de maneira que as estruturas permaneciam escondidas. Outro indício de alteração antrópica é uma grande quantidade de palmeiras há 2 mil anos, um período no qual ocorreram queimadas e as condições climáticas não favoreciam o aumento na densidade desse tipo de planta. construção

Jennifer explica que grupos distintos devem ter usado os geoglifos durante longos períodos, até 3 mil anos, algo como um ponto de encontro. Mas não há indícios de grandes povoados por perto. “As pessoas eram nômades e acampavam do lado de fora dos geoglifos”, diz a arqueóloga Denise Schaan, professora na Universidade Federal do Pará. Usando também imagens de satélite, ela estuda essas estruturas em parceria com colegas finlandeses desde 2005 em toda a região que envolve as fronteiras entre Acre, Rondônia, Amazonas e Bolívia (ver Pesquisa FAPESP nº 186). Desde o final de 2016 eles começaram a usar uma técnica conhecida como LiDAR (Light Detection and Ranging), a bordo de drones, para mapear a topografia do solo em áreas com floresta. “Estamos encontrando estruturas que mesmo em áreas desmatadas tínhamos dificuldade de enxergar.” Bem longe dali, Denise também estuda indícios de povoamentos na região de Santarém-Belterra, no centro do Pará. São mais de 100 sítios arqueológicos em uma região de domínio 50  z  março DE 2017

Projetos 1. Relações estruturantes entre hidrologia e vegetação no Interflúvio Purus-Madeira (no 09/53369-6); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Acordo Fapeam; Pesquisador responsável Javier Tomasella (Inpe); Investimento R$ 138.310,07 (FAPESP). 2. Interações pré-colombianas homem-ambiente na bacia de Alto Madeira, sudoeste da Amazônia (no 14/21207-5); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Eduardo Góes Neves (USP); Bolsista Jennifer Watling; Investimento R$ 280.149,35.

Artigos científicos LEVIS, C. et al. Persistent effects of pre-Columbian plant domestication on Amazonian forest composition. Science. v. 355, n. 6328, p. 925-31. 3 mar. 2017. WATLING, J. et al. Impact of pre-Columbian “geoglyph” builders on Amazonian forests. PNAS. v. 114, n. 8, p. 1868-73. 6 fev. 2017. MCMICHAEL, C. N. H. et al. Ancient human disturbances may be skewing our understanding of Amazonian forests. PNAS. v. 114, n. 3, p. 522-7. 17 jan. 2017. CLEMENT, C. et al. The domestication of Amazonia before European conquest. Proceedings of the Royal Society B. v. 282, n. 1812. 7 ago. 2015. ALMEIDA, F. O. de. A arqueologia dos fermentados: A etílica história dos Tupi-Guarani. Estudos Avançados. v. 29, n. 83, p. 87-118. jan-abr. 2015.

Salman Kahn

dos índios Tapajós deteriorada pela agricultura mecanizada de soja. A surpresa foi encontrar sinais de povoações antigas em platôs e longe dos grandes rios. “Eles aproveitavam depressões para cavar poços que podiam ter desde 8 m até 100 m de largura, nos quais recolhiam água das chuvas e praticavam agricultura.” Ela conta que até recentemente populações locais usavam esses poços, prática abolida pela contaminação por defensivos agrícolas. Em conjunto, esses estudos reforçam a noção de que havia muita gente na Amazônia antes da chegada dos europeus, talvez entre 8 milhões e 10 milhões de índios. Algumas interpretações, porém, são vistas com cautela por outros pesquisadores, como a paleoecóloga Crystal McMichael, professora na Universidade de Amsterdã, na Holanda. Em artigo publicado em janeiro na PNAS, ela e colegas apontam que grande parte dos estudos botânicos é feita nos locais onde seres humanos viveram, de maneira que as alterações deixadas na floresta podem ter um peso desproporcional no entendimento ecológico da região. “Estudamos uma fração tão pequena da Amazônia, tanto em termos de arqueologia como de ecologia, que devemos ter cuidado ao extrapolar para áreas inexploradas em qualquer uma das disciplinas”, avisa. Ela não está convencida da relação causal entre as populações antigas e as alterações na floresta e afirma que falta provar quando as domesticações foram feitas. Para Neves, essas discordâncias são positivas e têm levado os pesquisadores a retrabalhar seus dados para encontrar respostas. “Acho que muito da discordância vem do fato de arqueólogos, ecólogos e paleoecólogos não terem uma linguagem comum, embora estejamos começando a compartilhar ideias”, sugere Crystal. n


MEDICINA y Na cor púrpura, células de câncer de pulmão sensíveis a medicamentos alvo-dirigidos

Huntsman Cancer Institute, University of Utah / NATIONAL CANCER INSTITUTE / SCIENCE PHOTO LIBRARY

No sangue, mais pistas sobre o câncer Biópsia líquida começa a ser usada para avaliar a evolução de tumores e a necessidade de mudar o tratamento

Ricardo Zorzetto

E

m 1847, o médico inglês Henry Bence Jones encontrou na urina de pessoas com mieloma múltiplo uma proteína característica desse câncer que atinge a medula dos ossos. De lá para cá, cerca de duas dezenas de proteínas mensuráveis no sangue vêm sendo usadas como indicadores de surgimento, crescimento ou regressão de tumores. Algumas delas se tornaram bastante conhecidas, como o antígeno prostático específico (PSA), sinalizador de tumores na próstata. São ferramentas úteis, embora não tenham a precisão desejada: em alguns casos, seus níveis podem estar elevados e não haver tumor; em outros, a doença pode existir e a proteína não estar detectável. Nos últimos anos, médicos e pesquisadores em centros de oncologia dos Estados Unidos, da Europa e do Brasil começa-

ram a investigar formas de prever a evolução de certos tipos de câncer e o modo como respondem a alguns tratamentos por meio da detecção de fragmentos de DNA, de células e até de vesículas que o tumor libera no sangue. Essa estratégia é a biópsia líquida, assim chamada por exigir apenas a coleta de sangue ou outros fluidos corporais, como saliva e urina. Ainda em fase de desenvolvimento, essa técnica é oferecida desde meados de 2016 em alguns hospitais de São Paulo e do Rio de Janeiro e desperta o interesse de médicos e pacientes, além do entusiasmo de empresas de biotecnologia, interessadas em um mercado de venda de equipamentos e insumos e de realização de testes que movimentou US$ 580 milhões nos Estados Unidos no ano passado e deve alcançar US$ 1,7 bilhão em 2021, segunpESQUISA FAPESP 253  z  51


do previsão da empresa de pesquisa de mercado MarketsandMarkets. É que a biópsia líquida promete vantagens em relação à biópsia tradicional, na qual se extraem, por punção com agulha ou por cirurgia, amostras do tecido doente.

E

xames de imagem ajudam a identificar um provável câncer, mas é a análise que o médico patologista faz do material da biópsia que permite definir se um tumor é maligno e quais as suas características, informações fundamentais para se definir o tratamento. Apesar de mais informativa, a biópsia de um tecido é um procedimento invasivo que pode exigir internação e uso de anestesia. Em certos casos, opta-se por não fazê-la porque o tumor está perigosamente próximo de uma artéria importante ou um órgão vital. Outro complicador é que os tumores são formados por diferentes populações de células, que mudam com o tempo. Por causa dessa heterogeneidade e da variabilidade, a informação de que a biópsia tradicional oferece sobre o tumor pode não ser a mais completa nem a mais atualizada. Essas dificuldades têm impulsionado a busca de alternativas que sejam mais confiáveis do que a biópsia de tecido e mais simples de realizar, como a biópsia líquida. Por poder ser repetida com mais frequência, médicos e pesquisadores começam a ver essa técnica como possível opção para acompanhar a evolução de certos tipos de câncer, monitorar a resposta ao tratamento e identificar o reaparecimento de tumores antes que se tornem detectáveis nos exames de imagem. A versão da biópsia líquida que detecta o material genético tumoral na corrente sanguínea – o DNA tumoral – já é adotada em alguns centros oncológicos do exterior e também em São Paulo e no Rio de Janeiro. A favor de seu uso, há evidências de que o DNA tumoral encontrado no sangue reflete melhor do que a biópsia tradicional ou os marcadores proteicos a atividade das células neoplásicas e as transformações pelas quais o câncer passa ao longo do tempo e do tratamento. No final dos anos 1990, pesquisadores na França e nos Estados Unidos observaram que o sangue de pessoas com câncer continha mais DNA. Pouco depois, a bióloga brasileira Diana Nunes comprovou que a origem desse material era,

52  z  março DE 2017

Formas de monitorar o tumor Fácil de ser repetida, nova biópsia oferece visão dinâmica do câncer tradicional Análise morfológica das células e do tecido

Coleta de amostra do tumor

Células tumorais

O patologista observa as células ao microscópio e, a partir de suas características, define se o tumor é maligno

Coleta-se uma amostra do tecido doente por punção com agulha ou cirurgia. A técnica exige o uso de anestesia

Fonte carlos gil ferreira / i’dor e vilma martins / a.c.camargo cancer center

de fato, o tumor. Ela fazia mestrado sob a orientação do bioquímico inglês Andrew Simpson no Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer, em São Paulo, e, em parceria com o oncologista Luiz Paulo Kowalski, do A.C.Camargo Cancer Center, analisou o material genético extraído da saliva e do sangue de pessoas com câncer de boca. Em um artigo de 2001 no International Journal of Cancer, o trio provou que parte do DNA encontrado nesses fluidos apresentava o mesmo defeito que o das células do tumor, portanto, só poderia ter vindo dele. “Foi o primórdio da biópsia líquida”, lembra o biólogo Emmanuel Dias-Neto, coordenador do Laboratório de Genômica Médica do A.C.Camargo, onde Diana trabalha. O avanço das técnicas de sequenciamento genético na última década tornou mais fácil identificar as alterações que caracterizam os diferentes tumores e rastreá-las no sangue. O primeiro teste de biópsia líquida disponível comercialmente foi desenvolvido por uma empresa farmacêutica multinacional, a Roche, e liberado para uso nos Estados Unidos no início de 2015. Em junho do ano passado, um laboratório do Rio de Janeiro especializado em testes moleculares, o Progenética, passou a fazer biópsia líquida usando o kit importado.


líquida Coleta de sangue

Análise molecular de material tumoral

DNA tumoral Técnicas de sequenciamento buscam mutações indicadoras de sensibilidade ou resistência aos medicamentos no material genético liberado pelas células doentes. A quantidade de DNA do tumor permite monitorar o desempenho do tratamento Células tumorais circulantes A concentração de células tumorais no sangue indica a resposta ao tratamento. Moléculas expressas por essas células podem revelar tolerância a medicamentos. A detecção de grupos dessas células assinala risco de metástase

Por meio de uma punção com agulha, extraem-se 10 mililitros de sangue de uma veia do braço

Exossomo

infográfico ana paula campos  ilustraçãO  fabio otubo

Célula tumoral

O teste detecta no sangue fragmentos de DNA contendo uma alteração no gene EGFR específica do adenocarcinoma de pulmão, o tipo de câncer mais comum nesse órgão e o mais frequente entre os não fumantes. Conhecida pela sigla T790M, essa mutação indica que o tumor se tornou resistente ao tratamento com inibidores de tirosina-quinase de primeira e segunda gerações, medicamentos que agem sobre as células do tumor e poupam as sadias.

E

m São Paulo, o A.C.Camargo Cancer Center oferece desde agosto de 2016 uma versão própria e mais abrangente desse teste. Desenvolvida pela equipe da bioquímica Dirce Carraro, ela detecta, além da T790M, outras três mutações no gene EGFR que tornam o adenocarcinoma sensível aos inibidores de tirosina-quinase. Antes mesmo de o teste se tornar disponível para os médicos do hospital, o oncologista Helano Freitas o utilizou para orientar o tratamento de algumas pessoas com adenocarcinoma sob seus cuidados. Os inibidores de tirosina-quinase haviam deixado de fazer efeito para 15 de seus pacientes e o tumor tinha voltado a crescer. Freitas queria saber quais dessas pessoas apresentavam a mutação de resistência e

Exossomos DNA tumoral

São vesículas secretadas pelas células do câncer. Repletas de material genético e proteínas, migram até o interior dos ossos e reprogramam células-tronco que se deslocam para outros tecidos e preparam os novos focos da doença

Técnica permite detectar mutações de sensibilidade ou resistência a medicamentos e orientar o tratamento poderiam se beneficiar do uso de um inibidor de terceira geração. Na época ele participava de um estudo internacional para avaliar a segurança e a eficácia dessa nova geração do medicamento, já comercializada nos Estados Unidos, e podia incluir novos participantes. Das 15 pessoas, sete tinham a mutação e começaram a receber a terceira geração do inibidor de tirosina-quinase.

Em dezembro passado, com o fim da possibilidade de incluir novos participantes no estudo, Freitas parou, por ora, de pedir a biópsia líquida para esses casos. É que a indicação de uso do medicamento de terceira geração foi aprovada no Brasil em janeiro deste ano, mas ele ainda não pode ser comercializado no país porque não está definido o seu preço, que deve ser mais elevado do que o dos inibidores de primeira e segunda gerações, que custam entre R$ 5 mil e R$ 8 mil por mês. “De que adiantaria para a pessoa fazer o teste e saber que pode se beneficiar do medicamento se não pode ter acesso a ele?”, questiona o médico. Além de alterações no gene EGFR, a biópsia líquida que o grupo de Dirce Carraro tornou disponível no A.C.Camargo avalia mutações em outros 13 genes. Alguns estão frequentemente alterados no câncer de pulmão, outros nos tumores de intestino (cólon e reto) e outros ainda no melanoma, a forma mais agressiva de câncer de pele. Assim como no adenocarcinoma pulmonar, nesses casos a biópsia líquida ajuda a orientar o tratamento ao permitir detectar mutações de sensibilidade ou resistência aos medicamentos. “Os médicos que se interessarem também podem solicitar esse teste para outros tumores que tenham algum desses pESQUISA FAPESP 253  z  53


genes alterados”, sugere Dirce, coordenadora do Laboratório de Genômica e Biologia Molecular do A.C.Camargo. Há três anos ela trabalha para desenvolver uma biópsia líquida que auxilie no monitoramento de resposta à quimioterapia para pessoas com tumor de Wilms, um câncer raro nos rins, que costuma ser detectado entre os 2 e os 5 anos de idade e afeta uma em cada 10 mil crianças. O objetivo é que, no longo prazo, também se possa usar o teste para realizar o diagnóstico do problema. “Se um dia conseguirmos fazer o diagnóstico precoce por meio do DNA tumoral na urina, pode se tornar viável iniciar o tratamento antes de surgirem os sintomas”, propõe Dirce.

N

o Hospital Sírio-Libanês (HSL), biópsias líquidas são usadas experimentalmente pelo grupo da pesquisadora Anamaria Camargo para monitorar a sensibilidade de três tipos de tumor (pulmão, mama e cólon e reto) a medicamentos e detectar de forma precoce o desenvolvimento de resistência ao tratamento. Atualmente, os pesquisadores monitoram 30 pessoas de cada um desses grupos por meio de exames de sangue realizados mensalmente. “Estamos quantificando moléculas de DNA que carregam mutações associadas à resistência ao tratamento em cada um desses tipos de câncer e verificando se existe uma associação entre a quantidade de DNA com alterações, a resposta ao tratamento e a progressão clínica da doença”, conta Anamaria, coordenadora do Centro de Oncologia Molecular do HSL. Ela começou a trabalhar com biópsias líquidas há quase 10 anos quando, em parceria com o grupo de cirurgiões do aparelho digestivo Angelita Habr-Gama e Rodrigo Oliva Perez, do Instituto Angelita e Joaquim Gama, iniciou o desenvolvimento de um teste personalizado para verificar se o tratamento neoadjuvante com rádio e quimioterapia em tumores de reto estava surtindo o efeito esperado e detectar o reaparecimento da doença. O teste se mostrou viável, mas, em um experimento-piloto, notou-se que precisa de ajustes: ele foi capaz de detectar com 18 meses de antecedência o ressurgimento do tumor, mas nem sempre permitiu definir se a doença foi totalmente eliminada com o tratamento (ver Pesquisa FAPESP nº 237).

54  z  março DE 2017

Vesículas liberadas por células tumorais ajudam a preparar novos focos de câncer

No sangue de uma pessoa com câncer há mais do que DNA do tumor. Em certas situações, ele pode conter células que se desprenderam do câncer original, além de pequenas bolsas (vesículas) que recebem o nome de exossomos e estão repletas de conteúdo das células tumorais. A bioquímica Ludmilla Chinen, pesquisadora do A.C.Camargo, constatou que elas também revelam muito sobre a

enfermidade. Ela e seus colaboradores já acompanharam 280 pessoas com diferentes tipos de câncer e notaram que a concentração de células tumorais no sangue pode servir como indicador dinâmico da resposta aos medicamentos. “Podemos dizer se o tratamento está tendo sucesso em dois meses, quase metade do tempo que levaria para se verificar por um exame de imagem”, conta Ludmilla. Nos últimos anos, ela e seus colaboradores constataram também que moléculas expressas pelas células tumorais circulantes podem indicar tolerância a determinados medicamentos usados contra o câncer de cólon e reto. Os pesquisadores suspeitam ainda que a análise dessas células permita predizer o surgimento de metástase. Eles acompanharam pessoas com câncer de cabeça e pescoço de grau avançado e sem metástase e viram que, quando as células tumorais migram em pequenos grupos, os microêmbolos, há uma probabilidade maior de surgirem novos focos da doença. Por volta de 2008, o grupo do médico David Lyden, da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, começou a observar


vesículas antes que células comecem a se desprender dele para migrar”, explica Vilma, superintendente de pesquisa do A.C.Camargo. “Isso torna os exossomos um potencial alvo de terapias que tentem bloquear a formação de metástase”, diz a bioquímica. Alguns especialistas estimam que de 20% a 25% dos 30 mil novos casos de câncer de pulmão que surgem por ano no Brasil tenham alguma mutação no gene EGFR e possam se beneficiar das terapias alvo-dirigidas. “Do ponto de vista de saúde pública, vale a pena discutir a possibilidade de tornar a biópsia líquida e o uso desses medicamentos disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS)”, conta Helano Freitas.

A

foto ludmilla chinen / a.c.camargo cancer center

Formados por células tumorais que migram em conjunto, os microêmbolos indicam risco de metástase

que os exossomos funcionariam como mensageiros celulares, carregando para outros tecidos informações necessárias para preparar novos focos do tumor. Com a colaboração dos bioquímicos brasileiros Bruno Costa Silva e Vilma Regina Martins, a equipe de Cornell criou um modelo de metástase de melanoma em camundongos. Os pesquisadores injetavam na corrente sanguínea de roedores com câncer de pele exossomos característicos do melanoma e acompanhavam o percurso das vesículas. Em um trabalho publicado em 2012 na Nature Medicine, eles verificaram que os exossomos, encontrados em maior quantidade nas formas mais agressivas desse câncer, primeiro migravam até a medula dos ossos. Ali, as informações contidas nos exossomos reprogramavam as células-tronco formadoras de vasos sanguíneos e as orientavam a se dirigirem para os pulmões, onde, além de gerar novos vasos, despertavam uma inflamação. Essa inflamação, por sua vez, criava um ambiente pré-metastático e atraía quimicamente as células tumorais dis persas no sangue. “O tumor libera essas

pesar desses números, ainda deve levar algum tempo para que a detecção de células tumorais circulantes e de exossomos por biópsia líquida se torne rotina em mais hospitais e centros oncológicos. Em uma fase inicial, mesmo a versão do teste mais consolidada, que identifica o DNA tumoral, deve permanecer restrita aos atendimentos privados ou pagos pelos planos de saúde. “O Brasil não se preparou para oferecer o diagnóstico molecular no sistema único de saúde”, critica o oncologista Carlos Gil Ferreira. De 2002 a 2015, ele foi diretor de pesquisa clínica do Instituto Nacional do Câncer (Inca), no Rio de Janeiro, e no final de 2016 deixou de ser sócio do laboratório Progenética. Atualmente ele coordena a pesquisa em oncologia no Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor), onde um grupo trabalha no desenvolvimento de uma forma de biópsia líquida para tumores de fígado. “Por questão de custo e de estratégia, o país não está pronto para a era da medicina de precisão.” Roger Chammas, professor de oncologia na Faculdade de Medicina na Universidade de São Paulo (FM-USP) e coordenador do Centro de Investigação Translacional em Oncologia do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp), imagina que a incorporação da biópsia líquida no SUS só deve ocorrer depois que for ampliado o acesso às terapias alvo-dirigidas, cuja aplicação pode ser orientada por esses exames. O biólogo português Rui Reis é mais otimista. Ele coordena o Centro de Pes-

quisa em Oncologia Molecular do Hospital do Câncer de Barretos, no interior de São Paulo, que atende exclusivamente pacientes do SUS, e imagina que, colocadas na ponta do lápis, as vantagens proporcionadas por esse tipo de teste podem até baratear o tratamento do câncer. “Esses testes são caros em uma fase inicial, mas o custo diminui quando começam a ser usados em larga escala”, afirma. Antes que se pense em disseminar o uso da biópsia líquida, será preciso ainda descobrir qual das técnicas funciona melhor. “Está todo mundo à procura do melhor método”, lembra Reis. n

Projetos 1. Epidemiologia e genômica de adenocarcinomas gástricos no Brasil (n. 14/26897-0); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Emmanuel Dias-Neto (A.C.Camargo Cancer Center); Investimento R$ 2.632.274,23. 2. Explorando o exoma de carcinomas mucoepidermoides salivares na busca de marcadores prognósticos mais precisos (n. 14/07249-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Luiz Paulo Kowalski (A.C.Camargo Cancer Center); Investimento R$ 256.192,74. 3. Detecção de células tumorais circulantes e sua correlação com evolução clínica em carcinoma epidermoide de cabeça e pescoço (n. 13/08125-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Ludmilla Thomé Domingos Chinen (A.C.Camargo Cancer Center); Investimento R$ 306.452,01. 4. Aspectos moleculares envolvidos no risco, desenvolvimento e progressão do carcinoma ductal de mama: Busca de novos genes de susceptibilidade e investigação da progressão do carcinoma in situ e do papel da mutação em BRCA1 no tumor triplo negativo (n. 13/23277-8); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Dirce Maria Carraro (A.C.Camargo Cancer Center); Investimento R$ 2.364.609,18.

Artigos científicos NUNES, D. N.; KOWALSKI, L. P. e SIMPSON, A. J. Circulating tumor-derived DNA may permit the early diagnosis of head and neck squamous cell carcinomas. International Journal of Cancer. 13 fev. 2001. TORREZAN, G. T. et al. Recurrent somatic mutation in DROSHA induces microRNA profile changes in Wilms tumour. Nature Communications. 9 jun. 2014. ABDALLA, E. A. et al. Thymidylate synthase expression in circulating tumor cells: A new tool to predict 5-fluorouracil resistance in metastatic colorectal cancer patients. International Journal of Cancer. v. 137 (6), p. 1397-405. 2015. ABDALLA, E. A. et al. MRP1 expression in CTCs confers resistance to irinotecan-based chemotherapy in metastatic colorectal cancer. International Journal of Cancer. v. 139 (4), p. 890-8. 2016. BUIM, M. E. et al. Detection of KRAS mutations in circulating tumor cells from patients with metastatic colorectal cancer. Cancer Biology and Therapy. v. 16 (9), p. 128995. 2015. AMORIM, M. et al. The overexpression of a single oncogene (ERBB2/HER2) alter the proteomic landscape of extracellular vesicles. Proteomics. v. 14 (12), p. 147279. 2014. PEINADO, H. et al. Melanoma exosomes educate bone marrow progenitor cells toward a pro-metastatic phenotype through MET. Nature Medicine. v. 18 (6), p. 883-91. 2012.

pESQUISA FAPESP 253  z  55


Saúde y

Zika no início da gravidez Estudos corroboram hipótese de que infecções no começo da gestação são as mais perigosas para os fetos Marcos Pivetta

56  z  março DE 2017


Ao lado, ilustração de feto durante a gestação

D

SCIENCE PHOTO LIBRARY

ois trabalhos recentes de grupos com pesquisadores brasileiros forneceram mais evidências de que haveria uma janela de tempo durante a qual a infecção pelo zika em grávidas produziria danos severos nos fetos, levando à microcefalia nos casos mais graves. Passado esse intervalo crítico, que compreenderia grosso modo o primeiro trimestre da gestação, os riscos se reduziriam consideravelmente para os filhos de mulheres contaminadas pelo vírus, embora não seja possível afirmar que as infecções mais tardias sejam inócuas. Em artigo publicado em 13 de fevereiro na revista científica PNAS, uma equipe internacional, com a participação do bioquímico brasileiro Sergio Verjovski-Almeida, do Instituto Butantan e do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP), diz que a placenta humana é mais sensível à infecção pelo vírus nos três primeiros meses de gravidez. Nessa fase, a placenta (que carrega o material genético do feto) ainda não apresenta todas a defesas imunológicas e produz proteínas que estimulam a adesão e a entrada do agente infeccioso nas células do bebê em formação. Outro estudo, coordenado pelo médico José Xavier-Neto, do Laboratório Nacional de Biologia (LNBio), de Campinas, indica que a infecção por zika só produz anormalidades graves em filhotes de camundongos quando suas mães são expostas ao patógeno entre o quinto e o 12º dia depois da fecundação. Em seres humanos, esse intervalo de tempo equivale ao período entre a segunda e a quinta semana de gestação. Nos roedores, a infecção por zika após o 12º dia do ato sexual não levou a malformações significativas nos filhotes. O trabalho ganhou as páginas eletrônicas do periódico digital Plos Neglected Tropical Diseases no dia 23 de fevereiro.

Placenta madura e resistente

O primeiro estudo buscou uma explicação para a evidência de que os fetos de mulheres infectadas pelo zika durante os três meses iniciais de gestação apre-

A placenta humana é mais sensível ao vírus durante os três primeiros meses de formação, quando ainda não apresenta todas as defesas imunológicas

sentam risco maior de nascer com problemas de saúde, como a microcefalia, do que os bebês de mães que entraram em contato com o patógeno em fases posteriores da gravidez. De acordo com o artigo na PNAS, a placenta madura, ao final da gravidez, é bem mais resistente à infecção pelo vírus do que a placenta primitiva, presente até o terceiro mês de gestação. Nessa fase inicial da gestação, o órgão de comunicação entre a mãe e o feto produz proteínas – os chamados receptores de ligação – que estimulam a adesão e a entrada do agente infeccioso nas células do bebê em formação. Tais células, afirmam os autores do trabalho, ainda não dispõem de defesas imunológicas totalmente constituídas para barrar a penetração do zika. Com o passar do tempo, a placenta mais madura cria um cenário totalmente diferente, adverso ao avanço do vírus materno rumo ao feto. “As células da placenta no final da gravidez são resistentes à infecção pelo vírus, pois não expressam os genes que codificam as proteínas

responsáveis por promover a ligação e a entrada do vírus no tecido do feto, e, ao mesmo tempo, ativam vários genes associados à defesa antiviral”, explica Verjovski-Almeida. Um então aluno de doutorado do bioquímico do IQ, o biólogo russo Dinar Yunusov, fez no ano passado as análises de expressão gênica em células de placentas maduras e em um modelo experimental, composto de células-tronco embrionárias reprogramadas, que mimetiza a placenta do primeiro trimestre da gestação. “O zika parece realmente precisar da presença desses receptores de ligação para atacar as células do feto”, comenta Yunusov, hoje fazendo estágio de pós-doutorado nos Estados Unidos. Diante desse indício de que a placenta seria mais vulnerável ao zika no primeiro trimestre da gravidez, Verjovski-Almeida diz que poderia ser útil desenvolver alguma forma de reforçar as defesas biológicas desse órgão, como a criação de um soro para ser administrado em mulheres infectadas pelo vírus no início da gestação. “Mas precisamos pesquisar isso com cautela porque é muito delicado prescrever algo para as mulheres nos primeiros meses de gestação”, pondera o bioquímico. Em paralelo a essa linha de estudo, Verjovski-Almeida pretende averiguar se o padrão de ativação dos genes que controlam a produção de receptores virais na placenta imatura pode variar entre os indivíduos de uma população e ser utilizado como um teste sinalizador de maior ou menor vulnerabilidade do órgão ao ataque do zika. Estudo publicado no final do ano passado no Journal of the American Medical Association indicou que a ocorrência de microcefalia e outras anormalidades cerebrais em bebês nascidos de 442 mulheres norte-americanas infectadas pelo zika foi de 5,9%, mas nenhuma anomalia se manifestou entre os filhos de gestantes que tiveram contato com o vírus a partir do segundo trimestre de gestação. “Há evidências científicas mostrando que a placenta imatura é mais permissível a outros vírus, como o da rubéola”, comenpESQUISA FAPESP 253  z  57


ta o pesquisador R. Michael Roberts, da Universidade de Missouri, coordenador da equipe que fez os experimentos com placentas maduras e imaturas e o zika, publicado na PNAS. Um dado interessante que também aparece nesse artigo diz respeito a uma questão evolutiva do patógeno. Em experimentos feitos em laboratório, a cepa original do zika, oriunda de Uganda, na África, infectou mais rapidamente e de forma mais danosa o modelo de placenta imatura do que a variedade da Ásia, que chegou às Américas e é semelhante à que circula no Brasil e causa microcefalia. Os pesquisadores concluíram que a variedade africana é tão agressiva que pode destruir a placenta durante o primeiro semestre da gestação. Nesse caso, uma infecção pelo zika africano no início da gravidez poderia levar à não implantação do feto no útero. Em outras palavras, ao aborto. “Essa agressividade do zika africano poderia ser a explicação para não existir o registro de casos de microcefalia na África”, conjectura Verjovski-Almeida. “Os fetos infectados nem chegariam a nascer. Seriam abortados antes.”

gens selvagens de camundongos, com um sistema imunológico apto a combater infecções, os pesquisadores injetaram o vírus na veia jugular de fêmeas grávidas em diferentes momentos da gestação, entre 5,5 e 19,5 dias após a fecundação. Dessa forma, puderam ver a sequência de problemas que o vírus causa nos filhotes de roedores em função do estágio da gravidez em que houve o contato com o zika. “Queríamos mapear a janela crítica em que a infecção na gravidez produz malformações congênitas”, explica José Xavier-Neto. Filhotes de fêmeas que foram contaminados cinco dias após a fecundação apresentaram uma série de problemas de desenvolvimento: fechamento incompleto do tubo neural (disrafia), hidrocefalia (acumulação de líquido cefalorraquidiano no cérebro, levando ao aumento de tamanho e inchaço do crânio), atraso no crescimento do embrião, além de outras severas malformações. “Em humanos, a hidrocefalia é um prenúncio de que vai haver microcefalia”, comenta Xavier-Neto. Quando a infecção ocorria entre 7,5 e 9,5 dias depois da fecundação, os filhotes exibiam um quadro clínico que não se limitava à microcefalia. Eles também tinham hemorragia no interior da bolsa amniótica, edema generalizado e pouca vascularização, sobretudo na região cerebral. Alguns embriões chegaram

Modelo em camundongos mostra fechamento incompleto do tubo neural e hidrocefalia em filhotes de fêmeas infectadas no início da gestação

Hidrocefalia e microcefalia

O trabalho da equipe do LNBio envolveu a criação de um modelo animal da infecção por zika que fosse similar ao que ocorre em humanos. Em duas linha-

Surto multiplica trabalhos científicos Em dois anos, número de artigos sobre o vírus aumenta 20 vezes; Brasil é o segundo maior produtor de trabalhos sobre a doença

Cruz (Fiocruz) e da Universidade

científica PLOS Neglected Tropical

Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Diseases em 19 de janeiro.

indica que houve um aumento de

Evolução dos Estudos sobre zika 800 600

De 1952, quando o vírus foi isolado pela primeira vez em Uganda,

400

de artigos científicos sobre o vírus

a 2013, ano em que houve um surto

200

zika após a associação do patógeno

de zika na Polinésia Francesa,

a casos de microcefalia no Brasil

os pesquisadores contabilizaram

ter sido confirmada e a doença

44 trabalhos na base de dados

se tornado uma preocupação de

Scopus e 28 na Web of Science cujo

saúde internacional. Depois dos

título continha as palavras “zika virus”

20

norte-americanos, os autores com

em inglês. De janeiro de 2014 a

10

endereço de trabalho localizado no

agosto de 2016, a quantidade de

Brasil foram os que mais produziram

artigos nas duas bases com esses dois

papers sobre o vírus, ficando à frente

termos ficou na casa dos 1.300 papers

n Scopus n Web of Science

40 30

0

20 00

Artigos

cerca de 20 vezes na produção

20 15

O trabalho foi publicado na revista

20 10

dos pesquisadores britânicos.

uma equipe da Fundação Oswaldo

20 05

Levantamento bibliométrico feito por

fonte Albuquerque et al

58  z  março DE 2017


Manuel Almagro Rivas / wikimedia commons

Representação tridimensional do vírus zika, que atravessa a placenta e danifica tecidos cerebrais

mesmo a morrer no útero depois da infecção. Segundo o pesquisador, o modelo animal de zika desenvolvido no LNBio é o único a mostrar disrafia, hidrocefalia e artrogripose (contração congênita das articulações, que leva à formação de mãos e pés tortos ou curvados). Infecções induzidas após o 12º dia de fecundação não provocaram danos maiores nos fetos de roedores. Embora ausente dos tecidos cerebrais dos embriões que se encontravam nessa fase da gestação, o genoma do zika foi detectado em células do baço, do fígado e dos rins dos camundongos em formação. “Não podemos dizer que há um período seguro da gravidez para a ocorrência de uma infecção por zika”, explica o cardiologista Kleber Franchini, do LNBio, outro autor do estudo.

Há uma quantidade razoável de pesquisas indicando que o aparecimento das anomalias congênitas associadas ao zika depende do momento da gravidez em que houve a infecção. Alguns trabalhos também sugerem que outros fatores, como a virulência da cepa do vírus e particularidades genéticas de uma população, também são relevantes para favorecer desfechos mais ou menos graves da infecção por zika. Em artigo publicado em 11 de maio do ano passado na revista Nature, pesquisadores da Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD) e da USP relataram um experimento que ilustra essa situação. Eles injetaram o zika na cauda de duas linhagens de camundongos – uma delas distinta das variedades de roedores selvagens usadas no experimento do LN-

Bio – entre o 10º e o 12º dia de gestação. Uma delas apresentou uma série de malformações, inclusive microcefalia, associadas à infecção pelo vírus. A outra gerou filhotes resistentes à infecção. “O momento em que ocorre a infecção por zika é, sem dúvida, importante para determinar a gravidade das lesões, mas a resposta imunológica de cada indivíduo também parece ser crucial ”, comenta o neuroimunologista Jean Pierre Peron, do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, um dos autores do estudo publicado em 2016. “A parte mais interessante do trabalho da equipe do LNBio é mostrar a ocorrência da artrogripose em um modelo animal, algo que ainda não tinha sido constatado.” n

Projetos

(ver gráfico). No Google Academics,

eficiência dos cientistas brasileiros

a comparação da produção científica

foi realmente louvável, apesar das

indexada pelo mecanismo de

inúmeras dificuldades logísticas

busca com os termos “zika virus”

e de financiamento”, comenta o

apontou números semelhantes:

farmacêutico Marcio L. Rodrigues,

foram 47 papers entre 1952 e 2013

vice-coordenador-geral do Centro de

e cerca de 1.600 entre 2014 e 2016.

Desenvolvimento Tecnológico da Fiocruz

Tanto na Scopus como na Web of

e professor associado do Instituto de

1. Caracterização dos mecanismos de ação de RNAs longos não codificadores envolvidos nos programas de ativação gênica em células humanas (nº 14/03620-2); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Sergio Verjovski-Almeida (USP); Investimento R$ 2.149.830,50. 2. Functional characterization of long non-coding RNA transcribed from the antisense strand in the VEGFA gene locus (nº 10/51152-7); Modalidade Bolsa de Doutorado direto; Pesquisador responsável Sergio Verjovski-Almeida (USP); Bolsista Dinar Iunusov; Investimento R$ 212.228,31. 3. Origem evolutiva das redes regulatórias da segmentação cardíaca em câmaras de influxo e efluxo (nº 13/22695-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável José Xavier-Neto (LNBio); Investimento R$ 690.098,30.

Science, a maior parte da produção

Microbiologia da UFRJ, autor do trabalho

de artigos científicos sobre o zika foi

ao lado de Priscila Albuquerque.

feita por cientistas de 18 países. Os

O esforço científico em torno do

americanos responderam por cerca de

tema zika ainda está concentrado na

Artigos científicos

31% dos trabalhos e os brasileiros, por

pesquisa básica. O levantamento

12%. Os britânicos, terceiros no ranking

não encontrou alteração significativa

SHERIDAN, M. A. et al. Vulnerability of primitive human placental trophoblast to Zika vírus. PNAS. 13 fev. 2016. XAVIER-NETO, J. et al. Hydrocephalus and arthrogryposis in an immunocompetent mouse model of ZIKA teratoge­ ny: A developmental study. Plos Neglected Tropical Diseases. 23 fev. 2017.

de papers, foram autores de 9% dos

no número de patentes relacionadas

estudos. “Precisamos reconhecer que a

à doença no mundo.

pESQUISA FAPESP 253  z  59


2

Mosquitos dos gêneros Haemagogus e Sabethes (foto), que se reproduzem em buracos de árvores, transmitem a doença em áreas silvestres do Brasil

1

Número elevado de casos e mortes da doença neste verão traz de volta o temor de uma epidemia urbana no Brasil

60  z  março DE 2017

N

fotos 1 James Gathany / cdc 2 léo ramos chaves

A ameaça da febre amarela

o século XXI, o avanço da globalização de pessoas e de mercadorias, o desmatamento e a erosão das fronteiras entre a zona rural e a urbana e a presença de grandes contingentes populacionais não imunizados parecem ter criado um ambiente favorável para o recrudescimento de epidemias de febre amarela. Até recentemente, a doença, que tem uma vacina eficiente desde os anos 1930, era vista como sob controle ou restrita a regiões endêmicas dos dois continentes em que ocorre, a porção subsaariana da África, uma das áreas mais pobres do mundo, e rincões da América do Sul, geralmente as calhas dos rios Amazonas e Orinoco, ou o Centro-Oeste do Brasil. A eclosão de epidemias recentes dos dois lados do Atlântico trouxe de volta a febre amarela ao debate internacional sobre saúde pública. Na África, que concentra 90% das estimadas 200 mil ocorrências anuais da doença no mundo, a última epidemia se deu no ano passado em Angola, na República Democrática do Congo (antigo Zaire) e, em menor escala, em Uganda. Houve mais de 7.300 casos, suspeitos ou confirmados, e cerca de 400 mortes nos três países. Mais de uma dezena de imigrantes chineses que trabalhavam na África foi exposta ao vírus e apresentou sintomas de febre amarela ao retornar para a Ásia, continente sem histórico da doença e com bilhões de pessoas nunca imunizadas. Agora o foco de preocupação é o Brasil, o maior produtor da vacina. Entre dezembro de 2016 e fevereiro deste ano, foram confirmados 326 casos e 109


Números da infecção Houve surtos menores da enfermidade nas últimas décadas, mas nenhum se compara à epidemia deste ano

300

326

: Cerca de 80%

250

Casos

das ocorrências e mortes confirmadas se concentram em Minas Gerais

Óbitos

200

150

109

100

85

83 76

65 45

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25 22 24 22

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7

9

6

6

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9 3

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15 12 8

8

19 20

15 4

6

2

13

40 29

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15

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14 6

5 3

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13 10

27 17

2 2

2 1

0 0

3 0

1

0

9

7

5

5

19 80 19 81 19 82 19 83 19 84 19 85 19 86 19 87 19 88 19 89 19 90 19 91 19 92 19 93 19 94 19 95 19 96 19 97 19 98 19 99 20 00 20 01 20 02 20 03 20 04 20 05 20 06 20 07 20 08 20 09 20 10 20 11 20 12 20 13 20 14 20 15 20 16 20 17

0

21

28

46 47

41

34

óbitos causados pela febre amarela (92 em Minas Gerais, 14 no Espírito Santo e três em São Paulo). Outros 916 casos e 105 mortes estão sendo investigados se também foram provocados pela doença. Minas Gerais, onde a vacinação contra a enfermidade é recomendada há mais de uma década, concentra mais de 80% dos casos e das mortes. “O surto atual apresenta características semelhantes aos anteriores, com exceção do grande número de casos”, comenta o vice-diretor de pesquisas do Centro de Pesquisas René Rachou (Fiocruz Minas), Carlos Eduardo Calzavara. Em 2003, houve 58 casos e 21 mortes no estado e, em 2001, 32 ocorrências confirmadas e 16 óbitos. “É possível que a baixa cobertura vacinal em determinadas regiões do estado tenha tido grande influência em sua ocorrência, mas isso requer confirmação experimental.” Dados da Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais indicam que, em média, apenas um de cada dois habitantes do estado tinha sido vacinado antes da eclosão da atual epidemia. A dificuldade de acesso

a áreas rurais e a falta de interesse da população em receber o imunizante seriam as causas principais da baixa cobertura. Para evitar epidemias, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que pelo menos 90% da população em áreas de risco seja vacinada. A chegada do vírus da febre amarela em áreas do Espírito Santo, onde provocou mortes em seres humanos e em macacos da Mata Atlântica, chamou a atenção. Até a epidemia atual, o estado não era considerado região de risco. Estava fora da área de recomendação vacinal e tinha uma grande parcela da população sem defesa imunológica contra a doença. Diante do surgimento dos casos inesperados em seu território, quase todo o Espírito Santo foi incluído temporariamente como zona de recomendação da vacina. O mesmo ocorreu no sul da Bahia e no norte do Rio de Janeiro, embora nesses dois estados não haja registros de casos autóctones (ver mapa na página 62). Os especialistas dizem que a epidemia atual é a maior da doença no país dos últimos 70 anos, embora os registros

oficiais do Ministério da Saúde tenham se iniciado apenas em 1980 (ver gráfico acima). “A febre amarela foi esquecida. Como a vacina é muito boa, quase não há pesquisa sobre a doença”, comenta o infectologista Benedito Antonio Lopes da Fonseca, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP- USP). “Não podemos brincar. A febre amarela pode matar até metade dos pacientes com sintomas graves.” A maioria das pessoas não imunizadas que entram em contato com o vírus pode ser assintomática ou apresentar durante três dias um quadro caracterizado por dor de cabeça, febre, dor muscular, náuseas, vômito e fadiga. Se não é fatal, a doença acaba imunizando o paciente e o protege de futuras reinfecções. Por motivos ainda desconhecidos, cerca de 15% desenvolvem a forma severa da febre amarela, que, após uma semana, pode causar hemorragias graves e levar a óbito. A circulação do vírus da febre amarela que causou as epidemias no Brasil e nos países africanos apresenta dinâmicas distintas. Aqui a doença ocorre apenas pESQUISA FAPESP 253  z  61


Cerca de 15% das pessoas infectadas pelo vírus da febre amarela desenvolvem a forma grave da doença

doença, surtos causados pela transmissão da febre amarela pelo Aedes aegypti ocorrem quando mais de 30% das habitações de uma região estão infestadas pelo mosquito”, explica o virologista Pedro Vasconcelos, diretor do Instituto Evandro Chagas (IEC), no Pará, uma das autoridades na doença. “Não imagino que índices tão elevados existam

Expansão da zona de risco A vacinação contra a febre amarela hoje não é recomendada apenas em parte do Nordeste e regiões perto do litoral

n Área com recomendação

temporária de vacinação (95 municípios) n Zona com indicação

permanente de vacinação (3.529 municípios) n Área sem recomendação

de vacinação (1.946 municípios)  fonte  ministério da saúde

62  z  março DE 2017

no Brasil. Na epidemia de Angola, os índices de infestação médios estavam acima de 50%.” É verdade que parques e áreas silvestres nos arredores das cidades ou encravados nos centros urbanos podem ter populações de mosquitos selvagens capazes de transmitir a febre amarela em humanos se estiverem infectadas. Levantamento recente feito pelo entomologista Mauro Marrelli, da Faculdade de Saúde Pública da USP, encontrou mais de 90 espécies de mosquitos no Parque Estadual da Cantareira, zona norte da cidade de São Paulo, entre os quais exemplares dos gêneros Haemagogus e Sabethes. Nessa grande área verde, há também macacos, como o bugio, que, em tese, podem ser reservatórios do vírus da doença. “Ainda precisamos realizar novos estudos para ver se os mosquitos carregam ou não o vírus da febre amarela”, conta Marrelli. A Cantareira também é palco de outro estudo, iniciado em outubro do ano passado pela entomologista Rosa Maria Tubaki, da Superintendência de Controle de Endemias (Sucen), da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Ela averigua se os mosquitos silvestres da febre amarela apresentam preferência por se reproduzir em buracos de determinadas árvores e quais são as espécies arbóreas preferidas para abrigo dos bugios. “Esperamos fornecer dados que permitam identificar se a região metropolitana pode ser uma área de risco para a ocorrência de surtos de febre amarela em seres humanos e em macacos”, detalha Rosa Maria. Um dos debates entre virologistas e epidemiologistas é se a febre amarela pode se tornar novamente uma doença urbana no Brasil. Para isso ocorrer, ela teria de voltar a ser transmitida pelo Aedes aegypti, que está adaptado às cidades do país. “Se nosso mosquito for tão eficiente quanto o Aedes aegypti africano em transmitir febre amarela, estamos sentados sobre uma bomba-relógio”, comenta o epidemiologista Eduardo Massad, da Faculdade de Medicina da USP. O infectologista Benedito Antonio Lopes da Fonseca, da FMRP-USP, considera provável a ocorrência de um ou 1

fotos 1 CDC / Erskine Palmer 2 e 3 OMS/E. Soteras Jalil

no ambiente silvestre, onde o vírus se perpetua em macacos, seu reservatório natural, que são picados por mosquitos dos gêneros Haemagogus e Sabethes. Os insetos, por sua vez, repassam o vírus para novos macacos, mantendo um ciclo de transmissão. Eles picam, eventualmente, seres humanos que se aventuram na floresta. Esses mosquitos não vivem nas áreas urbanas. Eles se reproduzem apenas em buracos de árvore, onde depositam seus ovos, que eclodem quando banhados por água da chuva. Na África, além da circulação do vírus em meio às florestas, a disseminação da febre amarela ocorre em áreas urbanas e em regiões limítrofes entre as cidades e o campo por meio de uma terceira forma de transmissão específica do continente, denominada rural ou intermediária. Nas cidades, somente o mosquito Aedes aegypti, o mesmo que transmite a dengue, o zika e a chikungunya, causa a doença se estiver com o vírus e picar seres humanos. No ambiente rural, mosquitos da espécie Aedes simpsoni, que vivem tanto nos arredores das habitações como nas bordas das matas, disseminam a febre amarela. No Brasil, não há casos de febre amarela urbana desde 1942. “Com base no que verificamos em outras epidemias da


3

Epidemia de 2016 em Angola e no Congo foi controlada com o emprego de doses que tinham 20% do conteúdo usual da vacina

2

outro caso esporádico de febre amarela urbana no Brasil, mas não vê condições objetivas para a eclosão de uma epidemia da doença nas grandes cidades. “Se a situação ficar muito crítica, todo país pode se tornar área de vacinação recomendável”, opina Fonseca. Nas últimas décadas, a parte do território nacional em que a imunização é prescrita só aumentou. Quase todo o Rio Grande do Sul é atualmente área em que a vacina é permanentemente recomendada. Restrições da vacina

Fonseca também tem dúvidas se os mosquitos do gênero Aedes no Brasil são bons transmissores da febre amarela. Segundo estudo publicado em janeiro de 2016 na revista Vector-Borne and Zoonotic Diseases, do qual o infectologista é coautor, a infecção por dengue tende a predominar sobre a de febre amarela em células do Aedes albopictus, um “primo” do A. aegypti, cultivadas in vitro. Se essa hipótese for verdadeira, mosquitos do gênero Aedes com o vírus da dengue teriam dificuldade em ser infectados pela febre amarela. A vacina é um grande diferencial no controle da febre amarela em relação ao combate de outras moléstias tropicais, antigas ou novas, como a dengue, a malária, a febre zika e a chikungunya, que não contam com um imunizante para combatê-las. Em tese, seria fácil conter epidemias de febre amarela se a vacina, que é feita com uma forma do vírus vivo atenuado, pudesse ser aplicada em 100% da população de uma região ou

país. Duas questões impedem que isso seja factível. A primeira é de ordem médica. A vacina não é recomendada para todas as pessoas devido às reações que pode causar em grupos específicos, como gestantes e lactantes, pacientes imunodeprimidos, pessoas com mais de 60 anos, bebês com menos de 6 meses e alérgicos a ovos e a gelatina. “É preciso fazer um cálculo para saber qual a porcentagem ideal de uma população que deve ser imunizada”, explica Massad. Estima-se que, a cada milhão de indivíduos vacinados, um pode ter reações adversas graves e morrer. O segundo ponto que impede a adoção generalizada da vacina é que se trata de um produto escasso no mundo. Apenas seis fabricantes a produzem e quatro são certificados pela OMS, que mantém um estoque de emergência com 6 milhões de doses do imunizante. A eclosão da epidemia em Angola e no Congo provocou um movimento internacional que levou à vacinação às pressas no ano passado de 30 milhões de pessoas. A falta do imunizante obrigou o emprego de doses fracionadas, com apenas 0,1 mililitro, um quinto do normal. Não se sabe por quanto tempo uma dose tão baixa confere imunidade à doença, mas o esquema deu um fim na epidemia africana. O Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos), da Fiocruz, no Rio Janeiro, é o principal produtor mundial da vacina de febre amarela. A epidemia da doença no Brasil fez o instituto triplicar sua produção do imunizante

nos dois primeiros meses de 2017. “Antes fabricávamos de 2 a 3 milhões de doses da vacina por mês”, diz o engenheiro químico Antônio de Padua Risolia Barbosa, vice-diretor de produção de Bio-Manguinhos. “Agora estamos produzindo entre 7 e 9 milhões de doses.” Há outras frentes de pesquisa nas unidades da Fiocruz, como desenvolver uma nova vacina que possa ser aplicada em todas as pessoas, sem restrições. “Testamos uma vacina de DNA em camundongos há dois anos que obteve 100% de sucesso em conferir imunidade”, comenta o biólogo molecular Rafael Dhalia, da Fiocruz de Pernambuco, um dos inventores do imunizante. “Estamos procurando parceiros dispostos a bancar os testes clínicos em humanos, que custam caro e demoram anos”, informa o pesquisador. n Marcos Pivetta

Projetos 1. Distribuição de criadouros ocos-de-árvores de mosquitos vetores de febre amarela (Diptera: Culicidae) em área territorial de bugios (Alouatta clamitans) no Parque Estadual da Cantareira, São Paulo (nº 15/13924-1); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Rosa Maria Tubaki (Sucen); Investimento R$ 62.009,70. 2. Biodiversidade de mosquitos (Diptera: Culicidae) no Parque Estadual da Cantareira e na área de proteção ambiental Capivari - Monos, estado de São Paulo (nº14/50444-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Programa Biota; Pesquisador responsável Mauro Marrelli (USP); Investimento R$ 280.635,45.

Artigo científico MUCCI, L. F et al. Haemagogus leucocelaenus and other mosquitoes potentially associated with sylvatic yellow fever in Cantareira State Park In the São Paulo metropolitan area, Brazil. Journal of the American Mosquito Control Association. v. 32, n. 4. dez 2016.

pESQUISA FAPESP 253  z  63


1

zoologia y

Epidemiologia retroativa

Estudo de girinos preservados em museus responsabiliza fungo por mortalidade registrada há quase quatro décadas

64  z  março DE 2017


2

Extinto em Boraceia, Cycloramphus boraceiensis resiste em Ilhabela; à esquerda, espécimes na coleção da Unicamp

fotos 1 guilherme becker / unesp 2 luís felipe toledo / unicamp

U

ma ampla mortandade de sapos marcou algumas regiões brasileiras nos anos 1980, sem que ninguém descobrisse o motivo. Espécies se tornaram raras, outras desapareceram de uma localidade ou sumiram de vez. “Estimamos que ao menos 65 espécies foram afetadas, levando a 49 extinções locais e ao desaparecimento de 15 espécies”, calcula o biólogo Luís Felipe Toledo, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O cenário desse desastre anfíbio foi principalmente o trecho da Mata Atlântica entre o Paraná e o Espírito Santo, e incluiu áreas onde a floresta está intacta – como a Estação Biológica de Boraceia e o Parque Nacional do Itatiaia, à primeira vista excluindo o vilão habitual (o desmatamento) do rol de suspeitos. Quase 40 anos depois, um trio de biólogos que inclui Toledo indica o fungo Batrachochytrium dendrobatidis, ou quitrídio, como assassino, em artigo publicado em fevereiro na revista Proceedings of the Royal Society B. A conclusão exigiu paciência e persistência da bióloga Tamilie Carvalho durante o mestrado orientado por Toledo. Ao longo de meio ano ela percorreu 10 museus de zoologia em seis estados brasileiros, nos quais não teve tempo para turismo. “Eu praticamente dormia no museu, respirando formol”, brinca. Não é para menos: nesse período ela exa-

minou, à lupa, a boca de 33 mil girinos armazenados em frascos de formol. Ela foi aprendendo truques para agilizar o trabalho e respirar menos os gases que causam náusea: passar o girino por água e depositar sobre um papel absorvente debaixo da lupa, depois pressionar levemente a boca do animal com uma pinça de maneira a observar as estruturas ricas em queratina, a proteína que o fungo ataca. Com a prática adquirida, chegou a conseguir examinar um girino por minuto, mais ou menos. Aparentemente é essa a maneira mais rápida e barata de diagnosticar a infecção pelo quitrídio, que branqueia os dentículos normalmente pretos. “Analisei girinos de 13 famílias diferentes; então sempre precisava estudar a morfologia saudável para saber se as manchas podiam ser normais”, conta Tamilie. Nunca eram. Concentrar os diagnósticos em girinos armazenados em museus, e não em sapos adultos, foi um dos diferenciais do estudo e permitiu chegar ao que Tamilie considera um resultado magnífico: entender o que aconteceu com os declínios enigmáticos dos anos 1980. Os adultos, nos quais estudos anteriores tinham se concentrado, morrem rapidamente quando infectados e chegam mais raramente aos museus. Isso porque os danos à queratina causam neles anomalias no balanço hídrico que levam a dificulda-

des respiratórias e cardíacas. Os girinos resistem mais, mas acabam comendo menos e passando pela metamorfose com um tamanho menor. O importante, para os propósitos do estudo, é que os girinos infectados foram capturados antes que o fungo os levasse à morte. E por isso estão presentes nas coleções, permitindo avaliar a taxa de infecção praticamente no país inteiro, em áreas representativas de todos os biomas (ver mapa na página 62). O estudo analisou animais coletados entre 1930 e 2015, e nesse período detectou o fungo principalmente na Mata Atlântica: por volta de 17% dos girinos analisados nesse bioma estavam infectados, mas os casos se concentraram nas regiões Sudeste e Sul. Uma análise estatística que abarca tempo e espaço permitiu detectar a coincidência entre a presença do quitrídio e a maior parte dos eventos registrados de extinções ou declínios populacionais, em uma área de Mata Atlântica que vai do Rio de Janeiro ao Paraná e inclui Itatiaia, no Rio de Janeiro, e Boraceia, em São Paulo. Para o biólogo Guilherme Becker, pesquisador em estágio de pós-doutorado no campus de Rio Claro da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e o autor mais envolvido na parte estatística do estudo, essa correlação forte parece indicar que o fungo pode realmente ter causado a mortandade. pESQUISA FAPESP 253  z  65


Infecção no tempo e no espaço Coincidência entre declínios populacionais e fungo, detectado em girinos coletados entre 1930 e 2015, sugere que o quitrídio foi responsável por extinções históricas

Amazônia Caatinga Cerrado

Pantanal

Mata Atlântica Girinos sadios Girinos com quitrídio Declínios populacionais

Fonte carvalho et al.

Área de maior concentração do fungo coincide com extinções dos anos 1980 Pampa

A realidade aparente nos resultados põe em dúvida um estudo anterior de Becker, que em experimentos de laboratório encontrou indícios de que a alta biodiversidade combateria a transmissão da doença (ver Pesquisa FAPESP nº 226). “Enquanto os experimentos indicam um efeito protetor da biodiversidade, estudos de campo apontam para um maior risco de doenças em áreas com vegetação natural e alta diversidade de anfíbios”, explica, ressaltando que são considerações ainda especulativas. Quanto maior a biodiversidade, mais intrincada a rede de relações ecológicas e maior a probabilidade de anfíbios que nunca chegam perto da água terem contato com espécies aquáticas, que transmitem a doença. É nos cursos d’água que mora o quitrídio. Companheiro letal

O resultado também surpreendeu porque o fungo está presente nessa área há mais de um século, a ponto de ser considerado parte do ecossistema por alguns especialistas, como o zoólogo Cé66  z  março DE 2017

lio Haddad, professor da Unesp em Rio Claro (ver Pesquisa FAPESP nº 220). A percepção, a partir de estudos anteriores, era de que os anfíbios brasileiros conseguiam sobreviver à doença, ao contrário do extermínio flagrado em outros países, como a Costa Rica. Mas o que destaca o Brasil não é apenas a suposta resistência dos anfíbios. A linhagem nacional do quitrídio, aparentemente exclusiva daqui, pode ser menos letal. Uma hipótese é que a responsável pelas extinções seja uma linhagem especialmente virulenta do quitrídio global que desembarcou no Brasil no final dos anos 1970, talvez de carona com rãs-touro importadas para criação em cativeiro. Mais do que isso, a cepa forasteira se misturou à local. “O quitrídio é assexuado no mundo todo”, conta Toledo. “Mas aqui ele aparentemente consegue passar para a reprodução sexual e formar híbridos, que podem ser mais agressivos.” Em experimentos preliminares, Becker já indicou que essa mistura exclusiva do Brasil é mais eficaz em matar sapos.

Resta investigar se fatores como poluição ou desmatamento aumentam a vulnerabilidade dos anfíbios e, portanto, a mortalidade


Epudand aeceat alitaturiae doluptas inverrum erferit atest, quia parchil lestrum quias aliqui occullabo poratur si

foto  guilherme becker / unesp  mapa  ana paula campos

Holoaden bradei, eliminado pelo quitrídio nos anos 1980, vivia apenas em Itatiaia

“Eles não têm resposta imunológica a essa variante”, explica ele. Uma limitação até agora, para diagnosticar os espécimes dos museus, é que os híbridos só foram descobertos recentemente e ainda não foi possível fazer a caracterização genética da epidemia dos anos 1980. Segundo Haddad, que em 1979 começou a graduação e no ano seguinte a carreira com sapos, só alguns anos depois o sumiço de algumas espécies em Itatiaia virou assunto. “Quando fui lá, já não conseguia encontrá-los”, lembra. Especulações sobre as causas giravam em torno da atividade humana, como uma estrada ou poluição ligada ao Proálcool. Mas salta aos olhos a possibilidade de um efeito mais global, já que nos anos 1980 declínios populacionais também foram observados na América Central, do Norte e na Austrália. Mudanças climáticas podem estar envolvidas nessa equação, potencializando a presença do

fungo. “O gráfico da temperatura média mundial veio numa crescente lenta até 1979, quando deu um salto grande”, observa Becker. Sua hipótese é de que sapos habitantes de zonas elevadas, os mais afetados pelo quitrídio, têm uma capacidade de adaptação pequena a mudanças de temperatura. “Esses anfíbios são adaptados a climas constantemente mais frios.” Ele agora começou experimentos com animais oriundos de diferentes altitudes para ver como respondem à infecção em diferentes temperaturas. O estudo indica que o crucial, no Brasil, não é a presença ou não do fungo. “Nos outros países os sapos morrem quando o quitrídio chega”, diz Toledo. “Aqui, é quando aumenta a prevalência.” Ou algo muda, e por isso é necessário monitorar as áreas onde ele existe. Até certo ponto, o estudo de Tamilie, Becker e Toledo corrobora fatores de risco que já eram conhecidos para a doença: áreas de altitude com topografia complexa, chuvosas e de temperaturas frescas. Mas resta investigar se outros fatores, como poluição ou desmatamento, aumentam a vulnerabilidade dos anfíbios e, portanto, a mortalidade. “Precisamos estudar variáveis que permitam prever a

presença do quitrídio”, planeja o biólogo da Unicamp. “As implicações dos resultados são enormes para a conservação dos anfíbios brasileiros”, acrescenta Becker. “Agora sabemos que o fungo pode voltar a ameaçar a nossa biodiversidade como aconteceu nos anos 1980.” Tamilie, que começou o doutorado na Unicamp, está tentando justamente destrinchar os fatores e mecanismos dessa vulnerabilidade ao fungo. Para ela, esse estudo vai muito além de doença e sapo. Trata-se de usar a doença para entender mecanismos ecológicos. Para confirmar as extinções, Haddad está envolvido em um projeto que pretende analisar o DNA extraído dos rios. “Pode ser que não encontremos os sapos por incompetência, mas se eles existirem, o DNA está na água”, afirma. n Maria Guimarães

Projeto Comunicação e sistemas sensoriais em anuros da Mata Atlântica (nº 14/23388-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Luís Felipe Toledo (Unicamp); Investimento R$ 139.637,65.

Artigo científico CARVALHO, T. et al. Historical amphibian declines and extinctions in Brazil linked to chytridiomycosis. Proceedings of the Royal Society B. v. 284, n. 1848. 8 fev. 2017.

pESQUISA FAPESP 253  z  67


ASTRONOMIA y

O custo de brilhar tanto Emissão de partículas de luz extrai energia da camada mais externa do Sol e a faz girar mais lentamente

Ricardo Zorzetto

Manchas tingem a superfície do Sol; o planeta Vênus é o círculo escuro no alto à esquerda

O

Sol parece pagar um preço por alimentar com luz e calor os planetas a sua volta. Tanta generosidade lhe extrai, é verdade que muito lentamente, parte da energia que o mantém girando em torno de seu próprio eixo. Ainda não se sabe qual influência isso pode ter no curto ou no longuíssimo prazo sobre a vida da estrela mais importante da vizinhança. Suspeita-se que o fenômeno possa afetar os campos magnéticos gerados no interior do Sol, responsáveis por explosões que lançam partículas e energia ao espaço e atingem a atmosfera terrestre, pre-

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judicando o funcionamento de satélites. Mas ainda é necessário investigar mais. “O Sol não vai parar de girar nos próximos tempos, mas descobrimos que a mesma radiação solar que aquece a Terra está ‘freando’ o Sol”, afirmou o astrônomo Jeff Kuhn, da Universidade do Havaí, nos Estados Unidos, em um comunicado à imprensa em dezembro de 2016. Kuhn coordenou um estudo que mediu com precisão uma sutil desaceleração na velocidade de rotação das camadas mais externas do Sol. Publicado em fevereiro na revista Physical Review Letters, o trabalho contou com a partici-

pação do astrônomo brasileiro Marcelo Emilio, professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), no Paraná, e verificou que as camadas mais distantes do centro da estrela se movimentam mais lentamente do que as mais internas. Com base nas medições feitas agora, os pesquisadores calculam que a fotosfera, a camada da atmosfera responsável pela emissão das partículas de luz que escapam do Sol, tenha uma velocidade de rotação cerca de 2% menor do que a de regiões mais profundas da estrela. Essa diferença ocorre porque o Sol não é uma esfera maciça. Ele é formado


NASA / SDO, HMI

por um gás muito quente contendo partículas eletricamente carregadas (plasma) de hidrogênio e hélio, os elementos químicos mais simples e abundantes do Universo. Sabe-se ainda que existe uma diferença de densidade desse plasma de acordo com a profundidade em que se encontra. Ele é mais denso nas regiões mais internas do Sol do que nas externas – no núcleo da estrela, o plasma é 10 vezes mais denso que o chumbo, enquanto, na atmosfera solar, é 10 mil vezes menos denso do que o ar na superfície da Terra. Por causa desse gradiente de densidades, os dois terços mais internos do Sol se comportam como uma esfera rígida e maciça, em que todos os pontos giram em conjunto no mesmo sentido. “O núcleo roda todo solidário e seria difícil obtermos uma medida de eventual desaceleração”, conta o astrofísico Nelson Leister, professor da Universidade de São Paulo (USP) especializado em física e astrometria solar. O terço mais superficial, por sua vez, funciona como um fluido: seus pontos se movem no mesmo sentido que os da região mais interna, mas a velocidades distintas. Medições feitas nas últimas décadas já indicavam que o terço mais externo do Sol se movia mais lentamente do que os dois terços mais interiores. Agora também se sabe que, na porção mais superficial, a velocidade diminui à medida que aumenta a distância do núcleo do Sol. Havia algum tempo os astrônomos suspeitavam que mesmo na atmosfera solar houvesse estratos se movimentando a velocidades diferentes. Dados obtidos nos anos 1980 sobre o ritmo de deslocamento das manchas solares, regiões mais escuras e frias da atmosfera do Sol, apresentavam pequenas variações, interpretadas por alguns pesquisadores como resultado de uma possível diferença na velocidade com que se deslocavam. Usando 27 milhões de imagens de altíssima resolução do Sol, obtidas pelo satélite Solar Dynamics Observatory, da agência espacial norte-americana (Nasa), Kuhn, Emilio e seus colaboradores mediram com uma precisão jamais obtida antes alterações sutis no movimento da fotosfera. Eles confirmaram que essa diferença de rotação existe e pode ser me-

Um ponto no alto da fotosfera demora mais que um ponto na base para dar uma volta no eixo do Sol

dida mesmo entre estratos de uma faixa de apenas 150 quilômetros de espessura dessa camada – esses 150 quilômetros correspondem a 0,02% (ou um quinquagésimo) do raio do Sol. Um ponto no topo dessa camada leva 2,7% mais tempo para completar uma volta em torno do eixo do Sol do que outro localizado na mesma latitude, mas situado na base. É um efeito sutil, que se torna relevante ao longo do tempo. viagem mais demorada

Um exemplo ajuda a esclarecer. Se um ponto qualquer de uma camada interna da estrela leva 30 dias para concluir uma volta ao redor do eixo solar, um ponto na base da fotosfera situado na mesma latitude – desde o século XVII se sabe, pelo estudo das manchas solares, que a velocidade de deslocamento muda a diferentes latitudes, diminuindo em direção aos polos – demora 19 horas a mais para traçar o mesmo percurso. Para um ponto no topo da fotosfera, seria preciso somar outras duas horas a essa viagem, que totalizaria 21 horas a mais. Desde que o Sol surgiu, há 5 bilhões de anos, os astrônomos estimam que já tenha completado 60 bilhões de voltas em torno de seu próprio eixo. Nesse tempo todo, a frenagem da atmosfera já deve ter sido suficiente para mudar a velocidade de rotação de uma camada do Sol com 35 mil quilômetros de profundidade ou 5% do raio da estrela. Esses dados, apresentados no artigo da Physical Review Letters, coincidem com os de estudos anteriores. No final dos anos 1980, medições da velocidade de propagação de ondas sonoras no interior do Sol, feitas por uma técnica chamada heliossismologia, indicavam que os 5% mais externos da estrela tinham uma velocidade de rotação mais baixa

do que o restante. Mas ninguém sabia explicar o motivo. No trabalho atual, Emilio, a equipe de Kuhn e o astrônomo Rock Bush, da Universidade Stanford, criador de um dos instrumentos do SDO, propõem que a desaceleração do Sol seja consequência da frenagem do fóton. É como se cada fóton (partícula de luz) emitido pelas camadas mais externas da estrela carregasse consigo uma quantidade ínfima da energia que mantém a atmosfera solar girando. Segundo Kuhn, esse efeito está freando muito lentamente a estrela a partir de sua superfície. Para confirmar essa hipótese, será necessário ainda aguardar algum tempo. “Essa perda é muito pequena”, diz Emilio, diretor do Observatório Astronômico da UEPG. Segundo o pesquisador, que com seus colaboradores realizou em 2012 a medição mais precisa já feita do raio solar (ele tem 697 mil quilômetros e é 109 vezes maior que o da Terra), seria necessário observar o Sol por milhões de anos para medir se a perda de fótons corresponde à desaceleração que está ocorrendo. Ou, ao menos, esperar a conclusão do maior telescópio dedicado à observação solar: o Daniel K. Inouye Solar Telescope (DKIST), em construção em uma das ilhas do Havaí. Previsto para estar pronto em 2020, terá um espelho de 4 metros de diâmetro que precisará ser resfriado para suportar receber tanta energia do Sol. “Quando estiver funcionando”, diz Emilio, “esse telescópio vai observar uma parte do Sol com muita resolução e talvez consiga fazer esse tipo de medição com bastante precisão”. n

Artigo científico CUNNYNGHAM, I. et al. A Poynting-Robertson-like drag at the Sun’s surface. Physical Review Letters. 3 fev. 2017.

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tecnologia  Nanotecnologia y

Alternativas de uma fibra vegetal Empresas brasileiras investem em nanocelulose, material com uso promissor para reforçar plástico, cimento e compor próteses e sensores

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O

declínio da indústria de papel, associado a progressos em tecnologia de materiais, colocou em cena um novo ator, que tem despertado interesse empresarial: a nanocelulose. A celulose em escala nanométrica (para ser considerada como tal, ao menos uma das dimensões precisa ter menos de 100 nanômetros, ou nm) pode ter formato de nanofibrilas ou nanocristais. As primeiras têm a forma de espaguete e são facilmente entrelaçáveis, destinadas preferencialmente ao reforço de embalagens plásticas. Já os nanocristais de celulose, que medem de 5 a 20 nm de largura e de 100 a 500 nm de comprimento, têm a aparência de arroz e são considerados um material mais nobre porque podem ter carga elétrica na superfície e propriedades químicas, ópticas e eletrônicas. Esse novo material é caracterizado por uma estrutura cristalina nanométrica existente no interior de qualquer fibra vegetal. Extraídos da celulose, matéria-prima da fabricação do papel, os nanocristais podem ter origem em madeira de reflorestamento, mas também em sobras de madeira, bagaço de cana, cascas de coco e de arroz, resíduos da produção de óleo de soja e de palma (dendê). Os nanocristais são de origem renovável, leves e biodegradáveis, levando vantagem sobre outros materiais sintéticos – muitas vezes originários de derivados de petróleo. São várias as potenciais aplicações: no reforço de materiais plásticos e de cimento, em sensores da indústria de petróleo e gás, em curativos especiais e próteses, em tintas, revestimentos, cosméticos e, com acréscimo de outras substâncias, na indústria eletroeletrônica. Não existem, por ora, produtos comerciais fabricados com os nanocristais: a ainda incipiente produção mundial desse material é destinada a clientes que possam desenvolver aplicações e criar mercados. O Brasil tem investido nesse material promissor, adquirindo participação em empresas estrangeiras produtoras de nanocristais.


1

Pequenas esferas de carbon dots poderão ser usadas em telas de aparelhos eletrônicos

2

fotos 1 Fabiano Pereira/UFMG

2 Universidade de Purdue

Nanocristais utilizados para reforçar cimento

Em 2013, a Granbio, empresa brasileira de biotecnologia industrial, adquiriu 25% da American Process Inc. (API), dos Estados Unidos. A API anunciou, em 2015, uma nova tecnologia de baixo custo para extração de nanocelulose a partir de biomassa e iniciou a produção em fase pré-comercial. A Granbio, uma das duas companhias no país que detêm a tecnologia para fabricar etanol de segunda geração a partir do bagaço de cana (ver Pesquisa Fapesp nº 235), investiu na API para ter acesso à tecnologia de pré-tratamento de biomassa. Em comunicado, a empresa brasileira declarou que investe em pesquisa e desenvolvimento (P&D) de nanocelulose há quatro anos e atua, por meio de sua afiliada API, em uma planta nos Estados Unidos. As amostras de nanocelulose produzidas são ofertadas para potenciais clientes. A Fibria, empresa brasileira líder mundial na venda de celulose de mercado, passou em novembro de 2016 a ser sócia da canadense CelluForce, primeira produtora comercial de nanocristais de celulose. A Fibria investiu cerca de US$ 4 milhões, adquirindo 8,3% de participação no capital da CelluForce, startup da FPInnovations, centro de pesquisas do setor florestal canadense. A FPInnovations (antiga Pulp and Paper Research Institute of Canada) é detentora da primeira patente referente à produção de nanocristais de celulose, concedida em 1997. Além da FPInnovations, fazem parte do capital da empresa a também canadense Domtar, produtora de celulose e papel, e a

Schlumberger, de origem francesa, maior fabricante de sistemas e equipamentos para a indústria de petróleo. Formada em 2010, a CelluForce inaugurou sua planta-piloto em Montreal, Quebec, em 2012. Hoje com capacidade de produzir 300 toneladas por ano, sua produção também é destinada a amostras fornecidas a potenciais clientes. Para Vinicius Nonino, diretor de Novos Negócios da Fibria e agora integrante da diretoria da CelluForce, já se sabe que os nanocristais serão úteis em setores como papel, cimento e produtos medicinais. Essas aplicações, que ainda precisam ser desenvolvidas para cada setor, segundo Nonino, poderão significar uma importante diversificação dos negócios da Fibria. A empresa tem os direitos de produção no país e de distribuição dos nanocristais em toda a América Latina. Tanto a Celluforce como a Fibria serão inicialmente fornecedoras de matéria-prima. A Fibria prevê montar uma fábrica-piloto para produção de nanocristais de celulose no seu Centro de Tecnologia em Aracruz (ES), ainda em 2017. O novo material tem despertado interesse como substituto de matérias-primas já utilizadas e como base para elaboração de novos produtos. Estimativas indicam que o preço dos cristais de nanocelulose poderá ser mais do que 20 vezes o da celulose. Segundo estudo realizado pela consultoria norte-americana Market Research Store, o mercado de nanocelulose foi de US$ 65 milhões em 2015. A empresa avalia que esse valor subirá para US$ 530 milhões em 2021, um aumento de 30% ao ano. Interesse da indústria

O primeiro artigo científico sobre a produção de cristais de nanocelulose foi publicado no começo dos anos 1950 pelo químico sueco Bengt Rånby, do Royal Institute of Technology (KTH). Com forte tradição na indústria de papel e celulose, os suecos inauguraram em 2011 a primeira planta-piloto mundial de extração de nanofibrilas de celulose, do instituto de pesquisa Innventia. O uso de nanocelulose para reforçar materiais como papel, compósitos e plásticos já despertava o interesse da indústria, mas o processo de extração demandava muita energia, inviabilizando o processo. A Holmen AB, empresa sueca de papel e celulose, tornou-se acionista principal da empresa israelense Melodea, desenvolvedora de um processo industrial para a extração de nanocristais de celulose do lodo resultante da fabricação de papel. A empresa pesquisa o uso desse material em espumas sem nenhum tipo de componente plástico e como forma de aumentar a resistência de embalagens, papéis, colas acrílicas e tintas. Em uma parceria da Melodea com a Holmen AB, o Instituto Rise (iniciativa do governo sueco na área de pESQUISA FAPESP 253  z  71


Matéria-prima extraída do interior das plantas Novo material é gerado a partir da celulose encontrada em grande parte dos vegetais Microfibrilas

Extração dos nanocristais de celulose

Primeiro é preciso separar a celulose da hemicelulose e lignina. Fibras menores de celulose são produzidas até chegar aos nanocristais. Todos os processos utilizam produtos químicos, normalmente ácidos

eucalipto

Hemicelulose Parede secundária

algodão

coco Lignina

cana dendê

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fibrilas de celulose

Fibras vegetais

inovação que reúne o Innventia e outros institutos) e o MoRe Research (empresa sueca de P&D para a indústria florestal) estão construindo a primeira planta-piloto de nanocristais de celulose na Europa, a 500 quilômetros de Estocolmo, na Suécia. No Canadá, outro país com forte tradição na indústria de papel e celulose, além da CelluForce, a empresa Blue Goose Biorefineries vende por US$ 1 mil o quilograma (kg) de nanocristal na forma de um gel claro e quase transparente. Os compradores são empresas e instituições de pesquisa que testam a matéria-prima em várias situações e produtos. A fábrica da empresa, na cidade canadense de Saskatoon, fabrica 35 kg por semana de nanocristais a partir de produtos com alto teor de celulose, como polpa de árvores, papel reciclado, línter do algodão (penugem que fica presa ao caroço) e fibras de linho. A Blue Goose desenvolveu um processo nanocatalítico oxidativo que exige menos produtos químicos e, portanto, seria ambientalmente mais favorável para transformar a biomassa em um cristal de dimensões nanométricas. Nanocristais são produzidos atualmente por hidrólise ácida (separação das fibras da madeira até extração da celulose e da forma nanocristalina), na maioria das vezes com ácido sulfúrico, mas também com ácido fosfórico ou ácido clorídrico. Um dos gargalos da área de P&D é a produção de peças de nanocelulose com maior dimensão: passar a produzir eficientemente o material em metros, e não em centímetros, de forma a permitir a análise de suas características mecânicas e funcionais e a avaliação de seus benefícios e usos como produto final. A Melodea e o MoRe Research colaboram em um projeto para transformar protótipos de filmes, papéis e espumas feitas em pequenas dimensões em laboratório, com nanocristais e nanofibrilas de celulose, em produtos prontos para o mercado.

nanocristais de celulose

Parede primária

Células vegetais

Fonte Universidade de Antioquia

Sob a coordenação do KTH, em Estocolmo, e com a participação de universidades suecas e da Processum, empresa de P&D de biorrefinarias, deverão ser produzidos na fábrica-piloto em construção, na Suécia, nanocristais, nanofibrilas e seus produtos. Na equipe de pesquisadores do projeto está a brasileira Daniele Oliveira de Castro, química formada na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com mestrado e doutorado sanduíche no Instituto Politécnico de Grenoble, na França, defendidos na Universidade de São Paulo (USP), sob a orientação da química Elisabete Frollini. Na Suécia, Daniele desenvolve processos de produção de papel mais resistentes com nanocelulose. “Também participo da criação de espumas feitas de nanocelulose com propriedades antichama”, conta. A pesquisadora está no MoRe Research desde setembro de 2016 e seu projeto termina em 2018. A química Juliana Bernardes, do Laboratório Nacional de Nanotecnologia (LNNano) do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), coordena uma linha de pesquisa usando nanocristais e nanofibrilas de celulose extraídos de bagaço de cana como espessantes em fluidos. “Esses nanomateriais em pequenas quantidades transformam, por exemplo, a água em gel, uma característica importante em cosméticos”, explica. Juliana fará um estágio de três meses na Universidade de Estocolmo, Suécia, financiado pela FAPESP, para desenvolver um curativo em forma de gel feito de nanofibrilas de celulose e fármacos cicatrizantes. Um dos usos de nanocristais de celulose que recebe atenção é a aplicação para reforçar cimento. Em um artigo na revista Cement and Concrete Composites, de fevereiro de 2015, essa utilização foi comprovada por um estudo realizado na Universidade de Purdue (EUA). Pesquisadores sob a


Drug delivery

aplicações possíveis de nanocristais de celulose

Poderão ser o veículo de transporte de medicamentos dentro do corpo

Pesquisa no Brasil Vários grupos de pesquisadores estudam a produção e a funcionalidade dos nanocristais de celulose Há vários grupos de pesquisa no Brasil, em institutos e universidades, que estudam tanto a extração e a purificação dos nanocristais de celulose como as aplicações desse material. Dois trabalhos recentes tratam de uma característica

Cimento dentário Nas obturações dentárias, misturados ao cimento, trazem maior resistência ao material

Scaffolds Entram na composição de estruturas que funcionam como guias para a regeneração de cartilagens

Biossensores e diagnósticos

dos nanocristais, a reflexão de luz. Um desses

Cobertos com substâncias orgânicas, podem se tornar condutores elétricos

Materials, revista científica na área de materiais.

estudos foi capa em janeiro deste ano da Advanced “A novidade foi colocar cristais líquidos sobre os nanocristais de celulose produzindo filmes iridescentes, absorvendo luz e refletindo apenas algumas cores”, conta Antônio Figueiredo Neto, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo. Ele coordena o grupo que faz parceria com pesquisadores de instituições portuguesas. “Conseguimos com a celulose uma versatilidade de cor maior em relação a dispositivos feitos com material sintético”, relata Figueiredo. Em projeto de um grupo de pesquisadores das

Material iridescente

Implantes médicos

universidades federais de Minas Gerais (UFMG),

Interagem com a luz e podem exibir luminescência quando cobertos por cristais líquidos, que são substâncias sintéticas

Podem ser absorvidos pelo organismo e regenerar células ósseas e das cartilagens

em Belo Horizonte, e dos Vales do Jequitinhonha e

Membranas antimicrobiais Em forma de camadas, podem receber fármacos e ser colocados sobre feridas

Mucuri (UFVJM), em Diamantina, foi demonstrado que os nanocristais de celulose podem ser precursores de nanomateriais de carbono, os carbon dots. Eles poderão ser utilizados para substituir os pontos quânticos (quantum dots) feitos de materiais semicondutores em dimensões nanométricas. As aplicações possíveis estão em células solares e em aparelhos de captação de imagens médicas

infográfico ana paula campos  ilustraçãO Barbara Malagoli

e displays. Atualmente, os pontos quânticos estão

coordenação do engenheiro Pablo Zavattieri demonstraram que os nanocristais de celulose podem aumentar a resistência à tração do concreto em até 30%. Os resultados indicaram que o biomaterial aumenta a hidratação do concreto, fortalecendo o material. Com isso seria possível usar menos cimento na mistura. Os resultados levaram o grupo de Purdue a estabelecer uma parceria com a P3Nano, uma organização público-privada criada para pesquisar o uso de nanomateriais oriundos da madeira. A iniciativa tem financiamento do Serviço de Silvicultura do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA). A P3Nano pretende avançar na tecnologia e torná-la comercial. Para isso vai continuar com a participação dos pesquisadores de Purdue, agora em ensaios de grande escala. n

em TVs que utilizam esse material para dar melhor visibilidade e resolução nas telas de LED. São TVs chamadas de QLed. “Desenvolvemos um método de pirólise dos nanocristais de celulose que resultam em esferas, os carbon dots, de 4 nm a 8 nm de circunferência, que exibem fotoluminescência nas cores verde e azul. Os carbon dots já são conhecidos desde 2004 e nesse trabalho demonstramos que podem ser feitos a partir de uma fonte renovável e abundante que é a celulose”, explica o químico Fabiano Pereira, professor da UFMG. “Outra vantagem dos carbon dots é o fato de não apresentarem toxicidade.”

Projeto Projeto Estudo do uso de nanopartículas de celulose no controle reológico de fluidos complexos (nº 16/04514-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Juliana da Silva Bernardes (CNPEM); Investimento R$ 115.773,36.

Propriedades ópticas e estruturais de elastômeros e fluidos complexos de interesse biológico (nº 11/13616-4); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Antônio Martins Figueiredo Neto (USP); Investimento R$ 2.519.727,73.

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Engenharia eletrônica y

Chip das colisões de partículas

Pesquisadores brasileiros desenvolvem e testam dispositivo que será instalado no Cern Evanildo da Silveira

O chip Sampa é o quadrado menor central, com 1 centímetro de largura, posicionado sobre uma placa de teste


fotos 1 eduardo cesar  2 Antônio Saba / Cern

U

m pequeno chip com menos de 1 centímetro quadrado será uma das contribuições do Brasil para a detecção de partículas elementares no Grande Colisor de Hádrons (LHC, em inglês), operado na fronteira entre a França e a Suíça pela Organização Europeia para Pesquisa Nuclear, conhecida como Cern. Chamado de Sampa, o dispositivo está sendo desenvolvido por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). O projeto começou em 2013 e hoje está no segundo protótipo, que passa por testes em laboratórios do Brasil, Noruega, Suécia, França, Rússia e Estados Unidos. A previsão é de que comece a ser usado em 2020. O Sampa será instalado em um dos quatro detectores de partículas do LHC, o Alice (sigla de A Large Ion Collider Experiment), no qual trabalham cerca de 1.800 pesquisadores de 174 instituições de 42 países, incluindo o Brasil. “O objetivo é reproduzir no LHC o plasma de quarks e glúons, estado da matéria que teria existido apenas por alguns microssegundos após o Big Bang, a grande explosão que teria dado origem ao Universo”, explica o físico Marcelo Gameiro Munhoz, do Instituto de Física da USP. Quarks e glúons não mais existem livres na natureza. Estão confinados dentro dos hádrons, partículas de grande massa que se dividem entre bárions e mésons, como prótons, nêutrons e méson pi, por exemplo. “Quando se tenta separá-los não surgem quarks livres. Mas ao colidir núcleos de chumbo a altíssimas energias os quarks e glúons formam um plasma, uma espécie de sopa de partículas que flui como um líquido”, explica Munhoz. O principal objetivo do experimento Alice é estudar esse plasma. Entre os vários dispositivos que o compõem está o TPC (sigla de Time Projection Chamber). Munhoz explica que o TPC tem formato semelhante a um barril, com 5 metros (m) de comprimento e 5 m de diâmetro, cheio de gás, atravessado longitudinalmente por uma canalização feita de berílio, praticamente sem ar dentro. “Por essa canalização passam, a uma velocidade próxima à da luz, feixes de íons de chumbo, em sentido contrário, para que colidam”, conta Munhoz. “A colisão gera grande quantidade de vários tipos de partículas.”

Câmara do experimento Alice, no Cern, onde o Sampa substituirá dois outros chips, um analógico e outro digital

2

Ao passar pelo gás, as partículas gera­ das na colisão arrancam elétrons que escoam para as extremidades do TCP, onde estão instalados dois tipos de chips, um analógico, para receber e amplificar a carga, gerar um pulso elétrico e enviá-lo para um chip digital. Transformados em bits (sinais digitais), esses pulsos são armazenados para posterior análise dos pesquisadores. Com isso, é possível determinar quais partículas foram geradas na colisão, além de verificar se o plasma de quarks e glúons foi formado. “O Sampa vai substituir esses dois chips, realizando sozinho o trabalho de ambos”, explica Wilhelmus Adrianus Maria van Noije, do Laboratório de Sistemas Integráveis (LSI) da Escola Politécnica (Poli) da USP, coordenador do projeto de desenvolvimento do chip. A necessidade da criação do Sampa surgiu, em 2012, com a decisão do Cern de atualizar o LHC para que a taxa de colisões aumentasse por um fator de 10 a partir de 2020. Uma das limitações atuais é o fato de os chips não terem condições de processar uma taxa tão grande de colisões. Segundo Van Noije, o Sampa resolverá o problema. “Terá 32 canais de leitura, o dobro dos dispositivos usados hoje”, conta. Quando surgiu o programa de atualização do LHC, segundo Munhoz, iniciaram-se discussões sobre quais grupos que compõem o Alice poderiam contribuir com a modernização. “Foram longos debates para identificar o que precisava ser construído e o conhecimento e a experiência de cada grupo”, conta Munhoz, que já conhecia o LSI da Poli.

“Após a apresentação e as primeiras discussões internas no Brasil, convidamos alguns pesquisadores europeus participantes do Alice para nos visitar e conhecer o grupo do LSI. Eles vieram e concordaram em atribuir aos grupos brasileiros a responsabilidade pela criação do dispositivo.” O design do Sampa foi feito por pes­quisadores brasileiros e a produção física dos dois protótipos realizada pela Taiwan Semiconductor Manufacturing Com­pany (TSMC), de Taiwan. “Infelizmente não existe empresa no Brasil capaz de fabricar um circuito integrado como o Sampa”, explica Munhoz. Serão produzidos 80 mil Sampas pela empresa de Taiwan que deverão ser entregues ao LHC até 2020. O Alice precisa de 50 mil, mas 30% do total pode se danificar na etapa de montagem dos circuitos impressos. “Nossa parte foi realizar o trabalho intelectual de projetar o chip, seus componentes e desenhar os circuitos, cumprindo as especificações do Cern”, diz Munhoz. n

Projetos 1. Desenvolvimento de instrumentação científica para o experimento Alice do LHC-Cern (nº 14/12664-3); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular (Projetos Especiais); Pesquisador responsável Wilhelmus van Noije (USP); Investimento R$ 5.531.559,62. 2. Projeto de um Asic de aquisição e processamento digital de sinais para o time projection chamber do experimento Alice (nº 13/06885-4); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Wilhelmus van Noije (USP); Investimento R$ 1.218.001,52. 3. Física nuclear de altas energias no RHIC e LHC (n° 12/04583-8); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Marcelo Gameiro Munhoz (USP); Investimento R$ 4.277.589,35.

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pesquisa empresarial

Pioneirismo na telefonia Fabricante das primeiras centrais digitais feitas no Brasil, a Trópico continua inovando em controladores de fluxo de transmissões em telecomunicações Yuri Vasconcelos

R

eforçar os investimentos em pesquisa e desenvolvimento e ampliar o portfólio com a oferta de novas soluções tecnológicas são a estratégia da Trópico Sistemas e Telecomunicações para continuar crescendo. Com sede em Campinas, a empresa foi criada em 1999 como uma spin-off da Fundação Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD), ex-centro de pesquisas do antigo Sistema Telebrás, privatizado um ano antes. A Trópico nasceu para desenvolver e fabricar equipamentos de telecomunicações, com foco inicial nas centrais telefônicas. A companhia foi a primeira empresa nacional a produzir centrais digitais nos anos 1980. Anos mais tarde, lançou um controlador de chamadas telefônicas de grande porte, o Vectura Softswitch, equipamento substituto das centrais digitais. Seus sistemas, instalados em companhias telefônicas como Vivo, Oi e várias operadoras de pequeno e médio porte, controlam 1,3 bilhão de chamadas telefônicas por dia. Vinte por cento de todas as centrais digitais instaladas no país, o equivalente a 9,5 milhões de terminais, foram fabricadas pela Trópico.

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Durante os primeiros 15 anos de atuação, a Trópico concentrou-se na área de telefonia. A orientação começou a mudar no final de 2014, quando o controle da companhia mudou de mãos, passando do Grupo Promon, acionista majoritário desde sua criação, para o CPqD, que era sócio minoritário e hoje é uma instituição sem fins lucrativos voltada para o desenvolvimento de novas tecnologias para os setores de telecomunicações e tecnologia da informação. “Com a nova gestão do CPqD, a Trópico se reinventou e expandiu seu portfólio”, conta o presidente da Trópico, Paulo Cabestré. Sem investimentos consistentes em P&D, sua linha de produtos ficou inadequada e a empresa encolheu. O faturamento caiu para R$ 50 milhões em 2014, depois de superar R$ 200 milhões em 2008. “A Trópico percebeu que precisava voltar a investir em P&D em novos produtos e mercados. Atualizamos nosso portfólio, cujo coração era o Vectura Softswitch, e lançamos duas soluções: os sistemas de comunicação de banda larga sem fio 4G e a virtualização de funções de rede, que é uma tecnologia em linha com a tendência recente de usar computação em nu-

empresa Trópico

Centro de P&D Campinas (SP)

Nº de funcionários 68

Principais produtos Equipamentos e sistemas de telecomunicações

Central telefônica de comutação digital (Trópico RA) no laboratório de desenvolvimento e testes de qualidade de produto


léo ramos chaves

pESQUISA FAPESP 253  z  77


Paulo Cabestré, presidente da Trópico desde 2014

vem nos serviços de telecomunicações”, diz Cabestré. Graduado em engenharia elétrica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ele deixou a diretoria de Redes Convergentes do CPqD para assumir o comando da Trópico em dezembro de 2014. Desde então, a empresa vem investindo 20% de sua receita líquida em P&D, totalizando uma média de R$ 11,4 milhões por ano. Em 2015 e 2016, o faturamento foi de cerca de R$ 60 milhões e a previsão é de que chegue a R$ 68 milhões este ano. A primeira das novas soluções gestadas pela Trópico foi uma plataforma de virtualização de elementos de rede, batizada de Vectura Virtual Edge. “Virtualizar um elemento ou função de rede, como o modem de acesso à internet da operadora de TV por assinatura, é levar a ‘inteligência’ contida nesse aparelho para a nuvem, ou seja, para um servidor instalado na operadora de TV por assinatura ou no provedor de internet”, explica Cabestré. Com isso, as principais atividades inteligentes do modem são transferidas para um software instalado num ambiente virtual, que controla de forma centralizada na nuvem as funções antes executadas na residência do usuário. Na prática, aquelas caixinhas eletrônicas ligadas ao cabo da TV não devem desaparecer, mas vão ficar menores e mais simples. O modelo de virtualização do terminal do assinante, segundo o presidente da Trópico, reduz o número de visitas 78  z  março DE 2017

técnicas para manutenção e facilita a introdução de novos serviços. “A virtualização de elementos de rede é uma ruptura tecnológica recente”, diz Cabestré. Segundo ele, nenhum país usa essa tecnologia de forma massiva. No Brasil, a Trópico está testando uma versão do produto com uma operadora de TV por assinatura, cujo nome não pode ser revelado por questões de sigilo. O segundo campo em que a Trópico passou a apostar é o dos sistemas de comunicação de banda larga voltados à Internet das Coisas, um conceito recente que diz respeito à possibilidade de dispositivos eletrônicos usados no

dia a dia, como aparelhos eletrodomésticos, máquinas agrícolas, equipamentos industriais ou meios de transporte, comunicarem-se entre si utilizando sensores e redes de comunicação sem fio. “Desenvolvemos estações rádio base compactas e terminais especializados para redes de quarta geração (4G), em frequências abaixo de 1 Gigahertz (GHz), que permitem cobertura de até 50 quilômetros de raio”, conta William Viais, gerente de Tecnologia da Trópico. “Essas características tornam as estações adequadas à realidade brasileira, porque conseguem cobrir vastas regiões de baixa densidade populacional.” Desenvolvida em parceria com o CPqD, a solução destina-se a atender os mercados de agronegócio, energia, defesa e segurança pública. Concessionárias do setor energético, por exemplo, podem utilizar o sistema de comunicação de banda larga para automatizar a ação de seus religadores – dispositivos instalados em linhas aéreas de transmissão de energia com a função de protegê-las de problemas transitórios. Quando há uma interrupção de energia, por exemplo, por

equipe de Pesquisadores Confira alguns profissionais da equipe de P&D da Trópico e conheça as instituições responsáveis por sua formação Paulo Cabestré, engenheiro eletricista e presidente da Trópico

Universidade Estadual de Campinas (Unicamp): graduação Universidade de Tecnologia Eindhoven (Holanda): mestrado

Manoel Marcilio Sanches, cientista da Universidade de São Paulo (USP): graduação, mestrado computação e diretor da área de Negócios Uilson Ruas Pennafiel, engenheiro eletricista Universidade Estadual Paulista (Unesp): graduação da área de Tecnologia Universidade Estadual de Campinas (Unicamp): mestrado Maria Cecilia Motta Torres Giglio, matemática e analista de sistema da área de Tecnologia

Universidade Estadual de Campinas (Unicamp): graduação, mestrado

Rosana Egydio, matemática e coordenadora da área de Tecnologia

Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas): graduação

Adriana Sant Anna Duran, bacharel em tecnologia da informação e analista de sistema da área de Tecnologia

Universidade Estadual de Campinas (Unicamp): graduação

Milton Marcelini, engenheiro eletricista da área de Tecnologia Wireless

Instituto Nacional de Telecomunicações (Inatel): graduação


fotos  léo ramos chaves

uma queda de árvore num certo ponto da linha, um controlador poderá religar seletivamente a rede a distância em tempo real, isolando o ponto de falha, usando a tecnologia de comunicação sem fio desenvolvida pela Trópico. Não haveria necessidade de uma equipe deslocar-se até o local para atuar na rede. A história da Trópico teve início bem antes da constituição da empresa. Em 1973, no âmbito de um acordo entre a Universidade de São Paulo (USP) e a Telebrás, então holding das operadoras brasileiras de telecomunicações, surgiu o embrião de uma central telefônica digital nacional, projetada para substituir as importações de centrais analógicas. Naquela época, nenhuma empresa brasileira possuía tecnologia para fabricar esses equipamentos, que conectam os assinantes durante uma chamada. Três anos depois, com a criação do CPqD, a equipe do projeto foi transferida da Escola Politécnica (Poli) da USP para Campinas. Em 1984, o CPqD lançou a central Trópico R, com capacidade para 10 mil assinantes. “Ela foi um sucesso por atender as condições específicas da rede brasileira”, recorda-se Armando Barbieri, gerente de Marketing de Produto da Trópico. “A Trópico R foi projetada, por exemplo, de forma a não precisar de ventilação forçada para resfriar, tolerando as situações extremas de temperatura e umidade do país. Isso lhe deu grande robustez, com um índice de falhas bem menor do que o de produtos importados.” Com a boa receptividade da Trópico R, o CPqD lançou-se em um projeto de uma central telefônica com capacidade para 100 mil assinantes, a Trópico RA. Com uma arquitetura de software arrojada, ela possuía mecanismos que garantiam alto desempenho. “Em 1990, esse esforço resultou na primeira central de grande porte desenvolvida no Brasil”, destaca Barbieri. Com a privatização do Sistema Telebrás em 1998, o investimento de parte da receita das operadoras no desenvolvimento de produtos pelo CPqD deixou de existir. A sustentação do Projeto Trópico só foi possível devido à formação, em 1999, de uma nova empresa dedicada a fabricar, comercializar e continuar o aprimoramento tecnológico das centrais digitais. Nascia, assim, a Trópico Sistemas e Telecomunicações, controlada pela Promon (60% do capital social), pelo CPqD (30%)

Servidores que permitem a virtualização das tradicionais centrais digitais para o padrão das redes de nova geração

Central de mídia em desenvolvimento no laboratório de hardware da Trópico

e pela norte-americana Cisco (10%), uma das líderes mundiais na área de tecnologia da informação. “Naquela época, o país era carente de empresas inovadoras na área de telecomunicações. E a Trópico surgiu para ocupar esse espaço”, ressalta Sebastião Sahão Júnior, atual presidente do CPqD. EVOLUÇÃO TECNOLÓGICA

No final dos anos 1990, o setor de telecomunicações passava por forte transformação com o surgimento do conceito de Redes de Nova Geração (NGN), em que a voz passou a ser transportada por uma rede de dados baseada em IP, o protocolo da internet. A arquitetura da Trópico RA provou-se flexível o suficiente para assimilar a tecnologia NGN. A nova linha de produtos foi batizada de Vectura. Cinco anos depois, em 2004, a empresa fez a primeira venda de seu controlador de chamadas de grande porte (mais de 800 mil usuários), o Vectura Softswitch (VSS). “Essa solução passou a adotar a tecnologia conhecida como voz sobre IP,

ou VoIP, substituindo as centrais digitais baseadas em comutação de circuitos”, afirma Victor Valenzuela. Consultor da área de Telecomunicações, ele conhece a Trópico de perto, tendo participado do desenvolvimento de suas primeiras centrais nos anos 1980. A modernização do portfólio da Trópico e o desenvolvimento de soluções tecnológicas estão sob responsabilidade de uma equipe formada por 50 pesquisadores. A empresa tem outros 18 funcionários dedicados ao atendimento e suporte técnico aos clientes. “Por meio desse atendimento, novas demandas são recebidas e introduzidas como aperfeiçoamento nos produtos”, explica William Viais, gerente de Tecnologia. Ele destaca ainda que a Trópico conta com um grupo de empresas parceiras que atua em conjunto com seu time de tecnologia no desenvolvimento de determinadas partes dos produtos e soluções. “São vários os parceiros, em especial o próprio CPqD.” n pESQUISA FAPESP 253  z  79


Engenharia Naval y

U

Barco autônomo Sem tripulação, protótipo de embarcação movida a energia solar faz medições e coleta dados no mar, rios e lagos

80  z  março DE 2017

m pequeno barco elétrico desenvolvido pela empresa Holos Brasil, do Rio de Janeiro, é capaz de navegar de forma autônoma, sem piloto a bordo. Faz isso controlado apenas por uma pessoa em terra munida de um computador portátil. É movido exclusivamente por energia solar captada por painéis fotovoltaicos instalados em cima da embarcação. Além de baterias para estocar eletricidade, o barco pode levar instrumentos para vários tipos de missão, tais como coleta de dados meteorológicos, oceanográficos ou fluviais (profundidade, traçado da topografia do leito) e para o estudo da vida aquática. Também poderá ter aplicações na indústria de petróleo, como o monitoramento de dutos e equipamentos submarinos. Com 3,2 metros (m) de comprimento, 1,6 m de largura e pesando 82 quilogramas (kg), o barco é do tipo catamarã, com dois cascos paralelos interligados por duas barras sobre as quais estão as placas solares. Sua velocidade é de 3 nós (5,5 quilômetros por hora, km/h). É a primeira embarcação com essas características feita no país. Ainda é um protótipo em fase de testes. O engenheiro naval Lorenzo Cardoso de Souza, sócio da Holos, conta que a ideia de desenvolver a embarcação surgiu a partir da sua participação, em 2009, no Desafio Solar Brasil, uma competição de barcos movidos a energia fotovoltaica com um piloto a bordo, organizado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e patrocinado pela empresa Enel Brasil – que atua na geração e distribuição de energia elétrica e gás natural –, pela prefeitura de Búzios (RJ) e pela Secretaria Estadual de Esporte do Rio. “Na primeira edição desse evento, a Holos competiu com duas embarcações desenvolvidas em parceria com pesquisadores da Coppe [Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa em Engenharia da UFRJ]”, explica Souza, que fundou a Holos em 1998 com Frederico Garcia Magalhães. “As duas embarcações foram vitoriosas em suas categorias”, informou Souza. Além de ter desenvolvido esse protótipo, a empresa fabrica barcos a


fotos  holos brasil

vela, boias oceanográficas e equipamentos para barcos de regata e cadeira de rodas com fibra de carbono. Na mesma competição, uma equipe da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) venceu na categoria catamarã. Esse grupo depois se uniu à Holos para disputar um desafio semelhante na Holanda, o Frisian Solar Challenge, em 2010. A partir daí a colaboração entre as duas equipes se firmou e, a convite dos catarinenses, a Holos participou da construção de um barco movido a energia fotovoltaica para transporte escolar na comunidade de Santa Rosa, localizada na ilha das Onças, município de Barcarena, Pará. A embarcação demanda piloto e tem capacidade para 22 pessoas. Ficou pronta em 2014 e está em operação, transportando os estudantes entre a ilha onde moram e a escola na sede do município. primeiro protótipo

Souza conta que, durante esse trabalho, Magalhães e ele mergulharam no universo das embarcações movidas a eletricidade. “Surgiu então a ideia de desenvolvermos um barco que fosse autônomo não apenas do ponto de vista da navegação, mas também da energia que o move”, diz. “Uma embarcação que pudesse, por meio de placas solares, armazenar energia durante o dia para navegar à noite.” O projeto foi submetido à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), em 2013, que aprovou financiamento de R$ 300 mil. O primeiro protótipo ficou pronto no ano passado e já foi testado em um trabalho de batimetria (medição de profundi-

Com as placas solares, a autonomia do barco é ininterrupta. Em dias nublados, a velocidade cai de 5,5 km/h para 1,8 km/h

dade) encomendado pela Coppe na ilha do Fundão, onde fica o campus central da UFRJ. O barco possui quatro placas fotovoltaicas de 50 centímetros por 1 m, localizadas entre seus dois cascos, com potência total de 400 watts. A eletricidade gerada é armazenada em seis baterias de lítio, o que garante navegação ininterrupta, 24 horas por dia. “Com as placas, a autonomia da embarcação é indefinida, pode navegar sem paradas”, explica Souza. “Mesmo em dias nublados o barco continua navegando. Nesse caso, como há menos energia disponível, haverá uma redução da velocidade, que poderá ser de apenas 1 nó (1,8 km/h). Sem as placas, só com as baterias, a autonomia é de 10 horas.” O barco é equipado com computadores e programas de navegação autônoma, bússola, acelerômetros e giroscópios. “Esses sistemas e equipamentos garantem que a navegação siga em uma rota pré-programada, independente de marés, ventos e outras condições oceânicas”, diz Souza. Nesse primeiro protótipo, as comunicações entre o veículo e a base de operações são feitas por rádio UHF, o que limita o raio de atuação a cerca de 10 km. “Temos um projeto em que a embarcação se comunicará via satélite.”

O sucesso do protótipo, chamado de C-400, motivou Souza e Magalhães a criar uma nova empresa , a Unmanned Surface Solar Vehicle (USSV) ou Veículo Solar de Superfície não Tripulado, para comercializar barcos autônomos. Dois modelos estão em fase final de projeto. Um pequeno para serviços costeiros com 2,5 m de comprimento e autonomia de até 20 horas e um oceânico, com 4,5 m de comprimento e autonomia de 90 horas. A velocidade média dos barcos será de 5,5 km/h. “O C-400 despertou o interesse da Petrobras e da Marinha do Brasil”, conta Souza. A Holos pretende vender seu barco menor por R$ 130 mil a unidade. A versão oceânica ainda não tem preço. O engenheiro Marcos Gallo, professor do Laboratório de Dinâmica de Sedimentos Coesivos (LDSC), da Área de Engenharia Costeira e Oceanográfica da Coppe, que acompanhou testes do protótipo, considera importante o desenvolvimento de barcos autônomos. “Eles facilitam o acesso a locais restritos para outras embarcações devido a dimensões ou ao calado [a parte da estrutura da embarcação que fica dentro d’água] e oferecem mais mobilidade e praticidade nas medições”, diz Gallo. Souza reconhece, no entanto, que o barco tem desvantagens, como energia limitada. “Isso restringe o número de equipamentos que podem ser embarcados, porque a energia gerada pelas placas fotovoltaicas precisa ser dividida entre eles e a própria embarcação”, explica. “Outra desvantagem é a grande área ocupada pelos painéis solares.” As embarcações solares autônomas ainda são raras. Souza cita a empresa inglesa ASV, fabricante de um barco que, além de energia solar, utiliza também motor a diesel. Um barco autônomo solar que fez o primeiro teste em 2016 foi o SeaCharger, desenvolvido pelo norte-americano Damon McMillan. O barco chegou ao Havaí depois de uma viagem de 41 dias e 4.469 quilômetros, que começou na Califórnia, nos Estados Unidos. O Wave Glider é outro barco autônomo que percorreu grandes distâncias. Viajou, em 2015, de São Francisco, nos Estados Unidos, até a Austrália. Desenvolvido pela empresa norte-americana Liquid Robotics, ele tem painéis solares que alimentam os equipamentos de bordo e a propulsão é feita pelo movimento das ondas do mar. n Evanildo da Silveira pESQUISA FAPESP 253  z  81


humanidades   arte y

82  z  março DE 2017


O renascimento do barroco paulista Resgate de obras, artistas e documentos amplia o conhecimento sobre as expressões desse estilo no estado  |  Carlos Fioravanti

fotos Léo Ramos Chaves

Igreja do Carmo, em São Paulo: pintura de Jesuíno do Monte Carmelo na nave (outra página) e o Cristo crucificado, ambos do século XVIII

O

trabalho integrado de pesquisadores acadêmicos, restauradores profissionais e especialistas de órgãos públicos e de empresas tem resultado na descoberta de obras, autores e documentos do barroco paulista que permaneceram encobertos, desconhecidos ou guardados por mais de um século. Os desenhos, as formas e as cores originais emergem à

medida que igrejas são restauradas e pinturas mais recentes removidas, revelando obras de maior valor artístico e histórico. Os achados estão redimensionando o valor das expressões paulistas desse estilo de arte, mais visível e pujante nos estados de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro. Caracterizado por formas rebuscadas e uma intensa religiosidade, o barroco

marcou os primeiros três séculos da colonização do Brasil pelos europeus. Como consequência de um trabalho iniciado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), reapareceram em 2011 as pinturas de 1796 e 1797 do padre santista Jesuíno do Monte Carmelo (1764-1819) nos forros da capela-mor e da nave da Igreja da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do pESQUISA FAPESP 253  z  83


autores. Com base nos documentos, ela confirmou que a obra de Jesuíno não foi a original, mas a terceira – os forros com as duas anteriores teriam sido removidos –, e encontrou o motivo da troca das pinturas, que intrigava Mário de Andrade. “Os carmelitas mudavam a ornamentação de toda a igreja para seguir os gostos da época e não ficarem atrás das igrejas de outras ordens religiosas, não importando os custos”, apurou Danielle. “A ideia de que o barroco paulista era pobre e ingênuo é descabida.” Autor de 20 livros sobre arte brasileira, o artista plástico e historiador de arte Percival Tirapeli, coordenador do grupo de pesquisa sobre o barroco da Unesp, observa o teto da igreja do Carmo e conta: “Foram quatro anos removendo com bisturi as camadas recentes de tinta”. Atrás do altar está a obra Senhor morto, de 1746, de madeira, também res-

O barroco em São Paulo Equipe da Unesp encontrou obras em 79 igrejas de 47 cidades, principalmente no litoral e Vale do Paraíba igrejas barrocas da capital

Região central Mosteiro da Luz Ordem Primeira e Ordem Terceira de São Francisco Santo Antônio Carmo Boa Morte São Gonçalo Capela dos Enforcados Zona leste Capela de São Miguel

Queluz Areias

Monte Alegre do Sul

Campinas

Lorena Guaratinguetá Aparecida Pindamonhangaba

Tremembé

Jarinu

Piracaia Bom Jesus dos Perdões Atibaia Nazaré Paulista

Taubaté Caçapava

Itu Jundiaí Santa Isabel Pirapora do Jacareí Bom Jesus Santana de Guararema Parnaíba Guarulhos Araçariguama Santa Paraibuna Itaquaquecetuba Branca Sorocaba Barueri Carapicuíba Mogi das Cruzes São Roque

Porto Feliz

Cotia Embu das Artes

São Paulo

São Sebastião

Itapecerica da Serra São Vicente Itanhaém

Iguape

84  z  março DE 2017

SP Bananal

Cunha São Luís do Paraitinga

Ilhabela

Santos

Oceano Atlântico Fonte  Grupo Barroco Memória Viva/ Unesp

taurada, de autoria desconhecida, que ele considera “uma das esculturas mais belas do barroco paulista”. A quase 30 quilômetros (km) do centro da capital, na capela de São Miguel Arcanjo, uma das mais antigas do estado, erguida em 1622, foi encontrada uma rara pintura em perspectiva do altar que permaneceu escondido durante décadas por outro altar de madeira, construído cerca de 150 anos depois.

O

bras de arte inesperadas apareceram também na matriz de Nossa Senhora da Candelária de Itu, a 101 km da capital, a maior igreja barroca do estado de São Paulo, construída em 1780, em restauração desde 2001. Por indicação do músico Luís Roberto de Francisco, pesquisador do Museu de Música da cidade, as equipes de restauração resgataram seis pranchas de madeira retratando uma das cenas do calvário de Cristo. Encobertas por uma camada de cal, eram provavelmente originais do forro do coro da igreja e tinham sido usadas como proteção de um relógio da torre. Foram feitas por Jesuíno do Monte Carmelo – e não se tinha conhecimento delas. Em 2015, as equipes de restauração encontraram pinturas em azul nas paredes da capela-mor da matriz de Itu, antes cobertas por tinta de dezenas de anos. Havia uma data, 1788, e uma assinatura que revelou, dessa vez, um autor desconhecido, Mathias Teixeira da Silva, sobre o qual pouco se sabe. As pesquisas sobre esse artista, conduzidas pelo historiador do Iphan Carlos Gutierrez Cerqueira, levaram à identificação do escultor Bartolomeu Teixeira Guimarães (1738-?) como autor do monumental altar-mor, com 12 m de altura por 6 m de largura. Emergiram também indicações da colaboração entre Guimarães e José Patrício da Silva Manso (1753-1801), autor da pintura do forro e mestre de Jesuíno, indicando as conexões entre artistas e suas obras. Jesuíno também fez pinturas em outras três igrejas de Itu, a do Carmo, a da Nossa Senhora do Patrocínio e a do Bom Jesus. IDEIAS REnovADAS

“Estamos desfazendo o preconceito de que o barroco paulista era pobre e inexpressivo”, diz o restaurador Júlio Moraes, proprietário de uma empresa de

mapa ana paula campos

Carmo, no centro da cidade de São Paulo. O escritor paulista Mário de Andrade (1893-1945), pouco antes de morrer, alertou sobre a provável existência da pintura na área central da nave, que estava encoberta. Agora exposta, a imagem original mostra Nossa Senhora cercada por anjos, nuvens e, nas bordas do teto, carmelitas de 2,20 metros (m) de altura. Mário de Andrade nunca soube por que a pintura original havia sido encoberta. A historiadora de arte Danielle Pereira, pesquisadora do grupo Barroco Memória Viva do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em São Paulo, pensa ter descoberto o que o escritor paulista não sabia. Nos últimos sete anos, ela peregrinou por arquivos de igrejas e de órgãos públicos, examinou cerca de 22 mil páginas de 600 livros antigos e encontrou documentos inéditos sobre as pinturas e seus


Na Igreja da Ordem Terceira de São Francisco, em São Paulo, o altar de 1792 voltou a reluzir após o restauro

restauração. Ele começou a trabalhar com o barroco paulista em 1990, quando restaurou a capela de 1681 de um sítio em São Roque, próximo à capital paulista, doado por Mário de Andrade ao Iphan. “Existem de fato muito mais obras e artistas do que se pensava”, acrescenta, confirmando os alertas de seus professores do curso de artes plásticas na Universidade de São Paulo (USP) em meados da década de 1970. Em 2001, com sua equipe, Moraes restaurou a pintura do teto da capela-mor da Candelária de Itu, para onde voltou em 2014 para cuidar de outras obras. “Esta entrada estava toda pintada de cinza”, diz Tirapeli ao ingressar na igreja da Ordem Terceira de São Francisco, no Largo do São Francisco, capital, construída entre 1676 e 1787. “Tudo estava caindo.” Fechada por muitos anos, a igreja foi em boa parte restaurada com recursos de empresas (Lei Rouanet) e do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat). Quem a visitar pode agora ver as portas de cores vivas e um

altar reluzente, concluído em 1792, com um douramento “sem equivalente em nenhum outro lugar do Brasil”, diz. As paredes da capela-mor exibem 10 pinturas religiosas refinadas da primeira metade do século XVIII, com 2,2 m de altura, até alguns anos atrás cobertas por resíduos que as enegreciam. Segundo ele, essas pinturas foram produzidas em ateliês portugueses e “atestam a influência italiana no barroco brasileiro”, além de indicarem o poder de compra dos religiosos.

D

anielle identificou 56 pintores que trabalharam em igrejas de São Paulo, Itu e Mogi das Cruzes entre 1750 e 1827. Como resultado, o grupo dos artistas paulistas mais conhecidos – Jesuíno do Monte Carmelo e José Patrício da Silva Manso – ganha o reforço de outros, como Lourenço da Costa de Macedo, Antonio dos Santos e Manuel do Sacramento, que pintaram os forros do vestíbulo, da capela-mor e da nave da igreja da Ordem Terceira do Carmo em Mogi das

Cruzes, como detalhado em um artigo publicado em 2016 na revista Caiana, do Centro Argentino de Investigadores de Arte. Danielle identificou também uma rara pintora, Miquelina Constância das Chagas, que fez a douração dos seis altares da igreja da Ordem Terceira de São Francisco, em São Paulo, no século XIX. Se as obras e as trajetórias profissionais dos artistas barrocos estão mais claras, os detalhes pessoais, como as datas de nascimento e morte, ainda são incertos. Em outro estudo do grupo da Unesp, o arquiteto Rafael Schunk resgatou dois artistas pouco conhecidos, o frade português Agostinho da Piedade (1580-1661) e seu aluno Agostinho de Jesus (16001661), que viveram e trabalharam no Vale do Paraíba. Schunk considera Agostinho de Jesus “o primeiro artista brasileiro”. Depois dele é que vieram os outros mais conhecidos do barroco brasileiro, Antônio Francisco Lisboa (1738-1814) – o Aleijadinho – e Manuel da Costa Ataíde (1762-1830), em Minas Gerais, e Valentim da Fonseca e Silva (1745-1813), no Rio de Janeiro. pESQUISA FAPESP 253  z  85


pintada por Costa Ataíde no Colégio do Caraça, em Minas, em 1828. Durante 50 anos, estima-se que o artista italiano tenha produzido 300 altares, como os da matriz de Pindamonhangaba e de uma capela em São Luiz do Paraitinga, ambas em São Paulo, e em uma igreja de Maria da Fé, em Minas, além de cerca de mil esculturas de portes variados. “Mesmo com uma produção em escala industrial, ele se considerava artista e zelava pela qualidade do que produzia com sua equipe”, diz Cristiana. “Seu gosto pessoal e a influência dos mestres italianos prevaleceram em sua obra.”

O A restauradora Ana Cristina Jacinto recupera o São João Evangelista da igreja da Candelária em Itu

A historiadora de arte Maria José Passos, professora da Universidade Cruzeiro do Sul, identificou mais obras barrocas do que esperava ao percorrer 79 igrejas de 47 cidades do estado de São Paulo como parte de seu doutorado, concluído em 2015 na Unesp (ver mapa). Uma dezena de esculturas religiosas com pelo menos 200 anos de idade estava guardada sem identificação em armários, sacristias ou depósitos. Outras se perderam. “A maior parte dos bens móveis não está devidamente catalogada”, ela observou. Maria José ficava intrigada toda vez que via esculturas que destoavam do conjunto, com olhos de vidro, principalmente no Vale do Paraíba, embora ainda fossem barrocas. A pesquisadora da Unesp e restauradora Cristiana Cavaterra tinha a resposta: muitas dessas obras tinham sido feitas pelo artista italiano Marino Del Favero (1864-1943). Favero se mudou para o Brasil aos 28 anos e abriu um ateliê de esculturas sacras e altares no centro da cidade de São Paulo. Ele anunciava seu trabalho em jornais, vendia por catálogo e recebia encomendas de São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, empurrando uma parte do barroco para o começo do século XX. Os historiadores de arte afirmam que o barroco termina formalmente com A última ceia, 86  z  março DE 2017

s trabalhos e descobertas mais recentes indicam que São Paulo produziu menos obras do que estados como Minas, Rio ou Bahia. As paredes das igrejas da capital e do interior paulista eram predominantemente de taipa de pilão, com uma decoração despojada, enquanto nos outros estados eram de pedras e ricamente adornadas. “As paredes brancas contrastam com um altar colorido”, diz Moraes. “Não era possível cobrir tudo de ouro, mas às vezes usavam prata, que vinha da Bolívia, como em Itu.” Como as cidades paulistas – principalmente a capital – cresceram em ritmo mais acelerado a partir do século XIX, a arte barroca destoa da paisagem urbana, no olhar do artista plástico Emanoel Araú-

Na capela-mor da Candelária, altar, teto e paredes foram restaurados (acima), mas o trabalho continua no arco da entrada (página ao lado)


jo, diretor do Museu Afro Brasil, em São Paulo: “São Paulo tem um lado espartano”. Como diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo entre 1992 e 2002, ele promoveu exposições que ampliaram a visibilidade do barroco brasileiro. Em 1998, a mostra O universo mágico do barroco brasileiro, com a curadoria de Araújo, expôs 364 peças de 1640 a 1820 no Centro Cultural Fiesp. Segundo Tirapeli, as exposições e a publicação de livros sobre o barroco (ver Pesquisa FAPESP no 90) nos últimos anos renovaram o interesse dos especilialistas e dos órgãos públicos sobre a necessidade de restauração artísitca das obras de arte da época do Brasil Colônia. Em consequência dessa mobilização, 10 igrejas do estado resgataram as cores e o brilho originais, como a matriz de Itu, as igrejas da Ordem Terceira do Carmo e da de São Francisco, a da Boa Morte e a de

Santo Antônio, na cidade de São Paulo; a da Candelária, em Itu; a basílica antiga de Nossa Senhora da Aparecida, em Aparecida; e a matriz de Jacareí. “Já se perdeu muito, enquanto o barroco paulista era menos valorizado”, diz o historiador da arte Mozart Costa, professor de restauração artística da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e da Universidade Cidade de São Paulo. Cerqueira, do Iphan, leu relatos sobre 45 capelas rurais paulistas do século XVII, procurou-as, mas encontrou apenas duas. “Chegou o momento de investirmos intensamente na restauração de obras artísticas do mesmo modo que o Iphan tem investido na restauração da arquitetura das igrejas há 80 anos”, diz ele. “Há muito ainda por fazer.” Embora o interesse pelo barroco paulista tenha sido revivido, falta investi-

mento. Nas paredes de um corredor da igreja da Ordem Terceira do Carmo estão 19 quadros de Jesuíno do Monte Carmelo quase totalmente cobertos por resíduos pretos. A restauração de cada um custaria cerca de R$ 50 mil e, como não há dinheiro, não há data para começar. n Projeto Autoria das pinturas ilusionistas do estado de São Paulo: São Paulo, Itu e Mogi das Cruzes (no 13/04082-1); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisador responsável Percival Tirapeli (Unesp); Bolsista Danielle Manoel dos Santos Pereira; Investimento R$ 168.710,49.

Artigo científico PEREIRA, D. M. S. Pintura setecentista na igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo em Mogi das Cruzes (SP-Brasil). Caiana – Revista Virtual de Historia del Arte y Cultura Visual. v. 8, n. 1, p. 105-20, 2016.

Livro TIRAPELI, P. Arquitetura e urbanismo no Vale do Paraíba. São Paulo: Editora Unesp/Sesc, 2014. 250 p.

Veja mais imagens sobre o barroco paulista em revistapesquisa.fapesp.br/category/galerias-de-imagens

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História y

Modos de libertação e sobrevivência Mulheres escravas usavam estratégias para conseguir comprar a alforria e trabalhar como libertas Christina Queiroz

N

egar-se a trabalhar, respon­ der para seus senhores e provocar pequenos prejuízos tornaram-se estratagemas de mulheres negras escravizadas para desvalorizar o próprio preço. Valia até pedir proteção a famílias inimigas dos senhores a quem serviam para conseguir a alforria. A Abolição só ocorreu em 1888, mas, após o estabelecimento da Lei do Ventre Livre, em 1871, escravos passaram a ter o direito de comprar a liberdade. Juntar dinheiro para esse fim exigia sacrifícios além da escravidão, como trabalhar durante as raras folgas, além de negociar a parte da remuneração que seria destinada aos seus proprietários. Ao usar essa estratégia, as mulheres eram mais bem-sucedidas do que os homens, principalmente por causa da demanda por serviços domésticos. Uma vez livres, tinham de vencer outros obstáculos tão difíceis quanto os anteriores: arrumar trabalho para conseguir sobreviver, cuidar sozinhas dos filhos e se inserir na sociedade local.

88  z  março DE 2017

Em estudos que tiveram início no mestrado e prosseguiram durante um pósdoutorado na Universidade de Nova York, Estados Unidos, a historiadora Lúcia Helena Oliveira Silva, professora da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (FCL-Unesp), campus de Assis, analisou como as escravas africanas e afro-brasileiras buscavam a liberdade mediante o uso de meios jurídicos. “A partir de um estudo que abrangeu 157 ações que tramitaram no fórum de Campinas, identifiquei que mais da metade dos processos para compra de alforria envolvia mulheres”, diz a pesquisadora, que é vice-coordenadora do Núcleo Negro de Pesquisa e Extensão (Nupe-Unesp). Os escravos que desejassem comprar sua liberdade solicitavam uma audiência com o juiz local para que se estabelecesse o valor a ser pago. Tinham de ser representados por um homem livre porque, perante a lei, não eram considerados pessoas, mas propriedade alheia. Segundo Lúcia Helena, para conseguir o dinheiro determinado à alforria, as escravas trabalha-

Quituteiras no Rio de Janeiro, em 1875: mulheres tinham mais opções de trabalho do que os homens


Marc Ferrez / Coleção Instituto Moreira Salles

vam lavando roupa e como babá, ama de leite, bordadeira e engomadeira, além de vender alimentos na rua que elas mesmas faziam ou cultivavam em pequenas hortas. O mercado doméstico oferecia mais oportunidades às cativas do que aos escravos. Para conseguir a liberdade mais rapidamente, elas adotavam atitudes para baixar o próprio preço, como empreender fugas constantes, relata a pesquisadora. Foi o caso, por exemplo, da escrava Cristina. Levada a contragosto do Rio de Janeiro para Campinas, negava-se

a permanecer na cidade. Mesmo sendo frequentemente espancada, ela não se submetia às ordens do senhor. Este concluiu que fez um mau negócio e se desfez dela, enviando-a de volta ao Rio. “Cristina esteve à beira da morte, mas, no fim, alcançou o que queria”, conta. Outro ardil era se valer das inimizades entre os senhores. Lúcia Helena relata a história de uma cativa no interior de São Paulo que, espancada, fugiu para a casa de uma família inimiga. A família que a acolheu tinha como patriarca um

juiz e, mais tarde, ela conseguiu a alforria com a sua ajuda. “Histórias como essas permitem romper com estereótipos da escrava comportada, que ganhava a carta de alforria do patrão como recompensa”, defende a historiadora. “Ou mesmo com a imagem da revoltada que fugia constantemente e, portanto, estava condenada a ser eternamente escrava.” Uma vez alcançada, a alforria estava longe de resolver os problemas. Ao necessitar da mediação de terceiros para viabilizar a aquisição da liberdade, pESQUISA FAPESP 253  z  89


90  z  março DE 2017

joão goston, ims coleção pedro correa do lago

criavam-se frequentemente relações de dependência, que podiam envolver a prestação de serviços, vínculos sexuais ou pagamentos em dinheiro. No período que vai de 1888 até 1926, uma estratégia de sobrevivência dos libertos de São Paulo era migrar para o Rio. A partir das análises do censo disponível nas atas da Assembleia Legislativa paulista, Lúcia Helena observou que, de 1888 a 1890, o estado de São Paulo tinha o terceiro maior contingente de escravos do Brasil. Porém, em 1892, a população negra tornou-se escassa na região. “As experiências dos libertos e afrodescendentes em São Paulo eram permeadas por expectativas de inserção social e tentativas senhoriais de manutenção da situação sociorracial anterior à Abolição”, afirma. Com a vinda dos imigrantes europeus, o mercado de trabalho se tornou ainda mais difícil porque os empregadores preferiam contratar a população branca. Por outro lado, o Rio funcionava como um espaço de confraternização de escravos e libertos provenientes de todo o Brasil. “O cais do porto e a existência de pequenos trabalhos urbanos feitos pela comunidade negra facilitavam a inserção na sociedade local”, diz. Uma hipótese de Lúcia Helena para esse movimento migratório é que os libertos queriam fugir do estigma da escravidão, marca que costumava ser mais aparente no contexto de municípios menores – São Paulo, em 1900, era uma cidade com cerca de 240 mil habitantes, enquanto a população do Rio tinha 811 mil moradores. A historiadora Isabel Cristina Ferreira dos Reis, professora do Centro de Artes, Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), conta que, ao contrário dos ex-escravizados de São Paulo, os dos engenhos do Recôncavo Baiano, localidade com a maior concentração de trabalho escravo na região, permaneceram próximos aos lugares onde viviam. A razão era o desejo de preservar laços familiares e comunitários. Também no Recife muitas libertas optaram por permanecer na região para não ter sua condição questionada, já que nem todas as cartas de alforria tinham valor oficial e essas mulheres podiam ser perseguidas pela polícia, que as confundiam com escravas fugitivas. “As mulheres se livravam dos estigmas do cativeiro criando estratégias para a garantia de espaços sociais por meio do trabalho, das redes

Mãe e filho em Salvador, em foto de 1884

No Recife, muitas mulheres preferiam ficar na região para não ter sua condição de libertas questionada

de compadrio ou filiando-se às irmandades católicas”, conta a historiadora Valéria Costa, docente do Instituto Federal do Sertão Pernambucano. Ela relata que havia uma circulação intensa de mulheres nas ruas, sobretudo em razão do comércio. Como parte de uma política pública higienista, que via a população negra como potencial causadora de distúrbios, patrulhas municipais proibiam a circulação de escravos e libertos depois das 20 horas no centro do Recife, em especial pelo bairro de Santo Antônio, de grande movimento comercial. No Rio, as libertas vindas de São Paulo mantinham o mesmo ofício de antes de se emancipar. “As quituteiras, por exemplo, tinham grande mobilidade no espaço urbano e preservavam a tradição de preparar comidas populares, como angu, espécie de polenta com pedaços de carne, como no tempo em que eram escravas”, explica Lúcia Helena. A pesquisadora constatou esse processo de migração a


LAGO, Pedro Correa do. Coleção Princesa Isabel: Fotografia do século XIX. Capivara, 2008

Trabalhadoras com os filhos e demais lavradores partem para a colheita de café no sul do estado do Rio, em 1885: maternidade vivenciada de forma dramática

partir da análise de cerca de 300 exemplares de sete periódicos paulistas lidos pela comunidade negra, abrangendo o período que vai de 1886 a 1926. Esses jornais evidenciavam a frustração dos escravos e libertos com a busca de emprego e o reconhecimento como cidadãos. Ela também consultou processos criminais e cíveis do Arquivo Nacional, bem como 310 fichas da Casa de Detenção do Rio, datados de 1888 a 1920. Do total de processos estudados, a pesquisadora observou que 275 envolviam problemas de embriaguez e desordem, sendo que as mulheres negras permaneciam mais tempo encarceradas quando eram presas à noite, em um horário considerado imoral para mulheres. A condição feminina ajudava as alforriadas a conseguir emprego, mas também as expunha à violência. Diferentemente do que ocorria com a maioria das mulheres brancas, as negras – fossem escravas, nascidas livres ou libertas – tinham de enfrentar as ruas, trabalhando para os seus senhores ou pela própria subsistência. “Na Bahia, como no Rio, elas es-

tiveram expostas a todo tipo de assédio e agressões e se defendiam como podiam: gritavam e brigavam e acabavam ganhando má fama”, relata Isabel, da UFRB. Maternidade

Embora as pesquisas mostrem as escravas como mulheres muito menos passivas do que se pensava, Maria Helena Pereira Toledo Machado, professora titular do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), reafirma a precariedade do processo de emancipação baseado no trabalho doméstico. Os patrões exerciam controle sobre a autonomia das libertas, que eram separadas das suas famílias e tinham pouquíssimos dias para descansar. A historiadora mostra que essas mulheres vivenciaram a maternidade de modo dramático, seja como escravas em busca de pecúlio, antes de 1888, ou na condição de libertas. Em suas pesquisas, ela constatou como a guarda dos filhos frequentemente era retirada das libertas, com a justificativa de que elas

não tinham um comportamento moral adequado. Por causa desse tipo de situação, Maria Helena defende que a Abolição deve ser pensada como um processo marcado pelo gênero. “Esse sofrimento, no entanto, não anula a luta dessas mulheres por reinventar suas vidas e mostra como essa luta foi árdua”, conclui. n

Projeto Diásporas negras no pós-Abolição: Libertos e afrodescendentes em São Paulo (1888-1930) (nº 09/14974-1); Modalidade Bolsa de Pesquisa no Exterior; Pesquisadora responsável Lúcia Helena Oliveira da Silva (Unesp); Investimento R$ 15.951,30.

Artigos científicos SILVA, L. H. O. A escravidão dos povos africanos e afro-brasileiros: A luta das mulheres escravizadas. Revista Org & Demo. v. 16, Edição Especial, p. 85-100, 2015. SILVA, L. H. O. Aprendizado da liberdade: Estratégias de mulheres escravizadas na luta pela emancipação. Mnemosine – Revista do Programa de Pós-Graduação em História da UFCG. v. 5, n.1, jan./jun., 2014. P. T. MACHADO, Maria Helena. Corpo gênero e identidade no limiar da Abolição: A história de Benedicta Maria Albina da Ilha ou Ovídia, escrava (Sudeste, 1880). Afro-Ásia n. 42, p. 157-93, 2010.

Livro SILVA, L. H. O. Paulistas e afrodescendentes no Rio de Janeiro pós-Abolição (1888-1926). São Paulo: Humanitas, 2016.

pESQUISA FAPESP 253  z  91


memória

Pioneirismo na saúde da mulher

Inaugurado há 60 anos no Rio de Janeiro, Instituto de Ginecologia aprimorou estratégias de combate ao câncer de colo do útero no Brasil

A

Rodrigo de Oliveira Andrade

1

Arnaldo de Moraes introduziu as primeiras técnicas médicas de controle de tumores cervicais em mulheres 92 | março DE 2017

s mulheres eram presas fáceis do câncer de colo do útero em fins do século XIX no Brasil. Sem acesso a serviços médicos, muitas morriam sem saber do que padeciam ou como se tratar. As cirurgias e os tratamentos paliativos eram então as principais estratégias da medicina brasileira contra a doença. Independentemente da terapia, no entanto, as chances de cura eram ínfimas, restringindo-se aos tumores menores. No início do século XX, frente ao aumento do número de casos, os médicos começaram a dar maior atenção ao problema. Aos poucos, as ações de controle desse tipo de tumor começaram a ser mais bem estruturadas, culminando na criação de instituições de atendimento e controle da doença, entre elas o Instituto de Ginecologia, no Rio de Janeiro. Inaugurado em março de 1947, o instituto foi pioneiro na organização de ações permanentes de combate ao câncer cervical por meio de um modelo específico de diagnóstico que se tornou referência no país. A atenção ao câncer de colo do útero no Brasil até a década de 1930, em geral, concentrava-se nos ambulatórios das faculdades de medicina, como parte do ensino prático da especialidade. Seu diagnóstico era feito por meio de exame ginecológico simples. Nos casos em que a doença se encontrava em estágio avançado, a única opção era recorrer à cirurgia para retirada do útero. A maioria das mulheres não sobrevivia. Também os estigmas que repousavam sobre esse tipo de câncer, não raro, aludiam à ideia de promiscuidade. Desse modo, muitas mulheres evitavam tornar públicas suas mazelas, recorrendo aos médicos somente quando as dores se tornavam insuportáveis. Em 1936 a Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil (hoje Universidade


fotos 1 arquivo da academia nacional de medicina 2 Acervo Museu Histórico da FMUSP – reprodução  eduardo cesar   3 biblioteca da FMUSP – reprodução  eduardo cesar

2

Federal do Rio de Janeiro) decidiu desmembrar a cátedra de clínica cirúrgica, dando origem à cadeira de ginecologia, ocupada pelo médico carioca Arnaldo de Moraes (1893-1961). Moraes havia se especializado na Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, em 1927, com bolsa da Fundação Rockefeller. Em 1930 foi para a Alemanha, onde trabalhou com o ginecologista Hans Hinselmann (1884-1959), criador de uma lupa binocular adaptada para a observação do colo do útero. O aparelho, chamado colposcópio, facilitava o diagnóstico de anomalias celulares na cérvix. Ao voltar para o Brasil, Moraes trouxe o colposcópio, com o objetivo de usá-lo como ferramenta de diagnóstico do câncer de colo do útero ao lado de outras técnicas pouco difundidas fora da Europa e dos Estados Unidos, como o uso do iodo diluído para observação de alterações cervicais e do exame do esfregaço, conforme verificou o historiador da ciência Luiz Antonio Teixeira, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio. Ao iniciar

Desenvolvido por Hans Hinselmann, colposcópio facilitou o diagnóstico de anomalias celulares na cérvix na década de 1940 no país

Criada por Moraes em 1936, publicação ajudou a divulgar os trabalhos em ginecologia da Faculdade de Medicina da então Universidade do Brasil

3

suas atividades na Faculdade de Medicina, Moraes fundou a publicação científica Anais Brasileiros de Ginecologia, que circulou até a década de 1960. No mesmo ano investiu no ensino prático da disciplina e criou uma clínica, instalada no Hospital Estácio de Sá, que pretendia ser uma instituição de ponta capaz de atrair pesquisadores interessados em novas técnicas de diagnóstico do câncer de colo do útero. Em 1942 a clínica foi transferida para o Hospital Moncorvo Filho, onde funciona até hoje. Em 1947 a congregação da universidade lhe concedeu existência legal, passando a se chamar Instituto de Ginecologia. “A criação do instituto representou a institucionalização dos trabalhos em ginecologia já desenvolvidos na clínica dirigida por Moraes”, explica a historiadora da ciência Vanessa Lana, do Departamento de História da Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais, em um artigo publicado na revista História, Ciência, Saúde — Manguinhos. O instituto trabalhava com a ideia de prevenção da moléstia. “Diante dos limites da medicina, a detecção do tumor em fases iniciais aumentava as possibilidades de intervenção terapêutica, como a radioterapia”, explica Vanessa. Desse modo, todas as mulheres que iam ao instituto, com ou sem sintomas de câncer, eram submetidas a exames. A instituição tinha no uso combinado da colposcopia, da citologia e da biópsia o modelo de atuação para a detecção da doença.

“O uso conjugado desses métodos se tornou a marca do instituto e a principal orientação nas ações de controle do câncer de colo do útero no Brasil”, afirma Vanessa. “A combinação sistemática desses métodos aumentou as chances de detecção de lesões cervicais”, completa. Segundo a pesquisadora, em 15 anos, o número de casos identificados precocemente subiu 300% em comparação ao final dos anos 1940, quando Moraes iniciou seus trabalhos na clínica ginecológica. A estratégia permitiu ao instituto aumentar as porcentagens de diagnóstico de tumores em estágio inicial, diminuindo o número de mortes, tornando-se referência para outras instituições de controle da doença, como o Hospital Aristides Maltez (HAM), inaugurado em 1952, em Salvador, pela Liga Baiana de Combate ao Câncer. Em São Paulo, o Departamento de Tocoginecologia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), dirigido pelo médico José Aristodemo Pinotti, iniciou, em 1965, um importante programa de controle do câncer de colo do útero (ver Especial Unicamp 50 anos). Todas as mulheres atendidas eram submetidas ao exame Papanicolau. Mais tarde, quando a demanda por atendimento se tornou insuficiente, começou-se a planejar a construção do que veio a ser o Centro de Controle do Câncer Ginecológico e Mamário, embrião do Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (CAISM), atual Hospital da Mulher José Aristodemo Pinotti. n PESQUISA FAPESP 253 | 93


resenha

A questão racial nas empresas Ivo de Santana

Executivos negros: Racismo e diversidade no mundo empresarial Pedro Jaime Edusp 424 páginas | R$ 40,00

94 | março DE 2017

para compartilhar experiências comuns. Utilizavam estratégias defensivas para se proteger do preconceito e da discriminação no ambiente de trabalho e evitavam conflitos, tendendo a contornar situações explícitas de racismo. A segunda geração de executivos negros ingressou no mercado de trabalho no início do século XXI. O Estado assumia novas posturas frente à questão racial, acenando para a necessidade de criação de políticas de governo para ajudar no combate ao racismo, ao mesmo tempo que cresciam as pressões para o atendimento de antigas demandas do movimento negro. As empresas se viram obrigadas a se adaptar ao novo contexto. Algumas passaram a promover a gestão da diversidade para valorizar a inserção de negros em seus quadros. A pesquisa mostra, então, que esses jovens negros, com 20 e poucos anos, haviam entrado no mercado corporativo no contexto de políticas de diversidade, adotadas por empresas em resposta a pressões dos movimentos sociais negros. Eles participavam de programas de trainee para jovens afrodescendentes e eram preparados para assumir cargos gerenciais nas empresas, ou seja, eram “executivos em construção”, como diz o autor. Diferentemente dos executivos da primeira geração, que constroem isoladamente suas trajetórias, os da segunda geração o fazem a partir de uma ação coletiva e desenvolvem uma percepção positiva da sua identidade negra. Embora as situações de constrangimento racial não cessem completamente, a própria postura adotada é fruto de uma afirmação mais positiva da identidade. Sobra pouco espaço para piadas, humilhações e similares. Para concluir, reafirmamos que, como toda pesquisa, essa oferece respostas importantes para o tema que o autor se propôs a discutir, e também deixa sem respostas questões sobre as quais outros pesquisadores vão se debruçar. Uma dessas questões, que me ocorre enquanto pesquisador da temática e cidadão negro, tem a ver com os riscos de dissolução dessas políticas, as quais ainda não cumpriram os objetivos para que foram criadas. Ivo de Santana é doutor em sociologia pela Ufba e pesquisador no Programa Multidisciplinar de Pesquisa em Relações Étnico-raciais e Estudos Africanos (Ufba).

eduardo cesar

O

livro Executivos negros: Racismo e diversidade no mundo empresarial é uma adaptação da tese de doutorado de Pedro Jaime defendida em 2011 na Universidade de São Paulo e na Université Lumière Lyon 2, na França, simultaneamente. Como diz o título, trata da questão racial nas empresas, bem como da complexa prática da diversidade no universo corporativo, temática ainda pouco explorada na literatura acadêmica. Ao longo do tempo, estatísticas oficiais e publicações que trazem como referência a questão da mobilidade têm dado conta de quão reduzida é a presença dos negros no grupo de dirigentes e gerentes das organizações brasileiras. Trata-se de uma disfunção que ocorre, inclusive, no serviço público, o qual, em face dos critérios de ingresso presumidamente democráticos, exerce forte atração sobre parcela significativa da população negra em busca de emprego. O estudo do antropólogo compara duas gerações de executivos negros em São Paulo. Um dos propósitos do autor consiste em identificar as mudanças que aconteceram na construção das trajetórias desses profissionais entre o final do século XX (a partir da década de 1970) e o início do século XXI. Outro propósito refere-se a discutir as formas com que tais mudanças se relacionam com as transformações no contexto societal – termo utilizado para dar conta da existência das dinâmicas que se desenvolvem em um quadro amplo da sociedade. A primeira geração de executivos negros estudada pelo autor ocupou cargos de gerência e direção e ingressou no mercado de trabalho no final dos anos 1970, quando a ditadura militar reprimia os movimentos sociais. O racismo era considerado uma simples contravenção penal, o que contribuía para aumentar as possibilidades de sua manifestação no cotidiano das pessoas. Trata-se de um contexto desfavorável à própria afirmação de si mesmos como negros e também à construção de suas trajetórias como executivos. Esses profissionais tinham em torno de 50 anos e certa tendência à negação da existência e dos efeitos do racismo, inclusive sobre eles mesmos, embora já tivessem vivenciado várias situações dessas. Percebiam-se solitários, sem pares raciais


carreiras

formação profissional

Uma engenharia mais ampla

ilustrações zansky

Novo curso da Poli-USP pretende formar engenheiros especializados na resolução de problemas de grande amplitude a partir de abordagens multidisciplinares A Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) planeja lançar um novo curso chamado engenharia da complexidade. Por ora aprovado pela Congregação, órgão consultivo e deliberativo da faculdade, o curso está sendo estruturado com pesquisadores do Groupe des Écoles Centrales, formado por cinco das principais escolas de engenharia da França, e deve ter um caráter mais amplo que os outros cursos oferecidos pela Poli. “A ideia é que o engenheiro da complexidade desenvolva estratégias voltadas à concepção de novos produtos, processos produtivos e atividades de inovação e de pesquisa a partir de abordagens multidisciplinares”, explica Laerte Idal Sznelwar, do Departamento de Engenharia de Produção da Poli e coordenador

da equipe responsável pela concepção do curso, que ainda precisa ser aprovado pelo Conselho Universitário da USP, órgão colegiado de maior poder dentro da instituição. Como as demais engenharias, a engenharia da complexidade da Poli terá como base as ciências físicas e matemáticas. No entanto, a constituição de sua grade também deverá permitir a integração de conceitos de outras áreas do conhecimento, as quais, segundo Sznelwar, devem ser levadas em conta pelo engenheiro em sua atividade profissional. “Cada vez mais esses profissionais vão se deparar com situações que exigirão soluções fundamentadas em conhecimentos que eles nem sempre dominam”, diz o engenheiro naval Bernardo

Andrade, do Departamento de Engenharia Naval e Oceânica da Poli e membro da comissão executiva responsável pelo projeto do novo curso. “Nossa proposta é investir na formação de engenheiros capazes de combinar conhecimentos diversos para desenvolver soluções mais integradas para problemas de grande amplitude.” O curso de engenharia da complexidade deverá ser oferecido no campus da Poli na Baixada Santista, no litoral paulista, próximo ao porto e ao complexo industrial de Cubatão. Pretende-se, com isso, aproximar os estudantes e os professores dos desafios das empresas daquela região. Os alunos deverão desenvolver projetos, de modo a aplicar o conhecimento adquirido ao longo do curso na PESQUISA FAPESP 253 | 95


Total de cursos de engenharia entre 2000 e 2014 3.396

3500

3.058

3000

2.810 2.511

2500

2.231 2000

1.919

1500

1000

697

755

818

872

963

1.046

1.162

1.294

1.501

20 14

20 13

20 12

20 11

20 10

20 09

20 08

20 07

20 06

20 05

20 04

20 03

20 02

20 01

20 00

500

fonte relatório engenhariadata 2015 Formação e mercado de trabalho em engenharia no brasil

resolução de problemas e na concepção de projetos em áreas como planejamento e integração de ações de mobilidade urbana, recuperação e preservação ambiental, desenvolvimento de centros de inovação tecnológica e processos de exploração dos recursos do mar. Carreira em expansão

As engenharias se consolidaram como uma das carreiras mais atrativas nos últimos anos no Brasil. Em 2000, o número de profissionais formados no país foi de quase 18 mil; em 2014, esse número saltou para quase 68 mil, de acordo com o Censo da Educação Superior do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais do Ministério da Educação (MEC). Apesar do aumento expressivo, quando comparado com outros países, nota-se que o Brasil ainda enfrenta um déficit em relação à formação desses profissionais. Segundo dados do Instituto de Estatística da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), a Rússia foi o país que mais formou engenheiros em 2015, com 454.436 profissionais. Os Estados Unidos ficaram em segundo lugar, com 237.826, e o Irã, em terceiro, com 233.695. A Coreia do Sul, quinto lugar no ranking, apresenta números impressionantes em relação à formação de engenheiros. Nos anos 1980, o país reestruturou 96 | março DE 2017

seu sistema educacional de modo a estimular a formação desses profissionais. Em 2015, o país formou 147.858 engenheiros. No Brasil, os cursos de engenharia ainda precisam lidar com o alto índice de evasão. Em 2013 ele foi de 28% nos cursos privados, bem acima dos 10% registrados no âmbito do ensino público no mesmo período, segundo relatório do Observatório da Inovação e Competitividade (OIC) da USP. “Não sabemos as causas que levam os alunos ao abandono porque não há estudos investigando o fenômeno a fundo”, explica o professor Mario Sergio Salerno, coordenador do Laboratório de Gestão da Inovação da Poli e um dos autores do estudo. Uma avaliação possível envolve o modo como os cursos estão estruturados. “Muitos são integrais e exigem boas noções do aluno em disciplinas como matemática e física, essenciais para a formação de um bom engenheiro”, explica Salerno. “No entanto, muitas vezes o estudante precisa trabalhar e não consegue conciliar suas atividades com as obrigações do curso.” No caso das universidades privadas, além do curso de engenharia ser caro, muitos alunos ingressam sem ter um bom conhecimento de disciplinas importantes para a área. “Diante das dificuldades crescentes, muitos abandonam a faculdade”, diz o engenheiro.

Outro aspecto observado por Salerno diz respeito à relação entre a procura pelos cursos de engenharia e o ritmo de atividade econômica no Brasil. Segundo ele, isso se dá porque a engenharia costuma ser sensível à conjuntura dos investimentos realizados na economia. O estudo do OIC indica que entre 2009 e 2010 houve um crescimento de 19% no número de ingressantes em cursos de engenharia no Brasil. Em 2011 o crescimento foi de 26% em relação a 2010. O período entre 2011 e 2012 registrou o maior percentual de crescimento de novos ingressantes, 31%. Os cursos de maior procura foram os de engenharia civil e engenharia de produção. No ano 2000, 5.220 indivíduos se formaram em engenharia civil, e 344, em engenharia de produção. Mais de uma década depois, em


10% dos cerca de 150 mil engenheiros contratados e, em 2013, 15% do total. Os empregos no campo das engenharias tendem a se recuperar mais rapidamente após períodos de desaceleração econômica, voltando a crescer com maior velocidade do que outras categorias, segundo o engenheiro eletrônico e economista Carlos Américo Pacheco, ex-reitor do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e atual diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo da FAPESP. “O desafio agora é garantir uma melhor perspectiva de trabalho para os engenheiros, de modo que o mercado seja capaz

2013, 13.619 pessoas se formaram em engenharia civil, e 12.181, em engenharia de produção. Em relação ao mercado de trabalho, o relatório verificou um aumento sistemático de contratações de engenheiros no Brasil nas últimas três décadas. Em 1985 havia 156.584 engenheiros empregados. Em 2013 esse número subiu para 272.110. Os picos de contratação de engenheiros se deram em dois períodos, 2007-2008 e 2009-2010. Apesar da predominância dos engenheiros civis (cerca de 30%), observou-se um crescimento no número de contratação também de engenheiros de produção. Em 2003, esses profissionais representavam

Proporção de engenheiros formados em 2013 no mundo por bilhão de dólar do PIB* Polônia

108,07

Eslováquia

104,86

Portugal

97,74

Coreia do Sul

94,91

México

84,37

Finlândia

84,00

República Tcheca

65,29

Hungria

52,92

Islândia

49,00

Suécia

47,24

Espanha

44,66

Reino Unido

36,74

Nova Zelândia

35,55

Alemanha

35,37

Dinamarca

35,13

Turquia

34,10

Itália

33,04

Bélgica

32,62

Grécia

32,13

Japão

26,93

Irlanda

26,35

Áustria

24,20

Suíça

23,59

Holanda Canadá Noruega

23,34 21,84 18,87

Brasil

18,17

Estados Unidos

17,46

* Dados obtidos por meio da divisão da proporção de engenheiros formados em 2013 para cada 10 mil habitantes (OIC-USP) pelo produto interno bruto (PIB) baseado no ppp$** (FMI) a partir da população total de cada país (onu). ** purchasing power parities (paridade de poder de compra): valores da conversão de câmbio que equalizam o poder de compra de diferentes moedas, compensando diferenças de preços médios entre países.

de absorver os profissionais que se formam no país”, comenta. As discussões associadas ao perfil desses profissionais, à melhoria da qualidade do ensino e ao preparo dos estudantes para o mercado de trabalho têm sido constantes entre professores e pesquisadores da área. “Não estamos formando o tipo de engenheiro de que o Brasil precisa”, afirma o engenheiro eletrônico Edson Watanabe, diretor do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe-UFRJ). Ele se refere a engenheiros capazes de desenvolver soluções inovadoras em área distintas, criando novas tecnologias para produtos e processos, gerindo a inovação em empresas de diversas áreas, inovando e empreendendo. “Aquela fase do engenheiro superespecializado está acabando”, avalia o engenheiro eletricista João Zuffo, professor aposentado da Poli (ver seção Entrevista, página 26). “Ele tem que se aprofundar rapidamente em uma área, ter uma boa base de matemática, de física e uma formação mais humanística. O mundo de amanhã não vai ter lugar para um profissional puramente técnico. Tem que ter uma educação com flexibilidade para poder se adaptar às mudanças”, completa. Segundo o engenheiro metalúrgico Ericksson Rocha e Almendra, ex-diretor da Escola Politécnica da UFRJ, a ideia de interdisciplinaridade não pode mais ser desassociada do processo de desenvolvimento da ciência, sendo necessário estimulá-la também entre as engenharias. “É impensável hoje um engenheiro ambiental não trabalhar com sociólogos em grandes obras em áreas florestais envolvendo a desapropriação de moradores da região”, afirma. Uma estratégia nesse sentido, segundo Pacheco, é investir em inovações pedagógicas. “É importante também ficar atento às experiências de fora do Brasil e investir na internacionalização das escolas brasileiras”, afirma. n Rodrigo Oliveira de Andrade PESQUISA FAPESP 253 | 97


Lei oferece incentivos para a inovação

98 | março DE 2017

Mãos sujas de óleo Veterinária Valeria Ruoppolo abre empresa especializada em resgate e reabilitação de fauna afetada por vazamentos de petróleo

IFAW / J. Holcomb

As empresas brasileiras produtoras de bens de informática que investem em pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I) têm até 31 de março para se beneficiar de incentivos fiscais previstos na Lei de Informática. Elas devem submeter um pleito ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações (MCTIC), que analisará as propostas. O documento deve apresentar informações referentes aos produtos para os quais o incentivo está sendo solicitado, detalhes do projeto de pesquisa que se pretende conduzir como compensação e informações gerais sobre a empresa. Sancionada em outubro de 1991, a Lei de Informática oferece redução da alíquota do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para bens como hardwares e componentes eletrônicos até 2029. Em contrapartida, as empresas devem investir o equivalente a 4% do faturamento anual das mercadorias beneficiadas em PD&I, descontados os impostos de comercialização. As empresas que não têm uma linha de PD&I própria podem investir o incentivo por meio de institutos privados que fazem pesquisa por encomenda. No estado de São Paulo existem 18 institutos desse tipo (ver Pesquisa FAPESP nº 248). Há também possibilidade de parcerias com centros que possuam convênios com a Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii), como o Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (Cesar), em Pernambuco, e os Centros de Referência em Tecnologias Inovadoras (Certi), de Santa Catarina. Mais informações em bit.ly/LeInfo. R.O.A.

perfil

Em 1994, após concluir a graduação em medicina veterinária na Universidade Paulista (Unip), em São Paulo, Valeria Ruoppolo se mudou para a Argentina, onde trabalhou com reabilitação de aves e mamíferos marinhos em uma organização não governamental chamada Fundación Mundo Marino. A experiência foi de grande ajuda quando ela voltou para o Brasil. Em 2000, Valeria iniciou seu mestrado na Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (FMVZ-USP) para estudar as principais causas de morte de mamíferos aquáticos, como baleias. Entre janeiro e março de 2000, mesmo ano em que ingressou no mestrado, Valeria participou do resgate de centenas de aves na Baía de Guanabara, em decorrência do rompimento de um oleoduto que liga a refinaria Duque de Caxias, da Petrobras, ao terminal da Ilha D’Água. O vazamento de mais de 1 milhão de litros de óleo se espalhou por cerca de 40 quilômetros quadrados (km²). “Foi minha primeira grande emergência ambiental”, lembra. Logo em seguida, ela foi convidada para ir aos Estados Unidos apresentar o trabalho de resgate desenvolvido na Baía de Guanabara. Lá, conheceu outros pesquisadores, que a convidaram para participar de operações de resgate de animais em várias regiões do mundo. Valeria tornou-se uma profissional no resgate de animais marinhos atingidos por derramamento de óleo, atuando em países como Espanha, Noruega e África do Sul, onde, em

junho de 2000, um vazamento afetou milhares de pinguins-africanos (Spheniscus demersus) na Cidade do Cabo. Todas essas atividades a fizeram terminar o mestrado em 2003. Depois, ela continuou a trabalhar em áreas acometidas por desastres ambientais. Em 2008, uma resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) passou a exigir das empresas responsáveis por instalações portuárias, plataformas, dutos e refinarias um planejamento preventivo para o resgate de animais em caso de acidente. A veterinária viu na decisão uma oportunidade de negócio e, em 2010, com mais três sócios, fundou a Aiuká, empresa de consultoria especializada na elaboração de estratégias de contingenciamento para acidentes ambientais. “Fazemos levantamentos das espécies que podem ser afetadas por derrames e planos com as primeiras providências em caso de emergência”, explica. Esse planejamento faz parte do processo de licenciamento de empresas no Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). “Sem esse plano preventivo elas não podem seguir em frente com suas atividades.” A Aiuká tem sede em Praia Grande, litoral paulista, e uma filial em Rio das Ostras, no Rio de Janeiro. Conta hoje com 20 profissionais, entre eles biólogos, veterinários e oceanógrafos. A partir de 2012, ela teve de conciliar os trabalhos na empresa com o doutorado, também na FMVZ-USP, concluído no ano passado. A ideia era estudar os efeitos do óleo nos pinguins-de-magalhães (Spheniscus Magellanicus) na reabilitação, “mas não houve registros de pinguins atingidos por óleo no período”, conta. Ela mudou o projeto e pesquisou os efeitos da troca de penas no sistema imunológico dessa espécie. n R.O.A.


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