Pesquisa FAPESP fevereiro de 2018
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fe v er ei
4 19 , n . 26 18 | A n o ro d e 20
e d a d l a u g i z e d il nos de 70 m lu a e d s e õ ilh o com 23 m it fe rsalização o e d u iv t s n E u e u q tra ileiras mos s a r b panhada s m la o o c c a i es fo l enta
Ano 19 n.264
undam do ensino f es na d a id r a p is to de d por aumen em aprendizag
Dose fracionada da vacina contra a febre amarela protege, mas não se sabe por quanto tempo
Projeto expõe o impacto das mudanças tecnológicas no futuro da indústria nacional
Físicos brasileiros explicam a origem de um anel peculiar ao redor de Saturno
Startups investem em novos testes para diagnóstico de câncer
Direitos da população LGBT foram conquistados via Poder Judiciário
O que a ciência brasileira produz você encontra aqui
12 ediçõe s por R$ 10 0
Co ndições espe ciais para estu dantes e pr of es so res
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fotolab
A beleza do conhecimento em imagens
Sua pesquisa rende fotos bonitas? Mande para imagempesquisa@fapesp.br Seu trabalho poderá ser publicado na revista.
Com flores ou folhas Quando procurava pelas plantas conhecidas como calunga em Minas Gerais, o biólogo Marcelo Devecchi encontrou dois habitantes locais, próximo a Belo Horizonte, carregando amostras. A planta, amarga, era destinada a uso medicinal. O então estudante de doutorado na Universidade de São Paulo seguiu as indicações e encontrou conjuntos de flores crescendo direto no chão, além de plantas apenas com folhas. Com experiência nesse grupo vegetal, percebeu tratar-se de uma única espécie, ainda não descrita e restrita àquela área de sedimento ferrífero. Pela raridade, Homalolepis planaltina é considerada ameaçada desde a sua descoberta.
Fotografias enviadas por Marcelo Devecchi, obtidas durante doutorado na USP
PESQUISA FAPESP 264 | 3
fevereiro 264
64 Astrofísica Modelo propõe explicação para existência de anel tênue ao redor de Saturno CAPA Ampliação do acesso à educação básica foi acompanhada pelo aumento das diferenças na aprendizagem p. 18 Foto da capa Léo ramos chaves
POLÍTICA DE C&T
CIÊNCIA
30 Cenários Projeto mapeia impacto de tecnologias emergentes na competitividade da indústria
46 Saúde pública Vacina fracionada contra febre amarela protege, mas não se sabe por quanto tempo
36 Ambiente Estudo avalia a produção científica sobre catástrofes naturais no mundo
52 Neurologia Circuito associado à recompensa pode indicar risco maior de adolescente desenvolver depressão
40 Cientometria Ranking revela artigos que chamaram a atenção dos leitores nas mídias sociais 43 Alumni Universidades usam plataformas para acompanhar trajetória de ex-alunos
67 Via Láctea canibalizou 11 galáxias vizinhas
55 Zoologia Aranhas Sicarius vivem na Caatinga e em desertos da América do Sul 56 Ecologia Perda de mais de 60% da vegetação nativa altera funcionamento de floresta 61 Dois terços dos peixes da costa brasileira são de pequeno porte 62 Física Partícula fria transfere calor para a quente e inverte seta termodinâmica do tempo
ENTREVISTA Peter Pearson Especialista em cromossomos, geneticista propõe melhorias para universidades brasileiras p. 24
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SEÇÕES
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3 Fotolab 6 Comentários 7 Carta da editora TECNOLOGIA 68 Pecuária Raças formadas no Brasil têm características que podem ser úteis aos criadores 77 Oncologia Startups utilizam novos métodos de rastreamento e técnicas de biotecnologia HUMANIDADES 80 Arqueologia Evidências indicam que havia populações humanas em todo o território nacional há 10 mil anos 86 Legislação Direitos da população LGBT começam a ser respeitados a partir de decisões do Poder Judiciário
8 Boas práticas Notícias publicadas em site fornecem panorama de retratação de papers no mundo 11 Dados Titulação e regime de trabalho de docentes do ensino superior 12 Notas 72 Pesquisa empresarial CTC investe em biotecnologia para elevar produtividade dos canaviais 90 Memória Criado há 100 anos, Laboratório de Higiene deu origem à Faculdade de Saúde Pública da USP 94 Carreiras Pós-graduandos devem desenvolver habilidades também para o mercado não acadêmico
Pesquisa busca ajudar a entender melhor as alterações causadas no cérebro de crianças diagnosticadas com autismo bit.ly/vAutismo Estudo com plantas carnívoras aquáticas indica que o gênero Utricularia teve origem no Brasil, há 39 milhões de anos bit.ly/vCarnivoras
Galerias de imagens
Os contrastes de São Paulo se destacam no ensaio fotográfico de Léo Ramos Chaves bit.ly/gCa262a
As fotos de Eduardo Cesar registram o trabalho de pesquisadores para tentar conter a disseminação da febre amarela entre os primatas silvestres em São Paulo bit.ly/galBugios
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6 | fevereiro DE 2018
Febre amarela
Tem gente atacando os macacos acreditando equivocadamente que eles são os transmissores da febre amarela (“O alarme dos macacos”, edição 263). Na verdade, são apenas os primeiros a serem atingidos e suas mortes nos alertam sobre as áreas de risco.
Pode ser ele o causador dessas anomalias. Luciano Skiter Delmondes
A vida acadêmica, em geral, produz essas moléstias. Ao contrário do que se pensa, é um ambiente altamente competitivo e solitário. Tessa Reddington
Dulci Lima
Redação científica
Parabéns à Pesquisa FAPESP pela publicação da reportagem “Táticas para elevar o impacto” (edição 263) e aos editores das revistas científicas brasileiras não só pela coragem para diminuir o prazo de avaliação, mas também por aumentar o rigor. O crescimento do número de papers rejeitados é um dos preços a serem pagos pela adoção de estratégias para aumentar a seletividade na revisão. A esse propósito, há dois equívocos frequentes em manuscritos acadêmicos destinados à publicação: (1) redação correta de textos contendo termos científicos não é o mesmo que redação científica; (2) um tradutor nativo pode não ser capaz de traduzir adequadamente um texto de comunicação científica se a sua experiência está restrita a textos de divulgação científica. O ideal é que manuscritos científicos sejam redigidos no estilo de redação científica. Paulo Boschcov
Pressão na universidade
É problemático que ainda tratemos das doenças sem repensar o sistema educacional (“Distúrbios na academia”, edição 262).
Vídeos
Financiamento coletivo de pesquisa: a sociedade apoiando o desenvolvimento científico, que, por sua vez, retorna como benefício à sociedade (“Crowdfunding: apoio multiplicado”).
Marcia P. Alves Mayer
Muito bom, eu mesma já contribuí com alguns desses financiamentos coletivos, por apoio à ciência. Nem tenho ligação com o meio acadêmico. Lola Vita
Como é lindo ver a pesquisa e o conhecimento serem voltados ao bem comum (“Mais uma possível causa do autismo”). Vera Capucho
Acesso aberto
Ao menos uma estatística para nos orgulhar (“Brasil é o país com mais publicação científica em acesso aberto”, edição on-line).
Alex Platão
Sua opinião é bem-vinda. As mensagens poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.
Mais lida no mês de janeiro no Facebook carreiras
Distúrbios na academia bit.ly/car262a
36.174 pessoas alcançadas 1.072 reações 78 comentários 188 compartilhamentos
pedro franz
Reportagem on-line
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
carta da editora
José Goldemberg Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior Carmino Antonio de Souza, Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, João Fernando Gomes de Oliveira, joão grandino rodas, José Goldemberg, Marilza Vieira Cunha Rudge, José de Souza Martins, Pedro Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski, Suely Vilela Sampaio, Vanderlan da Silva Bolzani
Universal e desigual
Conselho Técnico-Administrativo Carlos américo pacheco Diretor-presidente
Alexandra Ozorio de Almeida |
diretora de redação
Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico fernando menezes de almeida Diretor administrativo
issn 1519-8774
Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Anamaria Aranha Camargo, Ana Maria Fonseca Almeida, Carlos Américo Pacheco, Carlos Eduardo Negrão, Fabio Kon, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Francisco Rafael Martins Laurindo, José Goldemberg, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Lucio Angnes, Luiz Nunes de Oliveira, Marie-Anne Van Sluys, Maria Julia Manso Alves, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner Caradori do Amaral, Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos diretora de redação Alexandra Ozorio de Almeida editor-chefe Neldson Marcolin Editores Fabrício Marques (Política de C&T), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Marcos Pivetta (Ciência), Carlos Fioravanti e Ricardo Zorzetto (Editores especiais), Maria Guimarães (Site), Bruno de Pierro (Editor-assistente) repórteres Yuri Vasconcelos e Rodrigo de Oliveira Andrade redatores Jayne Oliveira (Site) e Renata Oliveira do Prado (Mídias Sociais) arte Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos (Editora de infografia), Júlia Cherem Rodrigues e Maria Cecilia Felli (Assistentes) fotógrafos Eduardo Cesar e Léo Ramos Chaves banco de imagens Valter Rodrigues Rádio Sarah Caravieri (Produção do programa Pesquisa Brasil) revisão Alexandre Oliveira e Margô Negro Colaboradores Ana Matsusaki, Augusto Zambonatto, Christina Queiroz, Domingos Zaparolli, Fabio Otubo, Nelson Provazi, Sandro Castelli, Victoria Flório Revisão técnica Adriana Beneti Marques Valio, Augusto Shinya Abe, Francisco Laurindo, Luiz Augusto Toledo Machado, Luiz Nunes de Oliveira, Maria Beatriz Borba Florenzano, Plinio Barbosa de Camargo, Sérgio Robles Reis Queiroz, Walter Colli É proibida a reprodução total ou parcial de textos, fotos, ilustrações e infográficos sem prévia autorização Tiragem 27.400 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA FUSP – FUNDAÇÃO DE APOIO À UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo
A
Pnad Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: Educação) de 2016, divulgada em dezembro passado, trouxe uma boa notícia: o ensino fundamental no Brasil, do 1º ao 9º ano, pode ser considerado universal, com 99,2% das crianças matriculadas na escola. Já no ensino médio a taxa cai para 87,9%. Garantir o acesso é um passo importante, mas ainda falta chão até que a educação sendo oferecida permita que as crianças cheguem ao ensino médio na idade certa e com um desempenho que alcance os níveis de aprendizagem desejados. A reportagem de capa desta edição trata de um fenômeno associado à ampliação do acesso: crescentes diferenças nos níveis de aprendizagem (página 18). Estudos do Núcleo de Pesquisa em Desigualdades Escolares (Nupede) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mostram que a desigualdade antes presente no acesso à escola agora se manifesta dentro dela: crianças da mesma idade podem apresentar diferença de até três anos de escolarização. Essa desigualdade está, segundo os estudos, associada a outras: alunos com mais de uma característica relacionada à exclusão social apresentam pior desempenho. Foram usados critérios como escolaridade e ocupação dos pais, renda familiar, raça e gênero. O domínio rudimentar da leitura e da matemática, como mostram estudos baseados no desempenho das crianças na Prova Brasil, leva à formação de cidadãos com deficiências que lhes acompanharão por toda vida, além de constituir uma barreira para o acesso ao ensino médio e superior. A falta de outro tipo de educação, no caso a fluência em inglês, é vista pelo geneticista britânico Peter Pearson como uma deficiência marcante entre os alunos
de pós-graduação brasileiros. Em entrevista à Pesquisa FAPESP, o pesquisador, que participou do Projeto Genoma Humano nos Estados Unidos e foi professor em universidades como Oxford (Reino Unido), Utrecht e Leiden (ambas na Holanda), defendeu que a disseminação do uso do inglês terá impacto na capacidade de publicar artigos de qualidade e de conseguir financiamento para a pesquisa (página 24). ** O medo de contrair febre amarela, doença que foi tema principal da edição anterior desta revista, causou filas gigantescas nos postos de saúde paulistas no último mês. Dúvidas circularam sobre a eficácia da vacina fracionada. Com o objetivo de contribuir para a discussão, Pesquisa FAPESP procurou mostrar quais as bases científicas por trás do fracionamento (página 46). Há estudos que respaldam o uso da vacina fracionada como forma de proteção contra o vírus, mas não há ainda certeza sobre a duração desse efeito, ficando em aberto a questão sobre a necessidade de doses de reforço. Outras leituras interessantes desta edição incluem uma reportagem sobre a chamada inversão da seta do tempo, com um objeto frio cedendo calor para um quente, contrariando, aparentemente, as leis da termodinâmica (página 62); a caracterização de um novo anel de Saturno, visível apenas sob condições especiais (página 64); e estrelas de outras galáxias canibalizadas pela Via Láctea (página 67). A judicialização da vida brasileira, dessa vez na esfera dos direitos da população de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros, é objeto de reportagem à página 86, que mostra que os direitos adquiridos por esses grupos no Brasil provêm de decisões do Judiciário, e não do Legislativo. PESQUISA FAPESP 264 | 7
Boas práticas O peso da má conduta
376
Total de artigos retratados entre 2013 e 2015 e a proporção dos casos motivados por plágio, fraudes e falsificações 283 255
n Total de retratações n Retratações por má conduta
101
96 82
75
66
66
61
55
55 41
46
50
49
25 12
11 Estados Unidos
China
Japão
Índia
Taiwan
Irã
Itália
Holanda Alemanha
44 13
Coreia do Sul
22
Reino Unido
27
27 10
Austrália
15
França
Radiografia das retratações no mundo Estudo utiliza acervo de notícias publicadas no site Retraction Watch para traçar um panorama dos deslizes éticos em publicações científicas
Lançado em 2010 pelos jornalistas norte-americanos especializados em ciência Adam Marcus e Ivan Oransky, o site Retraction Watch (www.retractionwatch.com) tornou-se uma fonte de informação sobre a ocorrência de casos de má conduta científica no mundo. Sua especialidade são as retratações de artigos científicos, ou seja, o cancelamento de papers após a publicação devido à descoberta de fraudes ou erros. A novidade é que o acervo de informações do site começa a abastecer estudos sobre a correção da literatura científica. Um artigo publicado em janeiro na revista Scientometrics analisou 1.623 retratações divulgadas entre 2013 e 2015 com base em parâmetros como país de origem, área do conhecimento e causa da retratação. O trabalho foi coordenado por Sonia Vasconcelos, pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em coautoria 8 | fevereiro DE 2018
com sua aluna de mestrado Mariana Ribeiro no Programa de Educação, Gestão e Difusão em Biociências do Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis. Observou-se que as retratações divulgadas no site estavam distribuídas por 71 países, mas a análise teve como foco as 15 nações responsáveis pela maior parte (85%) dos casos (ver quadro acima). Em comum, são países bastante produtivos em termos de publicações científicas. O Brasil não figura nessa lista, apesar de em 2015 ter ficado em 13º lugar no ranking das nações com maior número de artigos indexados na base de dados SCImago Journal & Country Rank. Segundo Sonia Vasconcelos, a ausência do país provavelmente se deve ao fato de a quantidade de artigos brasileiros no PubMed, banco de dados com a literatura da área biomédica, ser mais baixa que a de outros países.
26
19
Canadá
25 8 Espanha
ilustração nelson provazi
A pesquisa mostra que as ciências biomédicas, médicas e clínicas responderam por mais de 60% do total de retratações entre 2013 e 2015. As chamadas ciências duras, como a física, representaram 17% das retratações; áreas multidisciplinares, 12%, e ciências humanas e sociais, 8%. Sonia chama a atenção para o fato de que o Retraction Watch tende a publicar mais notícias sobre casos nas ciências biomédicas pela maior familiaridade dos criadores do site com essas áreas. “Também não podemos ignorar que, historicamente, as áreas biomédicas vêm sendo as mais ativas no âmbito das ações em integridade científica e ética em pesquisa”, diz. As ciências humanas e sociais tiveram uma quantidade de retratações (118) menor que a de outros campos. Mas 58% delas se referiram a casos de má conduta científica, uma proporção superior à observada nas demais disciplinas. Segundo Sonia Vasconcelos, isso pode ser parcialmente explicado pela existência de pesquisadores de ciências humanas e sociais reincidentes, cada um deles com vários artigos retratados por deslizes éticos. Cada paper retratado discutido no Retraction Watch foi creditado a apenas um país, aquele a que pertence o autor correspondente, em geral responsável pelo conjunto dos resultados. Juntos, Estados Unidos e China representaram cerca de 41% do total de retratações, com 376 e 283 artigos cancelados, respectivamente. Os Estados Unidos também tiveram o maior número de retratações por má conduta (225), seguidos por Japão (75) e Índia (61). Um caso peculiar foi observado no Japão: apenas dois autores, o endocrinologista Shigeaki Kato, ex-pesquisador da Universidade de Tóquio, e o cirurgião Yoshitaka Fujii, da Universidade de Toho, foram responsáveis por 28 e 20 retratações, respectivamente – isso representa 48% de todos os casos japoneses no período analisado. Sonia observa que o Retraction Watch exibe apenas uma fração das retratações, aquelas relacionadas a periódicos de maior prestígio, indexados em bancos de dados internacionais. Para ampliar seu alcance, o site criou no ano passado um banco de dados abrangente,
Cancelamentos por área do conhecimento 933
Número de retratações por má conduta em cada campo entre 2013 e 2015
n Total de retratações n Retratações por má conduta
435
251 183 118 57 Ciências biomédicas, médicas e clínicas
Ciências duras
com uma cobertura mais ampla que a oferecida pelo acervo de notícias. “Essa base ajudará a ampliar a compreensão sobre o cenário de correção da literatura científica e permitirá um aprofundamento das considerações que fizemos no artigo publicado em janeiro”, afirma Sonia. Em nota publicada em agosto de 2017, a equipe do Retraction Watch informou que o banco de dados já havia catalogado aproximadamente 8 mil retratações. Estima-se que esse número chegue a 15 mil nos próximos meses. práticas questionáveis
No estudo publicado na Scientometrics, as autoras identificaram que 47% das retratações foram causadas por formas mais graves de má conduta científica, como fraudes e manipulação de dados. Já erros em que não há indícios de má-fé dos autores foram responsáveis por 11% dos cancelamentos. Também houve registro de práticas questionáveis que nem sempre caracterizam má conduta. “Mas algumas delas colocam em risco a confiabilidade do artigo, como, por exemplo, distorções na atribuição de autoria e conflitos de interesse não declarados”, explica Mariana Ribeiro. As autoras alertam que os resultados podem ter vieses. “A predominância de casos de má conduta pode significar que
68
Ciências humanas e sociais
81
Multidisciplinares
o Retraction Watch discute muito mais episódios motivados por falhas graves ou intencionais, porque isso atrai maior atenção dos leitores”, explica Sonia. Mesmo assim, diz ela, o estudo reflete um cenário já indicado em trabalhos anteriores. Outro estudo, publicado na Scientometrics em 2013, mostrou que a porcentagem de todas as retratações envolvendo alegações de má conduta cresceu de 55%, do total em 2007, para 71%, em 2010. Embora o Brasil não tenha sido contemplado na análise, em um estudo publicado em 2016 na revista Science and Engineering Ethics, Sonia e outros autores mostraram que houve crescimento no número de casos de má conduta científica detectados envolvendo autores brasileiros nos últimos anos (ver Pesquisa FAPESP nº 240). O trabalho analisou mais de 2 mil papers indexados na biblioteca virtual brasileira SciELO e na base de dados latino-americana de informações em ciências da saúde (Lilacs) entre 2009 e 2014. Ele indicou que as retratações estão em ascensão nas duas bases de dados: entre 2004 e 2009, foram identificadas de uma a duas retratações por ano; já entre 2011 e 2012, a média subiu para sete. O plágio foi a principal razão para as retratações dos artigos brasileiros, sendo responsável por 46% do total. PESQUISA FAPESP 264 | 9
O espectro da eugenia na universidade
10 | fevereiro DE 2018
superiores a outros, com base em princípios da hereditariedade”, explica a psicanalista Tamara Prior, que concluiu em 2016 um mestrado sobre o tema na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP). Segundo ela, a eugenia ganhou espaço nos meios científico e intelectual no final do século XIX, após o antropólogo e matemático inglês Francis Galton (1822-1911) cunhar o termo em 1883, em uma obra que propunha métodos de seleção artificial. Perdeu adeptos durante as primeiras décadas do século XX – mas não deixou de exercer influência em muitos ambientes, como o acadêmico e o médico, afirma Francisco Assis de Queiroz, pesquisador do Centro de História da Ciência da USP. Ele recorda alguns casos notórios. “Na década de 1990, o sociólogo Charles Murray e o psicólogo Richard Herrnstein, dos Estados Unidos, defenderam a ideia de uma suposta inferioridade dos negros em artigos que discutiam
inteligência e a estrutura de classes”, explica Queiroz. “Mesmo com documentos como a Declaração de Helsinque e a Convenção de Nuremberg, que tratam de ética em pesquisa em seres humanos e condenam estudos com viés eugenista, alguns pesquisadores continuam promovendo ideias para justificar, de forma determinista e racista, traços como a inteligência.”
Publicação da versão errada de artigo Uma inusitada retratação de artigo científico foi anunciada pelo Journal of Paleontology, editado pela Paleontological Society, dos Estados Unidos. O paper cancelado, sobre registros fósseis encontrados na Austrália, continha diversos erros que já haviam sido corrigidos pelos autores. Os editores do periódico, porém, atrapalharam-se e publicaram a versão errada do manuscrito, anterior às correções. Como as retificações foram feitas sem usar o recurso do controle de alterações, os responsáveis pela revista acharam que a última versão enviada era idêntica à
anterior e não a consideraram. Alertados sobre o problema depois que o manuscrito foi publicado on-line, os editores cogitaram publicar apenas uma correção. Mas, como os trechos não corrigidos espalhavam-se por todas as páginas do artigo, optou-se pela retratação com republicação integral da versão correta. Um dos autores do paper, o biólogo Glenn Brock, da Universidade Macquarie, da Austrália, considerou um “final feliz” a retratação de seu próprio artigo. “Os autores ficaram satisfeitos com o resultado final”, disse ele ao site Retraction Watch.
ilustração nelson provazi
A University College London (UCL), no Reino Unido, anunciou que irá investigar um pesquisador acusado de promover clandestinamente, no campus da instituição, conferências sobre inteligência e eugenia nos últimos três anos. Os eventos foram organizados por James Thompson, professor do Departamento de Psicologia e Ciências da Linguagem da UCL, que adotava medidas extremas para manter secretas as conferências. Segundo o jornal The Guardian, Thompson informava os convidados sobre o local do evento apenas no último minuto. Os encontros, com no máximo 25 participantes, eram realizados, em sigilo, em uma espécie de sala de espera. Em 2017, participou do encontro o jornalista Toby Young, designado no início do ano para chefiar o Office of Students, órgão do governo britânico responsável pela regulação do ensino superior. Young foi afastado do cargo após o caso ser revelado pelo jornal London Student no dia 10 de janeiro. Segundo a publicação, Richard Lynn, professor da Universidade de Ulster, Irlanda do Norte, deu palestras nas conferências realizadas em 2015 e 2016, onde teria defendido ideais da supremacia branca. Em nota divulgada em seu site, a UCL informou que os eventos foram pagos com recursos externos sem que funcionários da instituição fossem notificados: “As conferências não chegaram a ser aprovadas pela UCL. Somos uma instituição comprometida com a liberdade de expressão e com o combate ao racismo e ao sexismo”. A UCL proibiu professores que participaram dos eventos de organizar qualquer tipo de encontro científico até o fim da investigação. “Os postulados da eugenia ferem a ética na pesquisa ao propor que há raças ou indivíduos
Dados
Titulação e regime de trabalho de docentes do ensino superior
total
públicas
34.719
22%
11.972
12%
67.583
24.947
12%
42%
30%
2006
privadas
18%
42.636
17.639
90.739
36%
28%
108.965
Titulação em graduação, especialização, mestrado e doutorado por categoria administrativa
22.747
13% 11%
40%
36% 73.100
80.486
Entre 2006 e 2016, o número de professores em exercício no ensino superior passou de 302 mil para 384
28.479
mil (crescimento de 27%), concentrado no setor público (que passou de
n Graduação
2%
n Especialização
3%
5.399
2016
5.118
16.916
20% 39%
n Mestrado
48.268
78.328
149.837
60% 39%
101.569
de 68%). O setor privado apresentou expansão de apenas 6,6%
Grad 0%
22%
10%
101 mil para 170 mil docentes, aumento
n Doutorado
27%
(de 202 mil para 215 mil docentes). Nas universidades, 55% do
29% 61.412
total de docentes eram doutores em 2016 (67%, nas públicas; 30%, nas privadas). Em São Paulo,
45.941
49%
150.530
nas universidades públicas, 94% de docentes tinham título de doutorado,
104.589
sendo 96% nas federais e 99% nas
total
públicas
estaduais (USP, Unicamp e Unesp).
privadas
ies Regime de todas instituições de ensino superior (IES) e universidades, 2016 As diferenças entre os setores públicos e privados
universidades
2.795
100%
52.329
80%
338
117.129
114.334
60%
n n n n
Integral com DE Integral sem DE
24.975
Parcial
97.824
Horista 97.486
85.344
eram também significativas
82.161 22.242
quanto ao regime de trabalho dos docentes –
48.945
40% 104.795
horista, tempo parcial, tempo integral sem e com dedicação exclusiva (DE).
20%
29.832
23.970 74.082
19.451
0%
21.153 80.009
5.927
públicas
14.296
24.232
3.079
privadas
total
públicas
36.538
privadas
total
Fontes Censo da Educação Superior, Sinopse 2006, 2016, Microdados 2016, INEP/MEC. Elaboração: Coordenação do Programa de Indicadores de CT&I, Fapesp.
PESQUISA FAPESP 264 | 11
Notas
El Niño e o derretimento silencioso da Antártida Em anos de El Niño intenso, as plataformas de gelo que flutuam no oceano na porção ocidental da Antártida perdem massa mais rapidamente, mesmo que neve mais do que o normal. A conclusão é de um estudo coordenado pelo geofísico brasileiro Fernando Paolo, hoje em estágio de pós-doutorado no Laboratório de Propulsão a Jato da Nasa, a agência espacial norte-americana. Durante o doutorado no Instituto de Oceanografia Scripps da Universidade da Califórnia em San Diego, Paolo e outros pesquisadores analisaram medições na altura das plataformas de gelo da costa ocidental da Antártida feitas por satélites nas duas últimas décadas. Eles verificaram que nos períodos intensos de El Niño, caracterizado pelo aquecimento anormal das águas superficiais do Pacífico, há um aumento na deposição de neve sobre as plataformas
Em anos de El Niño intenso neva muito, mas as plataformas, como a Geltz (acima), perdem massa de gelo submerso
de gelo, porque uma alteração no padrão dos ventos transporta mais
1
umidade do oceano para o continente gelado. Ao mesmo tempo, esse padrão de ventos promove a ressurgência de águas profundas mais
Oceano Austral
quentes, que penetram sob as plataformas e aceleram o derretimento do gelo submerso. De 1994 a 2017, a altura média das plataformas na região diminuiu cerca de 20 centímetros (cm) por ano, sobretudo pelo derretimento das camadas submersas, processo intensificado durante o El Niño (Nature Geoscience, 8 de janeiro). “Nos anos de El Niño intenso,
Antártida Oriental
dois processos opostos ocorrem”, explica Paolo. “O derretimento pelo oceano remove mais gelo do que a deposição de neve adiciona.” No
Antártida Ocidental
balanço total, a plataforma perde massa. A diminuição das plataformas da Antártida não afeta diretamente o nível do mar, pois ali o gelo flutua na água. Mas o derretimento regula a velocidade com a qual as geleiras continentais despejam gelo no oceano. “É importante entender como as plataformas se comportam durante esses fenômenos climáticos, já que períodos de El Niño intensos deverão se tornar mais frequentes com o aumento da temperatura média do planeta”, explica Paolo. 12 | fevereiro DE 2018
2
Área estudada
Salários desiguais entre homens e mulheres
Ciências agrícolas e recursos naturais
75.000 68.000
Em quase todas as
Ciências biológicas e biomédicas
áreas da ciência e das
77.000 67.500
engenharias, o salário de homens com doutorado
Ciências da saúde
é maior do que o das
80.000 80.000
mulheres com a mesma
Química
titulação nos Estados Unidos, segundo o relatório Science and Engineering Doctorates, divulgado em dezembro de 2017 pela National Science Foundation (NSF), a principal agência de apoio à pesquisa do país. fotos 1 Jeremy Harbeck / NASA Operation IceBridge 2 mapa Landsat Image Mosaic of Antarctica team 3 Qiang Sun e Muming Poo / Academia Chinesa de Ciências ilustração freepik
n Mediana do salário anual dos homens (em US$) n Mediana do salário anual das mulheres (em US$)
Foram examinados os
Chineses clonam macacos com técnica que gerou a ovelha Dolly Duas fêmeas de um macaco natural da Ásia são os primeiros primatas clonados com a técnica que nos anos 1990 gerou a ovelha Dolly. Da espécie cinomolgo (Macaca fascicularis), Zhong Zhong e Hua Hua
86.500 83.000
são geneticamente idênticas – os nomes derivam
Geociências, Ciências atmosféricas e oceânicas
Elas foram gestadas no útero de fêmeas diferentes
71.000 65.500 Física e astronomia
do adjetivo zhonghua, que significa nação chinesa. e tinham, respectivamente, 8 semanas e 6 semanas de idade em 24 de janeiro. A equipe do pesquisador
100.000 89.000
Qiang Sun, da Academia Chinesa de Ciências, gerou
Matemática e ciências da computação
mática. Na técnica, o núcleo (região com o material
110.000 90.000 Psicologia
as macacas por transferência nuclear de célula sogenético) de uma célula adulta é inserido em um óvulo previamente esvaziado. O primeiro mamífero
65.000 62.200
obtido por transferência nuclear foi a ovelha Dolly
que haviam concluído o doutorado em 2016 e
Economia
adulta pelos biólogos Ian Wilmut e Keith Campbell, na
salários anuais de pessoas
estavam empregadas em áreas como ciências da vida, física, matemática,
110.000 100.000 Ciências sociais
informática, psicologia,
65.000 62.000
ciências sociais e
Engenharia
engenharias. A análise conjunta dos valores auferidos em todas áreas
100.000 92.000 Educação
(1996-2003), clonada a partir da célula de uma ovelha Escócia. Depois dela, mamíferos de outras 22 espécies já haviam sido clonados com a técnica, exceto primatas, pois as tentativas haviam falhado. Qiang Sun e colaboradores transferiram o núcleo de células da pele (fibroblastos) de um feto de cinomolgo abortado para óvulos sem núcleo. Depois acrescentaram compostos que favoreceram o desenvolvimento dos embriões. A eficiência foi baixa: 79 embriões foram implantados
indicou que metade
72.000 65.000
dos homens recebia
Humanidades e artes
Zhong Zhong e Hua Hua foram os únicos filhotes
até US$ 92 mil por ano,
53.000 51.000
que nasceram e sobreviveram (Cell, 24 de janeiro).
enquanto a mesma proporção das mulheres
Gerenciamento e administração de empresas
ganhava até US$ 74 mil
125.000 111.000
(esses valores
Outras áreas
correspondem à mediana dos salários, o que significa que metade da amostra recebia acima e metade abaixo dele). A
63.450 63.000 Fonte Science
and Engineering Doctorates / NSF
no útero de 21 macacas, mas só seis engravidaram.
Outro teste, com óvulos que receberam o material genético de células de ovário, gerou dois filhotes que morreram. Em 1999, nos Estados Unidos, o biólogo Gerald Schatten havia clonado Thetra, uma fêmea de macaco rhesus (Macaca mulatta), com uma técnica mais simples. A clonagem de primatas, argumenta a equipe chinesa, poderia servir para criar modelos animais mais realistas de doenças humanas ou para recuperar espécies ameaçadas de extinção.
matemática e as ciências da computação, uma das áreas com os salários mais elevados, foi a campeã de disparidade: metade dos homens recebia até US$ 110 mil por ano, cerca de 22% mais do que a mesma proporção das mulheres (US$ 90 mil). A área mais igualitária foi a das ciências da saúde. Nela, a mediana do salário foi US$ 80 mil para ambos os sexos (ver gráfico).
3
Hua Hua (acima) e Zhong Zhong (à dir.), clonadas por transferência nuclear de célula somática PESQUISA FAPESP 264 | 13
Um mundo desigualmente conectado por rios e estradas
colaboradores o
1
dispositivo para investigar de um modo menos invasivo a saúde do trato digestivo. A cápsula detecta os gases liberados pelos microrganismos
Cada vez mais conectado pelas tecnologias de comu-
intestinais à medida que
nicação, o mundo permanece desigualmente unido
percorre o trato digestivo.
do ponto de vista da capacidade de deslocamento
Kalantar-zadeh e
por meios físicos. A existência de vias de transporte
parceiros realizaram um
de superfície (estradas, ferrovias e hidrovias) varia Usando informações de 2015 do Google e do projeto colaborativo Open Street Maps, pesquisadores da Universidade de Oxford, no Reino Unido, de outros
Sensor ingerível detecta gases liberados por bactérias
Uma cápsula para avaliar a saúde digestiva
países da Europa e dos Estados Unidos produziram
teste inicial em seis adultos saudáveis – parte havia consumido por dois dias uma dieta rica em fibras e parte alimentos com pouca fibra. Os níveis
um mapa global que permite estimar o tempo de
Um comprimido grande
de oxigênio revelaram
viagem de um ponto qualquer em terra firme à cidade
de vitamina é pequeno
o ponto do aparelho
mais próxima com cerca de 50 mil habitantes. Nos
ao lado da cápsula
digestivo em que se
países ricos, quase 91% da população mora a até uma
que contém o sensor
encontrava o sensor.
hora de viagem da cidade mais próxima, enquanto
de gases do trato
Já o teor de hidrogênio,
nos países de baixa renda, grande parte situada na
gastrointestinal criado
liberado na fermentação
África Subsaariana, apenas 51% estão a uma hora do
por pesquisadores da
dos alimentos, revelou
centro urbano vizinho. Em regiões mais isoladas da
Austrália. Com cerca de
o grau de atividade das
Amazônia, da Austrália, do norte da Ásia e da América
2,5 centímetros (cm)
bactérias nos intestinos
do Norte, às vezes, são necessários dias de viagem
de comprimento e
(Nature Electronics,
para chegar à cidade vizinha (Nature, 10 de janeiro).
1 cm de espessura, o
janeiro). Por ora, foi
O acesso às cidades é importante porque é nelas que
invólucro contém
possível verificar que
se concentram recursos econômicos, educacionais
dois sensores de gases,
um dos voluntários teve
e de saúde. Segundo os pesquisadores, esse mapa,
um de temperatura
constipação intestinal
mais detalhado do que o produzido em 2000, pode
e um microcontrolador,
por comer pouca fibra.
orientar o esforço de melhorar o acesso às áreas
além de uma bateria e
Kalantar-zadeh espera
remotas, uma forma de ajudar a alcançar até 2030
um transmissor de rádio.
que o dispositivo, menos
O engenheiro eletricista
invasivo do que a
Kourosh Kalantar-zadeh,
colonoscopia, torne-se
da Universidade RMIT,
uma ferramenta para
na Austrália,
identificar colite, doença
desenvolveu com
de Crohn e até câncer.
algumas das Metas de Desenvolvimento Sustentável acordadas em 2015 por 193 países integrantes das Nações Unidas, que buscam, entre outros objetivos, a erradicação da pobreza e da fome e a melhoria do nível educacional das populações.
Mapa indica quanto demora para ir de um determinado ponto em terra firme à cidade mais próxima de 50 mil habitantes
Tempo de viagem ≥ 10 dias 1 dia 1 hora 0 hora
14 | fevereiro DE 2018
2
fotos 1 Peter Clarke / Universidade RMIT 2 WEISS, D. J. et al. Nature. 2018
muito entre as regiões mais e menos desenvolvidas.
Brasil, entre os pesos-pesados da matemática O Brasil passa a integrar o grupo de elite da matemática mundial. A União Matemática Internacional (IMU) aprovou em janeiro a entrada do país no grupo 5, formado por um número restrito de nações que desenvolvem
Novos integrantes no Conselho Superior da FAPESP
pesquisa de excelência na área. A mudança atende a uma solicitação feita em 2017 pela Sociedade Brasileira de Matemática (SBM) e pelo Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), no
O médico Marco Antonio Zago, reitor da Univer-
Rio de Janeiro, e coloca o
sidade de São Paulo (USP) até janeiro de 2018 e
Brasil ao lado de outros
professor da Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto, e o advogado Ignacio Maria Pove-
10 países que fazem pesquisa de alta qualidade em matemática. “Fizemos
fotos léo ramos chaves
um dossiê de pouco
Marco Antonio Zago, Ignacio Poveda Velasco e Vanderlan Bolzani, na fileira superior (a partir da esq.), e José Goldemberg, presidente da Fundação
da Velasco, professor da Faculdade de Direito da USP, são os dois novos integrantes do Conselho Superior da FAPESP. Nomeados pelo governador Geraldo Alckmin por meio de um decreto publica-
mais de 30 páginas
(1,53% da produção
destacando as razões
mundial na área).
para entrarmos no grupo
Em uma década, esse
5”, afirma Marcelo Viana,
número praticamente
diretor-geral do Impa.
dobrou e chegou a 2.073
“Mostramos a pesquisa,
papers, ou 2,35% dos
geral de desenvolvimento da Fundação e define
os eventos, a formação
artigos publicados em
sua política patrimonial e financeira. Eles assu-
na pós-graduação,
matemática em 2016.
mem após 18 de abril, quando encerra o mandato
a educação básica, as
A entrada do país no
do advogado e pedagogo João Grandino Rodas
Olimpíadas de matemática
grupo de elite da
e o da bioquímica Suely Vilela, respectivamente,
e a popularização
pesquisa em matemática
professor da Faculdade de Direito da USP e pro-
da disciplina no país.”
ocorre quase quatro anos
fessora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas
Criada em 1920, a
após o brasileiro Artur
da USP em Ribeirão Preto. O governador recon-
IMU congrega cerca de
Ávila, pesquisador do
duziu o físico José Goldemberg, atual presidente
80 países, agrupados
Impa e do Centro
do Conselho Superior e da Fundação, para a
em cinco categorias.
Nacional de Pesquisa
vaga de conselheiro por seis anos. Foi também
O Brasil ingressou na IMU
Científica (CNRS) da
nomeada a química Vanderlan da Silva Bolzani,
em 1954, no grupo 1,
França, receber a mais
professora da Universidade Estadual Paulista
e subiu de categoria
alta honraria na área:
(Unesp) em Araraquara, para cumprir até 17 de
lentamente. A promoção
a medalha Fields,
agosto de 2022 o mandato do conselheiro Julio
atual é resultado da
concedida pela IMU.
Cezar Durigan, morto em setembro de 2017.
maturidade que a
Apesar do avanço na
Vanderlan foi a candidata mais votada da lista
produção científica
pesquisa, o ensino da
tríplice indicada pelas demais instituições de
nacional alcançou na
matemática no Brasil
ensino superior e de pesquisa paulistas. O Conse-
área nos últimos tempos.
deixa a desejar. O país
lho Superior da Fundação tem 12 membros. Seis
Em 2006, um ano após o
ocupa uma das últimas
são de livre escolha do governador e os demais
país chegar ao grupo 4,
posições nos rankings
são nomeados por ele a partir de listas tríplices
os matemáticos
internacionais que
eleitas pelas universidades estaduais paulistas e
brasileiros publicaram
avaliam o desempenho
pelas instituições de ensino superior e pesquisa,
1.043 artigos científicos
dos alunos na área.
públicas e particulares, sediadas no estado.
do em 24 de janeiro no Diário Oficial do Estado de São Paulo, Zago e Velasco foram indicados pela USP e cumprirão um mandato de seis anos no Conselho Superior, que determina a orientação
PESQUISA FAPESP 264 | 15
Uma possível fonte para repor cartilagens
Mas pouco se sabe
1
sobre o avanço da doença na Idade Média. Alguns estudos sugerem que pulgas (Pulex irritans) e piolhos humanos (Pediculus
Pesquisadores dos Estados Unidos e da China
humanus) pudessem ter
desenvolveram um material sintético que, em
disseminado a peste
princípio, reproduziria as propriedades mecâ-
durante a segunda
nicas de tecidos biológicos como cartilagens e
pandemia. Um dos
tendões melhor do que outros materiais hoje
indícios a favor dessa
em teste. Constituídas por fibras proteicas de
hipótese é que não há
colágeno e proteoglicanos (proteínas recober-
registros históricos
tas por moléculas de açúcares), as cartilagens
de aumento na
biológicas são resistentes ao impacto e à
mortalidade de ratos
tensão. O novo material foi obtido a partir da
antecedendo
combinação de aramida e álcool polivinílico.
os casos em seres
Conhecidas pelo nome comercial de Kevlar,
humanos, como se
material usado em coletes à prova de balas,
verificou a partir do
as fibras nanométricas de aramida são resis-
século XIX, na terceira
tentes a calor, pressão e tensão, enquanto o
pandemia. Alguns
álcool polivinílico é um polímero solúvel em
trabalhos sugerem ainda
água. Unindo os dois compostos, o grupo de
que o clima no norte
Nicholas Kotov, da Universidade de Michigan,
da Europa na Idade
Estados Unidos, em colaboração com pes-
Média não tenha
quisadores da Universidade Jiangnan, China,
favorecido a dispersão
similares às das cartilagens biológicas, que contêm elevado teor de água, apresentam estrutura estável, são rígidas e resistentes à tensão. Os pesquisadores produziram o
Reprodução da obra Peste, de 1898, do pintor simbolista suíço Arnold Böcklin
Pulgas, piolhos e a peste na Idade Média
de ratos e também há indícios recentes de que os parasitas humanos podem transmitir a bactéria. Partindo
compósito com diferentes níveis de água
Talvez os ratos e suas
desses pressupostos,
(de 70% a 92%). Mesmo com os teores mais
pulgas não sejam os
pesquisadores da
elevados, o material manteve resistência
principais responsáveis
Universidade de Oslo,
comparável à das cartilagens biológicas
pela rápida disseminação
na Noruega, e da
(Advanced Materials, 4 de janeiro). Outros
da bactéria Yersinia
Universidade de Ferrara,
materiais sintéticos estão sendo avaliados
pestis pela Europa, pelo
na Itália, criaram três
em seres humanos para reparar cartilagens,
Oriente Médio e pelo
modelos matemáticos
mas não apresentam as características do
Norte da África durante
para explicar a dinâmica
desenvolvido agora.
a segunda e mais longa
da dispersão da peste –
pandemia de peste da
por parasitas humanos,
história, que durou
pela transmissão direta
do século XIV ao XIX
ou por parasitas de
e teria matado cerca de
roedores – em nove
um terço da população
epidemias que atingiram
dessas regiões. Ainda
a Europa entre 1348
hoje ocorrem surtos na
e 1813. Em seguida,
Ásia, na África e nas
compararam os
Américas, nos quais a
resultados com os
bactéria é transmitida
registros históricos das
principalmente por meio
mortes ocorridas na
da picada de pulgas
época. A transmissão
de roedores infectados
por piolhos e pulgas
ou por partículas
humanos foi a que
expelidas por tosse
melhor explicou o
e espirros de pessoas
padrão de mortalidade
com os pulmões
em sete dos nove surtos
contaminados.
(PNAS, 16 de janeiro).
2
Novo material à base de aramida e álcool polivinílico é flexível e resistente ao desgaste 16 | fevereiro DE 2018
fotos 1 wikimedia commons 2 Joseph Xu, Michigan Engineering
chegou a um compósito com propriedades
Todas as plantas das Américas, por enquanto O Brasil, com 33.161 espécies, e a Colômbia, com 23.104, lideram um levantamento recém-publicado sobre a diversidade nas Américas de plantas vasculares, que incluem aquelas com flores e as samambaias (Science, 22 de dezembro de 2017). Coordenado por Carmen Ulloa Ulloa, do Jardim Botânico de Missouri, nos Estados Unidos, o trabalho indicou que as Américas abrigam 124.933 espécies de plantas vasculares, distribuídas em 6.227 gêneros e 355 famílias. O total corresponde a um terço das espécies desse grupo, que compreende a maioria das plantas terrestres já identificadas. Há mais plantas vasculares na América do Sul (82.052 espécies, das quais 73.552 são endêmicas) do que na América do Norte (51.241, com 42.941 exclusivas); apenas 8.300 espécies vivem nos dois continentes. Outras comparações: a flora da América do Sul é 6% maior que a da África, cuja área é duas fotos 1 Luisa O. Azevedo 2 e 3 Herison Medeiros
vezes maior, e a da China é o dobro do que a dos Estados Unidos e do Canadá. As orquídeas representam o grupo mais diversificado nas Américas, com 12.983 espécies distintas. Segundo o estudo, em média, 744 espécies novas para a ciência são descritas por ano e ainda
2
existem de 3,5 mil a 7 mil por serem descritas no Brasil. Diferenças de relevo, clima e altitude ajudam a entender essa diversidade, de acordo com a botânica Rafaela Campostrini Forzza, pesquisadora do Jardim Botânico do Rio de Janeiro e coautora do estudo. “Esse levantamento é o resultado de um trabalho lento e colaborativo para a elaboração das listas de cada país, que começou há 30 anos, e dos compromissos internacionais, como a Convenção da Diversidade Biológica (CDB), que ajudaram a motivar e a integrar as equipes”, diz ela.
3
1
Mimosa calodendron (ao lado), Hortia excelsa (acima) e Paullinia boliviana (no alto), três das 124.933 espécies catalogadas no inventário
PESQUISA FAPESP 264 | 17
capa
Expansão desigual Ampliação do acesso à educação básica foi acompanhada pelo aumento das diferenças na aprendizagem, prejudicando alunos pretos, pardos e de nível socioeconômico baixo Christina Queiroz
18 | FEVereiro DE 2018
Prova Brasil entre 2005 e 2013, que envolveram cerca de 23 milhões de alunos e 70 mil escolas em todos os 5.570 municípios brasileiros. “A desigualdade de aprendizagem entre grupos de diferentes níveis socioeconômicos cresceu. Alunos submetidos a mais de uma característica associada à exclusão social têm desempenho muito pior do que os outros”, afirma o estatístico José Francisco Soares, professor titular aposentado da UFMG, ex-presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) e um dos autores do trabalho, que teve apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais (Fapemig). Soares destaca que, apesar de a evolução do desempenho escolar médio dos alunos da escola pública ter apresentado variação positiva de quase 20 pontos, o que corresponde aos conhecimentos de cerca
infográfico ana paula campos ilustraçãO augusto zambonato
O
ensino fundamental no Brasil hoje pode ser considerado universal, com 99,2% das crianças de 6 a 14 anos frequentando a escola, o que representa 26,5 milhões de estudantes, conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: Educação (Pnad Contínua), divulgada no final de dezembro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ao mesmo tempo, um levantamento da unidade brasileira da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso), também produzido com base na Pnad, identificou que, em 2002, apenas 10,7% dos jovens mais pobres do país chegavam ao ensino médio na idade adequada, patamar que hoje subiu para 39%. Sem deixar de reconhecer a importância desses avanços, os números indicam que as desigualdades que antes se manifestavam no acesso à escola pública, agora se revelam dentro dela, com crescentes diferenças nos níveis de aprendizagem, que podem chegar ao equivalente a três anos de escolarização entre crianças da mesma idade. O Núcleo de Pesquisa em Desigualdades Escolares (Nupede) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) fez a constatação a partir de análises de edições da
Variações nas notas médias Características associadas à exclusão social, como raça e nível socioeconômico (NSE) baixo, derrubam desempenho de estudantes
A
B
Meninas brancas com NSE baixo
C
Meninas negras com NSE baixo
D
Meninos brancos com NSE baixo
E
Meninos negros com NSE baixo
Meninas brancas com NSE alto
F
G
Meninas negras com NSE alto
H
Meninos brancos com NSE alto
Meninos negros com NSE alto
Diferença entre os dois grupos com desempenho mais alto e mais baixo
Proficiência em
leitura 5o ano
9o ano 500 Nota máxima
52,65
247,99 247,49 226,74
41,07
A B C D E F G H
2005
229,55 226,63 215,90 214,42 267,07
210,91
251,98 232,77 236,59 220,41
215,30
223,14 217,69
188,01
45,20
A B C D E F G H
Diferença entre os D grupos EE e D 67,02
201,07 212,53
175,21
169,72 161,28 159,51 226,53
156,91 202,11 168,54 190,47 162,93
174,2 Notas médias
163,24 165,29
500 Nota máxima
A B C D E F G H
2013
A B C D E F G H
2005
2013
Proficiência em
matemática 5o ano
9o ano
A B C D E F G H
2005
A B C D E F G H
2013
229,08 262,46 241,95 263,80 241,54
225,9 222,04 231,37
A B C D E F G H Fonte Nupede/ UFMG
2005
41,76
40,16
60,14
Diferença entre os G e B B grupos G
231,16 262,15 239,9 264,64 242,53
500 Nota máxima
231,57 224,48 238,24
209,88 238,08 210,87
177,76
176,58 236,96
177,95
183,8
202,6 171,78 202,52 173,41
177,33
168,99
35,26
Notas médias
177,73 167,26
500 Nota máxima
A B C D E F G H
2013 PESQUISA FAPESP 264 | 19
Distância de aprendizagem entre alguns grupos de alunos pode chegar a três anos de escolarização
de um ano escolar, a distância de aprendizagem entre alguns grupos pode chegar a três anos de escolarização. É o caso de meninos brancos com nível socioeconômico (NSE) alto e meninas negras com NSE baixo quando tiveram avaliados seus conhecimentos em matemática (ver gráficos na página 19). Os resultados da pesquisa foram divulgados no artigo “Desigualdades educacionais no ensino fundamental de 2005 a 2013: Hiato entre grupos sociais”, publicado na Revista Brasileira de Sociologia em 2016. A Prova Brasil – antigo Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) – é uma avaliação educacional realizada bianualmente pelo Inep. Composta por testes de matemática e língua portuguesa, afere notas de zero a 500 para alunos do 5º e 9º anos do ensino fundamental e é um dos componentes usados para calcular o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), que avalia a qualidade da educação básica no Brasil. Para classificar os alunos das escolas em que a prova foi feita, os pesquisadores do núcleo utilizaram um indicador de NSE que relaciona critérios como escolaridade e ocupação dos pais, posse de itens, contratação de empregados domésticos e renda familiar. No estudo, as divergências de aprendizagem são avaliadas separadamente conforme o NSE, raça e gênero dos alunos e também por meio de recortes que relacionam os três itens, formando diversos subgrupos. “Os problemas de aprendizado no ensino fundamental constituem uma barreira para o acesso a níveis mais altos de ensino. Proficiência menor de alunos pretos e pardos ou com NSE baixo os coloca em situação desvantajosa para seguir a trajetória escolar”, considera Maria Teresa Gonzaga Alves, professora do Departamento de Ciên 20 | FEVereiro DE 2018
cias Aplicadas à Educação (Decae) da UFMG e coordenadora do Nupede. A pesquisadora explica que, ao analisar os dados de cinco edições da Prova Brasil, foram identificados avanços na proficiência dos anos iniciais do ensino fundamental. Porém, os grupos sociais mais favorecidos foram os que progrediram. Maria Teresa esclarece que, com a expansão do ensino básico, as desigualdades que antes afetavam mais acentua damente o acesso e a progressão escolar vêm se revelando, agora, pelas desigualdades crescentes de aprendizado. Ao avaliar as diferenças de aprendizagem segundo o sexo dos alunos, a pesquisa identificou que, em leitura, tanto no 5º quanto no 9º ano, as médias melhoraram. No entanto, as meninas atingiram proficiências melhores e as diferenças aumentaram em relação aos níveis dos meninos.
Escolas Reverendo Urbano (no alto), em São Miguel Paulista, e Fernão Dias Paes, em Pinheiros (acima), São Paulo: alunos tendem a ter médias piores em regiões mais pobres
Prova Brasil mede evolução do desempenho Média geral dos alunos subiu 20 pontos, o que equivale ao aprendizado de cerca de um ano escolar
240,46
241,20
245,19
243,87
2009
2011
2013
207,25 2013
2007
206,30 2011
239,51
201,53 2009
2005
191,16 2007
239,37 2013
180,59
238,88 2011
2005
238,03 2009
191,64 2013
228,89
187,37 2011
2007
181,35 2009
224,11
173,70 2007
Nota máxima
250
0
Leitura
5o ano
fotos léo ramos chaves ilustraçãO augusto zambonato
2005
173,33 2005
Edições da Prova Brasil (ano)
500
Leitura
9o ano
Em matemática, as médias também se elevaram, mas, nesse caso, os meninos aprenderam mais. Em relação às diferenças de raça, o estudo avaliou que os estudantes autodeclarados pretos melhoraram a proficiência. Entretanto, apresentaram pior desempenho se comparados aos alunos brancos ou pardos. Além disso, a diferença de aprendizagem entre pardos e pretos é menor em relação às divergências entre brancos e pretos. A pesquisa mostra ainda que estudantes pretos, mesmo frequentando a mesma série de alunos brancos, aprenderam o equivalente a um ano a menos de educação formal. As maiores disparidades foram identificadas em relação ao NSE. A média geral de aprendizagem aumentou, mas os alunos de perfil socioeconômico baixo não apresentaram variações expressivas em suas notas. Nesse contexto, um dos dados mais significativos pode ser observado em 2013 no 5º ano, tanto nas provas de leitura quanto nas de matemática. Nessa etapa, os alunos com NSE baixo apresentaram desvantagem equivalente a mais de dois anos de aprendizado, se comparados a estudantes com NSE alto. Ao cruzar os três critérios (gênero, raça e NSE), o estudo identificou os grupos em que as diferenças são mais aparentes. No gráfico que mede os resultados em leitura, a grande diferença aparece entre meninas brancas com NSE alto (5º grupo) e meninos pretos com NSE baixo (1º grupo). Observa-se que, no 5º ano, a distância entre esses dois grupos extremos cresceu de 2005 a 2013. No gráfico que mostra a aprendizagem em matemática (página 19), a diferença maior emerge
Matemática
5o ano
Matemática
9o ano
Fonte Nupede /UFMG
entre meninos brancos com NSE alto e meninas pretas com NSE baixo. A pesquisa identificou que alunos matriculados na mesma série, mas diferentes em relação ao sexo, à cor e ao NSE, podem apresentar diferenças de aprendizagem superiores a três anos. Diferenças municipais
O estudo da UFMG também procurou mensurar a equidade entre grupos sociais nas escolas conforme os municípios. Maria Teresa, da UFMG, esclarece que, em uma situação de equidade educacional, os efeitos de características associadas à exclusão social, como perfil socioeconômico baixo, sexo feminino e cor preta, deveriam ser iguais ou próximos de zero nos níveis de aprendizagem. “Para a proficiência em matemática, não encontramos municípios em que os alunos de cor preta e os de cor branca têm resultados médios equitativos”, destaca Maria Teresa. De acordo com ela, em Salvador, o efeito da cor na aprendizagem é menos desigual. Porém, as médias gerais dos alunos são baixas, o que significa que a equidade existe em uma situação de aprendizagem insatisfatória para todos os grupos. Sobre essa segunda parte da pesquisa, José Francisco Soares conta que os níveis de aprendizagem das cidades foram classificados em básico, adequado e avançado e que em Teresina (PI) as diferenças de aprendizagem são menores, porém o nível dos alunos fica abaixo do básico. Em Florianópolis a média geral subiu, mas os negros aprenderam menos. “As desigualdades educacionais são diferentes em cada parte do PESQUISA FAPESP 264 | 21
país. Um tipo especialmente perverso é a disparidade observada em cidades cuja média de desempenho é alta, mas determinados grupos aprendem menos”, observa. Arnaldo Mont’Alvão, pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e da Universidade do Estado de Iowa, nos Estados Unidos, sugere algumas justificativas para explicar esse panorama. Segundo ele, à medida que os sistemas educacionais se expandem, as desigualdades se deslocam vertical e horizontalmente. Quando o acesso à educação primária se torna universal, as desigualdades se deslocam para o nível imediatamente superior, o secundário, criando gargalos que impedem a passagem de diversos jovens para esse nível escolar. O pesquisador explica que no Brasil isso acontece porque, enquanto a educação fundamental está quase universalizada, no ensino médio as vagas são mais escassas, de maneira que ocorre uma competição por ocupar os lugares disponíveis, processo que privilegia alunos com melhores desempenhos. “Usamos o conceito de estratificação vertical para discutir a forma como as desigualdades afetam as sucessivas transições entre pontos do sistema educacional”, diz Mont’Alvão. A segunda explicação apresentada se relaciona ao fato de que, conforme determinado nível escolar atinge a universalidade, novos caminhos se abrem para assegurar que alguns estudantes continuem com vantagens na competição pelas melhores vagas. “Famílias dos estratos socioeconômicos mais altos procuram resguardar para seus filhos os caminhos do sistema educacional que trarão maiores retornos social e econômico”, diz o pesquisador, lembrando que esse fenômeno é conhecido por estratificação horizontal. No artigo “A dimensão vertical e horizontal da estratificação educacional”, publicado em 2016 na Revista Teoria e Cultura, do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora, Mont’Alvão recorda que os estudantes que completam o ensino médio e avançam para o superior precisam escolher o tipo de instituição e a área educacional que pretendem cursar. De acordo com ele, essas escolhas são condicionadas socialmente, de modo que estudantes dos estratos socioeconômicos mais altos têm vantagens de acesso às instituições mais prestigiadas e a campos educacionais com maior retorno socioeconômico. Mont’Alvão identifica uma dinâmica similar na educação básica, quando algumas famílias com melhores níveis socioeconômicos buscam garantir vagas para seus filhos nas escolas mais bem conceituadas nas avaliações do MEC. Amélia Cristina Abreu Artes, pesquisadora do Departamento de Pesquisas Educacionais da Fundação Carlos Chagas (FCC), de São Paulo, afirma 22 | FEVereiro DE 2018
que, ao universalizar a educação pública, o Brasil passou a atender estudantes negros e de camadas populares que possuem menos familiaridade com uma cultura valorizada pela escola, motivo que pode explicar parcialmente o aumento das desigualdades de aprendizagem. “A escola pública não está preparada para lidar com a diversidade de alunos e considerar as diferentes bagagens intelectuais e culturais que crianças e jovens trazem ao chegar ao ambiente escolar”, avalia. Estudo de caso
O trabalho desenvolvido pelos professores da UFMG se insere em um campo metodológico de pesquisas educacionais que procura avaliar as desigualdades escolares quantitativamente, baseando-se nas respostas de questionários que medem o desempenho de grupos de estudantes e escolas. Outra metodologia utilizada na área tem caráter qualitativo e utiliza entrevistas, observação participante e outras técnicas para entender significados e redes de relações que permeiam o processo escolar. Por meio do conhecimento de contextos específicos, esses estudos buscam entender a realidade global do sistema educacional brasileiro. Entre 2011 e 2013, uma pesquisa procurou avaliar como os níveis de vulnerabilidade social dos territórios afetam a distribuição de oportunidades educacionais, com a finalidade de explicar parte das dinâmicas que se refletem em avaliações amplas como a Prova Brasil. Para isso, se ateve a escolas na subprefeitura de São Miguel Paulista,
Alunos em laboratório da E. M. Tancredo Neves, em Ubatuba (SP): em escolas com espaços educacionais adequados, o risco de exclusão diminui
distrito da região leste do município de São Paulo que abriga cerca de 250 mil habitantes. Por meio de mapas georreferenciados que mostravam a localização das instituições e os índices de pobreza da área, o estudo “Educação em territórios de alta vulnerabilidade social” identificou que nas regiões mais pobres do bairro os resultados globais das escolas eram os mais baixos. Para entender os motivos dessa dinâmica, os pesquisadores percorreram cinco escolas localizadas em áreas centrais e periféricas do bairro. O estudo foi financiado pela Fundação Tide Setubal e pela FAPESP, com coordenação técnica do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec) e apoio da Fundação Itaú Social e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef ). Mauricio Ernica, professor do Departamento de Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte (Delart) da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador da equipe, conta que uma das conclusões do estudo é que escolas em regiões vulneráveis estão mais isoladas de outros serviços públicos e com frequência funcionam como a única presença do estado na região. Segundo exemplo dado pelo pesquisador, nessas áreas, as mães levam os filhos para a escola não apenas para estudar, mas para ter outras demandas sociais atendidas, como acesso aos serviços de saúde. “Um conjunto de problemas deságua nessas instituições. Nelas, sempre há um funcionário deslocado, fazendo encaminhamento de crianças para outros serviços. Assim, a instituição passa a ter seu funcionamento afetado”, analisa Ernica. O economista e demógrafo Haroldo Torres, membro do Conselho Consultivo da Fundação Tide Setubal, desenvolveu uma pesquisa no Centro de Estudos da Metrópole (CEM) entre 2006 e 2009 e identificou que professores com melhor formação e mais experiência trabalhavam em escolas centrais da cidade de São Paulo, enquanto instituições na periferia costumavam abrigar docentes temporários ou substitutos. “Muitos desses profissionais, nos anos seguintes, solicitavam mudança de escola, o que desfavorece o desenvolvimento de um projeto pedagógico”, relata.
léo ramos chaves
boas práticas na escola
Maria Teresa, da UFMG, afirma que os dados da Prova Brasil sugerem que escolas nas quais questões de liderança administrativa e pedagógica estão mais bem resolvidas, em que professores, alunos e famílias participam de processos de tomada de decisões, que possuem menos problemas de recursos humanos, onde os espaços educacionais são adequados, com recursos audiovisuais e de informática, os alunos têm menor risco de exclusão e mais chance de estar no nível adequado
de ensino. A pesquisadora chegou às conclusões a partir de um estudo realizado em 2016 com financiamento da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). Outras práticas que permitiriam reduzir a desigualdade na educação básica, segundo Mont’Alvão, seriam investir no desenvolvimento de escolas de tempo integral com atividades diversificadas. “Mais integração da escola com equipes de saúde, além de políticas contra a discriminação racial, também seria eficaz”, analisa. Alessio Costa Lima, presidente da União Nacional dos Dirigentes da Educação Pública Municipal (Undime) e dirigente municipal em Alto Santo, Atividades no Ceará, lembra que em 1997 pedagógicas mais de 40% dos alunos que concluíam o ensino fundamendiversificadas tal no estado não sabiam ler e escrever. Para reverter a situapermitem ção, foram colocadas em prática políticas públicas duradouras melhorar os que envolveram a formação de níveis de professores, o desenvolvimento de material didático centrado aprendizagem nas dificuldades de alfabetização dos estudantes, os investimentos em educação infantil e a criação de recursos para controlar a frequência dos alunos. Além disso, o estado passou a identificar as 150 escolas com melhores e piores desempenhos. As instituições com melhores resultados apadrinham aquelas com performances negativas para ajudá-las a sanar problemas de ensino e, no ano seguinte, recebem uma premiação em dinheiro caso as piores escolas melhorem seus indicadores. “Instituições em cidades distantes dos centros urbanos tendem a apresentar maiores dificuldades e com esse sistema fazemos com que escolas privilegiadas sejam corresponsáveis por melhorar a educação no estado”, relata. Como resultado das ações, Lima afirma que hoje 80% dos alunos do estado aprendem a ler e escrever já no segundo ano do ensino fundamental. n
Projeto Educação em territórios de alta vulnerabilidade social de grandes centros urbanos (nº 10/20245-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Maria Alice Setubal (Cenpec); Investimento R$ 43.806,95.
Artigos científicos ALVES, M. T. G. et al. Desigualdades educacionais no ensino fundamental de 2005 a 2013: Hiato entre grupos sociais. Revista Brasileira de Sociologia. v. 4, p. 49-81. 2016. MONT´ALVÃO, A. A dimensão vertical e horizontal da estratificação educacional. Revista Teoria e Cultura. p. 13-20. 2016. ÉRNICA, M. e BATISTA, A. A. G. A escola, a metrópole e a vizinhança vulnerável. Outros Temas. v. 42, n. 146, p. 640-66. mai./ago. 2012.
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entrevista Peter Lees Pearson
Do micro ao macro,
um buscador de soluções Especialista em cromossomos, geneticista propõe melhorias para universidades brasileiras Maria Guimarães |
O
retrato
Léo Ramos Chaves
geneticista inglês Peter Pearson mantém uma pequena coleção de microscópios antigos, tributo ao aparelho responsável por boa parte de seus rumos. Graças ao talento para observar padrões invisíveis a olho nu, ele se especializou em cromossomos e descobriu aspectos dos cromossomos sexuais que o levaram a estudar causas de infertilidade. O nome “corpúsculo de Pearson” chegou a ser aventado para a visualização descrita por ele do cromossomo Y, com impacto para diagnóstico de sexo fetal. Desenvolveu métodos para estudar o DNA e gerenciou um banco de dados do Projeto Genoma Humano, nos Estados Unidos, de 1989 a 1995. Foi por 18 anos chefe do Departamento de Genética Humana da Universidade de Leiden, na Holanda, e participou da organização da pesquisa genética daquele país. Por essas andanças conheceu a geneticista brasileira Carla Rosenberg, professora no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), com quem se casou. Ao aposentar-se na Holanda, na Universidade de Utrecht, mudou-se para o Brasil, onde se dedica à ciência de maneira mais livre. Ministrou aulas de inglês para pós-graduandos, estabelece colaborações esporádicas e participa na elaboração de projetos e de artigos científicos, principalmente no Centro de Estudos do Genoma
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idade 79 anos especialidade Genética humana e citogenética formação Graduação na Universidade de Liverpool (1962) e doutorado na Universidade de Durham (1967), ambas no Reino Unido instituição Universidade de São Paulo (USP) produção científica Cerca de 400 artigos científicos, 3 livros organizados e 11 capítulos
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Humano – um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP. É um dos pesquisadores mais citados no país, com um índice H de 71. O que considera seu maior feito nos 13 anos de Brasil, no entanto, é ter finalizado o veleiro que construiu ao longo de 20 anos, com alguma ajuda de estudantes. O barco atravessou o oceano Atlântico cinco vezes a bordo de cargueiros antes de navegar um único milímetro por conta própria. Agora ele convida os antigos estudantes europeus para passeios pelo mar de Ilhabela, litoral paulista. Recentemente você encontrou uma maneira de corar DNA de tripla hélice. Como isso aconteceu? Foi divertido, me fez voltar 30 anos para trás quando descobri o que o Eduardo Gorab, professor do IB-USP, estava fazendo com DNA de tripla hélice. No início dos anos 1970 eu estava empenhado em descobrir como criar bandas em cromossomos humanos [padrões listrados característicos dessas estruturas e que refletem suas composições de bases]. Muitos dos compostos que examinávamos eram moléculas intercaladas no DNA, algumas delas com base em laranja de acridina, um composto orgânico que se liga a algumas estruturas dos cromossomos. Ela criava níveis diferentes de cor, de fluorescência, conforme o empilhamento do corante. Quando descobri que o Eduardo estava trabalhando com outro corante para localizar DNA de tripla hélice, juntamos esforços. Acho que contribuí para o pensamento dele, os resultados têm muitos usos. Seu trabalho anterior se encaixava? Colaborei com um ponto de vista diferente. Eduardo me mostrou uma publicação na qual a tripla hélice de DNA tinha grande afinidade com corante em solução. Isso me lembrou laranja de acridina, cuja cor varia dependendo da compactação, quantidade e estrutura do DNA. A tripla hélice do Eduardo parecia ser uma variante do que eu tinha visto. Aconteceu por acaso, nos cruzamos um dia no corredor. Corredores são muito importantes para a ciência... Salas de café, na verdade. Aqui, as universidades são organizadas de maneira muito diferente em relação às outras 26 | fevereiro DE 2018
A pesquisa hoje é feita por grupos de pessoas talentosas em colaboração, algo difícil de estabelecer
que conheço. Comecei minha carreira na Inglaterra, fui para a Holanda, para os Estados Unidos e voltei para a Holanda. Depois de me aposentar, vim para o Brasil e a USP é a minha sétima universidade. O que diferencia a USP das outras? A organização dificulta muito o trabalho. Quando terminou o governo militar, a USP, assim como o resto da esfera pública, comemorou a conquista da democracia e criou uma porção de comissões para gerir a universidade. A USP é uma profusão de comissões que precisam ser legalmente mantidas, por isso ninguém pergunta se elas estão funcionando bem. A carga burocrática e letiva dos professores é enorme. Não é necessário ter uma comissão se a mesma coisa pode ser feita por duas pessoas responsáveis. Isso dito, algumas das pessoas mais engenhosas e inteligentes estão na USP. O problema é que não estão no ambiente certo. O Departamento de Genética tem 35 professores contratados por um processo de concurso público em que a pessoa que fez a melhor apresentação ganha. Não significa que seja a melhor pessoa para o cargo em termos de como se encaixa no departamento. O resultado são 35 pe-
quenos reinos. Cada um tem o próprio laboratório, uma sala, seu grupinho de pós-graduandos, sua turma de café. E ninguém toma café com outras pessoas. Isso limita os encontros casuais... Sim, eles são raros, mas importantes. Muitos institutos no mundo agora têm áreas centrais para café e é esperado que as pessoas saiam de seus laboratórios e de suas salas em horas marcadas para tomar café de manhã e chá à tarde, ou seja lá o que for. Isso não acontece na USP. Os grandes projetos que a FAPESP organiza, como os Cepids, são apenas metade do caminho. As pessoas que tocam esses projetos não estão acostumadas a trabalhar em grupo, então os coordenadores têm uma dificuldade enorme em juntar as peças do quebra-cabeça. Hoje a pesquisa não é mais feita por indivíduos. É feita por grupos de pessoas talentosas em colaboração, algo difícil de estabelecer. Sua família era de cientistas? Não, fui o primeiro da família a entrar na universidade. Eles eram agricultores e eu cheguei a ser aceito em uma das melhores universidades agrícolas do Reino Unido. Mas minha família não tinha fazenda, então eu teria que trabalhar como gerente para alguém que tivesse terras. Decidi ir pelo caminho mais fácil e entrei em biologia na Universidade de Liverpool para procurar um rumo. E encontrou? Graças ao meu interesse e amor por microscópios, descobri que era bom em olhar cromossomos. No meu último ano eu trabalhava no herbário, com plantas secas. Os pesquisadores tentavam usar o microscópio e tinham dois olhos esquerdos, não conseguiam. Eu fazia as preparações e usava o microscópio, tinha facilidade em observar depressa e encontrar padrões. Acabei aceito no doutorado em Durham para estudar cromossomos de plantas. Nessa época a citogenética humana estava começando e as técnicas de cultura de células sanguíneas, as microculturas, exigiam um composto chamado fito-hemaglutinina para estimular o crescimento. Usava uma receita para fazer essa substância: bastava deixar feijões de molho em água salgada durante a noite e depois esmagar e pegar o sobrenadante onde a fito-hemaglutinina estaria. Eu não tinha como esterilizar e ficava cheio de
arquivo Pessoal
genética humana em Paris. Eu estava em várias partes do programa, por causa dos artigos na Nature. Na última noite houve uma festa, todos aqueles que davam as cartas em genética humana estavam lá. Na metade da noitada eu subi em uma cadeira e disse: “Quem não me conhecia antes, agora conhece. Estou pensando em sair de Oxford e, se alguém estiver interessado em me oferecer emprego, podemos conversar durante o resto da festa”. Recebi três propostas.
Pearson (à dir.) em examinação de doutorado em Leiden, onde todo o processo é feito em inglês
contaminantes, então punha um monte de penicilina e estreptomicina. Funcionou? Funcionou muito bem e me aproximou do estudo de cromossomos humanos. Quando terminei o doutorado, o Medical Research Council ofereceu uma vaga em Oxford na unidade de genética. Fiz a entrevista e consegui o emprego. Fiquei lá por sete anos e fiz várias descobertas olhando cromossomos, em parte pela intuição que desenvolvi sobre a combinação certa de equipamentos para cada situação. Eu tinha o melhor microscópio de fluorescência em Oxford, as pessoas vinham à minha salinha para usá-lo. A descoberta sobre o cromossomo Y aconteceu lá? Sim, eu colaborava com um colega, Martin Bobrow, e queríamos um produto chamado mostarda de quinacrina. Um grupo de Estocolmo tinha publicado que ela tingia a ponta do braço longo do cromossomo Y com fluorescência. Era difícil obter, mas existia um medicamento chamado di-hidrocloridrato de quinacrina (Atebrin) nas farmácias, produzido durante a Segunda Guerra Mundial para combater a malária. Compramos os comprimidos e maceramos. Naquela época era padrão usar mucosa bucal ou saliva para procurar pelos corpúsculos de Barr, que sinalizam a inativação de um dos cromossomos X. As células femininas deveriam ter apenas um deles; quando há dois, algo está errado. Examinamos lâminas tingidas com quinacrina e vimos em
metade delas um ponto brilhante dentro do núcleo. Poderia ser o equivalente do corpúsculo de Barr no cromossomo Y? Fui para casa naquela sexta-feira à noite, no sábado acordei bem cedo e colhi amostras dos vizinhos. Codifiquei quais eram homens e quais eram mulheres, para que eu mesmo não soubesse. Depois corei e codifiquei quais tinham o ponto brilhante. Quando desvendei o código, era perfeito: os homens tinham o ponto, as mulheres não. Chamei Bobrow e mostrei a ele. Em seguida chamamos o chefe do instituto, que veio, apesar de ser sábado e ele gostar de ver rugby na televisão. A prova final seria ter homens com dois cromossomos Y, e por coincidência tínhamos dois pacientes assim na prisão de segurança máxima de Reading, a 65 quilômetros de Oxford. Na segunda-feira mandamos uma enfermeira a Reading, ela trouxe as amostras e à tarde confirmamos os dois corpúsculos. Na terça-feira escrevi o artigo, mandei para a Nature e foi publicado duas semanas depois. As pessoas queriam chamar de corpúsculo de Pearson, mas eu não deixei e virou corpúsculo Y. Isso foi em 1970, publiquei quatro artigos na Nature em sequência. Já se fazia coloração de cromossomos em bandas? Não, isso veio depois que começamos a usar corantes com quinacrina. Há algo na estrutura dos cromossomos que faz com que tenham um padrão característico de bandas, e esse corpúsculo pôs a área em andamento. Em 1970, em setembro, houve um congresso internacional de
Por que você queria sair de Oxford? Oxford era fantástico e eu estava em uma curva de aprendizado incrível. No início estive no British Medical Research Council, mas logo me tornei o que eles chamam de tutor de Oxford. Cada tutor tem quatro ou cinco estudantes com os quais se senta, escolhem um tópico e discutem. Eles vinham à minha sala nas terças-feiras à tarde, e às 7 da manhã eu estava na biblioteca para me manter à frente. Depois tive um cargo de professor iniciante. Foi sensacional começar minha carreira lá, mas no meio da carreira tem toda uma política para se tornar membro do colégio certo, obter direitos de jantar na “mesa alta”, essas baboseiras de Oxford. A proposta da Holanda foi a melhor? Escolhi Leiden porque eles tinham um ótimo grupo de microscopia. Só depois descobri que a pessoa que tinha possibilitado a fabricação do meu microscópio de Oxford era de lá. Um dia recebi uma carta e o nome, Ploem, pareceu familiar: estava gravado no microscópio! Ele veio me visitar com outro holandês e um australiano, começou a tirar filtros dos bolsos e trocar partes do meu microscópio. O espécime que eu estava examinando enquanto os esperava ainda estava lá, então olhei de novo. Era a melhor imagem que eu já tinha visto. Colaboramos muito ao longo dos anos. Graças a isso aperfeiçoamos técnicas de hibridização in situ para marcar partes específicas do genoma. Como descobriu o pareamento dos cromossomos X e Y? Eu estava fazendo um levantamento. Como tinha interesse em infertilidade masculina, obtive biópsias de testículos de homens estéreis e de alguns que fizeram biópsia por outros motivos. Logo recoPESQUISA FAPESP 264 | 27
Pearson em Ilhabela a bordo do veleiro Bruxa do Mar, que construiu ao longo de 20 anos
nheci com o uso de quinacrina o braço longo do Y e observei que ele pareava com o X. Depois, com uma técnica que permitia localizar os centrômeros dos cromossomos, vimos que o braço curto do Y pareava com o curto do X. E isso está ligado à infertilidade? Sim. Boa parte da infertilidade masculina acontece quando esse pareamento dá errado. Em uma fase chamada diaquinese, ou em metáfase I, os dois cromossomos ficam completamente separados em 5% dos homens inférteis. Quando isso acontece em um número grande de células, é associado a contagens de espermatozoides praticamente nulas. Mais tarde você também estudou infertilidade feminina. Isso foi 30 anos depois, na Universidade de Utrecht. Recebi uma carta de um ginecologista, Egbert te Velde. Ele dizia que tinha interesse em colaborar comigo. Meu artigo mais citado, cerca de 900 vezes, é um que escrevi com ele sobre infertilidade feminina. Queríamos encontrar marcadores que permitissem prever quando uma mulher se tornará infértil. Antes de ela chegar à menopausa é difícil saber. A idade média da menopausa é de 50 anos. Mas a idade média em que a mulher fica infértil é 10 anos antes. Mostramos que é uma curva de Gauss determinada geneticamente. Ao comparar irmãs, ou mães e filhas, há uma correlação: se uma chega cedo à menopausa, o mesmo acontece com a outra. O conhecimento de cromossomos o tornou um especialista em reprodução? Um pouco, houve outros casos. Bob Ed28 | fevereiro DE 2018
wards [1925-2013], que inventou a fertilização in vitro e recebeu o Prêmio Nobel em 2010 por isso, precisava detectar o cromossomo Y em embriões de modo a verificar a fusão entre os gametas e validar a fertilização. Louise Brown, a primeira bebê “de proveta”, nasceu em 1978. Bob já fazia isso oito anos antes. Eram bolas de células, péssimo para ver os cromossomos. O ideal é ter algo achatado. Mas Bob não me deixava esmagar os embriões! Por isso, não consegui observar os cromossomos Y, mas tenho certeza de que estavam lá em metade deles. Você também participou do Projeto Genoma Humano, nos Estados Unidos. Gerenciei um banco de dados imenso, o primeiro estabelecido para o Projeto Genoma Humano. Talvez você pergunte por que um biólogo tinha esse cargo. Eu sabia um pouco de computação, mas o principal é que conhecia os dados. Na época, o Instituto Médico Howard Hughes fez uma proposta difícil de recusar e eu estava com problemas no meu primeiro casamento. Era uma oportunidade de sair da Holanda. Depois de 18 anos como chefe do Departamento de Genética Humana em Leiden, fui para a Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, montar esse banco de dados. Era um trabalho chato. O instituto pagava meu salário e percebeu que eu podia enlouquecer, então me deram um laboratório pequeno, com um microscópio de fluorescência novo, onde eu podia manter dois estagiários de pós-doutorado. Foi assim que conheci minha mulher atual. Um dia em 1990, o grego Stylianos Antonarakis, que fazia pós-doutorado em Hopkins, me disse: “Todos os dias,
Então você voltou à Holanda? Decidi sair do Projeto Genoma, depois de seis anos. Era chato – minha equipe era composta por 22 programadores. Eu era diretor do banco de dados que armazenava não as sequências, mas a localização dos genes nos cromossomos. Quando saí, correu a notícia de minha disponibilidade. A Academia Real de Ciências da Holanda estava pressionando a Universidade de Utrecht para abrir um departamento de genética humana e fui entrevistado no saguão do hotel em Montreal pelo chefe da banca do concurso. Conversamos em holandês por uma hora e ele me ofereceu o emprego. Então montei esse novo departamento. Fiquei lá por 10 anos até me aposentar no final do mês em que completei 65 anos – não era negociável na lei holandesa. Carla era professora em Leiden e estava se saindo muito bem, eu achava que devia continuar lá. Mas ela decidiu voltar para o Brasil por questões familiares. Você mencionou a importância de se ter uma base ampla de conhecimento. Quando eu estava no doutorado, fui à minha primeira conferência internacional. Uma noite, em um bar com estudantes norte-americanos, eles me espantaram com o quanto sabiam. Eu pensava que tinha muito conhecimento, mas aqueles caras me obliteraram completamente. O sistema educacional deles era diferente do britânico, em que a pessoa entra no doutorado e vai para o laboratório. Não havia cursos formais na época, tínhamos que nos virar. Quando voltei, decidi ir à biblioteca toda terça à tarde e ler o quanto conseguisse para obter informação de fundo. Muitas vezes um conhecimento
silas azocar
no laboratório de Barbara Migeon, ela e uma brasileira discutem, porque a brasileira defende a si mesma e os outros pós-doutorandos. Acho que seria ótima para o seu laboratório”. Barbara era uma cientista muito famosa lá, um ambiente difícil para mulheres. Então era durona. Eu não tinha tempo para pensar nisso, mas, na mesma semana, eu e os colegas recebemos um e-mail da Barbara dizendo que uma brasileira chamada Carla Rosenberg estava saindo de seu laboratório e em nenhuma hipótese outro professor deveria recebê-la. Peguei o telefone no ato: “Stylianos, me traga essa brasileira!”. O resto é história, como se diz.
tangencial me permite reconhecer um problema e buscar soluções em lugares inesperados. As pessoas me perguntam como faço isso. A resposta é que me expus muito à informação, não apenas a que usava na pesquisa. Na USP, pergunto a doutorandos sobre a sua pesquisa e eles me contam o projeto em minúcias. Mas não vão um milímetro além. Se tento mostrar que precisam de uma base mais ampla, eles não veem por quê. Muitas vezes foi assim na minha carreira. Acho que tive que me reprogramar umas cinco vezes. Em que sentido? Mudando a base de conhecimento. Comecei com cromossomos, depois fui para a citoquímica com os fluorocromos, em seguida fiz conexões com a estrutura do DNA e obtive resultados como hibridização in situ. Quando cheguei na Holanda, eles resolveram organizar a pesquisa em genética e nomearam uma comissão nacional para delinear uma proposta. A comissão se encontrava uma vez por mês durante dois anos com financiamento pago por companhias de seguro, não pelo governo. O chefe da comissão, um cara brilhante chamado Hans Galjaard, disse que tínhamos um problema: genética é medicina ou ciência? Se for medicina, deve ficar no hospital. Se for ciência, na universidade. Então organizamos fundações. Cada centro médico tinha uma fundação independente que escolhia sua própria equipe. O ministério aceitou e a vida era ótima assim, sem brigas entre universidades e hospitais. Em dois anos, a qualidade do atendimento genético de saúde chegou a ser o melhor do mundo. Tínhamos as pessoas e o conhecimento, bastava organizar. Uma década depois veio a parte molecular. Eu gostava de olhar cromossomos, mas tinha essa ideia de que seria possível contar cromossomos usando hibridização de DNA antes que alguém publicasse isso ou que existissem técnicas. Em 1979, saiu um artigo de um chinês chamado Y. W. Khan sobre alfa-talassemia, que envolve duas cópias do gene em cada cromossomo 16. Ele tinha desenvolvido um método de hibridização de DNA in vitro que permitia saber quantas cópias dos genes estavam afetadas. Resolvi contar cromossomos assim. Com um técnico brilhante que trabalhava comigo, montei uma biblioteca de plasmídeos, isolamos cromossomos
Os jovens na pós-graduação precisam usar inglês no laboratório e na redação de projetos
com sondas específicas. Conseguimos uma sonda para uma parte específica do cromossomo X e conseguíamos detectar muita variação genética nesses cromossomos. São os RFLPs, sigla para Polimorfismo de Comprimento de Fragmentos de Restrição, que eram sensacionais em comparação com o que se usava. Levei o achado para um congresso em Utrecht e todos ficaram boquiabertos. Eu disse que o ponto era no meio do braço curto do cromossomo, provavelmente perto do gene da distrofia muscular de Duchenne. Em seguida alguém que eu não conhecia veio falar comigo e me convidou para fazer pesquisa em distrofia muscular. Eu não podia, era chefe de departamento e lá não havia espaço para outra linha de pesquisa. Mas ele me prometeu dinheiro e capacidade de contratar equipe. Quando mesmo assim resisti, ele me convidou para o dia dos pacientes da Fundação para Distrofia Muscular da Holanda, no sábado seguinte. Era uma festa com a presença da rainha, show de alguém famoso na época, uma tenda de circo. O que me impressionou foram as centenas de pacientes, quase todos meninos, em cadeiras de rodas. Os com mais recursos tinham cadeiras motorizadas, os outros eram empurrados pelas mães. Como eu ia recusar? Então em 1983 comecei um grupo de pesquisa
em distrofia muscular de Duchenne, somado a tudo o que eu já fazia em Leiden. Fizemos um trabalho muito importante. Mapeamos o gene inteiro, que tinha 2,5 milhões de pares de bases. Esse trabalho com distrofia muscular rendeu colaborações aqui? Não propriamente. Eu quis estudar o envelhecimento de células-tronco aqui, mas não tinha financiamento. Me mantenho intelectualmente ativo. Ajudo a escrever projetos para o Cepid — Centro de Estudos do Genoma Humano, por exemplo, e fiz parte da primeira fase de seleção de projetos para o Instituto Serrapilheira. Como a organização da pesquisa poderia melhorar no Brasil? Os chefes de departamento têm mandatos de dois anos. Não se pode fazer nada nesse tempo, então ninguém determina os rumos do departamento de maneira mais estratégica. É preciso pensar à frente. No estado de São Paulo a FAPESP poderia organizar grupos nos quais as pessoas montariam projetos em colaboração. Haveria críticas para melhorar o projeto e também eliminaria duplicações quando mais de um grupo quisesse fazer a mesma coisa. Teriam que unir forças e fazer juntos. A produção científica, aqui, é pensada em termos de números de artigos. Ocorre que os níveis de citação são mais baixos do que em outros países, mesmo que não sejam de língua inglesa. Fiz um gráfico com as 400 maiores universidades do mundo, comparando o número de citações com um índice de proficiência em inglês. A correlação é uma linha reta e o Brasil está muito mal posicionado. Foi por isso que você montou o curso de inglês para ciência, que ministrou para pós-graduação até recentemente? Sim. Eles tinham que escrever um ensaio por semana e limitei as turmas a 30 estudantes. Poderia ter tido 100, mas já me levava a semana inteira para corrigir e reescrever, para eles verem como fazer corretamente. Gostavam muito. Os jovens em nível de pós-graduação precisam ser induzidos a usar inglês diariamente no laboratório, no trabalho e em grupos de discussão, e também na redação de projetos. Isso pode melhorar a capacidade de conseguir financiamento e publicar artigos de qualidade. n PESQUISA FAPESP 264 | 29
Choques da inovação Impactos de oito tecnologias para a competitividade de setores produtivos Tecnologias Setores produtivos
inteligência artificial
redes de comunicação
internet das coisas
Produção conectada
materiais avançados
Nanotecnologia
biotecnologia
armazenamento de energia
Agroindústria
insumos básicos
químico
petróleo e gás
bens de capital
automotivo
aeroespacial & defesa Tecnologias de Informação e Comunicação bens de consumo
Farmacêutico
Realidade e expectativa O estágio de tecnologia das indústrias brasileiras hoje e onde elas esperam estar daqui a 10 anos, segundo 759 empresas consultadas
38,7%
Hoje
1o Estágio
14,6%
em 10 anos
39,1%
1o Estágio
30 z fevereiro DE 2018
2o Estágio
26,6% 2o Estágio
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20,5% 3o Estágio
1,6% 4o Estágio
21,8% 4o Estágio Fonte Projeto Indústria 2027
política c&T Cenários y
Requisitos para a
sobrevivência da indústria Legenda
Impacto potencialmente disruptivo até 2027
Impacto disruptivo em 2017 e até 2027
Não se aplica
1º estágio Uso pontual
de tecnologias da informação e comunicação (TICs) e automação rígida e isolada 2º estágio Automação flexível, com uso de TICs sem integração ou parcialmente integradas entre áreas da empresa 3º estágio TICs integradas e conectadas em todas as atividades e áreas da empresa 4º estágio TICs integradas,
fábricas conectadas e processos inteligentes subsidiando gestores na tomada de decisão
E
conomistas das universidades Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Estadual de Campinas (Unicamp) estão produzindo um diagnóstico para a Confederação Nacional da Indústria (CNI) com o objetivo de avaliar os impactos de um conjunto de tecnologias emergentes e com alto potencial transformador sobre a competitividade industrial no horizonte de até 10 anos, além de fornecer subsídios para o planejamento de empresas e a formulação de políticas. Batizado de Indústria 2027, o projeto será concluído em abril, mas seus primeiros resultados revelam um panorama preocupante e desafiador. Preocupante porque a posição do país está longe de ser confortável nessa corrida tecnológica: em uma amostra representativa de 759 grandes e médias empresas consultadas em uma pesquisa de campo, apenas 1,6% opera no que se considera ser a fronteira tecnológica, a chamada manufatura avançada ou Indústria 4.0, com processos fabris integrados, conectados e inteligentes (ver quadro na página 30). E o panorama é desafiador porque 21,8% das mesmas empresas afirmam querer chegar a esse patamar até 2027, o que exigirá financiamento a pesquisa e desenvolvimento (P&D), mudanças organizacionais e apoio de políticas públicas. Quarenta pesquisadores de diferentes áreas estão contribuindo para o projeto e esmiuçaram de que forma e com que intensidade as mudanças tecnológicas vão determinar a competitividade industrial. Uma das constatações é que nenhum dos 10 siste-
Especialistas mapeiam riscos e oportunidades gerados por mudanças tecnológicas potencialmente disruptivas Fabrício Marques
ilustraçãO freepik
Impacto moderado em 2017 e em 2027
Articulação
O estudo mostra que as oito tecnologias-chave devem multiplicar e fortalecer os resultados umas das outras. Algoritmos de inteligência artificial, por exemplo, podem dar lastro a soluções de ciber-segurança, combinando-se com tecnologias de redes de comunicação, ou ajudar a analisar dados genéticos, em articulação com a biotecnologia sintética. Inovações em inteligência artificial, IoT e produção conectada prometem causar impactos disruptivos até 2027 em nove dos 10 se32 z fevereiro DE 2018
tores analisados. Máquinas dotadas de sensores conversarão com outras máquinas. “Elas vão gerar grandes volumes de dados sobre o seu desempenho e, com a ajuda da inteligência artificial, poderão aprender a tomar decisões”, diz Antônio Carlos Gravato Bordeaux, consultor responsável pela área de IoT no estudo, diretor da BXTEC, empresa que trata de inovações tecnológicas. Cadeias de produção poderão trabalhar conectadas, ligando empresas e seus fornecedores. “A Internet das Coisas promete melhorar a relação da empresa com seus trabalhadores, ao monitorar linhas fabris que impõem riscos à segurança e ajudar na prevenção de acidentes”, afirma Na maioria dos Bordeaux, que foi diretor de gestão segmentos da inovação do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomuniindustriais, a cações (CPqD), em Campinas, entre 2001 e 2013. O estudo estima que a transformação IoT gere aumentos de produtividade de até 50%, a depender do segmento será gradual, industrial. o que permite As novas tecnologias convivem com uma acelerada redução de cuscriar e afinar tos (ver ao lado). “Isso está ampliando a difusão das tecnologias”, ponestratégias dera João Carlos Ferraz. Dados do site Business Insider mostram que o custo médio de sensores de IoT está na casa dos US$ 0,44 a unidade, ante US$ 1,30 em 2004. O barateamento promete impulsionar a chamada economia circular. “Depois de fabricar um produto, uma empresa poderá acompanhá-lo ao longo de sua vida útil até que possa ser reaproveitado como matéria-prima”, diz Bordeaux. Capacidades cognitivas
O trabalho projeta cenários em que a mudança na indústria poderá acelerar-se, caso as máquinas ganhem capacidades cognitivas avançadas, mas também identifica entraves, como a dificuldade de adaptar todos os elos de uma cadeia produtiva a novas tecnologias. O acúmulo de inovações ao longo do tempo poderá gerar transformações radicais. São esperadas rupturas em modelos de negócio com a possibilidade de agregar serviços aos produtos. “A tendência é que a chamada servitização torne-se mais frequente”, diz Bordeaux. “Em vez de adquirir uma geladeira, o consumidor poderá comprar horas de utilização de um equipamento conectado, monitorado pela fabricante e substituído por uma geração mais recente quando isso for do interesse do cliente.”
ilustraçãO freepik
mas produtivos analisados, como agroindústria, petróleo e gás e automotivo (ver tabela na página 30), estará imune nos próximos 10 anos a transformações provocadas por um conjunto de oito grupos de tecnologias relevantes: IoT (internet das coisas), redes de comunicação; computação em nuvem, Big data e inteligência artificial; produção conectada e inteligente; bioprocessos e biotecnologia; materiais avançados; nanotecnologia; e armazenamento de energia. A análise dos especialistas mostra, contudo, que ainda há tempo para se preparar para a transição. A influência dessas tecnologias é considerada disruptiva no curtíssimo prazo em poucos segmentos industriais – caso, por exemplo, do impacto de materiais avançados no setor aeronáutico ou da inteligência artificial na indústria de bens de capital. Na maioria deles, a transformação será gradual. “Boa parte do impacto ainda está por vir. Esse resultado tem um lado positivo para quem planeja, pois mostra que há tempo para criar e afinar estratégias”, afirma David Kupfer, professor do Instituto de Economia da UFRJ e um dos coordenadores do Indústria 2027. Ele observa que tecnologias relacionadas à inteligência artificial e à produção de materiais nanoestruturados exigem atenção imediata, mas na maioria dos segmentos o avanço nos próximos 10 anos será incremental. “No início da pesquisa, nos preocupávamos muito, por exemplo, com os gargalos para fornecimento de eletricidade e nos custos elevados de armazenamento de energia, mas a análise dos especialistas mostrou que a evolução vai ocorrer ao longo dos próximos 10 anos e não há um risco de curto prazo.” Mesmo no campo da biotecnologia, que é fundamental para a manutenção da competitividade da agroindústria brasileira, não há previsão de mudanças abruptas nos próximos anos. De acordo com João Carlos Ferraz, também professor do Instituto de Economia da UFRJ, um dos objetivos do projeto é promover uma ampla discussão sobre o futuro da indústria brasileira. “O Brasil tem uma indústria diversa e heterogênea e em geral só se fala da ponta mais avançada. Estamos preocupados com as implicações para o planejamento das empresas em diferentes estágios tecnológicos e em recomendar políticas públicas adequadas”, afirma.
Outra frente promissora é o chamado twin digital, que consiste na simulação computacional do funcionamento de uma linha de produção operando em paralelo com a fábrica de verdade, a fim de testar ações necessárias para melhorar a eficiência e a segurança. “Já são realidade, por exemplo, na indústria aeronáutica, que necessita de produtos de altíssima qualidade e em que o desgaste de peças precisa ser programado.” Segundo o consultor, a indústria vai precisar de investimentos para incorporar tecnologias e de mais cientistas de dados para trabalhar com inteligência artificial. Ele ressalta a importância de montar testbeds, plataformas sobre uso de IoT e de manufatura avançada capazes de mostrar às empresas as possibilidades de aplicação.
Tecnologias com custos em queda A evolução do preço médio de sensores para Internet das Coisas
n Média
custo por sensor (US$)
n Estimado 1,30 1,11 0,95
0,82
0,70
0,60
0,51
0,44
0,38
Circulação de informação 2004
2006
2008
2010
2012
2014
2016
2018
2020
Fonte goldman sachs, bi intelligende estimates
Preço de referência de máquinas de impressão em 3D
custo por máquina (US$)
14.000
n Média n Estimado 12.000
10.000
8.000
6.000 2007
2009
2011
2013
2015
2017
2019
Fonte ibisworld
Custos de serviços de redes de comunicação para uso comercial
Serviços
n Fibra n Linha Digital de Assinante (DSL) n Cabo
custo médio por megabit (US$)
60 50 40 30 20 10 0 2010 Fonte Point Topic
2011
2012
2013
2014
2015
Se o caminho da IoT e da inteligência artificial na indústria é tangível, a percepção sobre um outro cluster tecnológico relacionado, o das redes de comunicação, ainda precisa se modificar, pois não se trata apenas de mais uma infraestrutura. Redes de comunicação são sistemas que reúnem computadores, canais de transmissão e recursos relacionados e interligados por meio do qual é possível trocar informações. “Elas servem para costurar outras tecnologias digitais, recebendo dados dos sensores de IoT, transportando informações a serem analisadas pelos sistemas de Data analytics e inteligência artificial e servindo como via de circulação de informação na produção inteligente”, explica o físico Claudio de Almeida Loural, que foi pesquisador de telecomunicações na Fundação CPqD e atuou como consultor do projeto para a área de tecnologias de redes. Essa área apresenta tecnologias maduras, como as de fibras ópticas e as redes móveis de gerações mais antigas, mas outras ainda estão em fase de seleção. É o que acontece com a criação de padrões e protocolos para a comunicação entre as máquinas, que devem ser objeto de competição ao longo de seu amadurecimento. Loural menciona o exemplo da conectividade entre produtos. “O foco são as redes de baixo consumo de energia e longo alcance. Há vários padrões desenvolvidos ou em desenvolvimento e pode-se prever uma convivência de várias alternativas nos próximos anos.” É provável que a maioria das empresas industriais aja com cautela na hora de investir. “O investimento em redes é alto para que elas corram o risco de escolher um padrão que não vingue”, afirma. Ele enxerga uma vulnerabilidade entre as pequenas e médias empresas brasileiras. “A maior parte delas ainda não atingiu as precondições de conhecimento e infraestrutura em tecnologias de informação e comunicação para dar o salto necessário e se beneficiar das tecnologias de redes”, alerta Loural. pESQUISA FAPESP 264 z 33
Mercado global de nanotecnologia A evolução recente e o crescimento esperado, segundo o tipo de tecnologia
n Nanomateriais n Nanoferramentas
US$ 174 bilhões
n Nanodispositivos n Total
US$ 90,5 bilhões US$ 39,2 bilhões US$ 15,7 bilhões
2010
2016
2021
2025
Fontes bcc research (2016) e research and markets (2016)
Manufatura avançada depende de convergência de tecnologias e nova articulação institucional, diz Kupfer
Baterias
A convivência de diferentes tecnologias não é um problema para o cluster de armazenamento de energia. “Não existe uma tecnologia hegemônica nem há como apontar que uma seja melhor do que a outra, porque isso depende do tipo de aplicação”, afirma Roberto Torresi, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), consultor do projeto sobre esse tema. Entre as tecnologias mais maduras que utilizam métodos eletroquímicos para armazenar energia, destacam-se as baterias de chumbo-ácido usadas em automóveis, as portáteis de íons de lítio utilizadas em equipamentos eletrônicos e carros elétricos, e as células a combustível, essas ainda em busca de viabilidade econômica. As de íons de lítio têm custos cada vez menores e são alvo de grandes investimentos no exterior (ver Pesquisa FAPESP nº 258). Isso porque são cruciais para a disseminação de carros elétricos e a instalação de sistemas de armazenagem capazes de amenizar as oscilações no fornecimento de energia a partir de fontes renováveis, por exemplo as eólicas, e de centrais elétricas mais tradicionais, como as hidrelétricas. Esse cluster se distingue pela predominância de impactos moderados nos próximos 10 anos – ainda que na indústria automotiva o potencial já seja disruptivo. Mas novas tecnologias serão 34 z fevereiro DE 2018
fundamentais para inovações de IoT, ao garantir a energia para o funcionamento de sensores e drones. Segundo Torresi, o Brasil está longe de ser um produtor de tecnologias nessa área, mas novas oportunidades poderão surgir se as companhias de distribuição de eletricidade brasileiras investirem em armazenamento. Os próximos anos devem testemunhar a disseminação na indústria do uso de materiais de alto desempenho, como nanotubos de carbono, insumos para impressão em 3D e biopolímeros. Tais perspectivas são analisadas no projeto sob o prisma de dois clusters tecnológicos, o de nanotecnologia e o de materiais avançados. No caso da nanotecnologia, o diagnóstico é que há boa massa crítica acadêmica no país, mas o esforço feito está em um patamar inferior ao de competidores. “Fiquei surpreso ao constatar que a produção científica brasileira em nanotecnologia, de cerca de 2% da produção mundial, está aquém da média da participação do país em todas as áreas, que chega a 2,7%”, diz Osvaldo Novais, do Instituto de Física de São Carlos da USP, responsável pela análise da área de nanotecnologia. “Isso porque há uma comunidade de bom tamanho atuando nessa área e tivemos investimentos nos últimos 15 anos.” Segundo ele, o Brasil pouco participa do esforço mundial em utilizar a nanotecnologia para desenvolver novas terapias contra o câncer, componentes de microeletrônica e sensores. “Precisamos de iniciativas agressivas para não perder terreno, principalmente na área farmacêutica e da saúde, nas quais as perspectivas são muito boas.” Empresas inovadoras
O esforço em gerar P&D para responder aos desafios tecnológicos da indústria vai exigir uma articulação institucional mais complexa do que a que o país dispõe hoje, afirma David Kupfer, da UFRJ. “A manufatura avançada não depende de inovações radicais, mas de uma convergência de tecnologias. Exige integração com a internet, investimento em Big data, em análise de dados e em capacidade de tomar decisões”, explica. “Essa convergência tecnológica vai exigir convergência institucional. Estamos lidando com aplicações empresariais diversas e os nossos instrumentos de financiamento à inovação parecem envelhecidos para lidar com isso. Vamos precisar de um redesenho institucional que permita o desenvolvimento integrado dessas tecnologias.” Esse desafio, segundo avalia, é ainda mais complexo do que gerar tecnologias. “Países como a China e a Alemanha estão redefinindo até a configuração de seus ministérios para articular os desafios da indústria e da tecnologia. Aqui no Brasil o que se vê é uma fragmentação dessa governança.” A escassez de investimentos é um agravante. “Estamos partindo de um patamar baixo em ter-
Receitas em inteligência artificial Crescimento esperado do mercado até 2025
60
US$ bilhões
50 40 30 20 10 0 2016
2017
2018
2019
2020
2021
2022
2023
2024
2025
Fonte Consultoria Tractica
mos de recursos e de articulação institucional.” A pesquisa de campo mostrou que as empresas estão atentas. “Elas já se preocupam em garantir a atualização tecnológica, mas não se observa ainda uma organização para que promovam o desenvolvimento de que necessitam”, afirma. “De todo modo, não depende só das empresas, mas de um movimento sistêmico, que vai exigir avanços regulatórios, oferta de serviços e soluções digitais e articulação com fornecedores.” O pesquisador Antonio José Felix de Carvalho, da Escola de Engenharia de São Carlos da USP e responsável pelo capítulo sobre materiais avançados, sustenta que o principal desafio do país é ampliar o número de empresas inovadoras capazes de transformar esses materiais em produtos com valor agregado. “Somos competitivos em materiais básicos e de baixa tecnologia, mas praticamente não temos empresas desenvolvendo materiais que estão na base de outras indústrias tecnológicas. Veja o desafio de produzir veículos elétricos. São necessários aços especiais, baterias de grande desempenho, motores com magnetos de alta performance, polímeros leves para reduzir o peso da carroceria. Mas não temos empresas trabalhando com o desenvolvimento desses materiais”, afirma. Segundo ele, o Brasil precisa selecionar setores em que pode ser competitivo, como os de petróleo, celulose e energias renováveis, e investir em sua capacidade industrial envolvendo novos materiais. Ele menciona o caso das biorrefinarias, capazes de gerar insumos avançados ligados à produção de bioenergia. Há o risco, segundo Carvalho, de que setores percam competitividade. “O perigo é repetir o que aconteceu com o setor têxtil, que acabou definhando enquanto competidores lançaram produtos baseados em novos materiais.”
Os avanços em biotecnologia e bioprocessos prometem impacto em segmentos como agroindústria, saúde e ambiente. “Isso deve modificar o jogo nesses setores, multiplicando as taxas de retorno das empresas que se atualizarem”, afirma o biólogo Carlos Alberto Moreira Filho, pesquisador da Faculdade de Medicina da USP e coordenador do capítulo sobre biotecnologia do projeto. “A possibilidade de edição do DNA promete gerar espécies agrícolas resistentes a pragas e ao estresse ambiental”, diz, referindo-se à técnica CRISPR/Cas9, que tem custos bem menores do que o desenvolvimento de espécies transgênicas. “Esse é um divisor de águas. Não depende só da biologia molecular, mas também de microquímica e Big data. O Brasil já tem vantagens comparativas, que se relacionam ao clima e à experiência de um país com mais de 40 milhões de hectares de plantas transgênicas.” No campo da saúde e da medicina, as perspectivas são transformadoras para a produção de vacinas, o conhecimento de mecanismos moleculares de doenças e a criação de terapias personalizadas, observa Moreira. “Temos boa produção científica nas universidades, mas dificuldade de tradução desse conhecimento para o mercado por falta de empresas nacionais de porte. No setor farmacêutico, seria necessário um processo de fusão ou consolidação de empresas.” Paulo Mól, coordenador do projeto Indústria 2027 na CNI, afirma que a iniciativa tem o mérito de estimular o setor industrial a discutir o futuro. “Vivemos discutindo agendas do passado por conta de o Brasil não ter resolvido gargalos importantes como o déficit da Previdência Social, os problemas de infraestrutura e os entraves no ambiente de negócios. É hora de olhar para as tecnologias que serão dominantes nos próximos 10 anos”, diz. n pESQUISA FAPESP 264 z 35
ambiente y
Ciência do
desastre Estudo avalia a produção científica sobre catástrofes naturais no mundo e destaca a brasileira na área de hidrologia Bruno de Pierro
36 z fevereiro DE 2018
Incêndios florestais em Santarém, no Pará: alterações no regime de chuvas causadas pelo El Niño contribuíram para aumentar o período de seca na região em 2015
Competências mapeadas Destaques do relatório da Elsevier de estudos sobre calamidades naturais publicados no mundo entre 2012 e 2016
Alemanha Destaca-se na publicação de papers sobre acidentes químicos e radiológicos
Estados Unidos Segundo país com maior produção na área, destaca-se no estudo de desastres meteorológicos e biológicos
Japão País com o maior impacto na pesquisa sobre catástrofes naturais, medido pelo número de citações
México É uma das nações que mais colaboram com outros países, ainda que o volume de papers publicados seja um dos menores Brasil É um dos países com maior impacto na área, especialmente artigos que tratam de catástrofes hidrológicas, como enchentes e inundações
China País com a maior produção acadêmica na área, com mais de 6 mil artigos publicados nos últimos cinco anos Fonte elsevier
fotos adam ronam
U
m relatório divulgado em no vembro pela editora holandesa Elsevier mostrou que, nos últi mos cinco anos, foram publica dos no mundo mais de 27 mil artigos em ciência do desastre, ramo que estuda o risco de catástrofes naturais e humanas. O número representa 0,22% do total de papers de todas as áreas do conhecimen to, indexados na base de dados Scopus entre 2012 e 2016. A maioria dos artigos (9.571) trata de temas relacionados a de sastres geológicos, como terremotos e deslizamentos de terra (ver gráfico na página 38). A análise dos trabalhos científi cos indica que a frequência dos acidentes aumentou nos últimos 50 anos, em parte porque houve crescimento da popula ção em áreas costeiras e de risco, além da intensificação de eventos associados
aos extremos da variabilidade climática, como enchentes e secas. Outro resultado foi a constatação de que a produção sobre desastres naturais é muito pequena em países emergentes fortemente atingidos por calamidades. Belize, na América Central, é um dos que mais sofreram perdas econômicas causadas por furacões, por exemplo; no entanto, apenas um artigo foi publicado sobre o tema por autores do país nos úl timos anos. Outros casos são o Haiti, no Caribe, com apenas 42 papers publicados, e Madagascar, na África, que não regis trou produção científica nesse campo. “É preciso estimular a pesquisa sobre desas tres naturais, uma área nova em todo o mundo e que necessita da integração de várias disciplinas, das ciências naturais às sociais”, afirma Osvaldo de Moraes,
diretor do Centro de Monitoramento de Desastres Naturais (Cemaden), órgão li gado ao governo federal, que participou do estudo da Elsevier. O levantamento indica que a China é o país mais produtivo na área, com 6.301 artigos publicados, com ênfase em traba lhos sobre prevenção. Na sequência estão os Estados Unidos, com 6.287 trabalhos, boa parte tratando de respostas imediatas a acidentes e recuperação de áreas des truídas. Outros países de destaque são Reino Unido (1.351) e Japão (4.017). Este último se distingue pelo impacto dessa produção, avaliado por meio do número de citações – o Japão é o mais especiali zado em ciência do desastre, ao dedicar 0,66% de sua produção científica à área. O índice é 3 vezes maior do que a média global de 0,22%. pESQUISA FAPESP 264 z 37
Eventos extremos ocorridos nos últi mos anos no Brasil, como um tornado que atingiu o estado de Santa Catarina, Artigos sobre desastres publicados no mundo entre 2012 e 2016 em 2009, e os deslizamentos que abala ram sete cidades da região serrana do Rio de Janeiro, em 2011, mobilizaram cien total Publicações tistas e tomadores de decisão. O Atlas Ciência dos desastres 27.273 brasileiro de desastres naturais, elaborado pela Universidade Federal de Santa Ca categorias abordadas nos estudos* tarina em 2013, mostrou que, entre 2000 17.598 * Significado dos Prevenção e 2009, foram registrados três vezes mais termos desastres no país do que na década ante 15.125 Preparação rior. Já projeções mais recentes apontam Prevenção: estudos 11.623 Resposta de monitoramento um aumento do risco de calamidades na do risco de desastres Recuperação 3.671 turais, como enchentes, deslizamentos em uma região de terra e secas extremas, nas próximas tipos de desastres sobre os quais mais se publica décadas (ver Pesquisa FAPESP nº 249). Preparação: análise de Geofísico 9.571 iniciativas concretas “Aqui não há furacões e terremotos for para minimizar riscos Meteorológico tes, mas temos histórico de um número 6.767 muito grande de desastres naturais de propostas Resposta: Químico e radiológico 6.445 do que fazer origem hidrometeorológica”, ressalta Hidrológico imediatamente após 6.237 José Marengo, coordenador-geral de um acidente Biológico Pesquisa e Desenvolvimento do Cema 5.716 den. A instituição foi criada em 2011 com Recuperação: Climatológico 3.949 pesquisas sobre o objetivo de elaborar um plano de pre Tecnológico reconstrução de áreas 2.654 venção e enfrentamento de catástrofes atingidas Ambiental em articulação com o governo federal. 1.163 Em linhas gerais, o Cemaden utiliza Transporte 381 informações de meteorologia, geologia e Queda de objetos 72 hidrologia fornecidas, entre outros, pelo espaciais Instituto Nacional de Meteorologia, Agên cia Nacional de Águas e Serviço Geoló Obs.: Cada artigo pode tratar de mais de uma categoria ou tipo de desastre Fonte elsevier gico do Brasil para desenvolver modelos e detectar áreas de vulnerabilidade física O continente asiático é propenso a ca nessa área, o Brasil não fica atrás em re no país. As informações são confrontadas tástrofes naturais, o que contribuiu para lação ao impacto de suas publicações. com dados de vulnerabilidade social, co que cientistas chineses e japoneses crias “O número de citações de trabalhos na mo, por exemplo, os números de crianças sem competência na área. De acordo com área de eventos hidrológicos chega a ser e idosos na região, levantados pelo Insti o relatório, nove das 10 instituições mais maior do que a média nacional”, afirma tuto Brasileiro de Geografia e Estatísti ca (IBGE). O Cemaden conta com uma prolíficas em ciência do desastre estão Osvaldo de Moraes. equipe de 30 pesquisadores e 60 técnicos nesses dois países: a primeira é a Aca responsáveis por criar os modelos e emitir demia de Ciências da China; a segunda, destaque brasileiro a Universidade de Tóquio. A Universi Ele explica que o país tem tradição nesse alertas diários. “Por exemplo, toda política dade Columbia, nos Estados Unidos, é tipo de pesquisa. “Cada vez que se faz de carro-pipa e de bolsa-estiagem que o a primeira não asiática na lista. um estudo do impacto ambiental para a governo federal implementa no Nordeste No relatório observou-se que as ativi construção de uma usina hidrelétrica é é estruturada a partir de informações que dades de pesquisa dos países tendem na também necessário avaliar os impactos o Cemaden repassa para a Casa Civil da turalmente a refletir os tipos de desastres climáticos na região e quais são as áreas presidência”, conta Moraes. O papel de pesquisadores no processo que mais ocorrem em cada região. Por passíveis de alagamento. Essa dinâmica exemplo, o Japão se especializou em ter fez com que, inevitavelmente, a pesquisa de aconselhamento científico a governos remotos e tsunamis; os Estados Unidos, em desastres hidrológicos tenha se de foi um aspecto avaliado pela Elsevier. Se em desastres meteorológicos e biológi senvolvido em paralelo com a utilização gundo o levantamento feito pela editora, cos; e a Índia, nos ambientais. Já o Bra dos recursos hídricos para gerar ener uma proporção substancial dos 27 mil sil se destaca na pesquisa em catástrofes gia elétrica”, observa Moraes. Isso não artigos publicados em ciência do desas hidrológicas, como secas, enchentes e ocorreu, por exemplo, na área de catás tre nos últimos cinco anos tem um foco inundações, e também em deslizamen trofes geológicas. A geologia brasileira explícito nas políticas públicas: 7,5% dos tos de terra. Embora publique poucos voltou-se mais para a exploração petrolí papers tinham a palavra “política” no títu artigos em ciência do desastre, quando fera e mineral do que para estudos sobre lo, no resumo ou entre as palavras-chave. comparado a países que já têm tradição movimentos de massa e ciência do solo. “A pesquisa em ciência do desastre está
O perfil das pesquisas
38 z fevereiro DE 2018
U.S. Navy
conseguindo cada vez mais influenciar os políticos”, disse à Pesquisa FAPESP o engenheiro Fumihiko Imamura, dire tor do Instituto Internacional de Pesqui sa sobre Ciência de Desastre (IRIDeS), com sede na Universidade de Tohoku, no Japão. “No nosso caso, por exemplo, cientistas que atuam nessa área fazem parte do Conselho Central de Mitigação de Desastres, órgão do governo japonês responsável pela elaboração de políticas para a redução de riscos de desastres. É uma forma de garantir que a opinião dos pesquisadores seja ouvida antes que me didas sejam implementadas.” Imamura explica que o IRIDeS atua em 38 campos do conhecimento. “Inves tigamos aspectos físicos que estão por trás de catástrofes naturais em escala global, como megaterremotos, tsuna mis e condições climáticas extremas”, explicou. A instituição também atua na constituição de tecnologias de respostas a desastres e mitigação com base nas lições aprendidas em episódios como o ciclone Isewan, em 1959; o grande ter remoto de Hanshin-Awaji, em 1995; e o terremoto seguido de tsunami, em 2011. colaborações
Para Imamura, o principal mérito do rela tório da Elsevier é chamar a atenção para a necessidade de consolidar mais parce rias internacionais em ciência do desastre. Isso porque as nações com maiores taxas de mortes por desastres naturais, como o Haiti, tendem a ter baixo volume de pro dução acadêmica nessa área. “São países pobres que não têm orçamento suficiente para apoiar a capacidade científica. Essa é uma das razões pelas quais as pesqui sas colaborativas internacionais devem ser altamente encorajadas e motivadas”, sugeriu Imamura. O engenheiro japonês ressaltou a contribuição que o Brasil pode dar. “Quase 50% dos desastres que ocor reram de 1995 a 2015 foram hidrológi cos. O Brasil tem uma sólida capacidade de pesquisa nessa área e, por isso, pode desempenhar um importante papel em cooperações internacionais.” Osvaldo de Moraes lembra que o Ce maden foi designado para coordenar um grupo de trabalho na área de prevenção e mitigação de desastres criado em 2015 pelo bloco dos Brics (Brasil, Rússia, Ín dia, China e África do Sul). O Cemaden também tem parceria com o gabinete de Meteorologia do Reino Unido para
Vista aérea da cidade de Sukuiso, após um forte terremoto, seguido de tsunami, atingir o Japão em 2011
A produção de artigos é pequena em países emergentes fortemente atingidos por calamidades
desenvolver modelos de avaliação do impacto da seca no semiárido brasilei ro. Outra colaboração é com o Joint Re search Centre (JRC), da União Europeia, para aperfeiçoamento de sistemas de modelagem hidrológica. Há desafios que tanto os pesquisadores brasileiros quanto os de outros países pre cisam enfrentar para consolidar a ciência do desastre, observa Gilberto Câmara, do Instituto Nacional de Pesquisas Es paciais (Inpe), membro da coordenação do Programa FAPESP de Pesquisa sobre
Mudanças Climáticas Globais. “Realizar estudos sobre desastres naturais pressu põe uma disposição para trabalhar em ambientes interdisciplinares, o que nem sempre ocorre”, diz. “Avaliar possíveis riscos de desastres é algo complexo. Não basta saber que irá chover bastante em determinada região; é preciso saber tam bém quem será atingido pela enxurrada. Isso exige que pesquisadores das ciências naturais trabalhem em conjunto com an tropólogos e sociólogos”, explica Câmara, que foi eleito novo diretor do secretariado do Group on Earth Observations (GEO). Com sede na Suíça, o GEO é uma rede global de organizações governamentais, instituições de pesquisa e empresas, com a missão de criar soluções para a gestão de informações e dados relacionados à observação da Terra. Uma das metas da instituição, conta Câmara, é promover o compartilhamen to aberto de dados e modelos que aju dam a cumprir o Marco de Sendai para redução de riscos de desastres naturais, documento que busca incentivar a cria ção de estratégias para reduzir diminuir danos causados por catástrofes até 2020. “É necessário ampliar a troca de infor mações entre países e tornar os dados abertos sobre terremotos e enchentes, por exemplo. Só assim teremos condi ções de construir modelos melhores”, avalia Câmara. n pESQUISA FAPESP 264 z 39
Cientometria y
#Os100Mais Comentados Empresa divulga o ranking com artigos científicos que chamaram a atenção dos leitores nas mídias sociais em 2017
40 z fevereiro DE 2018
Drawn Ideas / getty images
R
eduzir o consumo de gorduras pode não ser a melhor alternativa para diminuir o risco de doenças cardiovasculares e de morte, segundo a principal conclusão do estudo mais comentado nas mídias sociais em 2017. O paper, que recomenda cortar carboidratos, está no topo do ranking dos 100 artigos científicos de maior impacto na internet elaborado pela Altmetric, empresa do Reino Unido que monitora a influência da produção científica por meio não da citação em artigos, mas da análise de menções em sites, redes sociais, Wikipedia, portais de notícia e blogs. Grande parte das pesquisas mais discutidas no ano passado trata de assuntos como estereótipos de gênero, estigmas em torno de doenças mentais e efeitos das mudanças climáticas. Outras abordam tópicos como planetas capazes de sustentar a vida e o risco de robôs roubarem o emprego de seres humanos. O ranking completo está disponível em altmetric.com/top100/2017/.
As revistas médicas
The Lancet, BMJ e JAMA predominam no ranking com
22 artigos
49% dos artigos estão disponíveis
para leitura
gratuita
69 papers têm pelo menos um autor dos
Estados Unidos
O paper que lidera o ranking de 2017 foi publicado em agosto na revista The Lancet por pesquisadores de vários países, inclusive do Brasil, e avaliou a dieta de aproximadamente 130 mil pessoas em 18 nações nos últimos 10 anos. Segundo a base de dados Scopus, da editora Elsevier, o trabalho recebeu, por enquanto, apenas 10 citações em outros artigos. Mas teve impacto importante entre públicos variados: foi citado em mais de 7.400 posts no Twitter, 422 páginas no Facebook e 130 sites de notícias. “Graças aos dados da Altmetric é possível ter um quadro mais completo do alcance imediato da pesquisa na sociedade”, observa o cardiologista Álvaro Avezum, diretor da Divisão de Pesquisa do Instituto Dante Pazzanese, em São Paulo, e um dos autores do artigo. O número de citações, ele diz, é um parâmetro consagrado para avaliar a relevância da produção científica, mas não fornece pistas de como seus resultados são recebidos pela população. O ranking da Altmetric é divulgado anualmente desde 2013 (ver Pesquisa FAPESP nº 250). No ano passado, os 100 artigos da lista renderam, no total, mais de 200 mil menções. A maioria foi feita no Twitter (165 mil), seguido de sites de notícias (25 mil) e do Facebook (6.164). “As mídias sociais são as fontes mais importantes para avaliar o engajamento das pessoas ao compartilhar ou comentar posts em que os artigos científicos são divulgados”, explica o especialista britânico em bioinformática Euan Adie, fundador da Altmetric. “Já para analisar o alcance dos papers, é mais interessante considerar a repercussão em veículos da imprensa”, completa.
Um artigo publicado em maio na revista Research Policy ficou na segunda posição do ranking ao repercutir não só em mais de 7.300 tuítes, mas também em importantes jornais e portais de notícias, como o espanhol El País e o norte-americano Yahoo. O estudo mostrou que um terço dos 3.659 estudantes de doutorado das universidades da região de Flanders, na Bélgica, corria o risco de desenvolver algum tipo de doença psiquiátrica. “Embora seja um problema do ambiente universitário, a discussão sobre as pressões enfrentadas por quem opta por seguir a carreira acadêmica e os distúrbios psicológicos relacionados à vida na pós-graduação está em evidência no mundo. Isso justifica o interesse do público por esse tema”, comenta o biólogo Atila Iamarino, um dos criadores da rede ScienceBlogs Brasil.
N
a terceira posição, ficou um paper do Journal of American Medical Association (Jama), assinado por pesquisadores de várias instituições dos Estados Unidos. O estudo examinou dados do Medicare, o sistema de seguros de saúde gerido pelo governo norte-americano, entre 2011 e 2014, e descobriu que os pacientes com idade igual ou superior a 65 anos tratados por médicas apresentaram taxas de mortalidade significativamente menores em comparação com aqueles que foram atendidos por profissionais do sexo masculino no mesmo hospital. O estudo sugere que as diferenças de gênero nos padrões de prática médica pode ter implicações clínicas no tratamento dos pacientes. “Como se percebe, muitos assuntos estão relacionados à saúde humana e à aptidão física”, salienta Euan Adie. Pouco mais da metade da lista (53%) é de artigos publicados em revistas médicas ou que se dirigem a quem atua em medicina. “Trata-se de um campo do conhecimento cujos avanços científicos e as descobertas afetam diretamente a vida das pessoas, diferentemente, por exemplo, da física quântica.” Um dos artigos que mais fez sucesso em 2017 propôs uma metodologia controversa para diagnosticar depressão com base em fotos do Instagram. O estudo, publicado na revista EPJ Data Science por pesquipESQUISA FAPESP 264 z 41
Tweets, posts e zika Para avaliar a importância
comunicação científica sobre
nacional e internacional da
zika nas mídias sociais foi
divulgação de artigos nas mídias
dominada pelo inglês, embora
sociais, pesquisadores do Brasil,
o Brasil seja considerado o
Canadá e Estados Unidos
epicentro da epidemia”, comenta
investigaram como papers sobre o
Germana Barata, pesquisadora
vírus zika foram compartilhados
do Laboratório de Estudos
por usuários do Facebook
Avançados em Jornalismo da
e do Twitter no primeiro semestre
Universidade Estadual de
de 2016, quando a doença
Campinas (Labjor-Unicamp)
foi declarada emergência
e autora principal do estudo.
internacional pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O trabalho, publicado em janeiro
“No Twitter, pesquisadores publicam mais em inglês e, com isso, alcançam audiências
na revista PLOS ONE, mostrou que,
mais globais. Já no Facebook,
apesar de a língua inglesa
o impacto dos posts escritos em
prevalecer nos posts das duas
línguas não inglesas é local”,
redes sociais, no Facebook cerca
explica Germana, que faz estágio
de 24% das postagens foram feitas
de pós-doutorado na Universidade
em outros idiomas, com destaque
Simon Fraser, no Canadá, na
para o português e o espanhol.
área de ciências da informação.
No estudo, observou-se também
Segundo ela, a análise indica
que posts comentando artigos
que as informações científicas
com pelo menos um autor
seriam mais bem difundidas
brasileiro tiveram 13% mais chance
para as populações atingidas
de serem escritos em português
se os editores considerassem
no Facebook do que no Twitter.
divulgar resultados em português
“Os resultados indicaram que a
ou espanhol via Facebook.
sadores das universidades Harvard e de Vermont, nos Estados Unidos, coletou 43.950 fotos publicadas no aplicativo por 166 participantes. As imagens foram analisadas por um software. Ele ajudou a identificar que indivíduos deprimidos na amostra tendiam a publicar fotos que eram, em média, mais azuis, mais escuras e mais cinzas do que aquelas publicadas por usuários saudáveis. Para o epidemiologista Carlos Augusto Monteiro, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), a lista da Altmetric serve de alerta para que a comunidade científica tome cuidado na forma como os resultados de pesquisa estão sendo difundidos para o público. “Muitos estudos em saúde e medicina são divulgados nas mídias sociais como definitivos, mas nem sempre os resultados apresentados espelham um consenso dentro da comunidade científi42 z fevereiro DE 2018
ca”, afirma Monteiro. É o caso, ele diz, da pesquisa que ficou na primeira posição no ranking da Altmetric. “Apesar de ter ganho as manchetes, o estudo publicado na Lancet tem conclusões muito taxativas, como a de que as orientações sobre alimentação devem ser alteradas, e tem sido alvo de críticas de epidemiologistas de todo o mundo, por adotar metodologias questionáveis.”
O
nome do farmacêutico Anderson Martino-Andrade, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), foi parar na lista da Altmetric ao assinar, junto com pesquisadores de outros países, um artigo que identificou um declínio de mais de 50% na concentração de espermatozoides em homens ocidentais. O trabalho teve ampla repercussão principalmente em sites de notícia, sendo citado em 396 reportagens em
A revista
Nature tem o maior número de artigos
(16) no
ranking
vários países. “Analisamos 185 estudos publicados sobre o assunto entre 1981 e 2013, que analisaram um total de 42 mil amostras de sêmen. Algumas hipóteses para explicar a baixa concentração de espermatozoides é o aumento da obesidade, o tabagismo, o estresse e a crescente exposição a agrotóxicos”, explica Martino-Andrade. “Trata-se de um tema controverso entre pesquisadores, porque há grupos que contestam que haja um declínio na concentração de espermatozoides e que isso possa afetar a reprodutibilidade humana. O público também deveria ser informado sobre esse tipo de conflito, muito comum, que existe na ciência”, diz. Euan Adie, da Altmetric, chama a atenção para o fato de que nem sempre os artigos ganham notoriedade na internet exatamente por suas contribuições científicas. “Muitos papers caem na boca do povo nas mídias sociais devido a erros detectados após a publicação ou porque o assunto tratado é polêmico por si só”, diz. Ele conta que nessa última edição do ranking não houve casos de erros ou fraudes, mas recorda de situações incomuns registradas em anos anteriores. “Houve uma vez que o artigo estava no top 100 porque o autor havia escrito um pedido de casamento na seção de agradecimentos.” Em 2014, um trabalho foi muito comentado nas mídias sociais por causa de um descuido dos autores e dos editores do Journal of Ethology. O artigo, que tratava da variação de nível de melanina, pigmento que dá cor à pele, em diferentes ambientes, foi publicado com um comentário inusitado sobre uma das referências que eram citadas no texto: “Devemos citar a porcaria do artigo de Gabor aqui”. O paper foi substituído por uma nova versão, mas isso não foi suficiente para evitar a enxurrada de comentários na internet, quase todos zombando do deslize cometido pelos autores. n Bruno de Pierro
ilustração Júlia cherem rodrigues com imagens da freepick
alumni y
Laços restaurados Universidades usam plataformas para reunir ex-alunos e acompanhar sua trajetória no mercado de trabalho
Rodrigo de Oliveira Andrade
A
Universidade de São Paulo (USP) quer se aproximar de seus antigos estudantes e para isso vem investindo no portal Alumni USP (bit.ly/USPalum), uma espécie de rede social em que ex-alunos de graduação e pós-graduação podem aprimorar sua rede de contatos acadêmicos e profissionais, reencontrar colegas e tomar conhecimento de oportunidades de trabalho e de pesquisa, entre outras possibilidades. O interesse da USP é usar a plataforma para se inteirar sobre a trajetória de ex-estudantes no mercado de trabalho e avaliar a eficiência de suas estratégias de formação. A plataforma começou a ser testada em 2013. Em fins de 2016 passou a ser aberta para todos os ex-alunos de graduação e pós-graduação da universidade formados a partir dos anos 1970. Conta atualmente com cerca de 21 mil ex-alunos registrados, 7% dos 286.901 estudantes cadastrados que concluíram a graduação e a pós-graduação (mestrado e doutorado) na universidade nas últimas cinco décadas. pESQUISA FAPESP 264 z 43
44 z fevereiro DE 2018
Queremos usar a plataforma para avaliar nossas estratégias de formação, diz Marina Gallottini, coordenadora do escritório Alumni USP
dente da Superintendência de Tecnologia da Informação [STI] da universidade, João Eduardo Ferreira, do Instituto de Matemática e Estatística da USP, que se interessou em discutir como essa ferramenta poderia ser ampliada para toda a universidade”, conta Fonseca, um dos membros da equipe responsável pela administração do portal. Ao lado de outros alunos, eles elaboraram uma proposta e a apresentaram à reitoria da USP, que se interessou pela ideia. A responsável pelo desenvolvimento do software do Alumni USP é a iAlumni, startup fundada por ex-alunos da Poli, entre eles Cartolano. A empresa está incubada na STI, onde recebe apoio para seu desenvolvimento. “Estamos conversando com investidores e trabalhando em um plano de negócios para que o software usado no Alumni USP seja adotado por outras universidades do país”, diz Cartolano.
P
ara aumentar a adesão de antigos estudantes, os pesquisadores fazem campanhas publicitárias nas redes sociais e em meios de comunicação da própria universidade. A ideia é disseminar os benefícios que a plataforma oferece. Hoje, o egresso que se cadastrar no Alumni USP ganha automaticamente um e-mail USP, passando a ter acesso ao acervo digital no Sistema Integrado de Bibliotecas, incluindo o Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Isso pode ser importante para os ex-alunos que hoje trabalham em outras instituições de ensino e pesquisa do Brasil e do exterior e perderam o direito de acessar os acervos, destaca Fabiana Martins, professora dos cursos de graduação e pós-graduação em odontologia da Universidade de Santo Amaro, em São Paulo. Fabiana concluiu o doutorado na Faculdade de Odontologia da USP em 2013, e desde 2016 é cadastrada no Alumni USP. “Uso a plataforma para acessar o acervo digital de periódicos no Sistema Integrado de Bibliotecas e aperfeiçoar minha rede de contatos”, afirma. Ela destaca que o portal pode ser útil para estudantes de outros estados e países. “Recentemente entrei em contato com um colega colombiano dos tempos do doutorado por meio do Alumni USP e estamos discutindo a possibilidade de uma parceria em um projeto de pesquisa”, ela comenta.
ilustração Júlia cherem rodrigues com imagens da freepick
A maioria tem entre 35 e 55 anos de idade. A Escola Politécnica (Poli) e a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) são as unidades com mais usuários ativos: 2.967 e 2.936 ex-alunos, respectivamente. “Os números ainda são singelos”, reconhece a dentista Marina Helena Gallottini, da Faculdade de Odontologia da USP e coordenadora do escritório Alumni USP, responsável pela plataforma. “Cerca de 40% dos usuários voltam a acessar o portal após o cadastro.” A meta, segundo ela, é dobrar o número de participantes ainda no primeiro semestre de 2018 e estimular o uso mais frequente da rede. “Queremos manter um canal de comunicação atualizado com nossos egressos, fazendo disso uma ferramenta de gestão que nos permita aprimorar a formação dos alunos atuais”, explica Marina. “Poderemos usar a iniciativa para identificar as fragilidades da formação oferecida pela universidade em relação às exigências do mercado de trabalho.” Ela esclarece que professores e pesquisadores também poderão utilizar informações dos perfis dos ex-discentes na plataforma na prestação de contas de projetos concedidos por agências de fomento. A ideia é que as informações sobre a situação dos ex-alunos na academia ou no mercado de trabalho ajudem a demonstrar qual foi o impacto do investimento das agências na formação desses profissionais à época em que eram estudantes e tinham bolsa ou participavam de projetos de pesquisa. O Alumni USP foi concebido a partir do iMinerva, uma rede criada em 2010 pelo engenheiro da computação Etienne Cartolano e o engenheiro elétrico Fernando Josepetti Fonseca, membro da Comissão de Relações Internacionais da Poli. O objetivo era reunir estudantes de engenharia de diversas faculdades públicas que participaram de intercâmbios internacionais durante a graduação. Pouco mais de dois anos após sua criação, o iMinerva reunia aproximadamente 3 mil ex-estudantes. “A experiência bem-sucedida dessa plataforma na Poli chegou ao então superinten-
Vínculo entre universidade e seus ex-alunos aos poucos começa a ser mais valorizado no Brasil
jetórias acadêmicas e profissionais. Já os egressos escolhem manter os vínculos com as universidades por conta do prestígio que elas mantêm na sociedade e no mercado de trabalho, reforçando uma identidade que os diferencia. No Brasil, esse vínculo aos poucos começa a ser mais valorizado.
A
s associações ou comunidades de ex-alunos, especialmente em instituições públicas de ensino, são as formas mais conhecidas de vínculo entre ex-alunos de uma universidade. Muitas vezes, no entanto, essas entidades restringem-se a alguns departamentos. É o caso da associação dos antigos alunos das faculdades de Medicina e de Direito da USP. Tais iniciativas nascem por decisão dos próprios discentes, que as administram voluntariamente. A USP não é a primeira a criar uma rede para reunir ex-alunos. Outras instituições de ensino já contam com plataformas desse tipo. É o caso da Fundação Getulio Vargas (FGV), cuja plataforma Alumni Eaesp oferece carteirinha vitalícia que permite livre acesso às suas dependências, aos serviços da biblioteca e a anúncio de vagas no centro de carreiras, além de descontos em livros e cursos. Outra instituição a tentar se aproximar dos egressos é a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que lançou em 2011 a Rede Alumni Unicamp. O projeto, contudo, não avançou. A universidade alega que problemas envolvendo a manutenção do software da plataforma inviabilizaram a
continuidade da iniciativa. A Unicamp pretende retomar o projeto em 2018, sem data prevista de lançamento. Desde fins de 2014 a Universidade Estadual Paulista (Unesp) tem uma plataforma desse tipo, o Portal Sempre Unesp (http://bit.ly/sempreUnesp), fruto de um projeto desenvolvido pela Pró-reitoria de Graduação. “A ideia partiu da constatação de que a Unesp forma profissionais em diferentes áreas do conhecimento, inseridos em diferentes contextos, e que muitas vezes, pela atividade cotidiana, perdem o contato com a universidade”, diz Marcelo Hashimoto, diretor da Divisão Técnica Acadêmica da Faculdade de Ciências da Unesp, campus de Bauru, e um dos responsáveis pela administração da rede. Ele afirma que a manutenção do vínculo ajuda a instituição a avaliar seus currículos a partir da experiência dos ex-alunos no mercado de trabalho. “A participação deles em projetos institucionais também pode ser enriquecedora.” A plataforma da Unesp tem quase 10 mil antigos alunos cadastrados, de pouco mais de 50 mil formados. Ao se inscrever no portal, os usuários entram automaticamente em um banco de estágios e empregos mantido pela universidade, além de ter desconto na livraria da Editora Unesp e em cursos presenciais e a distância oferecidos pela instituição. “Para a universidade”, diz Hashimoto, “é bom ter um retorno e saber como os ex-alunos se desenvolveram profissionalmente após a formação. Isso ajuda a avaliar o processo de formação dos estudantes”. n pESQUISA FAPESP 264 z 45
Versão atualizada em 22/02/2018
Outra possibilidade é aproximar recém-formados e profissionais já experientes no mercado de trabalho, segundo o perfil e os interesses de cada um. O cruzamento dos dados baseia-se nas informações inseridas pelos próprios usuários, que podem sincronizar o perfil no Alumni USP com sua página na rede profissional LinkedIn. “Com isso, o portal também se propõe a ser uma espécie de balcão de oportunidades, com anúncios de vagas de emprego e parcerias de negócio e de pesquisa publicados pelos ex-alunos”, explica Fernando Fonseca. Para a advogada M aria Paula Dallari Bucci, da Faculdade de Direito da USP, a plataforma pode no futuro se tornar um elemento informativo do sistema de avaliação da universidade com base em dados referentes à taxa de inserção de seus alunos no mercado de trabalho. “Para além disso, a plataforma me parece promissora por permitir aos alunos que recentemente concluíram a pós-graduação se manter vinculados à universidade”, ela destaca. “Isso poderá ajudar a promover ou facilitar a continuidade de pesquisas desenvolvidas durante o curso”, diz Maria Paula, que foi membro da comissão encarregada de propor o novo sistema de avaliação da USP, em 2016. O conceito de alumni é bastante disseminado nas instituições de ensino do exterior, sobretudo na Inglaterra e nos Estados Unidos, em universidades como Oxford e Harvard, por exemplo. Nesses países, é comum as instituições contarem com o apoio financeiro de antigos alunos que se destacaram em suas tra-
ciência SAÚDE PÚBLICA y
Examinando
a vacina
contra
febre amarela Evidências científicas indicam que dose fracionada gera efeito protetor, mas não há consenso sobre sua duração
léo ramos chaves
Carlos Fioravanti
46 z fevereiro DE 2018
D
o final de janeiro até o início de março, quase 22 milhões de moradores de 77 municípios de São Paulo, do Rio de Janeiro e da Bahia devem receber a vacina fracionada – equivalente a 1/5 da dose completa – contra febre amarela, considerada a melhor estratégia para deter a epidemia de febre amarela de transmissão silvestre, responsável por 907 casos e 314 mortes em todo o país de junho de 2016 a janeiro de 2018. Anunciada no início de 2018, a decisão do Ministério da Saúde de fracionar a vacina apoia-se principalmente na impossibilidade de atender com a dose inteira todos os moradores das áreas de risco e daquelas em que o vírus causador da doença deve chegar nos próximos meses. Em 2017, o Instituto Tecnológico em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos), unidade da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) no Rio de Janeiro e único fabricante nacional, ampliou a produção mensal de 4 milhões para 6 milhões de doses e cessou as exportações, para priorizar o mercado interno. Ainda assim, a produção não tem sido suficiente para acompanhar o ritmo de propagação da febre amarela silvestre. Desde novembro de 2016, o vírus causador da doença – transmitido pelos mosquitos dos gêneros Haemagogus e Sabethes, que vivem em matas – avançou com rapidez inesperada em regiões antes consideradas livres da doença de Minas Gerais, Espírito Santo, São Paulo e Rio de Janeiro, cujos moradores, de modo geral, não tinham sido vacinados. As longas filas que se formaram diante dos postos de vacinação das grandes cidades no início de janeiro, antes do início da campanha intensiva de vacinação, indicavam a apreensão das pessoas, que buscavam a dose inteira, enquanto era possível, por acharem que a fracionada poderia não ter a mesma eficácia. Para contribuir para o debate sobre a atual estratégia de combate à epidemia, Pesquisa FAPESP entrevistou especialistas e apresenta, a seguir, as bases científicas dessa forma de uso da vacina. Em resumo, o fracionamento conta com o respaldo de estudos científicos e deve gerar um efeito protetor contra o vírus, mas há incertezas sobre a eficácia e a duração desse efeito, além de controvérsias sobre a necessidade de doses de reforço. A VACINA FRACIONADA
Seringas especiais como esta aplicam a dose de 0,1 mililitro da vacina fracionada
Três testes clínicos controlados apresentaram resultados positivos sobre a imunogenicidade – a capacidade de ativar as defesas do organismo – das doses fracionadas. O primeiro foi feito pelo Bio-Manguinhos com 300 militares com idade entre 18 e 47 anos e publicado em 1988 na Journal of Biological Standardization. O segundo foi realizado na Holanda por uma equipe da Universidade de Leiden com 175 pessoas com idade entre 25 e 27 anos e publicado na PLOS ONE em 2008, indicando que 1/5 da dose normal apresentava o mesmo efeito pESQUISA FAPESP 264 z 47
protetor que a dose padrão. O outro foi feito pela Fiocruz no Rio de Janeiro com 749 soldados com idade média de 19,4 anos. Os participantes foram divididos em seis grupos; cada um recebeu uma dose diferente, já que se pretendia avaliar a eficácia da vacina em seis concentrações distintas: 1/1 (inteira) e frações de aproximadamente 1/3, 1/10, 1/60, 1/170 e 1/900 da dose padrão. Os resultados, publicados em 2013 na Human Vaccines & Immunotherapeutics e em 2014 na BMC Infectious Diseases, indicaram que as concentrações de até 1/10 da dose original preservavam os efeitos protetores contra o vírus induzido pela dose padrão. Dosagens menores também levaram à produção de anticorpos, que, por si só, não é suficiente para deter o vírus, observa o farmacêutico bioquímico Olindo Assis Martins Filho, pesquisador do Instituto René Rachou, unidade da Fiocruz em Minas Gerais. Segundo ele, a melhor resposta imunogênica implica a produção equilibrada de anticorpos, de células de defesa e de mediadores conhecidos como interleucinas, que ativam as células de defesa, estimulam a produção de anticorpos e, de modo mais amplo, regulam as defesas do organismo contra microrganismos causadores de doenças (ver tabela na página 49). Os três testes em seres humanos apresentam limitações. Em um documento de julho de 2016, a Organização Mundial da Saúde (OMS) observou que o número de participantes e a faixa de idade são restritos, impedindo conclusões mais abrangentes. Por essa razão, crianças com até 2 anos de idade, gestantes e pessoas que passaram por transplantes de órgãos e têm doenças autoimunes ou mais de 60 anos, que não foram representadas nesses estudos, continuarão recebendo a 48 z fevereiro DE 2018
Na Bio-Manguinhos, a vacina contra febre amarela é produzida essencialmente com a mesma técnica, em ovos embrionados, desde 1937
fotos 1 Ascom / Bio-Manguinhos / Fiocruz 2 léo ramos chaves infográfico ana paula campos
1
vacina padrão. Em um estudo amplo, pesquisadores do Imperial College de Londres compararam os resultados de 12 estudos clínicos realizados entre 1965 e 2011 envolvendo 4.868 pessoas. Como detalhado em um artigo de 2016 no American Journal of Tropical Medicine and Hygiene, a dose de 1/10 gerou uma resposta, medida pela produção de anticorpos neutralizantes do vírus, equivalente a 97% da dose padrão. “Estamos absolutamente tranquilos sobre a eficácia do fracionamento”, afirma o médico veterinário Akira Homma, consultor científico sênior do Bio-Manguinhos. Com o fracionamento, um frasco com cinco doses servirá para vacinar até 25 pessoas nas áreas em que o vírus ainda não chegou, mas pode chegar logo, já que cada pessoa, em vez de 0,5 mililitro (ml) da dose padrão, receberá 0,1 ml, por meio de seringas especiais. “Com os 4 milhões de doses que temos, conseguiremos atender todo mundo”, tranquiliza. Homma argumenta que em 2013, pressionada pela falta de vacinas, a OMS aprovou o fracionamento, também de 1/5 da dose completa, para deter a epidemia de febre amarela de outro tipo – a urbana, transmitida pelo mosquito Aedes aegypti – na África. “Funcionou muito bem”, avaliou Homma. Em campanhas de emergência, cerca de 30 milhões de pessoas foram vacinadas em Angola e na República Democrática do Congo. O surto que começou em dezembro de 2015 em Angola terminou em fevereiro de 2017, após ter causado 965 mortes nos dois países. “A dose equivalente a 1/5 da dose completa vai proteger igualmente”, reitera o infectologista Marcos Boulos, coordenador de controle de doenças da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SES-SP) e professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP). Já para o médico e físico Eduardo Massad, “a vacina fracionada de fato é imunogênica, mas ninguém sabe se é realmente eficaz”. “Temos apenas evidências indiretas de que sim, porque até agora a febre amarela não reemergiu em Angola e na República Democrática do Congo”, observa Massad, professor da FM-USP. O questionamento de Massad se apoia em dois argumentos. O primeiro é que a eficácia das doses de menor concentração não foi avaliada em modelos animais, nos quais se aplica a vacina e depois o vírus para se determinar o grau efetivo de proteção e a dosagem mais efetiva. O segundo
O efeito de cada dose A vacina padrão (1/1) e dois tipos de fracionamento (1/3 e 1/10) produzem proteção similar, mas quantidades menores não dão o mesmo resultado
Dose Frações aproximadas
1/1
1/3
1/10
1/60
1/170
1/900
Resposta imune Anticorpos que neutralizam o vírus MIG-CXCL9 IL-8-CXCL8 MCP-1/CCL2 IP-10, CXCL10 IFN-γ TNF IL-2 IL-5 IL-10 IL-4
As siglas representam interleucinas, proteínas que regulam a ação das células de defesa e a produção de anticorpos e são importantes na resposta do organismo contra microrganismos causadores de doenças 2
Com o fracionamento, um frasco com cinco doses vacina até 25 pessoas nas áreas em que o vírus ainda não chegou
Fonte Olindo Martins Filho/Fiocruz MG
argumento é que os resultados não são garantidos: a vacina contra dengue mostrou bons resultados nos testes clínicos iniciais, em pessoas sadias, mas um baixo desempenho na etapa seguinte de avaliação, em pessoas vacinadas que se infectaram com o vírus. “Uma coisa é produzir anticorpos, outra é não pegar a doença”, observa Massad. A resposta do organismo pode variar por pessoa e, em alguns casos, não ser suficiente para deter o vírus. Também não se sabe se as reações serão iguais às da vacina padrão. “Supõe-se que as reações sejam equivalentes, mas a vacina fracionada não foi avaliada em grande escala na população”, acrescenta Massad. Após o surto de febre amarela em 2009 em Botucatu, com 29 casos confirmados e 11 mortes, ele coordenou o planejamento da expansão das áreas de vacinação no estado, detalhado em um artigo de 2015 na Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. Em janeiro, as autoridades da saúde diziam que apenas as pessoas que circulassem por áreas de risco de transmissão da febre amarela silvestre deveriam se vacinar. Era uma forma de priorizar a vacinação dos moradores dessas áreas, por onde circulam os mosquitos infectados com o vírus, e evitar que o risco de efeitos indesejados da vacina fosse maior que o da própria doença. Em
São Paulo, três pessoas com menos de 60 anos morreram no início de 2018 por reação à vacina, embora, de acordo com a Secretaria de Saúde, algumas não tenham relatado as doenças prévias que as impediriam de ser vacinadas. DURAÇÃO INCERTA
Outra pergunta ainda sem resposta: quanto tempo deve durar o efeito protetor da vacina fracionada? Em janeiro de 2018, médicos, pesquisadores e autoridades da saúde afirmaram que a dose com 1/5 da concentração poderia manter a proteção contra o vírus por pelo menos oito anos, mas essa informação se apoia em um estudo não concluído e não publicado de pesquisadores da Fiocruz do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. Em 2017, para conhecer a duração do efeito da vacina, a equipe da Fiocruz procurou os participantes do segundo estudo, que avaliou o efeito, medido pela imunogenicidade, das doses fracionadas em soldados do Rio. Porém, o ano em que os militares tomaram a vacina, que deveria ser o ponto inicial da avaliação da duração do efeito protetor, não consta nos artigos de 2013 e 2014. Martins Filho, que participou do segundo artigo e integra a equipe do novo estudo, diz que as doses fracionadas foram aplicadas em 2009. Dos pESQUISA FAPESP 264 z 49
DOSES DE REFORÇO?
A duração do efeito protetor da dose inteira também é incerta. “Não acredito que dure a vida inteira”, diz Marcos Boulos, que se lembrou de uma reunião no Ministério da Saúde em 1983. Naquele momento, os especialistas diziam que a vacina, então indicada para 10 anos, poderia durar no mínimo 30. Em 2013, diante da escassez de vacinas para enfrentar a epidemia na África, a OMS mudou a orientação e estabeleceu que uma única dose poderia valer não mais para apenas 10 anos, mas para toda a vida. O Ministério da Saúde do Brasil acatou essa diretriz em 2017. “Nesse momento, de acordo com as diretrizes em vigor, não há necessidade de doses de reforço”, diz a médica Helena Sato, diretora de imunização da SES-SP. Em um artigo de 2013 na American Journal of Tropical Medicine and Hygiene, fundamentado em 36 estudos sobre imunogenicidade em adultos, crianças e gestantes, pesquisadores do Instituto de Medicina Tropical Alexander von Humboldt, no Peru, e da OMS concluíram que o efeito protetor poderia se estender por toda a vida, dispensando a necessidade de uma dose de reforço. Esse é, porém, outro ponto controverso. Com base em um estudo da Fiocruz de Minas Gerais publicado em 2016 na Human Vaccines & Immunotherapeutics, Martins Filho argumenta que o efeito começa a cair cinco anos depois da primeira vacina e se torna crítico após 10 anos, quando 70% das pessoas vacinadas manteriam a capacidade de reagir ao vírus, justificando uma dose de reforço. “Eu estava na reunião da OMS de 2013 e fui contra a decisão da dose única”, relata o médico 50 z fevereiro DE 2018
Em São Paulo (abaixo) e em outras grandes cidades, o avanço da epidemia gerou longas filas diante dos postos de vacinação
virologista Pedro Vasconcelos, diretor do Instituto Evandro Chagas, de Belém. “É mais prudente vacinar no mínimo duas vezes, porque nem todas as pessoas respondem do mesmo modo.” Em um comentário na edição de fevereiro de 2018 na Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, ele defende a necessidade de uma dose de reforço e de vacinas mais modernas contra a febre amarela. A Bio-Manguinhos é um dos quatro fabricantes reconhecidos pela OMS, que alegam que o baixo custo da dose dificulta os investimentos em ampliação e novos métodos de produção. A vacina é produzida essencialmente do mesmo modo desde 1937: uma linhagem específica do vírus causador da febre amarela passa dezenas de vezes por ovos embrionados para perder força e induzir nas pessoas a produção de anticorpos e células de memória que atacarão o vírus normal, caso apareça. A Fiocruz de Pernambuco está pesquisando um imunizante preparado com base no material genético do vírus e pretende testar novas formulações assim que possível. Já a Fiocruz do Rio trabalha em um modelo feito com base no vírus de febre amarela inativado. Os dois estudos estão, ainda, longe de qualquer conclusão. Em um artigo publicado em 2011 na New England Journal of Medicine, uma equipe da empresa Xcellerex, dos Estados
1
fotos 1 léo ramos chaves 2 WHO/E. Soteras Jalil
749 soldados que haviam participado do estudo anterior, 319 foram localizados, disseram não ter sido revacinados e aceitaram participar do novo estudo. De acordo com a Fiocruz, as análises das amostras de sangue indicaram que a maioria dos homens reavaliados teria mantido os níveis altos de anticorpos neutralizantes do vírus e de células de memória. O farmacêutico bioquímico Alejandro Costa, pesquisador da Iniciativa para a Pesquisa de Vacinas da OMS, conheceu os resultados do novo estudo da Fiocruz em dezembro de 2017 em uma reunião no Ministério da Saúde, em Brasília. “A evidência sobre a duração do efeito protetor no estudo da Fiocruz parece consistente, mas não está validada por um comitê de especialistas”, observa. Segundo ele, nessa reunião, uma das recomendações da OMS às equipes da Fiocruz e dos estados que adotarão a vacina fracionada foi o acompanhamento de amostras representativas da população ao longo dos próximos anos para se conhecer efetivamente a duração do efeito protetor da dose fracionada.
Centro de saúde da periferia de Kinshasa, capital do Congo, durante a campanha de vacinação para deter a epidemia de 2016
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A vacinação protege as pessoas, mas não interrompe a transmissão do vírus pelos mosquitos
Unidos,relatou que uma vacina produzida com o vírus inativado mostrou-se segura e imunogênica em um estudo com 60 pessoas com idade entre 18 e 49 anos. A GE Healthcare Life Sciences adquiriu os direitos da vacina da Xcellerex em 2012 e os vendeu a outra empresa farmacêutica, a PnuVax, em 2016. Os testes continuam. RISCO DE EXPANSÃO
Mesmo que as campanhas de vacinação e as doses fracionadas apresentem os resultados desejados, a febre amarela tornou-se endêmica na maioria dos estados brasileiros e nos países vizinhos – já chegou a parte da Argentina, Bolívia, Paraguai, Peru, Colômbia, Equador e Venezuela. “Pode-se, com a vacinação em massa, debelar um surto de febre amarela silvestre, depois de irrompido?”, indagava-se, em 1957, o médico Caio de Souza Manso, chefe do setor de vacinação do Serviço Nacional de Febre Amarela do Ministério da Saúde. “Acreditamos que não, ou, pelo menos, não o temos conseguido.” Seus argumentos ainda valem, seis décadas depois. A vacinação protege as pessoas, mas não interrompe o ciclo de transmissão do vírus: os mosquitos infectados continuarão a picar macacos que vivem nas matas e servem como hospedeiros temporários do vírus. Outros
mosquitos, ao picar os primatas silvestres, vão adquirir o vírus e eventualmente transmiti-lo para pessoas não vacinadas que moram em áreas de matas ou as visitam. Massad inquieta-se com a possibilidade de volta da febre amarela urbana, transmitida pelos Aedes aegypti e registrada pela última vez no país em 1942: “Se os Aedes aumentarem numericamente nas áreas periféricas e resolverem picar macacos infectados e depois as pessoas, será uma tragédia”. Dois estudos publicados em 2017 na Scientific Reports sustentam essa possibilidade. No primeiro, uma equipe da Faculdade de Saúde Pública da USP verificou que os Aedes são os mosquitos predominantes em nove parques públicos da cidade de São Paulo. No segundo, uma equipe da Fiocruz do Rio, do Instituto Pasteur da França e do Instituto Evandro Chagas observou que o Aedes é tão apto a transportar o vírus da febre amarela quanto os Haemagogus e o Sabethes. “A quantidade de Aedes nas cidades atualmente é baixa, mas pode aumentar”, alerta Costa, da OMS. “Temos de intensificar a vacinação preventiva para evitar a febre amarela urbana, mais difícil de controlar que a silvestre.” n Artigos científicos ROUKENS, A. H. et al. Intradermally administered yellow fever vaccine at reduced dose induces a protective immune response: A randomized controlled non-inferiority trial. PLOS ONE. v. 3, n. 4, e1993. 2008. MARTINS, R. M. et al. A double blind, randomized clinical trial of immunogenicity and safety on a dose-response study 17DD yellow fever vaccine. Human Vaccines & Immunotherapeutics. v. 9, p. 879-88. 2013. CAMPI-AZEVEDO, A. C. et al. Subdoses of 17DD yellow fever vaccine elicit equivalent virological/immunological kinetics timeline. BMC Infectious Diseases. v. 14, p. 391. 2014. OMS. Fractional dose yellow fever vaccine as a dose-sparing option for outbreak response. 2016. As referências completas dos outros artigos citados encontram-se na versão on-line desta reportagem.
pESQUISA FAPESP 264 z 51
Neurologia y
depressão em adolescentes Aumento na atividade de rede cerebral
associada à recompensa pode indicar risco maior de desenvolver a doença
Ricardo Zorzetto
É
no início da adolescência, uma fase de grandes transformações no corpo e na mente, que aumenta a frequência dos casos de depressão, marcada por uma sensação prolongada de tristeza, queda da autoestima e perda do prazer em realizar atividades antes agradáveis. Estudos que acompanharam crianças e adolescentes nos Estados Unidos no final dos anos 1990 constataram que a proporção de casos novos que surgem a cada ano passa de 1% aos 11 anos de idade para 2% aos 15 anos e 15% aos 18 – em média, uma em cada seis pessoas terá um episódio de depressão ao longo da vida. Agora, um grupo de pesquisadores brasileiros verificou que uma alteração no funcionamento da rede cerebral associada à recompensa parece anteceder em alguns anos a instalação do problema em adolescentes. Se confirmada em outros estudos, essa característica talvez possa servir como um sinalizador do risco de depressão. Essa conclusão emerge de um estudo que acompanhou por ao menos três anos 52 z fevereiro DE 2018
529 crianças e adolescentes brasileiros (255 de São Paulo e 274 de Porto Alegre). Exames de imagens que permitem ver o cérebro em funcionamento mostraram que aqueles que apresentavam a rede cerebral da recompensa mais ativa e com seus pontos mais conectados entre si apresentavam um risco 54% maior de receber o diagnóstico de depressão na avaliação psiquiátrica feita três anos depois do teste inicial do que as crianças e os adolescentes em que esse circuito operava em níveis mais baixos e considerados adequados. A rede da recompensa começou a ser mapeada no início dos anos 1950 em testes com roedores feitos pelo psicólogo norte-americano James Olds (1922-1976) e pelo neurofisiologista britânico Peter Milner (1919). Formada por diferentes regiões do cérebro sensíveis à ação da dopamina, um comunicador químico (neurotransmissor) que transporta informações de uma célula cerebral a outra, essa rede processa as sensações de prazer, como as geradas pelo consumo
de alimentos saborosos, o contato com amigos, um elogio do chefe ou pela atividade sexual. Também modula a motivação, uma força interna que leva as pessoas a perseguir seus desejos e satisfazer suas necessidades. No estudo com crianças e adolescentes de São Paulo e Porto Alegre, o psiquiatra Pedro Pan, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e o neurocientista e estatístico João Ricardo Sato, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), analisaram o grau de conectividade entre 11 pontos da rede de recompensa, enquanto os voluntários permaneciam deitados e em repouso no interior do aparelho de ressonância magnética. Os voluntários haviam sido orientados a olhar para um ponto fixo e não se concentrarem em nenhum pensamento específico. Nessa situação, o cérebro se encontraria em seu estado mais fundamental – ainda assim, com várias redes cerebrais ativas – e permitiria identificar as características intrínsecas ao seu funcionamento.
Participante do estudo, durante exame de ressonância magnética realizado na Universidade de São Paulo
Nos participantes com o circuito cerebral de recompensa mais conectado e ativo, uma área em especial chamou a atenção dos pesquisadores: o corpo estriado ventral esquerdo. Essa pequena estrutura localizada em uma região profunda e evolutivamente primitiva do cérebro encontrava-se mais ativa nas crianças que mais tarde desenvolveram depressão do que naquelas que não tiveram o problema.
Eduardo Cesar
antes dos sinais clínicos
“É a primeira vez que se observa o funcionamento anormal do circuito de recompensa em repouso antes de a depressão se manifestar do ponto de vista clínico”, afirma Pan, primeiro autor do artigo que descreveu esses resultados em novembro de 2017 no American Journal of Psychiatry. Segundo o psiquiatra, o resultado fortalece a hipótese de que a alteração no funcionamento da rede estaria na origem de algumas formas de depressão, em especial daquelas marcadas pela anedonia, a perda no interesse de atividades antes prazerosas.
No ano passado, Pan passou quatro meses analisando os dados em colabo ração com o psiquiatra Argyris Stringaris, diretor da Unidade de Humor e Desenvolvimento do Cérebro do Instituto de Saúde Mental dos Estados Unidos (NIMH). Estudos anteriores conectavam a atividade anormal do estriado ventral a problemas neurológicos, como a doença de Parkinson, e psiquiátricos, como esquizofrenia e depressão. Em 2015, Stringaris observou uma conexão entre o funcionamento do estriado ventral e a depressão: essa estrutura se tornava progressivamente menos ativa à medida que os sinais de depressão se instalavam nos adolescentes. Os resultados do estudo de Pan e os de Stringaris parecem contraditórios, mas não são. Stringaris havia usado uma estratégia distinta e ao mesmo tempo complementar. No estudo publicado em 2015 no American Journal of Psychiatry, Stringaris colocou voluntários para participar de um jogo que poderia dar uma recompensa (doces) enquanto eram feitas pESQUISA FAPESP 264 z 53
Apresentar a rede cerebral ligada à recompensa mais ativa elevou em 54% a probabilidade de desenvolver depressão
As 11 áreas do circuito cerebral associado à recompensa estavam mais ativas, em especial o núcleo estriado ventral esquerdo, além de conectadas entre si em crianças e adolescentes que depois desenvolveram depressão marcada por perda de prazer (anedonia) outros pontos da rede estriado ventral esquerdo
Fonte pan, p. et al. american journal of psychiatry. 2017
imagens do cérebro em funcionamento. Esse trabalho, porém, não permitia saber se a mudança na atividade do estriado era causa ou consequência da depressão. “Vistos em conjunto, os dados sugerem que as mudanças no cérebro começam algum tempo antes da manifestação clínica da doença”, afirma Pan. Ele e Stringaris interpretam a hiperativação inicial do estriado ventral, anterior à sua perda de função, como uma forma de o cérebro tentar compensar um problema que ainda não está instalado ou como um sinal de que ele não está conseguindo processar adequadamente os estímulos que geram a sensação de recompensa.
O uso de neuroimagem para identificar fatores de risco tenta aproximar a psiquiatria de áreas médicas que atuam de modo preventivo
primeiro passo
Se outros estudos confirmarem esse achado, a ativação excessiva do estriado ventral pode se tornar preditor de risco da depressão em adolescentes. “Esse é um passo inicial”, afirma o psiquiatra Luis Augusto Rohde, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coautor do estudo de Pan. “Antes, é preciso replicar o estudo com outros grupos de voluntários para ver se o efeito se mantém e, quem sabe, um dia possa ser incorporado à prática clínica.” 54 z fevereiro DE 2018
Inicialmente coordenado por Rohde e pelo psiquiatra Euripedes Constantino Miguel, da Universidade de São Paulo (USP), esse estudo, hoje sob a responsabilidade dos psiquiatras Rodrigo Bressan, da Unifesp, e Giovanni Salum, da UFRGS, é pioneiro na América Latina e acompanha por um longo período esses 529 voluntários, além de outras 2 mil crianças
Projetos 1. INCT 2014: Psiquiatria do desenvolvimento para crianças e adolescentes (nº 14/50917-0); Modalidade Projeto Temático; Programa Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia; Pesquisador responsável Euripedes Constantino Miguel (USP); Investimento R$ 3.418.957,70. 2. Coorte de alto risco para transtornos psiquiátricos na infância: Seguimento de neuroimagem após 3 anos (nº 13/08531-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Andrea Parolin Jackowski (Unifesp); Investimento R$ 319.256,76.
Artigo científico PAN, P. et al. Ventral striatum functional connectivity as a predictor of adolescent depressive disorder in a longitudinal community-based sample. American Journal of Psychiatry. v. 174(11), p 1112-19. 1º nov. 2017.
foto Eduardo Cesar infográfico ana paula campos
Indicador potencial
e adolescentes. O trabalho conta ainda com a participação da bióloga especialista em neuroimagem Andrea Jackowski, da Unifesp, e tem como objetivo identificar as alterações na estrutura e no funcionamento do cérebro que caracterizem o seu amadurecimento saudável e as modificações que indiquem o risco de desenvolver transtornos psiquiátricos (ver Pesquisa FAPESP nº 232). “Esse trabalho tem diversas qualidades, como o fato de ter conseguido replicar nas crianças de São Paulo o que havia sido observado nas de Porto Alegre, reforçando a ideia de que o efeito da alteração no estriado ventral sobre a depressão seja real”, conta o psiquiatra Christian Kieling, que não participou da pesquisa. Especialista em psiquiatria da infância e da adolescência e professor da UFRGS, Kieling desenvolveu com colaboradores da Universidade Federal de Pelotas um sistema de pontuação (escore), atualmente em teste, que tenta predizer o risco de desenvolver depressão a partir das características sociodemográficas dos adolescentes. Se funcionar, essa estratégia deverá ser usada para selecionar adolescentes de alto risco para estudos de neuroimagem. “Usar neuro imagem para identificar fatores de risco de depressão é uma área que começa a ser desbravada e tenta aproximar a psiquiatria das outras especialidades médicas, que atuam de maneira preventiva e não apenas curativa”, diz Kieling. “Se um dia conseguirmos identificar o aumento do risco de desenvolver depressão a partir da atividade do estriado, pode se tornar viável agir antes que a doença se instale”, supõe Pan. “Há técnicas de psicoterapia que auxiliam a combater a anedonia e podem ser importantes para essa faixa etária.” n
Zoologia y
S. cariri Espécie com a distribuição geográfica mais ampla, espalha-se pelo sertão nordestino As seis espécies de aranhas Sicarius do Nordeste brasileiro e sua localização
S. diadorim Encontrada no Parque Nacional Cavernas do Peruaçu, diferencia-se da S. jequitinhonha apenas por análise de DNA
● S. cariri ● S. tropicus ● S. ornatus ● S. diadorim ● S. saci ● S. jequitinhonha
As solitárias aranhas da areia Populações isoladas de Sicarius vivem na Caatinga e em áreas desérticas da Argentina, do Peru e do Chile
fotos e mapa Ivan Magalhães / UFMG
R
econhecidas pelo corpo marrom, pelas pernas longas e pelo hábito de se esconder na areia, as aranhas do gênero Sicarius formam populações isoladas há pelo menos 15 milhões de anos em áreas abertas e ensolaradas no Brasil e em outros países da América do Sul, de acordo com um levantamento de biólogos do Instituto Butantan, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e do Museo Argentino de Ciencias Naturales Bernardino Rivadávia (MACN). Com até 12 centímetros de envergadura, as Sicarius têm um veneno quimicamente muito similar ao das Loxosceles, as aranhas-marrom. Também com seis olhos, mas menores, as Loxosceles são temidas em razão dos acidentes que podem causar – a área metropolitana de Curitiba, no Paraná, a mais atingida, registra cerca de
2 mil casos de picadas por ano. Em 2013, outra equipe do Butantan relatou que o veneno das aranhas desses dois gêneros contém a enzima esfingomielinase-D, proteína responsável pela destruição dos tecidos na região das picadas. O único caso de acidente por Sicarius no Brasil foi relatado em 1992, em um rapaz de 17 anos. Aparentemente as Sicarius não oferecem perigo por viver em ambientes diferentes, assegura o biólogo Antonio Brescovit, pesquisador do Butantan que coordenou o levantamento. “As Sicarius andam pouco e vivem em áreas desérticas, em geral afastadas de casas e de pessoas”, diz ele. “As Loxosceles se movem muito, entram nas casas e se escondem em roupas e calçados, mas só picam quando as pessoas se vestem e as pressionam, liberando o veneno.”
Os pesquisadores percorreram cerca de 50 mil quilômetros e fizeram coletas em 150 localidades do Brasil, do Chile, do Peru e da Argentina. Como resultado desse trabalho, detalhado em um artigo publicado em abril de 2017 na revista Zoological Journal of the Linnean Society, o total de espécies do gênero nas Américas passou de 15 para 21 e no Nordeste brasileiro, de uma para seis. Na Caatinga, antes desse levantamento, só havia registro da Sicarius tropicus, coletada em quatro lugares. Os biólogos verificaram que dois exemplares eram de fato a S. tropicus, mas outros dois eram de outra espécie, a que deram o nome de S. cariri. Depois identificaram outras quatro espécies novas (ver mapa). “A Sicarius diadorim e a jequitinhonha são tão parecidas que só as distinguimos depois de comparar suas sequências de DNA”, diz o biólogo Ivan Magalhães, pesquisador da UFMG. n Carlos Fioravanti
Projeto Sistemática de aranhas haplóginas neotropicais (Arachnida, Araneae) (nº 11/50689-0); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Antonio Domingos Brescovit (Instituto Butantan); Investimento R$ 1.200.792,13.
Artigo científico MAGALHÃES, I. L. F. et al. Phylogeny of Sicariidae spiders (Araneae: Haplogynae), with a monograph on Neotropical Sicarius. Zoological Journal of the Linnean Society, v. 179 (4), p. 767-864. 2017.
pESQUISA FAPESP 264 z 55
Ecologia y
As engrenagens da floresta A perda de mais de 60% da vegetação nativa de uma região leva a alterações profundas em seu funcionamento Maria Guimarães
Q
uando uma floresta cede lugar a um descampado ou a usos humanos, perde-se muito mais do que a área desmatada. Os chamados efeitos de borda, determinados em grande parte por mudanças em insolação e umidade, penetram entre 200 e 400 metros mata adentro alterando a composição de espécies animais e vegetais, assim como seu funcionamento ecológico. Um estudo liderado pelos ecólogos Marion Pfeifer, da Universidade de Newcastle, e Robert Ewers, do Imperial College de Londres, ambos no Reino Unido, publicado em novembro na 56 z fevereiro DE 2018
revista Nature, indica que 85% das espécies são afetadas pelo efeito de borda. “A floresta torna-se outra”, destaca a bióloga brasileira Cristina Banks-Leite, professora do Imperial College de Londres e coautora do estudo. “Ainda não sabemos dizer até que ponto a comunidade pode se adaptar ao novo funcionamento da floresta.” Para entender essa dinâmica em mutação, pesquisadores esmiuçam o que afeta o funcionamento ecológico das florestas e como elas contribuem para as atividades humanas, por exemplo fornecendo polinizadores para as lavouras – os chamados serviços ecossistêmicos.
Uma dificuldade de se medir os efeitos de borda é que o desmatamento com frequência não segue linhas regulares, formando ilhas geométricas de floresta. “O trabalho da Nature traz um avanço importante no desenvolvimento da técnica que permite medir o efeito em manchas irregulares”, diz Cristina. O diferencial vem da coautoria da matemática francesa Véronique Lefebvre, do Imperial College, que desenvolveu as variáveis I (influência de borda) e S (sensibilidade à borda) para avaliar de maneira quantitativa a configuração da paisagem (como gradientes de cobertura pelas copas
jos barlow / universidade de lancaster
O desmatamento cria bordas por onde efeitos como calor e pouca umidade penetram
das árvores) e como as espécies animais respondem e transitam nesse ambiente. “O método incorpora dois aspectos que não tinham sido levados em conta em análises quantitativas: o contraste entre hábitats e bordas múltiplas além da mais próxima”, explica Marion. A análise de 1.673 vertebrados em 22 florestas nas Américas, na África, Austrália e Ásia indicou que metade das espécies sofre com o desmatamento (e corre riscos de extinção) e a outra metade se expande – plantas e animais invasores que se dão bem em ambientes alterados. Alguém dirá que fica tudo elas por elas,
mas o problema é que esses generalistas não necessariamente contribuem para o funcionamento da floresta. Nem todos os animais têm a mesma sensibilidade aos efeitos de borda. Anfíbios, por exemplo, correm risco de ressecamento fora do miolo da floresta, principalmente se forem pequenos. Já as cobras e lagartos, com seu corpo alongado, podem ferver ao sol se forem grandes. Entre mamíferos, os morcegos parecem conseguir sobrevoar trechos menos favoráveis, enquanto os terrestres de grande porte se veem limitados ao espaço necessário para obter recursos.
Essa limitação transcende a própria sobrevivência dos animais, aponta um artigo liderado por pesquisadores do Centro de Pesquisa em Biodiversidade e Clima Senckenberg, na Alemanha, publicado em janeiro na Science. Com a contribuição de colaboradores de vários países, inclusive o Brasil, o estudo avaliou 57 espécies de mamíferos e verificou que nas áreas mais alteradas por atividades humanas a movimentação dos animais cai para metade ou um terço do habitual, principalmente devido a mudanças no comportamento dos indivíduos. Além de prejudicar a aquisição de alimentos pESQUISA FAPESP 264 z 57
O pintadinho Drymophyla squammata: especialista em capturar insetos no sub-bosque 1
e outros recursos pelos animais, essa alteração também afeta o ciclo de nutrientes do ecossistema e a dispersão de sementes, entre outras coisas. No Brasil foram incluídas várias espécies monitoradas no Pantanal, uma das regiões com o menor índice de alteração antrópica entre as avaliadas, explica a bióloga Nina Attias, que contribuiu com dados obtidos durante o doutorado na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul junto à Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Pantanal, sobre a movimentação de tatus. “Os tatus e os demais mamíferos monitorados no Pantanal servem como base de comparação para avaliar como os animais se movem em zonas com variados níveis de alteração antrópica.” Em uma escala mais local no Pantanal, áreas com níveis diferentes de preservação alteram a forma como os animais usam o espaço, segundo ela, atualmente pesquisadora do Instituto de Conservação de Animais Silvestres, em Campo Grande.
O
problema, de acordo com Cristina Banks-Leite, é que não é possível prever a sensibilidade de uma espécie com base em suas características. Seu estudante de doutorado Jack Hatfield examinou dados de dois estudos feitos na Mata Atlântica paulista. Em um deles Cristina capturou em redes, entre 2001 e 2007, aves em 65 áreas de estudo. No outro, o biólogo Pedro Develey, atualmente diretor-executivo da
organização não governamental BirdLife/SAVE Brasil, observou e documentou aves em 32 localidades entre 2000 e 2003. Em conjunto eles incluem 196 espécies de aves, que Hatfield classificou conforme 25 características morfológicas e comportamentais. Em seguida ele elaborou um ranking de sensibilidade ao desmatamento para cada um dos estudos e buscou quais variáveis tinham maior influência, como foi descrito em artigo publicado em janeiro na revista Ecological Applications. “O ranking é o mesmo para os dois conjuntos de dados, indicando que o modo de coleta de dados não tem efeito”, diz Cristina. Mas na hora de analisar, estatisticamente, quais variáveis afetam esse ranking, o resultado é quase aleatório. Os
A floresta abriga abelhas nativas, que também podem polinizar plantações próximas
2
58 z fevereiro DE 2018
melhores indicadores foram o número de hábitats frequentados pelas espécies, a capacidade de usar ambientes abertos e o comportamento de rastrear as trilhas de formigas-de-correição, comendo os insetos deslocados pelo numeroso exército miniaturizado. Mas nenhuma dessas características possibilita uma previsão consistente e congruente de como as aves se comportarão diante das alterações na floresta. “Dentro de uma mesma espécie há indivíduos mais ou menos sensíveis”, lembra Cristina. Ela considera que a plasticidade de cada espécie na adaptação aos ambientes, que permite que os animais assumam funções distintas conforme a situação, pode ser mais preditiva. “A mesma função pode ser desempenhada por organismos muito diferentes: uma ave desaparece e vem uma aranha, por exemplo.” Para entender esses processos, no entanto, é necessário reunir conhecimento sobre organismos diferentes, algo raro.
É
o que vem fazendo o grupo da bióloga Deborah Faria, também coautora do estudo da Nature e coordenadora do Laboratório de Ecologia Aplicada à Conservação da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc) em Ilhéus, na Bahia. Por meio de análises na escala da paisagem ao longo de cinco anos de projeto em áreas de floresta remanescentes em fazendas, ela e seus colaboradores têm caracterizado como o desmatamen-
ecossistema avariado As espécies vegetais e animais se tornam mais raras, de menor porte ou perdem sua função ambiental quando são desmatados cerca de dois terços da mata original de cobertura florestal
fotos 1 josé carlos morante-filho / uesc 2 léo ramos chaves ilustraçãO fabio otubo
de cobertura florestal
Com a preservação de pelo menos 40% da vegetação
Quando o desmatamento é excessivo, a vegetação se
original, a floresta é rica em árvores grandes com frutos
caracteriza por árvores menores e com menos frutos, tomadas
cujas sementes são dispersas por mamíferos e aves
por trepadeiras. Animais frugívoros tornam-se raros e
como antas, cutias e tucanos. No ambiente sombreado,
proliferam invertebrados que consomem sementes e folhas.
anfíbios e répteis evitam o calor excessivo
Apenas anfíbios grandes e répteis pequenos subsistem
to gera uma mudança na Mata Atlântica nessa região do sul baiano. “Mostramos que o desmatamento leva à degradação da estrutura física, a alterações nos padrões de composição e à abundância de espécies e dos processos ecológicos da floresta remanescente.” Fragmentos inseridos em paisagens com menos floresta, por exemplo, produzem menos frutos em comparação a áreas mais florestadas, de acordo com artigo publicado em 2017 na revista Biotropica. O trabalho fez parte do doutorado da bióloga Michaele Pessoa, que, sob orientação da bióloga Eliana Cazetta, ao longo de um ano coletou e mediu os frutos produzidos em 100 parcelas de 100 metros quadrados cada – um total de 1 hectare estudado. A perda de floresta afetou a variedade e a abundância de frutos com polpa, em grande parte porque as árvores de sombra, especializadas em viver no interior de florestas, mostraram-se sensíveis às modificações no
ambiente. Nas áreas que retinham menos de 30% da vegetação original, quase 60% das árvores eram típicas de zonas ensolaradas, o que representa no mínimo o dobro do que é típico na floresta.
N
esse contexto, as áreas desmatadas também têm menos aves que se alimentam de frutos e de insetos, conforme mostra o trabalho do biólogo José Carlos Morante-Filho, atualmente professor da Uesc, publicado em 2015 na PLOS ONE, como parte do doutorado orientado por Deborah. “A quantidade e a diversidade de aves não diminuem, mas as espécies são outras”, diz Deborah. As aves florestais se tornam abruptamente mais raras e menos diversas do ponto de vista funcional quando resta menos da metade da vegetação original em uma determinada área, medida em um raio de 2 quilômetros ao redor do centro de cada uma das áreas amostrais. Com um papel de destaque no transporte de sementes,
a mudança na composição da fauna de aves faz parte de uma transformação no funcionamento dessas florestas. Também é abrupto o empobrecimento das árvores em matas desbastadas, conforme artigo da bióloga Maíra Benchimol, professora da Uesc, publicado em 2017 na revista Biological Conservation. O grupo analisou as comunidades de árvores adultas e jovens e mostrou que é necessário ao menos 35% de floresta para garantir a diversidade das jovens. “Quando olhamos para uma árvore adulta, vemos o passado: 90 anos atrás, talvez, quando ela se estabeleceu”, alerta Deborah. Ela explica que os adultos não estão se repondo nas áreas degradadas, dando origem a uma floresta composta por árvores de madeira menos densa, que armazena menos carbono. A pesquisadora avalia que algumas espécies, como o jequitibá-da-bahia, já não têm indivíduos suficientes para promover uma recuperação. “Só sobraram adultos, é quase um fóssil vivo.” pESQUISA FAPESP 264 z 59
res é reduzida nos fragmentos pelo desaparecimento dos animais de grande porte. Somada à tendência de queimadas cada vez maior na região e à pressão de caça na região amazônica, a perda de floresta tem efeitos devastadores.
Polinizador: beija-flor Thalurania glaucopis vive apenas na floresta
Angelim-de-morcego (Andira anthelmia) também subsiste em pastos
60 z fevereiro DE 2018
O
1
mudanças em outras escalas – até global, de acordo com um balanço publicado este mês na revista Biological Reviews. É o caso de uma aceleração na produtividade das plantas como resposta ao aumento de gás carbônico (CO2) na atmosfera. “O CO2 pode fertilizar as plantas aumentando seu crescimento, mas dá às árvores dominantes e às lianas [cipós] a oportunidade de sufocar algumas das espécies vegetais únicas da Amazônia”, explica o biólogo norte-americano William Laurance, da Universidade James Cook, na Austrália. Ele conta que nos anos 1980 foi uma surpresa verificar a rapidez do impacto dos efeitos de borda. Mas não foram apenas perdas: há espécies ganhadoras e perdedoras. “Os fragmentos são hiperdinâmicos e muitos processos, como alterações populacionais de espécies e ciclos de nutrientes, são acelerados.” Em termos do funcionamento ecológico, o experimento indica que a dispersão das sementes maio2
nde há interesses humanos envolvidos, os processos ecológicos se tornam serviços ecossistêmicos. “Eu entendo esses serviços ecossistêmicos como um efeito de borda invertido, ou seja, o efeito da mata sobre as áreas de uso humano”, explica o ecólogo Jean Paul Metzger, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP). Seu grupo tem investigado os benefícios da floresta para plantações de café na região fronteiriça entre São Paulo e Minas Gerais – conhecida como Mogiana e Sul de Minas, de onde sai um quarto da produção nacional. Eles encontraram efeitos positivos dessa relação, como o resultante da ação de aves e morcegos. Ao consumirem pragas, esses animais levam a uma menor perda de folhas nos cafeeiros e a uma maior quantidade de frutos, conforme artigo publicado em 2017 na revista Landscape Ecology. A presença de abelhas, essenciais como polinizadoras, também é afetada pela estrutura da paisagem. Um estudo publicado em 2016 na revista Agriculture, Ecosystems and Environment detectou uma melhoria de 28% na produtividade das plantas de café na presença de 22 espécies de abelhas – tanto nativas quanto a africanizada. Os dados são suficientes para recomendar que as plantações não estejam a mais de 300 metros de alguma borda florestal, distância que abarca a capacidade de voo desses insetos. Metzger alerta que o efeito de borda invertido nem sempre é positivo para o ser humano e pode, em alguns casos, atuar na disseminação de doenças como dengue e febre amarela. Os habitantes originais das florestas são os maiores interessados na manutenção de seu funcionamento, mas estão longe de ser os únicos. Entender esses processos exige imensos conjuntos de dados reunidos e analisados por equipes de múltiplas especialidades, um objetivo em construção. n
Os artigos científicos e projetos consultados para esta reportagem estão listados na versão on-line.
fotos 1 josé carlos Morante-filho / uesc 2 larissa rocha-santos / uesc
O limiar a partir do qual os estudos indicam que a composição de aves e árvores muda de maneira significativa chama a atenção especialmente porque a área de preservação prevista por lei para terras privadas pelo novo Código Florestal, revisto em 2012, é de apenas 20%. “O desmatamento de mais de 60% leva a uma alteração no regime das florestas, agora degradadas e secundarizadas, causando a perda ou redução na capacidade dessas florestas em prover serviços ecossistêmicos”, alerta Deborah. Ela está trabalhando em uma síntese do projeto, com as conclusões a que chegou em termos de efeitos ecológicos do desmatamento. “Algum dia teremos um conjunto de dados de longo prazo para a Mata Atlântica como o PDBFF para a Amazônia”, ambiciona, referindo-se ao Projeto Dinâmica Biológica de Fragmentos Florestais, um experimento que já dura 38 anos na Amazônia central, 80 quilômetros ao norte de Manaus. Hoje fica claro que as mudanças ecológicas observadas na floresta fragmentada pelo experimento amazônico são consequência de interações entre efeitos locais, como desmatamento e caça, e
ECOLOGIA y
Cardume de cângulo-preto (Melichthys niger), na ilha da Trindade
Mar de peixinhos Levantamento indica que dois terços dos exemplares da costa brasileira são de pequeno porte
Lucas Nunes
A
s áreas com peixes maiores e mais abundantes concentram-se ao longo do litoral da região Nordeste e em poucas áreas preservadas do Sudeste, como a ilha da Trindade, no Espírito Santo, e o arquipélago de Alcatrazes, em São Paulo. Há contrastes acentuados, segundo levantamento da Rede Nacional de Pesquisa em Biodiversidade Marinha (Sisbiota-Mar) publicado em outubro de 2017 na Journal of Fish Biology. A diferença entre o peso dos exemplares capturados no ponto com mais peixes grandes – os recifes rasos em frente à praia de Parrachos do Maracajaú, no Rio Grande do Norte, com cerca de 1.200 gramas de peixe por metro quadrado – e o com menos, o sul da ilha de Florianópolis, foi de 120 vezes, acima do esperado pelos pesquisadores.
Os peixes onívoros, que se alimentam de animais ou algas, responderam por 66% da biomassa, mas nem sempre os pequenos predominam: em recifes distantes da ação humana, como em ilhas remotas do Pacífico, imperam os grandes predadores. Na costa brasileira, os herbívoros e os carnívoros de pequeno porte representaram 22% da biomassa. Os grandes carnívoros – tubarões, meros, garoupas e raias – responderam por apenas 12% e foram pouco encontrados. “Só vimos t ubarões no Atol das Rocas e em Fernando de Noronha e meros em uma área preservada no litoral do Maranhão, mas era para ter muito mais, nesses e em outros lugares da costa”, comentou o biólogo Sergio Floeter, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e coordenador da Sisbiota-Mar, formada por 30 especialistas de nove instituições que percorreram 4.500 quilômetros dos 7.500 km da costa brasileira. De acordo com um estudo de pesquisadores canadenses, espanhóis e italianos publicado em 2014 na Marine Ecology Progress Series, a redução das populações dos grandes predadores – da ordem de 50% nos últimos 40 anos – tem sido mais intensa que a de espécies menores, no mundo inteiro. A escassez de peixes grandes decorre da pesca de espécies de valor comercial para consumo, da contaminação dos ambientes marinhos e da destruição de há-
bitats. “Os empreendimentos de aquicultura costeiros desmatam e assoreiam os rios e a costa, aumentando a turbidez da água e dificultando a penetração de luz no mar”, comenta a bióloga June Ferraz Dias, professora do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP). Em Santos, no litoral paulista, uma das áreas que ela estudou, a contínua deposição de esgotos e outros resíduos urbanos e industriais deixou a baía mais rasa, reduziu a diversidade de peixes e aumentou a de bactérias (ver Pesquisa FAPESP no 144). Os pesquisadores da rede Sisbiota-Mar defendem reforços nas ações de conservação de espécies marinhas e a ampliação das áreas de proteção. “Em Abrolhos, mesmo com um parque nacional marinho, a pressão de pesca é grande”, observa Floeter. O biólogo Alberto Lindner, professor da UFSC, comenta: “Hoje apenas 1,5% da costa brasileira é protegida da pesca. A ilha da Trindade é uma das regiões que precisam de uma grande área de restrição à pesca”. n Carlos Fioravanti
Artigos científicos MORAIS, R. A. et al. Spatial patterns of fish standing biomass across Brazilian reefs. Journal of Fish Biology. v. 91 (6), p. 1642-67. 2017. Christensen, V. et al. A century of fish biomass decline in the ocean. Marine Ecology Progress Series. v. 512, p. 155-66. 2014.
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Física y
O frio
que aquece Experimento quântico faz partícula gélida transferir calor para a quente e inverte a seta termodinâmica do tempo
U
ma equipe internacional coordenada por físicos brasileiros mostrou que, em um sistema quântico formado por partículas mantidas a distintas temperaturas, pode ocorrer um fenômeno não visto no mundo macroscópico: o corpo frio fornece espontaneamente energia para o quente. A partícula fria perde calor e esfria, e a quente ganha e se aquece. Quando isso ocorre, há uma inversão no sentido natural do fluxo de calor, no que os pesquisadores denominam seta termodinâmica do tempo, que normalmente flui da matéria quente para a fria. O efeito surpreendente foi obtido por meio da manipulação, com o emprego da técnica de ressonância magnética, de propriedades dos núcleos de átomos de carbono e de hidrogênio de um sistema formado por clorofórmio líquido (CHCl3) diluído em acetona (os três átomos de cloro que também fazem parte da molécula do composto não são importantes para o experimento). Por 1 milionésimo de segundo, os núcleos de carbono, que estavam mais frios, cederam energia para os de hidrogênio, que se aqueceram ainda mais. Os resultados do trabalho foram divulgados em artigo disponibilizado em novembro de 2017 na base de dados arXiv e submetido para apreciação de um periódico científico. 62 z fevereiro DE 2018
Como controlar o sentido da energia As condições iniciais do sistema determinam de que forma o calor é transmitido entre duas partículas com temperaturas distintas
Partículas sem associação quântica Na situação usual, o calor vai do átomo quente para o frio. O sentido tradicional do calor se mantém e ambas as partículas se tornam mornas
frio
morno
fluxo de calor
quente
morno
Partículas que apresentam correlação quântica No novo experimento, o átomo frio esfria e o quente aquece. O calor vai da partícula fria para a quente. A seta termodinâmica do tempo se inverte
frio + frio fluxo de calor
quente + quente Fonte Micadei, Kaonan, et. al.
foto Léo ramos chaves infográfico Ana paula campos
Segundo o estudo dos físicos, a inversão da flecha termodinâmica do tempo ocorre em uma condição específica: apenas quando eles estabelecem uma correlação quântica entre um estado do núcleo dos átomos de carbono e de hidrogênio – o spin, uma propriedade magnética das partículas – antes de introduzir alterações significativas na temperatura dos componentes do sistema. Sem essa ligação quântica entre os spins dos dois elementos, o sistema se comporta de maneira tradicional e as partículas mais quentes aquecem as mais frias. Geladeira quântica
A correlação quântica é uma associação similar, mas mais fraca do que o fenômeno conhecido como emaranhamento, um tipo de ligação tão estreita entre duas (ou mais) partículas que é impossível falar de uma sem mencionar a outra. Ainda assim, é forte o suficiente para que o núcleo de um elemento químico partilhe a informação sobre o estado de seu spin com o de outro elemento e vice-versa. Esse tipo de associação quân-
tica é criado com o emprego de pulsos de rádio sobre os átomos de carbono e de hidrogênio. O experimento pode ser comparado a uma geladeira quântica microscópica. Tudo que está dentro do refrigerador esfria, desde que o aparelho esteja conectado a uma fonte externa de eletricidade. “Para que um corpo frio aqueça um quente, é preciso abastecer o sistema com energia extra”, explica o físico Roberto Serra, da Universidade Federal do ABC (UFABC), um dos autores do trabalho, feito no âmbito do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Informação Quântica (INCT-IQ). No experimento, realizado em um laboratório do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro, a energia extra é fornecida pela aplicação de distintos campos magnéticos sobre as moléculas de clorofórmio. Assim, é possível, de forma seletiva, tornar os núcleos dos átomos de hidrogênio mais quentes do que os de carbono. Essa preparação é feita de uma maneira especial que faz o calor fluir das partículas frias para as quentes.
O resultado do trabalho mexe com a delicada fronteira entre a termodinâmica clássica e a mecânica quântica. Conforme a segunda lei da termodinâmica, o passar do tempo leva, inexoravelmente, ao aumento da desordem, a uma maior entropia, no mundo macroscópico. Na natureza, a energia degenera. Por isso, espontaneamente, o café quente não esquenta na xícara. Ele esfria. Mas, no limite em que se consideram átomos e elétrons, fenômenos estranhos acontecem: a ordem das trocas de calor pode se inverter e a entropia do sistema pode diminuir, dando a impressão de que o tempo fluiu na direção do passado. “Nosso trabalho entra no domínio da termodinâmica de pequenos sistemas quânticos”, comenta Kaonan Micadei, primeiro autor do artigo e aluno de doutorado na UFABC. A termodinâmica clássica não considera a existência de associações iniciais entre partículas como átomos e elétrons, como as criadas pela correlação ou emaranhamento quântico. Essa questão, no entanto, é importante e pode ajudar a entender como os microssistemas dissipam energia. “O experimento é fundamental para compreender fenômenos da termodinâmica ligados ao desenvolvimento da computação quântica”, comenta Ivan Santos Oliveira, do CBPF, outro coautor do estudo. “A experiência amplia o domínio de validade das leis da física”, avalia o físico teórico David Jennings, do Imperial College de Londres, Inglaterra, que não participou do estudo. Processar informação gera aquecimento. Estima-se que entre 20% e 30% de toda energia elétrica produzida no mundo seja utilizada para resfriar os computadores. Limitar a dissipação de energia em máquinas quânticas é uma das motivações dos participantes do experimento. “Produzir um refrigerador quântico é uma etapa necessária para chegar a um dispositivo quântico mais complexo”, justifica Serra. n
Projeto Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Informação Quântica (nº 08/57856-6); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Amir Caldeira (Unicamp); Investimento R$ 1.977,654,30 (para todo o projeto)
Artigo científico Micadei, K. et. al. Reversing the thermodynamic arrow of time using quantum correlations. Disponível no repositório arXiv.
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ASTROfísica y
luas Jano e Epimeteu
Anel d Anel c Anel b
Anel F Anel a
mimas
encÉlado
tétis
dione
Anel G
Anel e
Um vagalume em Equipe brasileira propõe modelo para explicar a origem de anel tênue ao redor do segundo maior planeta do Sistema Solar
64 z fevereiro DE 2018
E
m um telegrama de apenas 15 linhas enviado à União Astronômica Internacional (IAU), a astrônoma norte-americana Carolyn Porco anunciou no dia 11 de outubro de 2006 a descoberta de quatro novos anéis ao redor do planeta Saturno. Pesquisadora da Universidade do Colorado em Boulder, Estados Unidos, ela liderava a equipe de imagem da sonda espacial Cassini, que tinha alcançado a órbita do segundo maior planeta do Sistema Solar havia dois anos e começava sua missão de coletar dados sobre Saturno, suas luas e seus anéis. Doze anos mais tarde, em um artigo publicado em janeiro deste ano na revista The Astrophysical Journal, o físico brasileiro Othon Cabo Winter e sua equipe na Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Guaratinguetá, no interior de São Paulo, apresentam a mais detalhada caracterização já feita do maior desses quatro anéis. O grupo, que contou com a colaboração do astrofísico Dietmar Foryta, da Universidade Federal
Fonte adaptado de NASA / JPL
que o anel era completo, e não formado por arcos descontínuos, como os pesquisadores haviam inicialmente suspeitado. Medições do fluxo de luz proveniente do anel permitiram a Souza e Winter calcular que sua largura varia de 7 mil a 8 mil km – maior que o raio da Terra, que mede 6,4 mil quilômetros – e quase 50% maior que a estimada em 2006 por Carolyn Porco. partículas microscópicas
reia
(continua em direção às luas mais distantes)
O anel de brilho intermitente (pontilhado amarelo) se situa na mesma órbita de Jano e Epimeteu, duas luas de Saturno
NASA / JPL
Saturno do Paraná, também propõe um mecanismo para explicar a existência permanente dessa estrutura, possivelmente formada por grãos microscópicos de gelo, que poderia ser completamente varrida em poucos anos por Jano e Epimeteu, duas luas que ocupam uma órbita coincidente com a do anel. “A descoberta de um anel de partículas na mesma órbita desses satélites torna esse sistema complexo e interessante”, conta Winter, especialista em dinâmica do Sistema Solar. Ainda sem um nome oficial, esse anel encontra-se a cerca de 150 mil quilômetros (km) de Saturno, um pouco além dos cinco anéis mais internos e facilmente visíveis – D, C, B, A e F, nomeados na ordem em que foram descobertos (ver Pesquisa FAPESP nº 108). No mestrado feito sob a orientação de Winter, o físico Alexandre dos Santos Souza analisou uma sequência de imagens obtidas pela Cassini durante quase seis horas no dia 15 de setembro de 2006. As imagens confirmaram
Extremamente tênue, o anel era quase invisível até mesmo para as câmeras da Cassini. A sonda só conseguia observá-lo a partir de ângulos muito específicos, razão que levou o grupo da Unesp a lhe atribuir o apelido de vagalume – besouros que, mesmo que estejam por perto, só costumam ser vistos quando emitem luz. Essa característica, aliás, levou Winter e seus colaboradores a inferir que o anel é composto por partículas microscópicas, da ordem de grandeza do micrômetro – 1 micrômetro equivale a 1 milésimo do milímetro. Há uma explicação física para a conclusão. Partículas muito pequenas se tornam visíveis na contraluz porque espalham a luz que incide sobre elas. Chamado espalhamento Mie, esse fenômeno, proposto pelo físico alemão Gustav Mie (1868-1957), só ocorre quando o tamanho da partícula é equivalente ao do comprimento de onda da luz, que, no caso do espectro visível, varia de 0,37 a 0,75 micrômetro. Quase todos os anéis mais internos de Saturno são vistos mais facilmente porque, além de mais largos, são formados por partículas maiores, com centímetros a metros de diâmetro, que refletem a luz do Sol. Diante dessa conclusão e do fato de imagens da Cassini indicarem que o anel vagalume não é temporário, Winter e seus colaboradores começaram a buscar uma forma de explicar sua existência contínua. Afinal, partículas tão diminutas não acabariam tragadas por Jano e Epimeteu, as luas que percorrem a mesma órbita do anel? O mais provável, concluíram os pesquisadores, é que o anel seja, sim, apagado. Mas não definitivamente. À medida que evoluem em sua trajetória ao redor de Saturno, Jano, com seus 190 km de diâmetro, e Epimeteu, com quase 140 km, incorporam pelo choque e por atração gravitacional boa parte das partículas que encontram pelo caminho. Simulações matemáticas feitas pelos físicos Daniela Mourão e Rafael Sfair indicaram que as partículas do anel vagalume têm vida curta. De acordo com os cálculos, que levaram em consideração a atração gravitacional de Saturno e das luas próximas ao anel (Mimas, Tétis, Encélado, Dione e Titã), além da pressão exercida pelas pESQUISA FAPESP 264 z 65
partículas emanadas do Sol, as partículas do vagalume durariam em média 20 anos. “É um tempo de vida muito curto”, diz Winter. “O anel desapareceria se não houvesse reposição constante.” Poeira bate no gelo
Projeto A relevância dos pequenos corpos em dinâmica orbital (nº 16/24561-0); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Othon Cabo Winter (Unesp); Investimento R$ 1.009.436,80.
O choque constante da poeira interplanetária com as superfícies de Epimeteu (à esq.) e Jano produziria partículas micrométricas que seriam responsáveis pela manutenção do anel
Artigos científicos WINTER, O. C. et al. Particles co-orbital to Janus and to Epimetheus: A firefly planetary ring. The Astrophysical Journal. v. 852 (14). 1º jan. 2018. TREFFENSTÄDT, L. L.; MOURÃO, D. C.; e WINTER, O. C. Formation of the Janus-Epimetheus system through collisions. Astronomy and Astrophysics. 23 set. 2015.
fotos NASA /JPL-Caltech /Space Science Institute
Evidências anteriores de que partículas de poeira existentes no espaço se chocam o tempo todo com os corpos celestes – e também com satélites na órbita da Terra – levaram os pesquisadores a imaginar um possível mecanismo de manutenção do anel. Em outras simulações, a física Silvia Giuliatti Winter, especialista nos anéis de Saturno, e Sfair calcularam a taxa de produção de partículas micrométricas provocada pelo choque de grãos de poeira interplanetária com a superfície de Jano e Epimeteu. De acordo com os dados, o choque dessas partículas maiores (com cerca de 100 micrômetros de diâmetro) com o gelo da superfície das duas luas produziria por dia quase 1 tonelada de partículas menores, com 1 a 13 micrômetros de diâmetro. “Seria o suficiente para manter o anel”, diz Othon Winter. “Segundo nosso modelo, os grãos menores são produzidos em maior quantidade.” “A maior importância desse trabalho foi mostrar que o brilho do anel é consistente com o material liberado pela superfície das luas Jano e Epimeteu, algo que já se suspeitava”, afirma o físico Matthew Hedman, professor da Universidade de Idaho, nos Estados Unidos. Especialista em dinâmica planetária, ele é um dos pesquisadores que integrou o
O anel deve ser bem jovem e quase todo seu material seria formado por detritos de duas luas de Saturno
time da missão Cassini, que por 13 anos sobrevoou os anéis e as luas de Saturno, e atualmente analisa boa parte das imagens enviadas pela sonda espacial à Terra. “Isso significa que o anel provavelmente é quase todo formado por detritos das duas luas e que esse material é bem jovem”, conta Hedman. “Anéis como esse podem sofrer transformações muito rápidas em resposta a mudanças no ambiente.” Um pouco antes de concluir os estudos sobre o anel vagalume, Winter, Daniela e o astrônomo alemão Lucas Treffenstädt, que anos atrás passou uma temporada em Guaratinguetá, tentaram explicar como duas luas com tamanho e massa tão semelhantes quanto Jano e Epimeteu poderiam se formar em uma mesma órbita. De acordo com o modelo, apresentado na Astronomy and Astrophysics em 2015, o mais provável é que cada um desses satélites – Saturno tem 62 ao todo – teria surgido a partir da colisão de dois corpos maiores. n Ricardo Zorzetto
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Comendo estrelas Levantamento mostra que Via Láctea canibalizou 11 galáxias vizinhas
NASA / JPL-Caltech / R. Hurt, SSC & Caltech
Marcos Pivetta
Ilustração representa correntes de estrelas ao redor da galáxia
C
erca de 200 milhões de anos após o Big Bang, a explosão inicial que teria dado origem ao Universo 13,8 bilhões de anos atrás, as primeiras estrelas do que viria a ser a Via Láctea começaram a se juntar. Desde então, a galáxia não para de crescer. Por volta de 9 bilhões de anos atrás, por exemplo, seus característicos braços espirais surgiram. Um novo estudo indica que, ao se expandir e atrair matéria de suas redondezas, a Via Láctea canibalizou estrelas de 11 galáxias vizinhas de menor porte. Sua força de gravidade, em especial a do halo de matéria escura (não visível) que deve envolver a galáxia, arrancou populações de estrelas desses pequenos sistemas e as atraiu para sua órbita. Assim se formaram 11 correntes ou rios de estrelas, de origem externa, que giram em torno da Via Láctea, sem estar incorporados a seus braços ou a sua parte central, o bojo. “Essas correntes nos contam sobre a formação e a estrutura da Via Láctea”, afirma Nora Shipp, aluna de doutorado da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, primeira autora do estudo que está disponível no repositório arXiv. A identificação dessas correntes de estrelas foi feita pelo Dark Energy Survey (DES), levantamento internacional, com a participação do Brasil, que tem como meta estudar a natureza da misteriosa energia escura, responsável por 71% do Universo (a matéria escura responde por 24% e a matéria normal ou bariônica, a dos astros e estrelas visíveis, por 5%). É a energia escura que faz a taxa de expansão do Cosmo se acelerar. Para tentar entender essa componente majoritária, mas enigmática do Universo, o DES procura por padrões que possam explicar a formação das estruturas cósmicas. Por isso, o levantamento produz imagens periódicas, de alta resolução, de uma área que corresponde a um oitavo do céu observável. Com o emprego de uma potente câmera de 570 megapixels instalada no telescópio Blanco, situado no Chile, o DES mapeou em seus três primeiros anos de funcionamento (de 2014 a 2016) 400 milhões de objetos astronômicos, como galáxias e estrelas do tipo supernova. Um dos objetos estudados foi a Via Láctea. Foi assim que os restos das 11 galáxias foram identificados. “Como os cometas que deixam rastros quando passam perto do Sol, essas correntes de estrelas são resquícios dessas galáxias que foram engolidas pela Via Láctea”, compara o astrofísico Márcio Maia, do Laboratório Interinstitucional de e-Astronomia (Linea), que dá suporte à participação brasileira no DES e em outros levantamentos. Coautor do estudo sobre a Via Láctea, Maia conta que a cor das correntes de estrelas descobertas é diferente da maioria das estrelas da galáxia. Pela variação de tom, os astrofísicos conseguiram inferir a composição química e determinar que as correntes se originaram fora da Via Láctea. Até agora, cerca de 30 correntes de estrelas, com origem fora da galáxia, foram descobertas. n
Artigo científico SHIPP, N. et al. Stellar streams discovered in the dark energy survey. ArXiv. On-line. 9 jan. 2018.
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tecnologia Pecuária y
Contribuições dos
bovinos brasileiros Raças formadas no Brasil desde os primeiros tempos da colonização guardam características que podem ser úteis aos criadores
R
esistente às asperezas do sertão nordestino, o curraleiro pé-duro pertence a uma raça bovina forjada em uma região onde existe falta d’água, o solo é pedregoso e o pasto escasso. Sua origem, no entanto, não é de bovinos zebuínos, como o nelore, o mais numeroso no rebanho brasileiro, nativo da Índia, país com clima e condições ambientais semelhantes aos do Brasil. O curraleiro foi formado por raças portuguesas e espanholas que começaram a chegar ao país no início da colonização, em 1534. Ao longo do tempo, esses animais viveram soltos no campo e sofreram a mesma pressão seletiva desse ambiente, resultando em um gado com maior adaptação a doenças e ao clima quente do Nordeste e também do Cerrado, para onde foi levado. A genética do curraleiro e de outras três raças brasileiras de origem europeia que passaram pelo mesmo processo – caracu, pantaneira e crioula lageana – é objeto de estudo de vários grupos de pesquisadores. Além de conservar o patrimônio
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genético dessas raças, eles querem entender os mecanismos biológicos que fizeram esses bovinos sobreviver ao clima e às pastagens do Brasil. O rebanho brasileiro é de 218 milhões de cabeças, segundo dados de 2016 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Cerca de 80% dele é zebuíno, que engloba as raças nelore, gyr e guzerá, entre outros animais de origem asiática. Os demais 20% são de taurinos, de origem europeia, como as raças angus, holandesa, simental, charolês e diversas outras. É dentro dessa variedade que estão as raças que se tornaram brasileiras. As raças de origem europeia formadas no país apresentam características adaptativas semelhantes às zebuínas. Os zebus ganharam terreno por apresentarem maior resistência ao calor, às doenças e às pastagens em relação às europeias. Porém, a carne do zebu é menos macia e suculenta do que a de origem europeia. O problema é que os taurinos ficam estressados com o calor e não rendem bem com pastagens de baixa qualidade.
embrapa
Marcos de Oliveira
Curraleiro pé-duro Local Nordeste e Cerrado Características Adaptado ao semiárido, produz boa quantidade de leite e carne mesmo em condições de pastagem ruim e calor intenso. A pelagem vai da avermelhada ao bege com manchas pretas, principalmente na cabeça. Ainda corre risco de extinção.
Desde 2005, as quatro raças brasileiras estão identificadas geneticamente por marcadores de microssatélites, que são sequências de repetições curtas do genoma de uma espécie e permitem estudos de variação genética de uma população. As raças são caracterizadas por aspectos físicos, embora as brasileiras sejam parecidas. Foi possível traçar geneticamente a distância que cada raça tem entre si e em relação a outras europeias e zebuínas. Esses estudos foram feitos por pesquisadores da Embrapa e das universidades de Brasília (UnB), Federal de Goiás (UFG) e de Córdoba, na Espanha. Eles demonstraram a singularidade das populações, além de uma variabilidade genética grande dentro delas, condição favorável à expansão e ao cruzamento entre indivíduos. Agora, além de retirar as raças brasileiras do risco de extinção, os grupos de pesquisa tratam de identificar os genes ligados a determinadas características de modo a colocar essa riqueza genética a serviço da pecuária nacional. “Existem vários estudos que visam à comprovação científica da resistência a doenças e parasitas, além da termotolerância dessas raças de bovinos taurinos adaptadas ao clima tropical”, conta a veterinária Andréa Alves do Egito, pesquisadora da Embrapa Gado de Corte, em Campo Grande (MS), que participou da identificação genética das quatro raças. São chamadas de taurinas porque pertencem a variedade Bos taurus taurus, enquanto as zebuínas são Bos taurus indicus, caracterizadas pela saliência no dorso dos animais. “Buscamos sequências genéticas relacionadas à adaptabilidade dessas populações ao nosso ambiente que poderão ser incorporadas nas demais raças comerciais.” Para Andréa, caso seja detectada uma região no DNA de resistência ao calor, por exemplo, será possível fazer a introdução desse alelo (formas alternativas de um mesmo gene) em outras populações. “A reprodução assistida e as biotécnicas reprodutivas podem incorporar esses alelos em outros rebanhos ou raças”, diz. Outra aplicação potencial do conhecimento sobre as raças brasileiras é o uso para cruzamento e fornecimento de sêmen. Uma prática comum na pecuária é formar grupos de animais com a chamada heterose, o choque de raças. O cruzamento de duas raças geneticamente distantes gera filhos com melhor desempenho do que a média dos pais; quanto maior a diferença genética, melhor o resultado. Cruzar um nelore com um animal de uma raça brasileira pode legar à prole a rusticidade a doenças e a adaptação ao clima das duas raças formadoras do animal. A comprovação da relação entre genes e características herdadas, além da conservação e identificação de possíveis rebanhos no sertão brasileiro, Cerrado e Pantanal, é um trabalho realizado há mais de quatro anos pela Rede PrópESQUISA FAPESP 264 z 69
pantaneiro
-Centro-Oeste, mantida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), coordenada pela veterinária Maria Clorinda Soares Fioravanti, professora da UFG. A rede agrupa pesquisadores da Embrapa e das universidades federais de Mato Grosso (UFMT), Mato Grosso do Sul (UFMS), Brasília (UnB), estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) e a Católica de Goiás (PUC Goiás). Uma das pesquisas trata da resistência do curraleiro à intoxicação com a principal planta tóxica existente nos pastos brasileiros, a cafezinho ou erva-de-rato (Palicoureia marcgravii). O animal que a come morre em poucas horas. O estudo mostrou que o gado curraleiro pé-duro é o mais resistente a essa planta. Em 2015, seis curraleiros, seis pantaneiros e seis nelores foram alimentados com cafezinho. Os nelores morreram em até três dias e os pantaneiros em 24 horas – no Pantanal não existe essa planta, originária da Mata Atlântica e do Cerrado. Entre os curraleiros, três morreram e três sobreviveram. “O fato de três sobreviverem nos leva a buscar respostas nas características genéticas ou fisiológicas desses animais para saber o que permitiu a eles sobreviver ao cafezinho”, conta Clorinda Registro e identificação geográfica
Clorinda foi uma das responsáveis pelo registro da raça curraleiro pé-duro no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) em 2012. “Não queriam registrar, diziam não ter 70 z fevereiro DE 2018
Características Bovinos de chifres grandes que vivem bem em áreas alagadas e fornecem carne de excelente qualidade. A pelagem é variada, vai do bege-claro ao avermelhado-escuro e há indivíduos malhados. É a raça que corre maior risco de extinção.
interesse comercial. Mas nós visitamos o Nordeste e Cerrado e contamos cerca de 10 mil animais.” O curraleiro também já se mostrou um animal com aptidão para produção tanto de carne quanto de leite. “A vaca curraleira, quando ordenada,produz uma média de 10 litros [l] de leite ao dia, enquanto a nelore, especializada na produção de carne, atinge de 3 l a 4 l”, conta o zootecnista Geraldo Magela Carvalho, curador do núcleo de bovinos da raça curraleiro da Embrapa Meio-Norte, em Teresina (PI). Entre as quatro raças bovinas brasileiras, a única sem registro no Mapa é a pantaneira. A crioula lageana foi registrada em 2008 e a caracu nos anos 1980. “Com o registro, a raça se valoriza e se transforma em produto, possibilitando a comercialização de sêmen e embriões”, diz a veterinária Raquel Soares Juliano, da Embrapa Pantanal, em Corumbá (MS), curadora do núcleo de conservação do bovino pantaneiro. “É a raça que corre maior risco de extinção. Temos cerca de 150 animais na nossa fazenda experimental, e o rebanho total, contando os de criadores, está entre 500 e 600 animais”, conta Raquel, que também é secretária-geral da Associação dos Criadores de Bovinos Pantaneiros. “Acompanhamos os rebanhos, verificando se há variabilidade genética, além de auxiliar na formação de um banco de germoplasma [sêmen e embriões].” A caracu é a única raça que hoje não corre perigo de extinção, chega a mais de 20 mil indivíduos
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fotos 1 embrapa 2 fazenda BJH 3 embrapa
Local Pantanal mato-grossense
Crioula Lageana Local Região Sul Características Principal local de formação da raça foi a região da cidade de Lages, em Santa Catarina. Resiste bem ao calor e às temperaturas frias. A pelagem é bem variada, do marrom ao branco, muitas vezes malhada. Existem cerca de 3 mil animais com criadores privados. 2
caracu Local Região Sudeste Características É a raça brasileira com melhor aproveitamento comercial. O rebanho possui cerca de 20 mil indivíduos. Tem duas variedades, a de chifres, mais comum, e a mocha, sem chifres. A pelagem é alaranjada.
no país. Desde 1976, o Instituto de Zootecnia (IZ) do Estado de São Paulo, em Sertãozinho, tem um programa de preservação e melhoramento que buscou exemplares no Paraná e em Minas Gerais para aumentar o efetivo populacional e evitar o desaparecimento da raça. Muito utilizada no início do século passado, a caracu, como todas as raças locais, começou a desaparecer com a entrada do gado zebu, principalmente nos anos 1940. “Ao fazermos comparações com nelore, mostramos que a caracu tem maior área de lombo, com carnes mais macias, além de ter maior peso corporal”, esclarece a zootecnista Maria Eugênia Mercadante, pesquisadora do IZ. “Mantemos um rebanho com 250 animais, a maioria da variedade mocha [sem chifres], preferida pelos criadores por serem mais fáceis de manejar do que os com chifres”, diz o agrônomo Roberto Torres, da Embrapa Gado de Corte, curador do rebanho de caracu da Embrapa. Os touros dessa raça são muito utilizados para procriar com
vacas nelore e transferir às crias características como melhor ganho de peso e carne mais macia. A boa adaptação ao ambiente e a carne macia também são as características da raça crioula lageana, que se desenvolveu no sul do país, suportando períodos de calor e frio. Ela foi resgatada inicialmente pela Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, de Brasília, que iniciou em 1984 o levantamento das raças brasileiras. “A lageana sobreviveu graças a dois criadores no município de Lages, em Santa Catarina. Eram cerca de 500 animais e hoje já estamos com 3 mil”, informa o veterinário Edison Martins, secretário-executivo da Associação Brasileira de Criadores da Raça Crioula Lageana (ABCCL). “Esses animais se adaptaram ao pasto do sul do Brasil, possuem rusticidade aos parasitas e pelo muito curto, além de uma carne suculenta e macia”, diz Martins. A qualidade da carne é o maior trunfo das raças brasileiras. Uma pesquisa feita pela Rede Pró Centro-Oeste avaliou a percepção de compra de carnes de bovinos curraleiro e pantaneiro com 347 consumidores em Campo Grande. A maior parte das pessoas não conhecia as raças, mas, ao receberem explicações, 75% dos consumidores comprariam essas carnes e 62% estariam dispostos a pagar mais por elas. “A comercialização de carne desses bovinos mostra-se uma boa estratégia para colaborar na conservação das raças locais, como a pantaneira e o curraleiro”, conclui o economista André Steffens Moraes, coordenador da pesquisa feita na Embrapa Pantanal. n
Projeto
3
Estudo de características de carcaça de animais nelore e caracu, de um ano até a idade adulta, utilizando ultrassonografia (06/58092-4); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Maria Eugenia Zerlotti Mercadante (Instituto de Zootecnia); Investimento R$ 69.639,75.
pESQUISA FAPESP 264 z 71
pesquisa empresarial
Lavoura mais produtiva Para elevar a eficiência dos canaviais brasileiros, o Centro de Tecnologia Canavieira investe em biotecnologia, melhoramento genético e uma nova forma de plantio
O
Brasil é de longe o maior produtor mundial de cana-de-açúcar, com 657 mil toneladas colhidas na safra 2016/2017, perto do dobro do segundo colocado, a Índia, que produziu aproximadamente 350 mil toneladas. Segundo projeções do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), a lavoura de cana, que na última safra ocupou 9 milhões de hectares, deve ficar na vice-liderança entre as principais culturas agrícolas em termos de faturamento. Os canaviais brasileiros, de acordo com o Mapa, geraram até outubro aos seus produtores uma receita bruta de R$ 71,8 bilhões, atrás apenas das plantações de soja (R$ 116 bilhões). Apesar do bom desempenho, um dado preocupa o setor. A produtividade média da lavoura canavieira, em torno de 73 toneladas por hectare, não tem evoluído nos últimos anos. A crise econômica, que fez com que os usineiros tivessem menos recursos para investir em cuidados com 72 z fevereiro DE 2018
as plantações (adubação, controle de pragas, renovação do canavial), contribuiu para essa estagnação, assim como o aumento da área de plantio. Algumas dessas novas regiões, com terras menos adequadas à cultura canavieira, geram um efeito negativo em termos de produtividade. A baixa produtividade é um desafio enfrentado não apenas pelas empresas do setor, mas também por institutos de pesquisa e universidades, que há décadas se dedicam a estudar a lavoura de cana com o objetivo de desenvolver novas tecnologias e criar variedades da planta mais resistentes a doenças e adaptadas a diferentes tipos de solo e clima. O Centro de Tecnologia Canavieira (CTC), empresa de biotecnologia localizada em Piracicaba, no interior paulista, é responsável por um dos três programas de melhoramento genético da cana-de-açúcar do país, juntamente com a Rede Interuniversitária para o Desenvolvimento do Setor Sucroenergético (Ridesa), com sede em
fotos 1 divulgação CTC 2 eduardo cesar
Yuri Vasconcelos
empresa CENTRO DE TECNOLOGIA CANAVIEIRA (CTC)
Centro de P&D Piracicaba (SP)
Nº de pesquisadores 260
Principal produto Cana-de-açúcar
1
Mudas transgênicas (ao lado) e sementes de cana desenvolvidas nos laboratórios do CTC (acima)
2
pESQUISA FAPESP 264 z 73
Araras (SP), e o Instituto Agronômico de Campinas (IAC). Em junho deste ano, o CTC obteve autorização da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), órgão responsável pela análise da avaliação de biossegurança de organismos geneticamente modificados (OGM), para comercializar a primeira cana transgênica do país (ver Pesquisa FAPESP nº 258). Batizada de CTC 20 Bt, a nova variedade é resistente à broca-da-cana, a fase larval da mariposa Diatraea saccharalis, considerada a principal praga dos canaviais brasileiros. O inseto provoca prejuízos anuais de cerca de R$ 5 bilhões na lavoura de cana, em razão de perda de produtividade, baixa qualidade do açúcar produzido e gastos com o controle da praga. As primeiras mudas da cana Bt, em cujo genoma foi introduzido o gene Cry1Ab da bactéria de solo Bacillus thuringiensis, já estão sendo disponibilizadas a clientes selecionados, para início da multiplicação, processo que deve levar de dois a três anos. Em seguida, essa cana passará a ser utilizada na produção de açúcar e álcool. “A cana geneticamente modificada criada pelo CTC é um importante avanço na tecnologia aplicada à cana. Ela vai refletir em ganhos de produtividade agrícola e industrial e de qualidade da lavoura e do açúcar”, prevê Antonio de Padua Rodrigues, diretor técnico da União da
Censo varietal da cana Variedades criadas pelo CTC ocupam 31% da área cultivada no país IAC 3%
CV (Canavialis) 2%
CTC 13%
RB (Ridesa) 64%
SP (CTC) 18%
Os cultivares desenvolvidos pela empresa recebem duas denominações: SP (criados até 2004) e CTC (lançados a partir de 2005)
Fonte Ridesa, Safra 2016/2017
equipe de Pesquisadores Confira alguns dos profissionais que fazem P&D no CTC e conheça as instituições acadêmicas responsáveis por sua formação William Lee Burnquist, engenheiro-agrônomo, diretor de Melhoramento Genético
Universidade de São Paulo (USP): graduação e mestrado Universidade Cornell (EUA): doutorado
Cesar Bueno de Souza, biólogo, líder de pesquisa
Universidade Estadual Paulista (Unesp): graduação Universidade Estadual de Campinas (Unicamp): doutorado-direto
Danila Montewka Melotto Passarin, engenheira-agrônoma, líder de pesquisa e desenvolvimento
USP: graduação, mestrado e doutorado
Francislei Vitti Raposo, engenheiro-agrônomo, líder de pesquisa
Universidade Federal de Lavras (Ufla): graduação, mestrado e doutorado
Michael Keith Butterfield, geneticista, gerente de Melhoramento Genético
Universidade de Natal (África do Sul): graduação e mestrado Universidade de Stellenbosch (África do Sul): doutorado
Silvia Balbao Filippi Oliveira, engenheira-agrônoma, pesquisadora científica
USP: graduação e mestrado Unicamp: doutorado
74 z fevereiro DE 2018
Indústria de Cana-de-açúcar (Unica), entidade cujos associados respondem por mais da metade da produção nacional. “Comparada com outras culturas agrícolas, como soja, milho e algodão, que já se beneficiam de técnicas avançadas de melhoramento e de biotecnologia, estima-se que a cana esteja atrasada em cerca de 20 anos. Isso resulta num menor ganho histórico de produtividade.” O desenvolvimento da cana transgênica, cuja expectativa do CTC é de reduzir drasticamente o índice de infestação – hoje em torno de 3% a 5% da lavoura nacional –, é fruto de um esforço contínuo de pesquisa. “O trabalho focado nessa variedade começou em 2011, mas nossos estudos com cana geneticamente modificada têm mais de 10 anos”, relata o engenheiro-agrônomo William Lee Burnquist, diretor de Melhoramento Genético do CTC. O CTC, criado em 1969 como Centro de Tecnologia Copersucar, nasceu como uma filial de pesquisa da Cooperativa dos Produtores de Cana, Açúcar e Álcool do Estado de São Paulo, a Copersucar. “O foco dos pesquisadores era o melhoramento genético da cana. Buscava-se desenvolver cultivares com maior produtividade e tolerantes a doenças, pragas e estresse hídrico”, recorda-se. Em 2004, o CTC tornou-se uma associação sem fins lucrativos e, sete anos depois, uma sociedade anônima. No ano passado, obteve o registro de companhia aberta na Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e passou a ser listada na Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa), hoje denominada B3. Seus principais acionistas são grandes usineiros, responsáveis por 60% da cana moída no país. Atualmente, entre 70% e 80% do faturamento do CTC, que em 2016 foi de R$ 146 milhões, é destinado à atividade de pesquisa e desenvolvimento (P&D). A principal fonte de receita da companhia é o licenciamento de uso e multiplicação de cultivares por meio do pagamento de royalties. A atividade de pesquisa está sob responsabilidade de uma equipe formada por 260 pessoas (60% do efetivo total, de 435 colaboradores), sendo que 30% são mestres e doutores com formação acadêmica em agronomia, engenharia agrícola, biologia e engenharia química. Há dois anos, a empresa inaugurou um complexo de laboratórios de biotecnologia, com mais de 1,4 mil metros quadrados (m2),
ampliando sua capacidade de transformação genética e análises moleculares. Essas unidades foram essenciais para o surgimento de inovações disruptivas como a cana transgênica.
Modelo de sucesso Empresa faz pesquisa e desenvolvimento e tem como principais acionistas grupos do setor sucroenergético
MELHORAMENTO GENÉTICO
O trabalho de pesquisa e
Além dos avanços em biotecnologia, a área de P&D do CTC dedica-se a outros três projetos: tecnologia de etanol celulósico ou de 2ª geração (E2G), produzido a partir da biomassa da cana (palha e bagaço), novos sistemas de plantio e melhoramento genético convencional. Desde a fundação da companhia, 87 novas variedades já foram desenvolvidas pela equipe dedicada ao Programa de Melhoramento Genético (PMG) da cana do CTC. Por meio do cruzamento de diferentes variedades, um processo conhecido como hibridação, os pesquisadores fazem a combinação de plantas chamadas parentais com o objetivo de obter, após várias combinações, uma terceira planta com características superiores àquelas que lhe deram origem. Existem no Brasil mais de 500 variedades comerciais de cana, sendo que 15 ocupam 80% da área cultivada no
desenvolvimento (P&D) do CTC e os
Plantio de mudas em estufas no centro, em Piracicaba: pesquisas concentradas em melhoramento genético e biotecnologia
Em 2014, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
bons resultados colhidos até agora se
(BNDES) entrou para o quadro de
devem, também, ao modelo de negócios
acionistas da empresa e, dois anos
adotado pela empresa. O centro de
depois, suas ações começaram a ser
biotecnologia que nasceu como um
listadas na Bolsa de Valores de São Paulo
braço de pesquisa da Cooperativa dos
(Bovespa). Para os próximos anos há a
Produtores de Cana, Açúcar e Álcool
perspectiva de se fazer o IPO, a oferta
do Estado de São Paulo, a Copersucar,
pública inicial ou abertura de capital,
em 1969, começou sua guinada
procedimento que inaugura a venda
institucional em 2004. Naquele ano
de ações para o público.
tornou-se uma instituição de pesquisa
Para Leite, o progresso é fruto do
sem fins lucrativos bancada pelos
contínuo investimento em pesquisadores
cooperados da Copersucar e por usinas
e profissionais altamente qualificados
e associações de fornecedores. Em 2011
(ver quadro na página 74). “No modelo
foi transformada em uma Sociedade
adotado pelo CTC, a empresa fica
Anônima (S.A.), cujos principais
com uma fração do valor criado pelas
acionistas são do setor sucroenergético.
tecnologias que cria, repassando a maior
“A transformação em uma S.A.
parte do benefício ao cliente”, esclarece.
teve como objetivo ampliar o acesso,
A receita, por sua vez, é empregada
por parte da empresa, a novos recursos
para custear novas pesquisas e
tecnológicos e financeiros”, conta
avanços tecnológicos. Essa forma de
Gustavo Leite, presidente do CTC.
funcionamento poderia ser utilizada por
“Tais recursos são empregados em P&D
outras empresas brasileiras porque o
voltados à indústria da cana com o
modelo direciona a pesquisa para as
objetivo de aumentar sua competitividade.
necessidades específicas de determinado
Hoje as pesquisas estão concentradas
setor. “Isso aumenta seu senso de
em melhoramento genético,
urgência, qualidade dos investimentos e
biotecnologia e tecnologias com potencial
comprometimento com o resultado.”
disruptivo e de grande impacto para o
Segundo a especialista em
futuro produtivo do setor, como é
desenvolvimento de negócios Rosana
o caso das sementes artificiais.”
Ceron Di Giorgio, ex-gestora de Inovação do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais e atual responsável pelo desenho de implantação da Plataforma de Relacionamento do Agropolo de Campinas, o modelo do CTC é pouco comum no Brasil. “Colocar as empresas juntas para compartilharem o risco, principalmente nas fases iniciais da pesquisa – fase pré-competitiva –, além de planejar as atividades de P&D a partir das demandas da indústria, são pontos fundamentais deste modelo”, diz Rosana. A especialista lembra que, normalmente, é o governo que assume o risco
eduardo cesar
dos investimentos em pesquisa. Frequentemente a indústria entra mais tarde no processo, quando a tecnologia já está mais madura, mais bem demonstrada e o risco diminuiu.
pESQUISA FAPESP 264 z 75
Evolução da lavoura canavieira nos últimos anos no Brasil Produção n Produtividade s Área plantada
700
600
658 74
77
82
571
82 605
624 77
561 67
500
589
75
666 635 77 70
657
646
73
74
80
60
475 400
90
70
69
431
50 40
300
30
•
milhões de toneladas
571
81
200 20 100
5,8
6,1
7
7
7,4
8
8,3
8,4
8,8
9
8,6
9
8,7
10
s milhões de hectares n toneladas por hectare
•
2005/06 2006/07 2007/08 2008/09 2009/10 2010/11 2011/12 2012/13 2013/14 2014/15 2015/16 2016/17 2017/18*
*Previsão Fonte Companhia Nacional de Abastecimento (Conab)
embrião de laboratório
As plantações de cana devem ocupar 8,7 milhões de hectares na safra 2017/2018
Centro-Sul, a principal região produtora do país, responsável por mais de 90% da safra nacional – o restante está no Nordeste. Dessas 15 variedades principais, sete foram desenvolvidas pelo CTC, que responde por cerca de 30% da área plantada no país (ver gráfico na página 74). Os cultivares nascidos nos laboratórios da empresa recebem duas denominações: CTC (lançados a partir de 2005) e SP (criados até 2004, quando o CTC ainda era um braço de pesquisa da Copersucar). Durante o processo de melhoramento genético convencional, o cruzamento das variedades é realizado na estação de 76 z fevereiro DE 2018
Camamu, na Bahia, onde as condições climáticas de temperatura e umidade são propícias para o florescimento natural da cana-de-açúcar. A empresa mantém nessa localidade um dos maiores bancos de germoplasma de cana do mundo, com mais de 5 mil variedades parentais. O banco de dados do CTC tem informações detalhadas sobre o desempenho dessas variedades e do histórico das famílias geradas por elas. As informações são usadas para prever o desempenho de novos cruzamentos nas seis áreas de atuação do programa de melhoramento genético da empresa, todas localizadas
O projeto de desenvolver uma semente de cana teve início em 2009 e ainda deve levar alguns anos para ser concluído. “Nossa semente é um embrião gerado em laboratório, por biotecnologia, envolvido por um endosperma [tecido que reveste o embrião e responsável por sua nutrição] artificial. Já temos várias provas de conceito definidas, mas ainda buscamos avanços nas pesquisas para alcançar os resultados necessários”, salienta a engenheira-agrônoma e pesquisadora do CTC Danila Montewka Melotto Passarin. “Trata-se de algo realmente novo. Não há ainda um formato definido, mas acreditamos que vai ser do tamanho de uma semente de soja ou pouco maior.” Para Antonio de Padua Rodrigues, diretor técnico da Unica, a nova tecnologia de plantio do CTC é aguardada com ansiedade pelo setor. “Ela pode representar uma evolução no sistema de produção da cana. Esperamos obter ganhos de eficiência e qualidade, maior produtividade e sanidade do canavial”, ressalta. “A tecnologia possibilitará a liberação para a moagem das áreas que hoje são utilizadas como viveiro de mudas e, principalmente, permitirá ganhos na velocidade e escala de novas variedades de cana, mais modernas e produtivas.” n
eduardo cesar
Produtividade estagnada
no Centro-Sul do país. Para cada uma dessas regiões, a empresa produz variedades customizadas, que atendam às necessidades específicas do lugar. Outra pesquisa central do CTC é o desenvolvimento de uma nova tecnologia de plantio baseada no uso de sementes de cana, uma antiga demanda dos canavieiros. O modelo atual – em que colmos (tipo de caule) da planta são enterrados em sulcos no solo com o uso de tratores e outros implementos agrícolas – é considerado ineficiente por exigir elevada quantidade de matéria-prima, equipamentos, insumos e mão de obra. “Qualquer nova tecnologia de plantio é bem-vinda. O sistema atual é oneroso para os produtores, consome muito diesel, emite poluentes na atmosfera e contribui para a compactação do solo”, opina o engenheiro industrial químico Cláudio Lima de Aguiar, professor do Departamento de Agroindústria, Alimentos e Nutrição da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo (Esalq-USP).
Oncologia y
Inovação no diagnóstico de câncer Startups utilizam novos métodos de rastreamento e técnicas de biotecnologia Domingos Zaparolli
Genomika
A
cada ano, 8,8 milhões de pessoas morrem de câncer no mundo. No Brasil, o registro de mortes em consequência da doença é crescente, passou de 152 mil por ano no início deste século para 223,4 mil em 2015, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Para a agência internacional, a detecção precoce e o tratamento adequado são os principais aliados na redução dos impactos do câncer e, por isso, é fundamental o desenvolvimento de inovações que possam facilitar, qualificar e baratear o diagnóstico e o tratamento oncológico. Quatro startups brasileiras – Ziel, Onkos, OncoTag e Genomika – investem em pesquisa com esse objetivo. Todas elas já têm produtos que devem entrar no mercado em um futuro próximo. A Ziel Biosciences, criada em 2011 pela bióloga Caroline Brunetto de Farias e a médica Daniela Baumann Cornélio, ganhou em dezembro de 2017 o desafio “Transformando a jornada oncológica”, promovido pela empresa farmacêutica Roche e a 100 Open Startups, organização internacional que conecta novas empresas e grandes companhias. A Ziel está sediada no Centro de Inovação, Em-
Laboratório da Genomika: automação e inteligência artificial para desenvolver testes oncológicos
preendedorismo e Tecnologia (Cietec), na capital paulista. A solução apresentada pela Ziel na competição inova no rastreamento do câncer de colo de útero, que atinge 16 mil mulheres por ano no Brasil e causa a morte de um terço delas. Um dispositivo, o SelfCervix, permite à mulher coletar amostras para o exame laboratorial que detecta a presença do vírus do papiloma humano (HPV) e outros biomarcadores do câncer. Esse tipo de tumor pode ser evitado se for rapidamente detectado. O método tradicional de diagnóstico ocorre por meio do exame de Papanicolau, que pode deixar de detectar células alteradas em até 35% dos casos, com um alto índice de falsos negativos. Por essa razão, recomenda-se que o exame seja repeti-
do todos os anos. Segundo a Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica, 52% das brasileiras nunca realizaram o teste. Daniela diz que a autocoleta de amostras é prática, evita o agendamento e o deslocamento até o ginecologista. Permite também o exame de mulheres que sentem desconforto com o procedimento invasivo do Papanicolau ou não aderem ao procedimento por restrições religiosas e culturais. “Existem comunidades na África, Ásia e no Brasil, como grupos indígenas na Amazônia, em que as mulheres só podem ser examinadas por outras mulheres, mas não há profissionais em número suficiente para isso”, conta. A autocoleta já é testada em alguns países. A vantagem do SelfCervix em relação a outros coletores, segundo DapESQUISA FAPESP 264 z 77
niela, é o fato de o dispositivo ser delicado e inofensivo ao corpo, permitindo que a mulher introduza o coletor muito perto do colo do útero para obter as células para exame em grande quantidade e sem contaminação de material da parede da vagina. Os resultados indicam um desempenho superior ao obtido com o Papanicolau, com uma precisão de 88%. O produto está em fase de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Ziel negocia com empresas interessadas em realizar a produção do dispositivo. A expectativa é de o kit de autocoleta estar no mercado em um ano, por um custo estimado em R$ 10. O sistema tradicional de coleta e teste de HPV tem um custo médio de R$ 250. A Onkos Diagnósticos Moleculares, incubada desde 2015 no Supera Parque de Inovação e Tecnologia de Ribeirão Preto, ligado à Universidade de São Paulo (USP), também desenvolve novos métodos de diagnóstico em oncologia. Um dos projetos já se tornou um produto e tem previsão de lançamento em março deste ano. É o mir-THYpe, que será usado para classificar nódulos de tireoide indeterminados em maligno ou benigno.
H
oje a classificação de um nódulo de tireoide tem como base exames de ultrassom e de punção aspirativa (Paaf ), segundo André Lopes de Carvalho, cirurgião de cabeça e pescoço do Hospital de Câncer de Barretos. Entre 15% e 30% das avaliações geram um laudo com resultado indeterminado. “A indicação médica na maioria desses casos é a cirurgia, devido ao risco de malignidade, porém, de 70% a 80% das vezes, o resultado final será de um nódulo benigno”, conta. O paciente terá de lidar com sequelas de uma cirurgia desnecessária, como a necessidade de reposição hormonal por toda a vida. Além disso, o sistema de saúde arca com uma despesa desnecessária. O biólogo Marcos Tadeu dos Santos, fundador da Onkos, afirma que o mir-THYpe é mais preciso e tem potencial para reduzir em até 73% as cirurgias desnecessárias. Para isso, utiliza a própria amostra coletada para análise dos microRNAs, pequenas moléculas regulatórias do RNA (ácido ribonucleico). “Percebemos que a expressão (a assinatura genética) dos microRNAs é diferente entre nódulos benignos e malignos”,
78 z fevereiro DE 2018
explica. A Onkos criou um algoritmo computacional que lê as informações coletadas dos microRNAs e, utilizando técnicas de inteligência artificial, identifica se o perfil da expressão é mais similar a um nódulo benigno ou maligno. “O mir-THYpe terá um custo 75% menor que os exames norte-americanos.” Lançado em janeiro deste ano, o primeiro produto desenvolvido pela Onkos é o Teste de Origem Tumoral (TOT), indicado para pacientes com tumores metastáticos. Por meio da análise de RNAs, o exame compara o perfil genético do paciente com um banco de dados com mais de 4.500 amostras tumorais, divididas em 25 tipos de câncer. Isso permite saber em qual órgão surgiu o tumor e auxilia na escolha do tratamento. O exame que tem patentes depositadas no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa foi licenciado para o Grupo Fleury, rede de laboratórios paulista. O Hospital de Câncer de Barretos, no interior de São Paulo, é parceiro da Onkos e colabora coma empresa cedendo a infraestrutura de laboratórios, o apoio do corpo clínico e as amostras de material biológico coletado de pacientes. Em Belo Horizonte, a startup OncoTag, criada em 2015, desenvolve um exa-
Instrumento de autocoleta, da Ziel, para exame de colo do útero em substituição ao Papanicolau
me molecular para avaliação de prognóstico de pacientes com câncer de ovário que permite a prescrição de tratamento individualizado. No Brasil, foram registrados 6.150 novos casos do tumor em 2016. Segundo a bióloga Letícia de Conceição Braga, sócia fundadora da OncoTag, no câncer de ovário, a maioria das pacientes só relata os sintomas quando a doença está em estágio avançado. O protocolo padrão para o tratamento determina cirurgia seguida de quimioterapia para eliminar qualquer resíduo de câncer. No entanto, existem quatro possibilidades de tratamento, com combinações de medicamentos em dosagens específicas. O médico adota um por um, observando a resposta da paciente, até atingir a melhor resposta.
A
OncoTag desenvolve um teste molecular que utiliza amostras da biópsia do próprio tumor para identificar o perfil de expressão gênica da paciente. Com a informação do perfil molecular, o médico determina um tratamento quimioterápico personalizado, sem ter de submeter a paciente a várias linhas terapêuticas. O exame está em fase de conclusão de estudos. “Nossa expectativa é disponibilizar o produto ao mercado em 2020”, diz Letícia. A startup mantém um acordo de cooperação tecnocientífica com a Fundação Ezequiel Dias (Funed), de Belo Horizonte, e recebe apoio do Departamento de Ginecologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
1
Exame com técnicas de sequenciamento genético de tumores da Genomika
2
fotos 1 eduardo cesar 2 genomika
O perfil de expressão gênica permite a indicação de tratamento personalizado para pacientes com câncer No Recife, a Genomika Diagnósticos, fundada em 2013, utiliza técnicas de sequenciamento genético de segunda geração (NGS – next generation sequencing) e de bioinformática para realizar diagnósticos oncológicos. A metodologia NGS proporciona sequenciamento paralelo de bilhões de moléculas de DNA, ampliando a velocidade da análise e proporcionando uma redução da quantidade de amostras necessárias. O processamento de dados em larga escala é rápido e preciso, assim como a correlação dos achados genéticos com sua aplicação clínica. “Conseguimos estudar tumores e dizer, rapidamente, quais as drogas adequadas para oferecer um tratamento personalizado”, diz João Bosco Oliveira Filho, diretor e fundador da startup. A Genomika estabeleceu uma parceria com o Hospital Israelita Albert Einstein, de São Paulo, para o desenvolvimento de um software de análise de dados e
testes genéticos. A empresa desenvolve uma série de diagnósticos sobre câncer, como o Oncoscreen, que sequencia RNA e DNA dos tumores, detectando simultaneamente variações de sequência genética e alterações, para definir o melhor tratamento para cada paciente. Também criou um teste de biópsia líquida que detecta DNA tumoral circulante. A empresa pernambucana investiu R$ 1 milhão em pesquisa e desenvolvimento de novos testes oncológicos em 2017. Com um laboratório no Recife e um posto de coleta em São Paulo, a Genomika prevê abrir filiais em cinco capitais até o final do ano. O apoio à empresa é parte de uma estratégia do Einstein iniciada há três anos e que já resultou na parceria com 15 startups na área da saúde. Segundo José Cláudio Cyrineu Terra, diretor de Inovação do hospital, o apoio se dá por meio de incubação, acesso aos laboratórios e especialistas da ins-
tituição, codesenvolvimento de tecnologias e produtos e também investimentos financeiros. O investimento global em startups de saúde em 2017 alcançou US$ 11,5 bilhões, de acordo com a consultoria norte-americana Startup Health. Esse montante refere-se a 794 empresas voltadas para soluções médicas e clínicas, especificamente, e não para aquelas especializadas em desenvolver softwares para áreas de gestão. No Brasil, segundo a 100 Open Startup, baseada em dados da Associação Brasileira de Private Equity e Venture Capital (Abvcap), há 900 startups relacionadas à saúde, mas 80% delas desenvolvem aplicativos como prontuários eletrônicos, agendamentos de exames e consultas e gestão de hospitais e clínicas. Não há estimativa sobre o total investido no Brasil no mesmo período. n
Projetos 1. Potencial diagnóstico e prognóstico de novos marcadores de neoplasia de colo uterino (nº 16/08367-9); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisadora responsável Daniela Baumann Cornélio (Ziel); Investimento R$ 108.683,30. 2. Classificação molecular de nódulos tireoidianos indeterminados através de microRNA profiling (nº 15/075903); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Marcos Tadeu dos Santos (Onkos); Investimento R$ 108.781,17.
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humanidades Arqueologia y
Ocupação do
“Brasil” primordial Evidências indicam que havia populações de caçadores-coletores em todas as grandes regiões do território nacional cerca de 10 mil anos atrás Marcos Pivetta
H
á 10.500 anos praticamente todo o território que viria a ser o Brasil já era habitado por expressivas populações de caçadores-coletores. Da Amazônia aos Pampas, passando pelas áreas hoje ocupadas pelo Cerrado, Caatinga e Pantanal, os principais biomas brasileiros exibem vestígios de presença humana que remontam a pelo menos 10 milênios. A única exceção parece ser a costa atlântica, onde os registros mais antigos e confiáveis sugerem que talvez o Homo sapiens tenha precisado de mais uns 500 ou mil anos para atingir a borda leste do continente. Também por volta de 10 mil anos atrás três grandes tradições culturais associadas à fabricação de artefatos de pedra, como raspadores, lascas e pontas de flecha, tinham igualmente se estabelecido na metade leste da América do Sul. A tradição Umbu se fazia presente no Sul; Lagoa Santa estava no atual território mineiro; e Itaparica ocupava partes do atual Nordeste e Centro-Oeste. Apesar de esquemático e simplificado, esse cenário sobre a colonização inicial do Brasil condensa informações e interpretações derivadas
80 z fevereiro DE 2018
Três pontas de flecha do sítio de Tunas, no Paraná (à esq.), uma de Marinheiro, em Minas Gerais (alto), e outra de Garivaldino (acima), no Rio Grande do Sul. Todas têm cerca de 10 mil anos de idade
Idade e localização de sítios pré-históricos antigos Quando os humanos ocuparam os principais biomas (data em milhares de anos antes do presente) 15,5 a 12,8 12,8 a 11,4 11,4 a 10,2 10,2 a 8,9
Amazônia
Caatinga
Cerrado
Pantanal Mata Atlântica
fotos mercedes okumura ilustraçãO sandro castelli
Pampas
Bacia Amazônica
Bacia do São Francisco
Bacia do Prata Alguns arqueólogos sugerem que rotas fluviais pelas grandes bacias hidrográficas da América do Sul podem ter sido usadas para ocupar o território brasileiro Fontes Adriana Schmidt dias e Lucas Bueno
pESQUISA FAPESP 264 z 81
1
Pintura rupestre no sítio Pedra Pintada, em Monte Alegre, no Pará, onde a presença humana remonta a de 12 mil anos
82 z fevereiro DE 2018
de boa parte dos achados arqueológicos das últimas três décadas. Esse quadro sugere que a chegada dos humanos modernos às mais diversas latitudes do território nacional deve ter sido um processo antigo e complexo, talvez por meio de múltiplas rotas. Ocupar uma área continental como a do Brasil e desenvolver três tipos de cultura material distintas leva tempo, provavelmente alguns milhares de anos. “Devem ter ocorrido múltiplas migrações em direção ao território do país, a mais antiga delas antes da ocorrência do último máximo glacial [a mais recente Era do Gelo, cujo pico se deu há cerca de 20 mil anos]”, diz o arqueólogo Astolfo Araujo, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), que publicou um artigo científico sobre o tema em abril de 2015 no periódico Anais da Academia Brasileira de Ciências. Há algumas décadas, era vista com extrema desconfiança a datação de sítios arqueológicos com idade próxima ou superior aos 13 mil anos da chamada cultura de Clóvis, lugar no estado norte-americano do Novo México onde foram encontradas as famosas pontas de flecha bifaciais associadas a caçadores-coletores. Durante a maior parte do século passado, o povo de Clóvis foi considerado o mais antigo a ocupar as Américas. Hoje a barreira dos 13 mil anos já foi igualada
ou ultrapassada por sítios arqueológicos do continente, tanto acima como abaixo do Equador. Esse é caso de Monte Verde, no Chile, de Huaca Prieta, no Peru, das cavernas Paisley, no estado norte-americano do Oregon, da Ilha Triquet, na Colúmbia Britânica (Canadá), além de alguns sítios no Brasil. “Não se trata de dar foco apenas no momento em que houve o povoamento inicial do homem no território brasileiro, mas em como ele se deu em uma área tão enorme, com paisagens tão diferentes”, comenta a arqueóloga Adriana Schmidt Dias, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pelos rios
Se, em sua jornada pelo continente americano, o Homo sapiens migrou do hemisfério Norte para o Sul, ele deve ter passado, e provavelmente se fixado, em algum ponto da América Central antes de chegar à Amazônia ou aos Andes. “O problema é que ainda não encontramos no Panamá, que deve ter feito parte dessa rota interna de povoamento, sítios arqueológicos mais velhos do que os da América do Sul”, diz o arqueólogo Eduardo Góes Neves, também do MAE-USP. Mas, uma vez que tenha fincado pé na América do Sul, o homem provavelmente seguiu por águas fluviais para chegar ao Brasil profundo. Essa hipótese é corroborada pelo número expressivo de sítios
fotos 1 Claide Moraes 2 rodrigo de oliveira / usp
arqueológicos localizados em áreas vizinhas a grandes rios que cruzam o território nacional, como o Amazonas e o Solimões, na Amazônia, o São Francisco, no Nordeste, e o Paraná e o Uruguai, no Sul. “As rotas de colonização por rios são sempre a opção lembrada”, pondera o arqueólogo e antropólogo Walter Neves, do Instituto de Biociências da USP. Um dos lugares da pré-história mais antigos do Brasil, com uma primeira ocupação datada em cerca de 25 mil anos e outra entre 12 mil e 2 mil anos atrás, é o abrigo Santa Elina, em Mato Grosso, situado a 30 quilômetros do rio Cuiabá, um importante afluente da bacia do Paraná-Paraguai. Os sítios da serra da Capivara, no Piauí, onde a presença humana possivelmente chegue a 20 mil anos, estão a cerca de 100 quilômetros do rio São Francisco. Em Uruguaiana, no extremo oeste do Rio Grande do Sul, bem na fronteira com a Argentina, o sítio Laranjito, que apresenta indústria lítica com idade datada em aproximadamente 12 mil anos, fica às margens do lado brasileiro do rio Uruguai. Em artigo publicado no início de 2015 na Revista de Estudos Avançados, da USP, Adriana Schmidt Dias e o arqueólogo Lucas Bueno, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), defenderam a existência de três grandes rotas fluviais que poderiam ter sido usadas pelos povos pré-históricos para entrar no território nacional. Uma delas seria via bacia amazônica, outra pelo rio São Francisco e uma terceira explorando as águas da bacia do Prata. Esse trabalho deriva em grande parte de dados compilados e interpretações apresentados em um estudo anterior, publicado em meados de 2013 na revista científica Quaternary International, pela dupla brasileira juntamente com o arqueólogo inglês James Steele, do University College London (UCL). Nesse artigo de revisão, o trio de pesquisadores analisou os resultados de datações feitas a partir de vestígios arqueológicos provenientes de 90 sítios pré-históricos do país, cujas informações foram divulgadas em artigos científicos publicados desde a segunda metade dos anos 1980. As idades foram obtidas pelo emprego do método do carbono 14 em um conjunto variado de vestígios arqueológicos, como ossos, dentes e cabelos humanos, artefatos de pedra, pontas de lança e muitos restos de fogueiras (aparentemente feitas pelo homem). O artigo interpretou como confiáveis 277 datações que haviam chegado a idades entre 15.500 e 8.900 anos (ver mapa na página 81). “Desconsideramos 63 datações que, por algum motivo, apresentavam um grau de incerteza maior sobre sua cronologia”, explica Adriana. Também os resultados das datações com mais de 15 mil anos de idade, que costumam ser alvo de questionamentos e polêmicas – como algumas
obtidas para certos sítios da serra da Capivara ou em Santa Elina –, não foram levados em conta. Entre as datações analisadas no trabalho, nove apresentavam resultados entre 15.500 e 12.800 anos. Essas A Mata Atlântica, foram as mais antigas da amostra, perto da costa, obtidas a partir de material de cinco sítios. Dois desses lugares, a Toca do deve ter sido Sítio do Meio e a Toca do Gordo do Garrincho, ficam na serra da Capia última região vara. Outros dois se situam no norte de Minas Gerais: Lapa do Boquete, do país a sítio que fica no vale do rio Peruaser colonizada çu, hoje área de intersecção entre os biomas do Cerrado e da Caatinga; pelo homem e Lapa do Dragão, na divisa com a Bahia. O quinto sítio é a caverna da Pedra Pintada, em Monte Alegre, nos arredores de Santarém, no norte do Pará, da qual se vê o rio Amazonas. Esse lugar da pré-história nacional foi notícia no mundo todo no início da década de 1990 quando a arqueóloga norte-americana Anna Roosevelt, bisneta do ex-presidente dos Estados Unidos Theodore Roosevelt, datou pela primeira vez suas pinturas rupestres em cerca de 11 mil anos. Agora Pedra Pintada – cujo material coletado pela pesquisadora não ficou no Brasil – está sendo novamente estudada pelo arqueólogo Claide Moraes, da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), de Santarém. “Temos cinco novas datações de carvões e sementes carbonizadas provenientes de fogueiras feitas provavelmente por humanos que deram Sepultamento de cerca de 10 mil anos cerca de 12 mil anos”, diz Moraes. na região mineira de Lagoa Santa
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Desenhos na serra da Capivara, no Piauí, um dos mais antigos pontos do território nacional com vestígios de presença humana
Depois desses cinco sítios mais antigos da amostra, o trabalho publicado na Quaternary International destaca os locais com idade entre 12.800 e 11.400 anos. Nesse período da pré-história nacional, a distribuição geográfica da presença humana começa a se ampliar. Além de incluir o norte de Minas, o Piauí e a Amazônia, os sítios desse período abrangem localidades do extremo sul do país, na divisa com o Uruguai, e do Centro-Oeste, como o de Santa Elina, em Mato Grosso. Para esse intervalo de tempo, o número de datações aumenta para 56 e o de sítios para 29. Entre 11.400 e 10.200 anos, o estudo contabilizou 65 datações relacionadas a 46 sítios, agora já espalhados literalmente de norte a sul pelo atual território nacional. “Por volta de 10.500 anos atrás, o número de sítios arqueológicos cresce em todas as regiões”, comenta Adriana. Na região de Serranópolis, no sudoeste de Goiás, por exemplo, são conhecidos mais de 40 sítios com material lítico associado à tradição cultural Itaparica. Eles exibem pinturas rupestres e se situam em abrigos rochosos ao longo do rio Verde, um afluente do rio Paranaíba. Sua idade varia entre 10.700 e 8.400 anos. Até o estado de São Paulo, considerado um vazio arqueológico durante um bom tempo, contribui com dois sítios desse período: Batatal I e Capelinha, ambos situados no Vale do Ribeira, em áreas em que os habitantes
pré-históricos fizeram uma espécie de cemitério à beira de rios, os chamados sambaquis fluviais. Um crânio humano de quase 10 mil anos, apelidado de Luzio, foi encontrado em meados dos anos 2000 em Capelinha. Esse sítio é considerado o mais antigo em área de Mata Atlântica a apresentar registros de presença humana. Encontrar sítios arqueológicos em áreas próximas ou vizinhas ao litoral é sempre um desafio. O nível do mar variou ao longo do tempo e é possível que antigos assentamentos estejam hoje em zonas submersas. Pontas de flecha
As pontas de flecha contam uma história semelhante sobre o povoamento inicial do território brasileiro. Aqui, esse tipo de vestígio da cultura material de povos pré-históricos é considerado relativamente raro. Pelo menos três sítios arqueológicos associados a duas tradições culturais distintas legaram exemplares desses artefatos líticos com idade superior a 10 mil anos. Pontas de projéteis da tradição Umbu com 10 milênios de idade foram encontradas no sítio de Garivaldino, no centro do Rio Grande do Sul, e em Tunas, no Paraná. Na gruta do Marinheiro, em Minas Gerais, também foram achados artefatos líticos desse tipo, igualmente antigos, mas cuja filiação cultural é alvo de debates.
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fotos 1 reprodução do livro Imagens da pré-história 2 léo ramos chaves
Artefato de pedra do sítio de Santa Elina, em Mato Grosso, datado em mais de 25 mil anos
o número de esqueletos humanos antigos encontrados preservados é pequeno e, entre os poucos que resistiram à passagem do tempo, é raro os arqueólogos conseguirem Vários sítios da extrair tecido biológico (colágeno) América do Sul que possa ser alvo direto do processo de datação por carbono 14. A são tão ou datação direta de material humano é sempre mais difícil de ser contesmais antigos tada. Com o método do carbono 14, é possível datar material de até do que a cultura 50 mil anos. Quando não é possíClóvis, dos vel estabelecer uma cronologia de ocupação de uma área a partir de Estados Unidos, tecido biológico de esqueletos humanos, o recurso seguinte é tentar que surgiu há obter dados indiretos: datar a camada geológica em que os esqueletos 13 mil anos ou vestígios humanos foram achados. Não havendo ossos de Homo sapiens, a saída é procurar por objetos feitos pelas mãos humanas Alguns arqueólogos consideram as pontas do ou restos de fogueiras produzidas pelo homem sítio mineiro como da tradição Umbu, enquanto que possam ser datados. Se isso também não é outros ainda não sabem como classificá-las. “As possível, resta recorrer novamente à datação da pontas da gruta do Marinheiro são totalmente camada geológica em que o objeto associado à diferentes das do Sul. Não são da tradição Lagoa presença humana foi encontrado. Para complicar ainda mais as coisas, as idades Santa nem da Umbu. E muito menos da Itaparica, que, aliás, não produzia pontas”, afirma a fornecidas pelo método do carbono 14 podem ser arqueóloga Mercedes Okumura, do Museu Na- apresentadas de duas formas, calibradas ou não cional da Universidade Federal do Rio de Janeiro calibradas. Isso gera discrepâncias e confusões. (MN-UFRJ), uma das poucas pesquisadoras do Nem sempre fica claro para o público leigo quanpaís que estudam esse tipo de artefato lítico. “A do os arqueólogos ou os meios de comunicação teoria nos diz que para surgir essa variabilidade estão usando um tipo de dado ou outro. Idades no modo de fazer pontas é preciso, entre outros obtidas pela técnica do carbono 14 têm de pasfatores, tempo suficiente para que essa diversi- sar por um tipo de correção para serem equivadade se desenvolva. De forma simplificada, é um lentes aos anos do calendário humano. Assim, processo semelhante ao da evolução biológica.” 10 mil anos obtidos pela técnica do carbono 14 Não se pode descartar a possibilidade de ter representam, depois de serem calibrados, cerca ocorrido a migração de um grupo pré-histórico de 12 mil anos. Há mais de uma forma de fazer que estava em uma região, e já sabia fazer pontas essa correção e, dependendo da técnica emprede flecha com certas características, para uma gada e da margem de erro, os resultados corriárea onde não havia esse tipo de conhecimento. gidos podem variar significativamente. Por isso, Em tese, essa migração encurtaria o tempo ne- alguns arqueólogos preferem trabalhar com as cessário para que um grupo aprendesse a fazer datações por carbono 14 sem terem passado por pontas de um dado estilo. No entanto, as pontas esse processo de correção. “Prefiro usar datas não encontradas no Brasil não se assemelham às de calibradas”, comenta Walter Neves. Em tempo: Clóvis, da América do Norte, nem às do tipo rabo nesta reportagem foram usadas datas calibradas. n de peixe, que estão presentes na Argentina e no Uruguai, com idade de até 11 mil anos. “Há algumas dessas no Brasil, mas ainda sem datação”, Artigos comenta Mercedes. Idade calibrada
As datações de sítios arqueológicos sempre provocam alguma discordância, às vezes até polêmicas, quando os resultados obtidos atingem idades inesperadas. Um dos motivos é que, nas Américas,
BUENO, L. e DIAS, A. Povoamento inicial da América do Sul: Contribuições do contexto brasileiro. Estudos Avançados. v. 29, n.83, jan./abr. 2015. ARAUJO, A. G. M. On vastness and variability: Cultural transmission, historicity, and the paleoindian record in eastern South America. Anais da Academia Brasileira de Ciências. v. 87, n. 2, p. 1239-58. 2015. BUENO, L. et al. The late Pleistocene/early Holocene archaeological record in Brazil: A geo-referenced database. Quaternary International. v. 301, p. 74-93, 8 jul. 2013.
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legislação y
Um arco-íris de exigências Direitos da população LGBT começam a ser respeitados a partir de ações movidas no Poder Judiciário
Christina Queiroz
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s demandas da população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) nunca foram resolvidas pela via do Poder Legislativo, por meio de projetos de lei. A maioria dos direitos foi adquirida no Brasil a partir de ações movidas no Poder Judiciário, com alguns processos iniciados em tribunais estaduais que seguiram para segundas instâncias até chegar ao Supremo Tribunal Federal (STF), segundo estudos do sociólogo Gustavo Gomes da Costa Santos, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Esse foi o caminho percorrido pela legalização da união civil homoafetiva, cujo reconhecimento se deu no STF em maio de 2011. Outras ações envolvendo a doação de sangue por homens homossexuais e mudanças no nome social de pessoas transgênero hoje aguardam julgamento no Supremo.
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Gomes da Costa afirma que essas demandas costumam seguir o mesmo caminho em países tão diferentes como Estados Unidos e África do Sul. “Há uma tendência mundial segundo a qual as cortes judiciais têm ganhado protagonismo em processos de reconhecimento de demandas desse nicho da sociedade”, informa o pesquisador, que coordena o Grupo de Pesquisa Diversiones – Direitos Humanos, Poder e Cultura em Gênero e Sexualidade, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Segundo ele, isso ocorre porque essas demandas enfrentam resistência de grupos conservadores nas casas legislativas. “No Brasil, a Frente Parlamentar Evangélica e deputados vinculados à igreja católica costumam ser os principais opositores desse tipo de projeto”, avalia. Os processos de reconhecimento de união estável de casais do mesmo sexo estariam
Junior Lago / UOL / Folhapress
Parada do Orgulho LGBT em São Paulo (2015): bandeira colorida criada em 1978 nos Estados Unidos representa ideias de diversidade e inclusão
relacionados ao impacto da chegada da Aids no Brasil, onde os primeiros casos foram registrados em 1982, afirma Regina Facchini, antropóloga e coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Nos anos 1980, as mortes entre homens homossexuais por causa da Aids eram muito frequentes. Os parceiros que sobreviveram, em vários casos, perderam até mesmo a casa em que viviam por não serem reconhecidos pela lei. Os processos de reconhecimento de união estável de casais homoafetivos estavam inicialmente ligados a esse tipo de situação e visavam o direito à pensão, aposentadoria ou herança”, conta Regina. Com a finalidade de atender a essas demandas, em 1995 ocorreu a primeira tentativa de legalizar a união civil entre pessoas do mesmo sexo por meio do Projeto de Lei nº 1.151, de autoria da então deputada federal Marta Suplicy. Apresentado na Câmara dos Deputados em outubro daquele ano, o projeto teve como relator o também então deputado Roberto Jefferson, que propôs o reconhecimento da “parceria civil registrada” – e não união –, além de vetar a adoção de crianças por esses casais. Gomes da Costa, da UFPE, esclarece que, naquela época, se interpretava que a Constituição estabelecia que as uniões se davam apenas entre homens e mulheres, de maneira que o termo proposto pelo relator procurava facilitar os caminhos da legalização. “Se o projeto mantivesse o termo união civil, resultaria em um pedido de mudança na Constituição e o risco de ele ser barrado nas votações seria maior”, observa Gomes da Costa, que conta que o projeto foi aprovado em uma comissão da Câmara dos Deputados, mas nunca chegou a ser votado no plenário. “O Projeto nº 1.151 foi retirado de pauta em 2001, após um acordo entre os líderes da Câmara”, diz o pesquisador, que estudou todas as iniciativas legislativas que contemplaram o segmento LGBT de 1985, quando houve o retorno dos governos civis, até 2012. Em 2011, a hoje senadora Marta Suplicy protocolou o Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 612/2011 para solicitar o reconhecimento legal da união estável entre casais homoafetivos.
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Sentença favorável de juiz federal de Porto Alegre à inscrição de companheiro homossexual como dependente em plano de saúde
Projeto de lei para legalizar a união civil homoafetiva é apresentado na Câmara dos Deputados
Homossexualidade é descriminalizada no Brasil
João Antônio Mascarenhas defende inclusão da proibição de discriminação por orientação sexual na Constituição, que é promulgada no ano seguinte sem essa recomendação
O projeto teve votação adiada no final do ano passado. Apesar de os processos em tribunais estaduais e federais passarem a ser mais frequentes depois dos anos 1980, o Judiciário começou a desempenhar um papel relevante na garantia de direitos da população LGBT somente a partir dos anos 1990, quando saíram as primeiras decisões favoráveis ao reconhecimento de casais homoafetivos. “As pessoas entravam nos tribunais estaduais para ter sua união reconhecida para recebimento de pensão, herança ou aposentadoria, os juízes negavam os pedidos, elas recorriam e as ações seguiam para segunda instância”, explica Gomes da Costa. Uma das decisões pioneiras aconteceu em julho de 1996, quando o então juiz federal Roger Raupp Rios, de Porto Alegre, proferiu sentença favorável à inscrição de companheiro homossexual como dependente em plano de saúde (ver sequência de casos no infográfico acima). A questão do reconhecimento de casais homoafetivos chegou ao STF em 2008. Naquele ano, a Procuradoria do estado do Rio de Janeiro entrou com uma ação no Supremo – a Arguição de Descumprimen88 z fevereiro DE 2018
Projeto de lei para legalizar a união civil homoafetiva é retirado de pauta na Câmara Governos paulista e fluminense sancionam leis para punir a discriminação contra orientação sexual Projeto de lei para criminalizar a discriminação por orientação sexual tramita na Câmara dos Deputados
to de Preceito Fundamental (ADPF) 132 – para regulamentar o direito de pensão dos seus servidores. “O governo fluminense consultou o STF para saber se deveria reconhecer parceiros de casais homoafetivos para o recebimento de pensão”, relata Thiago de Souza Amparo, professor da Faculdade de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV). União estável
Durante o processo de análise do caso pelo STF, Deborah Duprat, procuradora-geral da República interina, propôs ao Supremo o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo a partir de uma nova ação – a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.277 – na medida em que o parecer da Advocacia-Geral da União afirmava que os efeitos da ADPF 132 estariam restritos ao estado do Rio. Deborah defendia que a obrigatoriedade do reconhecimento da união estável entre casais homoafetivos deveria ser extraída da própria Constituição, replicando-se por analogia as normas que valem para a união estável entre homem e mulher. Em maio de 2011, o Supremo aplicou essa interpretação da Constitui-
Justiça Federal do Rio Grande do Sul obriga o INSS a considerar como dependentes parceiros de casais homoafetivos
Governo mineiro sanciona lei para punir discriminação por orientação sexual
ção ao artigo 1.723 do Código Civil, que trata do regime jurídico das uniões estáveis, equiparando a união homossexual à heterossexual. “Os ministros do STF fizeram uma leitura da Constituição diferente daquela feita por Roberto Jefferson em 1995, defendendo que o documento não era restritivo a casais de homens e mulheres e citando essa situação apenas como um exemplo de unidade familiar”, esclarece o professor da FGV. Mesmo após a decisão do STF alguns cartórios se recusaram a fazer o registro de união estável da população LGBT, o que levou o Conselho Nacional de Justiça a editar um ato normativo obrigando-os a realizar o procedimento. De acordo com Gomes da Costa, com a decisão do Supremo, a formalização de uniões homoafetivas, que antes acontecia em situações pontuais, passou a ser frequente no Brasil. Em 2017, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou as Estatísticas de Registro Civil, informando que, desde 2013, o casamento em cartório de pessoas do mesmo sexo cresceu 51,7%, enquanto os pedidos de união estável subiram 15,7%. Além disso, o pesquisador da UFPE escla-
Ministério Público Federal ganha ação para garantir o direito de transexuais à realização de cirurgia de transgenitalização pelo Sistema Único de Saúde (SUS)
Estado catarinense promulga lei que pune a discriminação por orientação sexual
Corregedoria-geral da Justiça gaúcha permite que pessoas do mesmo sexo registrem união estável em cartórios
STF reconhece a união homoafetiva
Justiça paraibana reconhece a relação homoafetiva entre duas mulheres para partilha de bens TSE reconhece a união estável entre duas mulheres quando determina que candidata à prefeitura de Viseu (PA) era inelegível por ser parceira da então prefeita Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro reconhece a união estável de um casal homossexual ao determinar a divisão de bens após a morte de um deles
rece que a decisão também desburocratizou processos de adoção por parte desses casais, na medida em que, antes, alguns juízes alegavam que eles não viviam em união estável e tampouco eram casados, critérios fundamentais para autorizar a adoção de crianças conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
ilustraçãO freepik (fundo)
Criminalização da homofobia
Outra demanda da população LGBT que ganhou espaço nas esferas legislativas estaduais e municipais a partir dos anos 2000 é a criminalização da homofobia. Segundo o livro “Direitos e políticas sexuais no Brasil: Mapeamento e diagnóstico”, editado pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Saúde Coletiva (Cepesc) e pelo Centro Latino-americano em Sexualidade e Direitos Humanos (Clam) da Universidade do Estado do Rio de Janei-
CNJ obriga cartórios brasileiros a registrar uniões e casamentos homoafetivos
Projeto de lei contra a discriminação por orientação sexual é arquivado pelo Senado
Fontes SIMÕES, J. A.; FACCHINI, R. Na trilha do arco-íris: do movimento homossexual ao LGBT. Fundação Perseu Abramo / Website do senado federal
ro (Uerj), dados da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) indicam que, em 2004, cerca de 70 cidades e nove estados brasileiros tinham algum tipo de lei para combater a discriminação por orientação sexual. O antropólogo Sérgio Luís Carrara, professor da Uerj e pesquisador do Clam, explica que essas leis podem envolver punições à discriminação em estabelecimentos comerciais, em negociações para compra ou aluguel de imóveis ou mesmo incluir um panorama mais amplo, como situações de preconceito no trabalho ou na contratação de empregados. “No entanto, as leis estabelecem multas ou sanções, mas não penalizam o acusado na esfera criminal, algo que só será possível quando o Brasil tiver uma lei federal para criminalizar a homofobia”, destaca Carrara.
Casos em análise
Previstos para serem decididos neste ano, há três casos pendentes no STF relativos aos direitos da população LGBT. O primeiro envolve uma mulher trans que reivindica o direito de usar sanitários designados ao gênero com o qual ela se identifica. O segundo – junção de duas ações judiciais – é uma ação sobre a alteração do nome e do gênero de transexuais nos documentos de registro civil, sem a exigência de se realizar cirurgia de mudança de sexo. Outro caso se refere à doação de sangue por parte de homens que fazem sexo com homens, que são proibidos de doar sangue nos 12 meses seguintes ao ato sexual. Na última sessão para discutir o assunto, que aconteceu no final de 2017, todos os ministros votaram a favor de se permitir a doação de sangue por essa parcela da população sem restrições. Porém, o ministro Alexandre de Moraes destacou em seu voto a necessidade de que esse sangue seja armazenado durante três meses e que passe por testes para detectar a presença de HIV após esse período de janela imunológica. O STF ainda não decidiu o caso. “Nos últimos anos, o STF foi chamado para debater questões que historicamente foram levadas ao Poder Legislativo. No entanto, o Supremo não consegue absorver todas essas demandas, de maneira que muitas vezes os processos levam anos para ser julgados”, comenta o pesquisador da FGV. Amparo considera que no caso de pautas que sofrem resistência na sociedade, como aquelas relacionadas à população LGBT, essa demora pode ser favorável para que a opinião pública amadureça e a decisão final dos ministros tenha maior aceitação. “O custo, por outro lado, é o prejuízo a direitos constitucionais das partes envolvidas nos processos judiciais devido à morosidade, intencional ou não, do Supremo”, finaliza. n Artigo GOMES DA COSTA SANTOS, G. Movimento LGBT e partidos políticos no Brasil. Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar. v. 6, n. 1, p. 179-212, jan.-jun. 2016.
Livros SIMÕES, J. A. e FACCHINI, R. Na trilha do arco-íris: Do movimento homossexual ao LGBT. São Paulo: Fundação Perseu Abramo. 2009, 194 p. VIANNA, A. e LACERDA, P. Direitos e políticas sexuais no Brasil: Mapeamento e diagnóstico. Rio de Janeiro: Cepesc. 2004, 246 p.
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memória
Fachada do edifício central da Faculdade de Saúde Pública no início dos anos 1930 1
Por uma cidade saneada Criado há 100 anos, Laboratório de Higiene deu origem à Faculdade de Saúde Pública da USP
Rodrigo de Oliveira Andrade
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A
intensa movimentação de pessoas entre o campo e as cidades em fins do século XIX desencadeou a eclosão de diversas epidemias no estado de São Paulo. Diante dos casos de febre tifoide, peste bubônica e varíola, as autoridades paulistas decidiram investir em estratégias de saúde pública: criaram em 1892 o Serviço Sanitário, órgão dedicado ao gerenciamento dos institutos Bacteriológico e Vacinogênico, hoje Adolfo Lutz e Butantan, respectivamente; e desenvolveram ações de policiamento e vigilância sanitária de grandes estabelecimentos públicos e privados do estado. A despeito dos esforços, o crescimento desordenado da cidade, o empobrecimento da população e a precarização das moradias nos bairros operários persistiam, aumentando a incidência de doenças e os índices de mortalidade infantil. O estado precisava de uma instituição que formasse médicos especialistas em higiene e saúde pública. Essa demanda foi atendida em fevereiro de 1918 com a criação do Laboratório de Higiene, instituição precursora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP).
fotos acervo do museu histórico da faculdade de medicina da unviersidade de são paulo
A criação do Laboratório de Higiene se deu a partir de um contrato entre o governo de São Paulo e a Fundação Rockefeller, uma das mais antigas instituições filantrópicas dos Estados Unidos. Sabendo da disposição da fundação em investir na saúde pública de outros países, o médico Arnaldo Vieira de Carvalho (1867-1920), diretor da recém-criada Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, enviou uma carta à instituição pedindo apoio para a criação de duas disciplinas: patologia e higiene. Em 1916 a Rockefeller enviou uma comissão médica para o Brasil para visitar escolas de medicina, hospitais, serviços de saúde e centros de pesquisa de várias capitais e para estabelecer contato com lideranças científicas. “A comissão ficou impressionada com o avanço das medidas adotadas pelas autoridades paulistas contra epidemias, concluindo que seria interessante intensificar o contato entre a Rockefeller
Sanitarista norte-americano Wilson Smillie, segundo diretor do Laboratório de Higiene
Primeira turma de educadoras sanitárias, formadas em 1927
e o governo de São Paulo”, conta a historiadora Luciana Cristina Correia, mestre pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi criado um plano de cooperação entre a fundação e o governo do estado, ao qual a Faculdade de Medicina seria subordinada. O acordo previa a criação de um laboratório vinculado à disciplina de higiene, que seria ministrada aos alunos do quinto ano do curso de medicina. O governo ficou encarregado de alugar um prédio para abrigar o laboratório e assumiu suas despesas de manutenção. Já a Rockefeller investiria na compra dos equipamentos e na criação de uma biblioteca, mais uma verba anual de US$ 15 mil por cinco anos. O local escolhido foi um casarão ao lado da Faculdade de Medicina, que funcionava no centro de São Paulo. “O acordo também previa bolsas de doutoramento na recém-criada Escola de Higiene e Saúde Pública da Universidade Johns
Hopkins, nos Estados Unidos, a dois médicos da Faculdade de Medicina de São Paulo, além da vinda de um pesquisador norte-americano para assumir a direção do Laboratório de Higiene”, explica a socióloga Nelly Martins Ferreira Candeias, professora aposentada do Departamento de Prática de Saúde Pública da FSP. “O escolhido foi o sanitarista Samuel Taylor Darling [1872-1925], especialista no combate à febre amarela, ancilostomíase e malária”, conta a pesquisadora. Nelly é autora do primeiro estudo sobre a criação do Laboratório de Higiene, publicado em 1984 na Revista de Saúde Pública. Darling ficou à frente do laboratório até fins de 1921. Em seu lugar, foi designado o sanitarista Wilson George Smillie (1886-1971). Os médicos Francisco Borges Vieira e Geraldo Horácio de Paula Souza foram os brasileiros contemplados com a bolsa para o curso nos Estados Unidos, tornando-se os primeiros no país a receber o título de doutor em Higiene e Saúde Pública. Nascido em Itu, interior de São Paulo, Paula Souza (1889-1951) tinha duas graduações, a primeira em farmácia, concluída em 1908, e a segunda em medicina, cursada na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e finalizada em 1913. Em outubro de 1918 o jovem médico partiu para seu doutorado na Johns Hopkins. Lá estudou, pesquisou e visitou institutos e obras de caráter sanitário. “Na volta a São Paulo, em 1921, assumiu a direção do Laboratório de Higiene, tendo Borges Vieira como vice-diretor”, conta a PESQUISA FAPESP 264 | 91
socióloga Cristina de Campos, autora do livro São Paulo pela lente da higiene: As propostas de Geraldo Horácio de Paula Souza para a cidade (1925-1945). Com Paula Souza, o Laboratório de Higiene ganhou o status de instituto. “A saúde pública passou a ser encarada de forma interdisciplinar, e não mais apenas como atribuição médica”, diz Luciana. Com o fim do convênio com a Rockefeller, ele elaborou uma proposta de transformação do laboratório em escola de saúde pública, servindo como uma instituição de pesquisa e treinamento de profissionais para a Faculdade de Medicina e o Serviço Sanitário. “A oficialização do Instituto de Higiene, em 1924, inovou ao atuar na formação de profissionais a partir da constituição de um saber sanitarista e médico.” Os cursos de higiene e saúde pública contavam com aulas de administração sanitária, bacteriologia e imunologia, epidemiologia e profilaxia de doenças infecciosas. Na área de pesquisa, os departamentos
de Higiene Rural, dirigido pelo parasitologista Samuel Pessoa (ver Pesquisa FAPESP nº 255), e de Epidemiologia, por Borges Vieira, desenvolviam estudos sobre o tratamento da ancilostomíase e de profilaxia da malária, febre tifoide e doenças venéreas. O instituto mantinha uma intensa e profícua rede de colaboração com o Serviço Sanitário, cuja direção Paula Souza assumiu em 1922, ainda como diretor do Instituto de Higiene.
Borges Vieira manteve intensa produção científica enquanto era vice-diretor do Instituto de Higiene 92 | fevereiro DE 2018
O laboratório funcionou inicialmente neste casarão na rua Brigadeiro Tobias, região central de São Paulo
No comando do Serviço Sanitário, o sanitarista promoveu uma reforma na estrutura do órgão e criou cursos de higiene e saúde pública para médicos e de educadores sanitários para jovens formadas na escola normal – curso equivalente ao ensino médio de formação de professores. “Sua proposta era deslocar o eixo das intervenções em saúde pública da polícia sanitária para a educação sanitária”, destaca a historiadora da educação Heloísa Helena Pimenta Rocha, da Faculdade de Educação da Unicamp. Tanto Paula Souza como Borges Vieira defendiam uma ciência “neutra”, capaz de orientar a sociedade de forma racional, tirando-a do atraso por meio da educação. Em 1924 Paula Souza conseguiu apoio da Rockefeller para construir um novo prédio para o instituto, explica Heloísa Helena, autora do livro A higienização dos costumes: Educação escolar e saúde no projeto do Instituto de Hygiene de São Paulo (1918-1925).
fotos acervo do museu histórico da faculdade de medicina da unviersidade de são paulo
Em 1938, a então chamada Escola de Higiene e Saúde Pública foi incorporada à USP e subordinada novamente à Faculdade de Medicina. Somente em 1945 a escola passou a se chamar Faculdade de Higiene e Saúde Pública, com caráter universitário autônomo. Diversas políticas públicas importantes nos anos 1950 e 1960 tiveram origem em pesquisas desenvolvidas na instituição. Uma delas foi a fluoração da água. Ao estudar 334 cidades do estado e 12 reservatórios, o nutrólogo Yaro Gandra verificou que o nível de flúor se encontrava abaixo do ideal. Seu trabalho levou à decisão de adicionar o composto nas águas do estado, em 1952. Em 1957 foi criado o curso de Veterinária em Saúde Pública e, no ano seguinte, o de Especialização em Saúde Pública para dentistas. Em 1959 este curso passou a ser oferecido também às enfermeiras. Nos anos 1960 a faculdade começou a cooperar com a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP em projetos de pesquisa de demografia e saúde, dando origem ao Centro de Estudos de Dinâmica Populacional (Cedip), fundado e dirigido
Paula Souza (à dir.) e o secretário de Educação e Saúde Pública de São Paulo Álvaro Guião, em meados da década de 1940
Paula Souza (em destaque) durante 3º Congresso Brasileiro de Higiene, em 1926
pela estatística Elza Berquó na FSP, em 1966 (ver Pesquisa FAPESP nº 262). Durante a Campanha Nacional de Controle de Tuberculose, em 1968, a faculdade foi escolhida para sediar a realização de cursos de leitura do exame de identificação da doença e de administração da vacina BCG. Em 1987, a FSP e a Faculdade de Direito da USP criaram um grupo de trabalho em Direito Sanitário, que se tornou o Centro de Pesquisa em Direito Sanitário (Cepedisa). A faculdade conta hoje com dois centros em que são
desenvolvidas atividades de ensino, pesquisa e prestação de serviços à comunidade. Um deles é o Centro de Saúde Escola Geraldo de Paula Souza, em São Paulo. O outro é o Serviço Especial de Saúde de Araraquara (Sesa), no interior paulista. A instituição mantém ainda hoje uma posição de destaque no Brasil, produzindo pesquisas e formando profissionais de excelência, ajudando a orientar políticas públicas de saúde e contribuindo para o aprimoramento do Sistema Único de Saúde (SUS) no país. n
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carreiras
qualificação profissional
À procura da versatilidade
Os programas de pós-graduação dos Estados Unidos e do Canadá estão formalizando suas expectativas em relação às habilidades e competências que os estudantes de doutorado devem ter desenvolvido ao fim do período de estudos. Essa foi a principal conclusão apresentada em um relatório do Conselho de Escolas de Pós-graduação, organização que representa 475 instituições de ensino superior dos Estados Unidos, Canadá e de outros países. O documento baseia-se em uma pesquisa desenvolvida em 2016 com 241 instituições-membros, das quais 65% cederam informações que indicam que a maioria dos seus programas de doutorado havia concebido métodos para avaliar se os estudantes estavam desenvolvendo as chamadas habilidades transferíveis, ou seja, aquelas que não são consideradas técnicas e que podem ser empregadas em atividades diversas. A questão vem sendo debatida nos Estados Unidos há algum tempo. Trabalhando de 94 | fevereiro DE 2018
forma articulada, o Conselho de Escolas de Pós-graduação, a Fundação Carnegie para o Avanço do Ensino e diversas sociedades estão repensando os mecanismos tradicionais de avaliação dos sistemas de pós-graduação, baseados em grande medida nas propostas dos programas, na qualidade do corpo docente e na produção intelectual de alunos e professores. Uma das propostas é estabelecer habilidades que vão além do domínio intelectual do conteúdo abordado; outra é garantir a aplicação de exames capazes de avaliar se essas habilidades foram desenvolvidas pelos estudantes durante o curso. Nos Estados Unidos, como na maioria dos países, os cursos de doutoramento são dirigidos quase exclusivamente para a formação de futuros professores e pesquisadores, concentrando-se na investigação científica em detrimento de outras competências, em geral bastante valorizadas pelo mercado de trabalho não acadêmico. Essa tendência é ainda mais acentuada nos programas de pós-graduação em
ilustrações ana matsusaki
Pós-graduandos devem desenvolver novas habilidades que os tornem competitivos no mercado de trabalho não acadêmico
ilustraçãO ana matsusaki
ciência, tecnologia, engenharia e matemática, áreas conhecidas pela sigla Stem. No estudo Professional development: Shaping effective programs for Stem graduate students, publicado em março de 2017 pelo Conselho de Escolas de Pós-graduação, apenas 10% dos programas daquele país ensinavam habilidades relacionadas à análise de dados, política científica, governança e gerenciamento de projetos e orçamento. Muitos estudantes de pós-graduação alegaram não participar de programas de desenvolvimento profissional porque sentiam que seus professores não valorizavam a carreira não acadêmica e também porque as agências de fomento federais não incentivam esse tipo de preparação profissional. No entanto, em um estudo publicado em setembro de 2017 por pesquisadores do Escritório de Graduação em Educação da Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, quase 4 mil doutores, de pouco mais de 8 mil entrevistados, reconheceram que começaram a desenvolver durante a pós-graduação habilidades profissionais que mais tarde foram usadas e exploradas em seus empregos não acadêmicos. Dentre as competências destacadas estão a capacidade de analisar e solucionar problemas complexos, de gerenciamento de projetos e o pensamento crítico. A mesma pesquisa também constatou que o desenvolvimento de algumas habilidades valorizadas no mercado de trabalho não acadêmico tende a ser ignorado durante o doutorado, como capacidade de liderança, de
Estudos recentes indicam que as empresas cada vez mais valorizam profissionais com pós-graduação e integrados com o mercado e a academia
trabalhar em equipe e gerenciamento do tempo. A noção de que o sucesso no mercado de trabalho exige hoje mais do que habilidades de laboratório e pilhas de artigos publicados aos poucos começa a ser discutida no Brasil. Uma primeira tentativa nesse sentido, segundo o engenheiro de computação Renato Cerqueira, foi a criação dos cursos de mestrado e doutorado profissionalizantes. O objetivo desses programas é oferecer uma proposta curricular que articule a pesquisa científica com a prática profissional fora da academia, de modo a qualificar o indivíduo para o mercado de trabalho e ampliar a competitividade e a produtividade de empresas e organizações públicas e privadas (ver Pesquisa FAPESP nº 256). “No entanto”, ele destaca, “esses cursos até agora não apresentaram uma proposta formal de desenvolvimento de habilidades voltadas para o mercado de trabalho não acadêmico”. Cerqueira trabalhou como professor de engenharia de sistemas distribuídos do Departamento de Informática da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) até setembro de 2011, quando foi convidado para trabalhar no então recém-criado Laboratório de Pesquisas da IBM no Brasil. Ele explica que hoje esse tipo de formação abrangente envolvendo o desenvolvimento de habilidades transferíveis na pós-graduação se dá mais como uma consequência de projetos conjuntos entre universidade e indústria. “A interação dos alunos de pós-graduação com pesquisadores e técnicos de empresas privadas em projetos colaborativos pode ser um mecanismo promissor de formação dos estudantes, que têm a chance de se valer dessa experiência para desenvolver o que chamamos de soft skills, competências mais subjetivas e difíceis de se avaliar, uma vez que estão relacionadas à forma de se relacionar e interagir com as pessoas.” PESQUISA FAPESP 264 | 95
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habilidades profissionais tende a variar de acordo com cada área. Segundo Tania, é importante que os estudantes tentem identificar as habilidades mais valorizadas na sua área de atuação, dentro e fora do ambiente acadêmico. Esse tipo de preocupação pode aumentar as chances de contratação por empresas e facilitar a transição do ambiente acadêmico para um não acadêmico, segundo estudo feito pela The Dow Chemical Company, empresa norte-americana de produtos químicos, plásticos e agropecuários. Nesses casos, o indivíduo contratado de imediato pode se concentrar em suas atividades, enquanto a empresa não precisa se preocupar em treiná-lo para que adquira habilidades necessárias para o sucesso na empresa. Uma das instituições de ensino e pesquisa no Brasil que já começaram a desenvolver algumas dessas ideias é o Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da USP. De acordo com o físico Tito José Bonagamba, diretor do instituto, desde a graduação os professores procuram mostrar aos estudantes as possibilidades de atuação tanto no ambiente acadêmico quanto no industrial, além de estimular a concepção de projetos interdisciplinares, promovendo os conceitos de empreendedorismo e
inovação dentro das salas de aula. “Parte expressiva dos projetos de pesquisa desenvolvidos por estudantes de pós-graduação interage com a indústria”, informa. O IFSC oferece o Programa de Doutorado Acadêmico Industrial, apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que permite ao aluno desenvolver sua pesquisa de interesse industrial tendo como orientador um docente credenciado no Programa de Pós-graduação em Física e como supervisor qualificado alguém que trabalhe na indústria. A instituição também tem investido em um sistema de tutoria nos cursos de graduação. Durante os dois primeiros anos, os alunos podem decidir se vão optar pela carreira acadêmica ou se querem ir para o mercado de trabalho não acadêmico, podendo discutir com um professor orientador as disciplinas adicionais mais adequadas para sua formação complementar. “Queremos garantir um leque mais amplo de oportunidades de emprego para nossos alunos”, explica Bonagamba. “Eles devem desenvolver habilidades que vão além da sala de aula caso queiram ser competitivos no mercado de trabalho. Quanto antes começarem a se preparar, melhor”, conclui. n Rodrigo de Oliveira Andrade
ilustração ana matsusaki
Nos últimos anos, à medida que a competitividade das empresas passou a ser crescentemente pautada por uma perspectiva de inovação e de investimento em pesquisa e desenvolvimento (P&D), intensificou-se em algumas companhias a busca por profissionais mais qualificados e com ampla experiência científica. Justamente por isso, empregadores fora da academia tendem a valorizar profissionais com pós-graduação, de acordo com um estudo da consultoria Produtive, de São Paulo, que analisou a remuneração de executivos recolocados no mercado pela empresa nas regiões Sul e Sudeste do país. A análise indica que as empresas precisam de profissionais integrados com o mercado e a academia. Outro ponto destacado é que profissionais com esse perfil têm capacidade de gerar fontes alternativas de renda, além das funções tradicionais do cargo, podendo investir o tempo disponível na carreira, na empresa ou conciliar o trabalho corporativo com aulas na academia, sobretudo em universidades privadas. Nesse sentido, é importante que os estudantes invistam no desenvolvimento de habilidades que os tornem competitivos para empregos fora da universidade. Ao mesmo tempo, quem decide investir em uma carreira não científica não precisa esquecer tudo o que aprendeu durante a pós-graduação. As habilidades que se desenvolve ao mergulhar em projetos acadêmicos são valorizadas pelas empresas. Tania Casado, professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA-USP) e diretora do Escritório de Desenvolvimento de Carreiras da universidade, explica que “no escritório procuramos orientar os alunos de graduação sobre como o conhecimento e as habilidades desenvolvidas durante o curso podem ser usados em diferentes áreas de atuação no mercado de trabalho, acadêmico ou não”. A valorização de determinadas
Participação de empresas em papers de P&D ainda é baixa no Brasil
Vocação para orientar
Dos cerca de 250 mil artigos científicos publicados por pesquisadores brasileiros entre 2011 e 2016, apenas 1% tinha pelo menos um autor afiliado às empresas privadas, segundo dados apresentados no relatório Research in Brazil, da Clarivate Analytics, antiga divisão de propriedade e ciência da Thomson Reuters. O documento, divulgado em janeiro, avaliou o desempenho da pesquisa brasileira em um contexto global a partir de dados do InCites, plataforma baseada em artigos, trabalhos de eventos, livros, patentes, sites, estruturas químicas, compostos e reações indexados na Web of Science. Ao todo, pesquisadores de 232 empresas participaram de trabalhos científicos como coautores no período. As grandes empresas farmacêuticas dos Estados Unidos, como Pfizer e Johnson & Johnson, com filiais no Brasil, foram os colaboradores mais frequentes. Já a Petrobras foi a única empresa brasileira a contribuir significativamente com a produção acadêmica no país. Somente em 2013, a estatal foi responsável por 10% do dispêndio em pesquisa e desenvolvimento (P&D) na indústria, aparecendo, por isso, em 190 dos artigos publicados entre 2011 e 2016. Segundo o relatório Research in Brazil, os dados sobre a participação das empresas na produção de artigos científicos no Brasil são resultados de intervenções governamentais para apoiar a colaboração intersetorial e a transferência de conhecimento. Em 2007, a Lei de Inovação simplificou a colaboração entre centros de P&D públicos e privados e concedeu benefícios fiscais para pequenas e médias empresas que investissem em infraestrutura de P&D no país. Apesar do esforço, as ações não tiveram um efeito notável sobre a proporção de trabalhos com colaboradores de empresas, destaca o relatório. n
A bióloga paulista Carolina Nalon estava prestes a concluir sua iniciação científica no Laboratório de Ecologia e Restauração Florestal da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP) quando embarcou para um estágio de curta duração no Jardim Botânico Old Westbury Gardens, em Nova York, Estados Unidos. O período no exterior foi produtivo, ela conta, mas não a convenceu sobre um futuro como pesquisadora. Aos 23 anos e diante da pressão de decidir sua carreira, resolveu, nas últimas semanas no exterior, inscrever-se em um curso de coaching – palavra inglesa para treinamento –, em que profissionais orientam pessoas no sentido de potencializar seus recursos técnicos e emocionais para atingir metas, solucionar problemas e desenvolver habilidades específicas. Carolina começou o curso quando voltou ao Brasil, tentando conciliar a atividade com a redação de seu trabalho de conclusão da graduação. No entanto, durante as primeiras aulas, percebeu que havia se inscrito em um curso destinado à formação de coaches [treinadores ou mentores] por engano. “Decidi fazer o curso até o fim, já que tinha investido um bom dinheiro nisso”, conta. Após a graduação, concluída em 2011, ela começou a dar aulas de inglês e a fazer algumas experiências em coaching. Aos poucos, conhecidos começaram a procurá-la. “Cobrava um valor quase simbólico e atendia os clientes em casa”, ela relembra.
perfil
arquivo pessoal
Aos 26 anos, Carolina Nalon desistiu da biologia para criar uma empresa de desenvolvimento humano Em 2011, Carolina foi para Columbus, nos Estados Unidos, para trabalhar em um programa de intercâmbio internacional da Universidade Estadual de Ohio especializado em estágios em horticultura, agricultura, vinícola, entre outros. “Fui chamada pela instituição norte-americana para orientar estagiários brasileiros que iam para lá”, diz. Durante o período, conseguiu novos clientes nos Estados Unidos e no Brasil. Trabalhava via Skype. Em 2012, ao voltar dos Estados Unidos, resolveu investir de vez nessa área. Sem experiência em empreendedorismo, fez um curso de marketing, criou um plano de negócios e, em 2012, aos 26 anos, lançou sozinha a Tiê Coaching. Carolina montou workshops e palestras, apresentando estratégias de comunicação e treinamento sobre como se relacionar de uma forma compassiva, honesta e empática para indicar como essas qualidades podem auxiliar na resolução de conflitos no ambiente empresarial e acadêmico. Várias empresas se interessaram pelo trabalho, como Natura, Pfizer e Bayer. Entre 2012 e 2013, ela expandiu o negócio e começou a produzir cursos on-line com apostilas e material complementar. Foi quando mudou o nome da empresa para Instituto Tiê. Mais recentemente, desenvolveu workshops para alunos de pós-graduação do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP) a convite do biólogo Glauco Machado, coordenador do curso de campo de ecologia na Mata Atlântica. “A proposta foi orientá-los no sentido de conseguirem lidar com as pressões e frustrações da vida acadêmica e como se comunicar melhor com colegas e professores”, explica Carolina. n R.O.A.
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As pessoas estão confusas por receberem grande quantidade de notícias falsas. Sejam impressas, online, no celular ou em vídeo, as informações divulgadas pelas revistas são reais e baseadas em pesquisa e investigação jornalística. Leitores de revistas são mais envolvidos e propensos a recomendar suas matérias nas redes sociais. AssociAção NAcioNAl de editores de revistAs #revistAeuAcredito i www.ANer.org.br
FAPESP oferece recursos para
Pesquisa em Pequenas Empresas em São Paulo Chamada de Propostas para o Programa FAPESP Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (PIPE)
As solicitações de financiamento devem apresentar projetos de pesquisa a serem desenvolvidos em duas etapas: FASE 1 viabilidade tecnológica de produto ou processo. Duração máxima: 9 meses. Recursos: até R$ 200 mil FASE 2 desenvolvimento de produto ou processo inovador. Duração máxima: 24 meses. Recursos: até R$ 1 milhão
Condições para participação O proponente deve ser pesquisador vinculado a empresas com até 250 empregados e unidade de P&D no Estado de São Paulo n
n O proponente deve demonstrar conhecimento e As normas competência técnica no tema do projeto para submissão n A empresa não precisa estar formalmente de propostas constituída na submissão da proposta estão n A empresa deve oferecer condições adequadas disponíveis em fapesp.br/pipe para o desenvolvimento do projeto de pesquisa
A FAPESP reservou até R$ 15 milhões às propostas consideradas meritórias nesta chamada
Data-limite para apresentação de propostas 2 de maio de 2018
TIRE SUAS DÚVIDAS Participe do “Diálogo sobre apoio à pesquisa para inovação na Pequena Empresa”, reunião organizada pela FAPESP, CIESP, ANPEI e SIMPI para esclarecimentos sobre a Chamada de Propostas. 28 DE MARÇO DE 2018 das 9h às 12h na sede da FAPESP INSCRIÇÕES fapesp.br/eventos/ dialogo22018
Previsão de divulgação do resultado da chamada 22 de setembro de 2018
Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia
FAPESP – Rua Pio XI, 1500 – Alto da Lapa – São Paulo, SP – CEP 05468-901 • (11) 3838-4000 – www.fapesp.br