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Agosto 2011 Nº 186 R$ 9,50 ■
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cérebro Alergia a alimentos provoca ansiedade Entrevista
Jean-Pierre Changeux As bases da consciência
pesquisa fapesp
Biodiesel pode ser feito a partir da vinhaça
Ambição Espacial 9 771519 87700 1
ISSN 1519-8774
00186
Brasil busca ritmo vigoroso de lançamento de satélites
Ramon Noguchi / UFRJ / UFF
imagem do mês
Colorido
subaquático Mergulhando em Curaçao, no Caribe, em férias da pesquisa com peixes de recifes de coral, o biólogo Ramon Noguchi avistou o Gramma loreto, que costuma aparecer de barriga para cima na entrada das tocas. A espécie está ameaçada pelo aquarismo e pelo predador peixe-leão, uma espécie invasora. A foto foi premiada este ano no Congresso Brasileiro de Biologia Marinha.
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seções 3 imagem do mês 6 CARTAS 7 CARTA Da EDITORa 8 MEMÓRIA 25 ESTRATÉGIAS 38 LABORATÓRIO 59 Scielo 68 LINHA DE PRODUÇÃO 94 RESENHA 95 livros 96 ficcão 98 CLASSIFICADOS
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WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR
política científica e tecnológica
ciência
30 História III
40 Imunologia
52 Ambiente
Da pesquisa básica às políticas públicas, FAPESP investe há cinco décadas em estudos da biodiversidade
Mais do que simples irritação, sensibilidade exacerbada a alimentos provoca ansiedade
Orientação das fileiras de cultivo pode ajudar locomoção de pequenos mamíferos
48 Saúde pública
55 Especial Ano da Química
capa 18 Reformulação do programa espacial busca criar ritmo vigoroso de lançamento de satélites
ENTREVISTA 10 Da descoberta das
proteínas alostéricas à química de refinados processos cerebrais, o alvo do neurocientista francês Jean-Pierre Changeux é a compreensão da vida e da mente humana
Capa: foto eduardo cesar ilustração gabriel bitar
36 Polêmica Intervenções no clima global podem já ser viáveis, mas têm enormes riscos
Contexto da viagem determina se é preciso tomar remédio contra malária
A riqueza da biodiversidade das florestas brasileiras também se revela nas substâncias
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tecnologia
humanidades
60 Física
70 Energia
Arqueologia 80 Enormes círculos
Brasileiros e europeus buscam o controle da fusão nuclear
64 Astronomia Mecanismo alternativo explica a formação de estrelas de nêutrons maiores que o normal
Resíduo da produção de etanol pode ser usado para produzir biodiesel
74 Recursos florestais Feixe de luz reconhece composição química de espécies
76 Engenharia naval
Navio brasileiro tem sistema inovador de carga e descarga de 400 mil toneladas de minério
e quadrados foram escavados no chão da Amazônia há 2 mil anos
86
86 Ranking
90 Comunicação
84 Blocos de granito talhados há mil anos no Amapá estão alinhados com a trajetória do astro
Cursos brasileiros se destacam no cenário internacional
Cai status da telenovela como lugar privilegiado de discussão das questões nacionais
fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo
empresa que apoia a ciência brasileira
Celso Lafer
Presidente eduardo moacyr krieger
vice-Presidente
Conselho Superior Celso Lafer, eduardo moacyr krieger, Horácio Lafer Piva, herman jacobus cornelis voorwald, Maria josé soares mendes giannini, josé de souza martins, JOSÉ TADEU JORGE, Luiz gonzaga belluzzo, sedi hirano, Suely Vilela Sampaio, Vahan Agopyan, Yoshiaki Nakano Conselho Técnico-Administrativo Ricardo Renzo Brentani
Diretor Presidente
CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ
Diretor Científico
Joaquim J. de Camargo Engler
Diretor Administrativo
issn 1519-8774
Conselho editorial Carlos henrique de brito cruz (presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Arana Varela, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo Leite, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Mariza Corrêa, Maurício Tuffani, Monica Teixeira comitê científico LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (presidente), cylon gonçalves da silva, FRANCISCO ANTôNIO BEZERRA COUTINHO, joão furtado, Joaquim J. de Camargo Engler, josé roberto parra, luís augusto barbosa cortez, luis fernandeZ lopez, marie-anne van sluys, mário josé abdalla saad, PAULA MONTERO, Ricardo Renzo Brentani, sérgio queiroz, wagner do amaral, Walter Colli Coordenador científico luiz henrique lopes dos santos
Diretora de redação mariluce moura editor chefe neldson marcolin Editores executivos Carlos Haag (humanidades), fabrício marques (POLÍTICA), Marcos de Oliveira (Tecnologia), maria guimarães (edição on-line), Ricardo Zorzetto (Ciência) editores especiais Carlos Fioravanti, Marcos Pivetta Editoras assistentes Dinorah Ereno, Isis Nóbile Diniz (edição on-line) revisão Márcio Guimarães de Araújo, Margô Negro editora de arte Laura daviña e Mayumi okuyama (coordenação) ARTE ana paula campos, maria cecilia felli fotógrafo eduardo cesar Colaboradores Ana Lima, André Serradas (Banco de Dados), Bel Falleiros, Daniel das Neves, Delfin, Eduardo Sancinetti, Igor Zolnerkevic, Laura Teixeira, márcio Ferrari, Maria da Conceição Quinteiro, Mariana Zanetti, Mateus Acioli, Salvador Nogueira, Tadeu Vilani
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cartas@fapesp.br
Flavio Alterthum
Como escrever
Parabéns à Pesquisa FAPESP pela excelente qualidade da entrevista realizada com o professor Flavio Alterthum (“Lições sobre o etanol do Brasil”, edição 185). Como aluno das disciplinas Mecanismo de Ação de Agentes Antimicrobianos e Controle Microbiológico: Esterilização e Desinfecção, brilhantemente ministradas por ele durante o meu curso de pós-graduação no Departamento de Microbiologia da Universidade de São Paulo (USP), tive o privilégio de aprender a importância de “ouvir as pessoas e saber trabalhar com as perguntas e o conhecimento que elas têm”. É importante registrar a minha emoção ao ler a bela entrevista. O brilho nos olhos dos alunos de Flavio Alterthum são uma consequência do seu carisma, cuidado e zelo na formação dos estudantes. Hoje na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), me lembro do aprendizado transmitido por ele e tomo como uma grande experiência a ser passada para os meus alunos. Quanto à sentença “a essa altura da vida”, não se preocupe, jovem professor, pois como me ensina constantemente a querida professora Annette Foronda, do Departamento de Parasitologia da USP, “a juventude está na nossa capacidade de aprender”.
A questão da escrita produzida pelos acadêmicos iniciantes e docentes de diferentes níveis, em geral, apresenta problemas de produção devido à falta de uma capacitação mais específica dentro das escolas de formação básica e universidades em geral, que por sua vez carecem de programas específicos voltados para esse fim (“Escreva bem ou pereça”, edição 182). Estimular o estudante na pesquisa interpretativa, na leitura e produção de textos de diferentes assuntos pode melhorar sua qualificação no quesito letramento.
Fabio Ramos de Souza Carvalho Unifesp São Paulo, SP
instituto verificador de circulação
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cartas
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Marte Ferreira da Silva Atibaia, SP
Do twitter Acabou de chegar minha @PesquisaFapesp, muita informação e as matérias superbacanas!!! @Prof_Orestes (Orestes Alessandro)
Poxa vida, sábado começou mal: edição deste mês da @PesquisaFapesp não tem aquela seção da última página, Ficção. Por onde começar, então? @mimimiprado (Emilaine Prado) Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727 - 10º andar - CEP 05415-012 - Pinheiros São Paulo, SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.
carta da editora
Espaço, alergias e consciência Mariluce Moura - Diretora de Redação
É
amplamente sabido que o programa espacial brasileiro enfrenta atrasos crônicos e dificuldades em dominar tecnologias críticas. Pior: na comparação entre programas de países emergentes, ele vem acusando perda sensível de relevância. Tanto que, se em 1988 o Brasil tinha cacife alto o suficiente em tecnologia de satélites para se apresentar à China como parceiro ideal e com ela celebrar um acordo nesse campo que já dura 23 anos, hoje a relação é, no mínimo, assimétrica. Ainda assim, há que se reconhecer, conforme a reportagem de capa desta edição de Pesquisa FAPESP, que o programa espacial brasileiro gerou frutos variados ao longo de três décadas, entre eles a nacionalização de materiais para a fabricação de propelentes, ligas metálicas e materiais cerâmicos. Não é seguramente uma constatação sem importância, mas muito mais importante na reportagem em questão são os primeiros traços do redesenho do programa espacial brasileiro que nosso editor de política científica e tecnológica, Fabrício Marques, apresenta ao leitor a partir da página 18. E isso inclui desde a fusão provável da Agência Espacial Brasileira (AEB) com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) até o aumento dos investimentos no programa e na renovação dos recursos humanos, a par de uma programação intensa de lançamentos de satélites, com foguetes nacionais, se possível. O governo federal ambiciona investir R$ 500 milhões por ano em satélites (ante os R$ 332 milhões deste ano) e R$ 200 milhões em foguetes a partir de 2012 – valores que continuam modestos se trouxermos os outros integrantes dos Brics para uma comparação. Recomendo a leitura da reportagem para que cada leitor tire suas próprias conclusões. Nesta edição tenho um especial apreço também pela reportagem que mostra como pesquisadores brasileiros, seguindo uma trilha aberta por colegas europeus e norte-americanos, estão conseguindo articular os efeitos de alergias desencadeadas por alimentos a determinadas respostas neuropsíquicas (página 40).
Se há tempos se sabe que esse elaborado – e torturante! – mecanismo celular de limpeza chamado alergia envolve a participação dos sistemas circulatório, gastrointestinal e respiratório, agora ampliam-se as evidências de que também o endócrino e, sim, o sistema nervoso central estão implicados nessa história. Atenção: essas descobertas foram feitas em modelos animais, o que não recomenda conclusões precipitadas. Mesmo assim é interessante saber que camundongos alérgicos usados numa das pesquisas abordadas na reportagem elaborada por nosso editor de ciência, Ricardo Zorzetto, revelaram-se mais ansiosos do que as cobaias não alérgicas do grupo de controle. Gostaria de destacar também a entrevista do respeitado neurobiólogo francês Jean-Pierre Changeux (página 10). Em seu percurso desde os anos 1960, Changeux, inicialmente trabalhando com bactérias, fez algumas descobertas fundamentais no campo da regulação biológica elementar (o modelo das proteínas alostéricas, por exemplo), extrapolou-as para os receptores de neurotransmissores, isolou, para testar sua hipótese, o receptor de acetilcolina e, sobre essa base sólida, teórica e experimental, seguiu em busca de outras compreensões a respeito do cérebro, mirando em especial os fundamentos biológicos da consciência. É bom lembrar que junto com seu orientador Jacques Monod, Nobel de Medicina de 1965, Changeux escreveu um dos mais famosos artigos da biologia molecular em toda a sua história: “Sobre a natureza das transições alostéricas”, que hoje contabiliza 5.889 citações. E tudo isso ele constrói tecendo, ao mesmo tempo, um denso pano de fundo humanístico, filosófico, presente com grande força em muitos de seus livros de divulgação científi ca, que tomam sempre a ciência no interior da cultura – mas sem deixar de reivindicar jamais “uma visão fisicalista”, como ele mesmo diz, fundada em mecanismos moleculares, para as mais complexas funções do cérebro. Vale a pena lê-lo. PESQUISA FAPESP 186
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Obsessões algébricas Há 200 anos nascia Évariste Galois, criador da teoria de grupos e figura trágica da história da ciência Neldson Marcolin
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Desenho de Galois feito pelo irmão Alfred, de memória, 16 anos depois de sua morte
Institut national des sciences appliquées (INSA) de lyon
resolução de equações é importante para chegar a soluções de problemas surgidos de práticas e situações cotidianas, pelo estudo de questões aritméticas e geométricas e até por passatempo. Elas estão nos primeiros registros escritos da matemática encontrados nas antigas civilizações do Egito, Babilônia, Índia e China. A álgebra como um método para solucionar equações surgiu apenas no século VIII no mundo árabe, com Mohammad al-Khwarizmi. De lá até o século XVI os matemáticos se empenharam para decifrar equações de segundo, terceiro e quarto graus com sucesso, encontrando fórmulas com radicais para as soluções. Mas empacaram naquelas de grau cinco ou superiores. Entre 1826 e 1832, graças aos trabalhos de Niels Abel (1802-1829) e Évariste Galois (1811-1832), mostrou-se ser impossível achar uma fórmula geral, com radicais, para equações de grau superior a cinco. Galois nasceu há 200 anos e deixou uma contribuição – a teoria de grupos – considerada uma das grandes façanhas intelectuais das ciências matemáticas. A morte trágica, aos 20 anos, e a publicação tardia de seus poucos trabalhos o levaram a ganhar reconhecimento só na segunda metade do século XIX. Galois é natural de Bourg-la-Reine, perto de Paris. Na escola o jovem tinha um aproveitamento muito irregular, embora conseguisse ler com facilidade matemáticos importantes como Joseph-Louis Lagrange, Adrien-Marie Legendre, Augustin-Louis Cauchy e Friedrich Gauss. Há registros do professor de retórica reclamando que, aos 16 anos, era inútil fazê-lo se interessar por qualquer disciplina:
ubiratan d’ambrosio / Institut national des sciences appliquées (INSA) de lyon
Fac-simile da obra completa e carta com referências aos trabalhos
“Dominado por sua paixão pela matemática, ele descuidou inteiramente de tudo o mais”. Foi essa paixão que o levou a uma grande ambição: achar um modo de resolver equações de grau cinco. Ele também desejava entrar para a Escola Politécnica, a principal instituição de ensino superior do país, e tentou duas vezes sem conseguir. Segundo os estudiosos de sua vida, é provável que ele não estivesse preparado para isso. Uma das reclamações de seus examinadores é a de que ele fazia boa parte dos cálculos de cabeça e dava apenas os resultados, sem demonstrar a resolução do problema. Isso deixava incrédulo – e desagradava – quem o inquiria. Optou, então, pela Escola Preparatória, nome temporário dado à Escola Normal. A militância de Galois a favor da República numa França monarquista o levou à expulsão da instituição e à sua prisão por duas vezes.
Apaixonou-se por Stéphanie Potterin du Motel e foi morto em um duelo não se sabe exatamente por quem. Uma das versões diz que o desafiante teria sido alguém próximo da moça. Outra afirma que foi uma maquinação de monarquistas. E há ainda uma terceira contando que o próprio Galois teria provocado sua morte para insuflar uma rebelião contra o rei Carlos X. A única certeza é que ele foi atingido por um tiro na barriga e morreu no dia 30 de maio de 1832, depois de 12 horas. Galois escreveu cinco trabalhos pequenos e três memórias. No total, sua obra matemática tem 60 páginas. Em vida, apenas os artigos curtos foram publicados. Depois de sua morte, a mãe repassou para um amigo do jovem, Auguste Chevalier, vários manuscritos e três cartas. Duas eram sobre política, mas uma continha o resumo das memórias que ele havia escrito e foi
Com o tempo, a teoria de grupos deu origem a conceitos ligados a estruturas abstratas
publicada na revista Revue Encyclopédique, em setembro de 1832. Apenas em 1846 todos os trabalhos foram publicados no Journal de Mathématiques Pures et Appliquées. “Galois foi genial e fez uma verdadeira revolução conceitual”, diz o matemático Ubiratan D’Ambrosio, professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), estudioso do tema. “A originalidade maior foi fazer uma abstração pura. Ele considera um conjunto de objetos, não faz referência à natureza deles e define uma lei de composição, semelhante a uma tabuada, para esses objetos. Fala de suas propriedades e assim introduz o conceito de grupo”, explica. Com o tempo, essa teoria deu origem a conceitos ligados a estruturas abstratas, como corpos, anéis e outras. “Uma nova álgebra emergiu da teoria de grupos”, afirma D’Ambrosio. Marcos Teixeira, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro, pesquisador de história da matemática, diz que ao associar um grupo de permutações a uma equação ele pode, estudando as propriedades desse grupo, determinar a impossibilidade de uma fórmula geral para a solução de equações de grau igual ou superior a cinco. “Isso foi revolucionário, mas na época de Galois, como toda teoria nascente, as coisas não estavam claras e levou tempo até amadurecerem e serem aceitas.”
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entrevista
Jean-Pierre Changeux
A biologia sob a consciência Da descoberta das proteínas alostéricas à química de refinados processos cerebrais, o alvo do neurocientista francês é a compreensão da vida e da mente humana Mariluce Moura, de Paris
AFP PHOTO / PIERRE ANDRIEU
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o prefácio de Du vrai, du beau, du bien: une nouvelle approche neuronale (Odile Jacob, 2008, Paris), um dos mais recentes livros de divulgação científica do respeitado neurobiólogo Jean-Pierre Changeux, 75 anos, o filósofo Claude Debru sintetiza os grandes marcos do itinerário científico de seu conterrâneo nos seguintes termos, em tradução livre: “Fez a descoberta da alosteria e a elaboração do modelo alostérico de funcionamento das proteínas com Jacques Monod e Jeffries Wyman; o isolamento e a identificação do primeiro receptor de neurotransmissor, o receptor de acetilcolina, ele próprio uma proteína alostérica; depois a elaboração de um modelo de aprendizagem por estabilização seletiva de sinapses; mais recentemente, a criação de um modelo da consciência sob a forma de uma teoria do espaço neuronal de trabalho consciente, elaborado com Stanislas Dehaene”. É um resumo de grande precisão para dar conta de um percurso fecundo que no começo tomou colibacilos para compreender como funcionava uma enzima reguladora bacteriana, a L-treonina desaminase. Daí resultaram as duas descobertas referidas por Debru sobre proteínas alostéricas e um dos mais famosos artigos científicos já publicados no campo da biologia molecular: “Sobre a natureza das transições alostéricas”. Escrito em parceria com seu orientador Jacques Monod, um dos vencedores do Nobel de Medicina de 1965, o paper, coincidentemente publicado também em 1965, obteve desde então 5.889 citações, um número extraordinário. Aliás, os 600 artigos publicados por Changeux ao longo da carreira totalizam hoje quase 48.500 citações.
Cientista extremamente criativo, de olhos postos nos mecanismos fundamentais de regulação biológica em qualquer forma de vida, Changeux logo extrapolou o modelo das proteínas alostéricas para os receptores de neurotransmissores. E foi para testar essa proposição teórica que ele terminou chegando a seu segundo feito experimental considerável, o isolamento do receptor de acetilcolina. Foi, assim, sobre uma sólida base de biologia molecular, teórica e experimental, que o tranquilo cientista francês seguiu em busca de outras decifrações do mais fascinante dos órgãos dos sistemas vivos, o cérebro humano, e aportou, entre outras investidas, nas bases materiais, biológicas e bioquímicas da consciência. Essa construção rigorosamente científica foi sendo erguida num terreno cultural fértil, densamente humanístico, filosófico, que é da própria formação de Changeux e no qual ele mantém firmemente os pés. Assim, pode estendê-lo ao leitor com grande força em seus livros de divulgação científica – incluindo o que escreveu em coautoria com o filósofo Paul Ricoeur, La nature et la règle. Ce qui nous fait penser (Odile Jacob, 1988, Paris). A ciência é tomada por Changeux sempre no interior da cultura – mas sem deixar de reivindicar jamais “uma visão fisicalista”, como ele mesmo diz, fundada em mecanismos moleculares. A entrevista a seguir foi concedida por Jean-Pierre Changeux, um senhor suave e gentil, ainda quando relata experiências de grande vigor ou deslinda conceitos complexos para leigos, em sua sala do Instituto Pasteur em 8 de julho passado. Em paralelo ao Collège de France, o Pasteur é uma de suas “casas” de toda uma vida. PESQUISA FAPESP 186
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■■O senhor prefere que comecemos pelos fundamentos biológicos da consciência ou por uma visão geral de seu trabalho? ——Vamos começar pela visão geral porque isso me permitirá expor as ideias que posso ter sobre a consciência no contexto dos trabalhos que realizei anteriormente. ■■Falemos então de sua primeira descoberta. O senhor descobriu a alosteria e elaborou o modelo alostérico de funcionamento das proteínas com Jacques Monod e Jeffries Wyman. ——Exatamente. Comecei em 1961. Esse trabalho sobre as proteínas alostéricas, segundo penso, está na origem de uma visão da vida – e, por isso, das funções do cérebro – que repousa sobre um mecanismo molecular relativamente simples de transdução dos sinais biológicos. O trabalho que fiz para minha tese, com Jacques Monod, buscava inicialmente compreender como funciona uma enzima reguladora bacteriana, a L-treonina desaminase, que estava envolvida num processo de retroalimentação, isto é, de feedback. A treonina desaminase é a primeira enzima de uma cadeia de biossíntese na bactéria colibacilo e ela é inibida pelo produto final da cadeia. Há, portanto, uma regulação do funcionamento da cadeia química. Essa primeira enzima tem uma atividade catalítica – catalisa uma reação enzimática – e, ao mesmo tempo, reconhece e é capaz de modificar sua atividade em função de um sinal que é o produto final da cadeia de biossíntese. É uma molécula que tem uma espécie de dupla especificidade: reconhecer e transformar o substrato, receber e transmitir o sinal regulador. Portanto, é uma espécie de modelo de regulação biológica elementar. ■■E como o senhor chegou a essa enzima? ——Já havia trabalhos sobre essas enzimas, não fui eu quem as descobriu, minha intenção era compreender o mecanismo da regulação. E a partir dos trabalhos que eu fiz e que outros, em paralelo, fizeram, consegui dissociar a atividade enzimática da atividade reguladora. Isto é, consegui obter uma enzima que ainda estava ativa, mas já não era mais regulada pelo produto final da cadeia de biossíntese, uma espécie de enzima desmontada. Isso então 12
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De acordo com as conclusões a que chegamos, Jacques Monod e eu, as proteínas alostéricas são modelos de sistemas reguladores elementares
permitiu compreender a mecânica da montagem, já que foi possível desmontar a enzima. Tem-se dois sítios, duas regiões distintas, que são religadas entre si por uma mudança de conformação. E assim temos, consequentemente, uma espécie de processador que efetua uma regulação crítica em um nó particular do metabolismo. ■■Não é uma ligação elétrica? ——Não, é uma proteína que muda de conformação, uma espécie de mecânica molecular que se torna evidente no nível molecular e mesmo no nível da organização dos átomos da molécula. Podem intervir cargas elétricas ou não, mas são ligações que intervêm na estrutura das proteínas, unicamente. Portanto, temos aí de saída uma nova categoria de proteínas que recebeu o nome de proteínas alostéricas. Elas têm duas regiões e, de acordo com as conclusões a que chegamos, meu então orientador, Jacques Monod, e eu, são de certo modo modelos de sistemas reguladores elementares. No final de minha tese eu generalizei essa ideia para moléculas desse tipo que estariam na membrana e que interviriam na comunicação entre células nervosas, portanto apontei a relação entre um mecanismo elementar bacteriano e um
sinal de regulação intercelular – só que nas bactérias ele é intracelular. E ainda na tese propus essa ideia de que os receptores de neurotransmissores no nível de uma sinapse – que é o ponto de contato entre células nervosas – podiam ser proteínas alostéricas. E em seguida, passei toda minha vida trabalhando sobre esse tema. Então esse estudo da tese foi para mim um trabalho fundador de toda uma filosofia de compreensão dos seres vivos e do sistema nervoso central e, portanto, do cérebro. ■■Tudo ao mesmo tempo? ——Sim, praticamente. Uma filosofia da biologia molecular, primeiro compreender como funciona nosso cérebro no nível molecular e em seguida a identificação do primeiro receptor de neurotransmissor. ■■O receptor da nicotina? ——Isso mesmo. Como não havia nenhum receptor conhecido para eu verdadeiramente testar a ideia de que os receptores de neurotransmissores podiam ser proteínas alostéricas, era preciso isolar um. Daí me voltei para o receptor que era o mais conhecido na época, que tinha sido especialmente trabalhado por Sir Henry Dale na Inglaterra, o receptor da junção neuromuscular – que é o receptor da acetilcolina porque a acetilcolina é seu neuromediador. Esse receptor era conhecido só no plano farmacológico, não em sua estrutura, e não se sabia mesmo se era uma proteína. Mas é também um receptor da nicotina. De fato, Sir Henry Dale tinha classificado os receptores da acetilcolina em várias categorias: nicotínicos e muscarínicos; o nicotínico está ligado a uma mudança de propriedade elétrica enquanto o muscarínico tem efeitos metabólicos. Daí me dediquei ao receptor nicotínico da junção neuromuscular que tinha sido muito estudado por um outro inglês, John Newport Langley. Desde o começo do século XX, Langley tinha mostrado que esse receptor é bloqueado pelo curare e estimulado pela nicotina. O problema era descobrir como isolá-lo, porque era uma molécula presente em pequeníssimas quantidades e difícil de marcar. Hoje há centenas de receptores identificados, mas naquela época não havia nenhum. De início me voltei para o órgão elétrico do peixe-elétrico,
como o poraquê, que, aliás, se encontra no Brasil. Carlos Chagas trabalhou muito com esse peixe, que vive na bacia do Amazonas; mas outro peixe semelhante é o torpedo, que se encontra, por exemplo, na bacia de Arcachon, na França.
■■E quando o senhor começou a trabalhar com esse receptor no nível do cérebro? ——Comecei primeiro com o órgão elétrico, que é uma imensa coleção de sinapses do tipo da junção neuromuscular. Depois, assim que os métodos de genética molecular foram postos à disposição dos neurobiólogos, esse receptor foi clonado e sequenciado, primeiro no órgão elétrico, depois no cérebro. Isso dava acesso ao receptor nicotínico cerebral. ■■O senhor explora diferentes papéis desse receptor no cérebro humano. ——Sim, aliás, o cérebro humano é muito sensível à nicotina, como todo mundo sabe, daí por que os fumantes tornam-se usuários e dependentes da nicotina, que age sobre o receptor nicotínico cerebral. Encontra-se um homólogo do receptor muscular também no cérebro, que atua nos efeitos estimulantes e na dependência à nicotina. O que é muito interessante é que conseguimos evidenciar no laboratório, recentemente, a existência de receptores muito semelhantes nas bactérias: na Gloeobacter, uma bactéria fotossintética, e em outras espécies. Esses receptores bacterianos não são sensíveis à acetilcolina, mas sim a outros sinais reguladores, como o pH. Quando o pH se torna ácido, seu canal iônico, que tem propriedades muito semelhantes às do receptor nicotínico, se abre. ■■Mais uma vez, uma visão total da vida... ——Sim. Primeiro, é evidentemente
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■■Torpedo? ——Sim, é um elasmobrânquio, próximo das arraias. É achatado e vive sobre o fundo do mar, dá descargas elétricas muito poderosas. Seu órgão elétrico é extremamente rico em sinapses colinérgicas, todas idênticas entre si, portanto extremamente rico em receptores. Era preciso encontrar um marcador para isolar o receptor, e foi uma toxina de veneno de cobra que permitiu identificá-lo.
muito importante ter um receptor bacteriano porque em geral eles cristalizam mais facilmente e se pode desde logo estabelecer sua estrutura pelos métodos de cristalografia de raios X. Isso foi feito. Desse modo se conseguiu examinar a transição alostérica desses receptores. Você vê, assim, que essa problemática levantada há 50 anos consegue-se demonstrar hoje graças a esses receptores bacterianos. Outra coisa extremamente interessante no plano evolutivo e global é que as bactérias inventaram, de certo modo, esse tipo de receptor muito pouco comum, que é pentamérico e que atravessa a membrana com um canal iônico muito particular. E o que é surpreendente é que os receptores do cérebro são vizinhos do receptor bacteriano. Isso quer dizer que temos em nosso cérebro, digamos, proteínas cujos ancestrais apareceram há bilhões de anos nas bactérias. E esse receptor foi conservado em nosso cérebro! Como você vê, nem tudo foi inventado no cérebro do homem quando ele apareceu sobre a Terra. Herdamos muitas estruturas que foram desenvolvidas antes. ■■A partir desse paralelismo entre células de nosso cérebro e estruturas bacterianas, o senhor desenvolve uma visão bastante singular. Poderia falar um pouco sobre isso?
——Não se pode compreender os seres vivos, e o cérebro em particular, senão quando se tiver compreendido os mecanismos elementares que estão na base de suas funções fundamentais. No caso das bactérias, trata-se de todo o metabolismo, isto é, das reações químicas elementares de sobrevivência e de reprodução da célula bacteriana. No nível do cérebro, o importante é compreender as relações entre as células nervosas, e essas relações são totalmente únicas, porque como você sabe o cérebro é o único órgão que forma uma rede onde as células estabelecem múltiplos contatos de umas com as outras. Há em torno de 10 mil conexões por célula nervosa, portanto trata-se de uma rede de extrema complexidade. E é isso que cria a originalidade do cérebro e que faz com que ele aceda a funções tão elaboradas como a razão, a consciência, a vida social. Dessa forma, a ideia que resulta desses primeiros trabalhos sobre as bactérias e de sua extensão à comunicação entre células nervosas é que, no fundo, nossas funções do cérebro deveriam poder ser compreendidas a partir dos mecanismos moleculares elementares da condução e, sobretudo, da transmissão dos sinais no nível das sinapses. Daí uma visão fisicalista, de certo modo. Isso significa que compreender os mecanismos moleculares é necessário, PESQUISA FAPESP 186
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o que equivale a dizer que todas as nossas funções cerebrais passam por esses mecanismos moleculares. Quando se faz uma anestesia local para extrair um dente ou uma anestesia geral para uma cirurgia, percebe-se que há uma ligação direta entre o anestésico, que é uma molécula química, e a consciência e a percepção dolorosa. Isso quer dizer que há uma química da consciência e quer dizer também que todas essas funções superiores, enfim, estão enraizadas nestes mecanismos moleculares. Mas isso não basta: para irmos mais longe, é indispensável compreender a organização do sistema, compreender como ele se organiza para aceder às chamadas funções superiores do cérebro ou funções cognitivas, que intervêm na aquisição do conhecimento. Essa é a minha ideia filosófica geral. ■■Vamos retomar a visão do cérebro como uma rede. Não sei como é na França, mas no Brasil e nos Estados Unidos há um debate entre uma visão globalista do cérebro e uma visão localizacionista. ——Penso que são teorias diferentes, mas não excludentes. Penso que há localizações cerebrais extremamente precisas, na tradição da frenologia de Gall, por exemplo, as áreas visuais, as áreas auditivas, as áreas especializadas na visão das cores ou no reconhecimen14
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to dos rostos e, ao mesmo tempo – e aí abordamos a tese sobre a consciência –, um sistema de conexões a longa distância que são suscetíveis de criar ligações, relações, entre múltiplos territórios do cérebro. Portanto há globalidade e unidade e, ao mesmo tempo, diversidade e especialização. ■■Depois das descobertas do receptor de acetilcolina, o senhor elaborou o modelo de aprendizagem por estabilização seletiva das sinapses. ——Isso é muito importante para tentar compreender como se desenvolve a complexidade de nosso cérebro. Examinemos primeiro o nível genético, a evolução da sequência dos genomas do camundongo, do macaco ao homem, passando pelo chimpanzé e aí nos damos conta de que as diferenças são muito pequenas. Elas existem, é claro, porque um macaco não é um homem e um camundongo não é um macaco. Portanto há bases genéticas evidentemente importantes. Mas quando se olha o número de genes, de estruturas, vê-se o genoma que é muito próximo, quase idêntico, em todos os mamíferos. Aliás, o número de genes da drosófila não está muito longe daquele do homem. Isso pode parecer surpreendente. E levanta evidentemente um paradoxo: a com-
plexidade do cérebro cresce de maneira fulgurante enquanto a do genoma muda pouco ao longo da evolução? A evolução procede – já falamos disso com os receptores – por acumulação progressiva das estruturas elementares que se formaram nas bactérias, depois nos eucariotos, nos multicelulares, nos invertebrados, vertebrados, mamíferos etc. E essas estruturas se acumularam umas após as outras, de tal forma que pouco a pouco se construiu um cérebro que tem a complexidade do cérebro humano. Muitas estruturas foram selecionadas antes do aparecimento do homem, mas o que caracteriza no fundo a evolução do homem? Há, primeiramente, o aumento do tamanho do cérebro. Não é muito difícil compreender, basta aumentar o número de divisões celulares, alguns genes bastam para isso. Depois há alguns princípios de organização geral, como, por exemplo, o desenvolvimento relativo do córtex pré-frontal, que é muito importante no homem; ainda aí, alguns genes de desenvolvimento vão determinar essa organização. Mas isso ainda não é suficiente para resolver o paradoxo. Uma nova ideia é levar em conta o fato de que o cérebro se constrói progressivamente durante 15 anos no homem. Seu peso aumenta 5 vezes desde o nascimento. Durante esse período, o cérebro se desenvolve em constante interação com o meio ambiente exterior. Há de algum modo um invólucro genético que permite a essas redes se organizarem e, depois, a interação com o mundo exterior vai especificá-las e validá-las. É essa a ideia da estabilização seletiva das sinapses, da epigênese sináptica que desenvolvi com Antoine Danchin. Há a sucessão de fases de exuberância sináptica e de seleção devido à interação com o ambiente físico, social e cultural; certas sinapses foram eliminadas e outras, conservadas, estabilizadas e amplificadas. De certo modo, há darwinismo, mas não genético: epigenético. Por essa razão é que qualifiquei essa teoria de “epigênese por estabilização seletiva das sinapses”. ■■Experiências relativas a essa teoria são possíveis? ——Sim, claro. Conseguimos demonstrar isso com a junção neuromuscular e mostrar que na etapa da exuberân-
cia sináptica, se o sistema é estimulado eletricamente, acelera-se a eliminação das sinapses. A experiência também foi feita por Lubert Stryer e Carla Shatz no nível do sistema visual. De uma maneira geral, a estimulação elétrica acarreta a eliminação sináptica. Pode-se igualmente mostrar que, quando há estimulação elétrica, há eliminação sináptica. A mesma coisa se dá no nível do cerebelo. Portanto, é um mecanismo muito geral, estudado por muitos pesquisadores americanos. ■■É possível estabelecer uma relação entre essa teoria e resultados de exames de ressonância magnética funcional? ——Sim, mas a teoria da epigênese é uma teoria sináptica, portanto microscópica, ao passo que os exames de ressonância magnética são macroscópicos. Então é difícil. Entretanto, pode-se observar, por exemplo, que a superfície de certos territórios corticais se restringe ao longo do desenvolvimento ou se remodela à medida que o cérebro da criança se desenvolve. Pode-se ter testes de certo modo macroscópicos da teoria, por exemplo, seguindo a estruturação progressiva dos territórios enervados pelo olho, pelo ouvido ou por outras entradas sensoriais. Digo isso a título de exemplo, é factível. Mas a verdadeira demonstração da teoria é no nível elementar, no nível sináptico. ■■Mas o cérebro faz essa seleção todo o tempo? ——Sim, ao longo do desenvolvimento as etapas de crescimento, de desenvolvimento exuberante e de seleção sináptica se sucedem, criando a cada vez uma etapa crítica de interação com o ambiente. E isso é válido mesmo para o adulto, eu presumo. Essas etapas múltiplas se imbricam umas nas outras. E, entre outras, aquelas que intervêm na aprendizagem da linguagem falada e da linguagem escrita. ■■Claude Debru disse no prefácio de um de seus livros que o senhor criou recentemente um modelo da consciência sob a forma de uma teoria do espaço neuronal de trabalho consciente, elaborado com Stanislas Dehaene. Pode nos falar sobre ela? ——Sim, exatamente. O ponto de partida crítico é conseguir medir experimen-
O ponto de partida crítico é conseguir medir o acesso do sujeito à consciência, com métodos científicos objetivos
talmente o acesso à consciência, isto é, utilizar métodos científicos objetivos – os métodos de imagens, entre outros – para acompanhar o acesso de sinais do mundo exterior à consciência do sujeito, por exemplo, um sinal visual, um quadro ou um texto escrito. Como acompanhar seu acesso à consciência? Comparando o tratamento consciente e não consciente de um mesmo sinal. Métodos biofísicos conhecidos há muito tempo, chamados de mascaramento, permitem fazer isso. Apresenta-se a uma pessoa slides sucessivos em uma escala de tempo que é da ordem de várias dezenas de milissegundos [ms]. Primeira condição: apresenta-se durante 70 ms, por exemplo, uma palavra escrita que é encaixada entre slides vazios antes e depois da palavra, e o sujeito é capaz de dizer: “Ah, eu vi a palavra leão”, ou “Vi a palavra cérebro”. Portanto há uma espécie de acesso à consciência na medida em que o sujeito pode dizer: “Sim, eu li a palavra leão”. Mas se agora você apresenta a mesma palavra colocando imediatamente antes e depois as máscaras, isto é, outras figuras diferentes da palavra escrita e pergunta à pessoa: “Você viu alguma coisa?”, ela diz “não”. Então, a mesma palavra pode ser lida, ou antes, vista de maneira consciente e, por outro lado, entrar no cérebro e nele
se propagar sem ser consciente. Neste último caso, verifica-se após a experiência que o processamento não consciente realmente aconteceu porque a pessoa se tornou capaz de fazer escolhas influenciadas pela palavra que foi tratada pelo cérebro de modo não consciente. Pode-se, portanto, definir um protocolo experimental no qual se submeta um ser humano a um teste visual consciente/ não consciente e, nessas duas condições, submetê-lo a registros por ressonância magnética ou eletroencefalografia. É possível correlacionar dados objetivos sobre a atividade do cérebro e os dados subjetivos dos processamentos consciente e não consciente. Portanto, pode-se definir de certo modo as bases neurais do tratamento consciente em relação ao tratamento não consciente. ■■É algo como dar fundamentos biológicos para Freud, por exemplo. ——Sim, mas eu não gosto de fazer referência a Freud porque a grande diferença é que, no caso presente, se trata de um estudo científico sobre o acesso à consciência, e não de um discurso literário. Quero dizer com isso que se consegue, em condições experimentais definidas, registrar parâmetros mensuráveis por meio de imagens, por eletroencefalografia ou magnetoencefalografia, e ter sinais físicos cerebrais que correspondem aos processamentos consciente e não consciente. ■■Em um seu recente artigo de revisão, o senhor diz que a palavra consciência é plena de ambiguidade. ——Sim, é verdade. Porque há a consciência moral, a consciência política etc. E também a consciência no sentido fisiológico do termo, que nos interessa, e que faz com que estejamos conscientes quando lemos, quando olhamos uma paisagem. Quando adormecemos, já não estamos conscientes. ■■Seu interesse é o acesso à consciência? ——Sim. É preciso evidentemente que o cérebro esteja em um estado consciente e que não esteja adormecido, anestesiado, ou em coma – condições em que o cérebro não está mais consciente; o sujeito tampouco. E se pode mostrar que há diferenças fisiológicas durante o coma, durante a anestesia geral ou durante o sono. O sujeito em coma não tem acesso PESQUISA FAPESP 186
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à consciência, em princípio. Ou tem, mas muito pouco. Nos ditos estados vegetativos, o sujeito desperta e adormece, mas o acesso à consciência é muito alterado. Ele só percebe pouquíssimas coisas. ■■E no caso da esquizofrenia? ——Nossa interpretação é que o esquizofrênico sofre de uma alteração do espaço de trabalho neuronal consciente, que seria de um acesso mais restrito. Então ele tem perturbações em sua relação social com os outros porque a relação com o outro passa pelo acesso à consciência. ■■Quais são os desafios futuros destes estudos sobre o acesso à consciência? ——A primeira coisa é a consciência de si. Está em curso. Vários grupos de pesquisadores estudam o que se chama a percepção de si, a self-consciousness, que pode ser perdida seletivamente, por exemplo, no caso da anosognosia. Um indivíduo com uma lesão do hemisfério direito no nível parietal desenvolve uma hemiplegia esquerda. Mas, em certos tipos de lesão, o sujeito nega que está paralisado, não tem percepção de sua própria paralisia, de seu próprio corpo. Portanto há alteração da consciência de si e de seu corpo. Isso é algo que precisa ser evidentemente compreendido. E a outra coisa que me interessa muito é ter acesso ao que se poderia chamar de raciocínio consciente, a organização do pensamento. ■■Isso é possível? ——Eu acredito que vamos conseguir, com certeza. ■■É experimentalmente possível? ——Bom, primeiro é necessário conseguir resultados no plano teórico. Nesse caso, acho que a teoria é indispensável antes ou paralelamente à experimentação. Uma etapa indispensável é ter uma representação neuronal do objeto consciente, uma representação consciente em relação a uma representação não consciente. E uma vez que se tenha isso, tentar em seguida compreender como essas representações conscientes são suscetíveis de se articular entre si, de se encadear para constituir uma oração, como “o céu é azul”. É uma coisa que é preciso fazer e estamos longe de chegar lá, mas sou bastante otimista. Penso que nos próximos 5 ou 10 anos 16
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Me interessa tentar progredir na compreensão das bases neurais das representacões conscientes, ter acesso à organização do pensamento
esse gênero de problema poderá ser resolvido. Assim, se chegará, penso, a ter uma concepção científica e objetiva da organização do pensamento. ■■Uma visão objetiva da organização do pensamento corresponde também a uma visão da organização da linguagem. ——Sim, o acesso à linguagem é essencial. A linguagem pode desempenhar um papel muito importante na medida em que contribui para a formação dessas representações conscientes com o uso das palavras e o sentido atribuído a uma palavra. É possível um raciocínio com representações sem que haja palavras, mas é certo que a palavra vai ter um papel muito importante. Então, é a porta de entrada para a linguagem e também para a interação social, visto que a linguagem intervém na comunicação social. Portanto, você vê que ainda há muito a fazer. ■■Sua pesquisa se concentra atualmente em que pontos? ——Há três grandes temas que me interessam: de um lado, a transdução do sinal pelas proteínas alostéricas, compreender como um receptor funciona no nível atômico, por exemplo, com o receptor bacteriano. Segunda coisa que me interessa muito: a expressão dos ge-
nes que acompanham a epigênese, para tentar correlacionar o genoma com a organização do cérebro, primeiro ao longo do desenvolvimento e, evidentemente, na fase adulta. Trata-se de um problema de expressão gênica no decorrer do desenvolvimento em relação com a seleção das sinapses. E depois a terceira é o que acabamos de dizer, tentar progredir na compreensão das bases neurais das representações conscientes. É atualmente o trabalho em curso com Stanislas Dehaene e uma estudante que temos em comum. A ideia é a partir das representações conscientes abordar questões que tocam as matemáticas, a linguística, coisas desse gênero. É um futuro um pouco mais longínquo, mas é um futuro... concreto. ■■Paralelamente a seus estudos científicos, o senhor fez um trabalho de divulgação da ciência. ——Sim, dei aulas no Collège de France e escrevo livros a partir dessas aulas. Não gosto muito da televisão e das outras mídias; os livros escritos são mais apropriados para os trabalhos científicos, porque ciência demanda ser explicada de uma maneira particularmente precisa e rigorosa. Mas é evidente que existem também outros métodos, como a tevê, ou o teatro, por que não? ■■O senhor tem uma visão geral da cultura, da arte, e estabelece uma relação entre a ciência e a cultura. É possível seguir assim? ——Não só é possível como necessário, de meu ponto de vista. Penso que a ciência se desenvolve, a quantidade de conhecimento que tem sido produzida no último século é considerável e o perigo seria que os físicos fizessem somente física ou os biólogos só biologia, os psicólogos só psicologia etc. Penso que deve haver, ao contrário, unificação do conhecimento para além da diversidade das disciplinas. Aliás, esta é a proposta de Diderot. O que é feito em neurociências deve ser útil para a psicologia, o que é feito em física deve ser útil para a biologia molecular, e reciprocamente; os problemas levantados pela biologia molecular devem interessar aos físicos, ou os problemas levantados pela psicologia experimental devem levar os físicos a desenvolver novos instrumentos para examinar com alta resolução os estados de atividade do
arquivo pessoal
——Sim, é o futuro. É a ciência do futuro, do porvir. A física ainda tem coisas a descobrir. Conhece-se muito sobre o átomo, sobre a estrutura da matéria, sobre as galáxias. Mas há ainda muito a ser feito. Acredito que a grande incógnita agora é o cérebro do homem... Compreender o que nós somos. O que é o homem.
cérebro no tempo e no espaço simultaneamente. Então, para mim, é não somente indispensável ter uma visão enciclopédica, mas também conseguir fazer sínteses multidisciplinares, construtivas. E isso inclui as humanidades, porque, para nós, o cérebro está diretamente em contato, é ele que produz a cultura. E a cultura age sobre o cérebro. É nos dois sentidos. Produzimos a linguagem, mas o bebê aprende a linguagem a partir daquela dos adultos. ■■Quantas horas o senhor trabalha por dia? ——Hum, eu não conto. Para mim, isso não é um problema, porque trabalhar me descansa de certa maneira. Não trabalhar é que me angustia; então, não conto as horas que trabalho, é o tempo todo. Evidentemente, tenho muitas distrações, porque, ao mesmo tempo, em minha atividade científica, há diversos níveis de concentração. Há trabalhos que são muito mais específicos, muito mais aprofundados, por exemplo, os três temas que mencionei há pouco; além disso, tenho interesse e reflito sobre arte, pintura, música, questões de ética, que geram debate e arejam as ideias, por assim dizer. Eu trabalho o tempo todo! Isso não me incomoda. Mas é preciso, claro, ter uma vida familiar ao mesmo tempo. ■■O senhor nasceu na França? ——Sim, nasci na região parisiense. Mas meus pais não eram de Paris. Minha mãe vinha de Rouergue, no sul da França. Meu avô era professor primário do vilarejo e era o que se chama de “hussardos negros da República”, isto é, pessoas que dedicavam sua vida à educação laica, gratuita e obrigatória.
fiz a conta. Talvez 80 ou mais. No meu laboratório, eu tinha 5 a 7 estudantes universitários, em média, e o mesmo número de pós-doutores, o que dava 10 a 15 pessoas, constantemente, durante 30 anos. São muitas pessoas. E vários são professores em universidades muito renomadas. Stanislas Dehaene, que era um de meus alunos em tempo parcial, é professor no Collège de France; outros são diretores de pesquisa no Centro Nacional de Pesquisa Científica, o CNRS; outro, em Harvard; outro, na Caltech; outro foi professor na Universidade de Tóquio e agora trabalha em Riken, no Japão. Portanto, a maioria deles é bem-sucedida. Fico muito contente.
■■Existe, então, uma tradição de educação na família. ——Ah, sim, isso é muito importante, veio do lado materno. E meu pai era um técnico em engenharia que vinha do centro da França. São regiões pobres. Meus pais deixaram suas regiões porque eram pobres demais, eles não encontravam trabalho. Então vieram para Paris trabalhar e se conheceram.
■■Seu grupo de neurocientistas trabalha em colaboração com grupos de outros países? ——Sim. Muitos são estrangeiros; há muitos americanos, muitos japoneses, entre os que fazem pós-doutorado. Não recebi muitos sul-americanos, infelizmente, pois eu teria gostado. Europeus, alemães, ingleses. É sempre bastante multinacional. É bem importante manter o lado internacional na pesquisa científica.
■■Quantos estudantes o senhor formou ao longo de todos esses anos? ——Não sei. Dezenas, com certeza. Não
■■O senhor acredita que a neurociência está fadada a novos desenvolvimentos fundamentais?
■■Seu interesse por ciência vem desde a infância? ——Sim. Como eu disse, venho de uma família muito simples, que não tinha nenhum interesse por ciência, eles não sabiam o que era isso, nem mesmo tinham muito interesse por cultura. Mas na escola alguns professores me orientaram. Aos 11 anos, um professor de ciências naturais, Jean Bathellier, encorajou muito meu interesse por ciências naturais na época. Eu colecionava insetos, plantas etc. Ele me ajudou e, sobretudo, me pôs em contato com um entomologista famoso do Museu de História Natural, Eugène Séguy. E aos 12, 13 anos eu já sabia o que era a pesquisa. Aos 19 anos entrei no laboratório de Banyuls-sur-Mer, onde fiz uma pequena tese: lá descobri uma nova espécie de crustáceos parasitas, as holotúrias, que são equinodermos chamados de pepinos-do-mar. Então, eu sempre fui apaixonado pelo trabalho científico. É minha vida. Eu nunca procurei!!! Eu sempre segui minha paixão, é espontâneo em mim. ■■O senhor acredita que estamos em um novo mundo? ——Acredito sim. ■■E como o senhor vê esse mundo? ——Como todos os mundos, o que importa é saber o que os homens farão com ele. Veja com a física: a energia atômica permite produzir eletricidade e sobreviver, mas se fazem bombas com essa energia para matar as pessoas. Foram os homens que fizeram as duas coisas. Então, com os trabalhos sobre o cérebro, é preciso estar atento a que eles sirvam para o bem da humanidade, e não para sua destruição. ■■O senhor já ganhou muitos prêmios, mas ainda falta um... ——Não! E de todo modo não sou eu n quem decide isso!! PESQUISA FAPESP 186
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o céu não pode esperar Lançamento do foguete brasileiro VSB-30 na base de Alcântara, em dezembro de 2010
divulgação
capa
Reformulação do programa espacial busca criar ritmo vigoroso de lançamento de satélites Fabrício Marques
A
reestruturação do programa espacial brasileiro entrou na agenda do país. A configuração atual do programa, em que a Agência Espacial Brasileira (AEB), com sede em Brasília, coordena estratégias e repassa verbas para as vertentes civil e militar do programa, vai sofrer um redesenho – e a hipótese mais provável é a fusão da AEB com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), de São José dos Campos, ou pelo menos com parte de sua estrutura. A constatação de que a AEB se converteu numa instância de caráter burocrático, desprovida de bons quadros técnicos e com pouca ascendência sobre as prioridades dos órgãos que coordena, dá impulso à proposta de mudança, que, no entanto, ostenta ambições muito mais amplas. Entre elas destacam-se o aumento do volume de recursos do programa, fortes investimentos na renovação de recursos humanos, um calendário de lançamentos vigoroso, capaz de colocar no espaço, se possível com foguetes nacionais, uma coleção de satélites talhados para cumprir missões de interesse da sociedade, do governo e da comunidade científica, e um efetivo envolvimento da indústria brasileira na busca de soluções inovadoras e no fornecimento de sistemas. “Se hoje lançamos um satélite a cada quatro anos, queremos passar a lançar entre um e dois por ano, pois a sociedade precisa disso”, diz Marco Antonio Raupp, presidente da AEB, que coordena as discussões e deverá apresentar uma proposta neste mês. “O essencial é que a sociedade consiga vislumbrar as utilidades do programa em vários setores, do controle ambiental à segurança pública. Assim é mais fácil brigar por financiamento.” Uma das metas é duplicar o orçamento do programa, que foi de R$ 326 milhões em 2010. A necessidade é de pelo menos R$ 500 milhões anuais em investimentos no programa de satélites do Inpe, vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, e de R$ 200 milhões no desenvolvimento de foguetes pelo Departamento de Ciência e Tecnologia Aeroespacial (DCTA), ligado à pasta da Defesa. O diretorPESQUISA FAPESP 186
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freio de arrumação busca ampliar a escala do programa. O Inpe, que ao longo de sua história conseguiu fabricar e levar ao espaço cinco satélites, tem uma série de projetos em desenvolvimento, alguns com parceria internacional, e quer lançar 14 satélites até 2020. O primeiro deles é o Cbers-3, satélite de monitoramento terrestre resultante de uma parceria com a China que já dura 23 anos. Uma de suas câmeras fará imagens da Amazônia a cada cinco dias, com uma resolução de cerca de 70 metros, em vez dos 260 metros da câmera do antecessor Cbers-2B, que parou de funcionar em maio de 2010. O Cbers-3 deve ir ao
espaço em 2012, depois de amargar um atraso de cinco anos devido a restrições dos Estados Unidos ao fornecimento de componentes eletrônicos. Outros dois satélites da família estão previstos no acordo com a China. Além deles, o Inpe desenvolve a Plataforma Multimissão, talhada para levar ao espaço cargas de vários tipos com até 500 quilos (kg). Satélites de pequeno porte propõem-se a monitorar as queimadas na Amazônia (Amazônia-1 e 2) e os oceanos (Sabiá-1 e 2, em parceria com a Argentina) e cumprir missões científicas, como estudar o espectro do solo e da vegetação (Flora Hiperespectral), a emissão de raios X (Lattes-1), o clima espacial (CLE-1) e a astrofísica (AST-1 e 2). No campo do desenvolvimento de veículos lançadores, a cargo do DCTA, também há vários projetos em curso. A explosão, em agosto de 2003, do Veículo Lançador de Satélites (VLS-1), na base de Alcântara, que matou 21 engenheiros e técnicos, evidenciou as dificuldades do Brasil de dominar a tecnologia de utilização de combustíveis sólidos. O VLS ainda está nos planos do DCTA, mas há outros foguetes em estudo, com tecnologia mais
Investimento instável Orçamento do programa espacial brasileiro – em R$ milhões 450
Satélites* Veículos lançadores* Centro de lançamento Estação Espacial Internacional Outros Média de investimentos do período
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*e infraestrutura associada **Sistemas espaciais e infraestrutura associada
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simplificada, e o Inpe conta com eles para levar seus satélites de menor porte ao espaço. É o caso do Veículo Lançador de Microssatélites (VLM-1), capaz de levar satélites com até 100 kg de peso, como o de clima espacial CLE-1. Também está em desenvolvimento o VLS Alfa, versão do VLS-1, com três estágios e emprego de propulsor líquido, em substituição aos propulsores sólidos do terceiro e quarto estágios. A ambição do DCTA é desenvolver uma nova família de foguetes, capaz de colocar em órbita, até 2022, satélites do porte do Satélite Geoestacionário Brasileiro (SGB), de quatro toneladas, que irá interligar os sistemas de defesa em todo o território brasileiro. Em um artigo publicado neste ano, o coronel Avandelino Santana Junior, chefe da Divisão de Propulsão do Instituto de Aeronáutica e Espaço (IAE), disse que um dos pressupostos para o programa é a cooperação entre o Brasil e um país com competência na área espacial, especialmente no desenvolvimento da tecnologia de propulsão líquida.
A
expansão do terceiro pilar do programa, que é o Centro de Lançamento de Alcântara, no Maranhão, depende de outras variáveis. Criada em 1983, é a base que se encontra mais próxima da linha do equador, o que lhe permite aproveitar ao máximo a rotação da Terra para impulsionar os foguetes com economia de combustível e custos menores (13% a 31% de vantagem em relação a Cabo Canaveral, dos Estados Unidos). Na prática, vem sendo subutilizada. Para resolver o problema, é preciso, em primeiro lugar, remover um obstáculo diplomático que veda o lançamento de foguetes norte-americanos. O Brasil assinou com os Estados Unidos, em 2000, um Acordo sobre Salvaguardas Tecnológicas estabelecendo regras para o lançamento de foguetes. O Congresso brasileiro negou-se a ratificar o acordo, com a alegação de que algumas cláusulas feriam a soberania nacional, e o resultado disso é que o país responsável por 80% do mercado dos lançamentos não utiliza Alcântara. O ministro da Ciência e Tecnologia, Aloizio Mercadante, que se opôs ao acordo de salvaguarda quando era parlamentar, já anunciou a disposição de patrocinar um entendimento. “Estamos em novo momento da relação bilateral”, afirmou
Fonte: Agência Espacial Brasileira
-geral do Inpe, Gilberto Câmara, lembra que a cifra é modesta quando comparada ao investimento de países do bloco dos Brics. “Para competir com o programa da Índia, deveríamos multiplicar nosso orçamento por cinco e, no caso da China, por sete. Nosso programa não tem finalidades bélicas, como o da Índia, nem é instrumento de afirmação nacional, como na China, mas dobrar o volume de recursos é essencial para fornecer serviços de que o país necessita”, afirma.
inpe
Satélite do programa Cbers em teste: novos lançamentos
Mercadante, na posse de Raupp como presidente da AEB, em março. Para utilizar mais Alcântara, o Brasil celebrou um acordo com a Ucrânia para concluir o desenvolvimento de um foguete ucraniano, o Cyclone-4, capaz de colocar em órbita geoestacionária cargas de até duas toneladas a partir da base maranhense. O foguete é fruto da adaptação de um míssil soviético, mas é preciso investir R$ 1 bilhão no projeto. O acordo levou à criação de uma empresa binacional, a Alcântara Cyclone 4 – com a qual os dois países partilhariam os dividendos da utilização da base. O programa vive um impasse. O Brasil já repassou R$ 218 milhões, mas a Ucrânia tem dificuldades em cumprir sua parte e investiu R$ 98 milhões. O primeiro voo de qualificação do Cyclone-4, previsto inicialmente para 2010, agora está programado para 2013. Na comparação com países emergentes, o programa espacial brasileiro vem perdendo importância. Quando celebrou o acordo com a China, em 1988, o Brasil tinha um cacife alto em matéria de desenvolvimento tecnológi-
A busca de autonomia, tanto no Domínio de tecnologias críticas quanto no acesso ao espaço, ainda não foi alcançadA
co de satélites. “Hoje a assimetria entre os dois países ampliou-se muito, mas o governo chinês continua vendo com interesse a parceria com o Brasil”, diz Ricardo Cartaxo, coordenador do programa Cbers. Os atrasos no programa espacial brasileiro contrariam os chineses, que, neste ano, deverão decidir se querem manter a parceria após o lançamento do Cbers-3 e 4. Segundo um relatório da Futron Corporation, dos Estados Unidos, o Brasil ocupa a última colocação entre 10 países analisados pelo Índice de Competitividade Espacial, que avalia três dimensões principais: programas governamentais, capital humano e participação da indústria. “A busca de autonomia, tanto no domínio de tecnologias críticas quanto no acesso ao espaço ou no uso de serviços e aplicações espaciais, não foi alcançada, gerando até hoje dependência dos operadores e fornecedores internacionais”, observou o senador Rodrigo Rollemberg (PSB-DF), que, no ano passado, como deputado federal, coordenou um amplo estudo sobre a política espacial na Câmara Federal. PESQUISA FAPESP 186
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Cbers-3: parceria com a China
Amazônia: floresta monitorada Lattes: experimentos científicos
Mapsar: radar imageador
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Missão Espacial Completa Brasileira (MECB), iniciada em 1979, estabelecia como meta a construção de dois satélites de coleta de dados e dois de observação da Terra a serem lançados do Brasil em foguetes nacionais. Na prática houve três tentativas de lançamento do VLS, que culminaram com a tragédia de 2003, dois satélites de coleta de dados (SCD) foram lançados por foguetes estrangeiros e três satélites de observação desenvolvidos e lançados em cooperação com a China (Cbers), além da cooperação com a Ucrânia para lançamento de foguetes a partir de Alcântara. Afora os atrasos, o programa perdeu a articulação inicial. Hoje o projeto do VLS não comporta a nova geração de satélites baseados na Plataforma Multimissão, desenvolvidos pelo Inpe. Os foguetes Cyclone-4 poderiam dar conta da tarefa, mas não se prestariam a levar grandes satélites de países desenvolvidos, que em geral pesam mais de duas toneladas. “Fazer satélites é mais fácil do que fazer foguetes”, lembra Luiz Gylvan Meira Filho, presidente da AEB entre 1994 e 2001.
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‘Fazer satélites é mais fácil do que fazer foguetes, diz Luiz Gylvan Meira Filho, ex-presidente da AGÊncia Espacial brasileira
“A intenção dos formuladores da MECB era a melhor possível e a missão serviu, na época, para dar uma dimensão ambiciosa ao programa espacial brasileiro. Mas foi um erro tratar a estratégia como missão, que precisa ser cumprida para então dar origem a uma missão nova”, afirma. Outro equívoco, segundo Gylvan, foi tentar desenvolver lançadores sem parceiros internacionais no governo militar. Isso levou o programa a um isolamento do qual não se recuperou.
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e é certo que o programa espacial brasileiro enfrenta atrasos crônicos e dificuldades em dominar tecnologias críticas, há que reconhecer que gerou frutos importantes. Ele permitiu a nacionalização de materiais para a fabricação de propelentes de ligas metálicas e materiais cerâmicos. O Brasil ganhou competência internacional em processamento de imagens de satélites e o Inpe tornou-se referência em serviços na área de meteorologia, no monitoramento de queimadas na Amazônia e na pesquisa em mudanças climáticas – assim como seu Laboratório de Integração e Testes (LIT) é reconhecidamente um dos mais bem equipados do mundo para desenvolvimento de satélites. A decisão de distribuir gratuitamente imagens feitas pelos três satélites Cbers causou impacto nesse mercado. Até mesmo os norte-americanos resolveram tornar acessíveis as imagens do Landsat. Gilberto Câmara ressalta que o Inpe desempenha um papel fundamental de apoio ao que chama de economia do conhecimento da natureza. “O Brasil é o líder mundial no desenvolvimento sustentável. Reduzimos o desmatamento na Amazônia. Temos o melhor sistema de monitoramento ambiental por satélites do mundo. Temos o maior percentual em relação à matriz energética de fontes renováveis. A visão que o Inpe defende para o programa espacial civil é que a tecnologia deve ser um valor de agregação à economia do conhecimento da natureza. E já estamos praticando essa visão”, diz Câmara. “Apoiamos a agricultura, a manutenção dos ecossistemas, os estudos de mudanças climáticas, a previsão de tempo e desastres naturais, a gestão das megacidades.” Há consenso de que a limitação de recursos responde por boa parte dos percalços do programa – a crise dos
inpe
futuros satélites do Inpe
rose brasil / ABr e divulgação
anos 1980 e a hiperinflação dos 1990 tornaram instável o aporte de dinheiro e comprometeram a evolução da pesquisa. “A construção de satélites, de foguetes e de infraestrutura terrestre apresenta complexidade e riscos tecnológicos, alto custo e ciclos de desenvolvimento longos, em geral entre quatro e oito anos”, escreveu Himilcon de Castro Carvalho, gerente executivo do Programa Nacional de Atividades Espaciais (Pnae), da AEB, em artigo publicado num dossiê sobre o programa espacial feito pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. “A gestão dos projetos e das atividades espaciais torna-se refém da incerteza, em longo prazo, do suporte financeiro necessário à execução das tarefas e dos contratos envolvidos, o que acaba gerando constantes soluções de continuidade e ações desgastantes de replanejamento.” Após a tragédia do VLS em 2003, o governo federal determinou um aumento nos investimentos do programa, com previsão de gastos de R$ 5,5 bilhões entre 2005 e 2014. Embora o volume de recursos tenha de fato aumentado entre 2004 e 2009, investiu-se neste período apenas um terço do prometido. Há várias propostas para evitar que o programa espacial volte a claudicar com orçamento baixo e instável. Um deles é o vigente na França, em que o Estado celebra um acordo de seis anos com o Centro Nacional de Estudos Espaciais
Os destroços do acidente na base de Alcântara, em 2003, e o foguete Cyclone-4, parceria com a Ucrânia que vive impasse
(Cnes) assumindo o compromisso de que o orçamento de um ano seja, no mínimo, igual ao do ano anterior. Ou o caso do Reino Unido, em que o orçamento da Agência Espacial Britânica é formado por contribuições diretas de órgãos usuários de produtos espaciais, como o Departamento de Transportes e a Agência de Meteorologia.
A
ampliação do programa espacial também implica criar competência na indústria nacional, tornando-a parceira no desenvolvimento e fornecimento de tecnologias. Isso teve início, de forma incipiente, com os cinco satélites lançados pelo Inpe. Empresas, em especial na região de São José dos Campos, começaram a se especializar como fornecedoras. Mas a quantidade de contratos foi insuficiente para dar consistência a essa base nascente. Para desenvolver o sistema inercial de navegação do satélite Amazônia-1 foi preciso contratar em 2008 uma empresa argentina, a Invap. O Inpe chegou a
fazer oito licitações junto à indústria nacional, em vão. O engenheiro Cesar Ghizoni, diretor-presidente da Equatorial Sistemas, empresa criada para desenvolver sistemas para os satélites Cbers, propõe que a estratégia para criar um parque de empresas seja mais ambiciosa do que se vislumbra atualmente. Ele cita o exemplo das necessidades da Estratégia Nacional de Defesa, que requerem o desenvolvimento de satélites capazes de produzir imagens de alta resolução para controle de fronteiras, e que não estão contempladas pelo esforço atual. “O projeto Cbers utiliza tecnologia da década de 1980. Já a Plataforma Multimissão é um projeto da década de 1990. As especificações, em especial as dos equipamentos do subsistema de controle de órbita e altitude, não são adequadas para missões de observação com alta resolução”, diz. Em proposta apresentada ao Ministério da Defesa e à AEB, a Equatorial sugeriu trazer do exterior uma plataforma de satélites de última geração para ser montada no Brasil e, gradualmente, desenvolver fornecedores locais das partes constituintes. A empresa, ele diz, está pronta a participar desse esforço. “Com o trabalho que tivemos no Cbers foi possível sobreviver, mas a indústria precisa de uma escala muito maior”, afirma. A reformulação do programa res suscita ideias antigas – a necessidade de PESQUISA FAPESP 186
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Frutos da corrida espacial Revolução desgrudou-se da visão idealizada pela ficção científica
Com a aposentadoria dos ônibus espaciais, os astronautas norte-americanos farão suas viagens à Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês) de carona em naves russas Soyuz. Isso, enquanto não vingar o projeto, acalentado pelo governo Barack Obama, de repassar a empresas privadas a incumbência de criar táxis orbitais capazes de colocar os astronautas em órbita. O mundo deu muitas voltas desde 1961, quando o presidente norte-americano John Kennedy lançou o desafio de “enviar homens à Lua e retorná-los a salvo” ainda na década de 1960. Era uma resposta aos rivais soviéticos, que colocaram Yuri Gagarin em órbita no histórico 12 de abril de 1961. A Apollo 11 fez história em 20 de julho de 1969, cumprindo o desafio proposto por Kennedy, e os norte-americanos voltaram à Lua algumas vezes, a última em 1972. Mas a intenção de reviver o feito foi abortada por falta de recursos. Se um homem voltar à Lua nesta década, será um astronauta da China, único país que programa uma missão desse tipo. A conquista do espaço marcou o imaginário de gerações de terráqueos, mas seus efeitos mais vigorosos desgrudaram-se da visão, idealizada
pela ficção científica, da exploração humana do espaço. A ISS e os ônibus espaciais tornaram-se caros e de retorno escasso. “Houve um tempo em que os resultados da pesquisa espacial tiveram um impacto enorme na geração de riqueza dos Estados Unidos, mas hoje as fronteiras são outras e têm a ver, por exemplo. com a tecnologia da informação e a neurociência”, diz Gilberto Câmara, diretor-geral do Inpe. Outros frutos da competência espacial amealhada na Guerra Fria são duradouros, como a constelaçãode satélites na órbita terrestre que revolucionou as telecomunicações, a meteorologia, a agricultura e a defesa. Na corrida espacial, os atores e suas motivações mudaram. A China revive os propósitos de afirmação nacional que moviam Estados Unidos e União Soviética. Colocou astronautas em órbita, prepara uma estação orbital própria e uma missão à Lua. A Índia, que alimenta o sonho de mandar um homem ao espaço, desenvolve sondas lunares. A União Europeia aposta no envio de sondas interplanetárias. E a Rússia, pragmática, lança satélites e transporta astronautas, contratada por quem se dispõe a pagar por isso.
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formar recursos humanos e desenvolver tecnologia autônoma já constava nas estratégias do governo Jânio Quadros, que criou em 1961 a Comissão Nacional de Atividades Espaciais (Cobae), em São José dos Campos. Mas busca tirar lições dos êxitos e fracassos do programa. A ideia de investir em missões talhadas para necessidades específicas é reflexo do sucesso do Cbers. O Brasil segue interessado em desenvolver satélites e lançadores, mas tais objetivos não estão mais atrelados, como ocorria na Missão Espacial Completa. “Temos que fortalecer todos os braços do programa e garantir que tenham governança”, diz Marco Antonio Raupp. Outras lições haviam sido aprendidas anteriormente. A criação da AEB, em 1994, buscou dar um caráter civil ao programa espacial e exorcizar as desconfianças sobre suas intenções bélicas, que causaram entraves à cooperação internacional. A montagem da agência coincidiu com a adesão do Brasil, em 1995, a um regime que limita o desenvolvimento de foguetes a dimensões não compatíveis com seu uso como arma de destruição em massa. “A AEB foi criada para acabar com a desconfiança internacional com o Brasil e, nesse aspecto, foi bem-sucedida. Se teve dificuldades para atrair bons quadros técnicos, foi um problema estrutural da capital federal, não da ideia original”, diz Luiz Gylvan Meira Filho. n
O Atlantis parte para sua última missão
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IQ-USP
Estratégias brasil
Paschoal Senise (1917-2011)
Bahia conquista Academia Presidida pelo ex-ministro da Saúde e ex-governador Roberto Santos, a Academia de Ciências da Bahia foi instalada em Salvador. Entre os objetivos da agremiação estão o incentivo a pesquisas e à formação de pesquisadores e o estímulo ao ensino e à popularização da ciência. A iniciativa tem o apoio da Federação das Indústrias do Estado da Bahia (Fieb), da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação do Estado da Bahia (Secti) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb). “Tivemos a grande receptividade do governo, da Fapesb e da Fieb. Todos se mantiveram à disposição para que os trabalhos se processassem da forma mais imediata e bem apoiada”, disse Roberto Santos.
O suporte da Fieb integra um conjunto de iniciativas da entidade para colocar a inovação na agenda de prioridades da indústria baiana. Nos próximos meses será constituído um fórum de inovação com executivos do setor industrial, secretários de Estado, representantes de órgãos de fomento, da Confederação Nacional das Indústrias (CNI) e de universidades. A intenção é que os integrantes se reúnam duas vezes ao ano.
O Museu Paulista da USP promove entre 19 e 21 de setembro a jornada de estudos A Cidade de São Paulo – Tempos de Transformação, Tempos de Reflexão, nas comemorações dos 300 anos da elevação de São Paulo à categoria de cidade, ocorrida em julho de 1711. O ato deu mais autonomia administrativa e jurídica em relação à coroa portuguesa e colocou a cidade em consonância com sua importância econômica e política – São Paulo era plataforma para a expansão colonial e firmava-se como área de abastecimento para o mercado interno. A jornada é destinada a pesquisadores e busca promover discussões sobre os principais estudos e pesquisas realizadas acerca do tema. As inscrições podem ser feitas entre 23 de agosto e 15 de setembro.
wagner ferreira / ciência e cultura
Senise: professor emérito
Paschoal Senise, professor emérito da Universidade de São Paulo (USP), morreu no dia 21 de julho, aos 93 anos, de uma parada cardiorrespiratória, na sequência de uma pneumonia. Foi diretor do Instituto de Química de 1970 a 1974 e de 1978 a 1982 e membro do Conselho Superior da FAPESP de 1969 a 1971. Nascido em São Paulo em 1917, ingressou aos 18 anos na primeira turma do curso de química da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP. Obteve os títulos de doutor (1942), livre-docente (1956) e professor titular (1965) pela FFCL. Concentrou-se na área de química analítica, propalando a visão de que a pesquisa deve se voltar para a elucidação de fenômenos básicos e gerar conhecimento amplo para que dele decorram as aplicações analíticas. Contribuiu nas linhas de extração com solventes, com destaque para sais de fosfônio, estudos de estabilidade de complexos, especialmente os de pseudo-haletos, e desenvolvimento de métodos quantitativos de análise. Cuidou da introdução de linhas de pesquisa em análise microquímica e química eletroanalítica depois do pós-doutorado que fez na Universidade de Louisiana, nos Estados Unidos (1950-1952).
Cidade há 300 anos
Roberto Santos: articulação pela ciência PESQUISA FAPESP 186
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Ouro na Tailândia
luiz nonnato
Como aconteceu no ano passado, todos os cinco estudantes brasileiros que participaram da Olimpíada Internacional de Física este ano em Bangcoc, na Tailândia, trouxeram medalhas para casa. Com uma diferença importante: Gustavo Haddad Braga fez jus à primeira medalha de ouro concedida a um estudante ibero-americano. Com Gustavo 16 anos, ele é aluno do terceiro (centro) ano do ensino médio do Colégio e a equipe Objetivo São Paulo. Além do oupremiada ro para Gustavo, foram quatro medalhas de bronze, obtidas pelos alunos Ivan Tadeu e Lucas Hernandes, de São Paulo, e José Guilherme Alves e Ricardo Duarte Lima, do Ceará. O grupo foi selecionado pela Olimpíada Brasileira de Física entre os alunos de mais de 4.500 escolas brasileiras. Em seguida, por uma semana o grupo treinou física experimental no Instituto de Física do campus de São Carlos da Universidade de São Paulo. Além do aspecto empolgante da experiência de trabalhar em uma instituição de pesquisa na área, a preparação foi mesmo crucial para a prova, que envolvia três perguntas teóricas e duas experimentais. As olimpíadas científicas são um estímulo importante para os jovens estudantes. “Eu mesmo comecei a me interessar mais pela disciplina por conta da Olimpíada Brasileira de Física”, disse Gustavo Haddad.
O navio ancorado em Seattle 26
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Plataforma de pesquisa no mar Está programada para o final de dezembro a chegada ao Brasil do novo navio de pesquisas do Instituto Oceanográfico (IO) da Universidade de São Paulo (USP) que substituirá o Professor Besnard, fora de operação desde um incêndio em 2008. A aquisição foi financiada pela FAPESP. A procura pelo novo navio foi iniciada em 2009, pelo diretor do IO, professor Michel Mahiques. Foi escolhido o Moana Wave, que serviu de base para a Universidade do Havaí, por apresentar melhor área para instalação de laboratórios e uma popa baixa e apropriada para atividades de pesquisa. Rebatizado de Alpha Crucis, a estrela que representa o estado de São Paulo na bandeira do Brasil, o novo navio será uma plataforma de pesquisas em alto-mar. Está sendo reformado num estaleiro em Seattle,
Estados Unidos, e receberá um atualizado conjunto de equipamentos, entre laboratórios científicos e sistemas de navegação de última geração. Construído em 1974 com 64 metros de comprimento por 11 metros de largura, terá capacidade de levar 41 pessoas a bordo, sendo 23 pesquisadores e 18 tripulantes. “Com um navio de concepção moderna dotado de equipamentos de última geração, o aumento de qualidade das informações coletadas e das pesquisas será notável”, diz o engenheiro Luiz Nonnato, membro do laboratório de instrumentação do IO. Será utilizado por grupos de pesquisa de várias áreas, entre eles o do Programa Biota-FAPESP, para ampliar o conhecimento acerca da biologia marinha. O navio também será importante para a formação dos alunos de graduação do IO por meio de participação em expedições científicas.
philipp hienstorfer/wikicommons
A 63ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que reuniu cerca de 10 mil participantes em Goiânia entre 10 e 15 de julho, ecoou as preocupações da comunidade científica em relação aos cortes no orçamento federal e à necessidade de criar novos marcos legais para a pesquisa. Ao fazer um balanço do encontro, a presidente da SBPC, Helena Nader, afirmou que se abre um “horizonte negativo” para a produção científica brasileira. “A longo prazo vai ser uma tragédia”, disse ela, segundo a Agência Brasil, temendo queda do número de artigos e teses publicados. De acordo com Helena, há pesquisadores que temem assinar autorizações de gastos e depois “ter de responder com patrimônio próprio”. “Os marcos legais são amarras. Ou são adequados à realidade ou [os inventos] vão continuar sendo produzidos no exterior”, ressaltou. A alteração da legislação deve incluir mais
antonio cruz/abr
Reunião da SBPC reúne 10 mil
Feira de ciência no encontro de Goiânia
incentivos para a indústria apostar em inovação. Helena concordou com vários conferencistas que estiveram na reunião da SBPC e reclamaram do descompromisso do setor produtivo com inovação. “A indústria tem que ser convencida de que tem que contratar profissionais qualificados. As pessoas acham que o lucro vem no dia seguinte.” A Reunião da SBPC teve 440 palestrantes, 174 conferências, 80 minicursos e participação de 135 instituições na Feira de Ciência, Tecnologia e Inovação (Expotec). Em 2012, o evento ocorrerá em São Luís, capital do Maranhão.
Nova biblioteca na Unicamp O Instituto de Biologia (IB) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) ganhou uma nova biblioteca. Instalada em um prédio de dois pavimentos
e 1.068 m2, com áreas para estudo individual e em grupo, auditório, videoteca, centro de memória e rede de internet sem fio, a nova biblioteca abrigará um acervo composto por 22 mil volumes, que é considerado um dos maiores e melhores do país na área de ciências biológicas e biomédicas. Segundo a Unicamp, a nova biblioteca do IB foi incluída no Planejamento Estratégico Institucional da universidade e construída com recursos do Plano de Expansão de Vagas da Graduação. O prédio ficou pronto em agosto de 2010, mas ainda faltava infraestrutura interna, que foi concretizada com verbas da Reserva Técnica Institucional da FAPESP.
Intercâmbio canadense
A FAPESP e as universidades de Toronto e de Western Ontario, da província canadense de Ontário, publicaram chamada de propostas de pesquisa no âmbito do acordo de cooperação assinado em abril por representantes das instituições. A seleção está voltada ao intercâmbio de pesquisadores de instituições de ensino superior e pesquisa, públicas ou privadas, do estado de São Paulo e do Canadá, desde que afiliados às duas universidades. A chamada contempla todas as áreas do conhecimento e o período de intercâmbio é de até 24 meses. A FAPESP destinará até 10 mil dólares canadenses anuais por proposta aprovada, para cobrir despesas de transporte, moradia e seguro de pesquisadores do lado paulista em viagens ao Canadá. As universidades de Toronto e de Western Ontario também destinarão até 10 mil dólares canadenses para cobrir as mesmas despesas de pesquisadores canadenses quando em viagens ao estado de São Paulo. As propostas deverão ser escritas em inglês e submetidas até o dia Universidade de Toronto: cooperação 30 de setembro próximo. PESQUISA FAPESP 186
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Estratégias mundo
Orçamento sem crise
A Universidade Kenyatta, a segunda maior do Quênia, criou uma incubadora de negócios em seu campus em Nairóbi para transformar ideias de estudantes em produtos comerciais. O Centro de Incubação e Inovação Empresarial Chandaria é, segundo seus idealizadores, o primeiro do tipo no leste da África e vai promover pelo menos 50 projetos de estudantes por ano, com o apoio de uma equipe de mentores da universidade e lideranças industriais. “A criação do centro é baseada em uma parceria público-privada para treinar estudantes com perfil empreendedor, aqueles que, depois de formados, não procuram empregos, mas, sim, criam empregos”, disse à agência SciDev.Net Olive Mugenda, vice-chanceler 28
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período de seis meses a um ano. A Fundação Chandaria, instituição que promove a saúde e a educação no Quênia, está investindo no centro 25 milhões de xelins quenianos, o equivalente a US$ 275 mil. A universidade vai participar com cifra equivalente. Há outros parceiros da iniciativa, como um fundo empresarial que irá apoiar os alunos após o processo de incubação; o provedor de internet Telkom-Orange, que está oferecendo acesso gratuito à rede; e a Universidade de Western Ontario, do Canadá.
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Swathi Sridharan / ICRISAT
Estudantes empreendedores
A crise do euro levou a União Europeia (UE) a uma fase de austeridade, mas os investimentos em ciência podem passar incólumes pelo arrocho. Uma proposta de orçamento apresentada pela Comissão Europeia, órgão executivo da UE, prevê um aumento de 45% nos gastos com pesquisa e inovação, passando de € 55 bilhões (o equivalente a US$ 80 bilhões) no período de 2007 a 2013 para € 80 bilhões entre 2014 e 2020. A redução nos subsídios agrícolas ajudaria a financiar a ciência. A proposta é um marco no processo que determinará o formato do sucessor do Sétimo Programa-Quadro (FP7), principal instrumento de financiamento Máire Geoghegan-Quinn: à pesquisa do bloco, batizado de Horizonte voto de confiança 2020. A proposta precisa ser aprovada pelo Parlamento Europeu e pelos Estados memda Universidade Kenyatta. bros, mas revela o sucesso da estratégia da comissária para a pesquisa da UE, a irlandesa Máire Geoghegan-Quinn. “Ela A iniciativa já tem nove conseguiu convencer os outros comissários de que, se há um projetos aprovados, como um supermercado on-line, setor que precisa de mais investimento, é o da pesquisa”, uma unidade de reciclagem diz Peter Tindemans, especialista em política científica da de rejeitos plásticos e um Euroscience, com sede em Estrasburgo. Geoghegan-Quinn sistema de alerta contra disse à revista Nature que a proposta é “um grande voto de roubo, todos desenvolvidos confiança na ciência”, mas exortou os pesquisadores a lutarem por estudantes. As inovações por sua implantação. “Os agricultores vão pressionar, então os cientistas precisam fazer o mesmo”, disse. serão incubadas por um
Aluno da Universidade Kenyatta: produtos
Muçulmanos: entre Darwin e o Alcorão
– e também em nações que recebem muitos muçulmanos, como Alemanha, Reino Unido e Estados Unidos. Os entrevistados tinham boa cultura científica e bagagem
Caça polêmica Os Estados Unidos podem impor sanções comerciais à Islândia em represália à insistência do país de caçar baleias e exportar sua carne para o Japão. O secretário norte-americano de Comércio, Gary Locke, acusou a Islândia de ameaçar espécies em risco de extinção e disse que as sanções podem sair em setembro. A Islândia retomou a caça comercial em 2006, apesar da moratória global determinada pela Comissão Baleeira Internacional (IWC). O ministro da Pesca islandês, Jon Bjarnason, afirmou que a caça é sustentável e baseada "em boa ciência". “Nossa quota anual de baleias-mink é de 216, de um estoque de aproximadamente 70 mil animais, e a de baleias-fin é de 154, de um estoque de 20 mil animais”, disse o ministro, segundo a agência BBC. A quota de baleias, afirmou Bjarnason, foi calculada com a ajuda de modelos computacionais, mas seu patamar, de acordo com a IWC, é três vezes maior Baleia com filhote na Islândia: quota do que a cautela recomendaria.
educacional comum. A aceitação da teoria da evolução variou. Mais de 80% dos paquistaneses radicados nos Estados Unidos a aceitava. Mas a maioria dos médicos da Malásia a rejeitou, sobretudo quando a evolução se relaciona a seres humanos. “Se a evolução é confundida com ateísmo, a rejeição cresce”, disse Hameed. Um dos entrevistados, um médico turco, explicou: “É complicado. Eu aceito a evolução cientificamente, mas a rejeito do ponto de vista religioso”.
Nasce uma revista Três grandes patrocinadores das ciências da vida, o Howard Hughes Medical Institute, o Wellcome Trust e a Sociedade Max Planck, vão lançar uma revista científica para rivalizar com títulos como Nature e New England Journal of Medicine. A publicação, a ser lançada em 2012, ainda não tem nome, mas será divulgada apenas pela internet e com acesso aberto. “Não basta fornecer os melhores recursos para fazer pesquisa. É preciso tornar a informação acessível”, afirmou Robert Tjian, presidente do Howard Hughes Medical Institute. Herbert Jackle, vice-presidente da Sociedade Max Planck, disse que as publicações líderes estão mais preocupadas em elevar seus fatores de impacto do que divulgar a melhor ciência. Ele afirmou que os avaliadores fazem demandas excessivas antes de aceitar os artigos. Os editores da nova publicação serão cientistas da ativa com expertise para tomar decisões rápidas, evitando o vai e vem dos revisores, disse Tijan.
Andreas Tille / Wikicommons
O mundo islâmico vive um momento curioso na sua relação com a teoria da evolução, de acordo com um levantamento sobre o tema feito entre médicos e estudantes de medicina muçulmanos de várias partes do mundo. “Os países islâmicos estão negociando a modernidade e a resposta dos entrevistados evidenciou isso”, disse à agência SciDev.Net Salman Hameed, coautor da pesquisa e diretor do Centro para o Estudo da Ciência em Sociedades Muçulmanas, do Hampshire College, Estados Unidos. Foram ouvidos médicos e estudantes em cinco países de maioria islâmica – Egito, Indonésia, Malásia, Paquistão e Turquia
Ali Mansuri / Wikicommons
Negociando a modernidade
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política científica e tecnológica
[ história III ]
Trilha ecológica Da pesquisa básica às políticas públicas, FAPESP investe há cinco décadas em estudos da biodiversidade
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entenas de pesquisadores paulistas de disciplinas ligadas ao estudo da biodiversidade reuniram-se em São Carlos, no início de julho, para discutir avanços em seus trabalhos. Paralelamente, um comitê de avaliação composto por cientistas estrangeiros analisava o conjunto dos resultados apresentados e sugeria caminhos para os próximos anos. Os dois eventos marcaram a sétima avaliação do Programa de Pesquisas em Caracterização, Conservação, Recuperação e Uso Sustentável da Biodiversidade do Estado de São Paulo, mais conhecido como Biota-FAPESP, um esforço que envolve 1.200 profissionais para identificação da biodiversidade paulista iniciado em 1999 (leia também reportagem na página 55). O programa promoveu mais de uma centena de projetos de pesquisa e gerou avanços no conhecimento, como a identificação de 1.766 espécies (1.109 microrganismos, 564 invertebrados e 93 vertebrados), além da publicação de mais de 1.145 artigos científicos, 20 livros, 2 atlas e diversos mapas que passaram a orientar políticas públicas. Atualmente, o estado de São
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ilustração ana paula campos com reproduções do livro flora do estado de são paulo
Paulo possui seis decretos governamentais e 13 resoluções que citam as orientações do programa. No campo da qualificação de recursos humanos formou 190 mestres, 120 doutores e 86 pós-doutores. Só nos 10 primeiros anos, a FAPESP investiu R$ 82 milhões no programa. O Biota-FAPESP se tornou o primeiro programa científico brasileiro com investimento regular por mais de 10 anos de duração, observa seu coor denador, o botânico Carlos Alfredo Joly, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Quando completou 10 anos, seus organizadores propuseram à FAPESP um novo plano científico para a década seguinte. “Esta reunião de avaliação é muito especial, pois é a primeira desde que a FAPESP renovou seu apoio ao programa até 2020”, diz Joly. “A perspectiva de longo prazo é fundamental para a pesquisa científica”, afirma. O Biota-FAPESP é o principal exemplo do forte inves-
timento da Fundação em pesquisas no campo das ciências naturais e da ecologia, que começaram muitos anos antes de o termo biodiversidade ser cunhado. Já em seus primeiros anos a FAPESP apoiou estudos de algas marinhas, inicialmente no litoral do estado (1962-1963) e depois no litoral norte, nordeste e leste do Brasil (1964-1965), realizados pelo Departamento de Botânica da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, mais tarde incorporado ao Instituto de Biociências (IB). O levantamento realizado no litoral do estado resultou em vários trabalhos de pesquisa publicados em revistas científicas, no treinamento de biólogos marinhos especializados em algas e na ampliação do herbário de algas do Departamento de Botânica. Já o levantamento da flora de algas do resto do litoral brasileiro fez parte de um trabalho de cooperação internacional, apoiado pela Seção de Oceanografia da Unesco. O conjunto PESQUISA FAPESP 186
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Represas - Na década de 1970, quando
a FAPESP tomou a iniciativa de organizar projetos especiais, decidiu dedicar um deles ao campo da ecologia e encomendou uma proposta ao professor José Galizia Tundisi, já naquela época referência em estudos sobre a água. O resultado foi o projeto Tipologia das Represas do Estado de São Paulo, que envolveu 70 pesquisadores do Laboratório de Limnologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), do Instituto de Biociências da USP e do Instituto de Pesca da Secretaria da Agricultura do Estado de São Paulo. “Naquela época, um pesquisador da Espanha havia feito um estudo sobre 32
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acervo pessoal
de resultados desses projetos constitui a primeira versão da Flora Ficológica Marinha do Brasil. Um nome-chave dessa linha de pesquisa foi o de Aylthon Brandão Joly (1924-1975), professor na Universidade de São Paulo, que deu início, nos anos 1950, ao estudo de algas no Brasil. Em 1957 publicou o livro Contribuição ao conhecimento da flora ficológica marinha da baía de Santos e arredores, o primeiro levantamento florístico planejado das algas de uma região delimitada do Brasil. “Até mais ou menos 1960, Joly trabalhou sozinho na universidade. A partir daí formou no Departamento de Botânica da USP uma verdadeira escola, havendo orientado direta ou indiretamente boa parte da primeira geração de sua descendência de ficólogos brasileiros e, inclusive, de alguns de outros países da América Latina”, escreveu Carlos Bicudo, pesquisador do Instituto de Botânica de São Paulo, no artigo “O estudo de algas no estado de São Paulo”, publicado em 1998. Aylthon Joly deixou muitos descendentes – um deles no sentido literal e acadêmico do termo. Seu filho Carlos Alfredo Joly, o coordenador do Biota-FAPESP, seguiu os passos do pai. “Há uma geração de pesquisadores de algas marinhas que são netos acadêmicos do meu pai”, diz Joly. “A professora Mariana Cabral de Oliveira, da USP e membro da coordenação do Programa Biota-FAPESP, é um bom exemplo dessa nova geração, pois, além do mais, ao incorporar técnicas de DNA barcoding à sua pesquisa mostra o mesmo espírito inovador que sempre caracterizou os ficólogos brasileiros.”
Aylthon e Carlos Joly: da flora de algas marinhas ao Biota-FAPESP
o perfil de 104 represas daquele país, contemplando a biologia das águas, a contaminação e a poluição, e eu propus um desenho semelhante”, diz Tundisi. O projeto rendeu frutos científicos robustos. Ampliou o conhecimento sobre os mecanismos de funcionamento de represas, esclarecendo as diferenças entre lagos e reservatórios. Enriqueceu as coleções de organismos aquáticos mantidos em institutos de pesquisa e motivou a publicação de 150 trabalhos no Brasil e no exterior e de quatro livros (três deles em outros países), formando 10 doutores e 15 mestres. Permitiu, por exemplo, que se desenvolvesse uma metodologia para comparação de ecos-
sistemas aquáticos inédita no Brasil. Também gerou um conjunto de informações sobre a distribuição geográfica dos organismos aquáticos e sobre as características dos reservatórios, que teve impacto no uso das bacias hidrográficas e até hoje serve como base para novos estudos. Por fim, estabeleceu parâmetros para a gestão das represas. “Conseguimos determinar que o tempo ideal de retenção de água nos reservatórios tem de ser inferior a 10 dias, para garantir a qualidade da água e a saúde dos ecossistemas. Quando a água de um reservatório demora muito para ser trocada, a retenção de poluentes, nitrogênio e fósforo tem impacto na ma-
antoninho perri / ascom / unicamp
nutenção das espécies. Essa informação foi fundamental para o planejamento de novas hidrelétricas”, afirma Tundisi. Quando o projeto já estava aprovado, Tundisi procurou o diretor científico da FAPESP, William Saad Hossne, e disse que tinha uma nova demanda. “Pedi 15 bolsas de iniciação científica para formar novos pesquisadores dentro do projeto. Foi um sucesso. Daqueles 15 jovens bolsistas, 13 são, hoje, professores titulares”, diz. Descrição - Se o estudo das represas for-
mou lideranças e semeou competência numa área do conhecimento, o projeto Flora Fanerogâmica do Estado de São Paulo foi um marco para o aprendizado no trabalho multi-institucional, que depois ganharia contornos ampliados de rede de instituições e pesquisadores no Programa Biota-FAPESP. O projeto, iniciado em 1993, reuniu especialistas das três universidades estaduais – Unicamp, USP e Universidade Estadual Paulista (Unesp) –, de três institutos de pesquisa – Botânico, Florestal e Agronômico – e de um órgão municipal – o Departamento de Parques e Áreas Verdes da prefeitura de São Paulo. Uma das No início maiores contribuições e aprovados os princíem andamento para pios para a elaboração dos anos 1990, o conhecimento da da Flora do Brasil, que previa, além do estudo diversidade da flora a flora brasileira, já produziu da vegetação, o desenseis volumes com a volvimento de ações brasileira descrição de espécies voltadas à formação de plantas fanerógade recursos humanos estava ao mas, aquelas que proe à criação de prograduzem flores. A intenmas de expedições bomesmo tempo ção é publicar outros tânicas nos diferentes 10, além de atualizar ecossistemas existentes entre as menos na internet as primeino país”, lembra Maras obras. ria das Graças Lapa conhecidas O objetivo do Wanderley, pesquisaprojeto era preencher dora do Instituto de e as mais uma lacuna sobre a Botânica, que hoje conservação ambiencoordena o projeto. ameaçadas tal no Brasil que vinha No ano seguinte, com sendo discutida pelos o primeiro edital de membros da Sociedade Botânica do projetos temáticos da FAPESP, botâBrasil (SBB) – a flora brasileira, reconicos reunidos num congresso em São nhecidamente a de maior número de Luís do Maranhão decidiram apresenespécies, estava ao mesmo tempo entre tar uma proposta, tornando o plano as menos conhecidas e mais ameaçada flora do estado de São Paulo como das do planeta. “Em 1992, no Congresprojeto piloto. A coordenação coube ao so Nacional de Botânica, realizado em professor Hermógenes de Freitas Leitão Aracaju, Sergipe, foram consolidados Filho (1944-1996), do Departamento de
Hermógenes Leitão: Flora Fanerogâmica
Botânica da Unicamp, um dos poucos especialistas brasileiros da família Compositae, com cerca de 10 mil espécies, incluindo a margarida, a camomila e várias plantas medicinais. Os primeiros dois anos corresponderam a uma fase de planejamento, com o levantamento dos acervos dos herbários, que permitiram a criação do banco de dados do projeto. A segunda fase foi a das expedições científicas, a maioria delas entre 1996 e 1997. Elas resultaram em cerca de 20 mil números de plantas, que foram distribuídas aos herbários do estado. Com a morte súbita de Hermógenes Leitão, em fevereiro de 1996, quando dirigia uma atividade de campo, o projeto passou a ser coordenado por Maria das Graças Lapa Wanderley, George Shepherd, da Unicamp, e Ana Maria Giulietti, da USP. A terceira fase deu início à divulgação dos resultados, com previsão de publicação de 16 volumes. A FAPESP apoiou o projeto até 2005. Os seis volumes publicados até agora descrevem 132 famílias, incluindo 655 gêneros e 2.767 espécies, o equivalente a 37% das 7.058 espécies referidas para o PESQUISA FAPESP 186
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Miguel Boyayan
território paulista. “Todos os pesquisadores que querem estudar uma planta fanerógama consultam nossas bases de dados. O impacto do projeto se estende a todos os outros campos da botânica”, diz Maria das Graças Wanderley. Lacunas - O exemplo do projeto Flora
Fanerogâmica inspirou o Biota-FAPESP. Em 1995, a Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo tentou, em vão, envolver pesquisadores para trabalhos que iam além da elaboração de uma lista de espécies ameaçadas no território paulista. “Havia muitas lacunas de conhecimento, mas os pesquisadores resistiam em se engajar, temerosos de que eventuais mudanças políticas na secretaria comprometessem a continuidade do trabalho”, diz Carlos Joly, que, à época, era assessor do secretário do Meio Ambiente, Fabio Feldmann. Nessa época, Joly era também membro da Coordenação de Ciências Biológicas da FAPESP, trabalhando com o professor Naércio Menezes. “A ideia de um programa de pesquisa em biodiversidade foi amadurecendo na FAPESP. Eu havia conversado muito com o professor Hermógenes na Unicamp Os dados do e conhecia bem o Flora Fanerogâmica. Mas, Os dados acumulaPrograma ao contrário deste, que dos pelo Biota-FAPESP era um projeto temáhoje orientam os criBiota-FAPESP tico focado em apenas térios para a criação um grupo taxonômico, de novas unidades de orientam os nós queríamos abranconservação e a auger toda a biodiversitorização de retirada critérios para dade do estado, o que, da vegetação nativa, e evidentemente, não fundamentam o zoneacriação de mento agroecológico cabia em um único temático”, lembra Joly. para o plantio de cananovas unidades A ideia de criar um -de-açúcar em território paulista. Decretos programa com um de conservação governamentais e resoconjunto de projetos temáticos articulados luções da Secretaria do em São Paulo foi apresentada pelo Meio Ambiente citam nos considerandos os diretor científico da FAPESP, José Fernando mapas de áreas prioriPerez, num workshop em Serra Negra, tárias para conservação e restauração da biodiversidade paulista produzidos pelos em 1997. O então grupo de coordenapesquisadores do Programa Biota. ção (ver detalhes em www.biota.org.br/ info/historico) decidiu usar a internet Se os primeiros 10 anos do Biotapara criar ferramentas de integração -FAPESP foram marcados pelo avanço e compartilhamento de dados. Estava na caracterização da biodiversidade no criado o Instituto Virtual da Biodiversiuso da base de dados como ferramenta dade, outra denominação utilizada para para aperfeiçoamento de políticas púdesignar o Biota-FAPESP. blicas, o programa hoje busca alargar 34
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seu escopo, com destaque, por exemplo, para a ampliação do BIOprospecTA, subprograma que busca compostos ou moléculas de interesse econômico, a produção de material educativo para rede de ensino fundamental e médio e estudos vinculados aos serviços ecossistêmicos e ao funcionamento de ecossistemas terrestres. “O professor Arthur Chapman, do Serviço Australiano de Informação sobre Biodiversidade, que faz parte do comitê internacional de avaliação, elogiou o programa, dizendo que ele se esforça em implantar as sugestões que o comitê fez anteriormente”, diz Joly. “Em 2008 os avaliadores criticaram o número reduzido de projetos em biologia marinha e em microrganismos. Agora há 10 novos projetos de biologia marinha e, no caso de microrganismos, em que havia apenas um projeto temático, foram submetidas mais de 40 novas propostas no último edital. Há grupos capacitados e a coordenação tem tido a sensibilidade de ouvir os anseios da comunidade científica paulista. Por isso essas coisas estão acontecendo tão rapidamente”, diz Joly. n
[ polêmica ]
Os donos da chuva
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uas novas expressões – gerenciamento do clima e geoengenharia – estão aparecendo com mais frequência nos debates internacionais sobre a ciência e a política das mudanças climáticas. Uma das razões é o fracasso nas tentativas de implementação de políticas efetivas de redução de emissões de gases estufa. O que há de novo é que não é mais utópico pensar em intervir no clima regional ou mundial para evitar a contínua elevação da temperatura média global, as secas ou inundações intensas que se tornam mais frequentes à medida que as alterações climáticas se intensificam. Já pode ser viável usar aviões, balões ou canhões para espalhar partículas de aerossóis na estratosfera ou aumentar a nebulosidade do planeta semeando nuvens. Essas intervenções poderiam refletir parte da radiação solar de volta para o espaço e resfriar o planeta como forma de reduzir os efeitos das crescentes concentrações de gases do efeito estufa como o dióxido de carbono (CO2). Os especialistas alertam, porém, que pode ser bastante perigoso – e não só porque os efeitos dessas intervenções no clima global são imprevisíveis. “Um só país ou um só milionário pode tentar mudar o clima na Terra, com consequências imprevisíveis”, observou o físico Paulo Artaxo, professor da Universidade de São Paulo (USP), em um debate realizado em junho no Instituto de Relações Internacionais da USP. “Espero que não comece uma competição entre países, grandes empresas ou bilionários dos Estados Unidos, da Inglaterra ou do mundo árabe que queiram salvar o mundo mudando
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Intervenções no clima global podem já ser viáveis, mas têm enormes riscos Carlos Fioravanti
o clima de propósito. A possibilidade já existe, basta uma decisão.” Estima-se que despejar toneladas de enxofre na alta atmosfera para produzir partículas de aerossóis custaria US$ 10 bilhões ao ano, bem menos do que o US$ 1 trilhão previsto para reduzir as emissões de CO2. A geoengenharia ou engenharia climática, como é chamada a intervenção deliberada e de ampla escala no clima, oferece outras possibilidades. As mais simples incluem o aumento da refletividade das superfícies das construções e o reflorestamento em larga escala, já que as plantas absorvem muito CO2 enquanto crescem. Possibilidades mais refinadas consistem no espalhamento de íons de ferro no oceano para aumentar a fertilidade de algas marinhas, que sequestrariam CO2 e o levariam para o fundo dos oceanos. Debatida no mundo acadêmico desde os anos 1960, a geoengenharia ganhou visibilidade pública com George W. Bush, presidente dos Estados Unidos de 2001 a 2009. Bush preferia apostar em estratégias desse tipo para lidar com os efeitos dos problemas provocados pelo aquecimento global em vez de reduzir as emissões, prevenindo os impactos. Os adeptos da geoengenharia
ilustração Mariana zanetti
– um grupo que inclui a indústria de combustíveis fósseis e alguns cientistas que acham que o problema climático é tão urgente que requer intervenções drásticas – argumentam que existe a possibilidade de reduzir a temperatura do planeta de propósito, não como panaceia, mas como medida paliativa, enquanto outras medidas mais demoradas são colocadas em prática. Riscos - Alan Robock, pesquisador da
Universidade Rutgers, Estados Unidos, tem alertado que os riscos podem superar os benefícios, mesmo que a geoengenharia funcione como esperado. Segundo ele, mudanças propositais no clima global poderiam amenizar a pressão social pela adoção de medidas de redução da emissão de gases do efeito estufa, além de descontrolar o clima ainda mais – um dos efeitos previstos é a redução das chuvas anuais – as monções – sobre a Ásia e a África, ameaçando a produção de alimentos para centenas de milhões de pessoas. Em 2008, na Science, Robock afirmou que a geoengenharia poderia ser usada como arma de guerra de um país contra povos inimigos, causando secas ou inundações de consequências catas-
tróficas em territórios hostis. Emergem também perguntas ainda sem respostas: quem vai controlar o clima e dizer que é hora de parar? Robock propõe a seguinte situação: e se a Rússia quisesse a temperatura global um pouco mais alta e a Índia um pouco mais baixa? O sociólogo da Universidade de Brasília (UnB) Eduardo Viola, que participou do debate na USP, teme que os países mais poderosos, como China, Rússia, Estados Unidos, tomem unilateralmente decisões que possam beneficiá-los, mas prejudicar muitos outros. “Não temos governança global para lidar com esses problemas. O que um presidente dos Estados Unidos como Sarah Palin faria?”, indagou Jason Blackstock, pesquisador do Center for International Governance Innovation (Cigi), Canadá, em sua apresentação na USP. “Temos de ter um entendimento claro de todas as implicações.” Cada estratégia traz fortes efeitos colaterais. Segundo ele, aumentar a quantidade de enxofre na atmosfera pode esfriar a Terra, mas também alterar a precipitação e o balanço de radiação direta e difusa, com fortes efeitos sobre o funcionamento dos ecossistemas. Inversamente, a proposta de reduzir em 0,5% o teor
de enxofre do combustível usado em navios até 2020, cogitada como forma de evitar 35 mil mortes de pessoas, principalmente nas proximidades de portos, poderia aumentar a incidência de luz solar na superfície – e o planeta esquentaria um pouco mais. “Os cientistas em geral são favoráveis à pesquisa de geoengenharia e podem planejar experimentos em pequena escala nos próximos anos”, diz Artaxo, com base nas reuniões internacionais de que tem participado. “O problema é que não há efeito apenas local.” Por causa dos ventos, parte de uma carga de enxofre lançada, por exemplo, na região central dos Estados Unidos facilmente em apenas um dia iria para o Atlântico ou para o Pacífico, com consequências imprevisíveis sobre o equilíbrio do clima terrestre. As descargas intencionais de partículas aerossóis teriam um efeito similar ao das supererupções vulcânicas. O exemplo mais citado é o Pinatubo, vulcão das Filipinas que entrou em erupção em junho de 1991. Em poucos dias, ele liberou 20 megatoneladas (cada megatonelada equivale a 1 bilhão de quilogramas) de dióxido de enxofre. As partículas se espalharam pela atmosfera e a temperatura do ar na superfície dos continentes do hemisfério Norte caiu dois graus. Depois de um ano, as partículas assentaram e a temperatura voltou a aumentar. Em 2002, na Science, Robock observou que o espalhamento de partículas vindas de erupção vulcânica não é um fenômeno inócuo: pode reduzir a radiação solar e, consequentemente, a evaporação e a chuva por um ou dois anos. Artaxo aponta outra consequência do acúmulo de aerossóis na atmosfera: “Nunca mais teremos céus azuis como hoje, e os telescópios ópticos na superfície terrestre seriam inúteis”. Para ele, a melhor solução contra os impactos do aquecimento global é reduzir rapidamente o consumo de combustíveis fósseis e as emissões de gases do efeito estufa e mudar o modo pelo qual usamos os recursos naturais do planeta. “Se formos inteligentes”, diz ele, “podemos usar os recursos naturais do planeta de modo mais eficiente e sustentável, sem precisar de experiências mirabolantes que colocam ainda mais em risco nosso frágil ecossistema terrestre”. n PESQUISA FAPESP 186
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Jinterwas / Creative Commons
laboratório
consciência símia
Mais de 80% dos terremotos de grande intensidade, como o que originou o tsunami que atingiu o Japão este ano, acontecem ao longo das zonas de subdução, regiões onde uma placa tectônica desliza para baixo de outra. Para entender esse processo, uma equipe internacional – chefiada pela italiana Paola Vannucchi, da Universidade de Florença, e pelo japonês Kohtaro Ujiie, da Universidade de Tsukuba – vem recolhendo amostras rochosas do fundo do oceano Pacífico nas zonas onde acontecem esses encontros de placas, como o litoral da Costa Rica. A expedição já encontrou indícios de afundamento no assoalho do oceano ali, em combinação com o acúmulo de uma grande quantidade 38
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zonas de subdução subiram através das camadas do sedimento”, disse Paola à assessoria de imprensa da Fundação Nacional de Ciências dos Estados Unidos, que financia o projeto.
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O movimento, o volume e a composição desses fluidos são elementos importantes para entender as relações entre a atividade química,
térmica e de transferência de massa no fundo do oceano e na região formadora de terremotos na fronteira entre as placas. US Navy
Por que a terra treme
Ponha um macaco rhesus (Macaca mulatta) na frente de um espelho e ele atacará a imagem. Até agora, essa reação tem sido vista por psicólogos como um fracasso no teste do espelho, que indica consciência de si em contraposição ao mundo e aos outros. Mas talvez não seja, mostra o trabalho de Justin Couchman, da Universidade de Buffalo, nos Estados Unidos (Biology Letters). Com base em outros testes nos quais os rhesus demonstraram cognição, ele conjecturou que a reação de fazer ameaças ao espelho talvez reflita seu sistema social, em que qualquer macaco é um intruso. Ao comparar rhesus e seres humanos diante de um jogo eletrônico em que usavam um joystick para mover Rhesus: capaz de um círculo num monitor, ele verificou que ambas as detectar trapaça espécies distinguem o movimento executado pela eletrônica própria mão daquele que resulta de um elemento criado pelo programa de computador. Essa pode de sedimento que se ser uma indicação de que o teste do espelho não é o melhor – pelo menos não o único – para avaliar a autoconsciência. É desprendeu do continente possível que o conhecimento venha a ser usado para avaliar nos últimos 2 milhões de pessoas com problemas de cognição causados por distúrbios anos. “Agora sabemos que como esquizofrenia e Alzheimer. Mas Couchman alerta que é fluidos de partes mais preciso aprofundar os estudos. profundas do sistema das
Oshima-Mura, no Japão, depois do tsunami
Policiais no divã
A física da pintura
De gaiato no navio As embarcações que atravessam os oceanos transportando passageiros e produtos também levam, sem intenção, uma carga nociva ao ambiente que as torna os principais vetores das invasões biológicas. Incrustados no casco ou presos na água dos porões dos navios, caranguejos, corais, mexilhões, águas-vivas e camarões são levados de seus Orest Shvadchak / Creative Commons
Após os ataques de 2006 feitos pela organização criminosa PCC à Polícia Militar do Estado de São Paulo, alguns policiais desenvolveram transtorno de estresse pós-traumático, enquanto outros permaneceram livres dos sintomas desse distúrbio emocional que causa lembranças intensas da situação de perigo enfrentada, estado de alerta constante e incapacidade de agir. O psicólogo Julio Peres, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), coordenou estudos que comprovaram a eficácia da psicoterapia para tratar esses casos. Usando a ressonância magnética funcional, ele comparou a atividade de áreas cerebrais ligadas à resiliência, capacidade de superar problemas e obstáculos, em 36 policiais separados em três grupos: o dos que tinham feito psicoterapia; o dos que aguardavam para fazer; e o dos chamados resilientes, que não desenvolveram estresse pós-traumático. Após a psicoterapia, as áreas ligadas à resiliência estavam tão ativas nos policiais que receberam tratamento quanto naqueles que não desenvolveram estresse pós-traumático (Journal of Psychiatric Research, junho de 2011). A equipe concluiu que, quanto antes se iniciar o atendimento psicológico especializado, menor o risco de o transtorno se tornar crônico.
Phyllorhiza punctata, espécie invasora
As obras do pintor norte-americano Jackson Pollock (1912-1956) podem parecer um emaranhado aleatório de pingos e riscos. Mas há muita física e matemática por trás delas. Um pouco dessa influência, provavelmente involuntária, foi desvendada por uma equipe multidisciplinar nos Estados Unidos: o matemático Lakshminarayanan Mahadevan, da Universidade Harvard, o historiador da arte Claude Cernuschi e o físico Andrzej Herczyński, estes do Boston College (Physics Today). Para fazer as voltas miúdas do quadro acima, por exemplo, Pollock precisou segurar o pincel ou a espátula muito acima da tela estendida no chão e soltar um fio de tinta que ficava cada vez mais fino e escorria mais rápido à medida que descia. Mexendo a mão bem devagar, formava aros em vez de ondas com o fio de tinta – um efeito da dinâmica de fluidos. É improvável que o pintor tenha feito cálculos. Ele deve ter aprendido por experiência. Mas as propriedades físicas da tinta e as forças que agem nos fluidos parecem ter ajudado a compor as obras e, hoje, permitem recriar os movimentos do pintor.
ecossistemas originais para ambientes estranhos, onde podem causar a extinção das espécies locais e alterar o funcionamento ecológico da região. Eder Carvalho da Silva e Francisco Barros, pesquisadores da Universidade Federal da Bahia, compilaram os dados de trabalhos produzidos nas últimas três décadas no Brasil sobre a presença de organismos aquáticos invasores. Eles identificaram um total de 41 espécies exóticas (34 marinhas e 7 de água doce) apenas de bentos, animais que vivem próximo ao fundo de rios
e mares. A maioria delas é proveniente do continente asiático. Há espécies invasoras em 24 estados brasileiros (Oecologia Australis, junho de 2011). Uns poucos estados, no entanto, concentram a maior parte delas. São justamente aqueles que abrigam os principais portos do país. Em São Paulo e no Rio de Janeiro já foram encontradas, respectivamente, 22 e 23 espécies exóticas. As espécies com mais ampla distribuição no Brasil são o molusco Melanoides tuberculatus e o siri Charybdis hellerii. Quatro das espécies de água doce estão no Mato Grosso.
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[ Imunologia ]
alergias perturbam o humor Mais do que simples irritação, sensibilidade exacerbada a alimentos provoca ansiedade
Ricard o Zorzet to ilustração Eduard o Sancinet ti
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a manhã de 5 de julho passado, uma terça-feira, Aline olhou para a mãe em busca de apoio para enfrentar um medo antigo. Aos 11 anos, era a segunda vez na vida que experimentava leite de vaca. Da primeira, ela não se lembra, porque só tinha 3 meses de idade. Mas sua mãe não tem boas recordações. Quinze minutos depois de tomar uma mamadeira, adicionada às mamadas ao peito para ajudar a ganhar peso, Aline começou a passar mal. Manchas vermelhas brotaram na pele, o peito passou a chiar e o corpo amoleceu. Só no hospital Roselaine Aragão descobriu que Aline tinha alergia a leite. Por recomendação médica, as mamadeiras foram eliminadas, mas o pediatra não avisou que a lista de produtos proibidos incluía, além do leite, seus derivados. Três meses mais tarde Aline teve outra crise alérgica depois de duas ou três colheradas de um alimento infantil que, a mãe não sabia, também levava leite de vaca. De lá para cá, só aumentaram as restrições. Biscoito não pode, chocolate não pode e sorvete também não. Pizza, só sem queijo. E até com o sabonete e os medicamentos é preciso tomar cuidado porque podem conter leite. Roselaine passou a ler bulas de remédios e rótulos dos alimentos e a preparar comida sem nenhum tipo de laticínio. Na casa, nem o gato bebia leite, porque imediatamente Aline começava a se coçar. “Se alguém comia pizza ou abria uma caixa de leite por perto, eu logo ficava com medo. Pensava: ‘Vou passar mal’”, conta
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Ciência
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Sistema de defesa em ação Os disparadores
O mecanismo
Linfócitos B, ao detectar proteínas estranhas ao corpo, fabricam anticorpos que aderem aos mastócitos
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Proteínas do ovo e do leite e derivados são as causas mais comuns de alergia alimentar entre crianças
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Alergias a castanhas, peixes e frutos do mar atingem mais os adultos e podem durar a vida toda
Mastócitos, num segundo contato com as proteínas forasteiras, liberam histamina e compostos que agem localmente e no cérebro
a garota, que mora em Mairinque, a 70 quilômetros de São Paulo, e desde junho viaja com a mãe às terças-feiras até a capital para um tratamento que promete mudar sua vida.
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o Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), Aline e um grupo restrito de pessoas – cerca de três a cada mês – passam por uma terapia chamada dessensibilização, que tenta domar a resposta disparada pelo sistema de defesa contra componentes dos alimentos. Como em outras alergias, o sistema imune de quem tem hipersensibilidade a algum alimento costuma reagir de modo exagerado, provocando sinais que vão de uma incômoda coceira na pele ou um ruidoso ataque de espirros a dores abdominais. Mais raramente pode haver queda brusca da pressão arterial, provocando desmaios e tontura; estreitamento das vias aéreas, que torna difícil a respiração; e, em casos extremos, o chamado choque anafilático, que pode fatal se não socorrido a tempo. Durante o tratamento, feito sob os cuidados dos alergistas Fábio Morato Castro e Ariana Campos Yang, do Hospital das Clínicas, adultos e crianças
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Os efeitos
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O coração acelera ao mesmo tempo que os vasos sanguíneos relaxam e a pressão cai
As vias aéreas tornam-se mais estreitas e dificultam a passagem de ar Os intestinos produzem mais muco e se contraem a fim de eliminar os alérgenos
como Aline são expostas ao longo de semanas justamente ao alimento que lhes causa alergia, reação exacerbada do sistema imune, que, mostram estudos de pesquisadores de São Paulo e Minas Gerais, ativa áreas cerebrais relacionadas à ansiedade e provoca uma inflamação leve no tecido adiposo. Há tempos, aliás, se sabe que a alergia aos alimentos consiste em um elaborado mecanismo natural de limpeza que mobiliza os sistemas circulatório, gastrointestinal e respiratório. Mas só recentemente, a partir de estudos com animais, surgiram evidências de que o sistema nervoso central e o endócrino também participam. Foi o grupo do imunologista Nelson Monteiro Vaz, da Universidade Federal de Minas Gerais, que nos anos 1990 obteve os primeiros indícios de que o cérebro é afetado pelas reações alérgicas e, por sua vez, as influencia. Sob a orientação de Vaz, a imunopatologista Denise Carmona Cara desenvolveu um modelo experimental em que camundongos eram expostos repetidas vezes a alérgenos de alimentos, como ocorre com quem tem alergia, e observou que as crises alérgicas afetavam o comportamento dos bichos.
Depois de tornar camundongos sensíveis ao ovo, ela os colocou em uma gaiola com dois tipos de bebida disponíveis: água pura ou água açucarada contendo ovoalbumina (proteína causadora de alergia). Como todo roedor, os camundongos sem alergia preferiram a água adoçada. Os alérgicos até experimentaram das duas garrafas, mas depois dos primeiros sinais da alergia deixaram de lado a bebida doce e passaram a tomar água pura. Era um sinal de que, de algum modo, a atividade do sistema imune estava influenciando o comportamento dos animais – e os levando a evitar o que não fazia bem. Denise conseguiu ainda induzir o mesmo comportamento em animais saudáveis ao injetar-lhes soro de camundongos com alergia.
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nos mais tarde, em uma série de testes comportamentais com camundongos sensibilizados pela estratégia de Denise, o neuroimunologista Alexandre Basso, então membro da equipe de João Palermo Neto na Faculdade de Medicina Veterinária da USP, demonstrou que os camundongos alérgicos eram mais ansiosos do que os sem alergia. Analisando o cérebro dos roedores, Basso notou que a exposição à ovoalbumina havia ativado duas áreas cerebrais – o hipotálamo e a amígdala – associadas ao medo e à aversão. O que ele viu no sistema nervoso permitia explicar, ao menos em parte, os resultados de estudos populacionais feitos anos antes. Esses trabalhos, realizados em outros países, sugeriam que as pessoas com alergia a alimentos eram mais ansiosas e deprimidas do que as não alérgicas. Mas essa conexão estava incompleta.
Outros testes, feitos mais recentemente em parceria com o grupo de Momtchilo Russo, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, comprovaram que a ativação do hipotálamo e da amígdala era mediada por anticorpos. Esses componentes do sistema imune, ao acionar um tipo de célula (mastócito) localizado junto aos nervos, faziam chegar ao cérebro informações sobre a defesa do organismo. “Demonstramos que essa alteração no comportamento é uma resposta fisiológica que permite ao animal reagir rapidamente aos primeiros sinais da alergia e a evitar o alimento que faz mal”, explica Russo. Uma vez acionado, o cérebro envia ordens para os sistemas circulatório, gastrointestinal, respiratório e imunológico controlarem as reações alérgicas. “É uma reação integrada”, completa. O cérebro, porém, é facilmente enganado. Animais alérgicos são capazes de se empanturrar com ovoalbumina, desde que oferecida de forma agradável ao paladar – para os camundongos, isso significa muito açúcar. Luciana Mirotti, da equipe de Russo, adoçou mais a água contendo ovoalbumina e observou que os roedores consumiram em 24 horas uma quantidade de alérgeno equivalente ao próprio peso. “O açúcar deve acionar no sistema nervoso um mecanismo de recompensa que permite ao animal suportar o desconforto da alergia”, diz Luciana. Esse comportamento antinatural ajuda a entender por que, às vezes, os seres humanos continuam a consumir um alimento que faz mal, mesmo que o organismo envie sinais para evitá-lo. Quase duas décadas depois de perceber as alterações de comportamento induzidas pela alergia, Denise, agora
com sua aluna Luana Dourado, identificou um novo fenômeno. Em trabalho publicado este ano na Cellular Immunology, elas demonstraram que a exposição prolongada aos alérgenos dos alimentos causa uma inflamação leve no tecido adiposo, semelhante à que ocorre na obesidade. “Ainda não sabemos se essa inflamação é passageira”, conta Denise. “Se desaparecer logo, ela pode ajudar o corpo a se livrar do que causa a alergia. Mas, se persistir, pode alterar o metabolismo das gorduras”. Alto risco - Ante a falta de um tratamento que cure a alergia – os medicamentos controlam os sintomas –, a solução para os casos graves é a dessensibilização. Essa medida força o organismo a se adaptar aos poucos a compostos, em geral proteínas, que ele inicialmente reconhece como estranhos ao corpo e potencialmente nocivos, ainda que se encontrem nos alimentos. Quando ela dá certo – e tem funcionado em quase todos os casos atendidos no Hospital das Clínicas –, o corpo deixa de combater esses compostos e
a pessoa passa a conviver em paz com porções moderadas do alimento. O procedimento, porém, é arriscado e exige acompanhamento médico. “Só fazemos nos casos em que o risco de a pessoa entrar em contato por acidente com o alimento e morrer supera o de sofrer uma reação alérgica grave durante o tratamento”, afirma Ariana, coordenadora do Ambulatório de Alergia Alimentar da USP onde o tratamento é feito de modo experimental, embora já seja oferecido em clínicas nos Estados Unidos, na Europa e no Brasil. Por essa razão, antes de começar a terapia, que dura de dois a três meses, os médicos investigam por meio de testes na pele e exames de sangue a concentração máxima de determinado alimento – os mais comuns são leite, ovo, trigo e soja – com a qual o organismo pode ter contato sem desencadear uma reação alérgica. E a diluem mais. As doses diárias da solução só começam a ser ingeridas depois de tomado um medicamento antialérgico, que reduz ainda mais o risco de o sistema imune reagir. PESQUISA FAPESP 186
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Aline iniciou sua dessensibilização em junho, bebendo gotas de leite com água que chegavam a ser transparentes de tão diluídas, e um mês depois já tomava leite puro. Bem pouco, é verdade: só duas gotas (0,1 mililitro), que a mãe lhe pingava na boca de hora em hora com uma seringa. À medida que aumenta a tolerância do corpo ao composto alergênico, as doses se tornam mais concentradas até que no final da dessensibilização, o chamado Dia D, seja possível consumir uma porção média do alimento. A meta de Aline é em dois meses tomar 150 mililitros de leite (quase um copo) por dia, sem passar mal, e levar uma vida menos apreensiva. Daí em diante, porém, terá de consumir leite regularmente para prevenir o retorno da alergia. “Hoje ela já não sente medo quando vou preparar o leite, nem tem mais receio das crianças que correm com o copo de leite na mão durante o recreio”, conta Roselaine. Mais comum entre crianças, a alergia aos alimentos atinge uma parcela da população adulta maior do que se imaginava. Os dados são escassos, mas levantamentos feitos nos Estados Unidos e na Europa sugerem que o mundo está se tornando mais alérgico. Em pouco mais de uma década a proporção de adultos com alergia alimentar passou de 1% a 2% para os 4% atuais. Entre as crianças, mais propensas às alergias, a taxa varia de 8% a 11% – as formas mais comuns de alergia, as respiratórias, afetam 30% da população. Estudo com 38,4 mil crianças norte-americanas publicado em julho na revista Pediatrics mostrou que 8% delas tinham alergia a algum alimento e que, entre as alérgicas, 39% já haviam experimentado reações graves. Embora as crianças sejam as vítimas mais frequentes, são os pais que se queixam de piora na qualidade de vida. Na Inglaterra, pesquisadores da Universidade de Nottingham e da Universidade de Derby compararam a qualidade de vida de famílias que tinham crianças com alergia alimentar severa com a de famílias com filhos sem alergia. Avaliada por meio de questionários, a qualidade de vida das crianças dos dois grupos foi praticamente a mesma. Mas as restrições impostas aos filhos alérgicos afetaram o dia a dia dos pais, em especial nas relações sociais, de acordo com o 44
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O Projeto Instituto de Investigação em Imunologia – no 2008/57881 modalidade
Projeto Temático/INCT Coordenador
Jorge Kalil - FM/USP investimento
R$ 2.909.938,18 (FAPESP) R$ 3.554.319,49 (CNPq)
trabalho, a ser publicado na Appetite. “Os pais dessas crianças vivem com a sensação iminente de que podem perder o controle sobre a saúde do filho”, conta Ariana. “E o receio aumenta quando elas começam a frequentar a escola, pois a capacidade de recusar um alimento passa a depender da maturidade delas.” Uma das dificuldades em lidar com a alergia alimentar, afirmam os especialistas, é a imprevisibilidade. Ainda que na maioria das vezes as reações não causem problemas mais sérios que o desconforto passageiro, o grau de sensibilidade pode variar muito, e de modo que nem sempre pode ser antecipado por exames de sangue ou testes de reatividade na pele. É que a sensibilidade depende de três fatores: as características do sistema de defesa do indivíduo; as propriedades do alérgeno; e a frequência e a via de exposição a ele. Esses fatores variam muito e de modo independente, razão pela qual nem sempre quem produz número elevado de anticorpos contra o alérgeno de um alimento vai apresentar as rea-
ções clínicas mais graves ao consumi-lo. Pelo mesmo motivo, um histórico de reações alérgicas leves (manchas na pele e coceira) não garante que algo mais grave não possa acontecer. Anos atrás Richard Pumphrey, da Enfermaria Real Britânica, rastreou os óbitos por alergia alimentar no Reino Unido de 1999 a 2006 e constatou que mais da metade das pessoas que morreram após comer o alimento a que eram alérgicas jamais haviam apresentado reações graves antes. Talvez por isso, sugere Pumphrey, seus médicos não tenham recomendado que carregassem um aplicador de adrenalina. “Como não se sabe de antemão a intensidade da reação de cada um, tratamos todos como se fossem casos graves”, diz Ariana.
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penas oito alimentos respondem por quase 90% dos casos de alergia. No topo da lista está o leite de vaca, seguido de peixes, frutos do mar, ovo, amendoim, castanhas, trigo e soja. Calcula-se que 2,5% das crianças sejam alérgicas a leite e 1% a ovo, problemas que costumam desaparecer naturalmente até os 5 anos de idade. Já as alergias a camarões, mariscos, sardinhas, amendoim, nozes e outras castanhas aparecem mais tarde e, em muitos casos, duram toda a vida. E já se começa a falar no aumento das alergias a alimentos que pareciam inofensivos: cenoura, salsão, pêssego, maçã, pera e kiwi. O caso mais surpreendente e insuspeito talvez seja o da alergia à mandioca, que, frita ou cozida, é fonte de carboidratos para 800 milhões de pessoas na América do Sul, na África e na Ásia. Domesticada há milhares de anos possivelmente por nativos sul-americanos, a mandioca entra na composição de vários alimentos industrializados por não deixar cheiro nem sabor marcantes e, até pouco tempo atrás, ser considerada pouco alergênica. Essa história, porém, terá de ser revista. Em 2004 a equipe de Castro descreveu dois casos brasileiros de alergia à mandioca, que estão entre os primeiros identificados no mundo. No Ambulatório de Alergia Ocupacional do Hospital das Clínicas, o médico Clóvis Galvão atendeu, em pouco mais de um mês, duas mulheres com sensibilidade ao látex que se queixavam de ter desenvolvido uma crise alérgica depois de
Alérgenos de alimentos ativam no cérebro as áreas ligadas ao medo, o que pode explicar o fato de os alérgicos serem mais ansiosos
comer mandioca. Galvão levou os casos a Castro, coordenador do grupo de alergia do Instituto de Investigação em Imunologia, chefiado pelo imunologista Jorge Kalil, para, juntos, iniciarem uma investigação mais detalhada. Testes imunológicos confirmaram que o organismo de quem tinha alergia ao látex, comum entre médicos, enfermeiras e funcionários do setor de limpeza, produzia anticorpos capazes de reconhecer os alérgenos da mandioca. Era um exemplo de alergia cruzada, mas faltava identificar quantos e quais eram esses alérgenos. Usando anticorpos encontrados no sangue das primeiras pacientes e de outros nove casos registrados desde então, a imunologista Keity Santos identificou cinco proteínas capazes de provocar alergia, e isolou e caracterizou uma delas. Em uma temporada no Laboratório de Diagnóstico e Tratamento de Alergia da Universidade de Salzburgo, Áustria, coordenado pela brasileira Fátima Ferreira, ela sintetizou essa proteína e demonstrou, em testes in vitro, que era inativada por anticorpos produzidos contra as proteínas do látex. Essa proteína – a Man e 5, sigla formada a partir do nome científico da mandioca (Manihot esculenta) – tem estrutura próxima à de um dos 14 alérgenos do látex, produzido a partir da seiva da seringueira, descrevem os pesquisadores em artigo a ser publicado no Journal of Allergy and Clinical Immunology. “Agora que sabemos que
essas proteínas da mandioca causam alergia, Keity pode tentar desenvolver uma forma de detectá-las ou destruí-las, permitindo a produção de amido livre de alérgenos”, diz Fátima, que nos últimos anos descreveu reações alérgicas a maçã, noz, avelã, salsão e cenoura em pessoas sensíveis ao pólen da bétula, árvore comum na Europa.
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uas hipóteses tentam explicar o aumento das alergias alimentares. A primeira é a facilidade do acesso a alimentos exóticos. Nunca foi tão fácil nem tão rápido viajar de um ponto a outro do planeta, o que certamente contribuiu para a internacionalização de dietas antes restritas a poucas regiões. O intervalo em que aconteceram essas mudanças, porém, pode não ter sido suficiente para o organismo humano, habituado a consumir uma variedade restrita de alimentos por centenas a milhares de anos, se adaptar aos novos alérgenos. A segunda hipótese propõe que por trás dessa hipersensibilidade estariam algumas formas de interferência do ser humano sobre seu próprio corpo – mais especificamente sobre a digestão. A principal porta de contato humano com o mundo exterior não é a pele, como muitos podem pensar, mas os intestinos. Se fosse descolada do corpo e aberta sobre uma superfície plana, a pele cobriria meros dois metros quadrados, enquanto os intestinos ocupariam uma área 200 vezes maior, com as dimensões de mais ou menos duas quadras de tênis. É em boa PESQUISA FAPESP 186
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Antiácidos mais potentes afetam a digestão de proteínas e aumentam risco de resposta alérgica
medida pelos intestinos que os elementos estranhos ao organismo têm acesso ao corpo. Assim que atravessam a delicada membrana intestinal, os componentes dos alimentos e os agentes infecciosos encontram um exército de células do sistema imune aptas a reconhecer o que faz parte do organismo e pode ser incorporado e o que é estranho e deve ser eliminado. No percurso da boca ao sangue, os alimentos são triturados, amassados e recebem um banho de ácidos e sais digestivos, ao mesmo tempo que sofrem um ataque de enzimas. O que sobra tem um tamanho tão reduzido que na maioria das vezes escapa ao radar do sistema imunológico. As proteínas, que inicialmente podem conter 200 ou mais aminoácidos, são desmontadas em sequências de apenas meia dúzia. Mas, se algo não vai bem com a digestão, fragmentos maiores podem chegar ao sangue e chamar a atenção de um grupo especial de células de defesa que, por sua vez, mobiliza as células produtoras de toxinas e de anticorpos. Espetados na membrana dos mastócitos, células-chave nas reações alérgicas, os anticorpos funcionam como o gatilho de uma pistola pronta a disparar. Num segundo contato da proteína forasteira com os anticorpos, os mastócitos liberam compostos potentes (histamina, heparina, leucotrieno e outros) que fazem os vasos sanguíneos dilatar, a pressão arterial cair e a musculatura 46
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lisa das vias respiratórias se contrair. De quatro a seis horas mais tarde, células recrutadas do interior dos ossos chegam à região e iniciam um novo ataque, que ajuda a eliminar os agentes externos e reaviva os sintomas da alergia. Um estudo recém-concluído pelo grupo de Castro reforça a ideia de que, entre os adultos, o aumento das alergias alimentares esteja ligado à perda da capacidade de digerir proteínas, causada pelo uso disseminado de medicamentos da classe do omeprazol, chamados de inibidores da bomba de prótons.
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m Salzburgo, Keity submeteu as proteínas alergênicas da mandioca à digestão em uma solução com a acidez estomacal normal e em outra 100 vezes menos ácida, como a do estômago de quem usa esses medicamentos contra inflamações e úlceras gástricas. No primeiro caso, as enzimas digestivas quebraram as proteínas em pedaços pequenos o suficiente para serem absorvidos pelos intestinos e circularem no sangue sem ativar as células de defesa. Já na solução menos ácida a proteína não foi bem digerida e restaram fragmentos grandes o bastante para desencadear uma resposta alérgica. “A mandioca é consumida há milhares de anos e nunca se suspeitou de que causasse alergia”, diz Castro. “O que teria mudado recentemente?” A alteração mais perceptível apontada por al-
guns pesquisadores é a introdução dos inibidores da bomba de prótons no final dos anos 1980, hoje um dos medicamentos mais vendidos no mundo. Para testar se essa medida explicaria o surgimento da alergia à mandioca, o físico Hyun Mo Yang, da Universidade Estadual de Campinas, desenvolveu para Castro um modelo matemático que permite estimar quanto tempo levaria para aparecerem os primeiros casos em uma população usando o medicamento. O resultado? Cerca de 10 anos. “É quase o tempo que passou entre a introdução do omeprazol no Brasil e a identificação dos primeiros casos”, comenta Castro, que em 2008 criou o Grupo de Estudos de Novos Alérgenos Regionais para investigar proteínas alergênicas de plantas e insetos brasileiros. “Ainda não temos explicações claras para o que estamos observando na clínica”, diz Jorge Kalil, que, além do Instituto de Investigação em Imunologia, dirige o Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração e o Instituto Butantan. “A indução da alergia pode ser um efeito não previsto desse tipo de medicamento.” Se for confirmado para a mandioca, esse efeito talvez explique o que acontece com algumas das outras 475 proteínas alergênicas encontradas em alimentos, que, ao lado de quase outras mil, estão sendo catalogadas pela bioinformata Helen Arcuri na Allergennet, base de dados on-line que reúne informações sobre as características dessas proteínas, os sinais clínicos que provocam e os testes que as detectam. Enquanto não surgem novidades, a saída é manter distância dos alimentos que podem desencadear a alergia e, nos casos indicados, tentar a dessensibilização, como Aline. Ela, aliás, já fez uma lista do que quer provar no dia em que estiver liberada para consumir leite. Biscoito, bolo, brigadeiro, sorvete e pizza. n Desta vez, com muito queijo. Artigos científicos 1. SANTOS, K.S. et al. Allergic reactions to manioc (Manihot esculenta Crantz): Identification of novel allergens with potential involvement in latex-fruit syndrome. Journal of Allergy and Clinical Immunology. No prelo. 2. MIROTTI, L. et al. Neural pathways in allergic inflammation. Journal of Allergy. 9 fev. 2011.
[ saúde pública ]
Antes da guerra com os mosquitos Contexto da viagem determina se é preciso tomar remédio contra malária Carlos Fioravanti
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uem vai à Amazônia teme voltar com malária. Como não há vacina, uma das formas de se prevenir é tomar medicamentos que evitam os danos dos protozoários causadores da doença no organismo. Os efeitos colaterais dos medicamentos preventivos, porém, podem ser intensos – um deles é ampliar a sensibilidade à luz e facilitar a ocorrência de queimaduras de pele por causa da exposição ao sol. Usar ou não medicamentos preventivos, de modo que os benefícios superem os inconvenientes, depende de variáveis como o lugar para onde o viajante vai, o tempo de permanência, a estação do ano em que viajará e a proximidade dos postos de atendimento médico, de acordo com trabalhos recentes de um grupo de pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) que delimitou os riscos de se contrair malária no Brasil, na África e em três países asiáticos, Tailândia, Indonésia e Índia. No mundo todo, a cada ano, a malária é diagnosticada pela primeira vez em 200 milhões de pessoas, das quais 100 milhões vivem na África e, desses 100 milhões, 1 milhão são crianças. No Brasil, cerca de 300 mil pessoas têm malária por ano, bem menos que os 6 milhões de
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casos registrados por ano no início da década de 1940. O risco de ser picado pelos mosquitos do gênero Anopheles, transmissores da malária, é mínimo no inverno amazônico, que corresponde à época das chuvas, de dezembro a fevereiro. Cresce no outono e atinge o máximo no verão amazônico, que corresponde à época da seca, que tem seu pico entre julho e agosto. “O verão é a pior época para chegar, porque os mosquitos transmissores estão na atividade máxima”, diz Eduardo Massad, um dos coordenadores do grupo de pesquisa que delimitou os riscos de contágio considerando não só o clima, mas também a velocidade com que o Anopheles pode se reproduzir, infectar-se ou infectar as pessoas. Em um trabalho publicado na Malaria Journal em 2009, Massad, Marcelo Buratini e Francisco Antonio Bezerra Coutinho, da USP, Ronald Behrens, da London School
Luta antiga: agentes sanitários se protegem com véu de tule e jogam petróleo em lagoas para evitar o Anopheles
Edmond Sergent, La lutte contre les moustiques: une campagne antipaludique en Algérie, 1903
of Hygiene and Tropical Diseases, afirmam que o risco de um viajante que circule pela Amazônia no verão contrair malária é pelo menos 10 vezes maior do que se viajasse no inverno. O destino e o tempo de permanência também pesam. “Quem vai a um resort no rio Negro, uma região de águas escuras onde quase não tem malária, para passar três dias, não precisa tomar medicamentos profiláticos”, diz o médico Jessé Reis Alves, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas. “Dependendo do objetivo e das circunstancias da viagem, o risco pode variar até em um mesmo lugar”, observa o médico infectologista Marcos Boulos, professor da Faculdade de Medicina da USP. “Quem vai de mochila para acampar ao ar livre tem muito mais risco de pegar malária do que quem fica em um hotel cinco estrelas.” As medidas de prevenção começam pela tomada de consciência do risco de
contrair a doença na região para onde se está indo. “Muitas pessoas viajam para áreas de alto risco de malária sem saber”, diz Alves. É importante também conhecer os sintomas iniciais – febre, dores pelo corpo, vômitos, diarreias, perda de apetite, tontura e cansaço. O tratamento é simples e eficaz, desde que o diagnóstico correto seja feito logo após o surgimento dos primeiros sintomas, evitando os danos no fígado, nos pulmões e no cérebro que acompanham os quadros mais graves. É bom conhecer os hábitos básicos do Anopheles darlingi, o mosquito transmissor da malária no Brasil, que sai dos esconderijos ao anoitecer e ao amanhecer para se alimentar. Mas nem sempre é assim. Na África, o Anopheles gambiae, outro transmissor, ataca também durante o dia. Mais diferenças: no Brasil, nem todos A. darlingi estão infectados com o agente causa-
dor da doença, que aqui é geralmente o Plasmodium vivax, responsável por uma forma menos grave da doença. No Brasil a malária é essencialmente rural e raramente aparece em cidades. Por fim, há uma rede de atendimento médico, com cerca de 3 mil postos de diagnóstico e tratamento na Amazônia. Na África, o A. gambiae apresenta um alto grau de infestação – portanto, maior risco de transmissão – em geral com o Plasmodium falciparum, que causa uma forma mais grave e por vezes fatal de malária. Lá a doença ocorre em ambientes rurais e urbanos e os postos de atendimento médico são raros. Outra medida preventiva é aplicar repelentes sobre a pele e usar camisas e calças compridas, principalmente nos horários ou nos lugares em que os mosquitos são mais frequentes, já que o risco de contrair malária aumenta de acordo com o número de picadas PESQUISA FAPESP 186
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Viajantes, atenção Risco de contrair malária na Amazônia é maior no outono para estadas curtas e no verão para as longas Probabilidade (%) 100
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de mosquitos com Plasmodium. Os médicos recomendam que os viajan tes, quando estiverem em lugares onde a malária é comum, coloquem mosquiteiros ou telas sobre as redes ou camas antes de dormir, de preferência em lugares cobertos. “O risco de pegar malária cai até 80% quando se faz corretamente a proteção contra as picadas do mosquito”, diz Alves. Como alternativa, quem não quiser começar a tomar medicamentos antes da viagem pode levar os antimaláricos quando for a uma região de alto risco e usá-los caso tenha febre, mesmo sem fazer exame de sangue que confirme a doença. Os médicos dizem que a medicação deve complementar essas medidas preventivas e não ser adotada isoladamente, por causa dos efeitos colaterais indesejados. Além de ampliar a sensibilidade à luz solar, a cloroquina, o antimalárico mais usado atualmente no Brasil, pode causar enjoos. A mefloquina, apesar de eficiente, deixou de ser usada oficialmente por eventualmente ampliar o risco de distúrbios psiquiátricos e a tendência ao suicídio. Boulos conta de um executivo alemão que trabalhava em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, e tomou cloroquina durante três anos para se prevenir, mesmo sem necessidade; 50
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Ao voltar, caso tenha febre alta, fale para o médico que viajou, enfatiza Alves
não pegou malária, mas ficou cego, por causa do uso exagerado do remédio. Outro inconveniente é que, para funcionar adequadamente, o tratamento com esses medicamentos precisa começar uma a duas semanas antes da chegada à área de risco, prosseguir enquanto o viajante estiver lá e só terminar quatro semanas após a volta. Uma viagem de duas semanas, portanto, implica tomar remédio durante nove semanas. Além disso, os antimaláricos funcionam melhor contra o Plasmodium
falciparum, menos frequente no Brasil que o P. vivax. Por fim, há ainda o risco de o Plasmodium – principalmente o falciparum – se tornar resistente aos medicamentos. Nesse caso, um viajante prevenido, que tomou antimalárico, pode sentir febre e cansaço extremo, sinais típicos da malária, mas pensar que esses sintomas não são dessa doença, quando na verdade o remédio que tomou é que não está funcionando para combater Plasmodium resistentes à medicação. Em novembro de 2010, dois viajantes – um vindo da Nigéria e outro da Costa do Marfim – morreram de malária em São Paulo depois de passarem por hospitais cujos médicos não souberam identificar a doença. “Ao voltar, caso tenha febre alta, o viajante deve falar para o médico que viajou e insistir para fazer o teste contra malária”, enfatiza Alves. Às vezes, não ocorre aos médicos que a febre e o mal-estar podem ser sintomas de malária, porque, se vivem nas capitais do Sudeste ou Sul do país, provavelmente nunca a diagnosticaram. “A responsabilidade da prevenção cabe ao serviço de saúde, aos próprios viajantes e às empresas, quando enviam os funcionários para áreas de alto risco”, diz Alves. Segundo ele, quem vai trabalhar em um país da África como Angola, onde a
Fonte: Eduardo Massad, Ronald Behrens, Marcelo Burattini e Francisco Coutinho/ FM-USP
Tempo na área (dias)
Museu da saúde Emílio Ribas / Reprodução eduardo cesar
Cartaz de 1953: campanha nacional
malária é endêmica, deveria adotar todas as medidas de precaução possíveis. “Um período de permanência de 15 dias na África já justifica o uso de medidas preventivas, incluindo medicação”, diz Massad. Graduado em física e em medicina, ele esteve à frente do estudo que comparou o risco de contrair malária na África, no Brasil e em três países asiáticos, Tailândia, Indonésia e Índia. A África emergiu como região de alto risco, o Brasil – e mesmo a Amazônia – como risco médio, em princípio dispensando o uso de medicação no caso de estadas breve, já que estatisticamente surgem dois casos de malária em cada mil viagens para o norte do Brasil, e os três outros países como risco baixo. Em um trabalho aceito para publicação no Malaria Journal, Massad, Behrens e Coutinho fazem uma análise de custos e de benefícios para adotar medidas de prevenção contra malária em larga escala para quem viaja para países ou regiões em que a doença é comum. A conclusão pode soar desconfortável, mas Massad lembra que a análise de custos é fria. “Do ponto de vista de saúde pública”, diz ele, “é mais barato tratar quem pegar malária do que evitar que todo viajante pegue a doença”.
A abordagem brasileira é evitar o uso de medicação, a não ser que algo realmente a justifique. “Faço trabalho de campo na Amazônia desde 1974, nunca tomei medicamentos profiláticos e nunca peguei malária”, afirma Boulos. “O mais importante é ter consciência do risco.” Nem sempre, porém, Alves e os outros médicos do ambulatório dos viajantes do Emílio Ribas conseguem explicar rapidamente a um turista estrangeiro que não precisa se preocupar com malária apenas porque está indo ao Rio de Janeiro. Um debate em Miami - Enganos desse
tipo são comuns. Um mapa do livro CDC health information for international travel, recém-publicado pela Universidade de Oxford, indica que toda a América do Sul é de alto risco de malária, quando na verdade a doença está restrita a algumas áreas da Amazônia. “Normalmente os europeus entendem rapidamente que o risco é diferente, mesmo na Amazônia, mas os norte-americanos não abdicam da medicação preventiva”, diz Alves. Em um congresso sobre infectologia realizado em março de 2010 em Miami, nos Estados Unidos, Boulos participou de uma mesa-redonda sobre prevenção de malária por meio de medicamentos
e argumentou que o repelente e outras medidas é que deveriam ser priorizados. Ao seu lado estava Paul Arguin, do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), defendendo a posição oficial dos médicos dos Estados Unidos, que temem que os viajantes voltem com malária e morram ou espalhem a doença porque não conseguiram fazer o diagnóstico correto. “Não há por que usar medicamentos contra malária onde não há malária”, Boulos argumentou. “O risco de pegar malária em São Paulo é o mesmo que em Nova York.” O debate terminou sem que as visões mudassem. Vírus e bactérias podem se propagar rapidamente, principalmente entre pessoas que nunca tiveram contato com os microrganismos. Há poucos meses, duas pessoas em São Paulo e outra no Rio de Janeiro foram diagnosticadas com o vírus chikungunya, comum em vários países da África e da Ásia – o mosquito transmissor é o Aedes, o mesmo da dengue. “Novas doenças podem aparecer e se espalhar rapidamente, porque as pessoas nunca tiveram contato com os agentes que as causam e não desenvolveram defesas contra eles”, diz Boulos. Por essa razão é que ele prevê “uma grande epidemia” de dengue tipo 4 no próximo verão, principalmente nas cidades onde os outros tipos do vírus da dengue já contaminaram as pessoas. “Do ponto de vista teórico, matar os mosquitos transmissores, principalmente durante os surtos, é a medida mais eficiente de deter a dengue”, diz Massad. “As campanhas públicas enfatizam a destruição de criadores de mosquitos em águas paradas, mas desse modo o poder público se exime de responsabilidade de matar mosquito.” Para ele, a política de controle da dengue deveria n combinar todas as estratégias. Artigos científicos 1. MASSAD, E. et al. Modeling the risk of malaria for travelers to areas with stable malaria transmission. Malaria Journal. v. 8, n. 296. 2009. 2. MASSAD, E. et al. Cost risk benefit analysis to support chemoprophylaxis policy for travellers to malaria endemic countries. Malaria Journal. v. 10, n. 130. 2011. PESQUISA FAPESP 186
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Corredores nas lavouras Orientação das fileiras de cultivo pode ajudar locomoção de pequenos mamíferos Maria Guimarães
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s plantas ordenadas em fileiras, formando um campo listrado, destoam em tudo das ilhas de floresta que despontam aqui e ali na paisagem, em geral acompanhando os morros. É nessa paisagem, nos municípios fluminenses de Guapimirim e Cachoeiras de Macacu, que os biólogos Jayme Prevedello e Marcus Vinícius Vieira, do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), avaliaram a movimentação de pequenos mamíferos em meio a plantações de mandioca. Eles descobriram que as fileiras de cultivo funcionam como corredores que facilitam a movimentação dos animais, conforme mostram em artigo na revista Biological Conservation. Para avaliar a capacidade das plantações como conectores dos pequenos remanescentes de floresta que ainda restam na região, os pesquisadores capturaram marsupiais típicos da mata atlântica – o gambá-de-orelha-preta Didelphis aurita e a cuíca-cinza Philander frenatus – e os soltaram em pontos desconhecidos pelos animais: a pelo menos um quilômetro de distância, em pleno mandiocal, em distâncias variadas de outro
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Arquivo LABVERT / UFRJ
Proposta para os agricultores: reunir ilhas
fragmento de floresta. Cada um deles levava, preso às costas, um novelo de fio de náilon que se desenrolava à medida que o animal avançava, deixando a rota registrada. Uma técnica simples e eficaz muito usada por biólogos, semelhante à que permitiu a Ariadne sair do labirinto na lenda grega do Minotauro. Vieira e Prevedello testaram, ao todo, 24 gambás e 37 cuícas, e nas duas espécies a maior parte dos animais tentou encontrar o caminho de casa andando ao longo dos corredores formados por fileiras de mandioca, em vez de cruzá-los em rotas perpendiculares à orientação da lavoura. “Eles só saíam das linhas de plantio quando estavam muito próximos de um fragmento de floresta, no máximo 50 metros. Mesmo assim, alguns ainda escolhiam os caminhos feitos pelos agricultores”, conta Vieira, coordenador do estudo.
fabio colombini
Isolados - Na área de estudo, esses
marsupiais raramente saem da mata, segundo mostra o grupo da UFRJ. Mais recentemente, os pesquisadores cariocas acompanharam alguns desses animais dentro dos fragmentos de floresta e viram que eles saem muito pouco. “A maioria só se aventura fora da cobertura do dossel quando descobrem uma árvore frutífera carregada, no pasto ou na plantação, bem perto do fragmento”, diz Vieira, “nesse caso eles vão até a árvore e voltam imediatamente para a mata, a não ser que haja outro fragmento próximo: vimos que 8-10% dos indivíduos avançam até o outro fragmento”. A partir dessas observações, ele e Prevedello defendem que as plantações impensadas acabam causando uma fratura entre as ilhas de floresta ainda mais drástica do que o inevitável. Conversando com agricultores, os ecólogos averiguaram que na maior parte das vezes não há uma justificativa forte
para a orientação das fileiras de mandioca, a não ser em terreno inclinado. Muitas vezes elas são dispostas com base em algum riacho que corta o terreno, alguma outra interrupção como uma cerca ou mesmo de forma quase aleatória. “Sentimos que, na maior parte dos casos, não haveria resistência a planejar o plantio de forma a melhorar a conexão entre os fragmentos de floresta”, afirma Vieira. Segundo o professor da UFRJ, ninguém até agora tinha olhado as plantações com esse enfoque. “Há na literatura internacional alguns relatos ocasionais de animais seguindo as linhas de plantio, mas sem que a movimentação fosse testada como fizemos.” Mesmo que os pequenos mamíferos relutem em sair da proteção do dossel de sua floresta, Vieira não acha impossível que as fileiras possam servir como trilhas que facilitam a migração entre um fragmento e outro de mata. “Em nosso estudo não tínhamos situações em que a linha de plantio chegasse até a mata”, conta, imaginando uma situação em que o corredor desimpedido se apresente aos animais logo na borda de seu hábitat natural. Vieira tem continuado os estudos para entender a relação dos habitantes da mata atlântica com as plantações que isolam os trechos de floresta e avaliar que impacto podem ter ideias simples. “Mudar a orientação das fileiras é uma solução sem custo que pode ter efeito”, avalia. Como não tem custo, ele considera que vale a pena mesmo que o efeito seja modesto. Terminado o projeto de Jayme Prevedello, Vieira tem agora outros estudantes dedicados a estudos na mesma região. O gambá e a cuíca são os mais comuns entre os pequenos mamíferos dessa área de estudo, mas os corredores formados pela mandioca também podem facilitar o trânsito de outros animais, como roedores e lagartos. n PESQUISA FAPESP 186
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especial // Ano Internacional da Química
Das moléculas aos organismos A riqueza da biodiversidade das florestas brasileiras também se revela nas substâncias Maria Guimarães Ilustração Laura Teixeira
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uando se fala em biodiversidade, uma das maiores riquezas do Brasil, o que vem à mente costuma ser plantas e animais, numa enorme variação de formas, cores, tamanhos e tipos. Quase ninguém se lembra das moléculas que, com uma diversidade igualmente espantosa, permeiam todo esse patrimônio natural. Entre os raros conscientes da importância da química estão os palestrantes do quarto encontro do ciclo de conferências organizado pela FAPESP e pela Sociedade Brasileira de Química, que celebra o Ano Internacional da Química. Vanderlan Bolzani, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara, Carlos Alfredo Joly e Anita Marsaioli, ambos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), encantaram no dia 19 de julho uma plateia composta em grande parte, apesar de ser período de férias, de alunos do Instituto Técnico de Barueri. A presença desses jovens cheios de interesse foi preciosa para os conferencistas, que não perderam a chance de apresentar a diversidade oculta e de indicar campos de trabalho e de pesquisa promissores.
“Um dos objetivos do Ano Internacional é promover a reflexão sobre a importância da química para a sustentabilidade”, comentou Dulce Siqueira Silva, da Unesp de Araraquara, coordenadora do dia. Um bom ponto de partida, retomado pelos três palestrantes. O botânico Carlos Alfredo Joly falou justamente de sustentabilidade. Ele é coordenador do Programa Biota, da FAPESP, que, nos primeiros 10 anos de atividades em inventários da biodiversidade dos ecossistemas paulistas, mostrou como o conhecimento científico pode ajudar na sua preservação (ver texto na página 30). E vem de fato contribuindo. Os mapas produzidos pelo Biota para indicar áreas para conservação e restauração no cerrado e na mata atlântica no estado de São Paulo (ver Pesquisa FAPESP nº 141), além das diretrizes publicadas em livro, acabaram ajudando a Secretaria do Meio Ambiente a aprimorar a legislação. Segundo o professor da Unicamp, até agora 19 instrumentos legais usam informações do Biota. “Isso raramente acontece”, disse Joly, “e o conhecimento que reunimos também foi usado para zonear áreas para o plantio de cana-de-açúcar no estado”. Mais do que isso, o exemplo deu origem a iniciativas semelhantes em outros estados e na escala federal, além de gerar parcerias na América Latina e na África. O Programa Biota tem continuidade garantida até 2020. Mesmo dando origem a produtos como os mapas, as listagens de espécies estão longe de ser o fim da história. Alguns projetos do Biota, como o coordenado pelo próprio Joly, buscam desvendar os ambientes terrestres, ainda muito pouco conhecidos. “Precisamos descrever os ciclos do carbono, da água, de nutrientes, entender como as mudanças climáticas afetam os ecossistemas e os serviços que eles oferecem”, alertou o botânico. Ele lembrou que o domínio da mata atlântica está ocupado pelas maiores capitais brasileiras, como Rio de Janeiro e São Paulo, e abriga cerca de 125 milhões de pessoas. “Só sobrou cerca de 10% dessa floresta, e é daí que vem a água para toda essa população.” Um exemplo dos problemas sérios causados pela redução da floresta é a situação do fornecimento de água para o estado do Rio de Janeiro, feito principalmente pela represa do Paraibuna, a 320 quilômetros da capital fluminense. “Já não tem água mais próxima”, afirmou. Para entender o funcionamento da mata atlântica, o grupo coordenado por Joly está estudando áreas num gradiente de altitude que vai desde o nível do mar, em Ubatuba, até mil metros de altitude, em São Luiz do Paraitinga. “Marcamos 21 mil árvores de 625 espécies”, relatou. Os resultados mostram que a mata atlântica é muito diferente da floresta amazônica na forma de armazenar carbono. Principalmente nas áreas mais altas, a 56
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"Precisamos utilizar a nossa diversidade química", diz Joly
floresta úmida típica da Região Sudeste armazena mais carbono do solo para baixo do que acima dele. Nessas zonas de montanha, muito da matéria orgânica que cai – como galhos e folhas – se decompõe lentamente, por causa do frio. “A gente anda num chão fofo, que na verdade não é solo, é turfa”, contou. Essas regiões são, por isso, muito suscetíveis aos processos de mudanças climáticas. Com o aquecimento global, essa matéria orgânica deve se decompor mais depressa e muito do carbono será liberado, agravando o efeito estufa. Aproximando-se da química, Joly disse que a riqueza nacional ainda é pouco aproveitada, inclusive por causa da legislação, que torna, em suas palavras, um martírio trabalhar nessa área. “Precisamos utilizar a diversidade química da nossa biodiversidade, inclusive como mecanismo de sustentabilidade”, afirmou. Um dos desafios que ele assumiu, ao aceitar o cargo de diretor do Departamento de Políticas e Programas Temáticos (DPPT) no Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), é flexibilizar as regras para pesquisa e desenvolvimento de novos produtos oriundos da biodiversidade. Uma iniciativa imprescindível para impulsionar a Rede Biota de Bioprospecção e Bioensaios, o BIOprospecTA, um subprograma do Biota dedicado a encontrar na natureza moléculas que possam ser úteis ao ser humano.
Diversidade molecular - A vertente química
do Biota foi inaugurada por Vanderlan Bolzani em 2003. “Foi o primeiro projeto de química de produtos naturais dentro de um programa de pesquisa em biodiversidade”, contou ela. Com seu orientador Otto Gottlieb, pioneiro da química de produtos naturais no Brasil, ela aprendeu que a diversidade das moléculas tem alto valor agregado – um valor científico que pode se tornar econômico. “Uma planta produz centenas de substâncias, e apenas uma delas pode ser mais importante que uma galáxia”, afirmou, parafraseando o mestre. Muitas das moléculas hoje usadas na indústria farmacêutica são sintéticas, como mostraram as conferências de junho (ver Pesquisa FAPESP nº 185), mas os químicos se inspiram na biodiversidade para produzir essas substâncias complexas. Por isso, para Vanderlan, é importante que esse laboratório natural seja mantido. Um exemplo é o caramujo Conus magus, que vive no mar Vermelho e no oceano Índico, e de cujo veneno foi obtida uma substância analgésica mil vezes mais potente que a morfina, aprovada para uso clínico nos Estados Unidos em 2004. “Duzentos anos depois da descoberta da morfina, a bioprospecção em ambientes marinhos deu origem a um medicamento ainda mais eficaz para o tratamento da dor crônica”, ressaltou a química da Unesp.
No Brasil, ela lamenta tantas oportunidades perdidas. “Temos um grande número de espécies de mirtáceas na nossa biodiversidade”, contou, referindo-se à família de plantas que em outros lugares do mundo já serviram como base para medicamentos. É o caso da bucha-de-garrafa (Callistemon citrinus), em que foi encontrada a substância nitisinona, que, com uma pequena modificação, deu origem ao tratamento para uma doença rara. “Se no Brasil tivéssemos o ambiente e a estrutura corretos, aproveitaríamos muito melhor as oportunidades que as plantas nos oferecem”, afirmou. Afinal, cerca de 55 mil espécies vegetais povoam os ecossistemas do país. Uma história de sucesso envolve a erva-baleeira (Cordia verbenacea), muito comum em toda a costa brasileira, que deu origem ao creme Acheflan, indicado para tendinites e dores musculares. Segundo Vanderlan, foi o primeiro anti-inflamatório completamente desenvolvido no Brasil, numa parceria entre universidades (Universidade Federal de Santa Catarina e Unicamp) e indústria (Laboratório Farmacêutico Aché). O medicamento é feito de substâncias que Vanderlan extraía em seus tempos de estudante, mas não tinha uso para elas. Com o avanço do conhecimento, o que antes era descartado hoje se tornou líder de vendas. PESQUISA FAPESP 186
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Carlos Alfredo Joly, Anita Marsaioli e Vanderlan Bolzani
"A natureza
não produz nada pensando na nossa saúde", diz Vanderlan
Muita pesquisa é necessária para atingir esse conhecimento: as substâncias não vêm com bulas destacando o uso indicado. Ao contrário, muitas vezes elas são tóxicas no estado natural. “A natureza produz essas moléculas para sua própria regulação; ela não produz absolutamente nada pensando na nossa saúde”, destacou. Os pesquisadores é que precisam estudar para adaptá-las. Natureza química – A diversidade do uso das substâncias pelos animais e plantas que as fabricam é o tema da química Anita Marsaioli, amarrando ainda mais a química à biodiversidade. “Não sei classificar plantas nem animais, sei classificar substâncias químicas”, contou. Por isso faz seus projetos em parceria com biólogos. É o caso de estudos com opiliões, que conta com ajuda de Glauco Machado, da Universidade de São Paulo (ver Pesquisa FAPESP nº 144). Ela contou que esses aracnídeos exalam “um mau cheiro horroroso”, e é essa mistura de substâncias de defesa química que seu grupo investigou no contexto da evolução e diversificação do grupo. A equipe mapeou na árvore filogenética – a árvore genealógica das espécies – as substâncias encontradas na secreção. A análise mostra que algumas 58
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surgiram em certo ponto da árvore, pista para investigar se algo mais mudou na biologia daqueles opiliões. A descoberta é curiosa: as espécies em que surgiram novos compostos também lançam o líquido de defesa, em vez de simplesmente ter gotículas brotando do corpo. Descobrir quais são as substâncias, como são formadas e seu mecanismo de ação não é fácil. Nesse caso, exigiu que os químicos da Unicamp montassem o que Anita chama de hotel de opiliões e sintetizasse substâncias em laboratório. Com isso, mostraram como a defesa jorrada persiste no ambiente e aos poucos, ao longo de cinco dias, libera o cheiro espanta-predador. Agora o grupo está prestes a descrever como os opiliões produzem essas substâncias sem acesso a truques de laboratório, como ampolas, onde a reação acontece sem oxigênio e a 180 graus Celsius. O universo encantador revelado por Anita é uma verdadeira homenagem à variação biológica e química da natureza brasileira. Envolve sistemas diversos como a comunicação química entre plantas da família das malpighiáceas e abelhas solitárias, e a diversidade de venenos numa única espécie de formigas lava-pés (Solenopsis saevissima) até mesmo dentro de uma mesma colônia (operárias e rainhas têm compostos distintos que podem ter funções completamente diferentes). “A biodiversidade está nos organismos, nas enzimas, nas moléculas”, concluiu Anita, que insiste que a pesquisa no país precisa investir naquilo que ele tem de melhor. Diante de oportunidades no exterior no início da carreira, optou por desbravar a biodiversidade brasileira. Não se arrepende. n
Notícias Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet | www.scielo.org
\\ economia
de cigarro, entre outras. A variável dependente foi consumo de cerveja nos últimos 30 dias. Idade, importância dada à religião e ter banheiro em casa foram utilizadas como controle. O consumo de cerveja nos últimos 30 dias esteve associado ao uso de cigarro, ter uma marca preferida de bebida alcoólica, não ser monitorado pelos pais, achar que as festas que frequentam parecem-se com as de comerciais, prestar muita atenção aos comerciais e acreditar que os comerciais falam a verdade. Essa associação manteve-se mesmo na presença de outras variáveis associadas ao seu consumo. A conclusão do artigo “Propaganda de álcool e associação ao consumo de cerveja por adolescentes” foi: as propagandas de bebidas alcoólicas associam-se positivamente ao consumo recente de cerveja por remeterem os adolescentes à própria realidade ou por fazê-los acreditar em sua veracidade. Limitar a veiculação de propagandas de bebidas alcoólicas pode ser um dos caminhos para a prevenção do uso e abuso de álcool por adolescentes.
Desigualdade de renda A teoria econômica sugere que a desigualdade de renda contribui para o aumento da criminalidade. Esse resultado é observado em estudos nacionais que utilizam dados de taxas de homicídio. Na literatura internacional, no entanto, em que os trabalhos buscam desagregar os diferentes tipos de crime, os resultados nem sempre são significativos. O estudo “Crime social, castigo social: desigualdade de renda e taxas de criminalidade nos grandes municípios brasileiros”, de João Paulo de Resende, da Universidade Federal de Minas Gerais, e Mônica Viegas Andrade, da Fundação Getúlio Vargas (Rio de Janeiro), explora base inédita de dados de boletins de ocorrência da Secretaria Nacional de Segurança Pública para os municípios brasileiros com população superior a 100 mil habitantes, o que permitiu a análise de diferentes tipos de crime. Os resultados revelam que o efeito da desigualdade apresenta correlação positiva e robusta, principalmente para os crimes contra o patrimônio. Como esse tipo de crime responde pela grande maioria das ocorrências registradas, a desigualdade de renda assume papel central como determinante da criminalidade urbana no Brasil, induzindo, nesse sentido, a substanciais perdas de bem-estar social.
Revista de Saúde Pública – vol. 45 – nº 3 – São Paulo – jun. 2011
\\ ensino
Softwares educacionais
Estudos Econômicos – vol. 41 – nº 1 – São Paulo – jan./mar. 2011
\\ psiquiatria
As pesquisadoras Roberta Faria, Alan Vendrame, Rebeca Silva e Ilana Pinsky, do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Universidade Federal de São Paulo, analisaram a associação entre propaganda de álcool e consumo de cerveja por adolescentes. Foram entrevistados 1.115 estudantes de sétima e oitava séries de três escolas públicas de São Bernardo do Campo (SP), em 2006. As variáveis independentes foram: atenção prestada às propagandas de álcool, crença na veracidade das propagandas, resposta afetiva às propagandas, uso prévio
eduardo cesar
Propaganda de álcool
Atualmente, uma grande maioria de softwares pode ser considerada educacional, de acordo com Neusa Nogueira Fialho, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, e Elizete Lucia Moreira Matos, da Universidade Federal de Santa Catarina. Porém, quais são os critérios para que um determinado software seja considerado educacional, perguntam as pesquisadoras? No artigo “A arte de envolver o aluno na aprendizagem de ciências utilizando softwares educacionais”, elas discorrem a respeito de uma pesquisa sobre programas de informática reconhecidamente educacionais e que, portanto, visam analisar sua aplicabilidade no processo pedagógico no ensino de ciências, mais especificamente da química. Os softwares desenvolvidos pelos professores utilizam temas do cotidiano e podem ser aplicados a alunos do ensino médio. Juntamente com os resultados da pesquisa, as autoras apresentam argumentos que possam intensificar a preocupação na escolha criteriosa de um programa, apontando-o como grande aliado pedagógico. Educar em Revista – nº especial 2 – Curitiba – 2010 \\ O link para a íntegra dos artigos citados nestas páginas estão disponíveis no site de Pesquisa Fapesp, www.revistapesquisa.fapesp.br
[ física ]
A energia das estrelas
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inco décadas atrás as revistas populares de ciência nos Estados Unidos alardeavam que, em menos de 50 anos, a fonte da eletricidade do mundo seria a energia limpa e praticamente inesgotável que faz as estrelas brilharem: a fusão nuclear. O tempo passou e hoje existem apenas as usinas de fissão nuclear, que produzem energia a partir da quebra de núcleos atômicos pesados. Uma usina de fusão, ao contrário, funcionaria extraindo energia da união de dois núcleos de hidrogênio, o elemento químico mais abundante no Universo. Em parceria com grupos europeus, pesquisadores brasileiros trabalham com o objetivo de transformar a fusão em realidade. A fusão ocorre nas estrelas quando os núcleos de hidrogênio, na forma de gás, são comprimidos pela gravidade atingindo temperaturas de milhões de graus. Para fazer o mesmo na Terra, porém, é preciso confinar esse gás eletricamente carregado (plasma) usando campos magnéticos gerados por máquinas chamadas tokamaks e aquecê-lo. Aqui, o combustível dos reatores seriam duas variantes do hidrogênio: o deutério, que pode ser extraído da água do mar; e o trítio, produzido a partir de núcleos de lítio, cujas reservas no planeta garantiriam o funcionamento das usinas por milhões de anos (ver infográfico). Tudo soa tão parecido com ficção científica que é com certa suspeita que se escutam pesquisadores fazerem a mesma afirmação do passado, de que a primeira usina de fusão funcionará em 50 anos. Dessa vez, porém, a chance de a ideia se concretizar é maior. Desde a invenção do tokamak pelos soviéticos nos anos 1960, o desempenho dessas máquinas melhorou 10 mil vezes. Em 1991, o maior tokamak em atividade até hoje – o Toro Europeu Conjunto (JET), instalado em Culham, no Reino Unido – conseguiu a primeira reação de fusão nuclear controlada da história. O problema foi que a experiência consumiu mais energia do que gerou. Os físicos acreditam hoje que é preciso aprimorar 10 vezes mais a eficiência dos tokamaks – há outros tipos de equipamentos para aprisionar plasma, mas nenhum tão eficaz – para que se alcance o ponto em que a quantidade de energia liberada nas reações de fusão
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Brasileiros e europeus buscam o controle da fusão nuclear Igor Zolnerkev ic
seja maior que a consumida. Esse é o objetivo do Reator Experimental Termonuclear Internacional (Iter), em construção desde 2007 em Cadarache, na França. O consórcio responsável pelo projeto, formado por União Europeia, China, Coreia do Sul, Estados Unidos, Índia e Japão, calcula gastar na montagem desse tokamak US$ 13 bilhões, mais que o consumido na criação do LHC, o maior acelerador de partículas do mundo. O Iter terá 61 metros de altura e o peso de três torres Eiffel. Comportará um volume de plasma oito vezes maior que o JET e, ao ficar pronto em 2019, deverá gerar 500 megawatts de potência, gastando apenas 50 megawatts. Correndo tudo bem com o Iter, os otimistas contam com a inauguração da primeira usina experimental de fusão, batizada de Demo (de demonstração), em 2040. “Essa é a perspectiva dos otimistas; para os pessimistas, a produção de energia por fusão nuclear é inatingível”, diz o físico Ricardo Viana, da Universidade Federal do Paraná, reconhecendo que não será fácil conseguir esse incremento final no desempenho dos tokamaks. Em janeiro deste ano, ele e cinco colegas deram uma pequena contribuição ao desafio. Publicaram na revista Philosophical Transactions of The Royal Society A um estudo no qual calcularam como as partículas do plasma se comportam próximo à parede da câmara de um tokamak e escapam à armadilha magnética que as aprisiona, atingindo alguns pontos da parede com mais frequência que outros. O impacto das partículas eletricamente carregadas acelera o desgaste da parede e prejudica o funcionamento da máquina. O trabalho de Viana e colaboradores foi um dos que esclareceu o fenômeno, descoberto há cinco anos
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em tokamaks na Europa e nos Estados Unidos, e que permitiu propor uma solução ao problema. Usando o tokamak da Universidade de São Paulo (USP), o físico Ivan Nascimento e colegas mostraram que é possível atenuar esse vazamento com o auxílio de campos elétricos. Aumentar o controle sobre o plasma é o principal desafio nos tokamaks. Longe de fluir suavemente à medida que dá voltas dentro dessas máquinas, o plasma se comporta como o mar revolto por uma tormenta. Seu movimento é turbulento, em especial na borda da região de confinamento, onde a densidade, a temperatura
Em forma de anel: câmara de plasma do JET, o maior tokamak em atividade
e os campos eletromagnéticos que o mantêm aprisionado flutuam muito. A turbulência é tal que sempre se descobrem novas maneiras pelas quais o plasma pode escapar e resfriar. Até hoje o tempo máximo que se manteve o plasma sem perder energia não passa de frações de segundos. Iberê Caldas, físico da USP e coautor do artigo assinado por Viana, dá um exemplo de uma solução recente para o escape do plasma. No desenvolvimento do Iter, pesquisadores norte-america-
nos descobriram como controlar um fenômeno capaz de provocar explosões violentas de plasma, semelhantes às erupções na superfície do Sol, que poderiam danificar o reator. A solução foi modificar o desenho do Iter e incluir geradores de campos magnéticos caóticos que, pelos cálculos dos físicos, impedirão o surgimento das erupções. “A alteração custará mais de € 100 milhões e provocou o adiamento de mais de um ano no projeto”, diz Caldas. Ele, Nascimento, Viana e mais 130 pesquisadores de 15 instituições brasileiras participam atualmente da Rede Nacional de Fusão (RNF), organização criada em 2006 pelo físico Sérgio RezenPESQUISA FAPESP 186
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vão compara a tarefa com a de observar um objeto minúsculo passando na frente do Sol. Para analisar as imagens em tempo real, os pesquisadores do JET usarão um programa de computador desenvolvido pelos irmãos Marcelo e Márcio Albuquerque, do CBPF. Ondas Alfvén - Outro projeto brasi-
Plasma: íons presos por campos magnéticos
de, então ministro da Ciência e Tecnologia, e que começa agora a amadurecer. Outro físico, Ricardo Galvão, coordenador técnico-científico da RNF e diretor do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro, conta que a ideia de criar a rede surgiu depois que uma comissão de pesquisadores europeus visitou o Brasil e avaliou o potencial do país de contribuir com o Iter. A comissão identificou que, embora exista no país uma produção científica relevante em física de plasma, faltava coordenação de esforços. Cada grupo de pesquisa realizava seu trabalho independentemente dos outros, na forma de projetos de curta duração. “Para trabalhar em um projeto internacional desse porte é preciso ter um comprometimento de cinco, 10 anos, e ter capacidade de construir equipamentos aqui [no Brasil] para colocar lá fora [no Iter]”, diz Galvão, que integra a equipe do Laboratório de Física de Plasma da USP. A rede funciona com verba da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), que aprovou em 2010 um pouco mais de R$ 1 milhão para seus projetos de pesquisa. Alguns desses estudos envolvem colaborações com laboratórios europeus, estabelecidas por meio de convênio firmado em 2009 entre o Brasil e a Comunidade Europeia de Energia Atômica. Embora já esteja em vigor, o acordo aguarda ratificação do Congresso Nacional. 62
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Em parceria com pesquisadores alemães, engenheiros brasileiros – entre eles Hugo Sandim, da Escola de Engenharia de Lorena, e Angelo Padilha, da Escola Politécnica, ambas da USP – trabalham na caracterização dos materiais a serem usados nas paredes da câmara de plasma do Demo, reator da geração posterior ao Iter. Feito com uma família de aços chamada Eurofer, o material precisa suportar a proximidade de um plasma com temperatura de 150 milhões de graus (10 vezes a do interior do Sol), além do bombardeamento de nêutrons altamente energéticos e as eventuais descargas de plasma. Os pesquisadores já sabem, porém, que o aço não pode ficar exposto ao plasma. Há o risco de que núcleos pesados do metal acabem em seu interior, o que pode desestabilizar os campos magnéticos no tokamak e destruir o confinamento de modo que toda a corrente elétrica do plasma – 100 vezes maior que a de um raio em uma tempestade – atinja de uma só vez um ponto da parede. Para evitar o estrago, especialistas desenvolveram um revestimento de ladrilhos de berílio, átomo leve o suficiente para não interferir no plasma e ao mesmo tempo resistente o bastante para suportar os nêutrons e as temperaturas altas. O revestimento deve começar a ser testado no JET a partir de setembro e contará com contribuição brasileira. Nos testes, uma câmera ultrarrápida de infravermelho observará o desgaste dos ladrilhos. Mas a radiação infravermelha próxima à parede é tamanha que Gal-
leiro no JET pretende estudar mais um fenômeno capaz de frustrar os planos do Iter. Os físicos esperam que os núcleos de hélio formados na fusão permaneçam no plasma, colidindo com elétrons e outros núcleos. Assim, eles ajudariam a aquecer o plasma e a sustentar as condições para mais reações de fusão. O hélio, porém, excita ondas eletromagnéticas no plasma – as chamadas ondas Alfvén – que, dependendo de sua duração, podem expelir o hélio e interromper a fusão. Pesquisadores da USP e colegas do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos Estados Unidos, e da Escola Politécnica Federal de Lausanne, na Suíça, planejam montar no JET até dezembro um sistema de excitação e detecção de ondas Alfvén, para medir com que rapidez elas desaparecem. “Eles obtiveram um tremendo progresso”, conta Patrick Blanchard, coordenador científico do JET, sobre o melhoramento que os engenheiros da USP realizaram nas antenas que geram ondas Alfvén. “Teria sido difícil sem eles.” Esse convênio internacional também permitiu a europeus virem ao Brasil. Embora máquinas menores que o JET e o Iter não atinjam as condições de fusão, os três tokamaks brasileiros – um instalado na USP, outro na Universidade Estadual de Campinas e um terceiro no Instituto Nacional de Pes-
O Projeto Aquecimento Alfvén e regimes melhorados de confinamento e estabilidade no tokamak TCABR – nº 2002/03632-3 modalidade
Projeto Temático Coordenador
Ricardo Osório Galvão - IF/USP investimento
R$ 1.004.053,90 (FAPESP)
Como funcionará uma usina de fusão nuclear TOKAMAK É o nome de uma das máquinas em que se espera obter fusão nuclear em escala industrial. Ele confina magneticamente plasma de hidrogênio do qual extrai energia
Turbulência
Temperatura 150 milhões de graus
A oscilação da temperatura e dos campos magnéticos junto às paredes faz o plasma esfriar interrompendo a fusão. Cessadas as reações, para a produção do calor usado para vaporizar a água de um reservatório e mover turbinas de eletricidade
estimativa de uso a partir de 2040
Nêutron hélio
infográfico daniel das neves
trítio
deutério
fusão
Fissão
A união de um núcleo de deutério com outro de trítio libera um nêutron altamente energético. A reação não gera resíduos radioativos e cessa assim que a máquina é desligada
Nêutrons quebram núcleos pesados, como de urânio, em outros menores e também radioativos. A reação libera mais nêutrons e pode continuar mesmo com o reator desligado
Rede nacional - Além da oficialização
do convênio com os europeus, os membros da RNF aguardam a criação de um novo centro de pesquisa: o Laboratório Nacional de Fusão (LNF), filiado à Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen), a ser construído em Cachoeira Paulista, no interior de São Paulo. Há, no entanto, um impasse burocrático para a criação do laboratório. As assessorias jurídicas das instituições envolvidas ainda não se entenderam quanto à necessidade de submeter ao Congresso Nacional a decisão de criar o LNF. Edson Del Bosco, físico do Laboratório Associado de Plasma do Inpe,
bário
Nêutrons
Nêutron
quisas Espaciais (Inpe) – contribuem com estudos da turbulência do plasma. Pesquisadores da USP e do Instituto Superior Técnico de Lisboa, por exemplo, criaram sistemas para medir a turbulência no tokamak da USP.
urânio
aguarda ansioso o início das obras, ainda sem previsão. Ele espera que o LNF atue como catalisador de recursos e de pessoal, dando fôlego novo a grupos de pesquisa pequenos como o seu e a outros que se associariam ao laboratório. “Se o LNF não for criado, não tem como a gente progredir”, diz. Del Bosco e Galvão esperam que o problema se resolva já no início do mandato do novo presidente da Cnen, o engenheiro Angelo Padilha, que é membro da RNF e foi empossado no último dia 7 de julho. Padilha afirma ser uma de suas prioridades na Cnen criar o LNF. Segundo Galvão, o plano é iniciar as atividades do LNF fazendo melhorias no tokamak do Inpe. Alguns membros da RNF cogitam mais tarde comprar ou construir um tokamak maior, enquanto outros, como Galvão, acreditam não valer a pena pelo alto custo. “Se houver interação forte com
Criptônio
os europeus e acesso às máquinas deles, será melhor ter um tokamak pequeno para treinar pessoal e usar o laboratório para construir equipamentos que instalaríamos nos laboratórios deles”, diz. Em um ponto os membros da RNF concordam: a fusão é um investimento de longo prazo do qual o Brasil não pode abrir mão. Afinal, não se sabe quais serão as demandas energéticas do país em 2100. “Precisamos dominar a tecnologia e o conhecimento científico para não termos de comprar um reator no futuro”, diz Galvão. “Se a fusão nuclear funcionar, o consórcio do Iter será o dono da energia do mundo.” n Artigo científico viana, R.L. et al. Fractal structures in nonlinear plasma physics. Philosophical Transactions of the Royal Society A. v. 369, p. 371-95. 2011. PESQUISA FAPESP 186
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[ astronomia ]
Os pesos-pesados do Universo Mecanismo alternativo pode explicar a formação de estrelas de nêutrons maiores que o normal Salvad or No gueira
Nebulosa do Caranguejo leva banho de partículas emitidas...
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... por estrela de nêutrons (à direita) que abriga sua região central
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magine pegar o Sol inteiro e compactá-lo até que ele fique do tamanho de uma cidade. Radical? Pode até ser, mas a natureza vive fazendo esse mesmíssimo experimento quando cria as chamadas estrelas de nêutrons, um dos menores e mais densos objetos do Universo. Os astrônomos sabem mais ou menos como isso acontece, mas são poucos os que admitem que falta muito para a ciência explicar o que se vê lá fora. Um dos mistérios a serem esclarecidos é como surgem estrelas de nêutrons com massa mais elevada do que o previsto pela teoria da formação e evolução estelar. Um grupo de pesquisadores atuando no Brasil tenta trazer alguma luz para o assunto resgatando uma hipótese controversa. Em linhas gerais, eles sugerem que deve haver mais de um jeito de criar estrelas de nêutrons. O surgimento delas tem a ver com a morte de estrelas de massa bastante elevada, pelo menos oito vezes superior à do Sol. Para compreender o que acontece, primeiro é preciso dar duas palavrinhas sobre o que os astrônomos sabem de como vivem e morrem as estrelas. Constituídas por gás (em sua maioria hidrogênio) e poeira concentrados, as estrelas começam a brilhar quando a concentração de matéria é tal que os átomos na região mais central desses corpos celestes começam a se unir, processo conhecido como fusão nuclear (ver texto na página 60). A transformação de dois núcleos de hidrogênio, cada um com um próton, em um núcleo de
hélio, com dois prótons, é acompanhada de uma sutil redução da massa total. Parte da massa é convertida em energia e escapa da estrela – é daí que vem todo o poder desses astros para banhar um sistema planetário inteiro em radiação. Essa energia gerada no interior da estrela compensa a força gravitacional, que atua no sentido oposto. Por causa desse equilíbrio, a estrela permanece com aproximadamente o mesmo tamanho ao longo da maior parte da sua vida. Porém, durante milhões de anos, o combustível disponível para a fusão nuclear vai se esgotando. Na falta de hidrogênio, são usados elementos mais pesados, como hélio, carbono, oxigênio, até chegar a um limite: o ferro. Essa é a fronteira final por uma razão simples: a fusão de núcleos de ferro consome mais energia do que a liberada ao final do processo. Nesse estágio, a produção de energia na região central é interrompida e a gravidade passa a trabalhar desimpedida, sem nenhuma força para compensar sua ação. Bomba cósmica – A estrela entra em colapso e dispara
uma complicada sequência de eventos. O resultado final é a explosão das camadas mais externas da estrela, na qual 90% de sua massa é lançada ao espaço. O que resta desse violento episódio, conhecido como supernova, é um caroço estelar muito compacto. Se a massa do caroço for relativamente pequena, essa compressão origina o que se convencionou PESQUISA FAPESP 186
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chamar de estrela de nêutrons – caso a massa seja mais elevada e a compressão continue, forma-se um buraco negro, objeto tão denso que nada escapa de sua atração, nem mesmo a luz. Segundo a teoria atualmente aceita, as estrelas de nêutrons, assim chamadas por apresentarem proporções elevadas de partículas sem carga elétrica (nêutrons) em seu interior, deveriam ter todas as mesmas dimensões: uma massa cerca de 40% maior do que a do Sol, comprimida em uma esfera de menos de 20 quilômetros de diâmetro. “Mas ninguém sabe exatamente qual é a massa que uma estrela precisa ter em vida para morrer e deixar uma estrela de nêutrons ou um buraco negro”, conta o astrônomo Jorge Horvath, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da Universidade de São Paulo, coordenador de um grupo que investiga as características das estrelas de nêutrons. “Até recentemente acreditava-se que todas as estrelas de nêutrons tivessem esse padrão”, afirma João Steiner, outro astrônomo do IAG. “Mas no ano passado foi descoberto um caso que é claramente maior.” O nome do objeto? PSR J1614-223, uma estrela de nêutrons situada a 3 mil anos-luz da Terra, descoberta por um grupo do Observatório Nacional de Radioastronomia (NRAO), nos Estados Unidos. Apresentada em artigo publicado na Nature, essa estrela parece ter duas massas solares – um mamute, em se tratando de objetos desse tipo. Esse achado obrigou a comunidade astronômica a aceitar o fato de que há variação significativa na massa das estrelas de nêutrons. E se encaixa muito bem nas previsões feitas recentemente pelo grupo de Horvath, publicadas na edição de junho da revista Monthly Notices of the Royal Astronomical Society. Nesse trabalho, Horvath, Eraldo Rangel e Rodolfo Valentim conduziram uma análise estatística da massa de 55 estrelas de nêutrons bem estudadas e mostraram que há dois padrões mais comuns: um formado pelas estrelas de massa menor (ao redor de 1,37 vez a do Sol) e com pouca variação, como esperado; e outro, com massa maior, cerca de 1,73 massa solar, e mais variável. Por que existem esses dois grupos distintos? “Os resultados apontam para 66
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Vida e morte das estrelas Astros com massa oito vezes maior que a do Sol brilham por milhões de anos até esgotar o combustível nuclear e explodir na forma de supernova. As camadas externas são lançadas ao espaço e o caroço central gera uma estrela de nêutrons ou um buraco negro
supergigante
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mais de um mecanismo de formação das estrelas de nêutrons”, afirma Horvath. Essa ideia parece compatível com as distribuições de estrelas de nêutrons em locais como os aglomerados globulares, habitados principalmente por estrelas muito velhas e de massa menor do que aquela que, segundo a teoria, seria necessária para originar estrelas de nêutrons. Observações recentes feitas por astrônomos de diversos países vêm mostrando que nessas regiões há muito mais estrelas de nêutrons do que se esperaria se elas fossem produto exclusivo da explosão de estrelas de alta massa. As estrelas que originalmente têm massa inferior a oito vezes a solar, ao entrar em colapso, não geram estrelas de nêutrons, mas outra classe de objetos: as anãs brancas, com a massa de um sol comprimida em um volume igual ao da Terra – é como o Sol deve terminar seus dias. Em alguns sistemas binários, a anã branca, por ação da gravidade, rouba a massa de sua estrela companheira até atingir um limite
Os Projetos 1. A matéria hadrônica e QCD em astrofísica: supernovas, grbs e estrelas compactas – nº 2007/03633-3 2. Investigação de fenômenos astrofísicos de altas energias e altas densidades nº 2008/09136-4 modalidade
1. Projeto Temático 2. Programa Jovem Pesquisador Coordenadores
1. Jorge Horvath – IAG/USP 2. German Lugones - UFABC investimento
1. R$ 154.250,00 (FAPESP) 2. R$ 91.207,65 (FAPESP)
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Buraco negro
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remanescente da supernova
que a induza a um novo colapso. Esse evento é explosivo e produz um tipo específico de supernova, chamada Ia, na qual a massa total da estrela é lançada violentamente para o espaço. Mas alguns astrônomos sugerem que isso pode acontecer de modo diferente. Em vez de resultar em uma supernova, o acréscimo rápido de massa faria com que a anã branca se transformasse em estrela de nêutrons. “É uma ideia que nos ronda há 20 anos e tem quem a odeie”, diz Horvath. “Mas há também quem diga que funciona. É difícil imaginar uma alternativa melhor para explicar como certas estrelas de nêutrons foram parar onde estão.” Dados recentes complicam o cenário ao indicar que existem estrelas de nêutrons com massa inferior à do Sol, que não se formariam por colapso. A resposta definitiva ainda não apareceu, mas é quase certo que o futuro das pesquisas passará por reformulações nas teorias de como surgem e se comportam as estrelas de nêutrons.
estrela de nêutrons
Por fora e por dentro – Se há misté-
rios sobre a massa, a coisa não fica mais simples quando o assunto é a composição das estrelas de nêutrons. O nível de compactação desses objetos é tão elevado – a densidade de uma estrela de nêutrons é maior que a do núcleo dos átomos e 100 trilhões de vezes a da água – que a matéria pode aparecer sob formas que não se encontram em nenhum outro lugar do Universo. A densidades maiores que a do núcleo atômico, partículas como prótons e nêutrons se desfazem em suas unidades fundamentais: os quarks, que, via de regra, nunca são vistos sozinhos. É difícil conciliar essas previsões com as observações, mas se acredita que essas condições existam em certas estrelas de nêutrons, que abrigariam em sua região central uma sopa de quarks. Na Universidade Federal do ABC, em Santo André, Região Metropolitana de São Paulo, o grupo de Germán Lugones vem fazendo cálculos e simulações de como diferentes composi-
ções internas desses astros afetariam a massa, o raio, a evolução e outras propriedades. Um dos resultados a que a equipe chegou é que certos fenômenos que surgem quando a matéria se encontra na forma de quarks – como a transição a um estado supercondutor – explicam naturalmente a existência de estrelas com massas bem maiores que a clássica 1,4 massa solar. Por isso, a descoberta da PSR J1614-223 representou um sinal importante de que podem estar no caminho certo. Lugones acredita que uma versão mais radical das estrelas de quarks – a estrela estranha ou estrela de quarks autoligada, em que todo o astro seria composto por essas partículas – deve ser considerada como candidata caso se observem estrelas com massa ainda maior que a da PSR J1614-223. “De acordo com estudos teóricos feitos nos últimos anos por nosso grupo, a densidade necessária para que as partículas da matéria se desfaçam em quarks é de 5 a 10 vezes maior que a densidade do interior de um núcleo atômico”, afirma Lugones, ressaltando que essas densidades podem perfeitamente ser atingidas no centro das estrelas de nêutrons de maior massa. Se isso ocorre, ninguém sabe. Ainda há lacunas, tanto no entendimento da física por trás desses processos como no das propriedades observáveis das estrelas de nêutrons. Manuel Malheiro, pesquisador do Instituto Tecnológico da Aeronáutica e colaborador de Horvath e Lugones, encontra-se desde 2010 na Universidade de Roma onde investiga a composição e outras características de outro tipo especial de estrelas de nêutrons: as magnetares, que têm elevado campo magnético. Ainda serão necessários avanços na teoria e nas observações para que eventualmente se chegue a um quadro mais coeso. A única certeza é que há problemas interessantes a respeito desses astros, que, acidentalmente, são laboratórios ideais para o estudo das mais extremas propriedades da matéria. n Artigo científico VALENTIM, R. et al. On the mass distribution of neutron stars. Monthly Notices of the Royal Astronomical Society. v. 414 (2), p. 1.427-31. Jun 2011. PESQUISA FAPESP 186
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Coppe/UFRJ
linha de produção
Novos centros à beira-mar Depois de uma disputa intensa por espaço, foi encerrada a escolha das empresas que vão instalar centros de pesquisa no Parque Tecnológico do Rio, localizado no campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A concorrência para ocupar os últimos terrenos foi ganha pelas empresas Siemens, BG E&P e EMC Computer Systems. Transformado em um centro mundial de tecnologia na área de petróleo e gás natural, o parque abriga empresas cujo objetivo é de pesquisa e desenvolvimento de inovações para a exploração da camada pré-sal, além de energias Na UFRJ, alternativas, softwares e meio amespaços para biente. A Siemens desenvolverá a inovação tecnologias para exploração petrolífera em alto-mar e para energias renováveis. A BG vai atuar na área de projetos de pesquisa geológica e gerenciamento de CO2 e a EMC vai oferecer equipamentos para armazenamento e análise de dados, com aplicações nas áreas de geologia e genética. Assim, além de vários laboratórios da UFRJ, do Instituto de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da própria universidade e da Petrobras, estão em instalação centros de pesquisa de empresas como a Schlumberger, Usiminas, Halliburton, FMC, Baker Hughes e Tenaris Confab.
rorivaldo de camargo / CMDMC/Unesp
Ferrugem aproveitada
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Resíduos metálicos gerados no processo de produção do aço transformam-se em pigmentos cerâmicos de alto valor agregado por uma rota alternativa proposta no Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos –
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um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP –, instalado na Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara, sob a coordenação do professor Elson Longo. Esses resíduos resultam de um processo rotineiro para eliminação de pontos de ferrugem em lâminas de aço em siderúrgicas como a CSN, em Volta Redonda, no Rio de Janeiro, onde foi realizado o estudo. “Como o processo de laminação é feito a quase 1.500º Celsius, o simples contato do material com o oxigênio provoca uma reação química que resulta na formação de óxido de ferro. A eliminação desses pontos de ferrugem
é feita com ácido clorídrico, que, ao encontrar o óxido de ferro, se transforma em cloreto de ferro e água”, diz Longo. Pelo método tradicional, a usina separa novamente o ácido clorídrico e ferro, metal que é jogado no alto-forno para produção de aço. Pela nova rota proposta, o cloreto de ferro é transformado por via química em pigmentos destinados à indústria de tintas e corantes. O trabalho, que teve a participação de André Vieira, Fernando Vernilli e Sidney Nascimento Silva, foi premiado em julho no 66º Congresso da Associação Brasileira de Metalurgia e Materiais.
Energia do ambiente
DLR
No solo, propulsão elétrica
catarina bessell
Novo equipamento captura e armazena energia eletromagnética dissipada de rádios, transmissores de televisão, redes de celulares e sistemas de comunicação via satélite. A energia transforma-se em eletricidade pronta para uso em etiquetas eletrônicas e equipamentos de identificação. Também tem capacidade para fazer operar pequenos equipamentos eletrônicos, como sensores e microprocessadores. A captura de energia é feita com um novo tipo de antena fabricada em uma impressora a jato de tinta e criada por uma equipe de pesquisadores do Instituto de Tecnologia da Geórgia, nos Estados Unidos, liderados pelo professor Manos Tentzeris. A impressora aplica tintas condutoras sobre plástico flexível ou papel que podem ser instalados em aparelhos eletrônicos. As antenas, com uma banda ultralarga, são capazes de captar energia na faixa de
Janela para o mundo
frequência das rádios FM, de 100 megahertz a 15 gigahertz. Nos testes, os pesquisadores conseguiram operar um sensor de temperatura usando a energia eletromagnética capturada de uma antena de emissora de TV a meio quilômetro de distância. O projeto é financiado pela National Science Foundation, dos Estados Unidos, e New Energy and Industrial Technology Development Organization, do Japão.
Uma janela de carro sensível ao toque e interativa como um tablet. Nela seria possível aproximar a paisagem com os dedos, desenhar no próprio vidro e saber simultaneamente a distância em que estão os objetos do lado de fora do veículo. Esse é o futuro planejado pelos engenheiros da empresa Toyota Motor Europe (TME), da Divisão Kansei Design, em parceria com profissionais do Copenhagen Institute of Interaction Design (CIID), da Dinamarca. O sistema janela para o mundo (window to the world, em
inglês) utiliza tecnologias que permitem essa interação entre o mundo virtual e o real, onde até um teto panorâmico exibirá constelações virtuais com informações sobre os corpos celestes tendo o céu verdadeiro como pano de fundo. Segundo a própria montadora, kansei significa, em japonês, “sentido e sensibilidade”. Com esse sistema, que promete tornar interativas as janelas dos carros, a marca sinaliza uma visão tecnológica a longo prazo. A Toyota não revela quando esse tipo de janela será instalado nos automóveis da empresa. Veja vídeo no site www. revistapesquisa.fapesp.br
Silencioso e econômico Menos barulho e menor gasto de combustível em aviões que fazem o taxiamento na pista de aeroportos é o resultado de um estudo feito pelo Centro Aeroespacial Alemão (DLR) e as empresas Airbus e Lufthansa. Os pesquisadores instalaram no trem de pouso dianteiro do avião uma célula a combustível, equipamento produtor de energia elétrica com hidrogênio, para movimentar motores elétricos instalados nas rodas. Com isso os motores principais do avião não precisam funcionar nos momentos em que a aeronave está para decolar ou já pousou. O avião utilizado para testes é um Airbus A320, chamado de Advanced Technology Research Aircraft (Atra), aeronave para experimentos do próprio DLR. Segundo os pesquisadores, a diminuição de emissões atinge até 19% e grande parte do ruído pode ser eliminada nos aeroportos com os motores desligados. Outra vantagem é a diminuição dos períodos de manutenção dos motores de propulsão aérea porque eles podem ficar desativados por até duas horas por dia. As células a combustível já foram testadas em outro experimento da DLR, no mesmo avião, no suprimento de energia para ar-condicionado. PESQUISA FAPESP 186
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tecnologia
[ energia ]
Vinhaça alternativa Resíduo da produção de etanol pode ser usado para produzir biodiesel Marcos de Oliveira Fotos Eduard o Cesar
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fotos eduardo cesar
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untar microalgas e vinhaça para produzir biodiesel é o desafio da empresa paulistana Algae Biotecnologia. A novidade aqui é a utilização da vinhaça, porque fazer biodiesel a partir de algas já foi obtido por algumas empresas nos Estados Unidos. O resíduo da produção de etanol é caracterizado não apenas pelo forte mau cheiro que exala, mas por ser rico em sais minerais, principalmente potássio, e possuir altos teores de matéria orgânica com elevada acidez. Também chamada de vinhoto, ela se tornou, em meados dos anos 1970, a vilã do Proálcool, o programa governamental que implementou o etanol como combustível. Lançada como efluente em rios e lagoas, matou peixes e poluiu as águas, atingindo o lençol freático de algumas localidades. A partir de 1978, normas e legislações específicas no âmbito federal e estadual, elaboradas principalmente pela Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb) do estado de São Paulo, obrigaram os produtores a dar um destino ambiental correto e comercialmente interessante ao resíduo. A solução foi usá-lo na adubação da própria plantação de cana. Desde então, a vinhaça é aspergida por meio de tubulações de irrigação, num processo chamado de ferti-irrigação, ou levada em caminhões para aplicação direta na lavoura. É um cenário sólido na indústria sucroalcooleira, mas o volume cresce de forma descomunal. Para cada litro de etanol são produzidos, pelo menos, 10 litros de vinhaça. Em 2010 foram produzidos 25 bilhões de litros de etanol e consequentemente mais de 250 bilhões de litros de vinhaça resultantes da destilação do vinho obtido do processo de fermentação do caldo de cana. O volume sugere alternativas e outros tipos de utilidade além da adubação. Mas na contramão desses usos e visando a uma produção de etanol mais rentável em algumas grandes propriedades que têm muitos gastos para transportar a vinhaça, surgiu um novo processo para diminuir a quantidade do resíduo por meio do aumento do teor alcoólico na fase de
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para os produtores. Para chegar ao biodiesel, qualquer tipo de óleo, inclusive o das microalgas, passa pelo processo de transesterificação, reação química entre um tipo de álcool – metanol ou etanol – e um lipídeo que resulta em biodiesel. Escolha certa - Goldemberg explica
Na Algae, cultivo experimental de algas
fermentação, desenvolvido pela empresa Fermentec, de Piracicaba, no interior paulista. “Com esse aumento, é possível reduzir a produção de vinhaça pela metade”, diz o engenheiro agrônomo Henrique Amorim, sócio da Fermentec e professor aposentado da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP). Mesmo diminuindo o volume da vinhaça, ainda sobrarão por ano mais de 160 bilhões de litros. Matéria-prima que poderá ser utilizada na produção do óleo de microalgas para a fabricação de biodiesel, processo que já se mostrou eficaz nos laboratórios da Algae. “Já obtivemos ótimos resultados e o desafio agora é fazer o escalonamento da produção de óleo, em plantas piloto até 2012, e depois passar por testes em uma usina entre 2013 e 2014”, diz Sergio Goldemberg, gerente técnico da empresa. O óleo é extraído da biomassa que se forma com a multiplicação das microalgas cultivadas na vinhaça. Elas consomem o nutriente do líquido e crescem. Algumas espécies dobram a própria população em apenas um dia. Para a extração do óleo é preciso um sistema de centrifugação que separa os lipídeos (gorduras) da biomassa. Depois o material passa por um secador e o óleo é extraído por técnicas mecânicas ou químicas. O teor de lipídeos da biomassa de microalgas atinge 30% ante 18% da soja ou até 40% no pinhão-manso. As microalgas ainda possuem outra grande vantagem. A produtividade pode chegar 72
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a 40 mil quilos de óleo por hectare (kg/ ha), enquanto a soja atinge 3 mil kg/ha e o pinhão-manso, 3,5 mil kg/ha. Em favor das microalgas, também é possível dizer que o CO2 produzido pelas usinas durante a fermentação, que é absorvido pela própria plantação de cana, pode ser utilizado na produção da biomassa porque esses microrganismos necessitam de CO2 para se multiplicar. A proteína que sobra do processo pode ser empregada em ração para a piscicultura, representando um adicional de ganho
que agora os pesquisadores envolvidos no projeto buscam desenvolver estudos e soluções para uma melhor eficácia de todo o sistema. A procura começa com a escolha das microalgas ou cianobactérias, seres semelhantes às algas. “Estamos pesquisando muitas espécies, principalmente as que vivem em água doce”, diz Goldemberg. “Depois fazemos uma seleção para saber quais se adaptam melhor na vinhaça e produzam biomassa microbiana com conteúdo elevado de lipídeos”, diz o professor Reinaldo Bastos, do Centro de Ciências Agrárias, na cidade de Araras, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), parceiro nas pesquisas da Algae, em conjunto com um grupo liderado pelo professor Eduardo Jacob-Lopes, da Universidade Federal de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. “Já temos cerca de 20 espécies, muitas coletadas no meio ambiente e que estão sendo testadas em cultivos com vinhaça”, diz Bastos. A vinhaça funciona como um meio de cultura para o crescimento e a mul-
Trajetória até o biodiesel Vinhaça produzida na usina é transformada em biomassa pelas algas
vinhaça
Alga
biomassa
óleo
tiplicação das microalgas. Em experimentos feitos em outros países, principalmente nos Estados Unidos, as empresas que cultivam algas precisam acrescentar sais minerais e nutrientes à água no processo produtivo. “Nós temos vantagens em relação a eles porque temos um resíduo realmente econômico para produção”, diz Goldemberg. Nos Estados Unidos são várias as empresas que utilizam algas para fazer biocombustíveis, inclusive bioquerosene de aviação, embora ainda não em escala comercial, como a Solazyme, que tem investimentos da gigante Chevron, da área de petróleo e energia, a Algenol, com parcerias com a empresa Dow, e a Sapphire, com investimento da Cascade, empresa de Bill Gates, da Microsoft, além da Fundação Rockefeller. Todas as três recebem também financiamento do Departamento de Energia dos Estados Unidos. Os estudos iniciais para o aproveitamento das algas na produção de biocombustíveis aconteceram nos anos 1980, no National Renewable Energy Laboratory (NREL), dos Estados Unidos. “Mas na época o problema energético e de excesso de CO2 não era importante”, diz Goldemberg, que é engenheiro agrônomo e já trabalhou com vinhaça em usinas de etanol antes de montar a Algae. A onda de projetos, principalmente em empresas nos Esta-
O Projeto Seleção de leveduras tolerantes em processos de fermentação com alto teor alcoólico visando à redução de vinhaça e economia de energia – nº 09/52427-2 modalidade
Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) Coordenador
Henrique Amorim – Fermentec investimento
R$ 202.923,42 e US$ 135.310,28 (FAPESP)
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Verificamos os genes relacionados à capacidade de o organismo se manter viável em alto teor alcoólico, diz Márcio Silva Filho, da USP
dos Unidos, com apoio governamental, começou nos anos 2000. “Poderíamos ter replicado o que se faz lá fora, embora ainda não existam produtos para venda, mas resolvemos ter ideias próprias e seguir um caminho novo com a vinhaça”, diz Goldemberg, que é filho do professor da Universidade de São Paulo (USP), ex-ministro da Educação e ex-secretário do Meio Ambiente do estado de São Paulo, José Goldemberg. A Algae recebe financiamento para a pesquisa da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), em um projeto do Programa Subvenção Econômica, de R$ 2,5 milhões, e um segundo do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), do Fundo de Tecnologia (Funtec), para ser realizado com a UFSCar, no valor de R$ 3,2 milhões, em três anos, que recebeu também R$ 400 mil da empresa. A Algae foi criada em 2007 e desde 2009 é uma joint-venture com o Grupo Ecogeo, um conglomerado de empresas com atuação nas áreas de consultoria e engenharia ambiental que faturou R$ 50 milhões em 2010. Levedura alcoólica - A produção de
biodiesel a partir da vinhaça pode também evitar maiores gastos do produtor de etanol que precisa bombear ou levar para longe esse resíduo transformado em adubo, além de prover novos ganhos com o produto final. A proposta da empresa Fermentec de diminuir a produção de vinhaça pela metade pode trazer economia aos usineiros. “Levá-la até 35 quilômetros de distância do local
da produção de vinhaça paga o adubo, principalmente o cloreto de potássio, que é em grande parte importado. Além dessa distância é prejuízo”, diz Amorim, da Fermentec. O projeto da empresa é aumentar para 16% o teor alcoólico no final da fermentação, em vez da média de 8%, fase em que as leveduras da espécie Saccharomyces cerevisiae se encarregam de transformar o açúcar em álcool. Depois, na fase de destilação, o álcool é separado da vinhaça. A empresa, que tem um faturamento de R$ 10 milhões por ano, seleciona linhagens de Saccharomyces desde 1990 e é responsável por cerca de 80% das leveduras utilizadas nas usinas do país. Ela desenvolve há seis anos estudos em relação à temperatura no processo de fermentação e principalmente na seleção desses microrganismos. Para isso, reuniu pesquisadores como os professores Luiz Carlos Basso e Márcio de Castro Silva Filho, da Esalq, Pio Colepicolo, do Instituto de Química da USP, além de Boris Stambuck, da Universidade Federal de Santa Catarina. Sob a coordenação de Silva Filho, e financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), foi realizado um estudo para entender como as leveduras são adaptadas ao alto teor alcoólico da fermentação. Por meio da análise dos 6 mil genes expressos dessas leveduras foi possível verificar aqueles relacionados a essa capacidade do organismo de se manter viável em alto teor alcoólico. “Já identificamos uma série de genes e a longo prazo poderemos introduzir ou modular a expressão desses genes nas linhagens de leveduras”, diz Silva Filho. Para selecionar novas leveduras que atuem em alto teor alcoólico, a Fermentec solicitou em 2009 um projeto do Programa de Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP. “Queremos encontrar leveduras melhores que as atuais e que possam atuar em 18% de teor alcoólico, para utilização no novo processo de fermentação”, diz Amorim. Um estudo foi realizado com sucesso na Usina da Pedra, no município paulista de Serrana. Com a fermentação realizada a 16%, foi possível fazer uma estimativa de uma economia de R$ 7 milhões por safra com a vinhaça nessa usina. “Já estamos prontos para comercializar o processo”, diz Amorim. n pESQUISA FAPESP 186
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[ Recursos florestais ]
Identificação vegetal
Dinorah Ereno m
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m novo método de identificação de madeiras tropicais baseado na técnica de espectroscopia, que mede a absorção de energia luminosa pelos materiais, vai ajudar no reconhecimento de espécies florestais extraídas ilegalmente na Amazônia. Atualmente, a fiscalização da madeira tem como base um exame visual das toras que estão sendo transportadas. “O mogno, por exemplo, pode ser confundido com espécies como a andiroba”, diz a pesquisadora Tereza Cristina Pastore, coordenadora do estudo que resultou no novo sistema no Laboratório de Produtos Florestais do Serviço Florestal Brasileiro, vinculado ao Ministério do Meio Ambiente. Pelo novo método, um feixe de luz no infravermelho próximo – segmento do espectro eletromagnético entre 800 e 2.500 nanômetros – aliado a um modelo estatístico consegue identificar com precisão, e em poucos segundos, qual é a espécie vegetal analisada. “Quando a energia incide sobre a matéria há uma vibração das moléculas”, relata o professor Jez Willian Braga, da Universidade de Brasília, que participou do estudo. São essas moléculas que fornecem o espectro que está diretamente relacionado à composição química de uma determinada madeira. A resposta dada pelo espectrômetro é processada com o auxílio de um banco de espectros de determinadas espécies florestais, que deve ser bastante diversificado e conter um grande número de árvores amostradas. Nele serão encontradas desde a amostra do mogno que nasce no estado de Rondônia até a do Maranhão. “Quanto mais amostras, mais fácil fica a avaliação dos espectros, porque em uma mesma espécie de árvore há grande variação da composição química”, diz Braga. Quando chega uma amostra desconhecida, os pesquisadores tiram
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Signey / Wikicommons
Feixe de luz reconhece composição química de espécies
serviço florestal brasileiro
Imagens microscópicas do mogno (esq.) e da andiroba: semelhanças
o espectro da amostra e o analisam no modelo estatístico construído com o banco de dados de espectros. A resposta é imediata. Antes, a análise química da madeira levada ao laboratório demorava pelo menos uma semana. A espectroscopia com infravermelho próximo já é utilizada para avaliar variedades de café que entram no blend das torrefadoras e também pela indústria farmacêutica, para saber a composição química exata presente nos medicamentos. O modelo criado pelos pesquisadores começou com a escolha de três espécies arbóreas que pela aparência e características macroscópicas da madeira podem ser confundidas com o mogno. São elas: andiroba, cedro e curupixá. O mogno, que tem sua comercialização controlada no mundo, é uma das mais valiosas madeiras encontradas na Amazônia. A exploração sem critérios é uma ameaça à sobrevivência dessa espécie, causando destruição da maior parte de sua variabilidade genética. “As populações de mogno poderão ser danificadas pelo processo de extração seletiva e pela destruição de seu hábitat”, diz Tereza. No Brasil só pode ser explorada mediante plano de manejo florestal para a redução de impactos, já que é uma espécie considerada em perigo de extinção. “Quando uma árvore está em pé é mais fácil fazer sua identificação, com base na avaliação de suas folhas, flores e frutos”, diz a pesquisadora Vera Teresinha Coradin, do Serviço Florestal
Brasileiro e participante da pesquisa. Já a análise da madeira cortada depende não só do conhecimento de quem está fazendo a identificação como também do estado em que ela se encontra. Na primeira fase do trabalho, os pesquisadores moeram a madeira e depois a levaram ao laboratório para preparar as amostras que seriam analisadas pelo espectrômetro. As respostas químicas associadas à análise estatística dos dados mostraram que era possível diferenciar as espécies e motivaram uma segunda etapa da pesquisa, a avaliação de amostras de madeiras inteiras. Foram analisadas 111 amostras, das quais 66 foram utilizadas para montar a base de informações das espécies no espectrômetro, conhecida como calibração. A partir dos dados obtidos e da análise estatística, foram criados os modelos para classificar cada espécie. As amostras restantes serviram para validar os modelos. “Estamos agora entrando em uma terceira fase, com a análise da madeira em um aparelho comercial portátil”, diz Tereza. Resultados similares - Como o custo
desse aparelho é em torno de € 20 mil, e os pesquisadores ainda não conseguiram comprá-lo, os testes preliminares foram feitos na França. As mesmas amostras testadas no Brasil foram levadas para aquele país, com resultados similares e promissores. O aparelho portátil vai facilitar o trabalho do fiscal, que poderá tirar o espectro da amostra em campo
e levá-lo ao laboratório para análise. “É possível também montar um modelo, com laboratórios acoplados, e distribuir em alguns portos, como os de Santarém, no Pará, e de Paranaguá, no Paraná, de onde sai muita madeira”, diz Vera. Um dos desdobramentos da pesquisa é o uso da tecnologia para diferenciar o carvão proveniente de floresta nativa e plantada, comprado pelas siderúrgicas. “O carvão vegetal usado pelas siderúrgicas tem que ser proveniente de área plantada ou autorizada para exploração”, diz Tereza. Mas nem sempre isso ocorre. Estudos de laboratório conseguiram separar os carvões de madeira de plantio daqueles de origem nativa. Ainda falta desenvolver um sistema de identificação semelhante ao da madeira. O problema é que o processo de produção do carvão é composto por diferentes sistemas adotados pelos carvoeiros. “Os processos podem ter diferenças químicas que comprometem a identificação”, diz Braga. n Artigos científicos 1. BRAGA, J.W.B. et al. The use of near infrared spectroscopy to identify solid wood specimens of Swietenia macrophylla. IAWA Journal. v. 32, n. 2, p. 285-96. 2011. 2. PASTORE, T.C.M. et al. Near infrared spectroscopy (NIRS) as a potential tool for monitoring trade of similar woods: discrimination of true mahogany, cedar, andiroba, and curupixá. Holzforschung. v. 65, p. 73-80. 2011. PESQUISA FAPESP 186
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[ engenharia naval ]
Cargueiro limpo e eficiente Navio brasileiro tem sistema inovador de carga e descarga de 400 mil toneladas de minério
A
embarcação Vale Brasil, o maior graneleiro atualmente em operação no mundo, com 362 metros de comprimento, 65 metros de largura e capacidade para transportar 400 mil toneladas a cada viagem, tem como principal característica a eficiência na carga e descarga, resultado de um inovador projeto de engenharia desenvolvido pela Projemar, empresa de engenharia naval do Rio de Janeiro, em parceria com a mineradora Vale. “O grande diferencial dessa embarcação é que cada um dos seus sete porões é carregado de uma única vez, o que elimina perdas de tempo e gasto de energia com os carregadores de navios se deslocando várias vezes ao longo do cais”, diz Fábio Brasileiro, diretor de navegação da Vale. “A arquitetura dos porões também foi concebida para que eles possam ser carregados e descarregados da forma mais rápida possível.” A diminuição da emissão de carbono por tonelada de minério transportada é outro ponto favorável à embarcação.
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A decisão de investir em uma embarcação capaz de transportar o equivalente em peso a 487 mil carros populares começou há cerca de oito anos, quando técnicos da equipe de navegação e de marketing da Vale perceberam que, pela enorme distância que separa o Brasil da Ásia, o principal mercado consumidor de minério de ferro brasileiro, seria preciso ter fretes com custos mais baixos. Para isso decidiram construir um navio mais eficiente e competitivo. A concepção e o projeto de engenharia são nacionais, mas a construção, que levou 20 meses, ficou a cargo do estaleiro sul-coreano Daewoo Shipbuilding & Marine Engineering. Os estaleiros sul-coreanos, assim como os chineses, estão preparados para a construção de meganavios em série e contam com mão de obra e instalações disponíveis para tanto. O Vale Brasil é o primeiro de 19 navios encomendados pela empresa a estaleiros asiáticos. Sete deles estão sendo construídos no Daewoo, ao custo de US$ 748 milhões, e outros 12 no estaleiro chinês Rongsheng Shipbuilding and Heavy Industries por US$ 1,6 bilhão. A previsão de entrega é entre 2011 e 2013. A indústria naval brasileira de construção de embarcações de grande porte, que chegou a ser uma das principais do mundo na década de 1970, ficou praticamente abandonada durante décadas e só mais recentemente começou a registrar uma retomada efetiva em função de encomendas da Petrobras, reforçadas pela descoberta do pré-sal. Ainda há muita coisa a ser feita, como a implantação de estaleiros em Alagoas, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Pernambuco e Espírito Santo, necessários para dar conta das contratações de navios e plataformas previstos no programa da Petrobras.
VALE
Menos carbono - Em maio, o Vale Brasil
recebeu em Oslo, na Noruega, o prêmio Nor-Shipping Clean Ship Award por emitir 35% menos carbono por tonelada de minério transportado em comparação com navios tradicionais de cerca de 200 mil toneladas, usados com a mesma finalidade. A feira Nor-Shipping é um dos principais eventos de navegação do mundo, organizada pela Sociedade Naval Portuguesa a cada dois anos. “A redução da emissão de carbono se dá pela tecnologia empregada na parte de motor, que otimiza a queima do combustível, de sensoriamento e de PESQUISA FAPESP 186
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VALE
Vale Brasil no Rio de Janeiro
geradores”, diz Brasileiro. “O Vale Brasil tem uma característica que o diferencia dos outros graneleiros em operação. É possível encher um porão inteiro sem necessidade de um plano de carregamento sequencial, como é usual para que o navio não sofra avarias”, diz o professor Paolo Alfredini, do Departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), que coordenou os ensaios de simulação de manobras no modelo físico reduzido do Terminal Ponta da Madeira, da Vale, em São Luís, no Maranhão. O carregador de navios é uma estrutura dotada de correia transportadora que descarrega o minério no porão das embarcações. Nos graneleiros projetados tradicionalmente é preciso fazer esse carregamento seguindo um plano preestabelecido de compensação das cargas, para que não ocorra um desequilíbrio ou até mesmo o rompimento do casco. “A concepção inovadora de carregamento resulta em substancial aumento de produtividade da operação portuária.” Parceria antiga - Em tamanho, o Vale
Brasil está em sexto lugar na lista dos maiores navios do mundo, liderada atualmente pelo Emma Mærsk, um porta-contêineres da Dinamarca com 397 metros de comprimento e 56 metros de largura, capaz de transportar 11 mil 78
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Todas as manobras realizadas no terminal marítimo de Ponta da Madeira foram simuladas em um modelo físico instalado na USP
contêineres com 123,2 mil toneladas de peso bruto e que desde 2006 atua entre a Ásia e a Europa. Até 2010 a posição era ocupada pelo superpetroleiro norueguês Knock Nevis, com 458 metros de comprimento e 69 metros de largura, que não está mais em operação. Tamanhos gigantescos também se constituem em um problema porque são poucos os portos capazes de receber embarcações desse tipo. A USP, parceira da Vale desde o final da década de 1970, colaborou para o sucesso do projeto com os ensaios de simulação de esforços sobre o sistema de
manobras feitos em um grande galpão de testes no laboratório ligado ao Departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental da Poli, em que o modelo ocupa atualmente cerca de mil metros quadrados. Um modelo físico reduzido do navio reproduz a semelhança geométrica, cinemática e a operação do terminal maranhense pertencente à Vale. “Todas as manobras realizadas em nosso terminal marítimo foram simuladas no modelo da USP”, relata Brasileiro. Os ensaios feitos sob a coordenação do professor Alfredini englobaram desde como o navio se comporta amarrado no porto até a questão da navegabilidade e de segurança das operações realizadas. “Um dos ensaios, por exemplo, simulou os esforços produzidos pelas correntes de maré sobre os cabos de amarração do navio antes de sua primeira atracação em São Luís”, relata o engenheiro Juliano Philippi, responsável pelos ensaios, que defendeu em 2010 sob a orientação de Alfredini sua tese de mestrado sobre simulação de manobras não tripuladas de navios. “Nessa região a influência das ondas não é significativa, mas a das correntes de marés sim”, diz Alfredini. “No Maranhão a maré oscila mais de seis metros de amplitude. Esses desníveis, que ocorrem ao longo de pouco mais de seis horas, geram correntes muito fortes.”
modelo físico reproduzem as manobras dos navios, como a atracação (chegada) e a desatracação (partida) com o navio sem carga e completamente carregado e qual o horário da maré, com a ajuda de um sistema radiocontrolado. Os práticos, que são os pilotos responsáveis pelas manobras do navio no porto, comandam o radiocontrole com ordens para o funcionamento da máquina do navio, do leme e da ação dos rebocadores a uma equipe que fica em outra sala. Os comandos são emitidos em forma de sinais de radiofrequência captados pelo navio. As manobras são vistas pelo prático por duas câmeras localizadas na ponte do modelo de navio, que reproduz a imagem de cada ação como se fosse a operação real no porto. Ou seja, é como se o piloto estivesse na ponte de comando da embarcação. O primeiro modelo físico da operação do terminal
EDUARDO CESAR
Escala reduzida - Os ensaios feitos no
Modelo na USP simula atracação do navio no terminal Ponta da Madeira
Transporte em dimensões Comparação entre comprimento do navio da Vale e de outros gigantes
Emma Mærsk > 397m o maior navio do mundo
vale BRASIL > 362m Carga: 400 mil toneladas de minério Tripulação: 23 pessoas
infográfico daniel das neves
Oasis OF THE SEAS > 360m o maior que transporta pessoas
titanic > 269m
boeing 737-800 > 39,5m
Ônibus Rodoviário > 14m
em escala reduzida começou a operar na USP em 1979 por encomenda da Amazônia Mineração, parceira da Companhia Vale do Rio Doce Mineração, antigo nome da mineradora Vale, e da norte-americana U.S. Steel, para o Projeto Carajás. O modelo foi ampliado quatro vezes, acompanhando o crescimento do terminal Ponta da Madeira, que inicialmente tinha um único píer e a partir do próximo ano contará com quatro, o último construído especialmente para receber o Vale Brasil. Desde 1991, quando foi desenvolvida a técnica de simulação analógica das manobras de navios, já foram feitas mais de 1.600 simulações para navios de grande porte que utilizam o terminal maranhense. Uma réplica do Vale Brasil foi construída com fibra de vidro e depois recebeu motor, leme e os mecanismos que, pelo controle de rádio, acionam esses mecanismos e os rebocadores. “Como a escala geométrica do modelo físico é de 1/170, o artifício utilizado para simular um rebocador puxando ou empurrando o navio é feito com ventiladores embutidos dentro do casco do navio”, diz Alfredini. “Por meio de uma adequada calibração, eles reproduzem o efeito dos rebocadores sem a necessidade da sua presença física.” A escala de tempo, pelo tamanho reduzido do modelo, também é 13 vezes mais rápida do que na realidade. Por isso o prático tem que executar as manobras muito mais rapidamente do que se estivesse comandando o navio no porto. n
Dinorah Ereno PESQUISA FAPESP 186
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humanidades
a cultura dos Enormes círculos e quadrados foram escavados no chão da Amazônia há 2 mil anos Marcos Pivetta
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[ ARqueologia ]
Desenho geométrico em Plácido de Castro, no Acre: palco de cerimônias
Edison caetano
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ouve uma época em que os deuses parecem ter sido geométricos num canto da Amazônia, o leste do Acre, perto da divisa com a Bolívia. E essa época provavelmente começou bem antes do que se pensava. Doze datações por radiocarbono feitas em diferentes setores de três sítios arqueológicos dessa região sinalizam que a construção dos chamados geoglifos – grandes desenhos escavados no solo da floresta por uma cultura pré-colombiana ainda não determinada, admiradora das linhas retas de quadrados e retângulos e dos traços arredondados de círculos e elipses – teve início há no mínimo 2 mil anos. Coordenado pela arqueóloga Denise Schaan, da Universidade Federal do Pará (UFPA), o novo estudo, cujo artigo está sendo finalizado antes de ser submetido à publicação numa revista científica, amplia a cronologia da cultura amazônica dos geoglifos. Até agora existia apenas o dado de uma datação feita em 2003 no Acre por pesquisadores finlandeses num desses sítios arqueológicos, que situava os desenhos como tendo sido produzidos entre os séculos XIII e XIV. Feita a partir de restos de carvão queimado encontrados numa camada geológica rica em pedaços de cerâmica, um indicativo de que houve ali alguma presença humana, a nova série de datações também sugere que os desconhecidos autores dos geoglifos podem ter desaparecido antes da chegada dos europeus nas Américas. Nenhum dos três sítios estudados (Fazenda Colorada, Jacó Sá e Severino Calazas), situados num raio de 20 quilômetros dentro de uma área de platô, de terra firme, não inundável, entre os vales dos rios Acre e Iquiri, forneceu, até agora, elementos de que foram habitados por tribos há mais de 500 anos. “O resultado das datações foi uma surpresa”, diz Denise, que comanda os trabalhos arqueológicos sobre os geoglifos desde 2005 com verbas do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), da Academia de Ciências da Finlândia e do estado do Acre. A idade dos desenhos geométricos, moldados no solo amazônico por meio da retirada de grandes quantidades de terra, não é o único ponto em revisão. A função primordial desses sítios, que podem apresentar mais de um tipo de geoglifo e vestígios de antigas estradas, também está em aberto. Desde os anos 1970, quando partes do Acre começaram a ser desmatadas por atividades agropecuárias e foram avistados os primeiros geoglifos em pontos até então cobertos pela floresta, os pesquisadores se indagam por que os antigos habitantes da região esculpiram círculos e quadrados em baixo-relevo no solo. A hipótese inicial de que as construções, cujos contornos são formados por valas contínuas abertas no terreno, poderiam ter tido funções defensivas, semelhantes à de um forte, parece fazer cada vez menos sentido. Escavações recentes feitas em quase uma dezena de sítios do Acre associados à ocorrência dos desenhos sinalizam que esses lugares não foram usados prioriPESQUISA FAPESP 186
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tariamente como moradia por povos antigos. Como uma espécie de praça tribal, a área interna dos geoglifos deve ter sido utilizada para cerimônias. “A evidência arqueológica sugere que esses sítios eram usados para encontros especiais, cultos religiosos e apenas ocasionalmente como aldeia”, diz Denise. Quando iniciaram as incursões de campo, os pesquisadores trabalhavam com a ideia de que os sítios com geoglifos pudessem fornecer algum tipo de evidência de ocupação humana em larga escala e por um período prolongado em sua vizinhança. Afinal, é mais do que razoável supor que o povo responsável pela confecção dos grandes e precisos desenhos no solo era numeroso e apresentava uma estrutura social complexa. “Os construtores dos geoglifos não tinham pedras naquela região, mas fizeram enormes trabalhos na terra que demandavam poderio e habilidades de organização comparáveis à de outras civilizações antigas”, diz o arqueólogo Martti Pärssinen, do Instituto Ibero-americano da Finlândia, sediado em Madri, que colabora com a equipe brasileira e também um dos autores do trabalho com as novas datações dos geoglifos acreanos. Em média, a área interna de um geoglifo varia de 1 a 3 hectares. As figuras menores apresentam geralmente linhas arredondadas, enquanto as maiores podem ser tanto círculos como quadrados. Nos sítios estudados, a profundidade dos buracos no solo que formam os traços dos desenhos variou de 35 centímetros a 5 metros (m) e a amplitude das valetas foi de 1,75 a 20 m. A terra
Arqueólogos já encontraram cerca de 300 sítios com os geoglifos, mas não acharam os locais de moradia do povo que os construiu
Entre o Acre e a Bolívia A maior parte dos sítios com desenhos (pontos no mapa) se concentra nessa região
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ssadas humanas preservadas não foram encontradas em nenhum lugar. Não há também manchas da chamada terra preta, um tipo de solo negro muito comum em outras partes da Amazônia, que se forma a partir de restos orgânicos produzidos pelo estabelecimento de ocupações humanas prolongadas numa área. Os poucos artefatos associados a uma cultura material, em geral alguns pedaços de cerâmica, foram resgatados no topo ou no fundo das valas que formam as linhas geométricas ou em pequenos montículos de terra, provavelmente restos de habitações pré-históricas, que se situam bem ao lado dos contornos dos geoglifos. Dentro da área plana demarcada pelos misteriosos círculos e quadrados escavados no chão nada de realmente relevante foi resgatado. “Ainda precisamos achar os locais de moradia e cemitérios dos construtores dos geoglifos”, afirma o paleontólogo Alceu Ranzi, hoje professor aposentado na Universidade Federal do Acre (Ufac), a quem se deve a (re)descoberta dos desenhos no solo
projeto geoglifos da amazônia ocidental
Agência de Notícias do Acre e edison caetano
bolívia
retirada para abrir os fossos era usada pelos arquitetos dos geoglifos para fazer pequenas muretas, de até 1,5 m, que seguiam os contornos das figuras. Para dar conta de todo esse serviço, milhares de pessoas deveriam ter vivido em algum momento nos arredores dos geoglifos e trabalhado de forma coordenada para sua construção. Mas os achados arqueológicos nos sítios investigados em detalhe não ratificam, uma vez mais, o pressuposto inicial dos pesquisadores.
Diversidade de formas: geoglifos com linhas arredondadas e retas 82
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edison caetano / projeto geoglifos da amazônia ocidental
Sítio da Encrenca: círculo perfeito
nas duas últimas décadas. “Eles devem ter vivido em algum lugar não muito longe dos sítios.” A tecnologia aeroespacial tem sido uma aliada dos arqueólogos na tarefa de localizar e estudar os sítios amazônicos com geoglifos. Estar um pouco longe e acima dos desenhos, dentro de um avião ou tendo como olhos as lentes de um satélite, facilita o trabalho de procura das grandes figuras geométricas em meio a áreas desmatadas (se há floresta esse expediente não funciona). Inicialmente, os cientistas usaram as imagens gratuitas do serviço Google Earth para procurar novas ocorrências dos desenhos. A partir de 2007, com apoio do governo do Acre, obtiveram também as imagens do satélite taiwanês Formosat-2, que têm maior cobertura. Com o emprego dessas ferramentas de prospecção remota, a quantidade de sítios conhecidos com geoglifos deu um salto: saiu de 32 em 2005, chegou a 150 dois anos mais tarde e hoje está na casa dos 300. Esses são os números relativos ao Acre, que parece ter sido a região onde os desenhos se concentram e podem se espalhar por uma porção do estado com uma área de 25 mil quilômetros quadrados, 16 vezes o tamanho da cidade de São Paulo. Nos estados vizinhos do Amazonas e de Rondônia e também na Bolívia foram identificadas áreas com geoglifos por essa metodologia. “Não é mais tão fácil encontrar novos sítios, pois já fizemos várias varreduras sistemáticas”, explica a geógrafa Antonia Barbosa, da (Ufac), membro da equipe nacional que estudou
Povo que fez os geoglifos deveria viver em sociedade complexa, mas provavelmente vivia fase de transição
os geoglifos. “Quando iniciamos o trabalho com imagens de satélite, encontrávamos em uma varredura uns 10 sítios. Hoje, com sorte, achamos um ou dois.”
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ão há evidências concretas sobre quem foram os construtores dos geoglifos nem quanto tempo foi consumido nessa tarefa. A construção de valetas e muretas para cercar casas e aldeias já ocorria, por exemplo, na Europa há aproximadamente 10 mil anos, nos primórdios da agricultura. Mas na Amazônia esse tipo de construção é bem mais rara. Como até agora não há indícios de que a fronteira do Acre com a Bolívia foi a morada de uma única e grande civilização perdida, cujos restos das casas e grandes aldeias ninguém consegue encontrar, os arqueólogos passaram a trabalhar com um cenário intermediário. Não deve ter havido um enorme império perdido
que cultuava deuses geométricos nesse canto da Amazônia, mas talvez dois ou três povos, ainda seminômades e espalhados por pequenas aldeias (hoje mais difíceis de serem encontradas), que partilhavam alguns traços culturais em comum, como a feitura dos geoglifos. “A sociedade dos geoglifos era de alguma forma complexa, mas estava num estágio formativo, de transição”, diz a arqueóloga Sanna Saunaluoma, da Universidade de Helsinque, que estuda os desenhos tanto na Bolívia como no Acre, aqui do lado dos brasileiros. Membros das etnias Tacana e Aruaque, que hoje habitam respectivamente o lado boliviano e brasileiro dessa fronteira binacional, são apontados como os possíveis descendentes dos povos que tiveram a tradição de traçar enormes círculos e quadrados no solo. Mas, se um dia foram portadores dessa tradição comum, hoje não a professam mais. Para tornar o quadro mais incerto, não há provas de que as duas tribos estivessem realmente presentes nessa área na época em que os geoglifos foram feitos, tampouco se sabe qual era a divisa territorial que as separava. Uma pista, ainda tênue, de que ao menos uma dessas etnias, a Tacana, pode ter construído geoglifos vem de um texto do final do século XIX. O escrito relata o encontro de um coronel brasileiro, na divisa com a Bolívia, com 200 índios que moravam numa aldeia muito organizada e cultuavam deuses geométricos, talhados em madeira. A história não prova nada, mas pode ser um rastro a ser seguido. n PESQUISA FAPESP 186
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As pedras do sol Blocos de granito talhados há mil anos no Amapá estão alinhados com a trajetória do astro
calçoene
AP macapá
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o final do século XIX, o zoólogo suíço Emílio Goeldi fez uma expedição ao rio Cunani e encontrou grandes blocos de rocha que pareciam apontar para o céu em terras do atual norte do Amapá, uma área então em litígio entre o Brasil e a França. Ao longo das seis primeiras décadas do século passado, alguns pesquisadores de renome, como o alemão Curt Nimuendajú nos anos 1920 e os americanos Betty Meggers e Clifford Evans no final dos anos 1950, também avistaram essas construções humanas com os tais blocos de granito em alguns sítios arqueológicos. Pouca cerâmica associada aos locais dos megálitos, como são chamadas as grandes estruturas de pedra arranjadas ou construídas por mãos humanas, foi resgatada e ganhou corpo a interpretação de que, naquele pedaço quase perdido da Amazônia, apenas uma pequena população de algum povo pré-colombiano deve ter feito sua morada. Os sítios deveriam ter sido usados basicamente para fins cerimoniais. Depois disso, a região caiu num semiesquecimento para a ciência. Até que, em 2005, um jovem casal de arqueólogos gaúchos, Mariana Petry Cabral e João Darcy de Moura Saldanha, deixou o Sul, se mudou para a capital amapaense e passou a se dedicar ao estudo de alguns 200 sítios pré-históricos do estado, dos quais uns 30 apresentam megálitos. Embora ainda haja muitas lacunas de conhecimento sobre a antiga cultura que talhou e ordenou os blocos de granito, alguns com até 2,5 metros de altura e 4 toneladas, a
Sítio do Rego Grande: astronomia e cemitério
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dupla de pesquisadores produziu uma série de novos dados sobre o contexto em que as estruturas foram erigidas. Pela primeira vez, o importante sítio do Rego Grande, dotado de vistosas pedras na posição vertical e situado em Calçoene, município distante 460 quilômetros ao norte de Macapá, foi alvo de uma datação por carbono 14, um dos métodos mais confiáveis. “Conseguimos realizar três datações de fragmentos de carvão encontrados dentro de poços funerários do Rego Grande”, diz Mariana, que, como Saldanha, trabalha no Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá (Iepa). O local foi habitado há cerca de mil anos, dado que confirma as estimativas iniciais dos cientistas. Outros 10 sítios do Amapá, três deles com megálitos, também foram datados e todos parecem ter sido ocupados entre 700 e mil anos atrás. É relativamente comum que sítios pré-históricos com megálitos exibam evidências de terem sido usados como lugares para observação de algum fenômeno astronômico. Essa é uma das funções que se atribuem comumente ao famoso círculo de pedras de Stonehenge, erigido há 4,5 mil anos no sul da Inglaterra. Seria o Rego Grande um
Fotos mauricio de paiva
Mapa com zona de ocorrência dos sítios com megálitos, cerâmica aristé e monólito apontando para o sol no dia do solstício
Stonehenge amazônico? As evidências apoiam essa interpretação. Nos últimos anos os arqueólogos realizaram medições sistemáticas sempre na data de 21 ou 22 de dezembro, que marca o solstício de inverno (Calçoene está acima da linha do equador), e verificaram que um fino monólito parece estar alinhado com a trajetória do sol ao longo desse dia. Ao nascer, o sol está no topo da rocha e, com o passar das horas, vai descendo até morrer na base da rocha. “Nessa época do ano o solstício marca o início da temporada de chuvas na Amazônia”, comenta Saldanha. “Os índios deviam saber disso.” Dois outros blocos de granito, inclusive um com furo feito por mãos humanas, também ocupam posições aparentemente associadas ao movimento do astro nessa data. Como as pedras e blocos inclinados do Rego Grande exibem uma robusta fundação, feita também de pedras, os arqueólogos acreditam que a angulação do megálito foi pensada por seus idealizadores, e não seria fruto do desgaste natural sofrido pelos pedaços de granito do sítio. Especialista em megálitos, em especial os do Alentejo, o arqueólogo português Manoel Calado, da Universidade de Lisboa, concorda com a hipótese de que as pedras inclinadas do Rego Grande podem ter sido dispostas dessa maneira para marcar a observação, na linha do horizonte, de eventos astronômicos simples, de caráter cíclico, como a trajetória do sol solsticial. “Não tenho nenhuma dúvida (disso)”, diz Calado, que já esteve no Amapá para conhecer as estruturas líticas desse sítio, mas não faz parte do grupo de pesquisa dos brasileiros. “Esse
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15h30
Construtores dos grandes blocos de granito devem ter morado em pequenas aldeias esparsas
é um dos aspectos que tornam os megálitos amazônicos muito semelhantes aos da Europa.” Para ele, a construção desse tipo de estrutura pode ter sido realizada no Amapá num momento em que as tribos locais passavam por um processo de sedentarização e de eclosão ou desenvolvimento da agricultura. Era preciso estar fixo à terra para alterar a paisagem com estruturas como os megálitos. Cemitério - Rego Grande e outros sí-
tios com megálitos exibem traços de terem sido usados também como cemitérios, outra característica típica desse tipo de estrutura pré-histórica. Urnas funerárias feitas no estilo cerâmico aristé, marcado por desenhos vermelhos sob um fundo branco ou pontuado por gravuras feitas na argila ainda úmida, foram encontradas nesses locais. Pedaços de vasos decorados, achados junto às urnas, indicam que os mortos podem
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ter sido enterrados ao lado de oferendas. “Os sítios com grandes megálitos devem ter sido destinados às pessoas mais importantes da tribo”, afirma Saldanha. O problema é que cerâmicas desse estilo foram igualmente encontradas em sítios pré-históricos que não exibem monumentos de pedra. Comum em todo o litoral norte do Amapá e na Guiana Francesa, a elaborada cerâmica aristé deixou de ser produzida depois da chegada do europeu às Américas e, segundo Mariana, sua confecção não pode ser associada a nenhum povo indígena atual da região. A dupla de pesquisadores, que representa dois terços da arqueologia amapaense (só há mais um especialista nesse tema no estado), escavou ainda duas aldeias antigas, também na região de Calçoene, onde devem ter morado os construtores das grandes estruturas líticas. Descobriram vestígios de apenas meia dúzia de habitações em cada aldeia. No início de seus trabalhos os arqueólogos ainda se amparavam na hipótese de que poderia ter havido uma sociedade complexa e organizada, com uma população numerosa e grandes acampamentos, no norte do Amapá, por volta do ano mil da era cristã, quando surgiram os primeiros megálitos. Agora acreditam que a alteração na paisagem natural do Amapá pode ter sido produzida por tribos com poucos representantes. “Eles parecem ter vivido em pequenas aldeias esparsas, mas tinham uma liderança e organização para ter feito os megálitos”, afirma Saldanha. n
Marcos Pivet ta PESQUISA FAPESP 186
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[ ranking ]
Excelência nas humanas Cursos brasileiros se destacam no cenário internacional Márcio Ferrari ilustração Bel Falleiros
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QS (Quacquarelli Symonds), que desde 2004 avalia e classifica anualmente universidades de todo o mundo, publicou no início de julho o primeiro ranking global separado por áreas de conhecimento (disponível no site www.topuniversities.com). Há cursos brasileiros relativamente bem colocados entre os primeiros 200, sobretudo nos grupos gerais de “ciências sociais” e “artes e humanidades”. As listas especificam as posições de 1 a 50 e depois reúnem em três grupos, por ordem alfabética, as instituições que ficaram entre as posições 51-100, 101-150 e 151-200. No cômputo geral das ciências humanas aparecem seis instituições brasileiras: duas estaduais (USP e Unicamp), duas federais (UFRJ e UFMG), a Fundação Getúlio Vargas (FGV) e a Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio). Há duas de outros países latino-americanos (Universidade Nacional Autônoma do México e PUC-Chile). Da USP, filosofia e sociologia se classificaram no grupo 51-100 e geografia e relações internacionais ficaram entre 151 e 200. A Unicamp está entre 101 e 150 em filosofia e entre 151 e 200 em estatística e pesquisa operacional. Com esses dois mesmos cursos, a UFRJ ficou em posições invertidas. A FGV e a UFMG aparecem entre 151 e 200 com relações internacionais e filosofia, respectivamente. A título de comparação, nas áreas de exatas e biomédicas, estão representadas apenas três universidades: USP (agronomia entre 51 e 100 e engenharia civil entre 151 e 200), Unicamp (engenharia elétrica e eletrônica entre 151 e 200) e PUC-RJ (engenharia civil, 151-200).
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“Os critérios que norteiam esses rankings não podem ser considerados únicos nem infalíveis, mas seria absurdo desconhecer sua utilidade e a visibilidade que eles trazem”, diz Modesto Florenzano, vice-diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, que abriga três dos departamentos citados no ranking (Filosofia, Sociologia e Geografia). “A finalidade maior dessas listas – e é nisso que estão economicamente baseadas – é oferecer a pessoas que pretendem ingressar nas instituições um panorama das universidades. Por isso fazer uma pesquisa por disciplina é uma boa iniciativa”, explica Rogério Meneghini, especialista em cienciometria, o estudo dos aspectos quantitativos da ciência e da produção científica. “Os rankings não foram feitos para dar uma visão ampla da qualidade das universidades, mas acabaram servindo para isso.” A QS, com sede no Reino Unido e escritórios em vários países, intencionalmente elabora seus rankings com o objetivo de servir de orientação para
alunos que queiram estudar fora de suas cidades ou, principalmente, de seus países de origem. Por isso dá atenção especial ao grau de internacionalização das instituições avaliadas. O ranking recente foi feito com base em três grandes critérios: reputação acadêmica (professores são chamados a avaliar cursos e universidades que não são os seus), reputação entre empregadores (sobre a qualidade dos profissionais egressos das instituições) e número de citações em publicações acadêmicas. A inclusão do item da “empregabilidade” é tida pela QS como o grande diferencial dos seus rankings, embora gere críticas por se tratar de um índice que não necessariamente tem a ver com a qualidade da produção intelectual das universidades. “Para nosso público-alvo, seria desproporcional colocar maior ênfase na pesquisa acadêmica do que já fazemos”, diz Ben Sowter, chefe da unidade de informação da QS. “Além disso, os outros rankings já dão essa ênfase, em parte pelo tipo de dados disponível internacionalmente e em parte devido à história de como eles surgiram. A primeira classificação internacional foi criada pelo governo chinês [via Universidade de Xangai] para destacar as proezas da pesquisa científica em suas universidades em comparação com as do Ocidente.”
O ranking da QS, no entanto, também não está livre de viés. Basta um primeiro passar de olhos pelas listas para que fique evidente a presença maciça e predominante de universidades de países de língua inglesa (não só Estados Unidos e Reino Unido, mas também Canadá e Austrália). No ranking de filosofia, por exemplo, chama a atenção a pequena e fraca representação das instituições dos países que mais contribuíram historicamente (e até hoje) para esse campo do saber, França e Alemanha. “Como pode a Universidade de Frankfurt, que tem Jürgen Habermas e Axel Honneth, ficar lá embaixo na lista?”, pergunta Ricardo Ribeiro Terra, professor do Departamento de Filosofia da FFLCHUSP e coordenador da área de ciências humanas e sociais da FAPESP (filosofia). PESQUISA FAPESP 186
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As melhores universidades sempre foram pontos de encontro das
Terra observa ainda a pequena ou nula quantidade de artigos em publicações internacionais de alguns cursos brasileiros, mesmo bem avaliados, como o de sociologia. “Isso faz levantar dúvidas quanto ao conjunto de revistas escolhido e supor que se limita à filosofia analítica do tipo hegemônico nos Estados Unidos”, diz ele. Financiamento - A língua inglesa co-
mo parâmetro internacional não deixa de ser, por outro lado, um dado incontornável. “Há um interesse perceptível de alunos estrangeiros em estudar no Brasil, em grande parte pela possibilidade de conseguir financiamento para pesquisa num estágio bem inicial da carreira acadêmica. Até mesmo a bolsa parece atraente, mas a maioria não vem porque o português é tido como uma barreira”, diz Meneghini. Por isso, o peso conferido pela QS à internacionalização a suas avaliações é visto como correto – e também é consensual a constatação de que ainda há poucos estudantes estrangeiros nas universidades brasileiras. “As principais universidades sempre foram pontos de encontro das melhores mentes do mundo”, dis Sowter. “Grande parte do impulso de internacionalização é
melhores mentes do mundo, diz Sowter, da QS conduzida não apenas pelas instituições individualmente, mas por políticas governamentais. Nos últimos tempos, as universidades tornaram-se centrais para a política econômica, porque os governos perceberam que pesquisa e inovação desempenham papéis-chave no estímulo ao crescimento.” Mas não é fácil pesar a qualidade dos cursos por critérios numéricos de internacionalização. “Na área de ciências sociais, a maioria dos trabalhos se refere a questões brasileiras e eles não são, naturalmente, veiculados em publicações estrangeiras”, diz Terra. “Devia-se pensar em critérios que avaliassem também o impacto interno.” Ao mesmo tempo, as características regionais podem estar na origem do prestígio de algumas pesquisas brasileiras. “A alta complexidade territorial e social do Brasil exigiu a criação de uma teo-
ria sofisticada”, afirma Antonio Carlos Robert de Moraes, do Departamento de Geografia da FFLCH-USP e coordenador da área de ciências humanas e sociais da FAPESP (geografia). Os observadores dos rankings internacionais são unânimes em afirmar que, dada sua criação recente, os critérios ainda precisam passar por muito aperfeiçoamento. A própria QS concorda com isso, e a decisão de criar um ranking por área foi um modo de tornar mais específicas e úteis as classificações. “A questão mais delicada diz respeito à possibilidade de produzir critérios compatíveis com as diferentes formas de produzir conhecimento nas diversas disciplinas”, diz Paula Montero, professora do Departamento de Antropologia da FFLCH-USP e coordenadora adjunta da Diretoria Científica da FAPESP. Ela considera o critério de consulta aos pa-
Instituição
Estatística & Pesquisa Operacional
Sociologia
Políticas & Relações internacionais
Direito
Economia & Econometria
Universidade Nacional Autônoma do México Universidade de São Paulo Universidade Federal do Rio de Janeiro Pontifícia Universidade Católica do Chile Fundação Getúlio Vargas Universidade Estadual de Campinas Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
— — 101-150 151-200 — 151-200 —
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Fonte: Quacquarelli Symonds
América Latina na QS University rankings: ciências sociais
QS World University rankings globais: filosofia 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 51-100 101-150 151-200 151-200
instituição
país
acadêmico
empregador
citações
pontuação
Universidade Harvard Universidade de Oxford Universidade de Cambridge Universidade da Califórnia, Berkeley Universidade Princeton Universidade Nacional da Austrália Universidade de Toronto Universidade Stanford Universidade Yale Universidade de Chicago Universidade de São Paulo Universidade Estadual de Campinas Universidade Federal de Minas Gerais
Estados Unidos Reino Unido Reino Unido Estados Unidos Estados Unidos Austrália Canadá Estados Unidos Estados Unidos Estados Unidos Brasil Brasil Brasil Brasil
99,6 100,0 94,5 88,4 80,1 73,8 77,1 74,8 73,2 71,1 26,8 16,1 10,7 14,4
96,3 95,4 100,0 65,4 39,7 52,8 60,6 46,0 64,4 50,4 5,9 0,0 0,0 0,0
50,3 41,0 51,9 73,3 81,6 95,1 36,1 56,7 22,1 13,8 5,0 9,8 8,5 0,0
94,3 93,6 90,8 84,6 76,2 73,8 71,4 70,1 67,2 63,3 – – – –
Universidade Federal do Rio de Janeiro
res (reputação acadêmica) o mais importante: “Quando uma área de conhecimento é suficientemente desenvolvida e diversificada, esse tipo de avaliação externa funciona muito bem”. Apesar de ser o mais estabelecido, o critério das citações em publicações acadêmicas também é alvo de restrições. “Até hoje não vi uma medição que tente avaliar a qualidade da pesquisa”, diz Meneghini. Além disso, os dados nesse quesito são colhidos em números brutos, o que faz com que universidades imensas, como a USP, saiam com vantagem na competição. Modéstia - Mesmo assim, a boa po-
sição dos cursos da FFLCH-USP não surpreende. “Sem falsa modéstia, o Departamento de Geografia da USP forma o resto do país e dá o tom da disciplina na América Latina”, diz Robert de Moraes. “Nossa presença no exterior é muito expressiva e sediamos uma boa quantidade de encontros internacionais”, prossegue Terra. Em parte, isso se deve à origem da FFLCH, que foi o núcleo central da criação da USP, na década de 1930, com a vinda de professores estrangeiros, sobretudo franceses. “Nós já começamos internacionalizados e viemos de uma forte tradição humanista”, diz Florenzano. “As ciências sociais no Brasil sempre tiveram um padrão relativamente bom por razões históricas”, diz Paula Montero. “No entanto, o declínio da qualidade da escola pública, a massificação do en-
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Nós já começamos internacionalizados e viemos de uma forte tradição humanista, diz Florenzano, da FFLCH
sino superior, a falta de avaliação de desempenho das universidades e o relativo isolamento das ciências humanas em relação ao debate internacional foram fatores que militaram contra a expansão e a consolidação dessa qualidade.” A tradição se reflete mesmo num curso recente e que não faz parte da FFLCH, como o do Instituto de Relações Inter-
nacionais (IRI). “Vou ser muito sincera. Acho que nesse ranking pegamos carona no Departamento de Ciência Política, bem mais antigo e conhecido que o IRI, que foi criado em 2004 e tem apenas dois anos de pós-graduação”, diz Maria Hermínia Brandão Tavares Almeida, diretora do instituto. Mas, obviamente, a qualidade do curso está de alguma forma refletida no ranking. Por isso tudo, a presença em listas como as da QS é ao mesmo tempo importante e relativa. “Só universidades pouco consistentes se deixam dirigir por demandas desse tipo de pesquisa, mas elas podem ser um elemento a ser levado em conta nas diretrizes acadêmicas”, diz Marcelo Ridenti, formado em sociologia pela USP, professor da Unicamp e coordenador de ciências humanas e sociais da FAPESP (sociologia). “O procedimento de avaliação tem de partir da própria universidade, como os levantamentos que a USP tem realizado periodicamente”, diz Meneghini, que participou de comissões de avaliação da universidade com a presença de especialistas estrangeiros. Florenzano concorda: “Precisamos principalmente diagnosticar a qualidade da graduação, e esse é o ponto de partida mais importante.” n PESQUISA FAPESP 186
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A novela perdeu o bonde da história Cai status do gênero como lugar privilegiado de discussão das questões nacionais Carlos Haag Foto grafias Tadeu Vil ani
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m 1981, durante uma crise política grave no governo Figueiredo, o todo-poderoso Golbery do Couto e Silva pediu demissão do governo. Aos jornalistas justificou-se: “Não me perguntem nada. Eu acabo de sair de Sucupira”. A referência à cidade fictícia da novela O bem-amado (1973) e à minissérie homônima (1980-1984), de Dias Gomes, num momento delicado como aquele, revela o poder, à época, das telenovelas como representação da realidade nacional e de como os brasileiros se reconheciam nessas representações. “A partir de conflitos de gênero, geração, classe e religião, a novela fez crônicas do cotidiano que a transformaram num palco privilegiado de interpretação do Brasil. O país, que se modernizava num contexto de modernização centrada no consumo, e não na afirmação da cidadania, se reconhecia na tela da TV em um universo branco e glamoroso”, explica Esther Hamburger, professora do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Universidade de São Paulo (USP) e autora do estudo O Brasil antenado (Jorge Zahar Editor). Ela analisou os novos rumos do gênero na pesquisa Formação do campo intelectual e da indústria cultural no Brasil contemporâneo, apoiada pela FAPESP e coordenada pelo sociólogo da USP Sérgio Miceli. O projeto reúne, além de Esther, outros pesquisadores de várias áreas e temas. “No Brasil que se democratizava, a novela tratou em primeira mão de assuntos que pautariam a cena política na década seguinte. Mas, hoje, ela perdeu o seu status privilegiado de problematização das questões nacionais. Não consegue mobilizar a opinião pública,
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não é mais totalmente nacional e tampouco a vitrine do país. É provável que não seja mais capaz de sintetizar o país”, avisa a pesquisadora. “Afinal, aquele país centralizado, passível de uma representação hegemônica, não existe mais. Novos meios como TV a cabo e a internet tiraram da novela o seu caráter de arena de problematização. A sociedade mudou e há muita diversificação. A alfabetização aumentou e a TV não é mais o único lugar para achar informações”, observa. Para Esther, no país atual não é mais possível uma novela falar para toda a nação. “Não há mais um Brasil na TV, mas vários”, avalia. Queda - “A novela permanece estraté-
gica na receita e na competição entre as emissoras de televisão, mas sua capacidade de polarizar audiências nacionais está em queda. O gênero abusa de mensagens de conteúdo social, enquanto perde seu diferencial estético e sua força polêmica. A nação já não é mais o tema central, porque os temas extrapolam fronteiras. Há cada vez menos referências a assuntos atuais e polêmicos. A opção é por campanhas politicamente 92
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corretas, muitas vezes em detrimento da dramaturgia, amarrando a criatividade dos autores”, diz Esther. Segundo a pesquisadora, a estrutura de conflitos melodramáticos que sustenta a narrativa ainda se mantém, mas em histórias que voltam a se restringir a espaços imaginados como femininos, o público inicial dos primórdios da telenovela nacional, e de menor valor cultural. O gênero também não atrai mais tantos talentos criativos, com textos fracos e enredos repetitivos que insistem em velhos clichês e convenções que fizeram sucesso no passado. “Ainda assim, não se pode negar que a novela pode voltar a ter o impacto político e cultural de antes, influindo no comportamento e na moda. Ela ainda é um lugar onde se pode aprender algo, em especial o novo público predominante, abaixo das classes A e B”, fala. Do apogeu à crise recente de queda de audiências foi um longo caminho. No início imperava o estilo “fantasia”, cheio de sentimentalismo, em produções dos anos 1960, como o exótico Sheik de Agadir, paradigma quebrado com o realismo de Beto Rockfeller, re-
presentação da contemporaneidade das classes médias emergentes. Nos anos 1970 romperam-se os limites do dramalhão, mas as novelas viraram vitrines do ser moderno: a moda e o comportamento. “A Globo, durante a ditadura, adotou o discurso oficial, mas entendeu que, nas novelas, ao invés de esconder os problemas, era melhor incorporá-los nas tramas, como fez em O bem-amado. Foi o início de uma crítica crescente ao processo de moderni-
O Projeto Formação do campo intelectual e da indústria cultural no Brasil – nº 08/55377-3 modalidade
Projeto Temático Coordenador
Sérgio Miceli – Unicamp investimento
R$ 534.463,00
zação”, lembra Mauro Porto, professor da Tulane University e autor da pesquisa Telenovelas and national identity in Brazil. O realismo tomou conta do gênero: uma pesquisa de 1988 revelou que 58% dos entrevistados queriam ver “a realidade” nas novelas e 60% desejavam que as tramas falassem da política. “Os autores, de uma geração de esquerda, se viam como responsáveis por um projeto nacional e de consciên cia popular”, nota Porto. “As novelas registraram os dramas da urbanização, das diferenças sociais, da fragmentação da família, da liberalização das relações conjugais e dos padrões de consumo. Chegaram ao seu ápice quando falaram dos problemas da modernização como Vale tudo (1988) e Roque Santeiro (1985)”, diz Esther. Mas a TV Manchete trouxe uma leitura alternativa do país com Pantanal, pleno do exótico e do erótico, o que rompeu o ciclo político das novelas, inclusive na Globo, que se viu obrigada a emular o novo conceito. “O ‘efeito Pantanal’, porém, não deixou herdeiros e hoje foi esquecido.” Intimidade - “Nesse percurso, a teleno-
vela criou um repertório comum pelo qual pessoas de classes sociais, gerações, sexo, raça e regiões diferentes se reconheciam, uma ‘comunidade imaginada’ de problematização do Brasil, da intimidade com os problemas sociais, veículo ideal para se construir a cidadania, uma narrativa da nação”, analisa
Telenovela não tem mais a audiência nacional que cobria todas as classes e lugares e, hoje, tenta atender um público popular
Maria Immacolata Lopes, professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP) e coordenadora do Núcleo de Pesquisa de Telenovelas. O modelo se desgastou e o país mudou. “Entre 1970 e 1980 houve uma mágica entre público e novela. Em Vale tudo, pela primeira vez se viu a corrupção num espaço público não político e as novelas estavam na vanguarda”, nota Esther. “Hoje a corrupção é banal, não é mais polêmica, só traz o tédio da repetição. Em 1988 era novidade; em 2011 é algo batido.” As novelas não estão mais ante-
nadas com o país. “Mesmo a literatura contemporânea acadêmica estrangeira sobre televisão já não discute mais a telenovela brasileira e o ‘caso’ brasileiro perdeu espaço interna e externamente diante de uma renovação da ficção televisiva internacional, em especial os seriados americanos, que ganham espaço nos canais nacionais, um novo fluxo de importação de programação que as novelas haviam substituído nas décadas anteriores”, explica. Os sitcons de hoje, ao contrário do passado, quando eram “obras fechadas” e sem improviso, estão abertos aos indicadores de sucesso e podem mudar seu rumo enquanto estão no ar, trazendo alusões a elementos políticos e culturais da realidade americana e problematizando os EUA. “Não temos a mesma audiência nacional com todas as classes e lugares. Tudo ficou mais popular e as novelas atendem esse público espectador com merchandising social, sexo, dinâmica de tramas que mudam toda hora, ação, assassinatos”, analisa. Para a pesquisadora, essa quebra na dramaturgia reduz ainda mais o escopo do público ao fazer cair o interesse de uma grande parte da audiência. Esther cita novas alternativas como Cordel encantado, que remete às novelas fantasiosas. Há também a procura de novos autores e diretores ou o remake de antigos sucessos, como O astro, para recuperar fórmulas de sucesso do passado, mas, mesmo adaptadas, conservam sabor de “coisa velha”. “Não sabemos se os brasileiros ainda desejam o realismo, mas é certo que se cansaram das novelas urbanas no eixo Rio-São Paulo. Gostariam de conhecer novas rea lidades e o aspecto regional antes desprezado ou caricaturado.” A renovação não é fácil, como mostra o fracasso de experimentações como Cidade de Deus ou Antonia. “Uma solução seria mostrar a violência das cidades, do tráfico, mas isso ainda é tabu nas novelas. O cinema se revelou mais ‘antenado’ ao mostrar os poderes paralelos das periferias, como em Tropa de elite. Ou, Dois filhos de Francisco, filme que traz um Brasil onde os humildes se realizam.” A novela, pela primeira vez, perdeu o bonde da história. Num escândalo recente, um colunista político não usou uma citação de novela, como Golbery, para falar do caso, mas o bordão do filme Tropa de elite: “Palocci, pede pra sair!”. n PESQUISA FAPESP 186
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resenha
O Brasil político das entrelinhas A melhor forma de entender o país é por suas anomalias Maria da Conceição Quinteiro
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osé de Souza Martins propõe, neste livro, a compreensão do Brasil político pela perspectiva das anomalias constituintes da sociedade brasileira, consubstanciadas nos arcaísmos em coexistência com formas modernas, nas concepções, ideias e práticas sociais e políticas. São anomalias que nos distanciam dos modelos consagrados de análise política, como a da insidiosa presença da dominação patrimonial instituída um dia no interesse do latifúndio, a persistência da corrupção e a reiteração do trabalho escravizado por dívida no campo e na cidade. Sobretudo, conciliação e convivência políticas de práticas e concepções entre si opostas, como as da Igreja Católica, da grande tradição do pensamento conservador, que apoia e mediatiza reivindicações populares de caráter socialmente modernizador, enquanto grupos liberais, de centro-esquerda e de esquerda, comportam-se como conservadores. Nessa inversão, a dinâmica da sociedade brasileira se torna anômica na gestão política dos débitos sociais do passado, os particularismos sobrepondo-se à universalidade possível. Nessa dinâmica de opostos, compreende-se que o PT, em parte gestado na tradição conservadora de setores da Igreja, e o PSDB, originário da tradição racional e moderna que nos vem de nossas revoluções republicanas, tenham trocado os papéis políticos e os respectivos projetos de Brasil. O país se debate entre a social-democracia populista de um e a social-democracia formal de outro. A matéria-prima do embate está nos novos sujeitos sociais e políticos que, na repressão aos partidos políticos, emergiram nos movimentos sociais durante o regime autoritário, à margem dos rótulos convencionais da
A política do Brasil lúmpen e místico José de Souza Martins Contexto 256 páginas, R$ 39,00
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tradição e da teoria. As populações historicamente marginalizadas e silenciadas no passado puseram na agenda política do país suas demandas reprimidas. O PSDB, no governo de Fernando Henrique Cardoso, optou por reconhecer nelas interlocutores legítimos e autônomos, como no caso da reforma agrária. O PT preferiu o aparelhamento de um eleitorado cativo, incorporando-os corporativamente. Eles se tornariam decisivos no nascimento do lulismo e na reeleição improvável de Lula em 2006, em face de um PT abatido pelas denúncias de corrupção relativas ao “mensalão”. Essa cooptação fragilizou a sociedade civil, cuja impotência se constata, sobretudo nos episódios de corrupção. Os novos sujeitos cobram uma dívida histórica do Estado, demandam políticas compensatórias estranhas à concorrência e à competição do ideário republicano, pois vivem o atraso histórico dos valores e ideias pré-modernas e concebem a política como algo religioso. Seu advento é marcado por certo misticismo antipolítico. O populismo do governo Lula desencadeou amplo atendimento a essas demandas específicas. Ampliou um assistencialismo que bloqueia a transformação social. Para chegar à compreensão sociológica desses dilemas, o autor adota a perspectiva de interpretação que define como a de “sociologia da história lenta”, leitura dos fatos que desvela a presença viva e ativa de estruturas fundamentais do passado: instituições, valores e concepções. No Brasil a mediação desse passado persistente e atrasado freia a mudança, ou a torna lenta, como nos é mostrado ao longo do livro. Ressalte-se na obra de Martins o rigor sociológico e conceitual que imprime ao seu trabalho, o cuidado e a acuidade na observação dos fatos sociais e políticos, no que se vê e no que não se vê, no dito e no não dito. O seu rigor científico e sociológico pauta-se pela busca incessante do esmiuçar da origem, das determinações sócio-históricas e políticas dos processos em curso. Prima pelo uso pertinente dos conceitos, pois na análise sociológica a fundamentação conceitual é ponto fulcral que corrobora a veracidade ou induz ao erro na interpretação dos fenômenos sociais. Não se contenta com o aparente, com novas designações para velhas questões. Vai ao fundo, às raízes. Radicaliza na precisão conceitual. Maria da Conceição Quinteiro é socióloga e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (Nupri/USP).
livros
(Im)possíveis Brasílias
A Igreja no Brasil
Aline Moraes Costa Braga Alameda Editorial 402 páginas, R$ 67,00
Bruno Feitler e Evergton S. Souza (orgs.) Editora Unifesp 512 páginas, R$ 70,00
O tema central deste livro é o concurso para a nova capital federal de 1956 e os 25 projetos que não alcançaram a vitória conquistada por Lúcio Costa. A autora apresenta uma ampla coleção documental e iconográfica comentada sobre cada um deles, contextualizando-os no debate das ideias daquele período.
Os estudos reunidos neste volume versam sobre a Igreja, o modo como desenvolveu as estruturas de enquadramento religioso, a maneira como seus agentes e fiéis viveram sua fé ou tentaram adaptar suas práticas, além de abordar o sentimento religioso, os mecanismos de repressão às práticas desviantes e as relações entre Igreja e Estado.
fotos Eduardo Cesar
Alameda Editorial (11) 3012-2400 www.alamedaeditorial.com.br
Editora Unifesp (11) 2368-4022 editora@fapunifesp.edu.br (site em construção)
Paisagens críticas: Robert Smithson
Nova história em perspectiva – v. I
Nelson Brissac Peixoto Editora Senac / Educ e Fapesp 406 páginas, R$ 85,00
Fernando A. Novais e Rogerio F. da Silva Cosac Naify 560 páginas, R$ 79,00
Este livro possui três eixos: a obra de Smithson em sua relação com a geofísica e a indústria da mineração; o desenvolvimento, a partir dos anos 1960, das investigações científicas dos sistemas dinâmicos e dos processos de auto-organização da matéria – a teoria da complexidade; e a geofilosofia de Deleuze, uma reconstituição desses processos para se pensar a ciência, o trabalho industrial e a criação artística.
Nova história em perspectiva reúne em dois volumes 41 textos – a maior parte inédita em português – em que se delineia a revolução que a historiografia viveu a partir do surgimento da Escola dos Annales em 1929. A obra traz os primeiros manifestos de combate, ensaios clássicos, desdobramentos, até interpretações mais recentes – assinados por autores como Lucien Febvre, Fernand Braudel, Jacques Le Goff e Carlo Ginzburg.
Editora Senac (11) 2187-4486 www.editorasenacsp.com.br
Cosac Naify (11) 3218-1444 www.cosacnaify.com.br
Modos da representação política
Guerra e política nas relações internacionais
Cristina Buarque de Hollanda Editora Ufmg 316 páginas, R$ 35,00
Thiago Rodrigues Educ – Editora PUC-SP 476 páginas, R$ 50,00
O livro traz um resgate do pensamento sobre a representação política experienciada durante a Primeira República. A autora chama a atenção para a ideia de representação política no Brasil e para o Código Eleitoral de 1932, que mostra que essa reforma tão esperada no primeiro terço do século XX foi devidamente antecipada pelo embate intelectual do período anterior.
Thiago Rodrigues apresenta uma abordagem libertária das relações internacionais, apontando o risco das batalhas e questionando as instituições e as normas vigentes. Provoca o establishment das relações internacionais, mas propõe um outro modo de analisar o planeta em expansão, baseando-se, sobretudo, no pensamento de Foucault.
Editora Ufmg (31) 3409-4768 ww.editora.ufmg.br
Educ (11) 3670-8085 www.pucsp.br/educ
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ficção
Madame Modorra
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la tem esse nome, imaginem, por causa do cochilo que dá a cada refeição. Após o café, deita-se na rede enorme, instalada confortavelmente na sala de convívio, ao lado do salão de recepções. Levanta-se pouco após o almoço e, tendo se fartado com alimentos pouco recomendados pelo seu cardiologista, se encaminha para uma das múltiplas esteiras felpudas, outra mania de Madame, espalhadas por todo o mezzanino secreto, ao qual poucos de nós têm acesso. Acorda novamente por volta de cinco da tarde e emenda uma chávena de chá de jasmim acompanhando um jantar composto ironicamente por saladas verdes, bacon, croutons e refrigerantes de marcas exóticas. Deita-se em sua chaise preferida, larga e muito confortável, feita por um fabricante de renome na Antuérpia. E, finalmente, por volta das onze da noite, quando todos os empregados da casa se encaminham para o descanso merecido, Madame Modorra finalmente acorda, sem qualquer fome. E é durante estas horas lúgubres que tudo acontece. Ela se encaminha para a piscina previamente aquecida a 30ºC e, assegurando-se de que apenas eu esteja presenciando a imersão diária de seus mais de duzentos quilos, desce com elegância a rampa que a conduz para dentro da água. E então emergem, como todas as noites. Bastam cinco minutos para que elas retornem. Saem da piscina geralmente na mesma ordem: primeiro Dorma, depois Rorma, então Omdra, daí Morda e, por fim, Omora. Cinco jovens distintas e igualmente belas, jovens e magras. E todas elas continuam sendo Madame. E a vida delas tem apenas um objetivo: ir a intermináveis festas. Quando as acompanho ao Salão Oblongo, do qual apenas eu e Madame temos conhecimento, todos os vestidos de noite estão prontos, bem como as saídas secretas que as conduzirão a pontos aleatórios da capital da nação, nos quais poderão tomar um táxi e partir para as suas aventuras noturnas.
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Omdra sabe que existe uma rede de orgias e festins da qual participam os maiores líderes religiosos do país. Há pelo menos duas dezenas de religiões ou seitas relevantes para as suas intenções. Então usa vestidos supostamente comportados, que mal contêm seus pudores naturais, tudo coroado por cores sóbrias, o longo cabelo liso com corte reto e a mais tremenda cara de pau no rosto. Uma mulher acima de qualquer reprimenda para os que apenas a veem, que desperta o desejo de todos e nunca cede aos caprichos daqueles que caem na tentação de abordá-la querendo um alívio mundano para seus pecados. Mas que sabe exatamente por quais poderosos e a que momento deve se deixar ser possuída, até que possa conseguir as confissões de que necessita e, então, provocar em cada um que a toque o devido sentimento de culpa, sem chance de remissão dos pecados. Rorma seduz pelo poder. Utiliza a sua beleza intimidante apenas no jet set da política e das celebridades. Corromper é sua arma. Para isso, usa os vestidos mais provocantes, as joias mais caras, os perfumes mais libidinosos, tudo para tornar-se inalcançável, tudo para ser o principal objeto de atenção e desejo de homens e mulheres. Tentam seduzi-la com ainda mais poder, fama e dinheiro. Ela nunca se entrega em público, nem nunca desdenha. Seu sorriso enigmático e seu olhar fechado, que sempre parece estar olhando para quem a observa, garantem que todos tenham a atenção que julgam merecer. Os que caem em sua armadilha, ela prende em um jogo lancinante, do qual ela conhece as regras como ninguém. Dorma tem a calma e a serenidade na face. Veste-se sempre de maneira respeitável e sempre age e se comporta como uma recatada dama da alta sociedade. Nunca vista com ninguém, é constantemente cogitada como o melhor partido que um homem poderia querer. Comparece apenas a reuniões re-
Mateus Acioli
servadas, em geral realizadas em mansões ou flats de alto luxo, tendo como convidadas algumas dezenas de pessoas interessantes, a elite social e cultural da nação. Carismática e carinhosa, cada homem tem a certeza de que aquele sentimento bom que surge quando ela olha é a retribuição que culminará em um futuro próspero, com uma família feliz e numerosa. O cortejo a ela é constante, mas obrigatoriamente termina suas noites sozinha. Não há necessidade de compartilhar uma cama e romper o feitiço quando sua feição de mulher honesta abre as portas para tudo o que necessita saber. Omora só frequenta as baladas mais quentes da cidade, com as roupas da moda. Apenas gente brilhante e bonita, com som alto e bom nas picapes ou nos palcos, toda a juventude a seu alcance. Ela bebe, se diverte, é engraçada, tem uma voz agradável, uma risada contagiante e um sorriso pelo qual qualquer um se derreteria. Não se importa em ficar com mais de um cara ou garota na mesma noite, e é normal que fique mesmo com muitos em uma só balada. Mas não há uma pessoa sequer que a chame de vagabunda ou adjetivos do gênero. Ela simplesmente dá atenção para todos e, se vê alguém começando a ficar triste por motivos adolescentes como ciúmes ou coração partido, logo vai atrás da pessoa, fica um pouco com ela e isso, inevitavelmente, termina em um beijo na boca. Conversa sobre tudo e sobre todos, e todos querem se mostrar o mais antenados possível, já que, para ela, nunca falta assunto e nem argumento. Sempre vai embora cedo e nunca desacompanhada, deixando no ar a sensação de que a alma da festa acaba de partir. Morda vai para a galera. Ela se veste de qualquer jeito e é assim que deve ser. Os eventos populares, as festas universitárias underground e os bailes funk podem ter, a qualquer momento, a surpresa de sua visita. E ela dança, e esculacha, e fica com quem quiser ficar com ela. E a cada
noite, ela presta atenção no que o povo diz, as pessoas que trabalham para o poder, que acabam por saber dos detalhes mais sórdidos de todos, sejam pastores, políticos, artistas, famosos ou os simplesmente mais ricos do que eles, que vêm a esses lugares descarregar tudo que lhes é jogado no lombo e, enfim, por algumas horas, serem alguém. Ela dá isso a eles, e dá mesmo, e pra quantos puder, pois é muita gente e o tempo é curto. Acaba sendo sempre a mais comentada da festa e tem a fama de puta, dadeira ou coisas do tipo. Mas nunca desce do tamanco e sempre mantém suas roupas de lojas populares nos trinques. E não tem um cara que não brigue por ela, nem uma mulher que não tenha inveja. Até as cinco da manhã, todas voltam de onde vieram. São sempre pontuais, pois sabem que isso é necessário. Pois, meia hora depois, todas devem ter se despido e retornado para a piscina, para que, a essa hora precisa, ressurja Madame Modorra com toda a informação que necessita. Em uma hora, no Salão Oblongo, lança todas as informações recolhidas na noite em seu mainframe, antes de descer para o café. Precisa saber de tudo o quanto antes, pois está chegando o momento em que ela comerá além do limite e, além das cinco irmãs, surgirá uma sexta, a dona do mundo, e Madame, que vai morar na filosofia, precisará estar pronta para aceitar que não mais existirá como se conhece agora, que todo o conhecimento acumulado irá para sua nova parte de si, que representará para o mundo os sentimentos rimáticos que o nome de Madame esconde aos olhos de todos, dentro do seu insuspeito anagrama. * Delfin é jornalista, escritor e editor da revista Machado (www.revistamachado.com.br) e dirige o Studio DelRey de produção editorial. PESQUISA FAPESP 186
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