Pesquisa fapesp 223

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Pesquisa FAPESP setembro de 2014

setembro de 2014  www.revistapesquisa.fapesp.br

entrevista artur ávila

Brasileiro ganha a Medalha Fields, o maior prêmio da matemática telecomunicações

Transmissores de fibra óptica passam a ser produzidos em Campinas boas práticas

Especialistas indicam como semear uma cultura de integridade no ambiente científico Economia

Cientistas sociais analisam tecnologia e modelos de negócios adotados no campo

n.223

Ataque ao câncer Instituições e empresa brasileiras desenvolvem anticorpos monoclonais contra tumores de ovário



fotolab

Estrelas de zinco O amontoado de pequenas estrelas, em azul, é o resultado de óxido de zinco cristalizado em presença de nanopartículas de ouro. No detalhe, os braços da estrela quebrada estão em azul e no centro, em amarelo, está o ouro. As imagens foram feitas com microscopia eletrônica de varredura de efeito de campo, ampliadas 80 mil vezes e coloridas em computador por Eder Guidelli, doutorando da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP), da Universidade de São Paulo (USP). Guidelli, orientado por Oswaldo Baffa, estuda a aplicação de nanotecnologia em física médica para o desenvolvimento de nanomateriais a serem utilizados na detecção de raios X. As fotos foram finalistas na competição Science as Art da edição 2013 do Materials Research Society Fall Meeting, em Boston, nos Estados Unidos. Se você tiver uma imagem relacionada à sua pesquisa, envie para imagempesquisa@fapesp.br, com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.

Imagens enviadas por Eder Guidelli, da FFCLRP-USP

PESQUISA FAPESP 223 | 3


setembro  n.223 36 70

TECNOLOGIA

capa  © David S. Goodsell, the Scripps Research Institute  | representação artística de anticorpos monoclonais (em amarelo) em plasma sanguíneo ao lado de uma hemácia (em vermelho)

62 Fotônica

36 Integridade científica

CAPA 16 Anticorpos contra tumor

de ovário desenvolvidos por instituições de pesquisa e empresa nacionais estão prontos para ser testados em humanos

24 Hadronterapia combate

tumores de forma mais seletiva e eficaz que a radioterapia convencional

ENTREVISTA 26 Artur Ávila

Matemático do Impa fala sobre os trabalhos que o levaram a ganhar a Medalha Fields

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA 32 Indicadores

Relatório de atividades 2013 da FAPESP destaca investimento recorde e programas para a inovação e a fronteira do conhecimento

CPqD cria empresa de dispositivos ópticos de olho nos mercados nacional e internacional

Especialistas discutem caminhos para promover de modo contínuo e efetivo uma cultura de honestidade no ambiente de pesquisa

66 Microeletrônica

42 Reconhecimento

Software estima a população de cães e gatos abandonados e simula estratégias que beneficiam a saúde animal e humana

Dois prêmios destacam produção científica e cultural de brasileiros

CIÊNCIA 46 Imunologia

Variações no funcionamento de um gene podem prejudicar a seleção de linfócitos no timo e causar doenças autoimunes

50 Ecologia

Declínio de populações de animais é um problema tão sério quanto o desmatamento

54 Geologia

Erosão dos Andes pode ter unido antigas bacias hidrográficas e formado o Amazonas

58 Cosmologia

Distorção gravitacional na luz de supernovas e de galáxias ajuda a investigar a distribuição de matéria e energia no Universo

Parceria entre universidade gaúcha e empresa resulta em fábrica de encapsulamento de chips

68 Medicina veterinária

70 Biotecnologia

Plantas do cerrado são usadas na produção de nanossistemas para controle de patógenos e pragas da agricultura, entre outras aplicações

HUMANIDADES

74 Economia agrícola

Especialistas analisam, em livro, estratégias tecnológicas e econômicas no campo

80 Literatura

Ariano Suassuna forjou uma ficção de matriz popular com alta densidade estética

85 Obituário

O versátil Nicolau Sevcenko foi um dos mais conhecidos historiadores brasileiros

seçÕes  3 Fotolab  5 Carta do editor  6 Cartas  7 On-line  8 Dados e projetos  9 Boas práticas  10 Estratégias  12 Tecnociência  86 Memória  88 Arte  90 Conto  92 Resenhas  95 Carreiras  96 Classificados 4 | setembro DE 2014


carta do editor

Tarefas complexas

A

reportagem de capa desta edição resulta de um acompanhamento de longo curso da equipe de Pesquisa FAPESP acerca de um assunto que sempre desperta interesse. Trata-se de saber se uma das mais promissoras terapias anticâncer, o uso de anticorpos monoclonais, pode ser realmente eficaz contra tumores. Agora, há uma novidade importante: seis suecas que passaram por cirurgia ou quimioterapia para tratar câncer de ovário receberão ainda este ano um composto experimental com anticorpos monoclonais desenvolvidos pela primeira vez no Brasil para uso em seres humanos. O tratamento é complementar e objetiva eliminar células cancerígenas que tenham escapado à cirurgia ou à quimioterapia já utilizadas antes e evitar tanto a recidiva do tumor quanto a metástase. O ensaio clínico será realizado em Gotemburgo, na Suécia, por questões operacionais. Mas o medicamento a ser testado foi desenvolvido por instituições e empresa brasileiras. Os testes de Gotemburgo representam mais um passo na direção de transformar o composto, chamado por enquanto de RebmAb200, em remédio. Pesquisa FAPESP acompanha essa caminhada desde 2007, quando foi inaugurado o Laboratório de Anticorpos Monoclonais do Instituto Butantan (edição 137) em parceria com a empresa privada de biotecnologia Recepta Biopharma. No começo do ano passado (edição 204), noticiamos a obtenção das primeiras linhagens de alta produtividade e estabilidade de células produtoras de anticorpos monoclonais criadas pelo trabalho conjunto do laboratório com a empresa. E, agora, nesta reportagem de capa, detalhamos como se deu todo o processo de desenvolvimento do composto a ser testado na Suécia. Se os resultados forem satisfatórios, o ensaio clínico será ampliado para outras 100 mulheres. No momento, o alvo é o câncer de ovário, embora esses anticorpos também possam ter eficácia contra tumores no pulmão e no rim. E se os resultados não forem bons? Ainda assim há motivos para comemorar. Ter chegado à fase de testes clínicos é considerado um raro caso bem-sucedido de desenvolvimento tecnológico, como esclarece o editor de ciência, Ricardo Zorzetto,

autor desta história contada a partir da página 16. Todo o processo envolveu instituições públicas, como a Universidade de São Paulo (USP) e o Butantan, e uma empresa privada, a Recepta, que receberam financiamento de agências de fomento como a FAPESP e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), além de recursos privados. * Esta edição traz outra história sobre tarefas complexas – desta vez, centrada em uma única pessoa, o carioca Artur Ávila, de 35 anos. Em agosto ele se tornou o primeiro sul-americano a ganhar a Medalha Fields, o maior prêmio internacional da matemática, dado pela União Internacional de Matemática para pesquisadores com até 40 anos. Ávila ganhou junto com outros três matemáticos da Áustria, do Canadá e do Irã, no caso, Maryam Mirzakhani, primeira mulher a receber a láurea. Em entrevista ao editor especial Marcos Pivetta, a partir da página 26, ele chama a atenção para outro fato raro: “É a primeira vez que um ganhador do prêmio realizou sua educação até o nível de doutorado em um país que não seja desenvolvido, como Japão, Estados Unidos, Israel ou algum da Europa”. Ávila fez o mestrado, ainda adolescente, e o doutorado, completado aos 21 anos, no Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), no Rio. Depois foi para a França e hoje passa o ano dividido entre o trabalho no Impa e no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), em Paris. Sua principal linha de pesquisa é sobre sistemas dinâmicos, que procura desenvolver uma teoria capaz de prever a evolução a longo prazo de fenômenos naturais e humanos. * Outros destaques desta edição são a oportuna reunião sobre integridade científica, realizada em São Paulo (página 36); uma explicação sobre a origem do rio Amazonas (página 54); a criação de uma fábrica de dispositivos ópticos, em Campinas (página 62); e uma ampla análise a respeito da economia rural brasileira neste século XXI (página 74). Boa leitura! Neldson Marcolin | Editor-chefe PESQUISA FAPESP 223 | 5


cartas

cartas@fapesp.br

fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo Celso Lafer Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior alejandro szanto de toledo, Celso Lafer, Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, Horácio Lafer Piva, joão grandino rodas, Maria José Soares Mendes Giannini, Marilza Vieira Cunha Rudge, José de Souza Martins, Pedro Luiz Barreiros Passos, Suely Vilela Sampaio, Yoshiaki Nakano Conselho Técnico-Administrativo José Arana Varela Diretor presidente Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico Joaquim J. de Camargo Engler Diretor Administrativo

issn 1519-8774

Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo Leite, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Adolpho José Melfi, Carlos Eduardo Negrão, Douglas Eduardo Zampieri, Eduardo Cesar Leão Marques, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Joaquim J. de Camargo Engler, José Arana Varela, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Lucio Angnes, Luis Augusto Barbosa Cortez, Marcelo Knobel, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Marta Teresa da Silva Arretche, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Luiz Monteiro Salles Filho, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner do Amaral Caradori, Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos Diretora de redação Mariluce Moura editor-chefe Neldson Marcolin Editores Fabrício Marques (Política), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência); Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores espe­ciais); Bruno de Pierro e Dinorah Ereno (Editores-assistentes) revisão Daniel Bonomo, Margô Negro arte Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos (Editora de infografia), Maria Cecilia Felli e Alvaro Felippe Jr. (Assistente) fotógrafos Eduardo Cesar, Léo Ramos Mídias eletrônicas Fabrício Marques (Coordenador) Internet Pesquisa FAPESP online Maria Guimarães (Editora) Júlio César Barros (Editor-assistente) Rodrigo de Oliveira Andrade (Repórter) Rádio Pesquisa Brasil Biancamaria Binazzi (Produtora) Colaboradores Alexandre Affonso, Ana Lima, Ana Weiss, Carlos Henrique Cardim, Daniel Bueno, Domingos Zaparolli, Elisa Carareto, Evanildo da Silveira, Fabio Otubo, Fabio Silvestre Cardoso, Igor Zolnerkevic, Julio Bernardo, Martín Kovensky, Maurício Pierro, Mauro de Barros, Reinaldo José Lopes, Roberto Schwarcz, Sandro Castelli, Valter Rodrigues, Yuri Vasconcelos

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Revista

Citros

Alcir Humberto Rodrigues

Na edição 214 há uma reportagem (“Pa­ ra pessoas e plantas”) sobre a ação de N-acetilcisteína sobre a xantana produ­ zida pela Xilella fastidiosa no interior dos vasos lenhosos de alguns citros. Trata-se mais de uma curiosidade do que algo mais sério por mais que se demonstrem resultados laboratoriais razoáveis. Te­ mos, ao longo da história dos citros no mundo, tentado soluções de “saque rá­ pido”. Os agricultores são mestres nas improvisações. Usaram detergente de cozinha contra a ortézia nos tempos em que não havia inseticida competente. Usaram cargas enormes de cloreto de potássio contra o vetor da leprose nos tempos de vacas magras, creolina contra o mesmo ácaro... Esse experimento noti­ ciado pela revista me parece semelhante. Não há citação alguma sobre seus efeitos colaterais no suco e na fruta ou, até mes­ mo, na fisiologia da planta e sobretudo no consumidor. Mais um gol contra o já mal-afamado suco brasileiro. Asseme­ lha-se à permitida irresponsabilidade dos pesticidas. O Brasil está na mira dos europeus devido a contaminações no suco. Hoje conhecemos o efeito residual de pesticidas no solo (os chamados TPs ou transformation products, os quais, no solo, chegam a formar novos compostos com efeitos multiplicados contra a fauna e flora). Esperava mais rigor da revista ao tratar este assunto.

Estou muito contente com Pesquisa FAPESP. Fico feliz de saber que no nosso país existe uma massa intelectual crítica e séria. O cenário político e social brasi­ leiro me entristece, mas é reconfortante saber que muita gente trabalha duro para transformá-lo. Pesquisa FAPESP mostra isso e me faz acreditar que ainda vale a pena! Parabéns ao corpo editorial e colaboradores. Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro) Irati, PR

Ainda estou no processo de leitura da revista de agosto (edição 222). Mas gos­ taria de comentar o quanto eu aprecio o trabalho gráfico da revista. As capas e ilustrações internas são realmente lindas. Essa capa de agosto está me ins­ pirando a um trabalho de arte (em vidro fundido, que é uma das coisas que eu faço). Agradeço portanto a atenção ao aspecto estético de combinar ciência com beleza. Há leitores da revista que apreciam o excelente trabalho que vo­ cês fazem. Flavia de Miranda São Paulo, SP

Partidos

Excelente, esclarecedora e didática a reportagem “O poder dos partidos” (edição 222), de Eduardo Nunomura, que investiga o sofisticado mecanismo de conexão e poder entre os diferentes níveis nas eleições sob o sistema políti­ co brasileiro. Aguardo o próximo artigo sobre esse assunto em face de sua com­ plementariedade, já que a justificativa se fundamenta em sério projeto de pes­ quisa! Em nossa atividade profissional temos sido enfáticos sobre a estratégia e a tática de considerar a prioridade dos prefeitos e as necessidades de suas comunidades, como salienta a reporta­ gem de Pesquisa FAPESP nesse artigo. Francisco J. B. Sá Salvador, BA

6  z  setembro DE 2014

Fabio Di Giorgi Americana, SP

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar - CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.


on-line

Nas redes

w w w . r e v i s ta p e s q u i s a . f a p e s p. b r

thomas püttker

Michely Nascimento_ Extinções ocorrem ao longo do processo evolutivo, mas é triste ler quando isso ocorre por alterações causadas por humanos. (Aves desaparecem da mata atlântica nordestina) Rosana Fernandes dos Santos_ Brasil produzindo conhecimento! É assim que poderemos sair da crise, somente através da educação. A cuíca Micoureus paraguayanus é mais abundante em áreas desmatadas

(Esponja suga petróleo do mar) Michelle Mantovani_ Tomara que a descoberta possibilite avanços nas pesquisas sobre esse fungo que traz problemas a muitas mulheres. (Enzima facilita infecção fúngica)

Exclusivo no site x Pagamentos a proprietários rurais podem ser uma solução para preservar aqueles serviços ambientais da mata atlântica com impacto direto sobre as pessoas que vivem no entorno, como prevenção de pragas e melhoria da água. O olhar econômico, acrescido de um estudo ecológico sobre o efeito do desmatamento nos vertebrados da região, mostra que manter 30% da floresta em áreas prioritárias preservaria o ecossistema e custaria, por ano, 0,01% do PIB brasileiro. O artigo da bióloga Cristina Banks-Leite, do Imperial College de Londres, foi publicado na Science.

Guto Takara_ Muito legal essa

x Uma enzima essencial para o metabolismo do álcool também pode influenciar a sensibilidade à dor, segundo um estudo publicado na Science Translational Medicine. Pesquisadores do Instituto Butantan observaram que camundongos com deficiência na produção dessa enzima são mais sensíveis à dor causada por inflamação, um efeito que pode ser revertido com a injeção da molécula Alda-1. A conclusão pode ser um passo para a criação de um novo medicamento contra dor, que não causaria dependência nem danos cardiovasculares, como é o caso dos fármacos disponíveis hoje.

pesquisa divulgada pela revista. Ela engloba genética e levantamento histórico. (O caminho de pedras das doenças raras) Cibele Sidney_ Olha a China aí, minha gente! Eles vão dominar o mundo. Tio Sam que se cuide. (Um LHC para a China) Rita Pessotti_ Recomendo a leitura! Um grande orgulho para a ciência brasileira. Quem quer se dedica, não mede esforços. (Entrevista com Vanderlan Bolzani)

Vídeo do mês Digitalização de arquivos da TV Tupi permite reavaliar novela Beto Rockfeller

Assista ao vídeo:

youtube.com/user/PesquisaFAPESP

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Dados e projetos Temáticos e Jovem Pesquisador recentes

Indicadores de pesquisa global Impacto relativo das publicações indexadas e porcentagem de colaboração internacional (2009-2013)

Projetos contratados em julho e agosto de 2014

 Sistemas regulatórios da resposta bacteriana a estresses Pesquisadora responsável: Marilis do Valle Marques Instituição: ICB/USP Processo: 2014/04046-8 Vigência: 01/09/2014 a 31/08/2018  Uso de ferramentas por macacos-prego (Sapajus libidinosus) selvagens: ecologia, aprendizagem socialmente mediada e tradições comportamentais Pesquisador responsável: Eduardo Benedicto Ottoni Instituição: Instituto de Psicologia/USP Processo: 2014/04818-0 Vigência: 01/08/2014 a 31/07/2017  Processamento e caracterização de ligas metálicas amorfas, metaestáveis e nanoestruturadas Pesquisador responsável: Claudio Shyinti Kiminami Instituição: CCET/UFSCar Processo: 2013/05987-8 Vigência: 01/07/2014 a 30/06/2018  Descoberta de preços em carteiras de arbitragem de alta dimensão Pesquisador responsável: Pedro Luiz Valls Pereira Instituição: EESP/FGVSP Processo: 2013/22930-0 Vigência: 01/04/2014 a 31/03/2016

JOVEM PESQUISADOR  Modulação ótica de sistemas nanoestruturados usando ondas acústicas de superfícies Pesquisador responsável: Odilon Divino Damasceno Couto Junior Instituição: IFGW/Unicamp Processo: 2012/11382-9 Vigência: 01/07/2014 a 30/06/2018

 Investigando as alterações metabólicas causadas pela expressão transgênica da oxidase alternativa mitocondrial de Ciona intestinalis em Drosophila melanogaster Pesquisador responsável: Marcos Tulio de Oliveira Instituição: FCAV/Jaboticabal/Unesp Processo: 2014/02253-6 Vigência: 01/07/2014 a 30/06/2018  Homologia e cohomologia diferencial, gerbes e aplicações Pesquisador responsável: Fabio Ferrari Ruffino

8 | setembro DE 2014

Instituição: CCET/UFSCar Processo: 2014/03721-3 Vigência: 01/07/2014 a 30/06/2018

Colaboração internacional (em %)

Impacto relativo

Nº de trabalhos indexados 2009–2013

Sigla

Argentina

45,10%

Austrália

48,66%

0,93

39.775

ARG

1,24

227.410

Áustria

AUT

64,21%

1,42

63.324

Bélgica

AUS

62,45%

1,48

93.848

BEL

Brasil

27,38%

0,65

177.168

BRA

Canadá

48,55%

1,33

295.373

CAN

País

 Estudo genético da via proteolítica da matriptase em câncer de cabeça e pescoço Pesquisadora responsável: Katiuchia Uzzun Sales Instituição: FMRP/USP Processo: 2014/06316-2 Vigência: 01/08/2014 a 31/07/2018  Imagens fotoacústicas e ultrassônicas para caracterização de tecidos viscoelásticos Pesquisador responsável: Theo Zeferino Pavan Instituição: FFCLRP/USP Processo: 2013/18854-6 Vigência: 01/07/2014 a 30/06/2018

Chile

56,84%

0,93

28.402

CHI

China

24,33%

0,85

835.682

CHN

Dinamarca

60,08%

1,62

67.239

DNK

Estados Unidos

32,75%

1,49

1.650.662

USA

Finlândia

55,73%

1,40

53.725

FIN

 Participação de pequenos grupos neurais seletivamente ativados (neuronal ensembles) na reinstalação da autoadministração de etanol induzida pelo ambiente: investigação farmacogenética, optogenética e molecular Pesquisador responsável: Fabio Cardoso Cruz Instituição: IFSC/USP Processo: 2013/24986-2 Vigência: 01/09/2014 a 31/08/2017

França

53,47%

1,32

337.168

FRA

Alemanha

51,35%

1,40

477.490

GER GRC

 Influência de processos ecológicos e evolutivos na estruturação de comunidades de anfíbios em diferentes escalas espaciais e temporais (Biota/FAPESP) Pesquisador responsável: Fernando Rodrigues da Silva Instituição: CCTS/UFSCar Processo: 2013/50714-0 Vigência: 01/05/2014 a 30/04/2018  Nuvens atômicas sob estresse Pesquisador responsável: Romain Pierre Marcel Bachelard Instituição: IFSC/USP Processo: 2014/01491-0 Vigência: 01/08/2014 a 31/07/2018

Grécia

45,14%

1,11

53.807

Índia

22,08%

0,71

229.757

IND

Indonésia

85,45%

0,88

6.205

IDN

Irã

21,16%

0,58

104.031

IRN

Irlanda

48,30%

1,39

35.729

IRE

Israel

47,26%

1,28

62.362

ISR

Itália

45,32%

1,28

279.960

ITA

Japão

27,74%

1,03

385.911

JAP

México

44,45%

0,80

52.268

MEX

Portugal

53,80%

1,07

54.233

POR

Rússia

32,41%

0,54

142.509

RUS

Espanha

45,37%

1,17

249.992

SPA

Suécia

59,43%

1,48

109.230

SWE

Suíça

67,71%

1,78

122.985

SWI

São Paulo – Brasil

28,00%

0,75

80.537

SPBR

Reino Unido

51,09%

1,44

524.889

UK

2,00 1,80

Impacto relativo à média mundial

temáticos  Caracterização dos mecanismos de ação de RNAs longos não codificadores envolvidos nos programas de ativação gênica em células humanas Pesquisador responsável: Sérgio Verjovski de Almeida Instituição: Instituto de Química/USP Processo: 2014/03620-2 Vigência: 01/07/2014 a 30/06/2018

1,60 1,40 1,20 1,00 0,80 0,60 0,40 0%

10%

20%

30%

40%

50%

60%

70%

80%

90%

100%

% de artigos com coautoria internacional Fonte InCites


Boas práticas O Committee on Publication Ethics (Cope), fórum de editores de periódicos científicos sobre ética na pesquisa, divulgou diretrizes para lidar com “reciclagem de texto”, um eufemismo para o conceito de autoplágio, que é o expediente praticado por um autor de copiar trechos de seus artigos antigos em novos manuscritos. Com o advento de softwares capazes de rastrear repetições, tal artifício tornou-se facilmente detectável, desafiando os editores a tomar providências quando acham indícios de reaproveitamento em artigos já publicados ou manuscritos submetidos à publicação. Produzidas pela plataforma de publicações BioMed Central por encomenda do Cope, as diretrizes consideram aceitável quando os trechos copiados estão nas seções de introdução, de métodos e até mesmo na de discussões. O uso de frases similares ou idênticas nessas seções, diz o documento, pode ser até mesmo inevitável em algumas situações – como, por exemplo, quando o autor utiliza uma técnica que já descreveu anteriormente ou quando o artigo é um entre vários que produziu sobre um determinado tópico. Mas se a duplicação for detectada na hipótese, nos resultados, nas conclusões ou nas figuras, há risco de que a contribuição do paper não seja original, o que é inaceitável. Cada caso deve ser analisado em seu contexto, diz o documento. “De modo geral, os editores devem considerar a extensão do texto que foi reciclado. O reúso de poucas sentenças é diferente da repetição literal de vários parágrafos, embora grandes porções de um texto reciclado nos métodos sejam mais aceitáveis do que a mesma porção de texto reciclado na seção de discussões”, afirmam as diretrizes.

Quando um autoplágio é detectado num manuscrito submetido à publicação, os editores podem não fazer nada ou pedir para que o autor reescreva trechos repetidos – isto se a reciclagem for considerada insignificante ou justificada. Já se o reúso for extenso e sugerir que a contribuição do artigo não é nova, o caminho é rejeitar o manuscrito, comunicando ao autor as razões da medida. Se o problema for encontrado em artigos já publicados, os editores devem considerar a possibilidade de publicar uma correção ou de fazer a retratação do artigo, que é o cancelamento de sua publicação. A correção é o caminho adequado se houver material original suficiente no artigo que justifique a publicação. Deve-se adicionar citações esquecidas e esclarecer o que foi recusado. Mas a retratação pode ser necessária em casos extremos e considerados raros pelo Cope: quando a cópia for extensa,

daniel bueno

Como enfrentar o autoplágio

comprometer a originalidade do artigo e/ou infringir direitos autorais. As diretrizes alertam, porém, que a reciclagem era uma prática tolerada em décadas passadas. Os editores devem levar em conta a idade do artigo e o fato de o expediente ser aceito na época de sua publicação ao decidir se devem tomar alguma atitude.

Os custos da retratação Segundo estudo de um pesquisador da Universidade de Washington, cada artigo científico em biomedicina que teve a publicação cancelada por má conduta nos últimos anos causou um prejuízo de US$ 390 mil. A estimativa se refere ao desperdício de recursos públicos investidos nas pesquisas que deram origem aos papers retratados. O microbiologista Ferric Fang chegou a esse valor depois de analisar 149 artigos, retratados por fabricação ou falsificação de dados entre 1992 e 2012, cujos autores haviam recebido financiamento dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), dos Estados Unidos.

Constatou que os NIH haviam investido US$ 58 milhões nas pesquisas fraudadas, menos de 0,01% de seu orçamento no período, ou US$ 390 mil por artigo. O trabalho foi publicado na revista on-line eLife. O problema, adverte Fang, vai além do desperdício de recursos. Também representam prejuízos importantes o dano para a carreira dos pesquisadores envolvidos (que em alguns casos atinge inclusive quem não agiu de má-fé), os custos institucionais de investigar suspeitas de fraude e a perda de tempo de outros cientistas que tentam, em vão, reproduzir as experiências. PESQUISA FAPESP 223 | 9


Estratégias Irã afasta ministro O Parlamento do Irã aprovou o pedido de impeachment do ministro da Ciência, Pesquisa e Tecnologia, Reza Faraji-Dana, impondo uma derrota ao presidente do país, o moderado Hassan Rouhani. Em julho, o líder supremo do Irã, o aiatolá Ali Khamenei, criticou duramente a administração das universidades do país, a cargo de Faraji-Dana. Isso após o ministro

Cooperação em bioenergia com a África

permitir a readmissão de

interessante para a

Produção de Bioenergia

expulsos das universidades

dia 26 de agosto um

FAPESP por dar início

pela América Latina,

por participarem dos

acordo de cooperação

a um processo de

Caribe e África ao

protestos de 2009

para pesquisa com a

cooperação original,

projeto GSB-Lacaf-

contra o governo do

Nova Parceria para o

com aspectos políticos e

cana-I, que desde já

presidente conservador

Desenvolvimento da

geográficos que nos

pode abrir oportunidades

Mahmoud Ahmadinejad.

África (Nepad), agência

permitem pensar

de pesquisa para

No pedido de

da União Africana para

globalmente e não apenas projetos conjuntos”,

impeachment, o ministro

a implementação de

setorialmente”, disse

afirma. O objetivo do

foi acusado de “politizar”

projetos voltados para

Lafer. O acordo foi

projeto é investigar

o ambiente acadêmico.

o desenvolvimento

elaborado a partir do

possibilidades de

Faraji-Dana foi reitor da

socioeconômico que

interesse da FAPESP,

produção de bioenergia

Universidade de Teerã

representa os 54 países

de pesquisadores

de forma sustentável em

e tem formação em

do continente. O acordo

associados à Universidade Moçambique, na África

engenharia elétrica

prevê a colaboração de

de Stellenbosch, na África

do Sul, na Colômbia e na

pela Universidade de

pesquisadores ligados

do Sul – que mantém

Guatemala. “Estamos

Waterloo, no Canadá.

a instituições de

cooperação com a

conscientes da expertise

O presidente Rouhani

pesquisa no estado de

FAPESP desde 2013 –

e da capacidade de

nomeou interinamente

São Paulo e na África

e ao programa Global

desenvolvimento da

Mohammad Ali Najafi

em projetos sobre

Sustainable Bioenergy

indústria do etanol no

como ministro da Ciência,

produção sustentável de

(GSB), iniciativa apoiada

Brasil. A África tem

mas, segundo o portal

bioenergia. O documento

pela Fundação, pelo Oak

recursos para produção

The Huffington Post,

foi assinado por Mossad

Ridge National Lab, nos

de bioenergia e nossa

deverá submeter um

Elmissy, diretor da

Estados Unidos, e pelo

cooperação permitirá

nome mais palatável

Divisão de Energia da

consórcio público-privado

que esse conhecimento

ao Parlamento, a fim de

Nepad, Celso Lafer,

holandês Be-Basic.

seja estendido aos países

evitar novo confronto.

presidente da FAPESP, e

“Estamos prontos para

africanos, ao mesmo

No ano passado, Najafi

Carlos Henrique de Brito

começar o trabalho”,

tempo que abrimos o

Cruz, diretor científico

disse Brito Cruz.

acesso de pesquisadores

da Fundação. “Trata-se

“A FAPESP apoia o

brasileiros ao mercado

de um acordo muito

projeto Contribuição de

africano”, disse Elmissy.

10 | setembro DE 2014

foi indicado para o 1

Faraji-Dana: voto de censura aprovado

Ministério da Educação, mas o Parlamento vetou seu nome.

fotos 1 Gabinete da Presidência da República Islâmica do Irã  2 NASA / MSFC 3 léo ramos 4 paulo B. chaves / NyU  ilustraçãO daniel bueno

estudantes e professores A FAPESP assinou no


Foguete para ir a Marte A Nasa, agência espacial

Já em uma configuração

norte-americana,

mais potente, o SLS

anunciou que deverá

conseguirá levar até

lançar até novembro

130 toneladas ao espaço,

de 2018 o foguete de

viabilizando o envio de

exploração Space Launch

quatro astronautas além

System (SLS), talhado

da órbita da Lua. Depois

para viagens ao espaço

disso, a meta é criar a

profundo e precursor do

missão para capturar

lançador da primeira

um asteroide e colocá-lo

missão tripulada a

na órbita da Lua para

Marte, programada

estudos, preparatória do

para 2030. A agência

voo a Marte. O anúncio

concluiu a revisão

é o primeiro movimento

pelo governo dos

técnica do projeto e

da Nasa para reativar

Estados Unidos.

assumiu o compromisso

as missões tripuladas

“O programa está se

de completar o

ao espaço desde a

tornando realidade”,

desenvolvimento de

aposentadoria dos

comemorou William

uma versão do foguete

ônibus espaciais, em

Gerstenmaier,

de Saúde (NIH), principal

com capacidade para

2011. Um ano antes, o

administrador associado

agência de apoio à

70 toneladas, o que

Projeto Constellation,

da Diretoria de

pesquisa biomédica dos

permitirá um voo-teste

que buscava criar uma

Explorações Humanas

Estados Unidos, vai iniciar

sem tripulação além

nova geração de naves

da Nasa, segundo a

um estudo para saber se

da órbita da Terra.

espaciais, foi cancelado

agência de notícias AFP.

há algum tipo de viés no

2

Concepção artística do Space Launch System: voo-teste programado para 2018

Estudo testa viés racial Os Institutos Nacionais

processo de avaliação de projetos que prejudique pesquisadores oriundos de minorias étnicas, como negros e asiáticos. Um estudo publicado em 2011 na revista Science mostrou que os pesquisadores brancos têm quase duas vezes mais chance de receber subvenções dos NIH do que os afro-americanos. A disparidade 3

Dupla premiação Pesquisa FAPESP teve destaque no Prê-

4

Reportagens de Pesquisa FAPESP sobre estudos de troncos e de espécies de aves foram reconhecidas

mio de Reportagem sobre a Mata Atlân-

parece surgir já no início do processo de revisão, quando pesquisadores são avaliados e classificados num ranking. A agência quer saber se há falhas no processo de avaliação

tica, promovido pela Aliança para a

tica e a floresta amazônica. O terceiro

e o que se pode fazer em

Conservação da Mata Atlântica, com

lugar ficou com “Tesouro enterrado”, de

relação a isso. Irá levar aos

duas reportagens laureadas na catego-

André Julião, da Unesp Ciência. Na cate-

revisores propostas sem

ria Revista. O primeiro prêmio foi para

goria Jornal, os vencedores foram Da-

nome e identificação racial

Carlos Fioravanti com “Os círculos do

niela Chiaretti, do Valor Econômico;

para ver o que acontece

tempo”, sobre estudos de troncos de

Giovana Girardi, de O Estado de S.Paulo;

com a pontuação. “Se

árvores que detectam variações climá-

e Katia Brebatti, da Gazeta do Povo, do

o anonimato diminuir a

ticas. Em segundo lugar ficou “Voo dire-

Paraná. Já na categoria Televisão ga-

disparidade, será um sinal

to”, de Francisco Bicudo e Maria Guima-

nharam Silvia Martinez, da Rede TV!;

claro de viés”, disse à

rães, sobre estudo de espécies de aves

André Trigueiro, da GloboNews; e Ma-

Nature Richard Nakamura,

que revela relações entre a mata atlân-

riene Pádua, da TV Cultura.

diretor do Centro para Revisão Científica dos NIH. PESQUISA FAPESP 223 | 11


Tecnociência Moléculas no espaço

Tilápia em água salobra

No jato emitido por

Explorar o potencial de

Na maioria das

uma estrela jovem, uma

água salina para o cultivo

comunidades rurais de

equipe internacional

de plantas e criação

Mossoró e região, o

de astrônomos detectou

de peixes na região de

acesso à água potável

moléculas simples,

Mossoró (RN) é o

se dá pela perfuração de

mas aparentemente

objetivo de um projeto

poços artesianos.

especiais. Os átomos de

coordenado pelo

O problema é que essas

carbono, nitrogênio e

professor Nildo da Silva

águas são salobras, pelo

oxigênio estão ligados

Dias, do Departamento

contato subterrâneo com

da mesma maneira

de Ciências Ambientais

rochas cristalinas. Para

encontrada nas

e Tecnológicas da

torná-las potáveis, elas

proteínas — moléculas

Universidade Federal

passam por um processo

mais complexas,

Rural do Semiárido

de dessalinização, que

essenciais à vida. “Isso

(Ufersa). Ele foi o

gera o rejeito salino,

mostra que moléculas

vencedor do 4º Prêmio

altamente poluente.

que estão nos seres vivos

Fecomercio de

“A dessalinização resulta

podem ser produzidas a

Sustentabilidade na

em 50% de água e 50%

partir de compostos mais

categoria Academia-

de rejeito salino, que

simples presentes

Professor, anunciado

acaba sendo descartado

no fim de agosto.

no solo ou nos rios”,

no meio interestelar,

1

cujas condições físicas

Ilustração localiza a região L1157, onde foram encontrados compostos prebióticos

“O projeto é composto

explica Dias. Entre as

por ações integradas

ações colocadas em

para utilizar de forma

prática desde 2009 está

sustentável o rejeito

o aproveitamento da

salino em comunidades

água em viveiros de

rurais e estimular a

criação de tilápia, espécie

e químicas são

Usando dados do

drasticamente diferentes

telescópio internacional

daquelas na Terra”,

IRAM 30m, localizado

explica Edgar Mendoza,

na Espanha, a equipe

do Observatório do

identificou uma

Valongo da Universidade

abundância relativamente

piscicultura como meio

tolerante à água salina.

Federal do Rio de Janeiro

alta de moléculas

econômico”, relata Dias,

Depois, o efluente da

(UFRJ), primeiro autor

prebióticas, especialmente

que atualmente faz

piscicultura, rico em

do estudo aceito mês

a formamida, numa região

pós-doutorado no

matéria orgânica, é usado

passado para publicação

quimicamente complexa

Laboratório de Salinidade

na irrigação de mudas

na revista MNRAS.

onde um jato de gás e

do Departamento de

de espécies vegetais

Mendoza e sua

poeira interage com

Agricultura dos Estados

da caatinga, além de

orientadora de

o gás nativo, frio e denso

Unidos, na Califórnia.

hortaliças e forrageiras.

doutorado, Heloisa

que alberga o objeto

Boechat-Roberty,

protoestelar. Mendoza

colaboraram com mais

explica que ainda não se

quatro astrônomos para

sabe exatamente como

realizar um estudo

essas moléculas são

observacional que

produzidas de forma tão

revelou a presença de

eficiente nessas zonas de

moléculas que podem

choque. O grupo suspeita,

ser precursoras de vida,

entretanto, que resultam

ou prebióticas, dentro

de reações químicas na

de um jato de gás e

superfície congelada

poeira impulsionado

de grãos de poeira, uma

por uma protoestrela

hipótese que esperam

denominada L1157-mm,

testar no Laboratório

a aproximadamente

Nacional de Luz

800 anos-luz de

Síncrotron, em Campinas,

distância da Terra.

no próximo ano.

12 | setembro DE 2014

Tanque de criação de peixes em localidade na região de Mossoró (RN)

2

2


fotos 1 NASA/JPL-Caltech/UIUC alterada por Edgar Mendoza/UFRJ 2 Nildo da Silva Dias/Ufersa  3 joão alexandrino  ilustraçãO daniel bueno

Empresa usa gengibre

Antibióticos e obesidade

Originário da Ásia e

Universidade Federal

utilizado no Brasil como

do Amazonas (Ufam),

planta ornamental,

onde fez a sua tese

o gengibre-amargo

de doutorado com a

(Zingiber zerumbet) é a

zerumbona como tema.

principal matéria-prima

No Inpa, ele desenvolveu

de uma empresa de

uma tecnologia para

fitoterápicos de Manaus

obter a substância

(AM), a Biozer. As raízes

com altíssimo grau de

da planta contêm um

pureza, atingindo 99%.

composto chamado

Em 2011, a empresa

zerumbona, que tem

solicitou e o Inpa

Mais uma indicação

para a manutenção da

indicações como

licenciou duas patentes

do efeito protetor dos

saúde. Se conseguirem,

anti-inflamatório e

que tiveram o próprio

microrganismos que

poderão obter novas

cicatrizante. A empresa

Cleomir como inventor.

vivem no intestino.

formas de restabelecer

realiza estudos para

A empresa também

Um estudo publicado na

as populações de

usá-lo em sabonetes,

elaborou e depositou

revista Cell em agosto

microrganismos após

medicamentos

no Instituto Nacional

mostrou que os

uma criança tomar

fitoterápicos e bebidas

de Propriedade

micróbios moldam o

antibióticos, evitando

energéticas. O criador da

Intelectual (INPI)

metabolismo ainda na

problemas de saúde

Biozer é o pesquisador

patentes para a

infância e que alterações

mais tarde. De imediato,

Carlos Cleomir, do

produção de geleia,

nesse microbiota, com

os pesquisadores

Instituto Nacional de

iogurte, gel e pomada

o uso de antibióticos,

obtiveram um

Pesquisas da Amazônia

cicatrizante, além de

podem aumentar o risco

argumento adicional

(Inpa) e professor na

um sabonete antiacne.

de obesidade e diabetes

para enfatizar o uso

na vida adulta. Essa

moderado e criterioso

conclusão, atingida por

de antibióticos. Em

meio de experimentos

camundongos, apenas

em camundongos,

quatro semanas de

está ajudando os

exposição a antibióticos

pesquisadores da

logo depois do

Universidade de Nova

nascimento foi o

York (NYU) a identificar

suficiente para produzir

quais grupos de

obesidade, que

bactérias do intestino

permaneceu depois de

são mais importantes

encerrada a medicação.

Nos primeiros meses depois do parto, aleitamento reduz risco de depressão

Amamentar, bom também para as mães

3

A maior parte das mulheres nasce equi-

que as mães que planejaram (e realiza-

em outros estudos, pode ter efeitos po-

pada para produzir o alimento para seus

ram) o aleitamento depois do parto ti-

sitivos também para as mães. Por essa

bebês recém-nascidos, mas amamentar

veram uma incidência 50% menor de

razão, os pesquisadores da Universida-

é menos simples do que parece. E pode

depressão que as que não planejaram,

de de Cambridge que coordenaram esse

afetar também a saúde das mães. Mu-

nem amamentaram. Já as mulheres que

trabalho argumentam que as autoridades

lheres que amamentam correm menos

tinham planos de amamentar, mas não

de saúde deveriam incentivar as mulhe-

risco de apresentar depressão pós-par-

conseguiram, apresentaram um risco

res a amamentarem e apoiar principal-

to que aquelas que não o fazem, de acor-

duas vezes maior de depressão em re-

mente as que não veem a prática com

do com um estudo com cerca de 14 mil

lação àquelas que nunca pensaram em

naturalidade. No Reino Unido, somente

nascimentos publicado na revista Ma-

amamentar e passaram direto à mama-

47% dos bebês nascidos em 2012 e 2013

ternal and Child Health em 20 de agosto.

deira. O levantamento sugere que a

recebiam leite materno nas primeiras

Nesse levantamento, pesquisadores do

amamentação, além de beneficiar os

semanas de vida. É uma das menores

Reino Unido e da Espanha verificaram

próprios bebês, como já foi verificado

taxas de amamentação na Europa.

PESQUISA FAPESP 223 | 13


1

Camada de ozônio (em azul): ainda sob ataque do tetracloreto de carbono

Destruição persistente

Pelo menos 30 anos

eclodiram após os

depois dos primeiros

63 dias em média de

alertas, o perigo de

incubação. Houve perdas

declínio das populações

de ovos na maioria

de tracajá (Podocnemis

(80%) dos ninhos,

unifilis), uma espécie de

causadas principalmente

tartaruga comum na

(75%) por moradores

Amazônia, persiste. E a

das comunidades

causa continua a mesma:

próximas, tanto nas

o intenso consumo da

áreas protegidas das

carne e dos ovos dessa

reservas como na área

espécie por populações

urbana. A predação por

ribeirinhas. Débora

animais silvestres foi a

dos Santos Arraes, da

causa da perda dos ovos

Universidade Federal

em 2,7% dos ninhos e

do Amapá (Unifap), e

1,7% dos ovos foi

Marcos Tavares Dias,

perdido por causa

da Embrapa Amapá,

da variação sazonal dos

acompanharam o

níveis do rio. Uma das

Pensava-se que as

Letters, 18 de agosto).

destino de 324 ovos

conclusões desse

substâncias destruidoras

O CCl4, que antes do

depositados em 180

levantamento é que a

da camada de ozônio –

acordo de Montreal era

ninhos às margens do rio

proximidade dos ninhos

que filtra os raios

usado intensamente em

Falsino, em uma reserva

de comunidades urbanas

ultravioleta do Sol que

geladeiras e aparelhos

ambiental, e na área

e ribeirinhas é o principal

chegam à Terra e desse

de ar-condicionado, deve

urbana da cidade de

fator de perda de ovos e,

modo evita danos à

provavelmente agora

Porto Grande, na bacia

consequentemente, da

saúde das pessoas, como

provir de vazamentos

do rio Araguari, no

redução das populações

o câncer de pele – tinham

industriais, de lugares

estado do Amapá,

de tracajás. Os autores

deixado definitivamente

contaminados ou de

ambas muito procuradas

desse estudo alertam

de ser emitidas, como

fontes desconhecidas

para a reprodução dessa

para “a urgente

foi determinado no

– sua origem ainda não

espécie, de setembro a

necessidade de ações

Protocolo de Montreal,

é certa. Os especialistas

novembro de 2011 (Acta

estratégicas para

um acordo internacional

da Nasa concluíram

Amazonica, setembro).

conservação e

de 1987. Aparentemente

que, como se relatou

Os pesquisadores

manutenção dos

não é bem assim. Uma

emissão zero de CCl4

verificaram que apenas

estoques naturais

equipe de pesquisadores

entre 2007 e 2012,

20% dos ninhos

dessa tartaruga com

da Nasa, a agência

a concentração desse

permaneceram intactos

relativa vulnerabilidade

espacial norte-americana,

composto na atmosfera

e 25% dos ovos

na região”.

verificou que a atmosfera

deveria ter reduzido a

da Terra contém uma

uma taxa de 4% ao ano.

quantidade elevada de

No entanto, os

tetracloreto de carbono

especialistas observaram

(CCl4 ), uma das

uma redução bem

substâncias que, como

menor, de apenas 1%.

se sabe, pode destruir a

Por meio de simulações

camada de ozônio.

da química amosférica

A quantidade de CCl4,

global, os pesquisadores

calculada por meio de

– agora interessados

modelos matemáticos

em idenficar a fonte das

computacionais, é de

emissões inexplicadas

43 mil toneladas por ano,

– concluíram também

o equivalente a 30%

que o CCl4 pode

do máximo de emissão

permanecer na

dessa substância antes

atmosfera por

de sua proibição mundial

um tempo 40% maior

(Geophysical Research

do que se pensava.

14 | setembro DE 2014

Tracajá: populações em declínio por causa do consumo da carne e dos ovos

2

fotos 1 nasa 2 Creative Commons  3 Alper Bozkurt/ Universidade do Estado da Carolina do Norte  4 Antoine Lourdeau  ilustraçãO daniel bueno

Ainda perseguidos


Biorrobôs alados

Tecnologia de ponta

Um bando de mariposas

Arqueólogos descobriram

voando em busca de

a primeira oficina

sobreviventes de um

brasileira de lâminas

desastre aéreo ocorrido

pré-históricas, com uma

em um local de difícil

idade que pode chegar

acesso ou farejando

a 9 mil anos (Journal

gases tóxicos numa

of Anthropological

estação de metrô, palco

Archeology). Antoine

de um atentado terrorista.

Lourdeau, à época na

A cena, que parece de

3

filme de ficção, poderá

Universidade Federal de Pernambuco e agora

Método para monitorar sinais elétricos dos músculos no voo das mariposas

se tornar realidade de

e monitorar os sinais

entre outras coisas,

acordo com um grupo

elétricos que os insetos

de ajudar equipes de

no Museu de História

de engenheiros elétricos

usam para controlar tais

resgate em operações

e da computação da

músculos. O feito abre

de busca. Os próximos

Universidade do Estado

espaço para que, no

passos da pesquisa,

e Sibeli Viana, da

da Carolina do Norte,

futuro, os pesquisadores

publicada on-line em

Pontifícia Universidade

nos Estados Unidos.

consigam controlar

18 de julho na revista

Católica de Goiás,

Liderados pelo cientista

remotamente o voo

Journal of Visualized

concluíram que as

Alper Bozkurt, eles

das mariposas, criando

Experiments, incluem o

lâminas de pedra

criaram métodos

biorrobôs alados.

desenvolvimento de um

encontradas ao longo do

para manipular

O objetivo final do grupo

sistema automatizado

rio Uruguai, na fronteira

eletronicamente a

é equipar as mariposas

para explorar e ajustar

entre Santa Catarina e

musculatura envolvida

com sensores criando

os parâmetros de controle

Rio Grande do Sul,

no voo das mariposas

uma rede aérea capaz,

de voo dos insetos.

foram produzidas em

Natural de Paris, Sirlei Hoeltz, da Archaeo Pesquisas Arqueológicas,

série e davam origem a ferramentas como facas e pontas de lança. “Esse tipo de produção

Diagnóstico mais rápido de doença

também é conhecido na Argentina, mas com uma idade mais recente”, diz Lourdeau. Segundo

Um teste nasal não invasivo criado por

ele, as mesmas técnicas

cientistas dos National Institutes of

foram usadas na Europa

Health (NIH), dos Estados Unidos, e da

e no Oriente próximo.

Universidade de Verona, na Itália, pode-

“Soluções semelhantes

rá diagnosticar com elevado nível de

podem surgir de forma

precisão a doença de Creutzfeldt-Jakob

independente em várias

(DCJ), uma desordem neurodegenerati-

regiões do mundo

va incurável e fatal. Atualmente, o diag-

e épocas.”

nóstico da enfermidade é realizado por meio de biópsia do tecido cerebral de

mum, conhecida como esporádica e que

pacientes vivos ou já mortos. A DCJ é a

representa 85% dos casos, possui uma

mais comum das chamadas doenças

incidência de 0,5 a 1,5 caso por milhão

priônicas humanas, caracterizada por

por ano. O novo teste consiste em usar

um quadro de demência rapidamente

uma pequena escova para coletar no

progressiva, desordem de marcha, pos-

nariz neurônios olfativos conectados ao

tura rígida, crises epilépticas e paralisia

sistema nervoso central. Os testes rea-

facial, que confere ao indivíduo acome-

lizados com a nova técnica identificaram

tido a aparência de estar sempre sorrin-

corretamente 30 dos 31 pacientes por-

do. Mais comum em pessoas na faixa

tadores da doença e mostraram resulta-

etária entre 50 e 70 anos, ela pode se

dos negativos para todas as 43 amostras

manifestar de quatro formas. A mais co-

de pessoas que não sofriam do mal.

Lâminas de 9 mil anos: produzidas em série ao longo do rio Uruguai

4

PESQUISA FAPESP 223 | 15


16 | setembro DE 2014


capa

A construção de um medicamento Anticorpos contra tumor de ovário desenvolvidos por instituições de pesquisa e empresa nacionais estão prontos para ser testados em humanos Ricardo Zorzetto

TIM VERNON / SCIENCE PHOTO LIBRARY

A Mísseis autoguiados: representação artística de linfócito B, célula do sistema imune que produz anticorpos (moléculas em forma de Y)

té o fim deste ano seis mulheres que passaram por cirurgia ou quimioterapia para combater o câncer de ovário no hospital da Universidade de Gotemburgo, na Suécia, devem receber um tratamento de reforço com um composto experimental desenvolvido por instituições de pesquisa e uma empresa brasileiras. Será a primeira vez que uma versão produzida especificamente para uso em seres humanos desse composto, um anticorpo monoclonal com alta afinidade por células de tumor de ovário, será utilizada em um teste clínico. O oncologista Ragnar Hultborn e sua equipe em Gotemburgo já obtiveram a aprovação das autoridades de saúde suecas para dar às pacientes doses baixas do anticorpo, ao qual irão adicionar um elemento químico radioativo. Com essa terapia de apoio, eles esperam eliminar as células tumorais que eventualmente possam ter escapado ao tratamento inicial ou que já haviam se espalhado antes mesmo de o problema ter sido diagnosticado. Se funcionar, essa estratégia pode evitar o restabelecimento de células malignas nos ovários ou sua migração para outros órgãos. O câncer de ovário é cerca de 10 vezes menos frequente que o tumor de mama – o mais comum entre as mulheres e o segundo mais prevalente entre todos os cânceres –, mas PESQUISA FAPESP 223 | 17


Do tubo de ensaio à prateleira

geração de clones

As muitas etapas do desenvolvimento do anticorpo monoclonal humanizado candidato a combater tumores de ovário, rins e pulmões

Em São Paulo, os genes sintéticos são inseridos em células humanas que passam

infecção resposta imune

humanização

a produzir o anticorpo humanizado

Como resposta, células do sistema imune dos roedores chamadas linfócitos B passam Na década

a produzir os anticorpos MX35.

O Instituto

de 1980,

Eles identificam

Ludwig

cientistas

as células

repassa

do Instituto

humanas e se

Ludwig injetam em

ligam a elas,

do Instituto Butantan e da

camundongos células de

neutralizando-as

Recepta informações, obtidas

à equipe

quatro tipos de tumores

por modelagem computacional,

humanos de ovário

de como humanizar os anticorpos. O grupo brasileiro desenha os genes e manda sintetizar na Alemanha

mados de natural killers, células do sistema de defesa que lançam um banho de substâncias tóxicas sobre o tumor (ver infoO tumor de ovário é menos gráfico na página 20). Segundo comum do que o de mama, mas Maria Carolina Tuma, diretora de pesquisa e desenvolvimento mata propocionalmente mais da Recepta, responsável pela coordenação do projeto de desenvolvimento do RebmAb200, resultados preliminares, obtimata proporcionalmente mais porque costuma dos por pesquisadores da empresa em modelos ser identificado tardiamente. “Acreditamos que animais, sugerem que essa atividade se traduza os cânceres em geral matam porque no momento na redução da taxa de crescimento tumoral. O ensaio clínico a ser conduzido agora em Godo diagnóstico inicial já existem células tumorais espalhadas pelo corpo”, conta Hultborn em temburgo é mais um passo importante no longo entrevista à Pesquisa FAPESP no fim de agosto. processo de aprovação de um composto candi“Ao acoplar àum elemento radioativo a anticorpos dato a se tornar um medicamento. Depois de específicos para um determinado tumor, nossa uma longa bateria de testes com células e tecimeta é encontrar e eliminar as células malignas dos humanos e de experimentos com roedores feitos no Brasil e na Suécia, é nessa primeira fase onde quer que se encontrem.” Em seu primeiro teste em seres humanos, esse clínica que se avalia se o anticorpo é seguro para anticorpo monoclonal, por ora conhecido como ser administrado em seres humanos como agente RebmAb200, deve funcionar prioritariamente terapêutico. Também é nesse estágio que os poscomo um meio de transporte. Será uma espécie síveis efeitos colaterais indesejados começam a de míssil microscópico autoguiado portando uma ser identificados. São medidas necessárias antes ogiva nuclear – nesse caso, o elemento químico que se avance para as etapas seguintes de avaliaastatínio – até as células a serem destruídas. Mas ção, com mais pacientes, e, caso tudo dê certo, já se sabe que ele não age só assim. Experimentos para ser colocado no mercado. Se os resultados com animais e com células humanas realizados forem bons, Hultborn planeja realizar já em 2015 no Brasil mostraram que esse anticorpo mata as ou 2016 um estudo maior, com cerca de 100 mucélulas do tumor mesmo sem a carga radioati- lheres, para avaliar a eficácia do procedimento. Independentemente dos resultados clínicos, va. Ao se ligar às células do câncer, o anticorpo aciona linfócitos exterminadores, também cha- há motivos para comemorar. O desenvolvimento 18 | setembro DE 2014

Anticorpo murino

Anticorpo humanizado


fabricação

Clones estáveis e altamente produtivos são enviados para a Holanda, onde é fabricado o primeiro lote do anticorpo para uso em seres humanos,

foto léo ramos  infográfico ana paula campos  ilustração daniel bueno

o RebmAb200

do RebmAb200 permitiu à Recepta dominar, do país. “A saúde é uma das três ou quatro áreas que início ao fim, um dos muitos estágios complexos e vão determinar se o Brasil vai ser um ator que detém trabalhosos da produção de anticorpos monoclo- conhecimento estratégico no cenário econômico nais: a obtenção de linhagens de células capazes global ou se exercerá um papel subordinado”, diz. de produzir em grande quantidade e com o mesmo padrão de qualidade e estabilidade anticorpos Uma longa jornada para serem usados em seres humanos – os cha- O fato de o RebmAb200 ter chegado à fase de tesmados anticorpos humanizados, que apresentam tes clínicos já pode ser considerado um caso bemmenor risco de provocar reações alérgicas. Esse -sucedido de desenvolvimento biotecnológico. É resultado, descrito em 2013 em um artigo da re- resultado de um modelo de parceria pouco comum vista científica PLoS One, foi laureado em agosto no país entre o setor público e o privado. Seu dedeste ano, na categoria inovação tecnológica, com senvolvimento envolveu a interação de equipes o Prêmio Octavio Frias de Oliveira, promovido de instituições públicas de pesquisa consagradas, pelo Instituto do Câncer do Estado de São Paulo como o Instituto Butantan e a USP, com a equipe (Icesp) e pelo grupo Folha, de uma empresa privada de que publica o jornal Folha de base tecnológica, a Recepta S.Paulo (ver página 42). Biopharma. A empresa, como “Dominar a geração de agregadora de competências uma linhagem celular estáinternas e de centros acadê“Ampliar a vel e eficiente que produz micos de excelência, coordecapacidade de anticorpos monoclonais renou os esforços para chegar a presenta a superação de um esse resultado. A compra de inovação na gargalo tecnológico para o equipamentos e o trabalho país”, afirma o oncologista desses grupos também receprodução de Roger Chammas, professor beram financiamento de duas da Faculdade de Medicina da fontes: a pública, por meio da biofármacos é Universidade de São Paulo FAPESP (aproximadamente uma questão (USP) e pesquisador do Icesp. R$ 3 milhões) e da FinanciaChammas e sua equipe pardora de Estudos e Projetos (R$ estratégica para ticiparam recentemente de 6,2 milhões), e a privada, com uma das etapas de teste do investimentos da própria Reo Brasil”, diz RebmAb200. Usando outro cepta (R$ 5,8 milhões). material radiativo, o tecnécio A longa jornada que levou Carlos Gadelha 99, a bióloga Luciana Sousa à obtenção do anticorpo a ser Andrade analisou como o antestado na Suécia começou há ticorpo se distribui pelo orgaquase 10 anos, quando o físico nismo depois de injetado na e engenheiro José Fernando corrente sanguínea de roedores. “Observamos que Perez, ex-diretor científico da FAPESP, após deixar ele se concentra nas células tumorais de ovário, o comando da Fundação criou a Recepta com dois mas não nas saudáveis”, conta a pesquisadora, à investidores privados, com o objetivo de desenvolépoca integrante da equipe da Recepta. ver biofármacos inovadores. À frente da empresa, Considerado por alguns oncologistas um can- Perez colocou em prática sua habilidade de atuar didato a medicamento para tratar alguns tumores como articulador, identificando profissionais de de ovário e também casos específicos de câncer grande capacidade técnica e criando parcerias. de pulmão, de rim e de mama, o RebmAb200 Procurou a imunologista Ana Maria Moro, é uma molécula inovadora, não se tratando de do Instituto Butantan, que trabalhava com anbiossimilar de outra droga já existente. ticorpos monoclonais e já havia produzido no “O desenvolvimento dessa molécula inovadora é instituto anticorpos murinos usados na clínica um passo emblemático no campo dos produtos bio- para reduzir o risco de rejeição aguda em translógicos no país”, diz o economista Carlos Gadelha, plantes renais. “Recebi um telefonema do Perez secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estra- em fevereiro de 2005 pedindo para marcar uma tégicos do Ministério da Saúde. O Brasil domina há reunião, se possível, para o mesmo dia”, lembra tempos a tecnologia da produção de vacinas, mas Ana Maria. “Em abril eu já estava em Nova York ainda não conseguiu desenvolver um medicamento participando de reuniões no Ludwig.” biológico (biofármaco) completamente inovador Ela ajudou Perez a analisar o portfólio de antique chegasse ao estágio de ser comercializado. Se- corpos murinos que já haviam sido obtidos pelo gundo Gadelha, ampliar a capacidade de inovação Instituto Ludwig para a Pesquisa sobre o Câncer tecnológica na produção de biofármacos e em toda (LICR). Com o biólogo Oswaldo Keith Okamoto e a área da saúde é uma questão estratégica para o o oncologista Oren Smaletz, eles garimparam quaPESQUISA FAPESP 223 | 19


Nos anos 1970 dois imunologistas, o alemão tro anticorpos que pareciam ter maior potencial de se tornarem medicamentos oncológicos, para Georges Köhler e o argentino César Milstein, os quais a Recepta obteve a licença exclusiva in- criaram a primeira estratégia bem-sucedida de ternacional para pesquisar, desenvolver, realizar gerar biofábricas de anticorpos capazes de viver testes clínicos e, caso se torne um medicamento, por muitas gerações ao fundir células tumorais comercializar (ver Pesquisa FAPESP nº 137). Em murinas com células produtoras de anticorpos 2009, Maria Carolina Tuma, trazendo experiên- (linfócitos B) de roedores. Essa estratégia, que lhes valeu um Nobel, permicia de anticorpos em empresa tiu chegar a células geneticanorte-americana, assumiu a mente idênticas – os clones –, liderança do projeto, coordeprodutoras de grandes quannando a pesquisa multidiscitidades de anticorpos. plinar e multi-institucional, o A capacidade Mas eles nem sempre funque, segundo ela, foi um grande os anticorpos cionavam como o esperado. de desafio. Só uma década mais tarde os Apesar de os anticorpos se ligarem a um avanços da engenharia genémurinos existirem há bastantica melhoraram a probabilite tempo, não é fácil conseguir alvo específico dade de obter anticorpos que a versão humanizada. Obtidos preservassem a afinidade dea partir da injeção de células levou seu sejada por células específicas de tumores humanos em cadescobridor, e que não fossem reconhecimundongos, os anticorpos dos como estranhos pelo sismurinos em geral não podem Paul Ehrlich, tema imune humano. “O deser aplicados em um paciensenvolvimento de anticorpos te mais do que uma vez. Por a chamá-los de terapêuticos envolve conheserem estranhos ao organiscimento profundo da sorolomo humano, há o risco de ati“bala mágica” gia do câncer, de técnicas de varem uma resposta imunoengenharia de proteínas, de lógica severa, que, nos casos mecanismos de ação e resisextremos, pode levar à morte. tência e da interação entre o Os avanços técnicos e tecnosistema imune e as células do lógicos que possibilitaram o desenvolvimento dos anticorpos humanizados câncer”, escreveram Andrew Scott, Jedd Wolchok são relativamente recentes, começaram há menos e Lloyd Old, pesquisadores do Ludwig, em uma de 40 anos e só geraram o primeiro anticorpo mo- revisão sobre a terapia do câncer com anticorpos, noclonal aprovado para o tratamento oncológico publicada em 2012 na Nature Reviews Cancer. O primeiro anticorpo monoclonal a se tornar humano há cerca de 15 anos. Os primeiros anticorpos foram descobertos no um medicamento para tratar cânceres humanos fim do século XIX pelo médico alemão Paul Ehrlich, foi o rituximabe, usado contra algumas formas de que identificou uma propriedade que os caracte- cânceres do sangue – linfoma e leucemia – por riza: a capacidade de se ligar a um alvo específico. Essa propriedade, que levou Ehrlich a chamá-los de “bala mágica”, viria a ser usada com sucesso para combater células tumorais. Mas foram necessárias décadas de avanços e retrocessos para que se conseguisse produzir de forma controlada anticorpos capazes de combater tumores. Anticorpos são proteínas que células do sistema de defesa fabricam para neutralizar moléculas estranhas ao organismo. São muito maiores, complexas e mais difíceis de serem produzidas do que as moléculas de medicamentos, em geral feitas por síntese química. Para produzir anticorpos, é preciso usar células como biofábricas. E o anticorpo produzido por uma célula pode ser diferente do gerado por outra da mesma variedade. Difíceis de serem obtidas, as linhagens produtoras de anticorpos precisam ser capazes de se reproduzir indefinidamente – característica compartilhada com as células tumorais. 20 | setembro DE 2014

Ação indireta RebmAb200 ativa linfócitos que matam as células tumorais

O RebmAb200, versão humanizada de anticorpo contra tumor de ovário, é injetado no sangue ou diretamente na cavidade abdominal

Quase idênticas: células produtoras de anticorpos, vistas ao microscópio


Reconhecimento

ativação

Anticorpos monoclonais

Proteína tumoral

ataque

morte

Células do sistema imune

As toxinas abrem poros na

chamadas linfócitos

membrana da célula maligna

exterminadores reconhecem

e desencadeiam um

os anticorpos e os identificam

mecanismo de morte celular

como sinal de perigo

programada, a apoptose

Linfócitos exterminadores

Célula maligna

Uma vez acionados, os O anticorpo se liga às

exterminadores lançam um

proteínas do tumor pelas quais

banho de substâncias tóxicas

tem alta afinidade e, assim,

sobre a célula tumoral

foto instituto butantan  infográfico ana paula campos  ilustração daniel bueno

marca as células malignas

se ligar a uma proteína encontrada em grandes quantidades na superfície de células de defesa chamadas linfócitos B, que se multiplicam ininterruptamente. A agência de controle de medicamentos dos Estados Unidos, a FDA, aprovou seu uso em seres humanos em 1997. Desde então, pouco mais de uma dúzia de anticorpos monoclonais receberam sinal verde da FDA para serem utilizados contra o câncer. São medicamentos caros, que no Brasil costumam ser pagos pelo sistema público de saúde. O preço de uma dose de um anticorpo monoclonal varia de cerca de US$ 1 mil, no caso dos mais antigos, a US$ 26 mil, cobrados pelos de gerações recentes. Seu uso em geral se justifica por desempenharem uma ação mais específica sobre as células tumorais do que os demais medicamentos, os chamados quimioterápicos, que em geral eliminam tanto as células de câncer quanto as saudáveis, causando efeitos colaterais severos. O desempenho terapêutico desses anticorpos contra grupos específicos de tumores – além de, claro, seus custos – justifica o esforço brasileiro para dominar ao menos parte de sua produção, ainda que com pouco mais de uma década de atraso em relação aos países mais ricos e tecnologicamente mais desenvolvidos. União de competências

Com a transferência de direito desses anticorpos para a Recepta, Perez estabeleceu colaboração com Ana Maria, via acordo com a Fundação Butantan, para desenvolver uma linhagem de células que produzisse a versão humanizada do anticorpo agora conhecido como RebmAb200. A

versão murina desse anticorpo, chamada MX35, havia sido obtida por pesquisadores do Ludwig na década de 1980. O próprio Ludwig enviou as informações, obtidas por meio de modelagem computacional, necessárias para humanizar o anticorpo, que deveria reunir duas características: manter a afinidade por células de tumor de ovário típica da versão murina e a compatibilidade com os anticorpos humanos, reduzindo o risco de reações alérgicas. “A primeira característica pode ser avaliada em ensaios no laboratório, já a segunda só é conhecida após testes em seres humanos”, conta Ana Maria, coordenadora do Laboratório de Anticorpos Monoclonais do Butantan, Nesse laboratório, a farmacêutica Lilian Tsuruta, à época da equipe da Recepta, tinha uma missão aparentemente simples para humanizar os anticorpos. A partir da sequência, desenhou os genes e encomendou a síntese para a empresa alemã Geneart. Os dois genes sintéticos continham a receita da versão humanizada do anticorpo, molécula em forma de letra Y que reconhece – e se liga a – proteínas específicas abundantes na superfície das células tumorais. O trabalho de Lilian era recortar esses genes do molde enviado pela Geneart e colá-los em um arcabouço de DNA que pudesse ser incorporado e expresso pelas células escolhidas para produzir os anticorpos. “Foram quase seis meses de trabalho em laboratório, com tentativas e erros, até encontrar a situação ótima”, conta Lilian. A etapa seguinte, que coube à bióloga Mariana Lopes dos Santos, à época pesquisadora da Recepta trabalhando na equipe de Ana Maria, era fazer essa fita de DNA chegar ao núcleo das tais PESQUISA FAPESP 223 | 21


léo ramos

células. Foi selecionada uma linhagem de células humanas, que preservam a capacidade de se reproduzir por muitas e muitas gerações. É um procedimento longo e lento, que, além de muita destreza, exige certa dose de sorte. Mariana colocava em recipientes de apenas 1 centímetro cúbico, menor do que um dado de jogo de tabuleiro, uma mistura contendo dezenas de milhares de células e milhões de cópias dos genes do anticorpo. Em seguida, dava uma leve descarga elétrica e aguardava quase uma semana para descobrir se haviam sido incorporadas ao material genético das células. É um processo que depende do acaso e tem baixa eficiência. “Quando tudo dá certo, só cerca de 30% das células incorporam os genes”, explica Mariana, hoje contratada pelo Butantan e primeira autora do artigo da PLoS One. Em muitos casos, os genes não se integram de forma correta ao material genético das células, que, assim, não conseguem produzir o anticorpo. Em geral o que se deseja é selecionar umas pouquíssimas células que incorporam muitas cópias do gene. Quando as identifica, Mariana as separa em recipientes isolados. Cada uma é um clone, que vai se multiplicar por muitas gerações, enquanto os pesquisadores avaliam, por meio de uma série de testes, sua capacidade de produzir anticorpos eficientes, em quantidade elevada e de modo constante. Dos 210 clones que Mariana conseguiu, menos de uma dúzia se mostrou bastante eficiente, capaz de produzir anticorpos contra as células tumorais. O mais eficaz de todos foi o clone número 105, curiosamente gerado por ela na segunda-feira 22 | setembro DE 2014

7 de setembro de 2009, dia de comemoração da Independência, quando, apesar de feriado, ela estava no laboratório. À medida que eram gerados e purificados, os anticorpos começavam a passar por testes in vitro para ver se preservavam a capacidade de se ligarem apenas às células tumorais e matá-las. Visão estratégica

Enquanto se dominava a etapa de produção dos clones no Butantan, o patologista Venancio Ferreira Alves e sua equipe trabalhavam na Faculdade de Medicina da USP para ajudar a definir contra quais tipos de câncer os anticorpos licenciados pelo Ludwig poderiam funcionar. Contratado pela Recepta via Fundação Faculdade de Medicina, o grupo de Alves criou um biobanco com amostras normais e de tumores de 33 órgãos extraídos de mais de 2 mil pacientes – e dispostos em 347 microarranjos que permitem testar até 200 amostras por vez. Esses dados, parcialmente publicados em 2012 na revista Applied Immunohistochemistry and Molecular Morphology, ajudam a garantir a robustez das indicações de uso clínico dos anticorpos. Testes feitos com o anticorpo murino, o MX35, e sua versão humanizada obtida por pesquisadores da Recepta no Butantan, o RebmAb200, confirmaram que ambos têm alta afinidade por células de tumor de ovário. Alves testou esses anticorpos em amostras obtidas de 38 tumores de ovário. Em 30 delas (cerca de 80%), mais da metade das células expressavam quantidades elevadas da proteína que é reconhecida pelo anticorpo. “Caso o RebmAb200 se mostre seguro

Porta-clones: recipientes de cultivo das células produtoras de anticorpos monoclonais


Nos últimos dois anos, com suporte de um proe eficaz nos testes clínicos, pode se tornar mais fácil obter seu registro internacional como droga grama nacional – as parcerias para o desenvolpara tratamento de um tumor órfão”, conta Al- vimento produtivo (PDPs) –, o governo federal ves. Atualmente não há anticorpos monoclonais vem estimulando o setor farmacêutico a entrar aprovados para o uso contra tumores de ovário, na fase de inovação incremental. Em parceria uma forma menos frequente de câncer, que des- com instituições de pesquisa brasileiras, as farperta menos interesse das empresas farmacêu- macêuticas nacionais já fecharam alguns acordos ticas. Resultados ainda não publicados obtidos com empresas estrangeiras para trazer para o país tecnologias de produção pelos pesquisadores da Rede 14 biofármacos (vacinas, cepta com a equipe de Alves hemoderivados e anticorpos indicam potencial para uso monoclonais contra câncer e do RebmAb200 em um subdoenças autoimunes) dispogrupo de pacientes de cânDez anos de níveis no mercado. cer de mama, que atualmente trabalho Ao estimular a internalinão dispõe de alternativa tezação da tecnologia de prorapêutica eficaz. permitiram dução desses compostos, o Esses 10 anos de trabalho ministério pretende diminuir articulado permitiram domidominar uma os gastos do sistema público nar uma das etapas da produde saúde. Há razões de soção dos anticorpos monocloetapa da bra para isso. Afinal, os bionais, mas ainda há gargalos produção dos fármacos somam apenas 4% a superar, caso se opte por do volume de medicamentos desenvolver uma política de anticorpos adquiridos pelo Ministério da Estado para que o Brasil deixe de ser apenas importador de monoclonais, mas Saúde, mas consomem 51% do orçamento de compras. tecnologia. Por exemplo, para a produção de anticorpos ainda há gargalos “De 2012 para cá, já foram fechadas 27 parcerias para monoclonais é preciso recorproduzir 14 biofármacos de rer ao exterior. Por essa razão, última geração no Brasil”, diz Perez decidiu contratar uma Gadelha. “Agora há a capaciempresa na Holanda para fabricar em escala-piloto um lote de RebmAb200 e dade e a necessidade de o país entrar na era de outra empresa, também no exterior, para envasá-la. inovação radical”, afirma. O anticorpo da Recepta “Ainda não existem as condições necessárias que está pronto para ser testado na Suécia parece para produzi-lo no Brasil”, afirma Perez, presi- ser um passo nesse sentido. “O desenvolvimento do RebmAb200 mostra dente da Recepta, que recentemente firmou parceria com o Ludwig, a empresa suíça 4 Antibody como um projeto de inovação conduzido por AG e o laboratório farmacêutico brasileiro Cris- uma empresa pode catalisar e articular ativitália para testar dois anticorpos monoclonais de dade de pesquisa translacional na fronteira do segunda geração, que agem de modo diferente do conhecimento científico conduzida de forma RebmAb200. Do ponto de vista empresarial, tal- colaborativa entre instituições acadêmicas de vez não exista a necessidade de dominar todos os excelência”, diz Perez. n estágios tecnológicos de produção dos anticorpos. “No mundo atual, não há como manter a visão de que se tem de desenvolver toda a cadeia de Projetos produção num único país, até mesmo empresas 1. Linhagens celulares de alta produtividade e estabilidade de anticorpos monoclonais humanizados para a terapia de câncer (nº 05/60816-8); de países desenvolvidos, como os Estados UniModalidade Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inodos, mandam fabricar muitos de seus produtos vação Tecnológica (Pite); Coordenadora Ana Maria Moro (Instituto na China.” Do ponto de vista estratégico, porém, Butantan); Investimento R$ 377.708,00 e US$ 810.616,85 (FAPESP) R$ 1.793.198,00 (Recepta). pode ser necessário superar esse desafio. “Saber 2. Anticorpos monoclonais para tratamento de câncer: desenvolvifazer biotecnologia exige uma política de Estado, mento e ensaios clínicos (nº 01.06.0759); Modalidade Ação transvera ser desenvolvida ao longo de décadas”, afirma sal - Cooperação ICTs - Empresas - Inovação em produtos terapêuticos e diagnósticos; Coordenadora Ana Maria Moro (Instituto Butantan). Gadelha, do Ministério da Saúde. “Nas áreas de Investimento R$ 6.197.136,62 (Finep) e R$ 4.006.802.00 (Recepta). saúde, energia, agropecuária e defesa é preciso um grande esforço do Estado para o Brasil queArtigo científico brar o bloqueio e se tornar um player internaLOPES DOS SANTOS, M. et al. RebmAb200, a humanized monoclonal cional. Ou o Brasil se torna capaz de absorver e antibody targeting the sodium phosphate transporter NaPi2b displays desenvolver tecnologia ou não se torna capaz de strong immune mediated cytotoxicity against cancer: a novel reagent expandir o acesso à saúde”, diz Gadelha. for targeted antibody therapy of cancer. PLoS One. 31 jul. 2013. PESQUISA FAPESP 223 | 23


capa

Prótons e íons na medida certa Hadronterapia combate tumores de forma mais seletiva e eficaz que a radioterapia convencional Marcos Pivetta, de Heidelberg

F

eixes de prótons ou de íons de carbono acelerados a até 225 mil metros por segundo, três quartos da velocidade da luz, penetram 30 centímetros no interior do corpo humano praticamente sem causar danos ao tecido biológico atravessado. Quase toda a energia desse fluxo de partículas subatômicas eletricamente carregadas é canalizada para o exato momento e lugar em que prótons ou íons cessam de se movimentar. Esse ponto de parada pode ser controlado com precisão milimétrica e direcionado para um tumor, que, assim, receberá uma dose de energia concentrada maior do que a atualmente fornecida pela radioterapia convencional. Na hadronterapia, nome dado a essa relativamente nova abordagem terapêutica contra o câncer, a chance de as células com tumor, e quase exclusivamente elas, morrerem em razão da radiação ionizante é grande. “Esse efeito de concentração da energia das partículas no ponto de parada é denominado pico de Bragg”, diz Thomas Haberer, diretor técnico e científico do centro de terapia de feixes de íons mantido pelo hospital da Universidade de Heidelberg, o mais avançado da Europa a utilizar prótons e íons de carbono em tratamento e pesquisa contra o câncer. Cara e disponível em apenas cerca de 40 centros médicos ou hospitais localizados na Ásia, Europa, Estados Unidos e África 24 | setembro DE 2014

TUMOR

A energia de um feixe de partículas atravessa tecidos quase sem danificá-los e pode ser concentrada em seu ponto de parada, no caso, o tumor

do Sul (no Brasil não há nenhum), a hadronterapia já foi empregada em aproximadamente 112 mil pessoas nos últimos 20 anos. Cerca de 90% dos pacientes receberam a irradiação de prótons, mais poderosa do que a propiciada pela radioterapia tradicional, mas de duas a três vezes menos energética do que a de íons de carbono, considerada a mais promissora para os casos mais complicados. A radioterapia clássica usa fótons, partículas de luz, para tentar debelar o câncer. Os raios X são o tipo de luz mais empregado contra tumores. Eles são extremamente úteis na luta contra a doença, mas têm um problema: antes de atingirem a região do tumor, perdem parte de sua energia durante o seu trajeto e danificam o DNA das células normais com que entraram em contato. Graças à existência do pico de Bragg, uma particularidade física e radiobiológica das partículas subâtomicas

Feixe de prótons ou de íons de carbono

eletricamente carregadas, a hadronterapia pode ser extremamente letal aos tumores e, ao mesmo tempo, quase inócua aos tecidos sadios. “Os íons de carbono são mais pesados e têm menor dispersão lateral do que os prótons”, diz o italiano Marco Durante, diretor do Departamento de Biofísica do GSI Centro Helmholtz para Pesquisa de Íons Pesados, em Darmstadt, que desenvolveu a tecnologia usada em Heidelberg. “Isso faz com que se conformem melhor em torno dos tumores. Sua alta carga aumenta as propriedades biológicas e os transforma em um soco poderoso contra tumores resistentes à radiação.” Inaugurado em 2009, o centro em Heidelberg tratou até hoje 2.200 pacientes, metade com prótons e metade com íons de carbono. “Desde que sigamos os protocolos padronizados, que recomendam um limite para a dose diária de radiação ionizante, os pacientes submetidos à pro-


fotos hospital universitário de Heidelberg

tonterapia não precisam fazer parte de um teste clínico. Mas praticamente todos os indivíduos tratados com íons de carbono participam de estudos clínicos”, afirma Haberer. Apenas seis lugares no mundo usam íons de carbono, mais pesados e mais energéticos do que os prótons, em tratamentos contra câncer. Três centros estão no Japão (em Chiba, Gunma e Hyogo), que há 20 anos emprega a hadronterapia; um está em Lanzhou, na China; outro em Pavia, na Itália, além da unidade na Alemanha. Boa parte dos pacientes que se submeteram à hadronterapia tinha tumores situados em partes do corpo de difícil acesso, como o cérebro ou o pulmão, muito próximos a órgãos que não podem ser irradiados ou simplesmente resistentes aos tratamentos convencionais. Algumas formas de cânceres pediátricos também são alvos preferenciais da terapia de partículas, geralmente a baseada em prótons, menos energética do que a de íons de carbono. Há estudos que mostram melhor evolução do quadro clínico e maior tempo de sobrevida nos pacientes que se submeteram à terapia de partículas em relação à radioterapia convencional. Mas alguns médicos acreditam que ainda são necessárias mais pesquisas nesse sentido. “O tema ainda é um pouco controverso e alguns resultados necessitam de validação em estudos comparativos”, diz João

Sala de hadronterapia em Heidelberg (acima) e estrutura de 670 toneladas que direciona os feixes de partículas: precisão milimétrica contra tumores

Victor Salvajoli, especialista em radiologia do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) e do Hospital do Coração (HCor). “Mas a terapia de partículas pode ser mais eficaz em certos casos selecionados, como alguns cânceres infantis, cordomas [tumores na base do crânio] e melanoma de coroide. O Brasil deveria ter ao menos um centro de protonterapia para casos selecionados, ensino e pesquisa.” Terapia cara

Para explorar as possibilidades dessa forma de radioterapia, os centros médicos precisam de um cíclotron ou de um síncrotron, aceleradores circulares de partículas responsáveis por colocar prótons ou íons na velocidade adequada para uso clínico, e de instalações especiais para abrigar a parafernália – e isolar a radiação – envolvida na hadronterapia. O centro de Heidelberg, que custou € 120 milhões, é composto de um prédio de três andares com 5 mil metros quadrados. Uma estrutura de aço gigantes-

ca, que pesa 670 toneladas e tem 25 metros de comprimento e 13 de diâmetro, conecta-se ao seu síncrotron. Ela ocupa os três andares e é usada para direcionar os feixes de partículas com precisão milimétrica para três salas de terapia. Os Estados Unidos, onde boa parte da tecnologia e dos estudos com hadronterapia teve início décadas atrás, não contam hoje com nenhum centro de tratamento com íons de carbono, embora disponham de 14 instituições que usam a protonterapia. “É mais uma questão de como o sistema de saúde é financiado nos Estados Unidos, que é diferente do da Europa e da Ásia”, diz o físico Stephen Peggs, do Laboratório Nacional de Brookhaven, no estado de Nova York, que participou em fevereiro deste ano de um encontro para discutir o futuro da hadronterapia nos Estados Unidos. “Hoje o sistema não cobre os custos de terapias com íons de carbono, apenas com prótons.” A hadronterapia é cara. Em Heidelberg, o valor cobrado para tratar um paciente gira em torno de R$ 75 mil. n PESQUISA FAPESP 223 | 25


entrevista Artur Ávila

O homem que calcula Marcos Pivetta

E

specialista em uma área denominada sistemas dinâmicos, cujo objetivo é desenvolver uma teoria capaz de prever a evolução a longo prazo de fenômenos naturais e humanos, o carioca Artur Ávila recebeu em 13 de agosto deste ano a Medalha Fields, o maior prêmio internacional da matemática. Aos 35 anos, tornou-se o primeiro brasileiro e sul-americano a ser distinguido com tal honraria, dada a cada quatro anos pela União Internacional de Matemática (IMU, na sigla em inglês) para pesquisadores com até quatro décadas de vida. Além do brasileiro, que trabalha no Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (Impa), no Rio de Janeiro, e é diretor de pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), em Paris, a medalha também foi concedida ao austríaco Martin Hairer, ao canadense Manjul Bhargava e à iraniana Maryam Mirzakhani, primeira mulher a ganhar o prêmio. Entre os quatro vencedores, que ainda receberam um prêmio de € 10 mil em dinheiro, Ávila era o mais novo. “Para os outros candidatos, esta era a única chance de ganhar a medalha por causa da limitação de idade. Devido às circunstâncias do momento, achei que teria pouca chance de ser reconhecido neste ano”, afirmou Ávila em entrevista concedida no Rio de Janeiro, depois de ter ido a Seul receber o prêmio durante o 27º Congresso Internacional de Matemáticos. A excelência desse brasileiro, que também tem a cidadania francesa desde o ano passado, manifestou-se cedo. Filho único de pais separados (tem ainda uma meia-irmã por parte de pai), teve uma vida de classe média e frequentou boas escolas. Em 26 | setembro DE 2014

1995, aos 16 anos, Ávila ganhou a medalha de ouro na Olimpíada Internacional de Matemática. Dois anos mais tarde, ainda como aluno do tradicional Colégio Santo Agostinho e sem ter entrado na faculdade, concluiu o mestrado no Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (Impa). Em 2001, aos 21 anos, terminou o doutorado, também no Impa, e, de lambuja, a graduação na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Aluno inteligente geralmente gosta de se mostrar e faz muitas perguntas”, afirma o pesquisador Welington Celso de Melo, orientador de doutorado de Ávila. “Artur era diferente. Falava pouco, mas, quando fazia perguntas, era impossível respondê-las na hora. Tinha de ir para casa pensar na resposta.” Casado com uma pesquisadora da área de economia e sem filhos, Ávila vive entre Paris e o Rio de Janeiro, as duas cidades que lhe permitem fazer o que mais gosta: resolver grandes problemas matemáticos. Entre seus feitos estão soluções para os chamados operadores de Schrödinger, ferramentas matemáticas que ajudam a descrever a evolução ao longo do tempo de vetores de estados em sistemas quânticos. Mesmo antes de ganhar a Medalha Fields, o brasileiro, que conta com mais de 50 papers publicados, já gozava de enorme prestígio nos círculos matemáticos. Sua forma de fazer pesquisa é peculiar. Ele lê pouco, não dá aulas e pode trabalhar em casa ou no escritório – ou na praia, se está no Rio. Prefere se inteirar de um novo tema de pesquisa por meio do estabelecimento de parcerias com colaboradores que sejam especialistas nessa área. “Você vai conversando e a pessoa diz exatamente qual é o pulo do gato. Não precisa necessariamente

idade 35 anos especialidade Sistemas dinâmicos formação Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (Impa) instituição Impa e Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), Paris


leonardo pessanha

PESQUISA FAPESP 223 | 27


passar por uma leitura extensa de toda a bibliografia em torno de um problema”, disse. Avesso a entrevistas, Ávila diz não ter vocação para comunicar a matemática ao grande público, demanda da qual será difícil fugir depois de ter recebido o maior prêmio internacional já concedido a um pesquisador brasileiro. É verdade que, diferentemente do Nobel, os ganhadores da Medalha Fields são avisados com antecedência de que foram escolhidos para receber o prêmio? A gente sabe antes do momento do anúncio. Soube cinco meses antes e tive de guardar segredo. É bastante tempo, mas fiz um esforço. Seu nome já era cogitado para receber a medalha quatro anos atrás. Esperava ganhar o prêmio agora? Não esperava ganhar desta vez devido à existência de outra candidatura forte numa área próxima à minha e ao fato de eu ser mais novo do que os outros candidatos. Eu tinha ainda mais uma chance e poderia ganhar a medalha em 2018. Para os outros, esta era a única chance de ganhar por causa da limitação de idade de 40 anos. Devido às circunstâncias do momento, achei que teria pouca chance de ser reconhecido neste ano. Quem era o outro candidato da área? A iraniana Maryam Mirzakhani, que também ganhou o prêmio. Foi excepcional, eles deram a medalha para os dois. Trabalhamos em áreas próximas e, devido a isso, era mais difícil que os dois fossem recompensados no mesmo ano. Por essa razão e, por ser a última chance dela, mas não a minha, achei que eu poderia não levar o prêmio. Você e Maryam já trabalharam juntos? Juntos, não. Mas trabalhei com pessoas que fizeram pesquisa com ela. Ela já usou resultados dos meus trabalhos e eu usei resultados dos dela. Ela trabalha numa área que intersecta e tem interesses em comum com a minha. Então poderíamos trabalhar juntos nesse campo, trabalhamos certamente na mesma direção com coautores comuns. Por alguma razão, nunca nem nos encontramos. Normalmente os organizadores do prêmio evitam dar a medalha para matemáticos de áreas muito próximas? 28 | setembro DE 2014

Não existem regras. Entendo que, se houver uma situação em que há um candidato que possa esperar pela edição seguinte do prêmio, é possível privilegiar a diversidade de áreas. Era o que eu pensaria e o que poderia ter acontecido comigo. Eu certamente poderia ser candidato em 2018 também. Não tinha urgência em relação ao meu nome. Em 2018, o Congresso Internacional de Matemáticos será no Rio de Janeiro. Você acha que a escolha do Brasil para sede do encontro impulsionou a sua candidatura à medalha? A decisão sobre a realização do congresso é separada da decisão do comitê da premiação. São questões bastante diferentes. A realização do evento envolve questões de desenvolvimento matemático e também de organização. O fato de o Brasil demonstrar que tem capacidade de organizar grandes eventos ajudou sua candidatura. Muitos lugares que realizaram o evento nunca ganharam a medalha, como Coreia do Sul, Índia e Espanha. A medalha é o reconhecimento de um trabalho matemático, uma questão puramente científica. É a primeira vez que um ganhador do prêmio realizou sua educação até o nível de doutorado em um país que não seja desenvolvido, como Japão, algum da Europa, Estados Unidos ou Israel. Realizei toda a minha educação no Brasil e isso não atrapalhou. A qualidade do doutorado que pude fazer no Impa não deixou nada a dever ao que eu poderia ter feito lá fora. É uma demonstração clara da qualidade do que pode ser feito aqui no Brasil. Isso, obviamente, é um trabalho de muito mais tempo do Impa, que há décadas tem um ensino e pesquisa de qualidade. Como você se via aos 21 anos terminando o doutorado? Já se imaginava como um pesquisador especial pela precocidade? Era mais jovem do que um pesquisador normalmente inserido no doutorado. Mas tinha noção de que podia fazer um doutorado jovem sem me tornar um grande pesquisador. Você pode ser excelente aluno de matemática, ter excelentes notas, mas não ter a capacidade de fazer pesquisa. Mesmo que, nesse contexto, tenha capacidade de fazer uma pesquisa de doutorado, pode haver dificuldades para dar continuidade

à carreira. Existem vários momentos em que você pode não dar continuidade à qualidade do trabalho que vinha apresentando. Também pode ocorrer de você não demonstrar nenhuma capacidade excepcionalmente notável no início da carreira e, em um certo momento, engrenar. Tinha essa noção e meus objetivos eram muito básicos. Na época do doutorado, minha meta era fazer um trabalho de pesquisa para conseguir as coisas básicas. Era traçar os caminhos normais de um pesquisador quando quer uma carreira, não com um objetivo muito alto lá na frente. Tinha ambições bem razoáveis, porque você sabe que pode haver dificuldades e é provável que elas aconteçam. Sua entrada no Impa foi muito precoce. Como ela se deu? Foi relacionada ao fato de que o Impa, às vezes, aceita alunos mais jovens, que ainda estão fazendo o segundo grau [atual ensino médio]. Fazem isso se detectam a capacidade do aluno para seguir o curso. Sabia desse fato e isso tinha me despertado o interesse de, talvez, fazer a mesma coisa. Esse desejo se realizou quando voltei da Olimpíada Internacional de Matemática de 1995, em que ganhei a medalha de ouro. O Impa me sugeriu fazer um dos cursos do nível 1 pouco antes de iniciar o mestrado. Se tudo desse certo, engrenaria o mestrado do Impa. De fato, foi o que fiz enquanto cursava o terceiro ano do segundo grau. Comecei no nível de mestrado e, depois de um certo tempo, passei para o doutorado de maneira mais ou menos simples, fazendo os cursos do Impa. Em certo momento, comecei a conversar com os pesquisadores, com o Welington, e foi assim que entrei para a área de sistemas dinâmicos. Por que se interessou pela matemática e não por outras ciências? Não sei. Sempre gostei de matemática mesmo antes de saber qual era a diferença entre as coisas. Desde os cinco anos, sem nenhuma razão especial. Gostava também de outras áreas que achava serem ciência. Mas, em matemática, é possível avançar por conta própria bem mais rápido e eu tive esse contato com as olimpíadas de matemática, que me deram muito estímulo e foco e também serviram de transição para o Impa.


leonardo pessanha

Como surgiu seu interesse pela área de sistemas dinâmicos? Tenho certas características como pesquisador que se adaptam bem a fazer pesquisa em sistemas dinâmicos e que também se adaptariam a outras áreas. Sou um analista. Trabalho com análises, estatísticas, geometria. No caso, fui mais exposto à área de sistemas dinâmicos por estar no Impa e em contato direto com o Welington. Por isso segui para sistemas dinâmicos, em que essas características são muito importantes. Você pode tratar esse tema usando essas técnicas ou de outras maneiras. É uma coisa que bate bem comigo, mas a escolha por sistemas dinâmicos se deve à circunstância histórica de eu estar no Impa. Como explicaria a área de sistemas dinâmicos para um leigo? Sistemas dinâmicos, de maneira geral, é o estudo de temas que evoluem com o tempo, com uma regra que descreve a transição de um momento ao próximo, do momento atual até o momento de amanhã, por exemplo. Essa regra pode ser muito simples. Mas, em um prazo muito longo, você vê a emergência de comportamentos muito complicados. Alguns deles chamamos de caóticos. O estudo desse comportamento caótico, que emerge a longo prazo, é uma das principais preocupações da área de processos dinâmicos. [Os resultados e métodos oriundos da área de sistemas dinâmicos são empregados para explicar fenômenos complexos de áreas como química (reações, processos industriais), física (turbulência, transição de fase, ótica), biologia (competição de espécies, neurobiologia) e economia (modelos de crescimento, comportamento do mercado financeiro).] De forma superficial, as pessoas associam o caos à desorganização, mas há regras dentro do caos, certo? Conseguimos descrever melhor os sistemas caóticos de boa qualidade, que apresentam certas características. Eles são sensíveis às condições iniciais e, neles, pequenas modificações criam grandes efeitos. À primeira vista, por um lado, isso parece ser algo que impede dizer qualquer coisa útil sobre o sistema, que destrói a possibilidade de fazer previsões. Mas, por outro lado, introduz novas regras que o sistema segue, novas leis que podem ser utilizadas pelo sistema. Leis que deixam de ser deterministas e passam a ser de caráter estatístico e probabilístico. Te-

Cerimônia de entrega da Medalha Fields durante o Congresso Internacional de Matemáticos em Seul

mos, então, de fazer perguntas e tentar dar respostas em termos de probabilidades e comportamentos do sistema em vez de ter uma certeza absoluta. Tentamos modelar o sistema de maneira estocástica [por meio de uma descrição probabilística dos processos]. Tentamos tratar o sistema da forma como ele pode ser tratado. É certo pensar o Sol e seus planetas como um exemplo de sistema dinâmico caótico? No sistema planetário, é difícil descrever a emergência do caos. Isso ainda é muito complexo e não está muito bem entendido. Mas um evento em que aparecem fenômenos caóticos pode ser a interação de funções quadráticas [polinômios de segundo grau], que toda criança aprende na escola. Depois de muito tempo, qual seria o efeito da aplicação sucessiva da mesma lei quadrática? Ela pode apresentar a emergência do caos. É um exemplo bem simples do que acontece. Algumas pessoas dizem que você é um grande resolvedor de problemas, talvez mais até do que formulador de teorias. Você concorda com esse comentário? Muitas vezes na minha carreira procurei problemas conhecidos e reconhecidamente difíceis e trabalhei na resolução

deles. Como fiz isso várias vezes, certamente é verdade que resolvi muitos problemas. Mas, em menor dose, também trabalhei na construção e no desenvolvimento dessas teorias, que envolvem, às vezes não só resolver como também formular o problema. Solucionei um problema no início do meu trabalho sobre os operadores de Schrödinger, mas, depois, também construí uma teoria e resolvi problemas ligados a ela. Mas, certamente, a parte mais visível do meu trabalho, porque existem em grande quantidade, são as soluções de problemas de várias áreas distintas dos sistemas dinâmicos. Seu orientador de doutorado, o professor Welington, diz que você sempre foi muito seletivo na escolha de seus objetos de trabalho e se interessou pelos grandes problemas da matemática, tentando não se dispersar com assuntos menores. Essa foi sua estratégia? Trabalho em coisas que me agradam, com problemas que me interessam particularmente, que considero bonitos. Frequentemente os problemas considerados difíceis são fundamentais porque têm algo de grande interesse. Em torno desses problemas também se desenvolvem teorias. O matemático é, em geral, atraído pela riqueza da teoria em torPESQUISA FAPESP 223 | 29


no desses objetos. Trabalhar com esses problemas permite explorar coisas mais prazerosas. Mas não descarto um problema porque outras pessoas não o consideram importante. Trabalhei também com questões que sabia que não teriam impacto monumental. Esses problemas, quando são mais simples, resolvo mais rápido. Não passo a maior parte do meu tempo trabalhando sobre eles porque são resolvidos mais rapidamente. São mais simples. Você fez vários trabalhos com colaboradores. Gosta de trabalhar em equipe? Gosto principalmente quando é para aprender. Não tenho o hábito de ler. Como assim? Leio livros de matemática e papers, leio muito pouco. Mas como se faz pesquisa assim? Em matemática, é possível avançar sem ter um conhecimento mais profundo da literatura. É mais importante ter uma compreensão bem precisa das coisas fundamentais. E essas coisas importantes pego mais facilmente conversando com outros pesquisadores. Aí entra o aspecto da colaboração. Você vai conversando e a pessoa diz exatamente qual é o pulo do gato. Não precisa necessariamente passar por uma leitura extensa de toda a bibliografia em torno de um problema. Essa caraterística é sua ou muitos matemáticos trabalham dessa forma? Não é uma característica completamente única. Matemáticos trabalham de várias maneiras. Tem matemáticos que gostam de ler bastante. Essa não é minha característica. Conheço bastante coisa porque já resolvi muitos problemas. Muitas vezes começo a trabalhar numa área já fazendo pesquisa antes mesmo de estudar essa área. Antes de estudar, tento resolver um problema. Mas é muito difícil começar do zero, sem saber nada. Então começo uma colaboração e, antes mesmo de aprender profundamente o assunto, já resolvi um problema importante que me motiva mais. Várias vezes troquei de área e resolvi logo um problema importante e, só depois, compreendi melhor o que a teoria dizia sobre aquele problema. Envolve um pouco a característica técnica da pessoa e a intuição também. Para mim, funciona assim. 30 | setembro DE 2014

Como a intuição ajuda o matemático? As partes mais difíceis de um trabalho matemático são as que envolvem a criatividade, que o levam a fazer uma descoberta que está fora, obviamente, das regras básicas. Todo matemático de primeira linha tem habilidades técnicas formidáveis e consegue passar por caminhos conhecidos sem dificuldades maiores. Esse é o meu caso certamente. O que trava o trabalho é ter que sair das linhas conhecidas, descobrir alguma coisa e tentar identificar a maneira de atacar o problema. Diante do desconhecido, não existe uma regra por definição para escolher a sua abordagem. A intuição é que vai tentar indicar por onde atacar o problema. Isso envolve um pouco de experiência, que ajuda muito a desenvolver a intuição sobre uma questão. Você está indo em uma direção porque tem esperança de que vai funcionar, mas não dá para formalizar matematicamente ainda. Por que você se naturalizou francês? Concluí meu doutorado no Brasil e fui para a França em 2001. Meus primeiros empregos foram na França e passei lá cinco anos antes de voltar para o Brasil. Então passei três anos no Brasil e depois comecei a ficar metade do tempo aqui e metade lá. O tempo que passei na França complementou minha formação como matemático e estendi as minhas áreas de pesquisa. Saí do doutorado com uma capacidade de fazer pesquisa já em alto nível. Meus resultados eram reconhecidos como importantes, mas eu tinha uma visão restrita da área e de sua posição dentro de toda a matemática. Em Paris, tive contato com a maior comunidade de matemáticos do mundo e uma atividade incomparável. Isso me obrigou a sair da minha área de atuação na época, a dinâmica unidimensional, e a buscar outras coisas para poder interagir com essas pessoas que não tinham, necessariamente, os mesmos interesses que eu. Nessa busca com tanta gente boa, com tantas possibilidades de coautores, entrei em outras áreas e tive meu trabalho bastante reconhecido por conta do que fiz nessas áreas. O matemático que sou hoje pegou muita coisa da França como também do Brasil. Portanto, achava correto me considerar um matemático franco-brasileiro. Se sou um matemático franco-brasileiro, faz sentido ter a nacionalidade francesa também, o que ainda traz vantagens práticas para a vida lá.

Como é seu esquema de trabalho entre o Rio e Paris? Eu vou e volto. Não são seis meses inteiros lá ou aqui, é mais fracionado. Fico uns meses lá, outros aqui. Tento fugir do inverno de Paris, mas podem ocorrer exceções. Os detalhes das viagens são decididos de última hora e, de acordo com as circunstâncias, escolho as datas específicas. Tenho muita flexibilidade, trabalho só com pesquisa e não ensino. É uma característica minha. Prefiro me dedicar mais à pesquisa e não me vejo com grandes talentos para a educação. Tenho alunos de doutorado, mas basicamente não dou aula. Nessa situação, não tenho um calendário fixo para cumprir, coisa que eu teria se tivesse de dar aulas. É verdade que você acorda tarde e costuma trabalhar mais à noite? Certamente continuo acordando tarde, às 11 horas ou até as 13 horas. Mas isso varia muito. Depende do dia anterior e de coisas que podem estar mais agitadas. De noite, trabalho antes de dormir ou, se acordo no meio da noite, posso pensar em matemática. Mas tento trabalhar à tarde também. Trabalho frequentemente com colaboradores e não vou trabalhar com eles depois da meia-noite. Tenho trabalhado em várias situações. Mais recentemente na praia ou caminhando pela orla, por exemplo. Não tanto à noite. A rotina em Paris e no Rio é parecida? Não tem nada a ver. Para começar, não tem uma rotina fixa. Lá é mais comum que eu vá ao escritório. Não tem praia lá, claro. Então encontro os coautores, pessoas próximas e alunos. Tento realizar vários encontros durante o dia, não necessariamente no meu escritório. Tem dias que fico em casa também. Na França isso é mais comum. No Brasil costumo chamar as pessoas para me encontrar perto da minha casa. Quando trabalho sozinho, fico muito em casa ou vou para a praia. Nem sempre estou trabalhando de maneira muito intensa. Quando não estou trabalhando numa linha de pesquisa muito específica ou quando estou meio perdido, sem saber como abordar um problema – o que acontece a maior parte do tempo –, não ajuda muito, nem há como ficar trabalhando muitas horas. Trabalho, então, poucas horas por semana. É diferente de algumas situações que acontecem de vez em quando, em que


tenho esperança, já sei, ou imagino que alguma coisa vai funcionar e envolver bastante trabalho técnico, mas direcionado. Nesses casos, trabalho de forma muito mais intensa, muitas horas por dia. O Brasil tem índices ruins no ensino de matemática e ciências. Você se considera uma exceção dentro desse quadro? Acho que sou mais uma consequência natural da evolução da ciência, particularmente da matemática, que é talvez a área mais desenvolvida do Brasil no âmbito do impacto internacional. Isso se deve a características próprias da matemática, mas também às pessoas que trabalharam na área. A matemática depende mais de recursos humanos que de recursos materiais. Ter pessoas com foco pode bastar para ir muito longe. Quando se depende de muitos recursos, como laboratórios, não basta a vontade das pessoas por mais competência que elas tenham. [O prestígio do Brasil é evidenciado pelo fato de ter atualmente quatro representantes com direito a voto na assembleia-geral da IMU, um a menos do que potências como Estados Unidos e França. No congresso internacional em Seul, quatro matemáticos do Impa deram palestras.]

Acho que o Brasil e o Impa produzem matemáticos de qualidade há algum tempo. Sou um pouco relutante em tentar jogar pressão em cima de qualquer pessoa. Ganhar um prêmio não é nada sobrenatural. O que seria impossível de acontecer aconteceu. E aconteceu dentro de uma continuidade de melhora da matemática no Brasil. Não é um acontecimento único que não possa se repetir. Mas realmente é um prêmio raro. Não recebê-lo não significa má qualidade de pesquisa. Gosto de lembrar as pessoas de que a Alemanha – que tem 100 prêmios Nobel e o Brasil nenhum – tem apenas uma Medalha Fields para toda a sua pesquisa. Veja o quão raro é esse prêmio. Isso não descaracteriza de maneira nenhuma a qualidade da pesquisa feita pelos matemáticos alemães e a contribuição que eles dão à ma-

mente o papel de ajudar a desenvolver um pouco a comunicação com pessoas que não são matemáticos e que não sabiam que se fazia matemática de bom nível no Brasil. Planeja fazer palestras em escolas? Provavelmente vou fazer alguma coisa nesse sentido, mas o objetivo é ter esse papel ao lado de pessoas que têm mais vocação para isso. Sou muito limitado em várias coisas relacionadas a expor a matemática para um público mais geral. Não é do meu nível de competência fazer isso. Já tenho dificuldade para falar com alunos de pré-doutorado em matemática, que são da minha área. Por outro lado, tenho uma visibilidade maior. Ainda não resolvemos a maneira como vamos conciliar isso. Mas, na prática, pelas minhas limitações, não serei eu o comunicador direto com as pessoas.

A Medalha Fields é uma demonstração clara da qualidade da pesquisa que pode ser feita no Brasil

O que poderia ser feito para despertar nas escolas novas vocações na matemática? Pela minha trajetória, não tive contato com o ensino nas escolas. Fiz escolas bem seletas, fui direto para o Impa e não passei muito pela universidade. Fiz formalmente a universidade, mas estudava no Impa. Não tive contato com essa realidade do ensino no país. Se eu falar sobre ensino, é mais sobre como eu imagino que ele seja. Não ensino numa universidade, então não tenho contato com o dia a dia. Prefiro passar a bola para pessoas que têm mais contato com essa realidade e têm mais ideias sobre isso. Vejo matemáticos de alto nível que têm muito mais possibilidades do que eu para dar ideias nessa direção. Outro brasileiro do Impa, Fernando Codás, é cotado para ganhar a medalha. Como você avalia essa possibilidade?

temática. Não se pode medir as coisas por esses prêmios, vai gerar distorções imensas. A análise é muito mais complicada. Com a medalha, é fácil mostrar para as pessoas que o Brasil fez algo no mais alto nível internacional. Antes dela, o Brasil já fazia, só que era mais difícil demonstrar. As pessoas até podiam dizer: então cadê o prêmio? Agora não podem mais dizer. Mas não é por aí que as coisas devem ser medidas, porque não é esse o foco. Você acha que, daqui para frente, será uma espécie de embaixador da ciência e da matemática brasileiras no exterior? Entre os matemáticos, o Impa já era reconhecido. Então não é tão fundamental que eu faça esse papel. Acho que tenho interna-

Mas não seria natural as pessoas esperarem um contato maior seu com o público não especializado? Elas podem cobrar, mas aceitar ou não a cobrança é minha escolha. Creio que possa fazer algo de positivo sem ser de maneira direta. Existem muitas pessoas competentes, que se comunicam bem melhor do que eu. Não preciso ser a pessoa que fala, posso estar ao lado dela.

Como é sua vida fora da matemática? No Brasil, tento ir para a academia com frequência e, quando possível, à praia. Moro no Leblon. Gosto de caminhar por aqui e fazer as coisas típicas de quem mora no bairro, como ir às casas de suco. No Rio, tenho amigos desde a época da escola que ainda encontro, organizo esses encontros. Tudo bem normal. Não faço nada muito esquisito, nenhum esporte de alto risco, não faço muitas viagens que não tenham a ver com a matemática. Em Paris, tenho um grupo de colegas matemáticos com os quais me encontro depois do trabalho e vamos a bares e coisas do gênero. Paris é famosa pela vida cultural, os museus. Você vai muito a esses lugares? Não. n PESQUISA FAPESP 223 | 31


política c&T  Indicadores y

1

Impacto crescente Relatório de atividades 2013 da FAPESP destaca investimento recorde e programas para a inovação e a fronteira do conhecimento

A

FAPESP aumentou em 6,5% o volume de recursos financeiros destinados a pesquisas científicas e tecnológicas no estado de São Paulo em 2013. O desembolso com bolsas e auxílios ou apoio à pesquisa foi de R$ 1,1 bilhão, recorde em 51 anos de história da Fundação, como mostra o Relatório de atividades 2013, lançado na sede da Fundação no dia 27 de agosto com uma exposição de obras da artista plástica Renina Katz, que ilustram a publicação. Entre 2008 e 2013, o desembolso da FAPESP cresceu quase 73%. “O investimento feito pela FAPESP contribui com a eficiência da pesquisa realizada em São Paulo sobre temas de forte impacto intelectual, social e econômico, três vertentes essenciais para o progresso do estado, que é responsável por 50% do conhecimento criado no Brasil”, diz o presidente da Fundação, Celso Lafer.

32  z  setembro DE 2014

Um dos destaques de 2013 relaciona-se ao investimento no campo da inovação. Os 167 novos projetos contratados no Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) — em que empréstimos são concedidos a projetos em pequenas empresas, muitas delas startups originadas em universidades e institutos de pesquisa paulistas — representam crescimento de 108% em relação a 2012. Somados esses resultados aos do Pappe/Pipe — programa federal de apoio a pesquisas em empresas que, em São Paulo, destina recursos para a fase 3 do programa Pipe, aquela de investimento na aplicação dos resultados —, conclui-se que a cada semana do ano três pequenas empresas paulistas receberam auxílio da FAPESP para desenvolver pesquisas que levarão ao lançamento de produtos ou processos em benefício da economia e da sociedade.

fotos 1 sem título, 1995, água-forte 2 sem título, 1998, aquarela  3 juan esteves

Fabrício Marques


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Outra iniciativa da FAPESP que teve avanço significativo em 2013 foram os Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid). O programa foi iniciado em 2000 com suporte a 11 centros de pesquisa de excelência em diversas áreas, no período de 2001 a 2012. Todos atingiram os objetivos propostos. Em 2011, foi anunciada uma segunda chamada de propostas, que recebeu 90 projetos, analisados por 150 revisores do Brasil e do exterior. Em 2013, 17 propostas foram selecionadas. Os novos Cepids reúnem 499 cientistas do estado de São Paulo e 68 de outros países. Ao longo de 11 anos, receberam cerca de R$ 1,4 bilhão. O objetivo dos centros, que se dedicam a temas tão diversos como neuromatemática, doenças inflamatórias, violência e alimentação, é produzir pesquisa de classe internacional e caráter multidisciplinar, trabalhando na fronteira do conhecimento. Os centros também têm como missão produzir inovação e transferir conhecimento para o setor produtivo ou dar lastro à criação de políticas públicas. Um exemplo de ênfase da FAPESP na inovação e na integração com o setor produtivo foi o lançamento dos Centros de Pesquisa em Engenharia

3

FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

RELATÓRIO DE ATIVIDADES 2013

A artista plástica Renina Katz: reproduções das obras que ilustram o relatório são expostas na sede da FAPESP

pESQUISA FAPESP 223  z  33


O avanço do investimento Evolução do desembolso realizado pela FAPESP entre 2008 e 2013 (em R$) e da participação percentual de cada objetivo de fomento 1.103.153.253 1.035.207.651

52%

53% 938.737.449 49% 780.033.468 54% 679.525.814 637.856.798

56%

53%

39% 32%

37%

37% 38%

38%

9%

6%

9%

19%

10%

9%

2008

2009

2010

2011

2012

2013

em áreas estratégicas para o desenvolvimento tecnológico do estado de São Paulo. Com financiamento de longo prazo e abordagem de temas de fronteira nos mesmos moldes dos Cepids, são patrocinados pela Fundação e empresas privadas. Quatro companhias – a montadora Peugeot Citroën Brasil, a indústria brasileira de cosméticos Natura, a empresa de petróleo e gás BG Brasil e a multinacional farmacêutica GlaxoSmithKline (GSK) – celebraram acordos de cooperação com a FAPESP seguidos da abertura de chamadas de projetos para a criação dos centros, que reúnem pesquisadores de instituições científicas e das empresas. FAPESP e empresas parceiras vão compartilhar investimentos de R$ 114 milhões, por período entre cinco e 10 anos. Segundo o diretor científico da FAPESP, Carlos Henrique de Brito Cruz, “estes Cepids cofinanciados desde o primeiro dia por empresas são algo que se vê em poucos países e contribuirão para aumentar mais ainda o impacto da pesquisa em São Paulo”.

O

relatório mostra que em 2013 a FAPESP recebeu um total de 13.272 solicitações de bolsas, 10,58% mais que em 2012, além de 6.798 de auxílios regulares, auxílios em programas especiais e em programas de pesquisa para inovação tecnológica. O total foi de 20.070 pedidos. Quando são analisados os objetivos do fomento, 39% dos desembolsos apoiaram o 34  z  setembro DE 2014

Apoio à Pesquisa com Vistas a Aplicações Programa Biota-FAPESP; Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen); Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG); Programa Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Cooperação Interinstitucional de Apoio a Pesquisas sobre o Cérebro (CInAPCe); Programa de Pesquisas em eScience (eSCIENCE); Auxílios e bolsas das áreas de engenharias, saúde, agronomia e veterinária; Ensino Público; Jornalismo Científico (MídiaCiência); Programas de Pesquisas em Políticas Públicas: Pesquisa em Políticas Públicas e Pesquisa em Políticas Públicas para o SUS (PP-SUS); Programas de Apoio à Pesquisa Inovativa em Micro e Pequenas Empresas: Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe), Programas de Apoio à Pesquisa em Empresas (Pipe Fase 3: Pappe/Finep); Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica: Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite), Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica – SUS (Pite-SUS); Programa de Apoio à Propriedade Intelectual (Papi/Nuplitec) Apoio ao Avanço do Conhecimento Bolsas Regulares no país: Iniciação Científica, Mestrado, Doutorado, Doutorado Direto e Pós-Doutorado; Bolsas Regulares no Exterior: Pesquisa e Bolsa Estágio de Pesquisa no Exterior (Bepe); Auxílios à Pesquisa – Regulares; Auxílios à Pesquisa – Projetos Temáticos, com as subdivisões: Temáticos Regulares, Temáticos Pronex e Temáticos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia, os dois últimos em convênio com o MCTI; Apoio a Jovens Pesquisadores; São Paulo Excellence Chairs (Spec); Capacitação de Recursos Humanos para Pesquisa (Capacitação Técnica) Apoio à Infraestrutura de Pesquisa Apoio à Infraestrutura de Pesquisa; Rede ANSP (Academic Network at São Paulo); Equipamentos Multiusuários; FAP-Livros; Reserva Técnica para Infraestrutura Institucional de Pesquisa; Reserva Técnica para Conectividade à Rede ANSP; Reserva Técnica para Coordenação de Programa

avanço de conhecimento (R$ 428,40 milhões, 12% a mais do que em 2012). Significa que foram investidos em programas que formam recursos humanos e estimulam a pesquisa acadêmica, por meio de bolsas e auxílios (ver quadro). O apoio à pesquisa com vistas a aplicações foi responsável por 52% do desembolso (R$ 577,61 milhões, 6% acima de 2012). Essa vertente inclui o investimento Pesquisadores em pesquisas nas áreas de agronomia do exterior e veterinária, engenharia e saúde, que quase sempre resultam em aplicação, responderam além de programas que estimulam a inovação nas universidades e emprepor 20% das sas e de alguns programas especiais da Fundação. Por fim, 9% foram investidos concessões de no apoio à infraestrutura, o que inclui bolsas de recuperar, modernizar e adquirir equipamentos para laboratórios, ampliar o pós-doutorado acervo de bibliotecas de instituições de ensino e pesquisa e garantir a pesno país, ante quisadores acesso rápido à internet. As áreas que receberam maior volu7% em 2008 me de recursos foram saúde (30,77%); biologia (16,07%); ciências humanas e sociais (10,2%); engenharia (9,69%); e agronomia e veterinária (9,34%). Quando se analisa o vínculo institucional do pesquisador, receberam mais recursos os projetos coordenados por pesquisadores das universidades de São Paulo (USP), com R$


O destino dos recursos Desembolso realizado pela FAPESP em 2013 segundo o vínculo institucional dos pesquisadores USP 46,86%  r$ 516.969.179,00 Unesp 14,67%  r$ 161.830.550,00

O

Unicamp 13,81%  r$ 152.324.842,00 Instituições Federais 12,79%    r$ 141.142.778,00 Inst. Estaduais de Pesquisa 5,30%  r$ 58.426.604,00 Inst. Part. de Ensino e Pesquisa 4,30%    r$ 47.424.974,00 Empresas Particulares 1,93%  r$ 21.283.588,00 Soc. e Ass. Cient. Profissionais 0,24%  r$ 2.665.430,00 Instituições Municipais 0,08%  r$885.127,00 Pessoas Físicas 0,02%  r$ 200.360,00

o desembolso por área Recursos desembolsados pela FAPESP por campos do conhecimento em 2013 saúde 30,77%  r$ 339.434.478,00 biologia 16,07%  r$ 177.259.397,00 ciências humanas e sociais 10,20%     r$ 112.542.143,00 engenharia 9,69%  r$ 106.851.862,00 agronomia e veterinária 9,34%    r$ 102.986.480,00 química 6,25%  r$ 68.967.357,00 física 5,10%    r$ 56.245.970,00 ciência e engenharia da computação 3,35%  r$ 36.917.867,00 interdisciplinar 3,08%  r$ 33.937.950,00 geociências 2,94%  r$ 32.378.994,00 matemática e estatística 1,43%  r$ 15.770.671,00 astronomia e ciência espacial 0,72%  r$ 7.927.845,00 arquitetura e urbanismo 0,63%  r$ 6.980.973,00 economia e administração 0,45%  r$ 4.951.265,00

516,96 milhões; Estadual Paulista (Unesp), com R$ 161,83 milhões; e da Estadual de Campinas (Unicamp), com R$ 152,32 milhões. As instituições federais no estado receberam R$ 141,14 milhões, com destaque para a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), com R$ 58,73 milhões, a Federal de São Carlos (UFSCar), com R$ 35,63 milhões, e institutos ligados ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, com R$ 27,10 milhões. esforço permanente feito pela FAPESP para estimular colaborações internacionais rendeu novos frutos. Em 2013, foram realizados os encontros científicos FAPESP Week no Japão, Reino Unido e Estados Unidos, aproximando cerca de 600 pesquisadores brasileiros e estrangeiros com áreas de interesse comum. Em março, em Tóquio, o simpósio foi organizado com a Sociedade Japonesa para a Promoção da Ciência (JSPS). Em setembro, em Londres, o evento foi feito em conjunto com a Royal Society e teve apoio também do British Council. Nos Estados Unidos, em novembro, três cidades da Carolina do Norte sediaram os encontros realizados em parceria com a University of North Carolina at Chapel Hill, a UNC Charlotte, a North Carolina State University e o Brazil Institute do Woodrow Wilson International Center for Scholars. A Fundação encerrou o ano com 123 acordos de cooperação vigentes (36 nacionais e 87 internacionais), além de cinco memorandos de entendimento, cartas e protocolos de intenção, com universidades e instituições de pesquisa, para estímulo ao intercâmbio acadêmico, e com empresas e agências de fomento, estes para cofinanciamento de projetos de alto impacto. Do total, 22 foram assinados em 2013, sendo 19 com instituições de 11 países, entre eles quatro com os quais a FAPESP ainda não tinha parcerias formalizadas (Japão, África do Sul, Austrália e Chile). Oitenta por cento dos 55 editais publicados em 2013 ofereceram apoio para pesquisa em colaborações internacionais e intercâmbio científico, 55% a mais que em 2012. O aumento de interesse pelo intercâmbio científico foi sensível. A FAPESP apoiou 2.307 projetos dessa natureza, 15% a mais que em 2012. Outro resultado dessa exposição internacional é que as bolsas da FAPESP de pós-doutorado no país têm atraído para São Paulo mais pesquisadores do exterior. Em 2013, pesquisadores de outros países responderam por 20% das concessões (eram 190 entre as 960 bolsas concedidas), percentual que foi de 7% em 2008. O destaque na atração de jovens estrangeiros é para as ciências exatas e da terra, ciências biológicas e engenharias. No sentido inverso, as bolsas no exterior cresceram de 174 em 2008 para 1.118 em 2013, graças ao programa Bolsa Estágio Pesquisa no Exterior (Bepe). n pESQUISA FAPESP 223  z  35


36  z  setembro DE 2014


Integridade científica y

Do compromisso

à ação

Especialistas discutem caminhos para promover de modo contínuo e efetivo uma cultura de honestidade no ambiente de pesquisa

ilustrações  maurício pierro

O

que falta para que universidades e instituições de pesquisa ultrapassem a linha do discurso e das boas intenções e adotem políticas e ações para promover de modo contínuo uma cultura de integridade na pesquisa científica? A pergunta permeou boa parte dos debates do 3º Brispe (Brazilian Meeting on Research Integrity, Science and Publication Ethics), que reuniu mais de uma centena de pessoas no auditório da FAPESP, em São Paulo, nos dias 14 e 15 de agosto. O pano de fundo do encontro, que teve como mote as práticas de instituições para promover tanto a integridade como a conduta responsável em pesquisa, foi a constatação de que a maioria das universidades e instituições científicas, assim como acontece no exterior, ainda atua principalmente de forma reativa, apurando escândalos depois que eles se tornam públicos, e encontra dificuldades em criar estratégias preventivas para consolidar comportamentos éticos em todos os níveis hierárquicos no ambiente de pesquisa. O encontro também serviu como reunião preparatória para a 4ª Conferência Mundial sobre Integridade Científica, que acontecerá no Rio de Janeiro em 2015 (ver quadro na página 38).

Os debates no auditório da FAPESP apontaram um conjunto de desafios que as instituições precisam enfrentar. Nicholas Steneck, professor emérito da Universidade de Michigan, mostrou que o treinamento permanente de estudantes e pesquisadores, proposto em diversos documentos e códigos de boas práticas, mas realizado de forma esporádica e desigual, é extremamente importante. Os Estados Unidos, principal potência científica do planeta e berço das políticas de integridade científica desde os anos 1980, têm patinado ao implementar tais medidas, diz o pesquisador. Agências de fomento norte-americanas, por exemplo, exigem que os grupos de pesquisa financiados por elas disponham de planos para treinar estudantes e pesquisadores. Mas falta consistência a essas iniciativas, que envolvem, com frequência, o trabalho voluntário dos pesquisadores e têm formato e escopo diferentes às vezes dentro de uma mesma instituição. Alguns planos se baseiam em módulos de treinamento, outros em cursos ou no trabalho de mentores. “Há uma dificuldade em controlar a qualidade dessas iniciativas”, disse Steneck. Também há a oferta de treinamento via web. A vantagem, afirmou o pESQUISA FAPESP 223  z  37


pesquisador, é ter um conteúdo uniforme, mas o impacto no público-alvo é questionável. Steneck sugeriu uma abordagem híbrida, que comece na web e avance para um acompanhamento individualizado. “O grande desafio é conseguir engajar a audiência, pois é difícil falar sobre integridade científica o tempo todo”, disse Steneck, que vê com naturalidade uma certa aversão ao tema, em geral vinculado a escândalos e notícias ruins.

T

ambém falta harmonizar as políticas sobre integridade entre os vários níveis institucionais e também entre países e campos do conhecimento. Há um cardápio de declarações aprovadas em eventos internacionais além de códigos de boas práticas criados por instituições, mas suas abordagens são diversas e nem sempre têm denominadores comuns. Alguns países se preocupam em definir detalhadamente os tipos de má conduta, para melhor combatê-los, outros preferem abordar o asunto de modo positivo, priorizando a formulação de boas práticas. Mark Frankel, diretor do programa de responsabilidade científica

38  z  setembro DE 2014

“A má conduta científica tornou-se um problema global. Todos os países que produzem ciência estão sofrendo impacto”, disse Nicholas Steneck

e direitos humanos da Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS), mostrou que as sociedades científicas vinculadas a campos do conhecimento podem ajudar a consolidar o esforço de universidades e governos, tanto orientando o treinamento de práticas para garantir qualidade e honestidade na pesquisa como criando regras para tornar mais transparente a contribuição de cada autor de um artigo científico – uma vez que a definição sobre quem assina e em qual posição varia entre as disciplinas. “As sociedades científicas estão bem posicionadas para manter valores e padrões éticos ao longo do tempo e transmiti-los para as novas gerações”, disse Frankel. No campo da publicação de resultados de pesquisa, a definição de padrões éticos e de práticas a serem seguidas por autores e editores é vista como fundamental para garantir a qualidade da produção científica. Charlotte Haug, editora-chefe da revista da Associação Médica da Noruega, levou ao Brispe o esforço do Commitee on Publication Ethics (Cope), um fórum que reúne 9 mil editores de periódicos científicos para oferecer diretrizes comuns relacionadas à integridade da ciência. Estabelecer tais critérios, contudo, é um trabalho em permanente construção. Segundo Charlotte, ainda existem situações numa espécie de zona cinzenta – ela citou, por exemplo, o caso de periódicos e repositórios que não têm um editor responsável. “Quem irá corrigir se houver um erro nessa literatura?”, indagou Charlotte, que é vice-presidente do Cope. Existe consenso sobre várias situações em que um artigo científico publicado deve ser cancelado, ou “retratado”, como se diz no meio científico: se a contribuição não é original ou se há fraude ou falsificação de dados, por exemplo. Há casos, contudo, que desafiam o Cope. “Há editores que querem retratar artigos apenas para evitar processos judiciais”, disse a pesquisadora. Um dos pilares do trabalho do Cope é mostrar que a responsabilidade sobre a acurácia dos resultados de um artigo científico não se limita ao pesquisador, mas também aos editores, às instituições em que a pesquisa foi realizada e às agências de fomento. “Todos aqueles que querem ter crédito quando a pesquisa tem sucesso também precisam estar preparados para corrigir o registro científico quando algo dá errado”, afirmou Charlotte.


Em 2010, a FAPESP lançou seu Código de boas práticas científicas, conjunto de diretrizes éticas para a atividade profissional dos pesquisadores que recebem bolsas e auxílios da Fundação. De acordo com Luiz Henrique Lopes dos Santos, membro da Coordenação Adjunta de Ciências Humanas e Sociais, Arquitetura, Economia e Administração da FAPESP, ainda não há universidade ou instituição de pesquisa no estado de São Paulo que tenha criado um órgão interno para promover a integridade científica por meio de programas regulares de educação, disseminação e treinamento, como estabelece o código. “A resposta das universidades e instituições de pesquisa em relação às responsabilidades atribuídas a elas tem sido um pouco lenta”, disse. Lopes dos Santos elogiou a participação de representantes de universidades de São Paulo e de outros estados nas discussões do Brispe, organizado com o objetivo de ampliar o engajamento das instituições. “Nosso foco tem sido estimular as instituições a formular políticas para promover uma cultura de integridade de forma permanente”, afirmou.

U

m exemplo pioneiro de estrutura permanente para promover boas práticas científicas está sendo implementado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e foi apresentado no Brispe pela pró-reitora de Pesquisa da instituição, a professora Debora Foguel. Criada em julho de 2013, a Câmara Técnica de Ética em Pesquisa dispõe de uma equipe de 30 pessoas, entre pessoal técnico e estudantes interessados no tema, e tem seis subcomitês, que se reúnem regularmente e abordam temas como ética em pesquisas com seres humanos, integridade científica, uso de animais em laboratórios e no ensino, biossegurança, acesso à biodiversidade e relação da universidade com a indústria. A vice-coordenadora da câmara é a pesquisadora Sonia Vasconcelos, professora da UFRJ e uma das mais ativas estudiosas da integridade científica do Brasil – não por acaso, foi uma das organizadoras das três edições do Brispe. “A criação da câmara foi uma resposta à preocupação crescente sobre questões éticas envolvendo a prática e a comunicação da pesquisa acadêmica, à demanda crescente por transparência na ciência e à necessidade de promover paradigmas

erro ou má conduta A evolução dos motivos do cancelamento de 2.047 artigos de pesquisa biomédica indexados na base PubMed entre 1977 e 2011

n Fraude / suspeita de fraude  n Erro  n Plágio  n Resultados duplicados 400

300

200

100

0

1977-1981

1982-1986 1987-1991 1992-1996 1997-2001 2002-2006 2007-2011 Fonte Fang, F. Misconduct accounts for the majority of retracted scientific publications – 2012

“Dedicamos tempo suficiente para corrigir os trabalhos dos nossos alunos, estimulando-os a serem criativos?”, indaga Debora Foguel éticos e de responsabilidade entre estudantes, pesquisadores e pessoal técnico”, disse Debora Foguel. Em pouco mais de um ano de atividade, a câmara já organizou workshops para pesquisadores que treinarão estudantes e colegas em temas relacionados à integridade científica, discutiu diretrizes para a UFRJ que deverão ser lançadas ainda neste mês e adquiriu licença de um software capaz de identificar plágios em trabalhos científicos de estudantes e pesquisadores. “Ainda precisamos discutir em profundidade o que fazer com os casos de fraude, fabricação de dados e plágio eventualmente descobertos”, disse a pró-reitora. Um caso de plágio identificado na monografia de uma estudante de história dá a medida da complexidade dessa tarefa. Como o plágio atingia quase a totalidade do trabalho de conclusão de curso, a aluna teve seu diploma cancelado. Mas o conselho universitário, órgão máximo da UFRJ, decidiu dar a ela uma segunda chance, exigindo, naturalmente, que fizesse outra monografia. A estudante também foi admitida no corpo da Câmara Técnica, onde tem contato com conceitos relacionados à integridade científica. Para Debora Foguel, o episódio deixou uma série de questões para discussão,

como as condições em que se deve dar uma nova oportunidade a um estudante que plagia ou a real capacidade de se ensinar um aluno a ser honesto. Mas a responsabilidade, ela observou, certamente não se limita aos estudantes. “Será que dedicamos tempo suficiente para ler e corrigir projetos, provas, monografias e teses de nossos estudantes, estimulando-os a serem criativos e mostrando que nos importamos com aquilo que eles escrevem?”, perguntou. A tarefa de combater más condutas torna-se mais desafiadora à medida que a produção mundial de conhecimento cresce e um conjunto cada vez maior de países se afirma no cenário científico. “O problema tornou-se global. Todos os países que produzem ciência estão sofrendo impacto. Quem disser o contrário está ignorando o problema”, afirmou Nicholas Steneck. “O Brasil também se juntou ao clube”, disse, referindo-se a um conjunto de casos de plágio, fraude e manipulação envolvendo pesquisadores e publicações brasileiras das áreas de física, química, materiais e medicina revelado nos últimos tempos – um dos mais rumorosos envolvia um esquema de citações combinadas entre periódicos brasileiros para elevar seus fatores de pESQUISA FAPESP 223  z  39


TORU YAMANAKA / AFP

O cientista Yoshiki Sasai, que se suicidou em agosto após o cancelamento de artigos sobre células-tronco

impacto (ver Pesquisa FAPESP nº 213). “Mas o Brasil está fazendo mais do que outros países para promover a integridade científica”, disse Steneck.

A

s falhas de conduta dos cientistas, a despeito de serem identificadas e punidas com frequência cada vez maior, vêm se tornando mais sofisticadas. Já não se trata apenas de combater os casos clássicos de plágio, fraude e fabricação de dados – na definição de má conduta que vigora desde os anos 1990. Os problemas se tornaram mais complexos e envolvem hoje, por exemplo, dúvidas ou disputas sobre a autoria de um artigo científico. Como as pesquisas em colaboração ampliaram o número médio de autores, há dificuldade de saber quem fez exatamente o que, assim como, com certa frequência, são incluídos nos artigos nomes de pesquisadores que pouco ou nada contribuíram, por razões políticas ou por propósitos

totalmente fraudulentos. Recentemente, houve um caso de invasão de sistemas on-line de revistas científicas que comprometeu a avaliação por pares: a inclusão fraudulenta de e-mails falsos no sistema fez com que os artigos submetidos à publicação fossem avaliados por uma quadrilha, e não por especialistas isentos (ver Pesquisa FAPESP nº 222). Steneck citou exemplos recentes, como o que envolveu Craig Thompson, presidente de um dos maiores centros

de pesquisa de câncer dos Estados Unidos, o Memorial Sloan Kettering Cancer Center. Ele foi acusado pela Universidade da Pensilvânia, onde trabalhara, de se apropriar de dados de pesquisa que não lhe pertenciam para criar uma startup de biotecnologia. Outro caso rumoroso foi o do alemão Ulrich Lichtenthaler, na Universidade Mannheim, que teve nove artigos cancelados por práticas como a publicação de um mesmo resultado de pesquisa em revistas diferentes ou o fa-

Conferência Mundial será no Rio de Janeiro O Brasil vai sediar, entre 31 de

da ciência, que pode ser

áreas diversas, que podem

da Ciência e pelo Escritório

maio e 3 de junho de 2015,

comprometida, por exemplo, por

muitas vezes ser abraçados

de Integridade Científica

a 4ª Conferência Mundial sobre

projetos e artigos com propostas

acriticamente pelos parceiros”,

dos Estados Unidos.

Integridade Científica (WCRI, na

ou resultados enviesados”, diz

afirma a pesquisadora. “Costumo

Foi marcada por organizar,

sigla em inglês). O evento, que

Sonia Vasconcelos, professora

dizer que esses países da região e,

pela primeira vez, as bases para a

irá reunir especialistas e

da UFRJ e membro do comitê

especialmente o Brasil, que é líder

discussão da integridade científica

interessados de diversos países

organizador do evento.

em boa parte dessas

em nível global e em identificar

colaborações, devem ter voz

os principais desafios. A segunda

no Rio de Janeiro, busca discutir a

A importância de o evento

integridade científica no contexto

mundial ocorrer na América

nesses critérios. Isso faz toda

edição ocorreu em 2010 em

dos sistemas de recompensa que

Latina é crucial, observa Sonia,

a diferença, pois a visão sobre

Cingapura e resultou numa

vigoram no ambiente científico

especialmente para os países

muitos aspectos éticos da

declaração, hoje traduzida para

e na carreira dos pesquisadores.

que fazem parte de redes de

pesquisa, incluindo o próprio

vários idiomas e adotada por

“Nos mais diferentes países,

colaboração em pesquisa com

conceito de integridade científica,

diversos países, que define

é cada vez mais evidente a

outros em que a discussão de

em diferentes culturas e sistemas

princípios e responsabilidades

preocupação com o ambiente em

integridade científica vem se

de pesquisa nem sempre é

a serem seguidos por quem faz

que se dá a atividade científica,

consolidando ou está consolidada.

consensual. Um evento mundial

ciência. A terceira edição ocorreu

no âmbito do fomento e condução

“Ter uma discussão consolidada

como esse no Brasil nos dá voz

em Montreal em 2013 e avançou

de projetos e da comunicação

sobre esse tema significa, dentre

nessa discussão”, diz Sonia.

ao discutir as responsabilidades

e avaliação de resultados. Uma

vários desdobramentos,

das fontes dessa preocupação

o estabelecimento de critérios

Mundial aconteceu em 2007

colaborativas e a

é a relação da ‘saúde’ desses

éticos para a condução

em Lisboa e foi organizada

responsabilidade dos autores para

ambientes com a qualidade

e comunicação da pesquisa em

pela Fundação Europeia

os resultados de sua pesquisa.

40  z  setembro DE 2014

A primeira Conferência

dos parceiros em pesquisas


tiamento das conclusões de um estudo em com sensibilidade e de forma consistente vários artigos, expedientes para ampliar – e a divulgação dos casos de má conduartificialmente sua produção científica. ta pela imprensa nem sempre considera Um levantamento realizado pelo Deja vu, esses cuidados. “Casos de má conduta sistema computacional que permite a veri- envolvem situações bastante compleficação de suspeitas de plágio, identificou xas, mas às vezes eles são divulgados de 79,3 mil artigos indexados na base Medline forma simplificada”, disse referindo-se com trechos repetidos. Do total de artigos, ao blog Retraction Watch, mantido por apenas 2,1 mil foram examinados e, des- dois pesquisadores, que divulga casos de artigos retratados ses, 1,9 mil foram ree pesquisadores punitratados. Mais de 74 dos em vários países. mil ainda não foram Há concordância analisados. “Há muide que esconder os tos casos de má conÉ preciso lidar casos do escrutínio duta subestimados”, com casos público não é aceidisse Steneck. “Velhos tável, principalmenpressupostos, como a de má te depois que foram ideia de que os casos investigados em prode má conduta são raconduta com fundidade por outros ros ou se restringem a cientistas e punidos. campos da ciência alsensibilidade “A investigação precitamente competitie de forma sa ser rigorosa e jusvos, como a biomedita”, disse Carlos Hencina, não se sustentam consistente, rique de Brito Cruz, mais”, afirmou. diretor científico da disse Charlotte FAPESP. desafio de puA Fundação lida nir casos de Haug, do Cope com cerca de 20 camá conduta de sos de má conduta forma justa foi aborpor ano envolvendo dado pelos participanpesquisas financiates do Brispe sob o imdas por ela. Na maiopacto de um caso trágico: o suicídio, no dia 5 de agosto, do ria das vezes, a acusação envolve plágio. biólogo japonês Yoshiki Sasai, de 52 anos, O procedimento previsto no Código de diretor do laboratório de organogênese boas práticas científicas é solicitar que e neurogênese do Instituto de Pesquisa as instituições investiguem as acusações Riken, do Japão. Um dos mais renomados e apresentem suas conclusões. Se os recientistas do país, ele era um dos autores sultados forem considerados insatisfatódos dois artigos publicados na revista Na- rios, a FAPESP pode optar por fazer uma ture em janeiro e retratados em julho so- investigação própria. “As universidades bre uma técnica de produção de células- e instituições de pesquisa no estado de -tronco. Sasai orientou o trabalho de Ha- São Paulo apoiadas pela FAPESP devem ruko Obokata, jovem pesquisadora que definir políticas e procedimentos claros era a autora principal dos artigos. Os ar- para lidar com a questão da integridade tigos abordavam uma técnica que pro- científica e ter um ou mais departamenmetia simplificar a produção de células- tos ou órgãos internos para promover -tronco, o que teria grande influência so- as boas práticas científicas por meio de bre a medicina regenerativa. A técnica programas regulares e para investigar e foi perdendo credibilidade quando outros punir os eventuais casos de má conduta”, cientistas tentaram sem sucesso repro- disse Brito Cruz. “Mas a investigação e a duzi-la. O próprio instituto fez uma in- punição não representam o papel mais vestigação e descobriu que Obokata pla- importante desempenhado pelos órgãos de promoção de boas práticas científigiou e inventou porções dos artigos. “Sasai provavelmente não teve culpa cas nas universidades. O principal padireta, mas não supervisionou o trabalho pel desses órgãos deverá ser promover como deveria. Esse foi seu erro”, disse uma cultura de integridade científica Charlotte Haug, do Cope. Segundo ela, nas instituições de forma permanente”, é preciso lidar com casos de má conduta afirmou. n Fabrício Marques

O

pESQUISA FAPESP 223  z  41


Reconhecimento y

Talentos recompensados Dois prêmios destacam produção científica e cultural de brasileiros

Rodrigo de Oliveira Andrade

Aos 74 anos, Noda procura aprimorar a resistência de hortaliças a patógenos na Amazônia

42  z  setembro DE 2014

fotos gerardo lazzari

O

esforço de pesquisadores brasileiros para a criação de novas estratégias de combate ao câncer e para a sustentabilidade na agricultura foi reconhecido em agosto, com o anúncio dos vencedores de duas honrarias científicas, a quinta edição do prêmio Octávio Frias de Oliveira, concedido pelo Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) e pelo Grupo Folha, e o prêmio Fundação Bunge, que neste ano chegou a sua 59ª edição. O primeiro destacou as contribuições para o desenvolvimento de uma vacina contra lesões e tumores causados pelo HPV e de um anticorpo com potencial de combater células tumorais de ovário, rim e pulmão, além da prevenção e o combate ao câncer colorretal. “Uma premiação como essa é fundamental para incentivarmos profissionais comprometidos com o combate à doença e seu controle”, diz o secretário de Estado da Saúde, David Uip, a cuja pasta no governo paulista o Icesp é ligado. Já o prêmio da Fundação Bunge é entregue todos os anos a personalidades de destaque em diversos ramos das ciências, letras e artes, sem-


pre em duas categorias: Vida e Obra e Juventude. Em 2014, foram distinguidos os trabalhos de pesquisadores no campo da agricultura sustentável, como a adaptação de plantas e hortaliças ao clima tropical e o uso de microrganismos para fortalecer o solo e combater pragas. Já em sua vertente cultural, o prêmio reconheceu a trajetória de artistas circenses. “A pesquisa científica sempre foi importante para o desenvolvimento da Bunge como empresa. Daí a ideia de criar um prêmio que estimulasse e reconhecesse o esforço de profissionais comprometidos com o desenvolvimento das ciências e artes no Brasil”, diz Claudia Calais, diretora-executiva da fundação. PAPILOMAVÍRUS HUMANO

O prêmio Octávio Frias de Oliveira foi concedido em três categorias. Os vencedores na categoria Pesquisa em Oncologia foram pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo (USP), que desenvolveram uma estratégia de vacina contra o HPV (papilomavírus humano), doença responsável por 60% dos casos de câncer de colo de útero, além de tumores de cabeça e pescoço. Testes em laboratório com roedores mostraram que a estratégia permitiu ao sistema imune desses animais identificar células pré-cancerígenas e matá-las. O estudo foi publicado na revista Human Gene Therapy. Os pesquisadores, coordenados pelo biólogo Luís Carlos de Souza Ferreira, pretendem agora entrar na fase de produção da vacina para a inoculação em humanos. A ideia é aplicá-la em quem já tem alguma lesão ou tumor causados pelo HPV 16, um dos tipos do vírus. Na categoria Inovação Tecnológica em Oncologia, os laureados foram pesquisadores do Instituto Butantan, da Faculdade de Medicina da USP e da empresa brasileira de pesquisa e desenvolvimento Recepta Biopharma. Eles desenvolveram uma linhagem de células que produz anticorpos monoclonais humanizados com potencial de combate a alguns tipos de câncer e identificaram contra quais tumores esses anticorpos poderiam agir de modo mais eficiente. A bióloga Ana Maria Moro e sua equipe no Butantan obtiveram em 2012 uma linhagem celular estável que produz quantidades elevadas do anticorpo. O material, produzido no âmbito de um projeto de parceria com a Recepta, contou com financiamento do Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite) da FAPESP e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), e está pronto para entrar em linha de produção (ver reportagem na página 16).

Engenheiro agrônomo, Fernando Andreote busca entender como o microbioma encontrado no solo pode beneficiar as plantas

pESQUISA FAPESP 223  z  43


“O anticorpo monoclonal RebmAb 200 é capaz de reconhecer e ligar-se a moléculas específicas na superfície dos tumores, agindo apenas sobre elas”, explica José Fernando Perez, professor aposentado do Instituto de Física da USP e diretor-presidente da Recepta Biopharma, que foi diretor científico da FAPESP entre 1993 e 2005. A Recepta enviou o material para uma empresa na Holanda, onde o anticorpo está sendo produzido. Já a premiada na categoria Personalidade de Destaque foi Angelita Habr-Gama, médica e professora titular de cirurgia da FMUSP. Angelita aprimorou técnicas cirúrgicas e teve papel importante na estruturação, desenvolvimento e avanço no Brasil da coloproctologia e no estudo das doenças do intestino grosso (cólon, reto e ânus). Também organizou o primeiro curso prático e teórico de colonoscopia (ver Pesquisa FAPESP nº 126). Angelita foi a primeira mulher residente em cirurgia geral do Hospital das Clínicas, em 1958. Foi fundadora da Associação Brasileira de Prevenção do Câncer de Intestino, destacando-se na coordenação do programa de prevenção do câncer colorretal. É a primeira especialista latino-americana a ganhar o título de membro honorário da Associação Europeia de Cirurgia pela carreira médica. Recebeu ainda o título de membro honorário 1 Angelita: destaque na prevenção do da American Surgicâncer colorretal cal Association, do American College of 2 Hugo Possolo, no Espaço Parlapatões Surgeons.

nal e se dediquem à pesquisa científica”, ressalta. A cerimônia de premiação foi realizada em agosto na sede do Icesp. Os vencedores receberam um prêmio em dinheiro de R$ 16 mil.

Nova estratégia de vacina contra o HPV rendeu o prêmio Icesp, na categoria Pesquisa em Oncologia, a pesquisadores do ICB-USP

AGRICULTURA E ARTES CIRCENSES

Em junho, Angelita foi nomeada membro honorário da American Society for Radiation Oncology (Astro). “Esses prêmios contribuem para o reconhecimento da capacitação científica do Brasil no cenário científico mundial”, diz. Segundo ela, láureas desse tipo são importantes por promoverem a discussão sobre a necessidade de prevenção precoce do câncer colorretal. “Além disso, servem de estímulo às novas gerações para que busquem aperfeiçoamento profissio-

1

44  z  setembro DE 2014

Criado em 1955, então com o nome Moinho Santista, o prêmio Fundação Bunge é um dos mais tradicionais do país, por reconhecer a importância da contribuição de profissionais para o desenvolvimento da cultura e da ciência no Brasil. Ao todo, 175 pessoas já foram contempladas, entre elas a arqueóloga Niède Guidon e o bioquímico Isaias Raw, além do atual presidente da FAPESP, Celso Lafer, em 2001. Os contemplados de 2014 na categoria Vida e Obra são o engenheiro agrônomo Hiroshi Noda, do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa), e o dramaturgo Hugo Possolo, um dos fundadores do grupo de teatro Parlapatões, Patifes e Paspalhões. Já na categoria Juventude, os vencedores foram o engenheiro agrônomo Fernando Dini Andreote e a atriz circense e diretora Luana Serrat. A cerimônia oficial de premiação será realizada no dia 22 de setembro no Palácio dos Bandeirantes, sede do governo do estado de São Paulo. Além de diplomas e medalhas, os vencedores receberão R$ 135 mil na categoria Vida e Obra, e R$ 50 mil na categoria Juventude, destinada a profissionais de até 35 anos. As pesquisas de Hiroshi Noda, 71 anos, já renderam diferentes variedades de hortaliças geneticamente adaptadas para serem cultivadas na região amazônica. “Trabalhamos com a conservação e melhoramento de estécies hortícolas para cultivo nos trópicos úmidos”, explica o pesquisador, autor de cerca de 112 trabalhos científicos e 10 livros. Um dos objetivos, segundo ele, é incorporar resistência genética nas plantas contra os patógenos que causam doenças, muitas vezes limitando o processo produtivo. “Também nos esforçamos para que espécies hortícolas ainda desconhecidas fora da região de origem continuem sendo cultivadas, protegidas e conservadas pelos agricultores locais”, conta. Noda graduou-se e fez mestrado e doutorado na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da USP. Hoje é pesquisador titular aposentado do Inpa e docente dos cursos de pós-graduação em ciências do ambiente e sustentabilidade na Amazônia do Centro de Ciências


fotos 1 Miguel Boyayan 2 léo ramos

2

do Ambiente da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). O pesquisador foi indicado para o prêmio pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam). Aos 34 anos, o engenheiro agrônomo Fernando Dini Andreote, vencedor na categoria Juventude, busca entender melhor o funcionamento das comunidades microbianas – ou microbioma – encontradas nos solos e associadas às plantas. “As plantas são capazes de recrutar milhares de microrganismos benéficos a elas a partir do microbioma encontrado no solo”, explica. Segundo ele, alguns microrganismos podem desempenhar papéis importantes, auxiliando as plantas em seu desenvolvimento e até mesmo as protegendo de pragas e doenças. Andreote busca usar frações dessa comunidade microbiana para favorecer interações que possibilitem, por exemplo, a diminuição do uso de agrotóxicos na produção agrícola. Andreote é hoje professor em microbiologia do solo da Esalq-USP, onde se graduou e fez o doutorado. “Acredito que este prêmio reconhece não apenas minha atividade, mas também a importância do tema de pesquisa que desenvolvemos em nosso grupo”, diz.

Esses prêmios servem de estímulo às novas gerações para que se dediquem à pesquisa científica, segundo Angelita Habr-Gama

Hugo Possolo, 52 anos, vencedor na categoria Vida e Obra, é fundador do grupo de teatro Parlapatões, Patifes e Paspalhões, dedicado às artes circenses e ao teatro de rua. O dramaturgo foi curador do I Festival Internacional de Circo, realizado em Belo Horizonte, e coordenador nacional de circo da Funarte, do Ministério da Cultura. Em 2006, fundou o Circo Roda, com o objetivo de renovar o conceito da atividade circense. No mesmo ano, inaugurou o Espaço Parlapatões, em São Paulo. “Muito mais que a realização individual, esse prêmio simboliza o esforço de vários artistas que trabalharam e trabalham comigo, tanto no fazer artístico diário quanto na constante luta pela valorização das artes circenses”, diz.

A trajetória da atriz e diretora Luana Serrat, 32 anos, também foi reconhecida na categoria Juventude. Considerada uma das mais completas artistas circenses da atualidade, Luana formou-se instrutora na Escola Picolino, em Salvador, e se graduou em interpretação teatral pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Nos últimos tempos, ela fundou duas companhias circenses e dirigiu vários espetáculos. Um dos grupos que lidera, a Cia. Luana Serrat, levou neste ano o espetáculo Moças Aéreas ao Festival Internacional de Circo, no Rio de Janeiro. A criação da companhia é resultado de uma experiência de Luana como instrutora de tecido acrobático, na qual o acrobata faz seus movimentos deslizando num tecido ultrarresistente preso no alto a uma barra de ferro. n pESQUISA FAPESP 223  z  45


ciência  Imunologia y

Filtro imperfeito Variações no funcionamento de um gene podem prejudicar a seleção de linfócitos no timo e causar doenças autoimunes Carlos Fioravanti

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bióloga Ernna Oliveira viveu seis meses de desolação, errando quase todos os dias, até acertar a mão e injetar com precisão uma solução vermelha de moléculas aptas a inibirem a ação de genes na glândula do timo de camundongos vivos, sem deixar que atingisse o pulmão ou o coração, dois órgãos vizinhos. “Hoje ela faz isso com destreza”, atesta Geraldo Passos, coordenador do laboratório da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto em que ela trabalhou. Por meio desse e de outros experimentos, Passos, Ernna e demais pesquisadores da USP ampliaram o conhecimento sobre a origem das doenças autoimunes, como diabetes tipo 1, lúpus, artrite reumatoide e vitiligo, em que as células de defesa atacam as células saudáveis do corpo em vez de destruírem apenas microrganismos invasores. Há 10 anos já se sabia que essas doenças resultavam de alterações – ou mutações – prejudiciais em um gene que funciona no timo conhecido como Aire, sigla de autoimmune regulator (regulador autoimune). Quando funciona corretamente, esse gene produz uma proteína que seleciona as células de defesa, impedindo-as de atacar células normais do próprio corpo. A equipe da USP verificou que as doenças autoimunes poderiam resultar também da atividade irregular desse gene, mesmo sem mutações, reforçando as conclusões obtidas por outros grupos de pesquisa, principalmente dos Estados Unidos. “Não é tudo ou nada”, diz Passos. “O gene Aire pode estar perfeito, mas pequenas variações em seu funcionamento também podem aparentemente levar à autoimunidade.”

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O tomilho (Thymus vulgaris), cujo formato deve ter inspirado Galeno a batizar de timo a glândula atrás do osso esterno


lĂŠo ramos


Rede integrada: representação do sistema linfático (em verde), importante na defesa do organismo, o timo (em amarelo, no meio do peito) e o baço (à direita)

inflamação no intestino ou no coração, além de causar algumas formas de imunodeficiências primárias, conjunto de cerca de 180 doenças raras e de alta letalidade, caracterizadas pelo mau funcionamento do sistema de defesas do organismo (ver Pesquisa Fapesp nº 191 e 206). Na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Rio de Janeiro, a equipe de Wilson Savino verificou que a atrofia do timo é uma característica comum das doenças infecciosas, causadas por vírus ou bactérias. Além disso, alertam os médicos, situações comuns como o uso prolongado de grandes doses de corticosteroides e outros medicamentos que inibem o sistema de defesa do organismo também podem reduzir a atividade do timo, não se sabendo se há completa recuperação após a suspensão do tratamento. Atacar apenas os inimigos

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O trabalho da equipe da USP de Ribeirão Preto contribui para a revalorização do timo, antes visto apenas como um dos lugares de amadurecimento de um tipo de células do sangue, os linfócitos T, e agora considerado um órgão essencial à defesa do organismo. “Tumores no timo ou lesões causadas por cirurgias cardíacas, já que o timo está na frente do coração, podem ser muito prejudiciais para todo o organismo”, observa Antonio Condino Neto, pesquisador do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP em São Paulo que também trabalha nessa área. Defeitos no funcionamento do timo podem causar ou agravar cerca de 30 doenças – não apenas as autoimunes –, 1 como leucemia e outros tipos de câncer,

Se as células de defesa atacam o próprio organismo, provavelmente algo saiu errado com o gene Aire, que produz uma proteína, também chamada de Aire, que atua de modo intenso no núcleo das células do timo. Essa proteína controla a produção de diversas proteínas do próprio corpo, como a insulina e o colágeno. “O timo tem uma espécie de biblioteca de proteínas do corpo”, diz Passos. A apresentação dessas proteínas aos linfócitos T que chegam imaturos ao timo, depois de serem produzidos na medula óssea, ensina-os a reconhecer o que é do próprio corpo e deve ser poupado. “Os linfócitos T que atacarem essas proteínas são eliminados antes de migrarem para a corrente sanguínea. Os que não as reconhecerem passarão no teste e serão liberados para a circulação, porque estarão aptos a atacar apenas micróbios e tumores, que são considerados como elementos não próprios.” Nem sempre é assim. O gene Aire e a sua proteína podem estar perfeitos, sem mutações, mas distúrbios em seu funcionamento podem prejudicar a seleção dos linfócitos T que chegam ao timo. Na USP de Ribeirão Preto, um dos experimentos que levaram a essa conclusão foi o de Ernna Oliveira, que injetou moléculas que inibem a ação de genes chamados RNAs de interferência (RNAi), no timo de camundongos. Em consequência, houve uma redução de até 60% na atividade do gene Aire. A produção das outras proteínas próprias no timo e os linfócitos T in-


1fotos  ROGER1 HARRIS/ e 3 nonononono SCIENCE PHOTO 2 nonononno  LIBRARY  2 LABORATÓRIO 4 nonononono  DE IMUNOGENÉTICA ilustraçãO nonoono FMRP-USP

desejáveis, que deveriam ter sido eliminados, ganharam a corrente sanguínea, chegaram ao pâncreas e destruíram as células produtoras de insulina, resultando no diabetes tipo 1. Em 2009 uma equipe da Universidade Harvard havia mostrado que deficiências no gene Aire poderiam produzir o mesmo efeito, a destruição das células beta do pâncreas, e causar diabetes em uma linhagem de camundongo de laboratório que desenvolve naturalmente o diabetes tipo 1. Essa foi uma indicação de que esse gene é essencial para prevenir o ataque a proteínas ou células do próprio corpo, a chamada autoimunidade agressiva. Passos acredita que o mecanismo observado no diabetes tipo 1 poderia também ser uma das causas de outras doenças autoimunes como o lúpus eritematoso, caracterizado por lesões na pele e órgãos internos, ou a artrite reumatoide, marcada pela destruição do colágeno das articulações. Em um estudo complementar, em colaboração com o médico Eduardo Donadi e a bióloga Elza Sakamoto-Hojo, também da USP de Ribeirão Preto, a equipe de Passos examinou a expressão dos genes de células de defesa no sangue de 56 pessoas com diabetes – 19 com o diabetes do tipo 1, 20 com o do tipo 2, caracterizado pela resistência à insulina, principalmente em pessoas obesas, e 17 com uma forma de diabetes desenvolvida apenas durante a gestação. Uma das conclusões é que o diabetes e a inflamação são fenômenos muito associados, provavelmente um agravando o outro. Além disso, o perfil de genes ativados no diabetes tipo 1 reforçou a hipótese de que a origem da doença estaria de fato na falha em eliminar os linfócitos T que atacam o pâncreas, destruindo as células que produzem a insulina. Contra fungos

A proteína do gene Aire poderia atuar não apenas no núcleo das células do timo, induzindo a produção de outras proteínas que participarão da seleção dos linfócitos T, mas também no citoplas-

Prova de conceito: moléculas de RNAi (em vermelho) penetram no timo e alteram a expressão do gene Aire

ma das células do timo, favorecendo ou prejudicando a defesa contra microrganismos causadores de doenças, de acordo com os experimentos mais recentes da equipe de Condino Neto. Este grupo examinou as possíveis origens da suscetibilidade a infecções crônicas causadas pelo fungo Candida albicans, uma característica que permanecia inexplicada de uma síndrome hereditária rara conhecida como poliendocrinopatia autoimune, associada à candidíase e distrofia ectodérmica (Apeced, na sigla em inglês), causada por uma mutação no gene Aire. Por meio de experimentos em cultura de células humanas, Luis Alberto Pedrosa, da equipe de Condino Neto, concluiu que uma versão anormal da proteína, resultante de uma mutação no gene Aire, deixa de ativar a proteína dectina 1, essencial para ativar um tipo de célula encontrada no timo, os macrófagos, que reconhecem – e atacam – fungos, entre eles o Candida albicans. Desse modo, a proteína do gene Aire poderia agir não só como o chamado fator de transcrição, induzindo a produção de outras proteínas, mas também estimular outro mecanismo de defesa, a imunidade inata, formado por células aptas a identificar e destruir microrganismos causadores de doenças. Essa é mais uma surpresa na história do timo. Um dos pais da medicina ocidental, Claudio Galeno, que viveu entre os anos 130 e 210, foi o primeiro a descrever um

órgão situado logo abaixo do osso esterno a que deu o nome de timo por causa da semelhança com o tomilho (Thymus vulgaris). Por causa da proximidade com o coração, Galeno pensou que ali estaria a sede da coragem e do afeto. Somente em 1961 é que o médico francês Jacques Miller demonstrou seu papel na maturação e seleção dos linfócitos. A origem das doenças autoimunes tornou-se mais clara dois anos depois. Talvez no timo, se puder ser reparado, esteja também a saída para resolver muitas2 doenças. Uma equipe da 2 França e da Inglaterra usou pulsos elétricos – uma técnica chamada eletroporação, a mesma usada em Ribeirão Preto – para injetar DNA no timo de camundongos e corrigir uma forma grave de imunodeficiência primária. Como resultado, o timo começou a produzir linfócitos normais. “Esse processo aplicado ao timo poderia representar uma alternativa simples e efetiva de terapia gênica para imunodeficiências das células T”, conclui a equipe coordenada por Magali Irla e Catherine Nguyen, da Universidade do Mediterrâneo, em Marselha, França, em um artigo publicado na revista PLoS ONE. n

Projetos 1. Controle do transcriptoma no diabetes mellitus (n. 2008/56594-8); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Geraldo Aleixo da Silva Passos Júnior (Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto – FMRP, Universidade de São Paulo); Investimento R$ 1.256.782,94 (FAPESP). 2. Deficiência de Aire e susceptibilidade à infecção por Candida albicans: novos mecanismos (n. 2010/51653-6); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Pesquisador responsável Antonio Condino Neto (ICB-USP); Investimento R$ 148.013,70 (FAPESP).

Artigos científicos OLIVEIRA, E. H. et al. Expression profile of peripheral tissue antigen genes in medullary thymic epithelial cells (mTECs) is dependent on mRNA levels of autoimmune regulator (Aire). Immunobiology. v. 218, n. 1, p. 96-104. 2013. IRLA M. et al. ZAP-70 Restoration in mice by in vivo thymic electroporation. PLoS ONE. v. 3, n. 4, e2059, 2008. PEDROZA L. A. et al. Autoimmune regulator (Aire) contributes to Dectin-1-induced TNF-α production and complexes with caspase recruitment domain-containing protein 9 (Card9), spleen tyrosine kinase (Syk), and Dectin-1. Journal of Allergy and Clinical Immunology. v. 129, n. 2, p. 464-72. 2012.

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ecologia y

Com floresta, sem fauna Declínio de populações de animais é um problema tão sério quanto o desmatamento Reinaldo José Lopes

célio haddad/unesp

A

divulgação anual dos números do desmatamento é crucial para estimar a ameaça a esses biomas, mas traça um retrato incompleto da situação. Mesmo em áreas não desmatadas, a defaunação – como é conhecida a diminuição acentuada da população de animais – avança a passos largos, representando um problema tão importante e difícil de controlar quanto o desmate, segundo um artigo publicado em julho deste ano na revista Science. O trabalho, coordenado pelo mexicano Rodolfo Dirzo, da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, tem entre seus coautores Mauro Galetti, do Departamento de Ecologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro, colaborador de longa data da equipe norte-americana. A revisão na Science reforça o que Galetti e seus colegas no Brasil têm demonstrado nos últimos anos, em especial na mata atlântica: o crescente empobrecimento faunístico dos ecossistemas. “São áreas não desmatadas que estão vazias de animais, inicialmente por causa da pressão da caça, que continua muito presente, mas também por uma

série de outros fatores como o corte do Cerca de dois terços dos invertebrapalmito juçara, uma importante fonte de dos monitorados perderam em média alimento para a fauna”, afirma Galetti. 45% de sua população. “A verdade é que O grupo liderado por Dirzo calcula que, precisamos de mais dados, mas não acho no mundo todo, as espécies de vertebra- que esse número esteja superestimado”, dos tenham perdido, em média, pouco diz Galetti. “O que acontece é que esses menos de um terço de sua população declínios se referem, em geral, a invertedos anos 1970 para cá. Alguns vertebra- brados que costumavam ser muito abundos são atingidos de forma mais severa dantes e, por isso, eram acompanhados – mais de 40% das espécies de anfíbios, em trabalhos de campo. O cenário propor exemplo, são consideradas ameaça- vavelmente seria pior se espécies natudas, ante 17% das aves. ralmente mais raras entrassem na conta.” É natural que o declínio dos vertebrados seja acompanhado de forma mais as- Efeito dominó sídua tanto pelos pesquisadores quanto Além das consequências mais óbvias da pelo público. São, para começar, muito escassez de animais, como o risco de exmais visíveis do que a maioria dos in- tinção, a defaunação preocupa porque vertebrados, e muitos pertencem a es- pode desencadear uma série de efeitos pécies consideradas carismáticas, que dominó ecológicos: a perda de espéciesprotagonizam campanhas conservacio- -chave tende a afetar diversos outros aninistas e acabam se tornando conhecidas. mais e plantas, com repercussões que poO levantamento publicado na Science, dem comprometer tanto o funcionamenno entanto, reuniu também dados dis- to normal de um ecossistema quanto os poníveis sobre invertebraserviços ambientais que ele dos, chegando à conclusão proporciona aos seres huOs anfíbios, como a perereca Phasmahyla de que a situação deles promanos, como a fertilidade cochranae, são muito vavelmente também inspira do solo ou a abundância de sensíveis a mudanças preocupação. água potável. ambientais pESQUISA FAPESP 223  z  51


O efeito é mais óbvio com predadores do topo da cadeia alimentar, como as onças. Sua presença impede que predadores menores sobrepujem os demais, resultando numa diversidade maior desses “súditos” dos felinos. Herbívoros de grande e médio porte, por sua vez, são os principais responsáveis por dispersar sementes de frutos grandes (as antas desempenham esse papel com maestria), além de atuar também como “arquitetos”, abrindo clareiras e amassando plantas jovens. Até a abundância de anfíbios depende, em alguma medida, do pisoteio das margens de cursos d’água pelos grandes herbívoros, já

que esse processo abre depressões onde locais diferentes, eles chegaram à conclusão de que em 88% dos remanescenrãs e sapos podem se abrigar. Para qualquer tipo de fauna, porém, tes da floresta não há mais nenhuma desa situação na mata atlântica não parece sas espécies, e em 96% dos casos pelo ser das melhores. Num trabalho publi- menos uma delas está ausente. O pior é cado em julho do ano passado na Bio- que, de acordo com o grupo da Unesp, logical Conservation, Galetti e colegas menos de 20% dos fragmentos remanesmapearam a situação de quatro espécies centes da mata seriam adequados para icônicas do bioma: o maior predador abrigar o quarteto de espécies-chave. A situação não melhora muito quan(a onça-pintada), o maior herbívoro (a do se analisa um leque mais anta), o maior devorador de amplo de espécies de grande sementes (a queixada) e o Maior herbívoro da mata atlântica, a anta e médio porte. Num estudo maior dispersor arbóreo de é um agente publicado em 2012 na PLoS sementes (o muriqui, maior importante na ONE, do qual participaram macaco das Américas). Anadispersão de sementes Gustavo Canale, da Univerlisando dados de quase 100 sidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), e Carlos Peres, da Universidade de East Anglia (Reino Unido), a equipe avaliou a presença de 18 espécies de mamíferos (incluindo, além dos citados acima, tamanduás, tatus e bugios, entre outros) em quase 200 fragmentos de mata atlântica, espalhados por três estados (Minas Gerais, Bahia e Sergipe). Resultado: só quatro das 18 espécies, em média, ainda ocorrem em fragmentos de até 5 mil hectares. E, mesmo em pedaços de mata com área maior do que isso, só sete espécies costumam ocorrer juntas. Nos poucos lugares em que esses animais ainda existem, o temor dos biólogos é de que machos e fêmeas teriam dificuldade para encontrar parceiros. A redução da população também aumentaria o risco de cruzamentos entre parentes próximos, gerando filhotes com problemas congênitos ou dificuldade para resistir a doenças. Os dados disponíveis a respeito das onças-pintadas no bioma sugerem um cenário desse tipo, diz o geneticista Eduardo Eizirik, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. “Claramente há uma redução da diversidade, e os fragmentos também vão ficando diferenciados entre si, provavelmente um resultado de intensa deriva genética [perda aleatória de variação]”, afirma (ver Pesquisa FAPESP nº 215). Pequenas grandes mudanças

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No caso dos vertebrados pequenos e dos invertebrados, os danos ecológicos da perda de fauna são claros. Um exemplo é o papel de insetos como polinizadores, em especial as muitas espécies de abelhas – não é por acaso que o declínio das colmeias pelo mundo tem sido fonte de preocupação para agricultores.


fotos 1 fábio colombini 2 Raimundo Paccó / Folhapress

No caso dos anfíbios, bem vulneráveis a perturbações ambientais, há registros de declínios populacionais dramáticos em regiões como os Andes e a América Central. Nesses casos, dois fatores podem estar atuando numa sinergia perversa: mudanças climáticas, que esquentam os ambientes frescos e úmidos preferidos pelos anfíbios, e o fungo Batrachochytrium dendrobatidis, que se dá bem nessas condições e pode levar muitas dessas espécies ao desaparecimento. Boa parte da diversidade remanescente dos anfíbios da mata atlântica se concentra em áreas montanhosas e relativamente mais frias, onde o B. dendrobatidis foi identificado na década passada, o que levou os especialistas a temer uma repetição do cenário dos Andes. Por enquanto, contudo, a situação está se revelando mais complexa, diz a zoóloga Vanessa Kruth Verdade, da Universidade Federal do ABC. “Os resultados indicam que cada espécie responde de maneira diferente às alterações climáticas. Além disso, descobriu-se que a linhagem do fungo no Brasil é antiga, anterior aos declínios, o que levanta questões sobre a sua importância como causador dos declínios em território nacional”, explica. Embora haja dados sobre pero tamanho dos besouros, Macacos grandes como os bugios têm das populacionais de diversas enquanto o número absodesaparecido de espécies de anfíbios no país, luto de indivíduos aumenta. alguns lugares devido dimensionar o problema e Não se trata de mera curioà caça excessiva entender suas causas ainda sidade, porque essas alteé um desafio pela falta de darações podem ter impacto dos históricos sobre essas populações e considerável na maneira como a matéria de conhecimento de sua variação natu- orgânica é reciclada no solo da mata e, ral, afirma Vanessa. De qualquer manei- portanto, no crescimento das plantas e ra, o que está claro é que a defaunação numa série de outros parâmetros. acaba fortalecendo o círculo vicioso de empobrecimento da mata. “Ela retroali- Reconstruindo comunidades menta negativamente o sistema por meio Para Galetti, esses resultados deixam da depauperação da vegetação arbórea, claro que é preciso repensar as ações de como consequência da desestruturação recuperação ambiental. “Hoje, existem das comunidades ecológicas”, diz ela. muitos projetos de criação de corredoUm exemplo claro desse fenômeno res ecológicos, plantando árvores, mas vem de um grupo inusitado de inverte- reconstituir a fauna é imprescindível, brados, popularmente conhecidos como porém muito mais difícil”, explica. O primeiro e óbvio passo é fazer valer besouros rola-bostas. Como o nome sugere, eles comem fezes e usam o excre- a legislação que proíbe a caça, destaca mento produzido por grandes mamífe- ele, mas igualmente importante talvez ros para seus ninhos. Em outra pesquisa fosse considerar reintroduções de anipublicada na Biological Conservation em mais levando em conta o papel ecológico 2013, Galetti e seus colegas mostraram de cada um deles no bioma. “Os projetos que, em áreas defaunadas da mata atlân- são pensados em termos da ameaça para tica, uma série de mudanças afetam os aquela espécie em particular. Dependenbesouros coprófagos: a diversidade de do da situação, porém, talvez outra espéespécies desses insetos cai, assim como cie fosse igualmente interessante. É claro

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que é importante recuperar a população do mico-leão-dourado, mas em alguns casos talvez reintroduzir outro frugívoro tenha o mesmo efeito”, compara. Seriam, em outras palavras, “pacotes ecológicos”, incluindo um herbívoro de grande porte, outro de médio porte, predadores pequenos e grandes, por exemplo? “Sim, mas isso teria de ser feito passo a passo – os herbívoros primeiro, por exemplo, depois os carnívoros. É um processo lento de refaunação que teremos que fazer.” n

Projeto Efeitos de um gradiente de defaunação na herbivoria, predação e dispersão de sementes: uma perspectiva na mata atlântica (nº 2007/03392-6); Pesquisador responsável Mauro Galetti (Unesp); Modalidade Projeto Temático; Investimento R$ 692.437,03 (FAPESP).

Artigos científicos DIRZO, R. et al. Defaunation in the anthropocene. Science. v. 345, n. 6195, p. 401-06, 25 jul. 2014. CULOT, L. et al. Selective defaunation affects dung beetle communities in continuous Atlantic rainforest. Biological Conservation. v. 163, p. 79-89. jul. 2013. JORGE, M. L. S. P. et al. Mammal defaunation as surrogate of trophic cascades in a biodiversity hotspot. Biological Conservation. v. 163, p. 49-57. jul. 2013. CANALE, G. et al. Pervasive defaunation of forest remnants in a tropical biodiversity hotspot. PLoS One, v. 7, n. 8, e41671. 14 ago. 2012.

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GEOLOGIA y

O grande rio do Norte do Brasil, o maior do mundo: agora correndo para leste 54  z  setembro DE 2014


O passado remoto de um grande rio Erosão dos Andes pode ter unido antigas bacias hidrográficas e formado o Amazonas

Igor Zolnerkevic

léo ramos

O

debate sobre a origem do rio Amazonas continua tão vasto quanto o próprio rio, o maior do mundo, com 7 mil quilômetros (km) de extensão e 20 km de largura na altura de Manaus. Depois de uma equipe do Rio de Janeiro ter concluído, com base em fósseis de peixes, que há 2,5 milhões de anos um esboço do rio Amazonas corria para oeste e desaguava em uma área hoje árida do Caribe (ver Pesquisa Fapesp nº 216), um geofísico de São Paulo apresenta uma nova possível explicação para a formação do rio e da bacia Amazônica, sugerindo que suas águas já fluíam para leste há muito mais tempo, há cerca de 10 milhões de anos De acordo com essa proposta, obtida por meio de uma simulação matemática da evolução do terreno e do depósito de sedimentos na região, o rio Amazonas teria tomado seu sentido atual, de oeste para leste, não só em consequência de alterações no interior da Terra que desencadearam um soerguimento da

porção oeste da Amazônia, de acordo com a abordagem tradicional, mas também como resultado da movimentação da própria superfície terrestre. Um aumento na erosão das cordilheiras andinas pelas intempéries teria criado o declive que se estende dos Andes à Ilha de Marajó e por onde hoje escorre um quinto das águas fluviais do planeta. “Mostrei que a própria dinâmica da erosão e sedimentação teria sido capaz de modificar a drenagem da região”, afirma o geofísico Victor Sacek, professor da Universidade de São Paulo (USP), que detalhou essa hipótese em um artigo publicado on-line em julho na revista Earth and Planetary Science Letters. Suas conclusões convergem com as do geólogo Paulo Roberto Martini, cuja equipe estabeleceu em 2008 o rio Amazonas como o mais extenso do mundo (ver Pesquisa Fapesp nº 150). “A rapidez com que os Andes crescem e a erosão que o Amazonas provoca na cordilheira são monumentais”, diz Martini. “O

rio transporta para o mar o equivalente a mais de um Pão de Açúcar inteiro de sedimentos por mês.” Para entender essa hipótese, é preciso rever a evolução da paisagem na região. Há 24 milhões de anos, no início do período geológico conhecido como Mioceno, as nascentes dos rios do norte da América do Sul não ficavam nos Andes, como hoje, mas em relevos bem menos expressivos a oeste, que dividiam as águas da região em duas bacias hidrográficas distintas. A leste do divisor de águas, os rios desciam em direção à atual foz do Amazonas. A oeste, os rios seguiam na direção oposta, rumo a bacias aos pés dos Andes, e alimentavam imensos lagos e pântanos, que formavam uma área alagada 20 vezes maior que o atual pantanal mato-grossense, conhecido como Sistema Pebas. A geóloga Carina Hoorn, da Universidade de Amsterdã, Holanda, com base em rochas e fósseis colhidos à margem de rios, argumenta que as bacias separadas pelo Arco Purus teriam começado

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O espessamento da crosta devido ao choque entre as placas tectônicas, além de erguer os Andes, observa Sacek, tem outro efeito sobre o relevo a leste da cordilheira. O peso da crosta mais espessa ao lado puxa as regiões aos pés dos Andes, criando o leito de bacias sobre as quais, durante o Mioceno, se depositavam os sedimentos trazidos pelas águas descendo tanto dos Andes quanto do interior do continente. Até esse ponto, os especialistas geralmente concordam. “À medida que a placa de Nazca afundou mais sob a placa sul-americana, os Andes e suas regiões vizinhas passaram a flutuar sobre uma astenosfera mais profunda e viscosa”, diz a geofísica Grace Shephard, da Universidade de Oslo, Noruega. Em 2010, Grace, com colegas dos Estados Unidos, apresentou uma reconstituição das mudanças na astenosfera abaixo do continente, mostrando que as correntezas de rocha fluida teriam força suficiente para soerguer as bacias vizinhas dos Andes, inclinando todo o terreno subandino e amazônico na direção leste. Erosão nos Andes

Com uma abordagem oposta, Sacek desconsiderou o efeito da astenosfera e usou o modelo matemático que já havia adotado no doutorado para simular as transformações no relevo provocadas pelo balanço entre o soerguimento dos Andes, a erosão de suas rochas pelas águas da chuva e dos rios e o transporte e deposição dos sedimentos criados pelas águas, que Grace ignorou. Como o efeito de todos esses processos juntos em uma escala conti-

nental ao longo de milhões de anos é extremamente complexo para ser calculado com detalhes realistas, ele teve de encontrar um equilíbrio entre fazer um modelo muito complexo, mas confuso, ou muito simplista, incapaz de representar a natureza adequadamente. “Não foi fácil”, diz. Como ainda há grande incerteza sobre a rapidez com que os Andes cresceram e com que eficiência a erosão desgastava suas rochas e as águas transportavam seus sedimentos, Sacek testou diversos valores numéricos em suas simulações. Independentemente dos números que inserisse no computador, porém, as simulações da história geológica dos últimos 35 milhões de anos reproduziam a reversão do rio Amazonas. À medida que os Andes se tornavam uma barreira para a umidade soprada por ventos vindos do Atlântico, o aumento das chuvas no flanco leste da cordilheira aumentava também a quantidade de sedimento transportado montanha abaixo. Em algum momento, os sedimentos depositados soterravam completamente as bacias ao lado dos Andes, criando a suave inclinação a leste observada na Amazônia atualmente. Uma das simulações indicou que a bacia amazônica teria se formado há cerca de 10,5 milhões de anos, como defendido por Carina. O modelo matemático, porém, falhou ao simular a evolução do Sistema Pebas, os lagos e pantanais espalhados entre os Andes e o Arco Purus, indicando épocas e lugares diferentes dos obtidos pelos geólogos. Grace chamou de “impressionante” o trabalho de Sacek, mas notou que apenas

Mudança de rumos

n Andes  n Montanhas  n Planícies

Formação dos Andes e erosão alteram sentido do rio Amazonas

n Lagos e áreas alagadas  n Oceano

Por causa da inclinação do terreno, o divisor de águas desaparece gradativamente

Fonte CARinA HOORn et al. e ViCtOR SACek

Chuva Foz

Lagos e pântanos Divisor de águas Andes

Foz

Erosão Sedimentos Andes

Oceano Antigo divisor de águas Andes

Lagos e pântanos desaparecem gradativamente

DUAS bAcIAS hIDrográFIcAS

MontAnhAS A oEStE, ágUAS A lEStE

UMA rEDE únIcA DE rIoS

De 23 milhões a 10 milhões de anos, os rios

Andes se elevam, sofrem erosão

De 10 milhões a 7 milhões de anos, o

estão separados por um divisor de águas

e cobrem com sedimentos a região

aumento da sedimentação a oeste fez

(seta branca) e correm para leste ou oeste

até a foz do Amazonas

os rios correrem apenas para leste

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mapa  Biblioteca Nacional  infográfico  Ana Paula Campos IlustraçãO  sandro castelli

a se fundir há 16 milhões de anos. Desse modo, o rio Amazonas e sua bacia teriam ganho sua extensão atual durante os 6 milhões de anos seguintes, quando a inclinação do relevo do norte do continente fez a água dos lagos entre os Andes e o Arco Purus começar a fluir por rios preferencialmente para leste. A equipe do geólogo Jorge de Jesus Figueiredo, da Petrobras, depois de coletar e analisar amostras de rochas em poços de sondagem no fundo do mar próximo à foz do Amazonas, chegou a conclusões que reforçaram a hipótese de Carina. A região norte da América do Sul e o rio Amazonas ganharam as feições atuais também em consequência da interação das placas litosféricas, que Sacek estuda desde o doutorado, concluído em 2011. No litoral oeste da América do Sul, a placa de Nazca, que forma o assoalho do oceano Pacífico, colide com a placa continental sul-americana. Como resultado, a placa oceânica, mais fina e densa que a continental, mergulha sob o continente em direção à chamada astenosfera, uma camada do interior da Terra tão quente que suas rochas se comportam como um líquido espesso, que flui lentamente ao longo de milhares de anos. “A raiz dos Andes cresce e afunda, ao mesmo tempo que seus picos sobem”, diz Sacek. “Isso porque as placas litosféricas flutuam sobre a astenosfera como icebergs flutuam no mar, com apenas uma pequena ponta visível sob a superfície. A crosta continental tem em média de 30 a 40 km de espessura, enquanto nos Andes pode passar de 70 km, embora a altura das montanhas não ultrapasse 7 km.”


o modelo que ela e outros pesquisadores fizeram, levando em conta os efeitos da astenosfera, conseguem formar corretamente o Sistema Pebas. “Permanece o desafio de combinar melhor os fenômenos geológicos da superfície terrestre com os do interior do planeta”, diz ela. “Esses processos não são mutuamente exclusivos.” Para a geóloga Dilce Rossetti, pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, a origem do Amazonas deve permanecer aberta ainda por muitos anos. “Os dados obtidos até agora são muito poucos e pontuais para fazer extrapolações”, afirma. “As datações dos sedimentos ainda não são totalmente confiáveis e as unidades de diferentes períodos geológicos precisam ser melhor mapeadas.” Carina, da Holanda, duvida que novos dados mudem suas próprias conclusões a respeito do Amazonas. “Os dados da foz do Amazonas são bastante claros e outros registros no Suriname e na Venezuela confirmam a existência de um sistema de rios nascendo nos Andes no final do Mioceno”, diz. Dilce observou que a história pode ser ainda mais complicada. Segundo ela, os sedimentos andinos das amostras estudadas por Figueiredo desaparecem em amostras colhidas mais acima no poço. “Nem ele nem eu sabemos explicar por que isso acontece”, ela reconhece. A região amazônica continua intrigando, surpreendendo e fascinando (ver reportagem sobre as primeiras fotos da Amazônia na página 86). n

Mapa resgatado

O curso do Amazonas, de Nicolas Sanson: precisão reconhecida

Um trabalho que se julgava apenas digno de curiosidade, o Le cours de la rivière des Amazones, elaborado em 1656 pelo cartógrafo francês Nicolas Sanson, foi finalmente reconhecido como um dos primeiros mapas científicos da região amazônica. Jorge Pimentel Cintra, professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), e um de seus estudantes, Rafael Henrique de Oliveira, desconsideraram a crítica do geógrafo francês Charles-Marie de La Condamine de que o mapa teria sido feito “baseado somente em informações históricas”, compararam as coordenadas geográficas adotadas com as atuais e reconheceram que o mapa foi feito com acurácia, do melhor modo possível para a época. “Nossa hipótese é de que esse mapa era um rascunho, que Sanson usava como base para fazer atlas mundiais”, diz Cintra. Em um artigo publicado na Acta Amazonica, ele e Oliveira listam 14 outros mapas feitos a partir do trabalho de Sanson. Publicado apenas em 1680, 13 anos depois da morte de Sanson, cartógrafo real da França, o mapa apresenta povoamentos, cadeias de montanhas e poucos afluentes do Amazonas, expondo um erro comum na época, que só foi detectado em 1707, ao indicar a nascente do rio próxima a Quito, no Equador. Outro equívoco, associado ao erro da nascente, foi considerar como parte do Amazonas os rios Coca e Napo,

Projeto

que, hoje se sabe, são seus afluentes.

Evolução tectônica, climática e erosional em margens convergentes: uma abordagem numérica (n. 2011/10400-0); Modalidade Pós-doutorado; Pesquisador responsável Victor Sazek (IAG-USP); Investimento R$ 147.351,39 (FAPESP).

preciso que outro, concluído um ano antes, em 1655, o Magni

Artigos científicos

um relato de Cristobal de Acuña, jesuíta espanhol que desceu o rio

CINTRA, J. P.; OLIVEIRA, R. H. de. Nicolas Sanson e seu mapa: o curso do rio Amazonas. Acta Amazonica. v. 44, n. 3, p. 353-66. 2014. HOORN, C. et al. Amazonia through time: andean uplift, climate change, landscape evolution, and biodiversity. Science. v. 330, p. 927-31. 2010. SACEK, V. Drainage reversal of the Amazon River due to the coupling of surface and lithospheric processes. Earth and Planetary Science Letters. v. 401, p. 301-12. 2014.

desde o Equador em 1639 acompanhando o explorador português

Cintra e Oliveira consideram o mapa de Sanson um pouco mais Amazoni fluvii, do engenheiro militar francês Blaise François Pagan, o conde de Pagan. Os dois mapas se baseiam nas informações de

Pedro Teixeira. “Olhei para o relato de Acuña, publicado em 1641, refiz os cálculos e conferi as latitudes e longitudes dos dois mapas”, afirma Cintra. “Nos pontos em que eu tive dúvida, Sanson e Pagan também tiveram, porque as informações não eram claras.” Carlos Fioravanti

pESQUISA FAPESP 223  z  57


Cosmologia y

Lupas cósmicas Distorção gravitacional na luz de supernovas e de galáxias ajuda a investigar a distribuição de matéria e energia no Universo

F

ísicos do Rio de Janeiro, com colegas do exterior, estão dominando a arte de usar um fenômeno especial que ocorre com a luz para entender a composição e a estrutura do Universo em grandes escalas. Chamado de lente gravitacional, esse fenômeno funciona como uma espécie de lente de aumento gigantesca – uma lupa cósmica – e permite enxergar objetos celestes que muitas vezes não seriam visíveis por estarem muito distantes. Com a ajuda de lentes gravitacionais, Martín Makler, Bruno Moraes e Aldée Charbonnier, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), elaboraram um novo mapa da matéria escura, um dos componentes mais abundantes e misteriosos do cosmo. “Esse é o levantamento mais extenso do tipo já feito com boa qualidade de imagem para uma área contígua do céu”, afirma Makler, coordenador da participação brasileira no projeto, realizado em parceria com pesquisadores europeus, canadenses e chineses. 58  z  setembro DE 2014

Os pesquisadores usaram um telescópio no Havaí para examinar inicialmente 16 milhões de estrelas e galáxias em uma faixa do equador celeste, área do céu bastante estudada por ser visível a partir do hemisfério Norte e do hemisfério Sul da Terra. Com base em dados de quase 3 milhões de objetos dos quais conseguiram informações detalhadas, eles criaram um mapa bidimensional da distribuição de matéria escura numa faixa do equador celeste distante cerca de 7 bilhões de anos-luz da Terra. A quantidade de matéria escura encontrada nas galáxias dessa região do céu é de cinco a seis vezes mais abundante do que a de matéria normal, que compõe estrelas, planetas e seres vivos. “Cerca de 80% da matéria nessas estruturas que funcionam como lente gravitacional é matéria escura”, explica Makler. Essa é uma proporção consistente com a observada em outras análises de grande escala do Universo. Segundo os pesquisadores, esse resultado é compatível com o previsto


esa / nasa / hubble space telescope

Anel de Einstein: o objeto no centro da imagem deforma o espaço ao seu redor e curva a luz de uma galáxia distante, que aparece distorcida

no modelo mais aceito atualmente para explicar o comportamento do Universo desde o Big Bang, há 13,8 bilhões de anos, até hoje: o lambda cold dark matter, ou lambda CDM. Esse modelo propõe que pouco menos de 70% de tudo (energia e matéria) o que compõe o Universo corresponde à chamada energia escura, uma forma desconhecida de energia que parece ser latente do espaço vazio. Cerca de um quarto do cosmo seria composto de matéria escura, formada por partículas que não emitem nem absorvem luz, e os 5% restantes pela matéria normal. “Pode não parecer grande coisa corroborar o modelo aceito como padrão atualmente”, diz Makler, “mas é preciso levar em conta que esse é um prelúdio do que está por vir, uma vez que novos projetos vão examinar áreas muito maiores do céu e com qualidade de imagem semelhante à nossa”. O pesquisador do CBPF conta que, para a faixa do céu agora mapeada, faltava um levantamento

de alta resolução que permitisse olhar detalhes. “Foi o que decidimos fazer: o maior levantamento de uma área contígua do céu com essa resolução”, conta. Do ponto de vista técnico, foi um desafio considerável. Por não interagir com a luz, mas apenas com a matéria comum por meio da gravidade, a presença da matéria escura foi inferida por meio da distorção que causa na trajetória da luz de galáxias distantes – o efeito de lente gravitacional, que pode variar de intensidade de acordo com a distribuição de massa entre as galáxias que sofrem esse efeito e os observadores na Terra. Relatividade

As lentes gravitacionais estão entre os muitos efeitos previstos pela teoria da relatividade geral, formulada pelo físico alemão Albert Einstein (1879-1955). Einstein mudou a forma de se compreender a gravidade ao mostrar que o espaço e o tempo são maleáveis – em especial sob a ação de objetos de grande massa, pESQUISA FAPESP 223  z  59


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Um mapa da matéria invisível Físicos calculam distribuição de matéria escura no equador celeste Grupo internacional usou o desvio na trajetória da luz causado pelo efeito de lente gravitacional para estimar a concentração de matéria escura (pontos azuis) em parte do equador celeste (faixa branca abaixo)

fonte  martin makler / cbpf

Alterações na trajetória da luz podem ampliar ou distorcer a imagem de objetos situados distantes da Terra principais ferramentas usadas para medir a intensidade da energia escura, que funciona como uma espécie de antigravidade repelindo os objetos e fazendo o Universo expandir de forma acelerada, são as supernovas do tipo Ia. Brilho de mil sóis

Na UFRJ, Quartin, Tiago Castro e Valerio Marra, em colaboração com um pesquisador da Alemanha, mostraram recentemente que é preciso levar em conta o efeito das lentes gravitacionais para estudar essas supernovas. Embora surjam de cadáveres de estre1 las de pequeno porte, as anãs brancas,

1

provável destino do Sol daqui a 7 bilhões de anos, as supernovas liberam quantidades prodigiosas de energia. O brilho avassalador emitido na explosão de uma supernova funciona como uma excelente vela-padrão e vale como uma espécie de marcador de página cósmico. Isso ocorre porque as supernovas Ia emitem um brilho de intensidade conhecida e estável. Sabe-se, além disso, que a intensidade aparente de uma fonte de luz diminui à medida que aumenta a distância entre ela e o observador – na realidade, a intensidade aparente de uma fonte de luz diminui na proporção do inverso do quadrado da distância entre essa fonte de luz e o observador. Com isso, é possível calcular a distância entre a luz e quem a enxerga. Ao mapear a presença desse tipo de supernova Universo afora, é como se os astrônomos estivessem olhando para uma sucessão de postes de luz ao longo de uma estrada, com as luzes mais fracas indicando os pontos mais distantes. No caso do cosmo, porém, há ainda o fato de que a estrada está espichando. Isso fica claro quando se leva em conta outro fenômeno, o chamado desvio para o vermelho, que é o equivalente óptico da distorção do som de uma sirene quando uma ambulância está se afastando rapidamente de alguém. Assim como as ondas sonoras são distorcidas pelo

imagens 1 h. y. shan, j.p. kneib e colaborações sdss e cs82  2 A. candeias, m. makler e colaboração cs82  infográfico  ana paula campos  ilustraçãO  fabio otubo

como estrelas, galáxias ou aglomerados de galáxias. Séculos antes, Isaac Newton havia explicado a gravidade como uma força atrativa que um corpo de determinada massa exerce sobre outro. O que, com base nas ideias de Newton, se entende como a atração gravitacional e, por exemplo, faz a Terra girar em torno do Sol, a partir de Einstein passa a ser entendido simplesmente como resultado da curvatura do espaço criada pela massa solar, como se a estrela fosse uma bola de boliche colocada em cima de um colchão. Se o espaço é distorcido por objetos com massa muito elevada, isso significa que a luz também pode acabar sendo curvada ao passar por essa região do espaço. Uma das consequências da mudança na trajetória da luz ao passar por essa região é que a imagem de um objeto mais distante pode ser ampliada (ver infográfico ao lado). Na prática, coisas bem mais complicadas podem acontecer. “A imagem também pode ser duplicada, esticada e distorcida, entre outros fenômenos”, explica o físico Miguel Quartin, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que vem usando o efeito de lente gravitacional para estudar as supernovas, explosões estelares que estão entre as principais “réguas” usadas para medir a expansão acelerada do Universo. Mesmo as lentes gravitacionais podem apresentar intensidades diferentes e serem fortes ou fracas. A versão forte do fenômeno, na qual há, por exemplo, a forte distorção e ampliação da imagem, só acontece se o objeto que atua como lente tiver massa muito elevada e houver um alinhamento muito bom entre ele, o observador na Terra e a fonte de luz (a galáxia mais distante cuja forma é distorcida). Já na versão fraca é preciso levar em conta distorções bem mais leves, geradas pela somatória da influência gravitacional de objetos em torno da região que está sendo observada. “Nesse caso, a distorção pode ser muito sutil”, diz Makler, do CBPF. Se os efeitos de lentes gravitacionais obtidos pelos físicos do CBPF representam uma promessa de diminuir algo da aura de mistério em torno da matéria escura, os estudos conduzidos na UFRJ pela equipe de Miguel Quartin estão mais diretamente relacionados a um componente do cosmo ainda mais enigmático, a energia escura. Uma das


lente de aumento 1,4 bilhão

O desvio na trajetória

de anos-luz

da luz funciona como uma lente de aumento,

Observatório

que distorce e amplia a

Observatório

imagem observada na Terra de objetos situados muito longe

6,8 bilhões de anos-luz

lente gravitacional

8,7 bilhões de anos-luz 9 bilhões de anos-luz

Espaço curvo

Un

Objetos com massa elevada –

ive

galáxias e grupos de galáxias, que concentram matéria normal e escura – curvam o espaço

rso

em

exp

Luz sofre

ans

ão

Galáxia distante

deflexão ao passar por região

e alteram a trajetória da luz

com massa elevada

Lente forte (anéis quase perfeitos)

Lente média (semiarcos)

Lente fraca (elipses) 2

Graus de ampliação A imagem captada pelo telescópio depende da intensidade da lente, determinada por sua massa, a distância da Terra e o alinhamento com o objeto e o observador

movimento, as ondas de luz emitidas por uma estrela que está se afastando da Terra também têm seu comprimento alterado da perspectiva do observador, tornando-se mais próximas da cor vermelha. A comparação entra a distância inferida por meio das velas-padrão e o desvio para o vermelho é um dos principais indícios de que o Universo está se expandindo e de forma acelerada, impulsionado pela energia escura. Quartin lembra, no entanto, que a regra aparentemente simples de estimar a intensidade da luz das supernovas raramente é suficiente para que esses objetos funcionem como bons marcos da

expansão cósmica. Os problemas que interferem na intensidade observada das supernovas vão de coisas prosaicas, como nuvens de poeira interestelar entre a supernova e a Terra, que fazem o objeto parecer menos brilhante do que é, a distorções na intensidade da luz causadas pelas lentes gravitacionais. Em trabalhos recentes, Quartin e seus colegas utilizaram modelos da distribuição de matéria no cosmo para corrigir a interferência desses fenômenos, entre eles as lentes gravitacionais e a luz das supernovas. “A ideia também foi dar um passo além e ver se, com as supernovas e as lentes gravitacionais, seria possível entender algo mais sobre a estrutura do Universo e sobre como a matéria está distribuída nele”, diz Quartin. Aplicando essa proposta a quase 700 supernovas Ia – algumas das quais emitiram a luz observada agora quase 8 bilhões de anos atrás –, a equipe da UFRJ verificou que, de fato, isso é possível. “É o primeiro resultado de uma nova técnica, que concorda com o que se sabe a partir de outros métodos”, diz Quartin. “O importante é que, na hora do ‘vamos ver’, a técnica passou no teste.” Ele ressalta que, nos próximos 10 anos, em vez de 700 supernovas, serão cerca de

Galáxia distante

100 mil com dados disponíveis para esse tipo de estimativa. Aí sim será possível chegar a níveis elevados de precisão e descobrir se as informações derivadas dessa metodologia alteram o que se sabe sobre a matéria e a energia escura. “Se as metodologias concordarem, ótimo; se discordarem, é porque alguma hipótese está errada e se conseguiu achar essa inconsistência ao analisar o mesmo fenômeno com técnicas diferentes”, explica. “É assim que a ciência avança.” A esperança é de que avanços desse tipo tragam pistas sobre a natureza desses dois componentes do cosmo, que, por ora, só podem ser investigados com base nos efeitos que produzem. n Reinaldo José Lopes

Artigos científicos SHAN, H. et al. Weak lensing mass map and peak statistics in Canada-France-Hawaii Telescope Stripe 82 survey. Monthly Notices of the Royal Astronomical Society. v. 442. jun. 2014. LI, R. et al. First galaxy-galaxy lensing measurement of satellite halo mass in the CFHT Stripe 82 Survey. Monthly Notices of the Royal Astronomical Society. v. 437. jan. 2014. MARRA, V.; QUARTIN, M.; AMENDOLA, L. Accurate weak lensing of standard candles. I. Flexible cosmological fits. Physical Review D. 5 set. 2013. QUARTIN, M.; MARRA, V.; AMENDOLA, L. Accurate weak lensing of standard candles. II. Measuring 8 with supernovae. Physical Review D. 28 jan. 2014. CASTRO, T.; QUARTIN, M. First measurement of 8 using supernova magnitudes only. Monthly Notices of the Royal Astronomical Society Letters. 10 jul. 2014.

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tecnologia  FOTÔNICA y

Bit acelerado CPqD cria empresa de dispositivos ópticos de olho nos mercados nacional e internacional

Marcos de Oliveira

O

avanço da internet, aliado à proliferação de soluções smart em celulares e televisões, além da computação em nuvem, tem provocado um aumento significativo no tráfego de dados nos sistemas de transmissão. Um fenômeno mundial que exige das empresas de telecomunicações e operadoras das redes de comunicação um esforço em atualização e aumento da capacidade de transmissão em sistemas de fibras ópticas. Para funcionar, esses longos tubos com diâmetro semelhante a fios de cabelo que levam voz, dados, filmes e música por meio da luz de lasers entre um ponto e outro das redes, precisam de equipamentos cada vez mais sofisticados. São amplificadores, transmissores (lasers e moduladores) e receptores (fotodetectores) que tornam os sistemas rápidos e eficientes. Com o foco num mundo mais interligado por fibras ópticas, a Fundação Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD), ex-centro de pesquisa da Telebras, desde 1998 uma entidade de direito privado instalada em Campinas, no interior paulista, vem desenvol-

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vendo ao longo dos últimos anos uma série de tecnologias que resultaram na formação de uma nova empresa, a BrPhotonics. Ela pretende dar vazão às inovações do centro e suprir as necessidades brasileiras de dispositivos fotônicos e microeletrônicos para sistemas de comunicação óptica, além de buscar a exportação de seus futuros produtos que começam a ser produzidos no segundo semestre de 2015. “O CPqD tem por definição a missão de pesquisa e desenvolvimento para o mercado. Somos um centro de pesquisa aplicada. Quando há mercado existente no país transferimos a tecnologia para a indústria. Quando o setor não apresenta opções no setor industrial, o CPqD cria uma empresa e transfere a tecnologia”, diz Júlio César Rodrigues Fernandes de Oliveira, indicado para ser o presidente da BrPhotonics. Ele deixa, aos 33 anos, o cargo de gerente de tecnologias ópticas da instituição onde ingressou como engenheiro em 2004. Desde 2007, ele comanda o grupo responsável pelo desenvolvimento dos dispositivos que serão produzidos pela nova empresa.

1 Fotodetectores do transmissor óptico 2 Protótipo do transmissor óptico para funcionar em 100 gigabits por segundo da BrPhotonics


fotos  Léo ramos

As tecnologias criadas no CPqD já contribuíram para a formação, de forma direta ou indireta, de nove empresas. A BrPhotonics foi a mais recente. “Com a privatização, o centro transformou-se em uma fundação e, por não ser uma indústria, tomou a decisão estratégica de criar empresas como maneira de levar tecnologias para esse mercado exigente e de alta densidade tecnológica”, diz Claudio Violato, vice-presidente de Tecnologia do CPqD. “No nosso segmento, a empresa de sistemas ópticos adquire peças dos fabricantes de dispositivos (fotônicos e microeletrônicos), monta os equipamentos e os fornece para o cliente, que não é o usuário final, mas sim a empresa de telecomunicações, como a Vivo, TIM, Oi e Telefônica, por exemplo”, diz Oliveira. A nova empresa surge para ser fornecedora de dispositivos como transmissores e receptores ópticos para serem integrados a equipamentos e sistemas ópticos que funcionam a taxas de transmissão de 100 gigabits por segundo (Gbps) até 1 terabit por segundo (Tbps). “Pretendemos colaborar para que 2

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Dispositivo da BrPhotonics transforma as informações em sinais de luz Operadora de telecomunicações

sinal de dados

Rede de fibra óptica

Rede mundial

1

Transmissor CFP2

2

3

Luz laser segue pela rede de fibra óptica

1

Recepção e distribuição de dados As operadoras, quando necessário nas transmissões em longa distância, fazem a transformação dos sinais elétricos em sinais de luz através do aparelho CFP2

2 feixe de laser Nas centrais das operadoras, lasers emitem um feixe de luz para cada transmissor

e dispositivos no mercado, integram uma plataforma e vendem para as operadoras. Essas grandes companhias internacionais também começaram a comprar empresas do setor de dispositivos para ter acesso exclusivo a eles. Isso faz com que indústrias menores tenham dificuldade em conseguir comprar componentes no mercado”, diz Oliveira “Para nossos produtos serem adquiridos, mesmo que pela indústria nacional, primeiro eles serão detalhadamente avaliados. Se apresentarem o desempenho desejado e custo competitivo frente ao mercado global, eles estarão aptos para atingir o mercado”, explica Oliveira. “Se não for bom e não tiver preço competitivo, a indústria não vai comprar. É necessário ao menos empatar em custos e em desempenho.” O primeiro dispositivo da BrPhotonics, atualmente em evolução para a fase de amostras de engenharia, é um transmitter optical sub assembly (Tosa), que faz a transmissão óptica em 100 Gbps integrando laser e modulador óptico, capaz de gerar um significativo ganho na densidade de dados. Ele foi apresentado em sua fase de demonstração em março deste ano na Exposição e Conferência de Comunicações por Fibra Óptica (OFC, na sigla em inglês) em São Francisco, nos Estados Unidos.

3 modulação Óptica Camada de polímero (em preto) depositada sobre silício

Sócio internacional

e coberta por metais onde o sinal elétrico com as

A nova empresa visa desde o início de sua concepção também ao mercado global de componentes ópticos para média e longa distância e tem um faturamento anual de US$ 4 bilhões. “Queremos vender para qualquer empresa no mundo. Diferentemente do segmento de sistemas ópticos, que tem baixo volume e alto valor financeiro, na indústria de dispositivos temos um baixo preço e por isso precisamos de alto volume para manter a própria existência.” Para essa amplitude internacional, o CPqD foi buscar um sócio no exterior que tem uma cadeia de venda montada fora do Brasil. A sociedade para a criação da BrPhotonics foi feita com a GigOptix, dos Estados Unidos, que fabrica dispositivos eletrônicos analógicos de alta frequência. “Chegamos à conclusão de que precisávamos de quatro conhecimentos importantes na nova empresa, que são o projeto e o empacotamento de chips fotônicos, eletrônica analógica de alta velocidade e microeletrônica. A GigOptix é forte em eletrônica analógica e o CPqD nos outros três.” A empresa norte-americana também tem uma fábrica para produzir os moduladores poliméricos

informações altera o feixe de luz laser que as transporta Fonte Daniel Moutinho Pataca/CPqD e Julio Cesar de Oliveira/BrPhotonics

a indústria nacional continue crescendo, evitando gargalos, e buscando também uma forte atuação no mercado global.” A principal indústria nacional no segmento de sistemas ópticos é a Padtec, outra empresa filhote do CPqD, instalada também na área do centro e vizinha da BrPhotonics. A Padtec é a maior fabricante de equipamentos para comunicações ópticas do Brasil. Ela fornece sistemas para redes de telecomunicações ópticas de longa distância, redes metropolitanas, de acesso e armazenamento de dados. Atualmente, em média, 15% do faturamento anual da companhia, que atingiu R$ 400 milhões em 2013, é investido em pesquisa e desenvolvimento (ver em Pesquisa FAPESP nº 219). A empresa tem como concorrentes grandes empresas multinacionais como a Alcatel, na França, Cisco e Ciena, nos Estados Unidos, e Huawei, na China. “Todas elas compram módulos 64  z  setembro DE 2014

foto  léo ramos  infográfico Ana Paula Campos ilustraçãO alexandre affonso

Transmissor será fabricado em Campinas


Laboratório e plataforma de testes da BrPhotonics: transmissor é o primeiro dispositivo da empresa e vai ser incorporado a sistemas de transmissão por fibras ópticas

cações] e não é o dono das patentes, mas sim o gerador. O CPqD vai manter a BrPhotonics até a implantação da fábrica, que deve acontecer em fevereiro de 2015. “Hoje os acionistas estão buscando parcerias estratégicas de investimento para dar continuidade à evolução dos planos da empresa nos próximos anos”, diz Oliveira, que se formou em engenharia elétrica na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e fez mestrado e doutorado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). A empresa já olha o futuro das transmissões ópticas no sentido de desenvolver as novas tecnologias para suprir a demanda crescente das transmissões ópticas. “Uma conexão com o Japão certamente passa por fibras ópticas e cada vez elas estão mais próximas da casa do usuário final. Porém a taxa de transmissão precisa ser continuamente ampliada para que se tenha acesso ao aumento de banda que estamos vivenciando. Dessa forma, começaque serão utilizados nos As operadoras remos a fabricar dispositivos para dispositivos transmissores de fibras sistemas de 100 Gbps para serem da BrPhotonics. Os equiinstalados em equipamentos situapamentos dessa unidade ópticas exigem dos a médias e longas distâncias, de fabril estão sendo transfe600 km a 5 mil km até distâncias ridos da cidade de Bothell, equipamentos submarinas”, diz Oliveira. Como no estado de Washington, as operadoras exigem equipamenpara Campinas. Com excada vez tos cada vez menores, que gastem pressivo valor de mercado, menores e que menos energia elétrica e possam a fábrica serviu como uma ser instalados dentro das platafordas contrapartidas finangastem menos mas existentes nas centrais de teceiras para a formação da lecomunicações, a BrPhotonics e sociedade. Além disso, a eletricidade outras empresas do mundo estão GigOptix tem uma cadeia pesquisando a otimização dos disglobal de vendas, com repositivos com a orientação do Oppresentação na Ásia, Estical Internetworking Forum (OIF), tados Unidos e Europa. “A vantagem dos norte-americanos é ganhar um que estabelece padrões nas comunicações ópgrupo que tem três capacidades que eles não ti- ticas. “Hoje um módulo de transmissão óptica nham. Todo esse conhecimento dentro de uma de 100 Gbps possui 12,7 centímetros (cm) por única empresa é um grande diferencial de mer- 17,78 cm. A versão de 100 Gbps do módulo que cado.” A composição acionária é de 51% do CPqD a BrPhotonics vai produzir possui 4,1 cm por 10,7 cm, ocupando uma área cinco vezes menor, e 49% da GigOptix. e assim ampliando a densidade de dados com a possibilidade de um maior número de módulos Patentes fotônicas A fábrica que está sendo montada na BrPhotonics na mesma plataforma. será capaz de produzir moduladores ópticos com Oliveira diz que o CPqD está preparando outros a tecnologia de filme fino de polímero sobre silício dispositivos relativos à comunicação óptica e o (TFPS, na sigla em inglês), que tem a função de caminho é a transferência para a empresa. Enmodular o sinal do laser a ser acoplado às fibras tre os próximos passos, segundo Oliveira, estão ópticas em distâncias de até 5 mil quilômetros a verticalização da produção dos dispositivos e (km). No acordo, a empresa norte-americana a construção do próprio laser, hoje importado está transferindo 17 patentes para a BrPhotonics dos Estados Unidos e do Japão. A consolidação e o CPqD está licenciando sete patentes para da BrPhotonics deve acontecer até o fim do ano, a nova empresa. “Eles estão cedendo, o CPqD quando a fábrica ficará pronta e já estarão conestá licenciando porque a tecnologia foi gerada tratados 20 funcionários, sendo 17 em Campinas com dinheiro público do Funttel [Fundo para o e três nos Estados Unidos, que vão cuidar da sínDesenvolvimento Tecnológico das Telecomuni- tese do polímero. n pESQUISA FAPESP 223  z  65


Microeletrônica y

Cooperação estratégica Parceria entre universidade gaúcha e empresa resulta em fábrica de encapsulamento de chips Evanildo da Silveira

A

interação de dois grupos empresariais privados, um do Brasil e outro da Coreia do Sul, com o apoio da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, e dos governos municipal, estadual e federal resultou na criação de uma das maiores encapsuladoras de chips de memória para computadores portáteis e de mesa da América Latina. O encapsulamento consiste na proteção do chip em um circuito integrado por meio da adesão e soldagem em um substrato feito de fibra de vidro e epóxi, resina que também serve para a cobertura do dispositivo. A fábrica, inaugurada em junho, tem capacidade para encapsular até 5 milhões desses dispositivos por mês, o que representa aproximadamente 20% da demanda nacional. Quando estiver operando em plena capacidade, em 2019, a empresa poderá processar, a cada mês, até 30 milhões de chips. A HT Micron foi criada em dezembro de 2009, como resultado de uma associação entre a sul-coreana Hana Micron, fundada em 2001, e o grupo brasileiro Parit Participações em Inovação e Tecnologia, 66  z  setembro DE 2014

controladora das empresas Teikon, que manufatura produtos eletrônicos, e Altus, da área de automação industrial. Em janeiro de 2010, a Unisinos, a HT Micron e a prefeitura de São Leopoldo firmaram um protocolo de intenções. “O objetivo era criar condições para que a fábrica fosse instalada no Parque Tecnológico São Leopoldo (Tecnosinos), da Unisinos”, explica Juliana Suzin, responsável pela área de relações com o mercado dos institutos tecnológicos da universidade. “Entre as obrigações firmadas, por parte da universidade, estava a construção de um prédio para abrigar a fábrica da HT Micron.” O acordo prevê o aluguel da fábrica para a empresa por 10 anos, com opção de compra no final deste prazo. A HT se habilitou no Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Indústria de Semicondutores (Padis), do governo federal, e assim usufrui de vários incentivos fiscais como a isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). Conforme o Padis, a HT se compromete a destinar de 3% a 5% até 2017 da receita anual da empresa em pesquisa e desenvolvimento no país, sendo 1%, em cada ano, exclusivo para aplicação na

Unisinos. Para melhor desempenho da universidade nessa área, foi criado o Instituto de Semicondutores (ITT Chip). “O objetivo do ITT Chip é criar um centro de excelência, para pesquisa, desenvolvimento, inovação e suporte empresarial com foco no encapsulamento e teste de semicondutores”, explica o professor Celso Peter, coordenador do ITT Chip. “Serão investidos R$ 14 milhões captados principalmente da Finep [Financiadora de Estudos e Projetos] na estruturação do instituto”, diz Peter. integração profissional

O centro será instalado no próprio campus da Unisinos, ao lado do Tecnosinos. “Ele será um ambiente propício para a geração, a transferência e a aplicação do conhecimento produzido na universidade e no campo científico e tecnológico internacional na área de componentes eletrônicos”, acrescenta Juliana. A universidade já colabora na formação de


Chips produzidos na Coreia são encapsulados no Rio Grande do Sul

fotos André seewald / ht micron

Fábrica da HT Micron em São Leopoldo, instalada ao lado da Unisinos e do parque tecnológico

profissionais para a nova empresa. Hoje, a HT emprega 400 funcionários, em três turnos, na produção de componentes de memória para computadores e se prepara para fabricar dispositivos dedicados ao uso em smartphones e tablets. Com a capacidade total de produção, a HT Micron projeta gerar 800 empregos diretos. Desde a fundação até agora, foram investidos R$ 130 milhões, valor que deverá chegar a R$ 200 milhões nos próximos cinco anos. No investimento feito até aqui estão incluídos os R$ 54 milhões da Unisinos na construção do prédio de 10 mil metros quadrados (m2), valor que foi em 90% financiado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) com apoio do Banco de Desenvolvimento do Estado do Rio Grande do Sul (Badesul). Para funcionar, a fábrica tem um total de 7.500 m² de salas limpas. “Nelas, o número máximo de partículas no ar não pode ser maior ou igual a 5 mil partículas

de até 0,5 mícron por pé cúbico de ar [um pé equivale a 30,48 centímetros]”, explica Rosana Casais, diretora de relações institucionais da HT Micron. A produção começa com os wafers, neste caso lâminas circulares do tamanho de uma pizza, com 30 centímetros (cm) de diâmetro por 0,25 milímetro (mm) de espessura, contendo cada um cerca de 2 mil chips de 3,9 por 6,1 mm, produzidos pelos fornecedores da empresa, como a parceira da HT, a sul-coreana SK Hynix. Eles são feitos de silício e já vêm prontos, com seus circuitos integrados com cerca de 2 bilhões de transistores em cada um. “As salas limpas, na fábrica em São Leopoldo, servem para que as partículas no ar não atrapalhem a soldagem dos chips feita com fios de ouro com dimensão de 0,017 mm de diâmetro”, explica Rosana. No caso dos chips encapsulados pela HT Micron, eles são de memória volátil, dos tipos DRAM (a memória RAM dos computadores) e não voláteis, as memórias Nand flash, aplicadas na manufatura de drives SSD (do inglês solid-state drive), e fornecidos na forma de pen drives. A empresa destina boa parte da produção para a empresa do grupo, a Teikon, controlada pela Parit, que monta módulos de memória DRAM e comercializa para montadoras de computadores no Brasil, como Dell e Positivo.

Para o professor Jacobus Willibrordus Swart, da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Sistemas Micro e Nanoeletrônicos (INCT/Namitec), dado o grande uso de chips em inúmeras e crescentes aplicações, torna-se cada vez mais importante participar da cadeia de projeto e produção desses dispositivos. “A atividade de encapsulamento é uma parte importante e possibilita agregar valor a eles no país, gerando dividendos, demandando e formando recursos humanos”, diz. interação bem-vinda

O professor Antônio Carlos Seabra, chefe do Departamento de Engenharia de Sistemas Eletrônicos da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), pensa de maneira semelhante. “O encapsulamento hoje é muito importante na cadeia de valores de um chip”, diz. “Em alguns casos é a parte mais cara do processo. Quando somado aos testes, suplanta o custo de fabricação do chip em muitas aplicações. O Brasil já possui a parte de projeto de circuitos integrados (design) e está se consolidando na área de encapsulamento.” Seabra também vê com bons olhos a interação universidade-empresa, como a que ocorreu na criação da HT Micron. “A associação de universidades e empresas é sempre muito bem-vinda”, diz. “Cabe ressaltar que estamos falando de uma indústria de ponta, de altíssimo valor agregado, que emprega moderníssimos meios de produção”, diz Seabra. n pESQUISA FAPESP 223  z  67


Medicina Veterinária y

Vira-latas sob controle

Software estima a população de cães

e gatos abandonados e simula estratégias

que beneficiam a saúde animal e humana

Yuri Vasconcelos

N

inguém conhece ao certo o tamanho das populações canina ou felina no Brasil, sejam elas de animais supervisionados – que têm dono e vivem em domicílios – ou de rua. A caracterização demográfica de cães e gatos é um passo importante para definir estratégias de manejo populacional desses animais, além de contribuir para o controle de zoonoses como a raiva e a leishmaniose visceral, que causam 55 mil mortes e 500 mil casos no mundo, respectivamente. Para lidar melhor com esse problema, um grupo de pesquisadores da Faculdade de Medicina Veterinária (FMVZ) da Universidade de São Paulo (USP), na capital paulista, criou um software capaz de estimar com elevado índice de precisão quantos cães e gatos domiciliados vivem nas cidades brasileiras. Em breve, esse programa poderá ser acessado livremente por órgãos do Ministério da Saúde e prefeituras. “Conhecer a população de rua é essencial. Ela é resultado do abandono de animais”, diz o médico veterinário Fernando Ferreira, professor e coordenador do programa de pós-graduação da FMVZ. 68  z  setembro DE 2014

O Brasil lidera a incidência de leishmaniose visceral na América Latina com cerca de 3 mil infectados por ano, o que representa 90% do total do continente. A raiva, apesar de poder ser controlada com vacinação, ainda tem casos no país. Em 1990, foram 50 casos em humanos, situação que variou de zero a dois casos entre 2007 e 2013. Animais abandonados representam um problema de saúde pública, porque são os principais reservatórios e transmissores dessas enfermidades. Ao mesmo tempo, esses animais são vítimas de atropelamentos, abusos e crueldade. A técnica mais confiável para dimensionar e classificar a população canina de rua foi criada pelo Instituto Pasteur em 2002 e indica que esses animais representam cerca de 5% dos indivíduos que têm dono. “Assim, sabendo quantos cães supervisionados vivem numa determinada região, é possível estimar quantos existem nas ruas desse mesmo lugar”, diz Ferreira. “Já que existe uma relação direta entre essas duas populações, as estratégias de controle de cães abandonados passam pelo controle reprodutivo dos animais domiciliados”, explica Ferreira, que contou no projeto


ilustraçãO  elisa carareto

com a colaboração do professor Marcos Amaku, também da FMVZ. Batizado com a sigla capm – iniciais em inglês de companion animal population management ou manejo populacional de cães e gatos –, o software foi desenvolvido pelo doutorando Oswaldo Santos Baquero, bolsista da FAPESP. “No meu estudo avalio a validade de um desenho amostral complexo para estimar o tamanho populacional de cães domiciliados em municípios brasileiros. Também elaborei um modelo matemático de dinâmica populacional para simular cenários e definir prioridades de intervenção”, conta Baquero. Para ele, a partir da modelagem matemática é possível, por exemplo, compreender com mais facilidade que o principal efeito esperado da esterilização é o aumento da população infértil e não a diminuição do tamanho de uma população inteira. “Modelos matemáticos da transmissão da raiva na China sugerem que a melhor forma de controlar a doença é reduzir a taxa de natalidade canina e aumentar a imunização. Essas duas ações combinadas mostraram-se mais efetivas do que o sacrifício de animais.”

O objetivo do grupo da FMVZ é que o software, de uso livre, venha a ser empregado por órgãos públicos como os centros municipais de controle de zoonoses. De acordo com Baquero, a dinâmica populacional desses animais é influenciada por múltiplos fatores e, dentre as ferramentas disponíveis para modificar alguns deles, estão a prevenção do abandono, a promoção de adoções, o controle reprodutivo e dos fluxos migratórios. O primeiro passo para utilizar o programa é alimentar o capm com dados demográficos da cidade de interesse, obtidos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e definir o número e a localização dos domicílios que serão pesquisados. Depois, é aplicado um questionário para indagar sobre a quantidade de cães e gatos na residência, o sexo e a idade dos animais, a forma de aquisição e se são ou não castrados. “Os resultados permitem modelar diferentes cenários de dinâmica populacional e definir prioridades de intervenção”, explica Ferreira, orientador de doutorado de Baquero. O capm é escrito em uma linguagem flexível e de código aberto, conhecida como “R”, que é focada na programação estatística e na geração de gráficos. “Qualquer pessoa pode usar gratuitamente o software e ver todos os detalhes da programação das funções disponibilizadas”, diz Baquero. Os resultados da maioria das funções da ferramenta podem ser exportados para visualização em programas computacionais mais genéricos como planilhas de cálculo, Google Earth ou semelhantes. “O software já foi testado no município paulista de Votorantim e está pronto para uso. Mas ainda existem complexidades que podem resultar numa barreira de acesso para alguns usuários. Estamos trabalhando para aperfeiçoar o programa”, conta Baquero. n

Projetos 1. Avaliação do impacto da esterilização e/ou sacrifício no controle de populações de cães através de um modelo matricial de crescimento populacional (2007/56295-8); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador Responsável Fernando Ferreira (USP); Investimento R$ 81.807,49 (FAPESP). 2. Manejo populacional de cães e gatos: métodos quantitativos para caracterizar populações, identificar prioridades e estabelecer indicadores (2013/12076-1); Modalidade Bolsa no País – Doutorado; Pesquisador Responsável Fernando Ferreira (USP); Bolsista Oswaldo Santos Baquero (USP); Investimento R$ 87.567,48 (FAPESP).

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biotecnologiay

Nanopartículas

verdes Plantas do cerrado são usadas na produção de nanossistemas para controle de patógenos e pragas da agricultura, entre outras aplicações Dinorah Ereno

C

ascas, sementes, polpas e folhas de árvores e plantas do cerrado brasileiro – como pequizeiro, cajuzinho-do-cerrado, mangabeira, sucupira, bureré e outras –, além de várias espécies de cogumelos, são as matérias-primas escolhidas por pesquisadores da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia (Cenargen), sediada em Brasília, para a obtenção de nanopartículas com potencial de utilização em biossensores para detecção de vírus em plantas, controle de larvas de insetos, microrganismos, células tumorais e outras aplicações. “Investigamos várias espécies e recursos biológicos para encontrar os mais apropriados para realizar o processo de biorredução, visando à produção de nanopartículas metálicas”, relata Luciano Paulino da Silva, coordenador do grupo de nanobiotecnologia da Embrapa Cenargen. A biorredução é um processo biológico mediado por moléculas como enzimas, proteínas, aminoácidos, polissacarídeos e metabólitos encontrados nos extratos de cascas, sementes e folhas, por exemplo, que transforma o íon de prata

70  z  setembro DE 2014

(quando há ganho de elétrons) em prata metálica, resultando na formação de nanopartículas. Uma grande vantagem do método de síntese biológico em vez do químico tradicional é que parte das moléculas ativas também adere à superfície dessas nanopartículas, o que lhes confere características diferenciadas como atividade antibacteriana, antiviral ou antialérgica dependendo do vegetal ou cogumelo utilizado. “Esse método de síntese de nanopartículas é chamado de nanotecnologia verde.” O extrato aquoso da casca da castanha do cajuzinho-do-cerrado (Anacardium othonianum), uma planta arbustiva, foi o meio escolhido pela pesquisadora e estudante de doutorado Cínthia Caetano Bonatto, da Universidade de Brasília (UnB), para estudar uma rota de síntese alternativa aos solventes nocivos ao ambiente, como o hidróxido de sódio, utilizados no método tradicional. Durante a pesquisa feita em seu doutorado, orientado por Luciano Silva, da Embrapa Cenargen, ela verificou que, durante o processo de síntese, temperaturas mais elevadas aceleram o crescimento, modulam o ta-

manho e aumentam a condutividade elétrica das nanopartículas, que mostraram em testes ter propriedades antifúngicas. “As partículas apresentam propriedades ópticas, estruturais, biológicas e elétricas controladas pela temperatura a que o meio reacional é submetido durante a síntese”, diz Luciano Silva. Os resultados foram publicados na revista Industrial Crops and Products, em julho deste ano. A mesma estratégia de utilizar temperaturas maiores no processo de síntese foi utilizada em outra pesquisa feita por Cínthia, com folhas do pequizeiro (Caryocar brasiliense). “O extrato aquoso de pequi tem, em relação a outras plantas testadas em laboratório, um grande potencial biorredutor”, diz a pesquisadora. Após a síntese e caracterização, incluindo a avaliação das propriedades estruturais – pelo tamanho e forma – do nanomaterial obtido, os pesquisadores conseguem saber quais as melhores aplicações para as nanopartículas. “Na área agrícola, por exemplo, podemos desenvolver nanossistemas para controle de patógenos e pragas, incluindo bactérias, fungos e larvas de insetos”, diz Luciano


2

1

Folhas de pequi (alto à esq.), casca do cajuzinho-do-cerrado (acima) e frutos da mangabeira são as matérias-primas usadas na síntese biológica

Silva. “As estratégias de uso serão avaliadas de acordo com a necessidade de aplicação.” Para capturar pragas como besouros ou cigarrinhas, por exemplo, os nanossistemas poderão ser colocados dentro de armadilhas no campo. No caso de fungos que atacam folhas, a aplicação das nanopartículas pode ser feita por pulverização ou, se o ataque for na raiz, diretamente no solo ou no tecido vegetal.

fotos  1 e 3 fábio colombini 2 Cínthia Bonatto

testes em laboratório

3

No caso da pesquisa com folhas de pequi, ensaios em laboratório estão sendo feitos para avaliar o seu potencial biotecnológico. “Testamos a possível citotoxicidade das nanopartículas em bactérias, fungos, células normais e cancerígenas de mamíferos in vitro, em nematoides para controle de pragas e agora iniciamos os testes em culturas de plantas em laboratório para avaliar o potencial efeito tóxico se forem utilizadas no campo”, relata Cínthia. Ela ressalta que visualmente não foram observadas mudanças nas plantas saudáveis tratadas com nanopartículas de pequi em comparação com as plantas-controle, sem tratamento. Como elas são cultivadas em pESQUISA FAPESP 223  z  71


laboratório, dentro de recipientes, a aplicação é feita diretamente no meio de cultivo líquido. O próximo passo da pesquisa consiste em uma análise morfológica e bioquímica das plantas, que engloba avaliação de células e do metabolismo, para saber se elas sofreram algum efeito tóxico. Algumas partículas apresentam uma particularidade que as faz especiais, segundo Luciano Silva, porque possuem uma diferença no sinal denominado ressonância plasmônica de superfície. “Como são partículas nanoestruturadas, elas acabam ganhando novas propriedades ópticas e uma delas é a absorção da luz pela prata metálica em um comprimento de onda que o metal, na sua forma iônica, não absorvia anteriormente.” Essa diferença confere a elas a propriedade de amplificação do sinal óptico nos sistemas em que são utilizadas, tornando-os mais sensíveis. “Com base nessa característica singular, estamos trabalhando no desenvolvimento de nanobiossensores para detecção de hormônios de crescimento e de células tumorais, além de vírus em plantas.” Outra linha de pesquisa conduzida no laboratório é o uso de nanopartículas em superfícies como plástico ou vidro. Nesse caso, o estudo desenvolvido por Luciane Dias da Silva, mestranda orientada por Luciano Silva, tem como foco a síntese de nanopartículas de prata a partir de extratos de frutos e folhas da mangabeira (Hancornia speciosa) para aplicação em superfícies plásticas como o poli (tereftalato de etileno), Micélios (coloridos o conhecido PET. O no computador), objetivo é a busca de fase vegetativa um método alternade cogumelos, tivo para controle de produzidos em meio de cultivo larvas do mosquito controlado

Síntese biológica Extratos de plantas transformam prata em nanopartículas metálicas Biorredução

meio de cultivo Partículas de prata

Moléculas dos extratos vegetais

Íons de prata Cascas Folhas

Prata metálica

Sementes

Meio líquido

Cascas, sementes, folhas

Esse processo é mediado por

Os átomos de

(extratos vegetais) e

enzimas, proteínas, aminoácidos,

prata metálica

partículas de prata são

polissacarídeos e metabólitos

começam a se

colocadas em meio líquido,

secundários de extratos vegetais,

agregar, formando

onde ocorre o processo

que transformam o íon de prata

as nanopartículas

químico de biorredução

em prata metálica

de prata

Fonte  luciano silva / embrapa cenargen

Aedes aegypti, transmissor da dengue. Esse controle seria feito não por meio de captura, mas pela toxicidade das nanopartículas às larvas depositadas no PET. As possibilidades de aplicação do método contemplam o uso de partículas em suspensão em meio líquido ou a imobilização e adesão de parte das partículas na superfície plástica, que ocorrem durante o processo de síntese. Os extratos dos frutos da mangabeira foram obtidos a partir da casca, da polpa e da semente, separadamente. “As nanopartículas obtidas do sal de prata juntamente com

2

72  z  setembro DE 2014

nucleação

seus respectivos extratos estão na fase final de caracterização e alguns ensaios biológicos já foram realizados”, relata Luciane. A próxima etapa será a utilização de tubos plásticos que dão origem às garrafas, chamados preformas PET, para imobilização e adesão das nanopartículas. compostos bioativos

Além de plantas do cerrado, várias espécies de macrofungos (cogumelos) também estão sendo estudadas pelo grupo. “Os cogumelos são fontes de compostos bioativos que apresentam diversas atividades biológicas, como ação antitumoral, antiviral, antimicrobiana, anti-inflamatória, antioxidante, entre outras”, diz a pesquisadora Vera Lúcia Perussi Polez, que trabalha com espécies provenientes do Banco de Cogumelos da Embrapa Cenargen. “Por isso decidimos utilizar esse material como fonte tanto para reduzir os metais quanto para estabilizar as nanopartículas.” A fonte biológica para a síntese de nanopartículas de prata pode ser tanto o corpo frutífero, o chamado chapéu, como o micélio, que é a fase vegetativa do fungo. A escolha da pesquisadora recaiu sobre o micélio, porque, na sua avaliação, ele apresenta vantagens em relação ao corpo frutífero, como o crescimento mais


crescimento das nanopartículas

atividade biológica

Temperatura

Nutrientes

pH

imagem  arquivo pessoal vera lúcia perussi polez  infográfico  ana paula campos IlustraçãO alexandre affonso

Nanopartícula com propriedades

Outros íons metálicos são

Parte das moléculas do extrato

biorreduzidos e novos átomos

vegetal adere à superfície das

de prata metálica agregam-se ao núcleo

nanopartículas, o que lhes confere

da nanopartícula formada, etapa que

características como atividade

pode ser controlada por temperatura,

antibacteriana, antifúngica,

pH e concentração dos reagentes

antiviral ou antioxidante

rápido. “Além disso, a produção dos componentes químicos presentes no micélio é mais homogênea, porque trabalhamos em condições controladas no meio de cultivo líquido, como nutrientes, pH, temperatura, oxigenação, entre outras. Com isso conseguimos manter a reprodutibilidade desse material biológico”, diz. A quantidade de compostos químicos presentes nesses organismos depende de fatores como a espécie e seleção de linhagens, a fase de desenvolvimento – corpo frutífero ou micélio – e o tipo de substrato utilizado. A pesquisa para obtenção de nanopartículas dos cogumelos começou há dois anos. “Fizemos um desenho experimental de maneira a manter o material biológico reprodutível na forma mais homogênea possível”, relata Vera. Após aperfeiçoar as condições de crescimento dos micélios, de síntese de nanopartículas e suas caracterizações físicas, químicas e estruturais, a pesquisa entrará agora na fase de caracterização das atividades biológicas das nanopartículas. O cuidado se explica pelo grande potencial de aplicação farmacêutica, medicinal, agrícola e industrial dos compostos presentes nos cogumelos. Entre os compostos bioativos estão as beta-glucanas, carboidratos complexos com propriedades imunorreguladoras e

Até o substrato utilizado interfere na quantidade de compostos químicos presentes nos cogumelos antitumorais, as lectinas, proteínas com propriedades antitumorais e de imunorregulação, os triterpenos, substâncias com ação anti-hipertensiva, antiviral, antitumoral e antialergênica, os fenólicos, compostos com atividade antiplaquetária, antioxidante e anti-inflamatória, além de outros com ação antimicrobiana. Além de pesquisadores da Embrapa e alunos de iniciação científica, mestrado e doutorado, o grupo conta com a colaboração de pesquisadores de outras institui-

ções, como o professor Elmo Salomão Alves, do Departamento de Física da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “É o grupo liderado pelo professor Elmo que desenvolve as superfícies contendo grafenos [forma cristalina do carbono], nas quais são incorporadas as moléculas de reconhecimento, como anticorpos e ligantes de receptores, e depositadas nas nanopartículas de prata para a produção de nanobiossensores”, diz Luciano Silva. Outros parceiros nas pesquisas são os professores Eduardo Fernandes Barbosa, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), especialista em enzimologia, e Alexsandro Galdino, da Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ), especialista em genética molecular de microrganismos. “Estamos trabalhando no desenvolvimento de superfícies nanoestruturadas para a imobilização de enzimas que podem ser aplicadas na indústria para a obtenção de hidrolisados alimentícios a partir de macromoléculas como proteínas e carboidratos, processo chamado de catálise enzimática”, diz Luciano Silva. Segundo ele, essas enzimas não são ainda aplicadas em larga escala em função do alto custo operacional para a sua utilização. “Com o processo de imobilização, esse custo ficaria bem menor”, explica. Um outro modelo de síntese biológica que tem sido testado com bons resultados são as partículas poliméricas estruturadas a partir da quitosana, substância encontrada na carapaça de crustáceos, para o transporte tanto de macromoléculas como de metabólitos secundários visando aplicações na biomedicina e na agropecuária. “Uma das moléculas que transportamos nesse sistema polimérico é a melitina, aminoácido extraído do veneno de abelha, com atividade antibacteriana, antifúngica e anticancerígena”, diz Luciano Silva. No modelo testado pela aluna de doutorado Kelliane Almeida de Medeiros, foram investigados in vitro os efeitos de partículas poliméricas contendo melitina sobre células tumorais de câncer de mama. Atualmente estão sendo realizados os primeiros testes em camundongos com resultados promissores. n

Artigo científico Bonatto, C. C., Silva; L. P. Higher temperatures speed up the growth and control the size and optoelectrical properties of silver nanoparticles greenly synthesized by cashew nutshells. Industrial Crops and Products. v. 58, p. 46-54. jul. 2014.

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humanidades   economia agrícolay

Mundo rural em transição Especialistas analisam, em livro, estratégias tecnológicas e econômicas no campo que sejam não só produtivas, mas também proporcionem a inclusão do pequeno produtor Domingos Zaparolli

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E

Sergio Amaral / olhar imagem

m pouco mais de três décadas o Brasil passou de importador de alimentos a um dos principais atores globais do agronegócio. Essa transformação gerou prosperidade ao campo, mas as oportunidades são percebidas e aproveitadas de forma bastante desigual entre os diferentes participantes da economia rural. Para os analistas do setor, desenvolver estratégias tecnológicas e econômicas que, por um lado, garantam o avanço da produção e, por outro, proporcionem a inclusão de um maior número de trabalhadores e pequenos produtores nos benefícios gerados por essa expansão é um dos principais desafios postos aos formuladores de políticas públicas. O livro O mundo rural no Brasil do século 21 – edição conjunta da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – não tem o propósito de oferecer um receituário de como lidar com essas questões. Mas apresenta análises técnicas que podem contribuir para a construção de políticas adequadas. A obra recém-lançada é editada pelos professores Antônio Márcio Buainain e José Maria da Silveira (do Instituto de Economia da Unicamp) e pelos pesquisadores Eliseu Alves e Zander Navarro (ambos da Embrapa), tem 1.182 páginas, é dividida em 37 capítulos e conta com artigos escritos por

51 cientistas sociais ligados a mais de 20 instituições públicas e privadas. A proposta dos quatro editores se apresenta resumida na primeira frase da introdução: “Entender os tempos!”. Como observa Zander Navarro, essa tarefa básica das ciências sociais tem sido dificultada por uma visão estreita do que deve ser o debate acadêmico, hoje dominado por correntes de pesquisadores que se isolam em comunidades fechadas em torno de ideologias classificadas de esquerda ou de direita. O livro se propõe a quebrar esse paradigma. “Reunimos pesquisadores com víeses ideológicos distintos. O objetivo foi estabelecer um debate plural”, diz. O mundo rural no Brasil do século 21 é organizado em torno do debate de questões apresentadas pelos quatro editores no artigo “Sete teses sobre o mundo rural brasileiro” publicado em maio de 2013 na Revista de Política Agrícola. São apresentados dois fatores condicionantes para entender a nova realidade do campo. A estrutura financeira que passou a reger a atividade desde os anos 1990 e a inovação como o principal desafio. E cinco fatores decorrentes. O aprofundamento da diferença social no campo; o espaço do pequeno produtor; o esvaziamento do campo e sua mecanização, processo batizado pelos autores de “via argentina”; a contemporaneidade da proposta de reforma agrária; e o papel do Estado no desenvolvimento das regiões rurais. Irrigação de plantação de soja em Luziânia, Goiás: apenas em 2013, o Brasil contabilizou US$30,96 bilhões com grãos, farelos e óleos

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Década de 1960

Propulsores do sucesso

Década de 1970 até início da década de 1990

◆ Produção de soja alcança a mesma importância da produção de trigo no Sul do país

◆ Criação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa)

◆ Criação de suínos e aves cria demanda por farelo de soja

◆ Criação do Programa Nacional do Álcool (Proálcool)

◆ Criação da Embrapa Soja

Fatos relevantes no desenvolvimento agrário brasileiro

1 Fonte José Eustáquio Ribeiro Vieira Filho, “Transformação histórica e padrões tecnológicos da agricultura brasileira”, in: O mundo rural no Brasil do século 21 (Embrapa/Unicamp)

◆ Criação do Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR) 2

No artigo “Alguns condicionantes do novo padrão de acumulação da agricultura brasileira”, Antônio Buainain argumenta que hoje nenhum produtor, independentemente de tamanho, localização e especialização, está imune a uma combinação de fatores de produção e elementos institucionais. Há um conjunto cada vez maior de regras, formais e informais, que determina padrões de comércio, de segurança alimentar, ou que dispõe sobre o uso sustentável dos recursos naturais, como é o caso do novo Código Florestal. Há também uma evolução dos padrões de exigência dos consumidores e uma oferta globalizada de produtos. Todos esses fatores geram a necessidade de modernizar a produção, o que implica investimentos e custos, com a compra de mais e melhores insumos, como fertilizantes e sementes de última geração, a aquisição de máquinas agrícolas e ferramentas de tecnologia da informação. Em decorrência, há um novo padrão de exigência econômico-financeiro para viabilizar a produção e, portanto, maior vulnerabilidade, tanto em relação ao risco climático quanto às flutuações do mercado, em que os preços, principalmente das commodities, são cada vez mais ditados por eventos globais, pondo à prova a capacidade de gestão do produtor.

A

posse da terra, historicamente a principal fonte de geração de riqueza no campo, e a quantidade de trabalhadores empregados na atividade perdem importância comparativa como fatores de sucesso da atividade rural. Entre 2000 e 2012, a quantidade de terras e de mão de obra utilizada pela agricultura caiu 9,7% e 9%, respectivamente, enquanto a produtividade do trabalho, da terra e do capital cresceu ao ano, respectivamente, 5,4%, 4,94% e 3,13%, em decorrência principalmente do uso mais intensivo de

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fertilizantes, máquinas e equipamentos e, em certas áreas, de irrigação. A terra cedeu o lugar para o capital, em todas as suas modalidades, como centro do desenvolvimento agrícola e agrário. As análises no livro sobre os impactos dessa nova ordem do mundo rural apontadas por Buainain são muitas. O futuro da questão agrária não é o menos polêmico delas. Duas visões opostas são apresentadas. O professor da Unicamp Pedro Ramos, em “Uma história sem fim – a persistência da questão agrária no Brasil contemporâneo”, reafirma a necessidade da realização da reforma agrária como política social e econômica. A reforma, argumenta, permitiria uma maior igualdade econômica e social, uma redução dos conflitos fundiários, evitaria a excessiva migração para as cidades, que entre 1960 e 2000 atingiu 50 milhões de pessoas, e também apoiaria a ampliação da produção. Zander Navarro escreve em “Por que não houve (e nunca haverá) reforma agrária no Brasil?” que a reforma agrária propriamente dita, ou seja, a transferência compulsória dos direitos de propriedade da terra de privados para produtores sem-terra é um ato difícil de ser operado em uma sociedade democrática. Entre 1994 e 2012, afirma, 1,26 milhão de famílias foram assentadas, mas em terras públicas, adquiridas pela União, constituindo assim uma iniciativa governamental de colonização, não de reforma agrária. Essa política arrecadou uma área de 87,8 milhões de hectares, volume maior do que toda a área plantada no Brasil fora do programa, e os resultados obtidos são insuficientemente conhecidos, uma vez que pouco estudados. Por outro lado, a demanda social por terra diminui pela atração da vida urbana. Nos últimos tempos, houve uma redução do uso patrimonialista da terra e uma revolução


Década de 1990 até 2014

◆ Pesquisas para adaptar mudas e sementes ao clima mais seco e quente do cerrado, permitindo a expansão agrícola rumo ao Centro-Oeste

◆ Massificação do plantio direto

◆ Promoção do manejo integrado de pragas

◆ Criação de programas de financiamento e investimento, como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e o Programa de Modernização da Frota de Tratores, Implementos e Colheitadeiras (Moderfrota)

◆ Desenvolvimento da Embrapa permite a inoculação de bactérias na soja, reduzindo a necessidade de fertilizantes e aumentando a produtividade ◆ Mecanização da produção no Centro-Oeste

◆ Em 1995, Medida Provisória de Biossegurança, promulgada e atualizada em 2005

econômico-produtiva que gerou no campo uma realidade distinta da que motivou a pressão social pela reforma agrária em décadas passadas. Para o autor, a reforma agrária é um tema do passado.

fotos 1 Wikimedia Commons 2 Estadão Conteúdo/ae  3 eduardo cesar  4 JONNE RORIZ / ESTADãO CONTEúDO/AE

transgênico

◆ Transformação institucional da economia brasileira, abertura de mercado e estabilização monetária (Plano Real)

◆ Marco regulatório da propriedade intelectual

À

Feijão-carioca

medida que cresce a importância da tecnologia e dos vários tipos de capital, incluindo o capital humano, se reduz a contribuição da mão de obra barata e abundante como fator de produtividade e competitividade, comprometendo a viabilidade, e talvez a sobrevivência, de um grande número de pequenos produtores rurais. Segundo o Censo Agropecuário de 2006, 9,5% dos estabelecimentos rurais geraram mais de 86% da produção daquele ano e, acredita-se, a concentração aumentou desde então. Steven Helfamd (Universidade da Califórnia-Riverside), Vanessa da Fonseca Pereira (Embrapa) e Wagner Lopes Soares (IBGE) argumentam no artigo “Pequenos e médios produtores na agricultura brasileira – situação atual e perspectiva” que muitos dos obstáculos que os pequenos produtores enfrentam podem ser mitigados por meio de ações coletivas e do desenvolvimento de instituições apropriadas que os apoiem no acesso à tecnologia e aos mercados de insumos e produtos, como já ocorre no Brasil no caso dos produtores de aves e suínos. Para eles, a produtividade, e não o tamanho da propriedade, é que determinará a sobrevivência dos produtores. Há programas públicos voltados a gerar produtividade aos estabelecimentos de menor porte. O mais emblemático deles provavelmente é o Programa Na4 cional de Fortalecimento da Agricultura

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◆ Legalização de cultivares geneticamente modificados de soja, milho e algodão ◆ Crescimento econômico global a partir de 2002, demandando maior consumo de alimentos ◆ Expansão da fronteira agrícola em direção à região do Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) ◆ Adoção de práticas agrícolas de precisão

Familiar (Pronaf ), estabelecido nos anos 1990 e que atualmente gera desembolsos anuais na casa dos R$ 15 bilhões. As melhores intenções, porém, nem sempre geram resultados adequados. Em alguns casos podem até ser contraproducentes. O pesquisador da Unicamp Sergio Salles-Filho, coordenador adjunto de Programas Especiais da Diretoria Científica da FAPESP, enfatiza a necessidade de associar inovações não tecnológicas às inovações tecnológicas que são desenvolvidas para o pequeno produtor. “O que temos feito é facilitar o acesso do pequeno produtor à tecnologia de cultivares como soja, arroz, algodão e milho, sem que ele tenha acesso aos demais fatores que viabilizam a apropriação do valor potencial que uma nova tecnologia pode conter. De nada adianta

Família assentada realiza plantio em lavoura de agricultura familiar na fazenda Anoni, no Rio Grande do Sul: posse da terra vem perdendo importância

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melhorar as condições técnicas de produção para o pequeno produtor se ele está em mercados que necessariamente exigem escala”, diz Salles-Filho. “Nesses mercados, as exigências de escala jamais se resolverão com melhorias nas técnicas de produção, até porque os grandes produtores também promovem melhoras, levando para exigências ainda maiores de escala. No médio prazo a pequena produção nesses mercados é inviabilizada.”

P

Alf Ribeiro / olhar imagem

Gado nelore com identificação na orelha (em amarelo) em fazenda de Magda, interior de São Paulo: Brasil se tornou o maior exportador de carne

ara Salles-Filho, “o foco da inovação para pequenos produtores deve ser voltado para produtos especiais e deve vir acompanhado de inovações não tecnológicas, além das tecnológicas”. Para o pequeno produtor não basta adotar tecnologias, é preciso estabelecer estratégias comerciais que agreguem e fixem valor, como o estabelecimento da marca, a adoção de certificações de origem ou selos de sustentabilidade, por exemplo. “Sem esse tipo de inovação que complementa a tecnologia, quem se apropriará do valor da inovação não é o produtor, mas algum outro agente da cadeia comercial”, afirma. Salles-Filho e Adriana Bin, também pesquisadora da Unicamp, assinam o artigo “Reflexões sobre os rumos da pesquisa agrícola”. Eles destacam como as instituições públicas de pesquisa vêm medindo seus impactos econômicos e sociais de forma muito positiva. As instituições de pesquisa do estado de São Paulo teriam obtido, nos últimos

anos, retornos da ordem de 15 a 17 vezes sobre os recursos investidos. O balanço da Embrapa em 2012 confirma os benefícios, com um lucro social de R$ 17,7 bilhões, representando um retorno de R$ 7,8 para cada R$ 1 investido. Os autores dizem que é preciso ir além desse tipo de mensuração e começar a identificar duas medidas complementares: quem está se apropriando daqueles valores e se as organizações públicas de pesquisa estão tendo papel crescente ou decrescente no sistema de pesquisa e inovação agropecuária. É sabido que os agentes privados de pesquisa vêm ganhando terreno no mercado, pelo menos quando se trata do desenvolvimento de soluções voltadas aos grandes players do agronegócio, onde o potencial de retorno financeiro é maior. Essa situação tem provocado o questionamento do papel que devem assumir os centros públicos de pesquisa. Os autores apresentam exemplos de como diversas instituições no exterior estão lidando com o problema e uma agenda de discussões para as instituições brasileiras. “Nossa grande competência esteve e está no melhoramento genético. Entretanto, há hoje altos volumes de investimento protagonizados por grandes corporações e as instituições públicas enfrentam uma concorrência que antes não existia, não com a força de hoje.” A inovação tecnológica está na base do grande avanço agropecuário brasileiro nas últimas décadas. José Eustáquio Ribeiro Vieira Filho, do

78  z  setembro DE 2014


Expansão da capacidade produtiva Indicadores de produtividade rural no Brasil e no mundo leguminosas

carne de frango

kg/animal

0,1 g /animal

n Brasil  n Mundo

15,5 mil

21,9 mil

9,3 mil

231,5 213,6

66,7 65,8

84,0 75,8

96,3 78,3

2012

182,9 208,5

1990

1961

1990

2012

1961

1990

2012

191,7

1961

160,1

2012

492,6 632,9

1990

293,3 407,3

3,7 mil

13,4 mil

23,1 mil

carne de porco

kg/animal

14,6 mil

14 mil

16,4 mil 11,2 mil

8,5 mil

12,9 mil

1961

178,2 226,7 2012

7,1 mil

12,3 mil 1990

4,5 mil 3,6 mil

2,7 mil

1,7 mil

1,3 mil

1,3 mil

1961

carne de boi

kg/ha

kg/ha

10 mil 11,4 mil

kg/ha

13 mil

Óleos vegetais

frutas

kg/ha

19,3 mil

cereais

1961

1990

2012

1961

1990

2012

Fonte José Eustáquio Ribeiro Vieira Filho com dados da FAO (2014), “Transformação histórica e padrões tecnológicos da agricultura brasileira”, in: O mundo rural no Brasil do século 21 (Embrapa / Unicamp)

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), escreveu em seu artigo “Transformação histórica e padrões tecnológicos brasileiros” que, a partir do fim da década de 1970, a produtividade da agropecuária brasileira passou a evoluir de forma mais intensa do que a média mundial e essa evolução se tornou ainda mais evidente a partir dos anos 1990 (ver infográfico nas páginas 76 e 77).

E

m um hectare de terra, o Brasil produzia 14 mil quilos de leguminosas em 1990 e passou a produzir 23,1 mil quilos em 2012. Na média mundial o avanço no mesmo período foi de 14,6 mil quilos por hectare para 19,3 mil quilos. E essa média mundial seria ainda menor, se retirada a produção brasileira do cálculo. Em carne de boi, a produção por animal no Brasil passou de 182,9 quilos para 231,5 quilos de 1990 a 2012. Na média global, a evolução foi mais modesta, de 208,5 para 213,6 quilos. O resultado é que a colheita de grãos no Brasil foi de 58 milhões de toneladas em 1990 para 187 milhões em 2013. Apenas em soja, o Brasil exportou 42,8 milhões de toneladas no ano passado e somando os embarques de grãos, farelos e óleos, o chamado complexo soja, o país contabilizou US$ 30,96 bilhões em receitas com exportações. A produção de carne de boi mais que dobrou entre 1990 e 2013, indo de 4,1 milhões de toneladas para 9,3 milhões, e o país se tornou o maior exportador global. No total, o saldo da balança comercial agrícola multiplicou-se por sete, indo de US$ 7 bilhões em 1990 para US$ 85 bilhões em 2013. Olhando para o futuro, José Maria da Silveira diz que são vários os desafios postos no que se refere ao desenvolvimento tecnológico. Na agen-

da global dos pesquisadores estão temas como novos alimentos funcionais, transgênicos funcionais, biofertilizantes, bioinseticidas, técnicas de agricultura de precisão, capazes de reduzir a pulverização de poluentes e o impacto ambiental dos cultivos. São fatores, segundo Silveira, que determinarão os novos campeões mundiais da produção de alimentos. “O Brasil precisa se integrar cada vez mais às cadeias globais de pesquisa e de produção, se quiser se manter entre os líderes da produção rural”, diz. Segundo o Ministério do Meio Ambiente, o Brasil possui 140 milhões de hectares – área equivalente a duas Franças – em terras degradadas que podem ser aproveitadas para o cultivo agrícola. Possui também um clima que permite duas safras anuais. Sem derrubar florestas, apenas utilizando tecnologia, o país tem potencial para se posicionar como o maior fornecedor mundial de alimentos e bioenergia, superando os Estados Unidos. A concretização desse potencial em realidade não está garantida. “Dependerá da capacidade da sociedade brasileira e dos gestores públicos e privados compreenderem os fatores que levaram ao sucesso recente e interpretar corretamente os novos desafios econômicos, tecnológicos e sociais”, diz Antônio Buainain. Nem sempre isso ocorre. “Há oito anos revolucionaríamos o mercado energético mundial. Seríamos a Arábia Saudita do etanol. Hoje a produção está em crise”, diz. O mundo rural no Brasil do século 21, ao apresentar diferentes interpretações sobre os acertos e erros da recente expansão agropecuária brasileira, pode ser um bom ponto de partida para os interessados na superação dos desafios apontados por Buainain. n pESQUISA FAPESP 223  z  79


Suassuna na janela de sua casa em Recife (1996): projeto ambicioso


Literatura y

Um Brasil imaginado Ariano Suassuna forjou uma ficção de matriz popular com alta densidade estética

A

a mbição de criar um projeto estético sobre a cultura brasileira e o diálogo frequente entre o erudito e o popular marcaram a vida de Ariano Suassuna, segundo definição de pesquisadores que estudam sua obra. O advogado, dramaturgo, poeta, artista gráfico, professor universitário e, em três ocasiões, secretário de Educação e Cultura, morto em julho, teve uma trajetória em seus 87 anos de vida que bem poderia compor uma de suas criações literárias. Tal como ocorre com todo grande escritor, é possível identificar a influência de outros criadores na obra de Suassuna, assinala Carlos Newton Júnior, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e autor de O pai, o exílio e o reino: a poesia armorial de Ariano Suassuna (Editora UFPE, 1999) e Ariano Suassuna 80, memória: catálogo e guia de fontes (Editora Sarau, 2008).

“Ariano mencionou, inúmeras vezes, as influências recebidas de autores brasileiros, como José de Alencar e Euclides da Cunha, e de estrangeiros, como Cervantes, Molière, Goldoni, Lorca, entre muitos outros”, diz. Segundo Newton, o dramaturgo reprocessou suas referências com uma abordagem poética a um só tempo particular e afeita a um projeto estético mais ambicioso, reelaborando, a médio e longo prazo, a própria ideia acerca da cultura brasileira. E sustenta, para tanto, uma poética original, que buscava condensar as propostas do erudito e do popular. Para Newton Júnior, é nesse contexto que pode ser entendida a proposta do Movimento Armorial. Iniciado por Ariano Suassuna no início da década de 1970, tinha como traço comum a ligação da literatura de cordel com a música de viola, rabeca e pífano, e com a xilogravura que ilustrava os folhetos do romanceiro popular do Nordeste – os destaques pESQUISA FAPESP 223  z  81

Bel Pedrosa / Folhapress

Fabio Silvestre Cardoso


1

das páginas 82 e 84 desta reportagem estão compostos com a fonte armorial, parte de um projeto gráfico desenvolvido pelo próprio Suassuna, cuja referência foram os seculares ferros de marcar boi usados no Brasil. O Movimento Armorial é consequência do “diálogo existente da criação popular com a poética original dos cantadores e com os folhetos de cordel”, diz Idelette Muzart Fonseca dos Santos, pesquisadora francesa que leciona na Université Paris Ouest Nanterre La Défense. “Desse diálogo nasce uma obra poética, teatral e romanesca, que alimenta por sua vez uma reflexão teórica sobre estética”, afirma. Casada com um brasileiro, Idelette leu o Romance d’a pedra do reino em 1971, na França, e se propôs fazer uma dissertação de mestrado a respeito. Le roman de chevalerie et son interprétation par un écrivain brésilien contemporain: o Romance d’a pedra do reino, de Ariano Suassuna, foi defendida em 1974. Segundo ela, o livro tem elementos estruturais e temáticos da novela de cavalaria, inclusive as referências múltiplas à História de Carlos Magno e os doze pares de França. “Escrevi a Ariano e trocamos longas cartas 82  z  setembro DE 2014

A poética armorial influenciou artistas plásticos, músicos, escritores e também pensadores da cultura

sobre literatura medieval em geral, que ele conhecia muito bem. Só depois de iniciada minha tese de doutoramento é que conheci o Brasil e Ariano pessoalmente”, conta ela. Autora de Em demanda da poética popular: Ariano Suassuna e o Movimento Armorial (Editora da Unicamp, 2009), Idelette lembra que nos anos 1950, quando Ariano construiu sua estética, “havia uma enorme esperança no Brasil”. É ainda a partir desse diálogo inicial que, nos anos 1970, a voz do dramaturgo redundaria no movimento, quando a união entre os universos erudito e popular determinou o tom da poética armorial. Arte e diálogo

Para Newton Júnior, a poética armorial pode ser entendida como “a procura de uma arte erudita brasileira a partir da cultura popular, da arte rupestre e do diálogo com as artes dos países do Terceiro Mundo”. Ele ressalva que a poética do movimento esteve longe de ser consenso. “Em arte, unanimidade é algo que não existe. Mas a maior parte da crítica que de fato estudou o Movimento Armorial reconhece a qualidade de muitas obras realizadas pelos artistas armo-


3

1 Ariano, sua mulher, Zélia, e o filho Dantas posam para foto com tapeçaria em Recife (1991) 2 Cena do ensaio de A pedra do reino e teatralização de Antunes Filho, em São Paulo (2006)

fotos 1 bel pedrosa / folhapress 2 Karime Xavier / Folhapress  3 ARQUIVO / Agência Estado / ae

2

riais.” A poética armorial proposta por Ariano Suassuna influenciou não somente artistas plásticos, músicos, escritores e realizadores, como também acadêmicos e pensadores da cultura brasileira. Isso pode ser destacado da própria atuação de Suassuna como professor da UFPE. A partir de meados da década de 1950, logo depois de largar a advocacia, o escritor dedicou-se por 30 anos à carreira acadêmica, tornando-se professor de estética. Uma vez na universidade, ele se notabilizou por ministrar aulas-espetáculo. Era nesses encontros que a assinatura de Suassuna como intelectual público se ajustava à disposição de falar ao homem comum. Antônio Nóbrega, um dos herdeiros da poética armorial defendida pelo dramaturgo, diz que o carisma de Suassuna como contador de histórias parecia, às vezes, ocultar uma compreensão mais profunda do seu projeto estético. “O carisma de Ariano como contador de histórias – homem de prodigiosa memória – me parece às vezes ofuscar o intelectual e pensador extremamente preocupado com as grandes questões gerais do mundo atual e com as questões brasileiras particulares”, diz o artista

3 Representação da peça Auto da Compadecida, no Rio (1957)

pernambucano, que escreve, atua, dirige, compõe, canta e toca. Ao resgatar as primeiras memórias sobre o surgimento do Armorial ainda na década de 1970, Nóbrega – criador do Espaço Brincante, em São Paulo, onde leva adiante os pressupostos estéticos forjados por Suassuna – observa que as reações foram sobretudo extremadas. “Havia quem abraçasse de modo irrestrito aquelas ideias e os que as negavam radicalmente”, conta. Assassinato do pai

A vida do escritor não está, obviamente, desvinculada de sua obra. “Quem teve a oportunidade de assistir a alguma das aulas-espetáculo muito provavelmente escutou o dramaturgo falar a respeito de seu pai, João Suassuna, assassinado em 1930, quando Ariano tinha apenas três anos de idade”, diz Eduardo Dimitrov, autor de O Brasil dos espertos – uma análise da construção social de Ariano Suassuna (Alameda/FAPESP, 2009). Para Dimitrov, que foi orientado em sua pesquisa na Universidade de São Paulo (USP) por Lilia Moritz Schwarcz, é possível atribuir novos sentidos aos textos do autor de Auto da Compadecida quando se conhece sua biografia.

Decorrente das disputas políticas pelo controle do estado da Paraíba, a morte de João Suassuna, num contexto de vinganças sistemáticas, marcou profundamente as opções estéticas de Suassuna. “Em determinado momento, houve uma cisão no interior da oligarquia Pessoa durante o governo de João Suassuna, que foi acirrada no governo de seu sucessor, João Pessoa”, conta Dimitrov. “No momento mais tenso da disputa, João Dantas, um parente de Ariano, assassinou João Pessoa, que foi o estopim para a Revolução de 1930. Como revide, os aliados de João Pessoa mataram o assassino e também João Suassuna.” Rita de Cássia, mulher de João, residia com os oito filhos em Paulista, cidade próxima de Recife. Três anos depois da morte de João Suassuna a família foi para Taperoá, no sertão paraibano. Em 1942, a família passou a viver em Recife. Lá, Ariano estudou direito na UFPE e fundou com Hermilo Barbosa Filho o Teatro do Estudante de Pernambuco, em 1946. O episódio do assassinato do pai teve grande impacto na obra de Suassuna, diz Dimitrov. “A forma que Ariano encontrou de manter o pai vivo, se não de vingá-lo, foi escrevendo seu teatro e oupESQUISA FAPESP 223  z  83


Antônio Nóbrega durante apresentação: compreensão mais equilibrada da obra de Suassuna

Dudu Schnaider

tras obras literárias nas quais há inúmeras referências a um universo sertanejo que, discursivamente, ele associa como elemento identitário de sua parentela”, destaca o pesquisador. O universo ficcional do autor, nesse contexto, obedece a uma dinâmica criativa de natureza biográfica. “A forma como Ariano narra a disputa política segue o mesmo princípio estruturador de suas peças. É nesse sentido que a narrativa biográfica e a narrativa ficcional se confundem”, observa o pesquisador. A m a n e i ra c o m o Ariano Suassuna pensava o Brasil está presente, ainda, no modo como suas narrativas demonstravam a representação do embate entre o Brasil real e o Brasil oficial. “O Brasil oficial seria aquele das elites, já o real, o do povo. Ariano reconhecia sua condição de oriundo do Brasil oficial, pertencente a uma elite; no entanto, argumentava que tinha extrema sensibilidade para o Brasil real e que buscava compreender o ponto de vista do povo.” Essa compreensão está esboçada nas tramas do escritor, cujas comédias se organizavam em torno do povo do Brasil real. “Em Auto da Compadecida, peça escrita em 1955, por exemplo, todos os personagens giram em torno das ações de João Grilo e Chicó. São os dois protagonistas pobres que ditam as regras do jogo. O padre, o bispo, o padeiro e sua mulher, o coronel, o cangaceiro e até mesmo o demônio, o Cristo e a Compadecida são envolvidos nas artimanhas do personagem sertanejo pobre e esperto”, explica. De acordo com essa dinâmica, diz o pesquisador, esse Brasil dos espertos – ou seja, dos pobres que sobrevivem apesar das dificuldades – suplanta o Brasil oficial, dos poderosos. Para além da literatura e da dramaturgia, nota-se a presença de Ariano como um pensador sensível dos mecanismos internos que constituem os traços nem sempre visíveis da identidade nacional. Dessa forma, se, por um lado, existe um

Há ainda aspectos poucos citados da obra de Ariano Suassuna, como seus poemas

84  z  setembro DE 2014

autor que, como secretário municipal de Educação e Cultura de Recife (19751978) e estadual de Cultura de Pernambuco (1994-1998 e 2007-2010), esforçou-se para mostrar que a cultura do país é muito mais forte, rica e original do que comumente se imagina, como observa Carlos Newton Júnior, por outro lado, nota-se o formulador de manifestações genuinamente brasileiras, com vistas a proteger a cultura nacional da indústria cultural e urbana. Ciente da importância de Ariano Suassuna para o seu trabalho como artista, Antônio Nóbrega também observa que a percepção do escritor pernambucano como um defensor ferrenho da cultura brasileira pode, em certa medida, prejudicar o entendimento do que ele tinha a dizer sobre essa própria cultura. “A visão que se tem de Ariano como um radical da cultura brasileira acho que emperra a compreensão mais equilibrada do seu legado.” Sobre isso, Newton Júnior diz que existem aspectos ainda pouco citados da obra do autor de Romance d’a pedra do reino, publicado originalmente em 1971. “A poesia é um deles; outro, ainda menos conhecido, é o trabalho de Ariano no campo das artes plásticas. A

obra de Ariano nos campos do teatro e do romance causou um sombreamento sobre sua poesia”, diz o professor, que também é poeta e organizador da reunião dos poemas de Suassuna em livro (Poemas, Editora UFPE, 1999, esgotado). Ao observar os trabalhos de Ariano Suassuna, com peças de teatro (Uma mulher vestida de sol, de 1947; A pena e a lei, de 1959; A farsa da boa preguiça, de 1960), romances (A história do amor de Fernando e Isaura, de 1956; História do rei degolado nas caatingas do sertão, de 1977), poemas (Ode, de 1955; Sonetos com mote alheio, de 1980), ensaios e ações públicas em defesa da cultura brasileira, nota-se, segundo seus estudiosos, que, para além de criador, ele buscava forjar no imaginário do público um Brasil ideal, onde as vicissitudes das diferenças sociais eram dirimidas graças à fabulação e ao ardil do povo do Brasil real. Em certa medida, pode-se assinalar que essa estratégia representa uma metáfora de um pensador da cultura brasileira preocupado com o esvaziamento da cultura nacional – para evitar esse colapso, forjou uma ficção de matriz popular, mas com alta densidade estética e representativa do povo brasileiro. n


obituário y

Intelectual público O versátil Nicolau Sevcenko foi um dos mais conhecidos historiadores brasileiros

RENATA CAFARDO / AE

Em sala de aula: rara capacidade de atrair a rapaziada com sua visão ampla de história

N

icolau Sevcenko adorava a Alice do livro de Lewis Carroll e a chamava de “nossa heroína e inspiradora”. “Onde quer que ela detecte alguma situação de prepotência ou desrespeito, imediatamente reage e encara o ser truculento de igual para igual, sem medo e sem dobrar a espinha”, ele disse, ao comentar uma reedição de Alice no país das maravilhas que ele próprio traduzira. “Alice ainda é e sempre será a melhor lição de ética, de irreverência e de inconformismo, tanto para crianças quanto para adultos.” Sevcenko, que morreu em 13 de agosto aos 61 anos em sua casa em São Paulo, era irreverente e inconformado como Alice. Sem deixar de lado sua carreira acadêmica – foi professor do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Harvard, nos Estados Unidos –, ele ousava, buscava relações entre assuntos e áreas aparentemente distantes, ajudava a entender o mundo em sua coluna semanal na revista Carta Capital e sempre que possível falava com jovens estudantes de todas as áreas. Um dos mais conhecidos historiadores brasileiros, Sevcenko foi um intelectual público, como o chamou uma jornalista de Harvard. “Nas humanidades da USP nos anos 1990”, recordou,

em seu blog, Flávio Moura, jornalista e doutor em sociologia pela USP, Sevcenko “era um superstar”: “Alunos não matriculados oficialmente nos seus cursos se amontoavam para ver o professor falar. Ele foi pioneiro numa forma radical de interdisciplinaridade. É uma das maiores referências em Euclides da Cunha e Lima Barreto sem ser da área de literatura. É autor de insights luminosos sobre a experiência nas grandes cidades sem ser urbanista”. Ele se dispunha a estudar – e a pensar – áreas diversas como literatura, cinema, ciência, medicina, arquitetura, arte, problemas contemporâneos e outros temas que cabiam sob a rubrica de história cultural. Sevcenko nasceu em Santos, litoral paulista, e veio ainda pequeno com a família, de origem ucraniana, para São Paulo. Para sobreviver, foi coletor de metais para reciclagem e office boy. Terminou o curso de história na USP em 1975, enveredou pelo estudo da cultura brasileira, fez um pós-doutorado na Universidade de Londres e lecionou na USP de 1985 a 2012, quando se aposentou. Desde 2010 ele era professor de línguas e literaturas românicas em Harvard, onde esteve pela primeira vez em 2004 como professor visitante. Ali, para estudantes norte-americanos e latinos, ele não falava só de literatura, mas também de bossa nova, Juscelino Kubitschek, Jango e Lina Bo Bardi – e em português. Como dar aulas não era o bastante para satisfazer sua inquietação intelectual, Sevcenko organizou, editou ou traduziu vários livros e artigos acadêmicos. Em 1999 ele ganhou o Prêmio Jabuti com o livro História da vida privada no Brasil. “Os livros de Nicolau vão ficar para sempre, são clássicos, todo estudioso da história cultural brasileira passou e passará por eles, sempre com encantamento”, escreveu Laura de Mello e Souza, professora de história da USP, na Folha de S. Paulo de 17 de agosto. O historiador que olhava para o passado não deixava de pensar as transformações do mundo atual. “É preciso tirar a tecnologia do plano estrito da economia e colocá-la também, de forma mais ampla”, ele sugeriu, “como um dos fundamentos de transformação no campo social”. n PESQUISA FAPESP 223 | 85


memória

1

Retratos na selva Primeiros registros fotográficos da Amazônia foram feitos por Albert Frisch em 1867 Neldson Marcolin

86 | setembro DE 2014

O

fascínio exercido pela exuberante natureza amazônica sempre a colocou na rota de exploradores e naturalistas de todas nacionalidades. Na década de 1860, os desenhos, gravuras e pinturas sobre a região começaram a ser substituídos gradualmente pela fotografia, desenvolvida nas três primeiras décadas do século XIX por múltiplos inventores. As primeiras imagens fotográficas de indígenas da Amazônia foram feitas em 1867 pelo fotógrafo alemão Christoph Albert Frisch como enviado da Casa Leuzinger, do Rio de Janeiro. O proprietário, o suíço George Leuzinger – um dos primeiros a produzir, editar e vender fotos no Brasil –, tinha por objetivo comercializá-las aqui e no exterior. Há relatos sobre a visita de outros fotógrafos à região antes de Albert Frisch (1840-1918). O norte-americano Charles DeForest andou por lá em 1843 e teria feito alguns daguerreótipos, nunca encontrados. Walter Hunnewell tirou fotos antropométricas de mestiços, entre 1865 e 1866, a pedido do zoólogo e geólogo suíço Louis Agassiz. Já Frisch parece ter seguido um roteiro claro para documentar a Amazônia. Ele partiu de Manaus até Letícia,

Índios Ticuna na cozinha da maloca: vestuário do que está à direita mostra a descaracterização sofrida


fotos Setor de Iconografia da Biblioteca Nacional

na Colômbia, fronteira com o Brasil, provavelmente em um navio a vapor. De lá, desceu o rio Solimões em um barco com remadores até o encontro com o rio Negro. Durante o percurso de 1.100 quilômetros, parava para fotografar em localidades como Tabatinga, São Paulo de Olivença, Tefé e Manaus. O alemão usava a técnica de colódio úmido, uma mistura de éter, álcool e nitrato de celulose que aderia à chapa de vidro (o suporte do negativo), na qual, por sua vez, os sais de prata fotossensíveis grudavam. A vida de fotógrafo naquelas paragens era difícil. A chapa precisava ser preparada com todos os produtos químicos no escuro e encaixada na câmera. Depois de feita a foto, o material tinha de ser revelado rapidamente, antes que o colódio secasse. Para tanto, Frisch improvisava um laboratório fechado no próprio barco ou em uma tenda escura. As imagens, porém, eram de excelente qualidade. Várias das fotos dos indígenas, todos aculturados, eram fundidas no momento de fazer as cópias, já no Rio de Janeiro, com outras imagens que mostravam apenas

2

Família Tapuia na porta de sua casa em uma rua de Manaus

Para conseguir nitidez na foto era preciso ficar imóvel. Os animais, como o jacaré abaixo, eram fotografados mortos

a natureza ao fundo, de modo a dar a ideia de que eles estavam sempre na selva. A população mestiça, a vida nas localidades, as plantas e os animais foram registrados em um cuidadoso ensaio de 98 fotos. Por muitos anos as fotos de Frisch foram vendidas no Brasil e na Europa e agradavam aos estudiosos de etnografia, biologia e botânica. Mas pouco se sabia sobre elas e seu autor. No final dos anos 1990, Mônica Carneiro Alves, bibliotecária da Biblioteca Nacional (BN), no Rio, encontrou no precioso acervo da instituição um folheto de 12 páginas em francês com a descrição detalhada das fotos de Frisch. “O objetivo da expedição fotográfica foi muito além de mostrar indígenas ou ribeirinhos. Há, por exemplo, 35 espécies vegetais mencionadas nas legendas de 33 fotos, a maioria acompanhada dos nomes

científicos”, diz Joaquim Marçal Ferreira de Andrade, pesquisador da BN e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio). Para ele, autor de um artigo sobre a descoberta publicado em 2007, apesar dos claros objetivos comerciais de George Leuzinger, Frisch seguiu a mesma linha exploratória dos naturalistas que estiveram na região. As principais informações sobre o fotógrafo, como a descoberta de seu primeiro nome e de suas andanças entre Rio, Paris, Munique, Berlim e Nova York, foram levantadas pelo pesquisador alemão Frank Stephan Kohl, do Instituto Ibero-Americano (IAI, na sigla em alemão), de Berlim. Ele publicou os textos originais em 2005 na revista Studium, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e em 2006 nos Cadernos de Fotografia Brasileira, do Instituto Moreira Salles. PESQUISA FAPESP 223 | 87


Arte

Quebra de silêncio Mira Schendel, figura única do modernismo brasileiro, ainda influencia a produção nacional e ganha exposição em São Paulo

Ana Weiss

N

1

Sem título, 1965, da série Monotipias. Óleo sobre papel de arroz (47,4 x 23 cm)

88 | setembro DE 2014

os seus 40 anos de trabalho, Mira Schendel nunca foi uma artista que atraía multidões. Até os anos 1990, quando começou a ganhar visibilidade, suas obras contemporâneas despertavam olhares curiosos nos redutos de intelectuais e dos críticos especializados, mas não chegavam a arrastar mais do que um público que gosta de artes plásticas para dentro das galerias. Em 1966, sua mostra na Galeria Buchholz, em Lisboa, foi ignorada pela população local, mesmo sendo aclamada pelo curador e crítico Fernando Peres, que, na época, lamentou o fato de a “exposição, de tão grave modernidade, não ter sido entendida”. O isolamento, em verdade, sempre foi característica biográfica e artística da suíça naturalizada brasileira, que nunca pertenceu a uma escola ou movimento, assim como Alfredo Volpi. Nada em seu percurso notável como artista chegou à escala da retrospectiva de sua obra que se pode ver agora na Pinacoteca de São Paulo, na capital paulista. Em cartaz até o dia 19 de outubro, a exposição é a maior retrospectiva internacional da obra de Mira Schendel (1919-1988). É ainda mais grandiosa do que a montagem original apresentada na Tate Modern, em Londres, no fim do ano passado, e no Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves, na cidade do Porto, em Portugal, no primeiro semestre do 2014. Na Pinacoteca, inclui-se um maior número de telas


IMagens 1 Acervo do Instituto Cultural Inhotim / Reprodução Eduardo Eckenfels  2 Mira Schendel Estate, São Paulo, Brasil / Reprodução Max Schendel

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e desenhos da década de 1950, bem como séries menos conhecidas dos anos 1960 como Bordados e Naturezas-mortas, além da série de desenhos com aplicação de folha de ouro denominados Papéis japoneses, realizados desde meados de 1970. Em São Paulo, também faz parte da mostra um número significativo de obras do acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP), doadas pelo crítico de arte e amigo da artista Theon Spanudis. Ao todo, a exposição reúne cerca de 300 trabalhos distribuídos em 11 salas, no primeiro e segundo andares do museu. Realizados entre os anos de 1953 e 1987, destacam-se as séries feitas em papel de arroz, como os desenhos conhecidos como Monotipias (1964-1966), as séries Droguinhas, os Trenzinhos e seus famosos Objetos gráficos, pelos quais recebeu reconhecimento em sua fase experimental. Apesar de ter iniciado sua trajetória artística com a pintura, Mira transita entre desenhos, esculturas e instalações. No catálogo da exposição, a curadora Taísa Palhares explica que a pausa em sua produção pictórica não deve ser entendida dentro dos discursos de superação da pintura. A artista a fez simplesmente por não colocar questões formais como o centro de sua criação, o que traz novas possibilidades para seu trabalho, em um gesto experimental que reverbera único na história recente da nossa arte. “Mira é irrepetível, não deixa herdeiros diretos e nem cria movimentos. Ela sempre fugiu de rótulos”, afirma. Ainda assim, influenciou uma geração de artistas nos anos 1980, como Nuno Ramos, Marco Giannotti, Paulo Monteiro e Paulo Pasta. Na área acadêmica, também é possível perceber o crescente interesse por sua obra, com

Sarrafo, 1987. Acrílica, têmpera e gesso sobre madeira (97 x 180 x 52 cm)

o doutorado do crítico Cauê Alves (A dimensão filosófica na obra de Mira Schendel, pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP) ou a pesquisa do pintor Geraldo Souza Dias (o livro Mira Schendel: do espiritual à corporiedade, da Cosac Naify), por exemplo. No exterior, ainda segundo Taísa, ela tem se tornado cada vez mais objeto de estudo. “Mas eu acho que ainda é muito pouco perto de sua importância”, afirma a curadora, doutora em filosofia também pela USP. Para ela, os motivos que dificultaram a visibilidade da obra, agora festejada pelos grandes museus por que passa, vão além do isolamento imposto por sua linguagem ou personalidade. Devem-se principalmente ao fato de que somente uma parcela muito pequena de obras encontra-se em coleções públicas. Segundo Tanya Barson, curadora da exposição na Tate Modern, que passou quase uma década pesquisando a obra de Mira Schendel, mais ou menos 90% do trabalho da artista pertence a colecionadores privados. “Acredito que a exposição ajude a abrir novos caminhos de pesquisa”, diz Taísa. Durante os 40 anos de produção, Mira teve grandes interlocutores como Mário Schenberg e Haroldo de Campos. Mário Pedrosa, Guy Brett, Vilém Flusser e Max Bense também escreveram sobre sua obra ainda em vida. Porém, com a distância do tempo, Taísa afirma que este é o melhor momento para avaliar a grandeza de sua obra. “Vendo em perspectiva, é incrível perceber como ela produziu um corpo tão vasto e ao mesmo tempo coerente de trabalhos”, diz. “Talvez os textos de crítica da época ainda não pudessem perceber essa dimensão, por motivos óbvios. O presente abre novas possibilidades de leitura.” n PESQUISA FAPESP 223 | 89


conto

Boa vida, boa morte Julio Bernardo

M

eu pai era feirante. Vendia miúdos de boi. Nesse ambiente cresci. Minha mãe o ajudava nos fins de semana. Me levava a tiracolo. Moleque, abria conta em toda banca de pastel que via pela frente. No final do dia, contas monumentais, dos dois cantos da feira, chegavam nas mãos do velho. – Filho, não é pela grana. Você simplesmente não pode se empanturrar de pastel desse jeito. Muita fritura faz mal. Então, dá pra comer só quatro pastéis por dia? – 5, pai. – Fechado. Feirante não compra no supermercado. Escambo. Frango por alface, peixe por banana, e assim vivíamos. Minha casa? Parecia mais um Baile do Havaí, tamanha a quantidade de abacaxis, melancias e toda a variedade hortifrutigranjeira possível. Tudo lindão, lógico. Feirante não passa mal. Ceasa da ostentação. Fazíamos de tudo na cozinha. Enquanto a molecada toda fugia de brócolis e fígado, mandando Biotônico pra abrir apetite, em casa a boa mesa vencia diariamente a guerra da fome, que não era pouca. Até hambúrguer tinha, com carne fresquinha, moída na hora. Por conta de curiosa sociabilidade infantil, acompanhava os amiguinhos no fast-food do palhaço. Comia aquele plástico horroroso, super a contragosto, e alertava os colegas sobre o risco químico do sanduíche da lanchonete. Sabia de cor a receita da carne com minhoca, e falava sobre o perigoso mistério dos nuggets, cujos ingredien-

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tes são desconhecidos até hoje. Jantar em casa, o jogo invertia, com a pivetada fazendo carinha de nojo para a pobre da carne malpassada e as inocentes escarolas. No final, nos entendíamos. Afinal, não podíamos nos pegar antes do racha. O único interesse em comum era o futebol. No gol, a desvantagem numérica ia pra pelada, com todos fuzilando chutes nervosos pra cima de mim. Na Vila Leopoldina, os dias não eram fáceis para aspirantes a Waldir Peres. Mas a adversidade até que me tornou um arqueiro afegão médio. De maneira que posso falar de peito aberto que Ronald McDonald fez bem pra mim. Anos 90. A pós-adolescência trouxe um apetite que só agora diminuiu um pouco e uma sede que ainda aumenta. No lugar dos históricos clássicos Vila Hamburguesa X Vila Leopoldina, realizados na Arena Pelezão, veio sonolento confronto de energia ingerida X caloria gasta, no Meu Estômago Stadium. Embora não estivesse muito interessado nesses jogos, sempre alguém me informava das goleadas levadas. Calorias deveriam ser gastas imediatamente, para eventual sobrevivência. Academia de ginástica. Malditos sorrisos plásticos, embalados por som insuportável. Se na rua me sentia legal, nem quando fui hospitalizado me senti tão doente quanto naquela espelunca. Todos mais saudáveis que eu. De minuto em minuto, me alertavam para os riscos de meu estilo de vida. A coisa não durou. Aquilo não é lugar pra mim. Passei a beber mais, com direito a bastante gordura, pra quebrar o gim.


Martín Kovensky

Avisos para a possibilidade de cirrose me levaram ao consumo de pelo menos um litro de água por dia. Pra não ficar muito sem graça, vario com a versão gaseificada. Cerveja também é água, né? Feira e futebol pra trás. Agora é cozinha. Não aquela romântica, com o delicioso refogado da mãe, mas de restaurante. Mais de uma década nessa. Comida comercial requer certos cuidados. O inimigo se multiplica. Porco malpassado, gema mole, manteiga, cada hora uma coisa. Acho que preferia a vida de goleiro amador à de cozinheiro de gente fresca. O inimigo da vez agora é o glúten. Povo acostumado com pão industrial acha que o problema é o glúten. Me enchi do ofício. Até porque jamais conheci alguém que tenha morrido de salmonela. Homem com mais passado que futuro, tenho dedicado meus últimos anos ao hedonismo. Os fatos nos mostram que a ciência alimentar sempre está errada, já que o vilão da vez invariavelmente se torna o mocinho de amanhã. Estou com quarenta anos, idade de risco. A possibilidade de ter um treco é bastante considerável. Vale correr o risco. Pois não quero fazer parte dessa geração que foge da morte. Anciões definhando até os noventa e tantos anos. Não tenho a menor vocação para isso. Quero morrer no auge da decadência, com um torresmo na mão e um Negroni na cabeça. Julio Bernardo é autor do livro Dias de feira (Companhia das Letras) e escreve regularmente no blog botecodojb.blogspot.com.br

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resenhas

Um livro que vale a pena Roberto Schwarz

A

A palavra afiada – Gilda de Mello e Souza Organização de Walnice Nogueira Galvão Ouro sobre Azul 264 páginas, R$ 48,00

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palavra afiada reúne entrevistas, ensaios e cartas de Gilda de Mello e Souza (1919-2005). São escritos que estavam espalhados em publicações e arquivos de difícil acesso, e que agora, graças ao trabalho de Walnice Nogueira Galvão, chegam a um público mais amplo. Em cada um dos gêneros há peças memoráveis, que são leitura obrigatória para os interessados em cultura brasileira. Um dos tópicos salientes do livro é o impacto que teve a criação da Faculdade de Filosofia, com seus professores europeus, na São Paulo da década de 1930. Outro tópico é a figura de Mário de Andrade, em cuja casa brasileiríssima a autora – sua prima – viveu a juventude e sobre o qual o seu depoimento é insubstituível. O leitor atento notará convergências entre o brasileirismo de combate praticado pelo artista e as novidades discretas mas radicais trazidas pelos professores de fora. Nos dois casos assistimos à desprovincianização de São Paulo e, por extensão, do Brasil, um movimento de fundo de que a autora se sente testemunha e protagonista. Comentando a surpresa causada pelos professores franceses, que lhe revelaram o que deve ser uma aula moderna, Gilda observa que não tinham vergonha de consultar as suas notas enquanto falavam, que as aulas tinham um plano previamente redigido e que a bibliografia era moderna, além de lealmente franqueada aos alunos. Tudo muito diferente da exposição tradicional, de corte romântico, baseada na improvisação e no brilho fácil, com suas fontes “cautelosamente escamoteadas da classe”. Com franqueza tranquila, desprovida de agressividade, Gilda lembra que este segundo modelo dominava na Faculdade de Direito. Muito breve e instrutiva, a comparação é um bom exemplo do poder de síntese e de revelação que as suas entrevistas frequentemente têm. Além do prestígio da língua e das ideias francesas, Gilda lembra o veneno sutil do marxismo e da psicanálise que as aulas também traziam. Como conciliar isso tudo com a rotina patriarcal na casa de Mário, “com os serões familiares, com o bordado, o tricô, as meias cerzidas, a roupa engomada?”. Sem falar no ambiente muito católico, na frequência periódica à igreja e no hábito semanal da costura dos pobres... A certa altura, refletindo sobre o abalo trazido pelas ideias de fora, ou pelo

afrancesamento maciço, Gilda se pergunta pelos anticorpos que salvaram a sua geração de cair no estrangeiramento. A resposta, inesperada e esclarecedora, vem na lista de obras excelentes produzidas no Brasil na década de 1930. “O que nos salvou foi termos testemunhado essa explosão de vigor. Daí em diante foi bem mais fácil encarar a diferença brasileira, objetivamente, sem humilhação ou paranoia, através da ‘pauta’ (grille) europeia, que a Faculdade de Filosofia estava nos fornecendo. A minha geração se formou na encruzilhada dessas duas influências.” São observações propriamente dialéticas, que superam a alternativa estéril entre nacionalismo e cosmopolitismo, observações aliás que merecem ser ruminadas. Outro ponto alto do livro está na descrição do grupo de estudantes que logo adiante criaria a revista Clima e daria ao país alguns de seus críticos de peso, como Lourival Gomes Machado, Décio de Almeida Prado, Paulo Emilio Salles Gomes e Antonio Candido, sem esquecer a própria Gilda. A camaradagem no interior do grupo era grande, animada pelo entusiasmo com as aulas, por certa afinidade nas origens sociais e pelas simpatias esquerdizantes. Na bonita formulação da autora, “a partir de certo momento creio que só conseguíamos nos divertir se estivéssemos juntos”. Para Gilda, que vinha do interior e queria escapar ao destino feminino tradicional, a oportunidade era extraordinária. “Era a primeira vez que via o grupo feminino e masculino se defrontando no espaço neutro das tarefas escolares, onde a disputa intelectual se faria com grande fair play, sujeitando todos às mesmas regras.” Dito isso, ao mesmo tempo que reconhece a atenuação da desigualdade entre os sexos na faculdade, Gilda observa que o preconceito masculino tomava novas feições e não desaparecia. Este é o tema talvez mais ácido do livro. Avessa aos lugares-comuns sobre o progresso e o atraso, menos interessada em levantar bandeiras que em ser fiel à sua experiência, Gilda não disfarça as dificuldades envolvidas no processo da modernização, em particular para as mulheres. Assim, os passos da emancipação feminina que mal ou bem estavam em curso não vão simplesmente, ou linearmente, da sujeição à liberdade, como quer o chavão. No percurso das primeiras gerações de universitárias encontramos, para dar


um exemplo, “a curiosa relação sadomasoquista de que são vítima as mulheres que decidem se cultivar”. O progresso, noutras palavras, não vinha sem custo. Vários dos melhores achados do livro, bem como a qualidade de sua prosa, têm a ver com essa atitude reticente, que busca a verdade nos meandros do processo, antes que nos seus mitológicos pontos de partida e de chegada. A presença de Mário de Andrade no livro é central. Ele é o destinatário de uma dezena de cartas de Gilda, extremamente interessantes, e o objeto de vários ensaios e entrevistas. A sua inserção simultânea no Brasil antigo e no vanguardismo artístico internacional é vista de perto, no dia a dia. Assim, por exemplo, o andar térreo da casa em que mora Mário pertence ao interior paulista do século XIX, com sua atmosfera católica, ao passo que no primeiro andar está o studio, com os quadros modernistas, as estantes Bauhaus e a livralhada de um intelectual atualizado. Noutro ensaio, aliás muito notável, assistimos à amizade profunda e produtiva, cheia de diferenças, entre o escritor experimental e um seu parente tradicionalista em gramática. Analogamente, veja-se ainda o apego pormenorizado de Mário pela culinária brasileira, cujos requintes encerram para ele uma sabedoria de vida inestimável. São exemplos da importância que tinha a tradição para o artista revolucionário, que não pensava deixá-la para trás, mas ativá-la com os meios da vanguarda, abrindo-lhe o futuro. Os desdobramentos estéticos dessas observações biográficas, em que o desejo modernizador tem feição imprevista, não foram ainda explorados. A certa altura, comentando a carreira de Cacilda Becker, que pertencia à sua geração, Gilda observa que ela soube passar da velha escola do estrelismo, então dominante no teatro brasileiro, para outra mais avançada, em que o principal era o espetáculo visto no conjunto. Esse seria o resultado de um trabalho em equipe, no qual a música, o cenário, os papéis menores e a direção não contavam menos que o ator principal. Algum tempo depois, sob a direção de encenadores estrangeiros que acabavam de chegar ao país e ensinavam essa concepção, Cacilda subiria ao nível dos grandes intérpretes do tempo. Há aqui um paralelo possível com a evolução do grupo de Gilda na faculdade, a quem os professores de fora também ensinaram o padrão atualizado de trabalho, favorecendo a eclosão de uma geração de críticos de primeira linha. O percurso da própria Gilda, de menina do interior a intelectual adiantada, pode ser aproximado dessas transformações. Por fim, sem desconhecer a desproporção, digamos que o salto pioneiro que Mário dera duas décadas antes, em contato com

o vanguardismo europeu, havia desbravado essa mesma perspectiva e os conflitos correspondentes. São especulações, ou painéis involuntários, que o livro faculta em quantidade – uma verdadeira mina para o leitor que não seja preguiçoso. Para concluir, transcrevo um trecho que dá ideia da qualidade literária do ensaísmo de Gilda. Trata-se da divisão de papéis entre homens e mulheres na família. “Eu, por exemplo, como já assinalei, vinha de um meio burguês e em certos aspectos culto, mas onde a cultura fora sempre privilégio exclusivo do grupo masculino. Entre as figuras femininas da minha família – algumas excepcionais como iniciativa e inteligência – não consegui encontrar nenhuma que tivesse se distinguido por qualquer pendor intelectual. Desde o século passado, minhas tias e avós viveram dobradas sobre os trabalhos domésticos: primeiro afeitas às duras lides rurais, fiando o algodão, cosendo a roupa dos filhos e do marido, distribuindo entre os escravos as tarefas diárias; mais tarde, na cidade, ajudando o marido a ampliar a modesta receita doméstica, através das encomendas de doces, tricô e trabalhos de agulha. E mesmo quando me lembrava de minha mãe, normalista e civilizada, era para surpreendê-la ambientada às tarefas rudes da fazenda, criando galinhas, engordando porcos, formando o seu pomar afamado, saindo de baixo de chuva para atender doentes, aplicando com dedicação nos filhos dos colonos os ensinamentos médicos que havia adquirido com talento ao cuidar de seus próprios filhos. À noite, nos serões familiares, à luz fraca da fazenda, era meu pai que, descansando, relia os velhos livros de solteiro, em suas belas edições encadernadas. Minha mãe, nunca a surpreendi lendo nada além dos jornais. Comentava as notícias políticas com paixão e injustiça, investia com violência contra o governo e voltava apaziguada às costuras, que, de tempos em tempos, nos enviava para São Paulo, junto com os caixotes de frutas, os ovos, a goiabada cascão, as recomendações de preceito. Cresci admirando essas mulheres fortes, trabalhadeiras, desprendidas, sem direito ao sonho e capazes de sustentar a luta quando a casa caía. Não lembro de nenhuma que fosse leitora inveterada de romances, poetisa ocasional ou autora anônima de contos para revistas. Quando decidi me cultivar, arrostando as consequências de uma carreira intelectual, tive de pôr entre parênteses as existências conformadas que haviam povoado a minha primeira mocidade (...).” Roberto Schwarz é professor de literatura (aposentado) da Unicamp. Livros recentes: Martinha versus Lucrécia (ensaios), Companhia das Letras, 2012, e A lata de lixo da história – chanchada política, Companhia das Letras, 2014.

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resenhas

Bobbio na Paraíba Carlos Henrique Cardim

Norberto Bobbio: democracia, direitos humanos, guerra e paz / volume 1 Giuseppe Tosi (org.) Editora UFPB Vol. 1, 355 páginas, R$ 45,00 Vol. 2, 378 páginas, R$ 45,00

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faz trabalho de garimpeiro para nos oferecer, com entusiasmo, somente o metal precioso. Era a alegria da luz produzida com o novo conhecimento e de compartilhá-lo com amigos, companheiros políticos, alunos e colegas acadêmicos. Bobbio está na linha dos grandes intérpretes dos clássicos. Prefere a fidelidade ao autor do que privilegiar uma performance personalista, a la prima donna. Com profundidade e clareza, oferece-nos pontes para ir direto a estas fontes essenciais e de difícil acesso. A obra Norberto Bobbio: democracia, direitos humanos, guerra e paz, da Editora da UFPB, em dois volumes, com os trabalhos apresentados em 2009, é uma excelente contribuição pela qualidade dos autores e por permitir continuar o debate dos grandes temas recorrentes da política. O livro apresenta os trabalhos conforme o programa do temário do encontro: 1) Perfil de Bobbio; 2) Democracia e estado de direito em Bobbio; 3) Bobbio e o marxismo; 4) Bobbio e os direitos humanos e 5) Bobbio, a guerra e a paz; além de bibliografia de e sobre Norberto Bobbio no Brasil. Sublinhe-se o alto nível da iniciativa da UFPB, que contou com as parcerias das Universidades de Florença e do Minho. É igualmente importante o fato de o evento ter sido realizado fora do eixo acadêmico Rio-São Paulo. Vem-me à memória a última conversa que tive com Bobbio, quando me manifestou seu contentamento por ter recebido o Prêmio Hegel na Alemanha. Lembro o livro Studi hegeliani – diritto, società civile, stato, que teve edição, em 1995, pela Brasiliense/Unesp. Sua reedição seria outra bela homenagem a ele. Os dois volumes da UFPB levam-nos a aprofundar no labirinto de Bobbio, o labirinto do século XX, por ele vivido e pensado intensamente. Evoca a lição permanente do mestre de Turim, expressa em Elogio della mitezza: “Per me la nostra ragione non è un lume: è un lumicino. Ma non abbiamo altro per procedere nelle tenebre da cui siamo venuti alle tenebre verso le quali andiamo”. Carlos Henrique Cardim (chcardim@uol.com.br) é diplomata de carreira, embaixador e professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Organizou Bobbio no Brasil – um retrato intelectual (Editora UnB, 2001) e é autor de A raiz das coisas – Rui Barbosa: o Brasil no mundo (Editora Civilização Brasileira, 2007).

eduardo cesar

D

a série Encontros da UnB, que promovi quando decano de extensão da Universidade de Brasília (UnB) e presidente do Conselho Editorial da Editora UnB – que recebeu nomes como Raymond Aron, Gilberto Freyre, John K. Galbraith, Miguel Reale, Karl Deutsch e Afonso Arinos – foi Norberto Bobbio, sem dúvida, quem mais tocou o público e obteve maior número de leitores. A edição, até o presente, de 37 títulos de suas obras por editoras, além da Editora UnB, como a Editora da Unesp, a Contraponto e a Campus, e a realização do V Seminário Internacional de Direitos Humanos da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em 2009, tendo como tema “Norberto Bobbio: democracia, direitos humanos e relações internacionais”, organizado pelo professor Giuseppe Tosi, atestam a expressiva presença de Bobbio no ambiente intelectual brasileiro, construída desde 1983, ano do colóquio da UnB, e do lançamento da obra A teoria das formas de governo. Qual a razão deste acolhimento, igual ou superior ao da Itália, da figura e da obra de Bobbio no Brasil? Em sua modéstia, ele me disse que ficou surpreso com os “bobbiólogos” que encontrou aqui. Relato, também, minha surpresa, porque logo após ter decidido e comprado, na Feira do Livro de Frankfurt, os direitos autorais do Dicionário de política, organizado por Bobbio, fiquei preocupado quanto à aceitação da obra no Brasil. Hoje é o best-seller da Editora UnB... Creio que existem dois motivos para esta conexão intelectual: a) a sua ligação com aquilo que “il mio Hobbes” chamava a conversação universal da teoria política; e b) a vocação maior de Bobbio como um grande professor. O ponto de partida para a entrada na conversação universal era, como disse Bobbio na UnB, estar na posição indicada por Isaac Newton: “Sou um anão; se vejo mais longe é porque subo em ombros de gigantes”. Bobbio subiu e nos levou para ombros de Maquiavel, Hobbes, Kant, Hegel, Marx e Pareto. Recordo o encontro com ele na biblioteca, em sua casa em Turim, ao verificar como se sentia acompanhado, à vontade, e em diálogo com os mestres e as obras que tanto admirava. O diferencial de Bobbio era a sua alma de professor, que mergulha nas dificuldades do texto e


carreiras

Neurologia

Mudança de rumo

ilustraçãO  daniel bueno

Gustavo Vilela retomou a vida acadêmica após um contato casual com o professor Sérgio Mascarenhas Nascido em Araraquara, no interior paulista, Gustavo Henrique Frigieri Vilela, de 35 anos, foi o primeiro de sua família a cursar uma universidade. No momento de escolher uma carreira, ficou em dúvida entre ciências farmacêuticas e ciências da computação. Aprovado nas duas, optou pelo curso de farmácia na Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Araraquara. Durante a graduação, fez iniciação científica em biologia molecular, com bolsa da FAPESP. “Quando me formei, decidi conhecer o mercado de trabalho”, relata. Inicialmente trabalhou em um hospital como analista clínico e depois foi para uma rede de farmácias em São Carlos, cidade próxima a Araraquara. Quando já fazia quatro anos e meio que estava fora do meio acadêmico, um telefonema mudou o seu destino. Na linha, o professor Sérgio Mascarenhas, do Instituto de

Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP), estava gripado e procurava um medicamento para aumentar a imunidade. A conversa estendeu-se por mais de uma hora e, no final, Vilela foi convidado para uma conversa na USP, que lhe rendeu um convite para fazer uma pós-graduação orientada por Mascarenhas para desenvolver um equipamento de monitoramento da pressão intracraniana de forma minimamente invasiva, em que um sensor é colocado logo abaixo da pele da cabeça do paciente. “Eu queria fazer doutorado na minha área, biológicas, mas ele me disse que seria muito melhor se eu fizesse na física e me deu um monte de livros para ler”, diz. Aprovado para o mestrado, iniciado em 2007, após um semestre Vilela pediu uma mudança para o doutorado direto, feito com apoio do programa Pesquisa Inovativa em Pequena

Empresa (Pipe) da FAPESP e defendido em dezembro de 2010. “Dividido entre a USP e a Sapra Assessoria, empresa vinculada ao projeto, comecei a ter contato com a vida empresarial”, diz. Em janeiro de 2011, ele entrou no pós-doutorado, orientado pela professora Yvonne Mascarenhas, e começou a trabalhar no desenvolvimento de um sensor não invasivo, que é colocado em cima do cabelo. “Nessa fase tivemos dois projetos Pipe aprovados, dos quais fui coordenador, e fundamos a Braincare, uma spin-off da Sapra”, relata. Atualmente ele se divide entre um grupo de pesquisa na Braincare, do qual participam mais de 50 pessoas, entre pesquisadores do Brasil e parceiros de Portugal e Inglaterra, e a parte burocrática da empresa, que envolve patentes, regulamentação e produção do sensor. PESQUISA FAPESP 223 | 95


classificados

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léo ramos

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Conferência Brasileira de Ciência e Tecnologia em Bioenergia Brazilian BioEnergy Science and Technology Conference

De 20 a 24 de outubro de 2014

De caráter internacional e com a participação de palestrantes renomados, a conferência será um fórum de discussão sobre os principais avanços na área de bioenergia, incluindo aspectos tecnológicos, sociais, econômicos e ambientais relacionados à produção e uso de bioenergia

Oito minicursos serão ministrados no evento: melhoramento da cana-de-açúcar manejo agrícola da cana-de-açúcar produção de etanol no Brasil rotas bioquímicas para produção de etanol celulósico rotas termoquímicas para a produção de biocombustíveis biorrefinarias motores movidos a biocombustível sustentabilidade da produção de bioenergia. Os participantes poderão realizar visitas técnicas à Usina São Manoel, em São Manoel; ao Centro de Tecnologia Canavieira (CTC), em Piracicaba (SP), e ao Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), em Campinas.

Pós-graduandos podem participar do BE-BASIC International Design Competition for Students, enviando o seu plano de inovação para a produção sustentável de produtos baseados em bioenergia. O autor da melhor proposta será premiado (R$ 30 mil) e poderá colocar a sua ideia em prática

INSCREVA-SE E PARTICIPE DO PRINCIPAL EVENTO DO ANO VOLTADO À BIOENERGIA Para maiores informações, acesse

www.bbest.org.br


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