Pesquisa FAPESP setembro de 2012
setembro de 2012 www.revistapesquisa.fapesp.br
entrevista bruce alberts
Editor da Science propõe mudanças no ensino de ciência genética
Pesquisadores lutam contra doença causada pela luz do sol suçuarana
Caça e estradas ameaçam diversidade genética
carro elétrico
Pequena empresa desenvolve primeira bateria brasileira ditadura
Censura a livros atendia mais a critérios morais
Achado pó alquímico na Royal Society Pesquisadoras brasileiras encontram substância perdida há 350 anos nos arquivos da instituição inglesa
n.199
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Paulo Urbinatti / USP
fotolab
Joias perigosas Não se deixe enganar pela aparência de fio com pedras de ametista: melhor evitar o convívio com a larva do mosquito Anopheles homunculus. Junto com A. cruzii, essa espécie é responsável pela transmissão de malária na região de Cananeia, litoral sul de São Paulo. Parasitologistas do Instituto Butantan estão estudando a genética e a morfologia desses insetos para avaliar diferenças entre as populações da planície e do morro, que podem afetar sua eficiência como transmissores da doença. A beleza da coloração das larvas, a que os pesquisadores não são imunes quando as encontram dentro de bromélias na mata atlântica, é o que diferencia as duas espécies.
Foto enviada por Camila Lorenz Laboratório de Parasitologia, Instituto Butantan Se você tiver uma imagem relacionada a pesquisa, envie para imagempesquisa@fapesp.br, com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.
PESQUISA FAPESP 199 | 3
setembro 2012
n.
199
Política científica e tecnológica 34 Investimento
18 CAPA Pesquisadoras brasileiras descobrem pó alquímico em arquivo da Royal Society Foto da capa Original da carta enviada por Boutens a Oldenburg crédito joanna hopkins/royal society
26 CAPA/ ENTREVISTA Vice-presidente da Royal Society, Martyn Poliakoff, lamenta a falta de conhecimento de inglês de acadêmicos
entrevista 28 Bruce Alberts Editor-chefe da Science propõe mudanças no ensino de ciências
seçÕes 3 Fotolab 6 Cartas 7 Carta da editora 8 Dados e projetos 9 Boas práticas 10 On-line 11 Wiki 12 Estratégias 14 Tecnociência 88 Memória 90 Arte 92 Conto 94 Resenhas 96 Classificados 4 | setembro DE 2012
Dispêndios estaduais em P&D revelam fosso entre São Paulo e as outras unidades da federação
38 Mudanças climáticas
Workshop expõe o desafio de converter informação científica em prevenção de desastres
42 Divulgação científica
Agência FAPESP ultrapassa a marca dos 100 mil assinantes
43 Gestão administrativa Pesquisadores discutem caminhos para reduzir o peso da burocracia
63 Novos materiais
Brasileiros descobrem nova família de materiais capazes de conduzir eletricidade
64 Nobel
Cidade alemã reúne dezenas de laureados para inspirar novas gerações de cientistas
18 tecnologia 68 Controle de doenças
Um mosquito transgênico e outro irradiado são as novas armas contra a dengue
72 Energia elétrica
ciÊncia
Bateria de lítio desenvolvida em São Paulo começa a impulsionar caminhonetes
44 Pele frágil
75 Eletrônica orgânica
Cientistas, médicos e moradores de um povoado se unem para controlar uma doença hereditária agravada pelo sol
50 Neurociência
Células cerebrais que controlam a fome também acionam os mecanismos da recompensa
52 Fauna silvestre
Suçuaranas se movimentam em zonas de ocupação humana, mas encontram obstáculos nas estradas
56 Fauna do Pré-cambriano Norte do Paraguai abriga a maior diversidade de fósseis dos primeiros animais com esqueleto do planeta
60 Aquecimento global
Estudo revela que cana-de-açúcar emite menos óxido nitroso, um dos gases causadores do efeito estufa, do que se estimava
Novos tipos de lâmpadas e células fotovoltaicas orgânicas são desenvolvidos por centro de pesquisa mineiro
humanidades 78 Urbanismo
Globalização adotada com rapidez por São Paulo degradou a sua constituição urbana e social
82 Ditadura
Lista de livros censurados revela critérios de apreensão
87 Obituário
Amaury de Souza contribuiu para o estabelecimento da ciência política no Brasil
38
52
44
90 75
82
PESQUISA FAPESP 199 | 5
fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo
cartas
cartas@fapesp.br
Celso Lafer Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior alejandro szanto de toledo, Celso Lafer, Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, Horácio Lafer Piva, Herman Jacobus Cornelis Voorwald, joão grandino rodas, Maria José Soares Mendes Giannini, José de Souza Martins, Luiz Gonzaga Belluzzo, Suely Vilela Sampaio, Yoshiaki Nakano Conselho Técnico-Administrativo José Arana Varela Diretor presidente Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico Joaquim J. de Camargo Engler Diretor Administrativo
issn 1519-8774
Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo Leite, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Adolpho José Melfi, Carlos Eduardo Negrão, Douglas Eduardo Zampieri, Eduardo Cesar Leão Marques, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, João Furtado, Joaquim J. de Camargo Engler, José Arana Varela, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Luis Augusto Barbosa Cortez, Marcelo Knobel, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Luiz Monteiro Salles Filho, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner do Amaral, Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos Diretora de redação Mariluce Moura editor chefe Neldson Marcolin Editores Carlos Haag (Humanidades), Fabrício Marques (Política), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência), Carlos Fioravanti (Editor especial), Marcos Pivetta (Editor especial), Dinorah Ereno (Editora assistente) revisão Márcio Guimarães de Araújo, Margô Negro arte Laura Daviña (Editora), Ana Paula Campos, Maria Cecilia Felli fotógrafos Eduardo Cesar, Léo Ramos Mídias eletrônicas Fabrício Marques (Coordenador) Internet Pesquisa FAPESP online Maria Guimarães (Editora executiva) Isis Nóbile Diniz (Editora assistente) Rádio Pesquisa Brasil Biancamaria Binazzi (Produtora) Colaboradores Ana Lima, Angélica T. Benatti Alvim, Daniel Bueno, Daniel das Neves, Evanildo da Silveira, Gustavo Fioratti, Francisco Bicudo, Igor Zolnerkevic, Laura Teixeira, Larissa Ribeiro, Mayumi Okuyama, Milena Fernandes Maranho, Nelson Provazi, Pedro Hamdan, Sandro Castelli, Sérgio Kalili, Valter Rodrigues (Banco de imagens), Vivian Pizzinga, Yuri Vasconcelos É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização Para falar com a redação (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br Para anunciar (11) 3087-4212 mpiliadis@fapesp.br Para assinar (11) 3038-1434 fapesp@acsolucoes.com.br Tiragem 46.300 exemplares IMPRESSão Editora Gráficos Burti Ltda. distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo
6 | setembro DE 2012
Rockefeller e Pirajá
A edição de agosto de 2012 tem excelentes reportagens de Carlos Haag, sobre a Fundação Rockefeller, e de Neldson Marcolin, sobre o cientista Pirajá da Silva. Um primeiro ponto controverso da matéria sobre a Rockefeller no Brasil diz respeito à relação entre o regime autoritário de Vargas e a eficácia do trabalho sanitário contra o mosquito. Na verdade, o que pesava não era o regime, mas a cultura brasileira, hierárquica, estratificada desde a Colônia em camadas sociais graníticas. Algo surpreendente: a chave para a solução dessa questão está na própria matéria: já na República Velha era estreita a relação entre saúde, nation-building e construção do Estado. Outro ponto controverso: a campanha do Nordeste contra o temido gambiae não foi um “suposto e enganoso sucesso”, que teria impedido o desenvolvimento de sistemas de saúde local. A campanha do Nordeste conseguiu impedir que a devastação mortal da epidemia fosse controlada. A matéria citou a possível existência de “dogmas” da Rockefeller aplicados às políticas de saúde no Brasil. Se houve ideologias e protocolos, no Brasil não viravam dogmas. As ações concretas eram fruto de negociações, de toma lá dá cá. A matéria sobre Pirajá da Silva é a chave: países com tradições médicas anteriores à vinda da Rockefeller não se adaptaram à tese do “imperialismo e saúde”, defendida até hoje em estudos mal alicerçados. Falta-nos uma história comparativa dos estilos variados de atuação das missões Rockefeller no estrangeiro, com ou sem dogmas. Luiz Antonio de Castro Santos Instituto de Medicina Social/Uerj
Empresa que apoia a ciência brasileira
Naturalmente, a promessa ou a já existência de vida em Titã foge a quaisquer semelhanças à vida na Terra. Francisco J. B. Sá Salvador, BA
Ficção
Cumprimento Saulo Aride pelo belo conto “Partícula” (edição 198). Relatei-o em palestra a pais de alunos da escola Núcleo Assistencial Joanna de Ângelis, uma exemplar instituição de tempo integral e gratuita, situada no bairro Jardim Brasil, aqui em Botucatu. Parabéns. Francisco Habermann Faculdade de Medicina / Unesp Botucatu, SP
Correções
Na reportagem “Quebra-cabeça em expansão” (edição 198), o quadro “As partículas do Modelo Padrão”, na página 48, saiu com uma identificação trocada. Onde está escrito quarks leia-se léptons, e vice-versa.
Rio de Janeiro, RJ
Notícias on-line
Parabéns pela nota publicada na seção On-line sobre as pesquisas em Saturno, particularmente na lua Titã. A presença de moléculas orgânicas em choque em lago de metano líquido realmente pode ser um sinal significativo de possíveis formas de vida naquele satélite. Ou, mesmo, de que está próximo um estágio que propicia a existência de vida.
O autor da foto da entrevista de Bráulio Ferreira de Souza Dias (edição 198) é Renato Araújo/Br, e não Eduardo Cesar. O autor da foto da seção Fotolab (“O faro da abelha”, edição 198) é José Nascimento Jr. Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar - CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.
carta da editora
As excitantes narrações da ciência Mariluce Moura Diretora de Redação
O
resultado de um estudo científico no campo da história da ciência que Pesquisa FAPESP leva a seus leitores na reportagem de capa deste mês merece, entre outros possíveis, o adjetivo excitante. Porque o relato sobre as peripécias que conduziram ao achado de um pó capaz de sugerir a vinculação material entre alquimia e química, na honorável Royal Society inglesa, excita, de cara, a imaginação e a inclinação tão humana por desvendar ou ao menos acompanhar narrativas de desvendamento de mistérios. E tanto mais cresce o interesse numa história assim quando se sabe que a substância, depois de dormitar por cerca de 350 anos num envelope fechado entre documentos nos arquivos da instituição, foi encontrada por duas pesquisadoras brasileiras – nada mais compreensível do que esta torcida entusiasmada por nosso “time”. Trata-se de uma dupla, diga-se, empenhada há muitos anos em examinar determinados períodos da história da ciência para entender como a construção do conhecimento científico se alimenta de afluentes de múltipla natureza, até mesmo daqueles que em nosso olhar contemporâneo afiguram-se tão radicalmente anticientíficos. E, desta vez, elas seguramente avançaram mais alguns passos importantes em sua remontagem da história da ciência contemporânea. Vale a pena conferir, a partir da página 18, a bela reportagem de nosso editor de humanidades, Carlos Haag, que incluiu no trabalho de levantamento do assunto um mergulho in loco nos documentos guardados em Londres. A feitura desta edição envolveu uma outra viagem, bem menos glamourosa, é certo, um tanto dolorosa, mas igualmente importante para a composição da revista: o editor especial Carlos Fioravanti e o fotógrafo Eduardo Cesar partiram rumo a Araras, um povoado no interior de Goiás, para acompanhar de perto o trabalho de uma equipe de pesquisadores paulistas, cariocas e goianos no esforço para identificar uma mutação genética responsável pelos casos de xeroderma na população local. Ironicamente, para um lugar muito quente neste período do ano e escaldante em janeiro, comenta Fioravanti, a xeroderma
pigmentosum ou XP é uma doença que pode ser tremendamente agravada pela exposição ao sol. E não há ainda medicamentos específicos para tratá-la. O resultado da incursão dos dois profissionais de Pesquisa FAPESP a Araras pode ser visto a partir da página 44. Entre algumas outras possibilidades de textos a destacar nesta carta – por exemplo, a reportagem sobre a ecologia das lindas onças brasileiras chamadas suçuaranas, assinada por Maria Guimarães (página 52), a reportagem sobre as baterias à base de lítio desenvolvidas em São Paulo para impulsionar carros elétricos, assinada por Marcos de Oliveira (página 72), e uma terceira relativa a um novo estudo sobre os critérios seguidos pela ditadura brasileira para censurar livros entre 1970 e 1979 (página 82), cujo autor é Gustavo Fioratti –, vou me deter na entrevista pingue-pongue desta edição. Diferentemente do mais usual, a entrevista deste mês não leva ao leitor a fala de uma importante personagem da ciência produzida no Brasil. Em vez disso, oferece-lhe as reflexões do bioquímico norte-americano Bruce Alberts, cujas posições de destaque em instituições acadêmicas dos Esta dos Unidos, nos últimos 20 anos, terminaram por afastá-lo um tanto da rotina de pesquisador dedicado ao estudo de proteínas e genes e lançá-lo ao trabalho em outro campo que o apaixona: o ensino e a divulgação de ciências. Editor-chefe da Science, ex-presidente da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, professor emérito da Universidade da Califórnia, Alberts, 74 anos, esteve no Brasil entre o final de julho e o começo de agosto e, em São Paulo, provocou em 3 de agosto uma impressionante superlotação no auditório da FAPESP, principalmente de jovens pesquisadores, ao falar sobre “Scientific excellence: ways and means of diffusion”. Na entrevista que concedeu no mesmo dia aos editores Marcos Pivetta e Fabrício Marques (a partir da página 28), Alberts detalha suas ideias e todas elas propõem reflexões fundamentais para um país que quer fazer avançar sua ciência e sua cultura científica. Boa leitura! PESQUISA FAPESP 199 | 7
Dados e projetos Temáticos e Jovem Pesquisador recentes Projetos contratados entre julho e agosto de 2012
temáticos
Síntese de pequenas bibliotecas empregando organotrifluoroboratos de potássio em reações de Suzuki-Miyaura Pesquisador responsável: Helio Alexandre Stefani Instituição: Faculdade de Ciências Farmacêuticas/USP Processo: 2012/00424-2 Vigência: 01/08/2012 a 31/07/2016 Modelos biológicos de interação planta-patógeno para o entendimento de mecanismos de patogenicidade e adaptação de fitobactérias, respostas de defesa e desenvolvimento de doença em citros Pesquisador responsável: Celso Eduardo Benedetti Instituição: Centro Nacional de Pesquisa em Energia de Materiais / Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) Processo: 2011/20468-1 Vigência: 01/07/2012 a 30/06/2017 Intensificação ecológica de plantações de eucaliptos pela associação com espécies leguminosas arbóreas fixadoras de nitrogênio Pesquisador responsável: José
Leonardo de Moraes Gonçalves Instituição: Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz/USP Processo: 2010/16623-9 Vigência: 01/04/2012 a 31/03/2016
Gravitação e cosmologia: questões estruturais e aplicações Pesquisador responsável: Elcio Abdalla Instituição: Instituto de Física/USP Processo: 2011/18729-1 Vigência: 01/08/2012 a 31/07/2017 Novos moduladores do controle glicêmico e do desenvolvimento de complicações crônicas no diabetes mellitus: perspectivas preventivas e terapêuticas Pesquisador responsável: Ubiratan Fabres Machado Instituição: Instituto de Ciências Biomédicas/USP Processo: 2012/04831-1 Vigência: 01/07/2012 a 30/06/2016 Problemas da mecânica quântica e teoria quântica de campos com fundos fortes e em espaços não comutativos Pesquisador responsável: Dmitri Maximovitch Guitman Instituição: Instituto de Física/USP Processo: 2012/00333-7 Vigência: 01/08/2012 a 31/07/2016
Estudo da estrutura e função da chaperona hsp90 com ênfase no seu papel em homeostase celular Pesquisador responsável: Carlos Henrique Inácio Ramos Instituição: Instituto de Química/ Unicamp Processo: 2012/50161-8 Vigência: 01/08/2012 a 31/07/2017
Padrões de consumo de álcool e outras drogas em baladas: epidemiologia, etnografia e intervenção Pesquisadora responsável: Zila Van Der Meer Sanchez Dutenhefner Instituição: Escola Paulista de Medicina/Unifesp Processo: 2011/51658-0 Vigência: 01/07/2012 a 30/06/2016
Jovem Pesquisador
Estado, partidos políticos e sociedade no Brasil contemporâneo Pesquisador responsável: Pedro José Floriano Ribeiro Instituição: Centro de Educação e Ciências Humanas/Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Processo: 2012/05132-0 Vigência: 01/08/2012 a 31/07/2016 Exposição in utero a poluição ambiental e ocupacional e sua repercussão para o desencadeamento de inflamação alérgica pulmonar na prole: correlação com mecanismos epigenéticos Pesquisadora responsável: Adriana Lino dos Santos Franco Instituição: Faculdade de Ciências Farmacêuticas/USP Processo: 2011/51711-9 Vigência: 01/07/2012 a 30/06/2014
Afecções ortopédicas não traumáticas de ombro: aspectos genéticos e moleculares Pesquisadora responsável: Mariana Ferreira Leal Instituição: Escola Paulista de Medicina/Unifesp Processo: 2011/22548-2 Vigência: 01/08/2012 a 31/07/2016 São Paulo Excellence Chairs (Spec) – Piloto Estruturação de complexos macromoleculares da parede bacteriana: biossíntese e virulência Pesquisadora responsável: Andrea Dessen de Souza e Silva Instituição: Centro Nacional de Pesquisa em Energia de Materiais/ Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) Processo: 2011/52067-6 Vigência: 01/07/2012 a 30/06/2016
O Brasil no mundo Número de artigos, impacto mundial relativo e coautoria internacional das publicações de cientistas brasileiros 1994 Universidades
Artigos
Impacto relativo – média mundial
5.212 77
Universidade Estadual de Campinas Universidade Estadual Paulista Universidade Fed. de Minas Gerais
2011 Artigos com coautoria internacional
Artigos
0,64
33%
34.210
0,65
27%
0,57
30%
827
0,58
30%
485
0,55
34%
2.470
0,77
23%
284
0,47
21%
2.913
0,69
24%
232
0,55
28%
1.760
0,63
27%
Universidade Fed. do Rio de Janeiro
433
0,67
33%
2.300
1,13
34%
Universidade Fed. do Rio Grande do Sul
246
0,71
36%
2.002
0,64
25%
87
0,50
36%
994
0,52
28%
103
0,59
26%
770
0,48
24%
205
0,97
30%
1.573
0,68
24%
1.298
0,75
32%
7.675
0,87
31%
Brasil Universidade de Brasília
Universidade Fed. de Santa Catarina Universidade Fed. de São Carlos Universidade Fed. de São Paulo Universidade de São Paulo Fonte: InCites da Thompson Reuters
8 | setembro DE 2012
Impacto relativo – média mundial
Artigos com coautoria internacional
Boas práticas Artigos científicos equivocados ou fraudulentos costumam ser removidos exemplarmente dos arquivos das revistas científicas que os publicaram. Mas não é incomum que cópias sobrevivam em bibliotecas e repositórios de universidades e continuem a circular, sendo citadas por pesquisadores desavisados. O pesquisador norte-americano Philip Davis encontrou rastros do que ele chamou de “vida secreta de artigos retratados” ao analisar o destino de 1.779 papers desqualificados pelas revistas que os divulgaram entre 1973 e 2010. Ele chegou a esse conjunto de artigos proscritos ao pesquisar a base de dados Medline, da Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos. O passo seguinte foi procurar registros desses papers em outros portais ou repositórios da internet. Davis conseguiu localizar versões de 321 desses artigos – um em cada cinco da amostra – perdidos em bibliotecas virtuais ou nos arquivos de universidades e departamentos. Em nenhum deles havia qualquer aviso de que o artigo tinha sido desqualificado. Na quase totalidade dos casos, 95%, a versão encontrada era a da revista científica. Em apenas 4% tratava-se de versões feitas pelo autor antes de submeter o artigo à publicação. O local que abrigava mais artigos retratados era a base de dados PubMed Central, com 43% do total (138 artigos). Noventa e quatro (ou 29%) foram encontrados em domínios acadêmicos, como websites de laboratórios e departamentos, e apenas 10 (3%) estavam em repositórios de instituições. Também foram encontrados 24 artigos (4%)
em sites comerciais – o curioso é que os artigos eram usados para promover suplementos alimentares ou técnicas cirúrgicas. Registros desses artigos foram encontrados na rede social acadêmica Mendeley e eram compartilhados, em média, por 3,4 usuários. Davis sugere que as revistas científicas deveriam disseminar alertas sobre o status desses artigos em serviços de busca e recuperação, e que as bases de dados acoplem avisos de retratação às referências bibliográficas dos papers. Outra medida seria informar bibliotecas virtuais e ferramentas on-line de organização de bibliografia sobre a punição. Por fim, as publicações científicas deveriam passar a fazer varreduras nas referências bibliográficas de todos os seus
daniel bueno
A vida secreta dos artigos equivocados e fraudulentos
artigos, antes que sejam publicados, para evitar que papers retirados voltem a ser citados, diz Davis. O estudo foi divulgado pelo Journal of the Medical Library Association, dos Estados Unidos.
Pesquisadora de Harvard sob vigilância Por determinação do Escritório de Integridade de Pesquisa (ORI) dos Estados Unidos, que investiga fraudes em pesquisa financiada pelo governo federal, Shane Mayac, ex-pesquisadora de pós-doutorado no Centro de Diabetes Joslin, ligado à Faculdade de Medicina da Universidade Harvard, Estados Unidos, terá de se submeter à supervisão rigorosa para qualquer trabalho que ela possa fazer com financiamento do governo federal nos próximos três anos (Nature News Blog, 29 de agosto). Shane concordou com as sanções do ORI, aplicadas depois de ela ter sido julgada por má conduta por ter copiado imagens de outras fontes e tê-las publicado, como se fossem suas, em dois artigos sobre células-tronco do sangue,
um na Nature e outro na Blood. A pesquisadora “nem admite nem nega as conclusões do ORI de má conduta científica”, segundo a nota no Federal Register, boletim do governo dos Estados Unidos, mas tinha comentado antes no blog Retraction Watch que seu artigo na Nature foi retificado apressadamente e sem ter sido consultada. Ela comentou que estava sendo forçada a assumir a culpa por um “sistema disfuncional” de publicação e investigação. O comunicado do ORI menciona a publicação das figuras retiradas de outro artigo, que Shane atribuiu a um erro, e a apropriação indevida de duas figuras de experimentos não relacionados. De acordo com o ORI, trata-se de uma clara falsificação de dados. PESQUISA FAPESP 199 | 9
on-line
@Marcos Belançon Pra quem não sabe, uma boa revista de ciência de verdade no Brasil
Rádio Sérgio Novaes fala sobre a descoberta de partícula que talvez seja o bóson de Higgs Célula cerebral de camundongo com um cromossomo a mais
é a Pesquisa Fapesp
rafaela sartore / lance / ufrj
Nas redes
www . revistapes q uisa . fapesp . br
@Bruno C. Vellutini Vídeo bem legal sobre a Eta Carinae (Eta Carinae: além do eclipse) Diogo Eberhardt_ Apesar de não acreditar nos trabalhos de modelagem com relação às mudanças climáticas, a reportagem do Carlos Fioravanti ficou muito boa, com diferentes opiniões. Meus parabéns!!! (O cardápio dos próximos anos) Gisele Oliveira_ Os infográficos
Exclusivo no site
da matéria estão lindos! (Abrindo a Terra)
} Estudo publicado no site da Nature Geoscience em agosto sugere que o carbono gerado em queimadas fica armazenado por décadas e até séculos no solo, sendo liberado para os rios aos poucos. Um grupo da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) encontrou, em amostras de água do rio Paraíba do Sul, uma carga de carbono entre 3 e 16 vezes maior do que pode ser explicado pelas queimadas atuais. Para os pesquisadores, parte do carbono detectado tem origem nas queimadas ocorridas entre 1850 e 1973.
Fumaça Rocha_ Há muito que aprender com a genética! (Você consegue enrolar a língua?) iarabauer_ Incrível! Essa equipe da FAPESP é um orgulho para o Brasil e devia ter um programa garantido na TV Cultura e em todos os canais abertos do país. Parabéns pelo trabalho! (Comissão Rondon deu origem à política indigenista)
Vídeo do mês Macacos-prego que criam e manipulam ferramentas disseminam tradições culturais http://www.youtube.com/user/PesquisaFAPESP
10 | setembro DE 2012
Assista ao vídeo:
Para ler o código ao lado faça o download do leitor de QR CODE no seu smartphonE
} Uma equipe da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) analisou cerca de 160 estudos sobre aneuploidia – a perda ou ganho de cromossomos, pacotes de DNA que abrigam os genes. O resultado, publicado na Frontiers in Cellular Neuroscience em agosto, mostrou que a variação no número de cromossomos atinge linhagens de células-tronco cultivadas no mundo todo. Como o fenômeno não tem mecanismos que o elimine nas células em cultura, é preciso identificar o grau tolerável para que as potenciais terapias não gerem efeitos nocivos.
WiKi o que é, o que é? Explosão solar
Pergunte aos pesquisadores Por que a cerveja às vezes congela quando é retirada do congelador? Natalia Zapella [via e-mail]
foto eduardo cesar Ilustracão daniel bueno
LUÍS CARLOS DE MENEZES Universidade de São Paulo (USP) Muita gente já passou
frente para o chefe”,
pela frustração de
compara o físico Luís
tirar uma cerveja do
Carlos de Menezes. O
congelador e vê-la
que indica o alinhamento
solidificar-se diante dos
para as moléculas é o
olhos. Para evitar que isso
movimento brusco de
aconteça, muitos pegam
retirada do congelador,
a garrafa pela ponta ou
agravado pelo susto de
a põem debaixo de água
ter esquecido a cerveja
corrente e, depois disso,
tempo demais. “O gesto,
dão uma chacoalhada.
ou o calor da mão, dá
Para saber o que fazer,
essa direção”, explica.
basta entender a física
Com isso o líquido
por trás do incidente.
expande, já que o estado
A cerveja no congelador
sólido ocupa mais espaço
esfriará aos poucos e,
do que o líquido, e muitas
se a geladeira não vibrar,
vezes a garrafa (ou lata)
pode atingir uma
explode. Para beber
temperatura mais baixa
uma cerveja bem gelada
que a de congelamento,
e líquida, o melhor
o sobrerresfriamento.
é retirá-la do congelador
Estáticas no congelador,
evitando qualquer
as moléculas não têm
sacudidela ou toque de
orientação para passar
mão aberta e deixá-la
ao estado sólido. “É como
numa superfície estável
se fosse um batalhão,
até que chegue
que para saber como se
à temperatura acima
perfilar precisa estar de
da de congelamento.
Mande sua pergunta para o e-mail wikirevistapesquisa@fapesp.br, pelo facebook ou pelo twitter @PesquisaFapesp
Há quem interprete as explosões solares como uma promessa de aniquilação da Terra. Mas, na realidade, esse é um fenômeno comum: ocorre diariamente quando o Sol está em maior atividade e semanalmente em fase de calmaria. A explosão solar é uma súbita liberação de energia com segundos de duração que acontece nas manchas solares, chamadas pelos pesquisadores de regiões ativas. Nesses locais há uma concentração de energia armazenada em plasma – composto por partículas, principalmente elétrons, confinadas em uma estrutura magnética. Quando há alguma instabilidade nessa região, ocorre a explosão originando radiação eletromagnética e ejetando partículas para o meio interplanetário. As explosões solares podem ser fracas ou fortes o suficiente até atingir a Terra. Por exemplo, seus efeitos podem bloquear por momentos a comunicação por rádio ou interromper o funcionamento de satélites como os relacionados ao posicionamento por GPS ou à sincronização de relógios. O fenômeno também tem relação com o ambiente do planeta – mais nuvens de chuva podem se formar em épocas de poucas explosões. As explosões solares são cíclicas, com picos a cada 11 anos. O próximo deverá ser por volta de 2015, mas o ciclo atual está excepcionalmente calmo – mais fraco do que o anterior. Por causa disso, alguns pesquisadores acreditam que a Terra está para entrar em um período mais frio. Pierre Kaufmann, da Universidade Presbiteriana Mackenzie
PESQUISA FAPESP 199 | 11
Estratégias Preparação do Fórum A FAPESP sediou, entre os dias 29 e 31 de agosto, o primeiro de sete encontros preparatórios para o Fórum Mundial de Ciência, que será realizado em novembro de 2013 no Rio de Janeiro com o tema “Ciência para o Desenvolvimento Global: da Educação para a inovação”.
1
Uma videoconferência de Michael Clegg,
mas nas empresas
professor de genética
também”, disse Brito.
da Universidade da
Ele mostrou, com
Califórnia, abriu o
exemplos, como há
encontro preparatório
ideias que demoram
– o furacão Isaac de
para ir ao mercado,
última hora impediu o
outras que chegam lá
seu voo para o Brasil.
mais rapidamente e
Clegg falou sobre o papel
existem aquelas que se
das redes de academias
desenvolvem só pelo
de ciência e das redes
prazer do conhecimento.
formadas por elas. Um
Observou que as
cardápio variado de
relações entre a ciência
temas foi discutido, das
e suas aplicações têm
formas de fazer ciência
sempre um caráter
aos problemas de
sinuoso. Luiz Davidovich,
governança, dos esforços
professor da
no campo da educação
Universidade Federal
aos desafios enfrentados
Abertura da reunião preparatória: José Arana Varela, diretor-presidente do CTA da FAPESP; Helena Nader, presidente da SBPC; o presidente da FAPESP, Celso Lafer; o ministro da Ciência e Tecnologia, Marco Antonio Raupp; Jacob Palis, presidente da Academia Brasileira de Ciências; e Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da Fundação
Lafer recebe título de professor emérito O presidente da FAPESP,
do Direito. Foi ministro
Celso Lafer, recebeu
das Relações Exteriores
o título de professor
e do Desenvolvimento.
emérito do Instituto de
Embaixador, comandou
Relações Internacionais
a Missão Permanente do
(IRI) da Universidade
Brasil junto às Nações
de São Paulo (USP),
Unidas e à Organização
em cerimônia realizada
Mundial do Comércio
no dia 15 de agosto.
em Genebra. De acordo
Vinculado ao instituto
com a diretora do IRI,
desde o início de suas
Maria Hermínia Tavares
atividades, em 2004,
Almeida, Lafer não só
do Rio de Janeiro,
Lafer é o primeiro
recebeu o título pelo
no século XXI pelas
falou sobre as várias
professor emérito da
papel importante que
áreas do conhecimento.
percepções e
unidade. O quadro
desempenhou na unidade,
Carlos Henrique de Brito
importância da ciência
acadêmico do IRI é
mas principalmente por
Cruz, diretor científico
básica ao longo da
formado por cientistas
se tratar de um fundador
da FAPESP, fez uma
história, como a física
políticos, economistas,
da área de relações
apresentação sobre
quântica delineada
historiadores, juristas,
internacionais no Brasil,
“As diferentes facetas
no início do século XX
administradores e
cuja obra permitiu
da ciência” e abordou a
por jovens cientistas
sociólogos vinculados
estabelecer um
extrema complexidade
sem nenhum aspecto
a outros departamentos
pensamento original
da ciência, um modo
utilitário, mas que
da universidade. Lafer
sobre política exterior.
de conhecimento
ao longo dos anos foi
é professor aposentado
A trajetória de Lafer
inspirado pelas ideias.
utilizada em aplicações
da Faculdade de Direito
foi apresentada
“O lugar das ideias, o
como lasers, chips
da USP, onde chefiou
na cerimônia pelo
lugar das ciências não é
e aparelhos de
o Departamento de
ex-presidente Fernando
só nas universidades,
ressonância magnética.
Filosofia e Teoria Geral
Henrique Cardoso.
12 | setembro DE 2012
Qualidade das publicações
França homenageia pesquisadores brasileiros
A Universidade de
O diretor científico da
personalidades que
São Paulo (USP) vai
FAPESP, Carlos Henrique
tenham prestado
centralizar os serviços
de Brito Cruz, e outros
serviços relevantes à
de revisão e tradução de
três acadêmicos
educação francesa ou
artigos de suas revistas
brasileiros receberam
contribuído para a
científicas. “Vamos
no dia 13 de agosto a
expansão da cultura
contratar empresas com
Palme Académique, uma
francesa. São
qualidade internacional
das mais importantes
outorgadas na forma
e passaremos a
condecorações
de uma ordem com três
oferecer o serviço às
concedidas pelo
graus: Commandeur,
estratégias para ampliar
of World Universities.
governo da França.
Officier e Chevalier. Brito
Mara Soares Pinto
o impacto das cerca de
Trata-se da única
Além de Brito Cruz,
Cruz e Andrade foram
Ferreira, diretora técnica
200 revistas científicas
instituição de fora dos
foram homenageados
nomeados Commandeur,
do Sistema Integrado de
publicadas por
Estados Unidos entre as
os professores Adnei
Zicman recebeu o
Bibliotecas (SIBi) da USP.
unidades da USP e
20 mais bem colocadas.
Melges de Andrade,
grau de Officier e Freire
Atualmente, cada corpo
aumentar a repercussão
O ranking, divulgado
da Escola Politécnica
Junior foi nomeado
editorial é responsável
internacional da
pelo Cybermetrics Lab,
da Universidade de
Chevalier. “Os percursos
por contratar seus
produção científica da
da Espanha, afere a
São Paulo (USP), Renée
dos condecorados
próprios colaboradores
universidade. Tais
presença e relevância
Zicman, da Pontifícia
testemunham a
por licitação – um
ações já vêm rendendo
das universidades
Universidade Católica
intensidade da
processo demorado e
frutos. Em julho, a
na internet, ou seja, a
(PUC-SP), e José
cooperação entre
de qualidade desigual.
USP foi classificada
visibilidade da produção
Celso Freire Junior, da
o Brasil e a França”,
A iniciativa faz parte
na 15ª posição no
científica e acadêmica
Faculdade de Engenharia
afirmou Itté. De acordo
de um conjunto de
Webometrics Ranking
disponível na rede.
de Guaratinguetá da
com o cônsul, Brito
Universidade Estadual
Cruz promoveu a
Paulista (Unesp). A
internacionalização ao
cerimônia foi conduzida
longo de sua trajetória
pelo cônsul-geral da
– especialmente como
França em São Paulo,
reitor da Universidade
Sylvain Itté, com
Estadual de Campinas
participação do
(Unicamp), de 2002
presidente da FAPESP,
a 2005, e diretor
Celso Lafer. Criadas
científico da FAPESP
em 1808, as Palmes
– e contribuiu para
Académiques são
o estreitamento de
concedidas a
relações com a França.
fotos 1 eduardo cesar 2 caltech ilustraçãO daniel bueno
publicações”, diz Sueli
Representação do Cerro Chajnantor Atacama Telescope, no Chile: início de operação em 2017 2
Telescópios ameaçados de fechar Um painel de especialistas convocado
tor da Divisão de Ciências Astronômicas
espelho de 8,4 metros de diâmetro, irá
pela National Science Foundation (NSF)
da NSF, disse à revista Nature que espera
mapear o céu noturno com a ajuda de
recomendou que a agência norte-ameri-
encontrar novos operadores para os te-
uma câmera digital de 3 bilhões de pixels.
cana deixe de investir em seis de seus
lescópios nos próximos 18 meses. Se não
O outro é o Cerro Chajnantor Atacama
observatórios astronômicos a partir de
der certo, a agência irá considerar o fe-
Telescope, que se debruçará sobre as
2017. Quatro deles estão instalados no
chamento das instalações. A meta é eco-
origens cósmicas de estrelas, planetas e
estado do Arizona. Outros dois são radio-
nomizar US$ 20 milhões gastos anual-
galáxias. “Sem esse corte de despesas,
-observatórios – um fica no estado de
mente pela NSF e garantir recursos para
não conseguiremos fazer coisas novas”,
Virgínia Ocidental, enquanto o segundo
dois telescópios que serão construídos
disse Michael Turner, diretor do Kavli
é uma coleção de antenas espalhadas por
no Chile. Um deles é o Large Synoptic
Institute for Cosmological Physics da Uni-
várias localidades. James Ulvestad, dire-
Survey Telescope (LSST). Dotado de um
versidade de Chicago.
PESQUISA FAPESP 199 | 13
Tecnociência Mais chuva em Manaus Está chovendo mais dias
Tal fato pode estar
e os períodos de forte
ligado ao processo de
pluviosidade se tornaram
urbanização por que
mais comuns na cidade
passou a cidade nas
de Manaus nos últimos
últimas décadas.
40 anos (Acta
Em 1970, sua população
Amazonica, setembro
era de pouco menos
2012). A conclusão é
de 300 mil habitantes
baseada em dados
e hoje já passou da
meteorológicos obtidos
casa dos 2 milhões.
entre 1971 e 2007 por
O total anual de chuvas
três estações situadas na
na região, que oscila
capital amazonense e
entre 2.500 e 3.000 mm,
em seus arredores e
também deu sinais
analisados por cientistas
de que está em alta.
do Instituto Nacional de
Essa tendência foi
Pesquisas da Amazônia
verificada nas três
(Inpa), da Universidade
estações estudadas.
Reunir o conhecimento
a rede e o software
do Estado do Amazonas
No entanto, o
de 250 anos de química
que contribui para a
(UEA) e da Universidade
aumento só se mostrou
orgânica em uma rede
localização de moléculas
Federal de Campina
estatisticamente
computacional foi uma
de medicamentos e
Grande (UFCG). No
relevante para as
tarefa que durou 10 anos
outros produtos químicos
período analisado, os
medições feitas na
para pesquisadores da
industriais. “Percebi que,
dias de chuva extrema,
estação da Embrapa,
Universidade
se pudéssemos ligar
com precipitação acima
localizada 30
Northwestern, dos
todos os compostos
de 50 milímetros (mm),
quilômetros ao norte
Estados Unidos.
químicos conhecidos e as
apresentaram um
da capital amazonense.
Estruturada de forma
reações entre eles numa
aumento estatisticamente
Nesse ponto houve
semelhante às redes
grande rede, poderíamos
significativo apenas na
uma elevação anual
de telecomunicações,
criar não só um novo
estação localizada na
de 11,5 mm na
ela leva o nome de
repositório de métodos
zona urbana de Manaus.
quantidade de chuva.
Chematica e permite
químicos, mas uma
acesso a sínteses de
plataforma totalmente
moléculas de drogas
nova de conhecimento”,
e outros compostos,
afirma Grzybowski.
combinando rotas
A família de algoritmos
químicas. É uma
utilizada permite também
plataforma de
que o sistema aprenda
conhecimento que
com a incorporação de
mostra cada reação
novos dados gerados em
química já realizada e o
atualizações na base
resultado de cada uma
de conhecimento. Os
delas. São 7 milhões
pesquisadores acreditam
de produtos químicos
que a Chematica vai
conectados com um
acelerar a descoberta
similar número de
de novas moléculas
reações. Sob a liderança
sintéticas. Detalhes
de Bartosz Grzybowski,
do novo sistema saíram
os pesquisadores
na edição de 6 de agosto
desenvolveram
da revista Angewandte
algoritmos que formam
Chemie.
Capital amazonense: precipitações mais fortes sobretudo na área urbana
1
14 | setembro DE 2012
fotos 1 Luc V. / Wikipedia 2 divulgação 3 Universidade da Califórnia, Santa Cruz ilustraçãO daniel bueno
Todos os compostos químicos num só lugar
2
Simulador de mama Uma prótese de mama,
treinar a habilidade do
produzida com um
radiologista, que precisa
material gelatinoso
ao mesmo tempo operar
que se assemelha ao
o ultrassom e a agulha
tecido biológico, foi
que irá remover o
desenvolvida para
fragmento de tecido
treinamento de médicos
para exame. Antes
radiologistas na
de ser produzido
realização de biópsia
comercialmente pela
guiada por ultrassom,
Figlabs, empresa
exame necessário para
abrigada na incubadora
o diagnóstico de câncer.
Supera, de Ribeirão
Chamado de phantom
Preto, o phantom foi
de mama, o simulador
testado no Hospital das
tem oito estruturas
Clínicas da Faculdade
internas que
de Medicina da USP da
representam em cores
mesma cidade. “Uma
seis diferentes tipos de
propriedade importante
lesões. O objetivo do
desse simulador é que,
Estudo feito por
de futebol de 2008.
simulador, desenvolvido
no caso de ser perfurado
pesquisadores da
O levantamento mostra
no Departamento de
durante o treinamento,
Universidade Federal de
que a maioria dos gols
Física da Faculdade
ele pode ser reconstruído
Pernambuco (UFPE)
– 579 tentos, cerca de
de Filosofia, Ciências
termicamente”, diz
analisou quando e em
56% do total – foi
e Letras de Ribeirão
Thiago Almeida,
que circunstâncias
anotada no segundo
Preto da Universidade
diretor da Figlabs, que
ocorreram os 1.034 gols
tempo de jogo (Revista
de São Paulo (USP),
apresentou a prótese na
marcados pelos 20 times
Brasileira de Ciência do
sob a coordenação do
I Feira de Inovação da
que disputaram 380
Esporte, abril-junho 2012).
professor Antônio
USP realizada em agosto
jogos na primeira divisão
A quantidade de gols
Adilton Carneiro, é
em São Paulo.
do campeonato brasileiro
marcados nos 15 minutos
Estudo mostra que maioria dos gols do campeonato brasileiro ocorre no segundo tempo de jogo
A hora em que mais sai gol
finais da partida foi bastante elevada: 221, equivalente a 21% do total. Os 15 minutos iniciais foram o período
Papel permite visão de fotos em 3D
do jogo em que menos a rede foi balançada. Em todos os períodos, a
Uma foto em papel que mostra imagens
maior parte dos gols foi
em três dimensões foi apresentada em
originada em jogadas
agosto no 39º International Conference
com a bola rolando e 3
and Exhibition on Computer Graphics and Interactive Techniques (Siggraph
a finalização que levou ao gol foi feita por um
2012), em Los Angeles, nos Estados Uni-
um dos pixels (pontos que compõem uma
jogador que estava
dos. A nova tecnologia de impressão
imagem digital) tem uma pequena on-
dentro da área. O
permite que o papel responda a diferen-
dulação com uma superfície espelhada
desgate físico pode ser
tes ângulos de luz e mostre os objetos e
para refletir em todas as direções angu-
pessoas em uma perspectiva tridimen-
lares. A tinta sobre essas ondulações
sional. A novidade foi desenvolvida em
controla os ângulos da luz refletida de
parceria com pesquisadores da Univer-
cada pixel. Assim, de acordo com a ilu-
sidade da Califórnia em Santa Cruz, lide-
minação sobre a foto, é possível ver
rados pelo professor James Davis, e as
sombras e demais efeitos tridimensionais
empresas HP e 3M. Em vez de usar papel
da imagem com a variação de iluminação.
é que, diante da
fotográfico liso como de costume, os
Em uma foto de estátua, por exemplo,
iminência do final do
pesquisadores criaram um novo tipo de
se a luz partir do lado esquerdo, é pos-
jogo, as equipes passam
papel chamado de reflexão em que cada
sível ver a sombra dela do lado direito.
a se esforçar mais e
uma explicação para a Protótipo do papel: arranjo de depressões coberto com uma máscara transparente
maior ocorrência de gols no segundo tempo da partida, sobretudo em seus instantes finais. Outra possibilidade
acabam fazendo gols. PESQUISA FAPESP 199 | 15
Laboratório produz etanol a partir de soro de leite
1
Sequinho num segundo
Se ensopados, animais de pelo se chacoalham e se livram rapidamente de 70% da água que os encharca
Está surgindo no Rio
Ayub, do Instituto de
Grande do Sul uma nova
Ciência e Tecnologia
fonte de matéria-prima
de Alimentos da
para produção de etanol.
Universidade Federal
É o soro do leite.
do Rio Grande do Sul
De cada quilo de queijo
(UFRGS). Ele obteve
produzido sobram,
etanol de soro de leite
em média, nove litros
em biorreatores com
de soro, um líquido
leveduras do gênero
esbranquiçado formado
Kluyveromyces que
por 95% de água,
fazem a transformação
4% de lactose e 1%
do material lácteo em
de proteína. Para ser
biocombustível (Journal
aproveitado pela
of Chemical Technology
indústria alimentícia
and Biotechnology,
na composição de
agosto 2012).
bebidas lácteas e
“A produção atingiu
recheios de biscoitos
3,5 gramas de etanol
é preciso transformá-lo
por litro por hora. Ainda
em pó, o que gera custos
é muito baixo em relação
altos principalmente
à produção do álcool
Animais totalmente
arremessadas dos pelos
molhados conseguem se
dos animais a uma
livrar de até 70% da água
aceleração de 10 a 70
para o pequeno
da cana, mas estamos
que ensopa seus pelos
vezes maior do que
produtor. Se não for
otimizando o sistema”,
em poucos segundos.
a da gravidade, segundo
utilizado para
diz Ayub. Ele acredita
Basta chacoalhar seu
os dados do estudo.
alimentação, o soro
que esse tipo de reator
corpo para os lados,
A eficiência inata dos
precisa ser tratado
servirá para médios
naquele movimento
bichos em se livrar
como um efluente
e pequenos produtores
pós-banho que todo
rapidamente do excesso
industrial para não
no futuro para produzir
dono de cachorro
de água que os encharca
contaminar lagoas e rios.
etanol e com ele gerar
conhece muito bem.
diminui o risco de
Os experimentos para
energia elétrica. “Na
O cálculo foi feito por
sofrerem hipotermia,
a bioconversão do
Inglaterra existe uma
uma equipe de
uma baixa em sua
soro em etanol têm
empresa que converte
pesquisadores do
temperatura corporal. Os
a coordenação do
o soro em gás metano
Instituto de Tecnologia
pesquisadores acreditam
professor Marco Antônio
para esse fim.”
da Geórgia, Estados
que compreender esse
Unidos, que usou câmeras
mecanismo pode ser útil
de alta velocidade e um
para o desenvolvimento
traçador de partículas
de novos tipos de
para caracterizar as
equipamentos, como
sacudidas de 16 espécies
máquinas de lavar e
de animais (Journal of
secar mais eficientes.
Royal Society Interface,
“No futuro, a capacidade
on-line, 17 de agosto).
de se secar sozinho
Bichos grandes, como
e se autolimpar pode se
ursos, tigres e cachorros
tornar uma característica
avantajados, se
importante para câmeras
chacoalham quatro vezes
e outros equipamentos
por segundo enquanto
que operam em
os menores, como
ambientes úmidos ou
os camundongos,
com muita poeira”, diz
se sacodem mais de
David Hu, professor de
30 vezes. O esforço para
engenharia mecânica e
se secar faz com que
biologia do instituto, um
as gotas de água sejam
dos autores do trabalho.
16 | setembro DE 2012
Líquido esbranquiçado da produção de queijos pode se transformar em álcool
2
fotos 1 Georgia Tech / Andrew Dickerson 2 Bilder f. / Wikipedia 3 Wang et al / MIT ilustraçãO daniel bueno
Sensor em sutura mede temperatura do corpo
Estrutura em forma de folha plana do MoS2: esperança de novos circuitos eletrônicos
Pesquisadores da
membranas de silicone,
Universidade de Illinois
eletrodos e fios de
desenvolveram suturas
ouro com centenas
dotadas de sensores
de nanômetros de
de silício ultrafinos
espessura, embalados por
integrados a polímeros
um design em forma de
ou tiras de seda. Os fios
serpentina, o que permite
medem com precisão a
que ela seja esticada.
Um composto usado há
componentes eletrônicos
temperatura do corpo no
Os sensores foram feitos
décadas como lubrificante
com o dissulfeto de
local de uma ferida.
a partir de uma placa de
industrial tornou-se um
molibdênio, como um
A temperatura alta, por
silício, transformada em
bom candidato a ocupar
inversor de voltagem,
exemplo, é um indicativo
filmes ultrafinos por meio
uma posição de destaque
um tipo de porta lógica
de que o organismo está
de processos químicos,
na nova eletrônica.
e uma memória (Nano
combatendo a infecção.
que são então
Estudos indicam que, em
Letters, on-line, 3 de
As suturas são feitas
transferidos para as tiras
sua forma bidimensional,
agosto). O novo material
através da pele como em
de polímeros. Na última
o dissulfeto de molibdênio
é tão fino que se torna
um procedimento normal.
etapa são colocados os
(MoS2) parece possuir
transparente e pode ser
O trabalho foi divulgado
eletrodos metálicos
muitas das qualidades do
depositado sobre vários
on-line pela revista Small
e fios, que ficam
grafeno, um dos materiais
tipos de superfície.
de 14 de agosto. Para
encapsulados em um
mais promissores da
“Estamos no momento
desenvolver a sutura,
revestimento de epóxi
atualidade, e apresenta
mais excitante da
os cientistas norte-
para impedir a fuga
ainda uma importante
eletrônica dos últimos
-americanos usaram
de corrente elétrica.
vantagem extra. Com
20 ou 30 anos e portas
o MoS2 é mais fácil
para novos materiais
construir transistores
e aparelhos estão
que possam ser ligados
sendo abertas”, diz
e desligados, algo muito
Tomás Palacios, um
complicado de se fazer
dos autores do estudo.
num circuito eletrônico
O primeiro trabalho
à base de grafeno.
a explorar as
Pesquisadores do
potencialidades do
3
Um concorrente do grafeno
Massachusetts Institute
MoS2 em sua forma
of Technology (MIT)
bidimensional foi
conseguiram fabricar
publicado no ano passado
uma série de
por pequisadores suíços.
Os problemas na voz do professor Falta de ar ao falar, cansaço, rouquidão
uma coordenação inadequada da res-
voz no intervalo de trabalho e do efeito
nos últimos seis meses e voz mais gros-
piração durante o ato de discursar. Para
benéfico da ingestão da maçã sobre o
sa que o normal. Nessa ordem, esses
tentar minorar os problemas, Raquel
aparelho fonador”, diz Raquel, que de-
foram os quatro problemas vocais mais
aplicou um programa de saúde vocal de
fendeu tese de doutorado sobre a pes-
encontrados numa amostra de 102 pro-
três meses em 36 professores da amos-
quisa na Universidade Estadual de Cam-
fessores de 11 escolas públicas de Pira-
tra. Além de palestras sobre como a fala
pinas (Unicamp). Os participantes
cicaba, no interior paulista, que partici-
é produzida, os professores passaram
também foram orientados a evitar hábi-
param de um estudo feito pela
por sessões de exercício vocal e rece-
tos maléficos para a voz, como gritar,
fonoaudióloga Raquel Pizolato. Esses
beram dicas simples, mas que podem
pigarrear, usar sprays e pastilhas e beber
distúrbios podem estar ligados ao exces-
aliviar alguns sintomas. “Falamos da
com frequência líquidos gelados. No final
so do emprego da fala devido às carac-
importância de beber água durante a
do programa de reeducação, foi consta-
terísticas da atividade profissional e a
atividade profissional, de descansar a
tada redução na maioria dos sintomas. 3
3
PESQUISA FAPESP 199 | 17
Original da carta enviada por Boutens a Oldenburg mostrando o pequeno envelope fechado
capa
Uma incômoda
pitada de magia Pesquisadoras brasileiras descobrem pó alquímico em arquivo da Royal Society, sede da revolução científica e da razão Carlos Haag, de Londres
fotos Joanna Hopkins / Royal Society
N
ão é fácil abalar a fleuma britânica. Daí a sintomática reação de Keith Moore, diretor dos arquivos da Royal Society, ao ser questionado sobre a importância do achado das pesquisadoras Ana Maria Goldfarb e Márcia Ferraz, do Centro Simão Mathias da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Cesima PUC-SP). Com a sobrancelha levantada e cauteloso, Moore respondeu: “Estava debaixo de nossos narizes, mas em 350 anos ninguém encontrou”. Trata-se de uma pitada de pó amarelado e com odor fortemente pungente, embalado num pequeno envelope colado em uma carta de 1675 endereçada ao primeiro-secretário da Royal Society, Henri Oldenbrug (1515-1677), vinda de Antuérpia e enviada por um apotecário e alquimista chamado Augustin Boutens. Embora não tenha chamado a atenção até agora, é uma valiosa e concreta amostra do Ludus, um material secretíssimo, que, juntamente com o alkahest, famigerado solvente universal foi alvo de buscas que movimentaram gerações de alquimistas e mesmo filósofos naturais como Robert Boyle e Isaac Newton.
Após revelarem, em 2010, num projeto temático apoiado pela FAPESP, a única receita curta e completa conhecida do alkahest (“A agenda secreta da química”, Pesquisa FAPESP 154), de 1661, a dupla encontrou agora, afirmam, “uma amostra real de ‘Ludus composto’, com o que poderia ser um tipo de alkahest, de que se tem notícia desde o século XVII”. O que é o pó? Certamente a Royal Society quer que a amostra seja analisada por um de seus fellows, provavelmente Martyn Poliakoff (ver entrevista na página 26), vice-presidente da instituição. “Apesar da curiosidade pessoal, como pesquisadoras em história da ciência, não pretendemos ir ao laboratório procurando saber o que seria pelos moldes de hoje o tal pó, pois estaríamos impondo, de forma anacrônica, nossas ideias a estudiosos do século XVII”, fala Márcia. “O que importa é a descoberta de mais uma evidência forte de que uma boa porção das ciências antigas, como a alquimia, persiste mesmo após o surgimento de uma nova visão de ciência (e até fizeram parte na formação desta), mantendo-se na agenda das figuras que supostamente promoveram a revolução cientíPESQUISA FAPESP 199 | 19
Várias correntes concorreram para o surgimento da ciência moderna, fruto de passagem lenta que só se encerrou no século XIX
Lavoisier Visto como ápice da nova ciência, foi resultado de um processo longo e de muitas visões, que resultaram no laboratório moderno e padrão
século XVIII
Isaac Newton Expoente da razão, era um filósofo natural que uniu, como poucos, a racionalidade com crenças herméticas
século XVI-XVII
Robert Boyle Um hermético convertido em mecanicista que abriu um espaço na divisão entre as duas visões
Em comum Antiaristotélicos; experimentação e observação da natureza; ciência e religião se apoiavam; Herméticos Grupo heterogêneo
conhecimentos práticos
Mecanicistas Divisão
de filósofos da natureza,
entre mundo
com alquimistas e
inanimado e
neoplatonistas, cuja
matéria viva
visão de mundo incluía a magia, o encantamento
antiguidade
20 | setembro DE 2012
Aristotelismo
fica que originou a química moderna. Há uma história pouco conhecida que conta que essa passagem foi mais suave e coerente e só se encerrou no século XIX”, afirma Ana. Acima de tudo, confirma o credo das pesquisadoras de que fazer a história da ciência é arregaçar as mangas e enfrentar a poeira secular dos documentos originais para dar vida a eles. Prova disso, para surpresa de Moore, é que o documento passou pelas mãos da historiadora Marie Boas-Hall, responsável, nos anos 1960, pela imaculada catalogação da correspondência de Oldenburg, por 15 anos o “faz-tudo” da Royal Society. Diante do pequeno envelope, Marie Boas apenas anotou: “Amostra do que parece ser pirita, anexada ao texto”. “A obra de Marie Boas é impecável, mas, pensando como muitos em sua época, ignorou possíveis interesses alquímicos dos ‘novos cientistas’ e, assim, terminou por não investigar o caráter hermético das cartas de Oldenburg. Então, como alguns ainda fazem agora, era importante manter a ideia de uma ‘revolução científica’, o que incluía, por vezes, a ‘limpeza’ do passado e, por vezes, intervenções pouco recomendáveis”, avalia Ana. “Esse achado amplia a visão de que a filosofia química não morreu com o triunfo da visão mecânica e corpuscular. Saber que ainda se perseguiam materiais como o Ludus e o alkahest comprova isso e inclui mais nomes importantes na lista dos que praticavam essas buscas, mesmo alguns que se pensava convertidos ao racionalismo e, mais ainda, ao mecanicismo do século XVII”, explica Pyio Rattansi, professor emérito da University College London, que revelou a importância do hermetismo e da Bíblia nas obras científicas de Newton, até então visto como “santo padroeiro” da ciência moderna. “Além dele, outros ‘homens de razão’ tinham ‘segundas agendas’ que discretamente continham processos alquímicos”, conta Ana.
E
ssa revisão da história da ciência só veio à tona quando as pesquisadoras, apesar do “canto de sereia” da tecnologia, viram a limitação dos catálogos e das bases de dados digitais e se enfurnaram diretamente nos “fundos fechados” do arquivo, enfrentando a incredulidade inicial dos ingleses. “Tínhamos claro que era preciso procurar
fotos reprodução
O paradoxo da revolução lenta
entender o pensamento dos homens de ciência daquela época. Havia uma espécie de dualidade diante de qualquer descoberta ou fato novo: por um lado, havia a necessidade de manter sigilo, pois, em especial quando se tratava de materiais ou processos de laboratório, muitos eram verdadeiros segredos de Estado; por outro lado, estava uma das máximas (que, aliás, se mantém até hoje) da nova ciência, que defendia o saber elaborado por muitos e ao alcance de todos”, conta Ana. “Muitos estão se coçando para pôr as mãos nesse conhecimento e sabe-se lá o que farão para vê-lo publicado”, escreveu Newton a Oldenburg em 1676. Os meandros “rocambolescos” que as pesquisadoras precisaram vencer para encontrar a receita do alkahest é fruto dessa visão. “Depois das descobertas iniciais de documentos, consideramos que tudo relacionado ao alkahest na Royal Society estava claro e vísivel”, lembra Márcia. Até encontrarem a misteriosa carta de Boutens para Oldenburg. “Já se passaram anos desde que enviei ao senhor uma boa quantidade do Ludus helmontiano, a partir do qual eu produzi o material sulfuroso que anexo abaixo. Confio na sua sabedoria para entender que efeitos ele produz.” A referência ao mineral argiloso chamou a atenção de Ana e Márcia. Afinal, o Ludus era base, juntamente com o “liquour alkahest”, de uma receita produzida pelo médico belga Van Helmont (1579-1644), que dedicou sua vida a estudar os obscuros trabalhos de Paracelso para produzir o que seria o “remédio para todas as doenças”. Capaz de dissolver qualquer substância sem deixar resíduos, reduzindo-a a seus constituintes primários, o alkahest seria fonte de remédios poderosos, em especial contra os “males da pedra”, a litíase renal, causadora incurável de muitas mortes até o século XIX. “Segundo Van Helmont, era possível, por exemplo, fazer um remédio contra o cálculo urinário pela dissolução do Ludus com o alkahest. Não tanto pelo mineral, mas pela capacidade do alkahest em transformá-lo em fonte de cura. Tudo era fruto de um pensamento milenarista: o solvente seria um presente de Deus quando o mundo se aproximasse do fim”, explica o historiador Paulo Porto, professor do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP). O Ludus
Henri Oldenburg: secretário da Royal Society centralizava toda a informação para a Instituição e foi um dos pioneiros nos padrões científicos
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Pesquisadoras viram limitação dos catálogos digitais e se enfurnaram nos arquivos secretos, apesar da incredulidade inicial dos ingleses
funcionaria como a cápsula plástica que, hoje, envolve as pílulas, permitindo a difusão gradual do medicamento no organismo. O dilema dos alquimistas era justamente garantir que a solvência do alkahest acontecesse aos poucos, não matando o paciente ao tentar curá-lo. “Desde os anos 1640, o objetivo central da ciência inglesa era prolongar a vida das pessoas e o alkahest preparado com Ludus helmontiano seria o remédio indicado para isso”, diz Paulo. Para muitos contemporâneos, o rei Charles II criara a Royal Society, acima de tudo, para reunir as maiores cabeças da época a fim de que produzissem “o grande remédio”.
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or isso, a carta levantou suspeitas nas pesquisadoras. Como entender que após procurarem por anos o “grande remédio” não houvesse registros nas atas da Royal Society da chegada de uma amostra de seus componentes? Tudo indicava que estávamos diante de um ‘segredo’ valioso para os fellows da instituição”, diz Márcia. Era preciso, então, entender melhor a relação de Oldenburg e Boutens. A primeira pista foi uma carta de setembro de 1667, escrita para Boyle logo após o secretário sair da prisão, onde foi encarcerado pelos seus contatos “excessivos” com o exterior. Logo se PESQUISA FAPESP 199 | 21
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1 Salão de pesquisa da Royal Society, com as pesquisadoras brasileiras sentadas 2 Interior dos arquivos da instituição 3 Decreto de criação da Royal Society com a efígie do rei Charles II
A sedução epistolar vai adiante. “Gostaria que o senhor soubesse como os ingleses admiram operações químicas feitas por homens de bom senso que são livres dos preconceitos vulgares impostos pelo mundo por algumas pessoas que pretendem falar dogmaticamente sem nenhuma experimentação crítica preliminar, como o excelente senhor Boyle achou necessário fazer em seu Sceptical Chymist (1661)”, continua. “Sabemos que há Ludus helmontiano em abundância na sua região: peço ardentemente que nos envie para Londres por mar.” Em dezembro, chegou a resposta de Boutens: “Vou enviar mais de 70 quilos do Ludus com a descrição do método que utilizo para fazer o remédio”. O pagamento da empobrecida Royal Society foi feito em livros, cobiçados por alquimistas. A carta foi recebida com grande entusiasmo pelos membros da Royal Society, assim como outra carta escrita por Boutens alguns meses depois descrevendo os lugares onde era possível encontrar o Ludus. Essa correspondência, no entanto, não teve continuidade e apenas em junho de 1675 aparece uma nova carta de Boutens justamente aquela em que está afixada a amostra do “pó secretíssimo”.
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descobriu que a correspondência intensa era parte de seu trabalho. Oldenburg trocava cartas com quem pudesse ter ou conhecer informações sobre ciência, incluindo algum segredo sobre a “Arte”. E os vários espiões espalhados pela Europa o informavam de qualquer experiência. Sintomaticamente, a carta para Boyle foi a primeira coisa que fez após sair da prisão. “O senhor menciona uma caixa que, creio, foi endereçada a mim. É Ludus da Antuérpia. Sinta-se livre para abri-la e depois enviá-la a mim, com sua opinião se é o Ludus genuíno.” Várias cartas mais tarde, com o mesmo teor de súplica humilde, não foram suficientes 22 | setembro DE 2012
para Boyle atender a seu pedido e parece que Oldenburg nunca pôs as mãos na preciosa caixa. Os arquivos foram revelando aos poucos os elos do secretário e Boutens, o alquimista da Antuérpia. Em novembro de 1667, Oldenburg escreveu ao alquimista: “Soube por um amigo de Paris (certamente um de seus espiões) de sua grande predisposição para a curiosidade e sua inclinação especial pela sólida filosofia que se fundamenta na observação e nos experimentos que estamos tentando estabelecer aqui na Royal Society. Também fui informado de suas tentativas infatigáveis de descobrir os segredos da natureza pelo bom caminho da química”.
ldenburg, porém, não respondeu à carta. De início, as pesquisadoras atribuíram a atitude nada típica do secretário ao excesso de trabalho. Mas descobriram outra razão. Francis Mercurius, filho de Van Helmont, estava no mesmo período na Inglaterra e, sabidamente, tinha conhecimento dos muitos segredos do pai... até mesmo amostras de seus materiais. Junior, como era conhecido, aproximou-se rapidamente de grandes estudiosos ingleses. Através de Henri More, tornou-se mentor de Lady Anne Conway, vítima de terríveis enxaquecas que o próprio Harvey não conseguiu curar. Por sua vez o circulo de Lady Conway incluía, além de Henry More e Ralph Cudworth, líderes dos Platonistas de Cambridge, e também um experiente homem de laboratório como Ezekiel Fox croft que, por sua vez, era íntimo amigo e colaborador do grande Newton. “O que os unia era a preocupação com o ceticismo radical da época, que tentaram combater com a aceitação ‘racional’ de profecias bíblicas mescladas com visões milenaristas. Para justificar o novo universo científico cético, assumiram o ideal
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Para Rattansi, achados obrigam a uma revisão das origens intelectuais da ciência dos séculos XVI e XVII de que viviam tempos como os descritos nos livros de Daniel e Revelação”, observa Rattansi. Para Daniel, o conhecimento aumentaria à medida que a humanidade se aproximasse de seu final. Isso era a realidade cotidiana do século XVII e estava presente no forte diálogo de Junior com Lady Conway. E os dois acabaram se convertendo à seita dos quakers, notórios milenaristas adeptos desses ideais. Além disso e como seria de esperar, Junior levou para a Inglaterra não apenas as receitas do pai, mas também amostras de seus materiais secretíssimos, entre estes pedaços do precioso Ludus. Um desses pedaços foi dado por
ele a Foxcroft, que o repassa a Newton, que, por sua vez, o repassa ao naturalista John Woodward. “Newton me deu um pedaço do material trazido da Alemanha pelo jovem Helmont como o verdadeiro Ludus de seu pai, que, na minha visão não é em nada diferente do achado aqui mesmo na Inglaterra”, anotou descrente. O interesse de Newton no Ludus e outros materiais semelhantes, como o alkahest, era profundo e isso agora aparece de forma visível. E a caixa enviada a Oldenburg anos antes? “Boyle a tomou para si, entregando a Locke, que era um de seus homens favoritos no laboratório, para que ele analisasse”, conta Ana.
“Tais revelações ampliam o espectro da ligação complexa do círculo inglês com a ciência nascente, e debates como aquele entre empiristas e racionalistas começam a perder sentido”, acredita Rattansi. Segundo o professor, os achados obrigam a uma revisão das origens intelectuais da ciência dos séculos XVI e XVII. “A ciência aristotélica estava desacreditada como estéril. Houve então uma cisão entre a ‘filosofia mecanicista’, baseada em Galileu e Descartes, e grupos heterogêneos de ‘filósofos da natureza’, em especial neoplatonistas e herméticos. As diferenças entre os grupos não eram tão acentuadas: eles eram antiaristotélicos; defendiam a observação, a experimentação e a experiência em detrimento da razão abstrata; preconizavam que ciência e religião apoiavam-se uma na outra; ambos sonhavam em elevar e espalhar o conhecimento sobre a natureza para fins práticos”, analisa o professor. PESQUISA FAPESP 199 | 23
1 Fachada da Royal Society, em Londres 2 Hall do segundo andar com a porta da biblioteca 3 Selo da instituição com a frase Nullius in verba: não se confia apenas nas palavras, mas nos experimentos
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as enquanto um grupo entendia que por trás de todas as mudanças na natureza havia o mecanismo da matéria em movimento, os outros viam essas alterações como o jogo de simpatias e antipatias secretas, agindo a distância. “Para os mecanicistas havia uma divisão entre o mundo inanimado da matéria e aquele da alma e da inteligência. Já os herméticos criam que tudo possuía vida e entendimento. Em resumo: as crenças se dividiam entre os que tinham uma cosmovisão mágica e encantada, plena de acontecimentos prodigiosos, enquanto os mecanicistas optaram pela visão de um mundo sóbrio, desencantado e preocupado principalmente com o curso cotidiano da natureza.” As novas descobertas mostram, de forma mais contundente, semelhanças entre as duas vertentes e obrigam a relativizar esse quadro, explica Rattansi. Pouco antes da Revolução Gloriosa, a ciência hermética tomou conta da Inglaterra, por conter o ideal de uma nova filosofia natural como parte de um grande projeto reformista, o que explica a harmonia inicial entre correntes poderosas da revolução e os herméticos, e os puritanos foram em parte responsáveis pela divulgação dessa visão encantada e reformadora. Em tempos de guerra, fome e miséria, uma corrente que preconizava a realização de feitos para melhorar a vida cotidiana, a agricultura, a educação e a saúde de todos tinha grande apelo po-
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pular. Logo, alguns grupos começaram a pregar reformas intensas, como o de Samuel Hartlib e seu Colégio Invisível, apoiado nas máximas do tcheco Jan Comenius, que foi convidado a ir à Inglaterra, onde escreveu extensamente sobre educação com ideias que combinavam, às vezes, alquimia e filosofia natural. Entre as propostas estava a criação de universidades em todas as cidades. Mesmo Boyle e outros que viriam a fundar a Royal Society, simpatizantes da causa de Comenius, começaram a temer pela ordem e estabilidade nesse clima de sectarismo. A Inglaterra passou a ser invadida desta vez pelas novas doutrinas “sóbrias” de
Descartes e de Gassendi, com um número notável de conversões à ciência mecanicista, que passou a ser apreciada como a mais apropriada, uma grande síntese entre teologia e filosofia natural: se o universo era como uma máquina, a doutrina aponta para o seu criador. “Na Inglaterra do século XVII era usual o estudo da filosofia natural se harmonizar com a visão mística e teológica do mundo. Daí a reverência de Newton, mas não apenas dele, como sabemos agora, à prisca sapientia, o conhecimento dos clássicos que ele e outros acreditavam ser verdades reveladas por Deus aos primeiros habitantes da Terra”, diz Rattansi.
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Os arquivos da Royal Society são lembranças salutares das muitas correntes que se uniram à revolução científica do século XVII
Assim, continua o professor, os achados das pesquisadoras reforçam essa perspectiva revisionista da revolução científica, pois, mesmo após a aceitação das explicações mecanicistas, os problemas que chamavam a atenção de figuras racionais como Newton e Boyle eram os mesmos que preocupavam os herméticos: a transmutação e o alkahest; a ação do pó de simpatia; a influência das constelações sobre os homens e o uso de fórmulas magistrais com fins medicinais. “O que se encontra nos arquivos da Royal Society são lembranças salutares das muitas correntes que concorreram para a revolução científica do século XVII. São lembranças de em que medida criadores da ciência moderna, como Newton, ainda usavam a tradição hermética junto à nova filosofia natural.” “Os problemas médicos sempre lideraram os interesses, e os médicos sempre foram uma comunidade abrangente. As pessoas que olhavam para um contexto
maior, como Isaac Newton, sempre existiram em menor número, mesmo nos séculos xvii, xviIi e xix. Por exemplo, em 1820, havia apenas 100 pessoas nessa ilha para realizar pesquisa. A ciência não era vista como algo que pudesse resolver os problemas da tecnologia ou da medicina, por isso não havia investimento em capital humano para trabalhar nessas áreas”, lembra o historiador da ciência Frank James, presidente da Royal Institution. “Está claro que o trabalho de Newton relacionado à força e à gravitação está associado às experiências com a alquimia, exatamente porque esses conceitos não estavam contemplados no pensamento filosófico daquele período. E esse é o motivo que faz com que outros autores tenham problema com as ideias de Newton, posto que eles não necessariamente reconhecem como legítimas as origens de seus postulados. Somente Newton sabia da validade de seus estudos porque muito se baseava nos seus trabalhos como alquimista”, analisa James. “Newton só fez as descobertas que realizou ao lançar mão de todas as maneiras de conhecimento, o que permitiu que visse o que pensadores ‘racionais’ não conseguiram enxergar”, concorda Rattansi.
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historiador Michael Hunter, do Birbeck College, em Londres, vê “exagero nessas afirmações”. “Alguns membros individuais podem até ter se aventurado na alquimia ou na busca por curas milagrosas, mas deixavam isso de lado quando se reuniam na Royal Society, que marginalizava buscar mágicas em detrimento do estudo da filosofia natural, da qual a instituição foi a maior propagadora publicamente”, fala Hunter. “É preciso lembrar que a Royal Society funcionava como uma entidade corporativa e teve um papel fundamental em estabelecer as fronteiras do que era ou não ciência”, observa. Segundo ele, nos artigos do Philosofical Transactions tais alquimias eram tratadas de forma tangencial, quando se falava delas. Era um ponto de honra para o seu editor, Henri Oldenburg, que rejeitava “magias”. “Encontramos raramente investigações de laboratório ligadas à alquimia, até mesmo porque o público intelectual da época rejeitava coisas sobrenaturais e entrar nessa seara significaria sujar a reputação de quem o fizesse”, analisa Hunter. Vale lembrar, no entanto, que as pesquisadoras
encontraram também um documento, de punho e letra de Oldenburg, listando “as experiências feitas na Royal Society da Inglaterra durante a presidência de Sir Murray”, entre as quais se encontra a que foi realizada com o alkahest. Seja como for, o ponto mais importante nessa história que, hoje, pode passar desapercebido é a padronização dos modos de pensar e operar no laboratório. “Num mundo em que a alquimia trabalhava com teorias e receituários sigilosos, cada grupo de estudiosos tinha diferentes formas de pensar e operar sobre a matéria. O trabalho da Royal Society e de Oldenburg, então, pode ser visto como uma forma de reunir esses grupos dispersos e estabelecer padrões de trabalho no laboratório que pudessem ser repetidos como reza a ciência moderna”, diz Ana. Isso está presente na correspondência do secretário com o médico hermético veneziano Francesco Travagino. Oldenburg descobre que o amigo italiano convertera mercúrio comum em prata pura e desejava ter a receita. Ao enviá-la, Travagino lamenta ser incapaz de repetir o feito. A resposta de Oldenburg revela os anseios da época em encontrar um rumo moderno para a ciência do laboratório: para ele, uma das maiores dificuldades em qualquer procedimento era ter como um dos raros parâmetros a origem do material. “Assim como Boyle, Oldenburg pensava em estabelecer padrões claramente definidos de forma que o experimento pudesse ser reproduzido e universalmente aceito”, observa Márcia. As cartas revelam que o primeiro secretário da Royal Society, talvez, tenha sido bem mais do que um intelligencer trocando ideias com grandes figuras como Boyle. Um imigrante sempre visto com desconfiança e ciente de sua posição como secretário, Oldenburg preferiu compartir suas ideias e possível experiência de laboratório com outros membros dessa sociedade. Com isso teria obtido, em troca, posto oficial e um salário mais digno. Partimos, então, para um novo mistério, relacionado à possível ingestão de sigilosos preparados herméticos, com consequências muitas vezes dramáticas, envolvendo novamente várias figuras do cenário inglês. Uma história ainda sob investigação, mas que as pesquisadoras prometem será muito bem fundamentada em documentos. n PESQUISA FAPESP 199 | 25
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entrevista y
Tradição de reunir saberes Vice-presidente da Royal Society, Martyn Poliakoff, elogia cientistas brasileiros e a FAPESP, mas lamenta a falta de conhecimento de inglês de acadêmicos
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ntes de a entrevista começar, o químico Martyn Poliakoff, ainda não confirmado como o analista do pó descoberto pelas pesquisadoras brasileiras Ana Goldfarb e Márcia Ferraz (ver página 18), preferiu manter a fleuma britânica dizendo que “não estava informado” sobre o assunto e que não era “especialista nessas questões”. Vice-presidente da Royal Society, ele é também seu secretário de Relações Exteriores, cargo de que a instituição se orgulha de ter “inventado” em 1723, antecipando em seis décadas a criação da mesma posição no governo britânico. Em “retaliação” ao seu silêncio, não foi feita nenhuma pergunta, como é comum na mídia, sobre seu famigerado cabelo, que diz manter “porque assim todos me conhecem”. Amigos do cientista usaram um fio da cabeleira para nele escrever a menor tabela periódica do planeta, paixão de Poliakoff e tema da série Periodic table of videos (www.periodicvideos. com), que ele mantém no YouTube, com filmetes curtos sobre os elementos que já foram vistos por quase meio milhão de pessoas em 200 países, incluindo o Brasil, que ele acaba de visitar. Após participar da 34ª Reunião da Sociedade Brasileira de Química, em Florianópolis, em maio, ele partiu para o Rio, onde filmou no Jardim Botânico (sobre a química das árvores brasileiras), no Cristo Redentor (sobre pedra-sabão) e na praia de Copacabana (sobre areia). “Fiquei desolado ao visitar uma importante universidade brasileira e descobrir que eles estavam sem poder usar um 26 | setembro DE 2012
equipamento de pesquisa porque faltava um componente dos mais triviais, um parafuso qualquer. Algo precisa ser feito rapidamente para que coisas assim não aconteçam”, fala. “É importante identificar áreas de países que têm uma contribuição única a dar, como, por exemplo, a vegetação brasileira. Algumas plantas têm componentes químicos com grande potencial medicinal e exigem equipamentos simples para extraí-los”, avisa. É uma surpresa se descobrir alquimia na Royal Society? Não. Há químicos modernos que tentam misturas a partir da urina e coisas assim, o que é quase alquimia. Quando cientistas vão de uma linha de pensamento para outra, é preciso levar em consideração o ponto de partida. Se pensar no ponto intelectual do qual Newton partiu, ele não começou no vácuo, mas pegou o conhecimento que existia e o desenvolveu a partir daí. Do mesmo modo, cientistas modernos não iniciam seu posicionamento na ciência com as mesmas visões religiosas que eram correntes no século XVII. Uma das grandes revoluções que celebramos na Royal Society é que ela desenvolveu uma crítica entre pares, ou seja, quando se sugere algo, você usa a opinião dos outros para ver se conseguem destruir sua ideia. Cria-se um debate científico. As pessoas estavam preparadas para aceitar o que tinham aprendido do passado, fossem os escritos da Bíblia, de Aristóteles, ou os escritos de antigos alquimistas. A revolução do pensamento foi que decidiram que podiam fazer seus próprios experimentos e interpretar
os resultados que se podia ver, em vez de dizer: “Aristóteles falou que isto está descendo porque algo o está empurrando para baixo” ou coisas do gênero. Se as pessoas não estivessem observando os planetas e seus movimentos por centenas de anos, Newton não teria informações por onde começar. E não importa se estavam fazendo isso para entender o Universo ou para ler a sorte das pessoas ou o que quer que fosse. Desde que suas observações fossem razoáveis, a razão pela qual faziam aquilo não importa. Existe uma analogia moderna muito boa, a de pessoas estarem usando amostras de museus de história natural para estudar coisas como DNA e genética e todo tipo de coisas assim, mesmo com as amostras tendo sido coletadas antes que se soubesse da existência do DNA. Nos tempos da fundação da Royal Society havia muito poucas pessoas interessadas nessas questões e se era obrigado a falar com gente na Alemanha, ou na Holanda, ou qualquer outro lugar, porque só havia meia dúzia de pessoas na Inglaterra que se interessava por assuntos da ciência. Talvez, até menos. Há muitos que rejeitam esse passado. Isso é um problema, porque estou certo de que, daqui a 100 anos, pessoas vão considerar coisas que fazemos hoje em ciência como bobagens. Meus avós nasceram numa época em que mulheres não votavam. Hoje isso parece absurdo, mas na época era normal. Mesmo para mim é difícil entender como as pessoas daquela época podiam ter crenças tão profundas, pois tenho a cabeça do meu tempo.
Joanna Hopkins / Royal Society
Essas pessoas viam a ciência como forma de melhorar a vida de todos. E agora? Creio que ainda buscamos isso. Seguimos diversos caminhos para produzir fertilizantes, alimentos, para fornecer roupas e a maioria dos materiais de construção de que precisamos, e com o aumento da população mundial essas coisas são mais e mais necessárias. O que eu acredito firmemente é que, com esse crescimento populacional e particularmente com o fato de que há muitas pessoas muito pobres, precisamos encontrar meios de prover mais benefícios para a humanidade a partir da mesma quantidade de minerais, plutônio, e assim por diante, para que possamos satisfazer essas necessidades. Isso é o bom do trabalho acadêmico, que se parece com o dos jornalistas, que ficam entusiasmados com uma história e depois, quando partem para outra matéria, ficam ainda mais excitados. O único modo de fazer pesquisa é manter sempre esse entusiasmo. Como vê a ciência feita no Brasil e de que maneira o país poderia fazer parcerias com a Royal Society? Fico bastante tocado com o entusiasmo dos cientistas brasileiros, mas igualmente impressionado com o nível baixo de proficiência deles em inglês, o que dificulta o nosso diálogo com os acadêmicos do seu país. Mas essa paixão pela ciência é inegável, ainda mais quando recebe um bom apoio governamental de organizações como a FAPESP. No estado de São Paulo há um engajamento muito positivo em comparação ao que se faz em muitos outros países, algo importante ante as oportunidades fantásticas com a biodiversidade e os recursos naturais com que se pode criar uma ciência nova. Penso que a Royal Society pode catalisar as interações entre brasileiros e os ingleses. O Brasil é um país jovem, cienti ficamente falando, apesar de ser um dos mais velhos, historicamente, no Novo Mundo. Mas podemos mostrar a jovens que vêm de instituições recentes como fazemos ciência aqui, para que usem uma abordagem similar, mas focada em
Martyn Poliakoff: “Quando estive no Brasil me senti, pela primeira vez, cidadão do mundo, e não de apenas um país”
novos problemas na ciência brasileira. A Royal Society se encontra numa posição única para juntar as pessoas para discutir os problemas enfrentados por nossa sociedade. Temos a tradição e o status para reunir pessoas que talvez não o fizessem, e assim podemos trazer as melhores mentes no mundo para discutir o que for importante, os problemas de nosso tempo, e eu sei que não só vamos continuar a fazê-lo, como o faremos de forma mais eficiente no futuro. Cheguei no Brasil uma semana antes da Rio+20 e durante as discussões com os brasileiros reforcei a sensação de que, pela primeira vez, me senti cidadão do mundo, não de um país em particular. O que é o seu grupo de “química verde”? Comecei com um estudo de fluidos supercríticos, que podem ser usados como solventes mais limpos em reações químicas, bem antes de se falar em “química verde”, na década de 1980, e vi uma grande janela
de oportunidades. Creio que o Brasil é um campo perfeito para ela. A ênfase é na criação de uma forma “mais limpa” de química, que não cause os mesmos problemas ambientais, para que se preserve o ambiente. Ao mesmo tempo, ela examina como se pode usar biomassa e esses materiais “limpos” para gerar substâncias químicas. Temos um bom exemplo na Braskem. Especialmente em países desenvolvidos, como o Reino Unido, a química tem uma imagem muito ruim. É possível mostrar uma química que pode beneficiar a todos. Tenho a impressão de que, apesar de a ciência manter uma visão progressista nos últimos 350 anos, isso não impede as pessoas de repetir o que se faz há milhares de anos: os mais velhos dizerem que as coisas eram melhores na sua infância. Eu, ao contrário, acho que as perspectivas que a ciência traz são muito melhores. Temos que ser otimistas, porque, se falharmos, não há futuro para a humanidade. n Carlos Haag PESQUISA FAPESP 199 | 27
entrevista
Ensinar ciência é preciso Marcos Pivetta e Fabrício Marques
Nos últimos 20 anos, o bioquímico Bruce Alberts tem ocupado posições de destaque em instituições acadêmicas dos Estados Unidos que o afastaram um pouco da rotina de pesquisador acostumado a estudar proteínas e genes e canalizaram seus esforços para outra de suas paixões: o ensino e a divulgação de ciências. O início dessa guinada profissional foi em 1993, quando aceitou o convite para assumir a presidência da Academia Nacional de Ciências (NAS, na sigla em inglês) em Washington. O novo emprego obrigou-o a fechar seu laboratório na Universidade da Califórnia em San Francisco (UCSF), onde estava desde 1976. Em princípio, a temporada na capital americana deveria durar seis anos. Mas o fascínio pelo trabalho à frente da NAS levou-o a permanecer no cargo por 12 anos. Alberts foi um dos responsáveis pela criação e implementação em 1996 dos National Science Education Standards, um conjunto de diretrizes para o ensino de ciências adotado pela escola primária e secundária dos Estados Unidos. “Ensinamos ciência na escola como se fosse um dogma. Não explicamos de onde vêm os fatos e as ideias. O aluno é estimulado apenas a memorizar palavras”, afirma o bioquímico. Em 2005 Alberts deixou a chefia da NAS e voltou à UCSF na condição de professor emérito. Três anos mais tarde um outro convite empurrou-o novamente para Washington, onde assumiu o cargo de editor-chefe de uma das mais respeitadas revistas científicas, a semanal Science. Dessa vez ele não trocou em definitivo a costa oeste pela vizinhança da Casa Branca. Desde 2008 passa em geral uma semana por mês no escritório central da Science na capital americana e faz o resto do trabalho em San Francisco, por e-mail. 28 | setembro DE 2012
idade 74 anos especialidade Bioquímica e política para ensino de ciência formação Universidade Harvard (graduação e doutorado) instituição Professor emérito da Universidade da Califórnia em San Francisco e editor-chefe da revista Science
Léo Ramos
Bruce Alberts PESQUISA FAPESP 199| 29
O bioquímico, que também exerce a função de enviado para assuntos de ciência do presidente Barack Obama, esteve no Brasil entre o final de julho e o início de agosto. Participou de um congresso no Rio de Janeiro, visitou universidades e deu palestras ao público. Em São Paulo fez uma concorrida apresentação na sede da FAPESP. Nesta entrevista Alberts fala do trabalho na Science, do ensino de ciências e dos desafios da excelência em pesquisa. O que torna um artigo científico interessante para ser publicado na Science? Há tipos extremamente diferentes de bons papers [artigos científicos]. Eu, por exemplo, publiquei a maior parte dos meus trabalhos em bioquímica no Journal of Biological Chemistry porque eram artigos que mostravam, passo a passo, a purificação de proteínas. Há muita ciência importante que não é apropriada para Science ou Nature. Os artigos para essas grandes revistas são raros, devem ser o resultado final de uma soma de passos e interessar a um grande número de cientistas. Devo ter publicado uns 200 papers e talvez uns três ou quatro na Nature ou Science. Acho que todos os outros papers eram bons, mas eram um passo rumo ao conhecimento. A biologia é complexa. Você progride caracterizando uma proteína de cada vez. Quando você publica, não sabe como essas coisas vão se somar e resultar em algo. Os papers da Science e da Nature devem ter apelo para muitas pessoas e tratar de algum conceito fundamental – e não apenas da descoberta de uma nova proteína. Na Science aceitamos 5% dos papers que são submetidos. Há muitas pessoas que nos submetem papers totalmente inapropriados. Há muita pressão para publicar em revistas de alto impacto.
ridículo. Ele mede o impacto da revista. Precisamos de algo que dê uma ideia do impacto dos papers. É sempre possível publicar um artigo que nunca será citado por alguém numa revista com alto fator de impacto. Gostaria que as pessoas olhassem mais para o número de downloads de um artigo. Ele dá uma noção muito mais rápida do interesse provocado por um trabalho. É muito fácil medir isso hoje em dia. Além disso, os índices de citação de artigos em alguns campos do conhecimento, como câncer e imunologia, podem ser altos, as pessoas citam umas às outras, mas a maioria dos trabalhos publicados é um lixo. Todo paper tem o seu lugar adequado para ser publicado dependendo
Todo aluno de doutorado deveria escrever um resumo de sua tese que sua avó entendesse
A publicação de papers em revistas de alto impacto pode ser uma boa maneira de avaliar a excelência de uma pesquisa? Para mim, usar o fator de impacto das revistas como um critério de medida é 30 | setembro DE 2012
do seu conteúdo. Na Inglaterra há hoje professores de biologia lendo as revistas científicas e separando o que eles acham que é valioso. Apoio esse tipo de iniciativa. Não se deve preocupar muito com a revista onde se publica. Precisamos de maneiras mais eficientes de reconhecer bons artigos. Eu apoio o sistema adotado nos Estados Unidos. Quando um pesquisador está para ser promovido ou em via de ser avaliado, pedem para ele separar os cinco trabalhos mais importantes que fez. Essa é sua contribuição à ciência. Ninguém pede todos os trabalhos do candidato. Dessa forma, tenho condições de ler os cinco trabalhos e avaliar o candidato. Mas não é possível fazer isso se me entregam 80
artigos. Nesse caso, tudo o que posso fazer é ver onde os artigos foram publicados. Harold Varmus [Prêmio Nobel de Medicina de 1989] está tentando mudar essa mentalidade nos National Institutes of Health (NIH). O Instituto Howard Hughes e vários outros já utilizam essa outra forma de avaliar. Acho que é muito importante pensarmos em como avaliamos na ciência. Tenho um amigo físico da Academia Francesa de Ciências que está na China dando aulas e que ficou surpreso em ver que as pessoas lá estão publicando muitos papers, mas os trabalhos são de pouco valor. Eles fazem isso porque há pressão para publicar muitos trabalhos. Não estão interessados em fazer boa ciência, mas em ter o maior número possível de papers publicados. Querem publicar muito. Ficam fazendo sempre a mesma coisa, mudam um detalhe no trabalho, mencionam coisas sem importância. Seria bom o Brasil ter um sistema mais sofisticado para medir a produção científica, algo que faça sentido. Não façam o que a China faz. Qual é a sua impressão da ciência brasileira? Já estive várias vezes no Rio de Janeiro. Mas, antes desta visita, só tinha estado em São Paulo 40 anos atrás. Estive no Rio agora num congresso de biologia celular por cerca de uma semana e visitei a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em São Paulo estive na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e na Universidade de São Paulo (USP). Conheço também a produção científica brasileira de artigos na Science e em outras revistas. A ciência brasileira está realmente crescendo já há algum tempo. A Embrapa, por exemplo, é famosa mundialmente por desenvolvimentos na área de agricultura. No setor de energia, o Brasil é o melhor na produção de etanol de cana-de-açúcar. Em muitos aspectos, o país está indo muito bem. A produção de vacinas na Fiocruz, no Rio de Janeiro, onde estão construindo uma nova fábrica, é realmente impressionante. Felizmente, vocês têm bons líderes na
eduardo cesar
Palestra de Bruce Alberts na FAPESP: formas de medir o impacto da ciência
ciência ocupando posições importantes. Encontrei reitores de universidades que me impressionaram. Vocês têm um bom sistema de pesquisa. Estive na Índia, por exemplo, onde os reitores das universidades estaduais são apontados pelo governador, que muda a cada cinco anos. Eles não são escolhidos de maneira correta. Claro que há problemas no Brasil. Os pesquisadores conseguem um emprego e ficam na mesma universidade para sempre, às vezes sem um sistema de avaliação. Fiquei sabendo que a Unicamp encontrou uma fórmula de contornar esse problema. É uma universidade nova, que pode contratar pessoas por curtos períodos, como 12 horas por semana. De todo modo, o Brasil tem uma grande capacidade, as instalações estão sendo aprimoradas e muitas coisas estão acontecendo. Há muita cooperação entre os laboratórios e os jovens estudantes são entusiasmados pela ciência. Depois de um debate de meses sobre o risco de fomentar o bioterrorismo, Nature e Science publicaram recentemente os artigos de dois grupos de pesquisadores que haviam criado versões modificadas do vírus da chamada gripe aviária (H5N1) que poderiam ser transmitidas pelo ar de um mamífero a outro. O senhor acha que a publicação dos papers foi uma boa solução para o impasse? Nesse caso acho que foi. Não acredito que o vírus seja assim tão perigoso. Houve muita confusão no início de tudo. Foi um teste de estresse para o sis-
tema de publicação e vimos que ele não funcionou. Agora temos que encontrar um sistema melhor. Nesse caso havia dois problemas. Um era fácil de resolver. Era preciso passar algum tempo com os autores dos trabalhos para entendê-los melhor. O outro é que não seria realmente possível evitar que a informação se tornasse pública. O vírus era originário da Indonésia e havia cientistas desse país que tinham a informação sobre a mutação relatada nos papers. Precisamos pensar num sistema internacional que cuide desse tipo de situação. Espero que alguém esteja fazendo isso. Tenho certeza de que no futuro, daqui a cinco anos, haverá um caso sério desse mesmo tipo. Precisamos estar prontos para isso. O pessoal dos NIH, da Academia Nacional de Ciências, os que lidam com terrorismo, todos acreditam que isso um dia vai acontecer. Qual sua opinião sobre as publicações que adotam o sistema de accesso aberto e gratuito a todos os artigos científicos? Há vários modelos de publicação. Há o chamado gold open access. Nesse sistema o pesquisador paga pelo custo de publicação do artigo numa revista e o acesso ao trabalho é imediato e gratuito a todos. O problema é que os cientistas de alguns países, como os da África do Sul, não podem pagar para publicar seus artigos. Então esse modelo não vai ser bom sempre nem para todos os casos. Esse sistema também não funciona para Nature, Science e outras revistas muito seletivas. Se adotássemos esse modelo, o custo para publicar um artigo na
Science seria algo como US$ 20 mil. Na revista temos de analisar 20 artigos para escolher apenas um. Isso tem um custo. Temos 23 cientistas de alto nível, que são editores da Science e trabalham na análise dos artigos. Alguém tem de pagar o salário deles. Há, no entanto, um outro modelo que, acho, a Science poderá apoiar. É o green open access. Por esse sistema, todos os artigos se tornam gratuitos e abertos seis meses após a publicação. O Wellcome Trust da Inglaterra está apoiando esse modelo, que nos permite vender assinaturas para as bibliotecas e não ter de cobrar dos autores para publicar. Além disso, haveria ainda maneiras de tornar o acesso imediato e gratuito para os países em desenvolvimento. Quando era presidente da Academia Nacional de Ciências, foi isso o que fizemos. O que o senhor achou do boicote que alguns cientistas defenderam contra a editora científica Elsevier? O problema da Elsevier é que você tem duas alternativas: compra acesso a todas as revistas ou a nenhuma delas. Para ter as revistas que você quer, tem de comprar junto as que você não quer e aí fica caro. Isso não é razoável. A questão é a seguinte: se instituirmos modelos como o gold ou green open access, muitas revistas desaparecerão. Elas são tão pobres que ninguém se dará ao trabalho de esperar seis meses para lê-las no caso do green access. Elas serão substituídas por revistas como a PLoS One. Tenho certeza de que a Elsevier tem muitas revistas nessa situação. PESQUISA FAPESP 199 | 31
Por que o senhor vai deixar a Science em março do próximo ano? Tinha um acordo para ficar um período de cinco anos. Devo sair em março ou abril assim que tivermos um substituto. Estou ficando velho. Não quero ficar mais cinco anos na Science. Moro em San Francisco e tenho de ficar uma semana por mês em Washington [para editar a revista]. Fora isso, há muito trabalho por e-mail. Mudando de assunto, o senhor acha que os cientistas são bons comunicadores da ciência? Alguns são. Mas eu e muitas pessoas reclamamos que eles escrevem resumos dos seus trabalhos que ninguém entende. Sou um biólogo e leio resumos de artigos de biologia que eu não entendo, onde encontro palavras com três letras que eles não explicam o que é. Isso é desapontador. Os cientistas são tão estreitos e não percebem que ninguém entende todas as palavras. Temos de fazer um trabalho melhor e aprimorar a educação científica. A ideia não é minha, mas eu apoio a proposta de que todo aluno de doutorado tenha de escrever um resumo de duas páginas de sua tese que sua avó possa entender antes de ser aprovado. Essa ideia é sensacional. Os cientistas precisam sair do seu mundo. Estão fazendo isso em algumas universidades, como na de Manchester, no Reino Unido. Harvard não está fazendo isso... Não acho que o empreendimento científico possa sobreviver se a comunicação não for boa. O público tem de entender o que é a ciência para poder apoiá-la. Ensinamos ciência na escola como se fosse um dogma. Não explicamos de onde vêm os fatos e as ideias. O aluno é estimulado apenas a memorizar palavras. Tenho tentado mudar na revista Science como vemos a educação científica, redefini-la. Nosso primeiro objetivo é fazer as pessoas entenderem a ciência, mostrar de onde vem o conhecimento, fazê-las pensar como um cientista e aprender a procurar por uma evidência científica. Isso é importante para todos. É, por exemplo, importante para as pessoas entenderem
o que os cientistas estão dizendo sobre o aquecimento global. De onde vem esse conhecimento? Na Academia Nacional de Ciências publicamos a cada 10 anos um livro sobre a evolução da ciência e o criacionismo. Ficamos surpresos ao descobrir que adultos com formação universitária não viam nenhuma diferença entre os dogmas da ciência, entre o que os cientistas acreditam, e os dogmas dos pastores, dos que acreditam no criacionismo. As pessoas achavam que podiam escolher qualquer um dos dois tipos de dogma, o da ciência ou o do criacionismo. As pessoas não entendiam como era feita a ciência, como se testava o conhecimento. Elas nunca aprenderam isso. Mudar isso será uma tarefa enorme.
Não entendo isso. O criacionismo afeta sua visão pessoal, é muito emocional. As mudanças climáticas não afetam esses mesmos sentimentos. Quem são os responsáveis por essa situação? Nos Estados Unidos, todo mundo que faz faculdade frequenta uma ou duas disciplinas de ciência. Essa é a última chance para as pessoas aprenderem sobre o tema. Mas a ciência não é ensinada da forma que defendo. Em última instância, não se ensina a natureza da ciência. Por isso criamos na revista Science um concurso para encorajar inovação e excelência no ensino de ciências na universidade. Todo mês publicamos o artigo de um grupo vencedor na seção IBI (Inquiry-Based Instruction). Espero que esse tipo de iniciativa se espalhe por outros lugares e seja imitado. Por que o americano médio não acredita que as mudanças climáticas sejam resultado das atividades humanas? O leitor americano está sujeito a todo tipo de propaganda de grandes companhias petrolíferas e de outros setores. Ele está realmente confuso. Fiquei surpreso que não havia nada de importante no fim daquele escândalo que envolveu o vazamento dos e-mails de cientistas da Inglaterra, no chamado climagate. Há muito dinheiro de pessoas ricas nos Estados Unidos que tentam convencer o público de que as mudanças climáticas são uma invenção dos cientistas. Isso não tem nada a ver com a questão. É como a propaganda que faz você comprar uma sopa ou roupa que você não quer. Eles são muito inteligentes. No caso das mudanças climáticas, conseguiram vender essa ideia de que elas não existem para os americanos. Mas acho que isso está mudando. Esse caso mostra a vulnerabilidade da sociedade quando as pessoas não entendem como é feita a ciência. É por isso que sou a favor da educação científica. As crianças crescem num mundo complexo. Todo mundo quer obter o voto delas ou fazê-
Ensinamos ciência na escola como se fosse um dogma. Não explicamos de onde vêm os fatos e as ideias
32 | setembro DE 2012
Qual é o tamanho da ameaça do criacionismo nos Estados Unidos? É um problema que nunca desaparece. Os Estados Unidos são um país surpreendentemente religioso comparado a outras nações. As pessoas vão à igreja todo domingo e ouvem os pregadores falarem como o mundo foi criado em dias e coisas assim. O problema real é que eles tentam impedir o ensino de ciências nas escolas. Mesmo nos lugares onde os criacionistas não podem impedir legalmente o ensino de ciências, os professores se sentem intimidados, às vezes pelos pais dos alunos. Temos de continuar de olho nisso. As mudanças climáticas têm sido tratadas como se fosse o criacionismo. Isso é ridículo.
-las comprar algo. Vejo a educação em ciência como o centro do progresso da civilização em todo o mundo. Alguns estudiosos das mudanças climáticas disseram que era difícil comunicar ao público os resultados das pesquisas. A seu ver, não houve também uma falha dos próprios cientistas? As mudanças climáticas são um problema de longo prazo. As pessoas tendem a pensar no que estarão fazendo no próximo ano, não daqui a 50 anos. Os políticos também pensam em questões de curto prazo, sempre de olho nas próximas eleições. Temos de aprender a ser mais efetivos na comunicação para que a verdade seja entendida. Nem todo cientista é capaz de comunicar os resultados das pesquisas. Mas certamente precisamos dos que sabem fazer isso. Precisamos que a imprensa seja engajada. Mas o problema é que ela sempre tem que ouvir os dois lados. Então aparece um especialista que acredita nas mudanças climáticas e outro que não acredita. Mas o peso dessas posições é enganador, pois quase todos os cientistas estão convencidos de que as mudanças climáticas são reais. A imprensa poderia ouvir os dois lados para discutir o que fazer para evitar as mudanças climáticas, mas não para discutir se elas existem.
Essas questões são importantes para uma comunidade científica. Acho que temos de ter muito mais gente lendo essa parte da Science. Com os iPhones, tablets e o mundo da publicação eletrônica, podemos atingir esse objetivo. Temos aplicativos de leitura para esses dispositivos. Poderíamos ter um sistema de assinaturas baratas das páginas iniciais da Science para pessoas dos países em desenvolvimento que tivessem esse tipo de aparelho. Precisamos de iniciativas assim em todo o mundo Desde 2009 o senhor é um enviado especial do presidente Obama para assuntos de ciência. O que o senhor faz nessa função?
essa verba. Também promovemos workshops em que juntamos jovens cientistas americanos e os futuros líderes da ciência da Indonésia. Por que o senhor foi mandado especificamente para a Indonésia? O programa foi criado para países de maioria muçulmana, com os quais queríamos construir um novo tipo de relação. O senhor gosta de dar uma palestra intitulada “Aprendendo com o fracasso”. O senhor acha que os cientistas estão preparados para aprender com os erros? Todo nós fracassamos. A maioria dos experimentos dos cientistas não dá certo. Essa questão tem novamente a ver com o entendimento que as pessoas têm sobre como a ciência é feita. Meu ponto central é que, na vida, todo mundo erra. As pessoas bem-sucedidas aprendem com os fracassos, não cometem o mesmo erro duas vezes e tentam fazer as coisas de um jeito melhor. Quando nos tornamos mais velhos, ficamos mais sábios porque já erramos muito e aprendemos com nossos erros. Acho que essa é uma boa maneira de pensar. Nos Estados Unidos, as pessoas iniciam três ou quatro negócios que não dão certo até que encontram o sucesso na quinta empreitada. Fracassar não é uma vergonha. Um bom fracasso pode ser útil, pode não ser uma coisa ruim. Em outros países o fracasso pode não ser encarado dessa forma.
O jornalismo é a melhor parte da Science e desempenha um papel crítico na revista
Além de publicarem artigos de pesquisadores, Science e Nature também produzem reportagens sobre ciência. Qual a importância das seções jornalísticas nessas revistas? Acho que essa é melhor parte das revistas. O jornalismo desempenha um papel crítico. Temos 100 mil assinantes na Science e muitos deles não são cientistas. Esse público não consegue ler a parte de trás da revista [onde estão os artigos mais técnicos dos cientistas], mas consegue ler a parte da frente [onde estão as seções jornalísticas]. A maioria dos cientistas também não consegue ler papers que não são de sua área de atuação. Por isso publicamos notícias, problemas da ciência, o que está ocorrendo em termos de política científica.
Ninguém sabia o que o cargo queria dizer. É um posto sem remuneração. Eles pagam o meu transporte. Fui mandado primeiramente para a Indonésia. Estive lá quatro vezes. Basicamente, o que eu faço é conectar os cientistas desses países e levar a eles algumas boas práticas da ciência. A Indonésia fornece poucas bolsas de pesquisa e há zero de competição interna pelo financiamento em ciência. Junto com o Banco Mundial e a Academia de Ciências da Indonésia, estamos apoiando a criação de uma agência nacional para financiar a pesquisa. Hoje o dinheiro que há para ciência vai diretamente para os institutos de pesquisa e os jovens pesquisadores, com novas ideias, não têm chance de competir por
Por que o senhor costuma dizer que aprendeu muito ao escrever o seu livro-texto The molecular biology of the cell? Ao escrever um livro, ocorre a mesma coisa que acontece quando se ensina. Você tem de ler muito, pensar e sair do seu dia a dia. Essa experiência foi muito importante para as minhas pesquisas. Os cientistas às vezes têm um foco muito estreito e não aproveitam todas as oportunidades da carreira. Mas é preciso haver um equilíbrio entre ensinar e fazer pesquisa. Acho que quatro horas de aula por semana é razoável. Assim você tem tempo para fazer pesquisa. n PESQUISA FAPESP 199 | 33
política c&T investimento y
Um país, dois modelos Dispêndios estaduais em pesquisa e desenvolvimento revelam fosso entre São Paulo e as outras unidades da federação
O
s investimentos dos estados brasileiros em pesquisa e desenvolvimento (P&D) cresceram nos últimos anos, mas persiste um forte contraste entre a realidade de São Paulo, que ostenta um constante e significativo volume de dispêndios em P&D em suas três universidades estaduais, e as demais unidades da federação, com sistemas universitários menos desenvolvidos sustentados por investimentos ainda modestos. Um levantamento divulgado pelos Indicadores Nacionais de Ciência e Tecnologia, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), é revelador desse fosso. A compilação de dados comparou os dispêndios em P&D de instituições estaduais de ensino superior. Dos R$ 4,5 bilhões investidos pelo conjunto de estados brasileiros em 2010, São Paulo respondeu por quase R$ 3,9 bilhões, ou 86% do total. “São Paulo é um estado que investe muito em ciência e tecnologia quando comparado com o restante do país”, observa Marco Antonio Zago, pró-reitor de Pesquisa da Universidade de São Paulo (USP). “Isso é resultado de uma política de estado que teve início há muito tempo, e não da estratégia de um governador”, afirma. Em segundo lugar no levantamento apa34 z setembro DE 2012
rece o Rio de Janeiro, com dispêndios estaduais em P&D das instituições de ensino superior na casa dos R$ 208 milhões em 2010, seguido pelo Paraná (R$ 183 milhões), Bahia (R$ 68 milhões) e Santa Catarina (R$ 46,9 milhões). Um total de 9,57% do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) arrecadado em São Paulo é destinado para a manutenção das três universidades estaduais e se distribui de acordo com o tamanho de cada uma das instituições, sendo 2,344% para a Universidade Estadual Paulista (Unesp), 2,195% para a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e 5,029% para a USP. “Esses recursos, gerenciados de forma autônoma, garantiram uma base muito forte para as universidades estaduais, propiciando laboratórios de qualidade, docentes em regime de dedicação exclusiva e técnicos de pesquisa”, afirma Zago, que faz uma ressalva: “Embora essa distribuição seja feita segundo o tamanho da instituição e não de forma competitiva, os recursos da FAPESP, investidos em projetos de pesquisa e bolsas, cumprem essa finalidade. Os pesquisadores têm de submeter projetos e são avaliados. E os projetos de qualidade é que são contemplados”, afirma o pró-reitor. Em 2010, o desembolso
ilustrações pedro hamdan infográfico ana paula campos
Fabrício Marques
O engajamento dos estados em P&D Estimativa dos dispêndios em pesquisa e desenvolvimento (P&D) das instituições estaduais de ensino superior em 2010 sudeste
1
4,1 bilhões
Por Região (em R$) norte
11,5 milhões
nordeste
149 milhões
centro-oeste
12,7 milhões sul
230 milhões
2
Por estado (em milhões de R$) SP
3.885
3
RJ
no estado de São Paulo (em R$)
208
Pr
183
uSP
2,2 bilhões
MT
AM
go
8,5
6,6
PA
MA
unicamP
ce
1
4,8 3,7 42,6
1,4
bilhão
rn
5,6
pb
uneSP
13,1
655
milhões
pe
15,7
famerp*
7,7
ba
68,4
milhões
mg
ms
10,2
2,8 sc
46,9
*Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto
A contribuição de São Paulo Evolução dos dispêndios em P&D das instituições estaduais de ensino superior (em bilhões de R$)
Brasil 4,5 bilhões
3,6 3,0
1,5 1,4 2000
1,7 1,6
2001
1,9 1,8
2002
2,0
São Paulo 3,8 bilhões
3,1
3,1
2008
2009
2,6 1,8
1,9 1,6
2003
3,7
2004
1,9 1,7
2005
2,0 1,7
2006
2007
2010
fonte Indicadores Nacionais de Ciência e Tecnologia/MCTI
pESQUISA FAPESP 199 z 35
da FAPESP com bolsas e apoio à pesquisa foi de R$ 780 milhões, pouco mais de R$ 100 milhões superior ao patamar de 2009. A USP, que é a universidade latino-americana mais bem colocada em rankings internacionais, respondeu sozinha por quase a metade de todos os recursos investidos em P&D nos sistemas universitários estaduais, de acordo com os Indicadores do MCTI. Foram R$ 2,2 bilhões em 2010. Já a Unicamp alcançou R$ 1 bilhão, enquanto a Unesp recebeu R$ 655 milhões. A Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto aparece na tabela do MCTI com R$ 7,7 milhões aplicados em 2010. A metodologia adotada pelo MCTI abrange os gastos com pós-graduação, atividade das universidades identificada com pesquisa. O cálculo é feito relacionando-se os recursos executados pelas instituições com o número de docentes envolvidos com pós-graduação. Despesas com ensino, técnicos, manutenção de instalações e aposentadorias ficaram fora da conta do ministério, pois não são consideradas dispêndios em P&D. Pesquisa e desenvolvimento, na definição da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), é a categoria “que se refere ao trabalho criativo realizado de forma sistemática com o objetivo de aumentar o estoque de conhecimento e usá-lo para desenvolver novas aplicações”. Os dispêndios em P&D são a parcela dos recursos investidos em ciência e tecnologia que, por meio da pesquisa básica e aplicada, ajuda a capacitar os países para a inovação. Continuidade
A pró-reitora de Pesquisa da Unesp, Maria José Giannini, observa que uma das vantagens do modelo de São Paulo é a sua garantia de continuidade. “Evidentemente há muitos pesquisadores altamente competentes em universidades federais, mas é comum que o trabalho deles seja impactado pelo contingenciamento de verbas para a pesquisa. Nas universidades estaduais paulistas nós temos amplas condições de estimular os pesquisadores a apresentarem projetos e buscarem recursos, pois a FAPESP sempre prestigia quem tem mérito”, diz ela. Segundo dados da Unesp, nos últimos quatro anos o número de projetos regulares e temáticos aprovados na FAPESP dobrou em relação ao quadriênio anterior. O total de recursos captados pela Unesp em 2011 foi de R$ 151 milhões, diante de R$ 70 milhões em 2007. No caso da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), o aumento na captação de recursos foi de 230% no quadriênio. Ronaldo Pilli, pró-reitor de Pesquisa da Unicamp, enfatiza que as universidades estaduais paulistas têm cumprido um papel importante ao fornecer quadros para o desenvolvimento do país. “Não causa surpresa que os números mostrem uma predomi36 z setembro DE 2012
Panorama internacional Dispêndio total em P&D em relação ao respectivo PIB – Brasil, estado de São Paulo e países selecionados – 2010 ou ano mais recente Israel Coreia Estados Unidos Alemanha OCDE Total Reino Unido China São Paulo Espanha Brasil África do Sul Argentina
0
0,5
Fonte OCDe, McTI, Indicadores fapesp
1
1,5
2
2,5
3
3,5
4
4,5 % PIB
nância de investimentos em São Paulo. Mas seria bem-vindo que as empresas ampliassem sua participação no setor Vários estados de pesquisa e desenvolvimento, pois ampliaram uma base de recursos humanos nós temos a oferecer”, afirma. o investimento Ainda assim, São Paulo é um caso único de estado brasileiro em que em ciência o investimento em P&D das empresas supera os investimentos públie tecnologia cos (62% do total, de acordo com os no passado Indicadores de ciência, tecnologia e inovação em São Paulo, publicado em recente 2011 pela FAPESP). Da mesma forma, o dispêndio público estadual em P&D em São Paulo, de R$ 3,7 bilhões em 2008, supera o do governo federal no estado (R$ 2 bilhões). Essa composição é bem diferente da observada no Brasil, em que os investimentos federais em P&D são majoritários (veja quadro na página ao lado). No caso da Unicamp, Pilli destaca o papel da FAPESP, responsável por 40% dos recursos para a pesquisa captados pela universidade. “Aumentamos a captação de recursos para pesquisa de R$ 220 milhões em 2007 para R$ 350 milhões em 2011. Os recursos da Fundação cresceram de R$ 80 milhões em 2007 para R$ 131 milhões no ano passado. No mesmo período, os recursos do CNPq foram reduzidos e os da Capes cresceram de R$ 52 milhões para R$ 61 milhões”, afirma. A predominância do investimento paulista não ofusca o fato de que vários estados ampliaram seus investimentos em ciência e tecnologia num passado recente. Em 2008 o Rio de Janeiro ampliou para 2% o quinhão da arrecadação de impostos destinado ao orçamento da Fundação Estadual
Estado do Rio (Unirio). “Mas as federais e as estaduais atuam articuladas. E a Faperj investe boa parte de seus recursos em projetos das universidades federais. Temos apenas um edital, voltado para equipar laboratórios, que é aberto apenas para as estaduais”, diz o secretário. Ele afirma que uma circunstância histórica moldou o sistema universitário fluminense da forma como ele é conhecido. “O Rio de Janeiro foi a capital do país por 200 anos e várias universidades foram criadas pelo governo federal. Outras instituições de pesquisa de grande tradição também surgiram no Rio, como a Fundação OswalNo estado de São Paulo, esforço do Cruz. Já em São Paulo, em P&D das empresas supera o crescimento do sistema de pesquisa dependeu de um o total de investimentos públicos esforço do estado e, com seu crescimento econômico, as universidades estaduais se consolidaram”, compara. em 2010, mais do que o dobro do que os R$ 100 Minas Gerais tem uma trajetória parecida com milhões contabilizados em 2005. A Uerj se destaca, a do Rio. Em 2010, o estado investiu R$ 10,2 micom dois terços dos dispêndios em 2010. O número lhões em pesquisa e desenvolvimento em duas de docentes da Uerj, cerca de 1.800, chega perto instituições, a Universidade Estadual de Minas do contingente de professores da Unicamp, ainda Gerais (Uemg) e a Universidade Estadual de que o número de alunos de pós-graduação (2.800) Montes Claros (Unimontes). O montante, embora seja uma décima parte do registrado na univer- ainda modesto, mais do que triplicou em relação sidade paulista. “Com o aumento da arrecadação aos R$ 2,9 milhões contabilizados em 2007, o do estado, houve um esforço para recuperar a ca- primeiro ano com registro de investimentos sepacidade das universidades estaduais”, diz Leite. gundo o MCTI. O secretário estadual de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior de Minas Gerais, Narcio Rodrigues, explica que esse crescimento é articulação A maioria das universidades públicas do Rio de fruto da decisão, tomada em 2007, de fazer valer Janeiro é federal, como a Federal do Rio de Janei- a regra legal de investir 1% da arrecadação triburo (UFRJ), a Federal Fluminense (UFF), a Federal tária em ciência, por meio da Fundação de AmpaRural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e a Federal do ro à Pesquisa de Minas Gerais. “Nossa estratégia tem sido a de garantir que não haja retrocesso no cumprimento dessa norma e de alavancar os recursos fazendo parcerias com o governo federal Dispêndios federais e estaduais em P&D e a iniciativa privada, que participam com contrapartidas”, afirma Rodrigues. Ele explica que Composição do dispêndio público em Pesquisa e Desenvolvimento no Estado as universidades estaduais são apenas duas porde São Paulo, no Brasil, e no Brasil sem o Estado de São Paulo – em % que, no passado, a tarefa de promover o sistema universitário mineiro foi abraçada pelo governo 100 n Federal federal. “Nosso sistema tem 14 instituições de n Estadual ensino superior, sendo 12 federais, mas funciona80 mos como um sistema articulado”, diz. A maior delas é a Universidade Federal de Minas Gerais 60 (UFMG). “Nossas universidades têm forte atuação no desenvolvimento regional. A Unimontes, 40 que é a principal instituição estadual, é bastante ativa na região mais pobre de Minas Gerais. Esse 20 sistema regionalizado é importante para o desenvolvimento do estado, mas, claro, o ideal seria 0 mesclá-lo com o vigente em São Paulo, onde o São Paulo Brasil Brasil sem governo estadual abraçou a missão de promover São Paulo a educação superior e consolidou instituições de peso nacional”, diz Narcio Rodrigues. n de Amparo à Pesquisa, a Faperj. “Com isso, e também graças ao aumento da arrecadação do estado, o orçamento da Faperj saltou de R$ 100 milhões para R$ 300 milhões”, diz o secretário estadual de Ciência e Tecnologia, Luiz Edmundo Costa Leite. Segundo o levantamento do MCTI, os dispêndios em P&D do governo do Rio em suas duas universidades, a Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf ) e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), foram de R$ 208 milhões
Fonte Indicadores de C,T e I em São Paulo, 2010
pESQUISA FAPESP 199 z 37
mudanças climáticas y
Risco calculado Workshop sobre extremos do clima expõe o desafio de converter informação científica em prevenção de desastres
38 z setembro DE 2012
É
Bob McMillan / FEMA Photo
Inundação em parque de diversões de Nova Orleans após a passagem do furacão Katrina, em 2005: tragédia despertou a consciência norte-americana
praticamente certo – a certeza, no caso, chega a 99% – que vá ocorrer até 2100 um aumento na frequência de dias e noites quentes em diferentes regiões do planeta. Já em relação à intensidade das chuvas, que efetivamente recrudesceram em diversas áreas, ainda há dúvidas se o fenômeno é global – os dados disponíveis indicam que as previsões nessa direção têm um grau de confiança de 66%. Divulgado em março passado, o Relatório Especial sobre Gestão dos Riscos de Extremos Climáticos e Desastres (SREX, na sigla em inglês) apontou essas tendências, entre várias outras, com base no conhecimento científico recente compilado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Seus resultados foram discutidos numa reunião realizada no auditório Moise Safra, no Centro de Convenções Albert Einstein, em São Paulo, entre os dias 16 e 17 de agosto, na qual pesquisadores de vários países também debateram estratégias para o gerenciamento dos impactos e para levar o conhecimento aos tomadores de decisão. O workshop “Gestão dos riscos dos extremos climáticos e desastres na América Central e na América do Sul – o que podemos aprender com o Relatório Especial do IPCC sobre extremos?”, foi promovido pela FAPESP e pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). “Ficou claro nas discussões que a interface dos cientistas com gestores e comunidades locais é um ponto crítico. Há muito ruído nessa comunicação”, disse à Agência FAPESP o climatologista José Marengo, coordenador do workshop e membro do comitê organizador do SREX. Talvez a recomendação mais importante extraída dos debates tenha sido essa: é preciso estabelecer novos canais de diálogo entre cientistas e autoridades para enfrentar os riscos de desastres resultantes de eventos climáticos extremos e reduzir os prejuízos que eles causam. A necessidade de participação mais ativa dos governos em decisões relacionadas a questões como vulnerabilidade às mudanças climáticas e estratégias de adaptação também foi destacada pelos pesquisadores presentes no workshop. “Os governos se mostram pouco preparados e continuam sendo pegos de surpresa por eventos meteorológicos que estão aumentando em frequência e intensidade, como mostram os relatórios, e deverão aumentar ainda mais no futuro”, disse Marengo, que é coordenador do Centro de Ciência do Sistema Terrestre do Inpe e lidera um projeto temático, no âmbito do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG), acerca do impacto dos extremos do clima nos ecossistemas e na saúde humana no Brasil. Segundo o pesquisador, frequentemente existem recursos para mapeamento de risco e remoção de população em áreas vulneráveis, mas o dinheiro acaba sendo transferido para outras áreas. “Isso mostra uma falha no nosso diálogo com os governos locais. Não é segredo que o clima está mudando e todos os anos pessoas morrem por conta de desastres que poderiam ser evitados se esses recursos fossem aplicados”, afirmou. pESQUISA FAPESP 199 z 39
CALOR
90%
nível do mar
1
Previsões do relatório SREX para 2100 e seu grau de confiança (em %)
A forma como a informação científica alcança a sociedade frequentemente é diversa da imaginada pelos pesquisadores. “Apareceram nos nossos debates discussões, por exemplo, sobre termos como ‘incerteza’, que é derivado da área de modelagem climática e cujo conceito nós cientistas compreendemos, mas que ainda não foi traduzido adequadamente para o público”, disse Marengo. Outra confusão envolve o próprio conceito de desastre. “Não são as chuvas que matam as pessoas. É a combinação delas com famílias morando em encostas e em residências precárias. Não dá para acabar com as chuvas intensas, mas, com planejamento, é possível reduzir o número de mortes”, afirmou o pesquisador. A percepção da sociedade sobre as mudanças climáticas obedece a uma lógica às vezes distinta da dos cientistas. Marengo cita como exemplo o furacão Katrina, que devastou o sul dos Estados Unidos em 2005 e inundou a cidade de Nova Orleans. “Não há como afirmar que o Katrina, analisado de forma isolada, seja resultado das mudanças globais. Mas foi esse evento que despertou a população norte-americana para o problema”, afirmou. escassez de dados
Uma das principais conclusões do relatório SREX, que foi elaborado pelo IPCC a pedido do governo da Noruega e da Estratégia Internacional para a Redução de Desastres (Eird), da Organização das Nações Unidas (ONU), é que vem ocorrendo um aumento na frequência de eventos climáticos extremos no 40 z setembro DE 2012
2
Aumento na frequência e na magnitude
Tendência de eventos extremos em
dos extremos de temperatura, em relação
regiões costeiras deve intensificar-se
a dias quentes, e redução dos extremos
em decorrência do aumento do nível
para os dias frios
médio do mar
Mulheres e crianças são as principais vítimas de furacões. Elas representam até 89% das mortes ligadas a esses fenômenos
mundo nas últimas décadas em razão das mudanças climáticas. Com base nas evidências presentes, o relatório indica que é altamente provável um aumento na frequência de dias e noites quentes nos próximos anos em diferentes regiões do planeta. Mas é incerto se alguns fenômenos climáticos extremos tendem a ocorrer em escala global, devido à escassez de dados. O documento aponta dúvidas em relação ao aumento da frequência de chuvas intensas em todo o mundo, indicando regiões que apresentam aumento e outras onde ocorreu redução do evento climático. Também faltam evidências de que ciclones tropicais tenham se tornado
mais frequentes, embora as chuvas relacionadas com esses fenômenos, de fato, estejam mais intensas. Da mesma forma, é possível que secas atinjam com mais frequência e intensidade certas regiões do planeta, como o Nordeste brasileiro ou o México, mas não representem um fenômeno generalizado no planeta. Para os pesquisadores que produziram o relatório, um dos principais desafios foi afinar os discursos entre especialistas de diversas áreas. “Foi o primeiro esforço para trocar conhecimento de maneira multidisciplinar”, disse a médica e professora da Universidad Nacional Autónoma de México (Unam), Úrsula Oswald Spring, que participou da elaboração do SREX e esteve no workshop de São Paulo. “Sem construir uma linguagem comum, não é possível avançar nas soluções dos problemas colocados pelas mudanças climáticas.” Apesar das incertezas sobre a extensão e a frequência dos fenômenos climáticos extremos no futuro, seu impacto, hoje, já é palpável. Dados apresentados por Úrsula Spring mostraram que mulheres e crianças são as maiores vítimas de furacões, terremotos, tsunamis, inundações e outros eventos extremos, climáticos ou não. Elas representam de 68% a 89% das mortes que ocorrem nesses fenômenos no mundo todo. As mulheres são 72% das pessoas que vivem em condições de extrema pobreza, o que as torna mais vulneráveis em situações de desastres. “O papel das mulheres é o de cuidar, então salvam filhos, pais e animais e não enxergam o risco que correm”, disse Úrsula, que pesquisa o tema
fotos 1 e 2 léo Ramos 3 bidgee / wikicommons 4 nasa 5 tomas castelazo
Projeções de eventos extremos do clima
99%
66%
chuvas
66%
ciclones
3
33%
estiagem
4
5
Frequência de chuvas pesadas e volume
Chuvas relacionadas a ciclones tropicais
Secas devem se intensificar em algumas
de precipitação resultante de tempestades
devem intensificar-se, embora não haja
regiões e áreas, como o Nordeste brasileiro
devem crescer em muitas áreas
evidências de mudanças na localização
e regiões do México
e intensidade dos ciclones
há 10 anos. O prejuízo também é muito maior em países pobres: 95% das mortes por desastres naturais ocorrem em países em desenvolvimento. “Para que grandes desastres ocorram é necessário que a população esteja vulnerável e exposta”, afirmou o professor da Universidad Católica do Chile, Sebastián Vicuña.
Reconstrução de regiões atingidas por eventos climáticos extremos no Brasil custou R$ 1,6 bilhão em 2011
deslizamentos
O climatologista Carlos Nobre, que é secretário de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), membro da coordenação do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG) e do IPCC, enumerou estudos publicados por pesquisadores do estado de São Paulo que tratam dos riscos causados pela maior frequência de chuvas intensas. Um deles apontou um aumento do número de áreas suscetíveis a alagamentos e que apresentam risco maior de deslizamentos de terra na capital paulista. Outro estudo demonstrou que, com a urbanização, as áreas de chuva intensa se expandem e aumenta o risco de contaminação por leptospirose – doença transmitida principalmente pela urina de roedores. Já uma pesquisa feita no Departamento de Ecologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Rio Claro, em parceria com o Inpe, mostrou que Campinas e Ribeirão Preto são as duas regiões no estado de São Paulo mais vulneráveis às mudanças climáticas. A concentração populacional em Campinas potencializa as consequên-
cias de uma enchente. Já no caso de Ribeirão Preto, a região deverá registrar temperaturas mais altas nas próximas décadas. “Podemos discernir em algumas regiões os impactos socioeconômicos causados pela aceleração dos eventos climáticos, que estão associados a maior vulnerabilidade das populações em razão da crescente urbanização do mundo e, em particular, das cidades da América Latina, onde esse processo ocorreu nas últimas décadas de forma caótica”, disse Nobre à Agência FAPESP. No Brasil, os recursos para reconstrução de regiões assoladas por desastres causados por eventos climáticos extremos tiveram uma evolução muito rápida nos últimos 10 anos e ultrapassaram o patamar de R$ 1,6 bilhão em 2011, apontou Nobre. Se há incertezas sobre a tendência de aumento da frequência de chuva em escala global, no caso de São Paulo não restam dúvidas de que as chuvas intensas têm aumentado muito na cidade nos últimos 50 ou 70 anos, observou Nobre. “Hoje temos três vezes mais chuvas intensas do que há 70 anos. E as evidências de que esse
tipo de evento ocorre com maior frequência na capital paulista estão muito bem documentadas”, afirmou. Os resultados do relatório SREX serão aproveitados e atualizados nos próximos relatórios que o IPCC divulgará em 2013. Segundo Marengo, ainda há uma escassez de estudos sobre vulnerabilidade às mudanças climáticas em regiões brasileiras. Para produzir o SREX, pôs-se de lado a norma não escrita de que um bom estudo científico é apenas aquele publicado em revistas especializadas de língua inglesa. “Conseguimos atingir um nível bom em algumas publicações brasileiras, mas ainda falta mais literatura científica publicada no país”, afirmou o pesquisador. Os pesquisadores detectaram a necessidade de aumentar o financiamento de estudos sobre mudanças climáticas, com apoio de instituições governamentais e não governamentais. Os grupos recomendaram ainda o fortalecimento das instituições locais de gerenciamento de risco. “Não é preciso criar novas instituições, mas fortalecer as que já existem”, afirmou Marengo. n pESQUISA FAPESP 199 z 41
comunicação y
Difusão científica ampliada Agência FAPESP ultrapassa a marca dos 100 mil assinantes
42 z setembro DE 2012
trajetória e impacto da agência fapesp A evolução do número de assinantes 93.979
100.000
81.296 86.889
63.694 49.122
69.560 56.434
23.063
41.804
00
3 De z/2 00 4 De z/2 00 5 De z/2 00 6 De z/2 00 7 De z/2 00 8 De z/2 00 9 De z/2 01 0 De z/2 01 1 Ag o/ 20 12
/2
z/2
00
3
10.000
De
Evolução do número de veículos de comunicação que reproduziram o conteúdo da agência 482
455
337
11 5.707
Evolução das reproduções do conteúdo da agência
3.613
20
10
09
20
20
07
20
20
230
08
206
3.399
1.879
11 20
10 20
09 20
08
20
07
1.458
20
matérias relevantes na mídia impressa e eletrônica nacional”, disse Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP. Apesar de se dedicar principalmente à divulgação de pesquisas feitas no estado de São Paulo e apoiadas pela FAPESP, a agência conta com leitores em todos os estados brasileiros. As cidades com maior número de assinantes são São Paulo, Campinas, Rio de Janeiro, Ribeirão Preto, Belo Horizonte, Brasília, São Carlos, Curitiba e Salvador. Também tem um expressivo número de leitores no exterior, entre brasileiros que vivem em outros países ou estrangeiros que assinam a edição em inglês do boletim. No exterior, os países com mais leitores da edição em português são Estados Unidos, Portugal, França, Alemanha e Canadá. Já a edição em inglês é mais lida nos Estados Unidos, Reino Unido, Índia, Alemanha e França. “Ter uma base ativa e operante de 100 mil assinantes mostra o acerto da ideia original e, sobretudo, do desenvolvimento e da prática efetiva desta ideia que a equipe da agência mantém de forma criativa e original”, disse Carlos Vogt, diretor da Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp) e do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Universidade Estadual de Campinas. Foi Vogt quem teve a ideia de lançar, em 2003, um veículo eletrônico de divulgação científica, quando era presidente da FAPESP. O modelo da agência, observou ele, inspirou outras iniciativas. “É o caso da Agência DiCYT, da Universidade de Salamanca, na Espanha, que foi montada em cima do modelo da Agência FAPESP.” n
J un
A
Agência FAPESP alcançou no dia 13 de agosto a marca dos 100 mil assinantes de seu boletim eletrônico. Lançada em 24 de junho de 2003 pela Fundação como um serviço noticioso, eletrônico e gratuito, a agência se tornou referência para pesquisadores, estudantes e veículos de comunicação, com a publicação de reportagens sobre resultados de pesquisas, entrevistas com cientistas e notícias dos campos da ciência, tecnologia e inovação no Brasil. “A FAPESP tem como uma das suas responsabilidades legais e estatutárias divulgar o resultado das pesquisas que financia. Quando a Fundação foi criada, os meios de comunicação eram distintos do que são hoje. Há uma mudança muito significativa trazida pela revolução digital e a agência, ao atingir um público tão expressivo, é uma mostra dessa mudança”, disse Celso Lafer, presidente da FAPESP. A Agência FAPESP envia boletins de segunda a sexta-feira a assinantes que se cadastraram por meio da internet (www. agencia.fapesp.br/assine). As reportagens e notícias divulgadas pela agência são reproduzidas ou ajudam a pautar veículos de comunicação como O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, O Globo, Exame, UOL e Terra. Os boletins também são recebidos por jornalistas de publicações de todas as regiões brasileiras. Em 2011, 482 veículos de todo o país reproduziram conteúdos da Agência FAPESP, com mais de 5,7 mil publicações. “A marca de 100 mil assinantes revela que a Agência FAPESP presta um serviço de qualidade e utilidade reconhecido pela comunidade científica. Além de informar a comunidade, a agência contribui para a divulgação científica pautando temas e
Gestão administrativa y
Tempo para a pesquisa Cientistas discutem caminhos para reduzir o peso da burocracia
P
esquisadores dedicados apenas a fazer ciência, sem a necessidade de gastar tempo com a administração de projetos de pesquisa. Esse tema esteve à frente do II Simpósio de Gestão de Projetos Aplicada à Pesquisa Científica realizado no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, nos dias 8 e 9 de agosto. “No Brasil valores e ambições crescem continuamente, o que é ótimo porque a ciência está mais organizada e competitiva. Entretanto, o tamanho das equipes, muitas vezes com pesquisadores de várias entidades, e a complexidade da operação exi-
gem um apoio institucional ao cientista, como se vê nas melhores universidades estrangeiras”, disse o professor Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, no simpósio. Operar um projeto exige muitas atividades, desde guardar recibos até gerenciar a propriedade intelectual, o que toma tempo do pesquisador. “Ele precisa fazer ciência, publicar papers, além de orientar estudantes. Para isso, é necessário uma espécie de escudo contra o tempo gasto na burocracia”, disse Brito. “Hoje há pesquisadores que gerenciam auxílios com
valores em torno de US$ 1 milhão.” Por isso, há três anos a FAPESP solicita o apoio das instituições, como fazem os Grants Management Offices das boas universidades estrangeiras. “Na FAPESP estamos fazendo entrevistas com dirigentes de instituições de projetos Cepid [Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão], que poderão receber até R$ 4 milhões por ano da Fundação. Queremos nos certificar de que na instituição exista uma estrutura que proteja o tempo do pesquisador das tarefas burocráticas. Tal apoio é condição para que a FAPESP aprove a concessão do auxílio”, afirmou Brito. “Não temos na universidade aprendizado de gestão de projetos”, disse o professor Jorge Kalil, diretor do Instituto Butantan, em sua apresentação. Para Brito, a gestão de projetos deve ser feita por pessoas capazes de entender a lógica da ciência, um desafio que deve ocupar também as faculdades de administração. n
ciência pele frágil y
Luta contra
o sol
Pesquisadores, médicos e moradores de um povoado se mobilizam para controlar uma doença hereditária agravada pela exposição à luz do dia
Carlos Fioravanti (texto) e Eduardo Cesar (fotos), de Araras, Goiás 44 z setembro DE 2012
D
jalma Jardim parece feliz, depois de uma longa depressão que o impedia de sair de casa. Hoje, animado, ele conversa com os amigos e cuida de sua sorveteria nova, com uma varanda ampla, no povoado de Araras, a 260 quilômetros de Goiânia. Ele prefere os dias ensolarados, que trazem mais pessoas em busca de sorvetes de milho, abacate ou graviola, mas sabe que ele próprio não pode tomar sol. Djalma tem uma doença genética hereditária conhecida como xeroderma pigmentosum, que atinge principalmente as partes do corpo mais expostas à luz do sol. Seu rosto está bastante transformado. Uma prótese externa ocupa o lugar do lábio superior, do nariz, de parte das maçãs do rosto e do olho direito, que tiveram de ser retirados. Aos 37 anos, Djalma tem um carro, mas durante anos, para se proteger do sol, andava de bicicleta coberto da
cabeça aos pés com uma espécie de cabine de papel pardo com uma abertura para ver à frente. Ironicamente, em um lugar muito quente nesta época do ano e escaldante em janeiro vive a provavelmente maior concentração mundial de pessoas bastante sensíveis à radiação ultravioleta do sol. Dos cerca de mil moradores de Araras, 22 – com idade entre 9 e 78 anos – sabem que têm xeroderma pigmentosum ou XP. Alguns apresentam apenas a pele ressecada e com manchas, enquanto outros tiveram de implantar próteses no rosto e falam com dificuldade. Alguns se cuidam, evitando o sol, enquanto outros renegam a doença, sob a alegação de que não podem deixar de trabalhar durante o dia em suas terras. Quase todos ali vivem da agricultura ou da pecuária. Durante três dias, no início de agosto, pesquisadores de São Paulo e do Rio de Janeiro se reuniram com biólogos da Universidade Federal de
Pioneiros no povoado de Araras: da esquerda para a direita, o português Lucas Freire; Joaquim Freire (filho de Lucas) e Verônica Gomes; Joaquina Freire Machado e Teófilo Machado da Mãe de Deus (filho de Joaquim) com as três filhas, Darcy Machado dos Santos, Maria Verônica e Adda Maria da Mãe de Deus
pESQUISA FAPESP 199 z 45
Moçambique, uma origem comum
Menck acredita que está na pista da provável mutação, que parece ser diferente das já conhecidas, e ainda este ano ele pretende iniciar o sequenciamento de um conjunto de genes de 18 moradores de Araras em busca de alterações nos oito genes de reparo de DNA já associados à doença. “A caracterização de uma mutação pode ajudar a identificar o problema precocemente, dando diretrizes sobre como as pessoas e as famílias devem ser acompanhadas, para evitar que a doença se agrave”, diz a médica Maria Isabel Achatz, do Hospital do Câncer A.C. Camargo, em São Paulo. 46 z setembro DE 2012
Maria Isabel e Karina Santiago rastrearam as mutações responsáveis pela doença em dois genes, XPA e XPC, de 21 pessoas com XP de nove estados (Amazonas, Acre, Ceará, Paraíba, Sergipe, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul). Elas identificaram uma mutação nova no gene XPC e outra bastante frequente, que uma equipe de pesquisadores franceses havia enA doença pode contrado em 18 moradores de descenter surgido no dência negra da ilha Mayotte, no sul da África. Os resultados coincidentes suinterior de gerem que os membros de uma mesma família com essa mutação podem ter Goiás há pelo migrado de Moçambique para a ilha e para o Brasil – uma conclusão insmenos 150 tigante, já que os casos de xeroderma anos, por meio em negros no Brasil são bastante raros. “Ao menos um dos oito genes com de casamentos mutações que causam XP deve ter vindo com os escravos de Moçambique”, diz entre primos Menck. Com sua equipe, ele identificou a mutação responsável pela doença em três famílias brasileiras, mas, reconhece, “o ganho para os pacientes, em termos de tratamento, foi muito pequeno, infelizmente”. A seu ver, talvez o benefício para os moradores de Araras seja maior, ao indicar a origem genética e a evolução possível da doença. Historicamente, o povoado começou a se formar por volta de 1705 com a chegada das famílias Freire, Jardim e Gonçalves, que compraram terras na região, pertencente ao município de Faina. “Dona Clementina, uma matriarca do povoado, dizia que o avô dela, Augusto Gomes, tinha a ‘pele ruim’, indicando que os primeiros casos de xeroderma podem ter surgido há pelo menos 150 anos, provavelmente por meio de casamentos entre primos”, diz ele. Clementina Gomes Jardim morreu aos 102 anos, em 2010, sem a doença transmitida para alguns de seus filhos e netos. Em 1963 chegaram mais seis famílias, vindas de Hidrolândia, município a 240 quilômetros de tocantins MAto Grosso bahia goiás Araras
Faina
DF
Goiânia
minas gerais MAto Grosso do sul
mapa daniel das neves
Goiás (UFG) e da Secretaria de Estado da Saúde de Goiás, com médicos dos dois principais hospitais de Goiânia e com os moradores de Araras. Em conjunto, planejaram os exames que devem permitir a identificação da mutação responsável pela xeroderma nos moradores de Araras e ajustes no atendimento médico a essas pessoas. “Aqui em Goiás este é um problema de saúde pública”, afirmou Carlos Menck, geneticista do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP), em uma apresentação para biólogos e médicos no início de agosto na UFG. “Gostaria de convidar vocês a trabalharem com esse problema. O que fizermos pode ajudar muito as pessoas com XP.” Da plateia, a médica dermatologista Sulamita Chaibub, à frente de uma equipe multidisciplinar do Hospital Geral de Goiânia que atualmente trata de 25 pessoas com XP, pediu: “Mandem mais pacientes para nós, por favor”. A XP é uma doença rara, para a qual não há medicamentos específicos, causada por mutações prejudiciais em genes que, quando normais, induzem a produção de proteínas que corrigem os danos provocados no DNA pela radiação ultravioleta do sol ou de lâmpadas. Sem essas proteínas, o DNA acumula danos que podem originar tumores. As pessoas com alterações nesses genes de reparo apresentam risco mil vezes maior de terem câncer de pele e maior propensão para outros tipos de câncer, lesões oculares e problemas neurológicos que as pessoas sem essas mutações. Por todo o país, o total de casos diagnosticados não chega a uma centena, mas estimativas preliminares, com base na prevalência de outros países, indicam que mil pessoas no país podem ter a doença, facilmente confundida com outras – no início do século passado era vista como uma forma de hanseníase e hoje pode passar como alergia ao sol ou câncer de pele. “Como os registros são escassos, o alcance desse problema na população ainda é desconhecido e subestimado”, diz Januário Bispo Cabral Neto, geneticista da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que esteve em Araras pela primeira vez em agosto.
O produtor de leite Lázaro Silva, 71 anos: desde 1963 na região
distância. Aos 71 anos, magro, baixo, sorriso largo, Lázaro Alexandre da Silva chegou nesse ano e se lembra de ter visto familiares com o que chamavam de câncer de pele. Ele próprio tem uma forma leve de xeroderma, que lhe deixou manchas escuras nos dois pés, entre os tornozelos: “Difícil curar”, ele diz. Aparentemente Lázaro Silva não se abate: quem tem doenças que afetam a aparência normalmente convive com a discriminação, mas em Araras as pessoas com XP, mesmo em estágio avançado, são tratadas com naturalidade, trabalham e convivem com os amigos e familiares. Todo dia ele acorda antes das seis da manhã para ordenhar as vacas, atualmente 16, que nesta época de seca lhe rendem 20 litros de leite. Sua esposa, Divina Rosa da Silva, baixa, encorpada, de intensos olhos azuis, às vezes assume o lugar do marido, sobe na charrete e leva o leite do dia ao laticínio do povoado. Ela sabe: “O sol não faz bem para ele. Quando ele está muito no sol, tem tonteira. Ele tem pressão baixa”. Fugindo do sol
Para evitar o sol e adiar o aparecimento dos sintomas, as pessoas com XP usam – ou deveriam usar – roupas longas, de preferência com alta capacidade para filtrar a radiação ultravioleta, bonés ou chapéus largos, óculos escuros e protetores solares com fator de proteção solar mínimo de 60. A equipe de Menck, em colaboração com uma empresa de cosméticos, comparou a eficiência de 17 produtos comerciais, com fator de proteção
de 1,5 a 60, e concluiu que em geral os protetores solares são eficientes para proteger contra os efeitos indesejados da radiação ultravioleta. O acesso aos cremes, porém, nem sempre é fácil. “Muitos pacientes chegam aqui em estado grave porque não têm dinheiro para comprar protetor solar”, conta Maria Isabel. “Seria fundamental que o fornecimento de filtro solar fosse gratuito para todos que têm xeroderma pigmentosum no Serviço Único de Saúde (SUS). O custo seria muito menor do que o tratamento de um melanoma.” Outro problema é que, mesmo para as pessoas com risco menor de câncer de pele, os cremes podem perder eficácia quando não são aplicados ou reaplicados na quantidade ou na periodicidade adequada ou quando não cobrem todas as áreas do corpo que deveriam proteger, alertou o dermatologista Fernando Stengel, presidente da Fundação Argentina de Câncer de Pele, em um congresso internacional sobre câncer de pele realizado em São Paulo no início de agosto. Como medidas simples de proteção contra o sol podem ajudar a adiar o aparecimento ou o agravamento da doença, pesquisadores e moradores de Araras começaram a pensar como instalar filmes para filtrar a luz ultravioleta nos vidros das janelas da escola, das igrejas (uma católica e outra evangélica) ou da perua da prefeitura em que as pessoas com XP vão toda semana para Goiânia para os exames médicos de rotina. Na sorveteria, conversaram também sobre a possibilidade de deter o sol por meio de toldos nas pESQUISA FAPESP 199 z 47
varandas ou de corredores cobertos de plantas entre as casas, a escola e as igrejas. Na França, as crianças e jovens com XP – chamadas de crianças da Lua por causa de seus hábitos noturnos – têm direito a solicitar a instalação de filtros antiultravioleta nas janelas das escolas ou das faculdades. Há leis específicas que asseguram o atendimento médico em hospitais públicos aos portadores do cartão do Seguro Social, o equivalente à Previdência Social no Brasil. “Conseguimos do Seguro Social que cada criança com XP receba € 1.300 [R$ 3.300] por ano para comprar roupas, óculos, máscaras e filtros antiultravioleta”, diz Alain Sarasin, geneticista do Instituto Gustave Roussy, próximo a Paris, e uma das maiores autoridades mundiais no estudo de mecanismos de reparo de DNA. Na ilha Mayotte, onde sua equipe identificou uma mutação responsável pela doença, ele observou que as crianças com XP são agrupadas em uma mesma escola com professores especiais em salas com ar-condicionado e proteção contra o sol. “A xeroderma pode ser controlada, sim, desde que as pessoas não tenham contato com a luz do sol”, assegura Maria Isabel, dando o exemplo de um menino que mora em São Paulo e tinha 4 anos quando ela o atendeu pela primeira vez. Hoje com 7 anos, o menino tem apenas manchas leves no rosto. Segundo ela, o menino está sempre coberto por roupas, bonés e luvas, por insistência da mãe, e estuda em uma escola pública cuja diretora concordou em fazer bloqueios para a radiação ultravioleta. “As pessoas com XP têm de ser cuidadas desde cedo”, reforça Sulamita. O controle da doença implica atendimento médico, odontológico e psicológico e aconselhamento genético sobre o risco de os casais terem filhos com essa doença. “O casamento entre primos, que era bastante comum em Araras, aumenta o risco de ter filhos com XP”, diz Menck. “Quando o casal tem a mutação, embora não tenha a doença, a probabilidade de ter um filho com XP é de 25%.” Ele acredita na possibilidade de usar protetores solares mais eficientes, capazes de corrigir as lesões no DNA, ou de corrigir os genes defeituosos por meio de terapia genética. “Um de nossos problemas é que tudo é muito lento”, observa Gleice Machado, diretora da escola, dona da mercearia do povoado e presidente da Associação Brasileira de Xeroderma Pigmentoso (ABRAXP), criada em 2010. “A liberação de verba para as obras de cobertura da quadra de
O centro do povoado de mil moradores: muito quente no meio do ano e escaldante em janeiro 48 z setembro DE 2012
esportes foi assinada há 15 dias pelo governador, depois de seis meses de aprovada.” Foi Gleice quem fez a doença ser identificada corretamente, ao entrar com o filho Alisson no consultório de Sulamita Chaibub no Hospital Geral de Goiânia em 2009. Dois anos antes Sulamita tinha examinado o menino de pele branca e cabelos ruivos e não detectara nenhum sinal de xeroderma, mas agora os sinais eram mais claros. A médica começou a dar o diagnóstico: “Ele tem...” A mãe se antecipou: “Xeroderma?!” A médica perguntou se Gleice conhecia outras pessoas com XP, e ela contou que havia muitas em Araras. ALívio e Angústia
Uma série de reportagens de Renato Alves publicadas no Correio Braziliense logo depois, em outubro de 2009, ressaltou o abandono em que viviam os moradores de Araras com XP e mobilizou o Ministério Público, que cobrou mais atenção dos hospitais de Goiânia para essas pessoas. As notícias motivaram o farmacêutico Evandro Tokarski, proprietário de uma farmácia vizinha ao Hospital Geral de Goiânia, a preparar gratuitamente protetores solares para os moradores de Araras e a senadora Lúcia Vânia (PSDB-GO) a apresentar um projeto de lei prevendo a concessão de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez para as pessoas com XP. As reportagens chegaram a Menck, que trabalhava havia 34 anos em laboratório com células humanas com XP. Em julho de 2010, ao visitarem Araras pela primeira vez, ele e o biólogo André Schuch, então em sua equipe, mediram a radiação ultravioleta que incidia nas casas, na escola, no pátio da igreja. Ao verem quão intensa era de fato a luminosidade no povoado e ouvirem as
Moradores de Araras na noite do sábado, 11 de agosto, sob a luz de uma das igrejas: Djalma Jardim é o primeiro à direita e Gleice Machado, a quarta
explicações de Menck, os habitantes do povoado começaram a ver a lógica do mal que durante décadas perseguira tios, primos e irmãos, antes visto como uma maldição ou uma doença contagiosa ou transmitida por via venérea. Os relatos indicam que o alívio por finalmente elucidarem a origem do problema se confundiu com a angústia de não saber como lidar com o que tinham e implicava radicais mudanças no estilo de vida. “Luta Contínua”
Em fevereiro de 2011 Gleice publicou o livro Nas asas da esperança – A história de dor e resistência da comunidade de Araras, que motivou uma equipe da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Goiás a produzir o filme Sol inimigo, lançado em 28 de junho deste ano do Festival de Cinema de Goiás, uma cidade próxima. O filme contém depoimentos contundentes, como o de Djalma Jardim, “tenho fé e vontade de viver”, e de Avelino Gonçalves da Silva, “o câncer está me comendo”. Gleice conta que o filme tem ajudado a convencer quem não imaginava quão devastadora a doença pode ser, mas o atendimento médico em Goiânia ainda é frágil: “Se muda um atendente no hospital, começa tudo de novo. É uma luta contínua”. Januário Cabral, da UFRJ, observa: “O desconhecimento do problema traz complicações desnecessárias para os pacientes, pais, professores e médicos”. Em 1998 ele conheceu Ana Clara Guimarães Recchione, que vinha de uma longa batalha com professores e médicos. No início dos anos 1990, em Cabo Frio, litoral do Rio, Ana Clara verificou que a filha, nascida em 1989, e o filho, em 1992, quando saíam ao sol, voltavam com intensas irritações na pele, que duravam dias. Vendo que a situação poderia se repetir, du-
rante muitos anos ela não dormia à noite e fazia os filhos ficarem acordados para que dormissem durante o dia e assim evitassem os danos do sol. Quando os filhos tiveram de ir à escola, ela os cobria com chapelões, dos quais pendiam panos que os protegiam do sol. Os professores olhavam desconfiados quando ela dizia que os filhos não podiam tomar sol. Pesquisando na internet, Ana Clara suspeitou que poderia ser xeroderma pigmentosum, mas os médicos não concordavam. “Não foi falha dos médicos, porque ninguém na família tinha XP, e a mãe protegia tanto as crianças, não deixava pegar sol de jeito nenhum, que elas tinham só um ressecamento na pele e não dava para dizer que era XP”, conta Cabral, a quem chegou o pedido de ajuda que a mulher havia espalhado pela internet. Cabral e Sarasin, que estava no Rio, receberam a mãe no hospital universitário, ao lado da médica que a atendia, colheram amostras de pele das crianças, cultivaram as células em laboratório, testaram a sensibilidade à radiação ultravioleta e, um mês depois, confirmaram as suspeitas da mãe. Em Araras, Cabral conversou com Gleice e saiu de lá com recomendações, planos e frascos de protetor solar que ela pediu para ele entregar para Ana Clara. n
Projetos 1. Genes de reparo de DNA: análise funcional e evolução – nº 2003/13255-5; 2. Caracterização de mutações germinativas presentes nos genes XPA e XPC em pacientes brasileiros clinicamente diagnosticados com xeroderma pigmentoso – nº 2009/16895-1. Modalidades: 1. Projeto Temático; 2. Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa. Coordenadores: Carlos Frederico Martins Menck – ICB/USP; Maria Isabel Alves de Souza Waddington Achatz – Fundação Antonio Prudente, Hospital A. C. Camargo. Investimento: 1. R$ 1.442.484,59 (FAPESP); 2. R$ 198.003,24 (FAPESP).
pESQUISA FAPESP 199 z 49
desenvolvimento neurológico y
Da saciedade e
outros prazeres Células na base do cérebro controlam a fome e acionam os mecanismos neurais da recompensa
U
m grupo de apenas 5 mil neurônios localizados na base do cérebro, em uma região chamada hipotálamo, não controla somente a fome e a saciedade. Especializados na produção de dois dos comunicadores químicos cerebrais – o neuropeptídeo Y (NPY) e o peptídeo relacionado ao agouti (AgRP) –, esses neurônios atuam também sobre os mecanismos cerebrais de recompensa, que coordenam as sensações de prazer. O duplo papel dessas células foi observado por um grupo de pesquisadores brasileiros e norte-americanos e descrito em junho na revista Nature Neuroscience. “Foi a primeira vez que se registrou a influência dessas células sobre outras funções do sistema nervoso central”, conta o médico Marcelo Dietrich, pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e primeiro autor do artigo. Dietrich suspeitava havia algum tempo de que os neurônios produtores de NPY e AgRP pudessem manter conexões com outras áreas cerebrais por causa dos efeitos colaterais provocados por medicamentos inibidores de apetite. Compostos como a sibutramina, retirada do mercado em vários países e vendida com retenção de receita no Brasil, reduzem a fome por induzir efeitos semelhantes ao da desativação desses neurônios.Mas também originam uma série de alterações no organismo, como a melhora do humor – a sibutramina foi desenvolvida para ser usada como antidepressivo – e o aumento do risco de
50 z setembro DE 2012
problemas cardiovasculares. “Imaginávamos que os neurônios produtores de NPY e AgRP não estariam isolados ou associados apenas à fome”, conta Dietrich. “Pensamos que também pudessem desempenhar algum papel em funções cognitivas mais sofisticadas e decidimos ver se estavam envolvidos nos mecanismos de recompensa”, diz o pesquisador, que atualmente passa uma temporada no laboratório de Tamas Horvath na Universidade Yale, nos Estados Unidos. A fim de testar possíveis conexões desses neurônios com os de outras regiões cerebrais, Dietrich realizou uma série de experimentos com roedores geneticamente alterados para apresentar menor atividade dos neurônios do apetite. “As células não eram eliminadas, mas funcionavam de maneira deficiente, minimizando assim a sensação de fome”, explica. A consequência esperada era que outros mecanismos associados àquele grupo de neurônios também se mostrassem menos ativos. Mas não foi o que ocorreu. Inicialmente os camundongos foram soltos em uma caixa de acrílico em que foi colocado um pequeno cilindro de plástico para avaliar como se comportavam. Como os roedores são curiosos e gostam de conhecer tudo o que é novo no ambiente, o grau de exploração serve como termômetro de ativação dos mecanismos de recompensa. Os pesquisadores imaginavam que eles fossem se interessar pouco pelo objeto novo, uma vez que seus neurônios da fome não
infográfico pedro hamdan fonte marcelo dietrich
Francisco Bicudo
estavam funcionando bem. Mas observaram o oposto. Mal entraram na caixa, os roedores caminhavam freneticamente de um lado para o outro, explorando as novidades e tomando informações sobre o ambiente até então desconhecido. Esse era o primeiro indício de que os mecanismos de recompensa estavam respondendo de forma acentuada. Numa segunda etapa, o pesquisador repetiu os testes aplicando nos animais uma injeção de cocaína, que sabidamente ativa as vias neurológicas de recompensa. Quanto maior a dose, mais os camundongos se movimentavam pelo ambiente. Por fim, Dietrich estabeleceu um roteiro em que determinava a injeção de cocaína durante cinco dias, matinha os animais em abstinência por quatro dias, e depois voltava a aplicar a droga. “O cérebro desenvolve uma espécie de memória dos efeitos da cocaína, cria dependência e responde de forma ainda mais intensa ao final dos testes”, lembra o pesquisador. Dietrich, então, sofisticou um pouco mais o teste para verificar se a inibição da atividade dos neurônios produtores de NPY e AgRP aumentava a busca por situações prazerosas. Desta vez ele colocou os animais em uma caixa que, de um lado, dava acesso a outra caixa contendo água com cocaína e, de outro, estava conectada a uma terceira caixa com um recipiente com água pura. Num primeiro momento, ele colocou os animais na
caixa central e os deixou explorar as outras duas – os animais visitaram as duas caixas mais ou menos o mesmo número de vezes. Depois, Dietrich fechou o acesso à caixa com água pura e deixou os animais visitarem apenas aquela em que havia cocaína. Numa etapa seguinte, fez o inverso. Bloqueou o acesso à cocaína, permitindo as visitas só à caixa com água pura. Por fim, os camundongos voltaram a ter acesso às duas caixas. Desta vez, porém, as visitas ao ambiente com cocaína foram duas vezes mais frequentes do que à caixa só com água. Foi a confirmação da busca pelo prazer. questão de idade
“Observamos que os neurônios produtores de NPY e AgRP estão conectados aos neurônios que produzem dopamina, o neurotransmissor do prazer”, explica Dietrich. “Mas essa relação se dá de forma inversa, quando os neurônios do apetite são inibidos, os produtores de dopamina se tornam mais ativos, acentuando o funcionamento dos mecanismos de recompensa”, conta. Mas restava uma dúvida. Os testes haviam sido feitos com camundongos transgênicos adultos que haviam nascido sem a proteína que ativa os neurônios da fome e os pesquisadores haviam observado que, quanto mais velho o animal, menor o efeito. Para avaliar a influência da idade, foi preciso mudar de estratégia. Eles inati-
varam os neurônios da fome em animais com idades diferentes (5, 10, 15 e 20 dias de vida e depois de adulto) e repetiram os testes. Os resultados confirmaram: a inativação dos neurônios da fome nos filhotes mais novos intensificava a ação do mecanismo de recompensa. Para Dietrich, essa é uma evidência de que é na primeira semana de vida dos roedores que essas células se conectam com as de outras áreas cerebrais. Nos seres humanos, esse estágio do desenvolvimento cerebral corresponde ao do terceiro trimestre da gestação. “Modificar o funcionamento desses neurônios no começo do desenvolvimento talvez gere consequências que só apareçam bem mais tarde na vida, aumentando a suscetibilidade à adição por drogas”, suspeita o pesquisador, que começou a investigar essa função do hipotálamo durante o doutorado na UFRGS, sob a orientação de Diogo Onofre de Souza. Dietrich pretende ainda compreender a influência da alimentação de recém-nascidos sobre o mecanismo de busca de prazer. “Queremos entender como as células que regulam o apetite reagem quando as mães, em vez de amamentar, dão papinha e outros alimentos em substituição ao leite materno”, conta. “No limite, queremos ser capazes de um dia conseguir sugerir quais são os nutrientes e a quantidade de calorias recomendáveis para que essas conexões se formem de maneira adequada.” n
Rede complexa Neurônios da fome influenciam indiretamente a ação do sistema de recompensa Cérebro de camundongo recém-nascido
neurônios produtores de dopamina
Cérebro de camundongo adulto
neurônios do sistema de recompensa
neurônios produtores de dopamina
neurônios da fome neurônios da fome
Inibir a ação dos neurônios do apetite em
Essa alteração deixa sequelas: eleva
camundongos recém-nascidos aumenta a
a produção de dopamina, a ação do sistema
atividade das células produtoras de dopamina
de recompensa e o consumo de drogas
52 z setembro DE 2012
eduardo cesar ( foto feita na fundação zoológico de são paulo)
fauna silvestre y
As rotas das suçuaranas Felinos conseguem se movimentar em zonas de ocupação humana, mas encontram obstáculos nas estradas Maria Guimarães
A
A onça-parda (Puma concolor), um dos maiores predadores das Américas, ainda é pouco conhecida pela ciência brasileira
nálises genéticas estão revelando um pouco da história e da ecologia da suçuarana, ou onça-parda (Puma concolor), um dos maiores felinos do Brasil, atrás apenas da onça-pintada. Esses discretos animais são altamente adaptáveis e vivem mesmo em zonas com pouca floresta. Mas enfrentam problemas com a caça e nas estradas, conforme vem mostrando o trabalho paralelo de duas pesquisadoras que nunca se encontraram pessoalmente: Camila Castilho, atualmente na Universidade de São Paulo (USP), e Renata Miotto, agora na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), também da USP, em Piracicaba. As duas estudaram aspectos genéticos de populações locais de suçuaranas, chegando em grande parte a resultados semelhantes, conforme mostram o artigo de Renata na Conservation Genetics em 2011, e de Camila publicado este ano na Genetics and Molecular Biology. O primeiro aspecto importante é que há pouca diferenciação genética nas áreas estudadas, sinal de uma população não fragmentada. Isso indica que esses animais conseguem percorrer grandes distâncias e manter o fluxo de material genético, apesar de não haver continuidade de floresta. É bem diferente do que acontece com a onça-pintada, que se aventura pouco fora das áreas de mata e acaba ficando isolada em fragmentos e gerando
populações diferenciadas, conforme já mostraram outros estudos. Na prática, a onça-parda forma populações contínuas ao longo de áreas extensas. No caso de Camila, que desenvolveu o trabalho durante o doutorado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a área englobava boa parte de Santa Catarina, uma parte do sul do Paraná e algumas amostras no extremo norte do Rio Grande do Sul, um total de mais de 140 mil quilômetros quadrados (km2). O estudo de Renata, à época doutoranda na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), era mais circunscrito, mas nada diminuto: cerca de 1.700 km2 do interior paulista que incluem 15 municípios, entre eles Ribeirão Preto, Rio Claro e São Carlos. O outro achado semelhante entre os dois estudos mostra que recentemente, em algum ponto do último século, houve uma drástica redução nos números das suçuaranas, que os geneticistas de populações chamam de gargalo populacional. Ao passar por um desses gargalos, a população perde parte da sua diversidade genética, o que em certos casos pode gerar problemas. “A perda de genes é aleatória e é possível que nada importante se vá”, explica Camila, “mas é maior a probabilidade de acontecer um azar”. Um azar seria o animal não poder contar com algum gene essencial para enfrentar a alterações no ambiente. pESQUISA FAPESP 199 z 53
Por onde elas andam fonte renata miotto e camila castilho
Apesar de ser uma única espécie distribuída por uma ampla área geográfica, as onças-pardas enfrentam desafios distintos conforme a região
canadá
estados unidos
ribeirão preto jaboticabal méxico
Est. Ecológica Jataí
araraquara
brasil peru colômbia
São Paulo
brotas
Pelo nordeste
Região Sul
do estado passam
O modelo indica uma
rodovias de alta
capacidade de atingir
velocidade,
argentina
grandes distâncias,
um obstáculo
mesmo onde a mata
à movimentação
é ausente. Conflitos
das suçuaranas
com fazendeiros são o maior problema por ali
– estradas n área urbana n silvicultura n canavial n vegetação nativa
mobilidade
pastagem
menor
6,6% dos animais analisados na Região Sul eram aparentados
54 z setembro DE 2012
Uma coisa é certa quando se detecta um gargalo: aconteceu algum desequilíbrio na população, seja uma redução importante em tamanho ou, mais raramente, uma alteração drástica na proporção entre machos e fêmeas. Canavial
É aí que começam as diferenças entre os dois estudos. O interior de São Paulo, onde Renata trabalha, está recoberto de cana-de-açúcar. “A maior parte foi plantada nos anos 1960 e 1970, em razão do Proálcool [Programa Nacional do Álcool]”, diz a pesquisadora. “Os dados genéticos indicam que o gargalo pode ter acontecido nessa época.” Nesse caso, muitas suçuaranas teriam morrido nesse período de intenso desmatamento, e depois aos poucos a população teria voltado a aumentar, à medida que suas presas se adaptaram a viver nos canaviais. “A dieta das onças na região consiste principalmente em tatus, cervos, capivaras e outros roedores”, conta. São animais que aparentemente vêm se adaptando bem à agricultura, alguns deles consumidores de cana-de-açúcar. Com alimento abundante,
maior
as suçuaranas podem facilmente viver na região, sem representar problemas para os donos das plantações. O grande problema que esses animais enfrentam hoje são as estradas movimentadas, praticamente intransponíveis para pedestres – sejam eles humanos ou felinos –, que cortam o estado. Isso pode bloquear as rotas das suçuaranas e, com o tempo, reduzir a variabilidade genética. Além de limitar o trânsito das suçuaranas, atropelamentos são uma causa importante de mortalidade. “Os machos jovens, que se dispersam para longe da área onde nasceram, são as principais vítimas”, diz Renata. Entre os 23 animais atropelados de sua amostragem, 16 são machos. A suçuarana Anhanguera, apelidada em 2009 com o nome da estrada em que foi atropelada, no interior paulista, era justamente um macho jovem. “Essa mortalidade diferencial pode alterar a razão sexual, o que pode ser detectado como um gargalo.” Isso acontece porque são eles os emissários do material genético, já que se mudam para uma zona distante onde afinal se estabelecem e acasalam.
As fêmeas permanecem mais próximas ao local onde nasceram, conforme Renata mostrou em cinco anos de monitoramento na Estação Ecológica de Jataí, no município de Luis Antônio, perto de Ribeirão Preto. Ao longo desse período ela percorreu trilhas e coletou fezes frescas, de onde extraiu material genético. Os dados, publicados este ano na Biotropica, mostram que todas as onças residentes são fêmeas. Gado
Na Região Sul, Camila deparou com uma relação mais conflituosa entre os seres humanos e o leão-baio, como o felino é conhecido em terras catarinenses. Ali se criam vários tipos de gado – vacas, cabras, ovelhas – de forma extensiva, com os animais sempre soltos no pasto. Além das pacas, cutias e veados, os animais domésticos acabam virando boas refeições para as suçuaranas, que em seguida precisam enfrentar o fazendeiro armado. “Embora a caça seja ilegal, sabemos que acontece muito nessa região”, conta Camila, que aos poucos venceu as resistências e conseguiu que os donos das fazendas lhe cedessem amostras dos leões-baios caçados, para extração de material genético. A zona de estudo da pesquisadora se concentrou no sul de Santa Catarina, onde as fazendas se estendem por campos de altitude com resquícios de floresta – os capões – em meio ao pasto. É nesses capões, e nas matas ao longo de rios, que as suçuaranas se refugiam e onde por vezes encontram uma cabra ou bezerro também em busca de abrigo. Assim como em São Paulo, os dados de Camila mostram que o gargalo populacional aconteceu no último século, coincidindo com a ampla derrubada da floresta de araucárias que caracterizava a região. Atualmente, a caça parece ser responsável pela maior parte da mortalidade por ali, e não a falta de hábitat. “Conectividade não parece ser um problema”, comenta Camila. Por meio de modelos ecológicos que analisam a paisagem ela sugere, em artigo de 2011 na Mammalian Biology, que não há impedimento para que esses animais se locomovam por toda a sua área de estudo, que abrange boa parte da Região Sul. Um dado genético que corrobora essa ideia é o baixo parentesco entre os indivíduos que conseguiu analisar. “Apenas 6,6% dos indivíduos que analisamos eram aparentados”, conta. Para ela, é preciso conscientizar os fazendeiros da importância ecológica dos grandes predadores e buscar soluções, como a construção de currais onde o gado possa passar a noite. Mesmo nunca tendo conversado, as duas pesquisadoras continuam a seguir caminhos paralelos. Ambas, atualmente no pós-doutorado, deixaram a genética de lado para se concentrar na análise da paisagem. “São abordagens com-
plementares”, explica Camila. Diante das informações fornecidas pela distribuição da variação genética, surgiram novas perguntas que as levaram a buscar entender o ambiente por onde as onças-pardas circulam em busca de detectar os problemas que elas enfrentam e propor soluções para manter populações viáveis desse grande felino encontrado em quase toda a América, exceto em boa parte da Argentina e na metade leste da América do Norte. Agora ambas trabalham em São Paulo: Renata está construindo um banco de dados sobre a cobertura vegetal e a ocupação da mesma região que examinou até o momento, incluindo um mapeamento detalhado da malha viária e do fluxo de veículos, que em conjunto com os dados genéticos formarão um modelo de dispersão. Ao mesmo tempo compila dados de atropeEm algum ponto lamentos e, com ajuda da Polícia do último século Florestal, aumenta sua coleção de amostras genéticas. “A partir deshouve uma ses modelos, quero avaliar as rotas preferenciais no deslocamento das drástica redução onças para definir o que se pode fazer em termos de manejo da paino número sagem”, explica. Camila concentra das suçuaranas seu projeto no mosaico das serras da Bocaina e da Mantiqueira, no nordeste paulista, que inclui a região de São José dos Campos. Nessa região, avaliará o hábitat disponível e as possibilidades de locomoção das suçuaranas. “Vou criar valores de permeabilidade para detectar as áreas prioritárias em termos de conservação.” Em conjunto, os dois projetos podem contribuir para reduzir o desequilíbrio que existe entre a América do Norte e a do Sul no que diz respeito ao conhecimento a respeito desse imponente predador. Talvez também cheguem a propostas de práticas pecuárias que melhorem a convivência entre fazendeiros e predadores, e a passarelas ou túneis para travessia de suçuaranas. n
Artigos científicos CASTILHO, C. S. et al. Genetic structure and conservation of Mountain Lions in the South-Brazilian Atlantic Rain Forest. Genetics and Molecular Biology. v. 35 (1), p. 65-73. 2012. CASTILHO, C. S. et al. Landscape genetics of mountain lions (Puma concolor) in southern Brazil. Mammalian Biology. v. 76 (4), p. 476-83. 2011. MIOTTO, R. A. et al. Monitoring a puma (Puma concolor) population in a fragmented landscape in Southeast Brazil. Biotropica. v. 44 (1), p. 98-104. 2012.
Artigo científico
MIOTTO, R. A. et al. Genetic diversity and population Meléndez, J. et al.(Puma The remarkable solar twin HIP 56948: structure of pumas concolor) in southeastern Brazil: a prime targetfor in conservation the quest for other Earths. Astronomy & implications in a human-dominated Astrophysics. No prelo, 2012. landscape. Conservation Genecits. v. 12 (6), p. 1.447-55. 2011. pESQUISA FAPESP 199 z 55
Fauna do Pré-cambriano y
A vida protegida por armaduras Norte do Paraguai pode abrigar a maior diversidade de fósseis dos primeiros animais com esqueleto Ricardo Zorzetto
N
os arredores de Puerto Vallemí, um povoado com 9 mil moradores no norte do Paraguai, está instalada a única empresa produtora de cimento do país. Ali, a poucos quilômetros da cidade, a Indústria Nacional del Cemento escava há décadas um paredão rochoso de 640 metros de altura do qual sai boa parte do calcário usado na construção civil paraguaia e a poeira branca que cobre a cidade nos dias de vento forte. Vasculhando as escavações da mineradora e cavoucando barrancos nas estradas da região, o geólogo brasileiro Lucas Warren encontrou recentemente o que chama de “mina de ouro da paleontologia”. As rochas que trouxe de lá e hoje ocupam uma grande mesa de sua sala no Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (USP) estão incrustadas com pequenas estruturas alongadas – elas têm, em média, 1 centímetro de comprimento – que lembram minhocas aprisionadas em um bloco de lama endurecido pelo sol. Mas são algo muito mais raro, encontrado em pouquíssimas regiões do mundo. São fósseis do que provavelmente foram os primeiros seres vivos com esqueleto que surgiram no planeta.
1,5 m
Éden marinho Conheça o ambiente em que surgiram os primeiros seres macroscópicos com esqueleto
água
fundo
TROMBólito
sUBSTRATO
Era límpida, calma,
Coberto por uma
Cianobactérias
Trabalhado pelas
quente, rica em gás
esteira gelatinosa de
depositavam carbonato
correntes, o carbonato
carbônico e com pouca
cianobactérias, servia
de cálcio, que se
de cálcio produzia uma
profundidade
para a ancoragem
solidificava em morros
areia muito branca e fina
5 cm
cloudina
corumbella
Fonte PACHECO, M. L. A. F. et al. Journal of Taphonomy, 2011 ilustrações sandro castelli 1.
Especialista em sedimentologia e paleontologia, Lucas estima a idade dos fósseis em 550 milhões de anos, a mesma das rochas de Puerto Vallemí. O geólogo Eric Tohver, pesquisador da University of Western Australia que colabora com a equipe da USP, tenta atualmente datar as rochas contendo os fósseis por técnicas mais precisas. Se a idade for confirmada, esses fósseis estarão entre os mais antigos de animais com esqueleto biomineralizado, ao lado dos achados na Namíbia, sudoeste da África, que viveram há 549 milhões de anos – fósseis encontrados mais recentemente na China sugerem que esse tipo de animal possa ter existido até mesmo antes, mas a identificação deles ainda é incerta. São poucas, cinco ou seis, as espécies conhecidas dos primeiros seres visíveis a olho nu que produziam esqueleto. E, segundo os registros fósseis, elas existiram por pouco tempo, de 550 milhões a 542 milhões de anos de atrás. Em Puerto Vallemí, Lucas e o geólogo paraguaio Alberto Cáceres encontraram exemplares de duas espécies já conhecidas e ao menos mais uma ainda não descrita pela ciência. Também identificaram vestígios de seres vivos de corpo mole que vive-
ram na mesma época e deixaram marcas semelhantes a rastros impressas nas rochas. Pode parecer pouco, mas não é. Encontrar registros de duas ou mais dessas espécies vivendo no mesmo período e na mesma região é muito incomum. Antes de Vallemí, essa convivência havia sido observada na Namíbia, no Canadá, no Brasil, na China, em Omã e na Rússia. “A qualidade dos fósseis encontrados no Paraguai e a variedade de espécies tornam essa coleção uma das mais completas e representativas da fauna daquele período”, comenta o paleontólogo Thomas Fairchild, do Instituto de Geociências (IGc) da USP, que, com Lucas, Mírian Pacheco, Claudio Riccomini, Marcelo Simões e outros colaboradores, descreveu os fósseis de Puerto Vallemí. Lucas encontrou esses fósseis em uma área delimitada a oeste pelo rio Paraguai e a norte pelo rio Apa, na fronteira com Mato Grosso do Sul, onde os geólogos Paulo Boggiani e Claudio Gaucher já haviam achado um fóssil de um desses animais. Muitas das amostras coletadas por Lucas – algumas ocupam duas mãos abertas – têm centenas de esqueletos fossilizados, aprisionados em uma camada de quase 1 centímetro de espessura.
CORUMBELLA CLoudina
Animal do grupo dos
Provável membro dos
cnidários, ao qual
anelídeos, o grupo
pertencem as medusas
do qual fazem parte
e as águas-vivas,
minhocas e vermes
secretava um esqueleto
marinhos chamados poliquetas, produzia esqueleto mineral à base de carbonato de cálcio
composto principalmente 3 cm
por material orgânico com forma de pirâmide invertida
Ele não buscava fósseis quando chegou à região. Nas primeiras expedições em 2006, no início do doutorado sob a orientação de Boggiani, Lucas planejava mapear a evolução da bacia sedimentar da região que se estende por Mato Grosso do Sul, Bolívia, norte da Argentina e parte do Chile. As rochas de lá indicavam que essa região havia sido ocupada pelo mar. Há 550 milhões de anos, os continentes tinham uma conformação bem diferente da atual. O imenso bloco continental sobre o qual se assentam a Amazônia e o Paraguai estava isolado do restante da América do Sul, numa posição mais austral (ver mapa ao lado). Esse trecho do continente sul-americano formava um mar raso, de águas límpidas e hipersalinas.
Mapa da mina A região de Puerto Vallemí, onde foram coletados os fósseis no Paraguai, estava sob as águas há 550 milhões de anos hoje provável área ocupada pelo bolívia
brasil chile
F
oi nesse cenário que os seres com esqueleto de Puerto Vallemí provavelmente viveram. A forma como estão preservados nas rochas indica que viviam ancorados nos sedimentos do fundo, uma esteira esverdeada de cianobactérias que, ao fazer fotossíntese, retiravam gás carbônico da água e o transformavam em carbonato de cálcio. A maior parte dos fósseis dessa região pertence a animais de dois gêneros: Corumbella e Cloudina. Os primeiros foram descritos em 1982 pela equipe do geólogo alemão Detlef Walde, da Universidade de Brasília. Rochas coletadas na região de Corumbá, Mato Grosso do Sul, continham fósseis de esqueletos com a forma de uma pirâmide invertida. Os maiores exemplares dessa espécie, denominada Corumbella werneri, alcançavam 10 centímetros de comprimento – no Paraguai eles chegam a 5. Apesar de a espécie ter sido identificada há três décadas, a composição do seu esqueleto ainda não é bem conhecida. Analisando exemplares de Corumbella, a paleobióloga Mírian Pacheco e Juliana Basso, do IGc, e colaboradores da Univap e do Instituto de Química e do Laboratório de Astrobiologia da USP, constataram recentemente que o esqueleto desses fósseis tem uma concentração importante de material orgânico – possivelmente à base de quitina, o polissacarídeo do esqueleto dos insetos. Lucas, Mírian e Fairchild também encontraram poros e papilas microscópicas no esqueleto desses animais. Descritas em artigo publicado em agosto deste ano na Geology, essas características indicam que o esqueleto foi produzido por um cnidário, o grupo ao qual pertencem medusas, anêmonas e águas-vivas. São animais com corpo mole bastante simples – basicamente uma cavidade digestiva e uma oral, em alguns casos rodeada por tentáculos com células urticantes. Até onde se sabe, a distribuição de Corumbella é restrita. Além de Corumbá e de Puerto Vallemí, exemplares desse gênero só foram encontrados na Califórnia. Já os animais do gênero Cloudina eram mais cosmopolitas. Os primeiros exempla58 z setembro DE 2012
antigo mar
paraguai
região da coleta dos fósseis
uruguai
há 550 milhões de anos
Austrália índia Antártida Oeste africano
Laurentia
São Francisco Amazônia Kalahari Rio de La Plata Paraná
Oceano Clymene
O imenso bloco continental sobre o qual hoje se assentam parte do Brasil e o Paraguai se encontrava em uma posição mais austral e próximo à Laurentia, antigo continente que originou a América do Norte
res, que teriam vivido há 549 milhões de anos, foram identificados em 1972 na Namíbia. Posteriormente sua presença foi confirmada em quase uma dúzia de países, e agora no Paraguai. Menores, os fósseis de Cloudina não passam de 3 centímetros. Seu esqueleto lembra casquinhas de sorvete ou copos de café empilhados. É composto por camadas de carbonato de cálcio, depositadas à medida que o animal que habitava seu interior crescia. Mais rígido e de origem exclusivamente mineral, o que facilita a fossilização, esse esqueleto parece ter garantido mobilidade o suficiente para o animal – de corpo mais complexo, provavelmente um anelídeo, grupo a que pertencem as minhocas e os poliquetas (vermes marinhos) atuais – serpentear ao sabor das ondas. Não se sabe ao certo por que a capacidade de produzir esqueleto surgiu no reino animal, provavelmente mais de uma vez, mas três hipóteses
exemplares de Cloudina, que extraem a matéria-prima da água, e os de Corumbella, que sintetizam em grande parte a partir de compostos orgânicos.
mapa atual e fotos lucas warren/igc-usp mapa há 550 milhões de anos tohver, e. et al. precambrian research - 2006
A
1
3
2
tentam explicar. Uma delas sugere que a capacidade de produzir esqueleto mineral seria uma forma de eliminar do organismo níveis elevados do carbonato de cálcio extraído da água do mar. Ou seja, seria um mecanismo de desintoxicação. Há também quem pense que o esqueleto, uma vez surgido ao acaso, teria representado uma vantagem adaptativa por dar a sustentação necessária para esses animais alcançarem alimentos disponíveis acima da camada de sedimentos. “Estar 1 centímetro acima do fundo pode ter permitido explorar uma região sem competidores”, diz Lucas. Mas ele, Fairchild e os outros pesquisadores do IGc apostam numa terceira possibilidade: o esqueleto, surgido ao acaso, funcionaria como uma armadura que aumenta a chance de sobreviver ao ataque de predadores. A razão que os leva a acreditar nessa hipótese é a coexistência de seres com estratégias distintas de produção de esqueleto – os
1 Trombólito coletado em Vallemí 2 Impressão em rocha deixada por Cloudina 3 Restos de exemplar de Corumbella
predação, aliás, era uma forma de interação completamente nova. A vida surgiu na Terra há 3,5 bilhões de anos. Os primeiros seres vivos, as bactérias, tinham apenas uma célula, uma espécie de bolsa minúscula contendo material genético e proteínas. E pelos 3 bilhões de anos seguintes pouca coisa mudou. Alguns seres unicelulares passaram a viver em colônias, em que cada grupo de células executava funções diferentes. Mas, juntas, não formavam um organismo. Só entre 580 milhões e 560 milhões de anos atrás é que começaram a aparecer os primeiros organismos multicelulares, de corpo gelatinoso organizado em tecidos e formas incomuns (disco ou pena), conhecidos como biota de Ediacara. Foi nessa época que apareceram os primeiros seres vivos capazes de se deslocar sobre os sedimentos no fundo dos mares”, conta Fairchild. Até então eles viviam fixos e fabricavam o próprio alimento usando a luz solar e os nutrientes disponíveis no ambiente. “Antes do surgimento do esqueleto, a vida era paz e amor”, brinca. Seja qual for a razão da origem do esqueleto, o fato é que essa estrutura parece ter influenciado radicalmente a vida no planeta. Assim que os primeiros seres com armadura desapareceram, há 542 milhões de anos, floresceu uma imensa variedade de seres vivos com corpos cada vez mais complexos, precursores de todos os organismos que vivem hoje. Essa mudança é a chamada explosão de vida do Cambriano. “Quem quiser entender melhor o que aconteceu nessa fase de transformação da vida no planeta”, diz Lucas, “não vai poder ignorar os fósseis de Vallemí”. n
Projetos 1. Isótopos Estáveis (C, O e Sr) do Grupo Itapucumi e correlações com o Grupo Corumbá (Ediacarano) – nº 2010/02677-0; 2. Tectônica e sedimentação do Grupo Itapucumi no contexto das plataformas carbonáticas ediacaranas: abordagem geoquímica, geocronológica, paleomagnética e bioestratigráfica – nº 2010/19584-4. Modalidade: 1. Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; 2. Pós-doutorado no país. Coordenadores: 1. Paulo Cesar Boggiani – IGc/USP; 2. Lucas Warren – IGc/USP. Investimento: 1. R$ 88.107,25 (FAPESP); 2. R$ 150.870,57 (FAPESP).
Artigos científicos WARREN, L.V. et al. The dawn of animal skeletogenesis: Ultrastructural analysis of the Ediacaran metazoan Corumbella werneri. Geology. v. 40. p. 691-94. ago. 2012. WARREN, L.V. et al. Corumbella and in situ Cloudina in association with thrombolites in the Ediacaran Itapucumi Group, Paraguay. Terra Nova. v. 23 (6), p. 382-89. dec. 2011. PACHECO, M.L.A.F. et al. Taphonomic Analysis and Geometric Modelling for the Reconstitution of the Ediacaran Metazoan Corumbella werneri Hahn et al. 1982 (Tamengo Formation, Corumbá Basin, Brazil). Journal of Taphonomy. v. 9. p. 269-283. 2011. pESQUISA FAPESP 199 z 59
aquecimento global y
Canavial mais limpo Emissões do pior gás causador do efeito estufa pela cana-de-açúcar são menores do que se estimava
A
s emissões diretas de gases causadores do efeito estufa na plantação de cana-de-açúcar são bem inferiores às estimadas na literatura científica internacional. Esse é o principal resultado de um estudo de campo feito por um grupo de cientistas de diferentes universidades e centros de pesquisa nacionais em canaviais paulistas. O foco do levantamento, publicado no periódico Global Change Biology Bioenergy, foi a emissão de óxido nitroso (N2O), considerado o mais deletério gás de efeito estufa, quase 300 vezes mais prejudicial ao ambiente do que o dióxido de carbono (CO2) e com grande persistência na atmosfera. A fonte de geração de óxido nitroso em canaviais são os fertilizantes nitrogenados usados pelos agricultores para fazer a planta crescer. Os resultados dos pesquisadores são importantes porque, caso as emissões de óxido nitroso fossem muito elevadas, o etanol feito a partir da cana teria seus benefícios ambientais questionados. O Brasil é o maior produtor mundial da planta, com um volume anual de 596 milhões de toneladas. “O objetivo do nosso trabalho foi traçado em razão de uma publicação de 2008 do cientista holandês Paul Crutzen, prêmio Nobel de Química de 1995, em que ele afirma que os fatores de emissão de óxido nitroso em culturas destinadas à produção de biocombustíveis seriam superiores a 3%, podendo chegar a 5%, afetando diretamente o clima do planeta”, diz a engenheira agrônoma Janaína Braga do Carmo, coordenadora da pesquisa e professora do Departamento de Ciências Ambientais da Universidade Federal de São Car60 z setembro DE 2012
los (UFSCar), em Sorocaba, no interior paulista. Outro prognóstico, feito por especialistas do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), apontava um fator de emissão mais baixo, em torno de 1%. “Nosso estudo foi o primeiro feito a partir de medidas de campo, e não baseado em modelos matemáticos ou estimativas indiretas, e mostrou que as emissões de óxido nitroso nos canaviais paulistas situam-se muito mais próximas do que foi estimado pelo IPCC – ou seja, num nível bem inferior ao prognosticado por Crutzen”, diz Janaína, ressaltando que o estudo do prêmio Nobel não foi referente apenas ao etanol produzido no Brasil, mas sim a uma visão global da produção mundial do combustível, incluindo o etanol de milho e de outras culturas. O fator de emissão é uma medida que expressa a porcentagem de nitrogênio perdida para a atmosfera na forma de óxido nitroso em relação à quantidade de nitrogênio adicionado ao solo via fertilizante nitrogenado. O óxido nitroso é liberado no ar por microrganismos presentes no solo por meio de dois processos conhecidos como nitrificação e desnitrificação. A pesquisa revelou que o fator de emissão em plantações que receberam apenas fertilizantes nitrogenados é de 0,68% – ou seja, de cada 100 quilos de nitrogênio usados na adubação da lavoura, 680 gramas foram transformados em óxido nitroso e “vazaram” para a atmosfera. Mas esse valor sobe para 3% em áreas onde também é usada vinhaça como fertilizante e grande volume de palha acumulada no solo após a colheita. A vinhaça, um resíduo da produção sucroal-
foto léo ramos infográfico ana paula campos
Yuri Vasconcelos
Sobe e desce Fatores de emissão e consumo de carbono e outros gases do efeito estufa na plantação de cana-de-açúcar
Fatores de Emissão
Fatores de consumo
respiração Com liberação de CO2 e consumo
CO2
O2
Fotossíntese Com absorção de dióxido
de oxigênio (O2) pelas folhas
CO2
de carbono (CO2) pelas folhas
folhas
Respiração do solo
CO2
Raiz e microrganismos liberam
CH4
carbono (CO2)
Absorção de metano
DESNITRIFICAÇÃO É o processo de transformação
N2O
NO2
Bactérias consomem e oxidam o metano (CH4) para obtenção
do fertilizante nitrogenado (NO3-
de energia (carbono) durante a
Nitrato) em óxido nitroso (N2O)
decomposição da matéria orgânica
raiz microrganismos
Impacto menor na atmosfera As diferenças de emissões entre as estimativas e o estudo no campo
Desde 2008 Fertilização nitrogenada
5% a 3% Estimativa de Paul Crutzen
1%
Em 2012 Fertilização com vinhaça
3% Resultado no campo
Fertilização nitrogenada
0,68% Resultado no campo
Estimativa de especialistas do IPCC fonte Janaina do Carmo/UFSCar
cooleira, é largamente empregada como fertilizante nos canaviais, em razão de seus altos teores de potássio, enquanto a palha forma uma camada protetora que reduz a erosão e as perdas de água no solo. “Nosso estudo mostra que precisamos desenvolver métodos de manejo para diminuir as emissões associadas ao uso da vinhaça e da palha”, diz Janaína. diferença no tratamento
O trabalho coordenado por Janaína integra o Programa Fapesp de Pesquisa em Bioenergia (Bioen) e teve a participação de pesquisadores da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, do Instituto Agronômico (IAC), do Centro de Tecnologia Canavieira (CTC), do Centro de Energia Nuclear na Agricultura da Universidade de São Paulo (Cena/USP), da Embrapa Meio Ambiente, da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e da Agência Paulista de Tecnologia. No total, os pesquisadores quantificaram as emissões de gases de efeito estufa em oito diferentes tratamentos em canaviais, cada um com um tipo de adubação diferente. No município de Jaú, a 300 quilômetros da capital, os experimentos foram feitos em plantações de cana-planta, nome dado à primeira safra do plantio quando ocorre o preparo do solo para abertura dos sulcos onde serão colocados os colmos – um tipo de caule da cana. Na cana-planta, o agricultor 62 z setembro DE 2012
normalmente adiciona 60 quilos de nitrogênio, na forma de ureia, por hectare. Em Piracicaba, a 165 quilômetros de São Paulo, o foco foram lavouras de cana-soca, fase posterior ao primeiro corte da planta, quando não há necessidade de preparo do solo e são aplicados de 100 a 150 quilos de fertilizante nitrogenado por hectare, normalmente sulfato de amônio ou nitrato de amônio. Em Jaú, além da ureia, os blocos receberam vinhaça, torta de filtro – um resíduo da indústria canavieira composto por bagaço moído e lodo – ou os dois juntos; em Piracicaba, estudou-se o efeito da palha no solo. Os quatro tratamentos estudados nesse município receberam quantidades diferentes de palha, com 0, 7, 14 e 21 toneladas por hectare e, para cada um, verificou-se o nível de emissão com e sem aplicação de vinhaça. “Nossos cálculos indicam que o valor mais alto do fator de emissão de N2O entre todos os experimentos e tratamentos (3,03%) foi observado em cana-soca (Piracicaba) tratada com vinhaça e contendo a maior quantidade de palha na superfície do solo, 21 toneladas por hectare”, apontou o estudo. “Em cana-planta, os tratamentos com vinhaça mais fertilizante sintético tiveram o mais elevado fator de emissão (2,65%). Sem vinhaça, o valor cai para 1,1%.” O menor fator de emissão, de 0,68%, foi encontrado no experimento com cana-soca no tratamento sem palha,
vinhaça ou torta de filtro e adubada apenas com fertilizante nitrogenado. “Nosso trabalho mostrou que, com esse tipo de tratamento, as emissões de óxido nitroso são pequenas. Se as estimativas previstas na literatura estivessem certas, o prejuízo ambiental causado pelo óxido nitroso não seria compensado pelo consumo de carbono ocasionado pela fotossíntese e pela elevada eficiência energética da cana”, diz Janaína. Além de avaliar o fator de emissão de N2O, os pesquisadores também calcularam as emissões totais de três dos principais gases do efeito estufa: óxido nitroso, dióxido de carbono e metano. Para comparar o efeito dessas emissões entre os experimentos e os diversos tratamentos, eles converteram as emissões desses três gases em equivalentes de CO2, que é uma medida usada para cotejar as emissões de vários gases de efeito estufa baseada no potencial de aquecimento global de cada um – o do óxido nitroso, por exemplo, é 296 vezes maior que o dióxido de carbono. O CO2 equivalente de uma determinada fonte emissora, portanto, é o resultado da multiplicação das toneladas emitidas de gases de efeito estufa (GEE). Nas duas plantações, cana-planta e cana-soca, os valores mais altos de CO2 equivalente estavam associados ao uso de vinhaça. Em cana-planta, os níveis críticos de emissão de CO2 equivalente (1.380 quilos por hectare por ano) foram atingidos quando se usou ureia, torta de filtro e vinhaça. Em cana-soca, o pior cenário foi aquele em que se usou vinhaça e 21 toneladas de palha acumulada no solo por hectare. Nessa situação, geraram-se 3 mil quilos de CO2 equivalente por hectare por ano. n
Projetos 1. N2O, CO2 e CH4 Emissions from agro-biofuel production in São Paulo State, Brazil – nº 2008/55989-9; 2. Nitrogen nutrition of sugarcane with fertilizers or diazotrophic bacteria – nº 2008/56147-1. Modalidade: 1. Projeto Jovem Pesquisador do Programa Fapesp de Pesquisa em Bioenergia (Bioen); 2. Projeto Temático do Bioen. Coordenadores: 1. Janaina Braga do Carmo – UFSCar; 2. Heitor Cantarella – IAC. Investimento: 1. R$ 237.330,83 e US$ 67.054,00 (FAPESP); 2. R$ 957.280,37 e US$ 75.853,15 (FAPESP)
Artigo científico CARMO, J.B. et al. Infield greenhouse gas emissions from sugarcane soils in Brazil: effects from synthetic and organic fertilizer application and crop trash accumulation. Global Change Biology Bioenergy. On-line, 26 jul. 2012.
Novos materiais y
O valor das impurezas Brasileiros descobrem nova família de materiais capazes de conduzir eletricidade sem perda de energia Igor Zolnerkevic
O
s engenheiros de materiais Antonio Jefferson Machado e Carlos Alberto Moreira dos Santos, ambos da Escola de Engenharia de Lorena, da Universidade de São Paulo (USP), transformam radicalmente as propriedades elétricas de um composto metálico ao inserir, entre os átomos que formam sua rede cristalina, átomos de elementos químicos mais leves como boro, carbono e nitrogênio. Por meio dessa técnica, conhecida como dopagem intersticial, eles já criaram desde 2003 quase 30 novos materiais supercondutores de eletricidade. A descoberta do mais promissor desses supercondutores foi anunciada em junho deste ano em artigo publicado no Journal of Applied Physics. Nele, os pesquisadores de Lorena, em parceria com o engenheiro de materiais Ausdinir Bortolozo, da Universidade Federal de Itajubá, e os físicos Renato Jardim, da USP, e Flávio Gandra, da Universidade Estadual de Campinas, descrevem o que acontece quando se adiciona uma pitada de átomos de carbono durante o processo de fabricação de um composto metálico já bem conhecido, feito de nióbio e germânio, o Nb5Ge3, que desde 1977 interessava pouco à ciência dos materiais por se tornar supercondutor a uma temperatura considerada baixa demais, inferior a -272 graus Celsius (°C). “O comportamento elétrico do material dopado mudou completamente”, diz Machado, que já tem resultados preliminares de outras dopagens bem-sucedidas do Nb5Ge3, usando outros seis elementos químicos. O material dopado com carbono é supercondutor à temperatura de -258°C, a mais alta já obtida pelos brasileiros e
Moléculas transformadas Supercondutor à brasileira: composto à base de germânio (vermelho) e nióbio (azul) passa a conduzir eletricidade sem resistência ao incorporar átomos de carbono (preto)
•
•
Germânio
nióbio
•
carbono
considerada interessante pela indústria. Apesar de gélida, essa temperatura está 11 graus acima do ponto de ebulição do hélio líquido (-269,15°C), que é normalmente usado para refrigerar os metais supercondutores em suas aplicações tecnológicas, por exemplo, nos equipamentos que fazem imagens por ressonância magnética. RESISTÊNCIA NULA
Um material supercondutor é aquele em que a resistência elétrica desaparece abaixo de certa temperatura. Isso significa que uma corrente elétrica pode fluir pelo material sem perder energia na forma de calor. A supercondutividade foi observada pela primeira vez em 1911, pelo físico holandês Heike Onnes, e de lá para cá foram descobertos diversos materiais supercondutores, a maioria metálicos, funcionando a temperaturas baixíssimas, poucas dezenas de graus acima do zero absoluto (-273°C). Apesar de relativamente alta, a temperatura alcançada pelos brasileiros não
chega perto do recorde mundial, estabelecido por outra classe de materiais, à base de óxidos de cobre, que surgiu nos laboratórios a partir de 1987, com temperaturas supercondutoras superiores a -196°C. Esses materiais de natureza cerâmica, entretanto, são quebradiços e heterogêneos, o que impede sua produção em larga escala. Por isso, ainda se busca um material supercondutor a temperaturas mais altas, mas maleável e homogêneo como os metais. Segundo o físico Zachary Fisk, da Universidade da Califórnia, em Irvine, a descoberta dos brasileiros abre a possibilidade de usar a dopagem intersticial para buscar as tão sonhadas ligas metálicas supercondutoras a temperaturas mais altas. “É um desenvolvimento empolgante”, comenta. n
Artigo científico BORTOLOZO, A. D. et al. Interstitial doping induced superconductivity at 15.3K in Nb5Ge3 compound. Journal of Applied Physics. 2012. pESQUISA FAPESP 199 z 63
nobel y
Encontro premiado Cidade alemã à beira do lago Constance reúne dezenas de laureados para inspirar novas gerações de cientistas Marcos Pivetta, de Lindau*
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esde 1951, a pequena cidade turística de Lindau à beira do lago Constance, no sul da Alemanha, é palco de um encontro anual de alguns dias que coloca lado a lado ganhadores do Nobel e jovens cientistas, em início de carreira. Em 2012, a 62ª edição do evento ocorreu entre 1º e 6 de julho e reuniu 27 laureados com o maior prêmio da ciência, a maioria físicos, e 592 alunos de 69 países, inclusive brasileiros. O objetivo do encontro é promover a troca de experiências entre alguns dos mais famosos e bem-sucedidos pesquisadores e as novas gerações de investigadores que estão chegando aos laboratórios. Neste ano a reportagem de Pesquisa FAPESP acompanhou os três primeiros dias da reunião, organizada pelo Conselho dos Encontros do Nobel em Lindau e pela Fundação para os Encontros do Nobel em Lindau, com apoio de entidades acadêmicas de todo o mundo. Das conversas e entrevistas com os laureados, duas foram destacadas para a revista. A primeira é com o astrofísico americano-australiano Brian P. Schmidt, da Universidade Nacional da Austrália, ganhador do Nobel de Física do ano passado ao lado de Saul Perlmutter, da Universidade da Califórnia, e Adam G. Riess, da Universidade Johns Hopkins e do Instituto de Ciência do Telescópio Espacial. Por meio de observações de estrelas supernovas distantes, a trinca de pesquisadores mostrou que o Universo 64 z setembro DE 2012
está se expandindo de forma acelerada. Em sua palestra em Lindau, Schmidt, de 45 anos, falou das dificuldades que os físicos enfrentam para tentar entender os componentes do Universo. A chamada matéria bariônica, os átomos e molé culas conhecidos, responderia por 4% do Cosmo. A misteriosa matéria escura, por 23% e a ainda mais desconhecida energia escura – que pode ser a força responsável pela aceleração da expansão do Universo – por 73%. Nesta entrevista o astrofísico comenta as possibilidades atuais de comprovar a existência desses dois ingredientes do Cosmo. A segunda entrevista é com o mexicano Mario Molina, ganhador do Nobel de Química em 1995 conjuntamente com Paul Crutzen e Sherwood Rowland. Os três pesquisadores iniciaram estudos na década de 1970 com os gases clorofluorcabonos (CFC) que levaram à constatação de que esses compostos, usados por décadas em sistemas de refrigeração e hoje proibidos, destruíam a camada de ozônio da atmosfera. Essa camada é a responsável por proteger a Terra dos efeitos nocivos dos raios ultravioleta vindos do Sol. Hoje professor da Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD), Molina, de 69 anos, fala sobre os riscos das mudanças climáticas. * O jornalista Marcos Pivetta viajou a Lindau a convite do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (Daad)
Ch. Flemming / Lindau Nobel Laureate Meeting
Em busca de 96% do Universo Juntas, a energia escura e a matéria escura representam 96% do Universo, segundo o Modelo Padrão da cosmologia. O que pode ser feito para tentar desvendar esses dois componentes misteriosos do Cosmo sobre os quais pouco se sabe? A primeira coisa que temos de fazer é continuar testando a teoria. Estamos fazendo cada vez mais e melhores testes e, até agora, ela parece funcionar. Se continuarmos testando a teoria, é até possível que ela seja refutada. Mas seria muito interessante Para Brian Schmidt, comprovar a existência da matéria escura num experimento de labo a matéria escura ratório. Se descobrirmos o que é essa partícula de matéria escura e talvez possa medir quanto dela existe, teremos um projeto de trabalho. Realmente ser medida em acho que isso seja possível. Há uma boa possibilidade de que isso aconlaboratório. teça no próximo ano ou talvez daqui Mas a energia a 10 anos. Não sabemos.
escura é um caso mais complicado
E a energia escura? A energia escura é um problema de ordem muito mais fundamental. Nunca poderemos medi-la num laboratório. Não se trata de uma partícula que possa ser detectada.
Precisamos ter um pensamento profundo sobre por que ela existe e por que há essa quantidade de energia no Universo. Não temos uma base teórica para explicá-la. Apenas sabemos que ela existe em razão da gravidade. Ou seja, precisamos de um insight teórico fundamental. Há um problema fundamental entre o que diz a teoria quântica de campos e como a gravidade funciona no Universo. Algo está desconectado. Na minha visão, precisamos entender essa questão. Se desvendarmos isso, talvez consigamos descobrir como a gravidade e a teoria quântica de campos trabalham juntas ou ao menos entender por que a teoria quântica de campos está dando a resposta errada. Esse é o cerne da questão para mim. Como se pode comprovar em laboratório a existência da matéria escura? Há três maneiras de obter esse resultado. Pode ríamos criar a matéria escura no Grande Colisor de Hádrons (LHC), do Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (Cern). Nesse caso, não detectaríamos realmente a matéria, meio que a veríamos deixando o detector e perceberíamos que algo estava faltando. Outra maneira é por meio de uma detecção direta da matéria escura. Resfriaríamos uma caixa de um material o mais próximo possível do zero absoluto e a enterrapESQUISA FAPESP 199 z 65
ríamos uns três quilômetros abaixo da terra, onde nada pudesse atingi-la. As partículas e a matéria escura se dirigem para a Terra, então, talvez, alguma possa atingi-la. Se isso ocorrer, a caixa emite um pin [um som]. Esse pin é um fónon [uma partícula de som, que é um tipo de energia vibracional] que passa pelo detector. Alguns cientistas já fizeram isso por três anos. Até agora não houve nenhuma detecção. Mas esses experimentos vão continuar, ficar maiores e podem detectar a matéria escura. Há também um terceiro jeito de comprovar a matéria escura. Achamos que a matéria escura pode interagir com ela mesma e acabar gerando raios gama ou algo parecido que pode ser detectado pelos astrofísicos. Há alguma emissão de raios gama no meio de nossa galáxia que não entendemos. Ela pode estar relacionada com a matéria escura ou não. Ainda não temos informações sobre essa questão. Não há forma de comprovar por ora a presença da energia escura no Universo? Não vejo nenhuma forma fácil de detectar a energia escura. Já melhoramos nossas observações do Universo num fator de 10. Não há nenhum indício de que a visão de Einstein sobre o Universo esteja errada, nem mesmo um vislumbre de que ele esteja errado [Einstein conjecturou que havia uma força oposta à gravidade que faria o Universo se expandir, mas rejeitou posteriormente essa ideia, hoje reabilitada pelas evidências mais recentes]. Mas isso não quer dizer que ele não esteja errado. As medições vão melhorar mais ainda nos próximos anos, novamente num fator de 10. Quando isso acontecer, não vamos conseguir melhorar mais. Teremos então notícias relevantes sobre a matéria escura mais cedo do que sobre a energia escura? Esse é o meu palpite. Uma pergunta que não tem a ver com astrofísica. Por que o senhor virou produtor de vinho na Austrália? Eu tenho um vinhedo, que plantei no ano 2000, e uma vinícola, a Maipenrai, localizada no distrito de Camberra. Produzo cerca de 3 mil garrafas de Pinot Noir por ano. Eu as vendo na Austrália. Esse é meio que o meu trabalho fora da área de astronomia, para impedi-la que assuma o controle da minha vida. Não gosto de chamar essa atividade de hobby. Afinal, pago impostos por fazer vinho. Gasto muito dinheiro e tempo. Acredite em mim. É muito mais do que um hobby. É uma terapia. É muito prazeroso fazer isso. Eu e minha família fazemos todo o trabalho na vinícola. 66 z setembro DE 2012
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O risco das mudanças climáticas Depois de sua palestra sobre os riscos das mudanças climáticas, o físico Ivar Giaever, ganhador do Nobel de 1973, fez uma apresentação na qual negou que as atividades humanas tenham algo a ver com esse processo. O que o senhor achou da fala de seu colega? Infelizmente, ele ganhou um Nobel numa área da física que não tem nada a ver com as mudanças climáticas [o prêmio foi por trabalhos a respeito do tunelamento em sólidos]. Como demonstrou em sua palestra, ele não sabe essencialmente nada sobre as mudanças climáticas. Cometeu enormes erros. É uma pena. Gostaria de ter tido a chance de sentar e conversar com ele, de fazê-lo ver que, para aprender uma nova área da ciência, não basta entrar na internet, pegar alguns números em poucos minutos e dar uma palestra. É preciso inventariar toda a literatura científica, o que ele invariavelmente não fez. Foi embaraçoso ver um Nobel numa posição tão ridícula. A situação ilustra um problema que acontece com quem ganha o Nobel. Somos perguntados sobre tudo: religião, política etc. É preciso deixar claro que, às vezes, falamos como pessoas, não como ganhadores do Nobel. O senhor Giaever está muito distante do seu campo de atuação na física. A questão das mudanças climáticas está bem estabelecida na literatura científica.
O peso do homem nas mudanças climáticas é mais do que evidente a seu ver? É como um jogo de roleta. De acordo com o último relatório do IPCC, temos uma probabilidade de mais de 90% de que as mudanças vão ocorrer. É bastante óbvio que elas já estão ocorrendo. Há uma grande probabilidade de que a origem das mudanças sejam as atividades humanas. É difícil fazer previsões do que deve acontecer daqui a 10 ou 20 anos. Há muitos Mario Molina diz elementos cujo papel não sabeque as causas mos, como o das nuvens. Talvez as coisas sejam até piores do que do problema pensamos. Daí é que vem a importância do conceito de risco. É não são 100% muito provável que será mais custoso não fazermos nada. Além da conhecidas, mas questão econômica, há problemas há informação sociais. É uma irresponsabilidade com as futuras gerações não suficiente fazermos nada. A vida deles será mais difícil. A ciência do clima é para agir um sistema complexo. Não temos 100% de certeza sobre as mudanças. Mas temos informação suficiente para agir. Temos de passar a informação de que há um risco real. Temos de contar histórias para que o público entenda a situação, mas sem exageros ou invenções. É como quando o médico diz para você que encontrou um tumor. Pode ser câncer ou não. Mas ninguém deixa de fazer um teste para saber se é câncer mesmo, ainda que, estatisticamente, o risco seja de 20%. Não temos certeza sobre as mudanças, mas há um risco real. E só temos um planeta.
fotos 1 Ch. Flemming / Lindau Nobel Laureate Meeting 2 Nasa
O que o senhor acha de propostas, como a defendida por seu colega Paul Crutzen, de injetar compostos na atmosfera para resfriá-la?
Buraco (azul) na camada de ozônio: Molina foi um dos descobridores do papel dos gases CFC que causam o fenômeno
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É válido que a comunidade científica estude um plano B, que tente aprender mais sobre o sistema. Não há nenhum dano se você apenas estuda essa questão. A injeção de enxofre, proposta por Crutzen, já acontece naturalmente quando os vulcões entram em erupção. No caso de um vulcão, demora uma semana para os efeitos da emissão sumirem. Talvez pudéssemos injetar continuamente enxofre e, se essa medida não funcionar, tudo voltaria à situação anterior em um ou dois anos. Mas essa opção é arriscada. É muito mais sábio reduzir as emissões de carbono. O senhor também ficou decepcionado com os resultados da conferência Rio+20? Infelizmente, não pude ir à reunião, mas enviei um vídeo. O consenso geral é de que não se chegou a nenhum comprometimento. Espero que isso seja um reflexo de uma situação temporária. Foi um sinal de que a sociedade precisa fazer muito mais. Temos algumas questões que parecem interferir na discussão da preservação do meio ambiente, de um desenvolvimento sustentável, como a crise econômica, que espero que esteja chegando ao fim. Não se pode trabalhar com a ideia de que ou se mantém a economia, ou se mantém o ambiente. Se não mantivermos o ambiente, o custo será muito mais alto. Mas há fortes grupos com interesses nessa questão. Os que vão perder mais fazem mais barulho. Há também a pressão política. Os Estados Unidos ainda são uma grande barreira. O Partido Republicano questiona a ciência do aquecimento global e a ciência em geral. É algo tão irracional que acho que essa situação é temporária, não tem como se prolongar por muito mais tempo. É possível um acordo em breve? Acho que podemos chegar a um acordo, mas não no contexto atual. Vamos ter de esperar alguns anos. A política interna dos Estados Unidos é um empecilho. O Congresso americano não ratificaria um compromisso internacional. Os Estados Unidos são uma economia muito forte. Hoje a China emite mais gases de efeito estufa, mas cumulativamente os americanos são os maiores emissores. Eles têm de participar de um acordo internacional. A Califórnia está fazendo algo, a Europa também. O Brasil tem diretrizes interessantes na questão dos biocombustíveis. Como disse na minha palestra, é bastante claro que eventos extremos já estão acontecendo e devem se intensificar. Quando a sociedade se der conta de que as mudanças já estão nos afetando agora, de que esse não é um problema apenas para a geração dos nossos netos, haverá uma grande motivação. Com a melhora da economia mundial, espero que essa situação mude. n pESQUISA FAPESP 199 z 67
tecnologia controle de doenças y
A transformação dos insetos Um mosquito transgênico e outro irradiado são as novas armas contra a dengue Evanildo da Silveira
R
eduzir a população do mosquito transmissor da dengue, única forma atualmente disponível para controlar a doença, é o objetivo de dois projetos desenvolvidos por pesquisadores brasileiros, um em Piracicaba, no interior de São Paulo, e outro em Juazeiro, na Bahia. A meta de ambos é a mesma: produzir em laboratório, em larga escala, machos da espécie Aedes aegypti – que transmite o vírus causador da dengue – incapazes de gerar filhotes saudáveis e depois soltá-los no ambiente para competir pelas fêmeas com os congêneres selvagens. Mas as estratégias para atingir esse fim são diferentes. Enquanto em São Paulo os insetos são bombardeados com radiação gama para torná-los estéreis, na Bahia optou-se pela transgenia (ver Pesquisa FAPESP nº 180). Eles recebem um gene modificado que produz uma proteína fatal para a prole resultante do cruzamento com as fêmeas normais existentes no ambiente. A ideia por trás dessas estratégias é liberar em massa os mosquitos transgênicos e irradiados, ambos incapazes de procriar em áreas infestadas pelo Aedes aegypti. A dengue é um dos principais problemas mundiais de saúde pública. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), todos os anos 50 milhões de pessoas contraem a doença, das quais 550 mil são internadas nos hospitais e 20 mil morrem. A liberação contínua e em número suficiente desses insetos inférteis deve ajudar a amenizar o problema, reduzindo a população nativa do Aedes a um nível abaixo do necessário para a transmissão da doença. Em maior número, eles terão vantagens
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fotos leo ramos
competitivas com os machos selvagens férteis, que terão menos chances se acasalar e gerar filhotes. Não há risco ao soltá-los no ambiente, porque somente as fêmeas transmitem o vírus da dengue. O mais recente dos dois projetos é resultado de uma parceria entre o Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena), da Universidade de São Paulo (USP), de Piracicaba, e a empresa Bioagri, um grupo privado de laboratórios de análises. O professor Valter Arthur, do Departamento de Radiobiologia e Ambiente do Cena, conta que a ideia do trabalho surgiu há pouco mais de quatro meses, durante uma conversa com Márcio Adriani Gava, diretor técnico da Bioagri. “Ele me procurou porque queria fazer um curso de doutorado sob minha orientação”, diz. “Como eu sabia que no laboratório da Bioagri estavam criando mosquitos para teste de eficiência de inseticidas e nós aqui trabalhamos com irradiação de insetos há mais de 30 anos, propus a parceria.” A intenção foi aproveitar a experiência e as instalações da unidade da Bioagri, no município de Charqueada, a 20 quilômetros de Piracicaba, para a criação de mosquitos, e os conhecimentos e equipamentos do Cena. “Há 15 anos criamos insetos, que são utilizados por fabricantes de inseticidas e larvicidas para testar a eficácia
de seus produtos”, conta Gava. “Além do Aedes aegypti, mantemos criação do Culex quinquefaciatus e do Anopheles aquasalis.” Na fábrica de Charqueada são produzidos em média 3 mil indivíduos de cada espécie por mês. O Cena, por sua vez, desde 1968 possui irradiadores de raios gama. A máquina utilizada é cilíndrica, com pouco mais de 2 metros de altura e cerca de 80 centímetros de diâmetro, toda revestida de chumbo. No interior dela há pastilhas de cobalto-60, que emitem os raios gama dentro de uma câmara também interna de 17 por 13 centímetros, onde são instaladas as amostras, como mosquitos, frutas ou sementes. No Cena, o equipamento é usado para esterilizar insetos e em pesquisas nas áreas de conservação e desinfecção de alimentos, tratamento quarentenário de pragas de produtos agrícolas e de sementes para aumento de produção. O processo que leva ao Aedes estéril começa na Bioagri. Em seus criatórios, populações do mosquito são mantidas em gaiolas para acasalamento e postura dos ovos. Para isso há pequenos recipientes com água e um papel na borda, onde acontece a postura. Três vezes por semana os papéis com os ovos são retirados e colocados numa bandeja com água em outras gaiolas. Depois de três a quatro dias eles eclodem, transformando-se pESQUISA FAPESP 199 z 69
Comparação entre as duas formas de produzir o Aedes aegypti para combater a dengue criação
intervenção
liberação
reprodução
controle por irradiação
1
2
3
indivíduos normais
pupas normais
pupas irradiadas
adultos irradiados
Insetos são mantidos em gaiolas para copular e fazer a postura de ovos
Os ovos são coletados e em oito dias as larvas se transformam em pupas
Menores, as pupas dos machos são separadas e levadas ao irradiador
As pupas se transformam em adultos estéreis que podem ser liberados
4 descendentes irradiados
No ambiente, a cópula com fêmeas normais resulta em ovos inférteis
controle por manipulação genética Tetraciclina
1
2
3
4
indivíduos transgênicos
larvas transgênicas
pupas transgênicas
adultos transgênicos
larvas transgênicas
Importados da Inglaterra, se reproduzem e geram descendentes trangênicos
Para não morrer recebem o antibiótico tetraciclina
Apenas as pupas machos são separadas, as fêmeas são descartadas
Ao se transformarem em adultos, eles são liberados no ambiente
Na cópula com as fêmeas normais, os ovos eclodem mas as larvas morrem
fonte margareth capurro/usp, valter arthur/usp, bioagri/Biofábrica Moscamed
em larvas. Após mais oito dias, em média, as larvas se transformam em pupas, que são recolhidas e separadas conforme o sexo. Para isso, elas são colocadas num aparelho, formado por duas placas de acrílico, paralelas. Como as pupas das fêmeas são maiores, elas não passam pelo espaço entre as duas placas. As dos machos são recolhidas num recipiente com água, que depois é colocado no irradiador do Cena para que recebam a radiação. dose ideal
Segundo Arthur, o ideal seria irradiar os adultos, que já estão com o aparelho reprodutor e outros órgãos completamente formados para diminuir os efeitos da radiação. Mas seria muito difícil e complicado colocar 5 ou 10 mil insetos vivos num pequeno recipiente. Por isso, optou-se pelas pupas, que correspondem à fase mais próxima do animal adulto. “No início do projeto, o objetivo foi determinar a dose ideal de radiação”, diz Arthur. “Ela teria que ter uma quantidade de energia que não matasse os mosquitos, mas que provocasse mudanças em seu sistema biológico, tornando-os inférteis. Além disso, o macho estéril teria que manter as mesmas características dos que estão no ambiente, para poder disputar as fêmeas em condição de igualdade. Ele teria que copular com a fêmea e ela colocar ovos que não eclodissem.” 70 z setembro DE 2012
Para isso, os pesquisadores testaram doses de radiação de 10, 20, 30, 40, 100 e assim por diante até 150 grays (Gy). Gray é uma unidade do Sistema Internacional de Medida, que representa a quantidade de radiação absorvida (ou dose) por unidade de massa. No experimento no Cena, a cada dose foram utilizadas uma média de 300 a 500 pupas, que depois voltavam para as gaiolas para completar seu crescimento. Com a diferença de que deveriam gerar machos inférteis. “Constatamos que a quantidade de energia ideal, mais eficiente para nossos objetivos, foi de 30 Gy”, explica Arthur. “É uma dose relativamente pequena. Para comparar, são necessários cerca de 5 mil Gy para matar uma borboleta.” Arthur faz questão de deixar claro que insetos, frutas ou outros produtos irradiados não apresentam nenhum risco de contaminação para a saúde das pessoas ou para o ambiente. “Muitos confundem material irradiado com contaminado ou radiativo”, diz. “Uma coisa não tem nada a ver com a outra. O material irradiado apenas recebe energia, que interage com a matéria e depois se dissipa. Ele não fica contaminado com material radiativo das pastilhas de cobalto-60. O mesmo acontece com uma pessoa que se submete a um exame de raios X. Ela recebe a radiação, mas não fica contaminada.”
infográfico ana paula campos
Criação de mosquitos em laboratório
Os mosquitos transgênicos usados no projeto de Juazeiro também não oferecem risco ao ambiente nem à população da cidade. É o que garantem os pesquisadores envolvidos no trabalho e a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), que, em dezembro de 2010, aprovou o experimento. Desenvolvidas numa parceria entre o Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, a organização social Biofábrica Moscamed e a empresa Oxford Insect Tecnologies (Oxitec), da Inglaterra, as pesquisas estão mais adiantadas que as de Piracicaba. Lá os Aedes aegypti modificados geneticamente já foram soltos no ambiente. 1
crescem com antibiótico
Segundo o professor aposentado da USP, Aldo Malavasi, fundador e diretor da Moscamed, responsável pela criação dos insetos, de fevereiro de 2011 a julho de 2012 foram liberados cerca de 15 milhões de machos transgênicos da linhagem OX513A, desenvolvida pela Oxitec. “Eles foram soltos nos distritos de Itaberaba e Mandacaru de Juazeiro”, conta. “Três outras áreas acabam de entrar no projeto, para se confirmar a possibilidade de eliminação do Aedes nesses locais.” Até agora os resultados têm sido animadores. “A população de mosquitos foi reduzida de 80% a 90%”, conta a bióloga Margareth Capurro, professora do ICB, coordenadora do projeto. “Isso significa que a quantidade está abaixo do nível necessário para a transmissão do vírus da dengue.” Para não morrerem no laboratório ainda na fase de pupa, os machos transgênicos desenvolvidos pela Oxitec, que receberam o gene que produz a proteína letal, crescem e se desenvolvem em contato com o antibiótico tetraciclina. Sem esse antídoto, que reprime a síntese da substância mortal, não haveria sobreviventes para serem soltos na natureza. No ambiente em que são liberados, eles copulam com fêmeas selvagens e os descendentes desses acasalamentos herdam a proteína letal. “Como na natureza não tem tetraciclina, esses filhotes morrem ainda na fase de larva ou pupa”, explica Margareth. “Por isso, com o tempo, a população dos mosquitos diminui.” Os bons resultados iniciais do mosquito transgênico vão levar o projeto a novas etapas. Segundo Malavasi, o próximo passo do trabalho na Bahia é testar os mosquitos transgênicos numa cidade de porte médio. “Foi escolhida, de comum acordo com a Secretaria da Saúde do Estado da Bahia, que financiará o projeto, a cidade de Jacobina na região noroeste do estado, com 80 mil habitantes e alta incidência de dengue”, diz. “Por meio da nossa nova unidade de produção, inaugurada no dia 7 de julho, construída com recursos da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação do estado, conseguiremos produzir 4 milhões de machos por semana, quantidade suficiente para reduzir
Na Bioagri, gaiolas com telas de tecido são utilizadas como criatório para os mosquitos
a população de Aedes na cidade. Será um grande experimento, que ainda aguarda a aprovação da CTNBio. O projeto de Piracicaba ainda está um pouco distante dessa fase. De acordo com Gava, antes da liberação em massa dos mosquitos irradiados Antes de liberar na natureza serão necessários testes o mosquito de campo. “Precisamos verificar como ocorrerá a dispersão do Aedes estéril no estéril no ambiente e qual a competitividade dele com a linhagem selambiente, os vagem”, completou. Por enquanto, o projeto está sendo desenvolvido pesquisadores pelo Cena e a Bioagri, sem nenhum vão verificar se investimento de outra instituição. que serão necessários ele é competitivo “Estima-se R$ 500 mil para a viabilizar o do projeto, com a construção de um laboraem relação aos tório para criação em grande escala do Aedes”, calcula Arthur. selvagens Apesar de diferentes, as tecnologias de Piracicaba e Juazeiro podem se complementar e trazer um importante avanço no controle do Aedes e, consequentemente, da dengue. Outra vantagem dessa forma de controle é a redução do uso de produtos químicos, inseticidas e larvicidas, o que traz benefícios ambientais e para a saúde humana. Estudos semelhantes são realizados em todo o mundo. Segundo Arthur, a técnica de esterilizar o Aedes com radiação é inédita no Brasil, mas existem vários trabalhos de outros países publicados em revistas científicas, mostrando a eficiência desse método de controle. Quanto aos transgênicos da Oxitec, eles já foram testados em outros países. Em 2010, por exemplo, 3 milhões de machos geneticamente modificados foram liberados nas Ilhas Cayman, no Caribe. Os resultados foram semelhantes aos de Juazeiro: supressão de 80% da população selvagem na área da soltura. Números parecidos foram obtidos na Malásia, o que estimulou outras nações a se interessar pelas experiências, entre elas Índia, Tailândia, Estados Unidos e Vietnã. n pESQUISA FAPESP 199 z 71
energia elétrica y
A vez das baterias Equipamento à base de lítio desenvolvido em São Paulo começa a impulsionar caminhonetes Marcos de Oliveira
B
aterias de lítio estão por toda a parte, com celulares e notebooks, os aparelhos mais comuns que possuem esse tipo de dispositivo. Ao acumular e liberar energia elétrica nesses apetrechos eletrônicos, elas tornam mais fácil e divertida a vida de todos. Em formato maior e com mais potência, essas baterias são o principal componente dos mais recentes carros elétricos, como o Leaf, da Nissan, já em testes em dois táxis na cidade de São Paulo, ou híbridos com motor a gasolina, como o Volt, da GM. São veículos que quase não emitem poluentes e por isso têm um forte apelo ambiental ao se tornarem uma fonte de energia limpa em relação aos motores movidos a derivados de petróleo. Produzido por mais de uma dezena de empresas no mundo, esse tipo de bateria teve o primeiro protótipo feito no país apresentado em julho pela Electrocell, uma pequena empresa instalada no Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia (Cietec), na Cidade Universitária, em São Paulo. Logo em seguida, ele foi instalado em uma pequena caminhonete, que leva o nome de Aris, capaz de transportar 350 quilos de carga. A caminhonete, que é silenciosa, faz parte de um projeto da CPFL, empresa distribuidora de energia no interior paulista, e foi executado pela Edra, indústria de carros especiais com sede em Rio Claro (SP). Inicialmente dotado de baterias chinesas, o veículo que ganhou um equivalente brasileiro agora poderá se tornar
72 z setembro DE 2012
viável comercialmente para nichos específicos, como para a própria CPFL, na entrega de correspondências, no transporte de equipamentos eletrônicos ou na distribuição de ingredientes em restaurantes. “Já identificamos os parceiros de toda a cadeia de tecnologia automotiva”, diz Flávio Eduardo Lopes, diretor da Edra. Montar uma fábrica de caminhonetes elétricas exigirá um investimento de R$ 10 milhões para produzir mil unidades por ano. “Com essa produção e levando em conta que a bateria custa metade do preço do veículo, é possível dizer que cada Aris saia por cerca de R$ 60 mil”, diz Lopes. “Ele é viável, embora mais caro que os veículos flex similares, porque cada bateria deve durar 10 anos, equivalente a rodar cerca de 300 mil quilômetros.” Capaz de atingir a velocidade máxima de 80 quilômetros por hora e ter autonomia sem precisar reabastecer por 100 quilômetros, o Aris leva até sete horas para ser recarregado em uma tomada comum de 220 volts. Um número maior de veículos elétricos no total da frota planetária é esperado de forma lenta mas progressiva. Nos Estados Unidos, segundo um estudo sobre a industrialização da bateria de íon de lítio do Center on Globalization, Governance & Competitiveness da Universidade Duke, publicado em outubro de 2010, mais da metade das vendas de veículos novos no mercado norte-americano deverá ser, em 2020, de carros e utilitários híbridos ou elétricos. Na conclusão do documento, os
eduardo cesar
7 horas é o tempo que o Aris leva para recarregar a bateria em uma tomada de 220 volts
Aris com a bateria brasileira em rua da Cidade Universitária, em São Paulo
O mercado mundial de baterias avançadas deve chegar a US$ 7,6 bilhões em 2017
pesquisadores liderados por Marcy Lowe afirmam que a indústria automobilística está deixando os motores a gasolina para investir na motorização elétrica e que a chave para essa mudança são as baterias avançadas de lítio. “Os Estados Unidos devem ser capazes de produzir baterias de íon de lítio para se manterem competitivos”, alerta o documento. O mercado mundial de baterias estará aquecido em breve, segundo indicam projeções da consultoria alemã Roland Berger. De acordo com o relato do início deste ano, o mercado de baterias de íon de lítio para uso automotivo deve superar os US$ 9 bilhões em 2015. Na área estrita das baterias avançadas, próprias para uso em sistemas e equipamentos elétricos, o mercado deve chegar a US$ 7,6 bilhões em 2017, segundo a consultoria americana Pike Research.
O mercado para o uso dessas baterias em sistemas elétricos é outro foco da Electrocell. Nesses sistemas chamados de redes elétricas inteligentes, mais conhecidas como smart-grids, o consumidor, principalmente empresas, terá papel importante no monitoramento e gerenciamento da energia elétrica consumida. Cada consumidor poderá gerar e distribuir a própria energia com sistemas solares ou eólicos, por exemplo, e a eletricidade poderá ser acumulada em baterias de lítio. As baterias também poderão ser carregadas em horários de menor consumo, como nas madrugadas, para uso da eletricidade mais barata durante o horário de pico entre 19 horas e 22 horas, quando a tarifa é mais cara. Para funcionarem plenamente, os smart-grids ainda dependem de legislação específica no Brasil.
Segundo o Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), que apresentou em dezembro de 2011 o estudo Redes elétricas inteligentes: contexto nacional, já estão catalogados 178 projetos de smart-grids no país, em programas de pesquisa e desenvolvimento coordenados pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Eles englobam desde sistemas de medição inteligente de energia elétrica até geração e distribuição de eletricidade em microrredes, por exemplo, circunscritas a uma empresa que tenha sistemas eólicos ou solares. Os 178 projetos já totalizam investimentos de R$ 411 milhões. Em dados coletados e analisados pelo CGEE, China, Coreia do Sul, Reino Unido e Estados Unidos lideram as projeções financeiras estimadas para os projetos de modernização das respectivas redes de energia. No total, até 2030, deverão ser investidos US$ 178 bilhões nessas redes inteligentes. Para participar do mercado de smart-grids e dos carros elétricos nacionais, a Electrocell está projetando construir uma fábrica em 2013 para produzir as baterias de íon de lítio. “Estamos negociando os investimentos com empresas de capital de risco e bancos de investimento”, revela Gilberto Janólio, engenheiro e sócio da Electrocell. A empresa pESQUISA FAPESP 199 z 73
a produção, em 2014, de 213 baterias para caminhonetes, ônibus e até pequenas motocicletas. A previsão de faturamento é de R$ 25 milhões. “Mas a previsão potencial da demanda em 2014 deverá ser de 966 baterias, o que deve ser coberto por importações”, diz Paes. “Acreditamos que a Electrocell possa ter 22% do mercado”, diz.
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iniciou suas atividades em 2000, com um projeto sobre células a combustível, um tipo de bateria que produz eletricidade com hidrogênio, financiado pelo Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP (ver Pesquisa FAPESP nº 92 e nº 173).
O
desenvolvimento da bateria no Brasil foi um desafio para a Electrocell, que levou um ano e meio para deixá-la pronta. “Foi um desenvolvimento de engenharia de integração em que definimos o controle e o equilíbrio da carga elétrica de cada elemento da bateria e a disposição de todo o conjunto, tudo em sintonia com o software de controle do carro, além do desenvolvimento de engenharia de choque e vibração”, diz Janólio. “Outro fator importante foi o desenvolvimento de um sistema de ventilação próprio para o clima quente do país”, diz Volkmar Ett, outro sócio da Electrocell. Para produzir as baterias, a empresa se aliou à Cegasa, empresa espanhola fabricante de pilhas e baterias que 74 z setembro DE 2012
ara a CPFL, que começou a construir esses carros elétricos em 2009, as baterias nacionalizadas garantem a continuidade e o avanço no projeto. “Os carros elétricos são para a CPFL um exercício de demonstração da tecnologia, para verificarmos como ela funciona no dia a dia. Não é um projeto de pesquisa e desenvolvimento; nós queremos demonstrar que é possível fazer carros elétricos no Brasil e já compramos quatro da Edra”, diz o engenheiro Marcelo Rodrigues Soares, coordenador do projeto na CPFL, empresa que investiu cerca de R$ 3 milhões na compra dos carros e das baterias. “Nos nossos testes verificamos que o custo em rodar com esse veículo elétrico é de um quarto (1/4) o quilômetro rodado com gasolina”, diz Soares. O Aris já está homologado no Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) desde março de 2010 e apto para rodar em todo o país. atua no Brasil há dois Apesar das boas anos. Na Espanha, a perspectivas para es Cegasa desenvolve se novo mercado, o baterias de forma preço das baterias experimental para deve assustar alguns No plano a fabricante de auconsumidores. “No de negócios tomóveis espanhola Brasil precisamos ver Seat, que é controlao quanto o consumida empresa da pela Volkswagen. dor está disposto a “Eles nos fornecem pagar a mais em relajá está prevista as pastilhas de lítio ção a um veículo com e nós construímos a motor a gasolina, por a produção de bateria”, diz Janólio. exemplo, para ter algo 213 baterias mais eficiente na reO mercado dessas dução da emissão de baterias ainda inclui em 2014 CO 2”, diz Francisco os ônibus híbridos, com motores elétriNigro, professor da cos e convencionais, Escola Politécnica da pequenos caminhões, Universidade de São centro de processamento de dados de Paulo (USP) e assessor técnico da Secreempresas e até veículos aéreos não tri- taria de Desenvolvimento Econômico, pulados (vants). “Temos recebido muitos Ciência e Tecnologia do Estado de São pedidos e o que falta agora é produzi-las Paulo. “A perspectiva é que, ao longo dos em série”, diz Ett. No plano de negócios próximos anos, o preço da bateria caia e da empresa, formatado pelo consultor se torne mais viável para o mercado auLuiz Carlos Rocha Paes, já está prevista tomotivo”, explica Nigro. n
eduardo cesar
Bateria da Electrocell formada por módulos é instalada em caminhonete
Eletrônica orgânica y
Iluminação flexível Novos tipos de lâmpadas e células fotovoltaicas orgânicas são desenvolvidos por centro de pesquisa mineiro
Zé Takanashi - agência Fotosite / csem
Sérgio Kalili
Desfile do estilista Ronaldo Fraga no São Paulo Fashion Week deste ano: modelos com fitas iluminadas
L
âmpadas flexíveis no formato de fitas capazes de serem coladas nas paredes, no teto e até em rodapés. A tecnologia e a arquitetura de iluminação caminham nesse sentido e novas formas de utilização dessas fitas flexíveis compostas principalmente de polímeros encontram utilidades inusitadas antes mesmo de se tornarem comerciais. Foi o caso do desfile do estilista Ronaldo Fraga, no São Paulo Fashion Week, que aconteceu em junho deste ano na capital paulista. As modelos estavam ornadas com fitas eletroluminescentes chamadas de Lume e produzidas pelo Csem Brasil, instalado em Minas Gerais, um centro privado de pesquisa aplicada, especializado no desenvolvimento e transferência de tecnologia, principalmente em eletrônica orgânica e pESQUISA FAPESP 199 z 75
Eletricidade sob camadas A fita flexível e eletroluminescente é formada por plásticos, eletrodos e fósforo que formam um campo elétrico emissor de luz
Fios elétricos
Inversor
As fitas precisam
Aumenta a
da eletricidade, mas
frequência da tensão
o consumo é baixo
elétrica aplicada nos eletrodos da fita
ito
isolante
Eletrodo formado
Atua no controle
por óxido de
da corrente elétrica
índio e estanho.
entre os dois
É um material
eletrodos
transparente camadas:
Prata
Ito
Eletrodo formado
Fósforo
por uma tira de
Isolante Prata
tinta de prata que
Fósforo
reduz a resistência
Ao ser exposto
e aumenta a
ao campo elétrico
condutividade
emite luz relativa
elétrica
à cor da tinta fonte vinicius zanchin / csem
1
A fita iluminada é produzida com uma tecnologia que será útil em painéis fotovoltaicos flexíveis
microssistemas. Conectadas a pequenas baterias presas aos corpos das modelos, as fitas foram pela primeira vez apresentadas em público. O desenvolvimento e a fabricação da Lume no Brasil deixam o país no mesmo nível, nessa área, da Europa, dos Estados Unidos e da China, num mercado global ainda muito pouco explorado. As fitas Lume geram luz em toda a superfície e são destinadas principalmente à produção de telas de produtos eletrônicos como relógios, interiores de aviões e automóveis, placas de publicidade e como peça decorativa. Elas possuem uma vida útil de 10 mil horas e apresentam baixo consumo de energia. 76 z setembro DE 2012
Para a confecção da Lume, o Csem usou a tecnologia de eletrônica impressa em rolos utilizada na fabricação de semicondutores orgânicos, embora essas fitas iluminadas não usem especificamente polímeros orgânicos. As Lumes são fabricadas em uma máquina de impressão chamada Roll to Roll, a primeira da América do Sul, e que funciona de maneira similar à rotativa de um jornal. Basicamente a Lume é formada por uma camada de um material à base de fósforo entre dois eletrodos, sendo um transparente chamado de ITO, de indium tin oxide, ou óxido de índio dopado, com estanho e o outro de tinta de prata. O campo elétrico formado pelos eletrodos
excita os elétrons do fósforo e, quando eles voltam ao estado original, emitem luz vermelha, branca, azul ou verde, dependendo do tipo de cor da tinta utilizada. Como substrato, a lâmpada flexível utiliza o polímero PET, o mesmo das garrafas de refrigerante e água mineral. A formação da fita acontece por meio da passagem pelos rolos da máquina e o recebimento de diferentes camadas. Os polímeros orgânicos são os elementos principais na fabricação dos organic light-emitting diodes (Oleds), que usam principalmente carbono na sua composição e são a próxima promessa no campo da iluminação e de telas depois do LED, hoje já presente em lâmpadas especiais e nas telas de televisão. A rota tecnológica da produção da Lume é a mesma da produção dos Oleds e abre caminho também para o desenvolvimento de dispositivos com polímeros orgânicos como, por exemplo, células fotovoltaicas, que podem ser impressas e flexíveis, utilizadas em sistemas de geração de energia solar. O objetivo do Csem não é, nesse primeiro momento, investir na produção em escala de Oleds nem de displays. Outros países estão bastante próximos de dominar a confecção desses dispositivos. Por isso, o engenheiro Tiago Maranhão Alves, diretor-executivo do centro, afirma que o primeiro produto orgânico produzido para consumo geral será a célula fotovoltaica feita de semicondutores orgânicos. Reciclador de energia
“Além de termos condições de conquistar espaços significativos, nós temos os recursos naturais para entrar, competir e ganhar esse jogo”, diz. Pelo planejamento, as primeiras células fotovoltaicas comerciais devem chegar às ruas em um ano. Com elas será possível fazer painéis solares leves e flexíveis a custos menores, alimentadores de teclados de computador, celulares e controles remotos. Essas células também serão capazes de captar a luz de casa, assim como a luz solar, e produzir corrente elétrica, exercendo a função de “um reciclador de energia”. Outro mercado será o de geração elétrica em localizações remotas ainda não servidas pela rede de distribuição elétrica. Para Maranhão, ninguém faz uma nova cadeia de valor sozinho. “Isso só é possível com muita pesquisa e parcerias.”
O Csem já recebeu para o desenvolvimento de seus projetos o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Em Minas Gerais, um acordo entre a Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia, a Fapemig e a iniciativa privada está estimulando o desenvolvimento dessa tecnologia. “O importante nesse projeto é que estamos usando o governo como indutor de uma parceria entre universidade e empresa para o desenvolvimento de tecnologia de ponta, que pode gerar riqueza, empregos e desenvolvimento para o país”, explica Mario Neto Borges, presidente da Fapemig. A fundação já investiu R$ 7 milhões no instituto. O BNDES adicionou mais R$ 15 milhões ao investimento.
O desafio agora é fabricar produtos à base de eletrônica orgânica com eficiência e custo reduzido
Intercâmbio conjugado
fotos 1 e 2 Fernando Lutterbach / csem 3 Zé Takanashi - agência Fotosite / csem
O Memorando de Entendimento em Cooperação Acadêmica, Pesquisa e Desenvolvimento firmado entre as instituições permite o intercâmbio de pesquisadores, mestres, doutores e pós-doutores das universidades e empresas mineiras com o Centro de Eletrônica Plástica do Imperial College, um dos mais importantes centros de eletrônica orgânica do mundo. O diretor do centro inglês, o físico Donal Bradley, é um dos inventores da eletroluminescência de polímeros conjugados. Dez pesquisadores brasileiros já trabalharam com ele, por meio do convênio. Na volta, alguns foram recrutados para trabalhar no Csem. Pelo acordo, as patentes registradas pelo
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A máquina de impressão e produção das fitas em rolo
convênio pertencerão aos parceiros envolvidos, inclusive a Fapemig. Os primeiros passos para o surgimento e desenvolvimento da eletrônica orgânica e impressa foram dados por acaso, em 1976. Nesse ano, Hideki Shirakawa, um pesquisador japonês do Instituto de Tecnologia de Tóquio, tentava sintetizar um tipo de plástico, o poliacetileno, um polímero simples formado apenas de átomos de carbono e hidrogênio. Ao errar a mão, adicionando uma quantidade maior de um catalisador ao composto, Hideki produziu um filme brilhante como uma folha de alumínio. Pouco depois, uniu-se a dois cientistas norte-americanos, o químico Alan MacDiarmid e o físico Alan Heeger, na Universidade da Pensilvânia. Trabalhando sobre o filme brilhante do pesquisador japonês, eles perceberam que, ao dopar o carbono com iodo, ele se tornava uma folha metálica dourada, com condutividade elétrica. Estava descoberto então o primeiro semicondutor orgânico, formado de polímero. A descoberta rendeu o Nobel de Química para os três em 2000. Quase 40 anos depois, muitas aplicações práticas para esses semicondutores foram estudadas. A corrida agora entre cientistas, instituições privadas e governamentais é de como fabricar esses produtos à base da eletrônica orgânica e impressa com eficiência, custos reduzidos e em larga escala. A corrida para colocar o Oled no mercado movimenta os grandes fabricantes de material de iluminação como a alemã Osram, que está investindo nos Oleds, feitos de semicondutores orgânicos. A principal vantagem desse material é que ele não é formado por uma junção de pontos emissores individuais, mas sim por uma superfície flexível que gera iluminação de maneira uniforme, podendo se moldar mais facilmente a diferentes formas e ambientes. A empresa já tem uma instalação na cidade de Regensburg, na Alemanha, preparada para ser a primeira linha-piloto de produção em grande escala de Oleds do mundo. Os primeiros produtos de uso comercial, para iluminação de escritórios e para o varejo, já foram testados nas cidades alemãs de Munique e Berlim e devem chegar em breve ao Brasil. Segundo Joyce Calil, gerente de vendas da Osram no país, a expectativa é de que “as primeiras aplicações no mercado sejam para luz funcional a partir de 2015”. n pESQUISA FAPESP 199 z 77
humanidades urbanismo y
Vocação para a
grandeza
e para as mazelas
Globalização adotada com rapidez por São Paulo
Carlos Haag
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fotos léo ramos
degradou a sua constituição urbana e social
N
os anos 1920, Oswald de Andrade ironizava a vocação paulistana de ser uma “torcida indígena a favor de um imperialismo ‘civilizador’”, antecipando que esse entusiasmo paulistano seria fonte tanto de suas grandezas como de suas mazelas. “Nos anos 1990, São Paulo já era o centro econômico nacional e reagiu mais rapidamente do que as outras regiões para abraçar e se adaptar à internacionalização da economia, a globalização”, observa a professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) Sueli Schiffer. “Por um lado, isso trouxe uma concentração crescente de atividades tecnológicas e especializadas muito avançadas, com os benefícios de investimentos massivos em infraestrutura em determinadas áreas e a criação de uma força de trabalho qualificada”, conta. “Mas essa rápida aceitação da globalização auxiliou no deslocamento da população pobre para as áreas periféricas, aumentando a já existente segregação social. Sem falar do aumento do desemprego para os menos qualificados, maior informalidade no mercado de trabalho, violência crescente e aumento das favelas”, observa a pesquisadora, coordenadora do estudo Projetos urbanos e desenvolvimento local: financiamento e gestão.
O estudo é uma continuação do projeto temático São Paulo: globalização da economia e estrutura urbana, que Sueli realizou com apoio da FAPESP (1998). Em pleno processo de globalização, a pesquisadora analisou, com notável pioneirismo, de que forma, no Brasil, se dava a relação entre a nova estrutura econômica adotada e a organização espacial. “Numa economia desigual, a estrutura espacial acaba sendo afetada e fica desigual. Houve um aumento da renda concentrada na cidade. Ao mesmo tempo, porém, se deu a expulsão de uma grande parcela da população para áreas distantes e sem estrutura apropriada de moradia, uma redefinição forçada das prioridades urbanas, o aumento da deficiência dos problemas de infraestrutura urbana, em especial no transporte e no meio ambiente, num quadro de miséria e desigualdade crescentes, geradoras de uma violência urbana séria”, observa. A “torcida indígena” acabou gerando esplendor e decadência. “O planejamento urbano dos anos 1950 e 1960 atuava em cidades com acelerado crescimento e intensos fluxos migratórios, em sua grande maioria vindos da área rural, de população de baixa renda e qualificação. A carência de todos os tipos de infraestrutura, mesmo as básicas como água, energia, saneamento e transportes públicos, eram os desafios mais gritantes da gestão e dos planos urbanos”, explica Sueli.
Correria em avenida paulistana: produto do crescimento intenso e não planejado da metrópole pESQUISA pESQUISAFAPESP FAPESP2xx 199 z 79
Favela Real Parque diante do progresso da cidade revela insuficiência crescente de infraestrutura em regiôes da cidade
80 z setembro DE 2012
S
egundo a pesquisadora, o controle sobre a produção e a alteração do espaço sempre foram mecanismos usados pela elite nacional para assegurar sua dominância interna, criando áreas de segregação, algumas muito bem servidas por todo o tipo de facilidades urbanas instaladas pelo Estado e outras sem a mínima estrutura de moradia e serviços públicos. “Isso é parte da vida paulista desde o século XIX, mas a globalização elevou esse procedimento a níveis muito altos”, avalia Sueli. “Não é um espaço construído a partir de um planejamento oficial para a melhoria de vida da população, mas uma miscelânea de desenvolvimentos modernos de negócios misturados com velhas moradias, criando um fluxo de transporte confuso e a aparência geral de um ‘arranjo forçado’, apesar do alto custo do trabalho envolvido”, analisa. Tudo em nome de se fazer parte das chamadas “cidades-globais”, embora com um status menor do que as localizadas nos países avançados. “Essas cidades-líderes de países periféricos, como São Paulo, Cingapura ou Hong Kong, realizam tarefas subordinadas nessa cadeia de acumulação internacional, locus em que o capital estrangeiro é internalizado em territórios nacionais. E como
essas cidades servem para concentrar atividades econômicas para a economia global, são desconectadas da realidade da economia doméstica”, avalia. Não sem razão, em 1997 São Paulo já abrigava 96,9% das sedes dos bancos privados estrangeiros do país e 67,5% das sedes dos grupos privados internacionais, ao mesmo tempo que 19% da sua população vivia em favelas e 16% dos paulistanos estavam desempregados. “A provisão de infraestrutura realizada pelo poder público desde então tem como objetivo tão somente atender às condições mínimas de organização do espaço urbano para sustentar a produção condizente com esse padrão globalizado da sociedade brasileira”, avalia Sueli. Mesmo as concessões fiscais feitas para atrair o capital estrangeiro são tão extremadas que drenam boa parte do orçamento municipal, que fica comprometido por décadas. “O crescimento das ‘cidades-globais’ dos países periféricos aumentou a segregação espacial e a exclusão social preexistente. Isso porque há uma exigência de uma força de trabalho mais qualificada, para dar conta das exigências ‘globais’, e a redução de oportunidades de emprego no setor industrial, em face da modernização deste setor, não é totalmente compensada por novos empregos no setor terciário”, diz a pesquisadora. Num contexto espacial em que apenas os “melhores” têm lugar, os “menos capacitados” são “convidados” a deixar a cidade e morar em regiões cada vez mais distantes, seja pelo preço elevado das moradias, seja pelo novo perfil profissional exigido, voltado apenas para exercer funções de “menor qualificação”. Assim, segundo a pesquisadora, ao se avaliar as precondições às possíveis realizações de projetos urbanos no Brasil, e em especial em São Paulo, e os fatores que induzem o desenvolvimento de projetos urbanos tão usuais em outros países, pode-se afirmar que estes projetos não parecem constituir uma possibilidade de planejamento urbano a curto prazo para o nosso país. “Uma exclusão social crescente exige uma maior intervenção estatal, mas segundo o ideário neoliberal da globalização isso não deve ser feito. Por anos, tudo o que a cidade ganhou em benefícios foi contrabalançado por perversidades sociais resultantes dos efeitos colaterais da globalização. O desemprego crescente, a pauperização, a informalidade, a violência se transformaram, cada vez mais, em efeitos visíveis das novas formas urbanas.” Para fugir dessa realidade, partes da elite se “encastelaram” em regiões da cidade e foram criados novos “centros” que promoveram um processo de dispersão do tecido urbano. “No passado isso já se verificava, mas em outro formato, como na mudança do velho centro para a avenida Paulista. Posteriormente criaram-se os centros das avenidas Faria Lima, Carlos Berrini e Nova
Faria Lima, voltados para atividades dinâmicas e internacionais. Cada novo centro envolvia um investimento municipal pesado, já que foi preciso instalar serviços de comunicação, infraestrutura e transporte, novos acessos como túneis e avenidas, perturbando o tecido urbano tradicional, tudo em grande velocidade e sem planejamento voltado para o coletivo da cidade, mas privilegiando áreas específicas”, avalia. Sobrou pouco para investir em habitação e serviço para os de menor renda. “Com a globalização, viu-se a migração forçada para as periferias, uma concentração maior de pessoas por domicílio, a favelização, a invasão de áreas de mananciais, como as encostas da represa Billings, uma degradação dramática da qualidade de vida e uma insuficiência crescente de infraestrutura”, analisa. E hoje? “Num primeiro momento a Região Metropolitana de São Paulo parece ter melhorado. Os fluxos migratórios praticamente zeraram para São Paulo, que agora cresce em ritmo menor que o do país . Está havendo uma redução na participação relativa da parcela mais pobre e menos escolarizada da população no mercado de trabalho local. Entre 2003 e 2007 o crescimento do emprego formal foi de 4,15% ao ano e, em 2012, pela primeira vez, o número de pessoas com carteira assinada supera os 50%”, afirma o sociólogo Álvaro Comim, do Centro de Estudos da Metrópole (CEM). “A cidade está melhor em serviços sofisticados e a demanda de mão de obra, com maior escolaridade e qualificação, sugere uma metrópole ‘classe média’. Mas a inflexão da desigualdade tem um preço: os mais pobres, que não se encaixam nessas exigências, continuam a ser expulsos da cidade, porque a cidade não os comporta ou deseja”, diz.
A
cidade-global fechou suas portas para os trabalhadores menos qualificados. “As indústrias tradicionais que usavam trabalhadores comuns estão indo para o interior e a cidade está apenas Para pesquisadora, com a indústria que usa tecnologia. país precisa se Estamos exportando problemas como favela, miséria etc. Em algumas transformar para décadas vamos olhar São Paulo como sendo uma cidade internacional, ter uma mas o nosso entorno estará degradado”, avalia o pesquisador. “Os mais organização ricos estão também se segregando da espacial menos cidade. São Paulo, à exceção de algumas áreas particulares que abrigam excludente atividades para eles, se transformou numa terra desconhecida e violenta e pela qual essa elite não sente nenhum tipo de ligação ou comprometimento”, lembra Sueli. Apesar dos edifícios que poderiam figurar em qualquer metrópole americana ou europeia, São Paulo, globalizada, está pondo em risco a sua posição justamente pelo seu entusiasmo em aderir à nova configuração da economia mundial em detrimento das melhorias demandadas por sua população. “Temos que esperar transformações na sociedade brasileira para que estes fatores se revertam a favor de uma organização espacial menos excludente e desigual, em que os projetos urbanos de renovação de áreas obsoletas ou degradadas Zona Leste tenham papel importante na estruturação urbana de São Paulo e sejam compatíveis com as mudanças socioeco- exemplifica a migração nômicas que só aí aconteceriam”, diz. n forçada para as periferias
pESQUISA FAPESP 199 z 81
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ditadura y
As páginas proibidas Lista de livros censurados pelos militares após o AI-5 revela critérios de apreensão Gustavo Fioratti
ilustrações Nelson Provazi
V
inte e oito caixas guardadas no Arquivo Nacional de Brasília preservaram parte de uma história que permanece com páginas incompletas. A coleção reúne documentação dos órgãos censores da ditadura militar sobre livros publicados no período que segue a criação do Ato Institucional nº 5, de 1968. O conteúdo dessas pastas foi analisado recentemente por Sandra Reimão, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP, que compôs a lista até hoje mais completa de livros submetidos à censura no período. O estudo foi apresentado no livro Repressão e resistência – Censura a livros na ditadura militar (Edusp/FAPESP, 2011) e permite analisar, agora com mais precisão, com que critérios o governo brasileiro proibia obras literárias publicadas na época, colocando sob o manto da preservação da ordem e dos bons costumes livros políticos, como O mundo do socialismo, de Caio Prado Junior, e eróticos, como Tessa, a gata, de Cassandra Rios. Na lista ainda estão Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca; Zero, de Ignácio de Loyola Brandão; Dez histórias imorais, de Aguinaldo Silva; e Carniça, de Adelaide Carraro. No estudo de Sandra Reimão há ainda uma subdivisão para peças teatrais publicadas em livros, em que são citados os textos Papa Highirte, de Oduvaldo Vianna, e Abajur lilás”, de Plínio Marcos. São todos livros oficialmente vetados entre os anos 1970 e 1988, período compreendido entre o ano do decreto-lei 1.077/70 – que instituiu a censura prévia com vistas a publicações literárias – e
o ano em que a Assembleia Nacional Constituinte pôs fim à censura. Os eróticos eram alvos mais comuns. “Se você olhar a legislação, a censura sempre fez referência a matérias contrárias à moral e aos bons costumes; nunca ficou explícito que havia censura a temas políticos, a textos sobre corrupção ou tortura”, conta Marcelo Ridenti, autor do livro Em busca do povo brasileiro – Artistas da revolução, do CPC à era da TV (Record, 458 páginas). Não se trata apenas de um disfarce. “Essa era realmente uma preocupação dos censores, e a maioria dos livros censurados eram livros eróticos. A questão é que a censura, com base nesses critérios sobre a moral e os bons costumes, proibia também obras consideradas subversivas à ordem política”, conclui. Cassandra Rios, famosa autora que voltou sua produção para prosas não raro de veia homoerótica feminina, foi uma das campeãs de veto da ditadura. Na capa do livro Tessa, a gata, a autora inclusive reverte a ação da censura a seu favor, com o slogan “Um novo sucesso da autora mais proibida do Brasil”. O estudo de Sabdra, com apoio da FAPESP, verificou que 313 obras foram vetadas, entre 492 submetidas à análise do Departamento de Censura de Diversões Públicas (DCDP). Ou seja, do total, 179 livros foram liberados após a análise do DCDP, dado importante para compreender que havia um sistema de critérios desenvolvido pelo órgão. A censura era movida por um time de funcionários contratados por meio de concurso público, muitos deles universitários. pESQUISA FAPESP 199 z 83
Não haverá uma lista completa de livros censurados, pois a apreensão dos militares era desorganizada
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As estantes esvaziadas pela ditadura Levantamento sobre percentual de obras censuradas nos “anos de chumbo”
132 livros submetidos
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livros vetados
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61 49 25 5 1970
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fonte levantamento feito por funcionários do arquivo nacional em 1988
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número levantado por Sandra ainda não é definitivo. A lista completa de livros censurados pela ditadura dificilmente chegará a um fim, diz a pesquisadora, pois antes do decreto-lei 1.077 não havia uniformidade na metodologia da censura. “Antes de 1970 havia coação, apreensão a livros, invasão de livrarias e prisão de livreiros de maneira desorganizada. A censura era feita por órgãos do Estado e, depois do AI-5, passou a ser função do Ministério da Justiça”, diz ela. Mesmo os documentos guardados nas 28 pastas do Arquivo Nacional podem estar incompletos. “O arquivo que existe é o que foi preservado. Não sabemos quanto desse arquivo foi perdido”, explica a pesquisadora. Os documentos guardados pelo Arquivo Nacional só ficaram disponíveis a partir do ano 2000. “Há muita novidade a respeito do assunto. Esse material ainda não havia sido analisado simplesmente porque antes não estava com uma organização mínima”, diz a pesquisadora. Um trabalho similar, no entanto, não somente antecede a pesquisa de Sandra como lhe serve também como ponto de partida. Doutor em letras pela USP, o professor Deonísio da Silva, no livro Nos bastidores da censura, já havia indicado 430 livros proibidos pela censura durante a época do regime militar. Entre os títulos, 92 são assinados por autores brasileiros. “Eu dou continuidade ao trabalho que o Deonísio começou”, diz Sandra. Quando virou seus holofotes também para a publicação de livros, a censura já atingia amplamente e com força total outros campos de expressão artística, especialmente o teatro, a música e o cinema. “A quantidade de livros censurados é menor do que a de outros meios de diversão pública.”
Marcelo Ridenti confirma que a literatura foi “relativamente” menos atingida pela censura do que campos de expressão vizinhos. “A produção audiovisual tinha mais potência de difusão em massa. Cinema e televisão, naturalmente, eram mais visados”, explica o pesquisador. As editoras nacionais, ele prossegue, não foram obrigadas a submeter seus lançamentos à censura prévia, como acontecia com produtoras de filmes e de programas de televisão. Para colocar em funcionamento seu sistema de vigilância também sobre a produção literária nacional, os censores contavam com uma ajuda básica: as denúncias, feitas muitas vezes por cidadãos comuns.
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or ter sido menos visada, a literatura permitiu o exercício de um pouco mais de liberdade. “Serviu como válvula de escape”, diz Ridenti. “Calabar, de Chico Buarque, foi proibida em teatro, mas saiu em forma de livro”, exemplifica o pesquisador. “Com a literatura, dava para respirar um pouco mais.” Segundo levantamento de Zuenir Ventura apresentado em 1968 – O ano que não terminou, nos 10 anos de vigência do AI-5 (1968-1978) foram censurados cerca de 500 filmes, 450 peças de teatro, 200 livros, dezenas de programas de rádio, 100 revistas, mais de 500 letras de música e uma dúzia de capítulos de sinopses de novelas. Boa parte das denúncias reunidas entre os pareceres emitidos pelos órgãos censores – vários deles publicados nas últimas páginas do livro de Sandra com boa legibilidade, graças ao projeto gráfico de Carla Fernanda Fontana – recrimina conteúdos considerados eróticos ou pornográficos: “O livro Dias de Clichy, de Henry Miiler [sic], é um verdadeiro atentado ao pudor, no entanto encontrava-se
à disposição de qualquer adolescente na Biblioteca Municipal, desta localidade”, diz carta de Usana Minette, de Lençóis Paulista, de setembro de 1974 e endereçada ao ministro da Justiça, Armando Ribeiro Falcão. O livro “... foi apoiado pelo senhor prefeito e presidente da biblioteca e só foi retirado de circulação depois de muita insistência”, continua a carta-denúncia. Escrito à máquina, esse exemplar data justamente do período de maior atuação dos órgãos censores. A bem da verdade, é em 1975 que houve o maior número de proibições a livros nacionais. Segundo a pesquisa de Sandra Reimão, 109 livros, dos 132 analisados pela Justiça, foram censurados em 1975. Em 1976 foram 61 os livros proibidos. Entre eles aparece Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, uma das obras mais estudadas pelos pesquisadores da censura a livros no período da ditadura. Resumidamente, o livro conta a história de três personagens que, durante os festejos de ano-novo, assaltam uma mansão, matam três pessoas, estupram uma e, no final, brindam a passagem do ano. No parecer assinado por Raymundo F. de Mesquista com as palavras “Não Liberação” em caixa-alta preenchendo o campo “Classificação Etária”, a censura é justificada da seguinte forma: “O presente livro [...] retrata, em quase sua totalidade, personagens portadores de complexos, vícios e taras, com o objetivo de enfocar a face obscura da sociedade na prática da delinquência, suborno, latrocínio e homicídio, sem qualquer referência a sanções...” Mais adiante o documento enfim aponta que, nas páginas 31, 139 e 141, são feitas “rápidas alusões desmerecedoras aos responsáveis pelo destino do Brasil e ao trabalho censório”.
A partir de 1976, o número de livros censurados começa a cair gradualmente (ver quadro na página 84). Uma das hipóteses para esse decréscimo – no número de obras censuradas também em outras áreas das artes – é a morte do jornalista Vladimir Herzog em decorrência de tortura praticada pelos militares, em 1975.
A
partir de então acentua-se a cobrança da sociedade pela redemocratização e também pelo fim da censura. “Esse é um dos fatores”, diz Flamarion Maués Pelúcio Silva, doutorando em história social e mestre em história econômica pela USP, que estuda as editoras de oposição à ditadura no Brasil. No início dos anos 1970 houve o maior número de mortes e desaparecimentos de figuras políticas que se opunham ao regime, “na militância armada ou não”. E a morte de Herzog nesse contexto, lembra Flamarion, faz com que o país “conheça de maneira mais ampla” a situação política agravada pela repressão, o que provoca uma reação imediata. Para o pesquisador, o estudo de Sandra, ao limitar-se ao universo de livros que foram proibidos por uma censura oficial e documentada, mostra “de forma coerente” quais eram os fundamentos da perseguição a obras literárias. “São trabalhos censurados a partir de um ponto de vista formal, com pareceres. Os documentos trazem justificações, e esse material é valioso”, avalia. Em tempo: no final de seu livro, Sandra faz referência ainda à resistência de editores e de escritores ante as exigências da censura institucionalizada. Érico Verissimo e Jorge Amado, com suas manifestações públicas em repúdio ao regime militar, se destacaram dentro desse movimento – que foi protagonizado ainda por “uma legião de anônimos”, encerra a pesquisadora. n pESQUISA FAPESP 199 z 85
obituário y
Criticar para construir Amaury de Souza contribuiu para o estabelecimento da ciência política no Brasil
Arquivo familiar
I
ntelectual brilhante, cientista político destacado, acadêmico multitemático e liberal corajoso. As qualidades normalmente atribuídas pelos amigos, colegas e alunos a Amaury de Souza se multiplicaram por muitas outras vozes depois de 17 de agosto, quando ele morreu em consequência de câncer no pâncreas, aos 69 anos. Souza nasceu em Uberlândia, Minas Gerais, onde fez os cursos de sociologia e política e o de administração na Universidade Federal de Minas Gerais, concluídos em 1965. No Rio de Janeiro, onde se estabeleceu, foi um dos fundadores do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e professor do Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio). Esteve algumas vezes nos Estados Unidos como professor visitante das universidades de Michigan e da Califórnia (Ucla) e fez o doutorado em ciência política pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), no final dos anos 1970. Segundo o sociólogo Bolívar Lamounier, amigo desde a adolescência, sua tese tratava do sindicalismo brasileiro, cuja estrutura corporativa criticava duramente. “Entre seus colegas dos tempos de graduação que viriam a colaborar decisivamente no estabelecimento da ciência política acadêmica no Brasil estavam Antônio Octávio Cintra (Ph.D. pelo MIT), Bolívar Lamounier (Ph.D. pela Ucla), Fábio Wanderley Reis (Ph.D. por Harvard), José Murilo de Carvalho (Ph.D. por Stanford) e Simon Schwartzman (Ph.D. por Berkeley)”, escreveu Octavio Amorim Neto, professor da Escola Brasileira de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas, do Rio (Ebase/FGV).
Souza: trabalhos que ajudam a explicar o Brasil atual
Ao voltar dos Estados Unidos, Souza se engajou nas lutas pela redemocratização do país e pelas reformas estruturais, como controle da inflação e reforma do Estado, que começaram a ser implementadas nos anos 1990. “Outra área a que Amaury se dedicou foi a da metodologia empírica aplicada à pesquisa sociopolítica, setor em que se firmou como um dos principais senão o principal nome de nossa geração”, escreveu Lamounier sobre o amigo. Ele realizou um longo e produtivo trabalho como consultor, desde os anos 1980. Era diretor da Techne, empresa de consultoria empresarial, e da MCM, de consultoria em economia e análise política. Nos últimos anos publicou dois livros que ajudam a explicar o Brasil atual. A agenda internacional do Brasil: a política externa brasileira de FHC a Lula, de 2009, e A classe média brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade, de 2010, este último junto com Bolívar Lamounier. “O campo que mais o interessava passou a ser o das relações internacionais”, escreveu Lamounier. “Participava de um projeto internacional sobre os Brics [Brasil, Rússia, Índia e China] e sobre a África do Sul e começara a trabalhar num livro sobre os aspectos internacionais do desenvolvimento econômico e político do Brasil quando surgiu o câncer.” n pESQUISA FAPESP 199 z 87
memória
1
Carta de 1875 dirigida ao presidente da Câmara Municipal de Belém do Descalvado, em São Paulo: acesso facilitado aos documentos
A história visível Arquivo do Estado de São Paulo disponibiliza on-line 7 mil imagens de documentos sobre a escravidão Neldson Marcolin
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E
m 1883, a apenas seis anos da abolição da escravidão, surgiu em São Paulo uma nova organização social, oficialmente reconhecida pela presidência da província. Um grupo formado apenas por mulheres fundou a Associação Protetora dos Escravos com o intuito de fazer valer as disposições contidas na lei de 28 de setembro de 1871 – depois dessa data, a chamada Lei do Ventre Livre determinava que fossem considerados libertos todos os filhos de escravas. Além dos fatos históricos ligados diretamente à escravidão, a criação da associação revela outra faceta social da época: sociedades como essas eram compostas muitas vezes apenas de mulheres num tempo em que elas não tinham direitos políticos, como o do voto. “Foi uma forma por elas encontrada para entrarem na grande política quando isso lhes era interditado”, diz o historiador Rafael Marquese, professor e pesquisador da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. É o que se pode afirmar a partir do estatuto original da Associação Protetora dos Escravos. O documento está acessível on-line junto com outras 7 mil imagens relacionadas à memória da escravidão recentemente digitalizadas pelo Arquivo Público do Estado de São Paulo (www.arquivoestado.sp.gov.br/viver/escravos).
fotos 1 e 3 eduardo cesar 2 Arquivo do Estado de São Paulo
A coleção Escravos é um conjunto de cartas dirigidas à presidência da província de São Paulo, ofícios sobre investigações de tráfico negreiro, relações de escravos matriculados nos municípios, estatísticas da população escrava, entre muitos outros papéis reunidos entre 1764 e 1890. Todo o material foi acumulado por órgãos administrativos da província paulista nesse período e reunido na década de 1950 em uma única coleção. O trabalho de organização e digitalização levou três meses ao custo de R$ 30,9 mil do Programa de Apoio ao Desenvolvimento dos Arquivos Ibero-americanos (Adai), fundo do governo espanhol para o desenvolvimento arquivístico. Outro documento que também desperta o interesse de estudiosos é um ofício de 26 de julho de 1886 do Ministério dos Negócios, da Agricultura, Comércio e Obras Públicas ao inspetor da Tesouraria da Fazenda de São Paulo sobre a dúvida que este último tinha a respeito da matrícula de escravos na cidade de Bananal.
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Estatuto da Associação Protetora dos Escravos, de 1883, criada e dirigida por mulheres
Livro-caixa da cidade de Santa Branca com informações sobre alforria de escravos, de 1882
Alguns deles alegavam terem sido “importados” para o Brasil depois da lei de 7 de novembro de 1831, que proibiu o tráfico negreiro transatlântico. Ou seja, eles não poderiam ser considerados cativos. A ordem do ministério, no entanto, é clara: o coletor de Rendas Gerais de Bananal não deveria se negar matricular os escravos. A matrícula foi criada pelo governo para obrigar os fazendeiros a registrar o número correto de escravos de modo que pudessem constar no censo demográfico e para que se soubesse quem nasceu antes e depois da Lei do Ventre Livre. “Mesmo com a lei de 1831, que bania o tráfico, de 1835 a 1850 houve intenso comércio ilegal de escravos”, diz Marquese. Nos anos 1880, o abolicionismo ganhou novo ânimo com militantes antiescravidão estimulando os escravos que chegaram ilegalmente ao
Brasil a exigir seu direito à liberdade. “Bananal foi uma das cidades onde essa reação se tornou mais visível por ser uma região cafeeira com muitos escravos e protestos de ativistas ligados a José do Patrocínio, do Rio de Janeiro, figura importante do abolicionismo.” O ofício do ministério mostra como a lei era menosprezada quando se tratava de escravos. Para o historiador Carlos Bacellar, coordenador do Arquivo Público do Estado de São Paulo, documentos como esses iluminam melhor o período e servem como porta de entrada para outras investigações sobre escravidão em São Paulo, além da óbvia vantagem de poderem ser consultados via internet. “Professores de história, incluindo os do ensino médio, podem também baixar documentos e usá-los para ilustrar aulas”, conclui Bacellar. PESQUISA FAPESP 199 | 89
Arte
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Antropofagia em cena Com mais de 50 anos de atuação, Teatro Oficina agora faz pesquisa voltada para a intervenção urbana Gustavo Fioratti
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A
fachada do Teatro Oficina na rua Jaceguai – uma estreita via de acesso à 9 de Julho no bairro do Bixiga, em São Paulo – tem a simplicidade de uma garagem. Quando a pesada porta da entrada se abre, revela-se então uma estrutura que em nada lembra a de um teatro convencional: lá dentro, uma espécie de passarela, comprida, corre por entre duas arquibancadas de aço e madeira. Nada de cortinas, nada de palco, nada de poltronas. Quem percorre esse corredor nota um leve declive em direção aos fundos. À esquerda, ao lado de uma das arquibancadas e já no meio do percurso, uma imensa janela de vidro tem vista para os edifícios do bairro. A arquiteta italiana Lina Bo Bardi projetou o espaço nos anos 1980 para que o diretor José Celso Martinez Corrêa, hoje com 75 anos, pudesse desenvolver uma linha de trabalho que tem um pé na arena grega e outro no Carnaval. Os espetáculos apresentados ali ocupam não só a passarela; costumam espalhar-se por todos os
Zé Celso em cena de A terra, de 2001, trilogia de Os sertões: fundador do Oficina continua sempre presente
fotos 1 e 3 marilia halla 2 arthur max 4 divulgação / arquivo teatro oficina
cantos. Não raro, o lugar da plateia é também o lugar da cena, e o público entra na dança. José Celso está sempre presente, muitas vezes em cena, com cabelos brancos e roupas claras. “O ‘Teato’ é uma feitiçaria que engole o enfeitiçamento geral com que a sociedade de espetáculos, com o fetiche da mercadoria, escraviza a humanidade. Nós queremos nos ‘desvoduzar’. Trazer sopros que invertam as equações abstratas dominantes”, diz ele. O diretor grafa a palavra teatro sempre sem o “r” – ou com o “r” entre parênteses – para conjugar a sílaba “te” à palavra “ato”. Diz que ato e representação não são coisas iguais, ampliando o sentido da mimese, do texto decorado, para um trabalho performático com ares de celebração dionisíaca. A última peça do Teatro
Oficina, Macumba antropófaga, tem esse perfil: o espetáculo começava dentro do teatro e partia para a rua. Descia a rua Jaceguai e, por entre becos, casas, ruelas da vizinhança, prosseguia com atores conduzindo performances ao som de bumbos, pandeiros e declamações. É um momento atual do grupo, que José Celso considera fazer parte “da descoberta do teatro como intervenção urbana”. O que não muda é a diretriz estabelecida por uma referência fundamental: a obra do escritor Oswald de Andrade (1890-1954), especialmente seu Manifesto antropófago. A redescoberta de Oswald “foi a revolução cultural mais importante da segunda metade do século XX”, diz o diretor, em referência ao movimento Tropicalista. “Ninguém o conhecida, nem Ao lado, As bacantes, de 1996, em reapresentação de 2010; abaixo, Cacilda!, de 1998, reencenada em 2010
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O rei da vela, de 1967: pesquisa voltada para o teatro épico
Glauber [Rocha, cineasta], nem Caetano [Veloso], nem Gil [Gilberto Gil] nem o Hélio Oiticica [artista plástico]; a antena de Oswald nos ligou neste movimento definitivo de descolonização da língua, do corpo, da arte”, prossegue. O Oficina foi fundado em 1958 por José Celso, Renato Borghi e Etti Fraser, entre outros atores. Teve uma primeira fase realista, com pesquisa fundamentada na metodologia do russo Constantin Stanislavski. Após um incêndio que destruiu o teatro por completo, o grupo encenou em 1967 O rei da vela, de Oswald. A peça marca a nova pesquisa, voltada para o teatro épico do alemão Bertolt Brecht. O grupo se desfez em parte por conta da situação política – a ditadura militar leva José Celso para o exílio, após 20 dias de prisão por conta de manifestos contra o regime – e em parte por desacordos entre os integrantes. O diretor retornou ao Brasil em 1978 e se seguiu o período da retomada de seu trabalho. Retomada lenta e gradual,
agora sim articulada à parceria com a arquiteta Lina Bo Bardi. A reabertura do repertório do Oficina ocorreu em 1991, com o espetáculo As boas, com texto de Jean Genet e com Raul Cortez no elenco. Ham-let (1993), baseado na obra de Shakespeare, e As bacantes (1996), de Eurípedes, aprofundam a inspiração na mitologia grega de Dionísio, deus dos prazeres, da loucura, do vinho, do sexo. O Oficina firma seu terreno na celebração da nudez, do corpo e da carne como ponte para um gozo espiritual. É uma linha de pesquisa que resulta em espetáculos longos, muitas vezes com até quatro horas de duração. Assim era Cacilda!, de 1998, baseada na vida e no trabalho da atriz Cacilda Becker, e a trilogia de Os sertões, adaptação da obra de Euclides da Cunha, de modo que o original era dividido em três partes: A terra, O homem e A luta. Houve sessões que reuniam esses três espetáculos, com mais de 10 horas de duração. Uma delas foi apresentada no mesmo município da Bahia onde houve o massacre de Canudos, narrado no livro de Euclides da Cunha. PESQUISA FAPESP 199 | 91
conto
Uma ciência do atraso Vivian Pizzinga
S
e era para ser chato, então eu seria mesmo. Resolvi contar, registrar, tirar média, moda e mediana, tudo que fosse possível. Só quantificando pode-se convencer o adversário. Então, a partir de agora, eu ia contar. Contabilizar. E, se preciso fosse, sistematizar. Aquela mania de carioca de nunca chegar na hora marcada, eu ia provar, por a + b, e talvez adicionando c, d, e, que não só não fazia sentido como trazia perdas irreparáveis à espécie humana. Bem, esse havia sido meu intuito inicial. Sexta-feira: a Cássia marcou comigo às 19h30 no Amarelinho da Cinelândia e chegou às 19h56. Anotei, discretamente, enquanto ela ia ao toalete, os 26 minutos de atraso. No sábado seguinte, marquei a praia com o Augusto, que chegou quinze minutos depois do combinado. Tomei nota no meu caderninho, sem comentar nada. No mesmo dia, à noite, o pessoal do clube marcou o clássico cineminha. O primeiro a chegar, depois de mim, apareceu no cinema dezenove minutos depois da hora estipulada. Os outros demoraram ainda mais e tudo foi devidamente registrado, com discrição. No dia seguinte, passaria para o Excel a tabela da primeira semana já contabilizando o tempo de atraso de todas aquelas pessoas e o que aquilo significaria em se tratando de perdas. Aquela mania de atraso me irritava profundamente, uma vez que sempre fui pontual. Meus atrasos eram de, no máximo, cinco minutos, quando não chegava antes. No entanto, a massa humana com a qual eu convivia achava cafona ser pontual. Tudo bem, mas quantas coisas eu deixava de fazer em todo aquele tempo em que esperava alguém? Era exatamente isso o que eu ia passar a observar, e as conexões entre o tempo jogado no lixo e as atividades não executadas seriam examinadas com rigor, na esperança de que um estudo sério
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motivasse alguma mudança de hábito, ao menos entre meus conhecidos. Mantive minha ciência do tempo de atraso e no domingo havia um almoço com os amigos de infância. A turma só chegou meia hora depois do marcado. Ao menos aquela ideia de anotar e contabilizar o tempo de atraso e a tradução daquilo em perdas ensejavam em mim algum prazer ao constatar aquelas sucessivas demoras. Se antes eu ficava irritadíssimo e mal-humorado, agora que iniciara aquele esporte tão íntimo e solitário, estava tendo algum gozo em somar e multiplicar minutos vazios. No primeiro fim de semana, minha tabelinha particular já demonstrava um total de mais de uma hora de atrasos alheios. Ora, o que é possível empreender nesse tempo? A leitura de boa parte de um bom romance, uma caminhada no aterro do Flamengo, um telefonema sempre adiado para minha tia? Pois esse foi o tempo que fiquei de bobeira aguardando todos eles, sem, no entanto, fazer nada. Continuei minha prática durante todo aquele mês de maio. Atrasos de clientes no trabalho, de familiares, dos amigos, tudo era anotado minuciosamente no meu caderno e depois repassado para o Excel, onde o total me trazia números brilhantes e redondos. Passei a cronometrar também o tempo que eu levava para fazer certas tarefas básicas da vivência e da sobrevivência, elaborando um verdadeiro catálogo de equivalências: uma espera de quinze minutos, por exemplo, significaria uma sesta após o almoço, que, se eu pudesse aproveitar, me tornaria mais produtivo à tarde sem tomar tantos cafés. Assim, no mês de maio, com seus 31 dias, somei um total de 6 horas e 48 minutos de atrasos. Quase um turno de trabalho! Quanto um pipoqueiro ganha vendendo pipoca na frente do Cine Joia durante esse tempo? Qual é o lucro desse cara? Minha analista, que me cobra
laura teixeira
benevolentes oitenta reais por sessão, atenderia seis clientes e faria bons quatrocentos reais nesse intervalo de tempo. Quantos deles elaborariam o Édipo nessas sessões? Não obstante o desperdício de horas, a verdade é que gostei tanto do esporte, que resolvi fazer as anotações em junho, julho e agosto e totalizei, nesses três meses, pouco mais de trinta horas de atrasos. Fui aprimorando minhas percepções e conexões teóricas, e resolvi continuar as observações nos meses seguintes, uma vez que poderia haver um diferencial relacionado às estações do ano. Será que as pessoas atrasavam mais na primavera e no verão do que no outono e inverno, ou seria o contrário? Ou será que não havia diferença significativa? Se houvesse, qual razão estaria na origem do fenômeno? Que outras variáveis intervenientes eu poderia encontrar? Mulheres atrasavam mais, ou seriam os homens (e que mito poderia estar rondando as maneiras feminina e masculina de lidar com os instantes)? Havia mais atrasos pela manhã, à tarde ou à noite? Para programas intelectuais ou farras monumentais? Anos eleitorais seriam mais propícios a atrasos? E por quê? Cada vez mais eu anotava detalhes que poderiam guardar alguma relação com o atraso e perguntava, insistentemente, aos meus pares, o que teriam feito antes de sair, que tipo de pensamento haviam tido
ao acordar naquele dia, entre outras perguntas aparentemente estapafúrdias para eles. A verdade é que passei aquele ano anotando e observando relações temporais, tornando-me um verdadeiro obcecado pelo atraso e seus nexos causais. Agora eu já não suportava mais se alguém chegava na hora, se chegava antes ou se seu atraso era irrelevante, tanto quanto os meus. A pontualidade impediria digressões intelectuais sobre os hábitos humanos e suas circunstâncias. O que seria, originalmente, uma grande teoria do atraso me levava a descrições sobre variados tipos humanos e seus perfis psicológicos, a estrutura do psiquismo e sua tradução em tarefas simples da vida diária. Eu só pensava nisso e, de algum modo, fui percebendo que o tempo que eu destinava a fazer tabelas, somando e subtraindo parcelas temporais, era talvez o dobro daquele que eu gastava esperando fulano ou beltrano para o cinema ou o almoço. Passei a me atrasar para meus compromissos enquanto anotava fórmulas e incógnitas, e já não queria mais convencer o adversário de que o atraso era prejudicial. O que eu queria era, nada mais, nada menos, continuar esperando. Vivian Pizzinga é psicóloga com mestrado em saúde coletiva pelo IMS/Uerj. Escreve para o blog Caneta, lente, pincel e teve textos publicados nos volumes 1 e 2 do Clube da Leitura, no jornal Plástico Bolha, na revista Café Espacial, entre outros.
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resenhas
Um mapa à altura de São Paulo Angélica T. Benatti Alvim
E
stabelecer conexões com o deum setor imobiliário fortalecido senvolvimento econômico e o que contribua para a geração de espaço urbano de São Paulo, emprego, renda e oportunidades’’. procurando explicar a localização A mobilidade urbana, tema de atividades inovativas e as dinâabordado por Vasconcellos (cap. micas territoriais, não é tarefa fácil, 9), é problemática em função da dada a dimensão e complexidade do má qualidade e oferta reduzida município e a incipiência de dados. dos transportes públicos nas áreas Os resultados deste estudo inperiféricas. Os deslocamentos indicam que o município possui estraurbanos possuem custo e temtrutura produtiva complexa e dipo inversamente proporcionais versificada, reforçando sua posição à renda dos habitantes. O autor primaz no país e contrariando a afirrecomenda um conjunto de inmação de que os setores industrial Metamorfoses paulistanas vestimentos em infraestrutura e e de serviço se opõem. Para Comin Alvaro Comin (org.) gestão de transportes públicos, Unesp (cap. 1), na atualidade, evidencia-se Editora distribuídos de modo equilibra368 páginas, R$ 120,00 forte relação da indústria com uma do na cidade, que dependem de parcela do setor de serviço, que passou a incor- acordos institucionais e de articulação entre as porar, em sua matriz, conhecimento e inovação instâncias municipal, estadual e federal. tecnológica. Investimento em educação é um Nakano (cap. 10) discute os desafios do dedos principais desafios para as políticas públi- senvolvimento econômico para o planejamento cas, propiciando o acesso da população às novas urbano municipal, a partir da análise de um contecnologias e contribuindo para a redução das junto de intervenções urbanísticas previstas para desigualdades sociais. áreas estratégicas indicadas no plano diretor de Freire, Abdal e Bessa (cap. 2) discutem a relação São Paulo. Enfatiza a necessidade do repovoaentre indústrias de alta tecnologia, inovação e co- mento intraurbano com usos diversificados e nhecimento. Consoni (cap. 4) enfatiza que a siner- uma distribuição mais equilibrada das atividades gia decorrente das articulações entre empresas de econômicas no território. P&D e universidades é estratégica para as políticas A questão da macrometrópole e o papel cenpúblicas, pois qualificam a mão de obra especia- tral de São Paulo é fundamental para Tapia e lizada, para além do pessoal com nível superior, Silva (cap. 11), que evidenciam a necessidade de proporcionando melhores salários e maior renda. novos modelos de governança metropolitana, A despeito dos aspectos vantajosos da moderni- com arranjos institucionais capazes de enfrentar zação tecnológica, os mapas espacializam as múl- as transformações socioeconômicas em curso. tiplas dimensões do tema, denotando “regiões gaEnfim, os argumentos expostos, ao longo do nhadoras e perdedoras’’, conforme apontam Bessa livro, sinalizam que as oportunidades ligadas et al (cap. 5). A localização dos setores produtivos ao desenvolvimento econômico, articulado ao mais modernos, dos empregos qualificados, dos es- conhecimento e à inovação, dependem de uma tratos sociais de média e alta renda e das melhores melhor distribuição espacial dos setores produinfraestruturas reforçam o centro expandido, em tivos modernos na cidade e de uma maior inteespecial o vetor sudoeste, evidenciando que a his- ração entre diversidade econômica e sociedade, tórica segregação socioespacial na cidade persiste. estratégias fundamentais às políticas públicas, Wissenbach (cap. 8) analisa o papel da localiza- municipal e metropolitana, em prol de uma cição urbana na dinâmica do mercado imobiliário, dade justa e equitativa. reconhecendo sua força, e indaga se é possível “conciliar uma política de desenvolvimento ur- Angélica T. Benatti Alvim é arquiteta e urbanista (Belas Artes, SP), mestre, (FAU-USP), professora e atual coordenadora do Programa de bano que se oriente pela reversão dos proble- doutora Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade mas crônicos da cidade […] com a existência de Presbiteriana Mackenzie.
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Os engenhos e os holandeses Milena Fernandes Maranho
O
recém-lançado livro do hisgrande calote, tratam do períotoriador Evaldo Cabral de do holandês e das várias fases e Mello, O bagaço da cana – Os transformações nas característiengenhos de açúcar no Brasil holancas dos engenhos e de sua produdês, é um tesouro para os pesquisação desde o governo de Maurício dores que se dedicam a investigar a de Nassau em 1637 até a fase final produção açucareira e todos os desda Restauração pernambucana de dobramentos que a envolviam na 1654 e seus desdobramentos. configuração econômica e política Outro destaque é o debate sobre do Nordeste colonial seiscentista. a natureza da própria insurreição contra os batavos. Esta chegou a A cana-de-açúcar foi cultivada na ser pensada como “uma empresa península Ibérica desde a época da desesperada de relapsos devedoconquista dos mouros, ocorrida a res luso-brasileiros, ansiosos por se partir da expansão árabe do século O bagaço da cana libertarem das dívidas”. Mas parte VII. O autor indica em outro estu- Evaldo Cabral de Mello das Letras da documentação demonstrou que do que até mesmo a palavra açúcar Companhia 216 páginas, R$ 23,00 muitos devedores não se mostraram deriva etimologicamente do árabe al-succar, que tem origem no sânscrito sarkara, totalmente favoráveis à insurreição. No último caou seja, semelhante à areia branca. Desde Chi- pítulo, Os engenhos de açúcar no Brasil holandês, pre e Creta até o norte da África, o cultivo da é apresentado um levantamento cronológico, hiscana foi introduzido nessas localidades a partir tórico e descritivo detalhado sobre os engenhos. Para cada engenho há um mapeamento de indo século XIV. Por volta de 1440, a região da Madeira foi o ponto de partida para a expansão formações que auxilia a visualização de paisagens do cultivo da cana e da produção de açúcar no históricas e dados econômicos, bem como de suas mundo atlântico, servindo como modelo para transformações no tempo. Este capítulo também os Açores, Cabo Verde, São Tomé e Brasil. Nas apresenta particularidades que nos aproximam primeiras décadas do século XVI, Antuérpia, de vários microcosmos, com questões familiares Amsterdã e Lisboa tinham fortes relações eco- e tramas políticas que permitem a compreensão nômicas envolvendo o açúcar pernambucano, de processos históricos mais complexos como as quais, devido à grande demanda, suscitaram aqueles que envolviam as relações entre senhores muitos investimentos de judeus portugueses e de de engenho, holandeses e a administração lusa. Na verdade, ao trazer informações que consnegociantes dos próprios Países Baixos, levando a que diversos fatores dessa conjuntura histórica, tituíram uma das bases para a vasta produção aliada à união das coroas ibéricas, culminassem deste historiador pernambucano sobre a história do Nordeste colonial, o livro apresenta nona invasão holandesa em Pernambuco. A partir deste contexto, Evaldo Cabral tem táveis exercícios de investigação e compilação como foco o período da dominação batava em de Evaldo Cabral para organizar e dar sentido a Pernambuco, e dividiu o livro em seis capítulos. informações de origem tão diversa. Enfim, poO primeiro, As fontes, apresenta o diversificado demos dizer que O bagaço da cana oferece ainda corpus documental consultado pelo autor: de- muito “caldo” sobre este fascinante tema que é o nunciações e confissões inquisitoriais, fontes dos engenhos de açúcar coloniais do Nordeste e de índole administrativa, listagens de engenhos, a dominação holandesa, tendo em vista os seus crônicas e relatórios sobre o Brasil holandês. O significados na estruturação da América portusegundo capítulo, Antes dos holandeses, indica guesa no século XVII. as conjunturas históricas e as características dos engenhos anteriores ao período neerlandês Milena Fernandes Maranho é pesquisadora-colaboradora do IFCH/ e autora da tese O moinho e o engenho – São Paulo e em Pernambuco. Os três capítulos seguintes, Os Unicamp Pernambuco em diferentes contextos e atribuições no império colonial desastres da guerra, Euforias nassovianas e O português, 1580 - 1720 (USP, 2006). PESQUISA FAPESP 199 | 95
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