Pesquisa FAPESP outubro de 2012
outubro de 2012 www.revistapesquisa.fapesp.br
aids
Taxas elevadas de infecção persistem entre homossexuais biocombustíveis
Biologia da cana gera novas ferramentas para produção de etanol entrevista Marco antônio zago
Como a USP alia gigantismo e alta qualidade artigos
Ideias para o Fórum Mundial de Ciências 2013 contos
Oito autores e suas ficções sobre o conhecimento especial DVD
n.200
Os melhores vídeos de Pesquisa FAPESP
Berçário de raios cósmicos Encontro de campos magnéticos no espaço pode originar partículas que viajam a velocidade muito próxima à da luz
Pesquisa Brasil Toda sexta-feira, das 13h às 14h, na Rádio USP, você tem um encontro marcado com a ciência falada
Apresentado por Mariluce Moura, diretora de redação da revista Pesquisa Fapesp, e por Celso Filho, diretor da Rádio Usp, o Pesquisa Brasil traz informações de ciência, tecnologia, meio
eduardo cesar, EDUARDO SANCINETTI, ricardo zorzetto, léo ramos, nasa / jpl, Latinstock/MEHAU KULYK/SCIENCE PHOTO LIBRARY/SPL DC
ambiente, humanidades. Há sempre um pesquisador convidado conversando sobre o desenvolvimento de sua pesquisa, além de uma seleção musical com muito swing. E você pode participar do “Ouvinte Pesquisa” fazendo perguntas aos pesquisadores e concorrendo a uma assinatura anual da revista Pesquisa Fapesp.
* durante a vigência da Propaganda Eleitoral Obrigatória, o programa começará às 13h30.
Aguce seus sentidos e sintonize já! 93,7 mHz www.revistapesquisa.fapesp.br
Aline Zamboni Machado / USP
fotolab
Sinais luminosos Bem longe de seu lar habitual no veneno da cobra urutu (Bothrops alternatus), uma proteína encontra pouso onde se fixar. Marcada de vermelho, a alternagina-C se liga a receptores abundantes na superfície de células de tumor de colo uterino, cujos núcleos aparecem em azul, e pode funcionar como uma etiqueta denunciadora do câncer. É essa a intenção de pesquisadores do Centro de Biologia Molecular Estrutural (CBME), em São Carlos, interior paulista.
Foto enviada por Heloisa Sobreiro Selistre de Araújo CBME e Universidade Federal de São Carlos Se você tiver uma imagem relacionada a pesquisa, envie para imagempesquisa@fapesp.br, com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.
PESQUISA FAPESP 200 | 3
outubro 2012 n.200
18 CAPA Novos estudos ampliam o conhecimento sobre possíveis origens dos raios cósmicos, que atravessam o espaço e, ao chegar à Terra, se desfazem ao colidir com outras partículas ilustração de capa guto lacaz
entrevista 24 Marco Antonio Zago Pró-reitor de Pesquisa da USP fala em como organizar a pesquisa de alta qualidade em uma instituição gigantesca
ARTIGOS
Política científica e tecnológica
tecnologia
32 Educação científica
Aplicação do conhecimento científico da cana deverá servir ao desenvolvimento de novas ferramentas para a produção de etanol
Baixo desempenho no ensino de ciências prejudica formação de pesquisadores e deixa o país pouco competitivo
40 Jornalismo científico
47 Produtos naturais
96 Pesquisa empresarial
ciÊncia 62 Saúde pública
Ficção
68 Doenças tropicais
126 Leia 8 contos sobre o conhecimento selecionados entre os melhores publicados nos últimos 8 anos, entre a edição 100 e a 200
72 Doenças neurodegenerativas
4 | outubro DE 2012
18
Oxiteno lança produtos à base de óleo de palma, de soja e de cana em substituição a petroquímicos
100 Melhoramento genético
Taxas elevadas de infecção persistem entre homossexuais e expõem lacunas das estratégias de prevenção
3 Fotolab 6 Cartas 7 Editorial 8 Dados e projetos 9 Boas práticas 10 On-line 11 Wiki 12 Estratégias 14 Tecnociência 122 Memória 124 Resenhas 143 Classificados
92 Mineração
USP e Vale desenvolvem pesquisa para descobrir microrganismos capazes de recuperar cobre em rejeitos minerais
50 Cinco textos de pesquisadores com ideias para o Fórum Mundial de Ciência de 2013
seçÕes
86 Biocombustíveis
Acesso a documentos digitalizados ajuda a reconstituir os percursos da divulgação científica no Brasil Núcleo lança base de dados sobre compostos químicos com potencial para gerar fármacos
18
Vesículas com proteínas ajudam protozoários a invadir células hospedeiras
Compostos encontrados no sangue podem indicar o grau de envelhecimento cerebral
74 Ecossistemas tropicais Botânicos usam trepadeiras para compreender a origem de florestas brasileiras
78 Clima
Área urbana de Manaus é 3ºC mais quente do que a floresta
82 Evolução galáctica
Maior levantamento de estrelas já feito reconstitui a região central da galáxia
Tubérculo e feijão mais nutritivos estão disponíveis para a alimentação dos brasileiros
74
humanidades 106 Pensamento
Estudo de textos de Aristóteles e Platão revela origens de conceitos científicos contemporâneos
110 Estatísticas
Estudos acadêmicos sobre carências da população cada vez mais ajudam governos a adotar soluções
114 Ciências políticas
Sistema eleitoral brasileiro hoje é modelo de eficiência e democracia
118 Sociologia
Produções intelectuais e indústria cultural dialogam entre tapas e beijos
114
32
46
40
62
82
86 92
106
110
PESQUISA FAPESP 200 | 5
fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo
cartas
cartas@fapesp.br
Celso Lafer Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente
Empresa que apoia a ciência brasileira
Conselho Superior alejandro szanto de toledo, Celso Lafer, Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, Horácio Lafer Piva, Herman Jacobus Cornelis Voorwald, joão grandino rodas, Maria José Soares Mendes Giannini, José de Souza Martins, Luiz Gonzaga Belluzzo, Suely Vilela Sampaio, Yoshiaki Nakano Conselho Técnico-Administrativo José Arana Varela Diretor presidente Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico Joaquim J. de Camargo Engler Diretor Administrativo
issn 1519-8774
Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo Leite, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Adolpho José Melfi, Carlos Eduardo Negrão, Douglas Eduardo Zampieri, Eduardo Cesar Leão Marques, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, João Furtado, Joaquim J. de Camargo Engler, José Arana Varela, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Luis Augusto Barbosa Cortez, Marcelo Knobel, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Luiz Monteiro Salles Filho, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner do Amaral, Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos Diretora de redação Mariluce Moura editor chefe Neldson Marcolin Editores Carlos Haag (Humanidades), Fabrício Marques (Política), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência), Carlos Fioravanti (Editor especial), Marcos Pivetta (Editor especial), Dinorah Ereno (Editora assistente) revisão Márcio Guimarães de Araújo, Margô Negro arte Laura Daviña (Editora), Ana Paula Campos, Maria Cecilia Felli fotógrafos Eduardo Cesar, Léo Ramos Mídias eletrônicas Fabrício Marques (Coordenador) Internet Pesquisa FAPESP online Maria Guimarães (Editora executiva) Isis Nóbile Diniz (Editora assistente) Rádio Pesquisa Brasil Biancamaria Binazzi (Produtora) Colaboradores Alexandre Affonso, Alvaro Felippe Jr., Ana Lima, Antonio Prata, Bel Falleiros, Catarina Bessell, Cláudia Izique, Cristovão Tezza, Daniel Bueno, Darlei Dall’Agnol, Drum, Evanildo da Silveira, Flávio Ulhoa Coelho, Gabriel Bittar, Guto lacaz, Igor Zolnerkevic, Mayumi Okuyama, Nelson de Oliveira, Nelson Provazi, Pedro Hamdan, Ricardo Lísias, Rodrigo Lacerda, Ronaldo Correia de Brito, Valter Rodrigues (Banco de imagens), Vanessa Barbara, Yuri Vasconcelos É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização
Martyn Poliakoff
A edição 199 tem interessante reportagem de Carlos Haag sobre a descoberta das pesquisadoras brasileiras Ana Maria Goldfarb e Márcia Ferraz sobre o pó alquímico em arquivo da Royal Society (“Uma incômoda pitada de magia”). Entretanto, chama atenção a entrevista com Martyn Poliakoff, vice-presidente da Royal Society, pela sua visão colonialista de se impressionar com o nível baixo de proficiência em inglês dos cientistas brasileiros que dificultaria, ao seu modo de ver, uma eventual cooperação acadêmica em seu país (“Tradição de reunir saberes”). Seria oportuno perguntar a Mr. Poliakoff e aos colegas ingleses a proficiência deles em português. Ademais, continua no mesmo tom colonizador, quando aborda as pesquisas de plantas medicinais da vegetação brasileira na tentativa de “fazer a cabeça” de nossos jovens pesquisadores, quando seria melhor Mr. Poliakoff mudar a sua vasta cabeleira na moda de volta ao passado. Roberto DeLucia Professor aposentado da USP São Paulo, SP
Castanheiras
Trabalhei com castanha do Brasil, na Embrapa Acre, na década de 1980. Lá, a ocorrência da castanheira só se dá no vale do rio Acre até a margem direita do rio Iaco. A partir daí, a oeste, não há, de fato, ocorrência natural. No entanto, na Amazônia peruana, que tem limite com os afluentes brasileiros do rio Solimões, à direita, nas Reservas Nacionais de Pacaya, Matses e de Tamshyacu, a população de castanheira é importante. No mapa que ilustra a reportagem “O fator humano” (edição 199), observa-se a sua presença na região sul de Rondônia, que na verdade não ocorre. É área de cerrado. Excelente reportagem cujo assunto sempre me instigou. Paulo Moreira Núcleo Regional Norte da Embrapa Gado de Leite Porto Velho, RO
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6 | outubro DE 2012
Para quem lê e assina, a Pesquisa FAPESP traz, todo mês, as melhores e mais atualizadas notícias sobre pesquisa e diversas áreas do conhecimento.
Para quem anuncia, a Pesquisa FAPESP proporciona falar com um leitor qualificado, formador de opinião e que decide.
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carta da editora
Um desafio apaixonante Mariluce Moura Diretora de Redação
É
um prazer apresentar aos leitores esta edição número 200 de Pesquisa FAPESP. Em parte, porque números redondos, e aqui significando apenas os múltiplos de 10, sem outras acepções sofisticadas mais afeitas aos especialistas da matemática, soam como bons marcadores do tempo, essa categoria tão fugidia e inescapável na qual estamos todos imersos. Esses números, com seus zeros que sabem a começo, fim e recomeços, parecem sempre nos propor uma reflexão sobre o percurso realizado e voos de imaginação entrelaçados a um olhar crítico para que possamos criar novas rotas capazes de realizar mais densamente um propósito bem definido. Lembro aqui que ao apresentar, há exatos oito anos e quatro meses, a edição número 100 da revista, um marco que nos enchia de alegria, resumi a dinâmica de elaboração da publicação no título “Uma obra coletiva, feita com prazer”. E se a expressão faz sentido, eu diria que Pesquisa FAPESP, com o passar dos anos, tornou-se ainda mais coletiva em sua feitura. Porque ao trabalho de sua equipe executiva de profissionais do jornalismo, assistido por eficiente suporte administrativo e amparado nas diretrizes e nas estratégias gerais da FAPESP – levadas à prática pelo Conselho Técnico-Administrativo da Fundação (CTA) e politicamente orientadas por seu Conselho Superior (CS) –, juntaram-se muitas outras competências para fazer da revista o produto especial que ela é hoje. Entre tantas, julgo essencial destacar a competência na avaliação rigorosa e criteriosa da importância das pesquisas que queremos transformar em objetos de reportagem, exercida pelos coordenadores adjuntos da Diretoria Científica (DC) da FAPESP, que compõem o comitê científico da revista. Mas este círculo que nos respalda quanto à qualidade científica dos temas que propomos é, na verdade, mais amplo e inclui os coordenadores de área da DC, a quem os jornalistas de Pesquisa FAPESP também recorrem, com frequência talvez até um tanto abusiva. É fundamental destacar igualmente a competência exercida pelo conselho editorial de Pesquisa FAPESP para olhar e examinar a revista no contexto mais amplo da mídia e da cultura científica no país e, a partir dessa visão ampla, definir horizontes de transformações e conquistas. Trata-se de um jovem
conselho instalado no começo de 2011, formado por cientistas e jornalistas, cujas propostas ampliaram rapidamente as ambições da revista. Entretanto, há contribuições de muitas outras fontes para fazer este veículo de comunicação tal qual ele é, dadas mês após mês, desde que o boletim Notícias FAPESP, nascido em agosto de 1995, tornou-se, em outubro de 1999, a revista Pesquisa FAPESP. Há bastante tempo, em 2000, falando para uma plateia de jornalistas ibero-americanos (sim, lá estava, por exemplo, o bravo espanhol Manuel Calvo Hernando, falecido aos 88 anos em 16 de agosto passado, então feliz com sua tese de doutorado concluída aos 70 anos – rendo-lhe aqui minhas homenagens), eu disse que a revista da FAPESP era um produto rigorosamente jornalístico que se produzia no diálogo fecundo, com certo grau de tensão, entre dois discursos, o jornalístico e o científico, viabilizado por uma instituição do sistema de ciência e tecnologia. Era importante fazer ali uma alusão ao encontro, à cooperação, em vez de destacar uma eventual oposição jornalista/fonte. Tanto tempo depois, não tenho muitos reparos a essa fala, porque entendo que Pesquisa FAPESP só pode existir como é por uma imensa disposição de pesquisadores de todas as áreas do conhecimento se tornarem permeáveis às indagações, às vezes impertinentes, dos jornalistas, seus parceiros nesta bela tarefa de ajudar o conhecimento científico a fluir, a circular dentro da sociedade que ele tanto transforma. Os cientistas brasileiros ampliaram nos últimos anos sua consciência de que devem prestar contas de seu trabalho à sociedade. E os jornalistas de ciência vêm buscando se tornar melhores jornalistas para saber quais são as perguntas essenciais que precisam fazer aos cientistas se querem, de fato, contribuir para a ampliação da cultura científica no país. Em resumo, é importante dizer que Pesquisa FAPESP se faz também com a competência científica e comunicativa dos cientistas que são suas fontes e, por fim, com a leitura atenta, marcada por tantos comentários argutos, influentes e generosos, de seus leitores. Portanto, a todos que têm exercido sua competência para a construção desta revista – um desafio apaixonante, em meu olhar –, ergo um brinde, junto com o convite para que descubram o que há de especial nesta edição número 200. PESQUISA FAPESP 200 | 7
Dados e projetos Temáticos e Jovem Pesquisador recentes Projetos contratados entre agosto e setembro de 2012
temáticos
JOVEM PESQUISADOR
Estudos da diversidade microbiana no Parque Zoológico do Estado de São Paulo (Biota/FAPESP: Microrganismos) Pesquisador responsável: João Carlos Setubal Instituição: Instituto de Química/USP Processo: 2011/50870-6 Vigência: 01/08/2012 a 31/07/2017
Caracterização funcional de uma recentemente identificada família de MUT9 kinases in Arabidopsis thaliana e cana-de-açúcar Pesquisador responsável: Juan Armando Casas Mollano Instituição: Instituto de Química/USP Processo: 2012/01687-7 Vigência: 01/07/2012 a 30/06/2014
Identificação e caracterização farmacológica, eletrofisiológica e morfológica de novo canal de sódio TTX-resistente acoplado à musculatura lisa de corpo cavernoso de cobra Pesquisador responsável: Gilberto de Nucci Instituição: Instituto de Ciências Biomédicas/USP Processo: 2011/11828-4 Vigência: 01/09/2012 a 31/08/2016
Padrões de consumo de álcool e outras drogas em “baladas”: epidemiologia, etnografia e intervenção Pesquisadora responsável: Zila Van Der Meer Sanchez Dutenhefner Instituição: Escola Paulista de Medicina/Unifesp Processo: 2012/12934-5 Vigência: 01/07/2012 a 30/06/2014
Sistemas avançados de análises químicas em fluxo: aplicações nas áreas tecnológica, agronômica e ambiental Pesquisador responsável: Elias Ayres Guidetti Zagatto Instituição: Centro de Energia Nuclear na Agricultura/USP Processo: 2011/23498-9 Vigência: 01/09/2012 a 31/08/2017
Apoptose nas glândulas salivares humanas: avaliação de marcadores na morfogênese e no processo de tumorigênese da glândula utilizando como modelos o adenoma pleomórfico e o carcinoma mucoepidermoide Pesquisadora responsável: Claudia Malheiros Coutinho Camillo Instituição: Hospital do Câncer Antônio Cândido Camargo/FAP Processo: 2012/09759-7 Vigência: 01/07/2012 a 30/06/2014
Toxinas de Acanthamoeba spp como fatores de virulência em infecções da superfície ocular Pesquisador responsável: Fabio Ramos de Souza Carvalho Instituição: Escola Paulista de Medicina/Unifesp Processo: 2012/15603-0 Vigência: 01/07/2012 a 30/06/2014 Afecções ortopédicas não traumáticas de ombro: aspectos genéticos e moleculares Pesquisadora responsável: Mariana Ferreira Leal Instituição: Escola Paulista de Medicina/Unifesp Processo: 2012/14768-5 Vigência: 01/08/2012 a 31/07/2014 O papel do receptor de glutamato tipo NMDA na regulação da resposta imune na encefalomielite experimental autoimune e na lesão por isquemia e reperfusão cerebral Pesquisador responsável: Jean Pierre Schatzmann Peron Instituição: Instituto de Ciências Biomédicas/USP Processo: 2012/10795-8 Vigência: 01/08/2012 a 31/07/2014 Avaliação de produção científica no Brasil: estudo da comunicação científica nas diversas áreas e desenvolvimento de infraestrutura institucional
Pesquisador responsável: Rogerio Mugnaini Instituição: Escola de Artes, Ciências e Humanidades/USP Processo: 2012/00255-6 Vigência: 01/09/2012 a 31/08/2016
Desenvolvimento e produção de radiofármacos emissores de pósitrons com aplicações diagnósticas em oncologia Pesquisador responsável: Emerson Soares Bernardes Instituição: Faculdade de Medicina/USP Processo: 2012/06875-6 Vigência: 01/09/2012 a 31/08/2016 Desenvolvimento de superfícies nanoestruturadas via eletroquímica em ligas biomédicas de titânio Pesquisador responsável: Nilson Tadeu Camarinho de Oliveira Instituição: Centro de Ciências Exatas e Tecnologia/UFSCar Processo: 2012/11350-0 Vigência: 01/10/2012 a 30/09/2014 Biodiversidade molecular e conservação de tubarões: banco genético, estruturas populacionais e rede internacional de colaboração científica Pesquisador responsável: Fernando Fernandes Mendonça Instituição: Instituto de Biociências de Botucatu/Unesp Processo: 2012/12069-2 Vigência: 01/11/2012 a 31/10/2014
Titulação dos docentes Qualificação docente em universidades no Brasil e em São Paulo (2001-2010) Brasil 2001 Universidades Total
Brasil 2010
Total
Doutores
%
Total
Doutores
%
148.219
39.211
26%
195.764
80.984
41%
Públicas
82.461
29.543
36%
122.445
64.158
52%
Federais
48.926
17.447
36%
74.059
43.275
58%
Estaduais
31.830
11.927
37%
45.521
20.234
44%
1.705
169
10%
2.865
649
23%
65.758
9.668
15%
73.319
16.826
23%
Municipais Privadas
São Paulo 2001 Universidades
São Paulo 2010
Total
Doutores
%
Total
Doutores
%
35.987
14.499
40%
42.805
20.863
49%
Públicas
12.115
9.609
79%
14.839
13.476
91%
Federais
1.273
998
78%
2.744
2.480
90%
Estaduais
9.935
8.528
86%
11.173
10.653
95%
907
83
922
343
37%
23.872
4.890
27.966
7.387
26%
Total
Municipais Privadas
Fonte: Censos da Educação Superior, Inep 2001 e 2011
8 | outubro DE 2012
9% 20%
Boas práticas Cerca de 38 mil pesquisadores norte-americanos da área biomédica começaram a seguir regras mais duras envolvendo declarações de interesses financeiros. Os novos parâmetros foram aprovados pelo governo dos EUA para pesquisadores patrocinados por instituições públicas como os Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês), a maior agência financiadora de pesquisa médica do mundo. Eles acabam com ambiguidades presentes nas regras anteriores, em vigor desde 1995, e buscam assegurar que interesses dos pesquisadores não influenciem o desenho, a condução e a divulgação de seus trabalhos. A partir de agora, cada pesquisador precisa informar suas instituições sobre qualquer “interesse financeiro significativo” relacionado a si ou a membros de sua família, capaz de ter algum impacto em sua atividade profissional, o que envolve ensino, pesquisa ou o trabalho em comitês de ética. A regra anterior era menos abrangente e exigia apenas que o pesquisador declarasse interesses relacionados especificamente ao projeto de pesquisa em avaliação. A mudança busca evitar situações como a do professor de psiquiatria Charles Nemeroff, da Emory University, em Atlanta. Ele recebeu mais de US$ 800 mil da multinacional farmacêutica GlaxoSmithKline entre 2000 e 2006 para fazer mais de 250 palestras para psiquiatras, mas não declarou esses ganhos à universidade. Quando descoberto e interpelado pela universidade, argumentou que as regras eram ambíguas e que seu trabalho
remunerado não era uma informação relevante para a instituição, uma vez que envolvia apenas sua experiência como clínico. Pelas novas regras, não há nenhuma dúvida de que esses vínculos financeiros precisam ser declarados. A mudança dá às universidades a responsabilidade de avaliar se ganhos financeiros privados de seus pesquisadores podem influenciar projetos de pesquisa financiados pelo governo. Há outras mudanças: o valor de um ganho considerado significativo (e que deve, portanto, ser reportado) diminuiu de US$ 10 mil para US$ 5 mil. De acordo com editorial da revista Nature, em pelo menos um aspecto o governo norte-americano recuou. Segundo a proposta original apresentada pelos NIH, cada instituição deveria publicar
daniel bueno
O bolso transparente dos cientistas
as informações sobre potenciais conflitos de interesse de seus pesquisadores na internet e atualizá-las anualmente. Na versão aprovada, a declaração na internet tornou-se opcional e as instituições, caso sejam interpeladas, podem se defender por escrito.
O ex-comissário e o autoplágio O eslovaco Ján Figeľ, ex-comissário da União Europeia para Educação, enfrenta investigação sobre autoplágio em sua tese de doutorado, apresentada quando ele estava no cargo, em 2007. Segundo o blog Science Insider, da revista Science, o Ministério da Educação da Eslováquia abriu uma sindicância para apurar a acusação de que a tese foi copiada de um livro publicado quatro anos antes, do qual o político era coautor. Figeľ atuou como comissário em Bruxelas entre 2004 e 2009 e foi responsável pela implementação do Protocolo de Bolonha, que busca criar uma
estrutura comum de graduação e pós-graduação nas universidades europeias. Entre 2010 e 2012, foi ministro dos Transportes e premiê substituto da Eslováquia. Ele obteve o PhD em serviço social na Escola de Medicina e Serviço Social St. Elizabeth, em Bratislava, faculdade privada fundada em 2002. A tese descreve as negociações para a admissão da Eslováquia na União Europeia. Segundo a denúncia publicada pelo jornal SME, o texto foi copiado de um livro escrito em parceria com o diplomata Miroslav Adamiš, que não recebeu crédito na tese. O Ministério da Educação definirá se o PhD é válido e se a escola seguirá formando doutores. PESQUISA FAPESP 200 | 9
on-line
Ricardo Bourguignon_ Já presenciei uma vespa preta – desconheço a espécie – praticando esse feito em
Rádio
Mutação determina diferença entre guepardo pintado (esquerda) e sua versão real
Ana Maria Goldfarb e Márcia Ferraz contam sobre pó alquímico encontrado na Royal Society
uma aranha Argiope (Parasitoides em ação, aranhas sob comando)
GREG BARSH /RESERVA ANN VAN DYK
Nas redes
w w w . r e v i s ta p e s q u i s a . f a p e s p. b r
Antonio Lucio Sana_ Uma ação inteligente contra a dengue (Mosquito liberado) Carolina Ferreira Santos_ Estudei muito com os livros dele! (Bruce Alberts: Ensinar ciência é preciso) Fumaça Rocha_ Documentário impressionante. Deveria ser conhecido por todas as crianças brasileiras (Science to build a nation)
Exclusivo no site
Tacio Fargnoli_ Este dia em especial torna o nosso voo muito ruim.
x Diferentes medos seguem trajetos distintos no cérebro. O resultado é que um predador, um agressor da mesma espécie e uma situação dolorosa suscitam reações adequadas a cada ameaça. O grupo do neuroanatomista Newton Canteras, da Universidade de São Paulo, mostrou também que a memória está envolvida no processo. Quando a percepção é de risco à vida, forma-se rapidamente uma memória de longa duração que aciona a reação de defesa mesmo na ausência da ameaça. O assunto está na capa da Nature Reviews Neuroscience de setembro.
Estando mais quente nas camadas superiores e frio na superfície terrestre, praticamente não há um disparador térmico em potencial, tornando nossa subida praticamente inviável... Um dia para ficarmos no cineminha (Você sabe o que é a inversão térmica?) Rogério Rauber_ Em que nível de conhecimento estaríamos hoje se tantas pesquisas (como as de da Vinci) não tivessem sido censuradas? (Entre a cátedra e o ateliê)
Vídeo do mês Desconcentração da indústria paulista nos anos 1970 conferiu relevo econômico ao interior do estado http://www.youtube.com/user/PesquisaFAPESP
10 | outubro DE 2012
Assista ao vídeo:
Para ler o código ao lado faça o download do leitor de QR CODE no seu smartphonE
x Mutações em um gene estão por trás da mudança no padrão da pelagem de gatos e guepardos, segundo estudo de uma equipe internacional publicado na Science. Essa alteração genética define o guepardo real, e gatos domésticos com mutação no mesmo gene apresentam manchas semelhantes. O trabalho poderá ajudar a entender como essas características evoluem nos felinos. “Não se conhecia o mecanismo por trás da formação de pintas e listras dos mamíferos”, diz Eduardo Eizirik, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, um dos autores.
WiKi o que é, o que é? DNA-lixo
Pergunte aos pesquisadores Como funciona o espectrômetro a laser do veículo robótico Curiosity, em Marte? Cristina Figueiredo Valente [via e-mail]
foto NASA/JPL/Caltech/MSSS Ilustracão daniel bueno
Ramon de Paula Engenheiro de missões da Nasa O veículo robótico
de amostras como,
Curiosity, que chegou
por exemplo, de rocha.
em agosto a Marte,
Para isso, o aparelho
está equipado com um
vaporiza o material com
espectrômetro a laser e
uma alta quantidade
outros oito instrumentos
de energia. Depois de
para explorar o planeta
um tempo, a amostra
e investigar o que o fez
perde energia e passa
ser diferente da Terra.
a emitir fótons ou ondas
Os dois planetas eram
de luz. Os pesquisadores
semelhantes quando
sabem do que é feito
foram formados há
o material analisado
cerca de 4,6 bilhões de
porque cada elemento
anos. Hoje, porém,
da tabela periódica
enquanto a Terra está
(como ferro, cálcio ou
repleta de oceanos,
fósforo) emite sempre
rios, chuvas e múltiplas
a mesma frequência
espécies de seres vivos,
de onda. O método
o planeta vermelho
vale também para
tem água inacessível e
analisar desde células
parece ser inabitado.
cancerígenas até
Saber o que aconteceu
material do fundo
com Marte pode ajudar
do mar. Em Marte,
a entender a história
o instrumento –
da própria Terra.
em conjunto com
A função do
outros dois –
espectrômetro a laser
rastreará vestígios
é revelar a composição
de vida no solo.
Mande sua pergunta para o e-mail wikirevistapesquisa@fapesp.br, pelo facebook ou pelo twitter @PesquisaFapesp
Os pesquisadores tiveram uma surpresa quando acabaram de sequenciar todo o material genético humano, em 2000: as pessoas têm apenas cerca de 30 mil genes. Esse número é quase o mesmo do milho, aproximadamente 20 mil. Além da quantidade relativamente pequena, outro detalhe intrigou os cientistas. Os genes eram conhecidos por formarem as características de cada indivíduo, mas os resultados revelaram que 45% do DNA parecia não ter função. Por isso, essa parte foi chamada de DNA-lixo, nome que carrega até hoje. Com o passar dos anos, novos estudos mostram que o DNA-lixo é fundamental na regulação e no controle da expressão dos genes. Ou seja, ele determina a diferenciação de células-tronco em neurônios, por exemplo. Se o DNA-lixo se expressa de modo ou em tempo errados, pode provocar a formação de tumores. Em setembro, o assunto voltou a ser discutido com a divulgação dos resultados do projeto Encode, formado por pesquisadores de diversos países, que diz ter encontrado função para 80% do DNA-lixo. O Encode mostrou que esse universo de 30 mil genes pode ser uma receita de bolo na qual, dependendo da maneira como se adicionam e misturam os ingredientes, o gosto e a aparência podem ser completamente diferentes. Essa vasta combinação de genes explica por que as pessoas são tão distintas umas das outras. Agora o Encode busca quais composições genéticas podem causar ou evitar que uma pessoa tenha determinada doença. Marie-Anne Van Sluys, da Universidade de São Paulo (USP)
PESQUISA FAPESP 200 | 11
Estratégias Denúncia de maus-tratos Um conhecido santuário
como um centro de
de primatas no estado
pesquisa sobre cognição
norte-americano de Iowa,
e comunicação de
o Great Ape Trust,
primatas. O dinheiro
mergulhou numa crise.
acabou em 2011
Segundo o blog Science
e o comitê decidiu
Insider, da revista Science,
interromper as atividades
uma investigação interna
de pesquisa, mas uma
apura as acusações
doação de US$ 50 mil
de que a diretora da
permitiu que o trabalho
entidade, a primatologista
fosse retomado. Há
e psicóloga Susan
10 meses, os primeiros
Savage-Rumbaugh,
relatos de maus-tratos
maltratava os animais.
foram comunicados
O santuário abriga
ao comitê diretor,
primatas como o
que os relevou. Em
A FAPESP e a Rede
As propostas deverão
chimpanzé bonobo Kanzi,
setembro, funcionários e
Interamericana de
ser apresentadas pelos
ensinado a se comunicar
ex-cuidadores de animais
Academias de Ciências
interessados à academia
usando um teclado de
levaram a denúncia
(Ianas, na sigla em
de ciências de seu país
símbolos e capaz de
à imprensa. Susan
inglês) lançaram no
de origem, que as
compreender mais de
defendeu-se num
dia 14 de setembro
encaminhará para
3 mil palavras faladas.
vídeo, dizendo que
uma chamada de
a Ianas. Os projetos
O comitê diretivo da
os acusadores “não
propostas de pesquisa
pré-selecionados pelas
instituição colocou Susan
conhecem a real
no âmbito do acordo
academias serão
em licença, permitindo
situação do santuário”,
de cooperação firmado
submetidos à FAPESP.
que faça apenas visitas
e propôs pendurar uma
entre as duas
Na avaliação de Hernan
supervisionadas aos
câmera no pescoço
instituições. Podem
Chaimovich, assessor
bonobos. O Great Ape
24 horas por dia para que
participar pesquisadores
especial da Diretoria
Trust surgiu em 2002
possa ser monitorada.
indicados pelas
Científica da FAPESP,
graças a uma doação
A especialista em ética
academias nacionais de
o convênio entre a
de US$ 4 milhões do
Nancy Howell comanda
ciências filiadas à Ianas.
Fundação e a Ianas
empresário Ted Townsend,
a investigação.
As propostas aprovadas
possibilitará atingir
serão apoiadas por meio
diferentes objetivos,
de mecanismos de
como o de fortalecer as
financiamento utilizados
academias de ciências
pela FAPESP, como
nacionais das Américas
concessão de Bolsas
do Sul, do Norte, Central
de Pós-doutorado,
e Caribe, facilitar a
Programa Jovens
descoberta de talentos
Pesquisadores em
científicos e aumentar a
Centros Emergentes
cooperação e integração
e Auxílio à Pesquisa –
científica nessas regiões.
Pesquisador Visitante.
“Existe uma falta muito
As pesquisas poderão
grande de informações
envolver qualquer área
que permitam que
do conhecimento e
os melhores jovens
deverão ser realizadas
cientistas dos países da
em universidades e
região venham para o
instituições de pesquisa
Brasil realizar pesquisa”,
no estado de São Paulo.
disse à Agência FAPESP.
Susan com o bonobo Kanzi: licença forçada durante investigação
1
12 | outubro DE 2012
fotos 1 GreatApeTrust 2 dfg 3 Cris Castello Branco ilustraçãO daniel bueno
Cooperação interamericana
Reunião de lideranças
Avanços em semicondutores Um grupo de
realizada em Zurique,
pesquisadores do
na Suíça. Receberam
A FAPESP participa,
Instituto de Tecnologia
a premiação
pela primeira vez como
da Aeronáutica (ITA)
15 participantes que
membro associado, do
conquistou destaque
haviam defendido
9º Fórum da Science and
internacional por obter
doutorado há menos
Technology in Society
avanços científicos
de um ano e que
(STS), que acontece
na área de materiais
apresentaram um
entre os dias 7 e 9 de
semicondutores
estudo de elevado
outubro em Kyoto,
magnéticos, que poderão
impacto na área de
no Japão. O fórum é
integrar os processadores
semicondutores. Uma
uma organização
e as memórias de
comissão formada por
computadores no futuro.
pesquisadores de vários
O professor Ronaldo
países selecionou os
Pelá, do Departamento
trabalhos. Desenvolvido
de Física do ITA,
como parte de seu
recebeu o Prêmio de
doutorado no ITA,
Melhor Artigo de Jovem
o trabalho apresentado
internacional sem fins
2
lucrativos que reúne
Plenária do STS Fórum em 2011: diálogo entre políticos, cientistas e industriais
lideranças científicas
humanidade. Entre os
de diversos países,
temas deste ano estão
empresas de tecnologia,
energia, segurança
agências de fomento à
nuclear, saúde global,
pesquisa e formuladores
sustentabilidade e o
Cientista, durante
por Pelá foi publicado
de políticas públicas.
papel das universidades
a Conferência
na edição de maio
A Fundação será
no século XXI. Uma das
Internacional de Física
da revista Applied
representada pelo
plenárias tem como
de Semicondutores
Physics Letters.
diretor-presidente
objetivo melhorar o
do Conselho
diálogo entre políticos,
Técnico-Administrativo,
cientistas e industriais.
José Arana Varela.
“Um dos grandes
“Em 2011, a FAPESP
trunfos do STS Forum
participou do fórum,
é o fato de ser
mas como entidade
multifacetado. Reúne
convidada”, explicou
o ponto de vista de
Varela. A STS promove
quem faz política
encontros anuais desde
científica, dos cientistas
2004 com o intuito de
e das empresas que
formar uma rede
produzem inovação.
internacional para
Também participam
discutir o progresso da
representantes da mídia
ciência e da tecnologia
e vencedores do Prêmio
em benefício da
Nobel”, disse Varela.
O Tecnocentro: ambição de mudar ênfase agroexportadora da economia da Bahia
Omnis alibusa ndisimporem. Odissum autem que nobis destinctet quate plias sit
Parque tecnológico na Bahia
3
A primeira fase do Parque Tecnológico da
deral da Bahia (UFBA) e da Universidade
da Unicamp, que lidera a parceria. Gonça-
Bahia, em Salvador, foi inaugurada no dia
do Estado da Bahia (Uneb). A Universida-
lo é graduado pela UFBA. O parque tecno-
19 de setembro. A iniciativa procura con-
de Estadual de Campinas (Unicamp) firmou
lógico vai espalhar-se por uma área de 581
centrar empresas e instituições de pesqui-
um convênio com a Secretaria de Ciência,
mil metros quadrados e está dividido em
sa e de inovação, tornando o estado uma
Tecnologia e Inovação para criar no polo
83 lotes, sendo 22 públicos e 61 privados.
referência na área de tecnologia, numa
uma unidade de bioinformática, cujos equi-
Já abriga 25 empresas, sendo 9 incubadas
busca por mudar a ênfase agroexportado-
pamentos estão sendo adquiridos. “A in-
e 16 consolidadas. A segunda fase, que
ra da economia baiana. O prédio inaugu-
tenção é nuclear um grupo para dar apoio
envolve a construção de infraestrutura de
rado, batizado de Tecnocentro, custou R$
a iniciativas na área de biologia molecular”,
laboratórios, de uma escola de iniciação
53 milhões e abriga empresas, como a IBM,
diz Gonçalo Amarante Guimarães, profes-
científica e de um museu, tem conclusão
a Portugal Telecom e a Ericsson Inovação,
sor do Instituto de Biologia e pesquisador
prevista para dezembro de 2014, com in-
além de instalações da Universidade Fe-
do Laboratório de Genômica e Expressão
vestimentos de R$ 59 milhões.
PESQUISA FAPESP 200 | 13
Tecnociência Ao chefe, as lhamas
2
Quadro Flores em um vaso azul e amostra da região alterada: crosta cinza se formou sobre tinta amarela
1
Verniz danifica um Van Gogh
A carne de lhama era
e noroeste argentino”,
um alimento reservado
diz o arqueólogo
prioritariamente aos
brasileiro Mark Hubbe,
homens, particularmente
da Ohio State University,
a indivíduos de grande
principal autor de um
prestígio entre os povos
artigo científico que
que habitavam os oásis
analisou os hábitos
da árida região de San
alimentares desses
Pedro de Atacama,
povos (American Journal
no norte do Chile, entre
of Physical Anthropology,
os anos 500 e 1000 d.C..
maio de 2012). Ao lado
Embora o período
de colegas do Brasil
represente o ápice
e do exterior, Hubbe
cultural das antigas
estudou as cáries
sociedades que
e o desgaste presente
ocuparam essa região
na arcada dentária de
andina, as mulheres
109 crânios encontrados
parecem ter tido uma
em três cemitérios
dieta pobre em proteína
pré-históricos do
e rica em carboidrato
Atacama. A menor
– o milho era a base
presença de cáries nos
da alimentação local.
dentes dos indivíduos
“Os homens tiveram
do sexo masculino,
mais acesso a carne,
sobretudo entre os
Descobriu-se a provável
foi observada em 2009,
especialmente aqueles
enterrados com honrarias
causa da alteração de
quando um tratamento
enterrados com objetos
que denotavam seu
cores do quadro Flores
para a conservação
que denotam maior
poder e alta posição
em um vaso azul, pintado
do quadro revelou a
status social e maior
social, é interpretada
por Van Gogh em 1887.
formação de uma crosta
proximidade ao
como um sinal de que
Antes brilhantes, as flores
cinza e opaca sobre
estado Tiwanaku, que,
sua alimentação era
amarelas assumiram tons
partes da pintura feitas
entre 400 e 1000 d.C.,
rica em carne. Afinal,
de laranja-acinzentado
com tinta amarela
exerceu grande
uma alimentação
com o tempo. O dano foi
contendo cádmio.
influência em toda a
baseada em carboidrato
causado por um verniz
Recentemente se
região do altiplano da
tende a desgastar
aplicado sobre a tela para
descobriu que o amarelo
Bolívia, norte do Chile
mais os dentes.
proteger a pintura. Koen
cádmio das pinturas
Janssens, da Universidade
não envernizadas
de Antuérpia, na Bélgica,
formava cristais
identificou a origem
esbranquiçados em
do problema ao usar
contato com o ar. No
feixes de raios X para
caso da tela do holandês,
analisar amostras da
porém, observou-se
obra, adquirida no início
que a tinta reagiu com
do século XX pelo
compostos do verniz,
Museu Kröller-Müller,
entre eles o chumbo
na Holanda. Margje
(Analytical Chemistry,
Leeuwestein, responsável
agosto de 2012).
pela conservação de
Não se sabe se é possível
pinturas do museu,
remover o pigmento
contou que a alteração
sem danificar a obra.
14 | outubro DE 2012
Uma câmera para a energia escura Desde 12 de setembro passado, o estudo
Tololo, nos Andes chilenos. Nesse dia,
Survey (DES, levantamento de energia
da energia escura – um misterioso com-
depois de oito anos de planejamento e
escura), tocado por 23 instituições de
ponente que representaria 73% do Cosmo
construção, a DECam entrou em operação
pesquisa dos Estados Unidos, Espanha,
e pode ser uma peça-chave para entender
e fez as primeiras imagens do céu, como
Reino Unido, Alemanha e Brasil. Em cinco
por que o Universo está se expandindo
a da galáxia espiral barrada NGC 1365,
anos, o DES pretende produzir imagens
de forma acelerada – conta com os ser-
situada a mais de 60 milhões de anos-luz
detalhadas em cores de 1/8 do céu para
viços de uma supercâmera instalada no
da Terra. Dotada de 62 CCDs, a câmera
descobrir e medir propriedades de 300
telescópio Blanco, um dos equipamentos
tem resolução de 570 megapixels e faz
milhões de galáxias, 100 mil aglomerados
do Observatório Inter-americano Cerro
parte do projeto internacional Dark Energy
de galáxias e 4 mil supernovas.
Frutas em três dimensões
fotos 1 e 2 Kröller-Müller Museum e G. Van der Snickt/University of Antwerp 3 Dark Energy Survey Collaboration 4 Arquivo INT ilustraçãO daniel bueno
3
Gene favorece hanseníase
Galáxia NGC 1365: um dos primeiros objetos captados pela DECam, de 570 megapixels
Embalagens retornáveis
das frutas”, diz Marcos
concebidas sob
Henrique Garamvolgyi,
medida para acomodar
designer de projeto
adequadamente frutas
da divisão de desenho
como caqui, manga,
industrial do INT.
mamão e morango,
O processo de
reduzindo perdas no
desenvolvimento das
transporte pós-colheita,
embalagens envolve a
foram desenvolvidas
digitalização das frutas
pelo Instituto Nacional
em scanner 3D e testes
de Tecnologia (INT),
com amostras impressas
em parceria com o
em máquinas de
Centro de Tecnologia de
prototipagem rápida,
Alimentos da Embrapa
que permitem criar
Agroindústria de
e testar os invólucros
Alimentos. As perdas de
mesmo fora das safras
A suscetibilidade
do Paraná (UFPR),
à hanseníase pode estar
da Pontifícia
frutas e hortaliças pelos
dos frutos. A embalagem
associada a diferentes
Universidade Católica
sistemas utilizados
é feita de plástico e
formas, denominadas
do Paraná (PU-CPR )
atualmente, como caixas
fibras vegetais e tem
polimorfismos, que
e colegas da Dinamarca
de madeira, de papelão
uma base articulada
o gene ficolin 1 (FCN1)
e Alemanha (Journal
ou plástico, chegam a
dobrável que pode ser
pode apresentar numa
of Clinical Imunology,
39%, segundo dados
retornada ao produtor.
população. O gene
1º de setembro de 2012).
da Embrapa. “Criamos
A bandeja é fina e
produz uma proteína,
O trabalho envolveu
as embalagens de
as concavidades têm o
a M-ficolina, cujos níveis
715 indivíduos do Brasil
acordo com a fisiologia
tamanho exato da fruta.
parecem guardar
(315 com lepra e
alguma relação com
400 do grupo controle)
a propensão a ter a
e 296 dinamarqueses
doença. De acordo
sadios. Depois de
com a variante do gene
sequenciarem o gene
presente no DNA,
em questão nessa
um indivíduo pode estar
amostra populacional,
mais protegido ou
os pesquisadores
exposto à infecção
encontraram
pelo Mycobacterium
10 variantes do FCN1
leprae, agente
e perceberam que
causador da hanseníase.
algumas dessas
A conclusão é de
formas aparentemente
um estudo feito
favorecem o
por pesquisadores da
surgimento
Universidade Federal
da hanseníase.
Digitalização das frutas em 3D: embalagem sob medida para cada fruta PESQUISA FAPESP 200 | 15
Geleiras e água no Himalaia
1
O incômodo som da apneia
Nova forma de dignosticar o distúrbio: gravar e analisar o padrão do som do ronco
As geleiras da porção
de vários importantes
central e oriental do
sistemas de rios, como
Himalaia, a mais alta
o Ganges, Mekong,
cadeia montanhosa
Yangtze e Amarelo, que
do planeta, parecem
fornecem água para
estar derretendo a ritmo
consumo da população
acelerado enquanto
local e também para
as do setor ocidental se
irrigação. No entanto,
mantêm aparentemente
com exceção das zonas
estáveis ou podem estar
mais altas, cujas bacias
até crescendo. Diante
dependem basicamente
desse quadro complexo,
da água fornecida
as consequências das
pelas geleiras, sobretudo
mudanças climáticas
na estação mais seca,
para o abastecimento
o eventual derretimento
de água potável do
dos glaciares não
1,5 bilhão de asiáticos que
deve afetar de forma
Para facilitar o diagnóstico
10 segundos e menores
de apneia obstrutiva,
que 100 caracterizam
moram nos oito países
significativa os recursos
distúrbio caracterizado
parada total da
situados nessa região
hídricos disponíveis no
por paradas respiratórias
respiração e apneia.
permanecem incertas.
Himalaia nas próximas
durante o sono, o
Atualmente, o diagnóstico
As conclusões são de
décadas. Segundo o
Instituto de Física (IF)
é feito com um exame de
um relatório divulgado
relatório, o volume de
da Universidade de São
polissonografia, em que
em setembro pelo
água encontrada nas
Paulo (USP) desenvolveu
o paciente precisa dormir
National Research
terras baixas depende
um novo método que
em um hospital ou
Council dos Estados
mais da quantidade de
consiste em captar com
instituto especializado
Unidos. As montanhas,
chuva de monção
um gravador de áudio
ligado a equipamentos
que se estendem por mais
e neve que cai na região
os sons emitidos pelo
de monitoramento, um
de 2 mil quiômetros,
do que da retração
paciente enquanto ele
procedimento com alto
formam as cabeceiras
das geleiras locais.
dorme (Physica A, on-line
custo. A nova técnica,
25 de agosto de 2012).
desenvolvida pelos
Os sons são processados
professores Adriano
e medidos em decibéis
Alencar, do IF, e Geraldo
por um computador e
Lorenzi-Filho, coordenador
transformados em gráfico
do Laboratório do
por um sistema chamado
Sono da Faculdade de
Índice de Intervalos
Medicina da USP, foi
Temporais de Ronco.
testada em 17 pacientes
Intervalos entre roncos
e utilizada em pesquisas
maiores do que
de fonoaudiologia.
A rã Xenopus laevis: célula da retina pode levar a sensor de luz
Um detector de fótons ultrassensível
2
Pesquisadores de Cingapura produziram
micas quando exposta à luz e gera uma
foi possível diferenciar outras proprieda-
um detector de luz ultrassensível usando
corrente elétrica. Em um dos testes, os
des do laser. Segundo os pesquisadores,
uma célula extraída do olho da rã Xenopus
pesquisadores usaram um feixe de laser
cada fóton interage com uma única mo-
laevis. Com uma micropipeta, a equipe de
para estimular o bastonete e mediram a
lécula de rodopsina (Physical Review Let-
Leonid Krivitsky coletou um bastonete –
intensidade da corrente à medida que
ters, setembro de 2012). Isso significa que
célula da retina que detecta a intensidade
alteravam o número de partículas de luz
os bastonetes são sensíveis a ponto de
de luz – e o submeteu a experimentos com
(fótons). Como esperado, quanto mais
detectar uma única partícula de luz. Esse
laser. Os bastonetes contêm uma proteí-
fótons, maior a intensidade da corrente.
trabalho pode levar à criação de sensores
na (rodopsina) que sofre alterações quí-
O grupo viu ainda que, com os bastonetes,
híbridos.
16 | outubro DE 2012
fotos 1 Paula Muniz 2 Bento Rauscher/Wikimedia Commons 3 John Pitt 4 léo ramos ilustraçãO daniel bueno
“Injeção” de ultrassom Engenheiros do
de compostos pela derme
e indolor, a penetração
Massachusetts Institute
(Journal of Controlled
de compostos se torna
of Technology (MIT)
Release, on-line 22 de
mais fácil. Em testes
acreditam ter encontrado
agosto de 2012). O feixe
na pele de porcos, o
uma forma de melhorar
duplo de ultrassom gera
novo método melhorou
a permeabilidade da
na superfície da pele
em 10 vezes a absorção
pele e, assim, facilitar
diminutas bolinhas de
de glicose e em quatro
a entrada de drogas no
água, que, ao explodirem,
vezes a do carboidrato
organismo. Por meio da
dão origem a ínfimos
inulina. “O método pode
aplicação de dois feixes
jatos de líquido
ser usado para aplicar de
distintos de ultrassom,
capazes de desgastar
forma não invasiva uma
um de alta frequência
ligeiramente a derme.
série de drogas, insulina
e outro de baixa,
Quando ocorre essa
e também antígenos
conseguiram tornar mais
microabrasão, um
para vacinas”, diz Carl
eficiente o transporte
processo temporário
Schoellhammer, do MIT.
Cimento leve e poroso, porém resistente
Novo fungo na castanha-do-pará
Um cimento com
Os pesquisadores
Uma nova espécie de
aflatoxinas. “Essa
menor tempo de
queriam um material
fungo foi descoberta
característica poderá
endurecimento e a
mais leve e poroso,
na castanha-do-pará.
auxiliar a compreender
mesma consistência dos
com o controle do tempo
Batizado de Aspergillus
melhor a via
usados tradicionalmente
de endurecimento.
bertholletius em
biossintética das
na construção civil
Alguns aditivos que
referência ao nome
aflatoxinas e fornecer
foi desenvolvido pelos
condicionam o tempo
científico da castanheira
parâmetros para
professores Márcio
de reação química foram
(Bertholletia excelsa),
controlar essa toxina que
Raymundo Morelli,
incorporados ao fosfato
o microrganismo foi
tem sido detectada em
do Departamento de
de magnésio. “Por
identificado e descrito
castanhas do Brasil”,
Engenharia de Materiais
meio de uma formulação
por pesquisadores do
diz Marta H. Taniwaki,
da Universidade Federal
apropriada conseguimos
Brasil, Europa, Estados
do Instituto de
de São Carlos (UFSCar),
obter um material
Unidos e Austrália (Plos
Tecnologia de Alimentos
e Ana Maria Costa
composto por uma
One, agosto de 2012).
(Ital), de Campinas, uma
Segadães, da
estrutura com bolhas,
A espécie não fabrica
das autoras do estudo.
Universidade de Aveiro,
interconectada, que
aflatoxina, um tipo de
A descoberta da nova
em Portugal. “O trabalho
se solidifica no tempo
substância que, em alta
espécie atesta a grande
começou há oito anos,
desejado, minutos ou
quantidade, pode ser
biodiversidade de fungos
quando me interessei
horas, com excelente
cancerígena. No entanto
encontrados no Brasil,
em desenvolver
resistência mecânica e
produz o composto
sobretudo na região
um concreto com uma
porosidade apropriada
O-metilesterigmatocistina,
amazônica, segundo
estrutura porosa, mas
para uso como isolante
precursor das
a pesquisadora.
não convencional”,
térmico ou acústico”,
afirma Morelli. A escolha
diz Morelli. Ele pode ser
recaiu sobre o fosfato
utilizado tanto em
de magnésio, material
blocos de alvenaria de
usado na Segunda
residências como em
Guerra Mundial como
pavimentos de áreas
reparo rápido de
externas, já que,
aeroportos. “Esse tipo de
por ser poroso, permite
cimento, além de ter alta
a drenagem da água.
resistência mecânica,
O projeto resultou em
endurecia rapidamente.”
três patentes depositadas
Mas isso não bastava.
em Portugal e no Brasil.
O novo fungo e as castanhas: Aspergillus bertholletius não produz aflatoxinas
4
3
PESQUISA FAPESP 200 | 17
capa
O início e o fim dos
raios cósmicos Novos estudos ampliam o conhecimento sobre possíveis origens dessas partículas subatômicas, que são aceleradas até atingir uma velocidade muito próxima à da luz, atravessam o espaço intergaláctico e, ao chegar à Terra, se desfazem ao colidir com outras partículas |
Carlos Fioravanti
ilustração drum
A
formação e o comportamento dos raios cósmicos – partículas que chegam à Terra à velocidade muito próxima à da luz e colidem com as moléculas de nitrogênio e oxigênio da atmosfera terrestre, resultando em trilhões de novas partículas – estão sendo detalhados em dois estudos recentes. Um dos trabalhos, de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e dos Estados Unidos, indicou que os raios cósmicos poderiam se formar em consequência do encontro e da aniquilação de campos magnéticos de polaridades opostas em atmosferas de estrelas e de objetos cósmicos compactos como buracos negros de massas estelares ou núcleos ativos de galáxias. Para os pesquisadores responsáveis pelo estudo, esse mecanismo oferece uma alternativa ao modelo mais aceito de formação de raios cósmicos e poderia explicar as origens extragalácticas – ainda incertas – daqueles de energia mais alta. O outro estudo – da equipe do Observatório Pierre Auger, com a participação de físicos de universidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia – analisa as colisões dos raios cósmicos de alta energia com os núcleos dos átomos da atmosfera e apresenta a área de interação dos raios cósmicos de energia de 1018 a 1018,5 eV (elétron-Volt) com os núcleos dos átomos da atmosfera. Nesses níveis de energia, a área de interação dessas partículas – ou seção de choque – corresponde a 5,05 x 10-29 metros quadrados (o número zero seguido da vírgula e por 28 zeros antes do número 505). “Nenhum outro experimento havia feito essa medida da seção de choque próton-ar ou da seção de choque próton-próton nessas energias altíssimas”, diz Carola Dobrigkeit Chinellato, pesquisadora do Instituto de Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenadora da equipe paulista no Observatório Pierre Auger. Construído de 2000 a 2008 ao pé dos Andes, em uma planície semidesértica dos arredores de Malargüe, ao sul da cidade de Mendoza, na Argentina, o Observatório Pierre Auger é o resultado de uma colaboração internacional que reúne hoje cerca de 500 físicos de 18 países. É o maior observatório de raios cósmicos em funcionamento, com 1.660 detectores de superfície, formados por tanques cilíndricos instrumentados de 3,7 metros de diâmetro por 1,2 de altura, cada um a uma distância de 1,5 quilômetro do outro, formando uma malha triangular. Espalhados por 3,3 mil quilômetros quadrados – o dobro da área da cidade de São Paulo –, os detectores de superfície funcionam de PESQUISA FAPESP 200 | 19
imagem nasa
Como um raio cósmico se forma... Prótons Campo magnético
O encontro e a aniquilação de campos magnéticos de polaridade oposta
buraco negro
podem acelerar prótons à velocidade da luz, tornando-os raios
Disco de acresção
modo integrado com os 27 telescópios de fluorescência, os chamados olhos de mosca, capazes de registrar a tênue luz emitida pelas moléculas de nitrogênio da alta atmosfera quando excitadas pelas partículas do chuveiro iniciado pelo raio cósmico que chegou à Terra. Os leitores desta revista acompanharam a construção do Observatório Pierre Auger, desde os bastidores das negociações, apresentados em agosto de 2000 na matéria de capa de Pesquisa Fapesp. Os raios cósmicos foram descobertos há 100 anos pelo físico austríaco Victor Hess, ganhador do Prêmio Nobel de 1936. Agora, com esses dois estudos recentes, o comportamento dessas partículas torna-se menos nebuloso, embora sua composição permaneça duvidosa: há indicações de que os raios cósmicos na faixa de energia até 1018,5 eV devem ser prótons, enquanto os de energia mais alta talvez sejam núcleos de elementos químicos pesados, como ferro.
CAMPOS MAGNÉTICOS Na Via Láctea, as explosões conhecidas como supernovas, que marcam o fim de estrelas massivas, liberam uma quantidade de energia suficiente para explicar a formação dos raios cósmicos de baixa e alta energia, enquanto os de energia mais alta, acreditava-se, poderiam resultar de objetos mais distantes como os núcleos ativos de galáxias, explica Elisabete de Gouveia Dal Pino, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP. Segundo ela, os prótons que formam o gás do meio interestelar poderiam ser acelerados a velocidades próximas à da luz, ganhando o status de raios cósmicos, ao colidirem com as chamadas ondas de choque, que se formam nas explosões 20 | outubro DE 2012
Campo magnético do buraco negro
Campo magnético do disco de acresção
de supernovas e causam variações abruptas de velocidade, pressão e Raios cósmicos temperatura nas regiões vizinhas, poderiam se como as causadas pela passagem de um avião a jato ou pela explosão de formar também uma bomba atômica. Os físicos supõem que outra fonte no gás de raios cósmicos podem ser as ondas de choque que resultam do impacto interestelar das extremidades dos feixes de mae no meio téria, chamados jatos, emitidos pelos núcleos de galáxias ativas com o amintergaláctico, biente. O problema é que as extremidades dos jatos dos núcleos ativos de que são galáxias podem ser insuficientes para gerar as partículas com energia acima turbulentos e de 1018 eV. “Os raios cósmicos têm de magnetizados ser capazes de sair do confinamento gerado pelos campos magnéticos sem perder muita energia devido à interação com os fótons do meio onde foram gerados”, diz Elisabete. “Outra dificuldade, encontrada com observações mais recentes de radiação gama de núcleos ativos de galáxias, é que os raios cósmicos responsáveis por essa emissão são produzidos em regiões ultracompactas onde choques são aparentemente inexistentes.” Elisabete e Alexander Lazarian, da Universidade de Wisconsin, Estados Unidos, procuraram outros mecanismos de formação de raios cósmicos de energia altíssima e, em 2005, apresentaram uma proposta teórica que ampliava suas possíveis fontes. Agora, por meio das chamadas simulações numéricas magneto-hidrodinâmicas, apresentadas em junho deste ano na revista Physical Review Letters, Grzegorz Kowal, astrofísico polonês que
infográfico drüm
cósmicos
... e se desfaz 1 Ao chegar à Terra, o raio cósmico de
Raio cósmico primário
altíssima energia colide com um núcleo da alta atmosfera. As partículas se chocam entre si sucessivamente, formando um chuveiro Chuveiro atmosférico
Balão 30.000 m
Concorde 15.000 m
Balão de Victor Hess 5.300 m
com trilhões de novas partículas
2 As partículas do
3 As partículas são
chuveiro excitam
também registradas
moléculas de
quando interagem
nitrogênio do ar que
com a água dos
emitem uma tênue
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luz azul que
detectores de
pode ser captada
superfície e
pelos telescópios
produzem luz. Um
de fluorescência
computador central reúne as informações
Mont Blanc 4.807 m
dos telescópios e dos detectores para definir a energia e a direção do raio cósmico que deu
infográfico drüm
imagem adaptada do ©cern
origem ao chuveiro
trabalha no IAG desde 2009, Elisabete e Lazarian confirmaram as hipóteses do artigo de 2005 e mostraram que os raios cósmicos poderiam se formar nas atmosferas magnetizadas, também chamadas de coroas, que circundam buracos negros e seus discos de acresção. “A ideia é simples”, assegura Elisabete. “Como resultado do encontro rápido entre linhas de campo magnético de polaridades opostas, a energia magnética liberada é capaz de acelerar partículas inicialmente de baixa energia a velocidades relativísticas. O processo é muito parecido com o que ocorre com partículas térmicas em ondas de choque. Quando aprisionadas entre duas linhas de campo magnético de polaridades opostas, elas colidem várias vezes com flutuações magnéticas, ganhando progressivamente
energia a partir dessas colisões até adquirirem velocidades próximas à da luz e finalmente escaparem dessa região de aceleração promovidas a raios cósmicos.” Essa proposta, diz ela, foi inspirada na intensa atividade magnética do Sol. Frequentemente, tubos curvos de linhas de campo magnético, os loops, com uma extensão aproximada de 10 mil quilômetros, emergem na superfície do Sol, a chamada coroa solar. Os loops podem ter polaridade positiva ou negativa, como as linhas magnéticas da Terra. Quando colidem, os loops de polaridade oposta liberam energia, produzem calor e aceleram os prótons que estiverem por lá, convertendo-os em raios cósmicos. Segundo Elisabete, esse processo pode originar boa parte dos raios cósmicos de baixa energia, até 1010 eV, que chegam à Terra. PESQUISA FAPESP 200 | 21
Outros encontros O outro estudo também trata de colisões de raios cósmicos a altíssimas energias, examinadas por meio do Observatório Pierre Auger na Argentina. Quando um raio cósmico de altíssima energia entra na atmosfera e colide com suas partículas, novas partículas são produzidas. As novas partículas, por sua vez, continuarão se propagando na atmosfera e também poderão sofrer novas colisões e gerar novas partículas. A cascata prossegue enquanto as partículas do chuveiro têm energia suficiente para produzir outras. “Quando as partículas não mais tiverem energia suficiente, o número de partículas do 22 | outubro DE 2012
imagem nasa
E
lisabete, Lazarian e Kowal concluíram que os campos magnéticos de polaridades opostas, quando envoltos por movimentos descontínuos chamados de turbulência, podem se encontrar e se aniquilar rapidamente, acelerando os prótons próximos de baixa energia e transformando-os em raios cósmicos, também nas coroas de gás magnetizado próximas a buracos negros ou estrelas – ou, de modo geral, “em regiões compactas altamente magnetizadas”, diz ela. Nessas regiões, que podem ter centenas de milhares de quilômetros de extensão, os prótons podem ampliar sua energia em 10 milhões de vezes em cerca de mil horas (ou 41 dias), à medida que colidem com os campos magnéticos, de acordo com esse estudo. Os pesquisadores encontraram outra possibilidade, que amplia ainda mais os possíveis berçários de raios cósmicos. De acordo com esse estudo, embora com um ganho menor de energia, os raios cósmicos poderiam se formar também no gás interestelar ou no meio intergaláctico, que são turbulentos e magnetizados. Segundo Elisabete, sob o efeito da turbulência, as regiões magnetizadas do gás poderiam se encontrar e se aniquilar, transferindo a energia para as partículas próximas. A etapa seguinte do trabalho é combinar esses resultados com mecanismos físicos de perdas energéticas dos raios cósmicos e examinar observações de telescópios que possam confirmar ou corrigir essas hipóteses. “Precisamos ver qual é o mecanismo dominante de formação de raios cósmicos de energia ultra-alta”, diz ela. Até agora as fontes das partículas mais energéticas limitavam-se a ondas de choques nos jatos de galáxias ativas. Enquanto as ondas de choques de explosões de supernovas parecem ser o principal mecanismo de produção dos raios cósmicos na nossa galáxia com energias até 1016-1017 eV e o Sol aparece como uma das principais fontes de energia mais baixa (109-1010 eV), diz ela, “as fontes dos raios cósmicos de mais alta energia permanecem um mistério e o mecanismo de reconexão magnética aparece como uma nova possibilidade atraente”.
chuveiro terá atingido o seu máximo e, a partir daí, poderá apenas diminuir”, diz Carola Chinellato, da Unicamp. Segundo ela, a energia do raio cósmico original será repartida entre esse enorme número de partículas produzidas; portanto, se ao final 1 trilhão de partículas tiverem sido produzidas, a energia de cada uma delas será aproximadamente 1 trilionésimo da energia do raio cósmico original. Medidas recentes do Observatório Pierre Auger permitiram, pela primeira vez, detalhar as interações entre partículas em uma energia ainda não alcançada nos aceleradores de partículas. Em um trabalho publicado em agosto na revista Physical Review Letters, a equipe do observatório examinou colisões de 11.628 raios cósmicos com energia entre 1018 e 1018,5 eV com os núcleos de nitrogênio ou oxigênio da atmosfera, registradas de dezembro de 2004 a setembro de 2010. Segundo Carola, resultados anteriores do Observatório Pierre Auger já haviam indicado que, nesse intervalo de energia, as partículas cósmicas que chegam à Terra devem mesmo ser prótons. Analisando as altitudes em que os chuveiros mais penetrantes na atmosfera apresentam o maior número de partículas, os pesquisadores determinam a seção de choque inelástica – uma grandeza física fundamental que mede a probabilidade de interação de uma partícula com outra – em colisões de prótons com núcleos do ar. No caso de um próton colidindo com os núcleos de ar, essa área de interação é de 5,05 x 10-29 metros quadrados. “Quanto maior a seção de choque, maior a probabilidade de uma colisão ocorrer”, diz ela. Na verdade, as coisas não são tão simples
Cassiopeia, remanescente de supernova: agora, a aceleração de prótons é provavelmente o resultado da onda de choque formada pelos movimentos da camada externa de gás
no mundo das partículas. “Para interagir, as partículas não precisam se tocar.” “Não existe contato entre as partículas”, alerta Marcio Menon, também pesquisador da Unicamp. Provavelmente, acreditam os físicos, são componentes dos prótons chamados glúons que saltam para outras partículas, passando informações sobre velocidade e modificando o comportamento delas. Menon utilizou os valores obtidos pela equipe do Observatório Pierre Auger para comparar com valores medidos por outros experimentos e propor ajustes nas fórmulas matemáticas que regem a variação da seção de choque entre partículas elementares. A medida da seção de choque das colisões entre prótons e os núcleos da atmosfera obtida pelos telescópios do Observatório Pierre Auger está também contribuindo para estimar o comportamento dos encontros entre prótons induzidos nos túneis do Grande Colisor de Hádrons (LHC), sediado em Genebra. O observatório na Argentina e o LHC foram construídos para, cada um a seu modo, ampliar o conhecimento sobre as propriedades das partículas elementares. A equipe do Observatório Pierre Auger trabalha com colisões naturais de partículas com energias 1 milhão de vezes maiores que as maiores energias alcançadas hoje no LHC, mas os raios cósmicos colidem com outras, as do ar, praticamente paradas, enquanto nos túneis do LHC são dois feixes de prótons bastante acelerados que se encontram em colisões frontais. Segundo Carola, nessa faixa de energia, a energia total da colisão de um próton dos raios cósmicos com um núcleo do ar é apenas cerca de oito vezes maior do que a de uma colisão entre dois prótons no LHC.
À medida que a energia aumenta, os prótons se tornam maiores e mais opacos, e a área de interação entre eles também aumenta
Colisões entre prótons A partir do resultado da medida da seção de choque inelástica próton-ar, os pesquisadores do Observatório Pierre Auger calcularam a seção de choque total em colisões próton-próton e concluíram que a área de interação entre partículas continua aumentando com a energia. Segundo Carola, esse aumento já havia sido observado em energias muito mais baixas há 40 anos, também no Centro Europeu de Energia Nuclear (Cern), e de maneira mais indireta em experimentos envolvendo raios cósmicos. “Surpreendentemente”, diz ela, “o resultado observado indicava que o próton ficava maior e mais opaco à medida que a sua energia aumentava”. Atualmente o LHC, em operação no Cern, representa uma nova oportunidade para seguir estudando o comportamento da seção de choque próton-próton em experimentos realizados com
aceleradores, agora em energias mais altas, da ordem de 7 x 1012 eV, quase 100 vezes acima da energia alcançadas há 40 anos. Os primeiros resultados obtidos em 2011 no experimento Totem, no Cern, que envolvem também colisões próton-próton, confirmaram que o próton continua se tornando maior com o aumento da energia, e, consequentemente, que a seção de choque total continua crescendo. Segundo Carola, os pesquisadores do experimento Totem mediram a seção de choque em colisões elásticas próton-próton e, a partir dela, estimaram a seção de choque total próton-próton, aplicando um modelo teórico. O valor publicado é de 9,83 x 10-30 metros quadrados para a energia total da colisão de 7 x 1012 eV, que ela compara com o valor da seção de choque total na colisão próton-próton obtida pelos pesquisadores do Observatório Pierre Auger, de 1,33 x 10-29 metros quadrados, a energias ainda mais altas, correspondentes a 5,7 x 1013 eV. “O próton continua ficando maior e mais opaco a essas energias”, comenta Carola. “Em essência”, diz ela, “o que estamos estudando no LHC e no Auger é algo muito similar ao que Rutherford estudava no início do século passado”. Em 1911, na Inglaterra, o físico Ernest Rutherford fez uma série de experimentos, atirando partículas alfa, de carga positiva, contra uma folha de ouro, concluindo que o átomo era formado por um núcleo minúsculo cercado por uma região muito mais extensa em que circulam os elétrons. “A diferença é que a escala de energia é muito mais alta e os experimentos são muito mais interessantes e mais complicados. E é fantástico que o Observatório Pierre Auger consiga medir uma grandeza tão fundamental partindo da observação de chuveiros atmosféricos.” n Projetos 1. Investigação de fenômenos de altas energias e plasmas astrofísicos: teoria, observação e simulações numéricas – nº 06/50654-3; 2. Reconexão magnética e aceleração de partículas em fontes astrofísicas e meios difusos – nº 09/50053-8; 3. Estudo dos raios cósmicos de mais altas energias com o Observatório Pierre Auger – nº 10/07359-6. Modalidades: 1. e 3. Projeto Temático; 2. Bolsa de pósdoutorado. Coordenadoras: 1. Elisabete Maria de Gouveia Dal Pino – IAG/USP; 3. Carola Dobrigkeit Chinellato – IFGW/Unicamp. Bolsista: 2. Grzegorz Kowal – IAG/USP. Investimentos: 1. R$ 366.429,60 (Fapesp); 2. R$ 241.582,45 (Fapesp); 3. R$ 3.182.417,76 (Fapesp).
Artigos científicos DE GOUVEIA DAL PINO, E.M. e LAZARIAN, A. Production of the large scale superluminal ejections of the microquasar GRS 1915+105 by violent magnetic reconnection. Astronomy & Astrophysics. v. 441, p. 845-53. 2005. KOWAL, G. et al. Particle acceleration in turbulence and weakly stochastic reconnection. Physical Review Letters. v. 108, n. 24, p. 241.102. 2012. ABREU, P. et al. Measurement of the Proton-Air Cross Section at √s = 57 TeV with the Pierre Auger Observatory. Physical Review Letters. v. 109, n. 6, p. 062002. 2012. PESQUISA FAPESP 200 | 23
Léo Ramos
Marco Antonio Zago 24 | outubro DE 2012
entrevista
Conexão com a sociedade Mariluce Moura e Neldson Marcolin
Acostumado tanto com os estudos genéticos e hematológicos quanto com os meandros sinuosos da política científica, Marco Antonio Zago assumiu a Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade de São Paulo (USP) em 2010 e logo deparou com um desafio. Como fazer com que os mais bem-sucedidos pesquisadores voltassem a se interessar mais pela universidade responsável por sua formação?
idade 65 anos especialidade Hematologia e genética formação Universidade de São Paulo (graduação e doutorado) Universidade de Oxford (pós-doutorado) instituição Universidade de São Paulo
Ele identificou em muitos cientistas da casa certo afastamento da instituição. Para Zago, é importante criar condições para que todos se conectem com mais vigor à universidade e, desse modo, à própria sociedade. “É preciso dar certa coerência à pesquisa dentro da universidade”, acredita. As medidas adotadas pelo pró-reitor aparentemente tomaram o rumo desejado por ele. A criação dos multidisciplinares Núcleos de Apoio à Pesquisa (NAPs), por exemplo, calcados no modelo dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) – programa criado pela FAPESP em 2000 –, atraiu 118 grupos de pesquisadores desde 2010. A Agência USP de Inovação está mais próxima dos pesquisadores e os auxilia nas questões relativas às patentes. Os novos professores que ingressam na universidade recebem estímulos para buscar recursos externos e integrar as equipes de pesquisa. “Sem dúvida, conseguimos melhorar a universidade em alguns aspectos”, diz Zago. A boa posição alcançada em todos os rankings de avaliação de universidades comprova a avaliação – a despeito do gigantismo da USP, algo incomum nas melhores instituições que investem na pesquisa científica. Marco Antonio Zago formou-se na Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto. Passou parte da carreira de pesquisador também trabalhando como médico. Foi diretor clínico do Hospital das Clínicas e diretor científico do Hemocentro, ambos de Ribeirão. Em 2007 presidiu o Conselho de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e criou os Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs), uma tentativa de mudar o modelo de produção científica do país. PESQUISA FAPESP 200 | 25
Como pesquisador, contribuiu para o estudo da anemia falciforme e da talassemia – atuou fortemente para estabelecer métodos de diagnósticos e de tratamento dessas doenças. Passou a estudar genética de populações e demonstrou de quais regiões da África vieram os escravos trazidos ao Brasil. Também teve participação destacada em genômica ao trabalhar no sequenciamento da bactéria Xylella fastidiosa e no genoma do câncer. Líder do Cepid de Terapia Celular, nos últimos anos concentrou seus esforços em estudar células-tronco. Abaixo, os principais trechos da entrevista. Qual a função de um pró-reitor de Pesquisa de uma universidade do tamanho da USP? Entendo que é dar certa direção e unidade à pesquisa que a universidade faz. E quando digo certa direção, não é fazer ou promover pesquisa direcionada, no sentido tradicional do termo, de definir as linhas de pesquisa. Isso não é possível numa universidade como a USP. Somos, em tamanho e em termos de abrangência de área, uma das maiores universidades do mundo. É difícil procurar uma área de conhecimento ou uma subárea de conhecimento que não tenha especialistas qualificados na USP. E, portanto, a atividade de pesquisa é muito heterogênea, tem vários formatos. O que seria então essa “certa direção”? Talvez dar coerência e sinergismo à pesquisa dentro da universidade. Ao chegar aqui, percebi que o sentido de unidade da USP estava reduzido. Os grupos mais bem-sucedidos eram aqueles que se ligavam menos à própria universidade, eles ganhavam independência e alegavam que os seus recursos vinham de fora, e não da própria USP. Havia certo descolamento... É, um descolamento da universidade, que leva a um grau de desagregação. Em que lugar se situaria a USP entre as maiores do mundo? A Unam [Universidade Nacional Autônoma do México] tem 270 mil alunos; a Universidade de Buenos Aires está ao redor disto. São instituições que não têm numerus clausus e, portanto, todo aluno que quiser se inscreve. Por outro lado, quando olhamos as melhores universidades do 26 | outubro DE 2012
mundo – aquelas que todos citam como exemplos de universidade para dar a entender que é lá que nós queremos chegar –, as mais expressivas dos Estados Unidos, da Inglaterra, do Japão e da Coreia do Sul são universidades com 17 mil alunos, em média. E muitas delas têm mais que 60% dos alunos na pós-graduação. E a USP? Temos 91 mil alunos, dos quais 30% na pós-graduação. Uma das características comuns das universidades que têm grande empenho em pesquisa, além do ensino, é a missão de produzir pesquisa científica e transferir conhecimento. A USP se enquadra nisso. É preciso ressaltar o empenho em ensino. Isso é importante porque muitos pensam que sou, às vezes, monomaníaco, pensando que a universidade só deve fazer pesquisa. Não penso assim. Entendo que o papel fundamental da universidade é o de educação, de formar pessoas qualificadas em nível superior. A USP se enquadra e se situa bem entre as universidades de pesquisa? Ela é bem vista por todos os tipos de ranking. Há uma unanimidade de que na América Latina a USP é a primeira universidade. Existem outras boas no Brasil, mas são poucas. O clube de universidades de pesquisa no Brasil é muito pequeno. Como pegar essa universidade múltipla e dar coerência à atividade de pesquisa desenvolvida por tantos grupos com diferentes objetivos? Em primeiro lugar é preciso fazer com que eles voltem a sua atenção novamente para o centro, que é a universidade. E, por meio da universidade, retomem sua relação com a sociedade. Nós não fazemos pesquisa por diletantismo, mas porque buscamos conhecimento novo, que pode ter uma aplicação imediata ou não. Pesquisa não é atividade de laboratório exclusivamente, é toda atividade criativa, inclusive o desenvolvimento da cultura, que é responsabilidade da universidade. Incluindo arte? Artes e humanidades, que representam uma contribuição importantíssima da USP. Se observarmos alguns rankings que subdividem o desempenho da universidade, a USP está muito bem situada nas humanidades. Isto é algo que temos
que promover: um diálogo muito mais intenso entre essas culturas acadêmicas. Quando falo em dar unidade ou coerência, é trazer a atenção dos pesquisadores, principalmente dos mais bem-sucedidos, de volta para a universidade e, através da universidade, para a sociedade. Um dos caminhos que encontramos para isso foi colocar recursos próprios para apoiar pesquisa. Isto nunca houve, de maneira intensa, em nenhuma universidade brasileira. Começou aqui, embora a quantidade de recursos não seja muito vultosa comparada àquilo que a USP já emprega em pesquisa. Investimos cerca de R$ 2 bilhões por ano em pesquisa, embora isso não apareça para as pessoas. Nessa conta estão os recursos postos pela FAPESP e CNPq? Não. Os R$ 2 bilhões são os recursos orçamentários que a USP distribui para suas atividades. Uma parte considerável vai para pagar técnicos, infraestrutura de laboratório, reformas, água, luz, a parcela do tempo integral correspondente a atividade de pesquisa... Tudo é pago pela universidade. Nas universidades americanas esses recursos saem do grant do pesquisador. Ele usa os seus recursos para pagar bolsas, técnicos, a conta do telefone e as reformas do laboratório, tudo. Acontece que a utilização desse dinheiro é diversa. Nós damos a infraestrutura básica e alguns recursos que vêm no holerite e as pessoas não notam. Além disso, há o dinheiro da FAPESP, distribuído em propostas que são submetidas à avaliação externa, em que predomina o mérito. Isso introduz um componente de qualidade para a distribuição do dinheiro. Como é o programa de apoio à pesquisa criado pela Pró-Reitoria? Em dois editais internos, sucessivos, colocamos R$ 73 milhões no primeiro ano de gestão, que foi 2010/2011, e depois mais R$ 73 milhões em 2011/2012. Para isso convidamos os pesquisadores a apresentarem propostas de pesquisas, que seriam analisadas pelo mérito, que contemplassem a formação de um grupo que tivesse duração limitada, e que obrigatoriamente tivesse uma conotação multidisciplinar. Também deveriam ter um foco num problema importante da sociedade, de aplicação imediata ou de análise teórica. Com isso, dos dois editais nós selecionamos 43 no primeiro ano e 75 no segundo, de tal
maneira que nós temos 118 núcleos, ou centros de pesquisa. Demos a eles o nome de NAP, Núcleo de Apoio à Pesquisa. De alguma forma os NAPs se superpõem a Cepid e INCTs? Vocês estão falando sempre com o mesmo indivíduo. É claro que a ideia de as pessoas se agregarem ao redor de um tema surgiu daí. Eu coordeno um Cepid desde 2000. Quando fui presidente do CNPq, novamente tínhamos a ideia de tentar fazer algo que tivesse a característica de agregar grupos. Usei o modelo do Cepid e dentro do que era possível fazer em escala nacional nós fizemos os INCTs, que foram e ainda hoje são o maior programa de ciência e tecnologia que o CNPq coordenou. Os NAPs têm então o claro objetivo de agregar mais os pesquisadores na universidade? Sim. Outra providência complementar vem da Agência USP de Inovação, hoje ligada à Pró-Reitoria de Pesquisa. Ela foi inteiramente renovada e tem uma função importante de resolver problemas dos docentes pesquisadores relacionados, por exemplo, com escrever patentes, tratar isto do ponto de vista legal, fazer negociação com empresas que queiram licenciar patentes, entre outras tarefas. Hoje os pesquisadores reconhecem que o panorama mudou. Tanto que a USP é a universidade brasileira que deposita o maior número de patentes no INPI [Instituto Nacional de Patente Industrial].
decisivamente na parte educativa. Se a principal contribuição da universidade é a educação, vamos também formar pessoas com espírito inovador. Não são as patentes que os pesquisadores depositam que vão mudar o panorama do país. O que pode mudar é formar jovens que vão sair da universidade e fazer as coisas acontecerem. Este ano nós criamos um curso de empreendedorismo e há 200 alunos de graduação frequentando. Em 2009, o senhor dizia que os INCTs poderiam mudar o modelo de produção científica no país. Chegou perto disso? Acho que a grandeza e parte dos objetivos foram abandonados. Hoje o projeto nacional de ciência e tecnologia é enviar
Pesquisa não é somente atividade de laboratório, é toda atividade criativa
Esse dado é interessante porque sempre que se fala em patente de universidades a Unicamp aparece com destaque. Há uma tradição porque, de fato, a Unicamp se organizou muito antes da USP. É altamente competente neste aspecto. No período de 2000 a 2006, a USP depositava, em média, 29 patentes novas por ano, que subiu para 81 patentes novas anuais entre 2007 e 2011. Entre 2009 e 2011, os dados acumulados em três anos são: USP 231, UFMG 178 e Unicamp 170. Além disso, a Agência de Inovação ganhou outras funções. Por exemplo, atuar
estudante para o exterior. Quando criamos os INCTs tínhamos um programa do qual participava grande número de componentes, não só como financiadores, mas como planejadores e fazendo o acompanhamento. Convencemos as FAPs [fundações de amparo à pesquisa] a participarem. A primeira a entrar foi FAPESP, depois vieram as outras. Nós tínhamos um primeiro grande programa com um único objetivo, do qual participavam o CNPq, a Capes, as principais FAPs, a Petrobras, o BNDES. Se tivesse seguido esse rumo inicial, nós teríamos um crescimento do papel do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, não só como financiador. Seria possível atrair muito mais dinheiro do que o ministério
é capaz de movimentar e colocar todos para conversar e acertar suas diferenças, os contrapesos de maior influência do Sudeste em relação ao Nordeste e ao Norte, e assim por diante. Quais os outros projetos que podem levar os pesquisadores da USP a se agregarem mais ao redor da universidade? Todo novo professor contratado ganha recursos para atender às suas primeiras necessidades como docente, desde que demonstre ter submetido um pedido de auxílio à pesquisa para a FAPESP. O sucesso desse programa, de 2010 para cá, é enorme, porque quando a gente faz a conta de quanto investimos e o quanto eles trazem de auxílio da pesquisa é sete vezes mais. Vamos falar sobre os rankings. A USP está subindo em todos eles porque a universidade de fato melhorou, ou porque está se expondo de modo mais eficiente? Acho que são as duas coisas. Ela melhorou em alguns aspectos e em outros passou a se apresentar melhor. Há rankings extremamente objetivos, não dependem de análise de opinião, como o Webometrics Ranking of World Universities. Ele trabalha com medidas de tráfego de internet e de quantidade de documentos disponíveis. Nesse ranking nós melhoramos enormemente [a USP está colocada em 15º lugar]. Isso ocorreu porque, em parte, a universidade se organizou melhor. E, em parte, o fato de que ela começa a ser mais conhecida faz com que o tráfego na internet aumente. E os outros rankings? Outros são baseados no desempenho. Em um ranking importante como o de Xangai, que dá um valor importante para a pesquisa, ao olhar os scores vemos que a USP tem um desempenho excepcionalmente bom. No entanto, eles usam alguns critérios que são importantes para o desempate nos primeiros lugares e nesses nós não temos um desempenho tão bom. Eles levam em conta o número de ganhadores de prêmios Nobel que ensinam na universidade, o número de ex-alunos ganhadores de Nobel e da mePESQUISA FAPESP 200 | 27
dalha Fields etc. Isto é importante para desempatar Cambridge, Harvard, MIT. Por outro lado, pode provocar um enorme desequilíbrio se alguma instituição tiver um; por exemplo, se uma universidade mal classificada no ranking contratar um ganhador de Prêmio Nobel, ela vai subir muito. Significa que a universidade melhorou enormemente? Não. E os rankings que medem opinião? Alguns são mais influenciáveis por fatores como esse, sem dúvida. Para avaliar a pesquisa, bem ou mal nós dispomos de dados, como o número de trabalhos publicados, o número de citações e o impacto das revistas. É um conjunto informativo, que dá ideia de como está a pesquisa, pelo menos para as áreas experimentais. Recentemente começaram a surgir outros instrumentos de avaliação que vão aperfeiçoando isso. Há o Google Acadêmico, que já pega muito o impacto das ciências sociais. Às vezes, recorre-se à opinião de especialistas. É só outro critério... Subjetivo, mas é um critério. O ranking mais valorizado, cujo resultado deve sair por estas semanas, é o da Times Higher Education, o THE. Ele deve 30% ao que é chamado de ranking de prestígio. Isto é, eles perguntam para um grande número de pessoas do mundo inteiro qual a avaliação que elas fazem de diferentes universidades. E isso pesa no ranking final. E este aspecto talvez seja o que mais influenciou o fato de a USP ter sido muito exposta, ou exposta de uma maneira melhor. O que o indivíduo de Paris ou de Hong Kong pensa a respeito da USP ou das outras universidades. Esta opinião pode ser influenciada por ele conhecer pessoas daqui, de nos visitar, de pessoas daqui visitarem a universidade dele. Essas opiniões impactam o ranking do THE? Tem um impacto muito positivo. No ranking de prestígio que o THE publicou no início do ano a USP está entre as 70 primeiras do mundo. E certamente vai influenciar o ranking que está para sair porque ele tem 70% de avaliação objetiva, que são indicadores, e 30% de opinião. O que tem sido feito na USP sobre a necessidade da internacionalização da pesquisa brasileira? 28 | outubro DE 2012
A maneira de fazer uma internacionalização mais produtiva é estabelecer alianças com um grupo selecionado de universidades. Na Pró-Reitoria escolhemos algumas delas e procuramos fazer acordos, seminários conjuntos para depois propormos pesquisas bilaterais. No momento estamos fechando um acordo com a Universidade de Toronto, do Canadá, uma das 15 ou 20 melhores do mundo, que inclui conferências conjuntas e editais para pesquisa em colaboração. O mesmo está acontecendo com outras universidades importantes. Vamos dar um salto aqui. Gostaríamos de saber como ficou seu lado pesquisador desde que se tornou pró-reitor? Seria ilusório achar que desde que saí para ser presidente do CNPq, em 2007, e depois para assumir a Pró-Reitoria, eu mantivesse o mesmo tipo de atividade que tinha no laboratório. Esta participação pessoal e intensa no dia a dia de checar o método, de ver um resultado pessoalmente, de refazer, de montar experimentos de bancada, isso não faço mais. Por outro lado, há um grupo de pesquisadores que trabalham comigo há muito tempo e estou quase sempre participando das discussões toda semana. Qual é, do seu ponto de vista, sua maior contribuição à produção do conhecimento feito na USP? Eu dividiria minha contribuição em três períodos fundamentais. Na fase inicial, fui para a Universidade de Oxford fazer um pós-doc e voltei capacitado para realizar pesquisa básica de bioquímica envolvendo hemoglobinas. Lá trabalhei com o David Weatherall, um dos pioneiros na área de hemoglobinopatias. Servindo como médico no sudoeste da Ásia, ele viu grande quantidade de crianças com talassemia, uma forma de doença muito especial, e junto com o bioquímico John Clegg investigou o mecanismo básico da doença. Havia evidências de que isso se deveria a um desequilíbrio na síntese das duas cadeias da hemoglobina, alfa e beta. Elas são muito semelhantes, sintetizadas sobre controle de genes diferentes. Há no indivíduo normal um equilíbrio: duas alfas e duas betas formam uma cadeia de hemoglobina. Os dois desenvolveram um método que permite medir a síntese dessas cadeias. Com isto provaram que na talassemia há
um desequilíbrio. Ao voltar ao Brasil, eu sabia que essas doenças eram comuns aqui e comecei a estudá-las. Encontrei uma quantidade grande de pacientes e consegui estabelecer métodos de diagnóstico e de tratamento dessas doenças. Não tinha como tratar naquela época? Não tinha. Era muito desordenado, não havia protocolos de segmento, de tratamento... Acabei me envolvendo não só com pesquisa, mas com atividades de organização e de tratamento também. Convenci o Ministério da Saúde a estabelecer um programa para o tratamento dos pacientes com anemia falciforme. O programa existe até hoje e evoluiu para fazer também o diagnóstico neonatal. Foi uma contribuição tanto em termos de pesquisa básica quanto de interferência direta na aplicação. Isso. Tinha um outro componente dessas doenças que era a talassemia, uma doença complexa em termos de tratamento porque exige que o paciente receba transfusões regulares de sangue. É preciso haver algum lugar onde sejam recebidos e seguidos mensalmente. Uma das complicações é o acúmulo de ferro no organismo. Para eliminação desse elemento, àquela época, só existia um medicamento que tinha que ser dado por injeção – e uma injeção de longo tempo. Para isso se usa uma bomba infusora, que não existia no Brasil e não havia maneira de importar. Eu e um colega, Sebastião Ismael, planejamos uma bomba dessas, que foi fabricada ainda no tempo do Ibecc [Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura] com o Isaias Raw. A talassemia é menos prevalente na população do que a anemia falciforme? É a metade, mais ou menos. A forma grave da anemia falciforme se deve à homozigose do gene da hemoglobina S. A prevalência do heterozigoto é mais ou menos 2% da população, aqui no estado de São Paulo – isso varia de lugar para lugar no Brasil porque ela foi trazida pelo tráfico de escravos. Onde se tem uma população com maior frequência de genes africanos a frequência é maior. A talassemia é um outro tipo de alteração do mesmo gene beta que quando o individuo é homozigoto ele tem uma doença muito grave. Essa mutação veio das regiões mediterrâneas, principalmente Itália, Portugal, Espanha e um pouco do Líbano.
Foram esses estudos que o levaram a outro campo de pesquisa, a genética de populações? Foi o que aconteceu. O mundo mudou, todos começaram a estudar DNA. E meu grupo começou a examinar, em Ribeirão Preto, nos anos 1980, o DNA relacionado a algumas doenças, e depois à genética populacional. O nosso primeiro estudo foi focado no gene da anemia falciforme (beta S). Em regiões próximas do gene há elementos que chamamos de polimorfismos, que definem haplótipos. No gene da anemia falciforme, conforme o local da África, o gene beta S é sempre o mesmo, mas o haplótipo a que está associado é diferente. Quando examinamos os negros na população brasileira que têm anemia falciforme, olhamos o gene e o que está ao redor dele. Com isso é possível saber de qual região da África os antepassados vieram e recompor o histórico do tráfico de escravos para o Brasil. Feito isto, tivemos uma surpresa. O padrão dos africanos que foram trazidos para o Brasil é muito diferente daqueles que foram levados para os Estados Unidos. Fomos os primeiros a demonstrar isso.
cional, quando começou o sequenciamento da bactéria Xylella fastidiosa, em 1998, um marco importante para a ciência brasileira. O seu laboratório tinha algum domínio dessa tecnologia? Sim, mas o programa genoma trouxe foco para o trabalho e isto nos ajudou muito. Depois da Xylella emendamos no genoma do câncer com o Ricardo Brentani, do Hospital do Câncer, e com o Andrew Simpson, do Instituto Ludwig. Ao mesmo tempo, surgiu a oportunidade de nos organizarmos ao redor de um Cepid, em 2000, e decidimos investir na terapia celular e nas células-tronco. Fomos muito bem-sucedidos e avançamos em
Nos scores do ranking de Xangai, a USP tem um desempenho excepcional
E é esse trabalho que demonstra de qual região da África vinham eles? Isto. Mais ou menos 60% vieram das regiões com haplótipo banto, isto é, Moçambique, República Centro-Africana, Angola, o sul da África. Da região de Benim vieram de 30% a 35%. E da região de Gâmbia e Senegal, de 1% a 2%. Nos Estados Unidos o predomínio é de Benim, mais ou menos 60%, 15% do Senegal e 15% de Gâmbia. Depois que fizemos esse estudo, encontrei um livro que se chama The atlantic slave traffic, de Philip Curtin, que trabalhando com documentos primários dos portos de partida e de chegada mostra números exatamente iguais aos nossos. A sua terceira fase de contribuições se refere à genômica? Sim, nesse momento eu já estava longe da medicina, propriamente dita, tinha um grupo que tratava de questões de genética molecular e genética popula-
pontos que eram desconhecidos na época. Células mesenquimais, por exemplo, eram vistas como exclusivas da medula óssea. Fomos nós que mostramos que elas existem na veia umbilical, na artéria safena, e depois descrevemos que existem praticamente em todos os tecidos adultos e fetais, porque é uma célula que está presente na parte exterior dos pequenos vasos, chamados pericitos. Para esse tipo de conhecimento demos uma contribuição relevante. Esse é seu trabalho mais citado? O mais citado é o sequenciamento da Xylella, em que há mais de 100 autores. O segundo é a primeira análise feita no mundo sobre o padrão de expressão gê-
nica das células mesenquimais, de 2003. E o terceiro é o que mostra que as células mesenquimais, obtidas de fontes muito diferentes, têm um padrão e propriedade muito semelhantes aos pericitos e aos fibroblastos. O senhor viveu a fase da euforia da genômica e vive a fase atual em que está claro que ainda há um longo caminho a percorrer. Como vê essa questão hoje? Na ciência é sempre assim. Escrevi um livro com o Dimas Covas chamado Células-tronco, a nova fronteira da medicina, sobre terapia celular. No prefácio eu digo que o entusiasmo exagerado, em grande parte inflado pela imprensa, ocorre repetidamente. Eu alertava que havia, naquele momento, em 2006, uma expectativa que era absolutamente irreal com relação a células-tronco, como se aquilo fosse salvar a humanidade nos próximos dias. A técnica de produção de linhagens de células-tronco embrionárias é muito difícil. Com a genômica foi a mesma coisa. É difícil ver um trabalho de biologia celular molecular hoje que não envolva sequenciamento de genes. Daí a achar que isso irá resolver toda a questão do conhecimento relativo à biologia seria uma grande ingenuidade. Mas houve avanços. A história mostra que nenhum tópico da ciência se resolve com uma técnica ou uma única descoberta. Damos um passo a mais e melhoramos o conhecimento. Mas hoje já temos medicamento vendido em farmácia que foi desenvolvido porque se pegou o gene numa neoplasia, sequenciou-se e descobriu-se que era um gene híbrido, que alterava a síntese de uma determinada proteína. A indústria farmacêutica produziu um inibidor que é usado por via oral e impede o funcionamento do gene – e o individuo melhora da doença. Então a genômica produziu efeitos sim e vai continuar produzindo. Pode ser que a praga do amarelinho, causada pela Xylella, não tenha sido resolvida. Mas essa é uma coisa menor comparada aos benefícios que já obtivemos. n PESQUISA FAPESP 200 | 29
política científica e tecnológica
Foto de Miguel Boyayan ilustrou capa sobre mudanças climáticas, em dezembro de 2006 30 | novembro DE 2011
Afluente seco do rio São Francisco fotografado por Eduardo Cesar para “Um Brasil mais quente”, de dezembro de 2006 PESQUISA FAPESP 200 | 31
política c&T educação científica y
Gargalo na sala de aula Baixo desempenho no aprendizado de ciências prejudica formação de pesquisadores e deixa o país pouco competitivo Fabrício Marques
32 z outubro DE 2012
foto MASAHIRO TSURUGI / amanaimagesRF
A
precariedade do ensino de ciências desponta como uma incômoda pedra no meio do caminho do Brasil, num momento em que o país ambiciona internacionalizar sua pesquisa científica e é desafiado a formar recursos humanos qualificados em grande quantidade para acelerar seu crescimento. O obstáculo é tangível na série histórica de resultados do Pisa, sigla em inglês para Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, exame que testa, a cada três anos, o nível de competência de adolescentes de 15 anos em leitura, matemática e ciências e é aplicado em mais de 60 países. O Brasil participou da prova de 2009 com uma amostra de 20.127 estudantes e obteve uma média de 405 pontos em ciências. O desempenho superou os 390 pontos obtidos no exame de 2006, mas está muito distante do de países desenvolvidos ou mesmo dos emergentes com os quais compete diretamente. A China, por exemplo, alcançou 575 com um time de estudantes da cidade de Xangai (ver gráfico ao lado). No pelotão do Brasil aparecem países como a Colômbia (402 pontos), a Tunísia (401) e o Cazaquistão (400). “Os alunos brasileiros tiveram um desempenho ruim tanto na parte da prova que avalia conceitos teóricos quanto naquela que exige a solução de problemas concretos”, observa a socióloga Maria Helena Guimarães de Castro, que entre 1995 e 2002 foi presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) do Ministério da Educação e coordenou a entrada do Brasil no Pisa em 2000.
O nível do Brasil na prova de ciências do Pisa Porcentagem dos jovens brasileiros de 15 anos em cada nível, em comparação com outros países, em 2009
n China (Xangai) n Finlândia n Japão n Coreia do Sul n Estados Unidos
40 35 30
n Rússia 25
n Brasil n Argentina
20 15 10 5 0 Abaixo do nível 1
Nível 1
Nível 2
Nível 3
Nível 4
Nível 5
Nível 6
Só conseguem apresentar explicações científicas que sejam óbvias
Conseguem interpretar, de forma literal, os resultados de uma pesquisa simples
Conseguem interpretar e usar conhecimentos científicos de várias disciplinas
Conseguem refletir e tomar decisões usando evidências científicas
Constroem explicações baseadas em evidências e argumentos calcados em sua análise crítica
Demonstram de modo consistente capacidade de raciocinar de forma cientificamente avançada
A média dos países Número de pontos alcançados por oito países na prova de ciências do Pisa, em 2009 600
575
554
539
538
500
502
478
400
405
401
Brasil
Argentina
300
fonte ocde
200 100 0
China (Xangai)
Finlândia
Japão
Coreia do Sul
Estados Unidos
Rússia
pESQUISA FAPESP 200 z 33
O Pisa divide os alunos em seis categorias: do nível 1, no qual os jovens só conseguem apresentar explicações científicas que sejam óbvias, até o nível 6, no qual já conseguem demonstrar capacidade consistente de raciocinar de uma forma cientificamente avançada. A situação do Brasil nessa escala é desalentadora. A maioria (83%) da amostra brasileira situou-se até o nível 2. Significa que só possuem conhecimentos para dar explicações em contextos familiares e tirar conclusões baseadas em pesquisas simples. Os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne as economias mais avançadas do planeta e criou o Pisa, obtiveram desempenho bastante superior: mais da metade dos alunos situava-se entre os níveis 3 e 4, sinal de que são capazes de refletir e tomar decisões usando evidências científicas além de interpretar e usar conhecimentos científicos de várias disciplinas. Menos de 4% dos alunos brasileiros estavam acima do nível 4 da prova de ciências (no nível 6, o mais alto, o resultado brasileiro foi de 0%). É com esse contingente, formado pela elite dos estudantes, que o país conta para criar as futuras gerações de pesquisadores. Outras nações dispõem de um contingente bem maior para cumprir essa missão. Na Coreia, mais de 40% dos alunos estão acima do nível 4. “Os países com melhor desempenho fazem uma boa gestão dos recursos disponíveis e valorizam a carreira docente. São premissas que o Brasil tem de seguir para melhorar”, diz o físico Marcelo Knobel, pró-reitor de Graduação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Num artigo publicado em parceria com Fernando Paixão na Folha de S. Paulo, Knobel chegou a conclusões muito semelhantes relacionando o baixo desempenho dos alunos na prova de matemática do Pisa com a escassez de engenheiros.
H
á experiências bem-sucedidas para melhorar a educação científica no Brasil. Em muitos casos, baseiam-se em atividades abertas e experimentais, com o professor fazendo o papel de facilitador das discussões em grupo, o uso de referências do cotidiano dos alunos e a adoção de material didático capaz de estimular a construção do conhecimento. Em 2009, o sociólogo Simon Schwartzman e a pesquisadora Micheline Christophe, do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets), fizeram um estudo por encomenda da Academia Brasileira de Ciências que analisou várias experiências, algumas delas voltadas para a formação dos professores, outras calcadas em atividades na sala de aula – mas elas só foram aplicadas em ambientes restritos e isolados, sem alcançar o grosso dos alunos nas escolas públicas. “Foi possível observar como essa metodologia cria um ambiente de trabalho motivante e participativo, 34 z outubro DE 2012
Desempenho desigual As médias obtidas em cada estado brasileiro nas três provas do Pisa em 2009 UF
Média geral
Leitura
Matemática
Ciências
Distrito Federal
439
449,4
424,8
442,6
Santa Catarina
428
438,1
411,9
434,8
Rio Grande do Sul
424
433,1
410,0
428,5
Minas Gerais
422
430,6
407,5
428,6
Paraná
417
423,2
405,0
423,5
Espírito Santo
414
423,6
397,3
421,3
São Paulo
409
424,4
390,4
411.6
Rio de Janeiro
408
419,8
392,9
411,5
Mato Grosso do Sul
404
413,8
389,5
408,7
Goiás
402
412,3
385,0
409,0
Rondônia
392
398,7
379,1
397,7
Mato Grosso
389
398,5
378,8
390,6
Paraíba
385
390,0
376,3
388,5
Bahia
382
391,5
368,7
384,3
Tocantins
382
390,7
363,4
392,2 384,4
Pernambuco
381
389,0
368,3
Amapá
378
390,4
365,3
378,2
Ceará
376
381,4
361,2
385,0
Pará
376
383,4
362,8
381,8
Roraima
376
383,6
358,8
384,6
Piauí
374
377,7
364,2
380,0
Sergipe
372
379,3
358,8
378,5
Acre
371
383,2
350,0
379,0
Amazonas
371
386,6
353,2
373,0
Rio Grande do Norte
371
383,5
360,2
369,4
Maranhão
355
363,0
341,1
362,3
Alagoas
354
362,6
347,6
352,7
fonte ocde/inep
diferente das aulas em que professores ditam os conteúdos que os alunos anotam, com os problemas associados de incompreensão, desinteresse e indisciplina”, diz o estudo. Um exemplo é o projeto ABC da Educação Científica Mão na Massa, resultado de um acordo de cooperação entre as academias de ciências do Brasil e da França, com foco nos primeiros anos do ensino fundamental. Iniciado em 2001, suas atividades consistem em programas de formação de professores e orientadores pedagógicos e a produção de materiais para trabalho experimental nos cursos de formação e nas escolas. As atividades irradiaram-se para mais de 10 cidades de vários estados, partindo de três núcleos, a Estação Ciência, museu interativo de ciências da USP, o Centro de Difusão Científica e Cultural da USP em São Carlos e a Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro. “Em sua maioria, as experiências mantêm-se pela presença de um especialista filiado a uma universidade ou cen-
léo Ramos
Estação Ciência, em São Paulo: surgem novas opções de museus, mas elas ainda são pouco aproveitadas pelas famílias
tro de ciências, trabalhando individualmente ou com pouca ajuda”, diz o estudo. Mas o saldo do programa é diversificado, com a produção de módulos didáticos, além de cursos e oficinas para professores de vários tipos. A experiência com ensino de ciências da empresa Sangari Brasil é outro exemplo. Ela criou módulos de ensino de ciências que são usados em escolas particulares e também em sistemas públicos, como os do Distrito Federal, ou os municípios do Rio de Janeiro e de Manaus. Os professores recebem kits com módulos de 16 aulas, que inspiram os debates e a solução de problemas na sala de aula, e são capacitados por especialistas para lidar com esse material. “Funciona com base em três premissas: o uso do material didático, a formação do professor e o monitoramento das escolas, por meio de tutores. E não dá certo se qualquer uma das três premissas deixar de existir”, afirma Maristela Sarmento, diretora educacional da Sangari. O projeto funciona como parte do currículo, por exemplo, no Rio de Janeiro, mas também é oferecido como atividade
a evolução do Brasil Médias obtidas nas três provas do Pisa nas quatro edições da avaliação de que o país participou n Média n Leitura n Matemática n Ciências 450
400
350
300
2000 fonte ocDE/INEP
2003
2006
2009
extracurricular em escolas privadas de tempo integral. “Os alunos das escolas privadas têm um repertório maior e às vezes se apropriam mais facilmente dos conhecimentos. Mas a curiosidade e o entusiasmo dos alunos de escolas públicas são impressionantes”, diz. No campo dos museus de ciências, o estudo destaca o Espaço Ciência, de Pernambuco, museu a céu aberto do governo estadual instalado numa área de 120 mil metros quadrados entre Olinda e Recife, com mais de 200 equipamentos interativos em tópicos como física, química, biologia, matemática e geografia. É dotado de instalações como um espelho d’água, uma hidrelétrica gerando corrente, um planetário e uma caverna, e ainda abriga uma área de mangue utilizada para experiências e espaço de educação ambiental. Os visitantes são convidados, por exemplo, a identificar as espécies que habitam o lugar. Todos os anos, 150 mil visitantes passam pelo museu. O número e a qualidade dos museus de ciência melhoraram nos últimos anos, mas não se criou ainda uma tradição de visitação desses espaços. “Nos países da Europa visitar museus faz parte da tradição das famílias e das escolas. Lá os museus são bastante aproveitados pela sociedade e se tornam ferramentas importantes para disseminar o pensamento científico e para a formação dos cidadãos”, diz Ernst Hamburger, professor de física da USP, que dirigiu o museu Estação Ciência. “Aqui no Brasil o público ainda é restrito. Nenhum museu ultrapassa a marca de 1 milhão de visitantes por ano, o que é pouco para um país com a nossa população”, afirma o professor, para quem a estratégia deveria ser a de levar exposições dos museus para a periferia.
O
estudo de Schwartzman alerta que há uma série de desafios a cumprir para aproveitar em larga escala as boas experiências. Uma delas é garantir que os projetos sejam permanentemente monitorados e apoiados. Outro desafio, esse mais complexo, é padronizar e sistematizar os conteúdos a serem dados pelos professores, o que, de certa forma, se contrapõe ao caráter aberto e interativo das experiências. “O problema é que esses processos abertos só funcionam bem quando o professor é muito bem formado e os estudantes também tenham passado por um processo adequado de formação inicial, através do qual tenham consolidado a capacidade de leitura, escrita e uso de conceitos básicos da matemática”, sustenta o estudo. Para Maria José Pereira Monteiro de Almeida, professora da Faculdade de Educação da Unicamp, a padronização, nos moldes em que é feita hoje, produz resultados danosos. “Muitas escolas adotaram sistemas de ensino que conspiram contra o ensino criativo e participativo. Também pESQUISA FAPESP 200 z 35
instituto sangari
se perde a perspectiva de que o trabalho do professor é intelectual. Nesses sistemas o professor só precisa seguir o que está escrito em apostilas, que se considera que fez seu trabalho”, afirma. Maria José lidera o Grupo de Estudo e Pesquisa em Ciência e Ensino da Unicamp, que produziu uma série de contribuições sobre a educação científica. Mostrou, por exemplo, a relevância de se ensinar física moderna e contemporânea no ensino médio, embora o ensino siga limitado à física clássica na maioria das escolas. Atualmente, o grupo liderado por Maria José investiga, no âmbito do Programa de Melhoria do Ensino Público da FAPESP, estratégias para superar o distanciamento entre as pesquisas que abordam problemas do ensino básico, na área de educação em ciências, e a realidade das escolas. “Temos diversos programas de pós-graduação em ensino de ciências no Brasil, mas os pesquisadores que eles formam em geral acabam empregados nas próprias universidades, enquanto os professores e os alunos, que lidam no dia a dia com a questão, têm pouco acesso a esse conhecimento”, afirma. O Brasil tem 649 pesquisadores por milhão de habitantes. É um índice baixo, comparado ao de países como o Japão (5.543 pesquisadores por milhão de habitantes), os Estados Unidos (4.726), a Coreia (4.725) ou a China (1.082). No estado de São Paulo, a situação é um pouco melhor, com 1.147 pesquisadores por milhão de habitantes. A necessidade de formar os futuros cientistas é um motivo crucial para melhorar o ensino de ciências, mas há outras razões fundamentais. “Uma delas é fazer com que todos os cidadãos de uma sociedade moderna entendam as implicações mais gerais, positivas e problemáticas, daquilo que hoje se denomina ‘sociedade do conhecimento’, e que impacta a vida de todas as pessoas e países”, diz
o sociólogo Simon Schwartzman. Outra razão, observa o professor, é “fazer com que as pessoas adquiram os métodos e atitudes típicas das ciências modernas, caracterizadas pela curiosidade intelectual, dúvida metódica, observação dos fatos e busca de relações causais, reconhecidas como fazendo parte do desenvolvimento do espírito crítico e autonomia intelectual dos cidadãos”. A pesquisa brasileira sobre ensino de ciência é prolífica – mas tem pouco alcance nas políticas públicas e só ocasionalmente ganha aplicação nas escolas. “A cada pelo menos dois anos há vários encontros nacionais de educação de ciência em
número de Pesquisadores por milhão de habitantes - 2007 Japão
5.543
Estados Unidos
4.726
Coreia do Sul
4.575
Reino Unido
4.134
Canadá
4.010
Alemanha
3.438
França
3.368
Rússia
3.276
Espanha
2.713
Portugal
2.640
Estado de São Paulo
1.147
China
1.082
Chile (2004)
809
Argentina
709
Brasil
649
México
458 0
fonte ocde/Indicadores FAPESP 2010
36 z outubro DE 2012
1000
2000
3000
4000
5000
6000
Crianças em laboratório do Sangari Brasil: material didático, capacitação de professores e acompanhamento de tutores produzem bons resultados
interesse difuso pela ciência Distribuição dos entrevistados, por interesse em ciência e tecnologia, segundo classe econômica, no estado de São Paulo
Você conhece alguma instituição científica? As respostas dos entrevistados, de acordo com seu Indice de Consumo de Informação Científica (Icic) - em %
Distribuição dos entrevistados por classe econômica, segundo percepção de benefícios futuros do desenvolvimento da ciência
100
100
60
90
10,8
80 70
8,7
26,0
2,3
4,1
n B
27,8
36,0
36,0
50
30
37,9
0
90
58,0
9,8 31,7
80
51,7 27,3
27,0
Interessados Nada Muito Pouco interessados interessados interessados
n Não conhece
50
40
60
n Alguns benefícios 44,1
90,2 68,3
21,9 20
10
10
Médio Médio Baixo alto baixo
Nulo
0
(Icic)
10,7
6,9
3,1
3,6
A
B
24,7 21,5
12,0
42,0
Alto
30,7
30
95,7
74,4
n Poucos benefícios n Nenhum benefício
40,2 35,9
30
0
n Muitos benefícios 50,4
40,5
70
20 16,5
n Conhece
44,2
40
36,7
4,3
25,6
50
41,1
20 10
n C n D
60
40
n A
9,9
C
9,6
D/E
fonte Labor/Uncamp. Pesquisa sobre percepção pública da C& realizada no Estado de São Paulo em 2007
que um bom volume de boas pesquisas é apresentado”, diz a professora Maria José, da Unicamp. “Mas quando as experiências são transpostas para a realidade das escolas acabam esbarrando em problemas estruturais, como a falta de professores, e não vão adiante”, explica. O conhecimento produzido também tem dificuldade de chegar às escolas. “Há muita pesquisa sobre as escolas, mas pouca pesquisa com e na escola e envolvendo os professores da escola”, diz Maurício Compiani, professor do Instituto de Geociências da O ensino de Unicamp e especialista em ensino de ciências estimula ciências. Ele observa que há pouca articulação entre os pesquisadores. “Não a autonomia existe, nesse estado com tantos grupos de pesquisa em ensino de ciências, um intelectual do projeto temático da FAPESP que trate das questões mais gerais do ensino de cidadão e o ciências”, afirma. desenvolvimento Formar um professor talhado para ministrar educação científica de qualido espírito dade não é tarefa simples. “Para ensinar crítico, diz Simon bem ciências, o professor precisa fazer em sala de aula um trabalho baseado em investigação. Mas ele não é formado Schwartzman para isso. Como pode ensinar investigação se não fez investigação?”, pergunta o físico Ernst Hamburger. Ele observa que leva anos para um bom professor adquirir competência. “Exige-se tanto dos professores de ciências quanto se exige de médicos e engenheiros, mas o abismo salarial entre essas categorias é enorme”, afirma. Hamburger lembra que o progresso quantitativo da educação brasileira nos últimos 50 anos, com a inclusão de larga fatia de brasileiros aos bancos escolares, foi impressionante. “Sou otimista, mas valorizar a profissão de professor e sua formação é condição necessária para continuar a progredir.”
A experiência do projeto Encontros USP-Escola mostra que há professores ávidos por melhorar sua formação. Nas férias de julho e de janeiro, professores do ensino fundamental e médio são convidados a frequentar um conjunto de atividades, entre cursos, palestras e oficinas, voltados para o ensino de física, química, biologia, matemática, astronomia e inglês, e também para o aprendizado de metodologias de sala de aula em que o aluno participe ativamente. “Começamos em 2007 com 50 professores e hoje temos mais de 250 frequentando 10 cursos ministrados”, diz Vera Henriques, coordenadora do projeto, professora do Instituto de Física da USP. Ela afirma que a divulgação dos cursos pelas diretorias de ensino costuma ser falha e que a propaganda boca a boca divulga a iniciativa. “Há professores muito interessados. Alguns deles formaram o Grupo de Trabalho USP-Escola, em conjunto com alguns professores e estudantes da USP. O grupo se reúne mensalmente para desenvolver material didático experimental e estratégias de ensino participativas. Atualmente está preparando uma revista eletrônica que será sediada no Instituto de Física, com o intuito de divulgar materiais e ideias para um ensino de qualidade”, diz.
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á uma tendência nas universidades brasileiras de preparar melhor o professor para lidar com a realidade complexa dos alunos, especialmente nas escolas públicas. Maurício Compiani, da Unicamp, conta que desde 2006 passaram a ser exigidos dos futuros professores estágios de 400 horas nas escolas antes de se formarem. “Agora é que os primeiros professores formados por essa regra estão chegando ao mercado de trabalho e a expectativa é que saibam ver o aluno como um sujeito real, e não idealizado. Hoje o que é valorizado no conhecimento científico é o lado cognitivo, hipotético, pESQUISA FAPESP 200 z 37
fotos antônio felipe mota
lógico e dedutivo. Mas há outros conhecimentos, culturais, afetivos, artísticos, que estão envolvidos nessa criança. O professor precisa fazer a mediação do conhecimento científico com o conhecimento cotidiano que essa criança traz”, afirma. Num projeto vinculado ao Programa de Melhoria do Ensino Público, da FAPESP, realizado entre 2006 e 2010, o grupo liderado por Compiani articulou-se com outro projeto, sobre recuperação ambiental em Campinas, para levar a escolas da cidade conhecimentos socioeconômicos e de geociências com potencial para aproximar o ensino da realidade dos professores e alunos. O professor adverte, porém, que há dificuldades às vezes intransponíveis para obter avanços. “Há escolas públicas na periferia nas quais a rotatividade de professores é de 40% todos os anos. É impossível formar equipes se não há permanência do grupo”, afirma. Outro ponto vulnerável seria a aversão das escolas em estimular a cooperação entre os alunos. “É raro ver um estudante que seja bom em todas as disciplinas”, diz Maria José, da Unicamp. “Há alunos que têm bloqueio em determinadas disciplinas, mas conseguem aprender em conjunto com outros colegas. O costume das escolas, porém, é estimular a competição entre os alunos”, diz.
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ode parecer paradoxal, mas o aluno brasileiro diz ser bastante interessado em ciências. Dados do Pisa mostram que os estudantes do país declaram um elevado apoio às ciências, maior do que o observado até em países desenvolvidos, mas informaram pouco se utilizar do conhecimento científico em benefício próprio. “O que falta, efetivamente, é encontrar meios de fazê-los se apropriar das ciências, e isso a escola brasileira não tem feito”, diz Simon Schwartzman. Renato Pedrosa, do Centro de Estudos Avançados da Unicamp e ex-coordenador do vesti-
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bular da universidade, observa que o país vem obtendo avanços lentos na qualidade do ensino – a série histórica do Pisa mostra que o Brasil aumentou de 365 pontos em ciências em 2000 para 405 em 2009. “Os resultados do Pisa e de outras avaliações mostram que o desempenho brasileiro é desastroso quando comparado com outros países. Embora se observe uma melhora no desempenho ao final do ensino fundamental, ela não se traduziu em melhora no ensino médio, no qual a evasão ainda é muito alta”, afirma Pedrosa. Para ele, o aumento do nível do emprego e a estratégia do MEC de considerar graduado no ensino médio qualquer estudante aprovado no Enem podem explicar parte da evasão. “No caso do emprego, é fácil de entender. Mais preocupante é o MEC conceder diploma de ensino médio a qualquer aluno que tenha obtido 400 pontos no Enem, quando se sabe que esse desempenho está próximo do alcançado por quem responde às provas aleatoriamente, ou seja, por quem chuta as questões”, afirma. “Agora a nota mínima foi ampliada para 450 pontos, mas mesmo assim é baixa.” Os resultados das avaliações da educação científica revelam, diz Pedrosa, uma realidade dramática. “Em alguns estados brasileiros, como Alagoas e Maranhão, o desempenho dos alunos é baixíssimo e não reage. O desempenho mais alto também vem dos mesmos lugares, como Rio Grande do Sul, Distrito Federal, São Paulo e Minas Gerais”, diz. Sem uma estratégia de impacto, diz Pedrosa, o Brasil vai demorar mais de 50 anos para alcançar os resultados educacionais de países com os quais compete. “É preciso garantir condições melhores para as escolas frequentadas pelos mais pobres, cujas famílias têm mais dificuldade em apoiá-los. O caminho passa, certamente, pela escola integral. Isso pode não ser tão importante para estudantes de classe média alta, mas para os demais faz uma diferença enorme”, afirma. n
Espaço Ciência, museu a céu aberto em Pernambuco, que ganhou o Prêmio José Reis de Divulgação Científica em 2009: 150 mil visitantes por ano
jornalismo científico y
Histórias para contar Acesso a documentos digitalizados ajuda a reconstituir os percursos da divulgação científica no Brasil
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acesso direto a documentos dos séculos XIX e XX, largamente facilitado pela digitalização recente dos arquivos de importantes veículos de comunicação, e novos estudos de caso podem mudar dentro de algum tempo a percepção mais corrente sobre a história da divulgação e do jornalismo científico no Brasil. Em vez de um percurso marcado por algumas poucas ondas localizadas de intensa difusão, seguidas por prolongados silêncios, é possível que se possa reconstruir nesse campo um caminho mais contínuo ao longo de dois séculos, mesmo que muito estreito em determinados trechos e mais alargado em outros. “Ainda que por ora não devamos jogar fora a noção da existência de ondas de divulgação científica no país, numa linha semelhante à que o pesquisador inglês Martin Bauer apontou para a Europa, talvez tenhamos que revê-la à luz de novos dados oferecidos pela pesquisa empírica”, diz Luisa Massarani, diretora do Museu da Vida da Fundação Oswaldo Cruz, que junto com Ildeu de Castro Moreira vem estudando sistematicamente essa área desde 1997. É possível, ela admite, que muito do que até aqui se toma como lacunas na atividade de divulgar e reportar temas científicos no Brasil corresponda, na verdade, a lacunas do conhecimento histórico a seu respeito. Tome-se, a propósito, no quesito dos achados propiciados pela digitalização de arquivos, o caso de O Estado de S. Paulo – A Provincia de
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São Paulo, até 1890 – e, numa busca preliminar por notícias sobre assuntos científicos, com não muito esforço se há de constatar, como o fez o jornalista Carlos Fioravanti, editor especial de Pesquisa FAPESP, que já em 1875, ano de criação do importante jornal paulista, uma certa “Secção Scientifica” aparecia em sua primeira página. Numa primeira abordagem ao acervo digital, estimulada por ele, encontro inicialmente 895 arquivos com essa expressão, entre os anos de 1875 e 2000. Mas um pequeno refinamento na busca reduz esse número para 145 ocorrências da expressão exata até a década de 1910. Só que o gráfico de barras que de pronto se visualiza nesse processo mostra um vazio para os anos de 1900 a 1909, o que de pronto faz suspeitar que a “Secção” que aparece na década seguinte não é exatamente a mesma que se fez objeto de nosso desejo. E de fato: as duas parcas ocorrências da expressão no período, mais exatamente em 9 e em 10 de abril de 1912, encontram-se num pequeno anúncio de um certo “Museu scientifico e anatomico”, localizado na rua 15 de Novembro número 31, em que se proclama que “a visita ao museu interessa a todas as classes sociaes, que devem conhecer o organismo humano em suas diversas modalidades”. O reclame, para usar termo da época, esclarece ainda que o museu está “aberto das 10 horas da manhan à meia-noite”, acrescenta que “no interior do estabelecimento é que se vende a entrada para a secção scientifica anatomica”, grafando em
fotos reprodução
Mariluce Moura
letras de corpo maior as três últimas palavras, e informa por fim que “as crianças menores de 9 annos não pagam entradas”. Por mais que o anúncio excite a curiosidade a respeito de que peças museológicas mostrariam em 1912 o organismo humano em todas as suas modalidades, o interesse aqui são os 143 arquivos restantes que efetivamente revelam uma “Secção Scientifica” publicada com certa constância na primeira página do jornal paulista, de 1875 a 1886, portanto, ao longo de 11 anos. São 63 ocorrências de 1875 a 1879 e 79 registros de 1880 a 1886 (fica, assim, faltando uma seção, contabilizada, mas não identificada, para a conta fechar). Essas seções trazem tamanha riqueza e diversidade de temas e tratamento da informação que parecem clamar por um estudo consistente de caso, como sugerem as pesquisadoras de história da ciência Márcia Ferraz e Ana Maria Goldfarb, ambas do Centro de Estudos Simão Matias (Cesima) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Com algumas orientações de mestrado e doutorado concluídas e outras em curso ligadas a temas de história da divulgação e do jornalismo científico, elas veem na multiplicação dos estudos de caso um caminho para ampliar rapidamente o conhecimento desse campo e, ao mesmo tempo, dar suporte a reflexões mais amplas e consistentes sobre a natureza de suas relações com a pesquisa científica e com a educação científica e sobre seu lugar na construção do Brasil contemporâneo. pESQUISA FAPESP 200 z 41
Marcos da ciência para públicos amplos 1808-1830
1831-1839
1875-1887
Os primeiros periódicos brasileiros, em geral de vida breve, traziam notícias e comentários sobre ciência. São dessa época: Gazeta do Rio de Janeiro, Correio Braziliense (1808), As Variedades, Gazeta da Bahia, Idade d’Ouro do Brazil (1812), O Patriota (1813), Annaes Fluminenses de Sciencias, Artes e Litteratura (1822), Jornal Scientifico, Economico e Literario (1826), O Propagador das Sciencias Medicas (1827) e O Beija-Flor: Annaes Brasileiros de Sciencia, Politica, Litteratura (1830)
Publicações apoiadas por agremiações científicas começaram a sair na década de 1830. A primeira foi o Semanario de Saúde Publica, da Academia Imperial de Medicina do Rio de Janeiro, que publicou vários periódicos, até 1902. Se seguiriam o Auxiliador da Industria Nacional, da Sociedade Auxiliadora Nacional (1833), e a Revista Trimensal de Historia e Geographia ou Jornal do Instituto Historico Geographico Brasileiro (1839), publicada até hoje
A Provincia de São Paulo começou a publicar em 1875 a “Secção Cientifica”, que até 1886 divulgou 142 notícias ou comentários sobre assuntos variados, da meteorologia ao darwinismo. Adiante, já como O Estado de S. Paulo, sua primeira página continua a valorizar a área. Em 1887 começou a circular a revista semanal Brasil Médico, fundada pelo médico e professor Antônio Augusto de Azevedo Sodré. Ligada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, circulou até 1971
1966-1968
1970-1977
1982-1987
A Editora Abril lança em 1966 Realidade, revista inovadora de interesse geral com reportagens aprofundadas, algumas delas sobre ciência e ambiente, como um dossiê pioneiro sobre a Amazônia, em 1971. Ciência e tecnologia eram também abordadas, embora sem regularidade, na revista semanal Veja, publicada a partir de 1968
Começou a circular a Revista Brasileira de Tecnologia – RBT, publicada até 1989. Editada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a revista representou um projeto pioneiro de divulgação científica no Brasil. Em 1977 foi criada a Associação Brasileira de Jornalismo Científico (ABJC)
Em 1982 começou a circular a revista Ciência Hoje, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Em 1984 a ciência conquistou um espaço regular na TV com o programa Globo Ciência. Criada a partir do programa Globo Rural, a revista Globo Rural começou a sair em 1985. Em 1987 a Editora Abril lançou Superinteressante, voltada para o público jovem
infográfico carlos fioravanti ilustração catarina bessell
1916-1926
1935-1947
1948-1962
A criação da Sociedade Brasileira de Ciências – a partir de 1921, Academia Brasileira de Ciências – favorece a divulgação científica. Os cientistas escrevem para jornais, editam uma revista e fundam a Rádio Sociedade, dedicada a educação, ciência e cultura (futura Rádio MEC). A passagem pelo país de Albert Einstein em 1925 e de Marie Curie em 1926 produz uma grande onda de divulgação científica em revistas e jornais
Saiu o primeiro número da revista O Biológico, criada pelo diretor do Instituto Biológico de São Paulo, Henrique da Rocha Lima, com artigos dirigidos para os produtores agropecuários. Um dos colaboradores era José Reis, que em 1947 começou a escrever uma coluna de divulgação científica no jornal Folha de S. Paulo. José Reis escreveu para o jornal nos 55 anos seguintes, até pouco antes de morrer, em 2002
De 1948 a 1953, o jornal A Manhã, do Rio, publicou o suplemento mensal Ciência para Todos. O primeiro editor foi Fernando de Sousa Reis, sobrinho de José Reis e de Ernani Reis, que dirigia o jornal. De 1958 a 1962 o Jornal do Commercio, também do Rio, publicou uma página dominical sobre ciência, coordenada pelo cientista Walter Oswaldo Cruz
1991-2000 A Editora Globo lançou em 1991 a revista Globo Ciência, rebatizada em 1998 como Galileu. Em 1995 começou a circular Notícias FAPESP, que em 1999 se tornou Pesquisa FAPESP. A partir de julho de 2000, os ambiciosos projetos de pesquisa na área de genômica
ampliam o noticiário sobre ciência na mídia impressa e eletrônica nacional e dão visibilidade internacional à ciência brasileira por meio de reportagens publicadas no jornal New York Times, na revista The Economist e na BBC
A primeira “Secção Scientifica” encontrada no jornal paulista é de 16 de fevereiro de 1875, pouco mais de um mês após o lançamento de A Provincia de São Paulo em 4 de janeiro, com o intuito declarado de disseminar os ideais de um grupo de republicanos. O título do artigo que a inaugura é “A meteorologia synoptica e a previsão do tempo”, que, aliás, reaparecerá várias vezes no jornal, sem tirar nem pôr. Neste primeiro o articulista, cujo nome não é oferecido aos leitores, vale-se de toda a sua verve para defender a nova concentração de esforços voltada ao desenvolvimento da meteorologia, que mal está começando (não é dito ali que fato o demonstra). Isso depois de um exercício de tolerância e compreensão em relação à indiferença e até mesmo ao sarcasmo do público para com as pesquisas meteorológicas, dado que só resultados materiais claros, pondera, costumam valorizar a ciência diante da opinião pública. Em determinado trecho do texto delicioso, seu autor observa: “Dir-se-ia que o tiro de honra já tinha sido disparado n’esta pouco afortunada sciencia quando há alguns annos, em plena accademia das sciencias, dois illustres physicos investiram contra ella, denegrindo seus methodos, affirmando o nenhum valor de suas doutrinas e condemnando suas investigações a uma eterna esterilidade. A meteorologia caminhava a reunir-se no muséu das sciencias mortas à magia e à astrologia judicial, quando novas perspectivas se lhe rasgaram em frente, e a enferma, condemnada pelos doutores, ergueu-se vigorosa, e com ardor juvenil lançou-se em uma senda tão fecunda quanto inesperada”. Ao longo dos anos, valendo-se ora das traduções de artigos publicados tanto em periódicos científicos quanto em veículos estrangeiros de circulação ampla, ora de escritos da prata da casa e dos especialistas locais, a “Secção Scientifica” passeia por geologia, agronomia, Darwin e as teorias evolucionistas, astrofísica, o positivismo, inventos como o coração artificial e o carro a vapor e discute inclusive a própria ciência, como num artigo com o belo título “As officinas da ideia”, de 9 de outubro de 1875, em que se apresentam ao leitor as ciências aplicadas como contraface da ciência básica. A aparentemente última “Secção Scientifica”, de 10 de abril de 1886, traz a segunda parte da tradução de um ar44 z outubro DE 2012
Origens mais estudadas
A primeira “Secção Scientifica” encontrada no jornal A Provincia de São Paulo é de 16 de fevereiro de 1875
tigo a respeito das teorias evolucionistas, com o título “As objeções contra a theoria de Darwin – II”, assinado simplesmente por Haeckel (provavelmente o naturalista alemão Ernst Haeckel, 1834-1919). Depois de observar como os selvagens encaram como seres sobrenaturais os aparelhos sofisticados que veem pela primeira vez, por exemplo, uma locomotiva ou um transatlântico, o autor compara: “Em nossa raça mesmo, muitos homens desprovidos de instrucção não seriam capazes de fazer uma idéa justa desses apparelhos complicados, nem comprehender-lhes a natureza puramente mechanica. Mas, segundo uma mui justa observação de Darwin, a mór parte dos naturalistas não se comporta mais intelligentemente acerca das formas organisadas, de que o selvagem collocado diante de um navio ou de uma locomotiva. Para bem se poder aquilatar da origem puramente mechanica das formas organisadas, é necessario haver recebido uma solida educação biologica, e estar familiarisado com a anatomia comparada e a embryologia”. Ao pé do artigo constava a informação “continua”, que entretanto, não sabemos por que razões, não foi observada pelo jornal.
Se o caso do tratamento dispensado à ciência no século XIX pelo Estadão carece ainda de um estudo sistemático, alguns veículos mais antigos, situados nos primórdios da imprensa brasileira, desfrutam de situação distinta, a começar pelo Correio Braziliense ou Armazem Literario. O mensário, considerado o marco inaugural do jornalismo brasileiro, a despeito de ser editado em Londres, onde estava exilado seu criador, Hipólito da Costa (1774-1823), foi lançado em junho de 1808 e circularia ininterruptamente até dezembro de 1822 (a Gazeta do Rio de Janeiro, diário oficial da Corte recém-instalada, apareceria em 9 de setembro de 1808). O caso singular do Correio, “publicação essencialmente política, que abriu espaço para a informação de natureza científica”, mais as características ímpares do intelectual brasileiro que o criou terminaram motivando um belo estudo do professor José Marques de Melo, sobre o trabalho de repórter de ciência que Hipólito teria desempenhado ao realizar uma missão diplomática a serviço da Coroa portuguesa, 10 anos antes de fundar seu jornal. A finalidade da missão era “observar a economia agrícola norte-americana, discernindo quais inventos científicos e inovações tecnológicas eram factíveis de transplantação para o Brasil, então colônia de Portugal na América”, relatou Marques de Melo em seu ensaio “Hipólito da Costa, precursor do jornalismo científico no Brasil” (Anuário de jornalismo, v. 2, n. 2, p. 150-71), publicado em 2000. Segundo o pesquisador, ex-professor da Universidade de São Paulo (USP), no diário de viagem que preservou a memória da missão e prenuncia “a vocação do repórter que o autor desenvolveria dez anos depois em seu periódico”, Hipólito “faz um registro arguto do alvorecer da ciência e da tecnologia na jovem nação norte-americana”. Mais: “Demonstra capacidade de percepção das invenções científicas e dos processos de difusão coletiva vigentes naquela sociedade, ao mesmo tempo em que faz referências ao contexto colonial europeu”. Já no Correio, Hipólito da Costa editará regularmente “Literatura e Sciencias” como uma das quatro seções principais do periódico – as outras são “Politica”, “Commercio e Artes” e “Miscellanea”. Em uma delas, que aparece na edição fac-similar do primeiro volume do Cor-
Instituições e editoras contribuíram para a revitalização do jornalismo científico nos anos 1980-90 com o lançamento de revistas especializadas
“Literatura e Sciencias” era uma das quatro seções principais do Correio Braziliense, de Hipólito da Costa
reio Braziliense, coordenada pelo jornalista Alberto Dines e publicada em 2000 pelo Instituto Uniemp e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, Hipólito noticia, festeja e detalha o decreto imperial francês de 7 de março de 1808 que reuniu todas as escolas, academias e colégios da França em “um só corpo com a denominação de Universidade”. Vários outros periódicos da época foram estudados quanto à sua contribuição para a divulgação de temas de ciência, em especial O Patriota, tratado no livro de ensaios Iluminismo e Império no Brasil: “O Patriota” (1813-1814), organizado pela historiadora Lorelay Kury e lançado em 2007, numa coedição da Fundação Oswaldo Cruz e Biblioteca Nacional. Kury, em um texto publicado em 2008, classifica O Patriota como “uma antologia da ciência” e observa que ele “contém dezenas de artigos que abrangem os mais variados temas, tais como medicina, história natural, agricultura, viagens, história política e poesia. Esta miscelânea demonstra o peso que adquiriam os temas científicos no ambiente cultural do Alto Iluminismo luso-brasileiro”. Ela acrescenta que “em seus numerosos artigos vislumbram-se os contornos de
uma invenção política chamada Brasil, cuja identidade forjava-se mais pela descrição natural do que pela espessura das etapas históricas”. O Patriota será tratado em outros estudos, como no artigo de Maria Helena Freitas, “Considerações acerca dos primeiros periódicos científicos brasileiros”, resultado de dissertação de mestrado orientado por Márcia Ferraz. Ela o inclui com destaque entre os periódicos que circulam no país de 1813 a 1830, a maior parte dos quais de vida muito efêmera. Maria Helena observa que “como na maioria dos países euro-americanos, a divulgação e a comunicação da ciência no Brasil são iniciadas no século XIX em jornais cotidianos, não especializados e voltados ao grande público”. Assim, “a Gazeta do Rio de Janeiro realizou esse papel de divulgador dos assuntos científicos, noticiando a produção de obras, a realização de cursos, a produção e venda de livros e textos científicos. Além das notícias e alusões, o periódico chegou a publicar memórias científicas”, ela diz. Outros periódicos, como A Idade d’Ouro do Brazil (1811) e As Variedades ou Ensaios de Literatura (1812), ambos publicados na Bahia nesse alvorecer da pESQUISA FAPESP 200 z 45
imprensa brasileira, são destacados por Maria Helena. Mas vale registrar que os dois são objeto de estudos mais amplos, o primeiro num livro de Maria Beatriz Nizza da Silva, A primeira gazeta da Bahia: “Idade d’Ouro do Brazil”, publicado originalmente em 1978, hoje numa terceira edição lançada pela Editora da Universidade Federal da Bahia (UFBA) em 2011, apresentada pelo jornalista Luís Guilherme Pontes Tavares. E o segundo numa pequena e preciosa edição em dois volumes, o primeiro um fac-símile do periódico e o segundo uma reunião de quatro breves ensaios a seu respeito, editado pela Fundação Pedro Calmon/ Secretaria de Cultura, também em 2011, ano do bicentenário da imprensa baiana. As descobertas do século XX
Nos anos mais recentes, dois livros trouxeram novas e importantes luzes para a compreensão tanto do tratamento dispensado pela imprensa brasileira no século XX à ciência produzida fora e dentro do país quanto da evolução de nosso jornalismo científico. São eles Domingo é dia de ciência: história de um suplemento dos anos pós-guerra, de Bernardo Esteves (Azougue Editorial, 2006), e Um gesto ameno para acordar o país: a ciência no “Jornal do Commercio” (1958-1962), organizado por Luisa Massarani, Claudia Jurberg e Leopoldo de Meis (Fundação Oswaldo Cruz/Casa de Oswaldo Cruz, 2011). Embora seja mais fácil remontar as correntes de circulação da informação sobre ciência na sociedade brasileira no século XX do que no anterior, era muito mais pelos documentos das sociedades científicas e por depoimentos dos cientistas do que pelo exame direto do material de imprensa que se tinha um panorama da evolução do jornalismo científico no Brasil. Nas últimas três décadas, entretanto, isso começa a mudar e as dissertações e teses no campo do jornalismo científico passam a examinar como se apresenta a ciência na mídia impressa, na televisão e no rádio. Os estudos de caso aprofundados, exaustivos, ainda são poucos (mas também ainda são poucos os programas de pós-graduação que privilegiam o campo da divulgação e do jornalismo científico), no entanto há indicações de que isso vai se ampliando. Em recente artigo, num tópico em que examina as principais correntes da divulgação de ciência e tecnologia no 46 z outubro DE 2012
Era muito mais pelos documentos das sociedades científicas que se tinha um panorama da evolução do jornalismo científico
Brasil, Massarani e Moreira, depois de observar como duas dessas correntes estão diretamente vinculadas à comunidade científica brasileira e a movimentos das décadas de 1920 e de 1950, propõem que “uma terceira corrente, agora relacionada ao jornalismo científico e que estava em sua fase embrionária no fim da Segunda Guerra Mundial, emergirá com mais intensidade nos anos 1980”. Mais adiante, analisando a terceira corrente, os autores dirão que “um marco emergiu da imprensa de São Paulo, no contexto das universidades estaduais, com recursos humanos científicos qualificados. Uma pessoa de referência foi José Reis, que tem sua origem na comunidade científica e foi um dos fundadores da SBPC, que se dedicou por muitas décadas, a partir do final dos anos 1940, a estabelecer uma tradição no jornalismo científico, principalmente no jornal Folha de S. Paulo”. Os autores destacam o papel do espanhol Manuel Calvo Hernando (atraído para o jornalismo científico em 1955, quando a ONU organizou a primeira conferência sobre usos pacíficos da energia nuclear, em Genebra), que inspirou a formação das associações de jornalismo científico na América Latina (inclusive a Associação Brasileira de Jornalismo Científico, a ABJC, em 1977), a criação de novas seções de ciência nos jornais e ainda teve um papel importante na capacitação pioneira de jornalistas de ciência no Brasil, quando ministrou um curso de jornalismo científico em 1972, na Universidade de São Paulo (USP). Se a ditadura que dominou o Brasil de 1964 a 1985 perturbou ou não o desenvol-
vimento do jornalismo e da divulgação científica no país, é questão que ainda está a merecer estudos mais profundos. Mas é notável que os anos 1980, que inauguram o processo de redemocratização no país, tenham trazido tantos novos veículos e propostas nesse campo (ver infográfico). É interessante também interrogar quanto desse novo movimento resultou da articulação estreita do jornalismo com instituições de pesquisa científica ou sociedades científicas. A Ciência Hoje, em 1982, a Revista Brasileira de Tecnologia, criada na década de 1970, mas reprogramada em 1985, e, mais adiante, em 1999, Pesquisa FAPESP são criadas nessa interação ou nessa intersecção. Todas são revistas que parecem propor estudos que contribuam para se entender mais a história e os desafios do jornalismo científico no Brasil. A propósito, Pesquisa FAPESP a essa altura é objeto de pelo menos uma dezena de estudos acadêmicos, com a companhia frequente da Ciência Hoje e da Superinteressante, revista de divulgação científica ampla, lançada em 1987. Quanto aos arquivos digitais, vale observar que em 2010 foi inteiramente disponibilizado o da Veja, que cobre um percurso desde 1968; em 2011 foi a vez da Folha de S. Paulo, com textos que vêm da década de 1920; em maio deste ano, o Estadão disponibilizou o seu, abrindo uma larga janela para quase 140 anos de história. Mas talvez a mais empolgante notícia para os estudiosos que se valem dos periódicos como fontes documentais para reconstruções históricas seja o lançamento pela Biblioteca Nacional, em 9 de agosto passado, da Hemeroteca Digital Brasileira. O portal com 5 milhões de páginas digitalizadas de periódicos brasileiros de todo tipo – jornais, revistas, anuários, boletins, periódicos científicos etc. – pode ser livremente acessado de qualquer computador ligado à internet, num sistema avançado de busca e liberdade para imprimir documentos. Uma festa para os pesquisadores. n
Artigos científicos FREITAS, M. H. Considerações acerca dos primeiros periódicos científicos brasileiros. Ciência da Informação. v. 35, n. 3, p. 54-66. set/ dez. 2006. (www.scielo.br) MASSARANI, L.; MOREIRA, I. C. A divulgação científica no Brasil e suas origens históricas. Tempo Brasileiro. v. 188, p. 5-26. 2012.
Produtos naturais y
Diversidade organizada Núcleo lança base de dados sobre compostos químicos com potencial para gerar fármacos
I
propriedades identificadas
A ferramenta reúne informações diversas, como a origem dos compostos, a espécie de onde foram isolados, suas propriedades químicas e atividades biológicas identificadas. O resultado da pesquisa on-line permite também ver a estrutura
Estudos sobre a busca de fármacos em espécies de Rubiaceae, como o cafeeiro, abastecem a ferramenta on-line
química, uma tabela de informações dos compostos e baixar a estrutura em três dimensões. A base de dados do NuBBE é integrada por 80% de compostos isolados de plantas, 6% de fungos ou microrganismos, 7% de compostos sintéticos inspirados em produtos naturais, 5% de compostos semissintéticos e 2% de produtos de biotransformação (modificados por enzimas). Um conjunto de propriedades ajuda a definir se o composto tem algum potencial para ser utilizado no planejamento de novos fármacos. “A base é quimicamente diversificada e rica. Trata-se de uma fonte interessante para identificação de compostos bioativos para serem testados em outros ensaios mais sofisticados”, diz Vanderlan Bolzani. Seu trabalho sobre a busca de substâncias anticancerígenas em espécies de Rubiaceae brasileiras, feito na década de 1990, é um dos mais antigos da base de dados. A sistematização dos dados foi feita por uma equipe de seis pessoas, entre técnicos e pesquisadores, e durou dois anos. O site da base de dados foi idealizado pelo mestre em ciência da com-
putação Leandro Figueira. “Uma aluna de iniciação científica nos auxiliou na análise de todos os papers do NuBBE e na obtenção de dados dos compostos”, diz Marilia Valli, aluna de doutorado do IQ da Unesp e bolsista da FAPESP, que trabalha num projeto sobre o potencial dos produtos naturais do NuBBE como fonte para o planejamento racional de novos agentes antitumorais. A tese de Marilia, orientada por Vanderlan, deve ser concluída em 2013. Uma das ambições do projeto é cruzar as informações do NuBBE com o Sistema de Informação Ambiental (Sinbiota), que relaciona informações geradas por projetos do programa Biota-FAPESP com uma base cartográfica. “Ainda não está disponível, mas queremos mostrar as espécies a que os compostos estão relacionados e o hábitat em que elas vivem. Esperamos que esta base seja o ponto de partida para um banco de dados nacional de todas as substâncias já isoladas dos biomas brasileiros. Temos que sensibilizar os colegas do valor que representaria tal tarefa”, diz Vanderlan. n Fabrício Marques pESQUISA FAPESP 200 z 47
H.Zell / Wikicommons
nformações detalhadas sobre 640 compostos químicos extraídos da biodiversidade brasileira estão disponíveis para consulta na internet, no endereço www.nubbe.iq.unesp.br/ nubbeDB.html. A base de dados reúne o conhecimento gerado em 15 anos de pesquisas do Núcleo de Bioensaios, Biossíntese e Ecofisiologia de Produtos Naturais (NuBBE) da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Araraquara. “Constatamos que os nossos resultados de pesquisa, publicados em mais de 170 artigos, poderiam ser mais úteis se organizados em uma base de dados do que fragmentados. Temos informações valiosas sobre a diversidade química das espécies estudadas e resolvemos disponibilizá-las para que outros pesquisadores possam utilizar estes dados em estudos adicionais”, diz Vanderlan Bolzani, professora do Instituto de Química (IQ) da Unesp em Araraquara e membro da coordenação do programa Biota-FAPESP. A base de dados foi idealizada em colaboração com o professor Adriano D. Andricopulo, do Laboratório de Química Medicinal e Computacional (LQMC) do Instituto de Física (USP - São Carlos), e seu aluno de doutorado Ricardo N. Santos, bolsista da FAPESP.
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PESQUISA FAPESP 198 | 49
Ciência básica para conhecer e inovar Luiz Davidovich
H
á uma pergunta feita há séculos que ainda se apresenta com alguma insistência: “Para que serve a ciência básica?” Tomo o exemplo da descoberta recente de um bóson que poderá ser a partícula de Higgs. O experimento foi feito num grande laboratório europeu e envolveu recursos da ordem de US$ 13,5 bilhões. Ouvi muitas indagações sobre até que ponto vale a pena gastar tanto com esse tipo de experimento. E então resolvi, em lugar de recorrer a revistas científicas, tomar outra mais distante deste universo. A Forbes pareceu-me interessante porque trata das grandes fortunas do mundo. O comentário da Forbes menciona que a quantia investida é grande, mas que em sua lista dos mais ricos do mundo há mais de 50 bilionários cuja fortuna é maior que isso. Observa que US$ 13,25 bilhões parecem uma bagatela ante o potencial de avanço na tecnologia de computação, de diagnóstico por imagem, em break throughs científicos e – destacando outra faceta da ciência – diante do quanto o experimento nos aproxima do entendimento dos mistérios do Universo. Vale a pena, ante a pergunta “para que serve a ciência básica?”, voltar-se para o começo do século XX e observar o surgimento da física quântica. Uma galeria de jovens movia-se pela curiosidade e pela paixão nesse momento mágico. Certamente, jamais poderiam imaginar que aquela teoria que desenvolviam para melhor entender a natureza poderia mudar o mundo. A física quântica resultou mais tarde no desenvolvimento do laser, ponto de partida dos discos de laser, das unidades centrais de processamento dos computadores modernos, dos leitores dos códigos de barra e de relógios atômicos que são a base do sistema GPS, hoje utilizado em todo o mundo. Curioso que todas essas descobertas não tenham ocorrido na Europa, onde trabalhavam esses jovens, mas principalmente nos Estados Este artigo e os das páginas seguintes resultam de palestras proferidas no primeiro dos sete encontros preparatórios para o Fórum Mundial da Ciência 2013, realizado na sede da Fapesp de 29 a 31 de agosto de 2012.
Luiz Davidovich é professor titular do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e diretor da Academia Brasileira de Ciências (ABC)
Unidos. Segundo um artigo de Max Tegmark e John Wheeler, publicado na Scientific American, em 2001, estimava-se então que 30% do Produto Nacional Bruto dos Estados Unidos baseava-se em invenções tornadas possíveis pela mecânica quântica. Isso alude aos caminhos complexos da ciência. O laser era considerado, quando foi demonstrado (1960), uma solução em busca de um problema. Arthur Schawlow, que junto com Charles Townes o propôs num artigo na Physical Review em 1958, o que lhes valeu o Nobel, mencionou que se os dois estivessem preocupados com a cura da catarata enquanto trabalhavam nunca teriam chegado à ideia do laser. Não há uma resposta simples para explicar por que as aplicações da física quântica aconteceram nos Estados Unidos. Mas foi fundamental ali o aparecimento de fábricas de ideia, entre elas o laboratório da Bell, que reunia engenheiros, técnicos e cientistas notáveis com sólida formação básica, e onde Bardeen, Shockley e Brattain tiveram a ideia de desenvolver o transistor. Os três ganharam o Prêmio Nobel de Física por isso e Bardeen, mais tarde, ganhou o segundo Nobel em física pela supercondutividade. Hoje ainda há uma preocupação em algumas empresas de juntar o desenvolvimento da pesquisa aplicada com a pesquisa básica. É esse o exemplo da Microsoft, onde o matemático Michael Freedman, especialista em topologia, ganhador da Medalha Fields, em 1986, por seu trabalho sobre a conjectura de Poincaré, é diretor de um grupo de pesquisa em computação quântica. Mas a ciência não pode ser vista apenas com esse olhar utilitarista, ela é parte da cultura de uma época. Les demoiselles d’Avignon (1907), de Picasso, e o trabalho Sobre a eletrodinâmica de corpos que se movem (1905), de Einstein, caracterizam ambos uma época extraordinária na história da humanidade. Em 1902, Einstein formou um grupo de estudos, a Academia Olímpia, junto com o matemático Conrad Habicht e o estudante de filosofia Maurice Solovin, para discu-
tir trabalhos de Karl Pearson, Ernst Mach, John Stuart Mill, Henri Poincaré, David Hume, Baruch Spinoza e Miguel de Cervantes. Mais ou menos na mesma época, Picasso formou a famosa La bande à Picasso, que reunia gente como André Salmon, Max Jacob e Guillaume Apollinaire. E ambos estudavam A ciência e a hipótese, de Poincaré, para quem “o cientista não estuda a natureza porque ela é útil, mas porque o deleita. E deleita porque isso é bonito”. As grandes personagens do começo do século XX também escreveram textos sobre a conexão estreita entre cultura, ciência, arte e o próprio sentido de beleza. Max Planck disse que era impossível fazer um corte definido entre ciência, religião e arte e afirmava que “o todo não é nunca igual à simples soma de suas partes”. E Einstein observou que “a coisa mais bonita que se pode experimentar é o mistério. Ele é a fonte da arte verdadeira e de toda a ciência, e aquele para o qual essa emoção é estranha, que não pode mais pausar para refletir e ficar assombrado com ela, está morto, seus olhos estão fechados”. Isso mostra a complexidade que deve ter qualquer planejamento científico, qualquer discussão sobre o papel da ciência na inovação, porque no fazer da ciência o que conta é a paixão, é a curiosidade. Isso está entrelaçado com a inovação. Há uma forte pressão utilitária sobre a universidade atualmente. No entanto, quando perguntaram a Robert Bayer, que foi vice-presidente de pesquisa da Universidade Stanford e membro do Conselho de Ciência e Tecnologia do estado da Califórnia, qual era o papel de Stanford no Vale do Silício, ele respondeu que “o mito era que a tecnologia de Stanford tornou o Vale do Silício bem-sucedido”, mas uma pesquisa com 3 mil pequenas companhias mostrara que apenas 20 delas usaram tecnologia de Stanford direta ou indiretamente em seu negócio. A grande contribuição de Stanford foram estudantes educados e altamente talentosos. Nos últimos anos houve uma forte solicitação sobre Stanford para se envolver diretamente nas empresas do Vale do Silício. Mas já em janeiro deste ano
Les demoiselles d’Avignon e o trabalho Sobre a eletrodinâmica de corpos que se movem (1905) integram ambos a cultura de uma época
um estudo interno com sérias críticas ao funcionamento da universidade nos anos precedentes observou que “o valor da educação no longo prazo deve ser encontrado não somente no acúmulo de conhecimentos ou práticas, mas na capacidade de estabelecer conexões entre eles”. E ainda que, “se há um único princípio motivador que liga as várias motivações que se seguem nesse relatório, ele é a nossa determinação de quebrar as fronteiras na vida dos estudantes, de oferecer uma educação igual aos grandes desafios e oportunidades que esperam por eles”. A mesma observação foi feita em Harvard, que reformou seu currículo. E aqui no Brasil a Academia Brasileira de Ciências (ABC) contribuiu para esse debate, através de vários documentos sobre a reforma da educação superior, a reforma da educação básica, o ensino de ciências e a aprendizagem infantil. A ABC propõe quebrar as barreiras entre os departamentos nas universidades, promover uma educação mais sintonizada com a nossa época. As propostas são boas, sua implementação porém enfrenta dificuldades e, neste caso, não podemos culpar o governo: a própria comunidade acadêmica resiste às transformações. Numa época de crise global como a que estamos vivendo, o primeiro-ministro da China, ao anunciar no Congresso Nacional do Povo que o crescimento do PIB chinês passaria de 8% para 7,5%, para eles uma grande tragédia, anunciou também que o investimento em pesquisa básica em 2012 teria um aumento de 26% e que o financiamento das chamadas
top universities cresceria em torno de 24%. Sua promessa, feita em janeiro de 2012, foi mais que dobrar o gasto da nação em pesquisa e desenvolvimento nos próximos cinco anos. Associa-se, assim, a batalha contra a crise global ao desenvolvimento da ciência. E o Brasil em relação a isso? Seguimos uma trajetória ascendente nos últimos anos e temos, de fato, uma longa história de grandes sucessos, como a Petrobras, a Embraer e a Embrapa. Todas estão associadas a uma verdadeira política de Estado de formação de recursos humanos. Tivemos depois uma grande ideia, que foi a formação dos fundos setoriais, impostos recolhidos em empresas a fim de aplicá-los em pesquisa. Mas sua evolução mais recente não parece estar de acordo com a estratégia adotada por outros BRICs para combater a crise global. Faço por último uma referência a um artigo do físico Brian Greene, publicado no New York Times, em junho de 2008. Ele fala de uma carta que recebeu de um soldado americano no Iraque, contando-lhe como naquele ambiente hostil e solitário um de seus livros tinha se tornado uma espécie de linha de vida para ele. Propiciara-lhe o contato com o poder da ciência para dar à vida contexto e significado. Então, esse é um grande objetivo da ciência, ao qual eu acrescentaria que, devido a uma sutil peculiaridade da evolução da espécie humana, a paixão pela ciência serve à humanidade. Ela revoluciona a vida diária das pessoas, afeta nossa organização social, nossos modos e costumes. n PESQUISA FAPESP 200 | 51
Ciência e inovação Fernando Galembeck
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ales de Mileto, geômetra e astrônomo considerado por alguns o primeiro cientista, foi também um hábil transformador de conhecimento em riqueza. Em um certo ano, previu que haveria uma grande safra de olivas e comprou muitas prensas de óleo, revendendo-as na safra. Assim conseguiu uma grande receita e satisfez necessidades dos produtores de óleo. Se não tivesse acumulado as prensas que mandou fazer, não haveria como prensar todas as azeitonas. Portanto, segundo os relatos que chegaram até nós, o primeiro cientista soube usar o conhecimento para gerar riquezas, para si e para outros. No contexto de hoje temos um desafio global, criado por uma população crescente e expectativa de aumento de consumo, num quadro de recursos naturais finitos. Ambicionamos o desenvolvimento sustentável ou durável, que requer novo conhecimento. E precisamos também mudar atitudes. O novo conhecimento científico cria possibilidades de inovação, mas também coloca perguntas: qual ciência? Qual inovação? Os recursos são sempre limitados, especialmente em países de renda per capita e índice de desenvolvimento humano baixos. No Brasil, que tem pouca infraestrutura, a situação se torna particularmente séria e as questões se desdobram: onde se deve gastar? Quanto se pode gastar? Quem vai gastar? Como? Os gastos feitos proporcionarão sustentabilidade para o sistema? Para o país? Para o mundo? Essas questões devem estar sempre presentes nas mentes de cientistas, pesquisadores e gestores. Hoje há no mundo muitos grupos envolvidos com estes problemas. O chamado Grupo Carnegie é formado por ministros de C&T de países do G8 e trata, entre outros temas, das Research Facilities of Global Interest. Estas são hoje principalmente os grandes aceleradores de partículas e observatórios astronômicos. Recentemente o Grupo Carnegie começou a discutir as necessidades de ciência para a sustentabilidade e a transição rumo à economia “verde”. Uma conclusão atual 52 | outubro DE 2012
Fernando Galembeck, professor do Instituto de Química da Unicamp, é diretor do Laboratório Nacional de Nanotecnologia, do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM)
é a de que não existem as infraestruturas que deveriam estar disponíveis, independentemente de méritos intrínsecos das que já existem. Ou seja, não há facilities aptas para sediarem o trabalho científico requerido para o enfrentamento dos problemas globais. Essa situação faz voltar à pergunta: qual ciência? Ciência de verdade tem que ser original e competitiva, no estado da arte. Por isso observo um problema muito difundido: estudantes e professores frequentemente leem muitos artigos científicos, mas raríssimos leem patentes, ignorando assim uma boa parte do conhecimento de fronteira. Por isso é frequente a apresentação de propostas de pesquisa às agências de fomento, tendo como objetivo resultados que já estão descritos em patentes concedidas pelo USPTO ou outros escritórios de patentes. Para que a ciência que estamos fazendo crie impactos realmente radicais, ela precisa ser significativa num contexto amplo. Também é preciso rever algumas ideias sobre a organização e a estruturação da ciência. Um artigo publicado no número de julho/agosto da American Scientist, sob o título What creates static electricity?, desafia a crença de que a eletrostática foi resolvida na física do século XIX ou que segue sendo um problema apenas de física. Segundo o autor, respostas a problemas persistentes da eletrostática estão surgindo atualmente da química e de outras áreas. Este e muitos outros casos importantes são ignorados em nosso meio, ainda impregnado de ideias e hierarquias científicas que vêm do positivismo. Embora superadas, estas continuam a ser ensinadas aos nossos alunos e presidem à elaboração de currículos e orçamentos. Qual inovação interessa? A inovação depende de desenvolvimento, que custa muito dinheiro, por isso só faz sentido fomentar trabalho de P&D que tenha foco bem definido e perspectivas concretas de utilização. A inovação tem que satisfazer necessidades emergentes, e é essencial saber em que setores da agricultura, da indústria e dos ser-
viços estão essas necessidades. Inovação tem impacto econômico, estratégico ou social e, de novo, precisamos saber: em quais cenários? Em qual contexto? Para quem? A ciência em princípio beneficia a todos, mas a inovação frequentemente beneficia alguns, e não outros, podendo mesmo prejudicar muitos. Há 10 anos, em meio à euforia em torno da nanotecnologia, alguns a descreviam como a solução de todos os problemas da humanidade. Também a energia nuclear foi apresentada, em meados do século XX, como uma solução para todos os problemas – e nós sabemos o que aconteceu. Qualquer nova tecnologia cria riscos ambientais, sociais e econômicos e isso vale para a nanotecnologia. Portanto, as decisões sobre incentivos à inovação e à ciência que ela demanda têm de ser instruídas por uma análise do equilíbrio entre benefícios e riscos. Ciência e inovação exigem paixão, ilustrada em um quadro que mostra Pasteur concluindo um experimento enquanto madame Pasteur se prepara para sair. Mas o seu marido estava muito ocupado e não conseguia cuidar da vida social sem ter a resposta que lhe seria dada pelo experimento. Pasteur é um grande exemplo de capacidade de fazer, ao mesmo tempo, criação científica e inovação, salvando vidas. Segundo ele, “não existe uma categoria de ciência que se pode chamar de ciência aplicada. O que existe são ciências e aplicações da ciência, interligadas como uma árvore e seu fruto”. Para entender a frase, lembremos que Pasteur era um bom católico, familiarizado com o Evangelho de São Lucas, onde lemos que a árvore que produz maus frutos não é boa e a que produz bons frutos não é má. Aí estão duas ideias: primeiro, tanto a árvore como os frutos podem ser bons ou maus. Além disso, não somente a árvore dá o fruto, mas o fruto também dá a árvore, isto é, os processos que relacionam ciência e inovação não são lineares, nem unidirecionais. Por isso mesmo, o Instituto Pasteur, um antigo e sempre moderno templo mundial da ciência, é também titular de 382 pedidos de patentes depositados no USPTO desde 2001. Faz ciência e inovação de primeira e ambas se fertilizam mutuamente, criando uma sustentabilidade que não é observada em outras organizações de pesquisa importantes. Se quisermos ter inovação, temos de educar para a inovação. Lembro-me com
Ocupado com experimentos, Pasteur não conseguia cuidar da vida social
gratidão de pessoas que contribuíram para minha educação, como Ney Galvão da Silva, presidente da Indústria Química Santo Amaro S/A, produtora de tetraciclina, do grupo Laborterápica-Bristol dos anos 1950-1960, em São Paulo. Ele foi o supervisor do meu primeiro estágio, em que fiz um levantamento de informações sobre as penicilinas semissintéticas e cefalosporinas. Na nossa primeira conversa, depois de uma semana de estágio, ele quis ver o que eu já fizera e, ao ver os dados que eu tinha coletado, perguntou-me se eu me limitara só a ler artigos. Diante de minha resposta afirmativa, indagou-me sobre as patentes. “Muitas informações sobre isso estão em patentes”, observou, e então fui estudar as patentes. Aprendi isso com ele. Pawel Krumholz, meu orientador de tese, é outro a quem devo prestar tributo. Dirigente da Orquima S/A, ele produziu cafeína por metilação de teobromina. No Brasil, seria natural produzi-la extraindo-a do café. Mas a pessoa que é ligada e sabe um pouco de química – e ele sabia muito – percebe que dá muito mais certo extrair teobromina de cacau e transformar em cafeína. Ele obteve uma patente sobre separação de terras-raras no USPTO em 1963 e outras na Europa, que demonstram o nível de competência que já tivemos nessa área. Hoje o governo brasileiro tem interesse nisso, mas percebemos quanto tempo foi perdido, por falta de políticas. Precisamos ter políticas. Termino lembrando de Carmine Taralli, diretor de P&D da Pirelli nos anos 1990. Ele se aplicou a “como fazer para
que as empresas se atrevam a buscar a inovação, apesar dos seus riscos?”. Classificou essa tarefa de maravilhosa, lembrando que gastara toda a sua vida “em inovação e desenvolvimento de novos produtos”. Tive o prazer de trabalhar com ele no desenvolvimento dos isolantes dos cabos elétricos que hoje estão instalados no Eurotúnel e foram criados e produzidos no Brasil. Volto ao desafio global: garantir alimento, matérias-primas e energia para 9 bilhões de pessoas, em poucas décadas. Nos Estados Unidos esse desafio é traduzido no programa 30/30 do DOE e Usda: 30% de substituição do petróleo em 2030. Isso requer aproximadamente 1 bilhão de toneladas de biomassa por ano. No Brasil, qual é a situação? Aqui, a produção de resíduos de biomassa atingiu em 2010 cerca de 1 bilhão de toneladas, resultado de 30 anos de inovação e que nos coloca, talvez pela primeira vez na história, 18 anos adiante dos Estados Unidos. Outro personagem importante nesse quadro é o eucalipto, hoje valorizado pela excelência do papel e em produção de energia. Seu desenvolvimento para essa finalidade foi feito no Brasil e hoje está sendo transferido para outros países. Temos um caminho, que pode também ser adequado para outros países na condição do Brasil. Podemos enfrentar o problema global usando a biomassa, mas para isso precisamos ter estratégias, ter atitudes e aí conseguiremos os resultados: nova ciência, novos produtos, processos e mais bens para cada vez mais pessoas, em um quadro sustentável. n PESQUISA FAPESP 200 | 53
Ciência para o desenvolvimento global o papel das redes de academias de ciências Michael T. Clegg
A
pergunta que faço inicialmente é bastante simples: “Por que a voz da ciência é fundamental na solução de temas globais, hoje e no futuro?”. É porque a ciência é a forma mais bem-sucedida de criação de conhecimento. Ela lida exclusivamente com argumentos baseados em evidência e seus resultados sempre precisam ser confirmados por outros, por pares. É por ser sempre baseada em evidência que se pode reproduzir e confirmar. O sistema ético da ciência é crucial para o bem-estar futuro da humanidade. O respeito pela evidência permite integrar uma comunidade global e falar uma linguagem comum, a linguagem da ciência. Ser baseada na evidência, ter reprodutibilidade e previsibilidade confere à ciência um grande valor. O século XXI é um dos mais desafiadores para a humanidade. Temos grandes desafios vinculados, por exemplo, ao crescimento populacional. No ano 2050 a população mundial alcançará 9 bilhões de seres humanos. Nós já enfrentamos mudanças climáticas que trazem grandes impactos no mundo todo. Há desafios para produção de alimentos, abastecimento e garantia de qualidade da água, além de fornecimento de energia, que teremos que enfrentar nessa transição. É preciso lidar também com a degradação da terra, preservação de ecossistemas e espécies, doenças emergentes... Os desafios terão que ser enfrentados pela ciência. Por que toda nação deveria querer promover a ciência? As respostas são várias. Para promover soluções para problemas nacionais e internacionais, por exemplo. Para criar uma mão de obra capaz de competir na economia global. Para produzir cidadãos capazes de tomar decisões sábias numa democracia. Para criar um “temperamento científico” na nação, aumentando a tolerância e a racionalidade. Os países pobres estão ficando cada vez mais atrasados em relação aos países ricos. Investimentos em pesquisa & desenvolvimento são inferiores a 0,5% do PIB em países pobres, com54 | outubro DE 2012
Michael T. Clegg, professor da Universidade da Califórnia, Irvine, é copresidente da Rede Interamericana de Academias de Ciências (Ianas)
parado a mais de 2% do PIB em países ricos. A capacidade científica e tecnológica é vista como um luxo por certos governos. Países ricos têm média de 3.281 cientistas e engenheiros por milhão da população comparados a 788 cientistas e engenheiros por milhão de habitantes em países de renda média. Países de alta renda produzem uma média de 346 patentes por milhão da população, comparados a 10 patentes por milhão em países de renda média. E por que as academias de ciências são importantes? As academias são baseadas em mérito e representam a liderança científica dentro de um país. Academias também costumam ser instituições autorrenováveis, livres de interferências políticas. Academias têm a credibilidade para informar o público e os formuladores de políticas sobre problemas iminentes e potenciais soluções. O que as academias de ciência podem oferecer? Os problemas são globais, mas a implementação de soluções deve ser feita por governos nacionais ou locais. A maioria das nações tem academias de ciência. As academias personificam a voz independente das comunidades científicas nacionais e podem fazer o elo entre essas comunidades e os responsáveis pelas políticas. Existe uma agenda global para as academias de ciência. Uma rede global pode atravessar fronteiras nacionais para apresentar soluções baseadas na ciência para problemas igualmente globais. Há um novo conceito em termos de formar redes de academias. A rede global de academias mais efetiva, que é o Painel Interacademias (IAP), foi fundada no final dos anos 1990 e representou uma forma de tentar dar poder às academias dos países menos desenvolvidos para que elas pudessem ter o papel que algumas academias dos países já desenvolvidos tiveram nos últimos tempos. As academias se juntaram tentando formar essas redes a fim de que o conhecimento gerado em uma academia pudesse ser transladado às nações menos favorecidas, ou menos desenvolvidas, e olhar para o mundo com uma visão global.
O que as academias de ciência podem oferecer? • Problemas são globais, mas implementação de soluções deve ser feita por governos nacionais ou locais
Dentro dessa rede global está claro que as regiões do mundo são de fato muito heterogêneas. As regiões do mundo são heterogêneas em cultura, no meio ambiente e nos diferentes níveis de desenvolvimento econômico. Na família IAP surgiu a noção de que redes regionais poderiam ser essenciais para abordar problemas específicos das regiões. Por isso, as redes regionais de academias mantêm o mesmo espírito do painel interacademias e podem desenvolver e enfrentar a necessidade de capacitação dos países e das academias, baseadas nas necessidades nacionais. Uma dessas redes regionais é a Rede Interamericana de Academias de Ciência, Ianas. Ela teve a capacidade de lançar programas regionais de recursos hídricos, de educação científica, programas relacionados à energia, e todos esses programas estão funcionando bem. É, talvez, a rede mundial que melhor opera como rede. Qual é o papel da Ianas? Ela dá poder e fortalece as academias e as comunidades científicas do hemisfério, não porque dar poder e força às academias e comunidades científicas do hemisfério seja importante por si só, mas para desenvolver academias em países que não as têm, para desenvolver a ciência e a inovação em países que não dispõem dessas comunidades, para disseminar os relatórios do conselho interamericano e os programas interacadêmicos da região, para se relacionar com governos regionais e organizações de estados americanos. Nós consideramos que as academias de ciência podem identificar elementos de ciência e tecnologia importantes em questões nacionais, sintetizando o que é conhecido e trabalhando com o setor privado e com o governo ao mesmo tempo. Políticas para a ciência são consideradas pela IAP e a Ianas como responsabilidades ativas, além
de contribuir para o conhecimento e entendimento público da ciência e melhorar a educação em todos os níveis, principalmente a educação científica. Por último, mas não menos importante, tem como meta dar conselhos sobre prioridades e formas de suporte nacional para a pesquisa. Existe uma agenda para as academias que é produto de anos de pensamento. Elas devem fornecer conselhos sobre ciência e tecnologia aos governos. Devem também fornecer informação a respeito de questões de ciên cia e tecnologia que sejam importantes para o público. Precisam participar de esforços nacionais para identificar objetivos e prioridades de ciência e tecnologia e ajudar o governo a avaliar as forças e as fraquezas das capacidades nacionais, a fim de que os objetivos de ciência e tecnologia estabelecidos sejam alcançados. Devem encorajar novos centros de excelência que tratem de questões de pesquisa necessárias no âmbito nacional, além, claro, de atualizar os programas nacionais de educação e as instituições de ciência. Então, qual é o ponto-chave? O ponto-chave é que é importante, de forma crítica, que a ciência e os cientistas conquistem um nível de influência muito maior em todo o mundo. O ponto-chave é tornar as organizações científicas internacionais efetivas para que sua agenda seja, de fato, ativista. A questão-chave é que a ciência é essencial para qualquer estratégia de desenvolvimento global sustentável. n
• A maioria das nações tem academias • As academias encarnam a voz independente das comunidades científicas nacionais • As academias podem servir de ligação entre comunidades científicas e formuladores de políticas
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A ciência como um empreendimento aberto Jessica Bland
A
comunicação aberta sempre fez parte da ciência, mas existem novas formas de compartilhar dados. O relatório Science as an open enterprise, da Royal Society, destaca a necessidade de lidar com a avalanche de dados de interesse científico disponibilizada por meio das novas tecnologias, a fim de preservar o princípio da abertura e explorar os dados de uma maneira que tenham potencial para deflagrar uma nova revolução científica. O que em parte motivou a Royal Society a fazer esse estudo foi uma grande controvérsia que houve no Reino Unido há um ano e meio, em 2009: o climategate. E-mails enviados por pesquisadores foram hackeados e alguém os publicou. Foi um wikileaks da ciência, por assim dizer. E os e-mails sugeriam que alguns dos cientistas haviam tentado esconder dados dos céticos da mudança climática. A razão para isso se tornar polêmico é que nós esperamos que os cientistas sejam abertos ao debate e ao ceticismo. Esse acontecimento suscitou uma série de outras questões para a análise da ciência no século XXI. O relatório, lançado em junho passado, aborda oportunidades e desafios e foi produto das discussões com experts, incluindo gente da indústria, das ciências sociais, das ciências da computação, das ciências do clima. Vejamos um caso que aconteceu em maio de 2011, em Hamburgo, na Alemanha. Houve um surto de infecção intestinal causado pela Escherichia coli, que se espalhou rapidamente por toda a Europa, afetando 400 mil pessoas. Todas as vítimas testavam positivo para uma determinada cepa de E. coli. Os médicos não sabiam o que fazer com isso lá em Hamburgo. O que acontecia com essa E.coli? Ela parecia tão semelhante às outras cepas – por que então provocava essa infecção? A busca de solução levou a uma forma bastante aberta de cooperação. Em primeiro lugar foram abertos os dados sobre o genoma da cepa de E.coli. Isso foi publicado num site para que qualquer pessoa em qualquer parte 56 | outubro DE 2012
Jessica Bland é conselheira de política científica da Royal Society. Formada em Física e Filosofia pela Universidade de Oxford, fez mestrado em ciências da comunicação no Imperial College
do mundo pudesse acessar. Em três semanas cerca de 200 relatórios foram publicados sobre o que deveria ser feito para impedir a epidemia e seus efeitos, e os resultados foram usados para controlar o surto. Isso foi possível graças a um método bastante aberto de fazer ciência e a expertise de outros países, que levaram a uma solução para uma questão de saúde pública em alguns meses. Essa é uma história muito forte, do tipo de conquista que buscamos usando uma ciência mais interativa. O relatório foi produzido depois de um ano de debate e precisamos ser cuidadosos com a linguagem e com o entusiasmo que temos sobre essa forma de fazer ciências, que costumamos chamar de “abertura inteligente”. Nós temos que abrir os dados de uma forma em que as outras pessoas possam usá-los, seja para efeitos de saúde pública, para a indústria ou outro tipo de aplicação. A abertura não é, por si só, uma coisa útil. É preciso abrir de uma forma inteligível. Os quatro critérios que nós temos que seguir são, em primeiro lugar, tornar acessíveis os metadados. Em segundo lugar, eles precisam ser compreensíveis. Em terceiro, é necessário expor um contexto, a fim de que as pessoas que forem usá-los entendam como eles foram recuperados, o quanto são confiáveis, ou seja, isso é para o propósito de uma revisão por pares. E, por fim, os dados precisam ser reutilizáveis ou replicáveis. Só se esses quatro critérios forem cumpridos é que nós teremos uma abertura dos dados apropriada. A abertura é cara, e isso é um problema, porque precisamos ter esses critérios atendidos para cada um dos vários públicos que vão utilizar os dados. Houve uma discussão muito grande no Reino Unido e na Europa sobre o conceito de “abertura inteligente”, sobre como as indústrias podem usar esses dados e isso gerar um grande desenvolvimento econômico. Quais são os limites dessa abertura? Há interesses comerciais legítimos que também temos que proteger? O quanto podemos
Cooperação e abertura de dados geraram artigos científicos e trouxeram solução rápida para epidemia de E. coli
ser abertos? Nós temos alguns exemplos, como o do Instituto Europeu de Bioinformática. Eles têm um mecanismo capaz de permitir às empresas que comparem e cruzem informações de seus bancos de dados internos com os nossos grandes bancos de dados, sem que ninguém realmente consiga ver os dados do outro. É uma abertura, mas dentro das limitações do contexto comercial. A outra questão é quanto à utilização de seres humanos. Evidentemente, esse tipo de informação não pode ser liberada, pois seria uma invasão de privacidade. Também há questões envolvendo segurança. Houve uma controvérsia sobre o vírus H1N1, quando se encontrou uma nova forma de vírus que era altamente contagiosa. A questão era se esses trabalhos sobre o vírus H1N1 deveriam ser publicados ou não, porque bioterroristas poderiam usá-los. No final foi decidido que deveriam ser publicados, sim, porque não haveria tanta gente capaz de utilizá-los para terrorismo. Quando falamos da transição para um ambiente de pesquisa em que os dados são mais abertos, estamos falando de um sistema bastante complexo. A ideia de uma pirâmide ajuda a entender como tentar dar conta disso. Quanto mais alta a camada dessa pirâmide, maior a responsabilidade e a demanda para acesso. Na base dessa pirâmide, estão os dados individuais e pessoais, que, para muitos pesquisadores, devem ser mantidos num arquivo – ninguém quer abrir esses dados para o mundo. Temos, então, uma grande base na nossa pirâmide, que são
as coleções individuais mantidas pelos pesquisadores. Parte disso poderia ser útil para todos, mas não podemos esquecer que isso ainda existe. Na hora que passamos para cima, na camada seguinte, podemos ver as universidades gerenciando seus bancos de coletas de dados no Reino Unido. Temos universidades que competem muito fortemente em número de artigos e em dados que
ser comunicados dessa forma, e não só incluídos em artigos. Nossa aspiração é que toda a literatura científica esteja disponível on-line, todos os dados primários sejam acessíveis on-line. Para colocar isso em termos concretos, podemos dizer que há seis prioridades. A primeira é mudar a cultura vigente que considera dados científicos como propriedade particular. O segundo é dar crédito, no processo de avaliação da pesquisa, à comunicação de dados úteis e a novas formas de colaboração. O terceiro é criar padrões comuns para a comunicação de dados. O quarto é fomentar o que chamamos anteriormente de abertura inteligente de dados. O quinto é o fortalecimento do grupo de cientistas que trabalham com dados. Não temos muitos engenheiros de computação capazes de fazer isso no Reino Unido, então é uma prioridade urgente no momento. E o sexto é o desenvolvimento de novos softwares capazes de automatizar e simplificar a criação e a exploração de conjuntos de dados. Caso se vá investir em algo, hoje, é isso que precisa de mais investimento. Espero que uma questão como essa, que é fundamental para os pesquisadores, seja tratada em profundidade no Fórum Mundial de Ciência. E que nós possamos criar algo que seja mais do que uma ferramenta para lidar com um pequeno surto epidêmico, como aconteceu na Alemanha no ano passado. n
Não basta abrir os dados. Eles precisam ser inteligíveis para todos os públicos publicam – esses dados pertencem às instituições. Então eles tentam manter isso restrito em repositórios institucionais. A camada que vem em seguida é a de coleções de dados nacionais. E no topo são os recursos de dados internacionais, como, por exemplo, o banco de dados mundial de proteínas, que abriga dados coletados ao longo dos anos. Para simplificar, queremos ver todos os dados ativos on-line, queremos que isso opere de forma conjunta. Os dados são parte integral da ciência e precisam
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Integridade e conduta responsável na pesquisa: grandes desafios Sonia Vasconcelos
A
bordarei a integridade científica no contexto de grand challenges, olhando para a integridade como um desses desafios no cenário de políticas científicas e educacionais. Um dos motivos que me levaram a trazer essa abordagem para esse campo é o fato de que quando se fala em integridade cientifica é comum associar o tema a casos de má conduta, como a falsificação, a fabricação de resultados, a casos de plágio de ideias, de dados, de textos, problemas de autoria científica. São comuns comentários sobre alguns desses casos, seja no Brasil ou em outros países, sobre problemas com os quais colegas próximos já se depararam, sobre desenvolvimento de orientações para preveni-los. De fato, casos de má conduta na pesquisa, especialmente de três décadas para cá, motivaram políticas importantes para promover a integridade acadêmica. Uma preocupação inicial marcante era o quanto de dinheiro investido em pesquisa estaria sendo desperdiçado em projetos em que pesquisadores falsificavam/fabricavam resultados. Embora essa preocupação continue marcante, a integridade científica nos remete não somente à má conduta e ao desenvolvimento de recomendações para boas práticas em pesquisa. Embora elas sejam absolutamente fundamentais e integrem parte do cenário de iniciativas em inúmeros paí ses – e aqui no Brasil especialmente através da FAPESP e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – a verdade é que a dimensão desse tema vem se ampliando muito. No campo de reflexões e ações da integridade científica, eu destacaria questões relacionadas, por exemplo, à confiabilidade dos dados de pesquisa – pelos pares e pelo público –, à correção da literatura acadêmica, a noções de propriedade intelectual, de direitos morais, de originalidade na ciência – essa inclusive está muito associada ao conceito do plágio. Entendo que a integridade em pesquisa é um tema que deve ser discutido no âmbito da governança dos países, o que se torna relevante quando falamos 58 | outubro DE 2012
Sonia Vasconcelos é professora adjunta do Programa de Educação, Gestão e Difusão em Biociências do Instituto de Bioquímica Médica da UFRJ. Há alguns anos, vem se dedicando ao tema da integridade em pesquisa
dos grandes desafios para a formulação de políticas científicas. De fato, é no âmbito da governança que muitos países começam a tratar desse tema e é nessa perspectiva que podemos entender a integridade científica como um grand challenge na ciência contemporânea. Na verdade, tratar grandes questões científicas como grand challenges não é uma estratégia nova, basta olharmos um pouco para trás, lá pelo final do século XIX/início do século XX, quando o doutor David Hilbert lançou 23 grand challenges na matemática. Essa estratégia, atrelada a grandes barreiras a serem vencidas na matemática, motivou a solução de vários desses 23 desafios ao longo do tempo. Grand challenges foram revitalizados por Bill & Melinda Gates Foundation para solucionar grandes questões na saúde global. A fundação promoveu uma iniciativa chamada Grand Challenges Explorations, uma extensão dos Grand Challenges in Global Health, e lançou 14 desafios na área da saúde. Em 2008 eles lançaram um programa fenomenal voltado para a saúde pública e um deles era para o desenvolvimento de vacinas que não precisassem de refrigeração, por exemplo, para tuberculose e malária. Aos poucos, tanto a estratégia quanto o conceito de grand challenges vêm sendo utilizados em diferentes áreas do conhecimento como motivadores de ações que possam superar obstáculos e levar a grandes respostas. Observamos esse movimento em documentos como o Grand Challenges Canada (2011) e The Scientific Century (2010), da Royal Society. Um ponto que me chama a atenção nesse documento da Royal Society é uma menção a uma crítica de conselheiros científicos à Comissão Europeia sobre financiamentos pouco articulados com necessidades mais globais. No caso específico do Reino Unido, a percepção da relevância de políticas que ultrapassem necessidades particulares de instituições e áreas de pesquisa e que abordem grand challenges no contexto global parece ser crescente. O documento inclusive destaca a estratégia do governo Obama em atacar grandes
questões a partir dessa perspectiva. De fato, reconhecendo que o estabelecimento de grand challenges é uma estratégia desse governo, The White House Office of Science and Technology Policy (OSTP) anunciou recentemente a realização de uma conferência sobre o tema. O OSTP destaca que a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional lançou uma série desses desafios, incluindo aumentar o acesso a cuidados à saúde para mulheres grávidas e recém-nascidos em países em desenvolvimento, tendo como meta índices de pelo menos 50%. Outro desafio é proporcionar a estudantes desses países de baixa renda habilidades básicas de leitura, através do programa All Children Reading. Na verdade, essa dimensão global dos grandes desafios na ciência também estão refletidos em discussões como as do European Science Open Forum [ESOF], um fórum gigantesco para discussão de grandes desafios da ciência, que incluem diálogos entre ciência e sociedade. Na agenda do ESOF 2012 o amplo escopo de debates inclui, por exemplo, alguns relacionados ao desenvolvimento de ferramentas de genômica, a mitos sobre a segurança dos reatores nucleares, a medicamentos para terapia gênica, mas também a engajamento da ciência com o público, desenvolvimento de códigos para promover a integridade científica e ética na ciência, onde perguntas como “por que a ética é importante para mim?” são parte das discussões. Engajamento da ciência com o público, ética e integridade em pesquisa são temas correlacionados, se considerarmos, dentre os vários pontos, debates controversos sobre benefícios da ciência, inovação e novas tecnologias. Olhando para esses debates no cenário global, essas questões não são percebidas de forma idêntica por diferentes culturas. Deveriam ser? Quando falamos de aspectos éticos, esse “público” pode ser impactado de formas distintas, por exemplo, na condução de pesquisas para desenvolvimento de novos fármacos. Como são abordadas questões que incluem a autonomia e dignidade dos sujeitos de pesquisa? Quando olhamos para o recrutamento desses sujeitos em contextos distintos como Brasil, Costa Rica, Guatemala, Estados Unidos, China, Índia, há questões delicadas que nos remetem a uma relação entre ciência e
Hilbert propôs desafios da matemática. Relatórios do Canadá e do Reino Unido motivam novas ações
sociedade que têm vieses próprios. Esses vieses devem ser conhecidos/entendidos quando imaginamos que a geografia de colaborações na pesquisa vem aproximando, de forma cada vez mais intensa, pesquisadores de diferentes culturas [O relatório recente Knowledge, networks and nations ilustra bem esse fato]. Não é improvável que diferentes percepções sobre ética e integridade científica te-
que venha fazer um doutorado sanduíche no Brasil seguramente entenderá a gravidade de casos como esses, assim como colegas brasileiros. Porém há outras questões que não necessariamente são vistas da mesma maneira, e a forma com que a ciência interage ou deve interagir com o público não é necessariamente vista ou valorizada da mesma forma por todos os países que participam dessa crescente e diversa rede de colaborações. Essas questões éticas e sociais que podem impactar de forma distinta pesquisadores/comunidades que interagem no cenário internacional da pesquisa – e que podem refletir na forma como a condução e os resultados de pesquisa são tratados, publicados e recebidos pelo público – são desafios [globais] que se articulam com políticas para promover a integridade científica. No contexto dos grand challenges, ao qual venho me referindo, a importância dos diálogos entre a ética, a integridade em pesquisa e a confiança pública na ciência deve ser ressaltada na formação dos jovens pesquisadores, e esse é um desafio que não é local. Embora essa necessidade já venha sendo percebida como um aspecto crucial da formação desses jovens em vários países, há muito o que se avançar no cenário internacional de políticas científicas e educacionais relacionadas ao tema. n
Engajamento da ciência com o público e ética em pesquisa são temas correlacionados nham papel relevante nessas interações, que, por vezes, podem ser conflituosas. No contexto de cross-cultural research existem situações muito práticas que são facilmente resolvidas. Diria que, comparativamente a situações mais cinzentas sobre conduta responsável em pesquisa, poucos pesquisadores têm dúvida do que é falsificar um resultado, do que é fabricar um dado. Um japonês, turco ou árabe
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ciĂŞncia
Capa de maio de 2007 sobre cĂŠlulas-tronco usadas experimentalmente no tratamento de diabetes. Foto de Miguel Boyayan 60 | novembro DE 2011
Telescรณpio Soar nos Andes chilenos. Foto de Ricardo Zorzetto, de marรงo de 2010 PESQUISA FAPESP 200 | 61
ciência SAÚDE PÚBLICA y
Aids
ainda longe do controle Taxas elevadas de infecção persistem entre homossexuais e expõem lacunas das estratégias de prevenção
texto
Carlos Fioravanti
O Leonilson O artista plástico José Leonilson, 1957 Fortaleza - 1993 São Paulo Foto Edouard Fraipont
Leonilson Bezerra Dias nasceu em Fortaleza, Ceará, em 1957. A temática da Aids predominou em sua obra a partir de 1991, quando ele soube que estava com HIV/Aids. Leonilson morreu em 1993
Jogos perigosos (ao lado), circa 1990, acrílico sobre tela, 50 x 60 cm
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ILUSTRAÇÕES
Leonilson
s profissionais da área da saúde estão preocupados com o silencioso avanço da Aids. A razão mais recente são os resultados de um estudo em que foram entrevistados 1.217 frequentadores de bares, cinemas e boates da região da República e da Consolação, no centro da cidade de São Paulo. Esse trabalho registrou taxas altas de infecção pelo vírus HIV, causador da Aids, principalmente entre jovens homossexuais, e revelou situações que os tornam muito vulneráveis às infecções, além de brechas nas estratégias de prevenção de uma doença que ainda é um desafio de saúde pública, com 37 mil casos novos por ano no Brasil, dos quais 7 mil no estado de São Paulo. Dos entrevistados com 18 a 24 anos de idade, 6,4% estão infectados com o vírus HIV – uma taxa cerca de 50 vezes maior que a média nacional nessa faixa de idade. Entre os entrevistados com 18 e 19 anos, a taxa de infecção foi de 5%, indicando que teriam se contaminado nos dois primeiros anos da vida sexual. Considerando todas as faixas de idade, a taxa de infecção entre todos os entrevistados foi 15% para o HIV e 18% para a sífilis, outra doença sexualmente transmissível. “São números inaceitavelmente altos”, afirma Maria Amélia Veras, professora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e uma das coordenadoras desse estudo. Chamado SampaCentro, esse trabalho reuniu pesquisadores da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa, Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), Universidade de São Paulo pelo HIV, mas nem sempre a prevenção parece (USP), Instituto Adolfo Lutz, Fundação Oswaldo possível. Quem pode estar infectado tende a adiar Cruz (Fiocruz) e organizações não governamen- o teste de detecção do vírus por causa do medo tais. “O que vimos reflete o que se passa também de sofrer as consequências de uma doença cujo em outras regiões da cidade e em outras cida- tratamento ainda é árduo. O uso do preservativo des”, diz Gabriela Calazans, professora da Santa ainda é o método mais seguro e barato de eviCasa, pesquisadora do Centro de Referência e tar a infecção, mas nem sempre é promovido e, Treinamento em Doenças Sexualmente Trans- portanto, adotado por jovens e outros segmentos missíveis e Aids da Secretaria de Saúde de São mais expostos à infecção. Quase metade (43%) Paulo e outra coordenados entrevistados disse dora da pesquisa. que tinha pelo menos curO Ministério da Saúso universitário, indicande registra um aumento do que não teria sido por na prevalência da infecfalta de acesso à informação entre homossexuais ção que se contaminaram de 17 a 22 anos de idade Gerentes dos ou se arriscam a se conta– de 0,56% em 2002 para 73 lugares visitados minar. Quase todos os en1,2% do total de infectados reconheceram em 2007 –, mas os hábitos disseram que o público trevistados que o risco de se infectar sociais e sexuais dos homossexuais e bissexuais, precisava saber mais com o HIV nas relações homossexuais era gransegundo as coordenadoras de (69%) ou moderado desse trabalho, não eram sobre medidas de (28%), mas a consciência examinados em profundiprevenção da Aids do risco nem sempre se dade em São Paulo desde converteu em ações que o Projeto Bela Vista, há pudessem evitar a infeccerca de 10 anos. ção: quase um terço (29%) Os lugares visitados nesdos entrevistados relatou se levantamento são freter dificuldade em usar quentados principalmenpreservativo quando este por homossexuais (80% dos entrevistados). Por ali circulam também ho- tão apaixonados e 13% sentem dificuldade para mens que fazem sexo com homens e não se consi- dizer ao parceiro que quer usar preservativo. “Nos contextos de vida e das relações nem deram homossexuais, além de homens que fazem sexo com mulheres, reforçando a necessidade de sempre há espaço para a adoção de medidas de ações específicas de prevenção entre todos os gru- prevenção capazes de evitar a transmissão do pos. De 1980 a junho de 2011, as estatísticas regis- vírus para outras pessoas”, diz Gabriela. Ela faz traram 608.230 casos de Aids no Brasil, com uma um paralelo com a prevenção de doenças como incidência crescente entre mulheres, infectadas hipertensão, diabetes ou obesidade: “Apesar de principalmente pela via heterossexual. De acor- sabermos que devemos mudar a dieta e praticar do com o Ministério da Saúde, havia um caso de atividades físicas, nem sempre é fácil incorporar Aids entre mulheres para cada 26 de homens em as mudanças às nossas vidas”. Os entrevistadores não encontraram cartazes 1985; já em 2010 a proporção era de um caso em ou material indicando medidas de prevenção mulheres para cada 1,7 homem. do contágio ou recomendando a realização de testes para diagnóstico da infecção pelo HIV MEDO E DISCRIMINAÇÃO Trinta anos depois de os primeiros casos terem ou outra doença sexualmente transmissível na sido registrados em São Paulo e em outros esta- maioria dos 73 lugares visitados. “Vários gerendos, a Aids perdeu visibilidade, já que deixou de tes disseram que o público precisava saber mais ser uma doença incurável de alta mortalidade. sobre medidas de prevenção de Aids”, observou Em muitos sentidos, porém, parece ter mudado Gabriela. “Poucos disseram que nosso trabapouco. Não se fala mais em grupos de risco, um lho iria atrapalhar o funcionamento da casa e conceito de saúde pública que no início da epi- barravam os entrevistadores, alegando que os demia causou discriminação mesmo em quem clientes estavam ali para se divertir e não quenão estava infectado, mas as agora chamadas po- riam ouvir falar de doença. As barreiras foram pulações mais vulneráveis ainda são vítimas de mais frequentes em locais voltados às camadas discriminação na escola, no trabalho, na família socioeconômicas mais altas.” De novembro de 2011 a janeiro de 2012, 34 ene no círculo de amigos, como a pesquisa indicou. Persiste a preocupação com os riscos da infecção trevistadores trabalhavam geralmente das 22 horas 64 z outubro DE 2012
às 2 horas da madrugada para conhecer os hábitos e os temores de homossexuais, heterossexuais e bissexuais. Ao encontrá-los, faziam uma pergunta simples: “Pode participar de uma pesquisa?”, e logo em seguida uma contundente: “Você já fez sexo anal ou oral com homossexual ou travesti?”. Depois da entrevista, que durava em média 45 minutos, os entrevistadores convidavam os entrevistados para fazer uma coleta de sangue na ponta do dedo para detectar o HIV. Dos 1.217 entrevistados, 778 fizeram o teste, mas só 282 foram buscar o resultado no Centro de Referência e Treinamento em DST/Aids da Secretaria da Saúde, na Vila Mariana; dos 235 que fizeram os testes para sífilis e hepatites B e C, 172 foram buscar. “Muitos participantes aceitaram realizar o teste como forma de contribuir para a produção de conhecimentos que pudessem reorientar o desenvolvimento de políticas públicas de saúde para o grupo, mas já diziam não ter interesse em buscar o resultado, em muitos casos porque já o conheciam, mas também por medo”, observa Gabriela. “Principalmente entre os homens que fazem sexo com homens, o medo de saber que é positivo aparece como a maior razão para não fazer o teste ou não querer saber do resultado”, disse Maria Amélia ao apresentar as conclusões do estudo na manhã do dia 30 de agosto em um congresso sobre prevenção de Aids realizado em São Paulo. “O resultado do teste, se positivo, pode intensificar a discriminação e o isolamento social.”
Destaques do SampaCentro perfil dos 1.217 entrevistados Identidade sexual e de gênero
n Homossexual n Bissexual n Heterossexual
n Travestis n Transexuais
Idade
n 18-19 anos n 20-24 anos
n 25-39 anos n 40-77 anos
hábitos e comportamento Número de parceiros sexuais nos últimos seis meses (em%) 18-19 anos
20-24 anos
25-39 anos
40 ou mais
n 11 ou mais n 6 a 10 n 2a5 n1
Infecção por HIV
Discriminação (em %) n Heterossexual n Bissexual n Homossexual n Transsexual n Travesti
Não selecionado ou demitido de um emprego Mal-atendido ou barrado em lojas Mal-atendido em serviços de saúde Excluído ou marginalizado em ambiente familiar Agressão verbal Assédio no trabalho Marginalizado por professores e colegas de escola 0 Fonte: SampaCentro
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ESTABILIZAÇÃO questionável “Os jovens de hoje não viram a cara da Aids, quando iniciamos o trabalho de prevenção na escola”, afirma Vera Paiva, coordenadora do Núcleo de Estudos para a Prevenção da Aids (Nepaids) e professora do Instituto de Psicologia da USP. Quem nasceu depois de 1990 provavelmente apenas ouviu falar do pavor dos primeiros tempos da Aids, na década de 1980, quando nem os médicos nem os pacientes sabiam o que a doença era e o que a causava. Até meados dos anos 1990, quando não havia medicamentos, as pessoas com Aids chegavam aos hospitais sabendo que iam ficar em alas de isolamento e morrer em algumas semanas, no máximo em poucos meses. “No meio do pânico do início da epidemia, quando as professoras, pais e religiosos se convenceram da necessidade de um trabalho psicoeducativo promovendo a prevenção, era mais fácil trabalhar com as escolas”, diz Vera Paiva. “Mas hoje muitos gestores restringem a prevenção nas escolas, apesar de a educação escolar de adolescentes sobre o uso do preservativo ter sido apoiada por 97% dos brasileiros, de todos os grupos sociais. Foi também o trabalho nas escolas que garantiu a celebrada estabilização do crescimento da epidemia.” pESQUISA FAPESP 200 z 65
Fotos Edouard Fraipont
“Não se pode fazer prevenção sem reconhecer a diversidade de formas como as pessoas resolvem seus desejos” Para ela, a noção de estabilização da epidemia, propagada pelo Ministério da Saúde, “não pode ser celebrada, muito menos nos níveis em que está”. “Quisemos acabar com a inflação, não controlar”, ela compara. “Não podemos nos contentar em ver as taxas de infecção em patamares altos. A valorização incorreta de estabilização, a homofobia vigente e o recrudescimento do discurso religioso podem jogar por terra um trabalho de mobilização e de prevenção de décadas.” Ativistas, pessoas com Aids ou seus amigos e familiares, pesquisadores e médicos conseguiram trabalhar intensamente em conjunto e deter o avanço da epidemia por meio de medidas de prevenção até o final da década de 1990, quando começaram a ser distribuídos os primeiros medicamentos contra Aids. Em paralelo, várias equipes trabalhavam com afinco em institutos de pesquisas e universidades para participar do combate à epidemia. Um dos marcos desse empenho é a identificação do vírus HIV no Brasil, em 1987, como resultado do trabalho do imunologista baiano Bernardo Galvão e de sua equipe da Fiocruz do Rio de Janeiro (ver Pesquisa FAPESP nº 118). Nos anos seguintes, outros grupos começaram a identificar os subtipos do HIV mais frequentes no país, desse modo contribuindo para aprimorar os tratamentos médicos.
“ACOMODAÇÃO” No dia 21 de agosto começou a circular pela internet – e depois foi debatido no congresso em São Paulo – o manifesto “Aids no Brasil hoje – o que nos tira o sono”, que ganhou esse título em referência a um comentário de Dirceu Greco, diretor do Departamento de DST, Aids e Hepatites do Ministério da Saúde. Na conferência internacional de Aids, realizada em Washington, ele disse que não perdia o sono por causa da doença no Brasil. O documento, que em poucos dias exibia quase 370 nomes – o primeiro era o de Vera Paiva, do Nepaids –, sustentava: “A afirmação de que 66 z outubro DE 2012
a epidemia de Aids está sob controle no Brasil, além de falaciosa, tem prejudicado a resposta nacional, despolitizando a discussão e afastando investimentos internacionais. Se no passado declarar que éramos o melhor programa de Aids do mundo legitimou as decisões ousadas que outrora caracterizaram o programa brasileiro e que tantos benefícios trouxeram à população, o que temos hoje é, pelo contrário, um programa desatualizado, cujos elementos são insuficientes para enfrentar a configuração nacional da epidemia”. O documento expôs um aumento de 10% no número de mortes por Aids (de 11.100 em 2005 para 12.073 em 2010) e de 12% no número de casos (de 33.166 em 2005 para 37.219 em 2010). “Parece que houve uma acomodação dos diferentes atores na resposta à epidemia”, comentou Ivo Brito, coordenador da unidade de prevenção do programa nacional de DST e Aids do Ministério da Saúde, em um dos debates do congresso. “Olhávamos para tendências gerais, não para particularidades, ou microáreas, que muitas vezes expressavam dados bem diferentes. A Aids não é uma epidemia única, é um conjunto de epidemias, um mosaico, com características próprias.”
El puerto, c. 1992, bordado sobre tecido de algodão e espelho emoldurado, 23 x 16 cm
O perigoso, c. 1992, tinta preta e sangue sobre papel, 30,5 x 23 cm
E agora, o que fazer? “Não se pode enfrentar a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis sem reconhecer que existe uma grande diversidade de comportamento, de orientação sexual e de formas como as pessoas resolvem seus desejos”, ressalta Maria Amélia. Ela conta que sua equipe tem se encontrado com representantes do governo e de organizações não governamentais para assegurar que as análises ajudem a orientar ações capazes de conter a Aids e outras doenças sexualmente transmissíveis. “Temos de ser criativos e ampliar as ações de prevenção”, diz ela. Veriano Terto Junior, coordenador-geral da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), uma das mais antigas organizações não governamentais nessa área, concorda: “Uma só estratégia de prevenção, recomendando o uso da camisinha, não tem sido suficiente”. Os especialistas reconhecem a necessidade – e a urgência – de ampliar o acesso a preservativos, a testes e a serviços de saúde e intensificar as ações de aconselhamento sobre as formas de prevenir a infecção e ampliar as estratégias de prevenção. Uma das mais recentes, intensamen-
te debatida nos últimos meses, é o uso de medicamentos antivirais que poderiam ser tomados antes ou logo após a exposição a situações de risco de infectar-se. Os especialistas ressaltam, porém, que essa nova possibilidade de tratamento preventivo ainda está sendo avaliada e não está claro a que grupos poderá servir melhor e como poderia efetivamente funcionar. Trabalhar mais intensamente com grupos mais vulneráveis à infecção pelo HIV parece, outra vez, prioritário. Paulo Roberto Teixeira, assessor do programa estadual de DST-Aids em São Paulo, havia feito essa recomendação logo no início da epidemia, como registrado no livro Aids – A epidemia, de 1987. No último dia do congresso de Aids em São Paulo, ele comentou: “Estamos todos insatisfeitos com o que conseguimos até o momento”. Nos últimos 10 anos, segundo Teixeira, não houve alteração da pre valência, que se mantém em patamares altos entre homossexuais, homens que fazem sexo com homens e prostitutas. “Em 10 anos, desde que a epidemia ganhou o perfil atual de pauperização, interiorização e heterossexualização, houve prejuízo das ações de prevenção? O esforço para descaracterizar os grupos de risco e dizer que Aids é de todos nós reduziu a intervenção nos grupos mais vulneráveis? Temos de reavaliar.” Outro desafio considerável é como identificar e tratar as mulheres com HIV/Aids. Marli Cassamassimo Duarte examinou a prevalência de doenças sexualmente transmissíveis em 184 mulheres com HIV e idade entre 18 e 67 anos atendidas no ambulatório de infectologia da Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Do total, 84% haviam sido infectadas pelo parceiro atual ou pelo anterior; 83% apresentavam o papiloma vírus humano (HPV), causador de câncer no colo do útero, e 24,6%, clamídia, doença sexualmente transmissível de origem bacteriana. “O alto percentual de DSTs indica sexo desprotegido e favorecimento da cadeia de transmissão”, concluiu Marli. Como esses microrganismos aumentam o risco de infecção pelo HIV, ela sugere: “O rastreio de doenças sexualmente transmissíveis deveria ser reforçado nas unidades básicas de saúde”. n
Projeto Comportamentos e práticas sexuais, acesso à prevenção, prevalência de HIV e outras infecções de transmissão sexual entre gays, travestis e homens que fazem sexo com homens (HSH) na região central de São Paulo – nº 09/53082-9. Modalidade: Pesquisa em Políticas Públicas para o SUS. Coordenadora: Maria Amélia de Sousa Mascena Veras - Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Investimento: R$ 359.124,00 (FAPESP). pESQUISA FAPESP 200 z 67
Em busca de novos espaços: um T.cruzi (em vinho), com vesículas (em amarelo) sobre o corpo, próximo a uma célula hospedeira
Parasita
pronto para o ataque Vesículas com proteínas ajudam Trypanosoma cruzi a invadir células hospedeiras
68 z outubro DE 2012
DOENÇAS TROPICAISy
imagem Renato Mortara – Unifesp / Maria Cecília Fernandes – Universidade de Maryland
A
o examinarem as informações que eles próprios e outros grupos haviam produzido nos últimos 40 anos, pesquisadores de São Paulo identificaram um possível mecanismo que deve ajudar o protozoário causador da doença de Chagas a invadir as células hospedeiras. Tão logo se instala em uma única célula, o Trypanosoma cruzi se diferencia, se divide intensamente a ponto de romper a célula e libera vesículas com proteínas e lipídeos (gorduras) que devem facilitar a instalação dos parasitas em outras células. “Parece que esse é um fenômeno abrangente”, diz Walter Colli, professor do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP) e supervisor desse estudo, realizado por Ana Cláudia Torrecilhas, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em Diadema, em colaboração com Robert Schumacher e Maria Júlia Manso Alves, da USP. “Outros grupos de parasitas e células tumorais também liberam vesículas que funcionam de modo similar e facilitam a infecção das células hospedeiras.” Os especialistas dessa área, no Brasil e em outros países, estão animados com a possibilidade de usar essas informações para desenvolver novas formas de combater ou diagnosticar doenças tropicais de amplo alcance mundial. É o caso da doença de Chagas, que atinge cerca de 10 milhões de pessoas na América do Sul e está se tornando um problema de saúde pública nos Estados Unidos. Em um editorial publicado em maio deste ano na revista PLoS Neglected Diseases, pesquisadores dos Estados Unidos e do México alertaram para o avanço da doença de Chagas nos Estados Unidos, principalmente entre imigrantes nos estados mais próximos da fronteira com o México; estima-se em 1 milhão o número de pessoas infectadas. Nesse trabalho a doença de Chagas foi chamada de “uma nova Aids das Américas”: embora uma seja causada por um protozoário transmitido por um inseto e a outra por vírus, principalmente por contato sexual, ambas podem ser passadas adiante por meio de transfusão de sangue, são mais frequentes entre pessoas mais pobres e exigem tratamentos prolongados. Além disso, a doença de Chagas tem se mostrado uma infecção oportunista relevante entre pessoas vivendo com HIV/Aids e, como nas primeiras
duas décadas da epidemia de Aids, a maioria das pessoas com Chagas não tem acesso a serviços médicos de saúde. Em agosto, Peter Hotez, professor da Escola de Medicina Baylor e diretor do Instituto de Vacinas Sabin, ambos em Houston, nos Estados Unidos, e primeiro autor do editorial na PLoS, assinou um artigo no jornal New York Times argumentando que as doenças tropicais como Chagas, dengue e leishmaniose e cisticercose eram as “novas pragas da pobreza”. Segundo ele, 20 milhões de pessoas nos Estados Unidos vivem na pobreza extrema. “Sem novas intervenções”, ele comentou, “essas doenças estão aqui para ficar, mantendo as pessoas na pobreza por décadas”. vários tamanhos
A produção científica sobre as vesículas é intensa – cerca de 3.500 artigos sobre essas estruturas foram publicados nos últimos cinco anos —, mas também há muitas dúvidas. A primeira delas: como chamar esses compartimentos repletos de proteínas? Em um artigo publicado em fevereiro deste ano na revista Proteomics and Bioinformatics, dois pesquisadores da Universidade La Trobe, Austrália, observaram que as chamadas microvesículas extracelulares estão recebendo nomes diferentes, de acordo com suas dimensões, origem e composição. Um dos tipos de vesícula, o exossomo, com diâmetro de 30 a 100 nanômetros, se mostrou relevante por ter muitas funções, como transferir o vírus HIV para células-alvo, e ganhou um site exclusivo, o www.exocarta.org, com quase 150 estudos e 4.563 proteínas identificadas até o início de setembro. Há também vesículas de outros tipos, por enquanto menos relevantes, como o ectossomo, grande vesícula de membrana e bolha apoptótica, que pode ter 5 mil nanômetros e é liberado por células agonizantes. As vesículas do T. cruzi são menores, com 20 a 80 nanômetros de diâmetro, e inicialmente não ganharam muita importância. No final dos anos 1980, ao identificarem as vesículas, Marinei Gonçalves, Maria Júlia Manso Alves, Bianca Zingales e outros pesquisadores da equipe de Colli pensaram, como outros dessa área, que se tratava apenas de material descartado, embora já tivessem visto que variedades mais virulentas de T. cruzi liberavam mais vesículas que as menos virulentas. pESQUISA FAPESP 200 z 69
Batalha
O Trypanosoma cruzi libera vesículas que induzem
entre as células
Trypanosoma cruzi
um aumento da infecção nas células hospedeiras
Amastigotas
As vesículas se fundem com a membrana de macrófagos, e outras células de defesa,
O protozoário invade outras
... se diferencia,
células...
se multiplica...
Nos anos seguintes, outros estudos e equipamentos mais sensíveis indicaram que as proteínas e os lipídeos das vesículas poderiam facilitar a infecção das células hospedeiras pelo parasita. Em seu doutorado e no pós-doutorado, feito sob a supervisão direta de Maria Júlia, Ana Claudia Torrecilhas verificou que as proteínas das vesículas aumentam a quantidade e a ação dos parasitas nos tecidos e induzem uma resposta inflamatória do hospedeiro. Em um estudo com camundongos, ela observou que as vesículas facilitavam a entrada do parasita nas células do coração e antecipavam a morte dos animais. Agora, em um estudo a ser publicado em outubro na Microbes and Infection, os pesquisadores da USP e da Unifesp comentam que quase metade do conteúdo das vesículas é formada de glicoproteínas (proteínas associadas com açúcares). Uma delas é a transialidase, enzima específica desse parasita, além de outras codificadas por uma superfamília de genes – com cerca de 700 70 z outubro DE 2012
... rompe as células e libera as vesículas (ver imagem na pág. 68)
Os parasitas causadores da doença do sono e da leishmaniose também liberam vesículas
facilitam a invasão dos parasitas e induzem a produção de citocinas
genes ativos e 700 pseudogenes – denominada gp85, também descoberta no laboratório de Colli. Essas moléculas podem ativar proteínas – ou receptores – da membrana externa de células de defesa como os macrófagos, células dendríticas e linfócitos. Por sua vez, os receptores estimulam a produção de óxido nítrico e de moléculas como o interferon-gama, o fator de necrose tumoral e a interleucina-12. Essas moléculas aumentam a resposta inflamatória das células hospedeiras, atraindo mais células, que destroem os parasitas, mas também danificam as células do organismo, facilitando a invasão dos parasitas que sobreviveram à batalha ou chegaram em seguida. Após um T. cruzi invadir uma célula, o que não faltará é parasita. Segundo Colli, um único T. cruzi se divide rapidamente e em poucas horas pode se multiplicar em 500 outros, que fazem a célula hospedeira explodir, liberando-os para o meio extracelular e a corrente sanguínea, que lhes permite chegar a outras células.
Ilustração Alexandre Affonso foto microscopia Robert I Schumacher/ USP Fontes Walter Colli/USP, Ana Claudia Torrecilhas/Unifesp - Diadema
Resposta pró-inflamatória
Chegam mais parasitas,
As citocinas
que liberam mais vesículas,
ativam outras células
e, por mecanismos ainda
de defesa que
incertos, alteram a resposta
podem eliminar os
do organismo em
parasitas
benefício dos parasitas
outros parasitas
“Em 15 minutos, as vesículas do T. cruzi podem se fundir com os macrófagos”, diz Ana Claudia. Outros pesquisadores verificaram que outros dois grupos de protozoários também liberam vesículas, com funcionamento similar e conteúdo provavelmente distinto. O primeiro são os protozoários do gênero Leishmania, causador da leishmaniose, que se espalhou por 98 países, com 2 milhões de novos casos por ano. O segundo é o Trypanosoma brucei, com subespécies (T. b. gambiense e T. b. rhodesiense) causadoras da doença do sono, que atinge cerca de 70 mil pessoas na África subsaariana. Outros dois parasitas, o Plasmodium falciparum, causador da malária, responsável por cerca de 1 milhão de mortes por ano na África, e o Toxoplasma gondii, causador da toxoplasmose, agem de outro modo: invadem as células hospedeiras e em seguida são elas que produzem vesículas com proteínas dos microrganismos invasores, que são liberadas e alertam outras células de defesa.
Os pesquisadores pretendem o mais breve possível saber quais proteínas das vesículas de T. cruzi e de outros protozoários ativam as respostas inflamatórias das células hospedeiras e como a resposta do organismo é alterada de modo a beneficiar os parasitas. Desde já está claro, porém, que as vesículas funcionam como um meio de sinalização ou comunicação a distância entre os parasitas e as células hospedeiras. Nos últimos anos várias estruturas celulares estão sendo reconhecidas como capazes de destruir ou, inversamente, beneficiar outras células. Outros estudos mostraram que as células podem produzir estruturas chamadas nanotubos de tunelamento, com diâmetro de 50 a 200 nanômetros e uma extensão equivalente ao diâmetro de várias células. Por meio desses tubos um linfócito pode se ligar a outro e enviar nutrientes ou componentes celulares que, no caso das células de defesa, ajudam a prolongar – e geralmente vencer – o combate contra parasitas e células tumorais. n Carlos Fioravanti
Projetos 1. Interação entre Trypanosoma cruzi e hospedeiro: ligantes, receptores e condicionantes do desenvolvimento intracelular – nº 04/03303-5; 2. Vesículas liberadas pelo T. cruzi: papel de seus componentes na infecção – nº 04/08487-7. Modalidades: 1. Projeto Temático. 2. Bolsa de pós-doutorado. Coordenadora: 1. Maria Júlia Manso Alves – IQ-USP; Bolsista: 2. Ana Claudia Torrecilhas - IQ-USP Investimento: 1. 1.248.031,59; 2. R$ 204.190,40 (FAPESP).
Artigos científicos GONÇALVES, M.F. et al. Trypanosoma cruzi: Shedding of surface antigens as membranevesicles. Experimental Parasitology. v. 72, n. 1, p. 43-53. 1999. TORRECILHAS A.C. et al. Vesicles as carriers of virulence factors in parasitic protozoan diseases. Microbes and Infection (in press). 2012. TORRECILHAS A.C. et al. Trypanosoma cruzi: parasite shed vesicles increase heart parasitism and generate an intense inflammatory response. Microbes and Infection. v. 11, p. 29-39. 2009. SIMPSON, R. J. e MATHIVANAN, S. Extracellular microvesicles: the need for internationally recognised nomenclature and stringent purification Criteria. Proteomics & Bioinformatics. v. 5, n. 2, p. ii. 2012. HOTEZ P.J. et al. Chagas Disease: the new HIV/AIDS of the Americas. PLoS Neglected Tropical Diseasis. v. 6, n. 5, p. e1498. 2012. pESQUISA FAPESP 200 z 71
Doenças neurodegenerativas y
O cronômetro do cérebro Compostos encontrados no sangue podem indicar o grau de envelhecimento cerebral
72 z outubro DE 2012
combater os radicais livres produzidos nas reações químicas necessárias para manter a vida, em especial, a respiração celular, que converte o açúcar glicose em energia. Tania, Elisa e Scavone compararam os níveis de compostos produzidos por células do sangue e do cérebro e identificaram três que refletiriam a capacidade de lidar com os radicais livres. Todos os três são compostos de nome complicado – monofosfato cíclico de guanosina (GMP cíclico), óxido nítrico sintase (NOS) e substâncias reativas ao ácido tiobarbitúrico (TBARS) –, cujos níveis variam à medida que o organismo envelhece. O GMP cíclico participa de reações químicas que auxiliam na eliminação dos radicais livres. Com o passar dos anos, seus níveis diminuem tanto nas células cerebrais como nas plaquetas, células fundamentais para a coagulação do sangue, constataram os pesquisadores em medições periódicas feitas em ratos desde o nascimento até os sincronia bioquímica Testes com ratos mostraram que, com a idade, o nível de um composto protetor das células (GMP cíclico) baixa no cérebro e no sangue e o de compostos danosos (NOS e TBARS) aumenta NO HIPOCAMPO (CÉREBRO)
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NO SANGUE
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NOS
TBARS
GMPc
NOS
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(10-15 mol/mg)
(10-12 mol/mg.min)
(10-9 mol/mg)
(10-12 mol/108 plaquetas)
(10-12 mol/mg.min)
fonte cristoforo Scavone / usp
U
m grupo de pesquisadores brasileiros parece ter encontrado uma forma simples e pouco invasiva de medir o grau de envelhecimento do cérebro. Em estudos com roedores e com seres humanos, eles observaram que o nível de três compostos encontrados em células do sangue pode refletir a saúde das células cerebrais. A expectativa é que, caso os testes que ainda precisam ser realizados sejam bem-sucedidos, se chegue a uma forma de identificar doenças neurodegenerativas como o Alzheimer e o Parkinson nos estágios bem iniciais, antes de os sinais clínicos surgirem. “Encontramos no sangue de pessoas com essas doenças um conjunto de compostos que indicam a produção excessiva de substâncias tóxicas no cérebro”, explica o farmacologista Cristoforo Scavone, chefe do Laboratório de Neurofarmacologia Molecular no Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP) e um dos coordenadores da pesquisa. Scavone e as farmacologistas Tania Marcourakis, da Faculdade de Ciência Farmacêuticas da USP, e Elisa Kawamoto, atualmente pesquisadora nos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos, procuram há mais de uma década compostos que funcionem como marcadores biológicos do envelhecimento cerebral e das enfermidades que costumam acometer o cérebro à medida que a idade avança. De acordo com algumas teorias, o corpo envelhece – e morre – porque suas células perdem a capacidade de se recuperar de danos que ocorrem o tempo todo, causados por radicais livres. Segundo esse raciocínio, doenças como o Alzheimer surgiriam em consequência do envelhecimento acelerado das células cerebrais, que se tornaram incapazes de
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milhões de pessoas viviam com algum grau de demência em 2010
24 meses, que em seres humanos corresponderiam à idade aproximada de 85 anos. O oposto ocorreu com os níveis de NOS, enzima que participa da produção de radicais livres, e de TBARS, composto que resulta de danos à membrana das células. Segundo estudo publicado no início deste ano na revista Age, a quantidade de NOS nas plaquetas e de TBARS nas hemácias, células do sangue que transportam oxigênio, aumentou em proporção semelhante às que subiram nas células cerebrais.
ilustração nelson provazi
alzheimer
Algumas das alterações observadas agora em roedores já haviam sido identificadas pelos pesquisadores em pessoas com Alzheimer. No início da década passada, Elisa, Tania e Scavone, em parceria com o neurologista Ricardo Nitrini, também da USP, analisaram os níveis de NOS no cérebro de pessoas com Alzheimer e verificaram que eram mais elevados do que no de pessoas sem a doença. “O quadro de estresse oxidativo [produção excessiva de radicais livres] que encontramos nos pacientes sugere que há um desequilíbrio bioquímico em comparação com o envelhecimento sadio”, diz Elisa. Em seguida, os pesquisadores repetiram os testes em ratos com idades variando de 4 a 24 meses e constataram que, quanto mais velho o animal, maior a produção de NOS, enzima associada à produção de óxido nítrico, composto essencial à vida que funciona como neurotransmissor no sistema nervoso central e, em excesso, mata as células por gerar radicais livres (ver Pesquisa FAPESP nº 161). Na opinião do neurocientista Luiz Eugênio Mello, da Universidade Federal de São Paulo, os três compostos parecem funcionar como marcadores do envelhecimento cerebral. Mas é preciso fazer
mais experimentos para descobrir se eles de fato permitem identificar o surgimento de doenças neurodegenerativas antes que os sinais clínicos apareçam. “São necessários testes com idosos saudáveis e idosos com doenças neurodegenerativas para confirmar se realmente existe diferença nos níveis desses marcadores”, diz Mello. Mesmo que as variações sejam confirmadas, ainda será preciso descobrir se resultam do envelhecimento e das enfermidades neurodegenerativas ou de fatores ambientais. “Qual a influência do fumo, da poluição e de outros fatores?”, questiona Mello. Scavone concorda com a análise e diz que um dos próximos passos é investigar a influência de fatores ambientais. “Talvez o exercício físico ou a vida intelectualmente ativa possa ajudar o cérebro a preservar a capacidade de recuperação de quando se é jovem”, conjectura. Ainda não se sabe se o desequilíbrio bioquímico observado no Alzheimer também ocorre em enfermidades como o Parkinson. “As doenças neurodegenerativas têm mecanismos fisiopatológicos básicos comuns, que são o estresse oxidativo e a excitotoxicidade”, diz Tania, “por isso é possível que encontremos resultados semelhantes”. Em artigo de 2011 no Journal of Alzheimer’s Disease, ela e colaboradores mostraram que é possível identificar o aumento do estresse oxidativo em amostras de sangue de pessoas com comprometimento cognitivo leve, estágio intermediário entre o envelhecimento normal e o Alzheimer. “Caso esses três compostos sejam validados como marcadores do envelhecimento cerebral, é possível imaginar que levem a um teste com aplicação clínica”, diz Scavone. Um exame de sangue que identifique precocemente os problemas ligados ao envelhecimento cerebral será valioso em um mundo que está envelhecendo. A Organização Mundial da Saúde calcula que 35 milhões de pessoas viviam com algum tipo de demência – em 70% dos casos, Alzheimer – em 2010. Esse número deve saltar para 65,7 milhões em 2030. n
Projetos 1. Avaliação do estresse oxidativo em plaquetas de pacientes com doença de Alzheimer – nº 1999/09454-5; 2. Envelhecimento e doença de Alzheimer: processos contínuos? Efeito dos anticolinesterásticos e antioxidantes – nº 2004/10205-0. Modalidade: 1. e 2. Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa. Coordenadora: 1. e 2. Tania Marcourakis – FCF/USP. Investimento: 1. R$ 114.459,68 (FAPESP); 2. R$ 55.077,62 (FAPESP).
Artigos científicos KAWAMOTO, E. M. et al. Age-related changes in nitric oxide activity, cyclic GMP, and TBARS levels in platelets and erythrocytes reflect the oxidative status in central nervous system. Age. 26 jan. 2012. TORRES, L.L. et al. Peripheral oxidative stress biomarkers in mild cognitive impairment and Alzheimer’s disease. Journal of Alzheimer’s Disease. v. 26(1), p. 59-68. 2011. pESQUISA FAPESP 200 z 73
ecossistemas tropicais y
Evolução
escrita nos cipós Botânicos usam trepadeiras para compreender a origem
P
Ricardo Zorzetto
arece não haver desafio capaz de intimidar a botânica Lúcia Garcez Lohmann, especialista em sistemática de plantas da Universidade de São Paulo. Ao final do curso de biologia em 1995, aos 22 anos, ela se impôs uma tarefa que deixaria apreensivo qualquer pesquisador experiente. Decidiu buscar uma resposta definitiva para uma questão que havia dois séculos ocupava os botânicos: compreender como era o parentesco e a história evolutiva e biogeográfica das 382 espécies de cipós que se distribuem por uma vasta área das Américas, do sul do México ao norte da Argentina e do Chile, e contribuem para tornar as florestas tropicais tão diferentes das temperadas. Depois de visitar coleções em museus ao redor do mundo e passar meses em florestas das Américas Central e do Sul coletando novos exemplares, Lúcia construiu um sistema de classificação com base na relação de parentesco entre as espécies usando as características genéticas e morfológicas dessas plantas. Agora, ao mesmo tempo que começa a compreender quando, onde e como surgiu tamanha variedade de cipós – essas espécies representam quase metade das Bignoniáceas, família de plantas com flores em forma de sino que inclui árvores como os ipês e os jacarandás –, Lúcia está prestes a iniciar um projeto ainda mais ambicioso. Ela quer entender o que levou a floresta amazônica a abrigar a maior variedade de plantas e animais do mundo. Em resumo, o que permitiu à Amazônia ser a Amazônia.
Em colaboração com o ornitólogo norte-americano Joel Cracraft, ela coordenará pelos próximos cinco anos quase 30 pesquisadores – metade do Brasil e metade dos Estados Unidos – que analisarão dados sobre plantas, animais e o ambiente em busca de uma explicação para a biodiversidade da maior floresta tropical do mundo. Aprovado em setembro, o projeto resulta de uma cooperação entre a FAPESP e a National Science Foundation, dos Estados Unidos. Por meio dos programas Biota-FAPESP e Dimensions of Biodiversity, cada fundação repassará cerca US$ 2 milhões para a pesquisa. “Não conheço outro projeto que se proponha a produzir uma visão tão abrangente e integrada da Amazônia”, diz Lúcia. “A ideia é fazer uma síntese de tudo o que se sabe da região e construir um modelo teórico que explique melhor a origem de sua biodiversidade.” Há quase 40 anos se interpreta o surgimento da farta variedade de plantas e animais da Amazônia à luz da teoria dos refúgios, proposta no fim dos anos 1960 pelo geólogo alemão Jürgen Haffer e testada pelo zoólogo Paulo Vanzolini. Segundo esse modelo, alterações no clima deixaram a região mais seca e a floresta encolheu, passando a ocupar áreas restritas e isoladas. Chamadas de refúgios, essas áreas teriam permitido a sobrevivência de muitas espécies e favorecido o surgimento de outras, que se espalharam quando o clima voltou a ficar úmido e a floresta se expandiu. Submetida à prova várias vezes, a
fábio colombini
de florestas brasileiras |
Cipós na Mata Atlântica em Itatiaia, Rio de Janeiro: lianas do grupo Bignonieae podem ajudar a recontar a história evolutiva de vários ecossistemas pESQUISA FAPESP 200 z 75
teoria dos refúgios parece não ser mais suficiente para explicar a biodiversidade amazônica (ver Pesquisa FAPESP nº 129 e Especial 50 anos FAPESP). Uma das razões do questionamento é que a ideia dos refúgios como centros de diversidade de espécies pode ser consequência de uma distorção, já que em muitos casos os refúgios coincidem com as áreas de maior coleta de exemplares de plantas e animais. Assim, pode-se ter encontrado mais espécies nos refúgios porque se procurou melhor ali, e não por eles serem necessariamente mais ricos em espécies. “Quem estuda a biodiversidade testa a teoria dos refúgios por falta de opção”, comenta Lúcia. Com o novo projeto, ela e Cracraft esperam criar um modelo teórico mais abrangente para explicar a biodiversidade amazônica. “Ao final desses cinco anos queremos compreender em detalhe os padrões de biodiversidade que ocorrem na Amazônia e ser capazes de resolver algumas controvérsias sobre a história ambiental da região”, diz Cracraft, pesquisador do Museu de História Natural de Nova York. Ele, Lúcia e outros pesquisadores começaram a planejar esse estudo há quase quatro anos. “Tínhamos interesse científico na Amazônia e muitos de nós já publicavam trabalhos sobre a região”, conta Cracraft. “Mas compreender a história biótica e ambiental da Amazônia é algo grande e complexo demais para ser resolvido por
"Queremos reconstruir o que aconteceu na Amazônia nos últimos 20 milhões de anos", diz Lúcia
poucos pesquisadores, por isso fazia sentido pensar um projeto de maior escala.” O primeiro passo será reunir toda a informação disponível sobre alguns grupos da fauna e da flora amazônicas. Assim, espera-se identificar onde a concentração de espécies é maior e se essa concentração está associada a alguma característica ambiental (geológica ou climática). Em seguida, os pesquisadores pretendem resgatar a história evolutiva de todas as espécies de plantas, borboletas, aves e mamíferos que conseguirem amostrar. A partir de informações genéticas e da datação de fósseis,
A conquista de um continente Nativas da costa da América do Sul, as lianas do grupo Bignonieae se dispersaram para as regiões úmidas no interior do continente antes de alcançarem as áreas de clima mais seco e as Américas Central e do Norte
Ocupação dos biomas (*em milhões de anos atrás)
n Mata atlântica - 50 n Amazônia - 39 n Cerrado, caatinga, chaco - 27 fonte lúcia lohmann / ibusp
76 z outubro DE 2012
eles querem identificar os principais momentos de diversificação de espécies e onde se encontravam os ancestrais de cada grupo. Também planejam investigar se os eventos de diversificação estão associados a fenômenos geológicos, climáticos e outras características ambientais do passado, como as variações de disponibilidade de carbono e nitrogênio. “Queremos reconstruir o que aconteceu nos últimos 20 milhões de anos, pois é quando se imagina que tenham surgido muitas das espécies que vivem ali”, diz Lúcia. Muito do que há por ser feito na Amazônia não difere do trabalho dela com as 382 espécies de cipós do grupo Bignonieae, o maior dos grupos ou tribos da família das Bignoniáceas. A partir da genealogia que construiu, ela e sua equipe começaram a desvendar a história evolutiva dessas plantas, que representam o maior grupo de lianas – trepadeiras de caule amadeirado – das Américas (ver Pesquisa FAPESP nº 132). Elas assumem formas tão variadas, espalham-se por tantos ambientes e são tão abundantes nas florestas tropicais que, segundo os botânicos, servem de modelo para conhecer o que acontece com as outras espécies de plantas com flores. A origem
Com base em dados moleculares e na nova genealogia, Lúcia afirma com mais segurança que as lianas do grupo Bignonieae surgiram cerca de 50 milhões de anos atrás na região do que hoje é a costa brasileira ocupada pela mata atlântica, como informa em artigo a ser publicado no Botanical Journal of the Linnean Society. Naquela época, a América do Sul já estava separada da África. O clima era quente e úmido, os dinossauros já não viviam mais e uma grande variedade de mamíferos começava a ocupar o planeta. O ancestral dessas 382 espécies de cipós provavelmente era uma árvore – e não uma trepadeira. As flores do ancestral das Bignonieae tinham cinco pétalas que formavam um tubo alongado, com órgãos sexuais internos e uma região produtora de néctar no fundo. Eram semelhantes às flores das espécies do gênero Anemopaegma, que são roxas, brancas ou amarelas, concluíram Lúcia e a botânica Suzana Alcantara depois de analisar a evolução de 12 características anatômicas das flores de Bignonieae. “As
fotos 1 e 3 lúcia lohmann 2 g. gerlach
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A partir da esquerda e em sentido horário, os cipós Dolichandra unguis-cati, Martinella obovata, Pyrostegia venusta: nativos da Amazônia e encontrados em quase toda a América
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flores da primeira Bignonieae provavelmente eram roxas e polinizadas por pequenas abelhas”, comenta Suzana. A morfologia externa das flores, aliás, parece ser a característica mais sujeita a transformações. Embora a maior parte seja polinizada por abelhas, flores de coloração mais intensa (vermelhas ou amarelas) e formato que facilita a polinização por beija-flores apareceram 11 vezes entre as 104 espécies analisadas por Suzana e Lúcia. Outras cinco vezes surgiram flores – em geral brancas, com tubo mais estreito e alongado – que liberam um perfume intenso atraente para mariposas. Mas o que parece ter influenciado de fato a dispersão dessas plantas são as características do ambiente, como a disponibilidade de água e de luz e a variação de temperatura. novas fronteiras
A partir do litoral, as Bignonieae percorreram um longo caminho nas Américas. Há 39 milhões de anos, chegaram à região da atual Amazônia, onde hoje está
a maior diversidade de espécies. Dali se dispersaram para os Andes e as Américas Central e do Norte. Mais tarde, há 27 milhões de anos, passaram a ocupar o cerrado, a caatinga e o chaco. Toda vez que migraram para esses ecossistemas mais secos, elas sofreram alterações drásticas na morfologia: as trepadeiras deram lugar a arbustos, com uma série de prováveis adaptações ao novo ambiente onde a luminosidade é maior e não é preciso crescer agarrado a uma árvore para receber luz. Nessa migração, perderam as gavinhas, filamentos que se enroscam ao caule de árvores e lhes permitem alcançar o dossel das florestas. Em paralelo, pequenas estruturas do caule e das folhas que produzem néctar – os nectários extraflorais – parecem ter deixado de exercer uma função protetora. Na floresta, eles existem em maior quantidade e atraem formigas, que, por sua vez, espantam os insetos herbívoros. “A cada transição das florestas úmidas para áreas mais secas, o número de nectários diminuiu, alterando as interações desses nectários com as formigas e os herbívoros”, explica o ecólogo Anselmo Nogueira, da equipe de Lúcia. “Essas transições morfológicas abriram a porta de outros ambientes para
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as Bignonieae e provavelmente permitiram se diversificarem tanto”, comenta. Hoje Lúcia e sua equipe compilam dados sobre o momento em que surgiram ou desapareceram essas e outras características das Bignonieae. É uma tentativa de compreender se as mudanças são inovações que possibilitaram a ocupação de novos ambientes ou se elas ocorreram depois da chegada aos novos biomas, em adaptação a condições ambientais diferentes. “A história evolutiva das Bignonieae”, acredita Lúcia, “pode ajudar a esclarecer as origens e a evolução dos ecossistemas tropicais como um todo”. n
Projetos 1. Sistemática da tribo Bignonieae (Bignoniaceae) – nº 2011/50859-2; 2. Estruturação e evolução da biota amazônica e seu ambiente: uma abordagem integrativa – nº 2012/50260-6. Modalidade: 1. Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; 2. Programa Biota – Projeto Temático. Coordenadora: 1. e 2. Lúcia Garcez Lohmann – IB/USP. Investimento: 1. R$ 721.836,88 (FAPESP); 2. R$ 2.974.606,54 / US$ 461.132,00 (FAPESP).
Artigos científicos LOHMANN, L. G. et al. Pattern and timing of biogeographic history in the neotropical tribe bignonieae. Botanical Journal of the Linnean Society. 2012. pESQUISA FAPESP 200 z 77
Temperatura média da superfície (ago./set. - 2009)
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n 1973 n 1978 n 1988 n 1998 n 2008
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Mapas 1 Diego Souza e Regina Alvalá / Cemaden 2 Francis Wagner e Rodrigo Augusto de Souza / satélite Aqua
Crescimento da área urbana de Manaus
clima y
Ilha de calor na Amazônia Área urbana de Manaus é 3ºC mais quente do que a floresta Marcos Pivetta
foto AFP ImageForum
P
Capital do Amazonas: avanço de concreto e aslfato torna cidade mais quente
olos de desenvolvimento da Amazônia brasileira, encravadas na imensa, quente e úmida floresta tropical, Manaus e Belém começam a apresentar alterações climáticas típicas das grandes cidades. Entre 1961 e 2010, a temperatura média da capital amazonense aumentou 0,7º grau Celsius (ºC) e atingiu 26,5ºC, segundo levantamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). No mesmo período, a temperatura média da capital paraense subiu 1,51°C e alcançou 26,3ºC. Em ambos os casos, a elevação se deve principalmente ao crescimento da área urbanizada das cidades, processo que se acentuou nas duas últimas décadas, embora efeitos mais globais, ligados às mudanças climáticas de grande escala, também possam ter tido algum impacto sobre esse índice. Em 1973, as áreas urbanas de Manaus e da Região Metropolitana de Belém eram, respectivamente, de 91 e 76 quilômetros quadrados. Em 2008, esses números haviam subido para 242 e 270 quilometros quadrados (ver quadros nas páginas 79 e 81). Com mais prédios, concreto e asfalto tomando o lugar da vegetação nativa, o chamado efeito ilha urbana de calor, fenômeno conhecido há tempos por paulistanos e cariocas, também apareceu com força nas duas principais capitais da região Norte. Numa mesma hora do dia, a temperatura nas áreas dessas cidades mais densamente po-
voadas e ocupadas por construções e edifícios é consistentemente maior do que nas zonas rurais próximas, onde a floresta se mantém preservada. Os dados sobre ilhas de calor são mais nítidos no caso de Manaus, hoje a sétima cidade brasileira mais populosa, com mais de 1,8 milhão de habitantes, à frente de capitais do Nordeste, como Recife, e do Sul, como Porto Alegre e Curitiba. A diferença de temperatura entre as partes mais urbanizadas da metrópole amazonense e uma área de floresta distante cerca de 30 quilômetros, a Reserva Biológica do Cuieiras atinge picos de mais de 3ºC em 5 dos 12 meses do ano. Esses resultados se baseiam em informações colhidas hora a hora por quatro estações meteorológicas entre 2000 e 2008 e constam de um artigo científico publicado no dia 8 de agosto no site da revista Meteorological Aplications por Diego Souza e Regina Alvalá, ex-pesquisadores do Inpe e atualmente no Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), em Cachoeira Paulista. O trabalho também indica que a atmosfera das áreas urbanizadas de Manaus se tornou mais seca do que a das florestas vizinhas. Durante o período analisado, a umidade relativa do ar nas zonas centrais da capital amazonense foi, em média, 1,7% menor do que nas matas adjacentes. Essa distinção alcançou seu nível máximo em fevereiro, no meio da estação mais chuvopESQUISA FAPESP 200 z 79
ZONA RURAL
infográfico alexandre affonso
Por que ocorre o efeito ilha urbana de calor cidade
3º a
mais
Absorção
10ºC
quen
te
e retenção de calor
MAIOR
MENOR
Transpiração das plantas e evaporação da água do solo
Penetração de água
sa, quando a cidade chegou a ser 3,5% mais seca do que a floresta. “Esses dados mostram claramente o efeito ilha de calor em Manaus”, afirma Regina, engenheira cartográfica especializada no mapeamento de usos e cobertura da terra para modelagem meteorológica. Em Belém, os estudos da dupla do Cemaden não conseguiram caracterizar a dimensão do efeito ilha urbana de calor devido à ausência de longas séries históricas com dados diários, obtidos de hora em hora, em diferentes pontos da cidade e de seu entorno não desmatado. No entanto há indícios de que esse fenômeno na capital paraense – a décima primeira mais populosa cidade brasileira, com pouco mais de 1,4 milhão de pessoas – apresenta seus valores máximos durante a madrugada. Embora possam parecer pequenas para os milhões de moradores das duas megacidades brasileiras (São Paulo e Rio de Janeiro), as capitais do Amazonas e do Pará se tornaram grandes aglomerados urbanos para os padrões mundiais. Se fossem, por exemplo, cidades francesas ou italianas, ficariam atrás, em termos populacionais, apenas de Paris e Roma. 80 z outubro DE 2012
Dois picos
Um aspecto singular, e polêmico, apontado pelo estudo foi a identificação de dois picos diários em que o efeito ilha de calor se exacerba na capital amazonense: o primeiro por volta das 8 horas da manhã e o segundo entre as 15 e as 17 horas. “Na maioria das cidades há apenas um pico diário do efeito ilha de calor e ele em geral ocorre durante a noite ou madrugada”, diz o meteorologista Souza. Os pesquisadores não sabem ao certo por que os picos ocorrem nesses dois momentos do dia, mas especulam que eles podem estar associados ao horário de rush do trânsito manauara. O calor gerado pela combustão é um dos fatores que contribuem para aquecer localmente a atmosfera. Um estudo realizado por Francis Wagner e Rodrigo Augusto de Souza, físicos da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), também avaliou o efeito ilha de calor em Manaus. Nem todas as características do fenômeno bateram com as informações divulgadas no artigo do Cemaden. Mas, além de diferenças metodológicas, o trabalho dos pesquisadores da UEA abrangeu outro período de tempo. Entre maio de 2010 e abril de
Entre 1961 e 2010, a temperatura média de Belém aumentou 1,51ºC e alcançou 26,3ºC 2011 foram analisados dados de temperatura do ar de quatro estações, duas na área urbana e duas na rural. Wagner e Rodrigo Souza encontraram dois picos do efeito ilha de calor, um às 7 e outro às 20 horas. A maior diferença de temperatura entre a área urbana e a rural foi da ordem de 3,5ºC. A partir de dados do satélite ambiental Aqua, que esquadrinha o território com uma resolução espacial de 1 x 1 quilômetro, os cientistas da UEA estimaram as variações de temperatura na superfície da capital amazonense entre agosto e
Mapa Diego Souza e Regina Alvalá / Cemaden
setembro de 2009, meses normalmente mais secos. As zonas mais quentes foram justamente as mais urbanizadas e as mais frias, as com maior vegetação preservada. No solo, as diferenças de temperatura entre áreas cobertas por concreto e asfalto, como o centro e os bairros de Cidade Nova e Petrópolis, e os setores de floresta chegaram a 10ºC. “Estamos fazendo um estudo do microclima na área urbana de Manaus para fornecer subsídios à formatação de um plano diretor de arborização e zoneamento ecológico”, diz Wagner, cujo projeto conta com financiamento do Fundo Municipal do Desenvolvimento e Meio Ambiente da capital amazonense. Um possível reflexo do efeito ilha de calor é alterar o regime de chuvas sobre o território das duas cidades amazônicas. Em São Paulo, por exemplo, a quantidade de chuva média anual que cai na maior cidade brasileira aumentou 30% nos últimos 80 anos – e parte dessa elevação pluviométrica, particularmente na primavera e verão, é creditada por alguns estudos à crescente urbanização de seu território, (ver Pesquisa FAPESP nº 195, de maio de 2012). Resultados de estudos de modelagem atmosférica de alta resolução feitos por Diego Souza e Regina indicam que, caso a área urbana das duas capitais continue crescendo, haverá uma tendência de queda na quantidade de chuvas em Manaus, enquanto Belém deverá apresentar um leve aumento na pluviosidade. “Mas as mudanças no regime de chuvas não parecem ser muito significativas”, comenta Regina. calor londrino no século XIX
Embora não fosse conhecido por esse nome, o fenômeno das ilhas urbanas de calor é estudado desde o início do século XIX, quando o inglês Luke Howard mediu à noite diferenças de quase 2ºC entre Londres, então a maior metrópole do mundo, com mais de 1 milhão de habitantes, e três localidades rurais próximas. Desde então, a análise do clima das cidades é um tema de pesquisa cada vez mais relevante, ainda mais no século XXI, quando, pela primeira vez na história, o mundo passou a ter mais pessoas morando em centros urbanos do que no meio rural. A edificação de cidades altera de forma radical o padrão de ocupação do solo e cria um ambiente local onde a ocorrência de ilhas de calor se torna quase uma
O avanço de Belém Em 35 anos, a área urbana da região metropolitana triplicou
Ano
área
n 1973 n 1984 n 1989 n 1998 n 2008
76
(em km2)
155 187 242 270
n Hidrografia
lei natural. No lugar da terra exposta, da grama e das árvores, elementos rurais que amenizam as altas temperaturas tanto a nível do solo como do ar, uma série de materiais impermeáveis e que retêm o calor de forma diferente da vegetação passa a dominar a paisagem urbana. No campo, a presença de vegetação arbórea e rasteira cria zonas de sombra capazes de reduzir a temperatura do solo, alteração que, por sua vez, leva à diminuição da temperatura atmosférica. As áreas verdes também contribuem para refrescar o clima de um lugar por meio da evapotranspiração. Esse mecanismo faz as plantas e o solo liberarem água para o ar como forma de dissipar o calor do ambiente. Nas partes mais urbanizadas do município, tudo que torna o clima do campo mais ameno é escasso ou está ausente. A água das chuvas quase não penetra no solo, há menos umidade localmente e o processo de evapotranspiração é menos intenso. De uma forma geral, a cidade de concreto, asfalto, vidro e metais tende a absorver e armazenar o dobro de calor do que uma área rural vizinha. A arquitetura urbana, com seus prédios altos e construções com texturas diferentes da superfície do meio rural, pode alterar
também o regime de ventos e intensificar a sensação de calor. Em megalópoles como São Paulo ou Nova York o efeito ilha de calor pode representar uma diferença de até 12ºC na temperatura do ar entre uma área densamente urbanizada e uma zona rural ou de mata. Se a temperatura comparada for a do solo, as discrepâncias tendem a ser ainda maiores. No Brasil, o efeito das ilhas urbanas de calor está sendo estudado em muitas capitais do país já há um bom tempo. No estado de São Paulo, cidades médias e pequenas também passaram a ser alvo de pesquisas sobre o fenômeno. A equipe dos geógrafos João Lima Sant'Anna Neto e Margarete Amorim, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Presidente Prudente, mediu o efeito em seis municípios do interior paulista: Teodoro Sampaio, Euclides da Cunha, Jales, Rosana e Birigui, além de Presidente Prudente. Eles usaram dados do canal termal do satélite Landsat e de estações meteorológicas fixas e móveis para registrar o fenômeno. Em Presidente Prudente, cidade com 207 mil habitantes, foram registradas diferenças de até 8ºC entre as áreas mais urbanizadas e o meio rural, sobretudo à noite. Os bairros populares onde se encontram os conjuntos habitacionais Cohab e Cecap foram os mais quentes da cidade. “Nesses lugares o uso de materiais inadequados nas edificações, como telhas de fibras de cimento, a elevada densidade da área construída e a escassez de áreas verdes intensificam as ilhas de calor, pois não há grande emissão de poluentes de origem industrial e de veículos”, comenta Sant'Anna Neto. Mesmo localidades diminutas, como Alfredo Marcondes, município vizinho a Presidente Prudente com 3,8 mil moradores, apresentam a alteração climática. Diferenças de 2,5°C foram medidas entre sua área urbana e as porções rurais. “As ilhas de calor também são um problema de saúde pública e predispõem a ocorrência de doenças respiratórias e circulatórias em idosos e crianças”, diz o geógrafo. n
Artigo científico OLIVEIRA, D.O. e ALVALÁ, R.C.S. Observational evidence of the urban heat island of Manaus City, Brazil. Meteorologial Applications. Publicado on-line. 3 ago. 2012. pESQUISA FAPESP 200 z 81
Evolução galáctica y
O coração da
Via Láctea Maior levantamento de estrelas já feito reconstitui a região central da galáxia Igor Zolnerkevic
Q
uando o assunto é imagem em alta definição, o nível de exigência dos astrônomos ultrapassa de longe o de qualquer cinéfilo. Para analisar o máximo possível de estrelas do chamado bojo galáctico – a porção mais interna e mais cheia de estrelas da nossa galáxia, a Via Láctea –, uma equipe internacional de 12 pesquisadores liderados pelo brasileiro Roberto Saito e pelo argentino Dante Minniti, ambos da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Chile, analisou um retrato de 190 mil por 170 mil pixels dessa região, apresentado nestas páginas. A imagem, produzida pelo astrônomo chileno Ignacio Toledo, do Observatório Alma, é tão grande que seriam necessários 6 mil aparelhos de TV de alta definição para exibi-la em sua máxima resolução. O retrato do coração da Via Láctea revela uma população de estrelas onde se poderiam encontrar planetas parecidos com a Terra e promete ajudar a entender como nasceu a galáxia. Também fortalece a hipótese de que no bojo galáctico, a região central, parecida com uma bola de futebol americano, há dois grandes adensamentos de estrelas que assumem a forma de um imenso X. A análise da nova imagem gerou um catálogo com informações sobre a posição e o brilho de 84 milhões de estrelas. Já houve levantamentos maiores, mas, segundo Saito, ainda não se tinha analisado um conjunto tão grande de estrelas de uma só vez. Em resolução máxima, a nova imagem ocupa 200 gigabytes de memória em um computador.
82 z outubro setembroDE DE2012 2012
Por causa da quantidade de dados, não havia conexão de internet que bastasse para transferi-la sem erros do Chile – onde foi obtida ao longo de mais de um ano de observações feitas pelo telescópio de quatro metros Vista, do Observatório Europeu Austral (ESO) – para o Reino Unido, onde foi sintetizada pelos pesquisadores da Universidade de Cambridge. Por essa razão, foi necessário levá-la e trazê-la de volta de avião. A partir do novo catálogo das estrelas do bojo, o time de pesquisadores, que inclui os astrônomos brasileiros Márcio Catelan, da PUC chilena, e Beatriz Barbuy e Bruno Dias, da Universidade de São Paulo, produziu um gráfico relacionando a intensidade do brilho das estrelas com a cor de sua luz, o chamado diagrama cor-magnitude, publicado em agosto deste ano na Astronomy & Astrophysics. Estudando a distribuição dos astros nesse diagrama, os astrônomos inferiram a massa, a idade e a localização das estrelas na galáxia e caracterizaram a população de estrelas do bojo. Os 84 milhões de estrelas são uma fração ínfima das centenas de bilhões que constituem a Via Láctea. Mais de um terço delas está apinhado no bojo, enquanto o restante, incluindo o Sol, se distribui nos braços espirais que formam a parte externa do disco da galáxia. Não foi fácil enxergar as estrelas do bojo. O brilho delas é muito tênue, a concentração é elevada e uma enorme quantidade de gás e poeira bloqueia a passagem da luz que emitem. O telescópio Vista só conseguiu detectar esse número tão elevado por
VISTA SUPERIOR
VISTA de perfil
Bojo Sol
ilustração nasa / jpl-Caltech
imagem Ignacio Toledo / VVV Survey / eso
Retrato em alta definição: imagem (no alto) produzida pelo telescópio Vista identifica 84 milhões de estrelas no bojo da Via Láctea, representada na ilustração (acima)
captar a radiação infravermelha emitida pelas estrelas que consegue atravessar o nevoeiro de gás e poeira. “Somente levantamentos no infravermelho podem enxergar o bojo e, portanto, são fundamentais para a compreensão de como a Via Láctea se formou”, comenta Kátia Cunha, astrônoma do Observatório Nacional especialista no assunto. Censo estelar
Os pesquisadores confirmaram que a maioria das estrelas do bojo são gigantes vermelhas, astros idosos nos últimos estágios de suas vidas, o que condiz com a ideia mais aceita de que o bojo foi a primeira região da galáxia a se formar. Dentre essas gigantes se destacam as red clump giants, um tipo de estrela com cor e brilho muito bem conhecidos. “Isso faz com que elas possam ser usadas como indicadores de distância”, explica Saito.
“Se o brilho delas parece fraco é indicação de que estão distantes e, se parece forte, é porque estão próximas.” Usando as red clumps, Saito e seus colegas mapearam o bojo e confirmaram uma conclusão de levantamentos anteriores: o centro da galáxia contém duas regiões em que a concentração de estrelas é mais elevada. Cada uma dessas regiões tem a forma de uma barra e elas se cruzam desenhando um X (ver Pesquisa FAPESP nº 188). Mas descobriram algo novo: as pernas do X são muito mais longas do que se pensava. Os astrônomos também identificaram uma série de estrelas anãs vermelhas que, por conta de seu brilho fraco, estavam além do limite de detecção dos levantamentos anteriores. “Elas são pequenas, com um décimo do tamanho do Sol, e devem ser as estrelas mais comuns da galáxia”, comenta Saito. Segundo o pesquisador, as anãs vermelhas atualmente são as estrelas da moda porque é fácil detectar em torno delas planetas pequenos e rochosos como a Terra. O próprio telescópio Vista deve, até 2014, buscar variações no brilho dessas estrelas provocadas pela passagem de planetas na frente delas. “Hoje existem pelo menos dois cenários para explicar a formação do bojo,
que, por sua vez, está intimamente ligado à formação de outras partes da galáxia”, diz a astrônoma brasileira Cristina Chiappini, do Instituto Leibniz de Astrofísica, em Potsdam, Alemanha. Uma visão é que o bojo pode ter se formado pela aglutinação de galáxias menores nos primeiros bilhões de anos de vida do Universo. A explicação alternativa é que essa formação ocorreu mais lentamente, resultado de instabilidades no movimento de rotação do disco galáctico, onde há mais gás, poeira e estrelas jovens. “O importante é que os diferentes cenários resultam no surgimento de estrelas com propriedades químicas e físicas distintas”, explica Cristina. Ela e Kátia ressaltam que o catálogo produzido por Saito e seus colaboradores abre caminho para levantamentos espectroscópicos em larga escala, que analisam a composição química de um grande número de estrelas simultaneamente, fornecendo assim dados para se testar as teorias de formação da Via Láctea. n
Artigo científico SAITO, R. K. et al. Milky Way demographics with the VVV survey I. The 84-million star colour-magnitude diagram of the Galactic bulge. Astronomy & Astrophysics. 28 ago. 2012. pESQUISA FAPESP 200 z 83
tecnologia Material sintĂŠtico com espessura e textura similares ao papel de celulose. Foto de Miguel Boyayan, de janeiro de 2009 84 | novembro DE 2011
Composição de escultura de Hélio de Almeida e fotos de Eduardo Cesar para reportagem sobre patentes, de maio de 2006 PESQUISA FAPESP 200 | 85
tecnologia biocombustíveis y
Entre
Açúcares e genes Aplicação do conhecimento científico da cana deverá servir ao desenvolvimento de novas ferramentas para a produção de etanol Marcos de Oliveira
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ilustração pedro hamdan foto léo ramos
O
s mais velhos diriam que a cana-de-açúcar está sendo virada do avesso tal é o volume de estudos genéticos, fisiológicos e agronômicos a que está sendo submetida nos últimos anos. O que se quer é conhecer mais profundamente a planta e suas peculiaridades com o intuito de aumentar a produtividade dessa gramínea trazida pelos portugueses ao Brasil ainda no século XVI. A meta final é produzir mais etanol em um mesmo hectare de terra. Para isso contam também as pesquisas para tornar a cana mais adaptada à chamada segunda geração de produção de álcool, quando enzimas vão aproveitar os açúcares que são recuperados do bagaço de cana para a formação de uma espécie de sopa e então produzir mais biocombustível. Assim, pesquisadores de várias instituições brasileiras estão com um olho na pesquisa básica e outro lá na frente, no futuro do processo industrial de produção de etanol. O avanço no conhecimento científico começou em 1999 com o lançamento do Genoma Cana, financiado pela FAPESP, e o último resultado das pesquisas confirma que o colmo e as folhas da cana possuem mais açúcares, substâncias primordiais na elaboração do etanol, na porção hemicelulose do que na celulose, um conhecimento que pode mudar os rumos da produção de etanol de segunda geração no futuro. “Fizemos estudos na parede celular tanto do colmo quanto das folhas da cana que mostraram a presença de cerca de 30% de açúcares na celulose, 50% na hemicelulose, além de 10% de pectinas. A tecnologia que se está desenhando hoje para a futura segunda geração de etanol se baseia apenas na celulose, enquanto os polímeros de açúcares das hemiceluloses, que contêm açúcares complexos como os arabinoxilanos, betaglucanos e xiloglucanos, são deixados de lado, além das pectinas, que juntos representam 70% dos açúcares na parede celular da cana”, diz Marcos Buckeridge, professor do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) do Bioetanol, que reúne 31 laboratórios em cinco
No Instituto de Química da USP, mudas de cana-de-açúcar transgênica pESQUISA FAPESP 200 z 87
O futuro na segunda geração de etanol Após o uso do caldo da cana na primeira geração, utilizam-se o bagaço e as folhas no processo de hidrólise. Na etapa final, ocorre a fermentação tradicional por leveduras que transformam os açúcares em etanol MOAGEM DA CANA
PRÉ-TRATAMENTO DO BAGAÇO
HIDRÓLISE A ação de enzimas no bagaço resulta em um líquido que é levado para a fermentação
Saída do bagaço
Cana
Entrada da cana
Celulose
O bagaço é composto de celulose, lignina e hemicelulose, onde existem mais açúcares para produzir etanol
Hemicelulose
Lignina
estados brasileiros. Nas paredes celulares da cana, as hemiceluloses e pectinas, localizadas entre as microfibrilas que são aglomerados de moléculas de celulose, possuem muitos açúcares compostos por cinco carbonos e por isso não são palatáveis para as leveduras (Saccharomyces cerevisiae) usadas na fermentação do caldo de cana. Elas estão acostumadas com a sacarose, formada por glicose e frutose, encontrada no suco de cana, ou ainda na glicose da celulose e de algumas das hemiceluloses, que têm seis carbonos. aproveitamento futuro por meio da hidrólise das pentoses do bagaço, que são os açúcares de cinco carbonos, pode levar a um aumento de etanol estimado em, pelo menos, mais 5 bilhões de litros na produção brasileira (ver Pesquisa FAPESP nº 192), hoje com cerca de 25 bilhões de litros. A utilização das pentoses também poderá se dar no uso em aplicações biotecnológicas, em alimentos e medicamentos, agregando valor comercial ao bagaço. Nos processos de segunda geração, as enzimas formam um líquido que também serve de alimento para as mesmas leveduras. “Existem tentativas para produzir linhagens de Saccharomyces, inclusive
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DO CALDO
Enzimas tipo 1
Enzimas específicas quebram as moléculas da celulose e da hermicelulose que possuem tipos de açúcares diferentes. A lignina é descartada porque não contém açúcares
O
FERMENTAÇÃO
Enzimas transformam açúcares da celulose e da hemicelulose e a fermentação ocorre em tanques diferentes
Enzimas tipo 2
5
bilhões
de litros de etanol a mais são estimados com o uso dos açúcares da hemicelulose
Açúcar da hemicelulose
Açúcar de celulose
no Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Biotenol (CTBE), e em outras instituições e empresas no Brasil e no exterior, que sejam capazes de utilizar os açúcares de cinco carbonos. Na Inglaterra e na Suécia já conseguiram demonstrar que isso é possível, mas é tudo feito em laboratório com esterilização. Porém, para as usinas brasileiras, isso ainda não é suficiente. É preciso que as leveduras sejam robustas para sobreviver na presença de outros microrganismos, como bactérias, existentes num ambiente sem esterilização”, diz Buckeridge, que é também diretor científico do CTBE, localizado em Campinas, São Paulo. Mesmo nos experimentos em relação à etapa mais avançada que é a hidrólise da celulose ainda pairam muitas dúvidas. “Já existe um bom conhecimento do processo do pré-tratamento, mas ainda precisamos investigar as várias opções para fazer a hidrólise na forma que a indústria possa absorver rapidamente e de modo econômico e sustentável”, diz o professor Rubens Maciel Filho, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), um dos coordenadores do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen) do qual o INCT Bioetanol também participa. “São necessárias avaliações tec-
infográfico alexandre affonso
CANAVIAL
TANQUE DE ETANOL DESTILAÇÃO DE ETANOL
noeconômicas e de sustentabilidade, nesse caso, em análises sobre o conA cana do futuro sumo de água e no uso de produtos teria algumas químicos no processo de hidrólise”, diz Maciel Filho. características “Hoje, nos experimentos para a segunda geração, o bagaço, depois semelhantes ao que é descartado após a primeira geração quando se extrai o caldo da mamão-papaia, cana para fazer etanol, passa por um que é mais doce processo de ruptura das paredes celulares para a obtenção da celulose e macio depois que está envolvida por hemicelulose e lignina, um polímero que não posde amadurecido sui açúcar”, diz Buckeridge. A ruptura acontece atualmente por meio e colhido de vapor em alta pressão em que a parede celular do bagaço é afrouxada e a separação dos componentes feita por meio de solventes, ácidos e enzimas. “É o uso da força. É feito um esforço para jogar fora tudo o que você tem em volta da celulose”, diz o professor da USP. “A nossa ideia é começar o processo de hidrólise no campo. Produzir cana mais preparada para a segunda geração, que torne mais fácil a hidrólise e não seja mais necessário lavar o bagaço, o que retira muitos açúcares do material.” Em artigo que será publicado na revista BioEnergy Research, ele e mais dois pesquisadores de seu grupo na USP, e outros dois pesquisadores do Centro de Carboidratos Complexos da Universidade da Geórgia, nos Estados Unidos, além de mostrarem a pesquisa que identifica as frações de cada polímero de açúcar na cana, fazem observações sobre a complexidade da parede celular e a dificuldade de encontrar as chaves químicas ou um código que pudesse aproveitar melhor a rede de polissacarídeos. Eles acreditam também que o resultado da composição de açúcares na cana pode levar a uma modificação no processo de segunda geração. Como solução possível no futuro, Buckeridge, com base nos dados atuais, imagina que a melhor solução seria a cana ser le-
vada inteira para o processo de hidrólise depois que se extraísse o caldo para a primeira geração. “A biologia das paredes celulares é o cerne desses avanços e é essencial para fazer progressos tecnológicos na área de biocombustíveis sustentáveis e biomateriais”, diz o professor Leonardo Gomez, do Departamento de Biologia da Universidade de York, na Inglaterra. Gomez, que é argentino, esteve em 2010 no Brasil conhecendo o CTBE. “Na opinião de muitos especialistas, o desenvolvimento de biocombustíveis de segunda geração é favorecido pela presença de uma indústria bem estabelecida de primeira geração. Dessa forma, o Brasil apresenta o melhor ambiente para que isso possa acontecer. Mas isso é apenas potencial. Alguém tem que assumir o risco e investir na área no aspecto industrial”, diz Gomez.
N
a prática, para o avanço no processo de obtenção de etanol por meio da segunda geração, Buckeridge destaca um pré-tratamento fisiológico que deixa a planta mais maleável e com mais potencial para ser processada na hidrólise. “É uma substância que, aplicada nas plantações ainda quando a planta está pequena, inibe uma enzima na cana que vai fazer fenilpropanoides, que são os precursores da lignina, a substância que amarra os açúcares na parede celular e dá resistência mecânica à planta. Ainda não sabemos ao certo o que acontece, mas foi possível com esse composto aumentar em 30% o processamento dos xilanos, que compreendem 50% das hemiceluloses”, diz Buckeridge. O uso dessa substância, composta por ácido piperolínico na cana, tem uma patente depositada por Buckeridge no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) e pelo seu ex-pós-doutorando Wanderley dos Santos, que agora, como professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), testa em campo o produto. “Ainda temos que melhorar e tentar diminuir o custo”, diz Buckeridge. Outra solução para a segunda geração está sendo elaborada no âmbito do Bioen, em que 13 grupos de pesquisadores contribuem para a formação da supercana, uma ou mais variedades agronômicas e genéticas com características de alta qualidade para a primeira e a segunda geração. Uma delas é ter maior capacidade de fazer fotossíntese. Os pesquisadores já identificaram, pelo menos, quatro genes responsáveis por capturar a luz do sol. Esses genes poderão ser relacionados ao aumento da taxa de crescimento do número de células e o consequente aumento da produção de sacarose. A formação de plantas transgênicas está entre as ferramentas biotecnológicas na produção dessa supercana. A transgenia no caso não seria apenas na inserção de genes externos à planta, mas sim na ativação ou no silenciar de genes da própria cana. “Poderíamos também elaborar plantas com paredes celulares mais adequadas para a segunda pESQUISA FAPESP 200 z 89
N 1
geração”, diz Buckeridge. “Pode parecer futurista pensar assim, mas o Bioen tem genes relativos à parede celular transformada, em que pensamos em fazer a ‘cana-papaia’, por exemplo.” Essa cana do futuro teria algumas características semelhantes ao mamão-papaia, que é mais doce e macio depois de amadurecido e colhido. “Já temos 380 genes ligados à sacarose e mais de mil relativos à resistência à seca”, diz a professora Glaucia Mendes Souza, do Instituto de Química (IQ) da USP, que junto com a professora Marie Anne van Sluys, do Instituto de Biociências da USP, lidera a pesquisa genômica da cana no âmbito do Bioen e conta com a participação do professor Marcelo Menossi, do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Desses, 250 genes já estão sendo testados em mudas de cana dispostas em tubos de ensaio, cubas e vasos no IQ da USP ou em estufas na Escola de Agricultura Luiz de Queiroz, da USP, em Piracicaba, em experimentos sob a coordenação da professora Helaine Carrer, que analisa a expressão dos genes. Também é testada a expressão de genes de cana em tabaco, uma planta mais fácil de manipular em laboratório e que serve de modelo para esse tipo de experimento. Dois genes de cana ligados à resistência à seca já foram expressos no tabaco e tiveram o uso transformado em patente depositada no INPI. Para transformar a planta com genes de interesse são necessários promotores, ferramentas biotecnológicas na forma de sequências de DNA em que o gene vai se expressar. São nes90 z outubro DE 2012
Imagens microscópicas para análises das folhas de cana (coluna à esquerda) e do colmo (à direita). Fluorescência aplicada nas células (faixa do meio) e a presença de lignina (em vermelho na faixa de baixo), onde também é possível identificar várias células intactas com formato circular e cheias de suco
a outra ponta da pesquisa acadêmica relativa à hidrólise estão os estudos para se chegar a enzimas cada vez mais eficientes para quebrar as paredes celulares da cana, extrair os açúcares e preparar o material para a produção de etanol. Mas quais enzimas usar para processar os diferentes polissacarídeos presentes na parede celular da planta? Algumas enzimas usadas pela indústria de alimentos, por exemplo, estão sendo testadas com cana, mas elas não resolvem tudo. “Essas enzimas industriais são produzidas principalmente por fungos”, diz o professor Richard Ward, do Departamento de Química, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da USP, e do CTBE, que já conseguiu desenhar duas enzimas multifuncionais com ação sobre as hemiceluloses. Chamadas de enzimas quiméricas, elas são produzidas por bactérias. “Sabemos que a celulose é o componente mais escondido que os outros polissacarídeos presentes na parede celular da cana e nosso desafio é criar enzimas que destruam e degradem, de forma programada, os outros componentes, que também são fontes importantes de açúcar, até chegar à celulose”, explica Ward. “É importante desenvolver as enzimas mais adequadas para cada polissacarídeo. Mas ainda é difícil encontrar enzimas boas e que possam ter baixo custo. Hoje elas estão sendo comercializadas por dezenas de dólares o quilo. Pode parecer barato, mas precisamos pensar no processamento na usina de centenas ou até milhares de toneladas de material lignocelulósico por dia.” Ward diz que o objetivo é construir enzimas quiméricas, em que cada uma ataque mais de um polímero do bagaço da cana. “Isso é importante principalmente para as hemiceluloses, que têm um conjunto heterogêneo de polissacarídeos.” Em relação às enzimas também surgem pesquisas que poderíamos chamar de inusitadas, mas baseadas na mais pura observação da natureza. Na busca por enzimas que destroem celulose e material lignocelulósico, como é o bagaço, o professor
fotos 1 INCT-Bioetanol 2 Léo ramos
sas moléculas que os pesquisadores vão modular a superexpressão ou o silenciar de genes. “Depositamos uma patente neste ano de 10 promotores de cana que vão permitir a expressão dos genes de forma diferente”, diz Glaucia. Em relação às paredes celulares da cana, Glaucia diz que já desenvolveu plantas com genes silenciados ligados à produção da lignina. “Ela atrapalha a execução da segunda geração porque dificulta a extração dos polissacarídeos, mas quando desligamos a sua produção aconteceu, em alguns experimentos, o acamamento em que a planta cai para os lados. Precisamos encontrar variedades em que possamos experimentar um caminho do meio, diminuindo a presença de lignina, mas mantendo a planta em pé”, explica Glaucia.
O aparelho digestivo das baratas é alvo de estudos para se encontrar enzimas para a segunda geração de etanol Ednildo Machado, do Instituto de Biofísica, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), estuda a composição enzimática do aparelho digestivo de duas baratas, a Periplaneta americana, comum nas grandes cidades, e a Nauphoeta cinerea, criada para servir de alimento para animais em cativeiro como lagartos e outros répteis. “Em experimentos em laboratório cheguei a fornecer apenas bagaço de cana para as baratas e elas se alimentaram dele, ou seja, conseguiram digerir as paredes celulares desse material para sobreviver de forma muito positiva”, diz Machado. Com isso, ele começou a pensar nas possíveis enzimas do aparelho digestivo desses insetos que possam ser úteis na segunda geração de produção de etanol. Machado foi apresentado a Buckeridge durante o Congresso Brasileiro de Bioquímica em 2010 e a partir daí estreitaram uma colaboração. Ele esteve no CTBE, e vários experimentos foram realizados. “Conseguimos identificar algumas enzimas que são produzidas por bactérias no interior do aparelho digestivo das baratas. Não sabemos ainda se essas bactérias já estavam lá ou se o inseto as adquiriu do material, no caso o bagaço.” A barata pode também produzir as enzimas por meio de fungos e protozoários e tem grande facilidade para se alimentar de um amplo número de resíduos, além de se adaptar facilmente a essa diversidade. “Essa característica nos permitiu identificar uma série de enzimas nos insetos, excelentes para diversos processos tecnológicos”, diz Machado. O próximo passo é identificar ao certo quais os microrganismos que produzem as enzimas. Para isso é preciso sequenciar todos os DNAs presentes no intestino da barata, num processo chamado de metagenômica, que possibilita identificar quais espécies e os genes envolvidos na produção de enzimas especializadas na quebra de celulose e hemicelulose do bagaço de cana. Com a identificação dos genes é possível cloná-los em bactérias como a Escherichia coli e assim viabilizar a produção dessas enzimas em escala industrial. O mesmo processo começa a ser usado pelo professor Ward para produzir em laboratório as enzimas para atacar a parede celular da cana. Assim cresce o número de ferramentas que poderão ajudar, dentro de alguns anos, a cana a produzir mais etanol. “Nos últimos 10 anos, aconteceu um
2
Mudas transgênicas: ferramentas biotecnológicas em que são usadas estratégias de silenciar ou ativar genes da própria cana
aumento exponencial na pesquisa e investimento tecnológico para a utilização da biomassa como um substituto renovável e sustentável do petróleo”, diz Gomez, da Universidade de York. “A pesquisa atual na área de composição de biomassa já oferece novo potencial para a energia biorrenovável.” Para ele, a produção de etanol e de produtos químicos de alto desempenho a partir da biomassa somente é possível com um conhecimento detalhado e multidisciplinar de biologia e bioquímica de biomassa. n
Projetos 1. Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) do Bioetanol – nº 2008/57908-6; 2. Sugarcane signaling and regulatory networks – nº 2008/52146-0; 3. Identificação, caracterização e engenharia de enzimas que degradam a parede celular das plantas – nº 2010/18850. 2. Modalidades: 1. e 2. Projeto Temático do Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen); 3. Projeto Temático. Coordenadores: 1. Marcos Silveira Buckeridge – USP; 2. Glaucia Mendes Souza – USP; 3. Richard John Ward – USP. Investimento: 1. R$ 2.896.588,59 e US$ 303.342,92 (FAPESP); 2. R$ 3.390.743,73 e US$ 1.174.768,67 (FAPESP); 3. R$ 491.952,05 e US$ 313.495,03 (FAPESP).
Artigos científicos
De Souza, A.P. et al. Composition and structure of sugarcane cell walls: implications for cell wall hydrolysis and second generation bioethanol. BioEnergy Research. In press. set. 2012. Begcy, K. et al. A novel stress-induced sugarcane gene conferstolerance to drought, salt and oxidative stress in transgenic tobacco plants. Plos One. v. 7, n. 9, e44697. set. 2012. Furtado, G.P. et al. A designed bifunctional laccase /b-1,31,4 - glucanase enzyme shows synergistic sugar release from milled sugarcane bagasse. Protein Engineering, Design & Selection. In press. set. 2012. pESQUISA FAPESP 200 z 91
mineração y
Bactérias
mineradoras A USP e Vale desenvolvem pesquisa para descobrir microrganismos
capazes de recuperar cobre em rejeitos minerais
marcelo coelho / vale
Yuri Vasconcelos
estratégia de usar microrganismos para recuperar cobre de rejeitos rochosos reuniu a Universidade de São Paulo (USP), a mineradora Vale e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) em um projeto no Pará, na Mina do Sossego, no município de Canaã dos Carajás. Os pesquisadores da USP e da empresa querem aproveitar a aptidão que algumas bactérias e fungos têm em se alimentar de substâncias presentes nas rochas onde o metal está impregnado para facilitar a recuperação do minério. Eles estão identificando microrganismos que vivem na própria mina para uso no processo de aproveitamento do cobre dos rejeitos. Além de aumentar o retorno econômico da mineração, a tecnologia pode reduzir o impacto ambiental da própria atividade. A Vale colocou em operação a mina em 2004 e produziu 109 mil toneladas de cobre em 2011. A lagoa de rejeitos, de onde são colhidas as amostras de fungos e bactérias, tem aproximadamente 90 milhões de toneladas de detritos com um teor de 0,07% de cobre. Se todo esse minério for recu-
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perado, a Vale poderá ter uma receita bruta de US$ 1,4 bilhão, valor superior ao US$ 1,2 bilhão investido pela companhia entre 1997 e 2004 para colocar a mina em operação. O trabalho ainda está em fase inicial. O primeiro grande desafio é achar os microrganismos que melhor solubilizam o cobre e entender como isso ocorre. “Nos primeiros testes, realizados no ano passado, encontramos cerca de 35 microrganismos com potencial biominerador na barragem de rejeitos da Mina do Sossego”, conta o engenheiro químico Cláudio Oller, professor da Escola Politécnica da USP e um dos coordenadores da pesquisa, que tem a colaboração de pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas da mesma universidade. A barragem é uma grande lagoa com 20 milhões de metros cúbicos de água que recebe os resíduos gerados após o beneficiamento do minério – uma mistura de água e rocha triturada com baixos teores de cobre. “O cobre residual na lagoa está dissolvido e no próprio material sólido decantado no fundo da represa”, explica Oller. A equipe, formada por 20 pesquisadores, entre
biólogos, químicos e engenheiros, faz a coleta e seleção das bactérias e dos fungos na represa para caracterizá-los. Cabe a eles também desenvolver a tecnologia para recuperar o mineral. Por uma questão de sigilo, os microrganismos selecionados até agora não foram revelados pelo pesquisador. Serão investidos no projeto, com duração prevista de cinco anos, cerca de R$ 15 milhões, dos quais R$ 3 milhões desembolsados pela Vale e R$ 12 milhões pelo BNDES, que os repassará diretamente para a Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo (Fusp). “Esse projeto se insere dentro de uma estratégia maior do BNDES de apoio à inovação tecnológica de produtos e processos. É uma solução que estimula a inovação na universidade brasileira e traz benefícios para a empresa e, principalmente, para o ambiente e a sociedade”, diz Márcio Macedo, chefe do Departamento de Meio Ambiente do BNDES. “Esse projeto é novo não só para a Vale, mas também no mundo. No Brasil, apesar de a tecnologia chamada de biolixiviação já ter sido empregada com sucesso comercial em uma mina de ouro em Minas Gerais, hoje, que eu
Lagoa na Mina do Sossego, em Canaã dos Carajás, no Pará, para onde são levados os resíduos gerados do beneficiamento de cobre. pESQUISA FAPESP 200 z 93
Devoradoras de pedras
saiba, não há projeto comercial nem para o ouro nem para o cobre nem para qualquer outro minério”, diz Luiz Eugênio Mello, diretor do Instituto Tecnológico Vale (ITV), que articulou a parceria pela empresa. Ele acredita que a Vale, no futuro, vai usar essa mesma tecnologia para a recuperação de outros minérios com os quais a companhia trabalha. “A ideia é essa. Contudo, hoje é impossível dizer sequer se teremos sucesso para o cobre, quanto mais para outros minérios. Com um passo de cada vez pretendemos ampliar os nossos trabalhos”, diz. Um diferencial do estudo é ele ser realizado no local da mineração. “Existem muitos estudos na área de biolixiviação, mas poucos avançam para uma aplicação comercial. No nosso caso, vamos fazer a pesquisa em um tanque-piloto, desenvolvido por nós, junto à própria mina. Esperamos iniciar essa fase no próximo ano, o que nos permitirá avaliar melhor a ação das bactérias e dos fungos já selecionados por nosso grupo”, diz Oller. A tecnologia de biolixiviação é usada atualmente em nível industrial na África do Sul e no Chile. Pioneirismo nuclear
A pesquisa nessa área que está sendo chamada de biorremediação ou biomineração já tem uma certa tradição no Brasil. Um dos primeiros estudiosos a se dedicar a esse campo foi o biólogo e 94 z outubro DE 2012
O processo de biomineração não emite gases, é fácil de ser aplicado e os custos são menores que a pirometalurgia, o método tradicional
Para extrair o cobre existente nas rochas, as pedras são colocadas sobre uma base impermeabilizada a céu aberto, ligada a um sistema de drenagem. Uma solução aquosa é lançada sobre as rochas para criar um meio ideal para multiplicação das bactérias que irão ajudar no processo de extração do cobre
ex-professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Oswaldo Garcia Junior, falecido em 2010. Nos anos 1980, quando trabalhava na antiga Empresas Nucleares Brasileiras, atualmente Indústrias Nucleares do Brasil (Nuclebrás), estatal do setor nuclear, ele foi pioneiro na América Latina em estudos de biolixiviação, de escala de bancada até o projeto-piloto, para extração de urânio com a utilização de um processo bacteriano. “Esse trabalho conferiu a ele reconhecimento internacional. Oswaldo desenvolveu e patenteou um método de extração de urânio usando bactérias. Em 1986, ele veio para a universidade e implantou a linha de pesquisa no Instituto de Química da Unesp de Araraquara”, conta Denise Bevilaqua, viúva do pesquisador, também professora da Unesp e que continua o trabalho de Garcia. O foco da pesquisa do grupo de Denise é a biomineração do cobre. Ela trabalha com a recuperação do minério a partir da calcopirita, principal fonte de cobre do mundo, empregando microrganismos oxidantes de ferro e enxofre, principalmente a bactéria Acidithiobacillus ferrooxidans. “Somos o único grupo do Brasil a manter um banco de linhagens dessa bactéria, que foram estudadas molecularmente pela equipe da professora Laura Ottoboni, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)”, diz Denise.
infográfico alexandre affonso foto vale
Montanhas de rejeitos, formadas por pilhas de rocha triturada com baixos teores de cobre, se acumulam nas minas
Bactéria Ácido sulfúrico
Ácido sulfúrico
Cobre
Cobre Sulfeto
As bactérias, que normalmente já existem no minério, consomem sulfetos das rochas e, como consequência, produzem ácido sulfúrico
“Conseguimos elevar de 30% a 60% a extração de cobre em ensaios de bancada e pretendemos melhorar este número.” A biolixiviação, explica a pesquisadora, apresenta vantagens quando comparada às técnicas convencionais de mineração. Ela não emite gases poluentes, porque não envolve queima do material, é fácil de ser aplicada e os custos para sua operação são muito menores do que os da pirometalurgia, método tradicional em que o minério é queimado em fornos com alta temperatura para liberação do metal impregnado nele. O metal se liquefaz e depois é recuperado, voltando à sua forma sólida. No mundo, vários grupos de pesquisa, geralmente associados a grandes mineradoras, como a Codelco, do Chile, e a australiana BHP Billiton, tentam criar uma tecnologia eficiente e economicamente viável voltada às jazidas de calcopirita, mas ainda não existe nenhuma alternativa em escala comercial. “O Chile, maior produtor de cobre do mundo, domina a extração do metal por biolixiviação, mas apenas a partir de outras fontes minerais, como a calcocita, a covelita e a bornita”, diz ela. O problema da calcopirita é que, embora seja o minério de cobre mais abundante do planeta, é também o mais resistente à ação química e microbiana. Uma diferença fundamental entre a pesquisa desenvolvida na Unesp com a extração do minério de rejeitos sólidos
O ácido sulfúrico produzido pelos microrganismos ajuda na liberação do metal contido na rocha
A solução líquida com alta concentração de cobre gerada no processo é desviada para um tanque. Nesse tanque é feita a extração do cobre por precipitação
e o projeto da Vale e da USP, feito em rejeitos líquidos, está no tipo de resíduo trabalhado para extração do cobre. Enquanto os pesquisadores da USP tentam recuperar o cobre diluído nas barragens de detritos em meio líquido, o grupo da Unesp trabalha para extrair o cobre residual contido nas montanhas de rejeitos. Essas gigantescas pilhas com milhares de toneladas de rocha triturada são formadas nas próprias minas com minério bruto com teor de cobre inferior a 0,3%. Para ser processado, o minério deve ter entre 0,3% e 1% de cobre. Como a quantidade do minério presente no material é baixa, não é viável processá-lo pelo método convencional da pirometalurgia. É aí que entram as bactérias mineradoras. Além das minas, o campo da mineração com a ajuda de microrganismos é aplicado também no Instituto de Química da Unesp de Araraquara, na recuperação de efluentes industriais contendo valiosos metais de terras-raras, elementos químicos do grupo dos lantanídeos usados como matéria-prima para fabricação de telas de tablets e smartphones. A professora Sandra Sponchiado pesquisa fungos capazes de recuperar esses metais por meio da biomassa produzida por microrganismos que tem grande capacidade de se ligar a metais. “O foco da minha pesquisa é estudar o processo de biossorção de metais utilizando um mutante do fungo Aspergillus nidulans
e estabelecer as condições ótimas do processo. Queremos avaliar o uso dessa biomassa para uma futura aplicação prática na recuperação de terras-raras presentes nos efluentes das indústrias de extração desses metais”, afirma a pesquisadora da Unesp. O processo é uma tecnologia ambientalmente correta em razão da redução de resíduos químicos e biológicos gerados durante o processo. A pesquisa está em estágio acadêmico, mas já despertou o interesse do mercado. “Várias empresas mineradoras, entre elas a Companhia Siderúrgica Nacional, as Indústrias Nucleares do Brasil e uma empresa mineradora de Manaus, têm nos contatado para uma possível aplicação prática da tecnologia”, diz Sandra. n
Projeto Biolixiviação da calcopirita (CuFeS2): mecanismos e interações da superfície bactéria/ mineral - 2011/19868-5. Coordenadora: Denise Bevilaqua - Unesp. Modalidade: Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa. Investimento: R$ 51.470,55 e US$ 73.676,31 (FAPESP).
Artigo científico BEVILAQUA, D.; ACCIARI, H. A.; ARENA, F. A.; BENEDETTI, A. V.; FUGIVARA, C. S.; TREMILIOSI, G.; GARCIA Jr., O. Utilization of electrochemical impedance spectroscopy for monitoring bornite (Cu5FeS4) oxidation by Acidithiobacillus ferrooxidans. Minerals Engineering. v. 22, p. 254-62. 2009. pESQUISA FAPESP 200 z 95
Pesquisa empresarial y
Em busca de novas rotas químicas Oxiteno lança produtos à base de óleo de palma, de soja e de cana em substituição a petroquímicos Dinorah Ereno
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ma equipe jovem, bastante experiente e com boa formação acadêmica está à frente das principais linhas de pesquisa da indústria química Oxiteno, direcionadas a mercados tão diversos como cosméticos, produtos para limpeza industrial e doméstica, tintas e vernizes, agroquímicos, petróleo e gás, entre outros. No comando nacional da área de pesquisa e desenvolvimento (P&D) está André Conde, de 39 anos e há 17 anos na empresa. “Comecei como trainee e logo em seguida fui contratado como pesquisador”, diz Conde, com graduação em química pela Universidade de São Paulo (USP), mestrado em química pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e MBA em gestão empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Dos 1.600 funcionários da Oxiteno, 100 trabalham com P&D. A empresa destina anualmente cerca de 1,5% do seu faturamento, que no ano passado foi de R$ 2,5 bilhões, para o setor.
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Prestes a completar 40 anos, a multinacional química brasileira com sede em São Paulo, pertencente ao grupo Ultra, está presente em oito países nas Américas, Europa e Ásia e conta com 11 unidades industriais distribuídas no Brasil, México, Estados Unidos e Venezuela, além de três centros de P&D no mundo. No portfólio de 400 produtos da empresa, 300 são tensoativos, também chamados de surfactantes. “Um tensoativo é uma molécula muito especial que tem a habilidade de compatibilizar materiais que não se misturam”, diz Conde. Presente em praticamente todos os processos industriais, ele é usado em aplicações tão diversas como xampus, detergentes, em processos de polimerização de tintas e na aplicação de defensivos agrícolas no campo. “Somos os maiores produtores de tensoativos da América Latina”, relata. A Oxiteno fabrica ainda solventes, intermediários químicos e sínteses que se destinam à fabricação de outros produtos.
fotos léo ramos
Da esquerda para a direita: Márcio Lauria, Adriano Sales, Adão Mattos, Nádia Armelin (gerentes de P&D) e André Conde, no comando da área
Para se diferenciar no mercado, a empresa procura ir além da produção de compostos químicos oriundos de fontes petroquímicas. Ela tem investido na busca de soluções tecnológicas que utilizem fontes renováveis, como óleo de soja, de palma e derivados da cana-de-açúcar. No ano passado, por exemplo, a Oxiteno anunciou o lançamento de um aditivo que modifica as propriedades do etanol para permitir o seu uso em motores diesel, em substituição ao combustível derivado do petróleo. A solução inovadora e menos poluente recebeu o prêmio Kurt Politzer de Tecnologia 2011 na categoria empresa, concedido pela Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim). O produto, que está em fase final de validação, foi desenvolvido pela área de petróleo e gás da empresa, sob a coordenação de Nádia Armelin, que hoje responde pela gerência de P&D da área de tintas e vernizes. Graduada em engenharia
química pela Unicamp e MBA em gestão empresarial pela FGV, Nádia, de 31 anos, está há oito anos na Oxiteno, onde começou como trainee. Outro lançamento feito em maio deste ano na linha dos renováveis é um coalescente usado em tintas decorativas com baixo teor de compostos orgânicos voláteis (COV), ou seja, compostos aromáticos que contribuem para a poluição do ar. O coalescente é a matéria-prima que plastifica a superfície de partículas que compõem as tintas de parede do tipo látex e é responsável pela resistência, duração e brilho da pintura. Em substituição à matéria-prima de origem petroquímica foi utilizado o óleo de palma. “Estamos vendendo o produto para o Oriente Médio, a África do Sul e em processo de homologação na Europa”, diz Nádia. Para determinar se o coalescente é ou não volátil, os pesquisadores utilizam como referência a regulamentação europeia que determina que pESQUISA FAPESP 200 z 97
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todo composto com ponto de ebulição abaixo de 250ºC é considerado como alto COV. O cálculo do ponto de ebulição é feito considerando a volatilidade das moléculas e a interação entre os componentes do produto. “O coalescente que desenvolvemos tem ponto de ebulição de 294ºC”, diz Nádia. A área de tintas e vernizes é um dos principais mercados da Oxiteno, já que na formulação de uma tinta entram tensoativos, solventes e coalescentes, todos produzidos pela empresa. Apenas os pigmentos e as resinas não estão no portfólio da companhia, que atende tanto o mercado decorativo como o automotivo de pintura original, além do moveleiro. “Além do coalescente com baixo COV, fabricamos solventes provenientes da cana para várias aplicações.” A Oxiteno tem passado por um acelerado processo de internacionalização e, recentemente, além das unidades industriais do México e da Venezuela, comprou uma unidade nos Estados Unidos
1 Ensaios de estabilidade térmica de agroquímicos 2 Análise de solução composta por tensoativos 3 Método de análise da tensão superficial de tensoativos 4 Agroquímicos em forma de grânulos
para produzir tensoativos e especialidades químicas para os mercados de agroquímicos, cosméticos e limpeza industrial e doméstica a partir de 2013. “O nosso setor de P&D tem que dar conta de gerar inovações para diferenciar tecnologicamente a empresa não só no Brasil, mas também na Europa e nos mercados mundiais”, diz Conde. Na estratégia de inovação está o desenvolvimento de novas tecnologias para químicas verdes, reforço da cooperação
Instituições que formaram os pesquisadores da empresa André Conde, químico, gerente de desenvolvimento e aplicações
USP – graduação Unicamp – mestrado FGV – MBA
Nádia Armelin, engenheira química, gerente de P&D da área de tintas e vernizes
Unicamp – graduação FGV – MBA
Márcio Tavares Lauria, engenheiro químico, gerente de desenvolvimento de processos
USP – graduação Insper – MBA
Adão Mattos, engenheiro químico, gerente de P&D da área de produtos para cosméticos e limpeza industrial e doméstica
Unicamp – graduação e mestrado FGV – MBA
Adriano Sales, engenheiro químico, coordenador de P&D da área de agroquímicos
Escola de Engenharia de Mauá – graduação USP – MBA
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com universidades e centros de pesquisa e aumento da base de propriedade intelectual. “Muitas ideias de novos produtos ocorrem por meio da interação técnica com nossos clientes, mas muitas outras propostas surgem a partir da própria Oxiteno, que acompanha tendências, patentes e interage com consultores de excelente nível e experiência profissional”, diz Márcio Tavares Lauria, de 44 anos, gerente de desenvolvimento de processos, que comanda uma equipe de 17 pessoas. Engenheiro químico formado pela USP, Lauria está na empresa há 21 anos. “A Oxiteno entende que as parcerias são uma forma de alavancar tecnologia de forma mais rápida, assertiva e efetiva”, diz Lauria, que fez MBA em gestão empresarial pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec), atual Insper. PArcerias acadêmicas
Entre os parceiros estão universidades e centros de pesquisa, considerados elementos potencializadores de novas tecnologias. Atualmente a empresa mantém diversos projetos em parceria com instituições no Brasil e no exterior, além de outros que foram concluídos nos últimos três anos. A FAPESP é uma das parceiras. No final de 2006, a Fundação lançou com a Oxiteno uma chamada de projetos para lignocelulósicos, que têm como objetivo utilizar celulose, palha e ponta de cana para, por meio de processos enzimáticos, obter produtos que hoje são produzidos pela rota química e petroquímica. A chamada deu origem a três projetos em colaboração com o Instituto de Pesquisas Tecnológicas, o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron e a USP. Na Venezuela, o centro de P&D tem um projeto inovador em parceria com a Universidade de Los Andes para o desenvolvimento de tensoativos estendidos. “Eles se chamam estendidos porque se diferenciam quimicamente das moléculas convencionais, o que possibilita melhor eficiência do tensoativo em aplicações como cosméticos, detergentes e agroquímicos”, ressalta Lauria. “Dentro da nossa estratégia de inovação, há um trabalho dirigido para capturar tendências”, diz Conde. Ele cita como exemplo o projeto de tensoativos verdes, em que foram identificadas rotas de síntese embrionárias na literatura científica. Hoje a empresa
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tem uma pesquisadora, Priscila Milani, que faz pós-doutorado na Unicamp e tem bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), totalmente dedicada ao projeto. “A pesquisa envolve uma rota de síntese genuinamente inovadora.” Um suporte importante dentro da estratégia é o conselho de ciência e tecnologia, criado em 2004 e composto por especialistas externos. São sete conselheiros na área de tensoativos e três em tintas e solventes que se reúnem anualmente para discutir tendências e estratégias de inovação. Semestralmente são feitos encontros com apresentação dos melhores casos pelas quatro áreas de P&D, divididas em tintas e vernizes, limpeza doméstica e industrial, cosméticos e cuidados pessoais e agroquímicos. Em um desses encontros foi apresentado o coalescente de tintas com baixo COV pela equipe de Nádia Armelin. O grupo de P&D de produtos para limpeza doméstica e industrial, gerenciado por Adão Mattos, decidiu estender a inovação para as ceras de autobrilho usadas em residências. “Desenvolvemos um coalescente com vantagens de aplicação em relação aos produtos petroquímicos atualmente utilizados, como
Especialistas externos contribuem para a escolha das estratégias de inovação
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baixa emissão de COV e matéria-prima de origem renovável”, diz Mattos, de 38 anos, com graduação e mestrado em engenharia química pela Unicamp e MBA em gestão empresarial pela FGV, que há 14 anos está na Oxiteno. 4
menos energia
Entre os destaques lançados no ano passado está um espessante líquido, produto usado para dar consistência ao xampu, por exemplo. “Os produtos que estão no mercado são sólidos e precisam ser aquecidos antes de utilizados, o que representa consumo de energia para o cliente”, diz Mattos. A formulação desenvolvida, por não causar irritação e ser límpida, pode ser adicionada tanto em produtos para crianças como em sabonetes íntimos e outras aplicações. Na área agroquímica, também foi lançado este ano um espessante líquido. “É um produto novo, que dispensa preparação prévia. Basta adicioná-lo à formulação para ele adquirir a viscosidade desejada”, diz Adriano Sales, de 35 anos, coordenador de P&D para agro-
químicos. Sales, graduado em engenharia química pela Escola de Engenharia de Mauá e com MBA em engenharia de produtos pela USP, trabalha há 16 anos na Oxiteno, onde começou como estagiário de nível técnico na fábrica. “As formulações agroquímicas têm como objetivo aumentar a produtividade no campo”, relata. Dentro dos agroquímicos, os tensoativos se destacam por contribuírem para o desenvolvimento de fórmulas mais eficientes. Como grande parte dos ingredientes ativos é insolúvel em água, a Oxiteno também tem produzido solventes verdes para agroquímicos a partir do óleo de soja e de cana-de-açúcar, utilizados em substituição a alguns solventes derivados de petróleo. n pESQUISA FAPESP 200 z 99
melhoramento genético y
Mandioca
vitaminada
Tubérculo e feijão mais nutritivos estão disponíveis para a alimentação dos brasileiros |
A
Evanildo da Silveira
limentos agrícolas mais ricos em vitaminas e nutrientes dos que os consumidos atualmente, como uma mandioca com 40 vezes mais vitamina A do que as comuns, por exemplo, já estão em testes finais de campo no Instituto Agronômico (IAC) de Campinas. Também variedades de oito espécies alimentícias – abóbora, arroz, batata-doce, feijão, feijão-fradinho, milho, mandioca e trigo – mais ricas em ferro e zinco e com maior resistência a doenças e mudanças climáticas já estão no mercado ou em fase final de desenvolvimento na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Trata-se de um processo chamado biofortificação de alimentos, realizado por meio do método de melhoramento genético clássico, em que se buscam, cruzando diferentes variedades, plantas com, por exemplo, resistência a doenças, alta produção e boas características nutricionais com mais vitaminas e minerais. É um trabalho lento e demorado, que pode se estender por 10 a 15 anos. A nova mandioca do IAC, chamada IAC 6-01, começou a ser desenvolvida em 2000 e ainda não está completamente pronta para ser repassada aos agricultores. “Entregamos essa nova variedade apenas para alguns produtores cultivá-la como teste”, conta a engenheira agrônoma Teresa Losada Valle, pesquisadora do IAC e responsável pelo seu desenvolvimento. “Se ela não for boa no 100 z outubro DE 2012
campo não adianta ter outras qualidades, como maior quantidade de nutrientes.” Teresa lembra que, a rigor, o trabalho de melhorar essa planta da família das euforbiáceas, originária do oeste do Brasil, é a continuidade do que começou a ser feito antes de Pedro Álvares Cabral aportar no país. “As populações indígenas domesticaram a mandioca e nos deixaram um grande legado cultural e biológico: uma planta rústica, muito bem adaptada a todos os ecossistemas brasileiros”, diz Teresa. “Além disso, ela é tolerante aos grandes estresses causados por pragas e por aqueles provocados por agentes não vivos, como seca ou geada, por exemplo, e atende à necessidade da agricultura atual com sustentabilidade e baixo custo.” Hoje, com uma produção anual de cerca de 27 milhões de toneladas, o Brasil é o terceiro maior produtor mundial, respondendo por algo em torno de 10% do total global. O estado de São Paulo produz 1 milhão de toneladas por ano, das quais cerca de 120 mil são de mandioca de mesa, o restante é industrial para produção de farinhas e polvilho. “A produção dessa última é feita por pequenos produtores familiares que atendem ao comércio local e regional”, explica Teresa. “Além disso, há uma produção extremamente importante, não contabilizada nas estatísticas oficiais. É a oriunda da agricultura de subsistência moderna, feita nos quintais e pequenas hortas da periferia urbana.
Mandioca biofortificada II (em testes no IAC)
800 UI de vitamina A
Mandioca biofortificada I (lançada em 1985)
Mandioca comum
220 UI de vitamina A
20 UI LÉo ramos
de vitamina A
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Teresa, no IAC: "amarelinha" é resultado também de pesquisas nos quintais das periferias urbanas
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Este segmento não é mensurável e tem um volume de produção inferior à primeira, mas com grande importância socioeconômica, pois é a base da segurança alimentar e geradora de renda de populações carentes.” A quase totalidade dessa produção é do cultivar IAC 576-70, que começou a ser desenvolvido pela equipe de mandioca do IAC na década de 1970 e está disponível aos agricultores desde 1985. Essa mandioca já possuía níveis de vitamina A maiores que a variedade comum. Foi com ela que Teresa venceu o Prêmio Péter Murányi 2012 - Alimentação, concedido pela fundação de mesmo nome, pela importância social e econômica que a variedade adquiriu ao longo do tempo. Também conhecida como “amarelinha” ou “cinco-sete-meia”, a variedade é resultado do cruzamento do cultivar IAC 14-18, de raízes brancas, também selecionado no IAC, com o SRT 797 – ouro-do-vale, de raízes amarelas, coletado de agricultores rurais, cultivado para consumo próprio e existente no banco de germoplasma do instituto, que reúne material genético de várias plantas. Segundo Teresa, que começou a participar do trabalho de melhoramento dessa planta em 1982, no início foram selecionados indivíduos, resultantes do cruzamento, com alta produtividade, raízes uniformes e resistência a doenças, principalmente à bacteriose causadora de grandes epidemias na região centro-sul do Brasil. 102 z outubro DE 2012
A cor amarela das raízes, que indica a presença de mais carotenoides, foi feita visualmente durante a seleção
A seleção das plantas com mais carotenoides foi feita visualmente na escolha de raízes de cor amarela característica desse nutriente. Em uma segunda fase foi realizada uma seleção para boas características organolépticas (sensoriais), como tempo de cozimento, textura e qualidade da massa cozida. Por fim aconteceu uma avaliação química, para quantificação do teor de vitamina A e de carotenoides, principalmente betacaroteno. Nessa fase foi confirmada a estreita relação entre o teor de carotenoides totais e a coloração amarela, e que a quase totalidade dessa substância presente na variedade era betacaroteno. Teresa explica que há dezenas de carotenoides, que dão a cor amarela aos alimentos vegetais, mas somente alguns são precursores de
vitamina A, ou seja, depois de ingeridos se convertem no nutriente e o mais importante é o betacaroteno. De acordo com Teresa, a mandioca comum, com raízes brancas, tem 20 unidades internacionais (UI) (sistema mundial de medidas para quantificar vitaminas) de vitamina A por 100 gramas de raízes frescas, enquanto a variedade 576-70 tem cerca de 220 UI. Para comparar, a necessidade diária de um adulto é de 2.000 UI. A IAC 6-01, que está sendo desenvolvida a partir do cruzamento da SRT 1221 (vassourinha-amarela) com a IAC 576-70, terá quase quatro vezes mais vitamina A que a 576-70, já no mercado, ou mais precisamente 800 UI. Além disso, as duas (576-70 e 6-01) rendem duas vezes mais na lavoura do que as plantas comuns e são muito mais resistentes a doenças e alterações climáticas e ambientais. Rede mundial
No caso da Embrapa, o projeto é mais amplo. A empresa participa de uma rede mundial, a HarvestPlus, que agrupa pesquisadores de vários países que trabalham na biofortificação de alimentos. “Utilizando técnicas de melhoramento genético clássico para obter variedades de cultivos com mais nutrientes, a biofortificação foi o meio encontrado pelos cientistas para melhorar a dieta de famílias pobres e dar alternativa de trabalho para pequenos produtores rurais em vários países do mundo”, explica Marília
fotos 1 e 3 léo Ramos 2 embrapa
Regini Nutti, líder para o Brasil, América Latina e Caribe do HarvestPlus, e pesquisadora da Embrapa Agroindústria de Alimentos, com sede no Rio de Janeiro. “O objetivo é a obtenção de alimentos básicos mais nutritivos.” O HarvestPlus surgiu em 2002 como uma iniciativa do Grupo Consultivo para a Pesquisa Agrícola Internacional (CGIAR, em inglês), com financiamento concedido pela Fundação Bill e Melinda Gates e outros doadores. Hoje o projeto é coordenado pelo Centro Internacional de Agricultura Tropical (Ciat) e pela International Food Policy Research Institute (IFPRI), um instituto fundado em 1975 com o objetivo de encontrar soluções para suprir a necessidade de alimentos nos países em desenvolvimento de maneira sustentável. O HarvestPlus conta com mais de 200 cientistas agrícolas e de nutrição em todo o mundo. No Brasil, o projeto teve início em 2003, coordenado pela Embrapa e hoje é parte da Rede BioFORT, que congrega mais de 150 profissionais em diferentes áreas do conhecimento em 11 estados. “Por meio dessa rede que a Embrapa criou, interagimos com universidades, centros de pesquisa nacionais e internacionais, associações de produtores, governo, prefeituras e organizações não governamentais”, explica Marília. “O BioFORT tem como objetivo diminuir a desnutrição e garantir maior segurança alimentar, por meio do aumento dos teores de ferro, zinco e vitamina A na dieta da população mais carente.” São oito produtos agrícolas que estão sendo biofortificados pela Embrapa. A meta é produzir variedades de abóbora e milho com altos teores de carotenoides e outros precursores de vitamina A; arroz, feijão-caupi, trigo e feijão com grande concentração de ferro
e zinco (o último também com grande resistência à seca); e mandioca e batata-doce mais ricas em betacaroteno. “Até o momento, desenvolvemos e lançamos 10 cultivares, dos quais três de mandioca e um de batata-doce com maiores teores de betacaroteno, três de feijão-caupi e três de feijão comum mais ricos em ferro e zinco”, conta Marília. “Demoramos cerca de cinco a seis anos para desenvolver cada um, todos por melhoramento genético convencional, sem transgenia.” Acervo cultural
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O milho da Embrapa em processo de seleção para ter mais nutrientes
Mandiocas cozidas: a partir da esquerda, a comum; com 220 UI de vitmina A e a com 800 UI, a mais amarela
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O trabalho do IAC e da Embrapa não se limita, no entanto, ao desenvolvimento de novas plantas. As duas instituições atuam também para difundi-las entre os agricultores e, por consequência, para a população. “Os projetos HarvestPlus e BioFORT levam em conta todo processo de alimentação do cidadão, desde o momento em que o alimento é produzido até a mesa do consumidor”, diz Marília. “Com esse intuito, considera e analisa a receptividade dos produtores nas comunidades rurais em relação às novas variedades. Para isso, é importante que elas, além dos ganhos nutricionais, apresentem vantagens agronômicas e comerciais.” Com esse objetivo, a Embrapa trabalha em colaboração com diversos países da América Latina, como, por exemplo, o Panamá e a Colômbia. Também já enviou alguns cultivares para teste de adaptação no Haiti e colabora com os países da África e Ásia por intermédio do HarvestPlus. Alimentos biofortificados podem funcionar como um instrumento inovador para a melhoria da qualidade de vida da população mais pobre, como foi o caso do cultivar IAC 576-70. “O primeiro segmento a ser focalizado foi o de baixa renda, residente na periferia urbana, originada de áreas rurais, em consequência da migração provocada pela modernização da agricultura, na década de 1970”, diz Teresa. “Essas pessoas trouxeram consigo sua cultura, as sementes e o conhecimento das plantas. Dessas espécies, a mais importante foi a mandioca.” De acordo com Teresa, com isso chegou à periferia das áreas urbanas um grande acervo genético, acompanhado pelo conhecimento popular sobre plantas acumulado por séculos, que, se nada fosse feito, seria rapidamente perdido com o passar das gerações e a integração dos filhos dos migrantes à cultura urbana. n pESQUISA FAPESP 200 z 103
humanidades
Dançarino de hip-hop fotografado por LÊo Ramos para reportagem sobre rappers, de maio de 2012 104 | novembro DE 2011
Postal do rio Tietê (c. 1905) para reportagem sobre o principal rio de São Paulo, de agosto de 2005
PESQUISA FAPESP 200 | 105
humanidades pensamento y
Atualidade da
Grécia Antiga Estudo de textos de Aristóteles e Platão revela origens de conceitos científicos contemporâneos Maria Guimarães
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ilustração bel falleiros
uando confrontada a duas teorias – uma simples e outra complexa – para explicar um problema, a maior parte das pessoas não hesita em favorecer a primeira, também qualificada como elegante. “Em muitos casos, porém, a complexa pode ser mais interessante”, lembra o filósofo Marco Zingano, da Universidade de São Paulo (USP). Segundo ele, a escolha é de tal forma natural na cultura ocidental contemporânea porque o pensamento dessas civilizações foi moldado por Aristóteles e Platão, os filósofos de maior destaque na Grécia Antiga, para quem a metafísica da unidade tinha como paradigma a simplicidade. Entender até que ponto as ideias desenvolvidas há cerca de 2.400 anos ainda hoje balizam a forma de ver o mundo é o que mantém Zingano imerso em textos antigos. E está longe de fazer isso sozinho. Numa sucessão de projetos que já duram 10 anos, ele vem reunindo um grupo rico e diverso de pesquisadores de várias universidades brasileiras e estrangeiras em seminários para discussão de textos e ideias. A linha mestra do grupo consiste em reconhecer a influência de Aristóteles e de Platão, seu professor por 20 anos, no pensamento contemporâneo. “Quando se estuda os gregos, encontram-se temas atuais”, diz o filósofo da USP Luiz Henrique Lopes dos Santos, um dos pesquisadores associados ao projeto. “Fazer história da filosofia já é
fazer filosofia”, completa. “O tempo da ciência é cumulativo, o da filosofia é mítico, caracterizado pela retomada contínua, de diferentes perspectivas históricas, dos mesmos temas fundamentais.” O enfoque do estudo diverge dos olhares mais comuns sobre os escritos da Grécia Antiga, que ora envolvem historiografia pura, ora consideram que Aristóteles continuaria hoje na fronteira do pensamento, caso fosse possível ressuscitá-lo. “Seria ingênuo tanto limitá-lo ao passado como trazê-lo para nos corrigir”, afirma Zingano. Levado ao pé da letra, o resgate puramente historiográfico das contribuições da Antiguidade pode parecer folclórico, até risível, diante do conhecimento atual. Exemplos interessantes estão na biologia, que representa um terço dos escritos de Aristóteles remanescentes hoje. Ele descreveu uma série de espécies, como peixes e corais, mas também ia além e buscava explicar padrões que via na natureza. Por que, por exemplo, certos animais têm casco fendido? A explicação do filósofo grego partia do princípio de que cada organismo tem uma determinada cota de matéria óssea a ser usada em sua construção. Por necessidade de se defender, veados, por exemplo, desviariam parte dessa matéria para os chifres e não teriam o suficiente para as patas, que ficariam incompletas. Uma explicação completamente desbancada pelo conhecimento atual, mas não necessariamente irrelevante de todo.
Pensando na permanência das ideias, Zingano cita a busca de Aristóteles por entender o que faz com que homens gerem homens e plantas, plantas – uma observação aparentemente óbvia, mas que em sua época guiava uma investigação que contrariava antecessores. Os organismos, o grego definia, são feitos de matéria e forma. O que confere estrutura a um ser vivo é a forma, transmitida de uma geração para outra e que governa a matéria. “A ideia de que a forma não provém da matéria, mas a governa, se tornou familiar a tal ponto que o conceito de DNA de certo modo ainda hoje a reflete”, explica o filósofo da USP, numa analogia do conceito antigo com o que hoje se sabe controlar a hereditariedade.
O
utra teoria que à primeira vista não parece aproveitável diz respeito ao cosmos, que para os gregos antigos era único, com um sol apenas e todos os planetas girando em torno da Terra. Além dos quatro elementos básicos que compõem a matéria – terra, ar, água e fogo –, tudo o que parece vazio no espaço seria formado por um quinto elemento: o éter. Invisível, inalterável e com seu movimento circular uniforme, o éter definiria o chamado mundo supralunar. Aparentemente divorciado por completo da compreensão cosmológica moderna, o conceito de éter no entanto foi retomado pelo físico Albert Einstein cerca de 23 séculos depois na construção de seu modelo do espaço-tempo, hoje central na astrofísica. Aristóteles está portanto presente, mesmo que oculto, na forma como o pensamento governa os hábitos intelectuais da civilização atual. Se isso já é verdade para disciplinas mais específicas como
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biologia e física, é mais ainda para as bases mais amplas tanto da ciência como do pensamento em geral – a lógica, a ética e a metafísica. Um dos problemas que ocuparam Platão e Aristóteles foi a acrasia, que leva uma pessoa a tomar uma atitude contrária à que sabe ser a correta. Se está claro, por exemplo, que uma moderada dose diária de exercício é suficiente para prevenir uma série de doenças graves e trazer benefícios sensíveis à saúde, por que alguém optaria por passar horas a fio deitado no sofá, se locomover apenas de carro e deixar a academia de lado? Para Sócrates, que foi professor de Platão, a resposta era simples: guiado pela razão, o ser humano só deixa de fazer o que é melhor se lhe faltar o conhecimento. Platão discordava, e resolveu o dilema dividindo a alma em três partes, representadas por um par de cavalos alados conduzidos por um cocheiro que representa uma delas, a razão. Um dos cavalos, arredio, só pode ser controlado a chicotadas e representa a parte dos apetites. O outro, mais dócil, é a porção irascível da alma. É o impulso, em geral obediente à razão, mas que pode levar a decisões impetuosas em determinadas situações. “O que determina as ações seriam fontes distintas de motivação”, observa Zingano. Platão pensou o conflito como interno à alma, dando lugar à acrasia. Já Aristóteles dedicou um livro de sua Ética ao fenômeno. O embate entre paixão e razão, tão familiar hoje, tem sua matriz nas reflexões dos dois gregos sobre as fontes de motivação para a ação. Algumas das contribuições do pensamento antigo são essenciais ao desenvolvimento científico. “Aristóteles deixou um conjunto de textos sobre como argumentar, e como essas formas argumentativas podem ser usadas de maneira geral”,
conta Roberto Bolzani, também do Departamento de Filosofia da USP. O foco de seu estudo são os diálogos socráticos de Platão, sobretudo no que diz respeito a refutação e persuasão. No grupo de pesquisa, ele compara as ideias do mestre aos modos de argumentação descritos por Aristóteles em seus tópicos. Entre eles estão a indução e a dedução, que se tornaram elementos centrais do método científico aplicado até hoje. “Antes de Aristóteles e Platão não havia um sentido de conhecimento”, explica, “que eles definiram como algo imutável, eternamente verdadeiro e que pode ser demonstrado”. A definição serviu como base para a concepção moderna, que leva em conta o uso de experimentos para testar hipóteses. Para Bolzani, o encontro entre ética, lógica, metafísica e teoria do conhecimento é natural na busca por apreender o pensamento de Platão e Aristóteles. “A visão de mundo dos dois autores gregos faz com que as coisas estejam ligadas”, afirma. “A busca pelo conhecimento, para eles, é uma busca ética.” Hoje a ciência se tornou cada vez mais compartimentalizada, uma característica que também acaba por definir a filosofia moderna. “Ao contrário do que acontecia na Antiguidade, hoje é possível estudar física sem um sentido moral.”
A
relação com o pensamento moderno confere ao projeto, segundo Bolzani, uma certa vivacidade. “Não é um estudo apenas de erudição.” Aristóteles e Platão tiveram um papel importante – e persistente – porque foram grandes sistematizadores do conhecimento. Eles procuraram domar os conceitos mais diversos do Universo, do corpo e da mente, entender seu funcionamento e deixar registrado para uso futuro. Resgatar esses textos, explica Zingano, além de atuar na manutenção da erudição, é uma busca da compreensão de como a cultura ocidental descreve o mundo e enxerga a si mesma. Para isso, ele mantém um calendário rigoroso de seminários que todas as semanas reúnem os integrantes do projeto em torno da análise de um texto. Alguns integrantes do grupo vieram de longe, como um pós-doutorando venezuelano, um italiano, um norte-americano e um francês. Além disso, a estrutura de um grande projeto lhe permite trazer pesquisadores de outros países para apresentar e discutir trabalho em curso, além de mandar estudantes para temporadas de aprendizado e discussão fora de São Paulo e mesmo do Brasil. À medida que cria um ambiente de investigação e torna a USP um centro reconhecido no estudo de filosofia antiga, Zingano cria uma cultura no departamento. Num primeiro momento, os alunos acharam estranho ver um professor encher o quadro de escrita grega durante as aulas. “Hoje já ficou natural”, afirma o filósofo, que considera essencial integrar a expressão da língua ao pensamento.
“A ideia de que a forma governa a matéria se tornou familiar a tal ponto que o conceito de DNA ainda hoje a reflete”, diz Zingano
A tradução é, de fato, uma parte central do grupo de estudos e acaba sendo indissociável das questões filosóficas. Daniel Lopes, professor de língua e literatura grega na USP, é pesquisador associado do projeto e concentrou sua carreira na tradução de textos gregos, embora tenha formação em filosofia. Nos seminários ele contribui para a discussão de aspectos de tradução e interpretação dos textos, mas sua pesquisa particular diz respeito a um problema filosófico específico: o hedonismo nos diálogos Górgias e Protágoras, de Platão. Ele publicou no ano passado a tradução do primeiro pela editora Perspectiva e está traduzindo o segundo. “No Górgias a personagem Sócrates condena o prazer e no Protágoras ele parece considerar prazeres e dores como o critério para ação”, explica. Lopes ainda não terminou a análise dos textos, mas por enquanto acredita que a contradição é apenas aparente, pois Sócrates não se compromete com a tese hedonista do Protágoras. “As opções do tradutor na interpretação do texto fazem toda a diferença”, conclui. Para quem acha estranha a ideia de um grupo internacional constantemente debruçado sobre textos escritos há mais de 20 séculos numa língua morta, fica o recado: seu conteúdo está longe de ultrapassado, quando se olha a fundo. n
Projeto Filosofia grega clássica: Platão, Aristóteles e sua influência na Antiguidade – nº 2009/16877-3. Modalidade: Projeto Temático. Coordenador: Marco Antonio de Avila Zingano. Investimento: R$ 379.440,00 (FAPESP). pESQUISA FAPESP 200 z 109
estatísticas y
A pesquisa que vira política Estudos acadêmicos sobre carências da população cada vez mais ajudam governos a adotar soluções
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Tribunal de Contas do Estado (TCE) de Mato Grosso monitora os gastos nas áreas de educação e saúde de 141 municípios e os impactos dessas políticas na qualidade do atendimento à população, por meio de base de dados georreferenciados desenvolvida pelo Centro de Estudos da Metrópole (CEM). “Esse modelo permite não apenas avaliar se os municípios estão gastando o que a Constituição exige, mas também se eles vêm melhorando o seu desempenho”, diz Marta Arretche, professora do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) e diretora do CEM. A metodologia, criada há cinco anos por encomenda do TCE de Mato Grosso, foi transferida para o estado e passou a ser utilizada como ferramenta de avaliação de desempenho das administrações municipais. Mais que isso: as informações resultantes da aplicação do Índice do desempenho da saúde e da educação das cidades do Mato Grosso estão disponíveis no site do TCE e podem ser acessadas por qualquer cidadão interessado em obter informações sobre gastos e atendimento nessas áreas em seu município. A transferência de conhecimento na avaliação de políticas públicas é a principal missão do CEM, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP, forma110 z outubro DE 2012
do pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Desde a sua instalação, em 2003, já foram implementados mais de 30 projetos de pesquisa envolvendo transferência de metodologia ao setor público. A parceria entre o TCE/MT e CEM iniciou-se quando o tribunal decidiu, em 2007, fazer uma investigação que fosse além da verificação da regularidade do gasto público, no que se refere à sua legalidade, legitimidade e economicidade. “O tribunal entendeu que também era preciso avaliar se os referidos gastos tiveram impacto positivo na sociedade”, conta Volmar Bucco Júnior, auditor público do TCE/MT. Foi quando surgiu a ideia de avaliar políticas públicas por meio de indicadores de resultados e foi firmada a parceria com o CEM. “Trata-se de uma ferramenta valiosa. Ao retratar os resultados das políticas públicas de saúde e educação do estado e dos municípios, o controle externo avalia a eficiência na gestão dos recursos públicos”, ele explica. As administrações, assim, podem avaliar sua própria atuação, verificando a evolução dos resultados e sua posição em comparação com a média Brasil, o que permite tomada de decisões, e a sociedade pode acompanhar o desempenho dos gestores públicos, podendo reivindicar a melhoria dos serviços.
ilustração gabriel bittar
Claudia Izique
pESQUISA FAPESP 200 z 111
O Índice do desempenho da saúde e da educação é, na verdade, uma base geor-referenciada de dados com informações fornecidas pelos ministérios da Educação e da Saúde e que permite a comparação do desempenho dos diferentes municípios brasileiros. A matriz da avaliação considera 10 itens para cada uma das áreas em questão. A análise dos sistemas de saúde, por exemplo, contabiliza mortalidade neonatal, cobertura à saúde da gestante, indicadores sobre a saúde da criança, óbitos por doenças infectocontagiosas (como dengue e tuberculose) e números de atendimentos relativos à saúde da mulher. Os dados são recolhidos pelo banco de dados do Sistema Único de Saúde (Datasus). Para a análise do sistema de educação, foram recolhidas informações sobre taxas de reprovação até a 4ª série e da 5ª à 8ª série do ensino fundamental, entre outros quesitos. As informações foram fornecidas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) e pelo Censo Escolar (sistemas de avaliação da educação básica do país).
MAPA DAS CARÊNCIAS Desigualdade das condições de saúde (2004 - 2006)
n Muito ruim (de 0 a 2) n Ruim (mais de 2 a 4) n Médio (mais de 4 a 6) n Bom (mais de 6 a 8) n Muito bom (mais de 8 a 10)
Desigualdade das condições de saúde (2007 - 2009)
Dados nacionais
Os mapas ao lado e da página 113 permitem, por exemplo, comparar o desempenho de sistemas de saúde e de educação em diferentes municípios do país. As manchas vermelhadas sinalizam situações classificadas como “muito ruins”. A cor azul-escuro revela o que foi avaliado como “muito bom”. Esses dois tons e o degradê de cores que existe entre eles consolidam dados recolhidos município por município em todo o território nacional. Segundo Marta Arretche, esse tipo de estudo só pode ser realizado porque o país tem sistemas públicos abrangentes e gratuitos de informação. “Para saber como os governos municipais ou estaduais estão gastando, é preciso montar um sistema confiável. E essa informação já existe. Só o Japão se compara ao Brasil em termos de disponibilização da informação de sistemas públicos.” Nos Estados Unidos, ela acrescenta, não existem sistemas de informações nacionais sobre os municípios. Lá, para montar um sistema semelhante, seria preciso percorrer cidade por cidade, buscando a informação desejada, para depois compatibilizá-la. “Aqui temos o Censo Escolar, a Prova Brasil, o Data112 z outubro DE 2012
n Ruim (mais de 2 a 4) n Médio (mais de 4 a 6) n Bom (mais de 6 a 8) n Muito bom (mais de 8 a 10)
sus, além das pesquisas de informações municipais do IBGE.” Essas informações devem ser equacionadas para possibilitar comparações. Para cada indicador, o município recebe uma nota de 0 a 1. Para a nota total, os itens são somados. As condições são analisadas sempre em períodos de três anos (os mapas se referem aos triênios de 2004 a 2006 e de 2007 a 2009). “A gente trabalha com média de três anos porque, se houve um evento extremo em uma cidade em um dado ano, por exemplo, dá para corrigir distorções.”
O resultado das análises comparativas no período revela que, na educação, havia uma “massa” de municípios em péssima situação no início da década, enquanto um pequeno número de cidades representava “ilhas de excelência” que aumentaram ao longo da década. Na saúde brasileira, por outro lado, não existe essa situação de contrastes. “Há menos desigualdade entre os municípios, mas não temos pontos de excelência, ainda que se tenha registrado melhoras significativas com o passar dos anos”, analisa Arretche.
Desigualdade das condições de educação (2003 - 2005)
n Muito ruim (de 0 a 2) n Ruim (mais de 2 a 4) n Médio (mais de 4 a 6) n Bom (mais de 6 a 8) n Muito bom (mais de 8 a 10)
Desigualdade das condições de educação (2007 - 2009)
n Muito ruim (de 0 a 2) n Ruim (mais de 2 a 4) n Médio (mais de 4 a 6) n Bom (mais de 6 a 8) n Muito bom (mais de 8 a 10) fonte centro de estudos da metrópole
Indicador de qualidade de vida
A expectativa do auditor público do TCE/MT é viabilizar essa metodologia de análise para qualquer órgão público, ou mesmo privado, do Brasil. Na avaliação de Marta Arretche, o estudo pode ajudar a medir o grau de desenvolvimento econômico e a qualidade de vida oferecida à população de um país com as dimensões do Brasil. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), em sua avaliação, não dá uma boa medida de sistemas descentralizados de prestação de serviços públicos. Já a metodologia
do CEM permite avaliar o desempenho de políticas sociais de saúde e de educação em esferas muito mais abrangentes e mais próximas da realidade, o que permite que as políticas públicas tenham melhor precisão e efeitos sobre a população afetada. Mato Grosso, por exemplo, já começa a contabilizar os resultados. Os diagnósticos consolidados por esse sistema já resultaram em melhorias para todo o estado. “Como o TCE/MT passou a utilizar também essa metodologia para a apreciação das contas dos gestores
públicos, o controle social se intensificou e a ferramenta começou a mostrar a situação de seu município frente aos demais”, explica. “Os agentes públicos, então, tiveram que tomar medidas para melhorar seus índices.” O sucesso da implementação da metodologia teve até desdobramentos: o CEM foi convidado a desenvolver para a Secretaria de Segurança Pública do estado um painel de monitoramento do número de homicídios, baseado em um conjunto de indicadores que medem o desempenho das ações de segurança e que também permitem a comparação entre diversas regiões do estado. O painel funciona como uma espécie de alarme sempre que registra mudanças negativas nos padrões médios dos indicadores. “Essa metodologia de informações se tornou uma ferramenta importante para avaliar e subsidiar a formulação de políticas públicas”, afirma Eduardo Marques, pesquisador do CEM e professor do Departamento de Ciência Política da USP. O CEM desenvolveu mais de 30 projetos de pesquisa orientados para auxiliar a formulação e a implementação de políticas públicas. Entre elas se inclui, para a prefeitura de São Paulo, o Mapa da vulnerabilidade social – que permitiu detectar as situações de carência social por meio da análise da distribuição da estrutura socioeconômica – e os Indicadores ambientais e gestão urbana: os desafios para a construção da sustentabilidade na cidade de São Paulo, que possibilitou à administração identificar o alto grau de variedade em relação aos problemas e pressões ambientais em diferentes espaços urbanos. Ainda para a prefeitura paulistana foram desenvolvidos dois estudos sobre a precariedade habitacional, que subsidiaram o Plano Habitacional do Município. Esta última experiência levou o Ministério das Cidades a encomendar o desenvolvimento de metodologia para análise de assentamentos precários gerando informações sobre carências habitacionais de um grupo selecionado em 560 municípios. As parcerias com os órgãos públicos ocorreram de forma paulatina por contatos entre os gestores. “O CEM foi um dos primeiros a digitalizar bases de dados”, diz Marques. “Começamos com a prefeitura de Mauá, em 2003. A informação circula e as demandas aparecem.” n pESQUISA FAPESP 200 z 113
ciências políticas y
O voto que realmente vale
Sistema eleitoral brasileiro hoje é modelo de eficiência
ARQUIVO / AGêNCIA ESTADO / AE
e democracia
114 z outubro DE 2012
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Eleitores fazem fila para votar, em São Paulo, durante as eleições de 1945
o dia 7 de outubro 138,5 milhões de brasileiros com mais de 16 anos estavam alistados para participar do processo de escolha de novos prefeitos e vereadores de 5.564 municípios. O voto é obrigatório e os que não compareceram às urnas têm prazo de 60 dias para justificar a ausência, sob pena de multa. Neste pleito, 15.601 candidatos de 30 partidos – muitos deles em coligação – disputaram o cargo de prefeito e cerca de 450 mil, o de vereador, segundo estatísticas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Todos estavam inscritos desde o dia 30 de junho e, ao longo de 43 dias antes do pleito, partidos e coligações puderam divulgar suas candidaturas em horário gratuito na TV. Poucas horas após o encerramento das eleições, a maioria das cidades já conhecia o nome dos futuros prefeitos e vereadores e aquelas com mais de 200 mil eleitores, onde nenhum candidato obteve metade dos votos válidos (50%+1), iniciaram os preparativos para o 2º turno, agendado para o dia 28 de outubro. Quando forem proclamados os resultados finais, o Brasil certamente terá mais uma vez dado provas da eficiência de seu sistema eleitoral. “Temos um modelo dos mais bem-sucedidos na promoção da justiça política”, avalia Fernando Limongi, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e da Universidade de São Paulo (USP). O voto universal e obrigatório, o sistema de alistamento de eleitores, as urnas eletrônicas e até mesmo o horário eleitoral gratuito – que, em sua opinião, deve ser creditado na conta do financiamento público da campanha – contribuem de forma inequívoca para subtrair força de grupos de interesses e ampliar a participação política e, nos últimos 30 anos, ajudaram a consolidar a democracia no país. “A Justiça Eleitoral e as decisões do Congresso têm facilitado o acesso às urnas, permitindo que o eleitor se manifeste”, completa Argelina Maria Cheibub Figueiredo, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). A evolução do sistema eleitoral brasileiro é tema de estudo do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP, com a colaboração de pesquisadores ligados ao Projeto Temático Instituições políticas, padrões de interação Executivo-legislativo e capacidade governativa, coordenado por Limongi e Argelina, igualmente apoiado pela Fundação. “O nosso objetivo é analisar o sistema eleitoral brasileiro com um olhar menos comprometido com modelos de democracias mais avançadas ou com a ideia de que, no Brasil, há sempre uma catástrofe iminente”, ela explica. Essa mesma perspectiva pautou a pesquisa de Jairo Nicolau, também da UFRJ, recentemente publicada no livro Eleições no Brasil – Do Império aos dias atuais, publicado pela Editora Zahar. “O Brasil tem uma das mais duradouras experiências com eleições no mundo, iniciada há 190 anos, e um sistema eleitoral dos mais eficientes, que dispensa a necessidade de observadores internacionais”, sublinha Nicolau. “Hoje temos eleições limpas, sem risco de fraudes. Há um ambiente democrático de liberdade. O eleitor decide e seu voto não é adulterado, o que permite criar um ambiente realmente competitivo.” A experiência eleitoral brasileira teve início ainda no Império. Por meio de escolhas indiretas, homens católicos, com mais de 25 anos, proprietários de terra, entre outros requisitos pESQUISA FAPESP 200 z 115
A longa trajetória da democracia História mostra que alfabetização ajudou a consolidar o sistema eleitoral Eleitores no Brasil, em milhões
% de analfabetos na população
Votos brancos e nulos (eleições presidenciais)
1932
1934
1945
1950
1964
Código Eleitoral: eleitor alfabetizado e maior de 18 anos, incluindo mulheres, voto secreto e criação da Justiça Eleitoral
Nova Constituição: voto obrigatório e eleição do presidente Vargas
Lei mantém a Justiça Eleitoral e a obrigatoriedade do voto
Novo Código Eleitoral, novo título eleitoral
Fim do pluripartidarismo; presidentes militares e governadores referendados por eleições legislativas e cargos legislativos escolhidos por eleições diretas
Imagem TSE
35% 1940
2,5
1945
1930
1930
1940
das Ordenações do Reino, elegiam entre seus pares os eleitores que escolhiam os juízes, vereadores e procuradores. Na Primeira República, definidas as bases institucionais do novo regime – presidencialismo, federalismo e sistema bicameral –, foi instituído o voto direto de eleitores alfabetizados para a escolha de nomes para cargos executivos, ainda sem a exigência de inscrição prévia de candidatos ou partidos. As primeiras eleições competitivas e efetivamente democráticas, no entanto, só aconteceram em 1945, quando o Brasil emergiu do Estado Novo, de acordo com Limongi. “Eleição, por si só, não é suficiente para qualificar o regime nascente como democrático. A criação da Justiça Eleitoral, por exemplo, é parte deste amplo processo de transformação estrutural da sociedade”, ele diz. Mas o pleito que elegeu Eurico Gaspar Dutra presidente da República, deputados e senadores ocorreu em circunstâncias excepcionais, ele sublinha. O país estava sob o comando do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), José Linhares, que assumiu o cargo após a queda de Getúlio Vargas, 116 z outubro DE 2012
11,4 1950
1950
afastou os interventores nos estados e determinou que os prefeitos vinculados a partidos políticos fossem substituídos por membros do Poder Judiciário. Com isso neutralizou o poder das oligarquias locais. Adicionalmente, naquela eleição a legislação limitou a inscrição a candidatos registrados por partidos políticos credenciados no TSE, o que dependia do apoio de 10 mil eleitores em cinco circunscrições eleitorais. Vinte partidos participaram da eleição em que se sagrou vitorioso o candidato do Partido Social Democrático (PSD), Dutra. Participação
O processo de participação eleitoral avançou em 1950, quando o Congresso promulgou o novo Código Eleitoral, adotando a representação proporcional para a Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais e a regra majoritária para a eleição de presidente, governadores e prefeitos, e seus respectivos vices. As cédulas eleitorais, porém, ainda eram impressas pelos partidos. “O eleitor recebia o ’santinho’. Antes de ele entrar na cabine era preci-
15,2
15,5
1955
1964
1950
so verificar se não estava levando um maço de cédulas, o que envolvia coação e controle do eleitor”, conta Limongi. O problema só seria resolvido a partir da década de 1960, quando as eleições majoritárias e proporcionais passaram a utilizar cédulas oficiais. “Foi um avanço, já que reduziu a possibilidade de impugnação do voto e o controle sobre o eleitor”, ele comenta. Votar, no entanto, era empreitada difícil para o eleitor de baixa qualificação diante da “complicação” de escolher ou registrar o nome de candidatos na cédula eleitoral. Assim, apesar de ampliada a participação, cresceu o número de votos brancos e nulos nas eleições. “O custo de votar era muito alto, muita gente acabava excluída”, diz Limongi. O problema foi “atenuado” pelo bipartidarismo imposto pelo regime militar – já que facilitou o registro do nome de candidatos da cédula oficial, ampliando, paradoxalmente, o direito de voto. “No caso dos candidatos a deputados estadual e federal, o eleitor escrevia o nome ou o número do candidato ou marcava um x no lugar do partido.” O número de votos brancos e nu-
infográfico alexandre affonso
7,4
1989
1996
2000
Eleições diretas para Presidência da República
Utilização da urna eletrônica em 37 cidades com mais de 200 mil eleitores
Todos os eleitores utilizam urna eletrônica
132 2010
1979
1982
Restabelecimento do pluripartidarismo
Exigência de voto em um único partido para todos os cargos
33,6%
106 82
25,5% 1980
109 2000
1994
1989
1986
1970
95,7
1998
Cadastro Nacional de Eleitores
20% 1990
1994
1998
Coincidência da disputa presidencial com a renovação do Congresso Nacional e dos cargos estaduais
Urna eletrônica é utilizada pela primeira vez em eleições nacionais, em cidades com mais de 40.500 eleitores
19% 1994
19% 1999
1988 Constituição adota sistema de maioria absoluta em dois turnos para a escolha dos chefes do Executivo e confere direito facultativo de voto para analfabetos e para jovens a partir de 16 anos
6% 1989
1990
los caiu até as eleições de 1986, quando foram eleitos os deputados e senadores que seriam responsáveis pela elaboração da nova Constituição, já com o voto dos eleitores analfabetos, autorizado em maio de 1985 pela Emenda Constitucional nº 25. Essa restrição, aliás, já havia perdido importância eleitoral durante o regime militar, período em que caiu o índice de analfabetismo no país. “Quando a restrição caiu, cerca de 80% dos brasileiros já estavam aptos a votar”, contabiliza Limongi.
O sucesso do sistema nacional está na chance de todas as forças políticas estarem representadas
Voto eletrônico
A nova Carta adotou o sistema de maioria absoluta em dois turnos para a escolha dos chefes do Executivo – presidente, governadores e prefeitos de cidades com mais de 200 mil eleitores – se um dos candidatos não obtivesse mais de 50% dos votos válidos no primeiro turno. Em 15 de novembro de 1989 foram realizadas eleições diretas para a Presidência, depois de quase três décadas. Ocorre que a Constituição estabeleceu também que o mandato do presiden-
te seria de cinco anos. Assim, em 1994, houve coincidência nas eleições presidenciais, do Congresso Nacional e dos cargos estaduais. “Foram duas cédulas eleitorais: uma para as eleições majoritárias e outra para as proporcionais. A taxa de votos brancos e nulos explodiu”, lembra Limongi. Mais grave ainda foram as fraudes registradas em algumas zonas eleitorais do Rio de Janeiro e que resultou na anulação dos resultados do pleito para deputado estadual e federal no estado. “Era preciso mudar a forma
2010
de apuração dos votos e a saída foi a urna eletrônica”, afirma Limongi. O sistema eletrônico de voto já vinha sendo testado desde 1990 em alguns municípios brasileiros, conta Nicolau. Em 1996 substituiu as cédulas de papel em 37 cidades – capitais e municípios com mais de 200 mil eleitores e, em 1998, foi utilizada pela primeira vez em eleições nacionais, em quatro estados e no Distrito Federal, até ser definitivamente adotada em todo o país em 2000. Desde então a variação de votos brancos e nulos estabilizou-se em torno de 10%, o risco de fraude desapareceu e as taxas de abstenção nas eleições estacionaram em 20%. “O próximo passo será a urna com identificação biométrica”, diz Nicolau. O sucesso do sistema de representação no Brasil está na possibilidade de todas as forças políticas relevantes estarem representadas nas eleições. E contarem com algum espaço no horário eleitoral gratuito. “Não temos no país um partido político de extrema direita, tampouco partidos hiperliberais ou nacionalistas. Mas, se existissem, certamente seriam generosamente acolhidos”, afirma Nicolau. n Claudia Izique pESQUISA FAPESP 200 z 117
sociologia y
Uma arte feita de tensões Produções intelectuais e indústria cultural dialogam entre tapas e beijos
E
m A perda da auréola, dos Pequenos poemas em prosa, Baudelaire descreve o poeta, apressado, a saltitar por entre poças de lama. De repente, sua aura cai numa delas, mas ele nem se preocupa em pegá-la de volta, confessando seu alívio a um passante: “Posso enfim me entregar à devassidão, como qualquer mortal. A dignidade me entedia. Eis-me aqui, igualzinho a você, como vê!”. Assim, o antigo “bebedor de quintessências” e “comedor de ambrosia” percebe que precisa deixar, de bom grado, a sua aura na “lama” para viver os novos tempos. “No Brasil do século XIX já se percebe um diálogo inicial entre ‘alta’ e ‘baixa’ cultura, catalisado pelo crescimento da imprensa. Afinal, sem produtos comerciais como os jornais, fruto de uma indústria cultural nascente, não haveria espaço para figuras como Machado de Assis, Lima Barreto ou João do Rio. Por um paradoxo, foi um movimento na ‘baixa’ cultura que provocou a criação de obras de ‘alta’ literatura”, diz a Pesquisa FAPESP o sociólogo Sergio Miceli, da Universidade de São Paulo (USP). Segundo o pesquisador, deixar a aura na “lama” e desenvolver a produção artística em veículos sem “ambrosias e quintessências” passou a ser característica do desenvolvimento da cultura brasileira. “A nossa cultura é resultado dessa complexa interação entre elementos ‘intelectuais’, ‘elevados’, e as mídias da indústria cultural. É uma relação tensa: às vezes mais harmoniosa; em outras, em litígio aberto. Essa relação entre ‘alta’ e ‘baixa’ cultura é típica do Brasil. Na Argentina, por exemplo, o peso da indústria cultural é muito menor e sua influência demorou a mexer com a sociedade”, conta Miceli. Para entender esse dilema numa perspectiva inovadora, o sociólogo reuniu um grupo de pesquisadores no projeto Formação do campo intelectual e da indústria cultural no Brasil contemporâneo. 118 z outubro DE 2012
“Entendemos que uma verdadeira história crítica da cultura brasileira deve revelar as ligações entre surtos estratégicos da produção cultural erudita e a expansão de setores dinâmicos da indústria cultural, em geral vista, de maneira equivocada, como mero reduto de vulgarização da criação erudita, totalmente apartada da cultura elaborada”, fala. Segundo Miceli, a cultura nacional percorre uma via de mão dupla. “De um lado, temos intelectuais e artistas moldando rumos e linguagens das mídias de cada tempo histórico. Ao mesmo tempo, as transformações da indústria cultural vão impondo feições e significados ao trabalho desses criadores”, analisa. O que o projeto traz de novo é a discussão sobre como a cultura letrada se articula com a indústria cultural, misturando o polo erudito às mídias comerciais. “Historicamente, nossa cultura resultou do elo indissociável entre projetos intelectuais e artísticos e as condições estruturais que propiciaram a viabilização desses projetos.” O grupo de Miceli quis romper a barreira analítica interposta entre as culturas popular e erudita para ressaltar seus pontos de inflexão, as linhas de continuidade, o constante combate entre preconceitos defensivos, as mediações feitas por empresas e lideranças, e os fluxos de linguagem, ideias, modelos, autores e obras. “Assim, é possível perceber os intercâmbios e as brigas em que operam intelectuais, escritores e artistas, expostos às circunstâncias históricas e aos condicionantes das mídias e dos veículos em que circulam e são recepcionados os seus trabalhos criativos”, afirma o sociólogo. Para dar conta desse painel, foram reunidas pesquisas que, à primeira vista, pouco têm a ver umas com as outras. Tudo serviu para compreender a sutileza dessa interação: da ligação entre Lima Barreto e o jornalismo à crítica disparatada contra Paulo Coelho, passando pelas modificações
ilustrações daniel bueno
Carlos Haag
na imprensa contemporânea, o advento do romance regionalista, as divas do teatro paulistano, chegando, ao fim, na temática contemporânea dos “filmes de favela”. “Em cada um desses momentos históricos os produtores culturais eruditos se nutriram de materiais formatados e veiculados na mídia comercial, assim como os suportes e gêneros da indústria cultural se alimentaram dos repertórios da chamada alta cultura”, conta Miceli. Um percurso iniciado com a expansão da imprensa e das revistas ilustradas que sofreu grande impulso com o surto empreendedor do setor editorial, tudo culminando com as ações modeladoras do teatro, do rádio, da televisão e do cinema. “Nesses ciclos, cada transformação das mídias provoca mudanças na vida intelectual, fazendo dessa união entre produtos e suportes uma liga esclarecedora da substância da nossa cultura.” Modas
No abre-alas do projeto está o trabalho da historiadora da e antropóloga da USP Lilia Schwarcz sobre Lima Barreto. “A nova mídia jornalística impõe contornos e novos formatos à literatura e Lima Barreto é um caso exemplar. Nele conviviam o intelectual crítico, avesso a modas literárias e comprometidas com a cultura popular, e o escritor que se esforçava para se integrar ao campo das letras”, conta Lilia. Nessa ambivalência estão as tensões da cultura da época em formação. “No Brasil daquele tempo, o popular e o erudito não eram formalmente estabelecidos e Lima Barreto é fruto desse contexto: criador e criatura
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Produtores eruditos se nutriram dos materiais da mídia comercial e estes foram alimentados pela chamada alta cultura
de sua obra, ele misturou instâncias, espaços de veiculação e tornou ainda mais ambíguas essas ligações”, fala. Com o boom das editoras nos anos 1930 e 1940, o modernismo saiu do eixo Rio– São Paulo e trouxe novas temáticas. Esse fenômeno editorial era baseado em produtos rentáveis como o romance regionalista, que atingia novos e maiores públicos. Em especial, aqueles cujos escritores e tramas se passavam em regiões ainda pouco conhecidas dos brasileiros, como o Nordeste e até mesmo o Sul, reveladas por nomes como Jorge Amado, Graciliano Ramos, Érico Verissimo, entre outros. “Embora o modernismo seja na origem um fenômeno tipicamente de São Paulo e do Rio, a fixação dos princípios vanguardistas só se realizou integralmente com a incorporação de outras regiões. Foi ‘de fora’ das duas metrópoles que chegou o verdadeiro novo”, diz a socióloga Maria Arminda do Nascimento, da USP. Desprezados pelos modernistas elitizados como Carlos Drummond, para quem Graciliano era um “escritor de quinta”, ou Oswald de Andrade, que os chamava de “búfalos do Nordeste”, os regionalistas se adaptaram
a essa nova demanda da indústria cultural e, ao mesmo tempo, retrataram fenômenos sociais, unindo ficção e política para questionar a modernização. “A modernização não tinha força para bater nas relações sociais e superá-las e estas não tinham o vigor necessário para se ajustar à nova dinâmica. Dessa tensão nasceu o romance social e regional dos anos 1930”, conta Arminda. Foi nesse contexto, observa o sociólogo Marcelo Ridenti, da Unicamp, que se deu o envolvimento entre artistas e o Partido Comunista Brasileiro (PCB) na mesma época. “Foi uma relação que fincou raízes profundas na nossa cultura, moldando linguagens às utopias de uma sociedade alternativa em busca de um projeto político viável para a superação das desigualdades”, analisa Ridenti. Uma relação, não obstante, muito delicada. “É claro que não era apenas uma militância que desejava transformar saber em poder. Havia interesses do partido. Mas é injusto afirmar que foi mera manipulação dos intelectuais pelos dirigentes comunistas. A relação trouxe benefícios para ambos”, diz. Igualmente sutil foi a ligação entre as ciências sociais paulistanas e a beleza das divas do teatro, afirma a antropóloga Heloisa Pontes, da Unicamp. Segundo a pesquisadora, entre os anos 1940 e 1970 houve muitos nexos entre teatro, campo intelectual e espaço urbano, representado pelo universo das figuras do TBC, Arena e Oficina. “O teatro foi precursor. Nas peças de Nelson Rodrigues, Guarnieri, Jorge Andrade, entre outros, houve uma tradução do Brasil que os romances não fizeram e as ciências sociais só fariam mais tarde. Ainda assim, essa análise acadêmica partiu de um grupo de intelectuais, entre os quais Décio de Almeida Prado e Antonio Candido, que, antes da universidade, militou na crítica cultural.” Ainda segundo Heloisa, foi também nos palcos, veículo da indústria cultu-
O mesmo equívoco pode ser observado nas análises “intelectuais” de filmes com temáticas centradas na violência das favelas. “Numa favela projetamos O invasor, de Beto Brant, e a série televisiva Antônia. O entusiasmo dos críticos pelo filme de Brant não teve eco na comunidade, que se viu mais bem representada por Antônia. Isso porque a audiência de periferia assistiu aos filmes com lentes de população residente”, diz a socióloga Esther Hamburger, da USP. “Em vez de ver o filme de Brant como crítica à elite paulista, como fazem os intelectuais, reclamaram de mais uma detração da periferia, cujas melhorias eram ignoradas no filme.” pauta
ral, e não nas ciências sociais, que se discutiram pela primeira vez as transformações ocorridas no país com o fim da ordem agrária e o surgimento de uma sociedade urbano-industrial lastreada na riqueza do trabalho imigrante. No outro extremo temático e temporal, o fenômeno da interação entre culturas se repete no sucesso do escritor Paulo Coelho e nas análises de que ele é “vítima”. “Com ele, o livro vira uma mercadoria de alta rentabilidade. Além disso, como autor e celebridade internacional, ele embaralha as fronteiras entre cultura popular e erudita. Coelho é revelador das trocas entre o erudito e o comercial, também por conta das críticas que recebe sobre o status de legitimidade
a que faria jus”, conta o sociólogo da USP Fernando Pinheiro Filho. Para o pesquisador, o escritor popular é um exemplar da manipulação de materiais expressivos híbridos. “Vindos de matriz erudita, eles são reciclados pela mídia comercial, apropriados pela versão ficcional do entretenimento e, curiosamente, convertidos em matéria de reflexão para intelectuais acadêmicos”, observa. A grande ironia para Fernando são os esforços infrutíferos de críticos renomados para “desmascarar” Coelho. “O problema é que tentam fazer isso com um instrumental erudito inadequado, bom para um Machado de Assis, mas que nada tem a ver com as propostas do escritor ou suas aspirações literárias.”
Os jornais voltam aos holofotes do projeto com o sociólogo Alexandre Bergamo, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que analisa a imprensa dos “filhos da pauta”. “É como a geração mais nova, dos anos 1980, fruto dos cursos universitários, foi chamada pelos jornalistas mais velhos. O embate nesse produto pioneiro da nossa indústria cultural mostra o que mudou nas redações ao longo desse tempo, com a reinvenção da notícia e da reportagem, agora vistas como elementos cruciais da originalidade e da autoimagem”, observa Alexandre. Nesse movimento, o pesquisador observou a gradativa perda de autoridade do repórter provocada pela crescente divisão do trabalho jornalístico. “O jornalismo, antes ‘trabalho intelectual’, agora é definido pelo que tem de ‘técnico’”, explica. Para Alexandre, as posições propriamente “intelectuais” são, cada vez mais, as definidas em função da autoridade e autonomia obtidas na academia, distante das pressões e da linguagem (técnica) que, ironicamente, marcam as posições mais burocráticas e de menor prestígio do jornalismo, fechando o ciclo iniciado nos tempos de Lima Barreto. A razão está com o poeta de Baudelaire: “Num lugar em que a morte chega a galope de todos os lados, achei melhor perder as insígnias do que uns ossos”. n
Projeto Formação do campo intelectual e da indústria cultural no Brasil contemporâneo – nº 2008/55377-3. Modalidade: Projeto Temático. Coordenador: Sergio Miceli Pessoa de Barros – USP. Investimento: R$ 549.453,60 (FAPESP). pESQUISA FAPESP 200 z 121
memória
A primeira tentativa Há 42 anos FAPESP e TV Cultura produziram programas de divulgação científica Neldson Marcolin
Imagens da reportagem Poluição dos rios, com Ulhoa Cintra explicando os objetivos e com os pesquisadores Samuel Branco e Frida Fischer
U
m velho rolo de filme 16 mm encontrado nos arquivos da FAPESP em 2010 revelou o que provavelmente foi a primeira tentativa de divulgação científica da Fundação para um público amplo. Guardado em uma caixa de plástico, o 1filme ganhou uma cópia digital e pode ser assistido: trata-se de uma reportagem de 15 minutos sobre a poluição dos rios. No início do filme uma claquete dá algumas informações. O nome da produção é Ciência viva, datada de 1º de dezembro de 1970. Em seguida, uma narração em off apresenta o que deveria ser a primeira reportagem de uma série sobre ciência. O então presidente do Conselho Superior da FAPESP, Antônio Barros de Ulhoa Cintra, aparece no começo do filme para dar algumas explicações: “A FAPESP decidiu patrocinar a realização de uma série de programas sobre ciências e suas aplicações”, diz ele em um texto que dura 47 segundos (leia a íntegra abaixo). Como havia a indicação de que vários filmes poderiam ter sido feitos, a revista Pesquisa FAPESP solicitou à TV Cultura uma busca em seus arquivos para tentar localizar outros possíveis programas. Foi encontrado apenas mais um filme, de 19 minutos, cujo tema é a ferrugem, uma praga
Ulhoa Cintra “FAPESP decidiu patrocinar a realização de uma série de programas sobre ciências e suas aplicações. É reconhecido o fato de ciência e suas aplicações terem um papel preponderante no progresso e no desenvolvimento do bem-estar da humanidade nos dias que correm. Entretanto, temos ressaltado o seu papel educativo e o seu valor ético. Espera a Fundação que o desenvolvimento desses programas, contribuindo para o desenvolvimento da ciência, se consubstancie também pelo seu próprio desenvolvimento e no amparo de sua finalidade essencial.”
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fotos reprodução
do cafeeiro. Novamente, o único registro sobre esse achado é a data de produção que consta na claquete: 19 de abril de 1971. De acordo com funcionários da TV que trabalharam nas buscas, não há fichas ou roteiros que tragam mais informações. “Por alguma razão que desconhecemos, provavelmente esses programas nunca foram ao ar”, acredita Mario Fanucchi, o coordenador de produção da emissora daquele período. Documentos da FAPESP mostram que a produção de uma série de divulgação científica começou a ser discutida no início de 1970. No meio do ano, a diretoria da FAPESP firmou um convênio com a Fundação Padre Anchieta, que administra a TV Cultura, para dar início ao primeiro programa. Em correspondência de Mario Fanucchi para o diretor científico, Oscar Sala, estão relacionados quatro objetivos discutidos previamente com o zoólogo Paulo Vanzolini, então assessor de Ulhoa Cintra: “Dar ao povo noção do que é a pesquisa científica e quais as suas implicações na vida moderna; mostrar o pesquisador anônimo, valorizá-lo como figura humana; despertar vocações para a pesquisa; estimular aqueles que se iniciam na pesquisa”.
Série de programas para a TV começou a ser discutida em 1970 dentro da Fundação
Vanzolini ficou encarregado de solicitar à Fundação o auxílio para pagar a produção. “Os programas foram uma iniciativa do Oscar Sala”, conta. “Eu participei das conversas e o projeto ficou em meu nome porque ele me pediu.” Vanzolini não sabe se os programas foram exibidos nem as razões de a série de não ter tido continuidade. Os pesquisadores que participaram das filmagens elogiam a iniciativa. No primeiro programa o principal entrevistado foi Samuel Murgel Branco, biólogo da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo, morto em 2003. “Lembro-me de que ele ficou bem satisfeito com a reportagem e comentou comigo que provavelmente os assuntos ligados à ecologia, poluição ambiental e outros termos técnicos se tornariam mais conhecidos do grande público a partir da veiculação destas
informações na TV”, conta Frida Fischer, então estagiária e hoje professora titular da FSP. No segundo programa o tema foi agricultura. “Havia uma preocupação com a praga do café e nós explicamos do que se tratava”, lembra Lourival Monaco, na época pesquisador do Instituto Agronômico (IAC) de Campinas. “Foi um trabalho muito interessante de divulgação de um problema que envolvia conhecimento científico”, diz Walkiria B. de Camargo Moraes, de longa carreira no Instituto Biológico de São Paulo. Quarenta e dois anos depois, os dois filmes podem ser assistidos no site de Pesquisa FAPESP: www. revistapesquisa.fapesp.br.
Reprodução de Ferrugem do café, com os pesquisadores Lourival Monaco, Maria Rafaela Musumeci, Walkiria Moraes e Paulo Torres de Carvalho (de cima para baixo)
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resenhas
Pesquisa e seleção de embriões humanos Darlei Dall’Agnol
A
Lei de Biossegurança (nº de e o do Futuro de Valor. Cada um 11.105/2005), que normatidesses argumentos é reconstruído za pesquisas com embriões e formalizado em suas premissas humanos, gerou muita polêmica. para então examiná-las cuidadosaO artigo 5º torna permissíveis tais mente, concluindo que nenhum dos pesquisas, mas estabelece duas argumentos é capaz de mostrar que condições: i) os embriões devem a resposta à primeira questão deve ser inviáveis para reprodução e ii) ser negativa. Eis, então, o segredo devem estar congelados há mais da qualidade do livro: sejamos fade três anos. Em maio de 2008, o voráveis ou contrários à pesquisa Supremo Tribunal Federal julgou embrionária, teremos que discua lei negando o pedido de inconstir o que Lincoln Frias estabeleceu titucionalidade. A questão moral, sobre cada um desses argumentos. a saber, como lidar com embriões A ética do uso e da Além disso, o autor procura verifihumanos congelados ou, mais im- seleção de embriões car o resultado obtido com testes, Farias portante ainda, como justificar a Lincoln por exemplo, o da Clínica em ChaEditora UFSC / Fapemig sua utilização em tais pesquisas, é 266 páginas; R$ 36,00 mas, comprovando que embriões um problema ético difícil e não esnão possuem direito à vida. tá plenamente resolvido. Da mesma maneira, a O segundo e o terceiro capítulos tratam da questão da escolha de embriões resultantes de pergunta “b”, procurando responder ao antisseleprocessos de fertilização in vitro é delicada e cionismo (a tese de que não deveríamos praticar polêmica sob o ponto de vista moral. a seleção genética). Novamente, o autor analisa O livro A ética do uso e da seleção de embriões cada um dos argumentos contrários, a saber, o (Série Ethica), de Lincoln Frias, é uma discussão Argumento Brincar de Deus, do Valor do Acaso, séria e muito benfeita sobre posições pró e contra da Autonomia, da Eugenia, da Incondicionalidaa utilização de embriões humanos em pesquisas de do Amor dos Pais, da Desigualdade, do Efeito e também sobre argumentos favoráveis ou con- Dominó e da Não Identidade para, no final, retrários à seleção embrionária com vistas à me- cusar que eles sejam suficientes para responder lhoria genética. O livro resultou de uma tese de negativamente à segunda pergunta. A conclusão doutoramento em filosofia que foi premiada co- que o autor chega é de que a seleção é moralmenmo a melhor do ano na Universidade Federal de te justificável. O terceiro capítulo, finalmente, Minas Gerais (UFMG) e foi um dos três trabalhos analisa em que circunstâncias ela é permitida e que receberam o Grande Prêmio Capes de teses os critérios para executá-la. 2011. Prêmios realmente merecidos não somente O tema é polêmico: o desenvolvimento da enpor tratar de questões importantes e difíceis, mas genharia genética e da biotecnologia trará muipor elevar o debate a um nível argumentativo que tas questões sobre a seleção de embriões reaninguém mais poderá desconsiderar. cendendo os temores sobre os limites entre um O livro parte de duas perguntas: melhoramento genético moralmente aceitável a) a pesquisa com células-tronco embrionárias e práticas eugênicas. A contribuição de Lincoln deve ser autorizada? Frias para esses debates, sejamos favoráveis ou b) a seleção genética de embriões deve ser não às suas posições, é inegável, tornando o seu permitida? livro uma leitura obrigatória para todos os inteO primeiro capítulo do livro trata da questão “a” ressados ou envolvidos profissionalmente com e procura responder ao concepcionismo (a tese de questões bioéticas. que o embrião possui direito à vida desde a concepção) analisando criticamente o Argumento da Dall’Agnol é professor de filosofia da Universidade Descontinuidade, da Individualidade Genética, do Darlei Federal de Santa Catarina e pesquisador do Conselho Pertencimento à Espécie Humana, da Potencialida- Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). 124 | outubro DE 2012
Imagens ideológicas
E
m 1937, no mesmo ano em de “livro de imagens luminosas”. que Vargas inaugurava o EsMas não era qualquer filme. Os tado Novo com uma cerimômelodramas e outros do gênero nia em que as bandeiras estaduais só estragavam as novas gerações. eram queimadas numa pira, para O fim precípuo do meio era edumostrar que agora o Brasil era uma car e mostrar a “verdade”. Para nação, sob o comando de um únio cinema, o novo status foi uma co homem, estreava nos cinemas O sorte grande e início da relação descobrimento do Brasil, do cineasta perigosa com o Estado. Humberto Mauro (1897-1983). Entre Filmes eram meios de gerar proa imolação e a criação, curiosamente, gresso, mesmo que falando do pashavia muita coisa em comum: ambos sado. Daí o investimento feito pelo preconizavam o fim das “diferenças” Humberto Mauro, cinema, governo para ser um curta encoe o novo culto aos símbolos nacio- história mendado pelo Instituto do Cacau Casa Editorial / nais como forma de reunir o povo Alameda da Bahia, que convidou Mauro, FAPESP em torno do ideal varguista. então à frente do Instituto Nacio496 páginas; R$ 79,00 A pesquisa de Eduardo Morettin, nal de Cinema Educativo, o Ince, professor da Escola de Comunicações e Artes da para dirigir a película. A oportunidade serviu Universidade de São Paulo (ECA-USP), traz à luz para Roquette-Pinto e Mauro mostrarem como a utilização do cinema por Vargas como forma de deveria ser o cinema histórico, com um retrato cooptar os brasileiros para o Estado Novo e seus científico do descobrimento, incluindo-se a suideais. Em especial, Morettin recupera uma faceta pervisão do diretor do Museu Paulista, tudo ao pouco lembrada do cineasta, mais conhecido da som do músico do regime, Villa-Lobos. crítica pelos filmes de ficção de linguagem hollyO filme virou uma mera animação de quadros woodiana que fez antes da propaganda varguista: históricos e da carta de Caminha, tendo ao fundo Brasa dormida (1929) e Ganga bruta (1933). Neles, a música do maestro dando o tom geral do corpo no espírito dos preceitos da revista Cinearte, de unido em torno de uma nação e um líder, cujo Adhemar Gonzaga, Mauro já falava em nação, momento exemplar é a cena em que os índios mas de forma polida, como o “país do futuro”. são recebidos a bordo do navio de Cabral e posA ascensão de Vargas fez com que adotasse uma tos carinhosamente a dormir pelo capitão. Mas é visão nacionalista mais radical, mais conserva- injusto, nota Morettin, ver em Mauro o arrivista dora, já que, passou a acreditar, o país ainda não do regime, como na relação entre a cineasta Leni estava pronto para as vanguardas. Para Mauro, Riefenstahl e Hitler. naquele momento, o cinema era sinônimo de O brasileiro não se ligava ideologicamente ao educação, como queriam intelectuais getulistas regime e, de forma mesmo inconsciente, Mauro como Roquette-Pinto e Fernando Azevedo. Não até incluiu críticas sutis, como ao fim de Descoseria com a ficção que o país melhoraria, mas com brimento, em que a música patriótica de Villa o amor à pátria, capaz de redimir os brasileiros tem como contraponto a imagem da cruz e os “corrompidos pelo pecado original”. rostos desolados dos degredados abandonados O ditador entendia de “modernidade”, a seu na nova terra. No filme Os bandeirantes (1940), modo, e sabia do valor dos novos veículos, como que fala da epopeia de Fernão Dias Paes em buso rádio e o cinema, como poucos. O referencial ca das esmeraldas, é igualmente feito com “preda Alemanha nazista, onde a UFA, estúdio cine- cisão” histórica e com toques unitaristas, como matográfico alemão, funcionou como arma de na cena em que o bandeirante se vê obrigado a propaganda ideológica, era forte entre os res- enforcar o filho em prol da ordem, como faria o ponsáveis pela cultura, como Roquette-Pinto. E “pai” Getúlio. O encontro das esmeraldas é um o Brasil era ideal para o meio, já que “terra de anticlímax e o filme se encerra com a melancóanalfabetos”: não sem razão, Vargas chamou-o lica morte de Paes. Carlos Haag PESQUISA FAPESP 200 | 125
Na fila do correio Nelson de Oliveira
A
fila das agências do correio é tão longa e arrastada que, para as pessoas não se irritarem ainda mais, há cartazes espalhados por toda parte pedindo aos usuários que evitem os temas polêmicos. O aviso é muito claro: não discutam política. Não comentem a última partida da seleção brasileira. Não falem sobre o capítulo final da novela das oito, tampouco sobre a conjectura de Poincaré ou a propriedade ferromagnética da nanoespuma de carbono. De preferência, não abram a boca, que é para não ficarem ainda mais irritados. Essa é a mensagem dos cartazes. É pena que ninguém dê a menor bola a eles. Não se sabe exatamente como o tumulto co meçou. Parece que a garota de jaqueta vermelha, com dezenas de envelopes azuis, era secretária do matemático cuja equipe comprovara, havia poucas horas, a teoria das cordas. A senhora de vestido cáqui e brincos helicoidais sentiu-se ul trajada. Ela não aceitava o resultado de muitas das equações da tal comprovação. Quando soube que a garota era secretária do matemático, co meçou a resmungar baixinho. Depois mais alto. Então passou a ofendê-la. Em seguida a agredi-la. A garota teve que sair do correio às pressas. O velhote de cavanhaque, meias roxas e cole te cinza deu força à senhora de vestido cáqui e brincos helicoidais: — Esses cientistas nunca se decidem. Ora dizem que o mundo é assim, ora dizem que é assado. — Fazem gato-sapato das nossas crenças mais queridas, sem a menor cerimônia. Sacripantas! — a senhora de vestido cáqui e brincos helicoi dais esbravejava. — A matéria do Universo, por exemplo. Cristo Rei! Primeiro Tales disse que o ingrediente básico do Universo era a água. Depois Anaxímenes disse que era o ar. Então Heráclito disse que era o fogo. Aí vieram os atomistas di zendo que a matéria do Universo era formada
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da combinação mecânica e fortuita de átomos… Diabos, decidam-se! — Depois Thomson descobriu o elétron e des mentiu a ideia do átomo indivisível — a magricela de tatuagem no ombro direito meteu a colher. — Depois Rutherford concebeu o modelo pla netário do átomo: pequenos pontos distribuídos no imenso espaço vazio. É, pequenos pontos girando em torno do núcleo. Como no sistema solar — o velhote disse, antes de entregar os en velopes ao atendente. — Depois Planck, Einstein e Bohr incorpo raram ao modelo de Rutherford a hipótese dos quanta. Isso pôs fim à ideia de que o átomo seria o constituinte último da matéria — o enfermeiro de colar de madrepérola disse, assoando o nariz num lenço de papel. A senhora de vestido cáqui e brincos helicoi dais estava possessa: — Se dependesse deles, dado o imenso inter valo vazio entre os elétrons e o núcleo atômico, a gente passaria a vida acreditando que o átomo é constituído basicamente de nada… É ou não é? Tô errada? O mundo feito de nada?! — Lembram quando o tempo ainda era tido como uma das intuições a priori dos sentidos? Lembram? — ergueu o dedo raivoso a professo ra de balé com manchas nas bochechas. — Para Newton e Kant o tempo sempre existiu. Mas para os físicos de hoje, ah, não, para essa corja o tempo é uma dimensão que passou a existir a partir de determinado momento da formação do Cosmo! Outro exemplo? Essa teoria das cordas. Até há poucas horas as leis que regiam o microcosmo não faziam sentido no macrocosmo e vice-versa. E a senhora de vestido cáqui e brincos heli coidais: — É, cada lei na sua praia. Cada qual contava a sua versão da história. — Agora essa maldita teoria das cordas! — ata lhou o enfermeiro de colar de madrepérola.
– Ah, era tão bom quando a gente estava no centro. Não entendo essa necessidade de estar fora do centro de tudo (...) — Mamãe, que teoria é essa? — quis saber o menino fantasiado de Homem-Aranha. — Fala baixo, Horácio. Vem cá que eu te expli co. Sabe a teoria geral da relatividade? — Sei. — Sabe a mecânica quântica? — Ô, mãe! É claro! — Então. Na procura do modelo capaz de uni ficar as leis do macrocosmo com as do micro cosmo, a última caixinha encontrada é essa aí da teoria das cordas. Segundo essa teoria, a partícula fundamental do Universo não se parece com um ponto, mas sim com uma linha. Ainda segundo esse modelo, as dimensões da realidade não são apenas quatro: comprimento, largura, altura e tempo. São dez! Sendo que as outras seis são pe queníssimas, imperceptíveis aos nossos sentidos. — Ah… Entendi. — Teorias. Teorias. Teorias — a senhora de vestido cáqui e brincos helicoidais não conse guia se controlar. O tumulto foi ganhando proporções assusta doras. A chamada eletrônica soava, os atendentes faziam sinal, porém ninguém mais se dirigia aos guichês. Ninguém queria mais saber de cartas, cartões-postais ou encomendas. — Cara, tô farto desse troca-troca! — alguém no meio do amontoado gritou. — No começo a Terra era plana. Na época de Pitágoras ela se tornou esférica e foi parar no centro do Univer so. Durante treze séculos o modelo cosmológico que prevaleceu foi o geocêntrico, aperfeiçoado
por Ptolomeu. Mas é claro que a alegria durou pouco. É claro que Copérnico tinha que jogar água fria na rapaziada. — Jogou água fria? Então, pra esquentar as idéias, devia ter sido atirado na fogueira, o gajo. Que nem fizeram com Giordano Bruno. — Bem feito pra esse Giordano. Quem mandou mexer com o que estava quieto? — Com Copérnico a gente deixou de figurar no centro do Universo. Mas a crença de que o Sol localizava-se no centro da galáxia durou mais um tempinho. — Ah, era tão bom quando a gente estava no centro. Não entendo essa necessidade de estar fora do centro de tudo, de descentrar-se a qual quer custo. — É a sensação de vazio. Os jovens de hoje adoram a sensação de vazio. Principalmente os matemáticos. Eles adoram! O ilustrador de livros infantis: — Tudo culpa dos pré-socráticos. Foram eles, não é? Os primeiros sujeitos a explicarem a ori gem do Universo e do homem, e a realidade sen sível, sem lançar mão de mitos e deuses? Não adianta tentarem me enganar. Foram eles os pri meiros cientistas, sim! Foram eles que deram a deixa para Ptolomeu, Galileu, Newton, Einstein e toda a corja. A costureira com problemas respiratórios: — Para o inferno os pré-socráticos! O entregador de pizza vesgo e meio coxo: — Para o inferno a causalidade! Para o inferno as ciências exatas! Para o inferno o pensamento lógico! As cenas que se seguiram jamais deveriam ter sido mostradas na tevê. A turba saiu em passeata e se misturou às pessoas preocupadas apenas com abobrinha, banana e tangerina, na feira montada em frente ao correio. O quebra-quebra começou quando, ofendido com as declarações sem pé nem cabeça da senhora de vestido cáqui e brin cos helicoidais, o dono da barraca de ovos atirou doze deles na velha e nos seus partidários (para ele a teoria das cordas era de inestimável valor). Se as pessoas respeitassem mais os cartazes afi xados nos correios, a taxa de violência nas nossas cidades nunca atingiria níveis tão insuportáveis. Nelson de Oliveira é um dos escritores mais importantes da literatura brasileira hoje. Organizador de diversas antologias, como Geração 90 e Geração zero zero, é também autor de Cicatrizes indizíveis, Naquela época tínhamos um gato e Subsolo infinito, entre vários outros romances, livros de poemas e de contos.
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Café Ricardo Lísias
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omecei a me afeiçoar a esse lugar no dia em que derrubei quase meia xícara de café sobre um dos meus cadernos. Quando ter minei a última linha da décima folha, meu braço tremia tanto que acabei esbarrando na xícara e derrubando o café. O líquido – quase meia xíca ra de café! – cobriu as palavras e, quando eu tive certeza de que não conseguiria ler nada por baixo da mancha escura, até porque meia xícara de café não é pouca coisa, comecei a chorar. Na mesma hora, a moça do caixa veio me consolar: fazia questão de trazer para mim outra xícara de café. Aliás, eu não precisaria pagar de novo. O problema era o caderno, expliquei. A garota pediu descul pas e disse que esse problema ela não tinha como resolver, já que vendiam café, café com leite, leite e até mesmo refrigerante, mas não cadernos. Não devia custar grande coisa, continuou, um caderno, só que talvez seja mais caro que uma xícara de café, ou meia, já que eu tinha tomado uma parte, possivelmente um pouco mais da metade, muito embora tenha sobrado café suficiente para cobrir a folha e deixar tudo completamente ilegível. Se eu tivesse escrito a caneta, talvez conseguisse ler alguma coisa, já que o café, mesmo se for muito, quase meia xícara, costuma fazer contraste com a tinta azul. Finalmente ela compreendeu, mas mesmo assim, talvez porque fosse do caixa e não trabalhasse no balcão (e, portanto, não estava can sada, o que lhe dava mais energia para consolar os clientes, principalmente aqueles que derrubam meia xícara de café em cima do rascunho de sua tese de doutorado, motivo mais do que suficiente para tomar muito café, o que é um paradoxo, já que se tomasse menos café possivelmente have ria mais líquido na xícara e o estrago seria maior e talvez até cobrisse as anotações para as notas
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de rodapé, fato mais desesperador, porque banca alguma aceita uma tese de doutorado com menos de trezentas notas, não por nada, mas porque as notas demonstram o conhecimento bibliográfico indispensável para qualquer um que esteja que rendo ostentar o título de doutor), o que a deixava mais disposta para consolar os clientes que, por qualquer motivo, derrubam quase meia xícara de café em cima de um caderno com dez folhas de anotações a lápis, sim, porque se fosse a caneta, a cor do café se misturaria ao azul da tinta e o efeito seria muito bonito: até mesmo as notas de rodapé ficariam elegantes, o que é um sinal valioso para a banca, principalmente porque isso, a elegância da nota de rodapé e não o contraste da cor do café com o azul da tinta da caneta, demonstra horas de estudo, o que é indispensável para qualquer um que deseje ostentar o título de doutor. Para não perder o fio, é importante lembrar que se aquela moça trabalhasse no balcão, possivelmente estaria cansada e sem nenhuma disposição para consolar os clientes que, por motivos variados, derrubam quase meia xícara de café sobre um caderno com dez folhas escritas a lápis. Se estivessem a cane ta, possivelmente a moça que trabalha no balcão também não se animaria a consolar o fulano, mas ocorre que o fulano, por sua vez, também não começaria a chorar, porque o café, mesmo que seja quase meia xícara, não esconde palavras escritas a caneta, pelo contrário, acaba tornando o tom do azul mais bonito. É que se o fulano, no caso eu, tivesse escrito a caneta o café não teria coberto as palavras e ele, muito possivelmente, não começaria a chorar, já que o conhecimento novo que é uma das principais exigências para uma tese de doutorado, além das seiscentas no tas de rodapé, não seria destruído por causa de
É que se o fulano, no caso eu, tivesse escrito a caneta o café não teria coberto as palavras e ele, muito possivelmente, não começaria a chorar (…) meia xícara de café que acabou virando porque o fulano, no caso eu mesmo, estava muito emo cionado por ter finalmente escrito dez folhas com um conhecimento genuinamente novo, um dos pré-requisitos para a aprovação de uma tese de doutorado, além das novecentas notas de rodapé, que demonstrariam que o candidato tinha pleno domínio da bibliografia referente ao assunto da sua tese. Só que como o fulano, ou, o que me dói muito ter que admitir, eu mesmo, tinha escrito a lápis e nada mais lhe restava do que chorar em cima do café derramado sobre o conhecimento novo que eu, ou melhor, o fulano, tinha acabado de perder. O que me afeiçoou a esse lugar não foi a atitude da garota que trabalha no caixa – eu tenho certeza de que se ela trabalhasse no balcão a coisa teria sido muito diferente, ainda que eu admita claramente que sua gentileza é rara nos dias de hoje: ninguém mais quer saber da tragédia dos outros, nem mesmo quando o fulano perde mil e duzentas notas de rodapé, praticamente uma livre-docência! Eu sei que ninguém está a salvo de derrubar quase meia xícara de café em cima de dez páginas de sua (ou, no caso, minha)
tese de doutorado. Aliás, pode até acontecer com a própria banca, bem no momento em que ela, a banca, e não a moça que trabalha no balcão (sim, porque se fosse a do caixa), vai lembrar o candidato de que o conhecimento novo, e não um amontoado sem nexo de notas de rodapé, só pode ser obtido a partir da combinação de deter minados fatores diferentes na forma de um texto qualquer, por mais que ele, o texto qualquer e não o conhecimento novo, esteja embasado por mil e quinhentas notas de rodapé. Nesse momento, se o membro da banca não tiver escrito uma tese com mil e oitocentas notas de rodapé, ele pode vacilar, já que seu argumento será mais frágil e portanto sujeito à fácil refutação pelo candidato, e terminar derrubando meia xícara, ou mesmo uma inteira, sobre a tese. Evidentemente que nesse caso não há motivo para choro, já que o conhecimento novo não estará perdido, pois o membro da banca pode muito bem pedir emprestado para o colega de arguição (esse um pouquinho mais seguro, pois fez uma tese com duas mil e cem notas de roda pé) seu exemplar para continuar desenvolvendo o raciocínio. Claro que daí em diante tudo ficará prejudicado, pois o candidato já não terá ânimo nenhum para ouvir as considerações do membro da banca, que sequer teve o cuidado de deixar a xícara de café longe do exemplar da tese, preven ção básica para qualquer um que sabe que não é todo texto que constitui um conhecimento novo, muito menos os que terminam manchados por quase meia xícara de café, mesmo que ela tenha sido derrubada por um professor que redigiu, à sua época, uma tese de doutorado com duas mil e quatrocentas notas de rodapé, o que demonstra indiscutivelmente um conhecimento novo, mas não a segurança para tomar direito um gole de café, até porque o colega de banca que vai falar logo a seguir escreveu uma tese, por sua vez, com duas mil e setecentas notas de rodapé, o que demonstra que seu conhecimento novo é mais genuíno que o do outro, coisa que naturalmente deixa todo mundo inseguro, a ponto de derrubar o café. A menos, é claro, que a pessoa tenha, ela mesma, escrito uma tese com três mil notas de rodapé. Mas aí é pedir demais. Ricardo Lísias é tradutor e escritor. Autor de livros infantojuvenis, como Cobertor de estrelas e Sai da frente, vaca brava!, publicou também os romances Duas praças, Dos nervos, Anna O. e outras novelas, O céu dos suicidas e O livro dos mandarins. Foi escolhido pela revista espanhola Granta como um dos 20 melhores autores brasileiros com menos de 40 anos.
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Ata 387 Antonio Prata
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os três dias do mês de setembro de dois mil e seis, às vinte horas e trinta e dois minutos, na sala S-48, sede do Centro Acadêmico Dezoito Brumário, da Faculdade de Ciências Sociais, de acordo com o disposto no artigo 8º do estatuto do regimento interno do órgão supracitado, os membros se reuniram extraordinariamente com a seguinte pauta: decidir o destino das verbas angariadas no evento intitulado “Chopada dos Bichos”, no valor de mil e noventa e três reais e setenta e três centavos. Compareceram o diretor-geral do C.A., Augusto de Oliveira (Cabeleira), o diretor administrativo Robson S. Torres (Rob Marley), o diretor de comunicação Felipe Cuglioni (Lipão) e a diretora financeira Olívia Ramos (Lilica). Marcos Azambuja (Bujones), diretor de programação, não apareceu para o início da reunião. Havendo número regimental, o diretor-geral Cabeleira iniciou os trabalhos apresentando aos demais presentes a lista de possíveis investimentos para a verba arrecadada, elaborada na última reunião ordinária, no último dia trinta, a saber: 1) Uma mesa de pebolim para o C.A. 2) Um novo computador para o C.A. 3) Reforma do sofá do C.A. O diretor-geral Cabeleira propôs o voto direto para decidir-se a questão. Neste ponto, o diretor administrativo Rob Marley pediu a palavra para um aparte. Aparte aceito, Rob Marley objetou que, não estando presente à reunião do dia trinta do mês último, quando foi elaborada a lista, não poderia reconhecê-la como legítima, sendo o pebolim, o computador e a reforma do sofá alternativas autoritariamente impostas de cima para baixo, reproduzindo o sistema opressor que eles mesmos diziam combater, qual seja: o oligopólio neoliberal escamoteado como democracia. A diretora financeira Lilica lembrou o diretor administrativo Rob Marley do regulamento seis, inciso quatro, do estatuto do Centro Acadêmico, que estabelecia que, mesmo
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na ausência de algum dos membros, havendo quórum de 75%, as votações eram válidas. Lembrou-o ainda que, quando da votação, o diretor administrativo havia sido visto saindo do almoxarifado com uma primeiranista de psicologia, atitude que, embora não condenada pelo estatuto do Centro Acadêmico, merecia no mínimo uma admoestação verbal. O diretor administrativo Rob Marley argumentou que não tinha vergonha de seus atos e que bastava ler Reich ou Marcuse para saber que a revolução decorrerá de ações como as por ele praticadas no almoxarifado, não da burocracia cinzenta das altas esferas do poder, sendo aplaudido entusiasticamente pelo diretor de comunicação Lipão. A diretora financeira Lilica ameaçou sair da sala, mas foi dissuadida pelo diretor-geral Cabeleira, que insistiu na importância de sua presença, dada a natureza do tema serem exatamente as finanças. Acalmados os ânimos, foi pedido ao diretor de comunicação Lipão que preparasse as cédulas. Neste ínterim, o diretor administrativo Rob Marley pediu a palavra e levantou a questão do efeito estufa, do aquecimento global e do degelo das calotas, propondo que, a longo prazo, o C.A. Dezoito Brumário se engajasse mais na questão ecológica. Sugeriu, porém, a curtíssimo prazo “tendo em vista a boa hidratação de todos os presentes” que se comprassem algumas cervejas. A proposta foi aceita por unanimidade. A diretora financeira Lilica disse que não iria ser ela a comprar as cervejas, posto que nas últimas duas reuniões havia sido encarregada de tal função. Sublinhou ainda que poderia haver sob tal insistência um fundo de machismo dos membros do C.A. O diretor-geral Cabeleira ofereceu-se para buscar as cervejas, mas lembrou-a de que de machismo ele não poderia ser acusado, sendo a prova cabal de sua idoneidade o tema de seu trabalho de iniciação científica: Margaret Mead e a questão do masculino e do feminino
O diretor (…) argumentou que não tinha vergonha de seus atos e que bastava ler Reich ou Marcuse para saber que a revolução decorrerá de ações como as por ele praticadas (…) nas sociedades primitivas. A diretora financeira Lilica declarou nada saber a respeito da iniciação científica do colega e pediu mais informações, mas o diretor-geral Cabeleira disse que preferia ater-se à pauta do dia. Antes de sair, percebendo certa animosidade no recinto, sugeriu que o diretor administrativo Rob Marley preparasse um cigarro de maconha. Ficou acertado que o dinheiro para as cervejas seria abatido do total arrecadado, na qualidade de “custos adicionais”, e que o diretor administrativo Rob Marley seria ressarcido do fumo ali consumido. Tendo o diretor-geral Cabeleira voltado com as cervejas e vendo que as cédulas estavam prontas, decidiu abrir a votação. O diretor de comunicação Lipão observou que o cigarro de maconha também estava pronto e que colocar o trabalho antes do lazer era uma imposição burguesa às classes trabalhadoras, citando um ou outro trecho de Foucault e propondo, destarte, que fumassem o baseado. Foi bastante aplaudido. Findos os trabalhos canabino-revolucionários, adentrou o recinto o diretor de progra-
mação Bujones, tocando ao violão a canção Viva a sociedade alternativa! (de autoria do músico baiano Raul Seixas), acompanhado por três intercambistas bolivianos, munidos de flautas de bambu. Após a execução da música, Bujones cumprimentou a todos os presentes e convocou-os para a cervejada do C.A. de psicologia. O diretor administrativo Rob Marley defendeu a ideia com eloquência e, citando Maquiavel, argumentou que a união dos C.As. era fundamental e que a separação entre eles era justamente o projeto de dominação da reitoria. A diretora financeira Lilica afirmou saber exatamente o tipo de união que ele buscava no C.A. de psicologia. O diretor de programação Bujones e os três bolivianos deram início à execução da canção Volver a los 17, de Violeta Parra. Projetando a voz, o diretor-geral Cabeleira propôs que se encerrassem os trabalhos. A diretora financeira Lilica fez o uso da palavra para protestar contra o que chamou de furdunço engajado e deixou claro que se o C.A. Dezoito Brumário continuasse com tamanha propensão para a esbórnia, ela sairia da chapa. O diretor administrativo Rob Marley aproveitou a deixa para encorajar a colega a assim proceder, pois suas posturas pequeno-burguesas não condiziam com a postura revolucionária do grupo. Dada a agressividade do diretor administrativo, a diretora financeira decidiu responder à altura e, arrancando a flauta de bambu da mão de um dos intercambistas bolivianos, deu com a mesma na cabeça do diretor de administração, que, ao cair no chão, bateu com a cabeça na máquina de escrever e derramou no carpete considerável quantidade de sangue. Diante da conjuntura adversa, o diretor-geral Cabeleira achou por bem encerrar os trabalhos e dirigirem-se todos à Santa Casa de Misericórdia – sem votação. Tendo todos os membros deixado às pressas o recinto, às vinte e uma horas e quarenta e nove minutos da data mencionada anteriormente, encerrou-se, sem conclusão sobre a pauta, na sala S-48, a reunião de número 387 do Centro Acadêmico Dezoito Brumário. Sem mais, Buzunfa (estagiário). Antonio Prata é escritor e colabora como cronista em diversos veículos. É autor dos livros de contos Douglas e outras histórias, As pernas da tia Corália e O inferno atrás da pia, além da reunião de contos Meio intelectual, meio de esquerda. Foi escolhido pela revista espanhola Granta como um dos 20 melhores autores brasileiros com menos de 40 anos.
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Sistema de currículos Lattes Vanessa Barbara
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os oito anos, Bruno inventou um protó tipo de torradeira movida a cuspe que não funcionava. Sua irmã, Teresa, passou a usar o objeto para alisar o cabelo, mas sem a anuência do inventor. Bruno também é conhe cido como o detentor das patentes do forno de madeira e do dedal de pão. Na feira de ciências da escola, testemunhas alegam que ele incendiou um batalhão de 58 soldadinhos de plástico — que derreteram lentamente enquanto as meninas da classe gritavam — e, ao ser escoltado à diretoria, garantiu que a ciência ainda descobriria a utili dade prática daquele experimento. Bruno era o campeão em combustões espontâneas e possuía uma coleção de quinze tipos de coleópteros, que ele vinha treinando para estrelar um musical de horror em stop-motion chamado “Besouros!”. Daí se pode concluir, portanto, que Bruno nas ceu para a ciência. No dia em que concluiu seu minucioso trabalho de coleta da gripe (espirrou durante meses nos potes de maionese e rotulou-os de um a vinte) e deu início à fase empírica do trabalho, Teresa foi a primeira voluntária a ser levada ao laboratório. Algum tempo se pas sou sem que a diretora soubesse exatamente o que tinha acontecido com a menina. Quando, na sexta-feira, a mãe de Bruno ligou para a escola justificando a ausência da filha, contaminada por um rotavírus, Bruno anotou “pneumococo!” no caderno e foi escoltado para a diretoria, prova velmente dedurado pelo bedel surdo do corredor. Além disso, a melhor amiga de Teresa apareceu na escola com piolho, mas não há indícios de envolvimento do garoto na epidemia. Bruno gostava de fazer incursões por todos os ramos conhecidos da ciência. Aos doze anos, criou cogumelos no tapete da sala. Aos quinze,
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imantou a máquina de lavar e arrastou-a por três metros, até que ela caísse da escada e quebrasse o chão do quintal. No mesmo ano, construiu um para-raios e assassinou a tartaruga, após quebrar um termômetro e misturar mercúrio à comida do animal. Seus métodos eram cada vez mais discu tíveis. A classe se dividia entre apoiá-lo e dedu rá-lo ao bedel, que continuava surdo, a despeito de todas as tentativas de Bruno. (É verdade que certa vez ele fez nascer um pelo branco na orelha do bedel, mas infelizmente o pelo não restaurou sua audição e foi arrancado para biópsia.) Finalmente, Bruno se formou com média seis ponto dois e entrou para a faculdade de biociências. Logo no primeiro ano, seu trabalho de iniciação científica destacou-se por um inédito achado estatístico: o encontro de frequentes casa mentos entre mulheres com artrite reumatoide e homens com úlcera péptica, o que caracterizaria uma ligação neurótica entre mulheres agressivas e controladoras e homens passivos e dependen tes. (Embora o tema original do trabalho fossem as abelhas.) Foi nesse ano que Bruno explodiu a porta do Instituto de Física e matou mais uma tartaruga, durante uma pesquisa com amianto. Graças à alta rotatividade de seus animais de es timação, ganhou uma pedra para cuidar quando completou 21 anos. A trajetória acadêmica do garoto passou de boa para questionável; professores se recusavam a orientá-lo em projetos francamente anormais e rejeitavam sua inscrição nas disciplinas. Ao ser destacado como monitor das aulas de gené tica, convenceu um de seus pupilos a implantar duas orelhas em um besouro (ou dois besouros em uma orelha) e obteve sucesso em ambas as experiências, ao que telefonou imediatamente
Em seu período mais produtivo, aos trinta, ele confeccionou um despertador não intrusivo (…), uma maçã com gosto de mandioca e uma nova linha de post-its sabor morango para o bedel surdo. Como o sujeito estava cada vez mais surdo, foi difícil transmitir a emoção que lhe traria uma nova orelha na nuca. Da lon ga resposta, Bruno só conseguiu entender que o pelo branco nascera de novo e crescia todos os dias, à razão de dez centímetros por semana. E o pior: estava captando as ondas de uma rádio comunitária. Bruno desistiu da implantação au ricular e prometeu passar na casa do bedel com um contador Geiger. No último ano da faculdade, Bruno decidiu que começaria a usar um chapéu, informação que pode ou não adquirir importância no decorrer da história. Afora isso, a vida se arrastava numa mesmice: Teresa resistindo para não virar cobaia, e o bedel surdo se alarmando com as emissões de ondas infrassônicas que escutava todas as manhãs. Um dia, porém, na aula de Zoologia de Vertebrados II, aconteceu o improvável: ele se apaixonou pela garota da primeira fila. Bruno percebeu que a moça não dava bola para nin guém, mas que prestaria atenção (ah, se pres taria) caso ele ejetasse a si próprio da carteira e fosse audaciosamente rumo aonde nenhum acadêmico jamais esteve. Primeiro, esboçou o
protótipo da almofada ejetora, que grudaria ven tosas na superfície e impulsionaria o cientista para o alto, a uma distância de muitos metros em direção às nuvens. Isso tudo teoricamente, porque na prática a almofada sugou Bruno para baixo com toda força e quebrou o chão do quin tal, mais uma vez. Como ele usava apenas um capacete, acabou fraturando a bacia. Bruno se formou na universidade com média seis ponto dois, ficou três meses em repouso e acabou desistindo de cortejar a garota, que no entanto continuou sendo a musa de suas cria ções posteriores. Em seu período mais produtivo, aos trinta, ele confeccionou um despertador não intrusivo (que apenas acenava para o dorminho co, sem disparar alarmes), uma maçã com gosto de mandioca e uma nova linha de post-its sabor morango, que vendeu para a Pfizer. Aos quarenta anos, veio uma fase mais abs trata, voltada a descobrir coisas já descobertas: primeiro a Birmânia — antiga Mianmar —, depois o fogo e, em seguida, o ovo frito. Bruno já não sentia todo o potencial criativo da juventude e pensou em se aposentar. Foi um período de muitas dúvidas, em que ele chegou ao cúmulo de subestimar a real utilidade de sua pesquisa sobre pneumococos. Mesmo assim, a coleção de coleópteros do cientista alcançou a marca do milhar, com a ajuda de alguns sapos. Mas Bruno não havia esquecido seu grande projeto de vida, a portentosa obra-prima da enge nharia que agora tomaria forma: na noite em que completou cinquenta anos, afinal, aposentou-se e retirou-se para o campo, a fim de testar a almo fada ejetora, o sonho de toda uma vida. Meses se passaram. Nunca mais se ouviu qualquer notícia do rapaz, e nem sua irmã sabe o que aconteceu durante a comprovação empírica. Anos depois, um cientista acabou lendo a obra completa de Bruno (em volumes de pano) e anunciou a cura do diabetes após estudar o episódio dos solda dinhos incinerados. Mais tarde, um astrônomo amador descobriu que o pelo branco conseguia captar rádios co munitárias de outros planetas. Vanessa Barbara é jornalista, e escritora, tendo colaborado nos últimos anos com vários jornais e revistas brasileiros. Desde 2002, edita o sítio A Hortaliça (www.hortifruti.org). É autora de O livro amarelo do terminal e O verão do Chibo (em coautoria com Emilio Fraia). Foi escolhida pela revista espanhola Granta como um dos 20 melhores autores brasileiros com menos de 40 anos.
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O encontro Cristovão Tezza
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air do laboratório às 5 da tarde era um ato que envolvia um conjunto de procedimentos cautelosamente preparados de modo a manter o tempo sob controle. Às 4h30 (minutos antes ele levantaria os olhos do microscópio para o enorme relógio branco na parede) uma agenda de pequenos passos começava a mover suas páginas na sua mente, uma atividade de cada vez, e os cromossomos manchados diante de seus olhos no foco da lente pareciam indóceis; sim, trata-se de outra trissomia, o que ele já sabia antes mesmo de olhar, mas é preciso fazer tudo de novo a cada procedimento de modo a manter a natureza sob estrito controle, ele fantasiou, já um pouco tenso, porque o grande ponteiro à frente avançava resoluto para o número 8, e ele estaria, quem sabe, 40 segundos atrasado, e sorriu, supondo que alguém soubesse de sua previsibilidade, algum microscópio gigante que o visse assim como ele vê o cromossomo (reproduções espelhadas uma na outra até o infinito como na estampa de um óleo de soja de sua infância) e o ponteiro avançou de novo, uma estocada silenciosa de um segundo. Ele anotou o resultado da lâmina, exame número 39.02.977.07, a senha do técnico responsável, registrou POSITIVO PARA e a coluna da direita já dispunha doze opções, das quais ele escolheu a terceira, e retirou a lâmina para depositá-la nos encaixes do lado direito, o número sobre o código de barras, mas desta vez não pegou a próxima lâmina, embora, no limite, houvesse tempo para isso, ele especulou – mas não, o ponteiro avançava, agora faltavam 16 minutos para as 5 horas e ele imaginou o que dizer hoje, se é que algum dia teria coragem de dizer algo. Nada. Um homem sem palavras. Melhor não pensar, e ele finalmente pensou em Mariela, o rosto tímido oculto na sombra da própria mecha de cabelo que lhe caía na testa, teimosa, sempre que fitava alguém, o gesto de levar para o alto um pedaço de si mesma que teimava em cair de volta aonde
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estava, para ocultá-la. O ponteiro avançava mais rápido agora, ele deduziu, o coração batendo – nesse exato instante ela está fechando a porta de sua sala no outro prédio, volta-se para um lado do corredor, dá quase um passo completo e lembra-se que deve ir para o outro lado, e ele sorri, imaginando o que nunca viu, colocando a capa sobre o microscópio ao mesmo tempo que confere os minutos restantes no relógio impiedoso – ele deve desligar o computador, e isto está 2 minutos atrasado hoje, o que vai exigir um passo estugado ao longo do corredor onde espera não encontrar ninguém para dizer nada porque terá ainda dois lances de escada a enfrentar (melhor que o elevador, que não tem lógica) e então – então ele conferiu o relógio uma última vez, tudo estava bem no melhor dos mundos e sentiu um manto de felicidade, o fim do trabalho, o encontro previsto, a ausência de chuva (há vários meses seu único inimigo, desorganizador, infernal – a chuva), e abriu a porta com a mão esquerda, o chaveiro na mão direita, mas havia esquecido, não as luvas (olhou para as mãos) – e isso angustiou-o como um chão que falta súbito – mas não, basta tirar o guarda-pó, é claro que há tempo; pendurou o guarda-pó e correu de volta à porta imaginando onde ela estaria agora, certamente avançando pelo também longo corredor para o pátio e dali para o caminho que ele vai cruzar como em tantas outras vezes, um espaço seguro de trinta metros em que isso é sempre possível, e depois eles se afastarão até o outro dia se ele não puder falar (e não vai falar, ele sabe). Ela agora está, talvez, esperando o elevador, ele calcula; não precisará ir tão rápido se não encontrar ninguém e não há ninguém à vista naquele horizonte estreito do corredor que ele vai palmilhando firme pensando pela milésima vez no que poderia dizer – algo como – assim, que não assustasse Mariela, o nome no crachá que ele uma vez flagrou milagrosamente numa
(…) mas ele é um homem sem palavras, ele só tem olhos, olhos exatos, capazes de reconhecer cromossomos, bacilos, proteínas, estafilococos, o que estiver na lâmina (…) pausa, em que ela levantava a mecha dos olhos enquanto a outra mão, o esmalte vermelho nas unhas, ajeitava alguma coisa na fivela do sapato azul-escuro enquanto a sombra dele resvalava no caminho estreito, assim meio de lado, para não esbarrar – assim como – mas ele é um homem sem palavras, ele só tem olhos, olhos exatos, capazes de reconhecer cromossomos, bacilos, proteínas, estafilococos, o que estiver na lâmina, com uma agudeza absoluta. O melhor: Rogério é o melhor. Naquele microscópio, ninguém bate o Rogério, ele ouvia no cafezinho, e se afastava, discreto. E rápido, ele é muito rápido também, e Rogério apressou o passo para ao mesmo tempo fugir da lembrança de si mesmo e não perder os seus trinta metros. Dizer, talvez: Eu trabalho ali. Ou então – e lhe ocorreu que não tinha plano para esta segunda parte, já vencida e dominada a primeira, que era justamente encontrá-la, tê-la praticamente ao alcance dos braços, a um palmo de seus olhos; descendo as escadas, sentiu essa nova angústia, a necessidade de uma sequência ou ele ficaria louco – era o que diziam, cara,
você é muito maluco, e ele não achava graça, as outras pessoas são só desorganizadas, falta-lhe senso de humor, alguém lhe disse, e ele deu uma gargalhada falsa para provar o contrário. Ele sempre sorri, para dentro – as pessoas são muito óbvias, eu não, repetiu mentalmente, descendo as escadas degrau a degrau e imaginando Mariela a pisar nesse exato momento a pista de encontro, e ele lembrou como sempre andavam na mão dos carros, ele pela direita, ela também, e sempre fingiam – ele, pelo menos, corrigiu-se, ajustando o microscópio da própria alma para torná-la mais nítida – uma casualidade inexistente, um jeito ostensivamente falso de andar, como um soldadinho de plástico colocado ali olhando para o céu, mas é uma falsidade externa, ele se corrigiu de novo, já sentindo o vento no rosto quando passou pela porta automática e evitou o olhar de um conhecido, descendo sete degraus rapidinho e assumindo a pista de concreto que ia reta até o outro prédio, com o mesmo medo de sempre de erguer a cabeça e não encontrá-la, o mesmo pânico de que o espelho da casa não funcionasse mais e não lhe devolvesse o próprio rosto, mas alguma outra coisa, desconhecida; no quinto passo ergueu a cabeça e lá estava o vulto de Mariela vindo em sua direção, seriam aproximadamente quinze passos de cada um até que ela passasse por ele ajeitando a mecha, talvez, se ele tivesse sorte. Pressentiu o discretíssimo perfume de Mariela, às vezes mais forte, às vezes mais fraco, de acordo com a brisa, e lhe ocorreu súbito que ele seria o personagem central de um filme publicitário sob as ordens de um Grande Microscópio, mas esqueceu desse absurdo porque se cruzaram sem se olhar no mesmo passo de sempre – e cinco passos depois ele fez o que nunca havia feito – parou, e olhou para trás; e lá estava Mariela, simétrica, imóvel, e olhando para ele, a mão ainda levantando a mecha dos olhos, como para vê-lo melhor. Um décimo de segundo (ele calculou mais tarde) e voltou a andar, tonto, sob as pancadas brutas do coração, antecipando desde já a epifania de amanhã, um passo adiante, se não chovesse, e ele olhou para o céu. Cristovão Tezza é escritor, autor de vários romances, entre eles O fotógrafo, Breve espaço entre cor e sombra, Uma noite em Curitiba, Um erro emocional e Beatriz. Com O filho eterno (2007) ganhou os mais importantes prêmios literários do país – o Zaffari & Bourbon 2009, Portugal Telecom 2008, São Paulo de Literatura 2008, Jabuti 2008, Bravo! 2008 e APCA 2007.
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O caos perfeito Ronaldo Correia de Brito
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erkeley é só tédio aos domingos. O escritor João Gilberto Noll que o diga. Melhor pegar um trem para San Francisco do que subir e descer a Shattuck Avenue, olhando os cafés vazios. Loucos e pedintes se abrigam nas portas das lojas, com seus cães e tralhas. A reforma psiquiátrica devolveu-os às ruas, impregnados de neurolépticos. Já não existem manicômios, apenas a cidade e o lixo da riqueza, muito lixo, restos da contracultura dos anos sessenta, molambos de hippies. Nenhum corpo nu desfila em protesto pela guerra no Iraque. A insurreição de intelectuais e estudantes nos tempos de Vietnã transformou-se em retratos nas paredes do Free Speech Coffee, da universidade. Ninguém mais procura o que se enxergava antes, olhos aprisionados na tela do laptop, sem risco de rebelião. As bocas ávidas sorvem large coffee preparado com grãos da Abissínia ou Colômbia. De vez em quando disparam tiros e matam, mas não se comenta nada. São balas perdidas, resquícios, talvez, de Vietnã, Afeganistão e Iraque. O que nem ousam confessar. Os bons meninos e meninas, os rapazes e moças que passam correndo sobre patins estranham-se e matam. Matam-se. E todos se calam nas salas de aula, nos corredores dos departamentos, nos bares, nas avenidas largas sem ruído de buzina e sem atropelamentos. Nenhum clamor ou protesto. Em boca fechada só entra large coffee. É preferível não arranhar a beleza americana dos jardins perfeitos, ostentando camélias e orquídeas tropicais. As batidas do carrilhão de Berkeley imprimem ritmo aos passos do escritor residente: bão... bão... bão... – O que é o tempo? – perguntaram a Santo Agostinho. – Se não me perguntam eu sei; se me perguntam desconheço – ele respondeu. O escritor sobe e desce a Shattuck aos domingos, como João Gilberto Noll subia e descia a
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Shattuck aos domingos, angustiado porque nunca conseguiria ler os 6 milhões de livros da biblioteca central. Três andares submersos e mais quatro andares acima do solo coberto de pinheiros, esquilos e fontes d’água. Alexandria de livros. Parte do saber acumulado disponível para que o homem se torne bom, feliz, e não precise matar. Bão! Hora de literatura brasileira para jovens atentos e curiosos. Bão! O que é o sertão? Se não me perguntam eu sei; se me perguntam desconheço. Sertão! – Jatobá! Sertão! – Cabrobó! – Cabrobó! – Ouricuri! – Exu! – Exu! O poeta Ascenso Ferreira, que cantava o sertão, nunca esteve na rica Califórnia de cowboys bang-bang, tomada ao México como reparação de guerra; conheceu apenas o sertão de cangaceiros lampiões e cidades perdidas nos confins de Judá. O rapaz de Massachusetts estuda na Universidade da Califórnia, em Berkeley, e lê em voz alta a tradução de uma novela do writer in residence brasileiro. Cursou física, toca saxofone e se desloca num skate. Precisa ganhar dinheiro. Todos precisam ganhar dinheiro, de preferência muito dinheiro, comprar uma picape a diesel e uma casa de três andares. O writer in residence não pode conversar com o aluno de Massachusetts nos corredores, por mais que o aluno deseje esclarecer metáforas. É politicamente incorreto. O writer conversa com os alunos em sua sala do Departamento, com a porta aberta. – Professor, uma dúvida. – Escreva para o meu e-mail. – É apenas uma questão. – Marque uma hora. – OK!
Cada um ajusta o iPod nas orelhas e abre o laptop. Preferem nunca se tocar. – Recebo você na minha sala. – OK! – Não esqueça o e-mail. – OK! Conversam. Fala cerimonial como a arte cavalheiresca do arqueiro zen. Burocrática como a entrevista com um professor do Departamento. Marcada por e-mail, vários e-mails até os acertos finais do encontro de cinquenta minutos, numa cafeteria. – Chá ou café, professor? – Café. – Pequeno, médio ou grande? – Grande. – O que dizia mesmo? – Tudo acabou. A contracultura acabou. – Açúcar? – Mascavo. – É verdade, o sonho acabou. Mesmo aqui na Califórnia. Não encontrei nada do que pensava encontrar. – Temos obsessão pelo politicamente correto. Preferimos alface à carne. O carrilhão de Berkeley desgasta o tempo e as engrenagens do meu inglês enferrujado, cheio de palavras que não se ajustam às do professor do Departamento. Felizmente me distraio com um casal. Acaba de entrar, as mochilas sobrecarregadas de livros, notebook e iPod. Será que namoram? Ele puxa a cadeira e senta; ela põe a bolsa pesada no chão. Os dois são bonitos, um orgulho de Deus e do presidente Bush. Mas não trocam beijos de cinema. Apenas os gays de San Francisco trocam beijos explícitos, no bairro do Castro. O rapaz e a moça sentam em lados opostos da mesa de café. Cada um ajusta o iPod nas orelhas e abre o laptop. Preferem
nunca se tocar. Sozinhos no mundo, ligados pelos canais cibernéticos. – Como as pessoas começam um namoro aqui? O professor não compreende a pergunta, ou finge não compreender. É tabu como os assassinatos nas escolas; constrange como tocar em alguém por acaso. O corpo é sagrado na Califórnia, todos possuem seguro saúde. Os estudantes universitários se fotografam nus e editam revistas com subsídio público. As fotos não devem passar sensualidade. Os estúdios filmam pornografia sadomasoquista, na cidade de San Francisco. Pagam os direitos trabalhistas dos rapazes e moças importados do Leste Europeu e da América Latina. Os instrumentos usados nas sessões de sadomasoquismo são cuidadosamente esterilizados. Geram-se empregos, seguros são pagos e o capital circula. Os corpos se defendem de assédios e toques ao acaso. – Sorry. Felizmente se passaram os cinquenta minutos do encontro. No dia seguinte será a conferência e a leitura pública de um conto do writer, na biblioteca do Departamento. Agora ele caminha pela Telegraph Avenue, alegre com o aparente caos. Atravessa um pátio que leva aos departamentos, onde são permitidas manifestações políticas. Compra maçãs e tangerinas sem agrotóxicos, numa feirinha improvisada. Fez frio desde que chegou, mas o dia luminoso de hoje parece o Brasil. Rapazes tiram as camisas e meninas usam saias curtas. Andam apressados como cavalos a galope. Só ele não tem quase nada o que fazer. Gasta o tempo caminhando, sem vontade de retornar para casa. Toma outro café, retarda o passo. Não voltará ao Departamento, onde assiste ao espetáculo dos alunos sentados nos corredores, esperando falar com seus mestres. Evita observar o empenho de todos em parecer felizes e eficientes. São pessoas ocupadas. Criam o que ninguém parece capaz de criar no restante do planeta. Numa ordem absoluta que vez por outra se fragmenta. Os tiros. Alguém enlouquece e decide instalar o caos. Ronaldo Correia de Brito dramaturgo, escritor, médico e psicanalista. Autor de Faca (com o qual foi um dos finalistas do Prêmio Portugal Telecom 2004), Pavão misterioso (Prêmio Zilka Salaberry 2007 de teatro infantil) e Livro dos homens. Em 2009, seu Galileia foi o vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura.
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O ponto de Euclides Flávio Ulhoa Coelho
Q
uando eu lhe disse, naquela já longínqua noite de sexta-feira, e naquele bar da moda, que já tínhamos nos encontrado em algum lugar, senti o seu sorriso irônico frente àquela supostamente malfeita cantada. Mas não era uma cantada, não era, eu realmente quis dizer aquilo e, quem diria, deu certo, cantada ou não, passamos a noite inteira juntos. E agora, tantas sextas-feiras depois, quando conseguimos nos olhar frente a frente sabemos que estamos nos enganando nesta cidade, neste apartamento, ficando surdos com o constante barulho dos automóveis passando à altura de nossos ouvidos. Mas naquele dia, tanto tempo já, você ainda tentou acompanhar a minha suposta cantada, estávamos muito animados naquela noite. Você, imaginando então nossas vidas passadas, concordou que sim, que já tínhamos nos encontrado antes, sim, éramos príncipe e princesa vivendo em um castelo no vale do Loire, você provocou com este seu sorrizinho, ou talvez fôssemos dois camponeses chineses, é uma possibilidade mais real, eu emendei esticando a brincadeira em uma direção diferente da planejada... seguramente mais real, mas quem gostaria de se imaginar como mais um camponês chinês?, você emendou irônica sorvendo sua marguerita. Questão de probabilidade, querida, pensei, mas por que estragar nossos sonhos mais profundos? Concedi afinal com o meio-termo de burgueses meio ricos e esnobes vivendo no início do século passado em Nova York. Talvez fôssemos duas amebas, você propôs, ainda descontente com as minhas propostas, dois esquilos na selva amazônica e, sei lá por que o meu pensamento nesta hora se desviou da conversa, imaginar dois esquilos na selva amazônica, quem diria, já tínhamos bebido demais! Pelo que me lembro, a noite acabou de forma desastrosa, ainda bem que estávamos tão bêbados que nunca nos lembramos direito o que aconteceu.
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Felizmente decidimos, uma semana depois, nos darmos uma nova chance e cá estamos nós dois discutindo inúmeras teorias sobre o cotidiano e sobre o caos, assistindo TV e nos enganando nesta cidade maluca. Mas o que eu nunca contei a você nestes anos todos de convivência foi o que eu realmente quis dizer em minha suposta cantada daquela primeira noite. E agora parece tarde para tudo isto, irremediavelmente tarde, nossas teorias malucas já não nos divertem tanto quanto antigamente, mas vá lá, conto assim mesmo. Sim, já estivemos juntos em outro momento, e não menciono nenhuma real possibilidade de termos roçado nossos ombros em uma destas tantas multidões desta cidade maluca, não. Mas sim, porque, se é que houve de fato o tal do tão falado Big Bang, aquela explosão de onde tudo se criou, naquele momento inicial estávamos todos juntos, você, eu, nosso amor, nossas maldormidas noites, nosso ultimamente sexo apressado, nossas mágoas mútuas, os carros passando à altura de nossos ouvidos, o bar da esquina, aliás todos os bares de todas as esquinas desta cidade, que esquina é o que não falta nela, todos e tudo juntos e espremidos naquele apertado caldo primordial. Caldo é modo de dizer, querida, era aquele algo indefinido e confuso que ninguém explica direito, estava mais para um mero ponto, lembra? Um ponto ínfimo onde, espremidos, estávamos juntos tudo o que se conhece ou que ainda iremos conhecer: você, eu, este conto, nosso neto que nem nascerá por falta de pais, tudo, sem exceção. E ele e ela também, espremidos que estavam entre nós dois naquele caldo primordial, incomodando-nos e antecipando de certa maneira os problemas que iriam florescer em nosso convívio neste pequeno apartamento de trinta metros quadrados. Problemas que, a bem da verdade, também deveriam estar lá conosco naquele momento, se é que esta tal teoria do Big
(…) em qual momento da expansão nos separamos afinal de forma definitiva? Bang não é também um delírio de conversa de bar num final de noite de sexta-feira. Quando você, ano passado, aproveitando-se de que eu tinha viajado, resolveu remexer as minhas gavetas e de lá tirou todas as suas conclusões, nosso destino já tinha se selado. As gavetas, as cartas, as conclusões e tudo o mais que se seguiu, as lágrimas, os gritos, a injustiça, a usual chantagem emocional, já estava tudo lá nos primórdios, no tal caldo, naquela primeira vez que nos encontramos e que depois, naquela confusão toda que se seguiu ao Big Bang, nos separamos e eu lhe perdi de vista. E voltaríamos a nos encontrar tanto tempo depois, naquele bar, naquela sexta, se é que já não tínhamos nos encontrado antes, quem sabe como pinguins no Polo Norte (pinguins no Polo Norte, que ideia!). Se é que faz algum sentido esta tal teoria de Big Bang, ele também estava lá, junto a nós. A propósito, você se lembra se pelo menos trocamos algum olhar naquela expansão toda? Foi tudo tão rápido e barulhento, pelo que me lembro, e não me lembro tão bem assim, tanto tempo já, mas acho até que na correria toda nem tivemos a oportunidade de nos olharmos direito, estávamos todos muito preocupados onde iríamos parar afinal, parecia até uma mudança decidida de última hora, aquela expansão toda que ainda segue, e segue pelo que me consta... Mas assim como ela estava lá, ele também nos acompanhou naqueles primórdios, ele com quem você iria se encontrar em seu flat perto da Paulista só para se vingar de mim, vingança boba, querida, estamos nos enganando nesta cidade. Poeticamente muito mais interessante do que qualquer outra, esta teoria da explosão inicial a partir de um quase nada, ela me permite imaginar tudo que hoje vejo ao meu redor espremido em um incômodo, promíscuo e apertadíssimo ponto. Como seria possível então separar a sua raiva e a sua decepção da minha insegurança, sua mágoa de minhas manias, as cartas de sua vingança, tão grudadas elas estavam naquele momento? Como me separar de você e dela? Como imaginar seus pensamentos longes dos meus, em qual momento da expansão nos separamos afinal de forma definitiva? Nos separamos sim e, sim, de forma definitiva, isto é incontestável. E agora você, deitada com sua cabeça no meu colo, parece sonhar enquanto eu lhe ca-
funeio um pouco, meus dedos de uma mão se enroscando em seus longos cabelos tingidos de castanho enquanto que a outra mão me serve automaticamente um sanduíche de queijo. E eu tento entender o porquê desta história toda, parece loucura imaginar tudo isto, coisas, pessoas e sentimentos espremidos em um ponto, que por definição é indivisível, como se coubesse tudo lá, como se fosse possível nos imaginarmos dividindo nossos sonhos e cabelos tingidos com nossas decepções e ciúmes à espera de uma explosão. Fico imaginando que foi naquele momento de separação que tudo foi decidido, nosso futuro, nossa conversa naquele bar naquela sexta-feira, a sua ironia cotidiana comigo, a pior das mortes, a televisão que irá lhe irradiar um câncer definitivo tanto que você a vê, tudo lá! No outro dia, li no jornal que uns japoneses, sempre eles, tinham inventado uma pecinha (que, na foto, se perdia no dedo indicador de uma japonesa sorridente) onde se poderia colocar não sei quantos sigazetabytes de informação. O otimista e empolgado apresentador anunciava que logo seria possível armazenar toda a informação que o mundo contém em uma pecinha daquela. Imagina você? Toda a informação do mundo concentrada... só de pensar, dá para perder o rumo. Que tal então se armazenássemos lá todos os nossos sentimentos, nossos fantasmas, nossas esperanças e inseguranças e tudo o mais que temos de nós? Os carros, o apartamento, a surdez crescente, a irradiação que trará o câncer, tudo... ele, ela, as gavetas, minhas viagens, o rancor, minha insegurança, as malditas cartas e o flat na Paulista. E talvez, com isto, poderíamos então, seguros de que tudo isto estaria finalmente a são e salvo e, principalmente, distantes, voltarmos a sermos o que deveríamos ter sido desde o início. Estaríamos voltando aos primórdios, tudo concentrado em um ponto e talvez, neste dia, voltaríamos a nos encontrar de novo, uma nova expansão, o tal Universo em expansão... e quem sabe até nos entendermos afinal. Ah! Os japoneses e suas pecinhas maravilhosas também estavam lá com a gente no começo de tudo... Haja espaço naquele ponto! Flávio Ulhoa Coelho é professor titular do IME-USP e escritor. Publicou os livros de contos Contos que conto, Ledos enganos, meras referências e Gambiarra e outros paliativos emocionais.
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Polinização Rodrigo Lacerda
E
le já chegou ansioso, transportado até ali pela excitação, com o barulho de suas asas ecoando pela floresta. Era abril, início da primavera. A abelha, cujos feromônios o zangão deve ter rastreado a quilômetros de distância, o aguardava rente à folhagem rasteira. Ele foi se aproximando por trás, vendo crescer diante de si o dorso arredondado, protuberante, coberto de cerdas macias, no qual o azul do céu parecia refletido. As asas da fêmea, em descanso momentâneo, eram como um véu sobre seu corpo colorido. Quando o zangão finalmente pousou sobre ela, a abelha, submissa, aceitou sem resistência os movimentos abdominais vigorosos e as estocadas do macho enlouquecido de desejo. Levou algum tempo até ele perceber que algo estava errado. Aquela fêmea era... uma planta!?! Ao se desfazer o encanto, só lhe restava sair voando à procura de outra parceira. Mesmo nessa hora, o zangão não percebeu os dois pequenos cilindros amarelos grudados em suas costas. … … Eu larguei o botão do disparador e abri o sorriso largo de quem conseguiu todas as imagens que precisava. Aquela era nossa primeira incursão nas florestas da Sardenha. Ainda que por lá as chamadas orquídeas prostitutas cresçam como mato, foi muita sorte flagrarmos em tão pouco tempo sua pseudocópula com o zangão. A bióloga responsável pelo trabalho até duvidou: “Você tem certeza que pegou tudo?” Tirei a máquina do tripé e mostrei para ela. Cada etapa do processo estava lá: a flor da Ophrys, imitando direitinho o formato e as cores de uma abelha de costas, o pouso do zangão, o logro sexual e, por fim, o momento em que as polínias, as duas bolsas cheias de pólen, grudaram no dorso do pobre macho ludibriado. Salomé balançou a cabeça, satisfeita. Nos próximos dois meses, ela ia precisar que eu fosse
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bom no meu trabalho. Começamos a recolher nosso equipamento. “A maioria das flores recebe várias espécies de insetos durante a polinização”, Salomé falou. “Mas orquídeas como a Ophrys só atraem um tipo de polinizador. Você acha justo que ela tenha o apelido de orquídea prostituta?” “A bióloga aqui é você, eu só tiro as fotos”, respondi, achando que iria agradar. Ela me olhou meio torto, e disse: “Para mim, é machismo. A Ophrys é muito menos promíscua que as outras.” “Pensando bem, eu concordo. O apelido é injusto. E sobretudo por um detalhe que você não mencionou.” “Qual?” “A realização efetiva da cópula é a única certeza com as prostitutas.” … … A orquídea Cryptostylis atrai o polinizador emitindo um cheiro igual ao feromônio de um tipo de vespa. O zangão dessa espécie, porém, cai no logro até o fim. Ele de fato ejacula na flor, desperdiçando seu esperma. Chegava a ser cruel a forma como a Cryptostylis usava o agente polinizador sem dar coisa nenhuma em troca. Já as flores da Angraecum produzem néctar em tubos longuíssimos, de modo a que somente possam alcançá-lo certas mariposas com línguas tão longas quanto. Essas pelo menos têm a recompensa da comida. As orquídeas do gênero Dracula, por sua vez, encantam mosquitos produzindo odores de fungo, carne putrefata, urina de gato e fezes. Outras orquídeas ainda imitam zangões em voo, incitando o polinizador a um combate imaginário. “Dá um pouco de pena das orquídeas que não usam polinizadores para reproduzir, não dá?” “Por quê, Salomé?” “São como mulheres destituídas de qualquer poder de atração.”
Alimentação e reprodução (…) são as únicas coisas nas quais penso o tempo todo “É... ou então incapazes de se entregar.” Ela me olhou, pensando em uma resposta. “De um jeito ou de outro, são obrigadas pela natureza a se bastar.” Estávamos já há um mês viajando juntos quando ouvi isso. Passaríamos mais quatro semanas fora do Brasil, pagos para mapear as estratégias de polinização das orquídeas em seus habitats naturais. Salomé era extremamente reservada, mas interessante, e com ela eu trabalhava em harmonia. Tínhamos paciência nas buscas, gostávamos do isolamento. Na ilha Celebes, por exemplo, passamos dias superando pacificamente a decepção e o desconforto, até encontrarmos a mais perturbadora das orquídeas, uma Bulbophyllum echinolabium. Quando a vi pela primeira vez, julguei estar diante de um mandarim do reino vegetal; um daqueles velhinhos chineses com duas longas barbichas caindo-lhe do queixo. No meio da flor estava seu rosto, pequeno e rosado. Mas Salomé soube me fazer enxergar as coisas de outro modo. Primeiro recomendou que eu fechasse os olhos e percebesse o cheiro forte, indefinível, com o qual a flor convocava os polinizadores. Subitamente, sem maior esforço, ele ficou muito nítido, mesmo para mim. “Agora preste atenção no labelo que sai da flor, a pequena haste cor de pele, ou vermelho-claro, entre as duas pétalas inferiores. Não parece uma cartilagem?” Sim, parecia, e Salomé soube exatamente quando a imagem se formou dentro de mim. “O labelo fica preso apenas por um pontinho. A menor brisa é suficiente para acariciá-lo, fazendo-o balançar. Viu?” Vi. E você, se fosse um inseto vendo aquilo, ficaria em ponto de bala, garanto. Era impossível não querer chegar mais perto, tocar. Mas, na estratégia reprodutiva da echinolabium, ainda faltava o elemento realmente impróprio para menores. “Repare na coluna, o centro da flor, como ela ganha um vermelho forte, cor de morango maduro.” Eu reparei. Ela se abria em dois lábios intimamente frisados, de bordas quase roxas de tão intensas, desenhando-se ao redor de um ponto pequeno, mais escuro. Qualquer polinizador que se preze saberia exatamente onde penetrar. … … Algumas orquídeas, em troca da polinização, oferecem substâncias perfumadas. As abelhas, ma-
chos e fêmeas, usam a cera da flor para produzir os feromônios com que atraem seus parceiros. Assim como nós, humanos, também recorremos ao perfume das flores em nosso processo de sedução. Por isso estávamos numa floresta no Panamá, no sexto dia da última expedição, há 52 dias longe de casa. Eu, na barraca, deitado, matando as saudades da minha mulher. Salomé, examinando amostras de plantas. O guia que havíamos contratado, um panamenho com cara de inca, fumando um cigarro mais fedorento que uma orquídea Dracula no cio. Mais cedo naquele dia, Salomé havia dito uma frase estranha de se ouvir de uma mulher, estando sozinho com ela no meio da floresta: “Alimentação e reprodução, não necessariamente nessa ordem, são as duas únicas coisas nas quais eu penso o tempo todo, todos os dias da minha vida.” Na manhã seguinte, finalmente encontramos o espécime que faltava. As pétalas amarelo-canário da Coryanthes panamenha exalavam um cheiro forte de especiarias adocicadas, atraindo da mata zangões do tipo Euglossina. Pareciam feitas de um material borrachoso, brilhante e envernizado, que se redobrava sobre si mesmo. Em suas pregas escorregadias, os zangões competiam por espaço e pelo direito de raspar maior quantidade das fragrâncias na superfície cerosa da flor. Tais aromas, combinados a outros ingredientes, iriam ser espalhados pelos machos em seus próprios corpos, numa estratégia infalível para conquistar as fêmeas da espécie. Mas havia um preço a pagar. O labelo da Coryanthes, em forma de balde e cheio do líquido viscoso presente nas pétalas, estava pronto para receber qualquer zangão que, menos prudente, viesse a escorregar nas suas paredes. Logo aconteceu. Ao cair na piscina melada, um dos insetos teve as asas temporariamente inutilizadas. Para não morrer afogado, agora precisava escalar de volta, passando por uma passagem estreita, até a parte posterior da Coryanthes. Atordoado e ensopado, ele se espremeu nesse túnel, passando embaixo de uma estrutura que lhe pregou nas costas um par de polínias. … … Nove meses depois de voltarmos do Panamá, Salomé teve um filho com cara de inca. Rodrigo Lacerda é escritor, trêz vezes vencedor do Prêmio Jabuti, tendo publicado, entre outros, os romances O fazedor de velhos e Vista do Rio. Ganhou o prêmio de melhor livro de 2010 da Academia Brasileira de Letras com o romance Outra vida.
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