As negociações do império

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Pesquisa FAPESP novembro de 2012

novembro de 2012  www.revistapesquisa.fapesp.br

ambiente

Estudo identifica fontes de poluição na baía de Todos os Santos Aves

Ninho fóssil reforça parentesco de flamingos e mergulhões Medicamentos

Nanocápsulas agem contra calvície e liberam anestésicos na pele revistas científicas

Acesso aberto ganha espaço e expõe novos dilemas

As negociações

n.201

do império Colonização global portuguesa resistiu por séculos graças à sabedoria lusitana de dividir o poder com colonizados



Felipe Vieceli / USP

fotolab

Galinha no ovo No início da vida de uma galinha, ainda dentro do ovo (na imagem aos 2,5 dias), as células da crista neural migram para as regiões do corpo onde, já nessa fase, dão origem a diferentes estruturas: na cabeça, os nervos faciais, abaixo dela, os gânglios nervosos do tronco e, à frente, o coração, cujas válvulas têm origem nessas células. Para a equipe de Irene Yan, a técnica que permite iluminar essas células serve como instrumento para detectar possíveis alterações causadas por experimentos com o tubo neural, precursor da crista neural.

Se você tiver uma imagem relacionada a pesquisa, envie para imagempesquisa@fapesp.br, com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.

Foto enviada por Irene Yan, Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo

PESQUISA FAPESP 201 | 3


novembro 2012 18

n. 201

Política científica e tecnológica 34 Acesso aberto

Iniciativa do Reino Unido vai mostrar até que ponto é viável oferecer toda a produção científica na internet

40 Internacionalização 18 CAPA Império lusitano soube usar liberdade das elites locais e religião missionária para manter-se por cinco séculos

entrevista 26 José Marques de Melo Professor fala das dificuldades de constituir o campo da pesquisa em comunicação no Brasil

seçÕes 3 Fotolab 6 Cartas 7 Carta da editora 8 Dados e projetos 9 Boas práticas 10 On-line 11 Wiki 12 Estratégias 14 Tecnociência 86 Memória 88 Arte 90 Conto 92 Resenhas

4 | novembro DE 2012

Programa-piloto atrai cientistas do exterior para formar novos grupos de pesquisa de alto nível em São Paulo

62 Dinâmica de fluidos

Técnica que estabiliza pressão na interface entre óleo e água pode facilitar extração de petróleo

64 Redes complexas

Eliminar sincronismos em redes pode ajudar no controle de multidões e de distúrbios cerebrais

ciÊncia 44 Ambiente

Projeto mapeia fontes de poluentes e correntes marinhas na baía de Todos os Santos

50 Paleontologia

Fósseis de ovos e ossos de ave de 18 milhões de anos reforçam parentesco entre flamingos e mergulhões

54 Oncologia

Aprisionar o cálcio em compartimento no núcleo das células torna o tumor mais vulnerável à radioterapia

58 Molécula da glândula salivar do carrapato-estrela combate células cancerígenas e preserva sadias 60 Neurologia

tecnologia 66 Indústria automotiva

Empresas de autopeças instaladas no Brasil produzem soluções em conjunto com centros de P&D de outros países

70 Pesquisa empresarial

Embraer investe em parcerias para desenvolver desde biocombustíveis até inovações para cabines de aviões

76 Indústria farmacêutica Biolab utiliza nanotecnologia em anestésico e no tratamento de calvície

humanidades

Neurônio especial controla a chegada de informação do ambiente ao centro formador das recordações no cérebro

80 Diplomacia

61 Biofísica

84 Literatura

Estudo revela estrutura atômica de proteínas que eliminam excesso de hemoglobina no sangue

Política imigratória do Estado Novo escondia projeto de branqueamento Autobiografia de Josef Mengele revela falta de empatia pelas vítimas e culpa pelos crimes

76


34 62

44 50

70 66

54 80

60


fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo

cartas

cartas@fapesp.br

Celso Lafer Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente

Empresa que apoia a ciência brasileira

Conselho Superior alejandro szanto de toledo, Celso Lafer, Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, Horácio Lafer Piva, Herman Jacobus Cornelis Voorwald, joão grandino rodas, Maria José Soares Mendes Giannini, José de Souza Martins, Luiz Gonzaga Belluzzo, Suely Vilela Sampaio, Yoshiaki Nakano Conselho Técnico-Administrativo José Arana Varela Diretor presidente Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico Joaquim J. de Camargo Engler Diretor Administrativo

issn 1519-8774

Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo Leite, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Adolpho José Melfi, Carlos Eduardo Negrão, Douglas Eduardo Zampieri, Eduardo Cesar Leão Marques, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, João Furtado, Joaquim J. de Camargo Engler, José Arana Varela, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Luis Augusto Barbosa Cortez, Marcelo Knobel, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Luiz Monteiro Salles Filho, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner do Amaral, Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos Diretora de redação Mariluce Moura editor chefe Neldson Marcolin Editores Carlos Haag (Humanidades), Fabrício Marques (Política), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência), Carlos Fioravanti (Editor especial), Marcos Pivetta (Editor especial), Dinorah Ereno (Editora assistente) revisão Márcio Guimarães de Araújo, Margô Negro

Educação científica

Excelente revista! Artigos superimportantes, trabalhos muito relevantes para o país. Uma sugestão a partir da leitura do artigo “Gargalo na sala de aula” (edição 200). Pesquisa FAPESP deveria ser distribuída para todas as escolas públicas e servir como material de base para cursos. Ou seja, deveriam adotar conteúdos da revista para que os alunos fizessem redações, explicando, por exemplo, do que trata o artigo, ou como base para pesquisas sobre os tipos de trabalhos científicos que são feitos no Brasil, por quais entidades, para que e por quê. Vejo a revista em si como uma riquíssima fonte de material didático. Gosto muito também do website e do fato de que as matérias da revista estão lá disponíveis para quem não é assinante. Por meio dessa facilidade, postei dois artigos para amigos. Um dos artigos, sobre a mandioca biofortificada (edição 200), achei especialmente importante.

é um bonito documento histórico sobre os primórdios do jornalismo científico, mas contém um erro: a primeira “Secção Scientifica” publicada no jornal A Província de São Paulo é de 24 de janeiro de 1875 (“considerações geologicas e agronomicas applicadas”), repetida em 13/02/1875, anterior, portanto, à de 16/02/1875. Deve ter sido um problema no buscador, que encontra “scientifica”, mas não “secção scientifica”.

Flavia de Miranda

Adilson Roberto Gonçalves

São Paulo

Escola de Engenharia de Lorena/ USP Lorena, SP

arte Laura Daviña (Editora), Ana Paula Campos, Maria Cecilia Felli fotógrafos Eduardo Cesar, Léo Ramos Mídias eletrônicas Fabrício Marques (Coordenador) Internet Pesquisa FAPESP online Maria Guimarães (Editora executiva) Isis Nóbile Diniz (Editora assistente) Rádio Pesquisa Brasil Biancamaria Binazzi (Produtora) Colaboradores Alexandre Affonso, Ana Lima, Daniel Bueno, Drüm, Evanildo da Silveira, Igor Zolnerkevic, Gabriel Bitar, Larissa Ribeiro, Luciano Andrade, Salvador Nogueira, Sandro Castelli, Valter Rodrigues (Banco de Imagens), Yuri Vasconcelos É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização Para falar com a redação (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br Para anunciar (11) 3087-4212 mpiliadis@fapesp.br Para assinar (11) 3038-1434 fapesp@acsolucoes.com.br Tiragem 45.800 exemplares IMPRESSão Editora Gráfica Burti Ltda. distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo

6 | novembro DE 2012

Entrevista Marco Antonio Zago e jornalismo científico Enalteço a postura e a atuação do professor Marco Antonio Zago à frente da Pró-Reitoria de Pesquisa da USP (edição 200), mas convém dizer que, no âmbito dos contratos a serem firmados entre a universidade pública e as empresas, os advogados trabalham como inibidores da sinergia propalada. A nova dimensão da USP Inovação pode estar mudando essa estrutura, mas os obstáculos são recentes. A confirmação está nessa própria edição: a reportagem sobre a Oxiteno (“Em busca de novas rotas químicas”) relata a parceria com a FAPESP em três projetos de uma chamada específica, sendo que pelo menos outros três projetos aprovados no âmbito da USP foram cancelados por falta de interesse entre as partes para resolver as cláusulas de contrato. Por fim, a reportagem de Mariluce Moura (“Histórias para contar”)

Correções

No infográfico “Cenário provável da produção agrícola em 2022”, publicado na página 29 da reportagem “Biorrefinarias do futuro” (edição 192), faltou dizer que a produção estimada de cana, pastagens e alimentos é em milhões de toneladas por ano. Saiu apenas toneladas por ano. Nessa mesma reportagem, a moeda correta que deveria ter constado do infográfico na página 30 é dólares – e não reais. Diferentemente do que foi publicado na página 68 da reportagem “Inseto contra inseto” (edição 195), Trichogramma galloi não é um gênero de vespa, mas uma espécie. Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar – CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.


carta da editora

Histórias maravilhosas de portugueses Mariluce Moura Diretora de Redação

D

esfruto do privilégio especial de ter alguns amigos e amigas queridos, na faixa dos 30 aos 90 anos e de variadas formações cultural e profissional, com quem posso imediatamente trocar ideias quando um assunto me fascina ou, melhor ainda, literalmente me empolga. Isso vem a propósito do tema da reportagem de capa desta edição de Pesquisa FAPESP, um grande projeto de pesquisa sobre as dimensões do Império Português, iniciado em 2004, sob a coordenação da historiadora Laura de Mello e Souza. Mal comecei a ler a versão final do texto elaborado por nosso editor de humanidades, Carlos Haag, peguei-me pensando no quanto as narrativas da história real podem nos capturar para dentro do mesmo fascínio com o qual, primeiro, ouvimos histórias maravilhosas de fadas e bruxas, gnomos e elfos, príncipes encantados e reis sanguinários. E, mais adiante, nos entregamos, por exemplo, à extraordinária experiência estética – para nem falar de outras dimensões – que é ler Crime e castigo ou à desnorteante viagem proporcionada por Em busca do tempo perdido a quem não deserta de suas páginas. Ficcionais ou reais, as grandes histórias convergem nesse poder de deslumbrar e aprisionar nossa atenção pela mágica da narração. Mas, ao avançar na leitura da reportagem, ela já me fez pensar numa outra questão, mais restrita ao campo da história do Brasil, qual seja, as discussões tão frequentes em minha geração sobre o quanto as mazelas de nosso país derivavam das origens portuguesas da formação da nação brasileira. Foi aí que entrou em cena o meu velho

hábito de não postergar a escuta aos amigos em meio a conjecturas excitantes que me tomam de assalto. Eu queria saber se para outras gerações era comum um gratuito exercício de imaginação sobre a possível superioridade de nosso país caso tivesse sido colonizado pelos franceses, malsucedidos em suas incursões à vasta colônia lusitana do Atlântico Sul, pelos holandeses, que até fincaram pé no Nordeste por certo tempo, ou, melhor ainda, pelos ingleses, que preferiram francamente se manter mais ao norte. Sim, era, disseram-se os consultados, situados num gradiente que, a partir de minha própria geração, se estende por 30 anos adiante e 30 anos atrás. E na boa prosa que os tempos internéticos tanto ameaçam, propuseram-me uma infinidade de outras questões levantadas por essa depreciação dos portugueses que longamente cultivamos, fruto em parte de um ressentimento pós-colonial (tão bem expresso popularmente nas piadas de português), e ao qual Laura de Mello e Souza faz referência. Eu concluí cada uma dessas conversas recomendando que meus amigos não deixassem de ler a reportagem a partir da página 18, sugestão que estendo aqui a todos os nossos leitores. E, para sustentá-la, vai esse breve e delicioso aperitivo do texto que busca expressar que conhecimentos novos o projeto sobre dimensões do Império Português tem de fato produzido: “Não se trata nem da visão do ‘império controlador’, nem do ‘império incapaz de controlar’, mas de um império que, ciente da imensidão oceânica que sepa-

rava suas partes, entendeu a necessidade de manter relações com periferias relativamente autônomas, conectadas à metrópole por laços frouxos. Sem que, no entanto, Lisboa deixasse de ser o centro de onde o poder emanava. A distância entre rei e súditos, que poderia se configurar como problema, reaparece, agora, como ‘virtude’ de governar”. Extrema coincidência, a reportagem que abre a seção de ciência desta edição concentra seu olhar no lugar onde teve início a ação colonizadora dos portugueses neste território que se tornaria o Brasil: a baía de Todos os Santos. E o faz para relatar um programa de pesquisas de fôlego que trata de produzir conhecimento multidisciplinar dessa área, começando por uma dimensão ambiental, isto é, o mapeamento das fontes de poluição que a transtornam e das correntes marinhas que a atravessam. É exatamente aí que se encontram os primeiros resultados das pesquisas, abordados, a partir da página 44, em texto de nosso editor de ciência, Ricardo Zorzetto, que viajou à Bahia para vê-los in loco. As ambições do programa, entretanto, são muito mais amplas do que o que há de palpável até aqui e incluem estudos geológicos, antropológicos e históricos, para citar os mais importantes. Para sair um pouco do habitual, vou destacar nesta edição o excelente texto do professor Ismail Xavier, na seção de arte, sobre Paulo Emilio Salles Gomes, uma figura-chave das reflexões sobre o cinema brasileiro e até do próprio cinema nacional (página 88). Boa leitura! PESQUISA FAPESP 201 | 7


Dados e projetos Temáticos e Jovem Pesquisador recentes Projetos contratados entre setembro e outubro de 2012 temáticos  Gênese e significado da tecnociência: das relações entre ciência, tecnologia e sociedade Pesquisador responsável: Pablo Mariconda Instituição: IEA/USP Processo: 2011/51614-3 Vigência: 01/08/2012 a 31/07/2016    Esquizofrenia e outros transtornos psicóticos: determinantes sociais e biológicos Pesquisador responsável: Paulo R. Menezes Instituição: FMRP/USP Processo: 2012/05178-0 Vigência: 01/09/2012 a 31/08/2016    Investigação de circuitos neuronais e marcadores biológicos envolvidos no transtorno obsessivo-compulsivo por meio de paradigmas comportamentais de medo e ansiedade Pesquisador responsável: Euripedes Constantino Miguel Filho Instituição: FM/USP Processo: 2011/21357-9 Vigência: 01/12/2012 a 30/11/2017

 Estruturação e evolução da biota amazônica e seu ambiente: uma abordagem integrativa (FAPESP-BIOTA-NSF DIMENSIONS)

Pesquisadora responsável: Lucia Garcez Lohmann Instituição: IB/USP Processo: 2012/50260-6 Vigência: 01/09/2012 a 31/08/2017    A língua portuguesa no tempo e no espaço: contato linguístico, gramáticas em competição e mudança paramétrica Pesquisadora responsável: Charlotte Marie Chambelland Galves Instituição: IEL/Unicamp Processo: 2012/06078-9 Vigência: 01/10/2012 a 30/09/2017    Desafios em visualização exploratória de dados multidimensionais: novos paradigmas, escalabilidade e aplicações Pesquisador responsável: Luis Gustavo Nonato Instituição: ICMC/USP São Carlos Processo: 2011/22749-8 Vigência: 01/09/2012 a 31/08/2016    Biologia de sistemas como estratégia experimental para a descoberta de novos produtos naturais na fauna de artrópodes peçonhentos do estado de São Paulo Pesquisador responsável: Mario Sergio Palma Instituição: IB/Unesp Rio Claro

Processo: 2011/51684-1 Vigência: 01/10/2012 a 30/09/2016 JOVEM PESQUISADOR  Monitoramento da integridade estrutural em sistemas mecânicos não lineares usando modelos de Volterra Pesquisador reponsável: Samuel da Silva Instituição: FEIS/Unesp Processo: 2012/09135-3 Vigência: 01/10/2012 a 30/09/2016

 O papel das taxas de extinção e especiação e o efeito dos diferentes níveis de organização biológica na origem e manutenção da biodiversidade Pesquisador responsável: Tiago B. Quental Instituição: IB/USP Processo: 2012/04072-3 Vigência: 01/09/2012 a 31/08/2016  RF MEMS em ondas milimétricas utilizando processo CMOS comercial Pesquisador responsável: Gustavo P. Rehder Instituição: Escola Politécnica/USP Processo: 2011/18167-3 Vigência: 01/10/2012 a 30/09/2016  Meiose em escorpiões (Arachnida): modelo para compreender a evolução em espécies com cromossomos aquiasmáticos

Pesquisadora responsável: Marielle Cristina Schneider Instituição: ICAQF/Unifesp Processo: 2011/21643-1 Vigência: 01/09/2012 a 31/08/2016

 Bases moleculares da herança mitocondrial: o papel da fusão mitocondrial Pesquisador responsável: Marcos Roberto Chiaratti Instituição: IQ/USP Processo: 2012/50231-6 Vigência: 01/10/12 a 30/09/16  Ensino e saúde entre o público e o privado: a experiência do complexo HSP/SPDM/EPM-UNIFESP (1956-2010) Pesquisadora responsável: Ana Lucia Lana Lemi Instituição: EFLCH/Unifesp Processo: 2011/14275-6 Vigência: 01/10/12 a 30/09/16  Ressonância magnética nuclear de novos materiais complexos e avançados em física da matéria condensada Pesquisador responsável: Ricardo Rodrigues Urbano Instituição: IFGW/Unicamp Processo: 2012/05903-6  Vigência: 01/09/2012 a 31/08/2016

Pesquisa nas empresas brasileiras Companhias nacionais classificadas entre as 1.400 que mais investem em pesquisa e desenvolvimento (P&D) no mundo R&D/ empregado, 2010 em milhares de €

Relação P&D/vendas líquidas - média do setor

Relação P&D/vendas líquidas, 2010

Lucro operacional como % das vendas, 2010

67,324

13,3

18,7

18,8

Automotivo e peças (335)

46,55

2,8

12,1

26,6

WEG

Máquinas industriais (2757)

45,265

2,3

15,3

3,8

3

Vale

Mineração (177)

654,476

1,9

47,9

9,246

29,3

750

2

CPFL Energia

Gás, água e outras utilidades (757)

80,381

1,5

22,4

10,144

0,7

995

49

Embraer

Aeroespacial e defesa (271)

53,745

1,3

7,3

2,846

5,3

125

3

Petrobras

Produtores de petróleo e gás (53)

740,199

0,8

20,1

9,196

0,4

655

21

Gerdau

Indústria metalúrgica (175)

96,413

0,7

11,6

2,335

1,1

1.322

112

Braskem

Química (135)

35,376

0,3

12,6

7,627

10,7

Classificação geral

Classificação no setor (P & D / vendas líquidas)

Empresa

Setor industrial *

851

100

Totvs

Software (9537)

1.107

74

Randon SA Implementos

1.130

77

142

Investimento em P&D, 2010, em milhões de €

As empresas foram ordenadas em função da relação entre o investimento em pesquisa e desenvolvimento e o faturamento (*) O número entre parênteses se refere à quantidade de empresas do setor  Fonte: relatório da Comissão Europeia

8 | novembro DE 2012


Boas práticas Editores de várias publicações científicas decidiram redobrar os cuidados com a escolha de revisores de artigos, após a detecção de um inusitado tipo de fraude: alguns pesquisadores arrumaram um jeito de fazer o peer review de seus próprios papers para, assim, escapar das críticas que atrasam ou inviabilizam a publicação dos manuscritos. Segundo o The Chronicle of Higher Education, vários periódicos já retrataram cerca 40 artigos cujos pesquisadores praticaram esse tipo de fraude. O método era engenhoso: os autores sugeriam aos editores uma lista de nomes de revisores cujas contas de e-mail eram controladas, na verdade, pelos próprios autores. “Achei estranho, porque mandei o artigo e recebi de volta avaliações entusiasmadas em apenas dois dias. Revisores nunca respondem tão rápido”, disse Claudiu Supuran, editor-chefe do Journal of Enzyme Inhibition and Medicinal Chemistry, que descobriu e denunciou a fraude perpetrada pelo sul-coreano Hyung-In Moon, professor-assistente da Dong-A University, em Busan. Em 2010, Moon submeteu um artigo à publicação e sugeriu uma lista de potenciais revisores. Apesar da resposta estranhamente rápida, o artigo acabou publicado porque dois outros revisores de confiança da revista deram aval ao artigo. No ano seguinte, Moon mandou outro artigo e, novamente, uma lista de potenciais revisores. O que chamou a atenção de Supuran é que, embora eles pertencessem a universidades, seus endereços de e-mail eram do Gmail e do Yahoo, não das instituições. Descoberta a fraude, Supuran alertou outras publicações. O resultado é que

28 artigos do sul-coreano já foram retratados. Outro caso veio à tona em julho com a retirada de um artigo científico publicado na revista Experimental Parasitology por Guang-Zi He, pesquisador do Guiyang College of Traditional Chinese Medicine, na China. He sugeriu vários possíveis revisores que existiam de verdade, mas os e-mails informados eram todos vinculados a serviços de correio eletrônico da China, embora os nomes fossem de vários países. A suspeita levou a uma investigação, que culminou com a suspensão de um artigo publicado em fevereiro, em que o pesquisador identificava um alvo potencial para uma vacina contra uma infecção bacteriana. O caso é revelador de uma falha dos editores. A revista Experimental Parasitology pertence à editora Elsevier, que também amargou problema semelhante numa revista de matemática. A empresa, que dispõe de um banco de dados de

daniel bueno

Revisor de si mesmo

revisores de uso obrigatório pelos editores, informou que descobriu uma vulnerabilidade no sistema e que já o corrigiu. Qualquer autor pode sugerir nomes de revisores ou pedir que seus artigos não sejam enviados para desafetos. Mas cabe aos editores utilizar contatos de seus bancos de dados, não os fornecidos pelos autores.

Recomendações universais contra má conduta O Interacademy Council (IAP), entidade que congrega academias de ciências do mundo inteiro, divulgou um conjunto de diretrizes sobre condutas responsáveis na pesquisa que reúne uma espécie de consenso internacional acerca do assunto. Segundo o relatório de 62 páginas, são os pesquisadores que têm a responsabilidade primária de agir de forma ética. É essencial, dessa forma, que estabeleçam regras claras de conduta já nos estágios iniciais de uma colaboração internacional, assim como combinem previamente quem assinará os artigos científicos resultantes

dessas parcerias. Revisores de artigos científicos devem agir de forma justa e declarar eventuais conflitos de interesse. Já as instituições de pesquisa precisam ter mecanismos para investigar alegações de má conduta, além de estimular programas de educação e de treinamento para estudantes e pesquisadores. Às agências de fomento cabe evitar sistemas que privilegiem a quantidade em relação à qualidade na avaliação dos cientistas. O relatório está disponível em www. interacademycouncil.net/File. aspx?id=28253. PESQUISA FAPESP 201 | 9


Nas redes

www . re v istapes q uisa . fapesp . br

foto eso

on-line

Hilda Lima_ Há pessoas que acreditam que ensinar ciências é muito fácil: basta apresentar alguns conhecimentos aos alunos e estes devem apenas repeti-los nas provas. Outras, no entanto, acham que ensinar ciências é muito difícil e evitam tratar do assunto em suas aulas (Entrevista com Bruce Alberts) Aglomerado globular: origem de estrelas

Flavia De Miranda_ A meu ver o brasileiro, SIM, tem interesse em aprender, mas o método de ensino usado e o conteúdo apresentado são da época em que a educação popular foi concebida – século XIX! (Gargalo na sala de aula) José Sabino_ Para meus alunos

Exclusivo no site

que ficam preocupados com suas dissertações... Às vezes o trabalho

x A capacidade de aprender um caminho diferente ou de se situar em uma cidade depende em parte de um composto químico produzido pelo organismo chamado acetilcolina. Há décadas se sabia disso, mas apenas agora duas equipes de brasileiros demonstraram o papel da acetilcolina na aquisição e na consolidação dessa memória espacial. Para isso, eles inseriram em camundongos um gene que bloqueava apenas a liberação de acetilcolina em algumas regiões cerebrais. Publicado em outubro no site da revista PNAS, o estudo poderá contribuir para a busca de tratamento contra Alzheimer.

fica encalacrado, mas refletir, ler e pensar criativamente faz parte do processo de produção científica (Entrevista com Marco Antonio Zago) @mynickislu Parabéns, Pesquisa Fapesp, pela edição número 200! Sem dúvida a melhor revista de divulgação científica do Brasil! Cahuebm_ Muito legal. O mapa no vídeo ficou sensacional! (O relevo econômico do interior) Michèle Sato_ Grata pela partilha de um super-recurso educativo (vídeo sobre a Comissão Rondon)

Vídeo do mês Geólogos encontram no Paraguai fósseis de primeiros animais com esqueleto http://www.youtube.com/user/PesquisaFAPESP

10 | novembro DE 2012

Assista ao vídeo:

Para ler o código ao lado faça o download do leitor de QR CODE no seu smartphonE

x Um trio de astrofísicos obteve a primeira evidência direta de que parte das estrelas do halo, a região mais externa e com menor densidade de gás e estrelas da Via Láctea, originou-se em pequenas áreas de altíssima concentração estelar chamadas aglomerados globulares. Os pesquisadores já tinham indícios nesse sentido, mas não tinham provas até realizarem o trabalho que foi divulgado na revista Astrophysical Journal. Com a confirmação, o próximo passo será estimar mais precisamente a origem dessas estrelas, ou seja, saber em quais dos quase 160 aglomerados conhecidos elas se formaram.


WiKi

o que é, o que é? Teoria dos jogos

Pergunte aos pesquisadores Estruturas em escala nanométrica causam percepção de cor?

foto  lo.tangelini / Creative Commons  Ilustração daniel bueno

Roberto de Carvalho [via e-mail] O que diferencia as

espuma seja branca,

cores é o comprimento

porque as moléculas que

de onda da luz, que no

o compõem subtraem

espectro visível ao olho

as outras cores e deixam

humano varia entre

passar o centro do

400 nanômetros

espectro, amarelo. Na

(azul/violeta) e 700

escala comparável aos

nanômetros (vermelho-

comprimentos de onda,

-escuro). Um nanômetro

as partículas causam

corresponde a um

uma interferência

milímetro dividido

na luz se estiverem

por um milhão. Objetos

organizadas de forma

como gotas de vapor

regular, por exemplo

ou bolhas de espuma,

como as lâminas de uma

com uma fração de

persiana. Esse efeito

milímetro, espalham

causa o multicolorido

a luz que incide sobre

na face gravada de um

eles. É por isso que

CD, cujas ranhuras têm

as nuvens no céu e a

essa dimensão, e a

espuma do chope são

iridescência das asas

brancas. Já estruturas

de borboleta ou das

muito menores que o

penas de pavão,

comprimento de onda

recobertas por fibras da

da luz visível, com um

ordem de nanômetros

nanômetro ou menos,

separadas por espaços

como moléculas simples,

semelhantes. Essa

espalham muito pouco a

organização é essencial

luz. Elas também podem

para que nanoestruturas

absorver a luz: o chope

consigam causar

é amarelo, embora sua

interferência na luz.

Mande sua pergunta para o e-mail wikirevistapesquisa@fapesp.br, pelo facebook ou pelo twitter @PesquisaFapesp

Esse ramo da matemática estuda o comportamento de tomadores de decisão, ou jogadores, cujas ações – respeitando regras estabelecidas – afetam uns aos outros. Racional, cada jogador age conforme o que crê que os demais farão. Essa teoria tem aplicações em várias áreas do conhecimento, como ciências políticas, psicologia e biologia evolutiva. Um ramo da teoria dos jogos muito aplicado na economia é a teoria dos matchings (pareamentos), que lida com situações em que há dois conjuntos finitos e disjuntos – como homens e mulheres ou escolas e estudantes – e pode ajudar a formar casais ou distribuir estudantes em universidades de forma estável. A teoria dos matchings foi descrita em 1962 pelos norte-americanos David Gale e Lloyd Shapley, mas já era usada (Gale descobriu 15 anos depois) havia uma década para alocar médicos em programas de residência nos Estados Unidos. A comprovação de que o algoritmo usado desde 1951 era o mesmo de 1962 foi publicada por Gale em parceria com a matemática Marilda Sotomayor. Do ponto de vista da economia, o norte-americano Alvin Roth mostrou que o equilíbrio alcançado pelo mercado de médicos e hospitais é o mesmo apregoado pela teoria dos jogos. A teoria dos matchings, cuja importância rendeu a Shapley e Roth o Nobel de Economia deste ano, se tornou mais acessível aos não matemáticos graças ao livro publicado por Roth e Marilda em 1990. Roth hoje se dedica a estudar as aplicações, enquanto Marilda trabalha na teoria, liderando a escola criada por David Gale. Especialista consultada Marilda de Oliveira Sotomayor, FEA-USP

Especialista consultado Luiz Nunes de Oliveira, Instituto de Física de São Carlos, USP PESQUISA FAPESP 201 | 11


Estratégias Colaboração brasileira com o Nobel de Química

O novo mapa da ciência

O anúncio dos vencedores

adrenérgicos que Patricia

do Prêmio Nobel de

utilizou em sua pesquisa

Química, concedido

sobre a contribuição da

no mês passado aos

hiperatividade nervosa

norte-americanos

simpática na insuficiência

Robert Lefkowitz, da

cardíaca (ver Pesquisa

Universidade Duke,

FAPESP nº 79).

e Brian Kobilka, da

Ela utilizou camundongos

Universidade Stanford,

com inativação gênica

foi comemorado por uma

de dois receptores que

A revista Nature publicou

tomadas para impulsionar

pesquisadora brasileira

regulam os batimentos

uma edição especial

a pesquisa em seus

que tem uma produtiva

cardíacos – os receptores

sobre as mudanças no

países na próxima

colaboração com Kobilka.

alfa 2a e alfa 2c

modo como se faz ciência

década. Um deles foi

Patricia Chakur Brum,

adrenérgicos. Os

hoje no mundo, em que

o diretor científico da

professora da Escola de

camundongos nocaute

destaca a inclusão

FAPESP, Carlos Henrique

Educação Física e Esporte

tinham hiperatividade

de novos atores, como

de Brito Cruz, que

e pesquisadora do

simpática semelhante

China, Índia, Cingapura,

destacou o avanço

Laboratório de Fisiologia

à dos humanos, o que

Brasil e Coreia do Sul, no

científico do Brasil nos

Celular e Molecular do

culminou em insuficiência

cenário das nações que

últimos 30 anos. Em 2011,

Exercício da Universidade

cardíaca grave e 50% de

realizam pesquisas de

o país formou mais de

de São Paulo (USP), fez

mortalidade aos 7 meses

alto nível. O texto

12 mil doutores e

um pós-doutorado em

de idade. “O Brian me

sugere que a crescente

publicou 35 mil artigos

Stanford entre 1999 e

ajudou bastante e sempre

globalização da pesquisa,

em revistas científicas

2001 no grupo de Kobilka,

o visito quando vou

impulsionada pela

internacionais. Porém,

com bolsa da FAPESP,

a Stanford”, diz Patricia,

expansão de redes de

em média, as citações

e também teve o apoio

que até setembro era uma

colaboração em todas

de artigos científicos de

dele em seu projeto

das coordenadoras da

as regiões do mundo, está

autoria de brasileiros no

no âmbito do programa

área da Saúde da FAPESP

reforçando a capacidade

mesmo ano continuaram

da FAPESP Jovens

e atualmente cumpre

de pesquisa dos países

sendo as mesmas

Pesquisadores em Centros

um período sabático na

emergentes e alterando

de 1994. “Cientistas

Emergentes, entre 2003

Universidade Norueguesa

o equilíbrio global da

brasileiros devem

e 2007. Foi Kobilka quem

de Ciência e Tecnologia.

ciência. “As fronteiras

colaborar e publicar

forneceu os camundongos

O Nobel reconheceu o

nacionais estão sendo

mais com pesquisadores

nocaute para receptores

trabalho com receptores

superadas por redes de

de instituições de classe

acoplados às proteínas G,

colaboração em pesquisa

mundial no exterior”,

que permitem ao corpo

e ‘circulação de cérebros’,

indicou Brito Cruz.

sentir seu entorno e

que possibilitam que os

Uma das propostas

adaptar-se a novas

cientistas se movam de

apresentadas por

situações. Em 1970,

forma muito mais fluida

ele é que o governo

Lefkowitz descobriu o

em todo o mundo do

desenvolva um plano

primeiro receptor desse

que no passado”, aponta

para apoiar cerca de uma

a publicação. A Nature

dezena de universidades

reuniu as opiniões de oito

na execução de

líderes de instituições,

programas de excelência,

programas e agências

que possibilite situá-las

de fomento sobre as

entre as 100 melhores do

medidas que devem ser

mundo em uma década.

12 | novembro DE 2012

tipo. Na década seguinte, começou a buscar

1

O Nobel de Química Brian Kobilka deu apoio a pesquisas de Patricia Brum, da USP

o gene responsável pela construção desse receptor e contratou o jovem Brian Kobilka 2

para ajudá-lo.


fotos 1 L.A. Cicero  2 arquivo pessoal  3 heitor shimizu 4 eduardo cesar  ilustraçãO daniel bueno

Uma semana, quatro cidades A FAPESP realizou entre

da FAPESP, mostrou os

17 e 24 de outubro a

avanços em seus estudos

FAPESP Week 2012

com semicondutores

em quatro cidades da

estruturados em escala

América do Norte para

nanométrica para uso

divulgar resultados de

em sensores de gás para

pesquisa em andamento

controle e monitoramento

graças a acordos de

ambientais, feitos em

cooperação com

colaboração com Harry

universidades norte-

Tuller, do Departamento

-americanas e explorar

de Ciência de Materiais

possibilidades de novos

e Engenharia do MIT.

convênios. No MIT foi

O entendimento entre

de departamentos

apresentado o trabalho

FAPESP e Universidade

para negociar possíveis

do professor Vanderlei

de Toronto resultou em

acordos futuros. Com

Bagnato, da USP, sobre

projetos de pesquisa

o mesmo objetivo, ele

fluidos atômicos feito em

que foram mostrados ao

visitou a Universidade

cooperação com a equipe

público em áreas como

West Virginia, em

O professor da

de Wolfgang Ketterle,

técnicas de recuperação

Morgantown. No Brazil

Universidade de São

diretor do MIT-Harvard

de solo e água,

Institute do Woodrow

Paulo (USP) Vanderlei

Center for Ultracold

avaliação do impacto

Wilson Center,

Salvador Bagnato foi

Atoms e vencedor do

de prática de exercícios

copromomotor da

eleito membro da

Nobel de Física em 2001.

para tratamento de

semana, Brito e Varela

Pontifícia Academia de

No mesmo evento em

doenças respiratórias e de

tiveram encontros com

Ciências, no Vaticano.

Cambridge o professor

estimulação do cérebro

responsáveis pelas

A indicação foi feita pelo

José Arana Varela, do

para cuidar de depressão.

políticas públicas federais

papa Bento 16 no dia

Instituto de Química da

Na Universidade Harvard,

de ciência e agências

27 de setembro. Doutor

Unesp em Araraquara

o diretor científico da

federais de financiamento

em física pelo Instituto

e diretor-presidente

FAPESP, Carlos Henrique

à pesquisa para ampliar

de Tecnologia de

do Conselho Técnico-

de Brito Cruz, se reuniu

o relacionamento entre

Massachusetts (MIT),

-Administrativo (CTA)

com diversos dirigentes

as instituições.

nos Estados Unidos,

3

Brito Cruz no auditório do Wilson Center, em Washington: novas possibilidades de cooperação

Membro da academia

Bagnato é professor titular do Instituto de Física de São Carlos e dirige a Agência USP de Inovação. Fundada em 1603, a academia

Feira Ibero-Americana

tem entre seus objetivos promover o progresso

As cidades de São Paulo, Campinas e

da matemática, da física

Vinhedo sediaram no mês passado a Fei-

e das ciências naturais,

ra Ibero-Americana da Ciência, Tecnolo-

além de reconhecer

gia e Inovação (Empírika 2012). Idealiza-

a excelência no

da pelo Centro de Estudos da Ciência,

campo da ciência e

Cultura Científica e Inovação (Fundação

4

3CIN) da Espanha, o evento acontece a

Estudantes nas atividades da feira na capital paulista: evento estendeu-se a Campinas e Vinhedo

encorajar a interação internacional. Conta

cada dois anos. A Expo Barra Funda, na

(Unicamp). “A feira tem atividades vol-

capital paulista, recebeu a feira entre 23

tadas para despertar o interesse espe-

e 25 de outubro, em conjunto com a Fei-

cialmente dos jovens pela ciência, como

ra Tecnológica do Centro Paula Souza

também por desafios, espetáculos de

(Feteps). Nos dias 26 e 27 de outubro a

teatro, palestras, debates e atividades

Empírika foi realizada em Vinhedo. A

interativas”, disse Carlos Vogt, coorde-

após terem sido eleitos

parte científica do evento, o 2º Seminário

nador do Laboratório de Estudos Avan-

pelos outros acadêmicos.

Internacional Empírika, ocorreu na Uni-

çados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp,

Cerca de um terço

versidade Estadual de Campinas

que promoveu o evento.

dos integrantes ganhou

com aproximadamente 80 membros, entre homens e mulheres de diferentes países, nomeados pelo papa

o Prêmio Nobel. PESQUISA FAPESP 201 | 13


Tecnociência Teste rápido para detectar a leptospirose

1

Plantas sem insetos

Sem mariposas, prímulas adiantam período de floração

Um novo teste,

em cidades distantes

mais rápido que os

dos grandes centros

tradicionais, poderá

urbanos. Muitas vezes o

auxiliar no diagnóstico

doente fica curado antes

da leptospirose, doença

de o médico receber

provocada pela bactéria

o resultado do exame.

Leptospira interrrogans e

A confirmação ou não da

caracterizada por febre

doença serve mais para a

alta e dor no corpo. Ela

vigilância epidemiológica

causa letalidade de até

do que para o cuidado

15% nos mais de 500 mil

ao paciente”, diz o

casos por ano em todo o

professor Guilherme

mundo. “Desenvolvemos

de Sousa Ribeiro, do

um teste que pode

Instituto de Saúde

ser aplicado quando

Coletiva, da Universidade

Não há dúvida de que

dos insetos perdeu

o paciente chega ao

Federal da Bahia (UFBA)

a ecologia e a evolução

várias das características

hospital com sintomas

e pesquisador do Centro

das plantas são

que as ajudavam a

sugestivos da

de Pesquisa Gonçalo

profundamente

se defender das

leptospirose. Os testes

Moniz, da Fundação

influenciadas pelos

mariposas. Aumentou

confirmatórios existentes

Oswaldo Cruz (Fiocruz),

insetos. Ninguém

o número das variedades

necessitam de grande

em Salvador (BA). O novo

imaginava, entretanto,

que não produziam

aparato laboratorial e

teste pode ser usado no

que a ausência deles

substâncias repelentes

podem demorar algumas

próprio hospital e demora

pudesse modificar

de insetos e das que

semanas para dar um

apenas 20 minutos para

espécies de plantas a

floresciam no período

resultado, principalmente

dar um resultado. Ele

curto prazo. Uma equipe

em que o número de

é feito com apenas uma

liderada pelo biólogo

larvas de mariposas

gota de sangue colocada

Anurag Agrawal, da

atinge seu pico.

em uma pequena

Universidade Cornell,

Proliferaram ainda as

plataforma que contém

nos Estados Unidos,

variedades de corpo

uma fita com antígenos

monitorou durante cinco

maior, mais aptas a

da bactéria. A plataforma

anos um campo com

competir por espaço

foi desenvolvida pela

mais de 12 mil prímulas

com uma espécie

empresa Chembio, dos

(Oenothera biennis), onde

concorrente das

Estados Unidos, que

cresceram 18 variedades

prímulas, os dentes-de-

possui com a Fiocruz um

genéticas diferentes

-leão, que também

acordo de transferência

dessas flores amareladas.

cresceram no campo,

de tecnologia. Testes

Metade do campo foi

favorecidos pela

foram realizados com

tratada com inseticida

ausência de insetos

mais de 1.100 amostras

para proteger as plantas

predadores. Os

de sangue e no total

das mariposas que

pesquisadores acreditam

apresentaram

comem suas sementes

que a rapidez das

sensibilidade de 85%

(Science, 5 de outubro).

mudanças observadas

na fase aguda da doença,

A seleção natural agiu

nesse experimento possa

índice semelhante

rápido. Após três ou

ser uma característica

aos 82% encontrados

quatro gerações, a

geral das interações

com o teste Elisa,

maioria da população

entre outras espécies

usado no diagnóstico

das plantas protegidas

de insetos e plantas.

da leptospirose.

14 | novembro DE 2012


Encontrada tumba de rainha maia Arqueólogos encontraram na Guatemala,

-Waka, na região de Petén, no noroeste do

de “Kaloomte” (Guerreira Suprema), o que

na América Central, a tumba de uma rainha

país, pela pesquisadora americana Olivia

significa que ela teve maior autoridade do

maia do século VII. Um pequeno vaso de

Navarro e pela guatemalteca Griselda Pé-

que o seu marido, o rei K’inich Bahlam. A

alabastro decorado com a imagem de uma

rez. Mas só em outubro, após análise de

equipe encontrou também uma grande

mulher com idade avançada, com o nome

especialistas e avaliação de evidências, a

quantidade de joias de jade e milhares de

da rainha inscrito em hieróglifos, foi a peça-

descoberta foi anunciada por David Friedel,

lascas e navalhas de obsidiana (rocha de

-chave para a identificação de K’abel. O

professor de antropologia da Universidade

origem vulcânica). Na escavação, as pes-

túmulo com os restos mortais de um adul-

de Washington em Saint Louis, nos Estados

quisadoras acharam o cômodo principal,

to foi descoberto em junho durante uma

Unidos, diretor da expedição. K’abel fazia

que funcionava como um local de adoração

escavação no sítio arqueológico Peru-

parte de uma família real e tinha o título

do fogo, e abaixo dele o túmulo.

fotos 1 Oenothera Richardson/wikipedia  2 Francisco Castañeda  3 miguel boyayan  ilustraçãO daniel bueno

Glicerina na ração animal

Esculturas feitas de pedra, na Guatemala, do rei K’ínich Bahlam (esq.), e da rainha K’abel

Resíduo da produção

na Universidade Federal

de biodiesel, a glicerina

do Tocantins (UFT)

pode ser usada

com 12 vacas leiteiras

como suplemento

e 12 novilhos que

alimentício de bovinos

consumiram por 84 dias

e cordeiros como

rações com até 24% de

mostraram dois estudos

glicerina, o dobro do já

em universidades

aprovado pelo Ministério

3 2

brasileiras. De cada litro

da Agricultura. Depois,

2

do biocombustível

eles foram abatidos

produzido, sobram cerca

em um frigorífico

de 10% de glicerina.

comercial e partes

Em 2011 foram

do corpo dos animais

produzidos 2,6 bilhões

como cérebro, fígado

Anticorpos humanos

testados mantiveram

de litros e a produção

e intestinos foram

ultrapotentes

níveis virais abaixo do

deve aumentar nos

analisadas e não

e sintetizados em

detectável por 60 dias

próximos anos sem ainda

apresentaram toxicidade

laboratório podem indicar

depois do tratamento.

existir destino suficiente

ou qualquer outra lesão.

um novo rumo para

Uma vantagem

para a glicerina. Assim,

A glicerina também não

combater o vírus HIV-1,

dessa estratégia,

o primeiro estudo

alterou o peso dos

causador da Aids.

em comparação aos

realizado na Universidade

animais. A coordenação

O grupo do imunologista

coquetéis antirretrovirais,

Federal de Santa Maria

dos experimentos esteve

brasileiro Michel

é a ausência de efeitos

(UFSM), no Rio Grande

com os professores

Nussenzweig, da

adversos, porque os

do Sul, demonstrou

Sandro Moron e João

Universidade Rockefeller,

anticorpos não são

que cordeiros podem

Restle, da UFT.

em Nova York, mostrou

estranhos ao organismo.

(Nature, 25 de outubro)

“Não acho que podemos

de glicerina em

que usar uma

curar pessoas assim,

substituição ao milho

combinação desses

mas temos que tentar”,

sem nenhuma perda

anticorpos pode impedir

diz Nussenzweig.

em relação ao peso

os vírus de sofrerem

A possibilidade existe,

e ao desenvolvimento

mutações e tornarem

mas plausível também

esperado do animal.

a medicação ineficaz.

seria um tratamento

O experimento foi

O estudo foi feito em

com anticorpos que só

realizado com

camundongos

precisasse ser aplicado

32 cordeiros e contou

artificialmente dotados

uma ou duas vezes por

com a coordenação

de sistema imunológico

ano. Um grande avanço

dos professores Cleber

humano, o que os deixam

em relação ao atual

Pires e Luís Fernando

suscetíveis ao vírus.

consumo diário de

Pelegrini. O outro

Usando cinco anticorpos,

medicamentos para

alguns dos camundongos

combater a doença.

consumir até 30%

estudo foi realizado

Defesa contra Aids

Resíduo da produção de biodiesel pode ser aproveitado para alimentar cordeiros e bovinos

3

PESQUISA FAPESP 201 | 15


Perigo nas estradas Um estudo realizado em estradas federais do país revelou que 10% de 2.235 motoristas que tiveram a saliva analisada tinham consumido algum tipo de droga psicoativa, prescrita ou ilícita. Realizado por pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB) e Universidade

1

Federal do Rio Grande

Estudo mostra que a cocaína é a droga mais consumida por motoristas brasileiros

do Sul (UFRGS),com a

as anfetaminas, em

2009, o estudo colheu

colaboração da Polícia

69 amostras, sendo que

amostras de motoristas

Rodoviária Federal,

31 estão relacionadas

de carros (50,5%),

a pesquisa validou um

aos inibidores de apetite

motocicletas (29,6%),

método analítico que

como o femproporex e o

ônibus (10,8%)

reúne, no mesmo teste,

dietilpropiona, proibidos

e caminhões (9,1%).

Uma exposição com

32 compostos químicos

em 2011 no Brasil. Do

Sob a coordenação da

informações sobre

relacionados a vários

total de motoristas, 22

professora Eloisa Dutra

a anatomia e o

tipos de substâncias.

tinham consumido mais

Caldas, da Faculdade

funcionamento do

Sozinha ou com outras

de duas classes de

de Ciências da Saúde

coração, o sistema

drogas, a cocaína foi a

drogas, como cocaína

da UnB, o estudo foi

circulatório e os principais

substância mais presente,

e maconha, ou cocaína

publicado na edição

elementos constituintes

na saliva de 129

e benzodiazepínicos

on-line de 24 de setembro

do sangue, chamada

motoristas (5,8%). Em

(calmantes), por exemplo.

da revista Forensic

Vias do coração,

seguida apareceram

Realizado entre 2008 e

Science International.

foi aberta no dia 1º de

Vias do coração

novembro e ficará até o dia 31 de março de 2013 na Estação Ciência da Universidade de São Paulo (USP). A mostra

Imagem de proteínas em alta definição

integra o projeto Ciência Móvel – Vida e Saúde para Todos, um museu de ciências itinerante que

Pesquisadores que trabalham com biolo-

circula em um caminhão

gia molecular utilizam uma proteína ver-

desenvolvido em parceria

fotos 1 nononononon  2 nononono  3 nononon  ilustraçãO daniel bueno

de-fluorescente, GFP na sigla em inglês,

2

para marcar proteínas principalmente em

entre a empresa farmacêutica Sanofi

situações de necessidade de confirmar a

em microscópios eletrônicos. Chamada

e o Museu da Vida,

inserção de genes em células e tecidos

de ascorbato peroxidase (Apex), a nova

da Fundação Oswaldo

biológicos. O problema é que só é possível

tecnologia permite também visualizar

Cruz (Fiocruz). Terminais

identificar a tal proteína com microscó-

melhor as intrincadas estruturas de uma

pios fluorescentes com emissores de luz.

célula, o que ajuda os pesquisadores da

Imagens com melhor definição são obti-

área a entender melhor, por exemplo, as

das apenas com microscópios eletrôni-

interações das proteínas e detelhes mais

cos. Para contornar o obstáculo, pesqui-

nítidos das células. Os pesquisadores fo-

sadores do Instituto de Tecnologia de

ram liderados pela professora Alice Ting,

Massachusetts (MIT) desenvolveram um

do Departamento de Química do MIT, e

marcador que pode etiquetar e dispor a

apresentaram o novo marcador na revista

imagem de proteínas com muita clareza

Nature Biotechnology (21 de outubro).

multimídia, vídeos Imagem de célula com mitocôndria escurecida pelo novo marcador para microscópios eletrônicos

em 3D, bancadas de microscópios, além de um coração com mais de dois metros de altura, compõem a exposição que já foi vista por mais de 400 mil pessoas. Mais informações: www.eciencia.usp.br.

16 | novembro DE 2012


fotos 1 léo ramos  2 Tom Deerinck e Jeff Martell/MIT 3 wikipedia  ilustraçãO daniel bueno

Cozinhar impulsionou evolução do cérebro Os seres humanos são

disponíveis para se

os primatas com o maior

alimentar e o baixo

cérebro e número de

teor calórico da comida

neurônios, apesar de

crua impõem limites

nossos corpos não serem

severos ao

tão grandes quanto aos

desenvolvimento

dos gorilas, por exemplo.

do corpo e do cérebro

Por que a evolução

dos animais. É como se,

dos grandes símios

ao longo da evolução,

também não foi na

as espécies precisassem

direção de aumentar

escolher entre ganhar

seus cérebros?

massa corporal e

A resposta pode estar

aumentar o número de

em uma mudança de

neurônios. Uma espécie

dieta, argumentam as

como o Homo sapiens

neurocientistas Suzana

precisaria gastar mais

Herculano-Houzel e

de nove horas diárias

Em janeiro deste ano,

na Universidade da

Karina Fonseca-Azevedo,

se alimentando de

o físico teórico Frank

Califórnia, em Berkeley,

ambas da Universidade

comida crua para

Wilczek, do Instituto

é a primeira a propor

Federal do Rio de Janeiro

desenvolver

de Tecnologia de

uma maneira de colocar

(UFRJ). Sabendo que

e manter o cérebro

Massachusetts (MIT),

a ideia de Wilczek em

o custo energético de um

funcionando. Esse

nos Estados Unidos,

prática. Eles sugerem

cérebro é diretamente

obstáculo teria sido

imaginou a possibilidade

uma experiência com

proporcional ao seu

superado quando nosso

de criar um “cristal

íons de berílio (Physical

número de neurônios,

ancestral Homo erectus

espaço-temporal”.

Review Letters, 19 de

as pesquisadoras

descobriu o fogo.

Cristais comuns, tais

outubro), possível de

calcularam o número

Alimentos cozidos são

como os de gelo e de

se realizar com alguns

máximo de neurônios

mais fáceis de digerir,

quartzo, são objetos

avanços na tecnologia

que 17 espécies de

fornecendo mais calorias

cujos átomos formam

atual. Os íons seriam

primatas são capazes

que os crus. Com mais

padrões repetidos.

aprisionados por

de manter com a energia

energia e tempo livre

Eles se organizam assim

um campo elétrico

fornecida por uma dieta

disponíveis para

para permanecer em

a temperaturas

de alimentos crus

atividades sociais,

um estado de energia

extremamente baixas,

(PNAS, 23 de outubro).

a evolução teria

mínima. Assim como

próximas de -273°C.

Descobriram que o

favorecido o aumento

as formas de um cristal

Nessas condições, os íons

número de horas

do número de neurônios.

normal se repetem no

formariam um anel, que

espaço, o cristal

seria posto para girar

espaço-temporal

pela ação de um campo

se repetiria também

magnético. Uma vez

no tempo, retornando

girando em seu estado

periodicamente a sua

de mínima energia,

posição original.

os campos poderiam

Diferentemente de um

ser desligados e os íons

movimento periódico

formariam o cristal que

convencional, que com

permaneceria em

o tempo poderia se

movimento, a princípio

dissipar, ele faria isso

para sempre. Ao

sempre em um estado

contrário do que parece,

de mais baixa energia

não seria possível usar o

possível e seu

cristal espaço-temporal

movimento duraria

para se criar uma

indefinidamente.

máquina perpétua

Uma equipe liderada

porque não haveria como

por Tongcang Li,

extrair energia do anel.

3

Dieta dos gorilas não sustenta corpo e cérebro grandes ao mesmo tempo

Um cristal eterno

PESQUISA FAPESP 201 | 17


capa

Monumento aos descobrimentos, Lisboa, Portugal


Um imenso

Portugal Império lusitano soube usar liberdade das elites locais e religião missionária para manter-se por cinco séculos Carlos Haag

Robert Everts / getty images

C

omo um pequeno país com menos de 90 mil quilômetros quadrados marcou sua presença em cinco continentes, em regiões como África, Japão, China, Índia e Brasil? Nenhum império europeu colonial moderno foi tão duradouro e amplo. Portugal foi o primeiro construtor de um império global (embora os portugueses se denominassem reino, e não império, como os espanhóis), que sobreviveu em grande parte até meados dos anos 1970, tendo Macau retornado à China apenas em 1999. “O sucesso deve-se a inovações que fogem a qualquer modelo. A relação pioneira entre centro e periferia foi marcada pela flexibilização do poder pelas elites locais, sem que Lisboa deixasse de ser o polo irradiador da autoridade. Bastante inovador foi também o uso da religião para a criação da unidade imperial”, explica a historiadora Laura de Mello e Souza, da Universidade de São Paulo (USP), coordenadora do projeto de pesquisa Dimensões do Império Português, temático iniciado em 2004 e concluído recentemente com apoio da FAPESP. O objetivo da pesquisa, que já rendeu livros como O governo dos povos (Alameda), Contextos missionários: religião e política no Império Português (Hucitec/FAPESP) e O império por escrito (Alameda), era rediscutir o conceito de antigo sistema colonial e ver se ainda tinha operacionalidade ante as novidades que a pesquisa histórica tinha trazido. O estudo gerou cerca de 30 trabalhos acadêmicos, entre dissertações de mestrado e teses de doutorado, e foi dividido em núcleos de pesquisadores para melhor analisar as dimensões políticas, econômicas, culturais e religioPESQUISA FAPESP 201 | 19


sas do Império Português, revelando um quadro complexo e pleno de diversidades em que, diz Laura, “se percebe o múltiplo no uno”. “Visões consagradas de uma administração colonial caótica, máquina burocrática monstruosa, emperrada e ineficiente, com um centro autoritário e colônias submissas, não dão conta da capacidade de manutenção longeva do imenso império. Houve, sim, um uso inteligente do poder por Lisboa, superando os limites da separação oceânica entre a metrópole e suas colônias”, explica a professora. A cronologia adotada pelo projeto, entre os séculos XV e XIX, se explica por ser o período da expansão lusitana, já que, depois de 1822, não justifica a leitura em conjunto de formações tão independentes como os impérios brasileiro e português. O projeto atualiza um debate surgido ao final da década de 1970 sobre como interpretar a economia e a sociedade da América portuguesa, reavaliando tanto a ideia de ‘sentido da colonização’, de Caio Prado, como o conceito de ‘antigo sistema colonial’, definido por Fernando Novais. O resultado, afirma Laura, é um jogo dialético entre as partes e o todo, eliminando a oposição mecânica entre metrópole e colônia,

muito além da relação Brasil-Portugal. “Nessa releitura, o Império Português aparece como pouco homogêneo e com centros políticos relativamente autônomos. É preciso questionar a ideia de uma ideologia imperial unitária”, fala a pesquisadora. hipóteses

Para ela, o ressentimento pós-colonial dos brasileiros por muito tempo deixou livre o caminho para que historiadores estrangeiros traçassem suas hipóteses e preenchessem lacunas óbvias, já que estavam desimpedidos do peso de um passado que não era o seu e contra o qual não precisavam acertar contas. “Nos últimos anos é que surgiu uma ‘voga do império’ que reuniu uma ampla gama de historiadores, nacionalidades e matrizes teóricas e historiográficas diversas”, fala. Muitos, porém, ainda caem nas “armadilhas” historiográficas, deixando de lado a questão da escravidão ou supervalorizando o poder da leitura de textos oficiais, engano já apontado por Caio Prado em 1942 quando critica a “ótica da norma”, que, muitas vezes, permanecia “letra morta”. “A flexibilidade das instituições político-administrativas, capazes de estabelecer um sistema complexo de relações horizontais e verticais com o poder central, intermediário e local, não anula a necessidade de compreender o sistema colonial como um conjunto hierarquizado de relações políticas”, diz Laura. Não se trata nem da visão do “império controlador”, nem do “império incapaz de controlar”, mas de um império que, ciente da imensidão oceânica que separava suas partes, entendeu a necessidade de manter relações com periferias relativamente autônomas, conectadas à metrópole por laços mais ou menos frouxos. Sem que,

Praefecturae Paranambucae Pars Meridionalis, Georg Markgraf, 1665, 41,5 x 45 cm

20 | novembro DE 2012


imagens do livro O Tesouro dos Mapas - A cartografia na formação do Brasil

Era um império de grande racionalidade que tinha consciência de que os problemas locais exigiam soluções imediatas e produzidas localmente

no entanto, Lisboa deixasse de ser o centro de onde o poder emanava. A distância entre rei e súditos, que poderia se configurar como problema, reaparece, agora, como “virtude” de governar. “As colônias se constituíram também, mas não apenas, mimeticamente como espelhos, reproduzindo os valores socioculturais da península Ibérica. Para isso foi importante a criação pelos portugueses de um sistema de comunicação política quase universal entre Corte e colônias. O que podia parecer uma fraqueza institucional se transforma em sua força, revelada na adaptabilidade às diferentes conjunturas políticas e territoriais e, por vezes, num certo pluralismo administrativo”, lembra a pesquisadora. A originalidade das bases do Império Português pode ser vista na criação de estruturas novas, que intermediavam a relação entre os poderes locais, nos territórios ultramarinos, e os poderes do centro. “Os administradores portugueses que vieram, por exemplo, a certas partes do que seria o Brasil fogem ao estereótipo do ‘tiranete’ que buscava arrancar os espólios dos brasileiros. Claro que houve inescrupulosos. Mas, no geral, sabia-se que não se podia pesar a mão na relação com a colônia. A exploração muitas vezes vinha revestida da forma da intolerância, seguida da flexibilidade na aplicação das leis”, nota Laura. “Assim, dizer, como reclamava Tiradentes, que os administradores portugueses vinham para espoliar e arrancar nosso sangue, não explica muita coisa e nos enreda no discurso equivocado da dominação.

Em verdade, a administração só pode funcionar porque as elites locais participavam dele”, fala.

Novissima et Acuratíssima Totius Americae Descriptio, John Ogilby, 1671, 43,5 x 54 cm

coroA

A pesquisadora frisa que não se entende as relações desse império apenas com base nos documentos legais. “A Coroa sabia que não podia impor controle levando a lei ao pé da letra. Até 1822, os ‘brasileiros’ se viam como portugueses, e não como dominados”, explica. Assim, os movimentos de revolta local nem sempre eram sinônimo de “luta por independência”, mas eram reações a rearranjos. Ainda vale a definição de Tocqueville do Antigo Regime: “Uma regra rígida e uma prática flácida”. Mas não se deve falar num “Antigo Regime tropicalizado”. Se a sociedade colonial for vista como de Antigo Regime no senso estrito, suas particularidades explodem e corroem os princípios básicos, já que era organizada e costurada pelo escravismo, algo que inexistia no ambiente europeu”, lembra Laura. “A aquisição de escravos manchava a imagem da nobreza local, separando-a daquela do reino. Corriam-se atrás de títulos, honras e mercês, com isso aumentando a dependência junto ao rei português, que se agravou ao longo dos anos”, diz a historiadora. A especificidade da América portuguesa não residia na assimilação pura e simples do mundo do Antigo Regime, mas na sua recriação perversa, alimentada pelo tráfico, pelo trabalho de negros escravos, pela introdução, na velha sociedade, de um novo elemento, estrutural mais do que institucional: o escravismo. PESQUISA FAPESP 201 | 21


Mapa do Império Português (1415-1999) O desenvolvimento e a decadência dos lusitanos, da glória até o processo de descolonização

LEGENDA Possessões efetivas Explorações Áreas de influência e comércio Reivindicações de soberania Postos comerciais Principais explorações marinhas, rotas e áreas de influência

Mais uma vez a solução vem por meio da flexibilização. “Pelos princípios do Antigo Regime se proibia aos portadores de ‘sangue infecto’ exercer cargos administrativos. Seria, então, impossível governar as regiões coloniais se a maior parte da elite nativa era formada por mestiços: regiões como São Paulo e Minas, por exemplo, eram praticamente habitadas por mamelucos e mulatos. Promovia-se, então, um mulato a capitão-mor e ele deixava de ser mulato e podia ascender”, nota a professora. Mesmo oficialmente sujeita às regras do antigo sistema colonial, a periferia do império usava e abusava do “jogo de cintura”. “O projeto inova ao discutir essas peculiaridades do Império Português, dando a ele uma categoria explicativa maior A discussão nos levou a repor o conceito de sistema colonial pela ideia de que a colônia não era mera extensão da metrópole, mas um território subordinado que exerceu um papel fundamental para o império ao prover uma parcela considerável dos recursos essenciais à sua existência”, observa o historiador Jobson Arruda, da USP, membro do projeto. “O sistema imperial lusitano tinha grande racionalidade e uma consciência de que os problemas locais exigiam soluções imediatas e produzidas localmente”, continua. Essa foi uma das principais razões do sucesso dos portugueses em face dos rivais espanhóis. “A monarquia espanhola era uma variedade de reinos, enquanto Portugal era um reino unificado. Foram feitos grandes esforços para aumentar o poder do Estado a expensas da nobreza e das comunas. Esses recursos ajudaram na expansão marítima que, por sua vez, deixou o reino 22 | novembro DE 2012

menos dependente de nobres e plebeus graças aos recursos obtidos. Em troca, esses recursos permitiram ao Estado cooptar a nobreza, o que propiciou ao rei português uma consolidação espantosa do seu poder”, explica a historiadora Ana Paula Megiani, da USP, organizadora de O império por escrito (Alameda), outra pesquisadora do projeto. “Com essa centralidade, a monarquia portuguesa tinha uma capacidade de mando no império maior do que a espanhola, com o poder local funcionando como formas de exercício daquele poder, expressões de centralidade, e não de desmembramento do império”, avalia Ana. Ainda assim Portugal vivia uma contradição que os espanhóis não tinham: era um império sem imperador. “Nesse contexto, a face religiosa do império é a que melhor expressa a sua universalidade. A Igreja ofereceu um substrato adequado à efetivação prática de um grupo de dogmas e princípios, tendo nas missões religiosas o seu principal instrumento operacional para cimentar as partes da totalidade”, afirma o historiador Adone Agnolin, da USP, do núcleo Religião e Evangelização da pesquisa. “A perspectiva religiosa traz a base de uma universalitas (princípio construtor de impérios herdado dos romanos), repassada, do ponto de vista político, à manutenção dos impérios, mas que, no fundo, se apoia sobre a ideia de um ‘império simbólico, unindo política e religião”, fala Agnolin. Segundo o historiador, por meio de seus missionários, o Império Português reverte o processo de formação histórica ao encontrar seu pressuposto universal na dimensão do religioso. “O religioso é


seu instrumento privilegiado para a realização do projeto e, a partir dele, Portugal se propõe como novo e inédito modelo imperial”, diz. Laura afirma que essa visão é uma das grandes novidades trazidas pela pesquisa. “Os missionários são braços de homogeneização da fé, trazendo maior adaptabilidade dos portugueses em face dos confrontos religiosos e culturais”, fala a historiadora. A tentação de “demonizar” a Igreja é grande, mas equivocada. “Toda a ação dos agentes diplomáticos, administrativos ou comerciais, era caucionada pelos missionários, que davam legitimidade ao conjunto de ações que pretendiam o bem comum e, logo, a salvação dos homens”, afirma.

Possessões coloniais Da glória ao ocaso, cada século revela o desenvolvimento imperial Século XVI

RIQUEZA

A noção de “bem comum” compreendia, na época, a dimensão colonial ao lado do cristianismo, ainda que com tensões. Aumentar a riqueza do rei era aumentar a riqueza do reino e assim a riqueza dos vassalos cristãos. O aumento da atividade comercial e da riqueza do reino ligava-se e se fundamentava na função do rei em sua expressão do exercício da virtude teológica da caridade e do exercício das virtudes terrenas na justiça distributiva. A unidade do reino, como unidade da comunidade, visa ao bem comum e à salvação. A finalidade do império não se restringe à colonização, vista apenas como um meio, mas à salvação, já que permite converter os gentios e sustenta a ação missionária, expansionista e universalizante da Igreja Católica. “Essa especificidade se dá a partir da segunda metade do século XV. Na base da expansão colonial está a teologia e, nos seus rastros, os resultados de um novo comércio colonial. É nessa direção que Portugal constrói, com uma antecipação extraordinária em relação às outras nações europeias, a nova perspectiva de universalização que se constituiu na articulação entre império, teologia e comércio”, explica Agnolin. As missões, junto com o comércio, foram uma das vias privilegiadas dos primeiros diálogos com as culturas em contato com o mundo ibérico. O império dos homens era, acima de tudo, de Deus. “Além disso, se os europeus precisavam compreender as culturas locais, era também necessário desenvolver novos instrumentos cognitivos para dar conta das novas situações do contato. Era um processo de tradução de parte a parte, em que a linguagem religiosa funcionava como área de mediação simbólica, fundamental à incorporação das populações nativas à monarquia portuguesa”, observa o historiador. As missões fizeram as necessárias “acomodações” com as diversas realidades locais. “Se as relações entre império e religião, entre administração dos povos e as missões católicas, se deram a partir de interesses comerciais, não

Século XVIII

Século XX

PESQUISA FAPESP 201 | 23


se pode deixar de pensar como as ‘dimensões do Império Português se sustentam no universalismo que remete à autonomização moderna de direito natural”, fala Agnolin. Assim, na base da tensão entre teologia e império, encontra-se a noção de império cujo objetivo era realizar a imposição de um governo comum para os povos, segundo as diferentes modalidades de interlocução local, como nas dimensões políticas e culturais. Outra sabedoria lusitana era manter governos específicos para cada parte do império, adaptando-se às idiossincrasias locais. Não se governava uma região colonial da mesma maneira que se governava outra. No caso fundamental da religião, o cristianismo determinou, a partir desse contexto, um nexo entre “coisas da fé” e a “vida política”. A partir dessa perspectiva, que visava ao universal, é que a práxis evangelizadora realizou os “ajustes” necessários em relação às culturas não ocidentais particulares. O Império Português elaborou projetos que buscavam a incorporação de outros povos, com a catequese como o veículo central dessa tentativa. “Flexibilidade e adaptabilidade, com autonomia relativa, foram instrumentos de sobrevivência desse império, com Lisboa no centro, ainda que muitas vezes sobrecarregada. Nisso o papel fundamental coube à Igreja e às ordens religiosas, mais importantes na manutenção e defesa do território lusitano do que o Estado português”, afirma o brasilianista Kenneth Maxwell, da Harvard University. No império, a cultura europeizante, como a religião, atuou na sua manutenção. “Era uma cultura que estava embebida do ideal civilizador, mas atenta às recombinações e aos mecanismos capazes de melhor estender o seu domínio. Daí as várias

Esfera armiliar, 38,5 x 38,5 cm

24 | novembro DE 2012

A sabedoria do império lusitano era governar cada região de forma específica, flexibilizando o poder de acordo com as questões locais, dando poder em função das necessidades

formas de circulação da escrita ou os suportes de representação como a cartografia”, acrescenta a historiadora Leila Algranti, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Essa peculiaridade permitiu que, a partir do temático, fossem criados: a Biblioteca Digital de Cartografia Histórica (ver A mina dos mapas, edição 183 de Pesquisa FAPESP), o Laboratório de Estudos de Cartografia Histórica (LECH), e o Centro de Documentação sobre o Atlântico (Cenda). Para Laura, essa questão da escrita, antes ignorada, foi outro ponto alto do projeto ao revelar como se dava a comunicação entre as partes distantes do império, independentemente da invenção da imprensa. “Foi um processo de intensificação e difusão dos modos de coletar, organizar e preservar a informação escrita, ligados à formação da burocracia e do Estado moderno e ligados à sofisticação de formas de conhecimento e às novas maneiras de ascensão social de elementos ligados à escrita”, lembra Leila. “Em termos de Portugal e Brasil, é evidente que sem a comunicação por escrito seria praticamente inviável administrar o império. Além dos impressos, registros manuscritos de todo tipo (cartas, regulamentos, crônicas, gramáticas) desempenharam um papel fundamental na transmissão de ideias, valores, normas, costumes e saberes entre as metrópoles e suas colônias, bem como entre as diferentes possessões ultramarinas que integravam tais impérios coloniais”, observa Leila. Ao se expandir, o Império Português sentiu a necessidade de trocar informações com mais


rapidez. “As ordens que até então eram feitas oralmente começaram a ser feitas por escrito. As normas regulavam não só a administração, mas também outras esferas, no âmbito político e jurídico, envolvendo queixas ou denúncias”, continua Leila. Segundo ela, entender a colonização da América é captar as formas de comunicação entre conquistadores e conquistados, de integração e modificação entre o Velho e o Novo Mundo. “Essas novas análises nos levaram a ver, na base do império, uma relativização da presença metropolitana, o destaque do papel das elites coloniais e a especificidade e abrangência dos processos evangelizadores”, observa Laura. “Com isso, as questões econômicas e sociais de fundo, ou seja, a drenagem de riquezas e a constituição de sistemas de trabalho compulsório, em especial o escravismo, são relativizadas. Os sentidos e conteúdos do império lusitano ganham uma singularidade que nos obrigou a repensar sua essência e a como se inseriu na lógica capitalista de forma particular”, diz. Essa dinâmica colonial acabou por tornar o colonizador residente, antes ligado à soberania metropolitana, em força de autonomização. “Sua ação viabilizava o enraizamento de capital e a consecução de rotas comerciais que os tornavam independentes da metrópole”, fala Jobson. Não se podia explorar a colônia sem a fazer crescer, sem a desenvolver, levando a tensões sempre que o poder central, em Lisboa, fosse incapaz de atender às novas necessidades locais e travasse o crescimento.

imagens do livro O Tesouro dos Mapas - A cartografia na formação do Brasil

DECADêNCIA

Na própria essência da manutenção do império estavam as sementes da sua decadência. “Portugal foi uma engrenagem importante para a construção do capitalismo, em especial na etapa mercantil. Mas no capitalismo não é possível manter a hegemonia para sempre, pois a sua lógica é a dinâmica de migração do centro de acumulação”, explica Ana Paula Megiani. Nos séculos XVIII e XIX não se vê mais na Europa o afluxo da riqueza entre os ibéricos. “A crise do capitalismo mercantil determinou a crise do Império Português, mas se observarmos as dimensões cultural, religiosa e politica, a duração é outra”, afirma. “O impacto da colonização lusitana foi bem maior do que a sua estrutura governamental”, lembra Maxwell. “O ponto de inflexão do império foi no período pombalino, entre 1750 e 1777. O marquês deu muita força às elites locais e se percebeu que sempre que isso não ocorria havia conflitos”, observa Laura. Cada vez mais a antiga ideia da necessidade e possibilidade de um império luso-brasileiro vai esgarçando a noção de antigo sistema colonial. “Muitos desejavam descentralizar o

Meridionalis Americae Pars,

império e colocar o Brasil como centro, o que vai decompondo as relações entre metrópole e colônia, a ponto de não se poder mais falar de centro e periferia”, continua a pesquisadora. As elites locais ganham um status inédito. A vinda da família real em 1808 apressou o movimento, ao criar a estranha situação de uma colônia que também era a sede do império. “Os temores ante a autonomização dos grupos locais só aumentaram com a Revolução Francesa e o avanço de Napoleão, o que fez parte da elite portuguesa pensar seriamente essa mudança de papéis como a única forma de manter o Brasil”, diz Laura. Em 1822, o processo se consolidou. “Mas uma parte do antigo império só se libertou após um processo doloroso de guerras civis, como na África, em que forças externas entraram em campo, graças à recusa do regime salazarista de negociar”, lembra Maxwell. Essa intransigência, segundo o brasilianista, deixou poucas alternativas e nos anos 1970, quando o império na África acabou, restaram lutas da Guerra Fria e o apartheid da África do Sul, com Cuba, EUA e a ex-URSS estendendo seus conflitos nas antigas colônias portuguesas. Não havia mais como “essa terra seguir seu ideal/ Se transformar num imenso Portugal”, a bravata lusitana de Fado tropical, de Chico Buarque. n

Petrus Plancius c. 1592-1610 39,5 x 55,5 cm

Projeto Dimensões do Império Português – nº 2004/10367. Modalidade: Projeto Temático. Coordenadora: Laura de Mello e Souza – usp. Investimento: R$ 578.580,17 (FAPESP). PESQUISA FAPESP 201 | 25


Léo Ramos

José Marques de Melo 26 | novembro DE 2012


entrevista

A prima pobre das ciências sociais Mariluce Moura

O campo da pesquisa em comunicação tem pouco prestígio acadêmico no Brasil e José Marques de Melo, há 40 anos um dos maiores batalhadores por sua constituição no país, diz isso com todas as letras. Em parte, reconhece, isso guarda relação com as próprias dificuldades epistemológicas da área – afinal, um século depois de estabelecidas nos Estados

idade 69 anos especialidade Comunicação e jornalismo formação Universidade Católica de Pernambuco (graduação em jornalismo), Universidade Federal de Pernambuco (graduação em ciências jurídicas e sociais) e Universidade de São Paulo (doutorado) instituição Universidade Metodista de São Paulo

Unidos, essa especialidade, ciência, para alguns, pseudociência, para muitos, não conseguiu identificar claramente seu objeto. “Comunicação, na verdade, não é uma área autônoma de pesquisa. Como todas as ciências aplicadas, ela incorpora contribuições que vêm das demais ciências, das exatas e das humanas”, ele pondera. Nesta entrevista a Pesquisa FAPESP Marques fala sobre essa estranha e prolongada crise de identidade de um campo que reúne nada menos que 25 mil professores e 250 mil estudantes no país e a entremeia com sua própria trajetória profissional, que, a pesquisadores de outras áreas bem estabelecidas, pode soar extremamente ziguezagueante. Reflete sobre circunstâncias políticas que interferiram, para além do desejável, na universidade e na vida pessoal e relata algumas saborosas histórias de um brasileiro que transitou do sertão de Alagoas para a mais prestigiosa universidade brasileira. Em 1972, você era chefe do Departamento de Jornalismo da ECA (Escola de Comunicações e Artes). E trabalhava para constituir o campo da pesquisa em comunicação no Brasil. Gostaria que contasse esse começo. O cargo era de diretor do Departamento de Jornalismo da Escola de Comunicações Culturais, que depois se transformou na ECA. Considero-me um privilegiado porque tive a oportunidade de conviver com Luiz Beltrão, de fato o pioneiro PESQUISA FAPESP 201 | 27


da pesquisa científica de comunicação no Brasil. Quando ele fundou, em 1961, o curso de jornalismo na Universidade Católica de Pernambuco, estabeleceu um diferencial na formação de jornalistas no país, que foi exatamente introduzir a dimensão da pesquisa científica em paralelo à prática profissional. Você já era jornalista àquela altura? Sim, comecei minha trajetória em Alagoas, na Gazeta de Alagoas, depois no Jornal de Alagoas, dos Diários Associados. Fui um excelente jornalista do interior fazendo cobertura da minha cidade para o jornal da capital. Qual cidade? Eu nasci em Palmeira dos Índios, famosa por um de seus prefeitos [o escritor], Graciliano Ramos, mas vivia em Santana do Ipanema. Meu pai, negociante de produtos agrícolas, tinha sociedade com um empresário de transporte numa linha de ônibus entre Palmeira dos Índios, aonde chegava um trem, e Belmiro Gouveia, aonde chegava outro que vinha do São Francisco. Por um tempo ele viveu em Palmeira dos Índios, justamente no período em que minha mãe estava grávida de mim – sou o mais velho de quatro irmãos. Logo depois minha mãe se mudou para Santana do Ipanema. E para concluir a questão do começo no jornalismo: eu fazia a cobertura dos acontecimentos de Santana do Ipanema, aquelas coisas corriqueiras, casamento, eleição, briga política, Dia das Mães, problema na feira, o grupo escolar que está desabando. Vivia no dualismo entre narrar os fatos como as autoridades queriam ou como eu os via. A imprensa e o dever da verdade, de Rui Barbosa, virou minha bíblia.

Recife resignado, prestar vestibular para engenharia, como minha família queria. Mas eu não tinha condição de fazer engenharia, não dominava matemática, física e química. Resolvi fazer direito. Mas no dia em que saiu o resultado do vestibular no jornal o que mais me interessou foi uma pequena notícia ao lado que dizia que a Universidade Católica ia criar o curso de jornalismo. Não tive dúvida: deixei a comemoração dos vitoriosos do vestibular e fui à Católica perguntar onde era o curso de jornalismo. Lá estava um senhor que me atendeu, era o professor Luiz Beltrão [1918-1986]. Durante duas semanas estudei nas bibliotecas públicas de Recife, me preparei e passei também no vestibular de jornalismo. Enfim, resolvi estudar direito e jornalismo. Naquele

seis e ia para o curso de jornalismo. Era uma loucura. Você conta uma história curiosa ligada ao jornalismo especializado ali. Sim. Quando me formei, fui trabalhar na divisão de divulgação e editoração da Sudene, onde fazíamos revistas, boletins, jornais. Eram cinco ou seis jornalistas. Com Luiz Beltrão, um excelente professor, eu aprendera os fundamentos teóricos do jornalismo. E em dado período eu já tinha sido treinado para a prática diária em Recife, no jornal Última Hora, desmantelado em 1964. Ali aprendi jornalismo com Milton Coelho da Graça na base da pedagogia do grito. Antes, a certa altura, como tinha sido militante político, vinha da JUC [Juventude Universitária Católica], ligada à esquerda católica, e passei para a Juventude Comunista, ligada ao Partido Comunista, fui trabalhar com [o governador] Miguel Arraes. Tornei-me chefe de gabinete de seu secretário de Educação, Germano Coelho, quando estava no primeiro ano da faculdade ainda, com 20 anos. Depois fui trabalhar no Movimento de Cultura Popular e estava ali como diretor administrativo quando veio a debacle de 1964. Voltei para a Sudene e é aí que se dá esse caso que você lembrou: deparei com a tarefa de fazer uma reportagem sobre a economia nordestina. Os economistas da Sudene a abominaram, rasgaram e jogaram fora. No início fiquei muito abalado, mas depois refleti e vi que em parte tinham razão: não é possível fazer bom jornalismo especializado, econômico ou científico, por exemplo, desconhecendo o conteúdo. Porque há que se situar entre aquele que produziu o conhecimento e aquele que não sabe sobre este conhecimento.

Não é possível fazer bom jornalismo especializado desconhecendo o conteúdo

Sua família tinha algo contra você ser jornalista? Tinha tudo. Quando eu disse que ia fazer vestibular para jornalismo, meu pai disse que eu ia arrumar encrenca e observou, além disso, que curso superior de jornalismo só tinha em São Paulo e no Rio e ele não podia me custear no Sul. Fui para 28 | novembro DE 2012

momento a Sudene [Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste] estava se instalando e abrindo concurso para contratar pessoal. Fiz o concurso, passei e durante seis meses fiz um curso intensivo de oficial de administração dado pela Fundação Getúlio Vargas, com dois focos: economia nordestina e gestão nordestina. Os que tinham diploma universitário faziam o curso de técnico do desenvolvimento econômico, coordenado por um ilustre baiano, Nailton Santos, irmão do geógrafo Milton Santos. E no final do intensivo tive o privilégio de ser destacado para trabalhar no gabinete do superintendente, Celso Furtado. Eu estudava direito pela manhã, entrava na Sudene ao meio-dia e ficava até as

Quando decidiu mudar para São Paulo? Depois que superei problemas de prisão, IPM [Inquérito Policial Militar] etc., porque fizera parte do governo Arraes, voltei para a faculdade e me formei. Naquele primeiro momento da ditadura, quem era da intelectualidade logo era solto, mas ficavam incomodando. Em todo in-


quérito no Recife eu era envolvido, de tal maneira que não tinha condição de viver lá. Antes de me mudar para São Paulo tive a sorte de ganhar uma menção honrosa no Prêmio Esso, o que me deu certa notoriedade em Recife. Aí consegui uma bolsa de estudos da Unesco, respaldada por Luiz Beltrão, e fui fazer o curso de pós-graduação em jornalismo que havia no Ciespal [Centro Internacional de Estudios de Periodismo]. Fiquei seis meses em Quito, Equador. Já em São Paulo, qual foi sua primeira atividade profissional? Cheguei em julho de 1966 e fui à luta. Fiz teste na Editora Abril e passei na revista Realidade. Mas um amigo me sugeriu trabalhar em publicidade, na qual ganharia muito mais e terminei no Inese [Instituto Nacional de Estudos Sociais e Econômicos], com o dobro do salário que ganharia na Abril. Ocorre também que eu começara uma experiência docente em Pernambuco quando Luiz Beltrão fora para a Universidade de Brasília [UnB] assumir a direção da Escola de Comunicação e me passou suas aulas. Por seis meses fui professor e gostei da experiência. Ao chegar aqui, tomei conhecimento da criação da Escola de Comunicações Culturais da USP. Soube que estavam buscando professores e fui ao diretor, o professor Julio García Morejón, um espanhol, titular da cadeira de língua e literatura espanhola. Ele me entrevistou e sugeriu que me inscrevesse para o concurso.

jornalismo e integrante de um grupo ideo­ logicamente não radical, que envolvia os professores Antonio Candido e Antônio Soares Amora, entre outros. Quem rejeitava era sobretudo um pessoal conservador ligado à educação, como Roque Spencer Maciel de Barros e Laerte Ramos de Carvalho. Passei no primeiro concurso e fui contratado só algum tempo depois. A essa altura, o conceito de comunicação se desenvolvia no Brasil. Não, isso só acontecerá nos anos 1970. Um marco seriam os seminários de Wilbur Schramm e Daniel Lerner, organizados em 1970 pela UnB, com apoio da embaixada americana. Mas desde o final dos anos 1960 já se estudavam os

Foi Gilberto Freyre quem leu e difundiu no Brasil o primeiro e pouco conhecido livro de McLuhan

Existia então uma oposição da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas à criação da Escola de Comunicação? A Faculdade de Filosofia deveria ter recebido essa nova área do conhecimento, mas havia um grupo que não queria isso. Então, a mulher do reitor Luís Antonio da Gama e Silva, dona Edi Pimenta da Gama e Silva, convenceu o marido a criar a Escola de Comunicações Culturais. Ele criou uma comissão e chamou alguns professores da Faculdade de Filosofia para essa comissão que estruturou a escola. Dela fazia parte Morejón, então um jovem muito empreendedor, da ala favorável ao

trabalhos de Marshall McLuhan, não? Não, McLuhan só chega em 1970, via Recife, com as primeiras leituras de Gilberto Freyre e Luiz Beltrão. Freyre, que vinha usando a imprensa como fonte de pesquisa, leu e difundiu o primeiro livro de McLuhan, pouco conhecido no Brasil, The mechanical bride: folklore of industrial man, que igualmente se valia de jornais e revistas, considerado material de terceira classe, como fonte de estudos. E Luiz Beltrão leu e difundiu A galáxia de Gutemberg. Depois viria O meio é a mensagem. Quem vai difundir McLuhan no Sul, como os nordestinos se referem ao Brasil abaixo do Rio de Janeiro, é Anísio Teixeira, que prefacia A galáxia de Gutemberg, e Décio Pignatari, que traduz Os

meios de comunicação como extensões do homem, já no fim dos anos 1970. Mas voltemos a seu trabalho na ECA. Minha ida à USP foi precedida pela entrada na Cásper Líbero. Quando a ECA começou em 1967, começava também a famosa greve dos excedentes. Então recebi um convite da Cásper, que estava implantando a cadeira de teoria da comunicação, posteriormente fundamentos científicos da comunicação. Foi aí que propus ao diretor criar um Centro de Pesquisa da Comunicação Social. Você tinha ali a noção clara de que trabalhava por um novo campo de pesquisa. O fundador do campo de pesquisa em comunicação no Brasil é Luiz Beltrão, em Recife. Ao criar em 1963 o Instituto de Ciência da Informação, ele logo começou a desenvolver estudos dos meios de comunicação. Rea­ lizei lá, sob orientação dele, um trabalho de iniciação científica sobre o noticiário policial na imprensa nordestina, com análise de conteúdo, medições etc. Depois fiz a pós-graduação no Ciespal e fui aluno de Bruce Westley, Malcolm Maclean e Joffre Dumazedier. Já lera os trabalhos de Wilbur Schramm e Daniel Lerner, autores fundamentais para a comunicação. Tinha, portanto, essa noção do campo e da necessidade de expandi-lo. Acho importante sempre destacar que Beltrão fez uma introdução importante no Recife e difundiu isso para o Brasil inteiro. Foi ele quem criou a primeira revista científica da área, Comunicações e Problemas. Então, crio o centro da Cásper Líbero e começo a desenvolver uma série de pesquisas que repercutem mal na academia. Por quê? Por preconceito em relação ao objeto. Formei várias equipes, por exemplo, uma que estudava o conteúdo das histórias em quadrinhos e perguntavam: “Mas histórias em quadrinhos? Só tem porcaria...”. Fiz um grupo sobre o Diário de S. Paulo, pois estudamos todos os jornais em circulação. Mas a pesquisa que pior repercutiu foi sobre telenovelas. PESQUISA FAPESP 201 | 29


Mas a linha de pesquisa de telenovelas logo se tornaria uma tradição na ECA. Não, isso só aconteceu nos anos 1990. Quando fui diretor da Escola, verifiquei que o curso de rádio e televisão ensinava tudo, menos telenovela, o principal produto de exportação de nossa indústria cultural. Criei, por portaria, o Núcleo de Estudo de Telenovela, tentei obter recursos para ele em todas as fundações da USP e não consegui. Em 1967, você fundou o centro da Cásper. E quando passou a ensinar na USP? Em maio de 1967. Foram contratados três professores inicialmente para o jornalismo: Flávio Galvão, um jornalista de O Estado de S. Paulo, José Freitas Nobre, que era advogado, e eu, com a incumbência de chefiar os dois, porque tinha uma pós-graduação e podia ficar em tempo integral na USP. Foi aí que tive que fazer uma opção. Entre a Cásper e a USP? Não, entre a riqueza e a pobreza. Ganhava muito bem no Inese e fui ganhar a metade na USP. Aí fiquei, primeiro, de 1967 a 1974. Até 1972 trabalhei implantando o Departamento de Jornalismo e Editoração e desenvolvi uma série de atividades, com pesquisa e profissionalização conjugadas. Mas o ano de 1972 marcou minha vida porque fui descoberto pelos serviços de inteligência e, quando terminou a 4ª Semana de Estudos Jornalísticos, fui processado pelo decreto-lei 477 [versava sobre punições, inclusive expulsão de estudantes e demissão de professores e funcionários acusados de atividades subversivas na universidade]. O motivo do meu inquérito foi uma apostila que eu havia feito em 1968, chamada “Técnica do lide” e que circulara no país inteiro. Eu dava minhas aulas de jornalismo como os professores americanos: lide, conceitos etc., depois vinha a parte prática, os alunos iam aos jornais investigar essas coisas. Uma dessas aulas do lide [lead, no original inglês, parágrafo de abertura de uma notícia que, classicamente, deve informar ao leitor o que, como, quando onde e porque aconteceu aquilo que é

o motivo daquele texto] foi dada no dia seguinte à morte do estudante Edson Luís [o primeiro estudante morto pela ditadura de 1964, em 28 de março de 1968], no Calabouço [o restaurante universitário do Rio de Janeiro]. Os alunos fizeram a parte prática do lide em cima daqueles fatos do dia. Esse material entrou na apostila que chegou até no exterior, coisa que eu desconhecia. Meu inquérito foi um negócio kafkiano. A publicação logo foi tirada de circulação na ECA e eu fui condenado. A comissão que me processou aqui na USP, com o então reitor Miguel Reale, recomendou que eu fosse demitido e impedido de lecionar no país por cinco anos. Foi um episódio dramático, mas não acuso ninguém, falo no Reale porque era ele a autoridade.

fevereiro de 1973 e me tornei o primeiro doutor em jornalismo no Brasil, o que naturalmente virou notícia. Isso irritou profundamente as autoridades da USP e os serviços de segurança. A essa altura a ECA já estava sob intervenção militar, fora nomeado um interventor, Manuel Nunes Dias, que era agente da repressão e, quando minha banca foi designada, ele disse que queria entrar. A banca foi composta por meu orientador, Rolando Morel Pinto, Antônio Soares Amora, Julio García Morejón, Virgílio Noya Pinto e este Nunes Dias, em relação ao qual eu não deveria reagir, por recomendação de meu orientador. Ele destroçou a tese. Basicamente dizia que eu estava citando marxistas e a bronca maior era com [o historiador] Nelson Werneck Sodré. No final, todos me deram 10, menos o interventor. Mas a perseguição na universidade era tanta que me aconselharam a sair do país. Pedi à FAPESP uma bolsa de pós-doutorado, obtive e fui para os Estados Unidos. Fiquei um ano lá.

Uma apostila com exercícios sobre o lide tratando da morte de Edson Luís serviu de pretexto ao IPM

30 | novembro DE 2012

Havia um esquema montado na reitoria, os órgãos de segurança estavam lá dentro. O processo correu o ano inteiro. A USP finalmente me condenou e enviou o processo para o Ministério da Educação, porque o ministro tinha de homologar o resultado. O ministro Jarbas Passarinho disse que não ia punir esse caso porque se via que o autor não era um terrorista e o decreto destinava-se a combater terroristas. Ele me absolveu, mas a estrutura da universidade não assimilou, criou uma reação. Fui proibido de sair do país, fui afastado da chefia do departamento e fiquei só como professor. Então decidi me dedicar inteiramente à minha tese de doutorado. Inscrevi a tese em dezembro de 1972, defendi em

E qual foi o seu foco? Como a pós-graduação no Brasil estava mudando, fui observar como funcionava a pós-graduação, em especial no jornalismo. Quando voltei, o relatório foi aprovado pela FAPESP. Mas a USP não queria nem saber, fui demitido. Só depois soube das circunstâncias: o comandante do II Exército mandara uma instrução para a USP demitir os comunistas mais notórios. Marilena Chauí era a primeira da lista, depois vinha Paulo Emilio Salles Gomes. Fui demitido sumariamente, sem direito a indenização, sem qualquer explicação. E só voltei com a Anistia, em 1979. Como você sobreviveu nesse período? Tive vários convites para sair do país­, mas Silvia [sua mulher] não queria. Fui dar aula em outras faculdades, com muita dificuldade porque os órgãos de segurança diziam sempre que eu não podia. A Igreja Metodista estava instalando uma faculdade de comunicação em São Paulo e um dos pastores que eu já conhecia de Recife me chamou para trabalhar lá. Fui e três meses depois prepostos


dos órgãos de segurança foram fazer pressão sobre o reitor. Ele mandou que se colocassem dali para fora, porque ali era uma casa de Deus, onde trabalhava quem ele queria. E quem era esse reitor valente? Chamava-se Benedito de Paula Bittencourt, era membro do Conselho Federal de Educação. Ele mandou me chamar e me tranquilizou. Eu prometi levar para ele os dois livros que tinha escrito, pedi que lesse e lhe assegurei que pediria demissão se ele achasse que tinha algo comprometedor. Dois meses depois ele me chamou e disse que não havia problema nenhum, eu apenas não deveria fazer proselitismo em sala de aula. Foi então na Metodista que sobrevivi, pude trabalhar e, em seguida, instalei a pós-graduação. Montei um corpo docente com um pessoal que vinha do exterior, acolhi professores como Fernando Perrone, que estava exilado na França, Paulo José, exilado no Canadá, e logo a pós da Metodista foi considerada curso top pela Capes [Coordenação de Aperfeiçoa­ mento de Pessoal­de Nível Superior]. Ficou reconhecido no país inteiro. Criei a revista Comunicação e Sociedade, mais ou menos uma sucessora da revista do Beltrão, que circulou de 1967 até, se não me engano, fins de 1970. Mas teve outras publicações da área. A ECA mesmo tinha a Revista da Escola de Comunicações Culturais, o Jornal do Brasil tinha os Cadernos de Jornalismo.

Você foi carregando sua experiência de uma instituição para outra, não? Sim, trouxe de Recife para a USP, por exemplo, toda a experimentação com jornais que Beltrão fazia, mas com uma vantagem: a riqueza. Aqui era possível ter o jornal-laboratório, em vez do jornal-cobaia, dissecando os jornais existentes e fazendo uma proposta sobre como fazê-los melhor. Aliás, a primeira tarefa que recebi de Morejón foi exatamente instalar um jornal-laboratório. Apresentei um projeto, montei a estrutura e começamos a importar o equipamento. Enquanto a oficina gráfica não chegava, usávamos serviços particulares, não dava para editar nada em outras instituições da USP por causa da censura. Nossa primeira experiência prática foi

A revista Comunicação e Sociedade sucedeu a publicação criada por Luiz Beltrão

Como você conciliou suas várias frentes de trabalho nessa fase? Fiz um grande malabarismo. As primeiras pesquisas feitas na Cásper publiquei no livro Comunicação social – Teoria e pesquisa, o primeiro best-seller da comunicação no Brasil. Cheguei a vender 20 mil exemplares, seis edições sucessivas, e isso só não prosseguiu porque depois de algum tempo a parte empírica das pesquisas estava defasada e eu pedi para suspender. Fiquei de reescrever, mas nunca reescrevi nenhum livro. Escrevi mais de 20 livros, perdi a conta, e tem uns 70 que organizei ou coordenei.

sugestão de Freitas Nobre: fizemos um Seminário Internacional sobre Pesquisa em Rádio e Televisão, em maio de 1968 e convidamos algumas personalidades para vir falar sobre a pesquisa em mídia, entre elas Edgar Morin, Roberto Rosselini e Andres Guevara. Só que esquecemos de fazer o timming com o movimento de maio de 1968. Quando essa turma chegou na ECA, os alunos não a deixaram entrar. Estavam em greve, ocupando o prédio da escola. A Unesco tinha investido muito, o Itamaraty também e ficamos naquele impasse. Mas Lupe Cotrim, que era muito querida entre os estudantes, decidiu ir se entender com eles. Argumentou que não se tratava de aula, que teriam a oportunidade de ouvir discursos alternativos

e até poderiam montar uma agência de notícias. Então, a primeira experiência laboratorial da ECA foi a agência universitária de notícias. Os alunos faziam a cobertura do seminário e elaboravam um boletim diário que ia para a imprensa do Brasil inteiro. E as experiências de pesquisa na USP? Criei um Centro de Pesquisa em Jornalismo para analisar o jornalismo em geral, jornais de bairro etc. A grande dificuldade que tínhamos originalmente era a falta de um corpo docente em tempo integral, os jornalistas não queriam se dedicar somente a ensino e pesquisa. Mas pouco a pouco fomos formando uma geração voltada a ensino, pesquisa e extensão. Nesta última, por exemplo, tínhamos contratado dois professores, o de diagramação e o de fotojornalismo. O primeiro era Hélcio Deslandes, grande capista, arquiteto e artista plástico que vinha da área de publicidade. Ele ensinava os alunos a fazerem uma diagramação sintonizada com as melhores tendências da época, e quem olhar os jornais-laboratório da ECA no período verá coisas belíssimas. E o de fotojornalismo? Era Thomaz Farkas, formado engenheiro eletrônico na Poli, mas fotógrafo apaixonado por cinema, dono da Fototica. Ele dava aula mandando os alunos, primeiro, irem à feira de Pinheiros ou a algum outro lugar fotografar e, na volta, dava as aulas teóricas – o que era muito mal visto na época. Queriam que eu cortasse seu ponto. Até que Farkas desapareceu. Tinha sido preso. Eu, chefe de departamento, tinha que dar um atestado informando que ele não havia comparecido ao trabalho. Mas mostrei o ponto assinado, porque fizemos um rodízio de professores e cada dia um dava aula no lugar dele. E foi assim até que o Farkas foi solto. Além de professor, ele foi um benemérito da ECA. Deu de presente o “projeto” do laboratório, cuja aquisição foi feita pela universidade, cabendo-lhe também a implantação desse tipo de iniciativa. No final, fomos cinco professores cassados no Departamento de Jornalismo: Freitas Nobre, Farkas, Jair Borin, Sinval Medina e eu. PESQUISA FAPESP 201 | 31


Quando você voltou para a ECA? Voltei em 1979, com a Lei da Anistia. O departamento estava destruído. O último dos nossos professores a ser vitimado foi Vladimir Herzog, contratado havia pouco para dar telejornalismo, quando foi morto. Nosso retorno não foi tranquilo. O corpo docente foi mudado durante o mandato de Manuel Nunes Dias e, se não fosse o movimento de alguns professores pela volta dos cassados, não teríamos retornado. [José] Goldemberg já era o reitor e nos recontratou. Mas como no Diário Oficial só se publicara que nosso contrato tinha sido encerrado, não que fôramos cassados, tive que fazer de novo toda a carreira. Alguns anos depois recuperei o salário de professor titular. Fiquei até 1993, quando me aposentei. Minha trajetória nesse período foi, acima de tudo, reconstruir o Departamento de Jornalismo. Também repeti as “semanas de jornalismo” e a primeira foi sobre Marx e o jornalismo, pauta dos estudantes. Lembro que na primeira Semana de Jornalismo, em 1969, debatemos sensacionalismo e foi um grande mal-estar tratar desse tema na USP. Levamos Romão Gomes Portão, editor do Última Hora, um editor do Notícias Populares, Talma de Oliveira, que dramatizava notícias no rádio e assim por diante. Mas também levamos Alberto Dines e um ainda desconhecido frei Evaristo, frade franciscano que trabalhava no Carandiru, com a Pastoral Carcerária. No último dia iam falar da visão ética do jornalismo sensacionalista, chegaram todos os convidados, menos o frei. Decidimos dar início sem ele, mas aí da plateia o frei levantou a mão, apresentando-se: Paulo Evaristo Arns. Ele já era bispo auxiliar de São Paulo e eu não sabia. Dois meses depois foi nomeado arcebispo e cardeal. Foi depois desta “semana” que circulou pela primeira vez o Jornal do Campus.

soal que tinha duplo salário, publicou e causou a maior celeuma. Chamaram-me na reitoria e avisaram que iam tirar o subsídio do jornal. A universidade criou o Jornal da USP para substitui-lo. Na ocasião até banquei, porque era chefe de departamento e tenho que defender a liberdade de imprensa. Mas hoje, olhando bem, sei que se tivessem pesquisado mais teriam visto que não era ilegal. Era o chamado adicional noturno. Todos que davam aula num só turno e passaram a dá-las à noite tiveram o salário dobrado. Quando você voltou à Metodista? Depois de me aposentar recebi um convite para montar a Cátedra Unesco no Brasil. A Metodista já me convidara para implantar o doutorado. Então fui para

Os jornalistas não queriam se dedicar em tempo integral a ensino e pesquisa

E o Jornal do Campus permaneceu até quando? Até quando publicou uma matéria sob o título “Os marajás da USP”. Bernardo Kucinski assumira a chefia de redação, descobriu a folha de pagamento do pes32 | novembro DE 2012

implantar o doutorado em comunicação e levei a cátedra. Dediquei-me a isso desde então. Quero me aposentar no próximo ano, quando completo 70 anos e quero ter tempo livre para escrever. Que balanço você faz da pesquisa em comunicação no Brasil hoje? Na verdade, sou muito crítico. É um campo que cresceu muito, em 2013 vamos completar 50 anos de atuação e já somos o segundo país em número de pesquisas – à nossa frente só estão os Estados Unidos, que têm uma tradição de 100 anos. Temos recursos, temos 250 mil estudantes, 25 mil professores e muitos doutores. Nossa presença nos congressos internacionais é marcante, somos o se-

gundo no ranking de papers selecionados para o principal evento internacional de nossa área, a International Association for Media and Communication Research (IAMCR), mas a pesquisa brasileira não consegue deslanchar no sentido de liderança. Por quê? A primeira razão é não termos autoestima intelectual. O campo ainda não tem identidade própria, trabalha com objetos cada vez mais perto de uma identidade, mas falta assumir isso. E são poucos os pesquisadores brasileiros que se preocupam com essa questão, como Muniz Sodré e Maria Immacolata Vassalo Lopes. Comunicação não é uma área autônoma de pesquisa. Como todas as ciências aplicadas, ela incorpora contribuições que vêm das demais ciências, das exatas e das humanas. Há quem defenda, como Muniz Sodré, que o objeto dessa ciência, digamos assim, é a relação comunicacional. Há várias teorias sobre isso e eu entendo que o objeto é um pouco mais amplo que a mera relação. O campo tem, institucionalmente, duas divisões: a comunicação interpessoal, que vem da retórica, da psicologia, do comportamento, da educação; e a comunicação de massa, que tem uma tradição basicamente jornalística, depois se amplia para a publicidade e as relações públicas. Nos Estados Unidos o campo é bifurcado: tem a Associação para a Educação em Jornalismo e Comunicação de Massa e a Associação Norte-americana de Comunicação, que envolve retórica, linguagens, comunicação interpessoal, argumentação... O esforço que grupos como o da Universidade Federal da Bahia (UFBA) fazem para articular comunicação e cultura também é uma busca de identidade? Temos várias maneiras de criar identidade que não pelo objeto. Os estudos de cultura procuram se desvencilhar do objeto comunicação de massa em busca de algo um pouco mais nobre. Mas a parca autoestima que você atribui aos pesquisadores da comunicação decorre dessa dúvida sobre objeto ou do escasso reconhecimento acadêmico?


Penso que do pequeno reconhecimento acadêmico. Meu diagnóstico é que a comunicação continua sendo o primo pobre das humanidades e das ciências sociais aplicadas aqui no Brasil porque temos sempre uma associação desqualificando a outra, quando devíamos estar unidos, brigando por recursos para todo o campo, e não para segmentos. Mas, para além dos problemas institucionais, há profundas divisões teóricas. Acho que o problema é mais taxionômico do que teórico. Não há muito avanço no Brasil em teoria da comunicação. Vários programas de pós quase se inviabilizaram por insuficiência de pontuação na Capes. Como isso está? Esse problema ainda não está resolvido, tanto que a área de comunicação não tem interface internacional. Houve, em minha maneira de ver, uma tentativa das regiões emergentes, lideradas pela Bahia, de assumir uma posição de liderança nacional em contraposição aos dois maiores polos de pesquisa, São Paulo e Rio de Janeiro. O pessoal da Bahia é muito sério, tem gente muito boa, mas faltou compreensão histórica para o problema. A ECA e a ECO [Escola de Comunicações] foram escolas que formaram quase toda a geração de pesquisadores de comunicação em atuação no país, mas foram se agigantando e perdendo as características que correspondem às exigências das agências de fomento. Quando fui diretor da ECA, empreendi um movimento de desconcentração da pós-graduação, que tinha então mil alunos. Baixamos o número para selecionar mais, procuramos subdividir essa pós-graduação em vários programas, mas infelizmente isso não prosperou. Agora está começando a voltar o projeto que estabelecemos no começo dos anos 1990, quando implantamos pós-graduação em cinema, em biblioteconomia, de modo semelhante ao que se tinha nas artes, em que teatro, artes plásticas e música eram e são projetos separados, cada um com sua identidade. Mas só uma reorganização nesses moldes pode prosperar, porque comunicação é tudo e não é nada.

Afora os brasileiros que você já citou ao longo da entrevista, quem são os teóricos da comunicação de sua preferência? Não sei se posso falar em predileção, porque tenho sempre a ambição de ter independência filosófica. Meus autores preferidos nesses anos todos têm sido Raymond Nixon e Fernand Terrou. Alguns companheiros de geração com quem tive muita afinidade foram Herbert Schiller e George Gerbner, nos Estados Unidos, e, entre os franceses, Bernard Miege. E como são suas relações com Barbero? São boas relações, mas não tão íntimas. Sou muito avesso a culto às personalidades. Acho que Barbero é um pesquisador de grande valor, mas cultuado a ponto de

Devemos assumir que o campo da comunicação ainda não tem identidade própria ele próprio se sentir mal em relação a isso. Tenho promovido na Cátedra Unesco uma série de seminários para projetar o pensamento latino-americano. Comecei com Luis Ramiro Beltrán, que é o pai das políticas nacionais de comunicação, depois Jesús Martin-Barbero, com a teo­ ria das mediações, Eliseo Verón... Tenho trazido todas essas pessoas porque acho que os jovens precisam conhecer as diferentes tendências de um campo. Como é a relação entre suas visões da comunicação em geral e o campo do jornalismo científico? A comunicação só tem sentido quando serve para construir alguma coisa. Então jornalismo é fundamental para

compreender o que acontece no mundo contemporâneo e o que ocorre ao redor do ser humano, na comunidade e na sociedade. O jornalismo científico em particular é um campo fundamental porque é um campo da democratização do conhecimento. É onde o jornalismo se põe como uma forma de conhecimento. Qual foi sua maior contribuição ao campo da comunicação no Brasil? Aquilo a que venho me dedicando há quase 50 anos, com muita atenção, são os gêneros jornalísticos. Tenho uma proposta de classificação dos gêneros no país em cinco vertentes: informativo, opinativo, interpretativo, utilitário ou de serviços e o diversional, que, equivocadamente em minha opinião, chamam de jornalismo literário. Vivemos numa sociedade onde o hedonismo predomina e os jornalistas precisam fazer algum tipo de matéria que seja mais atraente para o cidadão comum, que não sejam só os fatos do cotidiano, daí o jornalismo diversional. Meu texto mais antigo nesse sentido é minha tese de livre-docência na USP, inicialmente publicada como Opinião no jornalismo brasileiro, depois republicada com algumas alterações, como Jornalismo opinativo, no qual basicamente estudei só os textos opinativos. E estou escrevendo um livro, que não sei se vou concluir, sobre os gêneros jornalísticos no Brasil. É uma tarefa hercúlea, fiz só 30% e precisaria agora parar para pesquisar. Eu quero partir de Hipólito da Costa e chegar ao jornalismo de hoje. Quero passar pela imprensa do século XIX quando ela começa a se tornar empresarial à imprensa do século XX, já industrial, e chegar à imprensa de hoje. Esse livro carrega, então, a ambição da grande história do jornalismo no Brasil. Quando entreguei meu projeto de tempo integral na USP, apresentei meu projeto de desenvolvimento do jornalismo no Brasil. E minha tese de doutorado já era sobre as razões pelas quais a imprensa se retardou no Brasil. Venho trabalhando nisso há anos. n PESQUISA FAPESP 201 | 33


política c&T  Acesso aberto y

Conhecimento

livre

Iniciativa do Reino Unido vai mostrar até que ponto é viável oferecer toda a produção científica na internet Fabrício Marques

A escalada das revistas gratuitas Número de publicações no Diretório de Revistas de Acesso Aberto (Doaj) 8.000

Impactos da internet na ciência 6.000

1996 A Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos cria o Medline, o mais abrangente índice de literatura médica do planeta, disponível de graça na web

1997 A FAPESP lança o programa SciELO. A iniciativa hoje disponibiliza 239 publicações e gera 36 milhões de artigos baixados por mês gratuitamente

1999 É rebatizado de arXiv o mais popular arquivo de preprints de artigos científicos criado em 1991. Hoje reúne 745 mil textos em matemática, física e computação, entre outros

2001 É deflagrada a Iniciativa de Acesso Aberto de Budapeste, campanha mundial que propôs o acesso aberto a todas as novas publicações científicas revisadas por pares

2003 É lançada a PLoS Biology, primeira das sete publicações mantidas pela Public Library of Science (PLoS), organização criada para estimular o acesso aberto 2004 O Google lança o Google Scholar, ferramenta que permite pesquisar artigos científicos, trabalhos acadêmicos e publicações de universidades

4.000

2.000

Número de publicações 1993

1994

34  z  Novembro DE 2012

1995

1996

1997

1998

1999

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006


P

ilustrações larissa ribeiro

esquisadores de várias áreas do conhecimento, bibliotecários e especialistas em ciência da informação reuniram-se no final de outubro em eventos realizados em mais de uma centena de países para discutir os rumos do acesso aberto, expressão que engloba um conjunto de estratégias para difundir a produção científica de forma livre e gratuita por meio da internet. As discussões da 6ª Semana do Acesso Aberto, iniciativa de uma aliança internacional de bibliotecas universitárias, abordaram temas como a influência das plataformas digitais no modo de fazer ciência, mas também foram marcadas por um avanço alcançado recentemente. Em julho, um anúncio feito pelo governo do Reino Unido estabeleceu que, a partir de 2014, todos os artigos científicos que resultarem de pesquisa financiada com recursos públicos deverão estar disponíveis gratuitamente em meios eletrônicos. Significa dizer que ninguém terá de pagar para ter acesso a papers de pesquisadores britânicos financiados por agências governamentais. A iniciativa do Reino Unido é um marco pela magnitude da produção científica do país: quase 8% de todos os artigos publicados no mundo por ano, segundo a base de dados Thomson Reuters. A experiência poderá alterar padrões internacionais para o acesso aberto, que hoje é dividido em duas vertentes principais. Uma delas é a chamada “via dourada” (golden road), em que as próprias revistas oferecem o acesso gratuito a seu

2012 Reino Unido anuncia que todos os papers vinculados a pesquisas financiadas com verba pública serão disponibilizados gratuitamente a partir de 2014

2008 Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH) estabelecem que a base de dados PubMed deve receber cópias de todos artigos ligados a pesquisas financiadas pela agência

Fontes The Development of Open Access Journal Publishing from 1993 to 2009. PLoS ONE (2011)/ DOAJ

2007

2008

2009

2010

2011

2012

ranking dos países Número de revistas com acesso aberto em 2012

Estados Unidos

1.260

Brasil

782

Reino Unido

573

Índia

446

Espanha

423

Egito

340

Alemanha

256

Canadá

247

Romênia

241

Itália

223

Turquia

203

Colômbia

191

França

165

Irã

159

Polônia

141

fonte DOAJ / Outubro de 2012

pESQUISA FAPESP 201  z  35


Os níveis de abertura Diferentes modelos convivem na comunicação científica

Direitos do leitor

Direitos autorais

Direitos de divulgação

Acesso livre logo após a publicação

Autor detém direitos autorais, sem restrições

Autor pode divulgar qualquer versão para qualquer repositório ou site

As revistas disponibilizam cópias dos artigos automaticamente para repositórios de sua confiança

Acesso livre após embargo de seis meses

Autor detém direitos autorais, com algumas restrições na reutilização da versão publicada

Autor pode divulgar a versão final do manuscrito para qualquer repositório ou site

As revistas disponibilizam cópias dos artigos automaticamente para repositórios de sua confiança após seis meses

Acesso livre após embargo de 12 meses

Autor detém direitos autorais, com várias restrições na reutilização da versão publicada

Autor pode divulgar a versão final apenas para certos repositórios ou sites

As revistas disponibilizam cópias dos artigos automaticamente para repositórios de sua confiança após 12 meses

Acesso livre para alguns artigos, mas não todos (modelo híbrido)

O editor detém os direitos, com algumas concessões para o autor

Autor pode divulgar apenas o rascunho da versão final para certos repositórios ou sites

As revistas não disponibilizam cópias dos artigos automaticamente para repositórios

Assinaturas e outras formas de pagamento são exigidas para a leitura

O editor detém os direitos com exclusividade

Autor não pode depositar nenhuma versão do trabalho em repositórios

As revistas não permitem a divulgação de artigos repositórios

conteúdo. São típicas dessa estratégia as revistas da Public Library of Science (PLoS) ou a coleção de periódicos da biblioteca SciELO Brasil, um programa financiado pela FAPESP. A segunda vertente é conhecida como “via verde” (green road). Nessa modalidade, o pesquisador arquiva no banco de dados de sua instituição uma cópia de seus artigos científicos publicados numa revista comercial. Quem quiser ler o artigo sem pagar pode recorrer a esses repositórios. Surgiram outras variantes. Algumas publicações permitem que os autores depositem cópias de seus artigos em repositórios, mas exigem que a divulgação só seja feita de seis meses a um ano após a publicação, para preservar seus ganhos nesse período inicial. Outras abrem mão do embargo e divulgam artigos na internet até mesmo antes da publicação da revista em papel – mas cobram uma taxa adicional do autor para fazer a divulgação livre e antecipada. O modelo foi batizado de acesso aberto híbrido, pois as publi36  z  Novembro DE 2012

Divulgação automática

cações divulgam tanto artigos em acesso aberto, num esquema típico da via dourada, como papers no modelo convencional, exigindo dos leitores o pagamento de taxas ou assinaturas. Atualmente, mais de 20% dos resultados de pesquisa no mundo são publicados em regime de acesso aberto – no Reino Unido esse quinhão chega a 35%. O padrão da via verde é mais comum: com exceção da área médica, há mais artigos disponíveis em repositórios do que em revistas de acesso aberto (ver quadro na página 38). A iniciativa do Reino Unido pode, contudo, mudar essa tendência. O Comitê Finch, que propôs estratégias para a comunicação científica britânica, sugeriu prioridade na adoção da via dourada, pagando mais para que as revistas divulguem os artigos em acesso aberto. Com isso, os repositórios institucionais da via verde, que são bastante usados pelos pesquisadores britânicos, poderiam enfraquecer seu papel de divulgadores da ciência publicada em revistas comerciais.


Embora os Conselhos de Pesquisa do Reino Unido (RCUK) tenham afirmado que não vão abandonar os repositórios, a expectativa é de que as editoras apostem fortemente num modelo híbrido para os artigos britânicos. “As revistas certamente vão ampliar a duração do embargo para divulgação de artigos em repositórios e, assim, forçar os autores a pagarem mais para publicar em acesso aberto”, disse Stevan Harnad, pesquisador húngaro radicado no Canadá, que é editor de revistas científicas e ativista do movimento do acesso aberto. Se esse caminho de fato vingar, exigirá mais investimentos de autores e de suas instituições para publicar seus artigos, produzindo um efeito contrário ao proposto pelo acesso aberto, que busca simplificar e baratear a difusão da produção científica com a ajuda dos meios digitais. Segundo o relatório do Comitê Finch, a estratégia da via dourada vai demandar investimentos adicionais entre £ 40 milhões e £ 50 milhões por ano, dos quais £ 38 milhões seriam destinados ao pagamento de taxas de publicação em acesso aberto. “Fazer uma transição para a via dourada vai gerar mais gastos que deveriam ser evitados”, afirmou Peter Suber, diretor do Programa de Acesso Aberto da Universidade Harvard e pesquisador da Sparc, aliança de bibliotecas que coordenou a 6ª Semana do Acesso Aberto.

P

ara Rogério Meneghini, coordenador científico da biblioteca SciELO Brasil, os próximos passos desse embate forçosamente abordarão o patamar de lucros das grandes editoras. “As editoras fazem um trabalho benfeito que exige investimentos tanto em tecnologia como na avaliação por pares e precisa ser rentável. Mas os lucros dessas empresas, na casa dos 30% a 40%, são desproporcionais”, afirma. “Tem agora de haver uma negociação para definir quem vai pagar a conta e garantir que os custos, necessários para manter a qualidade das publicações, sejam assimiláveis pelas universidades e os autores”, explica. Um round do embate entre editoras e cientistas

aconteceu em fevereiro. A editora Elsevier, que publica mais de 2 mil periódicos, foi criticada por apoiar um projeto no Senado norte-americano que buscava reverter a política criada em 2008 pelos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) pela qual toda pesquisa apoiada pela instituição passou a ser oferecida em acesso aberto. Cientistas de prestígio, entre os quais três matemáticos ganhadores da Medalha Fields, convocaram um boicote às revistas da editora, que acabou recuando do apoio ao projeto. “Ouvimos preocupações de autores, editores e revisores segundo as quais o projeto de lei era inconsistente com o nosso tradicional apoio à expansão do acesso à literatura científica de forma gratuita ou de baixo custo”, informou a editora. A Elsevier ainda anunciou a redução do preço do download dos artigos de matemática de cerca de R$ 45 para R$ 19 cada. O presidente da Coordenação A implantação de Aperfeiçoamento de Pessoal de do acesso aberto Nível Superior (Capes), Jorge Guimarães, acredita que negociações no Reino Unido com as editoras podem, de fato, reduzir os custos para ter acesso às vai demandar revistas. “Temos feito isso no portal de Periódicos da Capes e vem investimentos funcionando”, diz, referindo-se à adicionais de até base de dados que reúne o acervo, com textos completos, de mais de £ 50 milhões 33 mil periódicos internacionais de todas as áreas do conhecimento. Papor ano ra acessá-la, é preciso ser pesquisador ou professor de uma instituição cadastrada na Capes. “Há 10 anos, o acesso a 1.800 revistas consumia quase 10% do nosso orçamento. Hoje são 33 mil revistas, que utilizam 4,2% do orçamento”, afirma. “É uma iniciativa tão consolidada que pesquisadores brasileiros fazendo estágio nos Estados Unidos ou na Europa preferem usar o portal da Capes aos portais das instituições que os recebem, porque lá o acesso aos periódicos não é tão completo”, afirma. Guimarães, porém, é cético em relação aos desdobramentos da iniciativa do Reino Unido. “Os britânicos precisam fazer experiências com esse modelo antes de implantá-lo. Uma imposição do acesso aberto poderia fazer com que os britânicos deixassem de publicar em revistas de alto impacto como a Nature, e eles certamente dos resultados não querem isso”, afirma. Segundo Guimarães, a expansão do acesso aberto vai impor custos adi- de pesquisa cionais. “Não adianta apenas estabelecer o acesso no Reino Unido livre sem pensar em outros componentes. Se não puderem cobrar pelo acesso a revistas, as bases são publicados de dados passarão a cobrar, por exemplo, para em regime de fazer a busca dos artigos em suas ferramentas. E essas ferramentas são essenciais para qualquer acesso aberto

35%

pESQUISA FAPESP 201  z  37


As duas estratégias principais de acesso aberto Via dourada

Via verde

As revistas tornam os seus artigos (todos ou uma parte deles) livremente acessíveis no momento da publicação São os autores que tornam acessíveis os seus artigos, depositando uma cópia num repositório institucional ou temático

Estudo com uma amostra de 1.837 artigos mostrou o alcance do acesso aberto Total de acesso aberto 20,4% divididos em:

8,5%

O perfil do acesso aberto em cada disciplina – em % Medicina Bioquímica, genética molecular e biologia Outras áreas da medicina

6,2

8,1

Matemática

Publicação convencional

79,6%

Engenharias Física e astronomia

17,5

7,0

Ciências sociais Química e engenharia química

13,7 10,6

4,6

Ciências da Terra

11,9%

13,9

7,8

25,9

5,6

17,9

5,5 7,4 4,8 3,0

13,6 20,5

fonte Open Access to the Scientific Journal Literature: Situation 2009. PLoS ONE

36

milhões de artigos da coleção SciELO são baixados a cada mês de forma gratuita 38  z  Novembro DE 2012

pesquisador acompanhar o que está acontecendo em sua área”, diz o presidente da Capes. Não é de hoje que cientistas defendem a ideia de que o conhecimento precisa ser difundido de forma livre para que a sociedade possa apropriar-se dele. Mas o acesso aberto começou de fato a frutificar a partir dos anos 1990 com o advento da internet e sua capacidade de distribuir informação com custo baixo. A rede mundial de computadores propiciou a eclosão de iniciativas como o repositório arXiv, criado em 1991, por meio do qual pesquisadores divulgam dados de seus estudos, submetendo-os à análise de colegas antes que sejam publicados. Hoje o arXiv reúne quase 800 mil textos nos campos da matemática, física, ciências da computação, biologia quantitativa e estatística que podem ser acessados via internet. Dados gerados pelo acelerador de partículas do Cern, por exemplo, foram lançados primeiro no arXiv, que se consagrou como uma ferramenta de compartilhamento de informações entre os especialistas em física de altas energias. Nos anos 2000 novas iniciativas tentaram organizar o caminho do acesso aberto. A Public Library of Science (PLoS), uma organização sem fins lucrativos voltada para estimular a criação de revistas científicas com acesso aberto, lançou em 2003 a PLoS Biology, a primeira das sete publicações mantidas pela instituição. O conjunto de revistas é visto como um exemplo bem-sucedido de publicações com acesso aberto, pelo valor modesto que cobra dos autores e por alcançar um fator de impacto superior ao da maioria das revistas de

acesso aberto. O fator de impacto da PLoS One, por exemplo, é de 4 – significa dizer que seus artigos são citados, em média, quatro vezes cada um em outras publicações. Quando um artigo científico é aceito nos periódicos da PLoS, o autor precisa desembolsar US$ 1.350. Depois disso, os textos ficam com acesso livre para cientistas e não cientistas. Já quando o paper é publicado numa revista tradicional de uma grande editora, o custo médio para o autor é de US$ 2 mil por artigo. Mas os leitores também pagam para ter acesso, por meio de assinaturas das publicações ou da aquisição de um cópia do artigo desejado. Nos últimos anos, grandes universidades também se empenharam em disponibilizar seu conhecimento na rede. O Massachusetts Institute of Technology lançou o MIT OpenCourseWare, iniciativa para colocar on-line todo o material educacional de seus cursos. A plataforma hoje tem 1 milhão de visitantes por mês. A Universidade Harvard estabeleceu em 2008 uma política para divulgar os trabalhos de seus pesquisadores na internet, criando um repositório de acesso livre.

H

á um conjunto de dados que atestam a expansão do acesso aberto. O número de revistas nesse regime teve uma forte expansão na década passada. Dados do Diretório de Revistas de Acesso Aberto (Doaj, na sigla em inglês) mostram que a quantidade de publicações cadastradas saltou de 741 em 2000 para 8.282 em 2012. A adesão ao acesso aberto entre os diversos campos do conhecimento não é uniforme (ver quadro nesta página). Um estudo publicado em 2010 na revista PLoS One, que analisou uma amostra de artigos científicos, revelou que os pesquisadores da área de química são os que menos recorrem ao acesso aberto (13% do total de artigos), enquanto os das ciências da Terra são os que mais publicam (33%). O número de repositórios de instituições no mundo saltou de 250 em 2003 para 2.300 no ano passado. “Os avanços, contudo, ainda não tiveram fôlego para colocar em xeque o modelo de comunicação científica tradicional. Persiste uma forte demanda dos pesquisadores, principalmente os de nível mais elevado, para publicar em revistas de alto impacto vinculadas a grandes editoras”, diz Rogério Meneghini, da SciELO. O Brasil é o segundo do ranking de países que mais dispõem de revistas de acesso aberto, com 782 publicações contabilizadas pelo Doaj. Só perde para os Estados Unidos, com 1.260. “A trajetória do Brasil é única no mundo”, diz Pablo Ortellado, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP e membro do Grupo de Políticas Públicas para o Acesso à Informação da universidade. “Graças à criação da biblioteca SciELO Brasil, a estratégia do Brasil é apontada como uma espécie de ‘via


diamante’, pois sustenta um conjunto de revistas em acesso aberto com investimentos públicos e, na maioria das vezes, não cobra nada dos autores para publicar. Temos uma política de acesso aberto muito bem-sucedida”, diz o pesquisador.

L

ançada em 1997 como um programa especial da FAPESP, a Scientific Electronic Library Online (SciELO) alcançou, no final de 2011, 239 publicações de todos os campos do conhecimento que geraram uma média mensal de 36 milhões de artigos baixados da internet de forma livre e gratuita – 1,2 milhão por dia. Os periódicos só são admitidos na coleção depois de passarem por crivos que atestam sua qualidade, como a existência de um corpo editorial qualificado, a relevância em seu campo do conhecimento, a assiduidade da publicação e o cumprimento de uma série de normas técnicas que regem a comunicação científica internacional. Graças a esse aumento de qualidade, mais periódicos brasileiros puderam ser incorporados nos últimos cinco anos a bases de dados internacionais, como a Web of Science (WoS), da Thomson Reuters, e a Scopus, da Elsevier. Em julho passado, a FAPESP e a divisão de propriedade intelectual e ciência da Thomson Reuters anunciaram um acordo para integrar a coleção SciELO à Web of Knowledge, a mais abrangente base internacional de informações científicas. A hospedagem das revistas da SciELO na base busca ampliar a visibilidade e o acesso à produção científica do Brasil e de outros países da América Latina e Caribe, além da África do Sul, Espanha e Portugal. Pablo Ortellado aponta, porém, um paradoxo na situação brasileira. “O impacto da política de acesso aberto é pequeno em áreas de pesquisa muito internacionalizadas, como física ou biologia molecular, porque seus autores buscam publicar em revistas internacionais de alto prestígio, e não nos periódicos brasileiros”, diz o pesquisador. Para ele, novas estratégias no campo da via verde, a dos repositórios institucionais, são necessárias no país. “A USP começou a organizar um reposio crescimento dos repositórios

Bases de dados institucionais no mundo 2.500

2.000

1.500

1.000

500

0

1991 1993 1995 1097 1999 2001 2003 2005 2007 2009 2011 fonte  registry of open access repositories

É forte a demanda dos pesquisadores, principalmente os de nível mais alto, para publicar em revistas de alto impacto

tório com todas as teses e artigos de seus pesquisadores, mas não há muitos exemplos desse tipo no Brasil”, afirma. Um projeto de lei do senador Rodrigo Rollemberg (PSB-DF) propõe que as instituições públicas de educação superior e as unidades de pesquisa criem repositórios para abrigar a produção científica apoiada com recursos públicos. Monografias, teses, dissertações e artigos ficariam disponíveis na internet para acesso livre. O Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict) promoveu a criação de 50 repositórios instituicionais no país, além de contribuir com o desenvolvimento de mais de 700 revistas científicas eletrônicas, por meio do uso do Sistema Eletrônico de Editoração de Revistas (SEER). Para integrar essas iniciativas, o Ibict vem desenvolvendo o portal OASISBR, que integrará o conteúdo de repositórios digitais, da Biblioteca Brasileira de Teses e Dissertações, do SciELO e de revistas científicas eletrônicas brasileiras. A ideia é integrar também repositórios estrangeiros. “Os repositórios institucionais ajudam a acelerar a pesquisa em termos globais”, diz Helio Kuramoto, tecnologista sênior do Ibict. “Os artigos depositados em repositórios têm mais chance de serem citados e com mais rapidez do que quando disponibilizados apenas pelas revistas científicas. Portanto, ganham maior visibilidade. E há casos de teses que tiveram milhares de downloads, o que seria inalcançável sem os repositórios“, afirma. n

pESQUISA FAPESP 201  z  39


Internacionalização y

Aliança de alto nível Programa-piloto atrai cientistas do exterior para formar novos grupos de pesquisa em São Paulo

D

ois projetos temáticos já foram aprovados no âmbito do São Paulo Excellence Chairs (Spec), um programa-piloto da FAPESP que busca estabelecer colaborações entre instituições do estado de São Paulo e pesquisadores de alto nível radicados no exterior. Um dos projetos deverá trazer para o Brasil o casal de cientistas Victor e Ruth Nussenzweig, ambos de 84 anos, brasileiros radicados nos Estados Unidos desde a década de 1960, que se tornaram referência internacional na busca de vacinas e tratamentos contra a malária. Andréa Dessen de Souza e Silva, brasileira radicada na França, também teve um projeto selecionado no âmbito do programa e vai comandar um grupo de pesquisa no Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), em Campinas. Desde 2000 Andrea lidera um grupo de pesquisa de patogenia bacteriana do Instituto de Biologia Estrutural de Grenoble, na França. 40  z  novembro DE 2012

A meta do programa Spec é atrair para o país cientistas de renome, a fim de que coordenem projetos temáticos em sua área de atuação em universidades e laboratórios paulistas. Os pesquisadores seguem vinculados a suas instituições de origem, mas se obrigam a permanecer no Brasil durante 12 semanas do ano ao longo dos pelo menos cinco anos de duração do projeto, coordenando um grupo de bolsistas da FAPESP, entre pós-doutores, doutores e até alunos de iniciação científica. “A vinda de pesquisadores com currículos de alto nível tem como objetivo nuclear grupos de pesquisa em áreas nas quais queremos ter excelência e permitir que esses grupos avancem com mais velocidade”, diz Hernan Chaimovich, assessor especial da Diretoria Científica da FAPESP. A iniciativa, segundo ele, se insere na estratégia da FAPESP de estimular a internacionalização da ciência paulista. “A missão da FAPESP é melhorar a qualidade da ciência, da tecnologia e da


léo ramos

O casal Ruth e Victor Nussenzweig, em São Paulo: projeto temático e formação de núcleo de pesquisa na Unifesp

inovação no estado de São Paulo e é para riu-se para os Estados Unidos há 25 anos. isso que buscamos a internacionalização. Antes de se fixar na França, fez doutoraQueremos que os grupos formados por do na Universidade de Nova York e pósiniciativas como o Spec estejam aptos a -doutorado primeiro no Albert Einsten conseguir apoio em agências de fomento College of Medicine e depois na Universiinternacionais”, afirma. O programa está dade Harvard. Especializou-se no estudo franqueado a instituições e pesquisadores da estrutura de proteínas usando técnicas de currículos notáveis interessados em em bioquímica e cristalografia. “Semestabelecer parcerias. pre trabalhei com o Pesquisas desenestudo da estrutura volvidas nos Estados de proteínas ligadas Unidos pelo casal à medicina. Já trabaNussenzweig deram lhei com HIV, com Dois projetos origem a protótipos inflamação”, diz. Seu foram aprovados foco atual é a virulênde vacinas testados na década de 1980, cia de bactérias, por no âmbito que, no entanto, só meio do estudo da conseguiram garanestrutura tridimendo programa tir imunidade por pesional das proteínas ríodos muito curtos. que formam a parede e outros Desde 1960, Victor e bacteriana. O objetidois estão Ruth vincularam-se à vo é compreender as Universidade de Nova estruturas para a sínem avaliação York, onde trabalham tese e a reparação da até hoje – ambos no parede bacteriana e campo do parasita da tentar bloquear promalária. Atualmente cessos infecciosos. o casal está engajado em duas frentes: “Um alvo são as estruturas que propia busca de uma vacina contra a malária ciam a resistência a antibióticos”, afirma. causada pelo parasita Plasmodium vivax e É esse o foco do trabalho que desenvoltécnicas para nocautear proteínas essen- verá em Campinas. ciais para o desenvolvimento do parasita. Há tempos Andréa queria voltar ao Brasil. “Mas tenho uma posição em Grenoble, dois filhos pequenos e não queria novos inibidores O projeto temático que Victor e Ruth retornar definitivamente. O formato do deverão coordenar na Universidade programa Spec foi perfeito”, diz ela, que Federal de São Paulo (Unifesp) busca no ano passado havia feito uma palestra caracterizar enzimas essenciais para o no LNBio e iniciou conversas com o didesenvolvimento do plasmódio e encon- retor do laboratório, Kleber Franchini, trar novos inibidores, com potencial pa- para colaborar com a instituição. Além ra o desenvolvimento de drogas contra da contratação pelo LNBio de um asa malária. “Vou trazer um pesquisador sistente de pesquisa que fez pós-douchinês que trabalha comigo em Nova torado com Andréa na França, o braYork há quatro anos e também vamos re- siliense David Neves, o grupo também crutar outros doutores e pós-doutores”, terá dois bolsistas de doutorado e um de diz Victor. Eles trabalharão na Unifesp pós-doutorado. “Tenho uma pessoa da com pesquisadores que acolheram na minha confiança coordenando o grupo Universidade de Nova York, em douto- em Campinas”, diz Andréa. Segundo rados ou pós-doutorados, como os pro- ela, o arranjo vai permitir um forte infessores Maurício Martins Rodrigues, tercâmbio entre Campinas e Grenoble, Sérgio Shenkman e Nobuko Yoshida. O com trânsito de pesquisadores das duas termo de outorga do projeto deve ser instituições. Outros dois projetos estão assinado nas próximas semanas. sendo avaliados pela FAPESP no âmbito Em julho passado, Andréa Dessen de do Spec, um na área de mudanças climáSouza e Silva tornou-se a primeira pes- ticas e outro em ciência dos materiais. quisadora selecionada no âmbito do pro- “As propostas podem ser feitas em qualgrama-piloto. Formada em engenharia quer área do conhecimento, desde que química pela Universidade do Estado do envolvam pesquisadores de alto nível”, Rio de Janeiro (UERJ) em 1987, transfe- diz Chaimovich. n Fabrício Marques pESQUISA FAPESP 201  z  41




foto luciano andrade

ciência  ambiente y


A saúde da baía Projeto mapeia fontes de poluentes e correntes marinhas na baía de Todos os Santos Ricardo Zorzetto, de Salvador

P

Paisagem soteropolitana: fim de tarde na baía de Todos os Santos

assava um pouco de 11 horas da terça-feira 16 de outubro quando o barco pilotado pelo químico Jailson Bittencourt de Andrade parou junto a um banco de areia no canal que liga a baía de Aratu à imensidão de águas cor de esmeralda da baía de Todos os Santos. Na faixa de areia exposta pela maré baixa cerca de 40 mulheres e algumas crianças, todas negras, andavam de cócoras olhando para o chão. Elas mariscavam. Com uma colher ou apenas com os dedos, desenterravam um pequeno molusco que chamam de chumbinho ou papa-fumo, pouco maior que a unha do polegar. São necessárias horas de trabalho, quase sempre sob um sol intenso, para encher um cesto grande de mariscos, que, depois de limpos, pesam dois quilos e são vendidos a R$ 17 para os comerciantes de pescados da região. Como têm baixo valor comercial, o chumbinho e outros mariscos, como a lambreta e o sururu, são a principal fonte de proteína animal de quase 15 mil famílias de pescadores e catadores de moluscos da baía de Todos os Santos. Vivendo abaixo da linha de pobreza, muitas dessas famílias se alimentam hoje de modo semelhante ao dos primeiros seres humanos que milhares de anos atrás ocuparam a costa do que viria a ser o Brasil. Atualmente, porém, é recomendável consumir com moderação os peixes e frutos do mar apanhados em Aratu, Itapagi, Suba e em outras áreas mais industrializadas da baía de Todos os Santos. Eles estão contaminados. Concentram alguns metais em níveis superiores aos aceitos por autoridades da saúde

pESQUISA FAPESP 201  z  45


“Q

uem corre mais risco são as crianças”, comentou Vanessa Hatje, coordenadora do Laboratório de Oceanografia Química da UFBA, que acompanhou a visita aos pontos da baía de Todos os Santos em que foram feitas as medições. “É que a capacidade de diluir elementos químicos no organismo está diretamente relacionada à massa corporal”, explicou a oceanógrafa, braço direito de Andrade na primeira fase do Projeto Baía de Todos os Santos. Planejado para seguir até 2038, esse projeto, do qual participam quase 50 pesquisadores, investiga as características físicas, biológicas, culturais e históricas da região e, assim, contribui para a gestão sustentável dessa baía, a segunda maior do país – menor apenas que a de São Marcos, no Maranhão. Entre 2006 e 2010, Vanessa, o oceanógrafo Manuel Nogueira de Souza e Cláudia Windmöller, da Universidade Federal de Minas Gerais, coletaram moluscos em 34 pontos da baía de Todos os Santos. A análise química demonstrou que ao menos quatro elementos (arsênio, zinco, selênio e cobre) aparecem em concentrações relativamente altas em mariscos e ostras. Os moluscos mais contaminados, segundo artigo publicado em 2011 no Marine Pollution Bulletin, haviam sido apanhados em Aratu, próximo ao local em que as marisqueiras trabalhavam naquela manhã de outubro, e no estuário do rio Subaé, a noroeste dali. Era até de se esperar que fosse assim. A baía de Aratu, localizada cerca de 20 quilômetros ao norte de Salvador, abriga um dos três portos mais movimentados da baía de Todos os Santos. Aratu está cercada por indústrias químicas, petroquímicas, metalúrgicas e de alimentos, entre outras. A menos de 50 quilômetros a nordeste dela, está instalado o polo petroquímico de Camaçari, o maior da América do Sul. Já no estuário do rio Subaé, no extremo noroeste da baía de Todos os Santos, a principal fonte de contaminantes foi por um longo período a mineradora Plumbum. Desativada em 1993, ela lançou por quase três décadas quantidades apre-

46  z  novembro DE 2012

ciáveis de chumbo, cádmio, arsênio e zinco no Subaé. “Havia poucos estudos, quase todos de circulação restrita, sobre a Pescadores e contaminação ambiental na baía”, catadores de conta Andrade, que coordena também o Instituto Nacional de Ciência mariscos, que e Tecnologia de Energia e Ambiente. “Essas pesquisas se baseavam em consomem frutos medições pontuais, que usavam técnicas distintas; agora estamos estado mar todos os belecendo protocolos que permitirão dias, tornam-se acompanhar a evolução no tempo”, diz o químico, que anos atrás condumais vulneráveis a ziu uma avaliação da qualidade do ar na baía de Todos os Santos, chamada desenvolver de Kirimurê pelos Tupinambá que habitavam a região antes da chegada inflamações dos europeus. Seu grupo instalou estações medidoras de poluentes em três pontos: na rodoviária da Lapa, um movimentado terminal de ônibus no centro de Salvador; no porto de Aratu, onde há intenso transporte de cargas e minérios; e em Bananeira, uma vila de pescadores com cerca de mil habitantes na ilha de Maré. O resultado, de certo modo, surpreendeu. O ar da rodoviária era o mais poluído, como alguns já imaginavam. Mas

Porta de entrada do Brasil A baía de Todos os Santos, suas ilhas e seus principais afluentes

mapa reprodução do livro baía de todos os santos – aspectos oceanográficos

como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Muitos desses metais são elementos químicos que, em concentrações bem baixas, são essenciais para uma boa saúde, mas, em níveis altos, podem ser tóxicos. Comer os pescados e os moluscos de áreas contaminadas algumas vezes na semana não chega a causar risco à saúde, afirmam os pesquisadores da Universidade Federal da Bahia (UFBA) que, sob a coordenação de Andrade, vêm mapeando nos últimos anos a poluição ambiental na baía de Todos os Santos. Mas os pescadores e os catadores de mariscos, que consomem frutos do mar quase todos os dias, tornam-se mais vulneráveis a desenvolver problemas de saúde associados à exposição contínua a elevadas concentrações de alguns desses metais.


foto luciano andrade

Sob sol intenso: mulheres coletam mariscos no canal de Aratu

não se esperava que o ar em Bananeira pudesse ser quase tão ruim quanto o do porto de Aratu, distante cinco quilômetros. “Em algumas horas do dia, é como se os moradores de Bananeira estivessem dentro do porto”, disse Andrade, apontando para um conjunto de casas entre plantações de banana, enquanto conduzia o barco pelo canal que separa a ilha de Maré do porto. Além de medir os níveis de contaminantes de forma sistemática e a longo prazo, os pesquisadores tentam compreender a dinâmica de transporte e destino dos contaminantes na baía e o impacto sobre os organismos vivos. Com Francisco Barros, do Laboratório de Ecologia Bentônica da UFBA, Vanessa avaliou a concentração de metais na água, nos sedimentos e na fauna dos três principais rios que deságuam na baía – o Jaguaripe, o Paraguaçu e o Subaé. Eles verificaram que a Plumbum, mesmo fora de operação há três décadas, ainda polui o Subaé e áreas adjacentes. No inverno, a chuva lava os reservatórios e pilhas de escória da antiga mineradora e carrega mais contaminantes para o rio, que fica a menos de 500 metros de distância. De modo geral, os metais dissolvidos na água aderem a partículas em suspensão e se acumulam progressivamente nos sedimentos do fundo dos rios à medida que se caminha para a foz. Em alguns pontos, a concentração atinge níveis tóxicos para a fauna de bentos. “Em uma das estações no estuário do rio Subaé não encontramos seres vivos no sedimento”, diz Barros, que agora realiza testes para verificar se o desaparecimento dos bentos é consequência da toxicidade do substrato ou um estresse natural daquele trecho do rio. Barros descobriu recentemen-

te que os estuários tropicais funcionam de modo diferente dos ambientes temperados. Na baía de Todos os Santos a diversidade de espécies de bentos – moluscos, poliquetas e alguns peixes – aumenta continuamente à medida que sobe a salinidade da água, enquanto em estuários da Europa e dos Estados Unidos a variedade de espécies costuma oscilar: é maior nos trechos de baixa e alta salinidade e menor nos de salinidade intermediária.

C

omo o aporte de água de origem fluvial é pequeno se comparado ao volume total da baía, a troca de água entre a baía e o oceano, por meio da maré, determina em grande parte a capacidade de diluição e dispersão de contaminantes e material particulado em suspensão. Na tentativa de compreender em detalhes a circulação e o transporte de água e materiais para dentro e fora da baía, o geógrafo Guilherme Lessa, especialista em sedimentologia, iniciou o monitoramento das correntes que circulam na baía de Todos os Santos. Uma vez por mês ele percorre 10 estações e mede as características físico-químicas (salinidade, temperatura e material particulado) e coleta plâncton. Em três das estações, um equipamento mais simples, do tamanho de uma lanterna, registra continuamente informações sobre o material em suspensão e sobre a salinidade e a temperatura da água. Assim, espera-se caracterizar a direção e a velocidade das correntes que movem as partículas no interior da baía em diferentes períodos do ano. “Queremos verificar se a baía de Todos os Santos está importando água e material particulado do oceano ou exportando para ele”, explica. pESQUISA FAPESP 201  z  47


fotos  1 ruy kikuchi / ufba  2 vanessa hatje / Ufba

U

tilizando dados de corrente coletados em 2003, Lessa mediu a circulação de água entre a baía de Aratu e a baía de Todos os Santos. A análise preliminar indica que, no inverno, correntes mais profundas conduzem água da baía maior para a menor. Já as águas que originalmente se encontravam em Aratu saem para a baía de Todos os Santos por correntes mais superficiais. Segundo Lessa, há indícios de que no verão esse fluxo é invertido. Ainda não é possível saber se o que ele viu nessa área também vale para a comunicação entre a baía de Todos os Santos e o oceano Atlântico. Até o final do ano Lessa deve instalar equipamentos que medem o fluxo de água (correntômetros) em dois pontos da baía, que complementarão as informações que vêm sendo coletadas. Ele calcula que será preciso colher dados continuamente por 15 anos para mapear os ciclos de troca de água entre a baía e o oceano. É que o clima, responsável por alterar a velocidade e a direção dos ventos, das chuvas e da salinidade da região costeira, oscila no Atlântico Sul de acordo com ciclos de 3 anos, 10 a 14 anos e 30 anos de duração. Zelinda Leão e Ruy Kikuchi, geólogos da UFBA que acompanham a saúde dos corais na costa brasileira, esperam que os dados sobre as correntes

1

Equipamento para medição de características físico-químicas da água (ao lado) e banco de corais (acima)

2

Enquanto parte dos pesquisadores

exposta na comunidade dos

se dedica a conhecer os aspectos

pescadores. Com o sociólogo

físicos e biológicos da baía de Todos

Milton Moura, da UFBA, Gal trabalhou

os Santos, a etnógrafa Gal Meirelles e o

no registro fotográfico e em vídeo

historiador Caio Adan, ambos

dos festejos tradicionais de Ilha

da Universidade Estadual de Feira de

de Itaparica que comemoram

Santana, atuam, respectivamente, no

a independência do Brasil.

registro de características culturais que

Ela auxiliou ainda Caio Adan a se

começam a se perder e informações

embrenhar em arquivos e museus do

históricas desconhecidas do público.

Brasil e da Europa. Em visitas a acervos

Por quase cinco anos, Gal morou

reprodução mapoteca do itamaraty / mre

Registro histórico e cultural

na Bahia, no Rio de Janeiro, em Portugal

na comunidade Baiacu, na ilha de

e na Espanha, ele teve acesso a cerca

Itaparica, e registrou o modo de vida

de 200 mapas feitos entre os séculos

e as diferentes técnicas usadas pelos

XVI e XX e iniciou a documentação

pescadores artesanais da baía de

do patrimônio cartográfico da baía

que não se conhecia na península

Todos os Santos, um conhecimento

de Todos os Santos.

de Itapagipe. Esse canal, que não se sabe se foi de fato construído,

que parece não interessar às gerações

Nesse material há preciosidades,

mais novas. “Nas comunidades há falta

como um mapa de meados do século

facilitaria a navegação entre a região

de emprego e os jovens têm admiração

XVII mostrando como as redes eram

norte e o centro de Salvador.

pela vida em Salvador, mas, se vão

dispostas na pesca do xaréu,

para a capital, só conseguem bicos

peixe grande cuja captura exigia a

que as cartas se tornam mais técnicas

e subemprego”, conta Gal. Dessa

participação de dezenas de homens.

e precisas. “Possivelmente para

etnografia da pesca nasceram

Ou ainda uma carta encontrada

auxiliar a navegação na baía”, explica

o vídeo Pesca de mestres e a série

no arquivo do Itaramaty, no Rio,

o historiador, que planeja descrever o

de fotos O peixe nosso de cada dia,

indicando a existência de um canal

material que reuniu e montar um banco

48  z  novembro DE 2012

A partir do século XIX, Adan notou

Pesca do xaréu: detalhe do mapa Brasilia qua parte paret belgis, de Georg Marcgraf, 1647


marinhas na baía ajudem a esclarecer o que vem ocorrendo com os corais. Na baía de Todos os Santos existem dois grandes bancos de corais: um na região interna, próximo à ilha dos Frades; e outro em mar aberto, em frente à ilha de Itaparica. Nos últimos anos, Zelinda e Kikuchi observaram vários episódios de branqueamento dos corais.

O

gal meirelles/uefs

s corais perdem sua cor natural e se tornam esbranquiçados quando algas microscópicas que vivem em seu interior, as zooxantelas, morrem ou são eliminadas – essas algas fornecem oxigênio e nutrientes que auxiliam os corais a produzir um esqueleto calcário. Embora nem sempre signifique a morte do coral, o branqueamento é indício de que algo não vai bem. Kikuchi suspeita que o problema na baía de Todos os Santos se deve à elevação global da temperatura da água do mar, a episódios de aumento de partículas em suspensão, que turvam a água e reduzem a penetração de luz, e possivelmente à poluição química. Em 2011 os pesquisadores observaram branqueamento em vários pontos próximos ao porto de Salvador, que estava sendo dragado. Além disso, há quase uma década

de dados na internet e torná-lo disponível para outros pesquisadores. Segundo Adan, uma avaliação inicial dos mapas corrobora a ideia de que a baía de Todos os Santos desempenhou função central na formação do estado da Bahia. Por muito tempo, inclusive, ela foi compreendida como um espaço mais amplo do que o delineado pelo acidente geográfico de mesmo nome.

Exibição na praia: fotos sobre o cotidiano da pesca em exposição para a comunidade ribeirinha

constataram o desaparecimento de uma das oito espécies nativas da costa brasileira que viviam ali, o Mussismilia braziliensis. Mais recentemente, equipes da UFBA, da Uerj, da Ufal e da ONG Pró-Mar relataram o espalhamento do coral-sol, espécie invasora adaptada a ambientes turvos. Não é de hoje que as águas e o ambiente no entorno dessa baía pagam um preço alto por ela ter servido de porta de entrada para o Brasil. Desde que a expedição do navegador português Gaspar de Lemos aportou ali em 1˚ de novembro de 1501, Dia de Todos os Santos na tradição católica, houve sucessivas alterações. A fundação de Salvador em 1549 por Tomé de Souza, enviado do rei de Portugal para criar uma cidade-fortaleza e iniciar a ocupação das terras do Novo Mundo, forneceu os braços e os machados que transformaram em lenha e madeira a exuberante mata atlântica, abrindo espaço para a cana e os engenhos de açúcar, a unidade agroindustrial mais avançada do Brasil colonial. A mudança mais intensa, porém, ocorreria mais tarde, com a descoberta de petróleo no Recôncavo Baiano e a instalação em 1950 da refinaria Landulpho Alves, no município de Mataripe, que levariam o governo da Bahia a apostar na petroquímica como modelo de desenvolvimento econômico. Houve recentemente uma retomada no desenvolvimento industrial da região, com investimento em um novo polo metal-mecânico, na ampliação de portos e na construção de estaleiros. “Nos últimos tempos se adotaram medidas de controle para reduzir a emissão de metais, mas pouco se avançou”, explicou Vanessa no retorno da expedição pela baía. “Em vários pontos o esgoto doméstico ainda alcança os rios e a baía sem tratamento.” Apesar desses problemas, a baía de Todos os Santos ainda conserva áreas bem preservadas, como a foz do rio Jaguaripe, ao sul da ilha de Itaparica. Sua saúde, de modo geral, é considerada bem melhor que a da baía da Guanabara, no Rio de Janeiro, que ocupa uma área três vezes menor e está rodeada por uma população três vezes maior. Mas Vanessa teme que não continue assim por muito tempo. Antes de o barco aportar na marina, ela lamentou: “Acredito que as condições ambientais ainda vão piorar muito antes de começar a melhorar”. n

Artigos científicos 1. BARROS, F. et al. Subtidal benthic macroinfaunal assemblages in tropical estuaries: Generality amongst highly variable gradients. Marine Pollution Bulletin. out. 2012. 2. HATJE, V.; BARROS, F. Overview of the 20th century impact of trace metal contamination in the estuaries of Todos os Santos Bay: Past, present and future scenarios. Marine Pollution Bulletin. jul. 2012. 3. SOUZA, M. M. et al. Shellfish from Todos os Santos Bay, Bahia, Brazil: treat or threat? Marine Pollution Bulletin. out. 2011. pESQUISA FAPESP 201  z  49


paleontologia y

Mergulhão De pequeno a médio porte, essa família de aves lembra vagamente um pato acinzentado. Vive em água doce ou salobra. Apesar de ter uma anatomia bastante distinta da dos flamingos, forma um grupo irmão dessas aves de longas pernas. Seu ninho é revestido de gravetos e pode conter vários ovos

O ninho do

Fósseis de ovos e ossos de ave de 18 milhões de anos reforçam parentesco entre flamingos e mergulhões  |  Marcos Pivetta

50  z  novembro DE 2012

ilustração  sandro castelli

“flaminlhão”


Paleoflamingo Sua provável aparência devia ser similar à de um grande flamingo atual, mas seus hábitos reprodutivos eram semelhantes aos dos mergulhões. Fazia ninhos flutuantes, compostos por uma estrutura de gravetos, em ambientes lacustres e salinos. Cada

Flamingo

ninho abrigava cinco pequenos ovos A plumagem em tom róseo, as grandes pernas, o bico e o pescoço tortos são marcas registradas dos flamingos modernos. Habitantes de áreas costeiras e ambientes salobros, essas aves atingem 1,5 metro de altura e fazem ninhos de barro no qual depositam um grande e único ovo

E

la tinha a estrutura óssea e provavelmente a aparência similares às de um grande flamingo atual, com pernas longas, pescoço comprido, bico curvo e talvez a plumagem já apresentasse o característico tom róseo. A altura atingia por volta de 1,5 metro. Mas seus hábitos reprodutivos – botar vários ovos em um ninho com estrutura de gravetos erigida em ambiente lacustre – lembravam os de um mergulhão moderno, ave de pequeno ou médio porte que, aos olhos de um leigo em ornitologia, parece um tipo de pato acinzentado. Assim, com pinta de flamingo e comportamento de mergulhão, devia ser a extinta ave que, há cerca de 18 milhões de anos, depositou em território espanhol cinco pequenos ovos num abrigo flutuante revestido por uma frágil moldura lenhosa. Esse longínquo ser alado construiu o mais antigo ninho fóssil de ave registrado na literatura científica, cujos vestígios praticamente intactos foram encontrados no que um dia foi um raso lago de água salina, hoje soterrado por camadas e mais camadas de sedimentos, na bacia calcária do rio Ebro, norte da Espanha. “É o primeiro ninho flutuante conhecido e a primeira evidência de uma estrutura para abrigar ovos de ave”, diz o biólogo Luís Fábio Silveira, curador das coleções ornitológicas do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZ-USP), um dos autores de um estudo sobre o material fóssil espanhol publicado em 17 de outubro na revista Plos One.


águas salinas

Os gravetos e o restante do material vegetal utilizados para fazer o ninho também foram determinados, embora nesse caso de forma mais genérica. Os gravetos eram de uma planta da vasta família das Fabaceae, as populares leguminosas, que englobam desde alimentos como a soja e o feijão até árvores como a cerejeira e o pau-brasil. O ambiente em que os fósseis foram resgatados, de água com alto teor de salinidade, também é associado a flamingos, que vivem na beira de mares ou em estuários de rios. Os mergulhões, que submergem para pegar peixes, preferem, por sua vez, água doce, embora também possam ser vistos em cursos d’água salobra. O ninho com os ovos e o tibiotarso foram descobertos por paleontólogos espanhóis em 2003 quando desenvolviam trabalhos de campo na chamada formação Tudela que precederam a construção de uma barragem destinada a evitar cheias do rio Ebro. Nessa região de clima semiárido já haviam sido encontrados fósseis de crocodilos, tartarugas, cobras e ostracodos, um tipo de crustáceo de uns poucos 52  z  novembro DE 2012

A última morada do velho flamingo O paleoninho e os ossos do flamingo extinto foram encontrados na formação Tudela, na bacia do rio Ebro, norte da Espanha (região amarela no mapa)

FR ANÇA

N

Pamplona

g al

Pirineus

portu

Ao lado do ninho, que protegia ovos semialongados com dimensões máximas de 4,5 por 3 centímetros, foram resgatados uns poucos fragmentos de ossos do pé (tarso e metatarso) e um bem preservado tibiotarso esquerdo, a popular coxa da ave. “Analisamos, em separado, o tibiotarso e o ninho com os ovos e chegamos à mesma conclusão”, afirma Silveira. “Trata-se de um paleoflamingo, um gênero e espécie novos e extintos dessa família de aves.” Especialista em ovos de répteis e aves, o paleontólogo suíço Gerald Grellet-Tinner, do Centro Regional de Investigaciones Científicas y Transferencia Tecnológica (Crilar), da Argentina, e do Field Museum de Chicago, também não tem dúvidas de que o ninho foi feito por um flamingo primitivo. “Os ovos são tecidos biomineralizados que apresentam morfologia funcional e valor filogenético igual ao dos ossos de um esqueleto”, afirma Grellet-Tinner, que também assina o estudo no periódico científico. “Desse ponto de vista, a casca de um ovo é uma impressão digital e fornece informações específicas sobre uma espécie.” A microestrutura dos ovos foi analisada com o emprego de cinco diferentes técnicas de microscopia eletrônica a fim de aumentar a confiabilidade dos resultados obtidos.

Madri

Zaragoza Bacia do Ebro

Barcelona

espanha

Mar Mediterrâneo

O paleoflamingo habitava a beira de um lago de água salina. Gravetos de seu ninho eram da família das Fabaceae, as populares leguminosas

milímetros. Por não serem especialistas em aves, os pesquisadores ibéricos procuraram se cercar de estudiosos desses animais, aos quais repassaram o material obtido na escavação. Recorreram a Silveira, que fez toda a análise da parte óssea, comparando os ossos encontrados no Ebro com material osteológico das coleções de aves do MZ-USP e do Museu de História Natural de Taubaté (MHNT). Contataram também Grellet-Tinner, que ficou responsável por estudar o ninho e os ovos. Entre 12 e 29 milhões de anos atrás existiu um gênero extinto de ave, o Palaelodus, que às vezes é apresentado como dono de uma anatomia e estilo de vida intermediário entre a morfologia e o comportamento de flamingos e mergulhões. Segundo os pesquisadores, o novo fóssil não pertence a esse gênero desaparecido. No máximo, é um parente que pode ter sido contemporâneo do Palaelodus. Isso não quer dizer que o paleoninho do Ebro seja pouco importante do ponto de vista evolutivo. Ao contrário. Os cientistas o classificam como mais um aliado de uma teoria que ganhou força nos últimos


A coxa entregou o bicho Ave extinta do gênero Palaelodus, parente distante dos flamingos

O novo paleoflamingo

fotos divulgação

1 cm

Phoenicopterus Agnopterus Phoenicopterus ruber, espécie sicki, espécie croizeti, espécie atual de extinta de extinta de flamingo flamingo flamingo

O ninho de 18 milhões de anos: a mais antiga estrutura feita para abrigar ovos de aves

anos: a de que flamingos e mergulhões, embora hoje exibam morfologia e comportamento muito diferentes, são realmente grupos irmãos. Estudos da anatomia e da genética dessas aves sugerem que, num passado remoto, antes de divergirem e darem origem a duas famílias distintas de animais alados, elas tiveram um ancestral comum há mais de 20 milhões de anos, durante a época geológica denominada Mioceno. Os novos fósseis recém-descritos nas páginas da Plos One reforçam ainda mais essa ideia. “Esse artigo abre portas para muitas especulações evolutivas sobre esses grupos de aves”, afirma o paleontólogo Herculano Alvarenga, diretor do Museu de História Natural de Taubaté, especialista em aves fósseis. Ancestral comum

Ainda não batizada com um nome científico, a nova espécie de paleoflamingo parece indicar que os primeiros exemplares dessa família de aves tinham hábitos reprodutivos e de construção de ninhos semelhantes aos dos mergulhões do passado. É possível que tais práti-

cas remontem ao hipotético ancestral comum das duas famílias de aves. Esse comportamento consistia, grosso modo, em botar vários ovos pequenos em um ninho revestido por gravetos, procedimento que se manteve até os dias de hoje entre as 22 espécies de mergulhões vivas, mas que desapareceu entre as seis espécies atuais de flamingos. Sob esse ponto de vista, o fóssil espanhol seria um resquício de um tempo remoto em que os ninhos de mergulhões e flamingos exibiam estrutura parecida. As espécies vivas de flamingos constroem abrigos de barro para seus futuros filhotes e não usam nenhum revestimento de ramos no entorno dessa estrutura. Em cada ninho põem geralmente apenas um único e grande ovo, bem maior do que os presentes no fóssil na bacia do Ebro (ver ilustração no início desta reportagem). Um dos primeiros desafios da dupla Silveira e Grellet-Tinner foi determinar se os cinco ovos protegidos por uma estrutura circular de graveto, que aparentemente flutuava na beira do antigo lago, formavam mesmo um ninho construído que se manteve milagrosamente preser-

vado por milhões de anos. Havia a possibilidade remota de que cada ovo tivesse uma origem distinta e sua junção, um ao lado do outro, no interior do abrigo de madeira, fosse obra do acaso. Mas todas as evidências levantadas pelos pesquisadores derrubaram essa hipótese: os cinco ovos eram iguais, do mesmo tipo, e o contexto em que o ninho fora encontrado sinalizava que a estrutura de gravetos não era fruto de movimento fortuito da natureza. A descoberta, ao lado do ninho, de ossos de uma ave reforçou ainda mais essa teoria. “Encontrar ovos (fossilizados) é raro. Encontrar ninhos é ainda mais raro. Mas encontrar ovos em um ninho e conseguir estabelecer a que grupo eles pertencem é algo muito raro e interessante”, comenta o paleontólogo Alexander Kellner, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Não é possível saber com certeza se os ossos vieram da ave que fez o ninho, mas essa hipótese é plausível. Afinal, as análises do brasileiro e do suíço foram conduzidas de forma independente – um só soube do veredicto do outro ao final do trabalho – e ambos concluíram que o tibiotarso e os ovos eram de alguma forma primordial de flamingo hoje não mais presente na Terra. “Aparentemente, os ossos encontrados pertenceram a um único exemplar de ave”, diz Silveira. Por um motivo que nunca será conhecido, o animal possivelmente morreu ao lado do ninho. Não dá para afirmar nem mesmo se o osso pertenceu a uma fêmea ou a um macho. Flamingos do sexo masculino não botam ovos, mas podem chocá-los no ninho de sua fêmea. Infelizmente, não há outros ninhos fósseis parecidos com o resgatado na bacia do rio Ebro. Qualquer comparação desse tipo dependerá de uma eventual descoberta de uma segunda estrutura de gravetos com ovos de aves, um tipo de achado bastante improvável dada a fragilidade desse tipo de construção, de acordo com os especialistas. Mas quem sabe a história ocorrida em terras espanholas se repita algum dia em outro canto do globo. n

Artigo GRELLET-TINNER, G. et al. The first occurrence in the fossil record of an aquatic avian twig-nest with phoenicopteriformes eggs: evolutionary implications. Plos One. Publicado on-line. 17 out. 2012. pESQUISA FAPESP 201  z  53


oncologia y

Proteína antitumoral

U

Encontrada na glândula salivar do carrapato-estrela, molécula combate células cancerígenas e preserva sadias Dinorah Ereno

Carrapato-estrela: alimentação garantida por mecanismo na saliva que impede coagulação do sangue 58  z  novembro DE 2012

ma proteína encontrada na glândula salivar do carrapato-estrela (Amblyomma cajennense) mostrou em testes promissora atividade antitumoral e anticoagulante. O achado foi feito pelo grupo de pesquisa coordenado pela professora Ana Marisa Chudzinski-Tavassi, diretora do laboratório de Bioquímica do Instituto Butantan e integrante do programa Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP. “A proteína, chamada Amblyomin-X, mata apenas as células tumorais, sem oferecer risco para as saudáveis”, diz Ana Marisa. Os pesquisadores mapearam como se dá a morte das células e os mecanismos envolvidos na ação. A proteína Amblyomin-X inibe a atividade do proteassoma, um complexo enzimático que tem por função eliminar proteínas indesejáveis a fim de manter a integridade celular. “Estudamos o modo de atuação da proteína para induzir à morte programada das células, processo conhecido como apoptose.” Os próximos passos são os testes pré-clínicos, que serão realizados por duas empresas brasileiras seguindo padrões internacionais para avaliar, por exemplo, a toxicidade da proteína recombinante e qual a dose que poderá ser usada para tratamento em pacientes. Essa fase está prevista para durar cerca de oito meses. “Se tudo correr de acordo com o previsto, os testes em pessoas serão liberados após essa etapa”, diz Fernando de Castro Marques, presidente da União Química, empresa farmacêutica parceira da pesquisa. A expectativa é que um possível medicamento tenha como foco, além do melanoma, o câncer de pâncreas e o renal. “A ação no câncer de pâncreas é o que mais nos interessa, porque não existe tratamento medicamentoso atualmente para esse tipo de tumor”, ressalta. Em outubro, pesquisadores do Butantan, representantes da empresa e da FAPESP estiveram na Agência Nacional de Vi-


gilância Sanitária (Anvisa) para tratar das etapas necessárias para o registro do produto. As três partes são detentoras da patente da nova molécula. A previsão é que até o início de 2015 uma nova fábrica seja construída em Brasília, onde a União Química tem um polo industrial, para produção da nova molécula. As pesquisas começaram em 2000 com a bióloga Simone Simons, que estudava carrapatos. “Como eles são hematófagos e precisam deixar o sangue sem coagular para poderem se alimentar, decidimos estudar o mecanismo de anticoagulação promovido pela saliva do carrapato-estrela”, diz Ana Marisa, que trabalha também com uma linha de pesquisa em anticoagulantes presentes em sanguessugas. A dificuldade de caracterização bioquímica dos componentes da saliva do ácaro fez com que os pesquisadores optassem pela via de análise dos genes expressos na glândula salivar. “Foram analisados mais de 2 mil genes para ver se existia algum que pudesse traduzir uma proteína inibidora do fator X (10) da coagulação, essencial para a formação da trombina, enzima-chave para esse processo.” A tradução é o processo de síntese ou fabricação de proteínas.

léo ramos

inibidor plasmático

As indústrias farmacêuticas, segundo Ana Marisa, estão em busca de um medicamento anticoagulante novo que tem como alvo o fator X, que possa diminuir o tempo laboratorial necessário para uma terapia convencional de anticoagulação. “Identificamos um clone que poderia ser utilizado para produzir uma molécula com atividade inibitória do fator X”, relata. A partir desse clone foi produzida a proteína recombinante, utilizando um sistema de expressão em bactéria, e a análise da sua atividade no sangue comprovou sua eficiência como anticoagulante. A caracterização bioquímica e estrutural da proteína obtida revelou semelhanças

"A ação no câncer de pâncreas é o que mais nos interessa", diz Fernando de Castro Marques, da União Química

com um inibidor plasmático chamado TFPI, que ajuda a controlar a coagulação. “Na literatura científica já estava sendo discutido o papel desse inibidor na proliferação de células.” Por isso os pesquisadores decidiram testar a proteína recombinante em células presentes nos vasos sanguíneos e também em culturas de células tumorais. “Ficamos surpresos com os resultados porque o tratamento com a proteína manteve intactas as células normais, mas matou as tumorais”, relata. Diante disso, o foco da pesquisa foi ampliado para a atividade seletiva da nova molécula contra células tumorais. O próximo passo foi testar a proteína recombinante in vivo. Os testes foram feitos em dois grupos de camundongos com melanoma, o tipo mais grave de câncer de pele. Os animais que não foram tratados desenvolveram tumor e morreram em cerca de um mês. No grupo que recebeu a proteína durante 42 dias, o melanoma desapareceu. No início dos anos 2000, o Centro de Toxinologia Aplicada instalado no Instituto Butantan já era um dos 10 Cepids criados pela FAPESP e mantinha uma parceria com os Laboratórios Biolab-Sanus, União Quí-

mica e Biosintética. A União Química interessou-se pela nova molécula e fez os depósitos de patente no Brasil, com extensão para Europa, Ásia e Estados Unidos. E não parou nisso: “Contratamos uma empresa de biotecnologia nos Estados Unidos para, por meio de engenharia genética, construir um gene sintético e um novo sistema de expressão da molécula que aumentassem o rendimento na produção”, diz Castro Marques. O projeto que teve início em 2000, mas só começou a ser direcionado para um antitumoral em 2005, reúne hoje um grupo de oito pesquisadores do laboratório de Bioquímica, além de colaboradores da Universidade de São Paulo (USP), como o professor de oncologia Roger Chammas, o médico especialista em pâncreas José Jukemura, ambos da Faculdade de Medicina, e o professor Eduardo Reis, do Instituto de Química, que atua em genômica e biologia molecular. Selecionado pelo Fundo Tecnológico (Funtec) do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o projeto vai receber R$ 18 milhões que serão destinados para o Instituto Butantan e o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) traçarem uma rota de produção da proteína recombinante de forma escalonada e fazerem uma análise econômica para instalação de uma fábrica destinada à produção industrial da molécula. n

Projetos 1. Centro de Toxinologia Aplicada; 2. Mecanismos de ação do Amblyomin-X em diferentes linhagens celulares normais e tumorais – nº 2005/50560-6; 3. Avaliação do mecanismo de ação pró-apoptótica do Amblyomin-X – nº 2010/52669-3. Modalidades: 1. Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); 2 e 3. Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa. Coordenadores: 1. Hugo Armelin – Instituto Butantan; 2 e 3. Ana Marisa Chudzinski Tavassi – Instituto Butantan. Investimento: 1. R$ 1 milhão por ano para todo o Cepid (FAPESP); 2. R$ 227.833,93 (FAPESP); 3. R$ 249.786,30 (FAPESP). pESQUISA FAPESP 201  z  59


imagem  richardson leão / ufrn

neurologia y

Neurônio OLM, em verde, conecta as células da camada superficial às da camada profunda do hipocampo

O porteiro da memória Neurônio especial controla a chegada de informação do ambiente ao centro formador das recordações no cérebro

F

oi necessário quase um século para descobrir a função de um tipo especial de célula cerebral descrito pelo médico e neuroanatomista espanhol Santiago Ramón y Cajal. Essas células, que recebem o nome complicado de neurônios oriens lacunosum-moleculare (OLM), estão no hipocampo, estrutura profunda do cérebro associada à aquisição da memória. Como uma ponte que une as duas margens de um rio, os neurônios OLM colocam as células da camada mais superficial do hipocampo em contato com as das áreas mais profundas. Mas nesse tempo todo o papel dessas células permanecia obscuro. Agora, em um artigo publicado na edição de 7 de outubro da revista Nature Neuroscience, o neurocientista mineiro Richardson Leão, com pesquisadores dos 60  z  novembro DE 2012

Estados Unidos e da Suécia, demonstrou que os neurônios OLM são uma espécie de porteiro da memória. “Conseguimos isolar e manipular essa população de neurônios”, conta Richardson, pesquisador do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Usando técnicas de biologia molecular, ele e pesquisadores da Universidade de Uppsala, na Suécia, identificaram uma proteína que é produzida exclusivamente por esse tipo de neurônio. Em seguida, eles desenvolveram camundongos transgênicos em que marcaram essa proteína com outra vermelho-fluorescente. Eles também inseriram no animal transgênico uma terceira proteína que, acionada por pulsos de laser, colocava o neurônio em ação.

Nos experimentos, eles observaram que, uma vez ativados, os neurônios OLM bloqueavam a chegada de informações sensoriais do ambiente ao hipocampo e acionavam os mecanismos químicos de recuperação das informações armazenadas no cérebro. Um exemplo pode ajudar a entender. Quando alguém caminhando na rua vê um conhecido, a informação captada pelos olhos chega à região mais superficial do hipocampo. É aí que os neurônios OLM entram em ação. Ao transferir essa informação para a área mais profunda, esses neurônios ativam o mecanismo de recuperação da memória – que permite, por exemplo, lembrar quem é mesmo o fulano –, mas impedem a chegada de mais dados do ambiente. “Os neurônios OLM desligam um circuito e ligam outro”, conta Richardson, que também trabalhou em colaboração com pesquisadores da Universidade de Connecticut, nos Estados Unidos. n Ricardo Zorzetto

Artigo científico LEÃO, R. N. et al. OLM interneurons differentially modulate CA3 and entorhinal inputs to hippocampal CA1 neurons. Nature Neuroscience. 7 out. 2012.


Biofísica y

Limpeza molecular Estudo revela estrutura atômica de proteínas que eliminam excesso de hemoglobina no sangue

imagem  nature

U

ma equipe de oito pesquisadores dinamarqueses e noruegueses e um brasileiro alcançou uma meta perseguida desde os anos 1960: resolver em nível atômico a estrutura das proteínas que se articulam para evitar que a hemoglobina – a proteína carregadora de oxigênio e que dá a cor avermelhada ao sangue – atinja concentrações tóxicas para o organismo e capazes de lesar os órgãos do corpo. O trabalho foi publicado na edição de 20 de setembro da revista Nature. Segundo o professor Cristiano Luis Pinto de Oliveira, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP), que participou do estudo, a descoberta poderá contribuir no desenvolvimento de remédios que aliviem crises de intoxicação por hemoglobina, sofridas por portadores de doenças do sangue congênitas e malária. Transportadas pelas hemácias, as células vermelhas do sangue, as moléculas de hemoglobina são feitas de quatro subunidades, cada uma contendo um íon de ferro que reage facilmente com outros elementos químicos, especialmente com átomos de oxigênio. Isso faz da hemoglobina a principal difusora do oxigênio pelos tecidos do corpo. Quando porém essa proteína sai das hemácias, ela se separa em dois dímeros (cada um com duas subunidades), deixando os íons de ferro muito expostos. Altas concentrações de hemoglobina nessa forma podem ser tóxicas. O problema é mais agudo nos rins, onde há a tendência de essa molécula se acumular por ser a função do órgão depurar o sangue. Também sofrem com esse distúrbio os pacientes de certas doenças hereditárias e portadores do parasita da malária, cujas hemácias são constantemente rompidas e liberam excesso de hemoglobina no plasma.

receptor cd 163

haptoglobina

subunidade de hemoglobina

Complexo proteico: haptoglobina (azul) adere a subunidades de hemoglobina (vermelho) e as neutraliza

O organismo humano tem um mecanismo natural para eliminar o excesso dessa proteína. Há em circulação no sangue outra proteína, a haptoglobina, que se liga aos dímeros de hemoglobina, envolvendo e neutralizando seus íons de ferro. Esse complexo hemoglobina-haptoglobina (Hb-Hp) por sua vez é retirado do sangue por células denominadas macrófagos. Essas células fazem isso por meio de proteínas chamadas receptores CD 163. Através da ligação a locais específicos, os receptores “fisgam” e retiram os complexos Hb-Hp da circulação sanguínea. A estrutura átomo por átomo da hemoglobina é conhecida desde 1959, quando pesquisadores conseguiram crescer um cristal da macromolécula e observar como ela interfere na pas­ sagem de raios X, fenômeno conhecido como difração. Mas até recentemente não havia sido possível fazer o mesmo com a haptoglobina e o complexo Hb-Hp. “A dificuldade principal era a forma peculiar da haptoglobina, difícil de cristalizar”, explica Oliveira.

Sob coordenação do biomédico Soeren Moestrup, da Universidade de Aarhus, Dinamarca, os pesquisadores iniciaram em 2006 a busca pela condição ideal para purificar e cristalizar as substâncias desejadas. O esforço aliou diversas técnicas bioquímicas e biofísicas. Oliveira colaborou na análise de como os raios X são espalhados pelas moléculas em solução aquosa. A técnica permitiu a confirmação de que o formato das moléculas cristalizadas é o mesmo daquelas dissolvidas em água. As estruturas em alta resolução obtidas mostram como a haptoglobina se forma a partir de duas subunidades (em azul-claro e azul-escuro na figura acima), conectadas de uma maneira nunca antes vista em proteínas. Mostram ainda como se forma o complexo Hb-Hp e este se liga aos receptores CD 163. n Igor Zolnerkevic

Artigo científico ANDERSEN, C.B.F. et al. Structure of the haptoglobin–haemoglobin complex. Nature. v. 489. 20 set. 2012. pESQUISA FAPESP 201  z  61


Dinâmica de fluidos y

Tensão sob controle Técnica que estabiliza pressão na interface entre óleo e água pode facilitar

U

ma dupla de físicos teóricos da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) identificou uma solução incrivelmente simples para um problema que a indústria petrolífera enfrenta há décadas: a formação dos chamados dedos viscosos, protuberâncias fluidas que surgem quando os engenheiros injetam água dentro de rochas porosas para empurrar o petróleo armazenado nelas em direção ao poço de extração. O ideal seria que a água funcionasse como um pistão, deslocando uniformemente o líquido mais viscoso. Acontece, entretanto, que minúsculas diferenças de pressão na fronteira entre os dois fluidos tendem a se amplificar e originar rapidamente pequenos tentáculos de água, os tais dedos viscosos, que avançam no interior da massa de petróleo e empurram apenas parte dela. “A água forma canais preferenciais que varrem uma área bastante limitada do reservatório”, explica o engenheiro mecânico Márcio

62  z  novembro DE 2012

Carvalho, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), que pesquisa métodos de recuperação avançada de petróleo para a Chevron, Petrobrás e Repsol. Segundo Carvalho, os dedos viscosos são um dos principais fatores que fazem com que em alguns casos se aproveite apenas 30% da capacidade de um reservatório. As empresas petrolíferas resolvem parcialmente o problema acrescentando à água polímeros que aumentam sua viscosidade. Isso estabiliza a interface com o petróleo, reduzindo a formação dos dedos viscosos. “Mas esse processo tem um custo alto e uma logística complicada”, diz Carvalho. Os físicos José Américo de Miranda e Eduardo Dias, ambos da UFPE, auxiliados por Carvalho e Enrique Alvarez-Lacalle, da Universidade Politécnica da

Tentáculos fluidos: diferenças de pressão na superfície de contato entre a água e o óleo geram estruturas em forma de dedos

infográfico  ana paula campos  foto eduardo cesar

a extração de petróleo


Uma questão de velocidade

velocidade

Ritmo de injeção de um líquido em outro mais viscoso determina a forma das bolhas

sem aceleração

tempo

água orifício óleo dedos viscosos

Água injetada à velocidade constante em óleo cria instabilidades na fronteira entre os fluidos. A bolha de água ganha uma forma cheia de dedos

Catalunha, Espanha, propuseram uma solução que, a princípio, parece ser mais prática. Em artigo na Physical Review Letters, eles verificaram que o simples controle da velocidade com que a água é injetada nas rochas pode eliminar completamente os dedos viscosos. Para simular em laboratório a maneira como os líquidos fluem pelos poros das rochas, os pesquisadores que estudam os dedos viscosos usam um aparato conhecido como célula de Hele-Shaw, relativamente fácil de construir. Primeiro, eles preenchem o espaço milimétrico entre duas placas de vidro paralelas com um fluido viscoso, por exemplo óleo mineral. Em seguida, abrem um pequeno furo na placa de cima e, por ele, injetam continuamente um fluido menos viscoso, como a água. Logo a forma circular da bolha de água vai dando lugar a um padrão radial de dedos cada vez mais complicado. “Os dedos bifurcam, quadrifurcam e assim por diante”, explica Miranda. Essa técnica é usada desde 1958, quando os físicos britânicos Philip Saffman e Geoffrey Taylor demonstraram que as equações matemáticas que descrevem a formação dos dedos viscosos nas células de Hele-Shaw são as mesmas que explicam o surgimento deles em rochas porosas. Mas foi só a partir de 2009 que diversos grupos de pesquisadores começaram a desenvolver métodos efetivos de manipular a formação dos dedos nas células.

velocidade

Simples demais

aceleração constante

tempo

água orifício óleo espalhamento uniforme

As instabilidades desaparecem quando a velocidade de injeção da água aumenta com aceleração constante. A bolha de água se espalha de modo uniforme

Miranda e Dias investigavam a matemática por trás de um desses métodos quando descobriram uma abordagem simples de atacar o problema e reduzir o tamanho dos dedos. Os cálculos sugeriam que os dedos viscosos sumiriam caso, em vez de injetar um fluxo constante de água, como normalmente se faz, o volume injetado inicialmente fosse pequeno e aumentasse linearmente com o tempo (ver o infográfico ao lado). “A solução podia ser uma função matemática complicadíssima, mas não”, lembra Miranda, “é simplesmente uma linha reta”. O resultado parecia bom demais para ser verdade. De início, a dupla desconfiou que as aproximações feitas nos cálculos deixassem de valer à medida que a força de injeção da água aumentasse com o tempo. A teoria foi posta à prova no laboratório de Carvalho. Ele e Dias fizeram

testes em uma célula de Hele-Shaw, controlando por computador o fluxo de água injetada. “Realmente a injeção de um volume que aumenta linearmente estabilizou a interface”, diz Miranda. Simulações por computador feitas por Alvarez-Lacalle confirmaram a solução do problema. Os experimentos e as simulações sugerem que os dedos viscosos não devem se formar nem mesmo se a injeção de água se tornar forte demais. “Contanto que a bomba de água seja eficiente, o processo melhora com o tempo”, explica Miranda. Esse não é o primeiro trabalho a conseguir eliminar os dedos viscosos. Neste ano, dois outros grupos de físicos publicaram métodos diferentes capazes de impedir a formação de dedos viscosos – em um deles, inclina-se a placa de vidro superior da célula de Hele-Shaw; no outro, a placa superior é substituída por uma membrana elástica. Não há, porém, uma maneira óbvia de essas abordagens serem aplicadas na extração de petróleo, como é o caso da solução proposta pelos brasileiros. “Também há desafios tecnológicos para implementar nossa solução, como controlar o bombeamento de água”, afirma Carvalho. “Mas esses desafios podem ser superados.” Ainda que se alcance esse controle, efeitos inesperados da passagem dos líquidos pelas rochas porosas podem surgir e atrapalhar a extração de petróleo, segundo o físico Alberto Tufaile, da Universidade de São Paulo. Evitar a formação dos dedos viscosos é importante não apenas para o mundo do petróleo e dos fluidos em geral. Diversos processos de crescimento na natureza são regidos por equações matemáticas parecidas ou idênticas às que descrevem os dedos viscosos. Miranda acredita que a solução encontrada por eles poderia ser adaptada para impedir o crescimento desordenado de cristais semicondutores na indústria microeletrônica. Ou, ainda, que possa auxiliar no planejamento da aplicação de medicamentos para evitar o espalhamento de tumores pelo corpo, uma vez que parte dos tumores cresce como uma árvore que se ramifica. n Igor Zolnerkevic

Artigo científico DIAS, E. O. et al. Minimization of viscous fluid fingering: a variational scheme for optimal flow rates. Physical Review Letters. v. 109 (14). 5 out. 2012. pESQUISA FAPESP 201  z  63


redes complexas y

Efeitos da simultaneidade Eliminar sincronismos em redes pode ajudar no controle de multidões e de distúrbios cerebrais

P

arece haver uma forma bastante simples de evitar que a atividade em rede tão complexas e distintas quanto a internet ou o cérebro humano se torne sincronizada, o que as impede de funcionar adequadamente. Em trabalho publicado na revista Scientific Reports, pesquisadores da Universidade Federal do Ceará (UFC) e da Escola Politécnica de Zurique (ETH), na Suíça, propõem que é possível quebrar o sincronismo de um sistema interferindo em alguns pontos-chave, sem precisar atuar sobre o todo. “Exemplos de sincronização podem ser encontrados num amplo espectro de fenômenos, como o disparo de neurônios, as cascatas de laser, as reações químicas e a formação de opinião”, afirmam os pesquisadores no artigo. “Mas, em muitos casos, a formação de um estado coerente não é desejada e precisa ser atenuada.” Em todo sistema que opera de algum modo como uma rede é possível (e muitas vezes provável) que se crie um sincronismo em sua atividade. E muitas vezes esse processo é prejudicial ao seu contínuo funcionamento. O trabalho do matemático Vitor Louzada e dos físicos José Soares Andrade Junior, Nuno Araujo e Hans Herrmann foi justamente tentar desenvolver uma estratégia que permitisse quebrar o sincronismo e manter o sistema saudável.

64  z  novembro DE 2012

Hoje em dia quando se fala em rede logo se pensa em computadores interligados. Mas a rigor todo conjunto de elementos conectados em que a atividade de um influencia a dos demais pode ser tratado, do ponto de vista matemático, como uma rede. Um exemplo lembrado pelos pesquisadores foi a inauguração da Millenium Bridge (ponte do Milênio), em Londres, em 2002. Uma multidão se aglomerou à entrada da passagem, para cruzá-la logo que fosse inaugurada. Quando o trânsito foi autorizado, todos iniciaram uma frenética caminhada pela ponte e, em razão do tamanho da multidão, criou-se um sincronismo entre os passos dos caminhantes. Resultado: a vibração conjunta levou a um balanço lateral da estrutura que assustou quem estava ali. Em outras situações, a sincronização de uma rede pode ser bem mais perigosa. É o caso da doença neurológica conhecida como epilepsia. Nas crises epilépticas os neurônios entram em sincronismo, disparando impulsos simultaneamente. O resultado é uma convulsão. Na doença de Parkinson, em que há uma gradual perda de controle dos movimentos, o problema é semelhante: a sincronização nos disparos neuronais leva ao descontrole motor. Para combater esses problemas, os médicos desenvolveram dispositivos conhecidos como marca-passos cerebrais,

que, implantados no cérebro, emitem impulsos elétricos que interrompem o sincronismo e restauram a atividade normal. Contudo, esses sistemas existentes hoje precisam levar em conta todo o conjunto da atividade cerebral antes que possam entrar em ação. O resultado é uma resposta lenta e um nível de controle menos fino sobre a necessidade ou não de intervenção na rede neuronal. O diferencial do trabalho publicado na Scientific Reports é mostrar, primeiro na teoria e depois em simulações de computador e em experimentos com seres vivos, que é possível evitar o processo de sincronização sem interferir na rede inteira. Além de reduzir a intervenção necessária, a resposta pode ser iniciada de maneira local, sem nem mesmo levar em conta o conjunto da rede. No estudo, os pesquisadores sugerem que é possível incluir na rede o que eles chamam de contrários, entradas de dados pontuais que seguem na contramão da tendência de sincronização. Aplicando esse

View Pictures / UIG via Getty Images

Salvador Nogueira


A sincronia dos passos de milhares de pessoas cruzando ao mesmo tempo a Millenium Bridge, em Londres, em 2002, fez a ponte oscilar

princípio ao exemplo da Millenium Bridge, seria como se o governo tivesse treinado alguns atores para caminhar sempre fora de sincronismo com a multidão. Com uns poucos contrários distribuídos de maneira inteligente ao longo da ponte, seria possível impedir que o sistema entrasse em sincronia e que a ponte começasse a oscilar. intervenções locais

O mesmo vale para a epilepsia. Em vez de implantar no crânio um marca-passo desajeitado que leve em conta toda a rede, seria possível desenvolver dispositivos diminutos que interagissem individualmente com neurônios e, levando em conta apenas as conexões próximas (o estado local), fossem capazes de atuar como contrários no momento apropriado para eliminar o risco de sincronização. O sucesso dessa estratégia dependeria de instalar os dispositivos nos pontos de interligação ou hubs, as regiões que mantêm o maior número de conexões na rede.

O grupo testou essa estratégia no sistema nervoso de um verme muito usado para pesquisa científica, o Caenorhabditis elegans, cujo organismo é relativamente simples, por se tratar de um ser pluricelular. Com um total de cerca de mil células, ele foi o único organismo vivo cujo sistema nervoso foi completamente mapeado. Como o conhecimento de sua rede neuronal é completo, foi possível identificar onde instalar os contrários e impedir o sincronismo de suas células cerebrais. Segundo os pesquisadores, essa foi uma prova de princípio importante. O teste mostrou que os cálculos feitos pelo grupo estavam corretos e abriu a perspectiva de que marca-passos cerebrais mais eficientes possam ser criados no futuro. Mas ainda há desafios a serem superados. Numa rede imensa, como o cérebro humano, o desafio de identificar os hubs é bem maior. “A dificuldade em realizar essa tarefa depende da complexidade da rede envolvida", afirma Andrade. “Uma possível forma de encontrar os tais hubs é por meio da monitoração espacial da atividade do cérebro, o que pode revelar as regiões em que a atividade neuronal é tipicamente mais alta.” A aplicação dessa estratégia parece ser mais simples no caso das redes de computadores, por maiores que sejam. Como essas redes podem ser mapeadas mais facilmente, torna-se menos trabalhoso identificar os hubs e interferir em seu funcionamento, dissipando potenciais ataques de hackers que tentem sobrecarregar o sistema induzindo a sua sincronização. Já a aplicação social desse novo conhecimento pode ser controversa. É provável que ninguém se opusesse à tentativa de impedir a Millenium Bridge de balançar lateralmente. Mas o que dizer de alguém que se aproveitasse de um grupo de contrários posicionados em pontos estratégicos de uma plateia com a intenção de atrapalhar uma estrondosa salva de palmas? n

Artigo científico LOUZADA, V.H.P. et al. How to suppress undesired synchronization. Scientific Reports. v. 2 (658). 2012. pESQUISA FAPESP 201  z  65


tecnologia

INDÚSTRIA AUTOMOTIVay

Parceria

multinacional Empresas de autopeças instaladas no Brasil produzem soluções em conjunto com a matriz e centros de P&D de outros países

O

sistema flex fuel foi inteiramente desenvolvido nos laboratórios brasileiros da multinacional alemã Bosch e da italiana Magneti Marelli. Essa tecnologia, que permite ao automóvel funcionar com etanol, gasolina ou qualquer mistura entre os dois combustíveis, foi criada por engenheiros brasileiros e contou com o apoio das matrizes na Alemanha e na Itália. Conhecido pelo pioneirismo no uso em larga escala de biocombustíveis, principalmente o etanol da cana-de-açúcar, o Brasil tenta se firmar também como um polo de inovação na área de componentes automotivos. Para isso, conta com o apoio de vários centros de pesquisa e desenvolvimento de indústrias de autopeças instalados no país. Além da Bosch e da Magneti Marelli, a alemã Mahle também trabalha em várias soluções, boa parte delas direcionada aos combustíveis alternativos. Esses centros, em conjunto com as indústrias de veículos instaladas no país, vão desenvolver a tecnologia necessária para o cumprimento do novo regime automotivo anunciado pelo governo federal no início de outubro. Pelo acordo, as fabricantes de veículos terão isenções no Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) se apresentarem investimentos em pesquisa e desenvolvimento em itens como melhor eficiência no

66  z  novembro DE 2012

gasto de combustíveis. Avanço que certamente se reflete no futuro do sistema flex. “O flex fuel é um exemplo muito positivo”, diz Celso Eduardo Fávero, chefe de engenharia de desenvolvimento de produtos da Bosch no país. “Recebo pelo menos um telefonema por semana de gente de outros países indagando sobre biocombustíveis. As normas e produtos para etanol que estão lá fora partem do Brasil. Isso significa que estamos transferindo tecnologia”, diz ele. O envolvimento da engenharia brasileira da Bosch com as tecnologias para uso do álcool combustível começou em 1985 e em meados da década seguinte a empresa forneceu o sistema flex ao primeiro automóvel do mundo (um veículo Ômega, da General Motors do Brasil) que podia rodar com qualquer mistura de etanol ou gasolina. Os automóveis flex foram colocados no mercado nacional em 2003 e quatro anos depois a Bosch deu início à exportação de sistemas flex fuel semelhantes, que passaram a equipar modelos da montadora Peugeot vendidos na Suécia e na França. Nesses países, a gasolina recebe uma adição de 5% a 85% de etanol. O investimento em pesquisa na empresa resultou recentemente em uma nova bomba de combustível para motores flex. O dispositivo é responsável por deslocar o combustível que está no tanque do carro para o sistema de alimentação do motor.

infográfico  laura daviña  ilustração drüm  fontes mahle, magneti marelli e bosh

Yuri Vasconcelos


Mahle Produto: filtro de combustível Líder no mercado nacional de filtros de combustível, com 90% de participação, a Mahle está em estágio final de desenvolvimento de um novo filtro para motores flex fuel, mais eficiente e durável do que os convencionais. O projeto foi elaborado pelos engenheiros e técnicos do centro de P&D da empresa em Jundiaí (SP), o segundo maior do grupo no mundo. O desenvolvimento contou com apoio da matriz, localizada em Stuttgart, na Alemanha.

Väsby

Frankfurt Bielsko-Biala Gerlingen Turim

Magneti Marelli Produto: amortecedor semiativo O desenvolvimento do produto envolveu engenheiros da empresa em Turim, na Itália, Mauá (SP), no Brasil, e Bielsko-Biala, na Polônia, além de um fornecedor de Väsby, na Suécia. Os italianos fizeram a coordenação do projeto e a criação dos sistemas eletrônicos e os brasileiros desenvolveram o projeto mecânico. Uma empresa sueca de autopecas, a Öhlins Racing, forneceu a eletroválvula que equipa o amortecedor. O produto foi montado e testado na Polônia.

Campinas Jundiaí

Mauá

bosch Produto: sistema flex fuel A Bosch desenvolveu o sistema flex fuel que faz os carros rodarem com gasolina, álcool ou qualquer mistura entre os dois combustíveis. Desenvolvido por engenheiros brasileiros, em Campinas (SP) com apoio da matriz alemã, na cidade de Gerlingen, um protótipo do sistema foi lançado em 1994 e o primeiro modelo comercial em 2003. A divisão de gasoline systems da empresa no Brasil é o centro de competência mundial para o etanol e coordena os principais desenvolvimentos mundiais que o grupo faz com esse biocombustível.

pESQUISA FAPESP 201  z  67


Presença do etanol no mundo Além do Brasil, outros países usam uma mistura de gasolina e álcool como combustível veicular O Brasil foi um dos pioneiros no uso do

E05

E10

5%

10%

25%

min. de GASOLINA (E0)

95%

90%

75%

Energia relativa comparada à gasolina E05

100%

etanol em veículos. É também o único que

E25

E85

E100

tem carros com motores programados para rodar apenas com etanol ou com qualquer caso, os automóveis flex. Na Europa, muitos países acrescentam 5% de etanol anidro (sem água) na gasolina, combustível que no linguajar técnico recebe o nome de E05. Há estudos para elevar esse percentual para

máx. de ETANOL sem água

ÁGUA 7%

85%

ETANOL

93%

15%

10%. Nos Estados Unidos, a mistura varia de 5% a 10%, embora em cerca de 1% dos postos seja possível encontrar o E85 – gasolina com 85% de etanol. Na Suécia, 40% dos postos oferecem esse combustível (E85). No Brasil, a gasolina também recebe uma adição expressiva de etanol anidro, entre 18% e 25%.

O desafio da empresa foi criar um componente mais durável e com melhor desempenho do que o convencional – a Bosch detém cerca de 80% do mercado desse produto no Brasil. “As bombas que trabalham em motores flex sofrem sérios problemas de degradação. O etanol é um combustível muito agressivo que causa corrosão em alguns componentes do motor. Para tornar as bombas mais resistentes, a solução encontrada por nossa equipe foi aplicar um tratamento superficial que protege os componentes suscetíveis ao ataque do etanol”, explica Ederson Conti, gerente de engenharia de desenvolvimento de software da Bosch. Assim como ocorreu com o sistema flex, a nova bomba foi feita pelos engenheiros brasileiros, com ajuda de outros da matriz, na Alemanha. “Foi um trabalho multidisciplinar e também multicultural”, afirma Conti. O produto, já usado em larga escala pelas montadoras instaladas no Brasil, é exportado para outros países, entre eles Estados Unidos, Suécia e Tailândia. Os engenheiros da divisão de amortecedores da Magneti Marelli no Brasil também trabalham em conjunto com seus congêneres italianos no desenvolvimento de novos produtos. Um dos mais recentes é um amortecedor semiativo com comando eletrônico de última geração que, desde 2009, equipa dois carros sofisticados do grupo Fiat, o Alfa Mito e o Lancia Delta. A novidade do amortecedor semiativo é que ele confere mais estabilidade ao veículo, porque conta com uma central de processamento e sensores localizados em pontos estratégicos do carro. 68  z  novembro DE 2012

96%

92,3%

Mistura etanol e gasolina

O produto começou a ser desenvolvido em 2003 e coube à divisão de amortecedores no Brasil criar o projeto mecânico da peça. O trabalho foi coordenado pela matriz, na Itália, que também projetou os sistemas eletrônicos e a lógica de controle. Um fornecedor da Suécia elaborou a eletroválvula, componente para o funcionamento do sistema, e a unidade da Magneti na Polônia fez a montagem e os testes finais do produto. “O centro técnico de amortecedores em Mauá, em São Paulo, é um dos nove centros de competência da Magneti no mundo. Isso se deve ao fato de a especialização de nossa unidade em amortecedores ser antiga, anterior mesmo à aquisição da Cofap pela Magneti Marelli”, conta Luiz Bloem Júnior, gerente de engenharia de inovação da unidade de amortecedores da Magneti Marelli. “Interagimos com equipes de outros países em projetos de engenharia simultânea”, diz Bloem. A empresa italiana comprou a fabricante brasileira Cofap em 1997. A multinacional detém 72% do mercado de amortecedores originais do país e produziu 29,6 milhões de peças em 2011. A multinacional italiana também desenvolveu, no início da década passada, um sistema para motores flex no Brasil diferente daquele da Bosch. Enquanto o da companhia alemã usa um sensor físico para fazer a leitura de combustível e determinar os parâmetros do funcionamento do motor, o da Magneti, batizado de Software Flexfuel Sensor, emprega a quantificação do oxigênio presente nos gases do escapamento e, assim, calibra o sistema para trabalhar com as diferentes misturas de álcool e gasolina.

72%

66%

Flex fuel

infográfico  laura daviña  ilustração drüm  fonte bosh

mistura desse combustível e gasolina – no


“As pesquisas iniciaram-se em 1997 e o produto, todo elaborado no Brasil, foi lançado em 2003. A partir dele, a unidade brasileira da Magneti Marelli foi definida como o centro de referência para o desenvolvimento de sistemas para combustíveis alternativos. Recebemos muitas solicitações da matriz e se qualquer unidade da empresa no mundo quiser fazer um desenvolvimento nesta área, nós somos consultados”, diz Eduardo Campos, gerente comercial da divisão de powertrain da empresa. A Magneti detém 43% do mercado nacional de sistemas biocombustíveis. reter as impurezas

eduardo cesar

Localizado no município de Jundiaí, a 50 quilômetros de São Paulo, o centro de tecnologia da Mahle é considerado o centro de competência mundial da empresa no desenvolvimento de filtros para combustíveis alternativos. A unidade de P&D da empresa, uma das 30 maiores indústrias automotivas do mundo, faz parte de uma rede composta por oito centros similares espalhados pelo mundo e é formada por 230 técnicos e engenheiros. “O Brasil é o segundo maior centro de tecnologia da Mahle em orçamento, pessoal e produtos”, diz o brasileiro Ricardo Abreu, vice-presidente mundial de P&D da Mahle. “A necessidade de desenvolvimento de soluções para o mercado brasileiro de biocombustíveis faz a unidade no Brasil ganhar importância em termos globais”, diz ele. Uma dessas soluções, em estágio final de desenvolvimento, é um filtro de combustível de nova geração para aplicação em motores flex fuel. A função desses filtros é reter impurezas presentes no combustível que podem afetar negativamente o funcionamento do motor. A primeira geração de filtros flex ficou pronta em 2003. A segunda tem a função de duplicar ou triplicar a vida útil do equi-

pamento, hoje de cerca de 10 mil quilômetros – metade da durabilidade dos filtros destinados a motores que rodam exclusivamente com gasolina. “Existem três razões para a vida útil dos filtros dos carros movidos a etanol ou flex ser tão baixa”, explica Fabio Moreira, gerente de P&D da divisão de filtração e periféricos de motor da Mahle. “A primeira está relacionada à quantidade de contaminantes presentes no etanol braO próximo sileiro, cerca de 40% maior quando desafio do comparada à gasolina. A segunda razão é devido ao consumo do veículo sistema flex flex, até 30% maior quando comparado ao movido apenas a gasolina. E a são os motores terceira está relacionada à formação de uma substância gelatinosa no fila injeção direta, tro, que ocorre devido a certas conapontados como dições. Esse gel entope a superfície filtrante e reduz sua durabilidade”, sucessores dos diz Moreira. Para contornar os problemas, a empresa desenvolveu dois motores atuais modelos de filtro – o Double-Flex e o Flexible Packing. Os dois foram bem aceitos, mas houve uma preferência pelo Flexible Packing. Além da maior área filtrante e uma vida útil, estimada em 30 mil quilômetros, o motorista troca apenas o cartucho do elemento filtrante – feito de uma espécie de papelão –, preservando o corpo plástico do filtro. Os testes de durabilidade da nova peça devem ser iniciados no segundo semestre de 2013 e, se tudo correr bem, ela estará no mercado em 2015. Apesar de reconhecer a importância do trabalho dos centros de P&D de algumas multinacionais do Laboratório do centro setor de autopeças, o professor Eduardo Vasconde tecnologia cellos, da Faculdade de Economia, Administração e automobilística Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA/ da Bosch, USP), acredita que ainda falta muito para o Brasil em Campinas ser reconhecido como um centro de referência no desenvolvimento de soluções para a indústria automobilística. “As empresas de componentes automotivos têm diferentes posturas em relação ao papel de suas subsidiárias em termos de P&D. Para mim, o Brasil tem condição de fazer muito mais do que em geral as matrizes permitem.” O professor Francisco Nigro, da Escola Politécnica da USP, concorda com o colega da FEA. “Não estamos nos firmando como um centro gerador de tecnologia em biocombustíveis. Estamos tentando melhorar a eficiência energética dos motores a etanol, mas, quando o comparamos com os motores a gasolina feitos lá fora, vemos que ainda estamos longe”, diz Nigro. Ele se refere, por exemplo, aos motores a injeção direta em que o combustível é injetado na câmara de combustão do motor em alta pressão. Esse tipo de tecnologia é apontado como sucessor dos motores atuais porque economiza combustível e diminui a emissão de poluentes. n pESQUISA FAPESP 201  z  69


pesquisa empresarial y

Voos de futuro Embraer investe em parcerias para desenvolver de biocombustíveis a inovação em cabines Dinorah Ereno

A

Embraer, terceira maior fabricante de jatos comerciais do mundo, atrás apenas das gigantes Boeing (Estados Unidos) e Airbus (União Europeia), foi criada para transformar ciência e projetos de pesquisa em produtos tecnológicos. “O conhecimento está no DNA da empresa”, diz Mauro Kern, vice-presidente de engenharia e tecnologia da Embraer, onde começou há 30 anos. “No pós-guerra havia a visão de que a indústria aeronáutica poderia ser uma grande incentivadora para a tecnologia no país”, relata o engenheiro mecânico formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O primeiro movimento nesse sentido foi a criação do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), em parceria com o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), dos Estados Unidos, para a formação de engenheiros aeronáuticos. Depois veio o Centro Tecnológico de 70  z  novembro DE 2012

Aeronáutica (CTA), que nas décadas de 1950 e 1960 desenvolveu projetos com o objetivo de formar uma base de conhecimento tecnológico. Um deles viabilizou a indústria aeronáutica em 1969: “A Embraer foi constituída para produzir o avião Bandeirante”, diz Kern. Novos projetos vieram a reboque, como o do monomotor agrícola Ipanema no final dos anos 1960 e produzido em série a partir de 1972. “O primeiro avião certificado no mundo para voar com biocombustível é produzido até hoje.” Entre 1983 e 1984, Kern passou seis meses na Itália dedicado ao programa AMX, linha de aviões militares desenvolvida em colaboração com duas empresas italianas e voltada à capacitação da indústria nacional em integração de sistemas. O engenheiro eletrônico formado pelo ITA Andrea Barp, da área de simulação e modelagem de sistemas da Embraer, também passou uma temporada na Itália em 1983 junto com outros jovens pes-


léo ramos

A partir da esquerda, Alexandre Filogonio, Paulo Anchieta, Fernando Fernandez, Allan Pereira, Mauro Kern e Andrea Barp, na sede em São José dos Campos

quisadores. “O grau de integração e a complexidade dos sistemas embarcados na aeronave eram considerados avançados para a época, principalmente por causa do software embarcado”, diz ele. Os desafios do grupo brasileiro foram superados com muito estudo, e o conhecimento adquirido nessa jornada permitiu que, cinco anos depois, a Embraer já fizesse o software embarcado da aeronave AMX. Na verdade, a empresa procurou adquirir autonomia em todas as etapas de desenvolvimento e construção de uma aeronave. Quando, por exemplo, Kern voltou ao Brasil, foi alocado em uma filial da empresa criada para desenvolver competência em trens de pouso e hidráulica fina. “Fui o primeiro engenheiro do corpo técnico dessa filial”, diz Kern. Foram vários programas de cooperação e desenvolvimento até 1996, quando a Embraer certificou o trem de pouso do ERJ 145 ( jato regional de 50 assentos), o primeiro total-

mente desenvolvido pela empresa. Em 1999 Kern foi para a matriz, onde se dedicou aos projetos das séries Embraer 170 e 190, linha de jatos comerciais com capacidade para 70 até 120 assentos. Inicialmente trabalhou como engenheiro-chefe do projeto 190, depois assumiu a diretoria dos programas 170 e 190 e a vice-presidência da aviação comercial. Há um ano e meio, Kern responde pela vice-presidência de engenharia e tecnologia, função que abarca todos os programas aeronáuticos da empresa. Barp, que trabalhava com aviões de defesa para uso militar, também foi chamado para o programa de jatos regionais Embraer 170 e 190 em 2000. “Minha tarefa era ajudar a fazer a integração dos modelos de simulação aos dispositivos de ensaios, que até então eram quase estáticos”, diz. Sem uma simulação realista das condições de voo, não seria possível preparar a aeronave para o seu primeiro teste no ar. Nessa época, a Embraer pESQUISA FAPESP 201  z  71


delegava a fornecedores a responsabilidade pela integração e desenvolvimento do software embarcado – que responde pela conexão de tudo que está no avião e por uma série de funcionalidades importantes para a competitividade do produto e dos serviços a ele associados, o que trazia dificuldades aos desenvolvimentos. Em 2005, Barp começou a estudar as causas fundamentais desses obstáculos. Para reverter esse quadro, colocou o foco em métodos, procedimentos, ferramentas e ambientes que estendessem o uso da modelagem matemática e da simulação de sistemas ao longo de toda a cadeia de valor de fabricação de uma aeronave, que engloba testes, certificação e suporte aos clientes. Na Embraer a área de pesquisa e desenvolvimento (P&D) é distribuída em competitiva e pré-competitiva. A competitiva foi responsável, desde o ano 2000, pela família de jatos comerciais 170, 175, 190 e 195, chamada E-Jets, com capacidade de 70 a 120 assentos, o Legacy 600, que marcou a entrada da empresa no mercado da aviação executiva, além dos Phenom 100 e 300, que são jatos executivos pequenos para até 11 ocupantes, e do Lineage 100, jato executivo com interior de 120 metros quadrados, com vários ambientes para os passageiros. Atualmente estão sendo desenvolvidos os Legacy 450 e 500 e o KC 390, um avião cargueiro militar, “o maior da categoria e o maior já projetado pela Embraer”, segundo Kern. “Ele tem características de desempenho muito interessantes, como aterrissagem em pistas curtíssimas e reabastecimento durante o voo”, relata. Na escolha do portfólio de projetos de desenvolvimento tecnológico há uma interação muito intensa entre 72  z  novembro DE 2012

Linha de montagem de jatos comerciais

a aviação comercial, a executiva e a de defesa e segurança. Em 2011, a receita líquida da Embraer foi de R$ 9,8 bilhões, 63,6% correspondentes ao segmento de aviação comercial. No desenvolvimento pré-competitivo não existe um produto em vista, mas tecnologias que poderão ser usadas em futuros projetos, a exemplo da soldagem por atrito, processo feito em estado sólido para produzir soldas pela rotação ou pelo movimento de peças sob compressão. Há uma “Essa soldagem permite um alívio de peso interessante para a indústria aeinteração ronáutica”, diz Fernando Fernandez, engenheiro mecânico formado pela entre a aviação Escola de Engenharia Industrial de São José dos Campos com mestracomercial, do no ITA, que trabalhou com a teca executiva nologia no período de 2003 a 2011. Por enquanto, a soldagem por atrito e a de defesa será usada apenas em um pequeno painel do avião Legacy 500, que até e segurança o final do ano estará no ar. Desde o ano passado, Fernandez analisa tecnologias “com um olhar para daqui a 15 ou 20 anos”. A Embraer tem vários projetos em cooperação com institutos de pesquisa, universidades e outras empresas. Um dos exemplos é o Centro de Engenharia de Conforto (ver mais em Pesquisa FAPESP nº 194), projeto em parceria com as universidades de São Paulo (USP), Federal de Santa Catarina (UFSC) e Federal de São Carlos (UFSCar), com apoio da FAPESP e da Financiadora de Estudos e Projetos


(Finep). O laboratório de conforto, com cerca de 300 metros quadrados, tem como objetivo melhorar o interior das aeronaves e o nível de bem-estar dos passageiros. No projeto financiado pela FAPESP “Aeronave silenciosa: uma investigação em aeroacústica”, um grupo formado por 70 pesquisadores da Embraer, da USP, da Universidade de Brasília, da UFSC e da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) desenvolve métodos e equipamentos para supressão de ruídos. As primeiras discussões que levaram ao projeto tiveram início em 2003, com a participação de Allan Kardec Pereira, 47 anos, engenheiro aeronáutico formado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O acoplamento entre vibração e ruído interno em aviões foi tratado no pós-doutorado de Pereira na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em engenharia mecânica. O pesquisador trabalhou por dois períodos na Embraer. O primeiro foi em 1989 na área de desenvolvimento de produto. No começo da década de 1990, Pereira voltou para Minas, onde fez mestrado na área de otimização na UFMG, e depois doutorado na

R$ 9,8

bilhões

foi a receita líquida da empresa em 2011

Menos carbono

2

Técnicos trabalham nas várias etapas de fabricação, como instalação acústica (abaixo)

fotos  Léo ramos

Unicamp em controle de vibrações. Na volta para a Embraer, em 2001, trabalhou nas áreas de desenvolvimento de produto e depois anteprojeto, responsável pela criação dos primeiros conceitos de um novo produto. “Trabalhei nos primeiros projetos do Phenom 100 e 300 e do Legacy 500”, diz. Em abril deste ano, um projeto desenvolvido pela empresa em associação com um consórcio de empresas portuguesas e o instituto de engenharia industrial Inegi, ligado à Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, venceu o Crystal Cabin Award na categoria Conceitos Visionários, prêmio internacional de inovação para interiores aeronáuticos. Chamado de Life, o projeto apresenta uma nova concepção para a aviação executiva do futuro, com materiais como cortiça e couro, fibras ópticas e diodos emissores de luz (LEDs). A Embraer também participa de consórcios com outras empresas do ramo e institutos de pesquisa para o desenvolvimento de novas tecnologias de manufatura, de materiais compostos, estruturas metálicas e sistemas embarcados. “Temos projetos em várias frentes e de várias naturezas”, diz Kern. Uma das frentes são os projetos para desenvolvimento de biocombustíveis. Um deles, em parceria com as empresas norte-americanas Amyris e GE, com a participação da Azul Linhas Aéreas, tem como foco a produção de biocombustíveis para jatos a partir do etanol da cana-de-açúcar. Outro, em colaboração com a Boeing e financiamento da FAPESP, tem como objetivo identificar alternativas sustentáveis para o desenvolvimento e produção de biocombustíveis destinados à aviação comercial no Brasil. “Os biocombustíveis gerados a partir de fontes renováveis, além de serem uma alternativa ao querosene de aviação obtido do petróleo,

4

pESQUISA FAPESP 201  z  73


fotos  1 e 2 léo Ramos  3 a 6 embraer

1

Laboratório de testes e checagem de materiais (à esquerda) e painel do Legacy 450 (acima)

2

também contribuem para reduzir a emissão de carbono”, diz Alexandre Tonelli Filogonio, formado em engenharia mecânica pela UFMG e com pós-graduação em engenharia econômica pela Fundação Dom Cabral, que lidera um grupo dedicado ao tema de combustíveis alternativos na área de desenvolvimento tecnológico pré-competitivo. Pelos dados do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), a aviação comercial responde por 2% das emissões totais de gás carbônico (CO2) geradas pelas atividades humanas. O desafio é reduzir as emissões de maneira que em 2050 elas sejam equivalentes à metade do que foi emitido pelo setor em 2005, conforme compromisso assumido pela indústria em abril de 2008 e ratificado em março de 2012. Uma área com destaque na Embraer é a de monitoramento da saúde de aeronaves, coordenada por Paulo Anchieta, de 46 anos, que tem uma singular trajetória pro-

O monitoramento funciona como uma ferramenta preventiva de análise dos componentes do avião

Instituições que formaram pesquisadores da empresa Mauro Kern, vice-presidente de engenharia e tecnologia

UFRGS – graduação

Andrea Barp, área de simulação e modelagem de sistemas

ITA – graduação

Fernando Fernandez, área de desenvolvimento de materiais e processos

Escola de Engenharia Industrial – graduação ITA – mestrado

Allan Kardec Pereira, desenvolvimento tecnológico

UFMG – graduação e mestrado Unicamp – doutorado e pós-doutorado

Alexandre Tonelli Filogonio, área de combustíveis alternativos

UFMG – graduação Fundação Dom Cabral – pós-graduação

Paulo Anchieta, área de monitoramento da saúde de aeronaves

Universidade Salesiana de Lorena e Unesp de Guaratinguetá – graduação

74  z  novembro DE 2012

3

fissional. Ele começou há 26 anos como técnico mecânico, depois foi transferido para o setor de engenharia, onde preparava dados matemáticos utilizados pelos engenheiros para avaliação das estruturas dos aviões. Com formação em colégio técnico, Anchieta decidiu cursar matemática na Universidade Salesiana em Lorena, no interior paulista. “Com o curso, tive a oportunidade de auxiliar mais engenheiros em outras frentes que eles não tinham domínio”, diz. O trabalho de monitoramento funciona como uma ferramenta preventiva de análise dos componentes dos aviões, com o objetivo de evitar contratempos futuros. A tecnologia de gerenciamento da saúde de sistemas, chamada de PHM (prognostics and health management), foi eleita em 2009 como uma das 10 tecnologias mais promissoras para a aviação pelo Instituto Americano de Aeronáutica e Astronáutica (AIAA). A experiência de Anchieta com aviões militares foi o passaporte que o levou a ser convidado a trabalhar no projeto de monitoração e saúde de aviões comerciais. “A estrutura do avião militar é monitorada como se fosse uma inspeção de saúde nas pessoas”, compara Anchieta, que cursou engenharia mecânica no curso noturno na Faculdade de Engenharia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Guaratinguetá para poder assumir funções mais compatíveis com o seu conhecimento e experiência. A crise financeira do início da década de 1990, que resultou em cortes drásticos de funcionários


5

4

na empresa, transformou-se em aprendizado para Anchieta. “Tive que fazer várias funções.” Na época, apenas 30 pessoas eram responsáveis por todas as tarefas de engenharia relacionadas à análise estrutural. Hoje, dos mais de 17 mil funcionários, 4 mil estão na engenharia, entre engenheiros e técnicos projetistas aeronáuticos. Ainda na década de 1990, incentivado pela empresa, Anchieta cursou várias disciplinas de pós-graduação no ITA, o que ampliou consideravelmente seu leque de conhecimento teórico. Ao assumir a liderança da equipe de monitoramento da saúde de aeronaves, Anchieta procurou parceiros para desenvolver inovações para a aviação comercial. Inicialmente entrou em contato com a Faculdade de Engenharia Mecânica da UFU e a Faculdade de Engenharia da Unesp de Ilha Solteira. As colaborações foram estendidas com a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, a Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, além de pesquisadores da UFMG e do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD), de Campinas. Alguns projetos já foram encerrados e renderam frutos. detecção precoce

A pesquisa em parceria com a federal de Uberlândia resultou em um novo projeto para desenvolver a serialização do sistema de monitoração estrutural. “Estamos desenvolvendo um sistema de software e hardware, baseado na tecnologia chamada de impedância eletromecânica, para fazer o trabalho sensorial nos aviões”, diz Anchieta. A partir de resultados de vibração, os sensores irão apontar se existem falhas, onde se localizam e a possível severidade delas. O

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Jatos executivos Phenom 100 (esquerda) e Lineage 100 (acima) e representação artística do cargueiro militar KC 390 (direita), em desenvolvimento

sistema será aplicado primeiro nos ensaios de fadiga de aeronaves. “Haverá um ganho fantástico, porque a detecção de uma trinca em fase inicial evitará prejuízos futuros com a sua propagação.” A próxima etapa é dar condições para que o sistema sensorial seja qualificado para utilização em voos, tanto de aeronaves militares como comerciais e executivas. Em julho deste ano, no European Workshop Structural Health Monitoring (SHM), em Dresden, na Alemanha, foi realizado um congresso sobre a tecnologia e Anchieta foi o vencedor do prêmio anual, indicado pelo professor de astrofísica Fu-Kuo Chang, da Universidade Stanford. A escolha do premiado é feita por um comitê internacional, do qual participam 120 pessoas ligadas às áreas acadêmica, governamental e industrial, como a Nasa, agência espacial norte-americana, centros de pesquisa americanos, europeus, australiano e japoneses, além de profissionais que atuam na Airbus, Boeing e Bombardier. n pESQUISA FAPESP 201  z  75


Remédio em Biolab utiliza nanotecnologia na produção de anestésico e de medicamento para tratar calvície Evanildo da Silveira

Representação artística mostra a relação de tamanho entre nanopartículas, na cor rosa, e um fio de cabelo

76  z  novembro DE 2012


Indústria farmacêutica y

ilustração  gabriel bitar

F

ármacos produzidos na forma de cápsulas nanométricas é a nova estratégia tecnológica da Biolab, empresa farmacêutica brasileira sediada em São Paulo. A inovação se apresenta em dois medicamentos que estão em desenvolvimento, um creme anestésico e uma solução para tratamento da alopecia, principalmente na calvície ou, em menor grau, na falta de pelos no corpo A novidade é composta de nanocápsulas feitas de um polímero, uma espécie de plástico biodegradável que libera os princípios ativos lentamente no organismo e provoca uma ação terapêutica mais prolongada, além de reduzir os efeitos colaterais. Os medicamentos, resultado de uma parceria que já dura uma década entre a Biolab e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), estão em testes clínicos e deverão ficar prontos para uso no final de 2013, depois de passarem pelo crivo da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Para o diretor de pesquisa, desenvolvimento e inovação da Biolab, Marcio Falci, a ideia de desenvolver os dois novos produtos surgiu na área de gestão do conhecimento da empresa. Esse setor mantém um banco de dados com todo o conhecimento da Biolab e com informações sobre o que é feito e pesquisado no mundo no campo de atuação da empresa. “Isso nos possibilita estabelecer tendências, estudar os avanços tecnológicos relacionados com as linhas de nossos medicamentos e pesquisas, conforme o interesse estratégico da empresa”, explica. “Também fazemos o mapeamento das instituições de pesquisa,

de universidades e seus pesquisadores, o que auxilia em muito nossa prospecção tecnológica para produtos futuros.” Foi assim que um dos estudos realizados concluiu que os mercados de anestésicos e de drogas capilares tinham um bom espaço para crescimento. “Para atender às necessidades médicas detectadas, a inovação que poderíamos incorporar, no sentido de oferecer tratamentos mais eficientes e seguros, apontava para o emprego de nanotecnologia nos princípios ativos de produtos já existentes”, explica Falci. “O nanoencapsulamento foi escolhido por já fazer parte de nossas ferramentas produtivas.” Os princípios ativos que serão utilizados são a prilocaína e a lidocaína, no caso do anestésico, e a finasterida para a calvície. Todos são conhecidos pela comunidade médica e usados em vários medicamentos existentes no mercado. A empresa recorreu à antiga parceria com a UFRGS que já havia dado resultado positivo na formulação de outros produtos nanotecnológicas, no caso cosméticos e protetores solares (ver Pesquisa FAPESP nº 167), para absorver a nanotecnologia em seus novos produtos. Dois grupos de pesquisa atuam em conjunto na universidade, um coordenado pela farmacêutica Adriana Pohlmann, do Instituto de Química, e outro pela também farmacêutica Sílvia Guterres, professora da Faculdade de Farmácia. O trabalho conjunto para a formulação das nanocápsulas com a Biolab começou na UFRGS em 2005, em resposta a um edital de 2004 do Conselho

Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). “Recebemos apoio financeiro do MCTI [Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação], por meio do CNPq”, conta Adriana. “A empresa deu a sua contrapartida também e começamos o trabalho, que se estendeu até 2007, quando depositamos um pedido de patente no INPI [Instituto Nacional de Propriedade Industrial].” A partir daí, coube à Biolab prosseguir com o desenvolvimento dos medicamentos, realizando testes em seres humanos e planejando a produção em grande escala. Na UFRGS foi desenvolvida a tecnologia de nanoencapsulamento dos princípios ativos usados pela Biolab, que entram na composição do anestésico e do medicamento capilar. As nanocápsulas são esféricas, com um diâmetro médio de 200 nanômetros – 1 nanômetro equivale a 1 milímetro dividido por 1 milhão. Para comparar, um fio de cabelo tem a espessura de cerca de 50 mil nanômetros. No caso específico dos dois medicamentos da Biolab, o uso das drogas se fará por meio de aplicação tópica na forma de suspensão, creme ou gel. “Por causa das pequenas dimensões das nanocápsulas, elas atingem apenas a camada da pele na qual será produzido o efeito terapêutico desejado, no caso, a derme, sem que os princípios ativos atinjam a corrente sanguínea e provoquem problemas colaterais”, explica Falci. “Em contato com a pele, elas podem se romper ou ocorrer a erosão da parede polimérica, liberando gradualmente as substâncias ativas no local da derme que se buscou atingir.” pESQUISA FAPESP 201  z  77


Fármacos no interior de nanoesferas agem em camada profunda da pele produto normal

NAnocápsula

50 mil nanômetros

200 nanômetros em média

produto nanoencapsulado

Princípio ativo Núcleo oleoso e parede polimérica

Núcleo oleoso epiderme

Parede polimérica

derme

Princípio ativo

hipoderme

composição  As nanocápsulas são formadas a partir de um polímero biodegradável que se solidifica contendo o princípio ativo em seu interior e um óleo que o torna solúvel

ação  As nanocápuslas conseguem ultrapassar os poros da pele e da epiderme, o que não acontece com os produtos tradicionais. Nessa passagem, as paredes biopoliméricas se rompem

e o princípio ativo do medicamento chega à derme, mas não penetra nos vasos sanguíneos. Dessa forma, o medicamento age efetivavemente na região a ser tratada

fonte biolab

Nanomedicamentos, como os dois desenvolvidos pela Biolab, se inserem num contexto maior, uma verdadeira revolução tecnológica que é a nanotecnologia. Trata-se da engenharia de materiais em escala de átomos e moléculas, que começa a causar impacto em várias áreas industriais, na agricultura, na biologia, além da medicina e farmacologia. Alguns produtos com essa tecnologia já estão no mercado. Entre eles, podem ser citados vidros e cerâmicas autolimpantes, tecidos que não mancham, fármacos que circulam pela corrente sanguínea até chegar ao órgão doente, além dos sensores de línguas eletrônicas mais sensíveis que a humana na distinção de sabores. De acordo com um estudo de 2010 da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), chamado Panorama da Nanotecnologia no Mundo e no Brasil, em 2004, os produtos nanotecnológicos movimentaram na economia mundial não mais do que US$ 13 bilhões, o que representava menos que 0,1% da produção global de bens manufaturados naquele ano. Três anos depois, esse mercado havia crescido 10 vezes, chegando a US$ 135 bilhões (incluindo semicondutores e equipamentos eletrônicos). A previsão é de que esse valor chegue a US$ 1 trilhão no próximo ano e atinja US$ 2,95 trilhões em 2015 ou mais de 15% de todos os bens industrializados fabricados no planeta. 78  z  novembro DE 2012

Hoje a maior parcela desse mercado é do setor químico, 53%, seguido pelo de semicondutores, 34%. Tempo de aprovação

Na área da saúde, a nanotecnologia é empregada na indústria de produtos médicos, veterinários, material para diagnóstico por imagens e, em maior quantidade, na área de cosméticos. Em relação a esses últimos, a Biolab já tem no mercado a linha Photoprot, de protetores solares, também desenvolvida em parceria com a UFRGS. A empresa lançou ainda a linha Skan, composta por um musse de limpeza e um gel-creme para o controle da oleosidade da pele. Nesses casos, o tempo entre o início do desenvolvimento do cosmético e a sua chegada às prateleiras das farmácias é menor, porque a legislação para a liberação desses produtos é menos rigorosa em relação aos novos medicamentos. A Biolab pretende trabalhar para mudar esta situação, tornando mais rápida a liberação da venda de novas drogas. “Vamos solicitar ao governo que se crie uma fila especial na Anvisa para medicamentos que tenham inovação”, diz o diretor científico da Biolab, Dante Alario Junior. “Como o incentivo à inovação faz parte da política científica do atual governo, cremos que nossa solicitação faz sentido. Hoje uma nova droga pode levar de um ano e meio a dois anos para

ser analisada e liberada pela Anvisa. Para produtos inovadores esse prazo deveria ser menor. Do jeito que está há risco de a inovação já estar velha quando a venda do medicamento for permitida.” No caso do nanoanestésico, a Biolab estima que o mercado potencial é de cerca de R$ 30 milhões por ano. Quanto ao produto para a calvície, a perspectiva é maior ainda: R$ 95 milhões. “Esses produtos tiveram crescimento inferior ao do mercado total farmacêutico, que aumentou 59% em unidades vendidas e 89,65% em faturamento nos últimos cinco anos”, conta Falci. “Em comparação, o mercado para anestésicos cresceu, no mesmo período, 54% em vendas e 77% em faturamento, e o de tratamento da alopecia, 48% e 46,7%, respectivamente.” A empresa não revela quanto investiu nos dois novos produtos. “Na verdade, não sabemos, porque não discriminamos os gastos projeto por projeto”, justifica Alario Junior. “Investimos em pesquisa desenvolvimento e inovação entre 7% e 8% do nosso faturamento anual, que em 2012 deverá chegar a R$ 780 milhões.” Para sanar essa lacuna, a companhia contratou uma consultoria para analisar os investimentos em cada projeto e verificar como ela pode aproveitar melhor os benefícios da Lei da Inovação, a chamada Lei do Bem, que incentiva as indústrias a investirem em produtos inovadores. n

infográfico  ana paula campos  ilustração  daniel das neves

Composição e ação das nanocápsulas


léo ramos

Inovação em grupo Empresas farmacêuticas brasileiras se unem para gerar novos medicamentos

A

indústria farmacêutica nacional passa por uma nova fase. Depois da aposta nos genéricos, que ajudou os laboratórios brasileiros a se capitalizar e fortalecer, o setor pretende agora transformar o país num polo de inovação, com foco em drogas sintéticas avançadas, fitoterápicas e, principalmente, medicamentos biotecnológicos. O caminho escolhido para alcançar esse objetivo é a união de esforços. Assim, foram criadas neste ano duas grandes empresas, a Orygen e a Bionovis, cada uma formada por quatro companhias nacionais, com o objetivo de realizar pesquisas e desenvolver novos fármacos. A criação das duas empresas foi estimulada pelo BNDES, que desde 2003 realiza estudos e tenta apontar caminhos para o setor farmacêutico nacional. Em 2004, o banco lançou o Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Cadeia Produtiva Farmacêutica (Profarma), que tinha, entre seus objetivos, reduzir o déficit comercial da cadeia produtiva farmacêutica, além de estimular a realização de atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação (P, D & I)no país. Em 2010 começou a sondagem para a criação de uma grande companhia a partir da união de nove laboratórios. Durante o processo de discussão, o grupo se dividiu e surgiram a Orygen e a Bionovis. A primeira a ser criada foi a Bionovis, em março deste ano, unindo Aché, EMS, União Química e Hypermarcas. Com capital de R$ 500 milhões – 25% de cada uma – a empresa vai pesquisar, desenvolver e comercializar medicamentos biotecnológicos. “Vamos construir em 2013 um laboratório de pesquisa e desenvolvimento e uma fábrica para produzir os remédios”, diz o presidente da nova empresa, Odnir Finotti. “Nessa primeira etapa, estamos fechando parcerias com duas companhias internacionais, que irão transferir para nós a tecnologia para a produção de dois anticorpos mo-

Produzir medicamentos biotecnólógicos complexos é o principal objetivo das duas novas empresas

noclonais, um para doenças do sistema imunológico e outro para câncer.” Em maio surgiu a Orygen, também com capital de R$ 500 milhões, formada pelos laboratórios Biolab, Cristália, Eurofarma e Libbs. Para presidi-la, os quatro foram buscar em Nova York o cientista britânico Andrew Simpson, ex-diretor científico do Instituto Ludwig, que já trabalhou no Brasil e, inclusive, foi coordenador-geral dos projetos genomas da bactéria Xylella fastidiosa e do câncer iniciados no final dos anos 1990 e financiados pela FAPESP (ver Pesquisa FAPESP Especial dos 50 anos). “A nova empresa quer estabelecer a capacidade de gerar anticorpos monoclonais terapêuticos em escala industrial no Brasil, o que possibilitará ampliar o acesso desses produtos no país, e também desenvolver novas moléculas terapêuticas por meio de um ativo centro de P, D & I”, diz Simpson. “A fundação da Orygen e da Bionovis forma um agrupamento industrial farmacêutico mais completo no país, tornando possível a produção e comercialização de medicamentos complexos.”

No campo institucional essas oito companhias e mais a Hebron se uniram e criaram a associação Grupo FarmaBrasil (GFB), que tem como missão fortalecer a indústria nacional de medicamentos. Juntas, elas respondem por 36% de todo o volume de remédios fabricados no Brasil e 53% dos genéricos, empregam cerca de 30 mil pessoas e investem, em média, 6% de seu faturamento em pesquisa e desenvolvimento. Segundo o presidente da entidade, Reginaldo Arcuri, a associação surgiu para colocar em prática uma agenda estratégica, que vem sendo discutida desde 2010. Ela inclui a adoção de uma política industrial para o setor, visando aumentar a capacidade de inovação dos laboratórios nacionais e a produção de fármacos no país. “A participação das empresas nacionais no mercado de medicamentos passou de 4,7% em 1998 para 20,86% em 2011, o que representa um crescimento de mais de 400%”, diz. “Isso significa que a indústria nacional é capaz de responder não só aos desafios, mas às oportunidades geradas pelo conjunto de políticas públicas para a área da saúde no Brasil.” n Evanildo da Silveira pESQUISA FAPESP 201  z  79


Política imigratória do Estado Novo escondia projeto de branqueamento Carlos Haag

Acervo do Museu Lasar Segall – IBRAM / MinC

Os indesejáveis


diplomacia y

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Navio de emigrantes, de Lasar Segall (1939/41), pintura a óleo com areia sobre tela, 230 x 275 cm

uando, em 1995, o Arquivo Histórico do Itamaraty foi aberto ao público, parte da documentação revelou que a instituição havia participado da política racista e discriminatória de estrangeiros do Estado Novo, colocando o passado do Ministério das Relações Exteriores na incômoda posição de “porteiro do Brasil”. Uma nova pesquisa, Imigrante ideal (Civilização Brasileira), do historiador Fábio Koifman, da Universidade Federal Rural Fluminense (UFRF), isenta o Itamaraty de toda a responsabilidade por essa política restritiva. “É um equívoco historiográfico, já que se ignora que, entre 1941 e 1945, o Serviço de Visto estava alocado no Ministério da Justiça, o real responsável pela palavra final da aceitação ou não de estrangeiros”, diz Koifman. Esse foi o único momento na história da República que a atribuição não esteve no âmbito do Itamaraty. O pesquisador afirma que é a primeira vez que se analisa o papel central do Ministério da Justiça, de seu titular, o jurista Francisco Campos (1891-1968), e de Ernani Reis (1905-1954), parecerista do ministério, burocrata que, através de sua interpretação, dizia, baseado na legislação, quem entrava ou não no país. Suas sugestões quase sempre eram aceitas pelo ministro e se baseavam na seleção dos imigrantes “desejáveis”, que se encaixassem no projeto de “branqueamento” da população brasileira da ditadura Vargas. Negros, japoneses e judeus, assim como idosos e deficientes, não estavam nos padrões estabelecidos e eram recusados como “indesejáveis”. A pesquisa de Koifman começou quando ele encontrou o decreto-lei 3.175, de 1941, que passava o poder de decisão de concessão dos vistos do Ministério das Relações Exteriores para o Ministério da Justiça. Mas o Serviço de Visto em si não foi criado por decreto, embora existisse com papel timbrado e tudo. Não foi, porém, instituído formalmente e sua verba vinha de outros órgãos. “Ele foi criado para isolar seus técnicos e tomar as decisões de forma puramente técnica e fria. Eles achavam mais fácil negar o visto do que ter de decidir no porto”, conta o historiador. “Todo o processo não chegou a conhecimento público e é nele que o Francisco Campos explica para Vargas por que o Brasil deveria restringir a imigração”, fala. Funcionários do Itamaraty eram obrigados a informar o ministério com detalhes sobre a pessoa que pedia o visto e aguardar o parecer do ministro para concedê-lo ou não. A desobediência de

humanidades diplomatas às diretrizes do ministério provocava ação direta de Vargas, que poderia determinar a instauração de inquérito administrativo ou até a demissão sumária do infrator. “Esse controle aumentou quando a situação europeia se agravou com a guerra e a escalada do antissemitismo na Alemanha. Judeus e perseguidos políticos começam a sair da Europa, gerando um aumento da demanda nos consulados. Nesse momento, a política imigratória brasileira se voltou contra eles.” “No início do Estado Novo cabia ao Itamaraty gerir a política de vistos, mas isso mudou a partir de 1941. Essa troca refletia o debate na elite brasileira sobre qual era o imigrante ‘desejável’ para o ‘aprimoramento’ do povo brasileiro”, fala Koif­ man. Vargas era simpatizante aberto do ideário eugênico. Em 1930, num discurso de campanha à Presidência, avisou: “Durante anos pensamos a imigração apenas em seus aspectos econômicos. É oportuno obedecer agora ao critério étnico”. Em 1934, durante a Constituinte, o lobby eugenista, bem organizado, conseguiu a aprovação de artigos baseados nas teorias racistas. O alvo, então, era o japonês. De forma silenciosa foi institucionalizado um sistema de cotas para cada nacionalidade que foi manipulado para restringir a entrada de orientais no país. “O Brasil não foi o único a adotar medidas restritivas contra imigrantes e até ‘demorou’ a implantá-las. Democracias como os EUA e o Canadá já o faziam nos primeiros anos da década de 1920”, lembra o autor. Mas, uma vez iniciado o processo, foram rápidos. Não satisfeitos com as leis de 1934, setores da elite e intelectuais exigiram uma maior intervenção do Estado e uma seleção mais rigorosa na política imigratória. O resultado foi o decreto-lei 3.010, de 1938: exigia-se do solicitante de vistos que se apresentasse pessoalmente ao cônsul para que o diplomata visse o candidato e relatasse se era branco, negro, ou se tinha alguma deficiência física. “Segmentos letrados da sociedade brasileira e muitos homens do governo, incluindo Vargas, acreditavam que o problema do desenvolvimento brasileiro estava relacionado à má formação étnica do povo. Achavam que trazendo ‘bons’ imigrantes, ou seja, brancos que se integrassem à população não branca, o Brasil em 50 anos se transformaria em uma sociedade mais desenvolvida”, conta o pesquisador. O estrangeiro ideal era branco, católico e apolítico. A preferência pessoal de Vargas era pelos portugueses. “A maioria dos imigrantes vindos de Portugal era de origem modesta e instrução limitapESQUISA FAPESP 201  z  81


da, acostumados à ditadura salazarista”, diz Koifman. Europeus, mas sem “ideias dissolventes”, ao contrário dos grupos intelectualizados originários da Alemanha, França, Áustria, entre outros países, que produziam reflexões em jornais e livros sobre as mazelas nacionais. O ministro da Justiça detestava particularmente os intelectuais estrangeiros e chegou a propor o fechamento total do Brasil à imigração enquanto durasse a guerra na Europa, medida que o pragmatismo de Vargas rejeitou. “O Brasil, que não contribuiu para que se criassem na Europa as perseguições e as dificuldades de vida, não pode se converter numa fácil hospedaria da massa de refugiados. Não nos serve esse white trash, rebotalho branco que todos os países civilizados refugam”, argumentava Campos, também conhecido como “Chico Ciência”. “Um dos inspiradores intelectuais do Estado Novo foi influenciado pelos fascismos português e italiano, defendendo uma legislação imigratória calcada nas teorias eugênicas americanas.” Para Campos, na contramão do entusiasmo pela imigração em voga no país desde o século XIX, estrangeiros só atrasavam o desenvolvimento do país, “parasitas” que nada contribuíam para o progresso nacional. “Os judeus, por exemplo, só se dedicavam a atividades urbanas, ao pequeno comércio. O problema é que Campos e Reis logo perceberam que essas eram as mesmas atividades às quais os portugueses se dedicavam, apontando a Vargas essa contradição, para ira do ditador, que queria imigrantes de Portugal”, fala Koifman. O que abalou Campos, cuja ideologia não era isenta de interesses pessoais. Chico Ciência disputava as atenções de Vargas com Oswaldo Aranha, então à frente do Itamaraty. Para atacar o rival, martelava a tecla de que, apesar das restrições, estrangeiros continuavam a entrar no Brasil, prova da incompetência do Itamaraty na gestão da questão imigratória. Bem-sucedido, convenceu o ditador da validade de suas ideias e ganhou o poder

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de seleção de “desejáveis” e “indesejáveis” para o seu Setor de Vistos. Não conseguiu, porém, impor o ideário eugênico que admirava, sendo obrigado a “tropicalizá-lo”. “As raças admiradas pelos americanos eram minoria num país composto majoritariamente por grupos considerados ‘inferiores’”, lembra o historiador. Isso levou Campos a se concentrar no combate aos imigrantes “infusíveis” que, supostamente, tinham um grau de miscigenação baixo e, logo, não serviam ao projeto de “branqueamento” por miscigenação, entre esses, os judeus. “Mas as restrições à entrada de No Brasil, apenas judeus, tema recorrente nos estudos sobre a política imigratória do em 1934 foram Estado Novo, devem ser vistas num contexto maior, em que vários outros criadas as grupos foram igualmente classificados como “indesejáveis”. Se a conprimeiras dição de judeu dificultava a emissão de um visto, a comprovação da auleis restritivas, sência dessa condição tampouco era política que garantia de um visto”, avisa Koifman. Para o pesquisador, o antissemitismo países como os de um fascista como Campos não era análogo ao racismo dos nazistas. Estados Unidos “Após a Intentona Comunista de 1935 o Estado adotou uma visão genérica e Canadá dos judeus que os associava ao comuaplicavam desde nismo, um antissemitismo de fundo político compartilhado por Vargas”, os anos 1920 observa o pesquisador. Nas palavras de Campos: “Os judeus se tem aproveitado do descuido das autoridades brasileiras. Embora o Brasil não seja fascista ou nacional-socialista, o certo é que esses elementos comuPedido de visto feito para nizantes, socialistas, esquerdistas ou Oswaldo Aranha, liberais leem por uma cartilha que com a negativa está longe de nos convir”. do chanceler Sem negar o antissemitismo de de Vargas membros individuais do governo e da sociedade brasileira, Koifman acredita que o critério adotado mais importante, ao lado da “ameaça vermelha”, era a capacidade, ou não, da suposta capacidade de “fusão” dos imigrantes. “A preocupação estava no potencial de união de europeus brancos com descendentes de africanos e indígenas, condição necessária para conseguir o ‘aprimoramento’ das gerações futuras”, fala. “O Estado Novo não queria reproduzir o racismo, então muito em voga nos EUA e na Europa. A segregação deveria ser evitada a qualquer custo, pois dificultaria a miscigenação, força-motriz do ‘branqueamento’”, diz. Vargas não tolerava racismos contra grupos étnicos dentro do Brasil. Esse cuidado também se devia à manutenção de uma boa imagem internacional, para agradar, em especial, os EUA, cuja política racial para os


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outros não refletia a sua realidade interna. “Ser acusado de racista ativo, nas décadas de 1930 e 1940, colocava qualquer nação, diplomata ou intelectual, em posição constrangedora de alinhamento com a política de exclusão da Alemanha nazista”, explica a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, da Universidade de São Paulo (USP) e autora do estudo referencial Antissemitismo na era Vargas (1987). “Ainda assim o Estado Novo, por meio do Ministério da Justiça e de uma política nacionalista, não admitia fissuras, combatendo grupos migrantes, vistos como elementos de ‘erosão’. O ideal do regime era a homogeneidade em detrimento da diversidade”, continua.

imagens  acervo Maria Luiza Tucci Carneiro

ambiguidades

Para o brasilianista Jeffrey Lesser, da Emory University e autor de A questão judaica no Brasil (1995), é preciso cuidado ao retratar as políticas de imigração da época apenas com base em documentos oficiais, do Itamaraty ou do Ministério da Justiça. “Os escritos dão conta das ambiguidades que regiam essa política. Como explicar, por exemplo, a entrada expressiva de judeus logo após os decretos restritivos e a absorção expressiva desses grupos ao lado de árabes e japoneses na sociedade brasileira em fins dos anos 1930”, questiona. Para ele, houve muita incongruência entre discurso e prática, gerando curiosos paradoxos. “Os imigrantes viraram o discurso eugênico de brancura, que os discriminava, em favor de seus interesses e conseguiram conquistar um

1 Passaporte cancelado pelos nazistas, mas aceito pelas autoridades brasileiras 2 Visto de Otto Maria Carpeaux, incluído na cota de judeus católicos

espaço na sociedade. Perceberem que ser branco no Brasil era melhor do que ser negro e também adotaram a retórica eugênica.” “Há uma série de boletins policiais sobre brigas entre estrangeiros e negros. Imigrantes pobres não queriam ser vistos como os novos escravos e afirmavam sua superioridade atacando os negros”, conta Lesser. Se os documentos contam uma história, no cotidiana do Estado Novo o movimento xenófobo não funcionou como pretendido. O brasilianista não nega o discurso contra a imigração e o antissemitismo das elites brasileiras, mas, ao estudar casos reais, viu que a ação do governo era mais flexível do que letra “dura” dos papéis timbrados. “Um bom exemplo é que, antes de colocar em vigor, em 1934, as leis que restringiam a entrada de japoneses, o governo brasileiro avisou o ministro das Relações Exteriores do Japão. Um diplomata brasileiro contou ao ministro japonês o que estava para acontecer e o acalmou prometendo que os orientais continuariam a entrar no Brasil, utilizando cotas de países como a Finlândia, que praticamente não eram usadas”, conta. Lesser reuniu outros casos do “jeitinho brasileiro” de tratar os entraves da legislação. Para o americano, a história mais rocambolesca dessa flexibilidade que não se lê nos arquivos oficiais é a cooptação secreta pelo Itamaraty de funcionários do consulado alemão, para que eles falsificassem a assinatura do cônsul, liberando imigrantes para entrar no Brasil. “Numa palestra chamei o cônsul de nazista e pessoas da plateia ficaram indignadas, mostrando vistos assinados pelo cônsul, a quem chamavam de herói, sem imaginar que eram falsificações”, conta. Koifman respeita a hipótese de Lesser sobre uma “negociação” das leis, mas afirma que os documentos do Serviço de Visto não sustentam essa visão. “A lei foi, sim, aplicada, e a maleabilidade estava condicionada à origem do imigrante. Basta ver a questão pouco conhecida dos suecos: eles tinham colônia representativa no país e tampouco se interessavam em imigrar para o Brasil, mas o Serviço de Visto estava particularmente interessado na vinda deles” observa. Como revela o caso de um sueco que passou mal numa viagem, desembarcou para se tratar e, quando percebeu, já estavam tratando do seu visto. Ele não queria ficar no país. “Ao mesmo tempo, muitas pessoas com todas as condições de emigrar, que tinham os documentos necessários, enfrentavam medidas protelatórias e pareceres que dificultavam sua entrada, se não fosse o ‘imigrante ideal’. Isso mostra como os critérios se baseavam na bandeira da eugenia”, explica. Para Koifman, isso desmascara o discurso nacionalista e a flexibilidade com as leis, reduzidos à sua real dimensão: a utopia de aprimoramento étnico. n pESQUISA FAPESP 201  z  83


literatura y

Memórias plácidas do anjo da morte Autobiografia de Josef Mengele revela falta de empatia pelas vítimas e culpa pelos crimes

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uando um passarinho feliz canta, ele não canta para mim. Sempre que uma estrelinha brilha ao longe, ela brilha para outro e não para mim.” O carente autor do poema ingênuo foi capaz de injetar produtos químicos em olhos de crianças para deixá-los azuis, extrair órgãos de pessoas ainda vivas e costurar gêmeos, sua obsessão, “criar siameses”. No Brasil, Josef Mengele (1911-1979), um dos nazistas mais procurados do planeta, virou escritor. O “anjo da morte”, responsável pela seleção de quem viveria ou não em Auschwitz, morreu afogado em Bertioga. Apenas em 1985 a polícia descobriu seu paradeiro e, em sua casa em Diadema, encontrou mais de 3 mil páginas de escritos, hoje guardados na sede da Polícia Federal. “Entre os textos há uma autobiografia que nos permite analisar a mente de um criminoso. Ele escreveu em liberdade e sem a obrigação de considerar a opinião pública, que condenava seus atos. Assim, o tom geral é de franqueza na avaliação de sua vida e atos”, explica Helmut Galle, professor de literatura da Universidade de São Paulo (USP), autor de um estudo sobre os escritos de Mengele, que faz parte do Projeto Temático Escritas da violência, apoiado pela FAPESP.

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A autobiografia, com 500 páginas, tem um narrador em terceira pessoa e é escrita em forma ficcional, com o protagonista “Andreas” como o alter ego do nazista. O livro serviria para passar “bons conselhos” ao filho e justificar seus atos no campo de extermínio. Mengele não teve sucesso em nenhuma das duas tarefas e seu filho rejeitou a total falta de culpa do pai e seu silêncio sobre os crimes nas memórias. “A leitura desses escritos é uma tarefa sofrida. Há um silêncio incômodo sobre as atividades na guerra e uma terrível vaidade prazerosa com que conta futilidades da infância e de sua vida após a fuga em 1945.” Apenas o nascimento e o batismo do protagonista se esparramam por longas 74 páginas. Num paradoxo, quase não há referências aos judeus, por cujas mortes ele foi responsável. Uma das poucas acontece durante uma conversa de Andreas com um camponês que acusa o capital judeu pela guerra. Mengele responde: “Aí muito se exagera, mas algo deve ser verdade. Seria, porém, essa guerra que o judaísmo internacional impôs à Alemanha que impossibilitou uma solução pacífica da questão judaica. E se esses eventos acontecessem em época de guerra, assumiriam formas bélicas, condicionadas

Mengele quer se colocar na posição de suas vítimas para provar que é mais forte e capaz de sobreviver


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Os diários do "anjo da morte", com suas anotações; acima, foto de Mengele em 1937, ao entrar para as SS

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pelas situações gerais alteradas e, não finalmente, pelas reações psicológicas”. “É estranho imaginar o nazista, no Brasil dos anos 1970, ainda culpando os judeus pelo próprio genocídio e sua total certeza ética sobre a legitimidade do Holocausto”, observa Galle. Mengele se mostra como contraponto à fraqueza judaica, dotado da força e da persistência diante dos obstáculos. Suas lembranças o levam para 1947, quando, em fuga, se refugia numa fazenda na Alemanha, disfarçado de agricultor. “Não existe o esquivar, a fuga e a recusa porque a existência crua está em jogo. Andreas distribui o esterco com a força e suprime a dor infernal na articulação da mão, pensando que somente se pode sobreviver sendo mais duro que aquilo que a existência intransigente traz.”

fotos  1 AFP PHOTO / DON EMMERT 2 reprodução

sobrevivência

“Mengele quer se colocar na posição de suas vítimas para provar que é mais forte do que elas, não sucumbindo na luta pela sobrevivência”, analisa o pesquisador. Para Galle, o “anjo da morte” quer livrar-se da culpa mostrando a sua experiência e culpando os judeus mortos pelo seu fim. “Como o camponês, cujo corpo quer desistir e quase ‘grita’ por dores, Mengele cria uma persona, que acredita ser

ele, capaz de suprimir esses impulsos, fingindo indiferença diante de todos. Em Auschwitz, ele teve, internamente, algum sentimento e se revoltou, em algum momento, com seu ‘trabalho’ cruel. Mas essa voz foi extinta pela aparência da persona fria”, observa o pesquisador. “Nas 500 páginas do texto não há nenhum sinal de empatia. Só se vê o sofrimento do protagonista e as acusações dos que lhe causam esse sofrimento. Pode-se supor que ele também não teve essa função psíquica.” O autor assassino, continua Galle, quer controlar sua imagem externa, mostrando apenas força e poder, e produz esses textos para ter controle sobre a memória que os outros tinham dele. “Uma das cenas mais significativas do livro é quando o protagonista sonha que é um bebê que passa o tempo todo dormindo ou gritando. Mengele se vê como inocente e justo, imaginando ser aquilo que nunca admitiu em si e que quis destruir em suas vítimas: a criatura física, nua e indefesa.” Em nenhum momento aborda a questão da culpa, porque, para ele, “não existem juízes, apenas vingadores”. “Atribui a responsabilidade da morte da mãe aos médicos ‘incapazes’, colocados pelos Aliados no lugar dos ‘bons médicos’ na-

zistas. Também culpa aqueles que fizeram ‘falsas acusações’ contra ele pela perda materna”, diz o pesquisador. Em uma carta de 1974, chega a expressar “remorso pelos crimes que cometemos contra o ‘povo escolhido’”. As aspas traem a sua visão real, pois, mesmo num momento de raro arrependimento, considera os judeus como “absurdos”. Afinal, o que acreditava ver a seu redor parecia confirmar suas crenças. “O Brasil é bom país para se viver, apesar da mistura racial. Mas há muitas pessoas que pensam como eu e são simpáticas ao nazismo e à ideologia racial”, escreve. Mas incomodava-se com as brasileiras, que “abusavam do batom e da maquiagem, sempre prontas para a promiscuidade sexual”. Despreza as mulheres em geral. “A biologia não admite direitos iguais. Mulheres não deveriam trabalhar em posições altas e sua atividade deve depender do preenchimento de uma cota biológica. O controle de natalidade deve ser feito com esterilização daquelas com genes deficientes.” Além das mulheres, preocupava-se com a superpopulação do planeta. “O nosso experimento em raças falhou, mas é preciso tomar medidas drásticas para combater o excesso de pessoas. Os homens precisam tomar uma decisão para sobreviver aos tempos modernos. Se a eugenia não funcionou no curto prazo, precisamos de outra solução igualmente radical”, anota. As anotações refletem seus estudos de genética e antropologia nos anos 1930, que o levaram a fazer o doutorado sob a orientação do professor Otmar von Verschuer, diretor do Kaiser Wilhelm Institut. Lembrando-se dos “bons tempos” acadêmicos, escreve: “Sabemos que a evolução controla a natureza por seleção e extermínio. Os incapazes de aceitar essas regras de seres mais capacitados serão exilados ou extintos. Homens fracos não devem se reproduzir. É a única forma da humanidade existir e se manter”. A partir de 1943, o discípulo passou a enviar ao mestre provas “físicas” e relatórios de seus experimentos “fascinantes” com seres vivos em Auschwitz. “Fui um jovem imaturo e solitário. Tudo seria diferente se viesse de um lar feliz com pessoas que tomassem conta de mim”, escreve o homem que ordenou a “limpeza” de um galpão com 750 judeus dentro, jogando gás venenoso para conter uma infestação de piolhos. n Carlos Haag pESQUISA FAPESP 201  z  85


memória

Terapias para os trópicos Livro de cirurgião-barbeiro português mostra as curas usadas nas Minas Gerais do século XVIII Marcos Pivetta

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m 1735, a Officina de Miguel Rodrigues publicou em Lisboa a primeira edição do livro Erário mineral, que trata das práticas médicas empregadas na então capitania de Minas Gerais, epicentro do ciclo do ouro no Brasil Colônia. O autor da obra, apontada como um dos primeiros tratados sobre medicina brasileira ou tropical redigido em português, era o cirurgião-barbeiro Luís Gomes Ferreira. Português da região do Douro, Gomes Ferreira havia exercido sua profissão na terra natal e na Índia e morara por três anos em Salvador antes de se fixar na região da antiga Vila Rica, hoje Ouro Preto. Quando se mudou em 1710 para essa parte da colônia, seu intuito era fazer fortuna na mineração. Mas, ao perceber que a busca por lavras auríferas não lhe seria tão rentável, decidiu tocar em paralelo as artes curativas que aprendera em Portugal. Afinal havia poucos médicos e cirurgiões-barbeiros na região e cuidar dos doentes podia ser vantajoso. Ficou famoso por suas curas, mudou constantemente de localidade em busca de novas oportunidades e deixou Minas apenas em 1731, quando atravessou o Atlântico de volta à pátria-mãe. A experiência acumulada nas duas décadas que passou tratando os poderosos senhores de escravos e seus cativos enfermos numa terra distante e distinta de Portugal forneceu a base para as informações presentes no livro. Após o retorno à terra natal, Gomes Ferreira escreveu em menos de um ano Erário mineral. Na obra, fala dos principais males que acometiam os moradores locais, em especial os escravos, e dos tratamentos que usou para combater as doenças. Para ele, o clima frio e úmido da capitania estava por trás de quase todos os males. A alimentação, a moradia e o fato de a mineração obrigar os escravos a ficar muitas horas dentro da água ou embaixo da terra eram outros fatores associados às enfermidades. Como as condições de vida e os problemas de saúde em Minas eram diferentes dos que predominavam na Europa, o cirurgião-barbeiro teve de se adaptar à nova 86 | novembro DE 2012

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Além de usar seus instrumentos em cirurgias, Gomes Ferreira tinha uma botica para fazer medicamentos


fotos 1 Il farmacista, Pietro Longhi  2 Gravura de J. Scultetus  3 e 4 Reprodução Erário Mineral / Ed. 2002  5 Retablo de los santos Abdón y Senén / Jaime Huget

realidade. “Gomes Ferreira tinha mais liberdade e sensibilidade para absorver conhecimentos de outras fontes além da medicina europeia”, afirma a historiadora Júnia Ferreira Furtado, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que coordenou a publicação em 2002 de uma nova edição do livro com apoio da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig). Por esse motivo, muitos remédios usados pelos índios e incorporados à medicina colonial pelos paulistas constam da obra. Receitas que incluíam ossos, gorduras, pedaços de animais ou bichos inteiros, saliva, urina e muitas plantas da região estão presentes nas páginas do livro. “O Erário mineral não foge à regra: tudo vale para curar”, afirma o médico e escritor Ronaldo Simões Coelho,

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em um texto publicado junto com a edição patrocinada pela Fiocruz/Fapemig do livro do cirurgião-barbeiro no qual lembra que essa é, historicamente, a postura dos homens dedicados à medicina. Não era comum cirurgiões-barbeiros, que tinham um saber baseado na prática médica, redigir livros no século XVIII. Teorizar e escrever sobre curas era uma tarefa da alçada dos médicos, que tinham uma formação

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Obra incorpora conhecimento dos índios e é um dos primeiros tratados de medicina brasileira redigido em português

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Realizar operações, como amputações, era tarefa dos cirurgiões-barbeiros

Página do Erário mineral, de 1735, e retrato de Luís Gomes Ferreira: curas prescritas por um prático

teórica, escolástica, ainda moldada na medicina galênica e na teoria dos humores. Também não era prerrogativa dos cirurgiões-barbeiros receitar medicamentos e/ou formulá-los como se fosse um boticário. No entanto, Gomes Ferreira, que era dono de uma botica, fazia tudo isso nos sertões das Minas Gerais. A primeira edição do Erário mineral, da primeira metade do século XVIII, pode ser baixada gratuitamente no site do Google Books. Basta digitar o título da obra e fazer uma pesquisa para chegar ao arquivo com o escrito. A versão de 2002 – que, além do texto original, traz artigos de estudiosos com comentários sobre o livro – também pode ser obtida na internet, mais precisamente no site da Scielo. Júnia Ferreira Furtado pretende publicar uma nova edição do Erário mineral na qual vai incorporar 50 páginas redigidas por Gomes Ferreira para uma edição dos anos 1750 do livro. PESQUISA FAPESP 201 | 87


Arte

Presença de Paulo Emilio Seminário, livro e projetos de edição de textos do crítico confirmam seu papel central na cultura Ismail Xavier

U

m interesse especial pela figura de Paulo Emilio Salles Gomes, como crítico, pesquisador e professor, notável desde sua morte em 1977, ganhou expressão singular neste ano. O 45º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro o homenageou com um seminário que reuniu críticos, cineastas, professores e estudantes num debate sobre seu legado; em paralelo ao seminário foi publicado o livro organizado por Maria do Rosário Caetano, O homem que amava o cinema e nós que o amávamos tanto, uma coleção de artigos e depoimentos que veio confirmar seu papel central na cultura e na formação de novas gerações desde o final dos anos 1950, quando sua intervenção crítica teve enorme repercussão a partir de sua coluna no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo. Em setembro, o grupo de pesquisa Formação do Brasil Moderno, coordenado por pesquisado-

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Paulo Emilio na sede da Cinemateca Brasileira, 1975, São Paulo


fotos Reprodução do livro paulo emilio salles gomes – o homem que amava o cinema e nós que o amávamos tanto

res da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), debateu as reflexões de Paulo Emilio sobre o percurso do cinema brasileiro. No seminário de estudos anual, o grupo inseriu, desse modo, a questão do cinema em seu campo de interrogações centrado na avaliação e atualização da problemática desenvolvida por Antonio Candido em seu clássico livro Formação da literatura brasileira, de 1959. Na Inglaterra, professores do King’s College (Universidade de Londres), coordenados por Maite Conde, preparam um livro com seleção de textos de Paulo Emilio. No Brasil, está em andamento a edição de inéditos e a reedição de seus textos publicados aqui e no exterior, projeto coordenado por Carlos Augusto Calil para a Editora Cosac Naify, com o apoio da Cinemateca Brasileira. Essas iniciativas marcam a amplitude da interlocução alcançada por ele a partir de sua intervenção na imprensa, sua luta pela Cinemateca e sua atividade como professor pesquisador. Esta última se iniciou nos anos 1960, momento em que o cinema, em muitos países, encontrou lugar na academia como área de pesquisa. Se era comum universidades incorporarem a experiência dos críticos e dos historiadores ligados às cinematecas, no caso da USP houve uma migração da cultura da Cinemateca brasileira, através dos primeiros professores de cinema da ECA, em 1967, como Paulo Emilio, Rudá de Andrade e Jean-Claude Bernardet. Paulo Emilio estudou filosofia na USP no início dos anos 1940, momento em que criou o Clube de Cinema da Filosofia, iniciativa simultânea à fundação da revista Clima pelo grupo de jovens amigos que tiveram enorme impacto na história da crítica de cultura no Brasil: Antonio Candido, Décio de Almeida Prado, Paulo Emilio, Gilda de Mello e Souza, Ruy Coelho, Lourival Gomes Machado. Foi o momento em que se configuraram as indagações do grupo no plano da história cultural, e sua pergunta pelo processo de formação dirigida aos vários setores da cultura brasileira, seu empenho em consolidar, no terreno do ensaio e da pesquisa erudita, um espírito de atualização herdado do Modernismo. Tal espírito se expressou mais tarde na fundação da Cinemateca brasileira, em 1954, liderada por um Paulo Emilio ciente de que um arquivo de filmes era condição para levar os estudos do cinema no Brasil a novo patamar, viabilizando pesquisas e atuando como centro formador. Nas universidades, seu esforço de organização do campo se consolida e seu poder aglutinador dá vida à pesquisa cinematográfica na USP, após sua experiência de ensino na Universidade de Brasília em 1964-65. A par da força de sua escrita que nos encanta e esclarece, Paulo Emilio é presença singular

Paulo Emilio entre os alunos e a apreciação do cinema, no curso da UnB, em registro também incomum

Capa da revista Clima e do livro de Ruy Coelho sobre o movimento paulista

porque marcou de forma notável os que o conheceram. Erudição, sensibilidade política e rara personalidade permitiram ao intelectual empenhado uma forma de atenção a situações concretas de que resultaram as sínteses mais argutas de que dispomos. Sínteses que, partindo do cinema, iluminaram aspectos da cultura e da formação social brasileiras. Neste sentido, o que lhe devemos é a afirmação de um espírito de pesquisa ao mesmo tempo rigoroso e abrangente, capaz de definir um projeto de longo alcance que fez convergir inclinações particulares para uma investigação compreensiva da cultura, articulando diferentes aspectos do trabalho intelectual – história, crítica e teoria. Enfim, um resultado auspicioso de sua paixão pelo concreto, apontada por Gilda de Mello e Souza como o seu traço por excelência. n Principais livros de Paulo Emilio sobre cinema: Jean Vigo [1957], Cosac Naify, Edições Sesc SP, 2009; Humberto Mauro, Cataguazes, Cinearte, Perspectiva, 1974; Cinema: trajetória no subdesenvolvimento, Paz e Terra, 1980; Crítica de cinema no Suplemento Literário, 2 v., Paz e Terra, 1982; Paulo Emilio: um intelectual na linha de frente, Carlos Calil e Teresa Machado (orgs.), Brasiliense-Embrafilme,1986 *O comentário de Gilda de Mello e Souza está no artigo “Paulo Emilio: a crítica como perícia”, in O Baile das quatro artes – Exercícios de leitura (São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1980). PESQUISA FAPESP 201 | 89


conto

Estímulo e resposta Carlos Castelo

R

ebeca Richardson resolvera agora apoiar a mão direita sobre o queixo. A posição na mesa da biblioteca era incômoda. Precisava esticar-se de quando em vez, alongar bem a coluna para poder voltar à leitura. É bastante difundido o estudo do efeito de liberação de alimento a intervalos de tempo fixo e variável em pombos promovido por Skinner. Os animais foram dispostos numa caixa. E, desconsiderando seu comportamento, um alimento era liberado para que o consumissem. Iniciava-se a temporada do calor úmido em São Paulo, ambiente bem diverso do Finsbury Park londrino de onde viera para o Brasil há dois anos, recém-casada e recém-formada em psicologia. O psicólogo notou que, por um tempo determinado, os pombos agiam como se o alimento fosse associado ao que faziam. Um deles, por exemplo, começou a mexer a cabeça para um lado e para o outro. Um segundo animal promovia volteios na gaiola. E assim por diante. A tese de mestrado na universidade a fizera tomar contato com autores e conceitos que não eram propriamente de sua preferência, para dizer a verdade. A maioria eram ideias comportamentais de Burrhus Skinner. Esse padrão de comportamento das aves foi cunhado por Skinner de supersticioso. Tal trabalho de investigação comportamental foi extremamente valioso para toda uma geração de pesquisas relativas à superstição em psicologia experimental. Largou o livro pesadamente sobre a mesa iluminada apenas por um spot. A intensidade do gesto foi tal que os outros pesquisadores a olharam de modo reprovador. A frase “os pombos podem ser supersticiosos”, em especial, a deixara mais irritada que o normal. Sua formação como psicóloga a fazia sempre pensar nas entrelinhas, nos sonhos e outros meandros

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da existência. E ela sabia que o fato de lançar a brochura daquela maneira tão inadequada não era apenas uma prosaica neurastenia. Desde que o tema “comportamento operante” entrara por seus olhos verdes e míopes, encharcara sua pele branca e aveludada, que tudo se transformara numa crônica falta de paciência. O fato é que preferia a escola de Carl Rogers, diametralmente oposta ao pensamento determinista skinneriano. Não podia aceitar que fatores como controle e previsibilidade sobrepujassem os de liberdade e realização pessoal. Mais: que a clássica teoria do “estímulo-resposta” pudesse ainda hoje conviver com estudos mais contemporâneos. Notava que, ao começar a folhear aqueles livros – os de Pavlov também –, suas faces abrasavam-se. A raiva ganhava fortes contornos e, de uns dias para cá, a acompanhava até depois que deixava a biblioteca e ia para casa. As lembranças da família em Londres, as dificuldades em se relacionar com os locais e especialmente as relações com o marido a irritavam de maneira despropositada. A sorte – se é que isso não é uma superstição – era Jim ser muito paciente. Tratava-a como uma princesa. Sua fala era calma e pausada, ainda agora quando Rebeca dirigia-se a ele de modo áspero. Moravam há um tempo considerável em São Paulo, mas ainda não tinham um núcleo fixo de amigos. Talvez fosse o que apoquentava a esposa, prejulgava Jim – que era físico e bem menos afeito que ela às idiossincrasias da mente humana. Por isso tinham ido àquela festa dias atrás. Ambos viviam para os estudos. Era preciso extravasar um pouco de vez em quando. Aconteceu no apartamento de Ximenes, um funcionário do Departamento de Biologia da universidade. Algo bem simples, cada um levava suas latinhas de cerveja e algum petisco. Rebeca preparou um britânico kidney pudding, que ficou totalmente esquecido sobre a mesa da cozinha, ao lado de garrafas de vinho, vodca, cascos de cerveja e cinzeiros cheios de pontas de cigarros de maconha. Rebeca inicialmente desgostou-se com os sons altíssimos provenientes das caixas. A música era


EADWEARD MUYBRIDGE COLLECTION / KINGSTON MUSEUM / SCIENCE PHOTO LIBRARY

boa, mas os hábitos dos brasileiros, suas danças extravagantes, meneios e a excessive familiarity cansavam-lhe a alma. Deixou Jim na cozinha experimentando uma caipirinha preparada pela namorada de Ximenes e encostou-se numa quina da sala para observar a movimentação. Alguns casais dançavam colados, outros mais soltos. O calor que emanava de seus corpos suados e em movimento embaçava os vitrôs do vetusto apartamento. Depois de alguns minutos de frenesi, a música cessou e um rapaz moreno, troncudo e com uma tatuagem de cobra no antebraço pegou do violão e entoou uma dolente canção. O intermediate Portuguese de Rebeca não conseguiu compreender quase nada da letra, mas a repetição do refrão e o tom a deixaram inebriada. O rapaz moreno cantou mais três peças. Rebeca, até então distante e calada, decidiu perguntar a uma estudante de serviço social, que aguardava a vez de ir ao banheiro, quem era o cantor. — É o Toni, ele é de Pernambuco e tem uma banda. Vão se apresentar só essa semana em São Paulo. Depois voltam pro Nordeste. Jim, que se embriagava com facilidade, veio abraçar Rebeca dizendo com voz pastosa: time to go. Para sua admiração, a esposa, que raramente bebia, respondeu o pedido com um sorriso radiante: — Just one for the road? Ficaram até Toni pegar o violão e sair andando pela calçada, o sol nascendo como moldura. Os livros de Skinner agora tinham que ser deixados quase que instantaneamente de lado após uma breve leitura. A irritação à simples visão do termo “behaviorista” transformava-se em ódio quase físico. Mesmo o fato de continuar estudando psicologia passou a ser colocado em xeque. Discutira isso com Jim certa noite e acabaram por se

machucar bastante com as palavras. Passaram-se alguns dias e o silêncio continuava insistindo em pesar entre os dois como uma pedra fundamental. Num final de tarde, na biblioteca da universidade, Rebeca decidiu digitar num programa de busca o nome da banda de Toni. A nota de um portal de cultura saltou na tela informando que ainda se apresentavam em São Paulo. E muito perto de onde ela estava. Sem pensar levantou-se, pegou um táxi e dirigiu-se ao teatro. Assistiu ao show anonimamente. Quando teve início a música que Toni cantara na festa, Rebeca levantou-se da poltrona e postou-se numa quina do teatro. Na mesma posição em que a ouvira aquela noite no apartamento de Ximenes. Haveria ainda mais duas apresentações da banda. Rebeca compareceu a todas. E, sempre que aquela canção começava, repetia o gesto de ir para a quina do teatro para ouvi-la de pé. Na saída do último espetáculo deixou que Toni a notasse. Ele a olhou como se tivesse uma lembrança remota de que a conhecia. Ela respirou fundo, venceu a inércia da timidez e foi até ele. Falou, firme, com seu sotaque habitual: — Eu te vi cantando no apartamento e agora vim te ver no show. Toni deu um meio sorriso. Beijou-lhe a bochecha, quase fraternalmente e voltou ao camarim carregando a tatuagem de cobra no antebraço. Rebeca e Jim voltaram a se falar, planejam agora ter um filho quando ela terminar sua tese de mestrado sobre a confluência entre Wilhelm Reich e a semiótica. E, para evitar aborrecimentos, ela nunca mais leu sequer uma linha de Skinner. Carlos Castelo é escritor, compositor e um dos criadores do grupo musical Língua de Trapo. Autor, entre outros, de O caseiro do presidente (Nova Alexandria) e Orações insubordinadas (Ateliê Editorial).

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resenhas

O leitor em percurso cósmico Eliane S. Azevêdo

N Genômica e evolução – Moléculas, organismos e sociedades Francisco M. Salzano Oficina de Textos 274 páginas, R$ 64,00

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ovas descobertas, inovações e contesta- sobre quase tudo em genética-genômica. Apenas ções desafiam, no mundo da ciência, a os avanços sobre fenômenos epigenéticos deielaboração de textos robustos, abrangen- xarão o consultor sem resposta, o que em nada tes e atuais. Nesse cenário, a genética impõe-se decresce o mérito do livro. soberana. Patrona de todas as formas de vida, Tradicionais posições pessoais do autor sobre com complexa origem interdisciplinar, a genética questões sociais específicas fazem-se presentes, cresce no impulso dos avanços das tecnologias e às vezes em redação que foge do estilo cientícapazes de explorar códigos dos seres vivos, re- fico e migra para o mundo da emoção. Não obstroiluminar histórias evolutivas, manipular geno- tante a ampla cultura geral do autor percebemas, revelar fenômenos epigenéticos e unir, cada -se escapar-lhe a percepção (ou aceitação) que vez mais, vida biológica e ambiente. Por tudo isso, a diversidade cultural da humanidade inclui poucos geneticistas conseguem, isoladamente, crenças e religiosidades como traços antropoenglobar em um só livro temas de genômica, lógicos da espécie. Vincular anticiência à relievolução, moléculas, organismos e sociedades. giosidade é generalizar preconceitos. Por outro Francisco M. Salzano, todavia, com respaldo lado, remeter aos oprimidos a responsabilidade no próprio currículo cientípela própria situação, assim fico, produz um livro que põe como identificar nos ignorano leitor em percurso cósmites a culpa pela ignorância co da origem do Universo às científica, parece pretender questões das ações afirmativas inocentar os opressores e rePoucos geneticistas do Brasil atual. Teorias sobre tirar dos cientistas a responconseguem, origem da vida e extraordisabilidade de compartilhar nária riqueza de dados sobre seus saberes com as massas. isoladamente, diversidade genética, genôA opção pela eliminação das englobar em mica e funcional reafirmam a crenças místicas e míticas a amplitude de conhecimentos fim de construir um futuro um só livro temas do autor. Visões “históricootimista para a humanidade de genômica, -filosóficas” do mundo desde é refutada pela existência e a Grécia clássica e considepelo valor da contribuição de evolução, moléculas, rações filosóficas atuais são respeitáveis cientistas reliorganismos também discutidas com pingiosos, no Brasil e no exteceladas de opiniões pessoais, rior. A ausência de citações e sociedades quase sempre polêmicas. O de leituras sobre ética, bioéconteúdo central do livro, tica e integridade científica todavia, reafirma a maestria fundamenta o livro apenas do autor naquilo que dominas visões pessoais do autor. na por formação e devoção: genética, evolução, Não há dúvida de que a ciência contribuiu, sim, genômica, genomas humanos e não humanos. para uma melhoria da vida no mundo, conforme O autor “solo” também traduz notória compe- afirma o autor, mas também assim o fizeram a tência na articulação de enorme quantidade de ética, a filosofia, as artes plásticas, a literatura, conhecimentos visando condensá-los em volume a música, a poesia etc. Finalmente, o livro Geúnico. Ao longo de todo o livro, recorre, e com nômica e evolução – Moléculas, organismos e bom efeito didático, a sínteses de informações sociedades traz a dupla marca de Francisco M. compactadas em tabelas, boxes e quadros, além Salzano: competência científica e depreciação de algumas figuras e gráficos. Ainda que o livro da cultura religiosa dos povos. esteja destinado a estudantes, colegas e “leitor S. Azevêdo é pesquisadora em genética e bioética, bem informado”, será dos estudantes o maior Eliane professora emérita da Faculdade de Medicina e ex-reitora benefício como fonte indispensável de consulta da Universidade Federal da Bahia (UFBA).


Da “alteridade” à produção da diferença Melvina Afra Mendes de Araújo

O Selvagens, civilizados, autênticos: a produção das diferenças nas etnografias salesianas (1920-1970) Paula Montero Edusp 520 páginas, R$ 72,00

problema do deciframento do “outro” – ou da alteridade – constitui-se objeto privilegiado da antropologia. No entanto, se, desde meados do século XIX, esse interesse se expressa na descrição dos “outros” não ocidentais a partir de categorias cunhadas com base na organização social própria das sociedades ocidentais, o advento da descolonização e consequente redução das distâncias morais entre os “nós” e os “outros” nos impulsionam a olhar para a constituição destes de outra forma. E é, sobretudo, este o convite feito por Paula Montero em Selvagens, civilizados, autênticos. Ao tomar como objeto de análise as etnografias elaboradas por missionários salesianos sobre populações indígenas brasileiras – Bororo, Xavante e indígenas do alto rio Negro –, a autora pretende pensar como a prática missionária traduziu simbolicamente a alteridade em diferença, reduzindo um “outro” ininteligível a um diferente. Para tanto, Paula analisa a escrita missionária e seu modo de descrever os índios, partindo do pressuposto de que a forma como estes são descritos está intimamente relacionada ao modo como a convivência entre índios e missionários se desenrola. Esta suposição, bem como a análise realizada a partir dela, traz importantes consequências para o modo como o fazer antropológico foi e ainda é pensado e praticado. Em primeiro lugar, esta empresa supõe uma análise que leve em consideração as mudanças nas relações entre índios e missionários decorrentes do desenvolvimento de sua convivência, levando em consideração o modo como se relacionam, as trocas materiais e simbólicas efetuadas, as posições destes agentes frente a questões envolvendo colonos, agentes do Estado etc., bem como as transformações advindas com o passar do tempo. Esse tipo de observação permite decifrar as grades de leitura que tornaram possível a esses missionários formularem determinados tipos de concepção sobre esses índios. Ou seja, trata-se de um investimento num tipo de estudo que envolve a comparação ao longo do tempo e que também atente para as especificidades existentes no interior do contexto de cada missão. Por outro lado, supõe que a alteridade não é constituída ontologicamente, mas construída a partir do modo como os “outros” são descritos. Ou seja, trata-se de um investimento que coloca

em evidência a forma como a própria antropologia foi constituída. Nesse sentido, vale destacar que o modo como a antropologia formulou suas questões relaciona-se intimamente ao tipo de inquietação dos missionários em seus esforços de compreensão e descrição das populações nativas com as quais trabalhavam. Assim, temas como parentesco ou família, religião e magia, cultura ou civilização constituíram-se como categorias formadoras de um quadro de referências que permitiu a uns e a outros “traduzir” os nativos em termos passíveis de serem compreendidos no mundo ocidental. Este tipo de perspectiva nos convida a sair do registro do contato, que marca boa parte dos estudos voltados a temas relativos às missões entre populações nativas, e a pensar esses quadros descritivos como constituídos a partir de relações entre mediadores. Isso implica, portanto, deixar de lado análises baseadas no encontro de cosmologias, e, por consequência, da existência de “outros” ontologicamente diferentes, e passar a uma análise focada na observação do modo como os agentes constroem simbólica e praticamente os termos e possibilidades de suas relações. Estas possibilidades não são, como quiseram entender certos leitores da teoria da mediação, baseadas em acordos ou consensos construídos pacificamente ou sem a existência de conflitos. As noções de acordo e consenso aqui mobilizadas dizem respeito aos resultados de negociações práticas e simbólicas eivadas de disputas, mas que, de um modo ou de outro, permitiram o início ou a continuidade da convivência. Por fim, Paula Montero em Selvagens, civilizados, autênticos nos brinda com um texto, ao mesmo tempo, denso, saboroso e emocionante. Denso pelas razões já expostas acima e por conta da maneira como tece relações entre temas, contextos e teorias. Saboroso porque bem escrito e envolvente. Emocionante pelas aventuras narradas e por colocar em cena o rigor acadêmico, a seriedade da análise, a clareza com que os argumentos são demonstrados e a provocação que sempre marcaram o estilo desta que é mestre no verdadeiro sentido do termo. Melvina Afra Mendes de Araújo é professora de ciências sociais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Pesquisa (Cebrap).

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moléculas em teste

inovações incrementais

INOVAÇÃO É O NOSSO MAIOR PRINCÍPIO ATIVO

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radicais

A Biolab acredita que grandes inovações podem nascer de uma simples pergunta. Por isso, um de nossos valores é o Empreendedorismo, que nos move ao questionamento e à ousadia. Movidos pelo desejo de transformar realidades e construir o futuro, nossos profissionais mantêm vivo o DNA de Inovação da Biolab, em tudo o que fazem. Com uma equipe própria de pesquisadores, técnicos e profissionais, em uma unidade voltada exclusivamente à Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação, a Biolab atende aos padrões internacionais de excelência requeridos. Estabelecemos parcerias sólidas, com instituições de ensino e pesquisa e demais organizações que, como nós, assumem com paixão a missão de levar mais qualidade de vida e saúde às pessoas. Nos últimos anos mais de 30 produtos inovadores já foram disponibilizados ao mercado nacional, como resultado de pesquisa própria e de parcerias entre a Biolab e instituições nacionais e internacionais. Fotografe o código e acesse a página da Chamada Pública FAPESP - Biolab

www.biolabfarma.com.br


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