A cidade dos rios invisíveis

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dezembro de 2013  www.revistapesquisa.fapesp.br

xylella

Expectorante age contra doença em laranjeira inovação

Juntas, empresas e universidades investigam de motores a bem-estar internet

Centro brasileiro do Google contribui para sistema global de buscas metrópoles

Nova geração de arquitetos aproxima arte e urbanismo

A cidade dos rios invisíveis Mapas históricos mostram como a urbanização escondeu a rede fluvial de São Paulo sob ruas e avenidas



fotolab

A América inesperada Esta imagem, que lembra a América do Sul, formou-se durante um experimento do químico Saulo do Amaral Carminati para preparação de compósitos contendo nanopartículas de óxido de ferro e grafeno. Carminati faz mestrado em química inorgânica no Laboratório de Nanotecnologia e Energia Solar (LNES) do Instituto de Química da Universidade de Campinas (IQ-Unicamp), sob orientação da professora Ana Flávia Nogueira e co-orientação do professor Flávio Leandro de Souza, da Universidade Federal do ABC (UFABC). O objetivo de seu trabalho é obter combustíveis, como gás hidrogênio, por exemplo, produzidos a partir da quebra da molécula de água utilizando como fonte a energia solar, os chamados solar fuels. A imagem foi obtida por microscopia eletrônica de varredura por emissão de campo de alta resolução, aumentada 89 vezes.

Se você tiver uma imagem relacionada à sua pesquisa, envie para imagempesquisa@fapesp.br, com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.

Imagem enviada por Saulo do Amaral Carminati do IQ-Unicamp

PESQUISA FAPESP 214 | 3


dezembro  n.214 CAPA 16 Mapas históricos exibem

50 Bioquímica

ENTREVISTA 26 Magda Carneiro Sampaio

54 Biologia marinha

as transformações dos rios encobertos por avenidas

44

Pediatra diz como melhorar o diagnóstico de crianças e fala de suas pesquisas sobre imunologia

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA 32 Inovação

FAPESP e empresas criam centros de pesquisa em engenharia sobre temas na fronteira do conhecimento com financiamento de longo prazo

36 Colaboração

Mackenzie traz cientista brasileiro radicado no exterior e investe na formação de centro de pesquisa

38 Cooperação 62

Diretor do Museu de História Natural de Londres vem ao Brasil em busca de parcerias

41 Evento seçÕes 3 Fotolab 5 Editorial 6 Cartas 7 On-line 8 Dados e projetos 9 Boas práticas 10 Estratégias 12 Tecnociência 90 Memória 92 Arte 94 Ficção 96 Carreiras 98 Classificados foto da capa  tuca vieira / folhapress

4 | dezembro DE 2013

Fórum mundial reúne no Rio pesquisadores de mais de 100 países para discutir temas como educação científica e ética

CIÊNCIA 44 Geologia

Imagens infravermelhas de satélite podem ser úteis para prever erupções vulcânicas

48 Astrofísica

Estrelas de composição distintas formam os agrupamentos mais antigos de matéria das galáxias

Compostos parecem reduzir um grave efeito colateral do tratamento do Parkinson Uma diminuta fauna até agora desconhecida vive nos grãos em regiões pouco profundas do mar

58 Microbiologia

Expectorante pode ser eficaz no controle de praga da laranja

62 Especial Biota Educação IX Pouco valorizadas, aves se espalham pelas escassas áreas arborizadas das cidades

TECNOLOGIA

66 Pesquisa empresarial

Centro de Engenharia do Google no Brasil responde por mudanças relevantes no sistema de busca

72 Física

Pesquisadores desenvolvem com indústria brasileira equipamento para laboratório de fusão nuclear

76 Engenharia metalúrgica Bactérias recuperam metais valiosos de sucata de eletrônicos

HUMANIDADES

80 Sociologia da ciência

Mudanças institucionais recentes fortaleceram mais a ciência do que a capacidade tecnológica do país

86 Arquitetura

Novas gerações resgatam engajamento dos anos 1970 e aproximam cada vez mais a arte e o urbanismo


carta da editora

São Paulo afogou os rios Mariluce Moura |

A

Diretora de Redação

frase que serve de título a esta carta deveria estar entre aspas, porque não é minha, mas do engenheiro e advogado Rodolfo Costa e Silva, coordenador dos programas de despoluição do rio Tietê e de requalificação das marginais dos rios Tietê e Pinheiros. Mas aspas no título são vistas com reserva pela turma que cuida de manter uma estética visual jornalística mais apurada, porque são percebidas como elementos graficamente excessivos, quase abusivos na página. E então as deixei de lado, mas citando logo de cara o autor dessa síntese genial do que se deu com os rios da maior metrópole brasileira em seu processo de urbanização, certa de que ele generosamente me concederia a licença para esse uso restrito de sua frase e a entenderia como reconhecimento à tradução curta e certeira que fez para o vernáculo de sua compreensão de um complexo processo. Costa e Silva é uma das personagens da reportagem de capa desta edição de Pesquisa FAPESP, que me entusiasma de forma indisfarçável e de múltiplas maneiras: pelo trabalho de reportagem propriamente que contém, pelo texto, pelo refinado tratamento visual e mesmo pelo tema da área de humanidades que de, início, soava um tanto inadequado ou inusitado à capa, mas no qual resolvemos apostar. E devo logo dizer que os louros por tudo isso devem ser creditados ao nosso editor especial Carlos Fioravanti e à nossa editora de arte, Mayumi Okuyama, antes mesmo de contar que o ponto de partida desse belo trabalho foi uma exposição de 17 mapas antigos dos rios de São Paulo que pode ser vista até março no Arquivo Público do Estado de São Paulo. Intitulada O tempo e as águas: formas de representar os rios de São Paulo, com curadoria de professores da USP e da Unifesp, além da equipe do Arquivo do Estado, a exposição deu início a um percurso jornalístico que explora a geografia e a história do enclausuramento dos rios em São Paulo sob ruas e avenidas, as questões urbanísticas propriamente que esse processo propõe e, finalmente, os aspectos ambientais e econômicos envolvidos no

já longo e continuado esforço de despoluição dos dois maiores rios que cortam a capital paulista. Vale a pena conferir a partir da página 16. Outra reportagem, esta na seção de ciência, que contribui largamente para o meu quantum de satisfação com a presente edição, é a que trata da pesquisa com determinados medicamentos de uso humano para controle de uma conhecida doença das laranjeiras, a clorose variegada dos citros (CVC), provocada pela famosa bactéria Xylella fastidiosa. Além de antibióticos como a tetraciclina e a neomicina, com bons efeitos, mas inviáveis dado o elevado custo que na prática um tal tratamento implicaria, agora surge como possível droga de combate à CVC a N-acetilcisteína (NAC). Ela é nada mais nada menos que o princípio ativo de um medicamente muito conhecido de fumantes e portadores de variadas afecções respiratórias que sofrem com o acúmulo de muco dentro dos pulmões e que carrega o nome comercial de Fluimucil. Faz muito sentido. Veja-se: em seu ataque à planta, a colônia de X. fastidiosa forma um biofilme que une os microrganismos invasores e permite que eles ajam como um organismo único, entupindo o xilema e impedindo a passagem de água e nutrientes das raízes para a copa das árvores. Romper o biofilme no início de sua formação pode ser a melhor forma de combater a doença e, se um mucolítico tem o poder de desentupir alvéolos, bronquíolos e brônquios etc., por que não poderia atacar esse biofilme? Vale a pena ver até onde esse raciocínio da bióloga Alessandra de Souza levou, com todos os detalhes contados a partir da página 58 por nossa editora da Pesquisa FAPESP on-line, Maria Guimarães. Explico por que gosto tanto dessa história: esta revista acompanha as peripécias da X. fastidiosa desde os primeiros movimentos para o sequenciamento de seu genoma, em 1997. E cada novo conhecimento que se agrega à biologia, fisiologia e tratamento das doenças provocadas por esse microrganismo parece trançar um pouco mais a própria história de Pesquisa FAPESP. Boa leitura! PESQUISA FAPESP 214 | 5


cartas

cartas@fapesp.br

fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo Celso Lafer Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior alejandro szanto de toledo, Celso Lafer, Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, Horácio Lafer Piva, Herman Jacobus Cornelis Voorwald, joão grandino rodas, Maria José Soares Mendes Giannini, José de Souza Martins, Pedro Luiz Barreiros Passos, Suely Vilela Sampaio, Yoshiaki Nakano Conselho Técnico-Administrativo José Arana Varela Diretor presidente Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico Joaquim J. de Camargo Engler Diretor Administrativo

issn 1519-8774

Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo Leite, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Adolpho José Melfi, Carlos Eduardo Negrão, Douglas Eduardo Zampieri, Eduardo Cesar Leão Marques, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Joaquim J. de Camargo Engler, José Arana Varela, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Lucio Angnes, Luis Augusto Barbosa Cortez, Marcelo Knobel, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Marta Teresa da Silva Arretche, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Luiz Monteiro Salles Filho, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner do Amaral Caradori, Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos

Macaco pré-histórico

Foi com muita alegria que vislumbrei esse trunfo da paleontologia brasileira (“O supermacaco das Américas”, edição 213). Incrível pensar que há pouco mais de um mês conheci o trabalho desses pesquisadores em uma palestra e a mostra de um documentário no Museu Catavento, em São Paulo. O documentário O Brasil da pré-história foi apresentado pelo cineasta Tulio Schargel com muita empolgação e falava justamente das descobertas de fósseis de animais em uma caverna submersa. Estou realmente me interessando por esse caminho. Fernando Cesar de Sousa Santos Estudante de ciências biológicas

aí o sucesso das redes fast food. O legal é ver como a ciência nos mostra novas descobertas, podendo levar a alternativas no tratamento da obesidade, e ainda de quebra mostra a importância da experimentação animal na melhora da qualidade de vida. Parabéns a Pesquisa Fapesp e à equipe científica do estudo. Alexandre Leandro Pereira Universidade Federal do Paraná Palotina, PR

Correção

O crédito correto da foto da nota “A vida que brota das rochas” (edição 212) é Rodrigo Leão de Moura.

São Paulo, SP

Fome

Excelente a reportagem “Quando comer aumenta a fome” (edição 212). Está

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar - CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

Diretora de redação Mariluce Moura editor chefe Neldson Marcolin Editores Fabrício Marques (Política), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência); Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores espe­ciais); Bruno de Pierro e Dinorah Ereno (Editores assistentes) revisão Márcio Guimarães de Araújo, Margô Negro arte Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos (Editora de infografia), Maria Cecilia Felli e Alvaro Felippe Jr. (Assistente) fotógrafos Eduardo Cesar, Léo Ramos Mídias eletrônicas Fabrício Marques (Coordenador) Internet Pesquisa FAPESP online Maria Guimarães (Editora) Júlio Cesar Barros (Editor assistente) Rodrigo de Oliveira Andrade (Repórter) Rádio Pesquisa Brasil Biancamaria Binazzi (Produtora) Colaboradores Alexandre Affonso, Ana Lima, Ana Weiss, Daniel Bueno, Daniel das Neves, Francisco Bicudo, Gustavo Fiorati, Igor Zolnerkevic, Luana Geiger, Pedro Hamdan, Raul Aguiar, Reginaldo Pujol Filho, Valter Rodrigues, Yuri Vasconcelos

É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização Para falar com a redação (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br Para anunciar (11) 3087-4212 publicidade@fapesp.br Para assinar (11) 3087-4237 assinaturaspesquisa@fapesp.br Tiragem 43.500 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo

6 | dezembro DE 2013

O passo à frente do conhecimento  Site da revista No endereço eletrônico www.revistapesquisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra. No site também estão disponíveis reportagens traduzidas e as edições internacionais da revista em inglês, francês e espanhol.  Opiniões ou sugestões Envie cartas para a redação pelo e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727 – 10º andar CEP 05415-012 São Paulo, SP

 Assinaturas, renovação e mudança de endereço Envie um e-mail: assinaturaspesquisa@fapesp.br Ou ligue: 11 3087-4237  Para anunciar Ligue para: 11 3087-4212  Edições anteriores Preço atual de capa da revista acrescido do valor de postagem. Envie e-mail para clair@fapesp.br


on-line

Nas redes

DeusXFlorida / Flickr

w w w . r e v i s ta p e s q u i s a . f a p e s p. b r

Mateus Pereira Gonzatto_ Eu achava

Exclusivo no site

que os danos ao sistema renal se davam devido aos altos teores de

x Comer carambola ou tomar seu suco pode ser até fatal para pessoas com insuficiência renal crônica devido à sua incapacidade de filtrar uma toxina presente na fruta. A novidade é que pesquisadores da USP conseguiram isolar e caracterizar a substância para entender como ela age no organismo e a batizaram de caramboxina, para facilitar a associação com o nome do fruto Averrhoa carambola. O estudo produzido pela equipe brasileira busca alertar a população para os perigos da ingestão da toxina e foi publicado na revista alemã Angewandte Chemie.

ácido oxálico na fruta. Interessante! (Toxina da carambola é isolada) Rafael de Oliveira Rodrigues_ Olha lá, pessoal: USP, Unesp e Unicamp agora têm produção científica em um único portal da internet. (Produção integrada) LGC Biotecnologia_ Bela atitude, vai facilitar bastante a vida da galera. (Produção integrada) Simone Cotic_ Super! Consigam A caramboxina foi batizada assim para facilitar a associação com o fruto Averrhoa carambola

estágios de museologia e abram o nosso museu de história natural no Ipiranga, integralmente.

x Em um estudo publicado na revista PLoS One, um grupo de pesquisadores internacionais, entre eles brasileiros da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), verificou que a baixa ingestão de proteínas por ratos na fase intrauterina e, em seguida, nos primeiros dias de amamentação pode afetar o funcionamento de um sensor nutricional responsável pelo controle do comportamento alimentar. Segundo o paper, essas alterações comprometeriam a capacidade do cérebro de indicar com precisão quando é hora de parar de comer.

(Para conectar coleções científicas)

Rádio Pesquisador fala dos testes feitos em carro que não precisa de motorista

Daniele Barbosa_ Essa vai para os apaixonados por orquídeas. (Os primeiros passos de novas espécies) Letícia Sarturi Pereira Severi_ Estudo muito importante, principalmente para conscientizar aqueles com dieta baseada em alto teor de gordura. (Quando comer aumenta a fome) Thaysh Carvalho_ Good science made right here, in Brazil. (Uma carona indesejada)

Vídeo do mês Biota-FAPESP debate importância da biodiversidade dos ambientes costeiros

Assista ao vídeo:

youtube.com/user/PesquisaFAPESP

PESQUISA FAPESP 214 | 7


Dados e projetos Temáticos e Jovem Pesquisador recentes Projetos contratados em outubro e novembro de 2013 de fármacos, peptídeos e enzimas com membranas modelos Pesquisadora responsável: Iolanda Midea Cuccovia Instituição: Instituto de Química/USP Processo: 2013/08166-5 Vigência: 01/11/2013 a 31/10/2018

temáticos  Física nuclear de altas energias no RHIC e LHC Pesquisador responsável: Alejandro Szanto de Toledo Instituição: Instituto de Física/USP Processo: 2012/04583-8 Vigência: 01/11/2013 a 31/10/2018

São Paulo Excellence Chairs (Spec)  Processos sociais e ambientais que acompanham a construção da hidroelétrica de Belo Monte, Altamira, PA Pesquisador responsável: Emilio Federico Moran Instituição: Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais/Unicamp Processo: 2012/51465-0 Vigência: 01/09/2013 a 31/08/2018

 Uma estrutura integrada para analisar tomada de decisão local e capacidade adaptativa para mudança ambiental de grande escala: estudos de caso de comunidades no Brasil, Reino Unido. (FAPESP/Belmont Forum) Pesquisador responsável: José Antonio Marengo Orsini Instituição: Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe)/MCTI Processo: 2012/51876-0 Vigência: 01/09/2013 a 31/08/2016

Jovem Pesquisador  Estudos de desenvolvimento, biocompatibilidade e permeação de formulações em gel de anestésicos locais associados a nanocápsulas de poli-epsilon-caprolactona Pesquisadora responsável: Michelle Franz Montan Braga Leite Instituição: Faculdade de Odontologia de Piracicaba/Unicamp Processo: 2012/06974-4 Vigência: 01/11/2013 a 31/10/2016

 Lectinas de patógenos Pesquisadora responsável: Maria Cristina Roque Antunes Barreira Instituição: Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/USP Processo: 2013/04088-0 Vigência: 01/11/2013 a 31/10/2017  Química em interfaces – Interações

 Ácidos graxos w3 e w9 no bloqueio de vias inflamatórias através do receptor GPR120: uma abordagem multiorgânica Pesquisador responsável: Dennys Esper Correa Cintra Instituição: Faculdade de Ciências Aplicadas/Unicamp Processo: 2012/07129-6 Vigência: 01/11/2013 a 31/10/2016  Metagenômica e metatranscriptômica da comunidade microbiana envolvida na transformação do carbono orgânico em sedimentos de manguezais do estado de São Paulo Pesquisador responsável: Rodrigo Gouvea Taketani Instituição: Embrapa Meio Ambiente/ Embrapa Processo: 2013/03158-4 Vigência: 01/11/2013 a 31/10/2017  Alcaloides oxindólicos de Uncaria tomentosa: estudos biossintéticos e obtenção de análogos por biossíntese dirigida pelo precursor Pesquisadora responsável: Adriana Aparecida Lopes Instituição: Universidade de Ribeirão

Preto – Campus Ribeirão Preto/Unaerp Processo: 2013/07349-9 Vigência: 01/01/2014 a 31/12/2017

 Avaliação farmacogenética para fármacos do sistema cardiovascular com foco na implementação Pesquisador responsável: Paulo Caleb Junior de Lima Santos Instituição: Instituto do Coração (InCor)/SSSP Processo: 2013/09295-3 Vigência: 01/10/2013 a 30/09/2016  Atuação do psicólogo no tema das relações étnico/raciais: um estudo na região metropolitana de São Paulo Pesquisador responsável: Alessandro de Oliveira dos Santos Instituição: Instituto de Psicologia/USP Processo: 2013/11199-2 Vigência: 01/10/2013 a 30/09/2015  Genômica comparativa de Trypanosomatidae Pesquisador responsável: João Marcelo Pereira Alves Instituição: Instituto de Ciências Biomédicas/USP Processo: 2013/14622-3 Vigência: 01/11/2013 a 31/10/2017

Dispêndio em P&D Valores aplicados em P&D feitos no estado de São Paulo e no Brasil de fontes federal, estadual e privada nos anos de 2001 e 2011 2001

2011

São Paulo R$ milhões Federal

% do PIB estadual

Brasil %

São Paulo

R$ milhões

% PIB

%

R$ milhões

% do PIB estadual

Brasil %

R$ milhões

% PIB

%

794,1

0,17

12,5

4.563,4

0,35

32,4

2.964,6

0,22

13,6

17.784,2

0,43

37,7

89,5

0,02

1,4

1.590,4

0,12

11,3

832,0

0,06

3,8

7.130,9

0,17

15,1

704,6

0,15

11,1

2.973,0

0,23

21,1

2.132,6

0,16

9,8

10.653,3

0,26

22,6

Estadual

1.764,1

0,38

27,8

2.884,4

0,22

20,5

5.082,8

0,38

23,3

8.598,4

0,21

18,2

IES estaduais

1.025,9

0,22

16,2

1.758,9

0,14

12,5

3.593,1

0,27

16,5

5.830,5

0,14

12,4

738,2

0,16

11,6

1.125,4

0,09

8,0

1.489,7

0,11

6,8

2.767,9

0,07

5,9

3.788,0

0,82

59,7

6.616,4

0,51

47,0

13.731,4

1,02

63,0

20.787,6

0,50

44,1

3.719,1

0,80

58,6

6.437,1

0,49

45,8

13.227,8

0,98

60,7

19.854,7

0,48

42,1

68,9

0,01

1,1

179,3

0,01

1,3

503,6

0,04

2,3

932,9

0,02

2,0

6.346,1

1,37

14.064,2

1,08

100,0

21.778,8

1,61

100,0

47.170,2

1,14

100,0

IES federais Orçamento executado

Orçamento executado Privado Empresas IES privadas Total

100,0

Observações: 1) Orçamento executado: representa o dispêndio com recursos do Tesouro para agências, institutos de pesquisa e outros, exceto ensino superior; 2) IES: Instituições de Ensino Superior; 3) Para os dispêndios no Brasil os valores diferem daqueles publicados pelos indicadores do MCTI porque os Indicadores FAPESP estimam o dispêndio empresarial em P&D com um modelo que usa a correlação entre tal dispêndio e a Formação Bruta do Capital Fixo (FBCF), enquanto o MCTI estima segundo a taxa de crescimento dos anos anteriores. Fonte: Indicadores FAPESP de C&T&I

8 | dezembro DE 2013


Boas práticas A Universidade Nacional Autônoma do México (Unam), a maior e mais antiga do país, começou a discutir um conjunto de normas para apurar e punir deslizes éticos de seus professores e pesquisadores. A tarefa está a cargo de dirigentes da universidade, e é uma resposta a um imbroglio envolvendo um casal de pesquisadores da Unam que manipulou imagens de 11 artigos científicos, cuja punição, contudo, acabou sendo suspensa por irregularidades na investigação. Os microbiologistas Mario Soberón e Alejandra Bravo, do Instituto de Biotecnologia (IBt) da Unam, foram denunciados e admitiram, em 2012, a modificação de imagens de testes em artigos sobre as toxinas do Bacillus thuringiensis (Bt), usadas como inseticida na agricultura. “Eles argumentaram, contudo, que as mudanças tiveram efeito apenas cosmético, para melhorar a compreensão das imagens”, disse ao blog ScienceInsider, da revista Science, o ex-diretor do IBt Carlos Arias. Uma comissão externa de sindicância formada para apurar o caso concluiu que, em pelo menos dois artigos, os detalhes apagados das imagens constituíam uma manipulação “inapropriada e repreensível”. Mas o painel de especialistas também concluiu que as modificações não comprometiam as conclusões dos artigos, não havendo necessidade de retratá-los. A punição aos pesquisadores foi severa. Soberón teve de renunciar à chefia do Departamento de Microbiologia Molecular e sua mulher foi rebaixada de “líder acadêmica” para “pesquisadora associada”. A comunidade científica dividiu-se em relação à punição. O caso, acompanhado de perto pela imprensa mexicana, foi apontado

como um marco na punição a desvios de conduta no ambiente científico, mas pesquisadores influentes saíram em defesa do casal. Juan Ramón de la Fuente, decano da Unam entre 1999 e 2007, considerou os dois pesquisadores “vítimas de suspeita exagerada” e alvo de “inveja” de colegas. Em outubro, o ombudsman da Unam, Jorge Carmona, decidiu suspender a punição, por considerar que foi severa demais para o desvio cometido e por constatar que houve irregularidades na apuração do caso. Um dos denunciantes do casal participou da primeira fase da apuração, o que foi considerado inapropriado. Segundo Carmona, os dois não tiveram oportunidades adequadas de se defender durante a investigação e sofreram danos à reputação causados pelo vazamento seletivo de dados

daniel bueno

Regras para apurar e punir deslizes

sobre a apuração. A necessidade de estabelecer regras tornou-se premente, diz Agustín López Munguía, secretário acadêmico do IBt na época em que a denúncia foi feita. “Não existem procedimentos definidos na universidade para lidar com problemas desse tipo”, afirma.

Fraude em tese premiada Acusado de falsificar dados e imagens, Nitin Aggarwal, pesquisador da área de cardiologia que estudou e trabalhou na Universidade de Wisconsin-Madison, entrou em acordo com o Escritório de Integridade Científica dos Estados Unidos e aceitou ter seu trabalho supervisionado pelos próximos três anos, além de se abster de participar de comitês de avaliação de agências de fomento norte-americanas pelo mesmo período. Aggarwal, que hoje trabalha numa empresa farmacêutica, admitiu ter manipulado imagens de testes western blot, falsificado dados estatísticos para dar lastro às imagens manipuladas e mentido sobre o número de ratos usados

numa experiência – foi apenas um, e não quatro, como informou nos trabalhos. A fraude atingiu dois artigos, projetos de pesquisa submetidos a duas agências e até a tese apresentada ao Medical College of Wisconsin em 2008 que serviu como requisito para obter o Ph.D. e lhe rendeu um prêmio de US$ 1.000. Os artigos com imagens falsas não foram alvo de retratação, assim como o Ph.D. permanece válido. Um porta-voz do Medical College of Wisconsin informou que um comitê de investigação encontrou dados suspeitos, mas eles não comprometem as conclusões. Por conta do episódio, a instituição discute novas normas para revogação de títulos acadêmicos. PESQUISA FAPESP 214 | 9


Estratégias Francês na chefia do ERC O matemático francês Jean-Pierre Bourguignon, do Institut des Hautes Études Scientifiques, da França, é o novo presidente do Conselho Europeu de Pesquisa (ERC,

1

2

na sigla em inglês).

Luiz Hildebrando, Niède Guidon e José Rodrigues Coura: agraciados

Bourguignon, 66 anos, foi indicado pela Sociedade Europeia de Matemática, que presidiu entre 1995 e 1998. O ERC é uma agência

Vencedores do Prêmio FCW

criada em 2007 pela União Europeia

A Fundação Conrado

o vencedor foi José

com o objetivo de apoiar

Wessel (FCW) anunciou

Rodrigues Coura, do

cientistas de seus

os vencedores da

Laboratório de Doenças

países-membros

12ª edição do Prêmio

Parasitárias do Instituto

e colaborações

FCW Ciência, Cultura

Oswaldo Cruz. O médico

transnacionais de

e Medicina.

de 86 anos de idade

pesquisa em temas da

O parasitologista Luiz

graduou-se pela

fronteira do conhecimento.

Hildebrando Pereira da

Universidade Federal

Atualmente, a agência

Silva, pesquisador da

do Rio de Janeiro, onde

recebe cerca de 10 mil

Fundação Oswaldo Cruz,

também obteve os

em Rondônia, foi

títulos de doutor e

escolhido para receber

livre-docente, e fez

o prêmio na categoria

pós-doutorado pelos

a entidade é responsável

entre 2007 e 2013 foi

Ciência. Formado em

National Institutes of

pela proteção do

de € 7,5 bilhões. Graduado

medicina em 1953 pela

Health em 1986. Coura

Parque Nacional Serra

pela École Polytechnique,

Universidade de

destacou-se na área de

da Capivara, declarado

Bourguignon é Ph.D.

São Paulo (USP),

medicina com ênfase

patrimônio cultural

pela Universidade de

Hildebrando, de 85 anos,

em doenças infecciosas

da humanidade pela

Paris VII. O matemático

é um dos mais

e parasitárias, como

Unesco. O vencedor

é conhecido por

respeitados estudiosos

esquistossomose e

de cada uma das

contribuições ao estudo

de doenças tropicais.

Chagas. A arqueóloga

três categorias do

da geometria diferencial.

Autor de mais de

Niède Guidon levou

prêmio receberá R$ 300

150 estudos sobre

o prêmio na categoria

mil. A cerimônia de

malária e doenças

Cultura. Especializada

premiação será realizada

infecciosas, foi professor

em arqueologia

no dia 9 de junho de

de parasitologia na

pré-histórica pela

2014, na Sala São Paulo,

Faculdade de Medicina

Universidade de

na capital paulista.

da USP e diretor

Sorbonne, em Paris,

O julgamento para a

das unidades de

Niède é fundadora e

escolha dos vencedores

diferenciação celular

diretora da Fundação

foi realizado em

e de parasitologia

Museu do Homem

novembro por membros

experimental do Instituto

Americano, criada

das 10 instituições

Pasteur, em Paris.

em 1986 no estado

parceiras do prêmio,

Na categoria Medicina,

do Piauí. Desde 1991,

entre as quais a FAPESP.

10 | dezembro DE 2013

projetos por ano, dos quais 10% são aprovados.

3

Seu orçamento total

Bourguignon: colaborações transnacionais

4


fotos 1 eduardo cesar 2 marcia minillo  3 Gutemberg Brito/IOC  4 AbelPrize  5 heitor shimizu  ilustraçãO daniel bueno

Fapesp Week nos EUA A sexta edição do

lideranças da UNC

Campo mapeado

simpósio internacional

Charlotte e trabalhar na

A Agência Espacial

FAPESP Week, nos dias

criação de propostas

Europeia (ESA) lançou

11 e 12 de novembro, na

conjuntas”, disse

no dia 22 de novembro,

Carolina do Norte, buscou

Daniel Janies, professor

na Rússia, os três

ampliar a colaboração

do Departamento de

satélites da missão

entre pesquisadores

Bioinformática e

Swarm, que mapearão

do estado de São Paulo

Genômica da UNC

o campo magnético da

e norte-americanos.

Charlotte, que

Terra ao longo de quatro

Organizado pela FAPESP,

foi um dos articuladores

anos para ajudar os

pela University of North

da primeira edição do

cientistas a compreender

Carolina at Chapel Hill,

simpósio realizada em

pela UNC Charlotte,

Washington em 2011,

NC State e pelo Brazil

quando era professor

Institute do Woodrow

da Ohio State University.

em coautoria entre

Wilson International

O diretor científico da

pesquisadores do estado

Center for Scholars,

FAPESP, Carlos Henrique

de São Paulo e da

o evento reuniu

de Brito Cruz, ressaltou

Carolina do Norte vem

diminuiu 15% nos

pesquisadores de áreas

os acordos celebrados

crescendo desde o ano

últimos dois séculos.

como ciências da

pela Fundação com

2000, sendo a maioria

“Em algumas localidades,

saúde, biodiversidade e

agências de fomento,

na área de saúde.

como no Atlântico Sul,

bioenergia para discutir

institutos, empresas e

Estamos buscando

o campo caiu 10%

resultados de pesquisas

universidades norte-

aumentar ainda mais

em apenas 20 anos”,

e oportunidades de novas

-americanas, como a

esse número por meio de

disse à BBC News Eigil

parcerias. “Vamos reunir

North Carolina State

novos acordos firmados”,

Friis-Christensen,

as informações coletadas

University. “O número

segundo informou a

pesquisador chefe da

aqui, dividi-las com as

de artigos publicados

Agência FAPESP.

missão. A missão medirá

como ele é gerado e 5

Brito Cruz, da FAPESP, no simpósio na Carolina do Norte

por que vem perdendo a força. A intensidade do campo magnético é variável e, segundo os pesquisadores,

os sinais magnéticos emitidos pelo núcleo, o manto, a crosta, os oceanos, a ionosfera e a magnetosfera da Terra, e começará a enviar dados em fevereiro. A tecnologia dos satélites foi desenvolvida em parceria com a Agência Espacial do Canadá.

São Paulo reorganiza Conselho de Ciência e Tecnologia O governo paulista instalou o Conselho

ciência, tecnologia e inovação e de pes-

o diretor superintendente do Centro Pau-

Estadual de Ciência e Tecnologia (Con-

quisa e desenvolvimento no estado para

la Souza, representantes de três institu-

cite), que foi reorganizado para definir

identificar problemas e gargalos. “O Con-

tos de pesquisa, além de oito membros

novas diretrizes para a política científica

cite é estratégico para o desenvolvimen-

escolhidos pelo governador – foram con-

e tecnológica do estado. O órgão irá as-

to do estado, ao integrar órgãos de ino-

vidados cinco empresários e o presiden-

sessorar o governo na elaboração do

vação, institutos de pesquisa e empresas”,

te da Financiadora de Estudos e Projetos

Plano Estadual de Ciência, Tecnologia e

disse o governador Geraldo Alckmin. O

(Finep). “Vamos criar planos operacionais

Inovação, para os próximos 20 anos, e

conselho é formado por 20 integrantes,

e estabelecer metas”, disse Rodrigo Gar-

traçará as prioridades para investimentos.

entre eles quatro secretários de estado,

cia, secretário de Desenvolvimento Eco-

No início de 2014, o governo dará início

os reitores das três universidades esta-

nômico, Ciência, Tecnologia e Inovação

a um levantamento das atividades de

duais paulistas, o presidente da FAPESP,

e vice-presidente do Concite.

PESQUISA FAPESP 214 | 11


Tecnociência Etanol feito de papel

1

Na rota dos hominídeos

Caverna no vale do rio Zarqa, Jordânia: região pode ter sido uma das primeiras paradas depois de o gênero Homo ter deixado a África

Resíduos de papel

O resultado é um volume

podem servir de

de 11,6% de etanol

matéria-prima para a

presente no líquido

produção de etanol.

elaborado no reator.

Foi o que demonstraram

O processo foi realizado

pesquisadores do Centro

em bancada de

de Biorrefinaria do

laboratório e agora

Instituto de Pesquisas de

deverá ser testado em

Alimentos (IFR, na sigla

uma fábrica-piloto para

em inglês) da Inglaterra.

verificação da viabilidade

Utilizando papel

econômica. Apenas no

desfiado descartado

Reino Unido são

de impressora, os

descartados 12 milhões

pesquisadores liderados

de toneladas por ano

pelo professor Keith

de papel – volume que

Waldron elaboraram

poderá ser usado para a

um processo em que a

produção de etanol

extração é feita por

como combustível ou

fases simultâneas

destinado à indústria

de sacarificação, que é

química, além de ser

a quebra de açúcares

reciclado de forma

existentes nas fibras do

sustentável. A forma de

papel feita por vários

produção em laboratório

Uma equipe de

aproximadamente

arqueólogos e

1,8 milhão de anos atrás.

bioantropólogos da

“Antes de terem

Universidade de São

alcançado a Ásia e

Paulo, do Instituto

possivelmente a Europa,

tipos de enzimas e

do etanol e os resultados

Italiano de Paleontologia

esses hominídeos têm

fungos em um biorreator,

dos estudos foram

Humana de Roma e da

que ter passado pelo

e fermentação com

detalhados na revista

Universidade Hashemite,

Oriente Médio”, diz

o uso da levedura

Bioresource Technology

da Jordânia, descobriu

Walter Neves, da USP,

Saccharomyces cerevisiae.

(abril, 2013).

duas cavernas de arenito

líder da empreitada

na região do vale do rio

científica. O vale do rio

Zarqa, um afluente do

Zarqa foi escolhido como

famoso rio Jordão que

alvo do projeto porque

percorre o planalto

na década de 1990 o

central desse país do

arqueólogo italiano

Oriente Médio. Os

Fabio Parenti, hoje

abrigos de pedra foram

parceiro dos brasileiros

encontrados durante

na iniciativa, descobrira

uma viagem de

ali cerca de 50 sítios

prospecção realizada

pré-históricos. Além de

pelos pesquisadores

resquícios fósseis, como

entre 1º e 13 de outubro,

um dente de mamute

etapa preliminar de um

com idade estimada em

projeto internacional

1 milhão de anos, tinham

de longo prazo que

sido achados na região

pretende estudar como

vestígios da mais antiga

e quando os primeiros

indústria lítica feita por

hominídeos do gênero

hominídeos, denominada

Homo começaram

olduvaiense, que

a deixar a África e a

consiste em seixos

se espalhar por

talhados entre 2,6 e 1,6

outros continentes

milhões de anos atrás.

12 | dezembro DE 2013


IceCube detecta neutrinos de fora da galáxia A equipe do detector de partículas Ice-

possuírem massa quase nula, atravessam

colidindo com a atmosfera da Terra, os

Cube, uma colaboração de 276 pesqui-

o corpo humano sem serem notados. O

físicos acreditam que a maioria deles ve-

sadores de 12 países, divulgou em um

IceCube usou uma rede de detectores

nha do espaço extragaláctico. Será ne-

artigo na revista Science de 22 de novem-

subterrâneos espalhados pelo interior de

cessário, no entanto, detectar um núme-

bro o que pode ser a primeira observação

um bloco de um quilômetro cúbico de

ro maior de neutrinos para identificar os

de neutrinos vindos de fora da nossa ga-

gelo na Antártida, próximo ao polo Sul,

pontos no céu de onde eles vêm.

láxia. Neutrinos são partículas elementa-

para captar, entre 2010 e 2012, os sinais

res produzidas em grandes quantidades

da passagem de 26 neutrinos com uma

em reações nucleares dentro de estrelas

energia de 30 trilhões de elétrons-volts

e em fenômenos cósmicos extremos,

– mais de um milhão de vezes maior que

como as explosões estelares chamadas

a dos neutrinos mais energéticos emitidos

de supernovas. Eles são muito difíceis de

pelo Sol. Embora alguns neutrinos possam

detectar. Por não terem carga elétrica e

ter sido produzidos por raios cósmicos

fotos 1 Astolfo Araujo 2 IceCube Observatory  3 Cecília Waichert  ilustraçãO daniel bueno

Duas novas vespas caça-aranha

Registro dos neutrinos mais energéticos observado no IceCube: possível origem fora da galáxia

Duas novas espécies

o nome de Abernessia

de vespas caça-aranha,

giga. Por meio de uma

assim denominadas

ferroada, as fêmeas

porque suas fêmeas

dessas vespas injetam

parasitam aracnídeos,

uma substância

foram descritas por uma

paralisante nas aranhas.

dupla de entomólogos

Em seguida, carregam

da Universidade

a presa capturada para

Uma alteração em um

forma ativa da enzima,

Estadual de Utah,

o ninho, depositam seus

gene parece influenciar

menor a dose de cocaína

a brasileira Cecília

ovos sobre o abdome

a preferência dos viciados

que chega ao cérebro

Waichert e o americano

dela e a enterram.

em cocaína pela forma

e menos intensos

James P. Pitts (ZooKeys,

Os aracnídeos servem

mais nociva da droga:

os efeitos da droga.

20 de novembro).

de alimento para as

o crack, a cocaína em

Os pesquisadores

Ambas são negras,

larvas. “Ainda não

pedra, que em geral é

confrontaram a

exibem um tom metálico

sabemos nada sobre

fumada. Pesquisadores

frequência de três

brilhante e pertencem ao

as vespas desse gênero,

da Universidade de

mutações no gene da

raro gênero Abernessia,

nem mesmo quais

São Paulo (USP) e da

BCHE com a forma

identificado apenas em

aranhas ela predam”,

Universidade Federal

preferida de consumo

trechos do cerrado e

diz Cecília. “Mas a

de São Paulo (Unifesp)

da cocaína: aspirada

da mata atlântica

descoberta dessas

chegaram a essa

(em pó), inalada (crack)

brasileira. Esse gênero

duas espécies aumenta

conclusão ao comparar

ou ambas. Viram que os

contava, até agora, com

nosso conhecimento

as alterações mais

usuários com uma

somente duas espécies

sobre a diversidade,

frequentes no gene que

mutação específica –

conhecidas, número que

a ocorrência e a

armazena a informação

a rs1803274, que reduz a

dobrou com os novos

morfologia desse grupo.”

para produzir a enzima

atividade da enzima –

butirilcolinesterase

nas duas cópias do gene

(BCHE) e os hábitos

da BCHE eram mais

de consumo de 698

propensos a consumir

espécies se chama

dependentes de cocaína

o crack do que a

Abernessia capixaba.

da capital paulista.

cocaína em pó (PloS

A outra – cujo exemplar

Sintetizada pricipalmente

One, 27 de novembro).

descoberto em Minas

pelo fígado, a BCHE

Essa mutação não seria

Gerais, uma fêmea,

degrada a cocaína no

a causa direta da

era de grande porte para

sangue, transformando-a

dependência, mas

esse gênero de inseto,

em dois compostos

influenciaria a

com 2,8 centímetros de

inertes. Por isso, quanto

preferência pela cocaína

maior a quantidade da

inalada.

achados. Por ter sido encontrada no Espírito Santo, uma das novas

comprimento – recebeu

2

Gene favorece vício do crack

Abernessia giga: nova espécie com 2.8 centímetros de comprimento

3

PESQUISA FAPESP 214 | 13


Célula solar movida a rock

1

1

Bahia de todos os ventos

Ouvir a música certa

acontecendo em

pode servir de estímulo

termos de todos aqueles

para aumentar a

sobretons adicionais

produtividade. Ao menos

que saem da música

esse parece ser o caso

sintetizada ou do rock.

de um tipo especial de

O aparelho responde à

célula solar feita com

maior variedade de

óxido de zinco, que

frequências presentes no

eleva em 50% a sua

rock e também ao fato

capacidade de converter

de que há muito mais

luz solar em energia

energia disponível nesse

elétrica quando exposto

tipo de música.” Segundo

a canções pop ou a

os pesquisadores, não

um barulhento rock.

apenas música, mas

O desempenho do

qualquer estímulo

dispositivo não

sonoro que produza

apresentou melhora

frequências similares

O recém-lançado Atlas

de computador. Como

significativa quando

pode, em tese, aumentar

eólico da Bahia estima

comparação, a usina

eram executadas

a eficiência desse tipo

o potencial de geração

hidrelétrica de Itaipu

músicas mais calmas,

de dispositivo solar.

de energia eólica no

gera 14.000 MW.

como a clássica. “Essas

Não se deve, no entanto,

estado a partir de

Atualmente, o país tem

células solares realmente

cogitar o uso de painéis

um amplo levantamento

uma potência instalada

gostam de Adele

fotovoltaicos feitos

da velocidade dos

de energia eólica de

(cantora inglesa) e

de óxido de zinco –

ventos, além de uma

5.000 MW. Somando a

de AC/DC (grupo

material semicondutor

análise da vegetação, do

capacidade dos parques

australiano de rock)”,

bem mais barato do

relevo e do clima por

eólicos já prontos, dos

diz o especialista em

que o silício cristalino,

meio de mapas de

que estão em construção

nanomateriais Steve

hoje comumente

satélites. O estudo

e dos já contratados para

Dunn, da Queen Mary

empregado em

mostra 156 áreas de

serem executados, a

University de Londres,

células fotoelétricas –

grande relevância para a

Bahia poderá ter 2.227

um dos autores de um

para breve. Mesmo com

instalação de

MW de energia eólica.

artigo recente sobre

a ajuda dos estímulos

aerogeradores e

Com essa capacidade, o

essa linha de pesquisa

sonoros, os painéis

produção de energia

estado deve alcançar o

(Advanced Materials,

testados alcançam

elétrica a partir do vento.

segundo lugar em

6 de novembro).

apenas 10% da

“A tecnologia já

energia eólica, ficando

“Na música clássica,

performance dos painéis

consolidada de torres

atrás do Rio Grande do

há muito menos coisas

disponíveis no mercado.

com até 100 metros de

Norte, que poderá atingir

altura permite ter uma

2.970 MW nos próximos

potência instalada no

três anos. Os dados dos

estado de 70 mil

ventos que resultaram no

Megawatts (MW) com

atlas foram também

ventos iguais ou

fornecidos por 14

superiores a 7 metros por

empresas como Chesf,

segundo. A potência

CPFL, Casa dos Ventos e

estimada é de áreas de

Coelba. Com recursos do

terra firme não contando

governo estadual baiano

o potencial sobre o mar”,

e Centro Integrado de

diz o engenheiro Paulo

Manufatura e Tecnologia

Andrade, da consultoria

(Cimatec) do Senai, o

Camargo-Schubert, de

atlas vai servir para

Curitiba, que produziu

estudos e contratação de

o atlas, um compêndio

empreendimentos eólicos

ilustrado cujos dados

no estado. O compêndio

consumiram mais de 3

pode ser acessado no site

mil horas de simulações

www.seinfra.ba.gov.br.

14 | dezembro DE 2013

Usina eólica Guirapá, instalada no sudoeste baiano, e capa do Atlas eólico da Bahia: potencial para gerar energia de cinco Itaipus


O jogo da dengue

Nanossensores sob a pele

Além do calor, nos últimos anos o verão trouxe

O óxido nítrico (NO) é uma molécula de

também o aumento de

sinalização que atua em muitos tecidos

casos de dengue. Até

animais regulando vários processos fisio-

fevereiro de 2013 houve

lógicos como a coordenação das funções

um crescimento de 190%

do sistema imunológico. Os níveis de NO

nos casos notificados

sofrem variações em células cancerígenas

no país em relação ao

e estão associados a processos inflama-

ano anterior. Para

tórios. Por tudo isso, Michel Strano, pro-

2

ajudar a combater essa

fessor na área de engenharia química do

Envoltos em gel, nanotubos de carbono

enfermidade transmitida

Instituto de Tecnologia de Massachusetts

monitoram níveis de óxido nítrico

pelo mosquito Aedes

(MIT), nos Estados Unidos, e sua pesqui-

aegypti, o Centro de

sadora pós-doc Nicole Iverson, criaram

nando uma bomba de insulina quando o

Pesquisa para o

um novo sensor feito de nanotubos de

açúcar no sangue atingisse determinado

Desenvolvimento de

carbono envolto em gel capaz de moni-

nível. Com algumas adaptações, os cien-

Materiais Funcionais

torar os níveis de óxido nítrico. Esse sen-

tistas acreditam que o sensor também

(CMDF), um dos Centros

sor, construído no laboratório, monitorou

poderia ser empregado para monitorar

de Pesquisa, Inovação

o óxido nítrico em animais por mais de

doenças inflamatórias e câncer ou para

e Difusão, da FAPESP,

um ano. O dispositivo, projetado para ser

detectar reações imunológicas adversas

coordenado por Elson

injetado na corrente sanguínea ou im-

em pacientes com implantes ósseos. A

Longo, da Universidade

plantado sob a pele, pode ser adaptado

pesquisa recebeu financiamento da em-

Estadual Paulista

para detectar outras moléculas, como a

presa Sanofi-Aventis, dos Institutos Na-

(Unesp) de Araraquara,

glicose. A ideia dos pesquisadores é que,

cionais da Saúde (NIH) e da Fundação

desenvolveu um jogo

no futuro, esses minúsculos dispositivos

Nacional da Ciência (NSF). O sensor foi

educativo gratuito

possam ser implantados sob a pele de

apresentado na revista Nature Nanotech-

para internet destinado

pacientes portadores de diabetes, acio-

nology em 3 de novembro.

principalmente às

fotos 1 Zig Koch / SECTI / SEINFRA / CIMATEC-SENAI-BA. 2 Bryce Vickmark / MIT  3 Estolas Project  ilustraçãO daniel bueno

crianças. No game, Sofia, uma menina de 7 anos, combate focos dos

Meio avião, meio helicóptero

mosquitos transmissores da doença em pneus

Um veículo voador que

revolucionar a aviação

2014 um protótipo em

velhos e coloca areia

combina as melhores

e reduzir o custo do

escala reduzida e

nos vasos para não

características dos

transporte aéreo.

comandado por controle

acumular água. Para

aviões, dos helicópteros,

Projetada para pousar em

remoto deverá alçar voo.

dos dirigíveis, dos

qualquer tipo de

O projeto, com um

hidroaviões e dos

superfície, inclusive no

financiamento de € 708

hovercrafts (também

mar, na neve ou em

mil, é coordenado pela

chamados de aerobarcos

pântanos, ela dispensará

Universidade Técnica

ou aerodeslizadores).

o uso de aeroportos e terá

de Riga, na Letônia.

A ideia parece ser

capacidade para levar

complexa, mas poderá

muito mais carga

se concretizar se

do que os helicópteros

for bem-sucedido um

convencionais. O modelo

projeto financiado pela

herdará dos aviões

União Europeia que

as turbinas e dos

atende pelo nome de

helicópteros, os rotores.

Estolas, sigla em inglês

Depósitos de hélio,

para pouso e decolagem

como os existentes nos

extremamente curto

dirigíveis, irão lhe dar

em qualquer superfície.

sustentação extra num

Essa aeronave

grande compartimento

híbrida, segundo seus

circular abaixo da

idealizadores, poderá

aeronave. Até abril de

cada tarefa acertada Estolas: aeronave híbrida pousa em qualquer superfície e tem compartimento de hélio na parte de baixo

o jogador sobe de nível. Esse e outros jogos educativos estão no site http://portal. ludoeducativo.com.br.

3

PESQUISA FAPESP 214 | 15


capa

Entre paredes de concreto Mapas históricos exibem as transformações na forma e na função de rios encobertos por avenidas

M

ais uma vez, nesta época do ano, quando as chuvas estão mais fortes e frequentes, os rios e córregos da cidade de São Paulo voltam a ser vistos e lembrados, ao empurrarem para as ruas o excesso de água que não conseguem mais transportar. Os rios apenas respondem ao modo pelo qual foram moldados ao longo de décadas – “do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento, mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem”, diria o dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Os rios que cruzam a maior cidade do país estão geralmente comprimidos e escondidos em túneis de concreto sob as avenidas, alguns ganharam outros percursos Puda des dolor as–ex foram retificados, diriam os engenheiros – e não podem ser earcius pellisi cusciae pla lembrados como alternativa para um passeio de fim de semana. dolor secti dolor accus molo cuptas nusae A transformação dos rios paulistas foi intensa e rápida. No início ipienihillo iuremol uptatisdo século XX, os paulistanos se divertiam aos domingos 16 | dezembro DE 2013


fotos  1 e 3 nonononono 2 nonononno  4 nonononono  ilustraçãO nonononono

Nononononnon

A futura metrópole Este era o Tietê e o clube de regatas na São Paulo de 1915. No mapa, o rio e a cidade em 1930 PESQUISA FAPESP 214 | 17


Rios sem voltas Os trajetos originais e retificados dos rios Tietê (acima) e Tamanduateí (à direita). Ao lado, a avenida Leopoldina, às margens do rio Pinheiros, em São Paulo, durante a enchente de fevereiro de 1929

nadando, pescando ou passeando de barco no rio Tietê – nas margens havia clubes, restaurantes e espaços para piquenique. A alegria acabou à medida que aumentava a descarga de resíduos das casas e das empresas no rio que na década de 1950 já era, como hoje, um esgoto a céu aberto, expondo o descaso com a natureza e o desapego à estética na cidade mais rica do país. Desde 1995, a despoluição do Tietê, o principal rio que cruza a metrópole, consumiu o equivalente a US$ 1,6 bilhão e reduziu o alcance da poluição, 18 | dezembro DE 2013

que chegava até Barra Bonita, a 260 quilômetros da capital, e hoje chega apenas até Salto, a 100 km, mas não terminou. Em abril de 2013, o governador de São Paulo anunciou a terceira etapa do programa de despoluição do rio Tietê, que prevê investimentos de US$ 2 bilhões – se tudo der certo, a coleta de esgotos passará dos atuais 84% para 87% e o tratamento de 70% para 84% em 2016. Outros R$ 439 milhões foram usados na despoluição de 137 dos 300 córregos da região metropolitana de 2007 a 2013. Estima-se que


Arquivo público do estado de SP (Mapas) e Acervo Eletropaulo

7 quilogramas (kg) de resíduos sejam lançados a cada segundo nos rios e córregos da Grande São Paulo, ainda vistos como área de descarte não só de esgoto residencial e industrial, mas também de entulho, garrafas plásticas, sofás e pneus e carros velhos. “São Paulo afogou os rios”, sintetiza o engenheiro e advogado Rodolfo Costa e Silva, coordenador dos programas de despoluição do rio Tietê e de requalificação das marginais dos rios Tietê e Pinheiros. “Queremos despoluir e manter os rios limpos”, ele diz. “É uma despoluição hídrica e urbanística.” Os programas que ele cooordena contam com a participação dos municípios da Grande São Paulo, empresas e organizações não governamentais e preveem a construção de ciclovias, calcadões e parques ao longo dos 50 quilômetros de marginais e a navegação dos rios, até mesmo unindo, por barco, os aeroportos de Congonhas e de Guarulhos. A cidade de São Paulo, com seus rios maltratados, “é um exemplo do que pode acontecer quando o poder de decisão está concentrado em poucos grupos de poder”, diz o historiador Luis Ferla, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Curitibano radicado em São Paulo desde 1992, Ferla foi um dos curadores da exposição O tempo e as águas: formas de representar os rios de São Paulo, em cartaz até março no Arquivo Público do Estado de São Paulo, com 17 mapas (vários deles reproduzidos nesta reportagem e no site da revista), fotografias e cadernetas com registros do trabalho de campo de engenheiros e cartógrafos. Logo na entrada da exposição, um mapa de 5 metros de largura por quase 2 de altura compara o curso original – e sinuoso – dos PESQUISA FAPESP 214 | 19


rios Tietê e Pinheiros cruzando a Grande São Paulo em 1916, com o curso retificado, em 2013. A sobreposição dos trajetos sintetiza as ideias e interesses que resultaram em uma cidade de rios retos, encobertos, malcheirosos, cruzados por pontes com passagens de pedestres geralmente estreitas. As pestes e a Light

No final do século XIX, o medo da morte foi o principal argumento para mudar os cursos dos rios da vila de São Paulo, inalterados por séculos. Pensava-se que a água estagnada nas várzeas, que já recebiam esgotos residenciais e acumulavam despejos de animais de criação, formando as chamadas ilhas de lodo, poderia favorecer a propagação de epidemias como as de febre amarela e febre tifoide, que acossavam os moradores das principais cidades paulistas. Portanto, foi para fazer os rios correrem com maior velocidade e evitarem doenças que os engenheiros à frente da Comissão de Saneamento das Várzeas e, logo depois, da Comissão de Saneamento do Estado ordenaram a retificação dos trajetos e a abertura de canais no Tamanduateí e no Tietê. Em um artigo publicado em 2012, o historiador Janes Jorge, professor da Unifesp que participou do planejamento da exposição, observou que as epidemias começaram a rarear, em razão 20 | dezembro DE 2013

principalmente da descoberta de seus reais agentes causadores, mas o mau cheiro persistiu: em 1927 o rio Tietê recebia cerca de 30 toneladas de esgoto por dia. Outras cidades, “Os projetos como Chicago, Washington, Londe retificação dres e Moscou, viveram problemas similares à medida que cresciam, dos rios até construírem as estações de tratamento de esgotos. empobreceram A cidade de São Paulo se expandia rapidamente, acompanhando e os interesses o aumento da produção das fazendos moradores das de café no interior do estado: o total de moradores passou de 15 ficaram de mil em 1850 para 30 mil em 1870, 240 mil em 1900, 580 mil em 1920 lado”, diz Jorge – quando São Paulo já havia se consolidado como um polo comercial e industrial –, 1,3 milhão em 1940 e 6 milhões em 1960. O crescimento urbano acelerado favoreceu a ocupação das várzeas, áreas naturalmente alagáveis, visadas para a construção de casas e fábricas, e o avanço sobre os braços dos rios: o córrego Saracura, afluente do Anhangabaú, foi o primeiro a ser coberto e desaparecer, em 1906. Cada vez mais cercados, os rios transbordaram para além de seus limites naturais e as enchentes se tornaram mais intensas,


fotos  Arquivo público do estado de SP

As duas faces do Noroeste Em 1868, a mesma região era vista como “terrenos ocupados pelos indígenas feroses” no Atlas do Império do Brasil e como “terrenos despovoados” no mapa da Sociedade Promotora de Imigração de São Paulo

frequentes e danosas, justificando ações mais radicais de retificação dos rios. No início, por meio de propostas como a do engenheiro sanitarista Saturnino de Brito, de 1926, planejava-se o alinhamento dos principais rios de modo a conciliar seus diferentes usos – transporte, lazer, pesca, abastecimento de água, controle de enchentes e produção de energia elétrica –, mas as coisas não saíram desse modo. “Os projetos de retificação dos rios paulistanos foram empobrecendo e os interesses dos moradores ficaram de lado, por uma série de circunstâncias econômicas e políticas”, diz Jorge. “As mudanças favoreceram quase exclusivamente a produção de energia elétrica, as vias expressas para automóveis e apropriação privada dos terrenos da várzea.” Os planos iniciais se diluíram por causa, em boa parte, da influência da empresa canadense The São Paulo Trainway, Light and Power Company, conhecida como Light, que detinha o monopólio da produção e distribuição de energia elétrica na região de São Paulo. Para garantir mais água para a hidrelétrica de Cubatão, a Light tinha invertido o curso do Pinheiros e recebido o direito de ocupar as várzeas.

Um decreto de dezembro de 1928 determinava que “a linha máxima” da enchente de 1929 delimitaria a área que caberia à Light. Vários pesquisadores acreditam que a Light abriu as comportas da represa de Guarapiranga para ampliar a área alagada e receber mais terras, ainda que agravando os danos de uma das piores enchentes da cidade. “Daí para a frente, um fiscal de terras passou a proibir as pessoas de usarem a várzea, fosse para jogar bola ou levar cabras para beber água”, disse a geógrafa Odete Seabra em uma entrevista ao Estado de S. Paulo em 2009. Em sua tese de doutorado, apresentada na Universidade de São Paulo em 1987 e hoje um estudo clássico sobre a ocupação das várzeas dos rios Tietê e Pinheiros, Odete mostrou, por meio de depoimentos, documentos e notícias de jornais, como a Light agravou a inundação, soltando a água de suas represas. Segundo ela, a Light assumiu o monopólio de fato e, abrindo e fechando as comportas da represa de Guarapiranga, afugentou os barqueiros que exploravam areia e pedregulho do Pinheiros. Depois, procurou-se resolver os litígios com os proprietários de terras próximas aos rios por meio da construPESQUISA FAPESP 214 | 21


A memória do Tietê 1

ção das avenidas marginais, que consolidaram a ocupação das várzeas dos rios. Para reduzir as enchentes, que continuaram, a saída encontrada foi aumentar a calha do Tietê. De 2002 a 2006, o rio foi rebaixado em média 2,5 metros, com a retirada de 9 milhões de metros cúbicos de terra e lixo, a um custo de R$ 1,1 bilhão, reduzindo bastante a probabilidade de transbordamentos. Cachoeiras encobertas

“Começamos a nos afastar dos rios quando os rios deixaram de ter a função de comunicação e de transporte”, diz a historiadora Iris Kantor, da USP. “Até o final do século XVIII havia uma cultura de valorização dos rios como forma de transporte de mercadorias e pessoas para o interior.” Uma prova desse uso estratégico dos rios, segundo ela, é a Carta geographica de projeção espherica da Nova Lusitania ou América Portuguesa e Estado do Brasil, preparada pelo astrônomo mineiro Antonio Pires da Silva Pontes Leme a partir de 80 mapas e concluída em 1798, por encomenda do governo português, interessado

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em consolidar as fronteiras de sua colônia na América. “Meus colegas geógrafos dizem que, comparativamente, esse mapa traz informações mais detalhadas sobre os cursos dos rios, muitos deles ainda hoje pouco visíveis nas imagens de satélite.” Os rios ainda são relevantes para o transporte de pessoas e de mercadores apenas na região Norte do país, em vista da dificuldade em construir e manter estradas em meio à floresta. Ao selecionar o material do período colonial para a exposição do Arquivo Público, a equipe encontrou um mapa impressionante, intitulado Planta do rio Tietê ou Anemby na capitania de São Paulo desde a cidade do mesmo nome até à sua confluência com o rio Grande ou Paraná. Iris desconfiou da autenticidade da autoria – o nome de José Custódio de Sá e Faria estava escrito a lápis no verso do mapa –, consultou a obra da historiadora Isa Adonias e a base digital da Biblioteca Nacional, do Rio de Janeiro, e concluiu que o mapa deveria ser uma edição anônima de uma antiga carta hidrográfica do Tietê feita em 1789 pelo cartógrafo paulista Francisco José de

O salto de Itapura em 1905, e o roteiro de navegação de 1810


fotos Arquivo público do estado de SP

Lacerda e Almeida, que fez medições ao longo do curso do rio Tietê e de seus afluentes em 1788 e 1789, a pedido do então governador de Mato Grosso. A versão encontrada é um pouco posterior a 1810, pertenceu ao acervo do extinto Instituto Geográfico Geológico de São Paulo e contém muitas informações de natureza histórica e etnográfica que não constavam no mapa original de 1789. O mapa detalha as cachoeiras, portos e fazendas que os viajantes deveriam passar rumo ao rio Paraná. “É um verdadeiro roteiro prático de navegação, no qual se indicam os lugares e pontos do percurso fluvial e terrestre por onde as canoas e as cargas deveriam ser transportadas ou empurradas por cordas e pelos braços dos pilotos e tripulantes”, observa Iris (ver adiante uma parte do mapa e a versão completa no site da revista). O mapa registra o salto de Itapura, quase na foz do Tietê, uma das cerca de 150 cachoeiras do Tietê encobertas pelos reservatórios das usinas hidrelétricas que transformaram também outros rios de São Paulo e de outros estados, gerando

energia, mas também causando assoreamento e reduzindo a diversidade de peixes e outros organismos aquáticos. “As cidades do interior não precisam fazer as mesmas besteiras que fizemos em São Paulo”, alerta Jorge. No entanto, o que se vê, por enquanto, são as cidades do interior que tentam ser modernas canalizando, cobrindo ou aterrando rios que, quando expostos, exibem uma carga crescente de poluição. Em 2002, somente 17% do esgoto doméstico gerado nos 645 municípios do estado de São Paulo era tratado antes de ser jogado nos rios, reduzindo a qualidade da água e a diversidade biológica, de acordo com um estudo coordenado por Luiz Antonio Martinelli, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da USP de Piracicaba. Em 2006, Juliano Groppo e Jorge de Moraes, do mesmo grupo, verificaram que a degradação da qualidade da água da bacia do rio Piracicaba, uma das mais prejudicadas no estudo anterior, persistia. “As agências responsáveis pela qualidade da água dizem que o tratamento de esgotos aumentou, mas não vimos melhoria palpável nos rios da região”, diz Martinelli. “Não sei onde está o problema. Temos hoje um bom conjunto de leis, mas algo não está funcionando. Temos de ver onde falhamos.” Em 2013, com base em amostras colhidas em 360 pontos do estado, Davi Cunha e outros pesquisadores da USP de São Carlos e da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) verificaram que a qualidade da água continuava aquém dos limites impostos pela legislação. Rios vivos outra vez?

“Temos de entender os momentos históricos”, sugere o arquiteto Fernando de Mello Franco, secretário de Desenvolvimento Urbano de São Paulo, que em 2005 concluiu seu doutorado sobre a ocupação das várzeas e planícies fluviais da bacia de São Paulo, na Faculdade de Arquitetura da USP. São Paulo, ele acentua, não é mais uma cidade de passagem para comerciantes, migran-

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A cidade e o campo Os cartógrafos da Comissão Geográfica e Geológica mapearam o crescimento de São Paulo (à esquerda) e, nas cadernetas de campo (acima), o relevo e a ocupação do interior do estado

tes e imigrantes. “Estamos em um momento de inflexão, com novos conceitos, como o de urbanismo da paisagem, em que a transformação do território não é realizado prioritariamente para amparar a produção, mas para amparar a vida. A paisagem não é dada, não desfrutamos a paisagem como um viajante do século XVI, somos nós que a construímos.” Agora se procura resgatar um pouco da paisagem perdida. Prevista no programa de requalificação das marginais, a construção de uma 24 | dezembro DE 2013

ciclovia sobre o rio Pinheiros, unindo a Cidade Universitária ao parque Villa Lobos, deve começar em 2014. E até o final de 2014, segundo Costa e Silva, deve terminar a primeira etapa de despoluição do Tietê, que consiste na limpeza e arrumação dos afluentes e córregos de oito municípios próximos à nascente – Arujá, Mauá, Poá, Ferraz de Vasconcelos, Suzano, Mogi das Cruzes, Biritiba-Mirim e Salesópolis – que abrigam cerca de 1 milhão de pessoas. “Despoluir não é só tirar o esgoto dos rios”, ele diz. Trata-


fotos Arquivo público do estado de SP

-se de uma operação complexa, que implica também a recuperação da vazão dos rios, redução do assoreamento, controle da drenagem e Despoluir, incentivo à arborização como foralém de tirar o ma de aumentar a permeabilidade das áreas urbanas. Em novembro esgoto, implica de 2013 estudava-se a substituição das bocas de lobo, que deixam pasreduzir o sar o lixo que segue para os rios, por grades, que retêm boa parte assoreamento dos resíduos. “Estamos servindo e aumentar a às cidades”, diz ele. “Não adianta inventar o que as cidades e seus permeabilidade moradores não querem.” À medida que os resultados se tornarem visíveis, Costa e Silva pretende promover campanhas públicas para evitar que os moradores joguem sujeira nos rios – agora, cartazes de educação ambiental não teriam efeito, ele pondera, diante da atual desmoralização dos rios. Moradores de São Paulo já se mobilizam para valorizar os córregos e rios da cidade. No início de 2013 a geógrafa Janaína Yamamoto Santos, diretora do núcleo de acervo cartográfico do Arquivo Público, participou de um bloco pós-Carnaval que percorreu o trajeto encoberto do córrego da Água Preta, na Pompeia.

O rio Tamanduateí – chamado de Sete Voltas e usado no século XVII pelos moradores da então vila de São Paulo para transportar tijolos, louças, frutas e cereais, em canoas de madeira – hoje corre acanhado sob a avenida do Estado, uma das mais áridas da cidade de São Paulo. “O Tamanduateí poderia ter ciclovia e árvores, mas é apenas esgoto, é feio que dói. Tem de ser assim?”, questiona Jorge. “Todo mundo aceita que São Paulo tem de ser feia, mas não tem. Já podemos conciliar desenvolvimento urbano e estética.” n

Projeto Implementação da tecnologia de sistemas de informações geográficos (SIG) em investigações históricas (13/05444-4). Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Coordenador Luis Antonio Coelho Ferla – Unifesp; Investimento R$ 51.907,60.

Artigos científicos JORGE, Janes. Rios e saúde na cidade de São Paulo, 1890-1940. História e Perspectivas. v. 25, n. 47, p. 103-24. 2012. JORGE, Janes. São Paulo das enchentes, 1890-1940. Histórica. n. 47, p. 103-24. 2012. KANTOR, Iris. Mapas em trânsito: projeções cartográficas e processo de emancipação política do Brasil (1779-1822). Araucaria. v. 12, n. 24, p. 110-23. 2010. CUNHA, D.G.F. et al. Resolução Conama 357/2005: análise espacial e temporal de não conformidades em rios e reservatórios do estado de São Paulo de acordo com seus enquadramentos (2005–2009). Engenharia Sanitária e Ambiental. v. 18, n. 2, p. 159-68. 2013. MARTINELLI, L.A. et al. Levantamento das cargas orgânicas lançadas nos rios do estado de São Paulo. Biota Neotropica. v. 2, n.2, p. 1-18. 2002.

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entrevista Magda Maria Sales Carneiro Sampaio

Em defesa das crianças Carlos Fioravanti e Neldson Marcolin

M

agda Carneiro Sampaio é uma pediatra que assume suas preferências com tranquilidade: “Só tenho olhos para os bebês. Ainda bem que temos bastante gente aqui no hospital para tratar das crianças maiores e adolescentes”, ela diz. Ao gosto pessoal soma-se uma razão científica. Desde os primeiros passos como pesquisadora, ela quis entender o desenvolvimento imunológico da criança a partir dos primeiros dias de vida. Junte a pediatria com a imunologia e tem-se aí uma profissional capaz de conciliar bem a atividade clínica intensa com a investigação experimental de laboratório. Magda veio do Recife em 1973, depois de se formar na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), para fazer residência no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP), e três anos depois começou o doutorado, orientada pelo veterano imunologista Charles Naspitz, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), para se aprofundar em imunologia aplicada à pediatria. Lotada no início da carreira no Instituto da Criança (ICr) do HC-FMUSP, ela passou 15 anos no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) trabalhando em colaboração com Luiz Trabulsi em pesquisas pioneiras sobre imunologia do leite materno, antes de voltar para o ICr, em 2005. Hoje é a presidente do Conselho Diretor do instituto. Uma das primeiras no Brasil a trabalhar na área de imunodeficiências primárias, Magda é uma das criadoras de um projeto que procura tornar o diagnóstico das crianças mais humano e seguro, recomendando aos médicos atenção redobrada nos exames clínicos e físicos dos pacientes em vez da habitual longa lista de testes laboratoriais. Ela foi também uma das coordenadoras de um projeto que defende uma nova prática de pediatria para as crianças que poderão viver até 100 anos ou mais, visando à prevenção precoce das doenças crônicas do adulto e do idoso. Sua paixão pela medicina não contaminou as duas filhas. Uma é historiadora com o doutorado pronto para ser defen-

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especialidade Imunologia aplicada à pediatria formação Universidade Federal de Pernambuco (graduação), 1973 Universidade de São Paulo (residência médica de 1974 a 1975 e doutorado de 1976 a 1978) Organização Mundial da Saúde (pós-doutorado), 1983 instituição Instituto da Criança da FMUSP produção científica 126 artigos em periódicos internacionais, 2 livros publicados, 28 orientações de doutorado


eduardo cesar

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dido na USP. Outra é atriz e cantora de músicas infantis. A pesquisadora falou à Pesquisa FAPESP sobre crianças, medicina e ciência na entrevista abaixo. A senhora sempre tem algum projeto ambicioso à vista. Qual o mais recente? Um dos mais recentes, de cunho educativo e social, é o “Diagnóstico amigo da criança”. Ele consiste em reduzir o impacto negativo dos procedimentos diagnósticos para a criança, principalmente nas menores. Esse projeto tem três vertentes. A primeira, em que me envolvi mais, visa reduzir a quantidade de sangue que se colhe da criança. É comum tirar vários tubos de sangue e a criança não aguenta. Um bebê de 2 quilos tem uma quantidade muito pequena de sangue, menos de 200 mililitros (ml), aproximadamente um copo de tamanho médio. O volume de sangue a ser coletado é determinado pelo tipo de análise, independentemente da idade e do peso do paciente. Para se fazer a análise propriamente dita, é necessária uma quantidade diminuta de sangue. O problema é a chamada fase pré-analítica, de coleta e preparo do material, que ainda requer que se colha muito sangue. A principal causa de transfusão de sangue em crianças pequenas que ficam internadas se dá em razão do excesso de sangue retirado. Tira-se tanto que é preciso repor. No ICr, passamos a usar sistematicamente tubos muito menores do que os utilizados normalmente [mostra o tubo comum e outro bem menor]. É uma economia de cerca de 90%. Para quase todos os tipos de análises automatizadas [o tubo grande], o volume retirado é muito mais alto do que a quantidade de sangue ou outro material requerida pelo equipamento. O tubo convencional de hemograma, por exemplo, requer 4,5 ml de sangue. Estamos colhendo agora 0,5 ml e mesmo assim é muito, porque usamos 5 microlitros para o exame! Alguns hospitais diferenciados já usam esse sistema, mas os hospitais gerais que têm pediatria ainda não. Estamos começando a disseminar a ideia de que se desperdiça sangue, o

que pode representar um agravo para a evolução clínica do paciente pediátrico. Quais as outras vertentes desse projeto? A segunda delas é reduzir a radiação a que a criança é exposta nos exames de imagem. Falo da patologia clínica, dos exames de imagem, que são muito importantes. Existem algumas radiações inócuas e outras potencialmente muito perigosas, as chamadas radiações ionizantes. A principal é o raio X. Um trabalho inglês e outro australiano demonstram o risco do raio X e da tomografia, que usa grandes quantidades de raio X para gerar as imagens. Os dois estudos, feitos com grandes números de crianças e adolescentes, mostram maior risco para o desenvolvimento de leucemia, lin-

quantidade de radiação necessária para a geração das imagens. Outro meio para investigação é a ressonância magnética, que usa ondas de rádio, consideradas não ionizantes. Mas a máquina é caríssima e é enorme o tempo necessário para a obtenção das imagens, exigindo que a criança fique imóvel por muito tempo, o que é difícil, daí a necessidade de sedação e mesmo de anestesia em alguns casos. Vem então a nossa terceira vertente, que é humanizar o atendimento para acolher o paciente e reduzir ao máximo os procedimentos anestésicos e de sedação, que têm obviamente riscos, mesmo que pequenos. O princípio de tudo é que os médicos resgatem a importância da clínica. Hoje, o que era exame complementar virou principal! Há uma verdadeira inversão da lógica do diagnóstico médico, que se baseia na formulação de uma hipótese diagnóstica com base nos dados clínicos, obtidos na anamnese [entrevista com o paciente] e no exame físico. Os exames complementares, laboratoriais ou de imagem, são solicitados se forem necessários para confirmar ou afastar as hipóteses levantadas.

Temos de lembrar os médicos de que a radiação é perigosa e que se pode tirar menos sangue

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fomas e tumores cerebrais nas pessoas expostas à radiação. É possível diminuir essa exposição? Sim. Primeiro, deve-se usar a ultrassonografia em todos os exames que forem possíveis porque essa é uma radiação inócua. Há mais de 30 anos é usada em fetos, durante a gestação, sem relatos de problemas. Mas temos algumas situações, por exemplo, a exploração do tórax, em que o ultrassom não é bom, sendo a radiografia convencional e a tomografia os melhores meios exploratórios. No entanto, é preciso que fique muito claro que uma tomografia só deve ser solicitada para uma criança em uma situação excepcional, dada a enorme

Será preciso, então, que o profissional da saúde volte a examinar o paciente com tempo e interesse. Com tempo e atenção, o que começa pela conversa com a família. Uma anamnese bem-feita é importantíssima. O que mais me preocupa é que hoje as famílias acham que se não for solicitada uma lista de exames, se a criança não for submetida a um raio x, não foi bem atendida. E é exatamente o contrário, o bom atendimento é representado pela boa anamnese e pelo exame físico cuidadoso, e então os exames complementares serão dispensáveis na maioria das consultas pediátricas. Um verdadeiro absurdo acontece com crianças com problemas respiratórios crônicos, asma brônquica, por exemplo, que são submetidas a pelo menos uma radiografia em cada crise! Deixam-se de identificar as causas e os fatores desencadeantes do problema e tratam-se os sintomas, sempre com base num raio X, que quase


sempre mostra o que uma boa ausculta pulmonar facilmente já teria revelado. Por isso, o “Diagnóstico amigo da criança” é sobretudo um programa de caráter educativo para profissionais da saúde e para a população. Temos de lembrar os médicos de que a radiação é perigosa, que não dá para expor demais o paciente, que se pode tirar menos sangue para as análises realmente necessárias, entre outras medidas. E também as famílias têm de estar conscientes sobre os riscos do raio X, para não falar dos custos financeiros. A assistência médica está ficando impagável. A senhora já implantou esse projeto aqui no Instituto da Criança? O projeto vem sendo implantado desde março de 2012, depois de sua aprovação unânime pelo Conselho Diretor. Modificar o laboratório foi simples, apenas uma questão de calibrar as máquinas. Os tubos pequenos, chamados pediátricos, custam mais caro, o que representa um gasto adicional de R$ 8 mil por mês, que não é grande coisa, dados os benefícios para os nossos pacientinhos. Sobre o raio X, adquirimos uma máquina de tomografia que emite dose reduzida de radiação, mas ainda assim muito alta, e estamos instalando agora a primeira ressonância magnética do hospital. Estamos expandindo o uso da ultrassonografia, que começa a ser usada pelos próprios pediatras no pronto-socorro e nas unidades de terapia intensiva, sem necessariamente a intervenção do radiologista. O “Diagnóstico” é uma construção coletiva, com o envolvimento também de radiologistas, patologistas clínicos e enfermeiras que lidam com as questões da humanização do atendimento pediátrico, além dos colegas da neonatologia. Na equipe temos também um jurista, o Gustavo Mônaco, professor de direito da criança e do adolescente da Faculdade de Direito da USP. Ele quer transformar algumas dessas medidas em projetos de lei.

fantojuvenil.com.br) sobre questões de saúde nas duas primeiras décadas da vida e dirigido às famílias. Eu tinha um sonho antigo de fazer um site educativo para dar algum atendimento também às crianças saudáveis ou com doenças simples, que normalmente não são assistidas pelo ICr. O “doutor Google” não resolve todas as dúvidas e há a importante questão de saber se a informação que retorna da busca é mesmo segura e confiável. Grande parte da informação disponível na internet está atrelada ao interesse de vender alguma coisa, mesmo na área da saúde. Demoramos para fazer o site por falta de recursos financeiros, porque não queríamos o apoio de empresas farmacêuticas ou de alimentação, para evitar conflitos de interesse.

15% das crianças podem ter alguma doença crônica. As mais comuns são asma e obesidade

O que mais estão preparando? Em outubro inauguramos o site ABC da Saúde Infantojuvenil (www.abcsaudein-

Finalmente o sonho está se realizando no âmbito do núcleo de apoio à pesquisa em saúde da criança e do adolescente (NAP CriAd), sediado no ICr, que elegeu o site como seu canal de comunicação com a sociedade. Temos no ICr um corpo de pediatras e outros profissionais da melhor qualidade e com reconhecida experiência que está se envolvendo com o projeto. Nosso único compromisso é com o conhecimento científico e com a vontade de prestar um serviço à sociedade, até mesmo como uma forma de retribuição pelo ensino de qualidade que os participantes receberam em faculdades públicas gratuitas, a maior parte na própria FMUSP. Conseguimos contratar pelo ICr a jornalista Juliana

Lanzuolo, que gerencia o projeto com muito entusiasmo, junto com a também jornalista Samia Prates. Qual o perfil de crianças que o instituto atende? Atendemos aqui a minoria de crianças com doenças raras, graves, complexas. Estima-se que 85% das crianças sejam completamente saudáveis, enquanto 15% podem ter alguma doença crônica, sendo a mais comum a asma brônquica leve. Antes a doença mais comum na população pediátrica brasileira era a cárie dentária, que atingia mais de 50% e caiu muito rapidamente nas últimas décadas. Em segundo lugar, vêm os índices crescentes de obesidade. Em pouco tempo passamos da desnutrição para a obesidade. Em terceiro lugar, aparecem os distúrbios comportamentais e neurológicos leves, tais como dificuldade de aprendizado e atenção e hiperatividade. Temos 240 leitos em dois hospitais: o Instituto da Criança e o Itaci [Instituto de Tratamento do Câncer Infantil], que é o nosso serviço de onco-hematologia, onde se fazem transplantes de células hematopoiéticas. Fazemos cerca de 8 mil atendimentos por mês no ambulatório e no pronto-socorro, majoritariamente de doenças crônicas graves, complexas e raras. São realizadas em média 200 cirurgias por mês, destacando-se os transplantes hepáticos, renais e cirurgias de malformações congênitas. As crianças que atendemos vêm de todo o Brasil. Como está a Pediatria do Futuro? Em 2005 começamos um projeto chamado “Uma nova pediatria para crianças que vão viver 100 anos ou mais”. É dirigido à prevenção precoce das doenças crônico-degenerativas do adulto e do idoso, que sabidamente começam a se instalar bem cedo. O enfoque maior está nas famílias que já têm risco para determinadas doenças, como doença coronariana e obesidade. A osteoporose, por exemplo, manifesta-se depois dos 50 anos, mas tem de ser prevenida desde cedo, porque a maior parte da PESQUISA FAPESP 214 | 29


massa óssea se forma nos primeiros 20 anos. Logo, é o pediatra que tem obrigação de orientar a prevenção. Trata-se de um projeto transversal de mudança de postura, porque a ação do pediatra tem um impacto ao longo de todo o ciclo de vida. Nesse projeto trabalhamos muito em colaboração com o Instituto Materno-Infantil de Pernambuco, o IMIP. No ano passado, um médico de lá, João Guilherme Bezerra Alves, e eu fizemos um resumo para os pediatras, em 10 passos, das principais recomendações para que as pessoas cheguem aos 90 ou 100 anos com saúde: 1) assistência pré-natal, 2) aleitamento materno, 3) estabelecimento de hábitos alimentares saudáveis desde o primeiro momento, 4) vigilância do crescimento e desenvolvimento, 5) prevenção de infecções, em especial pelas vacinas, 6) estímulo à atividade física e combate ao sedentarismo, 7) prevenção do tabagismo, alcoolismo e uso de drogas, 8) identificação precoce de hipertensão, diabetes, dislipidemias, tendência a osteoporose, 9) prevenção da saúde mental, e 10) educação para prevenção da violência. Essa última é uma questão bem brasileira, mas que mata muitos jovens. Grande parte das questões abordadas nesse trabalho não tem nada de pesquisa feita por nós. Fizemos a junção e a revisão de outros trabalhos, ou seja, uma translação de conceitos e resultados de bons estudos para a prática médica.

e como a natureza inventou formas de supri-la por meio da passagem de anticorpos pela placenta e pelo aleitamento. Quando cursou medicina, a senhora já tinha essa visão? Não. Minha primeira paixão foi a relação patógeno-hospedeiro e imunologia. Só depois me apaixonei pelo desenvolvimento da criança, que é algo extraordinário. Fiz o meu curso na UFPE, no Recife, e parte do internato [5º e 6º ano de medicina] no IMIP. Em seguida prestei concurso para fazer a residência aqui no HC porque eu queria estudar imunologia pediátrica e no Recife essa área ainda era muito incipiente. Nunca mais saí daqui. Naquela época meus professores e colegas me diziam para não ir para a

sabia do meu interesse em imunologia e não achou ninguém na FMUSP para me orientar. Na Escola Paulista de Medicina, ainda não era Unifesp, ele encontrou o Charles Naspitz, que introduziu os estudos sobre alergia e imunologia pediátrica no Brasil. Muito generoso, Naspitz se credenciou na USP só para me orientar, embora já tivesse muitos alunos. Eu usava o laboratório da Escola Paulista e os pacientes asmáticos eram do ICr. Vinha para cá cedo, examinava as crianças, colhia sangue e ia trabalhar lá. Foi uma experiência muito rica. Terminei o doutorado no final de 1978, implantei a unidade de alergia e imunologia do ICr e fui para o ICB em 1989 porque queria fazer pesquisa básica e ter uma carreira docente. Aqui no HC eu era apenas médica, embora já tivesse feito até livre-docência. Fiquei na imunologia por 15 anos, de 1989 a 2004, até decidir voltar. Eu continuava a ter fascínio pela clínica e queria ver pacientes com imunodeficiências primárias, uma área que teve um desenvolvimento enorme a partir dos anos 1990.

Diziam para eu não ir para a pediatria porque eu chorava muito vendo crianças desnutridas

A senhora parece gostar muito de crianças bem pequenas. É verdade, tenho olhos só para bebês. Ainda bem que temos bastante gente aqui para tratar das crianças maiores e adolescentes. O que me interessa mais é realmente o começo da vida. Não canso de olhar os bebês. Eles me encantam, mesmo depois de 40 anos de profissão. O começo de vida é quase sempre muito tumultuado em termos de infecção. Nos primeiros 2 anos as crianças sofrem com isso, sabendo-se hoje que algumas têm um desenvolvimento imunológico mais lento. Para mim o tema de maior interesse é a imaturidade imunológica 30 | dezembro DE 2013

pediatria porque eu chorava muito vendo crianças desnutridas por falta de comida. Diziam que eu não tinha condições emocionais de fazer isso. Não sei se superei, até acho que não, mas estou aqui. Sempre tive muita pena dos doentes, nunca consegui fazer procedimento nenhum, tenho muito pouca habilidade manual, tenho horror a fazer as pessoas sofrerem. Por outro lado, tenho o olhar para o diagnóstico. Gosto muito de entender os fenômenos. Não é à toa que fui do ICB. Quando a senhora foi para o ICB? Depois da graduação, fiquei dois anos na residência no HC da FMUSP e fui aceita direto para o doutorado, em 1976. O professor de pediatria Eduardo Marcondes

O que a senhora fez no ICB? Trabalhei muito com transmissão placentária de anticorpos e com imunologia do leite humano, ambos colhidos de mães do Hospital Universitário da USP. Foi uma das épocas mais produtivas de minha carreira, porque tive a oportunidade de trabalhar diretamente com o professor Luiz Trabulsi. Tive muita sorte porque ele se aposentou da Unifesp e foi para o ICB justamente quando eu estava chegando lá. Estudamos juntos como o leite materno protege a criança de diarreias bacterianas. Já nos anos 1980 havia a constatação epidemiológica de que as crianças amamentadas tinham menos diarreias. Montamos uma linha de pesquisa, com modelos in vitro, fazendo uma simulação de infecção, e víamos que, com o leite materno, as enterobactérias não aderiam às células. Depois examinávamos os anticorpos e que antígenos da bactéria eram críticos para inibir a aderência microbiana e, consequentemente, a infecção. Foi um


trabalho muito bem-sucedido. Trabulsi foi o especialista mais importante do país em enterobactérias patogênicas para o trato gastrointestinal de bebês. Ele sempre estudou diarreia infantil. Vocês tentaram fazer uma vacina? Estávamos muito perto disso, tínhamos os antígenos candidatos e sabíamos que a vacina teria de ser viva para colonizar o intestino. Tínhamos identificado uma organela que a bactéria usa para aderir ao intestino, altamente antigênica, estávamos prontos para expressá-la num probiótico, mas havia uma resistência grande nessa época, e ainda hoje, para se fazer um organismo geneticamente modificado. A vacina acabou não acontecendo, porque a partir do final dos anos 1990 as diarreias infecciosas causadas por Escherichia coli começaram a diminuir. Isso graças nem tanto à medicina, mas à melhoria das condições de vida da população, com saneamento e educação. Foi a médica Zilda Arns, da Pastoral da Criança, que ensinou as mães de todo o país a tomarem providências rápidas para prevenir a desidratação. Ela inventou aquela colherinha com uma medida para o sal e outra para o açúcar, suficientes para um copo de água, e estava pronto um excelente soro caseiro. Ela soube aproveitar o fato de a Igreja Católica estar em todo o país e fez um trabalho excepcional, que salvou certamente milhares de vidas. Foi um período muito bom porque tínhamos um fenômeno epidemiológico conhecido, que é a proteção do leite materno contra diarreias infecciosas, e esclarecemos por que isso acontece. Foi um trabalho na fronteira do conhecimento na época e que rendeu muitas teses. Os artigos que mais tenho citação foram os escritos naquela fase. Quando Trabulsi morreu, eu já era diretora do ICB, minha vida era um pouco mais complicada e voltei para o ICr.

as crianças que têm doenças raras sobrevivem mais, e temos de cuidar bem delas. Um desses grupos de doenças são as imunodeficiências primárias ou IDPs, quase todas monogênicas. Existem hoje cerca de 180 IDPs diferentes. Criamos em março o Consórcio Brasileiro de Centros de Referência e Treinamento em Imunodeficiências Primárias, o CoBID, com médicos e pesquisadores de todo o país. A ideia é que um centro mais avançado ajude outro menos avançado a identificar os doentes o mais cedo possível. É possível identificar o problema já no recém-nascido? É muito difícil. O grande desafio é reconhecer os casos mais graves o mais cedo possível, porque para essas crianças a

Hoje as crianças com doenças raras sobrevivem mais e temos de cuidar bem delas

A senhora também se interessa por doen­ças raras. À medida que as doenças infecciosas são controladas por saneamento e vacinas,

única possibilidade de sobrevivência é um transplante de células hematopoiéticas, de medula óssea ou de cordão umbilical, o quanto antes. Elas são conhecidas como as “crianças da bolha”, por causa do filme O menino da bolha de plástico, de 1976. Hoje se sabe que já são uns 15 defeitos genéticos diferentes que levam ao mesmo quadro clínico de infecções gravíssimas já nos primeiros meses de vida. Em alguns estados americanos já se faz um tipo de teste do pezinho para identificar o problema e realizar o transplante antes de a criança ficar doente. O que é a rede DORA? É uma rede de serviços médico-universitários de São Paulo envolvidos com

diagnóstico e tratamentos de doenças raras. A ideia deste projeto, concebido no âmbito da Secretaria da Saúde de São Paulo, é dividir as doenças em grupos conforme as necessidades clínicas dos pacientes (neuromusculares, metabólitas, nefrológicas, cardiológicas, imunológicas etc.) e articular os hospitais universitários que têm especialistas nessas doenças. O cuidado com as doenças raras, quase todas genéticas, é uma necessidade da sociedade, porque o perfil nosológico da população vem mudando rapidamente. Sabemos que existem entre 4 mil e 5 mil diferentes doenças raras, e novas descobertas ocorrem a toda hora. No Brasil não temos muita noção da frequência, mas na França 3% da população tem alguma doença rara. As imunodeficiências primárias acometem uma em cada 1.200 pessoas da população geral e assim, como grupo, não são tão raras. Aqui há muitas doenças ligadas ao cromossomo X, 75% das crianças com IDPs diagnosticadas antes dos 2 anos no ICr são meninos. Qual é o maior problema em relação às doenças raras? A falta de informação dos pediatras que fazem a atenção primária. A estratégia que está sendo desenvolvida no projeto DORA é de disseminar sinais de alerta para os vários grupos de doenças raras. Nosso grupo desenvolveu uma lista de 12 sinais de alerta para imunodeficiências primárias no primeiro ano de vida, sobretudo para infecções graves, uma vez que são crianças com defesas comprometidas. Um dos objetivos do DORA é articular os colegas da linha de frente com os hospitais universitários mais próximos. Um portal eletrônico está sendo desenvolvido com a ajuda de professores da Poli para facilitar a referência dos pacientes com suspeita de doenças raras para os centros especializados. Os portadores de doenças raras sofrem muito indo de um lado para outro, até encontrar um serviço médico capaz de oferecer uma assistência adequada, quanto a diagnóstico e quanto a tratamento, quando existe. As doenças raras são também chamadas de doenças órfãs. n PESQUISA FAPESP 214 | 31


política c&T  inovação y

Diálogo avançado FAPESP e empresas criam centros de pesquisa em engenharia sobre temas na fronteira do conhecimento com financiamento de longo prazo

A

estratégia da FAPESP de estimular a pesquisa no ambiente empresarial e aproximar universidade e setor produtivo alcançou um novo patamar com o advento de centros de pesquisa em engenharia com financiamento de longo prazo e abordagem de temas na fronteira do conhecimento, patrocinados pela Fundação e empresas privadas. Quatro companhias – a montadora Peugeot Citroën Brasil, a indústria brasileira de cosméticos Natura, a empresa de petróleo e gás BG Brasil e a multinacional farmacêutica GlaxoSmithKline (GSK) – celebraram recentemente acordos de cooperação com a FAPESP seguidos da abertura de chamadas de projetos para a criação desses centros, que vão reunir pesquisadores de instituições e universidades paulistas e das empresas. Por meio desses acordos, FAPESP e empresas parceiras vão compartilhar investimentos de R$ 114 milhões, por período entre cinco e 10 anos. A esse valor serão acrescidos investimentos das

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instituições que sediarão os centros, na forma de despesas operacionais e com salários. “Os centros de pesquisa em engenharia implantados por meio de parceria entre a FAPESP e as empresas inovam no ambiente de colaboração universidade-empresas no Brasil, abrindo a possibilidade para planos de pesquisa articulados e de longo prazo, criando uma interação muito mais efetiva entre pesquisadores acadêmicos e as empresas do que aquela que acontece em projetos de curta duração”, diz Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP. O resultado da chamada da Peugeot Citroën já foi anunciado: pesquisadores das universidades Estadual de Campinas (Unicamp), de São Paulo (USP), do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e do Instituto Mauá de Tecnologia, em conjunto com engenheiros da montadora, vão dedicar-se ao desenvolvimento e aperfeiçoamento de motores movidos a biocombustíveis, num esforço de pesquisa para equiparar sua eficiência à de mo-

ilustraçãO raul aguiar

Fabrício Marques e Bruno de Pierro


tores a gasolina e a diesel. O projeto será apoiado por quatro anos, renováveis por mais seis anos. O investimento será de cerca de R$ 32 milhões por um período de 10 anos, sendo R$ 8 milhões da FAPESP, R$ 8 milhões da Peugeot Citroën e cerca de R$ 16 milhões em despesas operacionais e salários pagos pelas universidades participantes. O centro não terá uma sede fixa e funcionará como uma rede dos grupos envolvidos. “Um dos pilares de nossa estratégia é o desenvolvimento de tecnologias limpas. Escolhemos fazer a parceria com a FAPESP e essas instituições brasileiras para trabalhar com o biocombustível”, diz Jean-Marc Finot, diretor mundial das pesquisas e engenharia avançada do Grupo PSA Peugeot Citroën. “Na Europa esse tipo de parceria é mais comum. Nosso objetivo é buscar novas tecnologias para desenvolver novas funcionalidades e inovações. O conhecimento científico próprio da academia é fundamental para colocarmos em prática nossos objetivos”, afirma.

A rede de pesquisadores que atuará no Centro de Pesquisa em Engenharia Prof. Urbano Ernesto Stumpf se formou quando a chamada de propostas foi apresentada pela FAPESP e a Peugeot Citroën do Brasil, em outubro de 2012. “Vimos que se tratava de um centro com perspectiva ambiciosa e que as quatro universidades e instituições poderiam trabalhar de forma complementar”, diz Waldyr Gallo, professor da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp. “A ideia foi criar um projeto estruturante, que fosse a espinha dorsal para os primeiros anos e permitisse ao centro ganhar autonomia e ampliar sua ação no longo prazo”, diz Gallo. O grupo da Unicamp, liderado por Gallo, vai dedicar-se principalmente a simulações termodinâmicas e análise do desempenho do motor e da resistência de seus componentes, entre outros. O time da Poli-USP, coordenado pelo professor Guenther Krieger, e do Ita, cujo pesquisador principal é o professor Pedro Teixeira Lacava, trabalhará com pESQUISA FAPESP 214  z  33


ênfase em pesquisa básica, estudando detalhes dos fenômenos físico e químico da combustão do etanol. Os dois grupos já trabalham nessa linha de pesquisa, financiados pela FAPESP e a Vale. “Estudamos, em condições controladas, o processo de formação de gotas e de spray de etanol e de sua combustão, o que nos permite calibrar modelos computacionais que simulam o processo de combustão em regime turbulento”, diz Guenther Krieger, da Poli-USP. “Além de sustentar modelos de simulação, a ideia é ajudar a projetar motores e aperfeiçoar os atuais com maior eficiência”, afirma Pedro Lacava, professor do ITA. O conhecimento gerado pelos três grupos será testado em ensaios pelo Instituto Mauá, que mantém um laboratório de motores, sob coordenação de Celso Argachoy. “Temos a facilidade de montar o motor e fazer ele rodar da forma que a gente deseja, aplicando soluções desenvolvidas dentro do grupo”, diz Renato Romio, chefe do laboratório de motores e veículos do Instituto Mauá. A Peugeot Citroën indicou como vice-diretor do centro o engenheiro francês Franck Turkovics. “Temos um objetivo comum com a FAPESP de conseguir um projeto aplicável e que não fique apenas no estágio de pesquisa. Trata-se de fazer o casamento do motor com o biocombustível”, diz Turkovics. A intenção de desenvolver um motor a etanol com melhor desempenho responde, de um lado, a um interesse acadêmico – enquanto avança, no exterior, a eficiência dos motores a gasolina, a tecnologia do motor a álcool está estagnada. “A ideia não é reviver o modelo de motor a álcool, que já esteve presente em 90% da frota brasileira e caiu em descrédito por problemas de preço e de abastecimento”, diz Waldyr Gallo. É possível imaginar, continua o pesquisador, que um novo motor seja utilizado em nichos de mercado, como de veículos leves de transporte, ou para reforçar o apelo ecológico em carros híbridos, além, naturalmente, de trazer benefícios para os motores flex, que se tornaram padrão no Brasil. chances de gerar inovações

O modelo inaugurado pelo centro de pesquisa em engenharia da PSA Peugeot Citroën combina características de duas iniciativas da FAPESP: o programa especial Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid), que apoia por longo prazo equipes multidisciplinares em torno de temas na fronteira do conhecimento, e o Programa FAPESP de Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite), que apoia projetos em instituições de pesquisa desenvolvidos em cooperação com empresas e cofinanciados por elas. O investimento da FAPESP em cada projeto Pite exige uma contrapartida financeira da empresa interessada, o que amplia o volume de recursos e as chances de 34  z  dezembro DE 2013

gerar inovações com impacto no mercado. Desde sua criação, em 1995, o Pite já celebrou mais de 200 parcerias com empresas como Braskem, Vale e Sabesp. “Os frutos que Como acontece com os Cepids, os noesperamos vos centros de pesquisa têm objetivos ousados, difíceis de alcançar em projetos colher com de curta duração. Um exemplo desse tipo de ambição é o futuro Centro de Pesquiesse centro são sa Aplicada em Bem-Estar e Comportamento Humano, alvo de uma chamada amplos”, diz de propostas lançada no final do mês Gerson Pinto, passado pela FAPESP e a Natura. O objetivo do centro é amplo. Busca investigar vice-presidente questões como a possibilidade de identificar marcadores científicos de bemda Natura -estar na população brasileira, procurar bases biológicas de padrões comportamentais positivos, compreender como o cérebro pode auxiliar na promoção de emoções e comportamentos positivos; além de entender como a aplicação tecnológica desses conhecimentos pode gerar ferramentas de avaliação e de promoção de bem-estar em uma população. Para tanto, quer articular conhecimentos e especialistas em neurociência, psicologia positiva, psicologia social, neuroimagem, neuropsicofisiologia, psicometria, estudos populacionais e longitudinais, modelagem e construção de indicadores matemáticos. “A inovação tem permitido à Natura desenvolver produtos e encontrar novas oportunidades de negócio e acreditamos que ela continuará a garantir à empresa um crescimento sustentável. O bem-estar é um dos três vetores de pesquisa da empresa, ao lado da busca de tecnologias sustentáveis e do desenvolvimento de novos cosméticos”, afirma Gerson Pinto, vice-presidente de inovação da Natura. “Os frutos que esperamos colher com esse centro são amplos, ampliando o conhecimento produzido pelas universidades e


Segundo ele, a GSK faz com frequência parcerias de desenvolvimento com outras empresas ou instituições de pesquisa já consolidadas. “Nesta chamada de propostas estamos abertos a investir em ideias criadas no Brasil e que tenham o potencial de gerar benefícios para a sociedade”, diz. Para a implantação do centro de excelência, a FAPESP e a GSK preveem investimentos de R$ 30 milhões por um período de 10 anos. “Observamos que vários temas já discutidos “Estamos instalando no país e estudos apresentados um centro global de tecnologia”, no Brasil são inovadores. Esperamos que os diz Giancarlo Ciola, da BG Brasil resultados das pesquisas produzidas por este centro possam ter impacto positivo e ajudar resultados terão impacto para além do ambiente no processo interno de otimização e melhoria contínua de nossos processos.” da empresa”, diz Gerson Pinto. Um workshop internacional, promovido em O foco do centro de pesquisas da GlaxoSmithKline é a exploração de novos aspectos da quí- outubro de 2012 pela FAPESP e a BG Brasil – bramica sustentável com abordagem multidisciplinar, ço nacional da britânica BG Group –, permitiu a em busca de um uso mais eficiente de sintéticos e identificação dos desafios científicos mais signifido desenvolvimento de solventes e reagentes reno- cativos e oportunidades para inovação em aplicaváveis a partir de resíduos agrícolas. A chamada de ções de gás natural nos próximos 5 a 10 anos. Seus propostas para a criação do Centro de Pesquisa em resultados orientaram a chamada de propostas, Química Sustentável foi lançada em outubro, e seus lançada em agosto, para a criação de um Centro resultados devem sair em agosto de 2014. “Podemos de Pesquisa para Inovação em Gás Natural em entender que todos os processos químicos resultam São Paulo. “Saímos do workshop com linhas de em moléculas estáveis e, muitas vezes, também em pesquisa prioritárias, que foram trabalhadas na resíduos de substâncias que foram geradas a par- BG e associadas com as nossas prioridades de tir daqueles processos”, diz Antonio José, diretor pesquisa”, afirma Giancarlo Ciola, gerente de médico da GSK. “Em uma contabilidade grosseira, inovação da BG Brasil. A empresa tem contrato esta é uma ‘sobra’ que não agrega valor ao processo de concessão de 27 anos para explorar 25% do original. Além disso, estes resíduos podem ser inó- campo Lula e 30% do campo Sapinhoá – ambos cuos ou podem ter algum impacto à saúde ou am- no pré-sal da bacia de Santos – e uma das cláusubiental, demandando tratamento específico prévio las do contrato determina que 1% da renda bruta ao descarte. A química sustentável busca otimizar seja investido em pesquisa e desenvolvimento. “A chamada para esse centro de pesquisa nos processos e reduzir descartes”, afirma. permitirá abordar várias inovações, relacionadas, por exemplo, à redução de emissões e à viabilidade do uso de gás para o transporte marítimo, entre outros”, afirma Ciola. Segundo ele, a oportunidade de estabelecer um programa robusto e de longo prazo, semelhante aos Cepids, motivou a empresa a criar o centro. “A colaboração está no centro da nossa estratégia de pesquisa e desenvolvimento, pois não temos laboratórios internos. Estamos instalando no Brasil um centro global de tecnologia para atender demandas do grupo no mundo todo, pois reconhecemos o potencial que o país tem para desenvolver pesquisa de ponta nos temas da nossa indústria.” Cada um dos parceiros investirá R$ 10 milhões num horizonte de cinco anos. Neste mês está programado um workshop para apresentar a chamada de propostas a grupos de pesquisa interessados. n gerando diferenciais para nossos produtos e processos.” A FAPESP e a Natura reservarão R$ 1 milhão por ano cada uma (totalizando R$ 2 milhões por ano) para apoiar a implementação do centro. O financiamento para a proposta selecionada será concedido por um prazo de até 10 anos. “Temos uma relação de longo prazo com a FAPESP. Como trabalhamos no modelo de inovação aberta, os

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colaboração y

O grafeno e seus desafios Mackenzie traz cientista brasileiro radicado no exterior e investe na formação de novo centro de pesquisa Bruno de Pierro

O

primeiro centro de estudos dedicado ao grafeno no país vai reunir em São Paulo pesquisadores com experiência reconhecida internacionalmente nesse campo. A Universidade Presbiteriana Mackenzie inaugura em julho de 2014 seu Centro de Pesquisas Avançadas em Grafeno, Nanomateriais e Nanotecnologia (MackGraphe), que terá investimentos de R$ 20 milhões apenas na construção do prédio de 4.230 metros quadrados (m²) para abrigar laboratórios no bairro da Consolação, centro de São Paulo. Lá serão conduzidas as pesquisas do projeto temático Grafeno: fotônica e optoeletrônica, uma parceria entre a Universidade Mackenzie e o Centro de Pesquisa de Grafeno da Universidade Nacional de Singapura que recebe investimento de R$ 9,8 milhões da FAPESP. O projeto, que teve início em abril deste ano, faz parte do programa São Paulo Excellence Chairs (Spec) da Fundação, que busca estabelecer colaborações entre instituições do estado de São Paulo e pesquisadores de alto nível que trabalham fora do país. Nesse programa, o pesquisador segue vinculado a sua instituição de origem e se compromete a coordenar o projeto e a permanecer no Brasil durante pelo menos 12 semanas ao longo de cada um dos cinco anos mínimos de

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sua duração. Nesse período, ele colabora com pesquisadores da instituição anfitriã na orientação de um grupo de bolsistas da FAPESP, entre pós-doutores, doutores e alunos de iniciação científica. O programa Spec do grafeno é coordenado pelo físico brasileiro Antonio Hélio de Castro Neto, professor da Universidade de Boston, nos Estados Unidos, e diretor do centro de Singapura desde 2010. Além de discussões quase diárias com os pesquisadores do MackGraphe que se encontram em Singapura, Castro Neto está em contato semanal com pesquisadores daqui, por meio da internet, com o objetivo de acompanhar o cotidiano da evolução do projeto. Entre os objetivos da iniciativa estão a realização da síntese artificial do grafeno, a caracterização do material produzido e a construção de dispositivos optoeletrônicos aplicáveis no setor de comunicações ópticas. “Esperamos que num futuro não muito distante o MackGraphe lidere a pesquisa na área de optoeletrônica do grafeno”, diz Castro Neto, que desde 1991 está nos Estados Unidos, onde fez o doutorado em física na Universidade de Illinois e o pós-doutorado no Instituto de Física Teórica, em Santa Bárbara. Castro Neto foi fundamental para que o MackGraphe saísse do papel. O físico Eunézio Antônio Thoroh de Souza,

professor da Universidade Mackenzie e responsável pelo centro, apresentou-o ao reitor da universidade, o engenheiro Benedito Guimarães Aguiar Neto, durante uma viagem a Singapura. Do encontro, surgiu a ideia de criar no Brasil um centro irmão daquele coordenado pelo professor Castro Neto. As pesquisas são feitas provisoriamente em laboratórios de física e engenharia da Universidade Mackenzie, com amostras de grafeno cedidas pela equipe de Castro Neto. Quando o prédio do MackGraphe estiver pronto, os pesquisadores poderão produzir o grafeno – um material flexível, impermeável, extremamente resistente e capaz de conduzir 100 vezes mais eletricidade do que o cobre. Ele foi isolado pela primeira vez em 2004, o que deu aos pesquisadores russos Andre Geim e Konstantin Novoselov, da Universidade de Manchester, o Prêmio Nobel de Física em 2010. O material é apontado como estratégico para o desenvolvimento de uma nova era da eletrônica, que poderá levar ao surgimento de computadores quânticos, menores e mais rápidos. Ele também tem potencial para ser aplicado na construção de dispositivos de cristal líquido, com eletrodos feitos de grafeno, que poderão ser usados na fabricação de TVs e monitores para computadores. “Nosso foco


fotos 1 Arquivo mackgraphe 2 eduardo cesar  3 arquivo pessoal

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1 Projeto do prédio que abrigará o MackGraphe 2 Pesquisadores do Mackenzie já utilizam o espectrômetro Raman, comprado pela FAPESP

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tem sido estabelecer colaborações nacionais e internacionais”, conta Thoroh. Isso inclui o intercâmbio de cientistas e estudantes. “Temos dois pesquisadores em Singapura, e dois deles aqui nos visitando”, diz Thoroh, citando também dois pós-docs mexicanos, dois indianos e um aluno de doutorado da Colômbia que passam temporadas no Brasil. momento certo

O reitor Aguiar Neto ressalta a importância estratégica do grafeno. “O país perdeu a corrida do silício, a principal matéria-prima para a fabricação de chips e outros componentes da indústria eletrônica”, diz. “Queremos aproveitar o momento do grafeno.” Ele conta que uma das parcerias mais promissoras é a que será firmada com a Texas Tech University, nos Estados Unidos, onde é desenvolvida uma nova técnica de esfoliação – procedimento pelo qual se obtém grafeno a partir do grafite.

3 Castro Neto, coordenador do projeto temático: novos vínculos com São Paulo

Os físicos Andre Geim e Konstantin Novoselov obtiveram o grafeno por meio de esfoliação, ao utilizarem uma fita adesiva e uma placa de grafite, o mesmo material usado em lápis. Desse processo, os russos conseguiram produzir uma folha cristalina de átomos de carbono organizados em rede, em forma hexagonal, com apenas um átomo de espessura. Embora o processo seja bem conhecido, sua aplicação não permite a produção do grafeno em grandes quantidades. O método que vem sendo testado para produzir o grafeno em escala industrial é o CVD (chemical vapor deposition), que no Brasil é desenvolvido pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Com essa técnica, conseguimos produzir um vapor de átomos de carbono que, quando depositados sobre um substrato de cobre, formam uma película de grafeno em cima do cobre”, explica o físico Marcos Pimenta, professor da UFMG e

coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) em Nanomateriais de Carbono. O MackGraphe tem interesse em desenvolver esse processo e por isso Pimenta foi convidado a fazer parte do projeto. “O professor Marcos Pimenta iniciou a pesquisa em nanocarbonos no país há 15 anos. Não se pode falar de nanotubos, que na verdade é o grafeno enrolado na forma de cilindro, sem citar a UFMG”, diz Thoroh. A FAPESP concedeu uma bolsa para Pimenta trabalhar ao longo do segundo semestre de 2013 como professor visitante na Universidade Mackenzie, para ministrar cursos de capacitação e também ajudar na organização do novo centro de pesquisa. A fundação também financiou a compra do espectrômetro Raman, um equipamento alemão de R$ 700 mil, indispensável para pesquisar as propriedades eletrônicas do grafeno. “O MackGraphe é só o começo. Se o país quer mesmo ser líder mundial, precisa investir pesado, como fizeram os europeus, e estabelecer uma política de longo prazo para essa tecnologia”, reforça Castro Neto. Para Pimenta, o fato de o país contar com pessoal qualificado, que já vinha trabalhando com nanotubos, habilita o Brasil a participar da corrida tecnológica na área. “Estamos conseguindo acompanhar as evoluções em relação ao grafeno desde a sua descoberta. Temos já uma inserção internacional nesse campo de pesquisa”, salienta o pesquisador. n

Projeto Grafeno: fotônica e optoeletrônica: colaboração UPM-NUS (2012/50259-8); Modalidade Programa São Paulo Excellence Chairs (Spec); Coords. Antônio Hélio de Castro Neto - Universidade de Boston e Centro de Pesquisa de Grafeno da Universidade Nacional de Singapura; Investimento R$ 9.763.230,09 (FAPESP).

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cooperação y

Uma coleção viva Diretor do Museu de História Natural de Londres vem ao Brasil em busca de parcerias

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diretor do Museu de História Natural de Londres, Michael Dixon, chegou ao Brasil no início do mês passado para cumprir um roteiro de 10 dias que incluía São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Brasília. O plano: conversar com pesquisadores, representantes de museus e de agências de fomento. A primeira parada foi na FAPESP, que já tem uma tradição em colaborações com o Reino Unido por meio de vários acordos assinados com universidades e com os conselhos de pesquisa do país. “A FAPESP tem um modelo específico para trabalhar de forma colaborativa com outras organizações internacionais, podemos olhar para isso e pensar em como desenvolvê-lo por parte do museu”, afirma Dixon. Para ele, o principal é que há semelhanças importantes entre os objetivos de sua instituição e os da FAPESP, tendo como cerne a relevância social. Os resultados desse primeiro dia de conversas ainda não são palpáveis, mas o interesse é recíproco. “Em 15 dias tivemos a

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fotos 1 The Trustees of the Natural History Museum, London 2 eduardo cesar

Maria Guimarães


A galeria central, com o esqueleto de dinossauro iluminado para atividade noturna, e Dixon durante visita à FAPESP

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projetos atualmente envolvem cientistas do NHM e do Brasil

visita do Kew Garden e dos museus de História Natural do Reino Unido e da França”, conta a bióloga Marie-Anne Van Sluys, da Universidade de São Paulo, que se reuniu com Dixon em nome da FAPESP. “Em todos os casos temos laços estreitos e a FAPESP reconhece o valor das coleções como fonte de conhecimento da diversidade biológica, de investigação de processos evolutivos e o valor da disseminação do conhecimento 2 através dos museus.” A motivação de Dixon não deixa a desejar. “Estamos interessados em assuntos que vão desde a formação de nosso sistema solar, o que criou o nosso planeta, como a vida evoluiu no nosso planeta e como ela continua a evoluir ao longo do tempo, então estamos envolvidos em pesquisa sobre esses processos”, detalha. Com foco em biodiversidade e como ela vem sendo alterada, e na busca por maneiras de viver de modo mais sustentável, o escopo de atividades do museu certamente tem amplo apelo público. Da mesma forma, o objetivo do diretor do museu londrino em sua visita brasileira também não era nada modesto: descobrir como as coisas funcionam neste país e como podem surgir colaborações criativas e efetivas em aspectos que envolvem desde pesquisa até exposições públicas. “E tudo o que houver no caminho”, completa. “As pessoas nos conhecem como o maravilhoso edifício vitoriano com os dinossauros, mas isso é apenas uma fração do que fazemos”, explica. Os visitantes não veem que menos de metade da área do edifício está aberta ao público. Mas pesquisa e exposição não são atividades isoladas, o diretor completa. “Tudo o que apresentamos ao público só pode ser feito com a autoridade da ciência que fazemos.” Partindo do princípio de que no mundo moderno a pesquisa é muito mais produtiva se for colaborativa, Dixon busca pontos de contato com o Brasil a partir de conexões que já existem. Segundo ele,

atualmente há cerca de 70 projetos envolvendo cientistas do Museu de História Natural de Londres (NHM) e do Brasil. Além disso, a invejável coleção de pesquisa alojada no edifício inaugurado em 1881 reúne 80 milhões de itens entre rochas, fósseis, espécimes animais e vegetais, que estão disponíveis para pesquisadores do mundo todo por meio de consultas no local ou de empréstimos. No ano passado, 80 mil pesquisadores de outros países visitaram o NHM para examinar alguma parte da coleção. Nos últimos dois anos, só o departamento de entomologia recebeu 32 visitas de 28 pesquisadores brasileiros, num total de 223 dias de trabalho. O mesmo departamento tem atualmente 66 empréstimos enviados ao Brasil, num total de 8.223 espécimes cedidos a 37 indivíduos em 17 instituições. Por isso, mais do que uma coleção, ele prefere chamar o acervo do museu de infraestrutura de pesquisa. Infraestrutura

A denominação se justifica pela riqueza do acervo acoplada a equipamentos que permitem fazer as mais diversas análises. Um exemplo marcante é o fóssil a partir do qual foi descrito o Archaeopteryx, tido como o elo perdido entre répteis e aves. Mas a glória de abrigar esse importante exemplar certamente não basta para um museu que preza a excelência de sua coleção e pesquisa. Recentemente uma tomografia da caixa craniana do fóssil, em comparação com o cérebro de espécies vivas de aves e répteis, permitiu inferir que o animal extinto não tinha apenas a morfologia adequada para voar: o cérebro do Archaeopteryx tinha bem desenvolvidas as estruturas sensoriais e motoras necessárias ao voo. “Isso não poderia ter sido feito há 10 anos”, ressalta. Além de material com relevância histórica, que inclui espécimes coletados há quatro séculos e parte do material recolhido durante as viagens de Charles Darwin e Alfred Russel Wallace, entre outros exploradores do Império Britânico, a coleção é constantemente enriquecida pelo trabalho dos 350 pesquisadores que integram o corpo do museu. Hoje a maior parte dos países controla a exportação de representantes da biodiversidade, mas o pESQUISA FAPESP 214  z  39


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The Trustees of the Natural History Museum, London

NHM faz acordos para compartilhar o material coletado e, sempre que possível, manter coleções intactas para permitir estudos comparativos. Com um planejamento mais cuidadoso, esses laços que já existem entre estudiosos dos dois países podem dar origem a colaborações mais frutíferas. Foi esse o foco das conversas que aconteceram na FAPESP, e Os laços entre que viriam a aconestudiosos tecer nos outros locais visitados. Esse dos dois países planejamento pode identificar questões podem dar que já estejam sendo tratadas em São origem a Paulo e em Loncolaborações dres, e para as quais a coleção do NHM mais frutíferas possa contribuir. “Os pesquisadores sempre gravitam na direção de pessoas interessadas nas mesmas perguntas, mas procuramos saber se há valor em institucionalizar essa relação”, afirma Dixon. Ele explica que, em vez de deixar essas conexões se formarem de maneira fortuita, para a instituição pode valer a pena direcionar a pesquisa colaborativa. “A ciência tende a ir onde o dinheiro está.” Essa condução pode ser feita por meio de chamadas para projetos e de workshops que reúnam especialistas tanto no Brasil como no Reino Unido. Em sua avaliação, o resultado mais provável de sua visita ao Brasil será identificar uma lista de propostas que podeDarwin Centre, anexo inaugurado em 2009 riam ser realizadas e duas ou três que realmente funcionem tanto para o lado britânico do acordo como para o brasi- a ideia é trazer para o Brasil exposições leiro. Uma vez identificadas as oportu- montadas no museu londrino. “Para fanidades, ele mesmo ou outros podem zer exposições itinerantes, o ideal povoltar para desenvolvê-las. Se levadas de ser ter um único parceiro aqui, ou a adiante, essas ideias podem servir como melhor solução pode ser outra”, conta. O diretor do NHM justifica o interesbrotos para novas iniciativas no futuro. se em articular colaborações por aqui: o Brasil é um país interessante por ter uma Ciência pública No que diz respeito a exposições volta- economia que cresce depressa, ligações das para o público, Dixon conta que o científicas fortes, e uma população enorNHM abrigou o lançamento mundial da me. Além disso há paralelos culturais, exposição Gênesis, de Sebastião Salgado. como os Jogos Olímpicos, que tiveram Depois disso a mostra, com fotos de lu- sua edição mais recente em Londres e gares explorados no mundo todo, esteve serão em seguida sediados no Rio de Jaem cartaz no Rio de Janeiro e em São neiro. “Há uma janela de oportunidade Paulo este ano. Seguindo essa inspiração, privilegiada para conversas agora.”

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Os museus brasileiros certamente têm a aprender com um estreitamento das relações com o de Londres, que agora recebe por volta de 5,4 milhões de visitantes por ano – um volume para o qual o edifício não está preparado. E Dixon ainda busca possibilidades além das fronteiras, como se não bastassem os desafios de atrair público, gerir os 80 milhões de espécimes dos quais cerca de 20 mil estão expostos a cada momento e encontrar alternativas para abrigar a coleção de pesquisa de forma a ampliar o espaço de visitação, que pode envolver a digitalização da coleção. “Nunca é um trabalho tedioso”, conclui. n


evento y

O futuro da ciência Fórum mundial reúne no Rio pesquisadores de mais de 100 países para discutir temas como educação científica, desenvolvimento sustentável e ética

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esafios que governos e comunidade científica vão enfrentar nos próximos anos, como o fortalecimento da educação científica, a adoção de políticas para garantir a ética na pesquisa e a transformação do conhecimento em desenvolvimento social, foram discutidos por representantes de 120 países durante o 6º Fórum Mundial de Ciência, realizado entre os dias 24 e 27 de novembro no Rio de Janeiro. Cerca de 700 pesquisadores, autoridades e empreendedores de todos os continentes participaram do evento, que teve como tema central Ciência para o Desenvolvimento Sustentável Global. Organizado na Hungria a cada dois anos, o fórum pela primeira vez foi sediado em outro país. “O grande desafio é indicar o papel da ciência para moldar um mundo melhor, reduzindo as desigualdades regionais”, disse o matemático Jacob Palis, presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), que coordenou o evento em parceria com a Academia Húngara de Ciências. Um debate sobre o papel da ciência na superação das desigualdades abriu as sessões plenárias. A economista Linxiu Zhang, vice-diretora do Centro Chinês para Políticas de Agricultura, mostrou como o crescimento econômico da China tem sido insuficiente para reduzir desigualdades, revelando resultados frágeis nas áreas rurais do país. “No campo, nossos estudos mostram que 40% dos alunos não concluem o ensino médio”, exemplificou. “Falta alcançarmos a equidade no que diz respeito ao capital humano, ou seja, em

relação à educação e à saúde”, disse. O inglês John Burn, professor de genética clínica na Newcastle University, no Reino Unido, falou sobre a experiência do consórcio do Projeto Varioma Humano, iniciativa global criada em 2006 em parceria com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), que propõe a redução de doenças de origem genética por meio do compartilhamento de dados sobre alterações genômicas. “Conhecemos inteiramente o DNA do homem, mas isso não é a solução. É preciso saber como interpretá-lo. Se todos compartilharem essa informação, podemos reduzir em muito o risco de doenças”, afirmou. A questão da integridade científica foi tema de uma das sessões. Ernest-Ludwig Winnacker, diretor-geral do International Human Frontier Science Program (HFSP), organização sem fins lucrativos com sede em Estrasburgo (França), apresentou um panorama dos problemas relacionados à ética na pesquisa, citando dados de uma recente reportagem da revista The Economist. “O conjunto de problemas envolve a impossibilidade de reproduzir resultados de dados e de estudos clínicos, erros estatísticos, vulnerabilidade no processo de avaliação por pares, além de casos de incompetência, fraudes e plágios”, afirmou. Paulo Beirão, professor da Universidade Federal de Minas Gerais que ajudou a criar o Comitê de Integridade Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), falou sobre o papel das agências de apoio à pesquisa e citou a declaração pESQUISA FAPESP 214  z  41


de princípios sobre integridade científica divulgada pelo Global Research Council, que propôs recomendações a órgãos de fomento, como encorajar instituições e universidades a implementarem políticas de boas práticas científicas, treinar continuamente pesquisadores e estudantes, apoiar investigações de casos suspeitos, além de incorporar a integridade científica como condição para financiar pesquisadores e instituições. A FAPESP já vem pondo em prática essas medidas desde a publicação de seu Código de boas práticas científicas, em 2011. Uma das conclusões da sessão foi que ainda faltam estudos aprofundados sobre o tema, indispensáveis para nortear políticas de forma eficiente. “Alguns estudos indicam que uma grande quantidade de casos de má conduta não chega a ser reportada ou investigada. A verdade é que ainda não temos respostas para muitas indagações porque conhecemos apenas uma parte do problema”, disse Nicholas Steneck, diretor do programa de integridade e ética na pesquisa do Michigan Institute for Clinical and Health Research, dos Estados Unidos. Steneck levantou uma polêmica no fórum ao propor uma redução no número de doutores formados em certas áreas, como medida para conter a competição exagerada entre pesquisadores, que é apontada como uma das causas da má conduta. Helena Nader, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, lembrou que a realidade brasileira é diversa e que o número de doutores, embora em crescimento, ainda é insuficiente para atender às necessida-

42  z  dezembro DE 2013

Alguns estudos indicam que muitos casos de má conduta científica não são reportados ou investigados, disse Nicholas Steneck

des do país e da ciência nacional. Numa mesa-redonda sobre jovens cientistas, o brasileiro Eduardo Viotti, assessor do Senado Federal, retomou o tema, mostrando, com dados, que a recomendação não pode ser aplicada a países como Brasil, China e Índia, pois eles precisam de mais pesquisadores. Um debate sobre ciência e inovação trouxe um mosaico de perspectivas em relação ao desafio de transformar conhecimento gerado nas universidades em aplicações. Umar Buba Bindir, chefe do Escritório de Promoção e Aquisição de Tecnologia da

Nigéria, falou sobre as dificuldades de seu país, que tem mais de 120 universidades e é um dos que mais investem em ciência no continente africano. “A realidade é que, apesar dos investimentos e das necessidades da nossa população, inovamos ainda muito pouco”, afirmou. Logo em seguida, a pesquisadora Reiko Kuroda, do Conselho de Ciência do Japão, exibiu as estratégias de seu país para manter-se como potência tecnológica, e Carlos Tadeu Fraga, gerente executivo da Petrobras, narrou o esforço de pesquisa e desenvolvimento do Brasil para explorar o petróleo da camada do pré-sal. DIVERSIDADE

O vice-presidente da FAPESP, Eduardo Moacyr Krieger, ficou impressionado com a diversidade de experiências da sessão. “A diversidade é natural. Cada país tem um problema. O que fica claro é que o Brasil já passou daquela fase de aprender a fazer ciência e treinar recursos humanos. A questão agora é apurar a qualidade da nossa ciência”, afirmou. “O grande desafio é transformar o conhecimento científico em desenvolvimento econômico e social, e a FAPESP tem tido um papel importante nessa tarefa, com programas que estimulam parcerias entre empresas e instituições de pesquisa paulistas, além da inovação em pequenas empresas”, disse. A sessão de encerramento do fórum aprovou uma declaração final com cinco recomendações para governos, formuladores de políticas públicas e cientistas. O documento sugere, em primeiro lugar, o avanço da cooperação internacional e a coordenação de ações nacionais, so-


foto  m.ferber  ilustração sandra frias

bretudo em temas como infraestrutura de pesquisa e acesso ao conhecimento, a fim de que a ciência contribua para o desenvolvimento sustentável. A segunda recomendação é dar prioridade a ações no campo da educação básica e científica para reduzir desigualdades sociais e promover a ciência e a inovação. A terceira sugere ações para preservar a integridade científica, com a adoção de um código de conduta compartilhado por instituições e pesquisadores de todo o mundo. Segundo a declaração, os cientistas devem guiar-se com “honestidade intelectual, objetividade e imparcialidade, veracidade, justiça e responsabilidade”. A quarta recomendação pede mais diálogo entre governos, sociedade, indústria e meios de comunicação em torno de temas ligados à sustentabilidade. Por fim, o documento propõe a criação de mecanismos sustentáveis para o financiamento da ciência, exibindo a preocupação com os cortes no orçamento de ciência ocorridos em vários países desde o início da crise financeira internacional. De acordo com Jacob Palis, a contribuição dos sete encontros preparatórios realizados em vários estados desde o ano passado – o primeiro deles organizado pela FAPESP, em agosto de 2012, na capital paulista – foi aproveitada no documento final. A educação para reduzir as desigualdades, por exemplo, foi uma proposta brasileira, incorporada logo no início da discussão do documento, disse Palis. Ele elogiou a qualidade de debates realizados no fórum em temas como bioenergia, que reuniu especialistas dos Estados Unidos, China, Holanda e África do Sul – a capacidade de produção de biocombustíveis na América Latina e na África foi abordada por Luis Augusto Cortez, professor da Universidade Estadual de Campinas e coordenador adjunto de Programas Especiais da FAPESP. “O etanol brasileiro é um bom exemplo para a produção de biocombustíveis, mas talvez um modelo diferente deva ser criado, particularmen­te na África”, afirmou. Na sessão de encerramento, József Pálinkás, presidente da Academia Húngara de Ciências, convidou os participantes para o próximo Fórum Mundial de Ciência, em Budapeste, em novembro de 2015. Em 2017, o evento voltará a ser realizado num país parceiro, dessa vez a Jordânia. n Fabrício Marques

Experiências inspiradoras Sessão plenária aborda experiências em educação científica Projetos bem-sucedidos no campo

A questão agora é disseminar a

da educação científica foram

experiência em larga escala”, afirmou.

apresentados em uma sessão plenária

No nível do ensino médio,

no Fórum Mundial de Ciência.

a bioquímica Eva-Maria Neher

Pierre Léna, membro da Academia

apresentou o projeto do X Lab, um

de Ciências da França, narrou a

conjunto de laboratórios experimentais

experiência da Fundação La main à la

muito bem equipados destinados

pâte, que desde 1996 busca tornar

a fazer a ponte entre o aprendizado

os procedimentos de investigação

do ensino médio e o da universidade.

científica mais familiares a alunos

Instalado num edifício colorido no

do ensino fundamental. O programa

campus da Universidade de Göttingen,

associa a prática de questionamento

na Alemanha, em que cada andar

com a realização de experimentos

é dedicado a um campo do

pelos alunos. As crianças são

conhecimento, o X Lab oferece

convidadas a observar um fenômeno

80 cursos de até três semanas cada

e fazer experiências relacionadas a ele.

em áreas como neurobiologia, biologia,

Enquanto investigam, discutem as

ecologia, química e física, sob

ideias e os resultados para construir

a coordenação de pesquisadores. Os

seu conhecimento. As atividades

cursos, em inglês, são frequentados por

são organizadas de modo a criar uma

alunos de vários países, como China,

progressão de aprendizagens. Pelo menos duas horas por semana

Holanda e Ucrânia. “Os jovens fazem os experimentos e não há professores

são destinadas à exploração de um

em volta, mas cientistas”, afirmou

mesmo tema ao longo de várias

Eva-Maria. Também são organizados,

semanas. “Qualquer processo da

em junho e julho, acampamentos de

natureza, inclusive os mais simples,

verão para alunos do ensino médio e

pode ajudar a ensinar ciência”, disse

de graduação, em que são ministrados

Lená. Os desafios, segundo ele,

cursos experimentais de química, física

consistem em começar cedo, entre os

e biologia. Em janeiro, a programação

6 e os 12 anos, utilizar exemplos reais e

troca o inglês pelo alemão. Estudantes

interessantes, treinar os professores e

e professores das cidades próximas

abrir as escolas para que as famílias e a

participam do Festival da Ciência, com

comunidade conheçam e participem do

palestras e atividades com cientistas

programa. A La main à la pâte gerou

renomados, entre os quais alguns

projetos-piloto em vários países, como

vencedores do Prêmio Nobel.

Chile, Estados Unidos, Alemanha, Austrália e México – no Brasil, inspirou o projeto Mão na Massa, desenvolvido em várias cidades sob coordenação da Academia Brasileira de Ciências. Para Lená, a hora das experiências-piloto já passou. “Já sabemos que funciona.

Sede do X Lab, na Alemanha: cursos e acampamento

pESQUISA FAPESP 214  z  43


ciência  geologia y

Vigia espacial Imagens infravermelhas de satélite podem ser úteis para prever erupções vulcânicas  |  Igor Zolnerkevic

D

as centenas de vulcões ativos na Terra (o número exato é alvo de debates entre os especialistas), poucos são monitorados por instrumentos fixos e pesquisadores no campo, que se arriscam a morrer asfixiados, soterrados ou incinerados. Apesar de vários satélites vasculharem constantemente a superfície terrestre, não há um sistema global capaz de alertar populações vizinhas a vulcões de que uma erupção está prestes a ocorrer. Esse objetivo ainda está longe de ser alcançado, mas alternativas têm sido propostas para o estudo de atividades vulcânicas em escala planetária. Nesse contexto, pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade de Cambridge, Inglaterra, desenvolveram um método para analisar imagens de vulcões obtidas por diferentes sensores de radiação infravermelha a bordo de satélites e, assim, talvez antecipar em meses a ocorrência de erupções. A equipe de cientistas aplicou, em distintos estudos, a metodologia para estudar a atividade de cinco vulcões ativos ao longo da última década em diferentes partes do planeta. Os resultados indicam que é possível implementar um sistema automático para detectar, do espaço, mudanças sutis na atividade termal dos vulcões, que funcionam com um indicador de que 44  z  dezembro DE 2013

esses sistemas estão prestes a entrar em erupção. “A investigação dessas anomalias, a partir de algoritmos desenvolvidos em nossa pesquisa, permite a identificação de sinais que precedem fluxos de lava em determinados vulcões”, diz o inglês Samuel Murphy, que defendeu tese de doutorado sobre o tema no início deste ano na Unicamp, sob orientação de Carlos Roberto de Souza Filho, geólogo especialista em sensoriamento remoto da universidade paulista, e do vulcanólogo Clive Oppenheimer, da Universidade de Cambridge. Quanto mais quente for um objeto, mais radiação infravermelha ele emite. “É possível observar do espaço a variação da energia térmica emitida por um vulcão ao longo do tempo”, explica Souza Filho. Depois de concluir em 2007 seu mestrado em geologia na Universidade de Bristol, no Reino Unido, Murphy decidiu conhecer uma parte da família de sua mãe brasileira, em Campinas, e acabou ingressando na Unicamp. Lá ele se tornou aluno de doutorado de Souza Filho, que foi colega de Oppenheimer durante seu doutorado na Inglaterra. Em um artigo recente, publicado em abril deste ano na Remote Sensing of Environment, a revista de maior fator de impacto da área, os geólogos e vulcanólogos ingleses e brasileiros mostraram o potencial da metodologia. Compararam a atividade do Láscar, no norte do Chile, entre 2000 e 2012, com a de mais três


Kliuchevskoi Rússia Kilauea Havaí

Erta ‘Ale Etiópia Láscar Chile

United States Geological Survey (USGS)

Erebus Antártida

vulcões: o etíope Erta ‘Ale, com seu lago de lava mais ou menos constante; o havaiano Kilauea, que vem expelindo lava quase sem parar desde 1983; e o explosivo Kliuchevskoi, o maior vulcão da península de Kamtachka, na Rússia. As imagens térmicas usadas no trabalho foram geradas por dois sensores infravermelhos, o Aster e o Modis, ambos instalados no satélite Terra, lançado pela Nasa em 1999. Sua órbita de cerca de 700 quilômetros (km) de altura passa sobre os polos Norte e Sul e faz o satélite cruzar o equador sempre na mesma hora do dia e noite. O Aster capta radiação infravermelha de vários comprimentos de onda e gera imagens com uma resolução espacial considerada relativamente alta, de 30 a 90 metros. Embora sua resolução espacial de 1 quilômetro seja bem menor do que a do Aster, o Modis registra duas imagens de um mesmo local da Terra a cada 24 horas, enquanto o Aster, na média, faz isso apenas uma vez a cada 16 dias. A ideia dos pesquisadores foi analisar conjuntamente as imagens de ambos os satélites. As informações do Aster foram empregadas para demarcar regiões dos vulcões com temperatura anormal e as do Modis para ajudar a acompanhar a evolução dessas áreas ao longo do tempo. Assim foi possível acompanhar a evolução do lago de lava dentro da cratera do Kliuchevskoi em duas ocasiões. Em 2007,

No mapa ao lado, os cinco vulcões que foram alvo dos estudos. O Kilauea, no Havaí, (foto) está em erupção quase contínua há anos

as imagens já apontavam atividade anormal no vulcão em fevereiro, mas só em junho as erupções começaram. Os efeitos dessa erupção causaram a interrupção do tráfego aéreo em partes da Ásia e dos Estados Unidos. Sinais de uma erupção menor em 2008 também foram identificados meses antes. Os pesquisadores sugerem que os derrames de lava das erupções do Kliuchevskoi poderiam ser previstos com duas semanas de antecedência. Isso seria possível se houvesse um sistema de monitoramento automático capaz de emitir um alerta quando uma área do interior da cratera, equivalente a mais de 5 pixels do total de 500 milhões contidos nas imagens de satélite, estivesse 40ºC mais quente que o seu entorno. Os dados do Modis serviram também para identificar sutis oscilações semanais, mensais e anuais no tamanho e intensidade das regiões de temperatura anormal dos vulcões. “Oscilações mais rápidas estão associadas à atividade superficial, como derrames de lava”, explica Murphy. “Já oscilações mais lentas se relacionam com atividade mais profunda, como o aumento de magma na câmara magmática.” Também participou desse trabalho o vulcanólogo Robert Wright, da Universidade do Havaí em Manoa, Estados Unidos, que propôs um sistema pioneiro de monitoramento global de vulcões em 2000, a partir das imagens do sensor Modis. pESQUISA FAPESP 214  z  45


Câmeras de infravermelho registram do espaço sinais que precedem erupções vulcânicas

Vulcão Kliuchevskoi em imagem do satélite Landsat 8, de outubro de 2013

cratera do vulcão

1

28 jan 2007

05 fev 2007

15 fev 2007

18 mar 2007

11 abr 2007

2

MARÉ DE LAVA

Graus Celsius acima da temperatura média local

Imagens do sensor Aster mostram as temperaturas subindo dentro da cratera do vulcão siberiano Kliuchevskoi, de fevereiro a abril de 2007, devido ao

n  > 90 n  60 a 90 n  30 a 60

aumento de lava em seu interior. O vulcão explodiu dois meses depois da última medição

Radiografia de uma erupção O que ocorre quando um vulcão entra em atividade

Fluxo piroclástico Explosões lançam

Vento

Cinzas e gases tóxicos

chuvas de pedra e cinza em torno do vulcão cratera do vulcão

Domos Magma solidificado pode acumular até explodir Derrame de lava Magma transbordado para superfície Câmara magmática Magma acumulado pode subir provocando a erupção

46  z  dezembro DE 2013

Fonte USGS

m um trabalho anterior, publicado em 2011 no Journal of Volcanology and Geothermal Research, Souza Filho, Oppenheimer e Murphy analisaram imagens obtidas pelo Aster entre 2000 e 2009 de dois vulcões bem diferentes. Enquanto o monte Erebus está localizado na ilha de Ross, na Antártida, em uma região polar gelada e possui um lago de lava permanente, com atividade constante, o chileno Láscar está em um deserto escaldante e suas erupções explosivas são intermitentes. O desafio foi identificar e delimitar, nas imagens do infravermelho, porções dos vulcões somente algumas dezenas de graus mais quentes ou mais frias que seus arredores, e interpretá-las com a ajuda dos relatórios de expedições de campo aos vulcões. Os pesquisadores conseguiram identificar um sutil aumento de temperatura dentro da cratera do Erebus, associado a uma pluma aquosa, fora do comum, muito rica em compostos voláteis, emitida pelo vulcão em janeiro de 2001. Tão interessante quanto essa medição foi a detecção do aquecimento em torno do Láscar nove meses antes de um período de erupções em outubro de 2002, provavelmente devido a um aumento na emissão de gases. Três meses antes do início de outra temporada de erupções em abril de 2006, os pesquisadores observaram um declínio gradual, seguido de um aumento de temperatura, associado à emissão de gases ou à formação de um domo de lava. Vulcões são pontos da Terra em que o magma — a rocha derretida que existe em alguns locais logo abaixo da crosta terrestre, com temperaturas variando entre 600ºC e 1.300ºC — consegue subir e se acumular perto da superfície em câmaras subterrâneas. Durante uma erupção, o magma pode simplesmente transbordar da cratera do vulcão ou escapar por fissuras e escorrer em derrames de lava. Pode ainda se solidificar antes de chegar à superfície, se acumulando em domos (ver figura ao lado). “Domos são perigosos porque neles o magma tem compostos voláteis, principalmente água, dissolvidos e incorporados dentro de si; as altas temperaturas e concentrações desses voláteis internamente podem causar erupções extremamente violentas”, Murphy explica. Tudo depende da composição química do magma. Quanto menos sílica no magma, mais fluida é sua lava e suas erupções tendem a ser mais suaves e contínuas, como é o caso dos vulcões do Havaí. Quanto mais rico em sílica, mais viscoso é o magma que, frequentemente, se acumula em domos até explodir. As explosões podem criar uma pluma de cinzas, vapor, gás carbônico e dióxido de enxofre, que chega a dezenas de quilômetros de altura; ou correntezas de rochas e cinzas em volta do vulcão, que se movem a até 300 metros por segundo — o chamado fluxo piroclástico.

infográfico ana paula campos  ilustraçãO daniel das neves

E

Previsões explosivas


imagens 1 Robert Simmon / Nasa Earth Observatory / Landsat / USGS Earth Explorer 2 Imagens do sensor Aster tratadas por Murphy, Wright, Oppenheimer, Souza Filho 3 Nick Powell / National Science Foundation

3

Em todo o planeta ocorrem anualmente de 50 a 70 erupções, que podem durar de horas a meses. Correntes atmosféricas espalham as cinzas das grandes erupções por milhares de quilômetros. Essas cinzas podem se acumular, derreter e se fundir dentro das turbinas dos aviões. Até hoje nenhuma aeronave efetivamente caiu por essa razão (embora voos tenham sido afetados temporariamente), mas os prejuízos com reparos de turbinas e interdição do tráfego aéreo em vários países por alguns dias podem atingir cifras de bilhões de dólares.

O

Rio Grande do Sul costuma sofrer periodicamente com as plumas de erupções dos vulcões andinos. Na manhã de 21 de abril de 1993, os gaúchos que saíram cedo de casa para a votação do plebiscito nacional sobre o sistema de governo do país se surpreenderam com uma leve garoa de cinzas. Em Porto Alegre, ruas, capôs de automóveis e telhados foram cobertos por uma camada fina de pó escuro lançado no ar por uma erupção do vulcão Láscar, no norte do Chile, a 1.800 km de distância. Mais recentemente, o espaço aéreo do estado foi interditado em função da erupção de outro vulcão chileno, o Puyehue, em 2011. Embora quase imprevisíveis, os vulcões costumam mostrar sinais de que vão entrar em erupção, às vezes com horas, às vezes com meses de antecedência. O indício mais estudado é o aumento de tremores de terra, detectados por estações sismológicas. Outras pistas comuns são mudanças no relevo de alguns centímetros, que podem ser detectadas, por exemplo, por sistemas de radar interferométrico; e o aumento da emissão de gases e mudanças em sua composição. O grupo da Unicamp-Cambridge vem apostando numa outra linha, ou seja, acompanhar por satélite a variação da atividade termal em todo o vulcão e seus arredores. Segundo Souza Filho, a maioria dos trabalhos anteriores se concentrava em quantificar, em uma imagem de satélite, a região de temperatura

Monte Erebus, na Antártida: maior vulcão ativo do continente

máxima de um vulcão ou a temperatura média de um vulcão como um todo. Entretanto, o que permite muitas vezes distinguir um vulcão dormente de um prestes a explodir são variações de temperatura em suas porções específicas. “Ainda há desafios para tornar essas observações por satélite uma operação de rotina”, Oppenheimer comenta por e-mail, direto da ilha de Ross, na Antártida, onde está observando o maior vulcão ativo do continente, o monte Erebus. “Mas a pesquisa de Murphy não apenas identificou tendências fascinantes nas emissões de calor dos vulcões, como também analisou os detalhes de técnicas para automatizar o processamento de volumes enormes de dados e extrair rapidamente os sinais térmicos que nos interessam.” As oscilações de temperatura podem ajudar a prever a duração e intensidade de futuras erupções. “Cada vulcão tem uma atividade muito individual”, explica a vulcanóloga brasileira Rosaly Lopes, do Laboratório de Propulsão a Jato, da Nasa. “É importante entender essa individualidade porque provavelmente seu comportamento será similar no futuro.” Murphy continua suas pesquisas em sensoriamento remoto de vulcões ativos na Unicamp, com uma bolsa de pós-doutorado da FAPESP. Ele e Souza Filho estão analisando imagens do mais novo satélite de observação da Terra da Nasa, o Landsat 8. Em 2014, a Agência Espacial Europeia deve lançar dois novos satélites: Sentinels 2 e 3. Juntos, os dados desses satélites permitirão o monitoramento de vulcões com imagens de resolução espacial de até 10 metros, obtidas a cada cinco dias. No entanto, Murphy já concluiu em sua tese que mesmo os novos instrumentos não serão capazes de fornecer temperaturas confiáveis dos vulcões. Em artigo aceito no mês passado para publicação também na revista Remote Sensing of Environment, os pesquisadores propuseram um método ainda mais refinado para quantificar a energia térmica irradiada em cada ponto de um vulcão. “Aguardávamos com certa ansiedade o desfecho desse artigo em particular. É um resultado polêmico, pois pode modificar a maneira como as anomalias térmicas vêm sendo medidas do espaço pelo menos desde a década de 1970”, diz Souza Filho. n

Projeto Monitoramento global de vulcões com ênfase na América do Sul utilizando a próxima geração de sensores orbitais (nº 2013/037115); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Coord. Samuel Murphy – Unicamp; Investimento R$ 163.082,88 (FAPESP).

Artigos científicos MURPHY, S.W. et al. Modis and Aster synergy for characterizing thermal volcanic activity. Remote Sensing of Environment. n. 131. 15 abr. 2013. MURPHY, S.W.; OPPENHEIMER, C.; SOUZA FILHO, C.R., Calculating radiant flux from thermally mixed pixels using a spectral library. Remote Sensing of Environment. n.132 (aceito em 21 nov. 2013).

pESQUISA FAPESP 214  z  47


astrofísica y

Mais nitrogênio no aglomerado Estrelas de idade e composição distintas formam os mais antigos agrupamentos de matéria das galáxias Marcos Pivetta

S

urgidos entre 12 e 10 bilhões de anos atrás, os sistemas estelares mais antigos ainda existentes na Via Láctea e outras galáxias são enormes agrupamentos de matéria que reúnem centenas de milhares de estrelas. Na Via Láctea são conhecidos em torno de 160 sistemas desse tipo, distribuídos sob a forma de um halo em torno da galáxia. Denominadas tecnicamente aglomerados globulares, tais formações podem guardar a chave para a compreensão de alguns dos mistérios do Universo primordial. Até o final da década passada, a ideia corrente entre os astrofísicos era a de que todas as estrelas de um aglomerado teriam se formado de uma só vez e, basicamente, com a mesma composição química. Observações mais recentes, no entanto, lançaram dúvidas sobre esse modelo ao mostrarem que há em certos aglomerados globulares várias gerações de estrelas, com distintas idades e diferentes abundâncias de certos elementos da tabela periódica. Em outras palavras, o processo de formação dos aglomerados não deve ter sido tão simples como se cogitou no passado. Um artigo científico publicado em 10 de outubro na revista Astrophysical Journal

48  z  dezembro DE 2013

2

1

Letters pelo astrofísico brasileiro Ricardo Schiavon, professor da Universidade John Moores de Liverpool, Inglaterra, reforça essa suspeita atual. No trabalho, Schiavon apresenta uma espécie de lei que parece reger a dinâmica envolvida no surgimento dos aglomerados: quanto maior for a massa desse tipo de formação, maior a quantidade de nitrogênio presente em suas estrelas. Tal correlação é interpretada como uma evidência de que realmente existem várias gerações de estrelas dentro dos aglomerados e de que as populações estelares mais jovens são mais ricas em nitrogênio do que as mais antigas. “Pela primeira vez estabeleceu-se de maneira sólida uma correlação empírica entre um parâmetro global dos aglomerados globulares, como a sua

massa, e a composição química das suas estrelas”, diz Schiavon. “Essa ligação sugere fortemente que os aglomerados de fato sofreram uma evolução química intrínseca.” Com o passar do tempo, o meio interestelar dos aglomerados, constituído de poeira e gás, deve ter se tornado mais rico em nitrogênio – produzido e ejetado pelas primeiras gerações de estrelas ali formadas – e a maior quantidade desse elemento foi progressivamente incorporada à composição das populações subsequentes de estrelas surgidas no interior desses sistemas. Ao lado de colegas dos Estados Unidos e Canadá, o brasileiro encontrou essa correlação depois de ter medido a luz integrada – a luminosidade média de todas as estrelas de 72 aglomerados de An-


Na periferia galáctica Os aglomerados se encontram na região do halo das galáxias halo bulbo Disco

aglomerados globulares

Dois aglomerados globulares (ao lado) da galáxia de Andrômeda (imagem maior): quanto maior a massa desses agrupamentos de matéria, mais ricas em

imagens  1 Dalcanton, Williams & Caldwell  2 Adam Evans

nitrogênio são suas estrelas

drômeda, a maior galáxia espiral situada nas proximidades da Via Láctea. Além de estudar a abundância de nitrogênio, os pesquisadores analisaram as quantidades de carbono, ferro, magnésio e cálcio nos aglomerados. Mas, nesses casos, não encontraram uma conexão clara entre massa e qualquer um desses elementos. Embora os aglomerados de nossa própria galáxia estejam muito mais próximos, os pesquisadores optaram por trabalhar com a galáxia vizinha. “Em certo sentido, é mais fácil estudar os aglomerados de Andrômeda do que os de nossa galáxia porque não precisamos olhar em meio a uma floresta de estrelas situadas no “primeiro plano” da nossa visão”, diz o astrofísico Charlie Conroy, da Universidade da Califórnia em Santa Cruz, coautor do trabalho. “Mas os resultados que encontramos devem valer para aglomerados de quaisquer galáxias, inclusive a Via Láctea.”

Estrelas de médio porte

O nitrogênio é sintetizado em grande quantidade por estrelas de porte intermediário, com massa de quatro a oito vezes maior do que a do Sol. Como só foi encontrada uma correlação entre a massa dos aglomerados e a presença desse elemento em suas estrelas, os astrofísicos suspeitam que o processo de enriquecimento químico ocorrido no interior desse tipo de formação estelar se deu por meio da incorporação de matéria ejetada por estrelas de tamanho médio. Quando atingem a meia-idade, tais estrelas ejetam grande quantidade de massa sob a forma de ventos estelares. Grandemente enriquecido em nitrogênio, esse material contaminou o gás onde se formaram as gerações mais jovens de estrelas, que, assim, se tornaram mais ricas nesse elemento. Para a astrofísica Beatriz Barbuy, do Instituto de Astronomia, Geofísica e

Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP), especialista na caracterização química de populações estelares (que não participou do estudo com os aglomerados globulares), o trabalho de Schiavon e seus colegas foi bem feito e apresenta resultados consistentes. “A correlação encontrada entre massa e abundância de nitrogênio é importante em vista da grande resistência que havia no passado à ideia de autoenriquecimento de aglomerados”, diz Beatriz. “Ela também confirma as evidências atuais de que há diversas populações de estrelas subsequentes em aglomerados.” n Artigo científico SCHIAVON, R.P. et al. Star clusters in M31. V. Evidence for self-enrichment in old M31 clusters from integrated spectroscopy.The Astrophysical Journal Letters. v. 776, n. 1. 10 out. 2013.

pESQUISA FAPESP 214  z  49


BIOQUÍMICA y

Movimentos sob controle Compostos parecem reduzir um grave efeito colateral do tratamento do Parkinson Francisco Bicudo

E

ncontrar estratégias para minimizar um dos efeitos colaterais mais comuns do tratamento prolongado contra Parkinson, os movimentos repetitivos e involuntários conhecidos pelo termo técnico discinesia, é um dos desafios atuais dos grupos que estudam a doença. Trabalhos feitos pelo grupo de Elaine Del-Bel, do Departamento de Morfologia, Fisiologia e Patologia Básica da Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), sugerem que o controle dessa disfunção pode ser alcançado se for possível regular a quantidade de óxido nítrico no cérebro, onde o composto atua como neurotransmissor. O uso de duas substâncias, uma que inibe a ação do óxido nítrico e um conhecido corante, para controlar a produção desse neurotransmissor, foi testado em animais e os resultados foram animadores. “O óxido nítrico deve atuar em conjunto com a dopamina [outro neurotransmissor] para que os movimentos aconteçam com harmonia. Ao modular o primeiro neurotransmissor, controlamos também os níveis do segundo, fazendo desaparecer a discinesia”, explica a pesquisadora, cujos estudos são conduzidos no âmbito de um projeto temático da FAPESP.

50  z  dezembro DE 2013


foto  LAUREN SHEAR / SCIENCE PHOTO LIBRARY

No tratamento do Parkinson, quando se chega a um estágio em que a pessoa já não consegue mais controlar tremores nas mãos e nas pernas e tem dificuldades para se levantar da cadeira ou assinar o próprio nome, por exemplo, os médicos costumam recomendar o uso de remédios compostos à base de uma substância chamada Levodopa (ou somente L-Dopa). Ela é precursora da dopamina, neurotransmissor associado aos movimentos e que é produzido em quantidade insuficiente no cérebro de pacientes com a doença – daí as limitações motoras. Com a regulação da dopamina, os tremores tendem a desaparecer e o controle da movimentação retorna a um nível satisfatório. Esse período de recuperação, a fase de “lua de mel” da doença, permite ao paciente ganhos consideráveis, pois ele volta a dar conta com relativa facilidade de tarefas cotidianas e triviais, como usar talheres e segurar copos, sem riscos de derrubá-los. Os benefícios, no entanto, têm prazo de validade. Duram em mé-

dia cinco anos. Depois desse período, por razões ainda pouco conhecidas, as tremedeiras involuntárias ressurgem, ainda mais fortes e agressivas. É quando se manifesta a discinesia, disfunção que pode fazer o paciente mover involuntariamente os músculos da face, dos braços e das pernas. Em grego, a palavra kínesis significa movimento. Reação em cadeia

Num primeiro trabalho, publicado em janeiro de 2009 na revista Neuroscience, o grupo de Ribeirão Preto inicialmente induziu Parkinson em ratos, injetando toxinas nos neurônios responsáveis pela produção de dopamina e aguardando que as lesões provocadas atingissem cerca de 80% das células nervosas, para simular o estágio avançado da doença. Os animais foram em seguida tratados com a L-Dopa até que surgissem os sintomas da discinesia. Por fim, os pesquisadores aplicaram nos ratos o composto 7-nitro-indazol, que inibe a ação de enzimas importantes para a produção do óxido

nítrico. A esperada reação em cadeia funcionou. Com menor quantidade do neurotransmissor no sistema nervoso, os movimentos involuntários praticamente desapareceram. A pesquisadora lembra que a investigação sobre os efeitos do óxido nítrico não foi aleatória. “Já sabíamos que ele é um neurotransmissor fabricado sob demanda, de acordo com as necessidades do organismo, altamente solúvel, que atua em muitos neurônios e, principalmente, que pode modular a atividade de outros neurotransmissores”, explica Elaine. Ela reconhece que essas associações ainda precisam ser estudadas e complementadas: “A discinesia é um quadro complexo e envolve a degeneração celular e a ação de diversos neurotransmissores”. No entanto, os resultados do estudo mostram que, ao regular a quantidade de óxido nítrico, controla-se por tabela o nível de dopamina no cérebro e, por consequência, a discinesia. Nesses casos, a eliminação parcial ou por completo dos sinais da discinesia pode se pESQUISA FAPESP 214  z  51


dar graças a um efeito conhecido como turnover da dopamina. “Com apenas uma dose do composto 7-nitro-indazol, a discinesia desaparece, e o animal consegue recuperar quase 100% dos movimentos. Se fôssemos transportar para seres humanos, seria como dizer que retornam à fase de lua de mel do tratamento da doença. Foi a primeira vez que essa relação foi identificada”, afirma Elaine, que neste ano publicou outros dois artigos sobre o papel do óxido nítrico no controle da discinesia. Na sequência, os pesquisadores decidiram avançar um pouco mais para apostar em outra ideia promissora: substituir o 7-nitro-indazol pelo azul de metileno, substância também conhecida por impedir a ação do óxido nítri-

co. “A vantagem do azul de metileno em relação ao 7-nitro-indazol é que ele já é largamente usado em testes clínicos em seres humanos e até mesmo em tratamentos de infecções em unidades de terapia intensiva”, diz a pesquisadora. Mais uma vez a expectativa foi confirmada: a discinesia retrocedeu. O corante provavelmente reduziu a disponibilidade de óxido nítrico no sistema nervoso. “Essa foi a segunda evidência desse mecanismo de associação entre os dois neurotransmissores”, diz Elaine. O estudo é desenvolvido em colaboração com o neurologista Vitor Tumas, responsável pelo Ambulatório dos Distúrbios do Movimento do Hospital das Clínicas da USP de Ribeirão Preto, que deverá testar o azul de metileno em pacientes

humanos com discinesia. “Essa linha de pesquisa vem oferecendo contribuições bastante originais, incluindo os primeiros estudos a indicar o papel que o óxido nítrico pode ter no controle motor, e sugere possíveis testes clínicos e aplicações terapêuticas”, comenta Francisco Silveira Guimarães, do Departamento de

Os possíveis benefícios de exercitar corpo e mente Além de procurar marcadores

para não gastar reservas

além da ginástica geral, adotou

doença. “Em um ano, é

que possam antecipar o

daquilo que já é produzido em

caminhadas que exigiam sair

esperado que, nos testes

diagnóstico do Parkinson

menor quantidade. Mas a

do ambiente conhecido para

cognitivos usados para avaliar

e testar formas de reduzir

literatura médica indica que

enfrentar outros trajetos com

Parkinson, os pacientes

os efeitos colaterais do

adultos sadios que fazem

piso irregular, por exemplo,

piorem em média oito pontos.

tratamento prolongado, as

exercícios têm menor

com intuito de estimular a

Com os exercícios, físicos ou

pesquisas buscam garantir

probabilidade de desenvolver

atenção e o sistema sensorial.

mentais, não houve avanço

uma maior qualidade de vida

a doença. “Costuramos as duas

O terceiro, chamado de

nessa pontuação, e o quadro

aos pacientes, que sofrem

informações, aparentemente

ativaMente, enfrentou desafios

ficou estável”, diz. Uma

de uma doença progressiva e

contraditórias, e resolvemos

lógicos e matemáticos.

explicação possível para

irreversível. Na Universidade

investigar”, diz Lilian,

O estudo deve durar três anos

a conquista é a plasticidade

Estadual de São Paulo (Unesp),

coordenadora do Laboratório

– e os participantes de cada

cerebral, com os neurônios

campus de Rio Claro, Lilian

de Estudos da Postura e da

equipe, a cada ano, irão

que ainda funcionam,

Teresa Bucken Gobbi analisou

Locomoção (Leplo) da Unesp.

trocar os exercícios, até que

estimulados pelos exercícios,

tenham circulado por todas

assumindo as funções dos

os efeitos de diferentes

Ela trabalhou com três

exercícios, físicos e cognitivos,

grupos de pacientes, que

as abordagens propostas.

que já morreram. “Além disso,

em pacientes com Parkinson.

cumpriram duas sessões

“É um trabalho de longa

as sessões de atividades

Como qualquer movimento

semanais de exercícios,

duração”, diz Lilian.

aconteciam sempre no início

feito pelo corpo exige

cada uma com uma hora de

dopamina, os médicos

duração. O primeiro grupo fez

animadores. Depois de quatro

administração dos remédios, e,

tendem a recomendar menos

ginástica geral (musculação,

meses, pacientes dos três

atuando em conjunto, podem

atividades físicas para os

movimentos rítmicos e

grupos conseguiram melhorar

ajudar a equacionar a ação da

pacientes com Parkinson,

de flexibilidade); o segundo,

as variáveis cognitivas da

droga no cérebro”, completa.

52  z  dezembro DE 2013

Os primeiros resultados são

da manhã, logo em seguida à

fotos 1 eduardo cesar  2 Léo Ramos

Anos de terapia podem levar o doente a sofrer de discinesia, a ocorrência de movimentos repetitivos e involuntários


1

1 Azul de metileno: corante em teste contra discinesia 2 Exercício físico: melhora cognitiva dos pacientes com a doença

Farmacologia da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, coordenador do projeto temático. Para Henrique Ballalai Ferraz, professor de neurologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o trabalho dos colegas da USP de Ribeirão Preto representa avanços importantes, mas ainda não encerra a questão do controle das discinesias. “O grupo olhou para uma faceta relevante, que ainda não tinha sido evidenciada, mas ela não é a solução definitiva”, afirma Ferraz. Segundo ele, trabalhos internacionais mostram que a modulação de outros neurotransmissores, como a adenosina, a serotonina e o glutamato, também permite estabilizar os movimentos em pacientes com Parkinson. “A questão é mais ampla. A discinesia envolve vários sistemas de neurotransmissores”, diz o pesquisador da Unifesp.

Descrita pela primeira vez em 1817 por James Parkinson (1755-1824), a doença se manifesta quando os neurônios da chamada substância negra, que ficam no tronco cerebral, morrem e deixam de produzir dopamina. Como um neurônio pode ser comparado a uma árvore, com vários galhos, ramificações e distintas conexões, há redução também do neurotransmissor nos neurônios dos núcleos da base, localizados abaixo do córtex cerebral. Essa região, em parceria com o córtex motor, é a principal responsável pelos movimentos voluntários. “O complicado é que o diagnóstico só pode ser definido com segurança a partir da manifestação dos sintomas motores, que são bem característicos, e quando a doença já está geralmente em estágio bem avançado e cerca de 80% da dopamina já desapareceu”, diz Elaine. Inicia-se então o tratamento com a L-Dopa. Por conta de me­­­canismos ainRegular a quantidade de óxido da não completanítrico no cérebro parece reduzir mente esclarecidos, a substância efeitos colaterais do tratamento funciona bem no início do tratamento, mas seu uso regular e contínuo faz surgir como 2 efeito colateral a discinesia. “Provavelmente o que acontece é uma maior quantidade de dopamina no cérebro, associada a complicados processos decorrentes da morte de neurônios. A liberação do neurotransmissor não é natural, fisiológica, mas induzida por medicamentos no organismo. Como ação rebote, os movimentos involuntários anormais aparecem”, comenta Elaine. n Projeto Neurotransmissores típicos e atípicos em transtornos neuropsiquiátricos (07/03685-3); Modalidade Projeto Temático; Coord. Francisco Silveira Guimarães – FMRP/ USP; Investimento R$ 1.947.653,25 (FAPESP).

Artigos científicos DEL-BEL, E. et al. Counteraction by nitric oxide synthase inhibitor of neurochemical alterations of dopaminergic system in 6-OHDA-lesioned rats under L-Dopa treatment. Neurotoxicity Research. 27 jun. 2013. PADOVAN-NETO, F.E. et al. Anti-dyskinetic effect of the neuronal nitric oxide synthase inhibitor is linked to decrease of FosB/deltaFosB expression. Neuroscience Letters. v. 541, p. 126-31. 29 abr. 2013. PADOVAN-NETO, F.E. et al. Nitric oxide synthase inhibition attenuates L-Dopa-induced dyskinesias in a rodent model of Parkinson's disease. Neuroscience. v. 159, p. 927-35. 2009.

pESQUISA FAPESP 214  z  53


Biologia marinha y 1

2

Planeta areia Maria Guimarães

Uma diminuta fauna até agora desconhecida vive nos grãos em regiões pouco profundas do mar

4

S

e examinar um punhado de areia do mar com muita atenção, o banhista pode ter a sorte de encontrar minúsculos discos curvos com alguns milímetros de diâmetro, como se fossem guarda-chuvas sem os cabos, que se movem pelo sedimento com a ajuda de cerdas transparentes nas bordas. Esses discos – briozoários do gênero Discoporella – são colônias 54  z  dezembro DE 2013

5

de seres praticamente transparentes que, quando em segurança, esticam os tentáculos para fora para capturar alimentos. Aparentemente desenraizada, já que se movimenta pelo fundo, uma espécie recém-descoberta desse gênero, a Discoporella gemmulifera, é parte de um universo em miniatura até agora ignorado mesmo por especialistas: o grão de areia. Nesse estranho hábitat, pesqui-

sadores do Brasil e dos Estados Unidos identificaram quase duas dezenas de novas espécies. “Aqui está o grão”, mostra o biólogo Leandro Vieira, do Centro de Biologia Marinha da Universidade de São Paulo (CEBIMar – USP), apontando uma irregularidade quase imperceptível numa foto de Discoporella. A primeira larva a se fixar ali secreta o exoesqueleto de


fotos  1, 2, 3, 4 e 6 Judith E. Winston 5 Leandro M. Vieira

3

6

carbonato de cálcio e passa a se reproduzir de forma assexuada, formando uma colônia de clones. Em seguida, quando atinge o tamanho adequado, o briozoário pode se reproduzir de forma sexuada, liberando os espermatozoides na água para fecundar outras colônias. Tendo crescido além do grão de areia que serviu para o assentamento da larva, a Discoporella indica um hábitat propício, mas

que não é típico da fauna que vem sendo descoberta. Quando mergulha no mar em profundidades entre 10 e 30 metros e enche um frasco de vidro com areia do fundo, Vieira sabe que terá muito trabalho pela frente. Uma vez no laboratório, ele espalha a areia em bandejas com água marinha que sai pelas torneiras do CEBIMar. Depois começa a examiná-la

1 Alderina smitti, com estrutura reprodutiva (ovicelo) à esquerda 2 Akatopora leucocypha vive em substratos maiores, como fragmentos de conchas 3, 4, 5 e 6 As espécies novas Ammatophora arenacea, Puellina tuba, Bryopesanser tilbrooki e Discoporella gemmulifera. Esta última pode chegar a 5 milímetros de diâmetro pESQUISA FAPESP 214  z  55


1

2

em uma pequena placa sob uma lupa potente, daquelas que se parecem com microscópios, separando e virando grão por grão com a ajuda de um pincel. Nos poucos milímetros de cada grão pode estar uma fauna diversificada, que pode incluir hidrozoários (parentes das medusas) e tubos secretados por vermes poliquetas, entre outros. Mas não é isso que ele procura. Vieira está em busca de conjuntos um pouco indistintos, translúcidos, que lembram grupos de minúsculas caixas, difíceis de detectar até por olhos treinados.

Na Flórida, anos antes, Judith tinha descoberto briozoários aderidos à areia, mas a observação foi vista como acidental. Ao chegar ao Brasil e examinar as amostras de areia coletadas na região de Caraguatatuba e São Sebastião, no litoral norte paulista, e armazenadas no acervo do Biota, ela mais uma vez deu de cara com os minúsculos briozoários, que descreveu junto com Migotto em artigo de

2005 na Invertebrate Biology (ver Pesquisa FAPESP nº 112). “Mesmo assim muita gente não acreditou”, conta Vieira, “mas todas as vezes que voltamos às mesmas localidades encontramos essa fauna, não importa em qual época do ano”. Ele mesmo, quando chegou ao CEBIMar para trabalhar com briozoários, não acreditava que essa diminuta fauna pudesse passar a vida toda aderida aos

Da flórida ao brasil

A ideia de procurar por briozoários aderidos aos grãos de areia e fragmentos de conchas, e não às rochas, foi sugerida pela bióloga marinha norte-americana Judith Winston, do Museu de História Natural da Virgínia. Em 2002, a pesquisadora esteve no CEBIMar a convite de Alvaro Migotto, então responsável por coordenar o estudo dos briozoários dentro de um projeto do programa Biota-FAPESP que investigava a biodiversidade dos organismos que vivem próximo ao substrato. 56  z  dezembro DE 2013

6

Colônia de Reptadeonella granulosa, com tubos de poliquetos no alto e à esquerda


3

5

1 Colônia adulta de Discoporella gemmulifera 2 D. gemmulifera em estágio inicial incrustado em grão 3 Pequena colônia de Hippoporella sabulonis 4 Em novo gênero descrito, Rosulapelta rosetta é uma das espécies mais comuns na areia paulista

4

fotos  1, 2, 3, 5 e 6 Alvaro E. Migotto 4 Leandro M. Vieira e Alvaro E. Migotto

5 Ammatophora arenacea se instala em fragmento de concha

grãos. Agora está convencido: ele e Judith identificaram 22 espécies de briozoários da areia em artigo na revista Zootaxa publicado em setembro deste ano. “E já encontramos mais espécies desde então, é um trabalho que não tem fim!” A resistência da comunidade de especialistas também parece vencida. No congresso da Associação Internacional de Briozoologia, que aconteceu na Itália em junho, Judith apresentou os resultados e mostrou vídeos dos briozoários em ação, se alimentando aderidos aos grãos de areia (disponíveis em cifonauta.cebimar. usp.br). Na mesma conferência, uma surpresa: uma apresentação sobre briozoários habitantes de areias australianas. Um dos autores, Eckart Håkansson, trabalhou com Judith no artigo que revelou a vida na areia da Flórida, em 1986. Demorou quase 30 anos para que estudos similares fossem feitos, em pontos quase opostos do planeta. “Depois disso trocamos e-mails e fotos: as espécies têm características muito parecidas”, conta Vieira. A publicação deste ano é um catálogo inicial, que inclui 17 espécies novas, 3 gêneros novos e mesmo uma família de briozoários até então desconhecida.

Já se sabe um pouco sobre as condições propícias à vida desses animais: o tamanho dos grãos precisa ser suficiente para abrigar os visitantes e é preciso que haja pouco sedimento fino no fundo, já que os briozoários não têm como selecionar o que cai em seus tentáculos. Areia grossa, irregular, com abundantes fragmentos de conchas, parece ser um paraíso. Mas o conhecimento de ecologia para por aí. oceano afora

Os planos agora são de ampliar o catálogo e a compreensão de como esses briozoários vivem, migram e se diversificam. Uma ferramenta importante será sequenciar o DNA de cada uma dessas espécies, formando um grande banco de dados. Assim será possível examinar o material genético presente em amostras de areia – e não grão por grão – e descobrir quais organismos existem ali. Com esse enfoque por atacado, os pesquisadores poderão examinar outros pontos do fundo do mar, quem sabe mais profundos e mais longe da costa, e ter uma ideia da distribuição real dessa fauna da areia. “Vamos escolher novas áreas e examinar parâmetros que possam afetar

a ocorrência dos animais, como granulometria, pH, quantidade de oxigênio dissolvido, teor de matéria orgânica no sedimento e movimentação da água”, planeja o biólogo, que neste ano começou um pós-doutorado no CEBIMar e pretende entender o que pode influenciar a diversidade desses organismos. De qualquer maneira, os achados já podem mudar o procedimento dos especialistas na fauna do fundo do mar, que costumam lavar a areia para recolher os organismos de interesse e em seguida descartá-la. Vale a pena olhar melhor e não deixar escapar as descobertas que podem estar coladas aos grãos. n

Projeto Benthic marine biodiversity in the state of São Paulo (nº 1998/07090-3); Modalidade Programa Biota – Projeto Temático; Coord. Antonia Cecilia Zacagnini Amaral; Investimento R$ 2.047.637,90 (FAPESP).

Artigos científicos WINSTON, J. E. e VIEIRA, L. M. Systematics of interstitial encrusting bryozoans from southeastern Brazil. Zootaxa. v. 3.710, n. 2, p. 101-46. set. 2013. WINSTON, J. E. e MIGOTTO, A. E. A new encrusting interstitial marine fauna from Brazil. Invertebrate Biology. v. 124, n. 1, p. 79-87. 2005.

pESQUISA FAPESP 214  z  57


microbiologia y

Para pessoas e plantas expectorante pode ser eficaz no controle de praga da laranja

E

nquanto dava xarope expectorante para o filho gripado, a bióloga Alessandra de Souza teve uma ideia: será que o medicamento poderia tratar a doença de laranjais que ocupa sua mente no âmbito profissional? A inspiração é menos inusitada do que parece quando se imaginam os sintomas da gripe numa criança e a anatomia de um pé de laranja. É que a bactéria Xylella fastidiosa, causadora da clorose variegada dos citros (CVC), também conhecida como praga do amarelinho pelas manchas que deixa nas folhas e nos frutos, toma a planta formando um biofilme que une a comunidade de microrganismos invasores. Romper esse biofilme no início de sua formação pode ser a melhor forma de combater a doença, que causa graves prejuízos à produção nacional de laranjas, afirma a bióloga Marie-Anne Van Sluys, da Universidade de São Paulo (USP), em reportagem na Edição Especial 50 anos da FAPESP. É justamente esse o objetivo de Alessandra, pesquisadora do Centro de Citricultura Sylvio Moreira do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), em Cordeirópolis, interior paulista. E ela parece estar no caminho certo, conforme indicam resultados obtidos no mestrado de sua aluna Lígia Muranaka e publicados este ano na PLoS One. “A patogenicidade da Xylella é próxi-

eduardo cesar

Medicamento


3

2

1

1 Xilema (verde) colonizado por Xylella fastidiosa

fotos  1 Alessandra de souza / iac  2 e 3 Richard janissen / unicamp, microscópio infabic

2 e 3 Bactérias vivas, com mutação fluorescente, no microscópio confocal

ma à de bactérias que causam infecções em seres humanos, com expressão gênica e mecanismos semelhantes”, afirma Alessandra. Por isso, ela já testou vários tipos de antibióticos, como a tetraciclina e a neomicina. “A Xylella é suscetível a esses medicamentos”, conta, “mas são muito caros para se usar na agricultura”. A pesquisadora explica que a formação do biofilme dentro da planta permite às bactérias se comunicarem entre si e se comportarem como um organismo único. Essa peculiaridade acaba por entupir os vasos do xilema, onde os microrganismos se alojam, e impede a passagem de nutrientes e água das raízes para a copa das árvores. Se é esse o mecanismo de ação da doença, talvez esteja aí mesmo a solução economicamente viável e que não cause impactos ambientais. A N-acetilcisteína (NAC), princípio ativo do xarope que Alessandra deu ao filho, velho conhecido de quem costuma ter problemas respiratórios, é um agente mucolítico – ou seja, desmancha muco. “Ela desfaz o biofilme e desestrutura as proteínas de várias bactérias que infectam

seres humanos, como Staphylococcus aureus, Enterococcus faecalis e Pseudomonas aeruginosa”, conta. O medicamento nunca tinha sido usado em plantas, mas sabendo, por meio de estudos do genoma funcional, que muitas das proteínas que promovem a adesão entre as bactérias X. fastidiosa dentro da laranjeira formam ligações entre si graças à cisteína, seu grupo partiu do pressuposto de que a medicação poderia ser eficaz para combater a clorose. No laranjal

Deu certo em experimentos in vitro, mas uma coisa é a teoria ou a ação em bactérias cultivadas em placas de vidro no laboratório, outra muito diferente é aplicar o conhecimento às bactérias ativas nos laranjais. No primeiro experimento em plantas inteiras, o grupo de Alessandra aplicou NAC em laranjeiras mantidas num sistema hidropônico, em que as raízes são diretamente expostas à medicação. Os resultados foram promissores: o número de folhas com manchas amarelas e a quantidade de bactérias diminuíram nas plantas medicadas. Mas, para manter o controle,

era preciso suprir a planta quase continuamente com o medicamento. Se fosse retirado, em três meses os sintomas voltavam. Um experimento mais realista (“afinal, laranjeiras não crescem em hidroponia”, lembra Alessandra), em que plantas foram irrigadas com uma solução que incluía NAC e, em alguns casos, tinham o fármaco injetado nas raízes, teve resultados semelhantes. Mas a ação positiva do mucolítico era promissora o suficiente para que a equipe, que também incluía pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), buscasse uma maneira mais eficaz de aplicá-lo. “Fizemos uma parceria sem fins lucrativos com uma empresa de fertilizantes orgânicos”, conta Alessandra. A fabricante, Agrolatino, desenvolveu uma forma de inserir NAC no fertilizante granulado, de maneira que a liberação do medicamento seria gradual. Dessa vez os sintomas tiveram uma redução ainda maior por um tempo mais longo, por volta de oito meses depois da aplicação. Essa solução pode ser viável para controlar a clorose variegada pESQUISA FAPESP 214  z  59


1

1 Os frutos das plantas doentes são menores 2 Inicialmente com os mesmos sintomas, a planta da esquerda foi tratada e melhorou 3 Lesões típicas da CVC nas folhas

2

dos citros em plantações reais, mas Alessandra ainda vê potencial para melhorar. “Estamos estudando como fazer para que a liberação seja ainda mais lenta, usando NAC nanoencapsulado.” Ainda é preciso avaliar a eficácia em campo desse tipo de tratamento, por isso ele está sendo testado em parceria com o setor citrícola. Dentro do xilema

A trajetória que Alessandra vem seguindo começa na iniciativa ambiciosa que sequenciou o genoma da X. fastidiosa (ver Edição Especial 50 Anos de FAPESP), quando ela acabara de concluir o mestrado e foi trabalhar no IAC com Marcos Machado, coordenador de um dos grupos de trabalho do projeto em que a FAPESP investiu US$ 12 milhões e que veio a ser um marco da maturidade da comunidade científica brasileira. Ela está entre os 116 autores do artigo publicado na Nature em julho de 2000 com os resultados do primeiro projeto genômico do país e encontrou nesses resultados a substância para seu doutorado, em que investigou os genes envolvidos com a patogenicidade e a formação de biofilme nessa bactéria. Vem daí o título da palestra que apresentou no Congresso Brasileiro de Fitopatologia, que aconteceu em Ouro Preto em outubro deste ano: “O genoma da Xylella fastidiosa: 13 anos após o ‘momento de glória’, onde estamos?”. A resposta muito abreviada é que o investimento numa empreitada controversa, centrada num organismo até então mais afamado (mesmo que mal) entre pro60  z  dezembro DE 2013

dutores de laranjas do que entre pesquisadores, não para de render frutos. E continua a se ramificar em diversas áreas da ciência. Enquanto testa na prática como controlar a doença que é o pesadelo dos citricultores e em 2009 ainda acometia 35% dos laranjais, a mesma cifra registrada uma década antes, Alessandra encontrou na física parceiros para entender em maior detalhe como a X. fastidiosa forma o biofilme que lhe permite infectar as plantas. A pesquisa liderada por Mônica Cotta, da Unicamp, é independente daquela feita no IAC, mas complementar. “Temos agora um modelo de adesão completo, que nos permite entender o que a Xylella faz em todas as superfícies”, conta. A escala é bem diferente, em contraste com os laranjais em que Alessandra espalha o olhar. A principal ferramenta de trabalho da física são microscópios sofisticados, como o de força atômica e o confocal com spinning disk, este último no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Fotônica Aplicada à Biologia Celular (Infabic), coordenado por Hernandes Carvalho, da Unicamp. Com esses equipamentos, o grupo de Mônica consegue observar como as bactérias se comportam em diferentes superfícies, principalmente no que diz

respeito à formação do biofilme. Ela está quase conseguindo responder à pergunta fortuita que Alessandra lhe fez quando se conheceram, em 2007: por que elas ficam “de pé” no final do ciclo de cultivo em laboratório, passados 30 dias? Elas são pequenos bastões cilíndricos e de fato ficam apoiadas numa das pontas em determinadas situações, mas o que importa por enquanto é que a abordagem física mostrou que cultivar essa bactéria em placas de vidro para observação ao microscópio eletrônico não é suficiente para entendê-la, já que as condições em que vivem fazem toda a diferença. Mônica fez valer sua expertise em microscopia e usou substratos mais próximos ao natural – dois tipos de celulose –, além do vidro. “Primeiro ela adere, depois secreta os exopolissacarídeos para formar uma cápsula e em seguida o biofilme”, explica. Um artigo publicado em setembro na PLoS One, parte principal do doutorado de Gabriela Lorite, de sua equipe, mostra que o substrato causa variações importantes tanto no formato do


Os avanços obtidos só são possíveis graças à interação constante entre biólogos e físicos

3

biofilme como de suas bordas. “Ela adora silício e não gosta de celulose”, conta a física, que construiu sua carreira no estudo de materiais e parece ter se afeiçoado ao organismo que a aproximou do mundo biológico. Entre os dois tipos de celulose que produziu no laboratório, o acetato de celulose é mais rugoso e menos confortável para a Xylella, que não consegue cobrir a superfície toda. Já a etilcelulose tem irregularidades menores, onde a bactéria adere melhor. “São tipos de rugosidade diferentes, como se fossem os Alpes e a serra da Mantiqueira”, compara.

fotos  1 Helvecio Della Coletta Filho / iac  2 e 3 Alessandra de souza / iac

adesão física

Mas a rugosidade não é a variável mais determinante na adesão, e as técnicas acopladas à microscopia permitem manipulações muito minuciosas para detalhar esse processo. Mônica consegue, por exemplo, prender à ponta do microscópio de força atômica uma proteína que a Xylella produz no início do ciclo infeccioso. Ao cutucar as bactérias com essa substância, os pesquisadores as induzem à adesão e medem a força de interação entre o organismo e o substrato. “Verificamos que as bactérias gostam mais de umas regiões do que outras.” No silício e na etilcelulose, os experimentos indicam que quase sempre pelo menos uma das proteínas se liga ao substrato. O mesmo não aconteceu no acetato de celulose, em que a adesão só foi observada em 20% dos casos. A conclusão mais geral do trabalho é que a Xylella tem maior tendência a se fixar em superfícies eletricamente mais uniformes, com carga positiva, além de hidrofílicas (que atraem a água).

Os estudos feitos até agora pelo grupo de Mônica são o início da compreensão de como o biofilme se instala e se espraia pelo xilema das laranjeiras. Tirando proveito da característica que dá nome à bactéria e que permite observar sua dinâmica em tempo real – ela é fastidiosa, no sentido de lenta –, Mônica tem muitos planos à vista. Eles incluem estudar melhor como a expressão gênica influi na formação do biofilme, usar o brilho conferido pela proteína fluorescente verde (GFP, na sigla em inglês) para enxergar a sua dinâmica e, em consonância com o trabalho de Alessandra, aprimorar o entendimento da ação da NAC sobre as propriedades do biofilme ao longo de sua formação e desenvolvimento. Isso permitirá detalhar a sugestão de Marie-Anne, de que os momentos iniciais da infecção são cruciais. A maior resolução com que os físicos trabalham ajuda, inclusive, a redefinir os momentos iniciais do ponto de vista experimental. Quando Mônica disse a Alessandra que o biofilme já era detectável, embora ainda com poucas bactérias, seis horas após a inoculação da bactéria no meio de cultura, a bióloga recebeu a informação com descrédito. Afinal, ela só conseguia enxergar um conjunto de bactérias a partir de cinco dias de incubação. Mônica ressalta que os avanços obtidos só são possíveis graças à interação constante, mesmo que esporádica, entre biólogos e físicos. Como disse um de seus alunos, depois de uma visita ao IAC: “Eles pensam diferente”. Esse pensar diferente é o que gera novas perguntas, novos olhares, e permite encontrar respostas inovadoras. Para ela, o uso de equipamentos multiusuários, em que a FAPESP investe

bastante, é crucial nesse sentido. “Aprendemos a interagir com outras áreas, não apenas a usar o equipamento.” Outra particularidade que a física da Unicamp vê como importante é o fato de ambos os laboratórios serem liderados por mulheres. “E tagarelas”, completa. As conexões que se revelaram frutíferas surgiram em conversas de hora de almoço nas quais interesses em comum vieram à tona e relações de trabalho se desenharam. Além disso, conta o fato de serem malabaristas que constantemente equilibram a vida pessoal e a profissional, a maternidade, as amizades e as colaborações. “As ideias nascem da experiência”, ressalta Mônica, lembrando a inspiração inicial da colega ao dar xarope ao filho. n Maria Guimarães

Projetos 1. Características biológicas de Xylella fastidiosa em biofilme: importância de genes de adesão e adaptação na patogênese (2004/14576-2); Modalidade Programa Jovem Pesquisador; Coord. Alessandra Alves de Souza/ IAC; Investimento R$ 205.432,59 (FAPESP) 2. Análise estrutural e química de biofilmes de Xylella fastidiosa (2010/51748-7); Modalidade Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa; Coord. Mônica Alonso Cotta/Unicamp; Investimento R$ 187.405,53 (FAPESP)

Artigos científicos MURANAKA, L. S. et al. N-Acetylcysteine in agriculture, a novel use for an old molecule: focus on controlling the plant-pathogen Xylella fastidiosa. PLoS One. v. 8, n. 8, e72937. ago. 2013. LORITE, G. S. et al. Surface physicochemical properties at the micro and nano length scales: role on bacterial adhesion and Xylella fastidiosa biofilm development. PLoS One. v. 8, n. 9, e75247. set. 2013.

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especial biota educação IX

Os N selvagens do asfalto Pouco valorizadas, aves se espalham pelas escassas áreas arborizadas das cidades Rodrigo de Oliveira Andrade

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a Cidade Universitária, a 8 quilômetros do centro de São Paulo, às margens do rio Pinheiros, vivem dezenas de espécies de aves. “Uma diversidade de espécies maior que a de alguns países da Europa”, comentou a bióloga Elizabeth Höfling, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), no dia 21 de setembro, em São Paulo, em sua palestra do último encontro do Ciclo de Conferências Biota-FAPESP Educação – iniciativa do Programa Biota-FAPESP em parceria com a revista Pesquisa FAPESP –, que tratou da diversidade biológica em ambientes alterados pela ação do ser humano. Desde 1984 Elizabeth, com sua equipe, identificou 161 espécies de aves nas matas da Cidade Universitária, entre elas o jacuaçu (Penelope obscura), ave característica da mata atlântica com 70 centímetros de altura que emite sons semelhantes ao cacarejo das galinhas. Ali perto, no Parque do Ibirapuera, o maior da capital, a diversidade de espécies também impressiona. Ao todo, já foram identificadas 142 espécies de aves, como a garça-branca-grande (Ardea alba), o barulhento quero-quero (Vanellus chilensis), o raro pica-pau-de-cabeça-amarela (Celeus flavescens) e o cardeal (Paroaria coronata), com seu topete vermelho. Quem percorrer com calma os parques da cidade poderá ver ainda o caxinguelê (Sciurus ingrami), a versão nacional dos esquilos do hemisfério Norte, ou um veado-catingueiro (Mazama gouazoubira). Em um levantamento recente, uma equipe da Secretaria Municipal do Verde e Meio Ambiente (SVMA) identificou 433 espécies de animais silvestres que se espalham pela metrópole, de saguis a bugios (ver Pesquisa FAPESP nº 125). A diversidade de aves e outros animais em ambientes urbanos depende de certos fatores, principalmente da variedade de plantas que vão fornecer sementes e frutos que servem como alimento, e galhos ou troncos para a construção de ninhos. Por outro lado, a poluição do ar e os ruídos dos carros podem dificultar a vida dos animais nesses ambientes. Segundo Elizabeth, o barulho excessivo das grandes cidades pode desencadear a perda da audição, aumentar o estresse e alterar o comportamento de certas espécies, enquanto a iluminação artificial pode prejudicar a percepção de dia e noite, fundamental para os animais regularem suas atividades. Em consequência, como já se viu na cidade de São Paulo, sabiás que vivem soltos em bairros residenciais – e representam uma das espécies adaptadas ao espaço urbano – se põem a cantar às três da madrugada, enervando os moradores que prefeririam dormir, levando ao pé da letra a máxima da cidade que nunca dorme. O urubu-de-cabeça-preta (Coragyps atratus), outra espécie bem adaptada, é facilmente encontrado nos arredo-


foto Luciano m. verdade  ilustraçãO luana geiger

Grupo de anus-brancos (Guira guira) empoleirados em fio elétrico na zona rural de Angatuba, SP

res dos rios Tietê e Pinheiros, os dois principais da Grande São Paulo. Embora nem sempre bem -vista pelos moradores da metrópole, essa espécie de urubu ajuda a limpar a cidade, já que se alimenta de peixes, roedores, aves e outros animais em decomposição nas margens dos rios. Nessas áreas,também se pode avistar pardais (Passer domesticus), pombos-domésticos (Columba livia) e um pássaro de bico avermelhado conhecido como bico-de-lacre (Estrilda astrild), todas espécies exóticas, mas também bem adaptadas à cidade. “Insetos como abelhas, vespas, borboletas e mariposas, aves como os beija-flores e até mesmo mamíferos como morcegos são vitais para a reprodução das plantas das cidades, por atuarem como agentes polinizadores”, ressaltou Elizabeth. Um dos grandes problemas para a sobrevivência dos animais urbanos é que áreas arborizadas estão cada vez menores, por causa, entre outras razões, do crescimento desordenado das cidades. No Brasil, 85% da população vive hoje em áreas urbanas. “Nosso modelo de desenvolvimento e padrão de consumo têm gerado uma demanda crescente de recursos naturais e colocado em risco as áreas nativas remanescentes no estado de São Paulo”, disse a bióloga Roseli Buzanelli Torres, do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), em sua apresentação, que tratou da diversidade vegetal em paisagens alteradas pelo ser humano. A Região Metropolitana de Campinas, por exemplo, formada por 19 municípios, vive uma situação crítica, segundo Roseli, na medida em

que menos de 6% da vegetação nativa de mata atlântica se mantém intacta. “A área de vegetação remanescente não chega a 1% da área total do município de Hortolândia, próximo a Campinas”, disse a bióloga. “A mesma tendência de redução pode ser observada em cidades como Nova Odessa, Santa Bárbara d’Oeste e Sumaré, todas já com menos de 1% de áreas com remanescentes florestais de mata atlântica.” Roseli coordenou um diagnóstico socioambiental da bacia do ribeirão das Anhumas, em uma área densamente povoada de Campinas, em parceria com pesquisadores das universidades Estadual de Campinas (Unicamp) e de Brasília (UnB) e do Instituto Florestal de São Paulo, além de técnicos da Prefeitura de Campinas. Com base em fotos aéreas e imagens de satélite, eles puderam observar uma expansão exponencial das áreas urbanas sobre as rurais e as de vegetação nativa — as que restaram estão bastante fragmentadas, mas ainda abrigam uma elevada diversidade de espécies de árvores, como a guaçatonga (Casearia sylvestris), o pau-jacaré (Piptadenia gonoacantha) e o marinheiro-do-brejo (Guarea macrophylla), entre outras. A pesquisadora destacou ainda a importância de se planejar a arborização das cidades como instrumento para a conservação da biodiversidade nos remanescentes de vegetação isolados na paisagem urbana. “No estado de São Paulo”, disse o agrônomo Luciano Martins Verdade, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura da USP, “a maior parte dos pESQUISA FAPESP 214  z  63


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remanescentes florestais e da diversidade de animais encontra-se em paisagens agrícolas, não em unidade de conservação”. Em sua apresentação, focada na diversidade de espécies animais em regiões agrícolas, ele mostrou que as áreas destinadas à agropecuária podem abrigar uma alta variedade de animais silvestres – mamíferos, peixes, anfíbios e aves –, geralmente não valorizados, como os da cidade e das unidades de conservação. Algumas aves já estão adaptadas às matas próximas às plantações, como o papagaio-verdadeiro (Amazona aestiva), a curicaca (Theristicus caudatus) e a maria-faceira (Syrigma sibilatrix). “Estima-se que até 60% das espécies de aves originais desses ambientes também vivam em paisagens agrícolas alteradas”, disse Verdade. Nas poucas matas do interior paulista, caracterizado por vastas plantações de cana-de-açúcar e eucalipto, ele próprio já encontrou uma onça-parda (Puma concolor), “um animal cada vez mais comum de se observar em ambientes alterados pela atividade humana”. Segundo ele, o cachorro-do-mato (Cerdocyon thous) é outra espécie adaptada à paisagem agrícola e pode ser vista com relativa facilidade em meio aos canaviais. Por viver em áreas agrícolas, os animais silvestres despertam um conflito entre produção econômica e conservação ambiental, que poderia ser conciliado, acredita Verdade. “Trabalhar esse conflito do ponto de vista da conservação inserida na dinâmica da produção agrícola talvez seja o melhor caminho para que atribuamos à agricultura uma missão multifuncional, que mantenha seu caráter produtivo e ao mesmo tempo promova a conservação ambiental”, disse ele. Por enquanto, os interesses agrícolas é que predominam, já que o Brasil é um dos principais produtores mundiais de commodities agrícolas. Para se ter uma ideia, a área agrícola total ocupa quase um terço do território nacional – cerca de 260 milhões de hectares —, as plantações de soja estendem-se por 28 64  z  dezembro DE 2013

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3

A partir da direita: Elizabeth Höfling, Luciano Martins Verdade e Roseli Buzanelli Torres

milhões de hectares e as de cana-de-açúcar, ligadas à produção de etanol, açúcar e energia, por 9 milhões de hectares. Em São Paulo, a atividade agrícola é uma das principais responsáveis tanto pela riqueza do estado quanto pela redução das áreas originais de mata atlântica e cerrado, hoje bastante fragmentadas. ESTRATÉGIAS DE CONSERVAÇÃO

“Conhecer os padrões de distribuição e abundância das populações de espécies de animais silvestres em paisagens agrícolas não é o bastante para a elaboração de estratégias consistentes de conservação da diversidade biológica”, alertou Verdade. “Como avaliar os impactos das mudanças no uso da terra na biodiversidade?” Quando não se sabe o que fazer, segundo ele, o mais adequado seria reforçar as bases conceituais, permitindo uma melhor compreensão da situação. Inovações tecnológicas ou metodológicas, por

Abaixo, abelhas borás em girassol. Ao lado, bem-te-vi com calango no bico e jacuaçu

Eheni con pratem eum adia corrum lam ipisi repudaesequi aut eos sam nonem quo dolupti aesequi inci res et es a niet expliqui dunt quo elloriore in poris solectem


fotos  1, 2 e 3 eduardo césar  4, 5 e 7 Luciano M. verdade  6 paulo césar fernandes  8 dario sanches

4

6

sua vez, podem ser necessárias quando já se sabe o que fazer para favorecer a conservação da biodiversidade em paisagens agrícolas. Por fim, a governança, entendida como a articulação entre instituições públicas e privadas, é indispensável para as propostas de conservação serem efetivamente implantadas. “Apenas conhecer os padrões biológicos característicos de cada paisagem contribui pouco para o processo de governança. É que esses padrões são determinados por processos epide5 miológicos, humanos e evolutivos, entre outros. Assim, a diversidade de padrões é determinada pela complexidade dos processos”, disse ele. “O mais importante na formulação de estratégias de conservação seria, antes de tudo, compreender o que gera a complexidade desses processos.” Nas cidades, o incentivo à arborização poderia contribuir para fortalecer as estratégias de conservação, por criar ambientes com temperaturas

“A diversidade de espécies de aves na Cidade Universitária é maior que a de alguns países da Europa”, disse Elizabeth

amenas, mais agradáveis tanto para as pessoas quanto para os animais silvestres. “Árvores com copas mais densas retêm até 98% da radiação solar”, disse Roseli, do IAC. Segundo ela, as árvores contribuem ainda para a redução da velocidade das enxurradas – a tipuana (Tipuana tipu) e a sibipiruna (Caesalpinia peltophoroides), por exemplo, podem reter até 60% da água nas duas primeiras horas de chuva, diminuindo a intensidade das inundações. n

Tamanduá-bandeira em plantação de eucalipto (acima à esq.) e gavião-carrapateiro em bovino (acima à dir.), ambos na zona rural de Angatuba

+10

pESQUISA FAPESP 214  z  65


tecnologia  pesquisa empresarial  y

Quem procura acha Centro de Engenharia do Google no Brasil responde por mudanças relevantes no sistema de busca Yuri Vasconcelos

66  z  dezembro DE 2013


D léo ramos

A partir da esquerda, Berthier Ribeiro-Neto, Bruno Pôssas, Paulo Golgher, Bruno Fonseca e Hugo Santana (em pé)

empresa google

Centro de Engenharia para a América Latina Belo Horizonte, MG

Nº de funcionários 500

Principais produtos Buscador na internet, Gmail e rede social G+

uas piscadas de olho – tempo que corresponde a um quarto de segundo –, esse é o intervalo médio que o Google, principal ferramenta de busca na internet no mundo, leva para fornecer uma resposta ao internauta. São 100 bilhões de consultas realizadas por mês no buscador – uma média de 3,3 bilhões de pesquisas por dia, 137,5 milhões por hora e incríveis 2,3 milhões por minuto. Mais de 20 bilhões de endereços na web são analisados a cada 24 horas pelo Google, que depara com 500 milhões de procuras diárias inéditas, ou seja, que nunca haviam sido feitas antes. Aqui no Brasil o site detém 91% de participação no mercado de buscas pela internet. O que poucos sabem é que, para dar conta de tanta informação, a empresa de tecnologia com sede em Mountain View, uma das maiores cidades do Vale do Silício, na Califórnia, nos Estados Unidos, conta com o talento de uma equipe de pesquisadores brasileiros no Centro de Engenharia do Google para a América Latina, em Belo Horizonte, Minas Gerais. Localizada em um prédio da região central da capital mineira, a unidade foi criada em 2005 e hoje é um dos mais importantes entre os cerca de 30 centros de pesquisa e desenvolvimento da empresa espalhados por cidades como Nova York (Estados Unidos), Zurique (Suíça), Tóquio (Japão), e Bangalore (Índia). “Cem por cento dos resultados de busca realizados globalmente, a cada dia, são melhores, em termos de relevância para a consulta, devido a projetos desenvolvidos pelo time de BH”, diz o cientista da computação Berthier Ribeiro-Neto, diretor de engenharia do Google e um dos líderes da equipe brasileira. “Somos responsáveis pela segunda mudança mais relevante na melhoria de busca da história do Google. Além disso, cinco dos 30 principais projetos experimentais com usuários do buscador saíram do nosso escritório”, diz o pesquisador, de 53 anos. Essa segunda inovação mais importante – que não pode ser descrita em detalhes por ser uma informação sigilosa – está relacionada a dois problemas fundamentais dos mecanismos de busca: compreender com precisão o que o usuário está expressando na consulta e entender o que cada um dos documentos na web quer dizer. É o casamento desses dois “entendimentos” que, ao final, tornam a informação apresentada pelo buscador mais próxima daquela que o internauta quer encontrar. A principal área de atuação dos pesquisadores de BH é o ranqueamento – core ranking, em inglês pESQUISA FAPESP 214  z  67


–, que é a ordem em que os links são apresentados na página de resultados. “O foco do nosso grupo é a qualidade de busca. Trabalhamos para garantir que o resultado da consulta do usuário seja o melhor possível, e que a primeira resposta do ranking apresentado pelo Google atenda de fato o que o internauta está procurando”, diz o cientista da computação Hugo Pimentel de Santana, de 32 anos. “Um dos nossos maiores esforços é entender que certas consultas escritas de forma diferente representam a mesma intenção do usuário”, diz ele. Formado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e com mestrado na mesma instituição na área de inteligência artificial, Hugo é engenheiro de software do Google há seis anos e lidera uma equipe de 16 pessoas do time de ranking. Ele viaja de duas a três vezes por ano para Mountain View a fim de participar de treinamentos e encontros com a equipe global da empresa. A sede abriga o principal centro da máquina de busca do Google. O desafio para melhorar o core ranking é grande e cada sugestão passa por um longo e criterioso processo de avaliação. Apenas em 2012, 118.812 ideias para tornar a ferramenta de ranking mais eficaz foram apresentadas pelos engenheiros da empresa no mundo. Desse total, menos de 10% (10.391) receberam análises de um grupo de usuários contratados pelo Google, os raters. Cerca de 30% dessas implementações não vingaram e 7.018 foram para a fase seguinte, de implantação parcial, quando passaram por avaliações de grupos de usuários reais. Ao final do processo, somente 665 mudanças foram aprovadas e incorporadas ao engenho de busca do Google. Um indicativo da relevância do Centro de Engenharia de BH é que alguns de seus pesquisadores têm acesso irrestrito ao algoritmo de busca do Google, a enorme sequência numérica que faz

Por dentro do Google Conheça detalhes sobre a gigante americana de tecnologia dona da principal ferramenta de busca na internet do mundo Mecanismo de busca

2

piscadas de olho

ou 1/4 de segundo é o tempo médio de resposta

159

100

idiomas de pesquisa

bilhões

de pesquisas feitas por mês

189

1

60

domínios internacionais

trilhões

de endereços da web achados até hoje

Resultados financeiros globais da empresa US$

US$

14,89

240,6

*fonte wall street journal **Entre jan e set/2013 ***3o trimestre de 2013

30

centros de P&D

da empresa no mundo

de receita***

5,8

bilhões

investidos em P&D em 2013**

US$

2,97

bilhões

Centro de Engenharia do Google em Belo Horizonte É um dos

bilhões

US$

bilhões

em valor de mercado*

de lucro líquido em 2013**

100%

US$

dos resultados de buscas

150

milhões

investidos na unidade desde 2005

100

engenheiros

aproximadamente

75%

com mestrado

68  z  dezembro DE 2013

tiveram participação do trabalho da unidade brasileira


o mecanismo funcionar. O algoritmo é um código altamente confidencial e tem para a empresa a mesma importância da fórmula da Coca-Cola para o fabricante do refrigerante – ele é a base de seu sucesso. “São poucos os grupos de fora da sede em Mountain View que trabalham na melhoria do algoritmo de busca”, diz Bruno Pôssas. Aos 36 anos, com graduação, mestrado e doutorado em ciência da computação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Pôssas é o responsável por todas as melhorias propostas pela equipe de Belo Horizonte no algoritmo do Google.

fotos  léo ramos

Descontração e trabalho nas unidades de Minas Gerais e São Paulo

A Akwan era dona de um engenho de busca centrado na web brasileira, chamado TodoBr, que tinha sido desenvolvido por um grupo de professores do Departamento de Ciência da Computação da UFMG. “O TodoBr tinha uma qualidade muito melhor do que a busca do Google para o Brasil na época. Em pouco tempo, nosso buscador explodiu e decidimos criar uma empresa”, recorda-se Ribeiro-Neto, um dos seis fundadores da Akwan – os outros foram os professores Nívio Ziviani, Alberto Laender e Ivan Moura Campos, todos da UFMG, e os investidores de mercado Guilherme Emrich e Marcus Regueira. Com o crescimento da empresa, Ribeiro-Neto decidiu licenciar-se da Máquina de busca Para Pôssas, o conhecimento dos pesquisadores universidade para tocar o dia a dia do negócio. brasileiros numa área teórica de fundamental im“Enfrentamos uma dificuldade inicial por não portância para a construção de máquinas de bus- conseguir financiamento a baixo custo. Batemos ca, conhecida como “recuperação de informação” na porta do BNDES [Banco Nacional de Desen(information retrieval, em inglês), explica a boa volvimento Econômico e Social] e recebemos reputação que a unidade um ‘não’. Sobrevivemos vendendo somineira goza junto ao esluções para o mercado corporativo de critório central no Vale do São Paulo, até que, no final de 2004, um Silício. “O Google começou colega fez a intermediação com um viA mineira em BH com um grupo muice-presidente de engenharia do Google. Akwan foi to bom em recuperação de Em poucos meses fechamos negócio”, informação, que era recodiz Ribeiro-Neto. O objetivo do Google a primeira nhecido pela comunidade ao comprar a Akwan, segundo Ribeirocientífica internacional -Neto, era construir um centro de P&D empresa pela qualidade dos artigos no país. Quando os norte-americanos que publicava”, afirma Pôsadquirida pelo adquiriram a empresa brasileira cansas. Ele se refere à equipe celaram todos os seus contratos, mas Google fora que criou no ano 2000 a mantiveram os funcionários. “O Google empresa mineira Akwan percebeu que aquele grupo de acadêmidos Estados Information Technologies, cos havia feito uma ferramenta na fronadquirida cinco anos deteira do conhecimento. Tínhamos ideias Unidos pois pelo Google para ser próprias de como lidar com o problema transformada em seu cendos mecanismos de busca. Fomos a pritro de pesquisa no país. meira aquisição global da empresa fora dos Estados Unidos”, diz Ribeiro-Neto, destacando que “o foco do trabalho do grupo sempre foi o desenvolvimento de inovações globais”. O pesquisador foi o único dos seis fundadores da Akwan que permaneceu no Google. Desde que iniciou suas operações em 2005, o Centro de Engenharia já recebeu investimentos superiores a US$ 150 milhões. Atualmente trabalham nele por volta de 100 engenheiros, sendo que 75% têm mestrado ou doutorado em ciência da computação. A maioria dos pesquisadores é brasileira, mas há também profissionais de outros países, entre eles Estados Unidos, Índia, Chile, Colômbia e Venezuela. “Buscamos engenheiros com boa formação técnica, pró-ativos, criativos e com iniciativa própria”, diz Ribeiro-Neto, que é coautor do livro Modern information retriepESQUISA FAPESP 214  z  69


O funil da inovação O longo caminho que uma ideia percorre até ser incorporada ao engenho de busca do Google 118.812

10.391

7.018

655

Ideias para melhorar a ferramenta de ranking foram avaliadas em 2012

Sugestões foram testadas por um grupo de avaliadores contratados pela empresa

Dessas propostas foram parcialmente implantadas e avaliadas por usuários reais

Mudanças foram aprovadas e incorporadas ao algoritmo de busca do Google Fonte Google

val. Publicada originalmente em 1999, a obra é importante entre cientistas da computação e foi fonte de consulta dos fundadores do Google, Larry Page e Sergey Brin, durante a pós-graduação na Universidade Stanford, quando desenvolveram o projeto que deu origem à empresa de busca. No Brasil são mais de 500 funcionários, divididos entre o centro de P&D de Belo Horizonte e o escritório central de São Paulo. Os funcionários desfrutam de um ambiente descontraído com espaços de lazer dedicados ao ócio criativo, equipados com redes para balançar, espreguiçadeiras, mesas de sinuca, videogame, gibiteca e pufes para relaxar em forma das teclas ctrl, esc, alt e del. A equipe de Belo Horizonte também se dedica a pesquisar e a desenvolver produtos para a rede social Google+, lançada em 2011 para concorrer com o Facebook, e é responsável pela gestão do Orkut, que já foi o mais popular site de relaciona-

Instituições que formaram os pesquisadores da empresa Berthier Ribeiro-Neto, cientista da computação, diretor de engenharia

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG): graduação UFMG: mestrado Universidade da Califórnia, em Los Angeles (EUA): doutorado

Bruno Pôssas, cientista da computação, engenheiro de software sênior

UFMG: graduação UFMG: mestrado UFMG: doutorado

Hugo Santana, cientista da computação, engenheiro de software sênior

Universidade Federal de Pernambuco (UFPE): graduação UFPE: mestrado

Paulo Braz Golgher, cientista da computação e diretor de engenharia do G+

UFMG: graduação UFMG: mestrado

Bruno Fonseca, cientista da computação e engenheiro de software

UFMG: graduação UFMG: mestrado

70  z  dezembro DE 2013

mentos virtuais do país. Quando o Google comprou a Akwan, em 2005, o Brasil era o principal mercado mundial do Orkut – três anos depois, a subsidiária brasileira passou a ser a responsável global pela plataforma, que chegou a ter 30 milhões de usuários no país. “O setor que lidero tem cerca de 40 pessoas e é um dos três mais relevantes junto com os times de Mountain View e Zurique”, diz o diretor de engenharia do G+, Paulo Golgher, de 36 anos. O dia a dia dos engenheiros é criar novas funcionalidades para o Google+ e desenvolver programas que tornem a rede social mais segura e fora do alcance de hackers. “Projetamos sistemas automáticos para que a própria plataforma detecte ameaças e abusos, como conteúdos pornográficos, vírus e spam”, conta o engenheiro de software Bruno Maciel Fonseca, de 32 anos. PESQUISA ACADÊMICA

Além de investir em inovações voltadas aos seus próprios produtos, o Google também financia projetos acadêmicos em universidades brasileiras. O programa Google Brazil Focused Research Grants, lançado em 2013, distribui cerca de R$ 1 milhão entre cinco pesquisas de doutorado que procuram entender como as pessoas se comportam no ambiente virtual da internet. A empresa tem tradição em fomentar a pesquisa em áreas de seu interesse em instituições de ensino superior americanas e europeias, mas esta é a primeira vez que apoia projetos brasileiros. O financiamento não tem como contrapartida a cessão dos direitos de propriedade sobre as pesquisas. “No processo de seleção, enviamos convite a 25 pesquisadores e recebemos 20 propostas. Escolhemos as cinco que tinham qualidade compatível com a marca Google”, explica Ribeiro-Neto. Um dos projetos contemplados é uma pesquisa do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), cujo objetivo final é melhorar a qualidade do ensino a distância no país. O projeto pretende analisar as reações de alunos desses cursos durante as videoaulas e identificar seu nível de atenção. Liderado pelo professor Edmundo de Souza e Silva, coordenador do grupo de pesquisa da Coppe, o estudo é feito por meio de uma série de sensores e aparelhos conectados ao aluno, que fornecem informações sobre seu estado mental durante a aula a distância. Enquanto uma webcam filma suas expressões faciais e o tamanho da pupila, uma pulseira dotada de biossensores mede a condutividade da pele, uma faixa na cabeça capta suas ondas cerebrais e um sensor mede a movimentação do mouse. “O nível de condutividade da pele e a dilatação da pupila são indicadores de que a pessoa está mais ou menos atenta”, explica Silva. Segundo


léo ramos

Experimeto realizado na UFRJ analisa o nível de atenção em alunos de ensino a distância

ele, numa aula tradicional, o professor pode observar as reações dos alunos e perceber o quanto ele está atento ou desatento. Já nos cursos a distância isso é impossível. “O sistema que estamos deProjeto busca senvolvendo pretende ajudar a cobrir entender o que essa lacuna”, diz Silva. Durante uma videoaula, caso o sistema conclua, por faz um vídeo meio dos dados enviados pelos aparelhos (webcam, pulseira e sensores), que postado no o aluno está desatento, ele automaticamente altera o curso da aula, por exemYouTube se plo, pedindo para o estudante fazer altornar popular guma tarefa ou mudando o conteúdo que está sendo exibido. Conduzida em ao longo conjunto com a professora Rosa Leão, da Coppe, o doutorando Gaspare Brudo tempo no e o mestrando Thothadri Rajesh, a pesquisa tem como alvo inicial alunos do curso de sistemas de computação do Cederj, consórcio formado por sete instituições públicas do ensino superior do Rio de Janeiro, entre elas a UFRJ e a Universidade Federal Fluminense (UFF). Outro projeto apoiado pelo programa do Google no país busca compreender o que faz um conteúdo postado no canal de compartilhamento de vídeos YouTube se tornar popular. “Queremos entender os vários fatores que podem afetar a audiência de um vídeo e, assim, predizer sua curva de popularidade no tempo”, afirma a professora Jussara Almeida, do Departamento de Ciência da Computação da UFMG. A pesquisa faz parte do trabalho de doutorado do cientista da computação Flavio Figueiredo. A metodologia criada na UFMG é capaz de melhorar em mais de 30% a média de previsão de popularidade dos vídeos em relação à técnica mais renomada usada

para tal fim, desenvolvida por Bernardo Huberman, pesquisador do HP Labs, localizado em Palo Alto, na Califórnia. Durante a pesquisa, foram monitoradas centenas de milhares de vídeos no YouTube e coletadas informações diversas no site, entre elas a categoria do vídeo, a curva de visualização no tempo, desde o upload, e a origem dos links utilizados para chegar a esse vídeo. “Ao analisar a curva de visualizações destes vídeos, vimos que um número pequeno de padrões de curvas de popularidade se repete. Percebemos que, se conseguirmos prever essa curva, podemos melhorar a predição e dizer como a popularidade de um determinado conteúdo irá evoluir ao longo do tempo”, diz Jussara. Uma das conclusões do estudo foi que a qualidade do conteúdo do vídeo nem sempre é determinante para sua popularidade. Muitas vezes, o vídeo “bomba” na web depois que um link para ele foi postado em algum site externo, como um blog ou mesmo o Facebook. A compreensão dessa dinâmica pode fornecer informações importantes para anunciantes de bens e serviços na internet, além de produtores de conteúdo. O mesmo Departamento de Ciência da Computação da UFMG teve outro projeto contemplado com os recursos do Google. O professor Marcos André Gonçalves e o doutorando Daniel Hasan utilizaram algoritmos e técnicas computacionais para aferir automaticamente a qualidade de artigos e conteúdos postados na web 2.0, aquela cujas páginas são criadas a partir da colaboração dos internautas. A enciclopédia virtual Wikipedia, com mais de 14 milhões de artigos, foi o foco inicial da pesquisa. “Começamos com a Wikipedia e estendemos o estudo para fóruns de pergunta e resposta”, explica Gonçalves. Para determinar o grau de confiabilidade das páginas, os pesquisadores elaboraram um conjunto de 68 critérios de qualidade, como legibilidade do texto, estrutura e organização dos artigos e o histórico de revisões dos conteúdos postados. “Criamos um aplicativo, ainda não comercial, que dá uma nota para cada um dos critérios”, diz o professor da UFMG. Dentre as várias metodologias existentes que se propõem a fazer algo similar, a projetada por ele e seu aluno fornece os melhores resultados quando submetida à experimentação. “Nossa metodologia pode funcionar como uma bússola mostrando ao internauta quais são os conteúdos da web com mais qualidade e credibilidade. Imaginamos que, no futuro, ela poderá ser usada para ordenar as páginas retornadas em uma busca conforme algum critério de confiabilidade”, afirma Gonçalves. n pESQUISA FAPESP 214  z  71


Física y

Alta frequência Pesquisadores desenvolvem com indústria brasileira equipamento para o maior laboratório fotos  1 eduardo cesar 2 Latinstock/MAXIMILIAN STOCK LTD/SCIENCE PHOTO LIBRARY/SPL DC

de fusão nuclear do mundo, no Reino Unido Igor Zolnerkevic

P

esquisadores do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e da empresa paulistana Politron desenvolveram e construíram um novo amplificador de ondas de radiofrequência que deverá funcionar no principal laboratório de fusão nuclear controlada da atualidade, o Joint European Torus (JET), ou Comitê Europeu Toroidal, mantido pela União Europeia na cidade de Culham, no Reino Unido. O nome do laboratório vem da câmara da máquina que tem forma toroidal, semelhante a uma câmara de pneu, ambas com um furo no meio. A fonte de radiofrequência está sob a responsabilidade da parceria entre pesquisadores da USP, da Escola Politécnica Federal de Lausanne (EPFL), na Suíça, e do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos. Eles constataram que uma fonte com amplo espectro de frequência, flexibilidade e robustez necessária para satisfazer as condições extremamente estritas de 72  z  dezembro DE 2013

operação no JET não existia no mercado mundial. As usinas de fusão nuclear são a promessa de produção de energia elétrica sem deixar resíduos radioativos e com menos probabilidade de acidentes. O sistema é diferente do atual, de fissão nuclear, que ainda gera desconfiança em relação à preparação de seu combustível e do armazenamento do lixo atômico. Na fissão, a reação nuclear continua mesmo com o reator desligado. Para atingir a tecnologia necessária a uma usina nuclear de fusão comercial até meados deste século, vários experimentos estão sendo realizados no mundo. O amplificador de ondas de rádio é essencial nesse processo e a única indústria procurada por essa parceria internacional que se interessou em desenvolver o equipamento foi a Politron, que agora está elaborando uma patente da invenção com a USP. “É um caso paradigmático de colaboração entre universidade e empresa para inovação”, diz Ricardo Galvão, professor e coordenador do La-

1 Amplificador de espectro de ondas de rádio produzido em São Paulo 2 Manutenção do reator de fusão no Laboratório JET, na Inglaterra

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pESQUISA FAPESP 214  z  73


boratório de Física de Plasmas da USP. Em 2014 será iniciada a fase mais avançada de medições e capacitação de todo o sistema do JET e os amplificadores são componentes essenciais. “Nosso aparelho opera em condições não atendidas por equipamentos comerciais”, diz Galvão. Fundada em 1950, a Politron foi a pioneira no país no desenvolvimento de máquinas geradoras de ondas de radiofrequência, usadas nas linhas de produção das mais diversas indústrias, de calçados a mineração. A empresa é de médio porte e exporta para toda a América Latina. Para Maria de Oliveira, diretora administrativa, a empresa vem sofrendo nos últimos anos com a concorrência chinesa, que inundou o mercado com máquinas de qualidade relativamente inferior fornecidas pela metade do preço no mercado brasileiro. Como é impossível concorrer em escala global, a Politron procura nos últimos anos oferecer produtos para clientes com necessidades específicas. “Já produzimos máquinas sob medida para laboratórios de várias universidades brasileiras como UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro], UFMG [Universidade Federal de Minas Gerais], Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], USP e UFSCar [Universidade Federal de São Carlos]”, conta Maria. “O desafio é construir um amplificador que sempre funcione dentro das especificações”, explica o engenheiro Alessandro de Oliveira Santos, gerente de pesquisa e desenvolvimento da empresa, que abraçou o projeto por dois anos. O amplificador é resultado de um convênio firmado em 2009 entre o Brasil e a Comunidade Europeia de Energia Atômica (ver Pesquisa Fapesp nº 186). Mercado potencial

Entre setembro e outubro deste ano, a engenheira britânica Margaret Graham, do JET, esteve no Brasil e trabalhou com a equipe da USP e da Politron na avaliação final da versão industrial do amplificador. “Os testes foram muito bem-sucedidos”, ela contou. “Só faltam alguns pequenos detalhes que acertaremos na Inglaterra.” No dia 29 de outubro, Francesco Romanelli, diretor do JET, confirmou por um memorando que o laboratório inglês estava pronto para receber o amplificador e pedia formalmente o aparelho à USP. “O amplificador e mais sete outras unidades serão enviadas posteriormente ao 74  z  dezembro DE 2013

A energia atômica do futuro Usinas de fusão nuclear podem se tornar uma realidade até meados deste século FISSÃO

POR DENTRO DE UM TOKAMAK

Bário

Nêutrons

tokamak Modelo de reator em desenvolvimento pelo JET e o Iter

Nêutron Urânio

plasma Gás eletricamente carregado a mais de 150 milhões de graus Celsius

Criptônio

Usinas nucleares atuais usam energia liberada quando nêutrons quebram núcleos pesados e outros menores

plasma em FUSÃO

Trítio

Deutério

Hélio

Nêutron

A colisão de um núcleo de deutério com outro de trítio cria um núcleo de hélio e um nêutron altamente energéticos

laboratório europeu”, diz Galvão. A expectativa da Politron e dos pesquisadores da USP é que, caso corra tudo bem com as experiências na Inglaterra, outros laboratórios de fusão no mundo se interessem em adquirir os novos amplificadores. Principalmente o reator experimental termonuclear internacional (Iter), oito vezes maior que o JET, em construção desde 2007 em Cadarache, na França. O projeto é financiado por um consórcio formado por União Europeia, China, Coreia do Sul, Estados Unidos, Índia e Japão. As obras do Iter estão atrasadas e a previsão é que ele fique pronto em 2020. O combustível dos reatores de fusão é formado por dois tipos de hidrogênio pesado, o deutério, que pode ser extraído da água do mar, e o trítio, produzido a partir de lítio. Uma mistura de deutério e trítio é injetada em um tokamak – uma máquina inventada pelos soviéticos nos anos 1960 e que vem sendo aperfeiçoada

Campos magnéticos Mantêm o plasma aquecido na câmara do Tokamak

Nêutrons Produzidos na fusão, escapam e aquecem paredes do reator para gerar energia elétrica

para ser o reator das novas usinas nucleares. Dentro da câmara da máquina, o hidrogênio é aquecido até seus elétrons se libertarem dos núcleos atômicos, formando um gás eletricamente carregado, chamado de plasma. Campos magnéticos aprisionam o plasma dando voltas no toro, impedindo que ele esfrie e danifique a parede da câmara ao tocá-la (ver no infográfico acima). Se a temperatura do plasma alcançar os 150 milhões de graus Celsius (10 vezes mais que a temperatura do centro do Sol), os núcleos de deutério e trítio começam a se fundir depois de colidirem, produzindo hélio e nêutrons, ambos altamente energéticos. Os núcleos de hélio permaneceriam dentro do plasma, ajudando a aquecê-lo e sustentando mais reações de fusão, enquanto os nêutrons, por serem imunes ao campo magnético, escapariam, colidindo com as paredes do Tokamak e produzindo o calor para mover as turbinas de um


ONDAS INCÔMODAS

Núcleo de hélio em alta velocidade

Ondas Alfvén

campo eletromagnético O hélio em alta velocidade emite ondas Alfvén. A perda de energia por essas ondas eletromagnéticas ocasiona o

Plasma esfria, diminuindo a intensidade das reações de fusão

esfriamento do plasma, afetando a continuidade das reações de fusão

Ondas eletromagnéticas ressonantes

DIAGNÓSTICO DAS ONDAS ALFVÉN NO JET

Ondas de rádio

gerador brasileiro Ondas de rádio geradas por um amplificador especial desenvolvido pela USP e a Politron produzem ondas Alfvén no plasma idênticas às da fusão, para que os físicos possam estudá-las em detalhe

infográfico  ana paula campos  ilustraçãO alexandre affonso

gerador elétrico. A fusão seria mais segura que a fissão porque, como o plasma esfria muito rápido, a reação é interrompida imediatamente com o desligamento dos campos magnéticos. Entretanto há muitos desafios tecnológicos a serem superados para realizar o conceito da fusão nuclear. Lenha úmida

O JET possui o maior Tokamak já construído, capaz de confinar 80 metros cúbicos de plasma. Em operação desde 1983, conseguiu a primeira reação de fusão controlada da história, em 1991, que durou apenas alguns segundos. A reação de fusão ainda não persiste o suficiente para gerar mais energia elétrica do que consome. “É como fazer uma fogueira com lenha úmida”, compara Galvão. “Assim como é preciso vencer toda a umidade para que a própria energia do fogo sustente a combustão da madeira, os núcleos de hélio precisam permanecer no plasma por tem-

Ondas eletromagnéticas ressonantes Fonte EFDA

po suficiente para que a própria energia da reação mantenha o plasma aquecido. Para que isso ocorra será necessário aumentar o tamanho da ‘fogueira’ de plasma.” A equipe de Galvão colabora desde 2011 com o JET no projeto de pesquisa, iniciado pelos suíços e pelo MIT, para estudar um tipo de onda que se propaga no plasma usado na fusão, as ondas Alfvén. A preocupação maior são aquelas produzidas pelo movimento dos núcleos de hélio (partículas alfa) criados na fusão. Não se sabe ao certo quanto tempo duram essas ondas e o quanto elas podem atrapalhar a continuidade das reações no JET. Ao excitar as ondas Alfvén, as partículas alfa perdem energia, esfriando o plasma e dificultando a continuidade das reações de fusão. Os pesquisadores produzem as ondas Alfvén por meio de ondas de radiofrequência no plasma. Desde 2009, a equipe suíça da EFPL trabalha em melhorias de um sistema de oito antenas de

radiofrequência no interior do JET, que servem tanto para gerar ondas Álfven quanto para detectá-las. Porém os pesquisadores da USP notaram um problema grave no sistema. O sinal de radiofrequência fornecido às antenas era gerado por um amplificador comercial por meio de um cabo de 100 metros. As simulações e testes feitos pela equipe de Galvão verificaram que, ao variar a frequência, as ressonâncias naturais da linha de transmissão provocavam sinais refletidos de alta amplitude que forçavam o desligamento do amplificador. “O sistema antigo não tem como alimentar as antenas”, explica o físico ucraniano Leonid Ruchko, que trabalha no Brasil com Galvão desde 1995. Baseado em soluções que criou para as experiências com ondas Alfvén da equipe brasileira realizadas no tokamak existente na USP em São Paulo, Ruchko criou um novo conceito de amplificador, baseado em transistores de alta velocidade e capaz de amplificar uma faixa de radiofrequências, de 10 quilohertz a 1 megahertz. A rapidez e a robustez do amplificador impedem que ele seja afetado por pulsos de alta tensão refletidos. “Ele tem uma boa proteção contra reflexão”, diz o físico. Ruchko propôs que cada uma das oito antenas fosse alimentada por um amplificador. Cada uma geraria um pulso curto e preciso de onda. Controlando a forma e duração desses pulsos por computador, seria possível combiná-los para produzir dentro do plasma as ondas Alfvén com as propriedades desejadas. Depois do conceito de Ruchko e do protótipo construído pela equipe da USP ser aprovado, começou a procura por uma empresa que resultou na aprovação da Politron e no financiamento do projeto pela FAPESP e Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. O custo total do equipamento foi de R$ 150 mil. “Tornar operacional o projeto do Leonid para conseguir que o equipamento funcionasse com total segurança, imune a sinais refletidos, foi excepcional. É essa robustez que vale uma patente”, diz Santos. n Projeto Núcleo de excelência em física e aplicações de plasmas – FAPESP-MCT/CNPq-pronex-2011 (nº 2011/50773-0); Modalidade Projeto Temático; Coord. Ricardo Galvão/USP; Investimento R$ 1.633.433,66 e US$ 705.552,82 (FAPESP).

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76  z  dezembro DE 2013

fotos  eduardo cesar  ilustrações  pedro hamdan


ENGENHARIA METALÚRGICA y

Mineração com microrganismos Bactérias são usadas para recuperar metais valiosos de sucata de eletrônicos e rejeitos de minas

O

Brasil é um dos campeões mundiais na geração de lixo eletrônico. Um estudo recente da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), do governo federal, revelou que cerca de 1 milhão de toneladas de sucata eletrônica, formada por monitores de computadores, telefones celulares, impressoras e câmeras fotográficas, entre outros equipamentos, é descartado todos os anos no país. Apenas uma pequena parcela é reciclada porque as técnicas atuais que a tornam viável são caras e poluentes. Essa situação pode mudar se der certo comercialmente um método sustentável, tanto no âmbito econômico quanto ambiental, para recuperar metais como cobre e ouro presentes em circuitos impressos, as placas esverdeadas de fibra de vidro presentes na maioria dos aparelhos eletrônicos. A técnica, conhecida como bio-hidrometalurgia, foi desenvolvida por um grupo de pesquisadores brasileiros e usa, em uma de suas etapas, bactérias inofensivas aos seres humanos para extrair o metal existente nessas placas. “Já se usam bactérias para bioprocessamento de metais em minas ou para a

recuperação de rejeitos metálicos em barragens. A nossa ideia foi usar o método para recuperar cobre a partir da sucata”, diz o engenheiro metalurgista Jorge Tenório, professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP). A título de comparação, Tenório diz que o minério de cobre extraído pela Vale em suas minas tem uma concentração de menos de 1% de cobre, enquanto uma placa de circuito impresso de computador contém cerca de 30% de cobre (ver Pesquisa Fapesp nº 200, de outubro de 2012). Atualmente já é possível reaproveitar o cobre e outros metais presentes nas placas de circuito impresso por meio de processos químicos, que usam ácidos para fazer a extração, ou pelo processo pirometalúrgico, no qual a recuperação dos metais é feita a altas temperaturas, resultando na emissão de gases poluentes. “A vantagem da nossa técnica é ser mais barata do que as convencionais e não agredir o meio ambiente”, diz Luciana Yamane, aluna que fez o doutorado no grupo de Tenório com bolsa da FAPESP. Sua tese, Recuperação de metais de pla-

cas de circuito impresso de computadores obsoletos através de processo bio-hidrometalúrgico, ganhou menção honrosa no Prêmio Dow-USP de Inovação em Sustentabilidade 2012. Nesse processo, explica Luciana, o primeiro passo é o processamento mecânico das placas de circuito. Elas são picotadas e trituradas em um moinho até virarem grãos com até 2 milímetros de diâmetro. Em seguida, usa-se um separador magnético para a retirada das partes contendo ferro e níquel. “Trabalhamos somente com o resíduo não magnético, que é o que contém cobre”, diz Luciana. O próximo passo é adicionar os grãos da placa em uma solução aquosa com ferro em sua forma solúvel (íon ferroso ou Fe+2). Quando a bactéria Acidithiobacillus ferrooxidans linhagem LR é inoculada nesse meio, ela oxida o íon ferroso, transformando-o em íon férrico (Fe+3). Este, por fim, oxida o cobre, que é liberado dos grânulos da placa e é dissolvido na solução – um processo conhecido como biolixiviação. A etapa final – a separação do cobre solubilizado – é executada por meio de processos já estabelecidos. pESQUISA FAPESP 214  z  77


O grande desafio de Luciana foi condicionar os microrganismos, cujo hábitat natural são rochas contendo ferro, a sobreviver e se reproduzir no meio líquido com as placas trituradas de circuito. “Sempre que adicionávamos esses pedaços triturados no meio de cultura das bactérias, elas morriam. Certos componentes das placas, como fibra de vidro, resinas e materiais cerâmicos, são tóxicos para elas”, diz Luciana. A saída foi fazer uma lenta adaptação do microrganismo às placas. “Começamos misturando 1,25 grama de placa para cada litro de solução contendo as bactérias. Selecionamos os microrganismos resistentes, aumentamos sua população e elevamos a concentração. Repetimos esse processo várias vezes até que, no final do estágio adaptativo, conseguimos misturar 28 gramas de placa por litro. Quanto maior a concentração, mais produtivo é o processo de recuperação do cobre. Isso significa que mais placas podem ser processadas de uma só vez”, diz Luciana. O ineditismo do processo levou os pesquisadores a entrar com um pedido de patente no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). Segundo o professor Jorge Tenório, o processo bio-hidrometalúrgico permite extrair 99% do cobre presente no pó triturado das placas de circuito impresso. Curiosamente, o objetivo inicial da pesquisa não era simplesmente recuperar o cobre dos circuitos impressos. Sua intenção era criar uma sequência de etapas que, ao final, deixasse somente resíduos de ouro impregnados nos grãos triturados das placas. Esse metal também está presente nas placas de circuito impresso numa baixa concentração de 0,01%. Po-

Cobre recuperado Processo de retirada do metal presente em sucata de equipamentos eletrônicos

1 trituração das placas

2 separação magnética

As placas de circuito impresso de

Os grãos das placas, com até

computador e de outros equipamentos

2 milímetros, passam por um separador

são picotadas e, depois, trituradas em

magnético para retirada das partes

um moinho

contendo ferro e níquel

Fonte  Luciana Yamane e Jorge Tenório/USP

de parecer um teor insignificante, mas 1 tonelada de placa contém 100 gramas de ouro. “Ocorre que a cianetação, o método para extração do ouro, não pode acontecer na presença de outros metais, principalmente o cobre. Daí a importância de recuperar primeiro o cobre para, depois, extrair o ouro das placas”, diz Luciana. Empresa mineradora

A recuperação de metais presentes em rejeitos rochosos com a mesma bactéria A. ferrooxidans, entre eles ouro, cobre, níquel e cobalto, foi a motivação que levou um grupo de pesquisadores egressos do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara, do Centro de

Tecnologia Mineral (Cetem) e do Instituto de Química da USP a montar em março deste ano a Itatijuca Biotech, uma start up instalada na incubadora Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia (Cietec), na Cidade Universitária em São Paulo. “Usamos a biolixiviação para fazer a recuperação de metais em minérios, diminuindo o desperdício e o passivo ambiental das mineradoras”, afirma o químico Érico Perrella, um dos sócios da Itatijuca. “Oferecemos um serviço inédito no país.” Segundo ele, não existe nenhuma empresa no Brasil que realize processamento mineral e recupere metais em rejeitos de mineração empregando biolixiviação, técnica já usada comercialmente em outros países, como Chile e África do Sul. Devido ao grande conhecimento sobre a bactéria A. ferrooxidans, a professora Denise Bevilaqua, da Unesp de Araraquara, é uma das consultoras do negócio. A bactéria se alimenta de substâncias presentes nas rochas onde o metal está impregnado facilitando sua recuperação. Segundo Perrella, a biolixiviação é uma alternativa biotecnológica aos mé-

Matérias-primas para recuperação de cobre: placas de computador e rochas como calcopirita e malaquita 78  z  dezembro DE 2013


2

H2O + resíduos + cobre + bactéria + íon ferroso fe+2

OXIDA

1

OXIDA

Íon ferroso (Fe+2)

Íon férrico (Fe+3)

Cobre impregnado Resíduos

Grão da placa triturada

Bactéria Acidithiobacillus ferrooxidans-LR

3

Cobre

Cobre solúvel

3 solução de Ferrooxidans

infográfico ana paula campos

O material não magnético remanescente,

O microrganismo oxida o ferro contido

4 solubilização do cobre

5 Separação por precipitação

rico em cobre, é misturado a uma solução

na solução, gerando íon férrico. Este,

é recuperado por um processo

aquosa contendo a bactéria Acidithiobacillus

por sua vez, oxida o cobre impregnado

químico de separação por

ferrooxidans-LR e ferro solúvel (íon ferroso)

nos grãos da placa, deixando-o solúvel

precipitação em tonéis industriais

todos convencionais de processamento mineral, que liberam no ambiente grandes quantidades de dióxido de carbono (CO2), dióxido de enxofre e vários materiais tóxicos, entre eles arsênio. Além da vantagem ambiental, a nova tecnologia possibilita o processamento de minérios de baixos teores, os quais não são viáveis economicamente para extração por métodos tradicionais. Durante a biolixiviação, a pilha de minério é continuamente “irrigada” com uma solução contendo a bactéria que solubiliza os metais presentes nela. Esse processo ocorre de maneira contínua e quando se esgotam os metais passíveis de biolixiviação é possível fazer a recuperação do ouro que estava ocluso.

Tratamento biotecnológico com outra bactéria para gerar um subproduto inócuo para o ambiente e com valor comercial

Ouro acessível

Outro serviço oferecido pela Itatijuca é o tratamento de cianeto que reduz o impacto na exploração de ouro. A cianetação é uma técnica executada em minérios e rejeitos rochosos para tornar o ouro residual acessível. “Imagine uma pilha de minério contendo ouro e cobre. Com a biolixiviação, retiramos o cobre. Em seguida, com a cianetação, é feita a recuperação do ouro. Mas aquela pilha de rejeitos fica com alto teor de cianeto, que é uma substância altamente tóxica – 1,25 grama dela é capaz de matar uma pessoa. Então estamos desenvolvendo um tratamento biotecnológico com outra bactéria, que preferimos não revelar o nome, para neutralizar o cianeto e, ao mesmo tempo, gerar a partir dos

rejeitos um subproduto ambientalmente inócuo e com valor comercial. Isso é o que chamamos tratamento de cianeto”, explica Fábio Elias, sócio da Itatijuca. O processo de neutralização do cianeto dará origem a um pedido de patente. O primeiro contrato da empresa está sendo fechado e prevê a recuperação de ouro de uma antiga mina localizada em Minas Gerais, que possui uma pilha de rejeitos, em forma de pirâmide, com 200 metros de extensão por cerca de 75 de largura e 6 de altura. “Vamos usar a biolixiviação e outros processos químicos, como a cianetação, para recuperar

Em seguida, o cobre solubilizado

os metais da pilha, que se encontra a céu aberto”, explica Elias. De acordo com ele, a empresa prevê obter, a partir de 2016, um lucro de R$ 29 milhões ao ano, caso determinadas condições sejam atingidas. “O negócio atingirá essa lucratividade se considerarmos a recuperação de metais em uma mina com 350 mil toneladas de rejeitos, contendo 4% de cobre e 2 partes por milhão (ppm) de ouro. Se tudo correr bem, os pesquisadores da Itatijuca têm interesse em entrar em outro ramo, a biolixiviação de fosfato, técnica bem parecida com a dos minérios metálicos. A principal diferença é que, nesse caso, ela é usada para a produção comercial de fertilizantes. “O Brasil importa atualmente uma grande quantidade de minérios fosfatados para uso na agricultura, e essa técnica ajudaria a melhorar a produção brasileira, que é baixa”, diz Perrella. “Estamos fazendo o levantamento inicial para criar um processo comercial usando biolixiviação com fungos, e não bactérias.” O principal desafio da Itatijuca será o custo. Como o fosfato tem baixo valor de mercado, para a técnica ser economicamente viável é preciso processar grandes volumes em curtos períodos de tempo. n Yuri Vasconcelos

Projeto Recuperação de ouro de placas de circuito impresso de computadores obsoletos através de processo bio-hidrometalúrgico (nº 2010/51009-0); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Coord. Jorge Soares Tenório/USP; Investimento R$ 19.550,00 (FAPESP).

pESQUISA FAPESP 214  z  79


humanidades   Sociologia y

Inovação para os cientistas

Mudanças institucionais recentes fortaleceram mais a ciência do que a capacidade tecnológica do país Mariluce Moura

A

difusão do discurso da inovação no Brasil nos anos 1990 e o ordenamento jurídico-institucional destinado a transformá-la num eixo central da política nacional de ciência e tecnologia que tomou corpo no alvorecer do século XXI são menos fruto da iniciativa do Estado combinada a demandas do setor produtivo e muito mais o resultado do esforço direto dos cientistas brasileiros nesse sentido. Seu trabalho pela inclusão da inovação na política de ciência e tecnologia do país serviu ao fim e ao cabo para legitimar socialmente a própria ciência – suas instituições, discursos e práticas – e fortalecê-la. Adotar essa visão implica admitir uma força política de dimensões insuspeitadas dos cientistas brasileiros enquanto grupo organizado da sociedade civil que, aliás, viria sendo exercida desde o começo da institucionalização da ciência no país, ainda na primeira metade do século XX. E mais: implica perceber que esse poder tem rostos definidos. Personaliza-se nas lideranças científicas que a cada tempo se fazem os interlocutores fundamentais da burocracia do Estado no traçado dos percursos da institucionalização e do fortalecimento da atividade científica. Tão provocativas proposições aparecem em Veredas da mudança na ciência brasileira: dis-

80  z  dezembro DE 2013

curso, institucionalização e práticas no cenário contemporâneo, de Maria Caramez Carlotto, 30 anos, coeditado pela Editora 34, Associação Filosófica Sciencia Studia e FAPESP. Recém-lançado, o livro se originou da dissertação de mestrado da jovem autora no campo da sociologia da ciência, feito entre 2006 e 2008 na Universidade de São Paulo (USP), e surpreende não só pelas conclusões corajosas a que chega quanto pela densidade do estudo, sustentado simultaneamente por consistente reflexão teórica e por uma pesquisa empírica de abrangência e profundidade pouco comuns nesse estágio de formação. O lugar privilegiado a partir do qual Maria Carlotto decidiu esmiuçar a mudança institucional da ciência brasileira pós-anos 1980 foi o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), com implantação iniciada em 1986 e inaugurado em Campinas em 1997. Para cumprir esse intento, tratou de entrevistar uma dúzia de lideranças do laboratório, entre as quais têm presença destacada integrantes do que a autora chama de “o grupo da Unicamp”, seguindo denominação comum no próprio meio científico. Às entrevistas, ela somou o envio de um extenso questionário aos 2.480 pesquisadores de diferentes instituições nacionais de pesquisa que, entre 1997 e março de 2008, trabalharam em


fotos  Divulgação CNPEM

1

2

1 Única fonte de luz síncrotron do país, o LNLS, em Campinas, atrai pesquisadores brasileiros e estrangeiros interessados em experimentos ligados às estruturas atômicas de materiais 2 Colocação do porta-amostras para experimento remoto a ser realizado na linha SAXS1, de espalhamento de raios X a baixos ângulos. Nesse tipo de experimento pode-se utilizar o equipamento a distância e realizar análises via internet 3 Porta-amostras para execução de cristalografia de macromoléculas na linha de luz MX2, do LNLS

3

pesquisadores Brasileiros em tempo integral por setor Ano

Governo

Ensino superior

Empresas

Privada sem fins lucrativos

Total

2000

4.740

77.465

44.183

414

125.968

2001

4.652

83.779

43.420

583

131.392

2002

4.652

90.554

42.674

749

137.293

2003

5.095

103.074

41.947

872

149.431

2004

5.625

114.154

45.762

991

164.672

2005

5.769

123.195

49.998

935

177.926

2006

5.910

132.183

47.348

876

184.240

2007

6.200

141.994

45.242

923

192.081 200.364

2008

6.490

151.799

43.585

968

2009

7080

169.144

42.298

991

216.672

2010

7.667

188.003

41.317

1.013

234.797

Fonte Indicadores MCTI / elaboração de Maria Caramez Carlotto

pESQUISA FAPESP 214  z  81


“vem implementando uma nova política de ciência e tecnologia Evolução do depósito de patentes no INPI segundo tipos e origem do depositante (1998-2011) marcada por uma forte ênfase no incentivo à transformação do co35.000 31.765 nhecimento científico em inova30.000 28.141 ção tecnológica como estratégia 26.841 25.956 24.915 para aumentar a competitividade 25.000 23.179 21.847 20.783 21.618 20.230 das empresas brasileiras e impul20.422 20.093 19.640 20.000 sionar o crescimento econômico 14.970 15.000 do país” (p. 59). A ideia era seguir o exemplo das 10.000 nações “bem-sucedidas” em rela5.000 ção às suas políticas de inovação e 0 comercialização do conhecimento 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 científico, “especialmente daquele produzido no regime disciplinar n Residentes n Não residentes — Total Fonte Indicadores MCTI / elaboração de Maria Caramez Carlotto por universidades e laboratórios governamentais e financiado com recursos públicos” (p. 60). Esse Campinas com a fonte de luz do laboratório Intidiagnóstico, segundo a autora, é tulado “Ciência e tecnologia no Brasil: os usuários explicitado na abertura do Livro do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron”, o branco de ciência, tecnologia e inoquestionário foi aplicado nos meses de março e vação, síntese programática da noabril de 2008 em parceria com o próprio LNLS. va política estruturada com base Maria recebeu de volta as respostas de 211 pesnos debates da Segunda Conferênquisadores, ou seja, obteve um retorno de 8,5%, Conseguiu-se cia Nacional de Ciência, Tecnolotaxa considerada razoável nesse tipo de trabalho. construir um gia e Inovação, de 2001. Com esses depoimentos, conseguiu construir um Na busca por contextualizar retrato sem precedentes dessa elite de pesquisaretrato sem as decisões do governo brasileidores brasileiros. Somado isso às informações das ro, Maria Carlotto passa pelo eslideranças sobre como se foi conseguindo, passo precedentes forço dos países centrais para sua passo, formular e construir o LNLS, assegurar perar nos anos 1980 a separação apoios, vencer resistências, afastar opositores de uma elite mais ou menos rígida entre proou mesmo aliados indesejáveis em alguma esfebrasileira de cesso de produção e processo de ra do poder político, tem-se um precioso raio-x comercialização do conhecimento sociológico do modus operandi de um microcospesquisadores científico. Um dos pilares centrais mo dessa instituição que é a ciência brasileira, das políticas estatais de ciência do em sua fronteira mais avançada. que usa o LNLS pós-guerra, essa separação tem em Alternados esses resultados empíricos com a suas bases conceituais o famoso visão histórica dos movimentos-chave do prorelatório Science, the endless froncesso de institucionalização da ciência no país, tier, elaborado por Vannevar Bush, e explicitadas as matrizes internacionais das indo Massachusetts Institute of Technology (MIT) flexões nas políticas nacionais de ciência e tecnoe apresentado ao presidente Franklin Roosevelt logia, Maria Carlotto ilumina a força de um gruem 1945. Maria Carlotto lembra que o relatório po social certamente despercebida nas análises “tentava justificar por que o governo dos Estados mais convencionais da sociedade civil brasileira. Unidos deveria manter um alto nível de investimento público em pesquisa científica, terminado Importação e naturalização o esforço de guerra”. E a maior razão, segundo Maria Caramez Carlotto apresenta uma síntese Bush, era que “a ciência – antes mesmo do que do contexto internacional da elaboração do cona tecnologia – seria essencial para que um país ceito de inovação nas políticas estatais de ciência pudesse gerar inovações tecnológicas e, com ise tecnologia antes de detalhar a nova política braso, competir internacionalmente no plano ecosileira para o setor que se estabelece no governo nômico”, prossegue ela (p. 63). Fernando Henrique Cardoso. Disposta a mostrar O Brasil bebeu sofregamente dessa fonte nos como os novos discursos sobre a ciência transianos 1950. E seguiu de perto a política que o relatam “da promoção do conhecimento científico tório de Bush inspirou, posteriormente chamada ao incentivo à inovação tecnológica”, ela afirma de modelo linear de inovação, e que pressupuna introdução do segundo capítulo, baseada na nha os investimentos do Estado concentrados análise de documentos, leis e programas, que o na “pesquisa básica” e na “formação da mão de governo brasileiro, sobretudo a partir de 2001, A força dos estrangeiros nas patentes

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“O novo paradigma do desenvolvimento e suas instituições”, publicaDistribuição das patentes depositadas por universidades brasileiras no INPI (1990-2004) do na revista Desenvolvimento em Debate, organizada por Ana Célia 250 Castro e editada pelo BNDES: “(...) 213 209 hoje em dia, as forças produtivas 197 200 não se medem em toneladas de aço nem em quilowatts, como diriam 150 Henry Ford ou Lênin, mas na capacidade inovadora de gerar valor 100 84 82 agregado através do conhecimento 60 52 48 e da informação. Esse modelo de 50 35 35 30 30 25 21 crescimento econômico baseado no 19 conhecimento é o mesmo em toda 0 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 parte, como foi a industrialização no paradigma do desenvolvimento” Fonte Indicadores MCTI / elaboração de Maria Caramez Carlotto (p. 71, citação da p. 398 do artigo). E observa que a dimensão mais simobra” científica, enquanto o setor privado de- ples e mais operacional dessa nova economia é “o veria se responsabilizar pela comercialização reconhecimento de que o crescimento econômido conhecimento produzido, conforme Maria co explica-se, antes de tudo, pela eficiência dos Carlotto observa. Se a segunda parte não saiu processos nacionais de inovação, de modo que conforme o figurino, culpe-se as especificidades os setores mais dinâmicos da economia seriam aqueles ligados às novas tecnologias, particulardo capitalismo brasileiro. Mas qual o acontecimento na cena internacio- mente a bio e a nanotecnologia” (p. 71). Maria Carlotto passa em revista a construnal, no começo da década de 1980, que tanto irá afetar a política brasileira de ciência e tecnologia ção dos sistemas nacionais de inovação (SNIs) nas duas décadas seguintes? Trata-se da percep- e seus pressupostos teóricos. Aborda o trabalho ção de que está emergindo uma nova economia de agências como a OCDE (Organização para ou a Economia do Conhecimento. E a pesquisa- a Cooperação e o Desenvolvimento Econômidora vale-se de vários autores para abordar tan- co) na promoção da ciência enquanto atividade to uma dimensão teórica quanto um lado mais econômica. Comenta que a inovação, conforme prático dessa economia que, digamos, incorpora relatório de 2005 da OCDE, “é a implementao conhecimento científico na própria estrutura ção de um produto (bem ou serviço) novo ou Linha de luz XDS, para pesquisa orgânica do capital e reconhece os impactos da significativamente melhorado, ou um processo, por difração ou um novo método de marketing, ou um novo inovação sobre o crescimento econômico. de raios X e Ela recorre, por exemplo, ao sociólogo espa- método organizacional nas práticas de negóespectroscopia, nhol Manuel Castells, num artigo já de 2002, cios, na organização do local de trabalho ou nas instalada no LNLS relações externas (da empresa). Nesse sentido, as atividades inovadoras são etapas científicas, tecnológicas, organizacionais, financeiras e comerciais que conduzem, ou visam a conduzir, à implementação de inovações” (p. 74-75). Nessa forma de definir a inovação, segundo a autora, há “uma dupla aproximação entre economia e ciência. Por um lado, o progresso tecnocientífico ‘invade’ a economia na medida em que a mudança tecnológica transforma-se no principal fator explicativo do crescimento econômico, o que torna a inovação objeto privilegiado da ação estatal. Por outro, a economia ‘invade’ a atividade científica e tecnológica quando se torna base para a criação de um instrumental capaz de medir o desempenho da inovação em termos de eficiência, possibilitando a sua gestão em termos econômicos” (p. 75). Cumprido esse percurso, a pesquisadora detalha “a emergência da inovação como foco da política científica brasileira”. Segundo ela, “o processo de reconfiguração da política brasileira

Divulgação CNPEM

As universidades inovam mais

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Cultura de células tumorais (acima) e microinjeção de vírus no Laboratório de Modificação do Genoma do LNBio (ao lado): novas pesquisas conduzidas no LNLS

Os cientistas engajados

A partir desse ponto, o que se oferece ao leitor é uma história fascinante de como o LNLS atualiza e repõe padrões tradicionais de institucionalização da ciência nacional. Da Escola de Minas de Ouro Preto, institutos agronômicos e institutos de pesquisa bacteriológica e sanitária do final do século XIX, passando pela USP em 1934 e pela Unicamp em 1965, até praticamente o presente, o que a autora de Veredas da mudança na ciência brasileira vai flagrar como um dos padrões predominantes de institucionalização da ciência no Brasil é “a negociação direta com o Estado, feita por homens de prestígio e boas relações pessoais, chamados, por vezes, de heróis institucionalizadores da ciência” (p. 142). É assim que surgem nas páginas seguintes, ainda nos anos 1950, os físicos José Leite Lopes e Cesar Lattes em meio às negociações com o almirante Álvaro Alberto de Santiago Dantas, presidente do recém-criado CNPq, para a construção

fotos   Divulgação CNPEM

de ciência e tecnologia, a partir de 2001, incorporou, praticamente sem mediação, o ‘modelo’ de política de inovação” dos países centrais. “Nesse sentido, a Nova Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação confere um caráter prioritário à consolidação do sistema nacional de inovação, ao aumento da eficiência da inovação e à reforma do regime disciplinar/estatal de produção e reprodução do conhecimento, com especial ênfase ao incentivo à propriedade intelectual” (p. 97). Essa política é uma construção do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, desde que o embaixador Ronaldo Sardenberg assume o Ministério da Ciência e Tecnologia (1999 a 2002). E o primeiro e fundamental instrumento de tal política é o projeto “Diretrizes estratégicas para a ciência, a tecnologia e a inovação”, não por acaso posto sob a direção do físico Cylon Gonçalves da Silva, professor da Unicamp e coordenador da implantação do LNLS entre 1986 e 1997, (ver Pesquisa FAPESP, edição 129). A propósito, Cylon observou em entrevista concedida a Maria Carlotto que até onde sabe a palavra inovação apareceu pela primeira vez num documento oficial do governo federal no Livro verde de ciência e tecnologia, de 2001, que orientou o conteúdo das discussões da Segunda Conferência, ambos, registre-se, coordenados por ele (p. 97). Mas é a Lei da Inovação “a peça mais importante da reforma jurídico-institucional do sistema científico nacional em curso no país”. Proposta na Segunda Conferência e depois colocada em consulta pública pelo MCT, a lei só seria aprovada em dezembro de 2004, no segundo ano do governo de Luís Inácio Lula da Silva. “É possível dizer, portanto, que o ‘discurso da inovação’ é um dos pontos de continuidade entre os dois governos – formados por partidos cujos ideários são não só distintos mas, em muitos pontos, opostos –, o que torna a compreensão da dinâmica da sua

produção social um problema ainda mais interessante”, comenta a autora (p. 108). A reflexão da pesquisadora segue sustentada pelos dados de investimento de P&D no país e pelo consumo de tecnologia, pelas informações sobre inovação nas empresas brasileiras, até a conclusão de que “não existe uma demanda consistente, por parte das empresas nacionais, para que a ciência brasileira se envolva em processos de comercialização de conhecimento”. Surge daí a pergunta inevitável: “Como explicar, então, a emergência da nova política de ciência e tecnologia que tem, como foco central, o incentivo à inovação tecnológica? Em outras palavras, a quem interessa a reforma institucional da ciência atualmente em curso no país?” (p. 127). Depois do exame de novos dados, inclusive a constatação de que entre 2000 e 2010 “o número de pesquisadores trabalhando em tempo integral em empresas, ao contrário do esperado, decaiu” de 44.183 para 41.317 pessoas, enquanto no ensino superior, no mesmo período, esse número passou de 77.465 para 188 mil, Maria Carlotto esboça um começo de resposta: “Parece evidente (...) que o regime estatal/disciplinar – representado, em larga escala, pelas universidades de pesquisa do país – foi o grande favorecido pelo processo de reorientação da política científica nacional no sentido da valorização da inovação” (p. 129). O que fortalece a hipótese central de seu trabalho, ou seja, que no Brasil “o discurso da inovação e as alterações políticas a ele correspondentes podem ser mais bem compreendidos se vistos como parte da estratégia de cientistas engajados na institucionalização do regime disciplinar/estatal brasileiro para legitimar o investimento público em ciência no contexto pós-ditadura” (p. 129).


de um Sincrocíclotron, e, três décadas depois, o físico Rogério Cerqueira Leite discutindo com o ministro da Ciência e Tecnologia, Renato Archer, a criação do Síncrotron. “O projeto de construção do ‘grande Sincrocíclotron’ exemplifica bem como funcionava (...) a negociação da institucionalização da ciência (...) Pelo padrão dominante, cientistas organizados em pequenos grupos e dotados de grande prestígio social negociavam diretamente com a burocracia do Estado o apoio aos grandes empreendimentos científicos. O sucesso dessa ação dependia, por sua vez, da sensibilidade de membros da burocracia científica e de seu poder de intervenção quase pessoal junto aos que decidiam as prioridades orçamentárias do Estado” (p. 165). Vale a pena ler um relato de Cerqueira Leite, envolvido desde 1985 nas negociações do LNLS, para refletir sobre o quanto esse padrão persistiu no país: “A ideia de construção do laboratório Síncrotron começou no Rio de Janeiro com o professor [Roberto] Lobo, que montou um grupo (...) que começou a conduzir o projeto. Mas logo houve uma mudança de governo e, aparentemente, o projeto estava com problemas. Foi nesse contexto que o Cylon, que era membro do grupo, me procurou e pediu para que eu ajudasse. Eu convidei os membros do conselho – o Lobo, o [José] Pelúcio, enfim, todos os que estavam envolvidos no projeto – para fazermos uma primeira reunião. Em seguida, houve uma reunião um pouco mais formal em Campinas e ficou claro que era preciso decidir o lugar [onde o laboratório seria construído]. Eu não fazia parte do Conselho, mas estava discutindo com eles e ficou mais ou menos claro que o melhor lugar seria São Paulo, não a

USP, mas São Carlos ou Campinas, por razões de natureza técnica, não políticas em um primeiro momento (...). Tempo depois, quando o Renato Archer assumiu, eu fui conversar com ele. Nessa conversa ficou deCientistas cidido que ele faria o favor de dar com grande um ‘presente’ para o estado de São Paulo e a gente decidiu, então, que prestígio social o laboratório seria construído aqui em Campinas. Porém, o ministro não negociavam com queria o Roberto Lobo [na direção] porque não gostava dele. Eu não sei a burocracia do por que, mas o Archer não gostava Estado o apoio dele pessoalmente. Eu até levei o Lobo até o MCT para que eles conaos grandes versassem e desfizessem algum mal-entendido (...) mas eu senti que haempreendimentos via uma certa restrição ao nome do Lobo, talvez porque ele fosse parte científicos do antigo governo e estivesse ligado ao pessoal do CNPq e havia algumas restrições a esse pessoal” (p. 177-178). Por fim, vale destacar alguns dados a respeito dos pesquisadores externos do LNLS, ligados a instituições nacionais, que responderam ao questionário de Maria Carlotto, dividido em cinco partes (dados pessoais, trajetória acadêmica, trajetória profissional, pesquisa em curso do respondente, padrões de avaliação da ciência): 82% deles atuavam em universidades públicas, 11% em instituições estatais de pesquisa, 1,4% em empresas e 1,4% em universidades ou faculdades privadas. Em relação à graduação, 33% dos pesquisadoVeredas da mudança na ciência brasileira res eram formados em física, 28% em química, Maria Caramez 19% em engenharias, 9% em ciências biológiCarlotto cas, 4% em ciências agrárias e 4% em farmácia Editora 34 e bioquímica, restando 3% para “outros cursos 384 páginas, R$ 57,00 de graduação”. Em termos de qualificação, com 48,7% dos pesquisadores em período de formação e 51,3% profissonalizados, torna-se relevante a informação de que 28,9% do total tinham concluído o doutorado e 32,2% o pós-doutorado. “Comparando esse percentual com os dados do Censo Escolar de 2003”, segundo o qual 21% dos docentes de ensino superior no Brasil tinham doutorado completo, “fica explícito que os pesquisadores do LNLS compõem a elite do ensino superior brasileiro, particularmente nas áreas de física, química, engenharia e ciências biológicas. Considerando ainda que a nano e a biotecnologia são áreas prioritárias para o governo brasileiro, trata-se de uma elite ‘estratégica’ para a política nacional de ciência e inovação”, comenta a autora (p. 246). Por fim, essa elite é jovem (cerca de 70% tinham entre 30 e 50 anos de idade) e predominantemente masculina (66% são homens). n pESQUISA FAPESP 214  z  85


arquitetura y

Fim das fronteiras Novas gerações resgatam engajamento dos anos 1970 e aproximam cada vez mais a arte e o urbanismo Ana Weiss

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Imagem  Y Arquitetura

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Poema enterrado de Ferreira Gullar foi uma das paixões do artista plástico Hélio Oiticica, referência internacional no neoconcretismo brasileiro. Encantado com a ideia do poeta de propor um objeto no lugar de um texto para a poesia – cubos concêntricos como matrioscas que deveriam ser enterrados –, Oiticica correu para achar um lugar para o enterro da peça e o endereço acabou sendo a parte do terreno de uma construção de família, lugar destinado a guardar a caixa-d´água. O Poema enterrado, de 1960, acabou engolido pela água. Hoje a obra, um símbolo do movimento neoconcreto, pertence ao acervo público do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), onde, porém, nunca pôde ser construído, pois não há área sob a marquise do Ibirapuera que se possa escavar para enterrar o poema de Gullar. A história ilustra uma pergunta cada vez mais importante para a produção, o estudo e a exibição das artes visuais: qual é o lugar da obra de arte no mundo contemporâneo? O problema para o poema de Gullar é citado em uma das propostas que integraram o 33º Panorama da Arte Brasileira, realizado

no próprio MAM de São Paulo com um tema urbano. A mostra, classicamente ocupada por artistas, dessa vez reuniu um elenco importante de arquitetos e urbanistas que criaram propostas para uma recolocação do museu na cidade. O Y Arquitetura redesenhou a sede da instituição fundada em 1948 para que pudesse ser acessada por vias bem equipadas pelo transporte público e espaço para abrigar os 5.400 itens de seu acervo, hoje espalhados por outras reservas técnicas por falta de espaço. Incluiu na proposta a realização do Poema enterrado, que até hoje não foi possível pelo fato de a marquise que abriga a instituição ser tombada. O arquiteto Vinicius Andrade, professor da Escola da Cidade, também participou pela primeira vez da exposição. De acordo com ele, as confluências entre urbanismo e arte caminham cada vez mais próximas. “Apesar da formação eclética excelente oferecida pela FAU-USP [Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo], pela qual me formei, noto que meus alunos hoje transitam com muito mais naturalidade entre as diferentes esferas de expressão. Eles pertencem a uma geração transdisciplinar por natureza,

Imagem do escritório Y Arquitetura que propõe uma nova sede para o MAM. A ideia do escritório para o museu é um edifício conectado com a Linha 5 do Metrô. Estruturas móveis, cheias de gás hélio, ficariam responsáveis pelo transporte aéreo de obras de arte

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Casa abandonada cortada ao meio por Gordon Matta-Clark. O registro dessa intervenção resultou na série Splitting, de 1974

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coisa que não éramos, mesmo entendendo que este é um caminho”, define o autor de projetos marcados pela interação harmônica entre a ocupação urbana e a paisagem. Andrade participa com os colegas de seu escritório, o Andrade Morettin, de uma fase de mudança real da feição da cidade a partir de projetos de função artística. O Andrade Morettin venceu o concurso para projeto da sede paulista de uma das instituições de arte mais importantes do país, o Instituto Moreira Salles. O edifício, previsto para ficar pronto em 2015, integra a malha urbana da avenida Paulista, estimulando o fluxo de pessoas para dentro do espaço expositivo. O piso, por exemplo, será composto pelo mesmo mosaico português desenhado pela arquiteta Rosa Kliass para o projeto da via paulistana na década de 1970. Não longe dali, no centro da cidade, a praça das Artes abriga salas de ensaio e apresentações em um quarteirão igualmente aberto para a cidade. O projeto

do escritório Brasil Arquitetura revigorou uma parte da cidade subutilizada e perigosa com uma construção escultural de influência modernista que tem muitas menções à arquitetura de outra grande defensora da apropriação da arte pela arquitetura e vice-versa, a italiana Lina Bo Bardi, criadora do edifício do Museu de Arte Moderna de São Paulo, o Masp. Vinicius Andrade conta que em todas as frentes de atuação do escritório – incluindo a participação no 33º Panorama – se faz presente a herança do trabalho do norte-americano Gordon Matta-Clark. Filho do pintor surrealista chileno Roberto Matta, Matta-Clark é, ao lado de Robert Smithson e do próprio Oiticica, a linha de frente de uma vanguarda que nos anos 1970 elegeu a cidade como matéria-prima de sua arte – essa tendência que reaparece agora. Uma das ações mais conhecidas do ex-estudante de arquitetura consistia na criação de rasgos e cortes nas estruturas de edifícios e casas. Essas intervenções, que chamavam a atenção para o sucateamento urbano gerado pelas explosões imobiliárias, ficaram conhecidas como arquitetura negativa. A partir de então, registros desse processo passaram a viajar o mundo como representantes de uma arte combativa. Em 1971, Gordon Matta-Clark liderou o boicote contra a Bienal de São Paulo, em nome das vítimas da ditadura militar na América Latina, atrasando em alguns anos o contato com sua arquitetura negativa por aqui. A ideia de Vinicius e seu sócio, Marcelo Morettin, para a mostra do MAM – que pode ser conhecida no site do museu, www.mam.org.br –, retoma e atualiza esse direcionamento. Os arquitetos propõem com um desenho bem simples que o prédio seja abrigado pelo subsolo – enterrado, literalmente –, ficando a iluminação a cargo de um grande rasgo no solo sob o qual a instituição passaria a funcionar no Parque do Ibirapuera, seu atual endereço. “A arte contemporânea passou por um período muito introspectivo nos anos 1990, respondendo a uma falta de clareza sobre o novo contexto ideológico mundial após o fim da lógica da Guerra Fria e a paralisação da revolução sexual com a epidemia da Aids”, reflete Felipe Chaimovich, curador do museu e pós-doutorado em filosofia pela USP. “No início dos anos 2000, porém, houve uma mudança de posição


do engajamento dos artistas, que passaram a propor ações micropolíticas, sem o mesmo espectro ideológico anterior e mais diluídas em vivências cotidianas. Foi nesse contexto que a cidade e a vida nas metrópoles contemporâneas se tornaram matéria crescentemente utilizada pela produção de jovens artistas”, acredita ele, autor dos ensaios “Objects or reflexion: brazilian cultural situation”, inserido no livro On cultural influence (Nova York: Apexart, 2006), e “Greenberg after Oiticica”, em The state of art criticism (Nova York: Routledge, 2007).

fotos 1 SuperStock / glowimages 2 spbr sobre foto de nelson kon  3 nelson kon

Base de investigação

Foi da curadora Lisette Lagnado, também doutora em filosofia pela USP, com um trabalho sobre o Programa Ambiental de Hélio Oiticica, a ideia de trazer urbanistas para participar da exposição, ironicamente criada para formar acervo para um museu sem espaço para manter o acervo que já tem. “Grandes exposicões se destacam hoje por tomar sua cidade-sede como base de investigação para reunir os artistas que serão convidados”, diz ela, que em 2010 coordenou uma mostra no Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía em Madri, mostrando como o arquiteto-chave da modernidade europeia, Le Courbusier, absorveu em seu trabalho características da geografia física e humana da América Latina. Lisette é orientadora do trabalho de mestrado de Ana Maria Maia sobre a atuação de Flavio de Carvalho como um arquiteto que pensou a cidade. A dissertação foi apresentada para uma banca de artes na Faculdade Santa Marcelina no ano passado e este ano sua autora integrou a equipe de curadoria que reuniu os projetos de alguns dos mais atuantes escritórios de arquitetura do Brasil.

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Levar a arte para as cidades tem se tornado uma tradição, se não obrigatória, altamente esperada pelas grandes exposições nos grandes centros. No Brasil, São Paulo e Rio de Janeiro chegam a ter exibições de arte contemporânea de primeira linha que chegam antes nas ruas que nas galerias. Caso da célebre PhotoEspaña, que, na sua primeira realização em solo nacional, imprimiu pelas ruas da cidade fotografias que a jovem artista Raquel Brust fez de moradores do centro da capital paulista. Os curadores e arquitetos concordam que o contato entre as áreas é uma tendência visível tanto entre novos artistas como em estudantes e parece se tornar mais importante a cada ano e gerando impactos reais na sociedade. “Fico espantado com a quantidade de referências de linguagens como a dança, o teatro, a poesia que os alunos trazem para as discussões sobre arquitetura”, diz Vinicius Andrade. Para Felipe Chaimovich, a troca de informações entre áreas tem promovido conquistas e avanços antes impensáveis. “Os movimentos artísticos coletivos de hortas urbanas, por exemplo, estão criando tecnologias de cultivo difundidas por redes sociais, modificando a relação do cidadão com os espaços ociosos nas cidades, com a questão da propriedade urbana, com a ecologia e a sustentabilidade, aliando a arte experimental e a gastronomia”, exemplifica o curador. “Trata-se de uma ação internacional que parte do âmbito da arte contemporânea e está tendo impacto real na vida urbana atual.” n

A cidade recebe mais mostras de arte pública e os museus incorporam problemas urbanos em seus temas

Ao lado, estudo do escritório SPBR para o novo edifício do MAM propõe um corredor elevado, que daria a volta no Parque do Ibirapuera Abaixo, fachada da praça das Artes, centro de São Paulo.

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memória

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Engenho e arte As contribuições de Theodoro Sampaio ao país, de Salvador a São Paulo Neldson Marcolin

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baiano Theodoro Fernandes Sampaio teve uma carreira longeva como engenheiro civil, que começou em 1878 e terminou no 1937. Ele poderia ser confundido com um dos naturalistas estrangeiros que visitaram o Brasil na primeira metade do século XIX e se interessavam por tudo: das plantas aos animais, das línguas e costumes indígenas ao clima da terra. Sampaio trabalhou com hidráulica, saneamento, cartografia, planejamento e gestão urbana e deu contribuições a geologia, geografia e história, além de se aventurar pela etnologia, antropologia e linguística – ciências ainda não consolidadas em seu tempo. Desde as comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil, em 2000, alguns personagens têm tido sua importância resgatada. “Theodoro Sampaio é uma dessas figuras históricas que foram revalorizadas. Mas ainda não à altura da real importância de suas contribuições”, diz Ademir Pereira dos Santos, professor de arquitetura das universidades de Taubaté (Unitau), de Mogi das Cruzes (UMC), ambas no interior paulista, e do Centro Universitário Belas Artes, em São Paulo. Santos escreveu Theodoro Sampaio – Nos sertões e nas cidades (Odebrecht / Versal Editores, 2010), livro que esmiúça a vida e a obra do engenheiro.

Sampaio (à dir.) manipula um teodolito durante excursão em Aratu, na Bahia, em 1916


1 Integrantes da Comissão Geográfica e Geológica de 1888: Theodoro Sampaio é o terceiro sentado da esq. para a dir. ao lado de Orville Derby (de barba) 2 Mapa de Sampaio com distribuição dos grupos étnicos, segundo Carl von Martius

fotos  1 e 3 ighb 2 instituto geológico de são paulo

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Sampaio (1855-1937) nasceu em Santo Amaro da Purificação, na Bahia, filho de uma escrava, Domingas. Não se sabe quem era o pai: o padre Manoel Fernandes Sampaio, de quem herdou o sobrenome, ou o visconde de Aramaré, Manoel Lopes da Costa Pinto, dono de Domingas. “Apenas Theodoro sabia e não contou nem aos filhos”, diz Santos. Sabe-se que o pai tinha posses e influência porque ele nasceu livre e recebeu boa educação no Rio de Janeiro. Na corte cursou engenharia na Escola Politécnica do Rio de Janeiro e formou-se aos 22 anos. Entre 1878 e 1884 comprou a alforria de seus três irmãos negros. Em 1879, Sampaio integrou a Comissão Hidráulica do Império, que estudou e propôs obras para melhorar a navegação dos rios. Por quatro anos trabalhou no vale do rio São Francisco entre Alagoas e Sergipe, e nas cidades pernambucanas, baianas e mineiras próximas à nascente. Narrador conciso e desenhista talentoso,

contribuiu para a confecção da Carta da bacia do São Francisco, revisou e colocou na cartografia parte da Chapada Diamantina. A vinda para São Paulo ocorreu em 1886 a convite do geólogo americano Orville Derby, chefe da Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo. O interior paulista era em boa parte desconhecido e o engenheiro ajudou a explorar e cartografar a

região – algo imprescindível ao poder público –, além de projetar obras para a navegação do rio Paranapanema. Sampaio estabeleceu a primeira base geodésica do país, na região de Sorocaba. A técnica é usada para representar cartograficamente, de modo plano, a forma esférica da superfície da Terra, fundamental para melhorar a exatidão dos mapas de grande extensão.

Durante essa fase nos sertões nordestino e paulista, ele colheu informações para dois livros: O tupi na geografia nacional (1901) e O rio São Francisco e a Chapada Diamantina (1905). Também permitiu a Euclides da Cunha copiar um mapa feito por ele da região de Canudos e sanou dúvidas sobre a geografia e o clima, que o escritor viria a usar em artigos antes de viajar ao local e escrever Os sertões. “Na administração pública de São Paulo trabalhou desde a implantação de serviços sanitários até a expansão de linhas de bondes na cidade”, conta Santos. Publicou artigos técnicos e fez pesquisa histórica – foi um dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, em 1894. Aos 50 anos, voltou para a Bahia e abriu seu próprio escritório de engenharia, que projetou o novo sistema de abastecimento de água de Salvador, entre outros trabalhos de infraestrutura e urbanização. Teve intensa atuação no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB), que presidiu por 14 anos. “Quem o conheceu diz que era muito discreto e calado, mas um orador excepcional”, conta Consuelo Pondé de Sena, presidente do IGHB. Na última fase da vida – morreu com 82 anos –, publicou estudos sobre a história de Salvador e da Bahia. n PESQUISA FAPESP 214 | 91


Arte

Onde o mar arrebenta o lamento de tantos ais 1

Gustavo Fiorati

I

naugurada nos anos 1940 e desativada em 1994­, a Colônia Penal Cândido Mendes durante décadas afastou o turismo da Ilha Grande, no litoral fluminense. Exceto por um perfil específico de viajante: militares, sim, costumavam passar as férias lá. Filho de um coronel, o diretor de teatro Kiko Marques teve também esse privilégio. Conta que, em 1973, com 9 anos, começou a frequentar a região nos verões. Todo ano repetia o programa, e o hábito se estendeu à vida adulta. Não só à vida adulta. Estendeu-se a partir de 2006 também ao processo de criação de um espetáculo chamado Cais ou da indiferença das embarcações, um pequeno libelo sobre a passagem do tempo, em cartaz no Instituto Capobianco até o dia 15. Pequeno e aconchegante, o espetáculo colocou a Velha Companhia, dirigida por Marques, em evi92 | dezembro DE 2013

dência este ano. O boca a boca deu resultados, e a peça conquistou sessões lotadas até o fim de sua primeira temporada, que começou em outubro de 2012 e seguiu até março deste ano. Curadores e críticos ficaram atentos ao fenômeno. O trabalho foi indicado ao Prêmio Shell em seis categorias, despontando como favorito da premiação, cujo resultado sai em março próximo. Assim, decidiu-se pela retomada de suas apresentações, no mesmo teatro. Existe chance de continuar em 2014. Em cena, estão 12 atores e dois músicos, incluindo um ator veterano que andava sumido do cenário teatral, Walter Portela, revelado por Antunes Filho nos anos 1970. O espaço cênico, muito simples, reproduz um cais de madeira. A plateia forma um círculo ao seu redor, muito próxima dos intérpretes. Cais é um daqueles espetáculos em que suspiros são

A atriz Alejandra Sampaio, uma das fundadoras da Velha Companhia


fotos  LIGIA JARDIM

O ator veterano Walter Portela e a atriz Rose de Oliveira

tão claramente importantes para a cena quanto tiros de revólver. A música ao vivo ambienta os sons de um lugarejo distante da vida nas cidades, tocado às vezes pela beleza de suas paisagens idílicas, às vezes pelo tédio ou o convívio conflituoso de uma população pequena e isolada pelas águas do mar. Durante as quase três horas de espetáculo, divididas em dois atos, passam pelo cais três gerações de uma família com seus agregados. Quem era filho vira pai, quem era solteiro vira casado. A passagem do tempo não é cronológica, dá saltos, volta ao passado. A paisagem também muda. Pouco, mas muda, com a chegada do progresso. As mudanças estão ligadas às experiências pessoais de Marques. Ele viu a ilha transformar-se, o presídio ser desativado, sardinhas ficaram escassas nos mares da ilha, as empresas que enlatavam peixes deixaram a região, o turismo avançou. “Cada vez que eu voltava, uma coisa estava diferente”, conta o diretor. “Lembro-me de uma época em que pescávamos lagosta na beira da praia”, diz. “Lembro-me de ver Madame Satã em seus últimos anos de vida”, conta, referindo-se ao ex-detento ilustre que, solto, passou a residir ali. A esta vivência, ele adicionou um processo de entrevistas com moradores da ilha. Passou dois meses recolhendo histórias. Preferiu não registrar as conversas com gravador. “Eu não fazia entrevistas, eu assuntava”, corrige o diretor. “Não queria formalidade, porque, quando houve, a conversa não rendeu tanto”, analisa. A intenção inicial de estabelecer um diálogo com a arte documental foi tomando novos rumos. “Percebi que a linguagem deveria ser mais poética. Nenhuma história no espetáculo é total-

mente verdade, e nenhuma é totalmente falsa”, explica. Há na peça, por exemplo, referências ao suicídio de uma mulher. Ela, casada, teria se envolvido com um presidiário, e sua morte estaria ligada ou ao romance ou à maledicência contra as mulheres adúlteras, mas o diretor não sabe precisar. “Não sei mais distinguir o que é verdade”, diz. O que resta então das entrevistas? Talvez um duelo entre a cultura de pescadores e a realidade imposta pela forte presença do presídio. Mas são as questões amorosas que tomam corpo nesse atrito, com cenas que sempre terminam em festas de fim de ano. “O que vemos por meio do espetáculo é o ser humano flagrado no constrangedor espaço que o divide entre suas intenções mais puras e suas ações mais egoístas e pérfidas”, diz o diretor. “Ele2 quer seguir sua consciência, mas é influenciado pelo movimento das marés e das tempestades, num limite impossível de definir entre o externo e o interno. A peça trata basicamente da separação que há entre o discurso humano e suas ações.” A experiência de criar a partir de um processo de investigação documental já havia sido experimentada pela Velha Companhia, que hoje tem 10 anos de estrada. Em 2005 e 2006, o grupo fundado também por Alejandra Sampaio e Virgínia Buckowski apresentou Crepúsculo, peça que partiu de uma convivência com moradores do Retiro dos Artistas, uma espécie de residência para idosos no Rio de Janeiro. Também é um gênero que tem ganhado força no cenário latino-americano. Nos últimos anos, passaram pela cidade de São Paulo espetáculos similares de origem argentina, chilena, uruguaia. Houve, por exemplo, o colombiano Discurso de un hombre decente, da companhia Mapa Teatro, apresentado em São Paulo em julho. A peça investigava relações do narcotráfico na Colômbia também a partir de entrevistas. A Velha Companhia, no entanto, indica que tomará nova direção em seu trabalho seguinte. Marques não falou sobre o próximo projeto, mas promete partir de um processo totalmente diferente, “embora o foco continue sendo a criação dramatúrgica, o texto”. Vale ficar atento. n PESQUISA FAPESP 214 | 93


ficção

Síndrome de Amnésia Induzida (SAI) Reginaldo Pujol Filho

A

Síndrome da Amnésia Induzida (SAI, normalmente em Portugal; ou IAS, mais comum no Brasil) é uma doença do sistema nervoso humano causada pelo Vírus da Amnésia Induzida (AIV). Esta enfermidade reduz progressivamente a memória e as atividades nervosas dos infectados, provocando inicialmente a perda da memória até o estado vegetativo irreversível. O AIV é transmitido através do contato direto de uma membrana mucosa (ou da corrente sanguínea) com um fluido corporal que contém o AIV, tais como sangue, sêmen, secreção vaginal, fluido pré-seminal e leite materno, assim como transmite-se pelas redes de neurocomunicação via dispositivos físicos ou chips implantados. A SAI hoje é considerada uma pandemia. Em 2087, estimava-se que em todo o mundo 133,2 milhões de pessoas viviam em estado vegetativo em razão da doença e que a SAI tenha matado cerca de 56 milhões de pessoas [fonte carece de verificação]. Embora os tratamentos para a SAI e AIV possam retardar o avanço do processo vegetativo, não há atualmente nenhuma cura ou vacina. Empresas de tecnologia como Norton, Avira e Siemens, em parceria com a Organização Mundial da Saúde, promovem pesquisas em busca de um biosoftware capaz de imunizar humanos. Os primeiros resultados são previstos para 2095. O sexo seguro, o não compartilhamento de seringas e a troca de informações off line ainda são os métodos mais eficientes de prevenção. Índice [esconder] 1 História e origem 2 Progressão e sintomas 3 Diagnóstico 4 Prevenção e tratamento 4.1 Prevenção 4.2 Tratamento

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História e origem

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Ver também: AIV Os primeiros casos comprovados da AIS datam do ano de 2083, embora autoridades médicas afirmem que muitos relatos de Mal de Parkinson Precoce e Esclerose Juvenil possam ter sido erroneamente diagnosticados, tratando-se de pacientes infectados com o vírus AIV. [carece de fontes] O AIV descende do Vírus Rock and Roll Baby (VIRRB) [carece de fontes], que infecta dispositivos de processamento de dados e comunicação móveis (hiperphones, neurochips e iGlass em especial) e trata-se da primeira ocorrência de transmutação de um vírus digital para um organismo humano. A SAI foi primeiramente relatada pelo médico norte-americano Kalad Al Ahmdinejad em 5 de junho de 2083, que, percebendo a semelhança da destruição do sistema nervoso humano com a ação de vírus digitais, comprovou em laboratório a possibilidade de tal transmissão e transmutação. Há evidências de que seres humanos que participavam de atividades eletrodigitais em rede foram os primeiros infectados, assim como não há registros de casos na Coreia do Norte (desde 2014, único país do mundo sem acesso à Internet). No entanto, as primeiras infecções não provocaram maior alarme na comunidade internacional, por ainda não ser comprovada naquela época a sua transmissão de humano para humano. A primeira infecção homem/homem teria sido registrada na Austrália em 2084, quando um homem, com os primeiros sintomas da doença, teria esquecido de levar preservativos para um clube de troca de casais e teria infectado dezenas de pessoas [necessita mais fontes]. Entretanto, no mesmo período há relatos de crescimento exponencial dos casos em outros países [necessita mais fontes]. Ainda não há literatura médica que explique como o VIRRB se adaptou ao organismo humano,


Xpanzion / wikimedia commons

convertendo-se em AIV, tampouco como passou da transmissão digital para a orgânica. A teoria mais controversa sugere que o VIRRB foi, inadvertida e intencionalmente, disparado pelo Serviço Secreto Argentino durante a 3ª Guerra das Malvinas (3rd Falkland War para o 2° Império Britânico), na década de 70 desse século, na tentativa de mudar a opinião dos habitantes das Ilhas Malvinas (Falkland Islands para o 2° Império Britânico) e dos soldados britânicos formatando suas memórias orgânicas  [ fonte não confiável]. Progressão e sintomas

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A manifestação inicial da SAI, presente em 50 a 70% dos casos, é semelhante aos sintomas relacionados com stress e estafa, por exemplo, pequenos esquecimentos. Descoordenação motora (tropeções, choques involuntários, falta de firmeza para agarrar objetos, entre outros) e descontrole da salivação quando acordado, são sintomas geralmente tardiamente percebidos e que não devem ser negligenciados. Eventos como incontinência urinária ou das fezes, falta de ar e lapsos como esquecer de fazer refeições, especialmente em indivíduos jovens (menos de 55 anos), são considerados sintomas avançados. Em todos os casos a recomendação é procurar um especialista. Diagnóstico

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O diagnóstico de SAI em uma pessoa infectada com o AIV é baseado na presença de certos sinais ou sintomas e no comportamento de risco dos pacientes, como a não atualização semanal do software de proteção do biochip, navegação mental por conteúdos impróprios, sexo sem proteção, uso de dispositivos digitais para troca desordenada de informação e acesso a redes ilegais, compartilhamento de seringas, sexo biométrico, entre outros. Após a verificação de sintomas e comportamentos, o paciente é submetido a um scan neuronal para a constatação da presença do vírus AIV. Por vezes é necessário induzir o paciente a um estado de morte por 1 minuto a fim de paralisar a atividade nervosa, de modo que o vírus torne-se estável e identificável. Contudo os scans off life, como são conhecidos, têm sido objeto de contestação e protesto por parte da comunidade médica e da sociedade, dado o elevado número de óbitos provocado pela técnica. Prevenção e tratamento

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Prevenção Os únicos modos seguros de prevenção são a troca segura de fluidos, dados e informações. O uso de preservativos nas relações sexuais, evitar beijos,

não frequentar locais fechados e com grande circulação de pessoas, bem como não trocar dados com usuários não identificados e verificados, seja por biochips ou dispositivos externos conectados à rede neuronal, são as principais recomendações para evitar a infecção. Não há anitivírus orgânico ou digital que ofereça segurança aos usuários. Médicos também recomendam o scaneamento cerebral para diagnóstico precoce. Os mais radicais recomendam que se evite o contato social e que se adote a vida off line [carece de fontes]. Tratamento Não há tratamento para cura. Neuroativadores e varreduras digitocerebrais retardam o avanço da doença sem, contudo, impedi-la. Empresas oferecem atualmente serviços de back up cerebral com posterior reboot do sistema infectado. Entretanto, ainda não há casos relatados quanto a esse serviço. E acusações de charlatanismo já levaram à prisão de responsáveis por empresas de back up cerebral, como o empresário grego Anax Katidis [este trecho pode violar o princípio de imparcialidade]. This page was last modified on 23 April 2013 at 18:46, by Reginaldo Pujol Filho Text is available under the Creative Commons Attribution-ShareAlike License; additional terms may apply. By using this text, you agree to the Terms of Use and Privacy Policy. Reginaldo Pujol Filho nasceu em Porto Alegre, em 1980, e trabalha como redator publicitário. É autor do livro Azar do personagem (Não Editora / 2007), tem contos publicados em antologias, revistas, jornais e sites. Escreve com alguma regularidade no blog Por causa dos elefantes.

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carreiras

Recursos Humanos  | Mudança de rumo

Desafios da gestão de projetos empresariais Dificuldades enfrentadas por pesquisadores de indústrias englobam desde saber se comunicar à capacidade de avaliar a viabilidade comercial de pesquisas Ser flexível, saber se comunicar com seus pares e com leigos, conseguir enfrentar a pressão por prazos e ser capaz de avaliar a viabilidade comercial de um projeto são, em linhas gerais, as principais exigências para os pesquisadores que trabalham em empresas. “A mudança de perfil de quem sai da academia e vai para a indústria é muito grande”, diz a bióloga Ana Paula Azambuja, de 32 anos, gerente de ciência na Natura na área de ciências da vida. Em vez de especialização em um único assunto, há uma ampliação das conexões de temas que englobam desde negócios, pesquisa voltada a aplicações até velocidade de captação de oportunidades como novas parcerias e tecnologias. “Na academia são selecionados 96 | dezembro DE 2013

perfis com conhecimento profundo em algumas linhas de pesquisa, enquanto na indústria se busca o conhecimento técnico aprofundado sem perder o foco na transversalidade”, diz Ana Paula, que fez doutorado na área de biologia celular e tecidual pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutorado na Universidade de Málaga, na Espanha. Essa transversalidade, segundo ela, abarca não somente o ponto de vista técnico, mas também novas tecnologias e diferentes áreas do conhecimento, sempre com uma visão de mercado. Saber se comunicar de maneira correta é considerado essencial na indústria, porque os esquisadores fazem a ponte com a equipe de marketing da empresa.

Para o engenheiro mecânico André Ferrarese, de 35 anos, gerente da área de inovação da empresa Mahle Metal Leve, não existe um descompasso na velocidade de desenvolvimento de pesquisas feitas por empresas e universidades. “Esse é um estereótipo sobre a academia, que não se constata nas parcerias com universidades”, diz Ferrarese, com graduação e mestrado na Escola Politécnica da USP. Na sua avaliação, a questão central é o foco, e não a velocidade. “Enquanto na academia a atenção das pesquisas está mais no conteúdo técnico do que em sua viabilidade comercial, na indústria o foco está em demandas comercialmente viáveis”, compara. Por conta disso, ressalta,


foto  virgínia yunes  ilustraçãO daniel bueno

em muitas ocasiões os pesquisadores de empresas deixam passar oportunidades técnicas por não terem clareza do que elas representam naquele momento. “Na academia o tempo dos nossos projetos está atrelado ao tempo da bolsa; na indústria está ligado ao tamanho da entrega”, diz Ana Paula. Para projetos mais longos, que duram de três a cinco anos, por exemplo, a estratégia passa por entregas intermediárias em períodos mais curtos, de um e dois anos. A gestão de projetos tem que ser repensada na academia, na avaliação de Ana Paula. “Em todos os projetos que desenvolvi, de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado, nunca passei por um treinamento de gestão”, relata. E essa foi a grande dificuldade que encontrou ao entrar na Natura, que assim como outras indústrias avalia constantemente seus projetos sob diferentes óticas. “As avaliações englobam cronograma, orçamento, aplicabilidade, prazo de entrega, ou seja, temos que ter jogo de cintura sob o ponto de vista da gestão”, ressalta. Ferrarese relata que tem percebido um interesse maior das universidades em absorver a competência das empresas na gestão de projetos. “Há bastante interesse nesse tipo de discussão, que está conectado ao movimento de gerar patentes e levar conhecimento ao mercado”, diz ele, que começou sua carreira profissional como estagiário ainda na graduação, a exemplo da maioria dos pesquisadores da Mahle. “Como não temos no Brasil muitos centros de pesquisa e desenvolvimento em empresas, é natural que os pesquisadores continuem sua formação acadêmica depois de contratados.”

Mudança de rumo

Da agricultura ao câncer infantil José Andrés Yunes abandona agronomia e cria protocolo para monitorar resposta ao tratamento de leucemia Do estudo de plantas, o pesquisador José Andrés Yunes, de 46 anos, formado em engenharia agronômica pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), enveredou para pesquisas de biologia molecular da leucemia infantil. “Quando cursava agronomia, comecei a trabalhar com cultura in vitro de células vegetais”, relata Yunes. O interesse pela cultura de células foi o gatilho de uma trajetória que o levou ao Centro Infantil Boldrini, em Campinas, referência em tratamento de câncer infantil. “Em um congresso na Esalq [Escola de Agricultura Luiz de Queiroz], em Piracicaba, vi um cartaz sobre pós-graduação em biologia celular na Universidade Estadual de Campinas”, conta. Do congresso foi direto para Campinas, onde conheceu o professor Paulo Arruda, que coordenou o Projeto Genoma Cana da FAPESP. A iniciativa resultou em uma especialização e um doutorado em biologia molecular. Terminado o doutorado em abril de 1997, soube por Arruda que o Centro Boldrini queria montar um laboratório de biologia molecular no hospital. Seis meses depois de colaborar com o Boldrini informalmente, foi contratado como pesquisador e deu início à montagem do laboratório com equipamentos de ponta, como um sequenciador automático. “Passei duas semanas

na Itália, onde aprendi a fazer diagnósticos para a leucemia”, conta. Yunes começou a orientar alunos de iniciação científica, mas como não tinha uma carreira na área médica enfrentou dificuldades para ter projetos aprovados. Para conseguir avançar na área, foi para Boston em 2001 fazer um pós-doutorado no Dana Farber Cancer Institute, vinculado à faculdade de medicina da Universidade Harvard, onde ficou até o final de 2003. Antes colaborou com o grupo de pesquisa de leucemia linfoide aguda pediátrica para o programa Genoma Clínico do Câncer, que resultou em parceria duradoura com pesquisadores da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Na volta ao Brasil, deu sequência a um projeto acalentado desde 1997, que era o de conseguir quantificar o número de células leucêmicas após um mês de tratamento intensivo com quimioterapia. A partir da informação da quantidade de células cancerosas presentes na medula os médicos conseguem fazer ajustes no tratamento. “Até então a análise era feita no microscópio e a diferenciação das células era pelo formato delas, um método de baixa sensibilidade”, relata. Junto com o grupo de pesquisa do Genoma Clínico do Câncer, Yunes começou a trabalhar em um projeto para uso do método PCR (reação em cadeia da polimerase) para quantificação das células leucêmicas. Os resultados da pesquisa mudaram o protocolo de tratamento da leucemia infantil no Brasil. PESQUISA FAPESP 214 | 97


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