Pesquisa Fapesp 218

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abril de 2014  www.revistapesquisa.fapesp.br

direito de acesso

Revistas defendem arquivamento de dados científicos em repositórios públicos feromônios

Hormônios de insetos são usados para combater pragas agrícolas entrevista ecléa bosi

Os pobres, o tempo e a memória em narrativas encantadoras

o trabalho de resgatar a história Centenas de estudos buscam compreender a natureza do golpe de 1964, o funcionamento da ditadura e seus impactos sobre o Brasil contemporâneo


Publicações segmentadas. Leia quem escreve sobre o que você precisa saber. Prefira sempre uma publicação especializada no seu setor de atividade. Ela vai tratar com maior profundidade dos temas que mais interessam a você. Saiba mais sobre as revistas segmentadas: www.anatec.org.br – 011 3034 4566 e 3034 2550. Nós entendemos disso há 25 anos.

w w w. a n a t e c . o r g . b r


fotolab

O mistério do morcego laranja A inusitada cor laranja deste morcego intrigou os pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro, no interior de São Paulo. A explicação da cor pode ter origem em características hormonais, na alimentação ou mesmo na exposição do morcego (Phyllostomus hastatus) a ambientes com alta concentração de amônia. O espécime, uma fêmea prenhe, foi capturado por profissionais treinados durante o projeto da bióloga Renata Muylaert, que estuda como esses mamíferos respondem à perda de hábitat em remanescentes do cerrado paulista. Renata faz mestrado em zoologia sob orientação do professor Milton Cezar Ribeiro, da Unesp, e co-orientação de Richard Stevens, da Texas Tech University.

Se você tiver uma imagem relacionada à sua pesquisa, envie para imagempesquisa@fapesp.br, com resolução de 300 dpi (15 cm de largura) ou com no mínimo 5 MB. Seu trabalho poderá ser selecionado pela revista.

Foto de Fábio Martins Labecca enviada por Renata Muylaert, do Laboratório de Ecologia Espacial e Conservação da Unesp de Rio Claro

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abril  n.218 CAPA 16 Perguntas e hipóteses de

centenas de historiadores e cientistas sociais compõem os eixos fundamentais por onde avança o conhecimento da ditadura brasileira de 1964-1985

19 Estudos discutem participação de setores da sociedade no golpe de 1964 26 Especialistas examinam os efeitos dos 21 anos de ditadura na sociedade contemporânea

32 Três centenas de professores foram afastados das universidades brasileiras pela ditadura, período marcado pela estruturação da pós-graduação 37 Apesar da censura, houve forte presença de uma cultura de esquerda e de oposição durante a ditadura 41 Pesquisadores buscam

POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA 54 Infraestrutura

Cada vez mais os pesquisadores são solicitados a armazenar os dados primários de seus estudos em repositórios públicos

ENTREVISTA 46 Ecléa Bosi

Professora emérita de psicologia social da USP fala de seu campo de pesquisa, das leituras de operárias às memórias dos velhos

Simulações esclarecem como forças magnéticas complicam o nascimento de estrelas e planetas

59 Cienciometria

Cruzamento de dados de 1,1 milhão de pesquisadores brasileiros mostra que colaborações multiplicaram-se nos últimos 20 anos

62 Internacionalização

FAPESP Week busca ampliar a colaboração entre pesquisadores de instituições de São Paulo e da China

CIÊNCIA 64 Ecologia

Diversidade de espécies e compreender como o Estado vem abundância de animais são lidando com o legado de graves maiores do que o imaginado violações de direitos humanos na costa paulista

43 Arquivos brasileiros e norte-americanos alimentam as investigações sobre os crimes da ditadura

80 Astronomia

70 Especial Biota Educação XI

Ganho de produtividade com polinização por abelhas representa 10% do valor da produção agrícola mundial

74 Neuromatemática

Matemáticos e neurocientistas se unem para entender e predizer o funcionamento do cérebro

TECNOLOGIA

84 Agricultura

Substâncias químicas extraídas de insetos e plantas são estratégias para combater pragas

90 Pesquisa empresarial

Centro de P&D da Pirelli em Santo André desenvolve modelos para mercados globais

94 Logística

Parceria entre USP e Ambev cria sistema que evita atropelamentos por empilhadeiras em armazéns

96 Internet

Projeto LabWeb, do laboratório Síncrotron, permite a usuários fazer medições em linhas de luz com economia de tempo e de custos

HUMANIDADES

98 Ensino

Uso didático de mapas conceituais permite tornar claras e precisas as noções e conexões dos conteúdos disciplinares

seçÕes  3 Fotolab  5 Editorial  6 Cartas  7 On-line  8 Dados  9 Boas práticas  10 Estratégias  12 Tecnociência  102 Memória  104 Arte  106 Conto  108 Resenhas  111 Carreiras  113 Classificados 4 | abril DE 2014

foto da capa  Arquivo / Agência O Globo


carta da editora

O golpe de 1964 nos marcos da pesquisa científica Mariluce Moura | Diretora de Redação

O

golpe de Estado de 1964 e a longa ditadura que ele inaugurou no Brasil da segunda metade do século XX constituem um tema polissêmico, complexo e polêmico, provocador de paixões, e de dores, perdas e sofrimentos profundos, ainda pulsantes. Ao mesmo tempo, no que cabe aos estudos no campo das humanidades, apresentam-se como objeto de pesquisa dos mais fundamentais e desafiadores para uma interpretação criadora e consistente do Brasil e da sociedade brasileira – de sua história recente, de seu presente e do futuro em construção. Foi neste segundo âmbito que Pesquisa FAPESP, fiel à sua missão de levar aos leitores a produção científica brasileira mais relevante sem se descolar da ancoragem jornalística que a mantém antenada no pulso do presente imediato, tomou os 50 anos do golpe de 31 de março de 1964 como tema de capa desta edição de abril. Assim, levamos aos leitores, a partir da página 16, um conjunto de reportagens que traz à cena uma parte do que a academia tem produzido de mais rigoroso sobre o acontecimento em questão. É um material de fôlego, que vale a pena conferir. Depois disso, um pouco de leveza e frescor: na seção de ciência, reportagem do editor especial Carlos Fioravanti, com fotos de Eduardo Cesar, relata com vivacidade a quinta viagem de um grupo de pesquisadores ligados ao Instituto Oceanográfico da USP – de uma série de 23, programadas até 2015 – para mapear a diversidade e a distribuição de cetáceos, ou seja, baleias e golfinhos, no litoral de São Paulo. A boa notícia que a equipe tem para os mais preocupados com o ambiente é que tanto a diversidade quanto a abundância desses animais na área estudada são maiores do

que se pensava. A propósito, esta edição traz um brinde para os leitores no campo da biodiversidade: um dvd com os 10 vídeos das palestras do Ciclo de Conferências do Biota Educação 2013. É simples coincidência, mas o destaque desta edição no âmbito da tecnologia também envolve animais – neste caso, bichinhos, é verdade. Dito mais precisamente, trata-se de novas estratégias baseadas na extração de substâncias químicas de insetos e de plantas para combater poderosas pragas agrícolas. A editora assistente Dinorah Ereno conta em detalhes como pesquisas levadas adiante em laboratórios da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP) propiciaram a obtenção de novos feromônios de insetos e de substâncias vegetais voláteis que se mostraram muito eficazes, por exemplo, no combate do greening, o atual terror dos citricultores. Por último, sugiro que não deixem de ler a entrevista que nos foi concedida por Ecléa Bosi e que se deixem seduzir completamente por seu delicado convite à reflexão sobre temas tão capitais quanto a experiência de leitura entre operárias, vivências de velhos, tempo e memória. Ouvir as frases musicais de Ecléa, depois de ter sabido de sua militância em diferentes fronts e de ter lido páginas nascidas de estudos rigorosos no campo da psicologia social que, ainda que o tentem, não conseguem ocultar uma vocação literária marcada por uma espécie de poesia inata, faz pensar que nela tudo converge para a criação de sentido. Sua fala confronta o pensamento da vida como uma história sem nenhum significado contada por um idiota e cheia de som e fúria. Boa leitura! PESQUISA FAPESP 218 | 5


cartas

cartas@fapesp.br

fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo Celso Lafer Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior alejandro szanto de toledo, Celso Lafer, Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, Horácio Lafer Piva, joão grandino rodas, Maria José Soares Mendes Giannini, Marilza Vieira Cunha Rudge, José de Souza Martins, Pedro Luiz Barreiros Passos, Suely Vilela Sampaio, Yoshiaki Nakano Conselho Técnico-Administrativo José Arana Varela Diretor presidente Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico Joaquim J. de Camargo Engler Diretor Administrativo

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Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Marcelo Leite, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Adolpho José Melfi, Carlos Eduardo Negrão, Douglas Eduardo Zampieri, Eduardo Cesar Leão Marques, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Joaquim J. de Camargo Engler, José Arana Varela, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Lucio Angnes, Luis Augusto Barbosa Cortez, Marcelo Knobel, Marie-Anne Van Sluys, Mário José Abdalla Saad, Marta Teresa da Silva Arretche, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Luiz Monteiro Salles Filho, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner do Amaral Caradori, Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos Diretora de redação Mariluce Moura editor chefe Neldson Marcolin Editores Fabrício Marques (Política), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência); Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores espe­ciais); Bruno de Pierro e Dinorah Ereno (Editores assistentes) revisão Márcio Guimarães de Araújo, Margô Negro arte Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos (Editora de infografia), Maria Cecilia Felli e Alvaro Felippe Jr. (Assistente) fotógrafos Eduardo Cesar, Léo Ramos Mídias eletrônicas Fabrício Marques (Coordenador) Internet Pesquisa FAPESP online Maria Guimarães (Editora) Júlio Cesar Barros (Editor assistente) Rodrigo de Oliveira Andrade (Repórter) Rádio Pesquisa Brasil Biancamaria Binazzi (Produtora) Colaboradores Alexandre Affonso, Ana Lima, Bel Falleiros, Daniel Bueno, Eduardo Nunomura, Fabio Otubo, Glenda Mezzaroba, Igor Zolnerkevic, João Baptista Borges Pereira, Márcio Ferrari, Maria Hirszman, Rafael Gallo, Pedro Meira Monteiro, Valter Rodrigues, Yuri Vasconcelos, William Torres Laureano da Rosa, Zé Vicente É proibida a reprodução total ou parcial de textos e fotos sem prévia autorização Para falar com a redação (11) 3087-4210 cartas@fapesp.br Para anunciar (11) 3087-4212 publicidade@fapesp.br Para assinar (11) 3087-4237 assinaturaspesquisa@fapesp.br Tiragem 44.000 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEMP PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo

6 | abril DE 2014

Revista

Quero dizer-lhes do prazer que venho tendo de ler a cada mês a revista que vocês editam na FAPESP. Infelizmente só a descobri recentemente, mas venho desde então apreciando a variedade e riqueza das matérias. As entrevistas sobre vidas de pesquisadores, por exemplo, são fascinantes. Tinha lido a entrevista com o professor Ernst Hamburger (edição 215) e este mês gostei muito também da feita com o professor Humberto Torloni (edição 216). A mim, esses artigos revelam um mundo que eu não suspeitava que existisse entre nós. Sabendo como é difícil que as revistas institucionais consigam despertar o interesse do leitor comum, felicito os responsáveis pela revista pela proeza que lograram. Rubens Ricupero São Paulo, SP

seriam substituídos pelos “novos movimentos sociais”. Todavia, pesquisas recentes mostram o contrário. As manifestações na Europa e nos Estados Unidos nos últimos anos estavam diretamente ligadas ao conceito “trabalho” e seus manifestantes aos movimentos sociais clássicos (sindicatos e partidos), além da participação de jovens anarquistas e de defensores da manutenção do Welfare State. No Brasil sabe-se que as manifestações foram organizadas por jovens estudantes universitários organizados no Movimento Passe Livre e filiados aos partidos como PCO, PSOL, PSTU, PCB, entre outros, e principalmente por jovens anarquistas com sua forma de ação conhecida como Black Bloc. Os novos movimentos não são mais do que os velhos movimentos na forma juvenil do século XXI. Bruno Augusto

Parabéns pelas reportagens de divulgação científica, muito didáticas, interessantes e agradáveis de ler. A revista deveria ser distribuída às escolas públicas para ser uma ferramenta no ensino de ciências. A entrevista com Humberto Torloni (edição 216) está maravilhosa, não apenas pelo brilhantismo do entrevistado – a simplicidade do doutor Torloni talvez seja a melhor expressão da riqueza do seu caráter –, mas pelo modo cativante com que a revista o apresenta a seus leitores. Aracy Balbani Tatuí, SP

Net-ativismo

A pesquisa sobre o net-ativismo liderada pelo sociólogo Massimo Di Felice, abordada na reportagem “Manifestações neozapatistas” (edição 217), abre novas perspectivas para interpretar as manifestações populares dos últimos anos. Contudo, cabem questionamentos. As pesquisas sobre os movimentos sociais sofreram diversas interpretações pós-Segunda Guerra Mundial. Com as manifestações estudantis em maio de 1968 e com as manifestações sociais nas décadas subsequentes, a teoria social ocidental afirmava que os movimentos sociais clássicos estavam em declínio e

Sorocaba, SP

Biota Educação

Lembro-me que há vários anos o Centro de Biologia Marinha da Universidade de São Paulo (Cebimar-USP) foi surpreendido pela notícia de que o porto de São Sebastião, em parceria com a Petrobras, iria expandir suas instalações em direção à zona contígua, a baía do Araçá. Pode-se ver inclusive no mapa que ilustra a reportagem “O valor da natureza” (edição 217) a presença anômala do porto incrustado em parte da baía. Foi efêmera e inútil a manifestação do Cebimar alegando a importância daquela região como ecossistema costeiro paulista. É salutar saber pela reportagem que a baía do Araçá preserva ainda uma alta diversidade biológica, mas que poderia ter sido melhor estudada se suas condições originais tivessem sido mantidas. Francisco Manoel de Souza Braga Departamento de Zoologia/Unesp Rio Claro, SP

Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br ou para a rua Joaquim Antunes, 727, 10º andar - CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.


on-line

Nas redes

EMBRAPA / SZEWCZYK ET AL., 2006

w w w . r e v i s ta p e s q u i s a . f a p e s p. b r

Roberto DeLucia_ O mito de que

Exclusivo no site

a floresta amazônica é o “pulmão do mundo” passa a ser visto

x Dez anos depois de sequenciado o genoma de um vírus que ataca insetos, pesquisadores identificaram as proteínas produzidas por esse microrganismo nas duas formas que ele assume durante o ciclo viral, revelando quais genes estão realmente ativos. O trabalho, publicado no Journal of General Virology, ajuda a entender os mecanismos pelos quais essas proteínas interagem com o organismo do inseto infectado. A ideia é ampliar o uso do vírus como controle biológico, até agora eficaz apenas contra a lagarta-da-soja, cujo nome científico, Anticarsia gemmatalis, também denomina o vírus.

com mais clareza através da pesquisa de Luciana Gatti. (Na trilha do carbono) Flavio Ortigao_ Acho que todas as acusações bem fundamentadas de fraude têm que ser investigadas independentemente da identidade do delator. (Limites das denúncias anônimas) Eduardo Sousa_ Ciência de qualidade genuinamente brasileira. Vírus é usado em lavouras no controle biológico da lagarta Anticarsia gemmatalis

(SciELO no topo do ranking) Eliane Chaves_ Muito legal! As migrações humanas vistas sob

x A relação entre genes e obesidade foi revista pela equipe do geneticista Marcelo Nóbrega, da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos. Na verdade uma região não codificante do gene considerado principal regula a atividade de outro gene, o IRX3 – este sim ligado ao ganho de peso. Mesmo assim, ter essas variantes torna uma pessoa apenas 3 quilogramas mais gorda do que não tê-las. A contribuição mais importante do trabalho (Nature) é mostrar uma associação inesperada entre genoma e característica. Não está à vista um novo medicamento emagrecedor com base na descoberta.

Rádio Pró-reitor José Eduardo Krieger pretende reduzir tarefas burocráticas de pesquisadores para ampliar a qualidade de pesquisa na USP

o olhar da genética. Geografia + Biologia. (Migrações gravadas nos genes) Sibele Fausto_ Excelente trabalho científico sobre a percepção da ciência pelos brasileiros. (Para melhor informar) Guilherme Horák_ É realmente muito legal essa ideia, né? Tenho certeza que as empresas que fabricam lâmpadas estão de olho neste novo mercado. (Led ilumina muda de cana)

Vídeo do mês Especialistas contam como os rios de São Paulo foram enterrados sob as ruas da cidade

Assista ao vídeo:

youtube.com/user/PesquisaFAPESP

PESQUISA FAPESP 218 | 7


Dados e projetos Temáticos e Jovem Pesquisador recentes Projetos contratados em fevereiro e março de 2014 Instituição: Instituto de Biociências/USP Processo: 2013/00069-0 Vigência: 01/03/2014 a 28/02/2018

Instituição: Instituto de Biociências de Botucatu/Unesp Processo: 2013/50504-5 Vigência: 01/02/2014 a 31/01/2018

temáticos  Je landscapes of Southern Brazil. (FAPESP-RCUK/AHRC) Pesquisador responsável: Paulo Antônio Dantas de Blasis Instituição: Museu de Arqueologia e Etnologia/USP Processo: 2012/51328-3 Vigência: 01/02/2014 a 31/01/2017

 Ligantes enzimáticos: novos modelos de triagem Pesquisadora responsável: Quézia Bezerra Cass Instituição: Centro de Ciências Exatas e Tecnologia/UFSCar Processo: 2013/01710-1 Vigência: 01/02/2014 a 31/01/2018

 Bioactive components from by-products of food processing used in a synbiotic approach for improving human health and well-being (Biosyn). (FAPESP-DCSR) Pesquisadora responsável: Susana Marta Isay Saad Instituição: Faculdade de Ciências Farmacêuticas/USP Processo: 2013/50506-8 Vigência: 01/02/2014 a 31/01/2018

 Patogênese molecular e caracterização de doenças monogênicas do desenvolvimento: um caminho para a medicina translacional Pesquisadora responsável: Berenice Bilharinho de Mendonça Instituição: Faculdade de Medicina/USP Processo: 2013/02162-8 Vigência: 01/02/2014 a 31/01/2018

JOVEM PESQUISADOR  Alterações biológicas das pectinas de mamão com possíveis benefícios à saúde humana Pesquisador responsável: João Paulo Fabi Instituição: Faculdades de Ciências Farmacêuticas/USP Processo: 2012/23970-2 Vigência: 01/03/2014 a 28/02/2018

 Improved quality of cultured fish for human consumption. (FAPESP-DCSR) Pesquisador responsável: Reinaldo José da Silva

 Saúde e estilo de vida dos paleoamericanos de Lagoa Santa: uma abordagem etnobioarqueológica Pesquisador responsável: Pedro José Totora da Glória

Processo: 2013/17612-9 Vigência: 01/04/2014 a 31/03/2017

 Estimativas a priori para equações semilineares hiperbólicas Pesquisador responsável: Marcello Dabbicco Instituição: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto/ USP Processo: 2013/15140-2 Vigência: 01/02/2014 a 31/01/2016

 Como interagem primatas humanos e não humanos no semiárido do Nordeste brasileiro: uma abordagem etnoprimatológica para preservar a biodiversidade cultural de primatas Pesquisadora responsável: Noemi Spagnoletti Instituição: Instituto de Psicologia/USP Processo: 2013/19219-2 Vigência: 01/04/2014 a 31/03/2016

 Metagenômica comparativa de florações de cianobactérias em reservatórios de água do estado de Pernambuco Pesquisadora responsável: Adriana Sturion Lorenzi Instituição: Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz/USP Processo: 2013/15296-2 Vigência: 01/02/2014 a 31/01/2016

 Processos de espalhamento de luz em microestruturas fotônicas Pesquisador responsável: Paulo Clovis Dainese Junior Instituição: Instituto de Física/ Unicamp Processo: 2013/20180-3 Vigência: 01/02/2014 a 31/01/2018

 Caracterização genética, controle de sexo e transplantes de células germinativas em estoques cultivados de salmonídeos da Estação Experimental de Salmonicultura de Campos do Jordão Pesquisador responsável: Ricardo Shohei Hattori Instituição: Apta Regional DDD/SAASP

 História e literatura judaicas do período do segundo templo: comentários interdisciplinares sobre os manuscritos de Qumran Pesquisadora responsável: Clarisse Ferreira da Silva Instituição: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP Processo: 2013/50339-4 Vigência: 01/02/2014 a 31/01/2018

Aprendizagem deficiente (2012) Perfil do desempenho de estudantes de 15 anos em ciência (em porcentagem de alunos em cada nível) Nível 1: os alunos têm conhecimento científico limitado que só pode ser aplicado a algumas situações familiares. Podem apresentar explicações científicas que são óbvias

Abaixo do nível 1

Nível 1

Nível 2

Nível 3

Nível 4

Nível 5

Nível 6

Finlândia

2%

6%

17%

30%

29%

14%

3%

Média dos países da OCDE

5%

13%

25%

29%

20%

7%

1%

Estados Unidos

4%

14%

27%

29%

19%

6%

1%

Espanha

4%

12%

27%

33%

19%

4%

0,3%

Nível 2: os alunos têm conhecimento científico adequado para fornecer explicações possíveis em contextos familiares ou tirar conclusões com base em investigações simples. Eles são capazes de raciocínio direto e de fazer interpretações literais de resultados científicos ou problemas tecnológicos

Uruguai

20%

27%

29%

17%

6%

1%

0,05%

Nível 3: os alunos podem identificar claramente questões científicas em uma variedade de contextos

Chile

8%

26%

35%

22%

8%

1%

0,04%

Brasil

19%

35%

31%

12%

3%

0,3%

0,00%

Argentina

20%

31%

31%

15%

3%

0,24%

0,00%

México

13%

34%

37%

14%

2%

0,14%

0,00%

Colômbia

20%

36%

31%

11%

2%

0,14%

0,00%

Peru

31%

37%

23%

7%

1%

0,04%

0,00%

País

OCDE: Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico  Fonte: OCDE/PISA (http://www.oecd.org/pisa/keyfindings/pisa-2012-results.htm)

8 | abril DE 2014

Nível 4: os alunos podem trabalhar de forma eficaz com as situações e problemas que possam envolver fenômenos explícitos, obrigando-os a fazer inferências sobre o papel da ciência ou tecnologia Nível 5: os alunos podem identificar os componentes científicos de muitas situações de vida, aplicar conceitos e conhecimentos científicos para estas situações e comparar, selecionar e avaliar a evidência científica adequada para res­­­­ponder às situações da vida cotidiana Nível 6: os alunos podem identificar consistentemente, explicar e aplicar o conhecimento científico e o conhecimento sobre a ciência em uma variedade complexa de situações da vida cotidiana


Boas práticas Um caso de sabotagem de um experimento científico, cuja vítima foi uma pós-doutoranda da Universidade Yale, reanimou o debate sobre as definições de má conduta científica, usualmente restritas a casos de fraude, falsificação de dados e plágio. Em 2011, Magdalena Koziol acabara de iniciar seu período de pesquisa no laboratório de biologia do desenvolvimento de Yale, quando todos os peixes transgênicos que estava utilizando morreram repentinamente. Desconfiada, refez o experimento, mas tomou o cuidado de separar os peixes em dois grupos. Um lote foi identificado com suas iniciais, MK, e o outro não. Apenas os peixes identificados morreram. Magdalena fez uma queixa à universidade e uma câmera foi instalada no laboratório. As imagens mostraram outro pós-doutorando, Polloneal Jymmiel Ocbina, envenenando ainda uma vez os peixes com etanol. Ocbina deixou Yale após o flagrante e está sendo processado. Tratou-se de um caso de má conduta científica ou foi um ato de vandalismo, comparável a depredar um bem público? O debate não é novo. Nos anos 1990, discutiu-se nos Estados Unidos se a definição de má conduta na legislação federal não deveria incluir também casos de sabotagem em laboratório e assédio sexual no ambiente acadêmico. Optou-se, na época, por manter a definição mais restrita, com a justificativa de que existem outros mecanismos para punir desvios não diretamente ligados à prática científica. Para Lisa Rasmussen, professora de filosofia da Universidade da Carolina do Norte, Charlotte, o caso de Yale seria um caso de má conduta por envolver a adulteração de resultados de uma pesquisa.

À revista Science, a professora citou um caso semelhante, analisado em 2011 pelo Escritório de Integridade Científica (ORI, na sigla em inglês) dos Estados Unidos: o pós-doutorando Vipul Bhrigu confessou ter matado as culturas de células de um colega na Universidade de Michigan. O escritório considerou que o vandalismo adulterou registros da pesquisa – e classificou o caso como falsificação. Bhrigu foi proibido de receber financiamento de agências do governo norte-americano por três anos. O caso de Yale pode ter outros desdobramentos. Além de processar o sabotador, Magdalena acionou na Justiça a universidade e seu ex-supervisor, Antonio Giraldez. Alega que Giraldez proibiu-a de falar sobre o assunto, privou-a de assinar como coautora um artigo de cuja pesquisa participou e se recusou a escrever uma carta explicando

daniel bueno

Sabotagem no laboratório

o caso para que ela justificasse a falta de resultados de sua pesquisa para a instituição que lhe concedera bolsa. Magdalena deixou Yale em março de 2013 e retornou ao laboratório de John Gurdon, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, vencedor do Nobel de Medicina de 2012, onde ela fizera seu doutorado.

Diretrizes atualizadas A editora norte-americana John Wiley & Sons lançou a segunda edição do Best practice guidelines on publishing ethics, atualização de um guia pioneiro com diretrizes de boas práticas científicas lançado em 2006. Fundada em 1807, a Wiley publica cerca de 1.500 periódicos e mantém mais de 9 mil livros em seu catálogo. A nova versão do guia traz tópicos não abordados na primeira edição. Uma das seções faz referência a denúncias anônimas de casos de má conduta científica. A Wiley adotou as recomendações do Committee on Publication Ethics (Cope), fórum que reúne editores de periódicos científicos em torno

de temas ligados à ética na pesquisa. Segundo a entidade, os delatores anônimos devem ser levados a sério pelos editores, desde que as denúncias apresentem evidências capazes de auxiliar as investigações. Outra seção nova é dedicada a pesquisas clínicas – elas devem ser registradas antes que inicie o recrutamento de pacientes e seus dados precisam ser disponibilizados em repositórios públicos. Outro tema tratado pelo guia pela primeira vez foram as pesquisas que envolvem animais – a recomendação é priorizar métodos que utilizem o mínimo possível de animais. PESQUISA FAPESP 218 | 9


Estratégias

A Copa do Mundo e a dengue

o título do artigo da

estrangeiros costumam

Nature. No mesmo

ser menos expostos

artigo está escrito que

às picadas dos

“fãs da Copa do Mundo

mosquitos que os

no Brasil podem estar

moradores do Brasil.

expostos a uma doença

Uma das conclusões de

tropical horrível e

Massad e seus colegas

incurável”.

é que o fluxo intensivo

“Considerando que o

de turistas durante a

cálculo de risco está

Copa poderá, de fato,

incompleto, e que

levar a dengue para

dengue não é ‘incurável’,

outros países, como

a publicação deste artigo

ocorre com qualquer

foi uma irresponsabilidade

lugar onde exista

do autor, dando a

doença infecciosa

impressão de ser uma

endêmica. “Afinal

peça de propaganda

de contas, quem visita

contra a realização dos

certas localidades do

jogos”, diz Massad.

Canadá no verão pode

No universo de 600 mil

a capital fluminense

Universidade Oxford.

turistas estrangeiros

deverá atrair um número

Nesse artigo, o autor

a gravidade das

febre do oeste do Nilo,

aguardados para

maior de turistas e por

calcula a proporção de

afirmações, os autores

por exemplo”, diz

acompanhar a Copa do

um período superior

casos que ocorreram nos

do artigo brasileiro

Massad. Para minimizar

Mundo, um contingente

em relação às demais.

meses de junho e julho

usaram um algoritmo

esse risco de exportação

esperado de

Essa avaliação faz parte

no período de 2001 a

detalhado, criado para

da doença, dizem os

aproximadamente 100

de um artigo submetido

2013 em relação ao total

estimar o risco

autores, o turista que

pessoas poderá contrair

à revista Lancet Infectious

anual de cada cidade

hipotético de qualquer

eventualmente venha

dengue em sua estadia

Diseases por um grupo

da copa neste intervalo

turista que visite o Brasil

a contrair dengue não

brasileira. Mas o risco

liderado por Eduardo

de tempo. Essa

durante o período da

deve voltar para casa

varia bastante de uma

Massad, professor da

proporção, denominada

Copa, dependendo

enquanto doente, mas

cidade-sede para outra.

Faculdade de Medicina

no artigo de “percentage

do roteiro escolhido.

se tratar no Brasil, cujo

Em São Paulo e em

da USP e especialista em

of annual case burden

Assim, por exemplo,

sistema de saúde tem

outras cidades-sede do

modelos matemáticos

experienced”, tem

um turista que decida

experiência no assunto,

Sul e do Sudeste o perigo

capazes de avaliar a

sido aparentemente

passar o período da

e retornar quando

é muito pequeno, porque

disseminação de

identificada como a

copa viajando na

estiver bem. “Vale

os casos da doença caem

doenças. Entre os

probabilidade de

sequência: São Paulo

lembrar ainda que a

drasticamente nos meses

autores do artigo há

aquisição de dengue

(3 dias); Fortaleza

incidência de dengue

de inverno, quando

pesquisadores da USP,

para visitantes destas

(6 dias); Brasília (5 dias);

varia de ano para ano e,

diminuem o calor e a

da Unifesp, da Fiocruz,

cidades. Essa

Belo Horizonte (5 dias);

a julgar pelos dados

chuva, próprios para

da Escola de Medicina

identificação, observa

Fortaleza (mais 6 dias);

registrados até o

a propagação do Aedes

Lee Kong Chian, de

Eduardo Massad,

e Rio (8 dias), terá um

momento, a incidência

aegypti. Já quem for

Cingapura, e autoridades

é incorreta.

risco individual estimado

em 2014 está próxima

assistir jogos em

do Ministério da

da ordem de 0,05%,

da dos anos de menor

Salvador, Fortaleza,

Saúde brasileiro.

autores brasileiros,

muito menor que o

ocorrência de dengue

aparentemente o artigo

suposto “burden”

nos últimos 10 anos”,

Natal, Manaus e Recife

O estudo foi motivado

Segundo os

Levando em conta

contrair e exportar a

enfrentará um risco

por avaliações genéricas,

de Hay está sendo usado

de 0,2% até 13,5%

afirma Massad. “Por fim,

estatisticamente maior.

e consideradas

por consulados, agências

apresentado no

é surpreendente que

A cidade que poderá

exageradas, sobre o risco

de turismo e outros

artigo de Hay.

a revista Nature

registrar o maior número

para turistas divulgadas

organismos estrangeiros

Os pesquisadores

de casos é o Rio de

recentemente, como a

para alertar visitantes de

brasileiros, por sua vez,

cujo único conteúdo

Janeiro. Embora a maioria

publicada em dezembro

que “a febre do futebol

advertem que o risco

consiste em dizer

dos casos se concentre

pela revista Nature por

poderia ser uma dose

pode estar superestimado,

que se você sai na

de fevereiro a maio,

Simon Hay, da

de dengue”, como diz

uma vez que turistas

chuva pode se molhar...”

10 | abril DE 2014

publique um artigo


Entre causas e sintomas

Ursos-pardos na mira dos caçadores Na província canadense da Colúmbia

não naturais (como acidentes rodoviários

Britânica o clima entre cientistas e as

ou caça) ultrapassou a taxa máxima de

O Instituto Nacional de

autoridades é tenso. A poucos dias para

mortalidade permitida pelo governo, de

Saúde Mental dos Estados

o início da temporada de caça ao urso-

6% da população de ursos ao ano. “Os

Unidos (NIHM, na sigla

-pardo, o governo local autorizou um

estudos mostram que a recuperação da

em inglês), principal órgão

aumento do número de animais que

população de ursos exige uma redução

podem ser mortos pelos caçadores: de

de 81% das mortes, porque esses animais

1.700 para 1.800, por temporada. Um

sobrevivem por muito tempo mas repro-

grupo de cientistas publicou uma carta

duzem de forma lenta”, disse à revista

na revista Science protestando. Citando

Nature Paul Paquet, biólogo da University

pesquisas sobre a população de ursos

of Victoria, Canadá. Embora algumas

na região, alegam que entre 2001 e 2011,

subpopulações estejam em declínio, a

em mais da metade das 42 regiões pró-

espécie não corre risco de extinção –

prias para caça de ursos na Colúmbia

razão pela qual as autoridades abriram

uma abordagem da

Britânica, o número de mortes por causas

para caça áreas que eram proibidas.

medicina experimental, na

de financiamento à Autoridades da Colúmbia Britânica, no Canadá, incentivam a caça de ursos; cientistas protestam

pesquisa psiquiátrica no país, anunciou que não irá mais apoiar testes clínicos que tenham como objetivo apenas amenizar sintomas dos pacientes. “Os testes deverão seguir

qual as intervenções não só sirvam para potenciais tratamentos, mas gerem informações sobre os

Intercâmbio de pesquisadores

mecanismos que causam a doença”, explicou Thomas Insel, diretor do NIHM. A nova regra faz

Uma parceria celebrada

coro com um movimento

em setembro de 2013

segundo o qual a pesquisa

durante o simpósio

2

FAPESP Week London,

dar mais ênfase às raízes

no Reino Unido, acaba

foto  Chris Servheen / USFWS  ilustrações daniel bueno

em psiquiatria deve neurobiológicas das

de ter desdobramentos.

do conhecimento e

à Pesquisa vigente na

doenças em vez

A FAPESP e o Imperial

a duração máxima de

FAPESP, desde que

de simplesmente criar

College London,

cada projeto deve ser de

sejam pesquisadores

medicamentos. Em abril

universidade criada em

24 meses. Pela FAPESP,

responsáveis ou

de 2013, o NIHM declarou

1907, lançaram a

podem submeter

principais, pesquisadores

que não seguiria mais as

primeira chamada de

propostas pesquisadores

associados bolsistas

diretrizes do Diagnostic

propostas no âmbito do

responsáveis por auxílios

de pós-doutorado e

and statistical manual

acordo de cooperação

à pesquisa vigentes

pesquisadores bolsistas

of mental disorders 5

firmado entre as duas

nas modalidades Auxílio

de doutorado. Pelo

(DSM-5), livro que orienta

instituições. A seleção,

à Pesquisa – Regular,

lado britânico, podem

a atividade de psiquiatras

aberta até 19 de maio, é

Projeto Temático,

submeter projetos

no mundo inteiro,

voltada ao intercâmbio

Jovens Pesquisadores

membros em tempo

editado pela Associação

de pesquisadores de

em Centros Emergentes,

integral da equipe

Psiquiátrica Americana.

instituições de ensino

Centros de Pesquisa,

acadêmica ou de

O DSM agrupa os

superior e pesquisa,

Inovação e Difusão

pesquisa.

pacientes por sintomas, o

públicas ou privadas, no

(Cepid), Programa

que não necessariamente

estado de São Paulo e,

de Melhoria do Ensino

considera o que está

do Reino Unido, afiliados

Público, Programa de

errado com o seu

ao Imperial College

Pesquisa em Políticas

cérebro. “Entender o

London. Cada instituição

Públicas e Programa

funcionamento do cérebro

concederá o equivalente

de Apoio à Pesquisa

é um belo objetivo, mas

a até £ 6 mil por

em Parceria para

levará décadas antes que

proposta ao ano para

Inovação Tecnológica

alguém seja beneficiado

cobrir despesas de

(Pite). São elegíveis

por isso”, criticou Allen

mobilidade. A chamada

para as atividades

Frances, professor da

está aberta a propostas

de intercâmbio membros

Universidade de Duke,

em todas as áreas

da equipe do Auxílio

segundo a revista Nature. PESQUISA FAPESP 218 | 11


Tecnociência Fuja de biscoitos, chocolates e comidas prontas

Levedura no glicerol

Se quiser manter um

consumidos a qualquer

comprados durante

peso saudável e reduzir

hora e lugar. Uma equipe

uma semana em 56 mil

o risco de problemas

da Universidade de

residências do país.

A produção de biodiesel

cardiovasculares, evite

São Paulo e da

Nas casas em que uma

em 2013 atingiu os 2,9

ter em casa alimentos

Universidade Federal de

menor proporção da dieta

bilhões de litros no Brasil.

industrializados prontos

Minas Gerais avaliou a

vinha desses produtos

Desse total sobrou como

para o consumo. Esses

oferta desses alimentos

(220 quilocalorias de um

resíduo do processo

alimentos, chamados

nas casas brasileiras e

total de 1.581), a taxa de

cerca de 10% de glicerol.

de ultraprocessados,

notou que, quanto maior

pessoas com sobrepeso

Uma quantidade que

contêm conservantes,

a quantidade de comida

e obesidade era menor:

aumenta a cada ano e

corantes e estabilizantes,

ultraprocessada,

respectivamente, 34,1%

exige várias soluções.

além de mais açúcar,

maior a taxa de

e 9,8%. Nos lares em

Uma delas foi

gordura e sal. São bolos,

sobrepeso e obesidade.

que um terço das

demonstrada por um

biscoitos, sopas, pães de

Usando dados do

calorias era fornecido

farinha branca, comidas

IBGE, os pesquisadores

por ultraprocessados,

prontas e refrigerantes.

analisaram a

esses índices foram

Mais ricos em energia

quantidade de produtos

43,9% e 13,1%

e palatáveis, podem ser

ultraprocessados

(PLoS One, março de 2014).

grupo de pesquisadores Alimentos ultraprocessados: agradáveis ao paladar, mas também mais calóricos

da Universidade de Brasília (UnB) e da Universidade Católica de Brasília (UCB). Eles utilizaram glicerol bruto, sem nenhum tipo de purificação, como meio de crescimento da levedura Pichia pastoris, utilizada na produção de proteínas úteis em processos industriais como na fabricação de hormônios, cosméticos e vacinas. Até agora se

1

utilizava o glicerol purificado. “A Pichia cresce bem no glicerol,

Marcas cerebrais do autismo

o que garante um custo menor no uso industrial”,

Alterações na

idade entre 2 e 15 anos,

os pesquisadores, as

organização dos

metade diagnosticada

manchas indicariam falhas

neurônios do córtex, a

com autismo. Usando

no desenvolvimento

camada mais superficial

marcadores moleculares,

do córtex, que começa

do cérebro, podem estar

eles observaram

a se formar por volta

ligadas ao surgimento

manchas incomuns

do quinto mês de

do autismo, grupo

nos lobos temporal

gestação. A equipe ainda

de problemas que

e pré-frontal de 10 dos 11

não sabe as causas

prejudicam a capacidade

cérebros de autistas —

dessas alterações nem

de comunicação e

essas regiões influenciam

como elas afetam o

relacionamento,

o comportamento social

comportamento. Uma

de causas ainda

e a expressão pessoal.

hipótese é que estariam

pouco compreendidas.

As manchas não foram

associadas a fatores

Em um estudo

observadas nos cérebros

genéticos, ambientais

recente, pesquisadores

de 10 das 11 crianças

ou mesmo a falhas

examinaram o cérebro de

sem autismo (NEJM,

na divisão das células

22 crianças mortas com

março 2014). Segundo

cerebrais.

12 | abril DE 2014

diz a professora Nádia Resíduo do biodiesel, o glicerol pode ser usado para produção de proteínas

Parachin, da UnB, coordenadora do estudo publicado na Bioresource Technology, de janeiro.

2


fotos 1 léo ramos  2 miguel boyayan  3 Ford  4 Fabio Pinheiro / IBOTâNICA

Roupa simula embriaguez Um traje experimental

de ataduras nos

que simula as

cotovelos, pescoço e

dificuldades de visão,

joelhos, a roupa torna

coordenação e equilíbrio

difícil executar tarefas

experimentadas pelas

simples, como andar em

pessoas que dirigem

linha reta, e demonstra

após consumir bebidas

como o álcool afeta

alcoólicas em excesso

atividades mais

foi criado pela Ford

complexas, como dirigir.

em parceria com

A “roupa de motorista

pesquisadores do

embriagado”, como

Instituto Meyer-

está sendo chamada,

Hentschel, da Alemanha,

permite às pessoas

empresa especializada

sóbrias experimentar,

em pesquisas sobre

em segurança, como

os efeitos de redução

as suas habilidades

da mobilidade.

são afetadas pelo álcool.

Composta por óculos

A Ford já produziu

com visão de “túnel” –

também trajes

Pesquisadores do

modificados funcionaram

em que há a redução

destinados à terceira

Instituto de Tecnologia

como sensores em

do ângulo de visão –,

idade e às grávidas,

de Massachusetts (MIT)

presença do óxido nítrico,

tampões de orelha,

para entender melhor

conseguiram aumentar

um gás poluente

pesos no pulso

as necessidades

em plantas a capacidade

comum na atmosfera.

e no tornozelo, além

desses motoristas.

de captação da energia

A descoberta faz das

da luz solar em 30% com

plantas chamadas

a incorporação de

“biônicas” candidatas

nanotubos de carbono

a futuros detectores

– folhas de grafeno

bioquímicos para

enroladas como canudos

monitoramento

– na organela celular

de condições ambientais.

(cloroplasto), onde ocorre

O grupo de pesquisa

a fotossíntese (Nature

do MIT acredita que a

Materials, 16 de março).

planta biônica poderá

As folhas de grafeno

ser aplicada em novos

conseguem absorver a

biomateriais para

luz solar e convertê-la em

aproveitamento de

um fluxo de elétrons. Eles

energia solar, materiais

também descobriram que

autorreparadores e

nanotubos de carbono

detectores de pesticidas.

3

Traje limita movimentos e demonstra como as habilidades são afetadas pelo álcool

Epidendrum cinnabarinum: isolada em morros rochosos da caatinga e da mata atlântica

Plantas com nanotubos

4

Berçário de novas espécies botânicas Mais uma evidência de que os morros

de São Paulo e da Paraíba, em colabo-

quilômetros a mil quilômetros de distân-

rochosos isolados chamados de inselbergs

ração com colegas da Itália e do Equador,

cia entre elas. Em alguns casos consta-

funcionam realmente como berçários de

publicada em março na revista BMC

tou-se uma forte diferenciação genética

novas espécies de plantas: a troca de

Evolutionary Biology. Os pesquisadores

dentro de uma mesma espécie, já refle-

genes entre espécies diferentes de or-

compararam marcadores genéticos de

tindo um isolamento entre as populações.

quídeas em um mesmo morro pode ser

exemplares da orquídea Epidendrum cin-

Os indivíduos de orquídeas dessas espé-

maior do que entre a mesma espécie em

nabarinum coletados em 11 lugares. Tam-

cies que cresceram na Chapada Diaman-

morros próximos, desse modo favore-

bém confrontaram esses marcadores

tina e no Planalto da Borborema mos-

cendo a formação de novos exemplares

com os de outra espécie, E. secundum,

traram uma diferenciação genética que

em um mesmo lugar. A constatação foi

de nove localidades da caatinga e mata

deve ter se intensificado ao longo dos

demonstrada em um estudo de botânicos

atlântica do Nordeste, situados de 12

últimos 120 mil anos.

PESQUISA FAPESP 218 | 13


Protetor solar da arnica

1

Resíduos radioativos

Sistema de análise virtual de locais subterrâneos para armazenar lixo das usinas nucleares

Como outras plantas,

diferentemente de

a arnica resiste aos

outros flavonoides

ambientes mais tórridos

(já foram identificados

do cerrado. Mas como,

cerca de 5 mil nas

exatamente, resiste

plantas), acumula-se

ao sol? Com essa

em abundância na

pergunta, Denise

superfície (epitélio)

Brentan da Silva,

das folhas. A localização

Norberto Peporine Lopes

e as propriedades de

e outros pesquisadores

absorção de radiação

da Universidade de

ultravioleta sugeriram

São Paulo (USP)

que esse composto

em Ribeirão Preto

poderia proteger as

examinaram folhas

plantas – ou ao menos a

de arnicas-da-serra

arnica – contra os efeitos

(Lychnophora sp)

danosos da radiação

coletadas em quatro

solar. “Provavelmente

lugares diferentes de

esta é a primeira prova

Goiás, Minas Gerais

da formação de uma

Um laboratório virtual

Mont Terri, na Suíça,

para estudo de ambientes

onde são testados, por

subterrâneos utilizados

exemplo, os sistemas de

e Bahia e encontraram

barreira fotoprotetora

para estocar o lixo

vedação. Mas o período

um acúmulo de um

em plantas com

radioativo de usinas

que cada pesquisador

flavonoide chamado

a localização específica

nucleares foi desenvolvido

fica nesses locais é

vicenina-2 (Scientific

de uma substância em

na Alemanha pelo

limitado. O sistema

Reports, abril). Já se

um tecido”, comentou

Instituto Fraunhofer para

virtual mostra as

sabia que esse composto

Lopes. Evidentemente,

Automação e Operação

formações geológicas e

apresenta propriedades

agora é necessário

de Fábricas (IFF).

todas as condições

anti-inflamatórias. Agora,

saber se esse ou outros

O país, que deve eliminar

subterrâneas do

por meio de imagens

compostos apresentam

a energia nuclear até

repositório nuclear.

por espectrometria de

comportamento

2020, tenta criar

O trabalho pode ser feito

massa, a equipe da USP

semelhante em outras

condições mais

à distância e colaborar

verificou que a vicenina-2,

espécies.

adequadas para estocar

no aprofundamento dos

resíduos radioativos

estudos e possibilidades,

por milhares de anos.

como a permeabilidade

Até agora pesquisadores

da água e de outros

europeus e norte-

líquidos e gases.

-americanos têm

Chamado de Virtus,

estudado esse problema

o sistema terá

em laboratórios

projeção, em 3D, do

subterrâneos, como em

local do armazenamento.

Diamante JUc29: luz incidente mostra formas irregulares e poços hexagonais

Um oceano no centro da Terra

2

O diamante JUc29, extraído do rio 21 de

Unidos estimaram em 1,4% da massa o

cânicas. A partir desse e outros estudos,

Abril, no município de Juína, no estado

conteúdo de água dentro do mineral

um cálculo conservador indicou que 1%

do Mato Grosso, na divisa com Rondônia,

olivina. Esse mineral estava incrustado

da massa da zona de transição seria

indicou que no interior da Terra pode

no diamante com 3 milímetros de com-

água, que poderia ir para o manto, a ca-

haver, de fato, como previsto, uma quan-

primento e massa de 0,09 grama, en-

mada intermediária do interior do pla-

tidade de água equivalente a um oceano

contrado em 2008. Diamantes como

neta. Essa água pode, por meio de fendas,

(Nature, 13 de março). Usando três téc-

esse são formados na chamada zona de

chegar à superfície, formando os oceanos

nicas diferentes (difração de raios X e

transição, em profundidades entre 410

visíveis. É a primeira evidência física de

espectroscopia Raman e infravermelho),

e 660 quilômetros, e chegam à superfí-

que a água pode ser armazenada no

pesquisadores do Canadá e dos Estados

cie por meio de erupções de rochas vul-

interior da Terra.

14 | abril DE 2014


Transformação da cor

fotos 1 Dirk Mahler / Fraunhofer  2 Richard Siemens / Universidade de Alberta  3 e 4 John Innes Centre  ilustraçãO daniel bueno

Tremores do Big Bang

O molho de massas,

que esses tomates

pizzas e o suco de

têm o dobro de vida útil,

tomate poderão ganhar

o que poderia torná-los

a cor roxa em vez da

mais atraentes

tradicional vermelha.

comercialmente. Essa

Tomates que no interior

variedade roxa foi

lembram uma beterraba

formulada a partir de

estão crescendo em

tomates comuns que

Ontário, no Canadá,

receberam um gene de

em um experimento

uma planta ornamental

do Centro John Innes

do gênero Anthirrhinum,

(JIC, na sigla em inglês),

encontrada na natureza

da Inglaterra. A cor

sobre rochas nos

é derivada de níveis

Estados Unidos, Europa

elevados de antocianinas,

e África. No Brasil,

que são compostos

a planta é conhecida

encontrados em amoras

como boca-de-leão.

e mirtilos. Estudos

O experimento é

anteriores mostraram

realizado com a empresa

que esses compostos

canadense New Energy

A descoberta ainda deve

de Tecnologia de

têm propriedades

Farm e é realizado

ser reexaminada, mas

Massachusetts (MIT),

antioxidantes, ação

naquele país da América

em março físicos dos

autor da teoria da

anti-inflamatória e em

do Norte porque

Estados Unidos

inflação cósmica

ratos já apresentaram a

existem restrições para

anunciaram a primeira

em 1980. Os

capacidade de retardar

a produção de

vez em que se

pesquisadores do

a progressão de

alimentos transgênicos

detectaram sinais

chamado projeto Bicep2

cânceres. Além desses

na Europa. Até agora o

indiretos das ondas

(Background Imaging

possíveis benefícios

desenvolvimento de

gravitacionais, descritas

of Cosmic Extragalactic

à saúde que poderão

plantas geneticamente

pela teoria da gravitação

Polarisation telescope),

ser comprovados

modificadas tem ficado

de Einstein (Nature, 17

mantido pela

com o estudo do

restrito a benefícios

março). Se confirmado,

Universidade Harvard,

suco do legume, os

existentes no plantio,

o feito poderá reforçar

observaram as ondas

pesquisadores liderados

em rechaçar certos

a chamada teoria da

gravitacionais por meio

pela professora Cathie

insetos ou em ganhar

inflação cósmica,

de detectores de

Martin, do JIC, relatam

resistência a herbicidas.

formulada nos anos

micro-ondas instalados

1980, segundo a qual

na Antártida,

teria havido uma

examinando a radiação

repentina expansão do

cósmica de fundo,

Universo nas primeiras

gerada pela expansão

frações de segundo

inicial do Universo: a

após o Big Bang,

diferença na distribuição

a explosão da qual

de temperatura e

teria se originado, há

matéria, resultante

13,8 bilhões de anos.

da radiação, seria

A rápida expansão teria

um sinal das ondas

produzido as ondas

gravitacionais. As ondas

gravitacionais, definidas

esticam e comprimem

como tremores no

o espaço enquanto

espaço-tempo causados

viajam, fazendo a

por forças gravitacionais

matéria se aglomerar em

intensas que foram

intervalos determinados,

definidas como “apenas

formando as galáxias.

uma tremulação da

Outros experimentos

matéria”, como definiu

tentam registrar sinais

Alan Guth, do Instituto

das ondas gravitacionais.

Tomate roxo transgênico: benefícios à saúde humana serão testados

3

4

PESQUISA FAPESP 218 | 15


capa

o golpe para além das imagens Perguntas e hipóteses de centenas de historiadores e cientistas sociais compõem os eixos fundamentais por onde avança o conhecimento da ditadura brasileira de 1964-1985

Tanques do Exército a caminho do Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, em 1º de abril de 1964

16 | abril DE 2014


O

dirija ao Palácio do Planalto para empossar o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, na Presidência da República. Emblemáticas são igualmente as imagens dos tanques do Exército ocupando o centro do Rio de Janeiro ou a praça dos Três Poderes, em Brasília, ou, dias depois, as do líder comunista Gregório Bezerra, ferido, sendo arrastado no chão por soldados, pelas ruas de Recife. Entretanto, nas últimas décadas, a pesquisa em ciências humanas e sociais no Brasil, circunscrevendo-se a seu campo próprio e, para isso, valendo-se também e legitimamente de outras fontes confiáveis de investigação, tratou de conhecer e decifrar, para além das imagens, o golpe de 1964 e a ditadura que a ele se seguiu por 21 anos. Historiadores, sociólogos, antropólogos, cientistas políticos, economistas e pesquisadores do direito formularam as perguntas que julgavam cruciais, propuseram hipóteses, lançaram-se a estudos, e desse labor resultaram algumas questões amplas que parecem compor os eixos fundamentais por onde avança o conhecimento do período, alguns com mais densidade, outros ainda com certa rarefação de respostas, a exigir novas pesquisas. Entre estes, podem-se alinhar:

Arquivo / Agência O Globo

s fatos imediatos que definem o golpe civil-militar de 31 de março de 1964 estão contados à exaustão e suas imagens mais emblemáticas, além de terem sido generosamente servidas à opinião pública por diferentes meios de comunicação e com distintos enfoques nas últimas semanas, permanecem na web à disposição dos que desejam acessá-las com mais vagar, em um ritmo reflexivo mais particular. Entre essas imagens está a filmagem em preto e branco do presidente do Congresso Nacional, o senador paulista Auro Soares de Moura Andrade, declarando, na madrugada de 2 de abril, a vacância da Presidência da República – mesmo encontrando-se o presidente constitucional do país, João Goulart, em território nacional – numa tumultuada sessão parlamentar em que se ouvem com clareza os xingamentos dirigidos pelo senador mineiro Tancredo Neves a seu colega paulista e os gritos reiterados de “golpista” que partem de alguém em outra parte do auditório. Na sequência, se veem meio confusamente as cusparadas lançadas pelo deputado Rogê Ferreira no rosto de Moura Andrade, antes que este deixe o plenário e se

pESQUISA FAPESP 218 | 17


1

2

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4

5

6

O golpe do Congresso

1. qual a real natureza do golpe de 1964 e quais os seus agentes; 2. quais os ordenamentos jurídicos e institucionais que permitiram à ditadura brasileira de 1964-1985 um funcionamento distinto de outras ditaduras do continente; 3. como a ditadura se insere organicamente no processo histórico do Brasil; 4. quais os impactos da ditadura sobre a sociedade brasileira, sobre suas instituições e o desenvolvimento econômico; 5. quais os efeitos da ditadura sobre a cultura e a produção cultural brasileiras. Ao entrar, aproveitando os 50 anos do golpe de 1964, no vasto e denso matagal da pesquisa norteada por tais eixos, com a determinação de trazer à luz o que de mais relevante se produziu até aqui neste campo complexo, polêmico e gerador de distintas paixões, Pesquisa FAPESP contou desde o início com alguns guias funda-

mentais para o percurso: os historiadores Maria Helena Capelato e Marcos Napolitano, ambos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), a socióloga Angela Alonso e a historiadora Miriam Dolhnikoff, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), o sociólogo Marcelo Ridenti, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp) e a cientista política Glenda Mezarobba, da FAPESP, atualmente cedida à Comissão Nacional da Verdade (CNV), que atuou também na edição do material. A partir das orientações deles, dezenas de pesquisadores foram ouvidos e ajudaram a construir o relato especial de Pesquisa FAPESP sobre os 50 anos do golpe de 1964 que se estende pelas próximas páginas.

Foto Arquivo / Agência O Globo  1 a 6 reprodução youtube

O senador Auro Moura Andrade declara a vacância da Presidência da República (1) sob a perplexidade de Tancredo Neves (2). Doutel de Andrade, que lera o comunicado de Jango, protesta no microfone (3). Confabulações do deputado Ernani do Amaral Peixoto, sentado à esquerda (4). Moura Andrade informa que Ranieri Mazzilli assumirá a Presidência da República (5) e Almino Afonso, ministro do Trabalho de Jango, inconformado, protesta (6)

18 | abril DE 2014


Braços civis de uma intervenção militar Estudos discutem participação de setores da sociedade no golpe de 1964 Rodrigo de Oliveira Andrade

ARQUIVO / A TRIBUNA /AE

P

assados 50 anos do golpe de 1964, ainda ecoa em alguns setores da sociedade a imagem dos tanques deslocando-se às escuras pelas ruas de Juiz de Fora, Minas Gerais, rumo ao Rio de Janeiro — então um dos centros da política brasileira —, cercados por tropas comandadas pelo general Olympio Mourão Filho, como se o golpe que derrubou o então presidente João Goulart, o Jango, e afundou o país numa ditadura de mais de duas décadas tivesse sido resultado de uma engenharia política unilateral, imposta de cima para baixo pelos militares. Estudos recentes, produzidos em diferentes áreas, têm procurado aprofundar o conhecimento sobre as condições, processos e ações que culminaram na queda de Goulart, à medida que fortalecem a corrente crítica de que o golpe teria sido fruto de uma crise política que envolveu diferentes atores. Assim, tem sido cada vez mais recorrente entre historiadores, sociólogos e cientistas políticos atribuir ao golpe uma natureza também civil, e não só militar. “A participação de grupos civis no golpe hoje é inegável, assim como o apoio de setores civis à ditadura”, afirma a historiadora Miriam Dolhnikoff, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCHUSP). “A questão é que critérios utilizar para caracterizar o regime que se instalou em seguida. Se houve participação e apoio civil, é importante destacar que os militares mantiveram o controle das decisões políticas em suas mãos.” Para o historiador Marcos Napolitano, também da FFLCH-USP, o regime que se seguiu ao golpe deve ser qualificado apenas pela sua natureza militar. “A construção do regime foi centralizada

nas Forças Armadas. Após o golpe, os civis foram colocados em segundo plano, do ponto de vista político”, explica. Isso não quer dizer que os civis não foram beneficiários do regime. Muitos empresários e políticos, entre outros, foram sócios da ditadura. Já o golpe de 1964, ele diz, teria sido resultado de uma ampla e complexa coalizão, na qual os civis desempenharam um papel fundamental, “embora os agentes principais, ainda assim, tenham sido os militares”. Napolitano é autor do recém-lançado 1964: histórias do regime militar brasileiro (Contexto), livro em que faz um balanço histórico dos anos do governo de João Goulart, da configuração do movimento que desencadeou o golpe e do regime militar que o seguiu. O livro é resultado de trabalhos de mestrado e doutorado orientados por ele, e também de um projeto voltado à avaliação da transição da

Marcha da Família com Deus pela Liberdade em Andradas, Minas Gerais

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crise política do governo de Jango para o golpe de 1964. Nele, Napolitano e seu orientando de mestrado, David Ribeiro, analisaram teses acadêmicas que explicavam o golpe sob a justificativa de que ele teria sido resultado da radicalização de seus autores ou da falta de compromisso com a democracia, apresentando o protagonismo exercido pelo Poder Legislativo no processo de formulação, execução e legitimação do golpe. Além de potencializar os conflitos ideológicos da sociedade, as decisões políticas tomadas no Congresso Nacional em O golpe foi meio aos debates sobre as reformas resultado de teriam sido cruciais para o desgaste e isolamento político de Goulart, uma ampla e segundo eles. O envolvimento de outros setores complexa coalizão, civis também foi fundamental para desestabilizar o governo de Jango, na qual os civis preparar o clima do golpe e legitidesempenharam mar a ação dos militares. Empresários, a Igreja Católica e a própria um papel Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por exemplo, foram a favor fundamental, da intervenção militar. A conclusão é da historiadora Denise Rollemafirma Napolitano berg, do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), no Rio de Janeiro. No artigo “Memória, opinião e cultura política – A Ordem dos Advogados do Brasil sob a ditadura (1964-1974)”, publicado no livro Modernidades alternativas, organizado pelo historiador Daniel 20 | abril DE 2014

Aarão Reis, da UFF, ela relata que, em 7 de abril, o Conselho Federal da OAB, em reunião, comemorou a vitória do movimento golpista, aliviado por estar do “lado das forças justas”.

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artigo é resultado de um projeto maior, desenvolvido por Denise no Núcleo de Estudos Contemporâneos (NEC) da UFF e financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Nele, a pesquisadora faz uma análise das declarações oficiais de várias instituições nos primeiros meses após o golpe. A Comissão Central da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) divulgou, em julho de 1964, a “Declaração da CNBB sobre a situação nacional”, em que se posiciona afirmando que “atendendo à geral e angustiosa expectativa do povo brasileiro, que via a marcha acelerada do comunismo para conquistar o Poder, as Forças Armadas acudiram em tempo, e evitaram que se consumasse a implantação do regime bolchevista em nossa terra”. Segundo Reis, as lideranças eclesiásticas cristãs conservadoras, como a Igreja Católica — à exceção de alguns bispos e da Ordem dos Dominicanos —, ajudaram ainda a impregnar a luta política com valores religiosos. “Para eles, era preciso não só ‘salvar a democracia’, mas também ‘salvar a civilização cristã’, agitando-se, assim, o espantalho do comunismo.” Por sua vez, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) não formalizou seu apoio, como o fez a OAB e a CNBB, conta Denise. Mas a leituras das


1 João Goulart cumprimenta populares na Vila Portuária, no Rio, ao lado de Tancredo Neves

fotos 1 ARQUIVO /ESTADÃO CONTEÚDO /AE  2 AGÊNCIA O GLOBO

2 Manchete d’O Globo sobre a posse de Ranieri Mazzilli, após a declaração de vacância da presidência da República

atas das reuniões ordinárias e extraordinárias e do boletim de seu conselho administrativo sugere certa diversidade de posições nos debates.

A imprensa

A imprensa tornou-se peça-chave na conspiração contra Goulart em fins de 1963, segundo Marcos Napolitano, quando três dos principais jornais cariocas — O Jornal, dos Diários Associados, Jornal do Brasil, da família Nascimento Brito, e O Globo, da família Marinho — uniram vozes na chamada Rede da Democracia, um arranjo midiático a favor da destituição do governo de Goulart. O movimento era inspirado no seu contrário, a Rede da Legalidade, organização de resistência liderada três anos antes por Leonel Brizola, à época governador do Rio Grande do Sul, contra a quebra da legalidade constitucional articulada pelo Exército, Marinha e Aeronáutica na tentativa de impedir que Jango assumisse o governo após a renúncia de Jânio Quadros, em 1961. A exemplo da rede de Brizola, a Rede da Democracia usou o rádio para ajudar a enfraquecer o governo Goulart. Todos os dias, explica o pesquisador, subsidiados por organizações como o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), políticos, empresários, militares, jornalistas e sindicalistas, entre outros, articulavam-se em oposição ao então presidente, em discursos em defesa do nacionalismo contra o comunismo, críticas à ineficiência do Congresso, à falta de legitimidade de Jango e ao perigo de o governo ceder às pres-

sões das manifestações de massa e dos movimentos populares. Meio século depois, a Rede da Democracia tem sido objeto recorrente de estudos, atraindo a atenção de historiadores que tentam entender até que ponto ela influenciou o processo de disputa pelo controle do Estado por meio da doutrinação ideológica voltada à desestabilização do governo de Goulart. O trabalho mais recente é o do historiador Aloysio Castello de Carvalho. Em sua pesquisa de pós-doutorado em história social na USP, cujos resultados foram publicados no livro A Rede da Democracia: O Globo, O Jornal e Jornal do Brasil na queda do governo Goulart (1961-1964), ele procura identificar padrões discursivos na retórica conser2 vadora e antirreformista usada pelos jornais nas críticas ao governo de Jango (ver Pesquisa FAPESP nº 181). Mas não foi só por meio de coalizões que a imprensa se articulou para desestabilizar Goulart e consolidar a ideia de que o país caminhava para o comunismo. Além do Jornal do Brasil e O Globo, o Correio da Manhã foi um dos mais importantes jornais brasileiros da época, não só quanto ao aspecto empresarial, mas também com relação à sua participação na política nacional. A historiadora Maria Helena Capelato, professora da FFLCH-USP e há muito envolvida com estudos sobre a história da imprensa no Brasil, tem analisado as manchetes e títulos de editoriais e artigos da grande imprensa durante o período que antecedeu ao golpe. O Correio da Manhã publicou dois textos que entraram para a história, segundo ela. Um editorial intitulado “Basta!”, em 31 de março de 1964, conclamava a renúncia de Goulart, sob o argumento de que o presidente contribuíra para cultivar a intranquilidade e a insegurança entre a classe produtora, desregular a inflação e desagregar as Forças Armadas por meio da indisciplina. Um dia depois, em 1° de abril, outro editorial publicado pelo jornal, com o título “Fora!”, indicava o clima de radicalização política ao qual o país havia chegado. Para Maria Helena, os textos dos dois editoriais demonstram o intenso envolvimento dos representantes do jornal no golpe. “Os títulos mostram o impacto que certas expressões têm. Alguns autores, por exemplo, se referem a elas como ‘palavras balas’, devido à sua capacidade de atingir o cérebro do leitor”, diz. Ela explica que em pesquisas historiográficas sobre o regime militar os jornais são usados apenas como pESQUISA FAPESP 218 | 21


1 Tanque do exército em frente ao Palácio da Guanabara, no Rio de Janeiro 2 Estudantes do Mackenzie saem em passeata até a praça da República, SP, onde fazem comício de apoio ao golpe

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fonte, sendo raros os trabalhos que os utilizam como objeto específico de estudo. “A imprensa em geral e os jornais da grande imprensa brasileira em particular foram atores de extrema relevância naquele período.”

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pesquisadora acaba de escrever um artigo sobre a participação da imprensa no golpe para a coletânea Histórias do tempo presente, organizada pela historiadora Marieta de Moraes Ferreira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), prestes a ser lançada pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas (FGV). Em março, Maria Helena coordenou um simpósio internacional, intitulado O Golpe de 1964 e a Onda Autoritária na América Latina, na USP, com apoio da FAPESP. Por outro lado, a historiadora ressalta que alguns dos jornais que apoiaram a intervenção dos militares, entre eles o Correio da Manhã, condenaram o empastelamento, por exemplo, do Última Hora após os militares tomarem o poder. Segundo ela, as publicações que aplaudiram o golpe, a exemplo de outros setores civis, clamavam por uma intervenção cirúrgica que restaurasse a ordem e devolvesse o poder ao povo. “Logo a imprensa percebeu que o caminho seria diferente. Foram censurados e, então, passaram a participar dos movimentos pela redemocratização anos mais tarde”, comenta. A postura do Jornal do Brasil durante a primeira fase do regime foi diferente da assumida pelo Correio da Manhã. O jornal comemorou a vitória

dos golpistas em manchetes como a de 1º de abril: “De Norte a Sul vivas à contrarrevolução”. Dias depois da mudança no poder, conta Maria Helena, o jornal demonstrou entusiasmo em relação à posse do marechal Humberto de Alencar Castello Branco em manchete – “Rio festeja a posse de Castello” – e defendeu as cassações de políticos, alegando que elas eram fruto da crise vivida pelo país. Apoio igualmente explícito foi dado pelo O Globo, que, além de ajudar a legitimar o golpe, apoiou a ditadura ao longo dos anos. “A apologia do ‘milagre econômico’, expressa em editorial de 1984, por exemplo, pode ser entendida como uma tentativa de desviar a atenção dos leitores quanto aos benefícios que recebeu do poder nesse período”, diz Maria Helena. Em agosto de 2013, as 1 Organizações Globo reconheceram que apoiar o golpe foi um erro. A trajetória dos principais jornais de São Paulo seguiu a mesma toada. Segundo ela, num primeiro momento, O Estado de S.Paulo apelou à intervenção militar, aplaudiu a Marcha da Família com Deus pela Liberdade — série de manifestações civis promovidas entre março e junho de 1964 contra o comunismo, o governo e sua agenda reformista — e festejou o sucesso do golpe. Ao longo da ditadura, porém, o jornal assumiu uma postura crítica e sofreu com a censura. É bastante conhecido o recurso da publicação dos poemas de Camões e das receitas de bolo no lugar das notícias censuradas. Nos anos finais do regime, conta Maria Helena, o jornal participou da luta pela redemocratização do país e “até hoje se vangloria de ter lutado pela volta da democracia no Brasil”. Já a Folha de S.Paulo, segundo a historiadora, fez críticas moderadas ao governo e às reformas de Goulart, mas também apoiou a marcha, manifestou-se a favor do golpe e, em seguida, fez elogios ao novo presidente Castello Branco. “A Folha de S.Paulo apoiou o golpe, mas assumiu uma postura mais reservada quanto ao novo regime”, comenta. “É possível supor que essa atitude foi adotada para não pôr em risco o patrimônio da empresa e a reputação do jornal.” Ela explica que com o Ato Institucional nº 5, o AI-5, que deu poderes absolutos aos militares, a Folha optou pela autocensura, chegando depois a colaborar com os agentes da repressão encarregados das prisões e torturas — ao todo, o Estado brasileiro foi responsável pela morte de 426 pessoas entre 1964 e 1985, segundo a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Já os da-


dos oficiais da Presidência da República mostram que 475 processos envolvendo vítimas da ditadura militar passaram pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da Secretaria Nacional de Direitos Humanos. Em editorial publicado em 30 de março de 2014, a Folha também reconheceu que, “aos olhos de hoje, apoiar a ditadura militar foi um erro, mas as opções de então se deram em condições bem mais adversas que as atuais”.

Os jornais da grande imprensa brasileira foram decisivos na campanha para desestabilizar o governo de Goulart, segundo Maria Helena

Ecos da conspiração

fotos 1 ARQUIVO /ESTADÃO CONTEÚDO /AE  2 Nivaldo /Acervo UH / Folhapress

Para o cientista social Paulo Ribeiro da Cunha, professor da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Marília, houve avanços importantes quanto à produção científica, pautada em pesquisas e livros, voltada à reflexão do período da ditadura, embora admita que “ainda há muito por resgatar”. Mas para o historiador Carlos Fico, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ e coordenador de história na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), apesar do crescente interesse de jovens historiadores e estudantes de graduação em história pelo período ditatorial, boa parte dos projetos de mestrado e doutorado na área não se propõe a estudar os processos que levaram ao golpe.

Ele cita um levantamento do Grupo de Estudos sobre a Ditadura Militar da UFRJ, que verificou que entre 1971 e 2000 foram produzidas 214 teses de doutorado e dissertações de mestrado sobre a história da ditadura militar, 205 delas no Brasil. Segundo Fico, um estudioso da produção historiográfica brasileira a respeito da ditadura militar, o crescimento do número de investigações sobre a temática é visível, em parte devido ao aumento de alunos que ingressaram na universidade. Entre 1971 e 1975, por exemplo, foram defendidos apenas dois trabalhos. Já entre 1986 e 1990 houve 47 defesas. Entre 1996 e 2000 foram registradas 74 teses e dissertações. Os principais focos de interesse foram os movimentos sociais urbanos, temas da arte e da cultura, economia e assuntos relacionados à esquerda e à oposição em geral. Em seguida vêm a imprensa, a censura e o movimento estudantil. Durante todo esse período, ele ressalta, apenas seis estudos focaram a natureza do golpe. Essa produção historiográfica reforça a tese de que o discurso antigovernista da imprensa encontrou adeptos em muitos segmentos civis, diz Napolitano, que atualmente coordena um projeto de pesquisa, apoiado pelo CNPq, voltado ao estudo do processo de construção e adensamento da memória sobre o regime militar construída pela imprensa a partir de 1974. A alegação de corrupção — como hoje, atribuída quase sempre ao populismo da esquerda — e a incompetência administrativa de Jango marcavam o tom das críticas de setores sociais amedrontados pelo que julgavam ser a “proletarização” do país. Para Napolitano, esse discurso, na verdade, serviu para encobrir velhos interesses. “A ascensão dos ‘de baixo’ é sempre vista como ameaça aos que estão nos andares de cima do edifício social.” O historiador se refere às reformas de base, uma das marcas do governo Goulart.

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ara Marco Antonio Villa, professor aposentado do Departamento de Ciências Sociais do Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Jango nunca definira claramente essas medidas. Em seu livro Ditadura e democracia no Brasil (Zahar), no entanto, o historiador Daniel Aarão Reis verificou que o reformismo de Goulart previa a distribuição da terra por meio do rompimento de monopólios; o crescimento planejado das cidades, combatendo a especulação imobiliária; a criação de um sistema estatal para o financiamento de atividades que garantissem a autonomia nacional; e a incorporação do voto de soldados, graduados das Forças Armadas e analfabetos, entre outros pontos. Reis, no entanto, afirma que é preciso relativizar o papel de Jango nesse ponto da história. “O programa das reformas de base foi estruturado por uma pESQUISA FAPESP 218 | 23


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o historiador identificou mais de 100 entidades civis que saíram às ruas contra o comunismo e a agenda reformista de Jango, entre elas a Organização pela União Cívica Feminista, entidade conservadora e anticomunista da época.

Golpe final

Efetivado o golpe, veio a cartada final. Não dos militares, “mas da instituição que, a rigor, deveria defender a legalidade constitucional: o Congresso Nacional”, destaca Paulo Cunha. Em 2 de abril de 1964, em meio a manifestações como a Marcha da Vitória, no Rio, foi declarada a “vacância” de Goulart, que ainda estava no Rio Grande do Sul, prestes a exilar-se no Uruguai. Em termos práticos, diz Cunha, “o Congresso determinou que o país estava sem presidente, sendo que o presidente ainda estava no Brasil”. Dias depois, em 11 de abril, os parlamentares elegeram Castello Branco para ocupar o posto de Goulart. “No contexto de polarização política, o Congresso teve maior responsabilidade pelas medidas que não tomou, já que não foi capaz de gerenciar a crise política ou negociar saídas institucionais democráticas”, conclui Miriam Dolhnikoff, também pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), fundado logo após o AI-5 por professores aposentados compulsoriamente pelo regime.

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ango não resistiu ao golpe, mas poderia tê-lo feito, pondera Cunha. Segundo ele, Goulart tinha apoio social e, inclusive, de alguns comandos importantes nas Forças Armadas. Cunha tem coordenado, desde 2004, um projeto com o objetivo de estudar a intervenção política de militares de esquerda e comunistas ao longo do século XX e, particularmente, o papel do setor militar do Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Antimil, nas Forças Armadas. O projeto se baseia em entrevistas, leituras da imprensa e fontes documentais. Mais recentemente, o pesquisador procura resgatar a história da Associação Democrática e Nacionalista dos Militares (Adnam), entidade formada por militares cassados cuja expressão política, segundo ele, foi a continuidade de uma atuação da esquerda militar no pós-64 no sentido de conquistar a anistia e a democracia. Além do respaldo de parte dos militares, Jango também contava com apoio popular. Segundo Napolitano, dados do Ibope de março de 1964 mostram que o presidente tinha boa aprovação pública nas principais cidades do Brasil, com 45% de “ótimo” e “bom” na avaliação de governo e 49% das intenções de voto caso fosse candidato em 1965 — a reeleição à época era proibida. Apenas 16% consideravam seu governo “ruim ou péssimo” e 59% eram favoráveis às reformas apresentadas nos comícios de 13 de março, na Central do Brasil, no Rio.

fotos 1 ARQUIVO /ESTADÃO CONTEÚDO /AE  2 DOMICIO PINHEIRO / ESTADÃO CONTEÚDO /AE

ampla frente de movimentos sociais e lideranças políticas”, afirma. “Diante dele, Goulart sempre hesitou e tergiversou. Foi só em seus últimos meses de governo que ele começou a inclinar-se às posições reformistas.” Em seu livro, fruto de uma intensa revisão bibliográfica, Reis explica que essas medidas, no entanto, não foram suficientes para que seu projeto tivesse apoio unânime, ao passo que a opinião mais conservadora começou a se articular em grupos de pressão, cujas críticas intensificaram-se ante a apresentação do Plano Trienal, uma combinação de estímulos e restrições elaborada por Celso Furtado, então ministro do Dados do Ibope Planejamento, para incentivar o dede março de senvolvimento e dominar a inflação. “O Plano Trienal foi abandonado no 1964 mostram primeiro semestre de 1963. E, em meio à turbulência política, a inflação não boa aprovação parou de crescer. Em 1960 estava em 30,5%. Um ano depois foi para 47,8%. pública de Jango Em 1962 saltou para 51,6%”, afirma nas principais Marco Antonio Villa, cujas pesquisas deram origem ao livro recém-lançado cidades do Brasil Ditadura à brasileira – A democracia golpeada à esquerda e à direita (LeYa). O país dividira-se. Manifestações civis espalhavam-se em vários estados. No dia 19 de março de 1964, a primeira Marcha da Família com Deus pela Liberdade reuniu cerca de 500 mil pessoas no centro de São Paulo, entre elas lideranças da classe média e da Igreja Católica e políticos, como Ulysses Guimarães, um dos líderes da marcha, segundo Reis. Outras manifestações seguiram-se dias mais tarde, como a de Santos, litoral paulista — ainda pouco estudada, de acordo com Napolitano. Em suas pesquisas,


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1 Multidão ouve Jango defender as reformas de base no comício na Central do Brasil

Para Carlos Fico, João Goulart decidiu não resistir por várias razões. Entre elas porque o Congresso o impediu, e também porque já não contava mais com apoio de setores militares. “O próprio Jango era de índole pacifista. Qualquer tentativa de conter o golpe poderia desencadear uma guerra civil”, avalia o historiador. Segundo ele, a principal razão para Goulart não resistir talvez tenha sido o fato de, na manhã de 1º de abril, o ex-ministro da Fazenda San Tiago Dantas tê-lo avisado de que os Estados Unidos (EUA) reconheceriam e apoiariam um governo alternativo ao dele. Fico é coordenador de um projeto de pesquisa com o objetivo de ampliar a compreensão dos sistemas repressivos da ditadura militar brasileira e entender a influência dos EUA nas ditaduras do Brasil e da Argentina. Seus estudos deram origem, entre outros, ao livro O Grande Irmão: da Operação Brother Sam aos anos de chumbo – O governo dos Estados Unidos e a ditadura brasileira (Civilização Brasileira), editado em 2008. De acordo com Fico, os principais achados sobre a participação dos EUA no golpe de 1964 foram divulgados entre os anos de 1970 e 1980, co-

2 O ministro da Justiça, Luis Antônio Gama e Silva, e o locutor da Agência Nacional, Alberto Curi, anunciam o AI-5

AS Ondas da violência Total de mortos pela repressão política entre 1964 e 1985 – e o número de pessoas cujos corpos nunca foram encontrados

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fonte  Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos

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mo a descoberta da Operação Brother Sam, que consistiu na disponibilização de suplementos militares, incluindo um porta-aviões, aos golpistas. “Os EUA viam Goulart com enorme desconfiança. Eles não queriam uma segunda Cuba na América Latina”, explica. “O governo Kennedy auxiliou a configuração do golpe. Mas com a não resistência de Goulart o uso desse aparato não foi necessário.” Fico obteve recentemente o plano de contingência discutido pelo embaixador norte-americano Lincoln Gordon com o Departamento de Estado em dezembro de 1963, o qual sustenta a tese de que Kennedy poderia intervir, se necessário. Essa discussão vem sendo retomada mais recentemente, diante da divulgação de novos documentos, antes sigilosos, sobre a participação dos EUA no golpe de 1964 (ver matéria na página 43). Em entrevista recente, o cientista político e brasilianista Thomas Skidmore, da Universidade Brown, nos EUA, afirmou ter sido informado do golpe um dia antes, em 31 de março, num jantar com Gordon, no Rio. Em 2006, Skidmore doou seus arquivos pessoais, com cerca de 6 mil documentos, em português e inglês, para a Brown — os arquivos podem ser acessados no endereço http://library. brown.edu/collections/skidmore/. Por mais que as pesquisas sobre a época tenham avançado, ainda há lacunas na história que precisam ser investigadas. “A própria participação do Congresso carece de estudos mais específicos”, comenta Cunha. O mesmo pode ser dito sobre a participação dos empresários antes, durante e depois do golpe — ainda muito pouco estudada. Para Carlos Fico, muitos veem o golpe como evento inaugural da ditadura. Na verdade, diz o historiador, ele foi a expressão de um autoritarismo que por muito tempo rondou o país. “Esse evento-chave da história do Brasil ainda precisa ser melhor estudado”, conclui. Reis, por outro lado, ressalta que ainda é preciso entender melhor as conexões da ditadura com as lideranças sindicais — urbanas e rurais. “Há um tabu sobre o assunto, mas ele tende a cair nos próximos anos”, afirma. Segundo ele, sem compreender a ditadura como um constructo social e histórico, se avançará muito pouco no entendimento do período ditatorial. n

1 Da crise política ao golpe de Estado: conflitos entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo durante o governo de João Goulart (nº 2013/25214-3); Modalidade Auxílio Publicação Regular - Livro Brasil; Pesquisador responsável Marcos Francisco Napolitano de Eugenio (FFLCH/USP); Investimento R$ 6.000,00 (FAPESP). 2 Da renúncia ao golpe: a consolidação do projeto golpista no Congresso Nacional (nº 2010/14533-2); Modalidade Bolsa no País – Regular – Mestrado; Pesquisador responsável Marcos Francisco Napolitano de Eugenio (FFLCH/ISP); Bolsista David Ricardo Sousa Ribeiro; Investimento R$ 25.752,10 (FAPESP). 3 O golpe de 1964 e a onda autoritária na América Latina (nº 2013/21149-2); Modalidade Auxílio Organização – Regular; Pesquisadora responsável Maria Helena Rolim Capelato (FFLCH/USP); Investimento R$ 20.766,76 (FAPESP).

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marcas profundas Especialistas examinam os efeitos dos 21 anos de ditadura na sociedade contemporânea Eduardo Nunomura

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assaram-se cinco décadas, outras tantas se passarão e o golpe de 1964 permanecerá selando nossa realidade. Quem o diz é o saber científico acumulado em anos de artigos, livros publicados e projetos de pesquisa nas melhores instituições de ensino do país. Parte do que somos, do que poderíamos ser e do que jamais seremos está ligada à herança do regime militar no Brasil. De um lado, caminhamos para a sétima eleição presidencial democrática e podemos celebrar o fato de ter tido um professor exilado, um líder sindical preso na ditadura e uma guerrilheira presa e torturada ocupando o posto máximo da República. De outro, muito do que ainda nos falta como nação se deve a um Estado e a uma sociedade que não se desfizeram das amarras e armadilhas do passado. Os pesquisadores se debruçaram e prosseguem com afinco na análise dos impactos e consequências de um período que ainda rende inúmeras teses e dissertações, mas talvez jamais consigam responder a uma questão crucial: seremos capazes de um dia virar a página da história? Em 2014, os brasileiros viram as cenas de barbárie da faxineira Claudia Silva Ferreira sendo arrastada por um carro da Polícia Militar, na zona norte do Rio, após ter sido baleada num fogo cruzado entre traficantes e policiais. “A tortura, os assassinatos e os desaparecimentos foram políticas de Estado na ditadura, mas a violência policial continua sendo praticada sistematicamente no Brasil”, critica o historiador Francisco Carlos Teixeira da Silva, coautor de Modernização, ditadura e democracia: 1964-2010 (Objetiva, 2014). A gênese dessa violência une os porões da polícia do Estado Novo, os órgãos de repressão mantidos vivos na democracia de 1946 a 1964, os 21 anos de regime militar e a polícia e os pa26 | abril DE 2014

ramilitares e milicianos dos nossos dias, explica o historiador, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A atual democracia poderia ter dado um basta nessa lógica, mas não o fez. Em 2010, o Supremo Tribunal Federal recusou “abrir velhas feridas” ao se opor à revisão da Lei da Anistia. “1964 continua acontecendo a cada dia”, diz Teixeira da Silva. Para um jovem nascido na democracia, talvez seja difícil relacionar a repressão da polícia do Exército com a institucionalização da violência e a militarização das polícias. Mas isso é um fato e também um campo de estudo. O Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) foi criado em 1987 para investigar por que o Brasil que se redemocratizava manteve traços de uma herança autoritária e para refletir sobre os desafios que esse passado ainda apresenta para a consolidação do Estado democrático de direito. De lá para cá, as taxas de criminalidade explodiram dos anos 1980 aos 1990, sobretudo a de homicídios, e agora a socie-


país, tendo como objeto de estudo o esquadrão da morte. Segundo ele, ali começou a firmar-se uma espécie de pacto com a opinião pública que tolera a matança de criminosos – ou suspeitos de terem cometido crimes – por agentes policiais como se fosse adequada política de segurança. O núcleo já realizou estudos sobre a impunidade penal, as consequências da permanência do perfil militar das polícias e a violação dos direitos humanos.

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DIDA SAMPAIO / ESTADÃO CONTEÚDO / AE

Policiais militares reprimem manifestantes em Brasília, em 2009: violência praticada por agentes do Estado é uma das heranças da ditadura

dade se vê às voltas com o crime organizado. Há pelo menos duas gerações, a população deixou de enxergar a polícia como eficiente. O sociólogo Sergio Adorno, coordenador do NEV-USP e diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, lembra que na ditadura imperava o medo de falar. Nos anos 1970, Adorno era universitário e nas aulas de sociologia seus professores não podiam citar a palavra “marxismo”. A censura abafava o fenômeno da violência, que só se tornou bastante visível depois da saída dos militares. “As instituições encarregadas da aplicação de lei e ordem continuam adotando um tratamento autoritário para conter a violência e têm uma concepção da ordem que é inspirada na lógica da guerra”, explica. “O criminoso é um inimigo que deve ser extirpado.” O NEV-USP é desde 2000 um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP. A Fundação tem financiado várias pesquisas sobre o tema, como a de uma investigação de Adorno sobre a continuidade do discurso autoritário no

cientista política Maria Helena Moreira Alves também se dedica a estudar os resquícios do golpe de 1964 sobre a doutrina de segurança nacional, ainda em pleno vigor em sua opinião. Ela entende que as instituições brasileiras continuam incapazes de dar respostas à democracia. E isso decorre do fato de que elas não se abriram para as outras classes sociais, mas se tornaram peças utilitárias para a preservação de poder das elites. A pesquisadora cita o Judiciário, os partidos, as polícias e a imprensa como algumas das instituições que falham em não representar os interesses da maioria da população. “Diferentemente do período da resistência, focada na luta armada de classe média, hoje as vítimas da violência são pobres, camponeses e os moradores das periferias, que desaparecem ou são silenciadas”, critica a autora de Vivendo no fogo cruzado (Editora Unesp, 2013), sobre a política de retomada dos morros e comunidades pelo governo do Rio. Irmã caçula do deputado Márcio Moreira Alves, cujo discurso desafiador no Congresso foi o estopim para a decretação do Ato Institucional Número 5 em 1968, Maria Helena publicou também Estado e oposições no Brasil: 1964-1984 (Vozes, 1984) e é professora aposentada da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Presa em 1970, torturada nos porões do Doi-Codi do Rio de Janeiro, a historiadora e psicóloga Cecília Maria Bouças Coimbra defendeu tese de doutorado que foi publicada em livro já esgotado sob o título Guardiães da ordem: uma viagem pelas práticas “psi” no Brasil do “milagre”. Nesse trabalho, a pesquisadora mostra como testes eram aplicados por psicólogos para traçar o perfil dos chamados terroristas presos. O objetivo era usar esse perfil construído para intimizar (tudo está vinculado a uma certa essência que todo sujeito teria), privatizar (tudo vincula-se à vida privada) e justificar uma visão familiarista (os opositores políticos seriam emocionalmente perturbados, com dificuldades de relacionamento e advindos de famílias desestruturadas). “Ignoravam a realidade social, como se o sujeito não fosse produto de seu contexto histórico”, afirma Cecília. Em seu pós-doutoramento, na USP, o estudo Operação Rio: o mito das classes perigosas, a pesquisadora, fundadora e hoje vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais-RJ, fala da produção feita pESQUISA FAPESP 218 | 27


pelos meios de comunicação hegemônicos do “inimigo” a ser perseguido. Aponta historicamente como, desde o final do século XIX, se associa indissoluvelmente pobreza com criminalidade.

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as a segurança pública, talvez a face mais visível da herança da ditadura, não é a única questão mal resolvida, na análise dos estudiosos. Não é raro disseminar em certas camadas da opinião pública discursos de descrença em relação ao atual regime político. Ora é a desconfiança nas instituições, ora a percepção de que os governantes são corruptos. Para o cientista político Fernando Limongi, da USP, essa visão é baseada em muito preconceito e falta de conhecimento sobre o papel e a atuação das instituições. O projeto temático da FAPESP Instituições políticas, padrões de interação Executivo-Legislativo e capacidade governativa, iniciado em 1997, desmente a construção de que o regime político pré-1964 funcionava mal e isso gerou um conflito que resultou no golpe. “Esse diagnóstico, que a meu ver estava errado, influencia a Constituinte de 1987, que redesenhou as relações institucionais, fortalecendo o Poder Executivo, mas sem deixar de buscar tornar o Legislativo mais eficiente, aumentando a capacidade de o presidente ter sua agenda política implementada”, diz Limongi. Mas os estudos do projeto temático que comparam o período 19451964 com o atual mostram que antes do golpe o sistema funcionava de forma diferente, que o Executivo não dominava tão fortemente o processo legislativo, mas não é o mesmo que afirmar que o sistema estaria à beira de um colapso. Funcionava, apenas de forma diferente. O projeto temático, coordenado por Limongi e pela cientista política

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Argelina Cheibub Figueiredo, já gerou uma série de artigos e livros, além de teses de mestrado e doutorado. Limongi também faz parte de outro Cepid da Fundação, o Centro de Estudos da Metrópole, onde estuda questões eleitorais. A Guerra Fria, que se caracterizou por disputas estratégicas e conflitos indiretos entre Estados Unidos e União Soviética, era um fator de maior importância nos cálculos políticos que os partidos brasileiros faziam naquele período, explica Argelina. Os três partidos sobre os quais gravitava a vida política (o PSD, mais ao centro do sistema político nacional, o PTB de João Goulart e os conservadores oposicionistas da UDN) possuíam muitas correntes internas, que se posicionavam radicalmente conforme o tema em disputa. As reformas de base propostas por Jango, por exemplo, foram defendidas com unhas e dentes por grupos de esquerda entre os trabalhistas. Na época, eles viram sua representação no Congresso crescer nas eleições de 1962, mas não tinham maioria. Apesar disso, não aceitavam nenhum tipo de negociação – bem diferente do cenário atual. Em seus estudos sobre o Legislativo, a cientista política lembra que o Congresso tem 70 anos de atividade parlamentar praticamente ininterrupta, com exceção de alguns meses de 1966 e 1969. “Os deputados, prefeitos fora das capitais e vereadores continuaram sendo eleitos, o que fez com que a política local nunca deixasse de ter influência, o que persiste até hoje”, explica. A ditadura teve a preocupação de institucionalizar o governo dos militares, estabelecendo suas reformas, criando um Executivo forte, onde um dos principais mecanismos de aprovação de projetos era o decreto-lei. A Constituição de 1988 acabou por manter poderes atribuídos ao chefe

ALFREDO RIZZUTTI / ESTADÃO CONTEÚDO / AE

Assembleia de metalúrgicos no ABC, berço das greves do fim dos anos 1970: tentativa de despolitizar sindicatos acabou por politizar as negociações salariais


do Executivo pelos governos militares para evitar que um presidente fraco se tornasse incapaz de governar diante de um Congresso conservador, explica Argelina. Mas isso não tornou o Legislativo refém da Presidência, que agora depende de intensas negociações com os líderes dos partidos para poder definir sua agenda, seja por meio de projetos de lei ou medidas provisórias. “Hoje o presidente é mais forte do ponto de vista institucional, mas tem de governar dentro de uma coalizão, já que o Congresso tem condições de se impor quando quer.”

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m outro objeto de estudo ainda pouco explorado se refere ao mundo do trabalho e dos trabalhadores nesse período. Fundamental para compreender o golpe de 1964 e suas consequências, o papel dos trabalhadores e do mundo do trabalho demanda mais pesquisas, na avaliação do sociólogo Marco Aurélio Santana, diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. “Há, depois do golpe, uma visão muito crítica da participação deles no pré-1964, como se tivessem ‘errado’ no pré-1964, sido ‘derrotados’ em 1964 e ficado ‘imobilizados’ e/ou ‘ausentes’ no pós-1964”, explica. A exceção ficaria por conta de dois momentos relevantes, as greves operárias de 1968 – em Osasco (SP) e Contagem (MG) – e a partir de 1978, com as greves do ABC paulista, lembra Santana. O sociólogo adverte que logo após tomarem o poder as Forças Armadas trataram de cassar e prender as lideranças comunistas-trabalhistas que eram hegemônicas no sindicalismo da época. E, buscando uma reorientação sindical, favoreceram a aproximação com correntes ligadas ao sindicalismo conservador, mais propenso às conciliações e negociações, além de ter um cunho assistencialista. “A ditadura tentou despolitizar os sindicatos, mas acabou por politizar as negociações salariais ao adotar como política econômica central o combate à inflação pelo controle dos salários, a chamada ‘política de arrocho salarial’”, conta Santana, que atualmente coordena o projeto de pesquisa Trabalho, trabalhadores e regime ditatorial: a experiência brasileira (1964-1985). “Os sindicatos passaram a lutar contra o arrocho salarial, o que levou a uma tensão muito forte entre capital e trabalho, agora transplantada para dentro do Estado.” Embora rapidamente reprimida nas greves de 1968, uma nova classe operária já se delineava no país, mais politizada e escolarizada, que resultou na emergência de novas lideranças sindicais nas metrópoles. O melhor exemplo é Luiz Inácio Lula da Silva, que em pleno regime militar era capaz de reunir de 50 mil a 60 mil trabalhadores em assembleias no ABC paulista. A luta específica dos trabalhadores se politizou, buscando, inclusive, a forma partidária, porque perceberam que não bastava reivindicar salários,

mas também se opor às políticas do regime que produziram crescente concentração de renda e deterioração das condições de vida. Nesta perspectiva, o Partido dos Trabalhadores não surgiu por mero acaso em 1980. O pesquisador Armando Boito Jr., professor titular de ciência política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), lembra que o Brasil do ciclo militar manteve a política desenvolvimentista, ao contrário dos vizinhos Chile e Argentina, que adotaram em suas respectivas ditaduras o modelo capitalista neoliberal. Na ditadura brasileira, o Estado preservou, de múltiplas maneiras, sua função de indutor do crescimento. “Os militares mantiveram a política de industrialização, mas liquidaram com o populismo, que era a base popular do desenvolvimentismo. Tentaram avançar com uma perna só”, compara. Na redemocratização, o primeiro presidente eleito, Fernando Collor, abriu as portas do país para o capitalismo internacional, levando à regressão da industrialização brasileira. Quando Lula assumiu o poder, ele adotou uma política chamada de neodesenvolvimentista por Boito Jr., Correntes autor, dentre outros, do livro Polítiinternas dos três ca neoliberal e sindicalismo no Brasil (Editora Xamã, 2002). “O neodesenpartidos sobre volvimentismo é o desenvolvimentismo possível dentro do modelo capitaos quais lista neoliberal ainda em vigor. Essa política favorece, principalmente, a gravitava a vida grande burguesia interna brasileira, política (PSD, mas obtém apoio, também, em amplos setores populares.” Boito Jr. enPTB e UDN) se tende que se formou, sob os governos petistas, uma ampla e heterogênea posicionavam frente política que favoreceu a luta dos sindicatos mais do que aquelas radicalmente prevalecentes na década de 1990 e conforme o tema sob a ditadura militar. Nos governos Lula e Dilma, cresceu em disputa muito o número de greves (segundo o Dieese, foram 873 em 2012 ante as 312 de 2004) e os trabalhadores obtiveram aumento real de salário (18% dos acordos e convenções tiveram aumento real em 2003, essa porcentagem foi num crescendo até chegar a 96% no ano de 2012). “Por um lado, os sindicatos se tornaram atores reconhecidos no jogo político, mas, devido a sua posição subalterna na frente política neodesenvolvimentista, acabaram relegando para segundo plano algumas de suas bandeiras, como a jornada semanal de 40 horas e a regulamentação restritiva da terceirização”, analisa Boito Jr. O economista Edmar Bacha, sócio-fundador do Instituto de Estudos de Política Econômica Casa das Garças, discorda de que Lula e Dilma pESQUISA FAPESP 218 | 29


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respeito da economia nos anos da ditadura, e a despeito das diferentes fases que ela experimentou no período, uma das imagens mais recorrentes nos debates é a do “milagre brasileiro”. O economista José Pedro Macarini, da Unicamp, procurou desmitificar esse tema. “O milagre não perseguiu a industrialização, mas apenas o crescimento. A única forma de legitimidade do governo junto à população era crescer a altas taxas”, explica. Mas o foco na industrialização ocorreria apenas no governo Geisel com o 2º Programa Nacional de Desenvolvimento (PND). Antes do golpe de 1964, o Brasil atravessava uma fase de desaceleração, evoluindo para uma crise econômica aberta. Se na década de Juscelino Kubistchek o PIB crescia 7,5% ao ano, em 1963 ele cresceu 1,6%. A inflação medida pelo Índice Geral de Preços, da Fundação Getulio Vargas, rondava a casa dos 30% com JK e atingia 81% um 30 | abril DE 2014

fotos ARQUIVO / ESTADÃO CONTEÚDO / AE

tenham instaurado um governo de viés desenvolvimentista e observa que as comparações com o regime militar são muito desiguais. O governo de Geisel investia entre 5% e 7% do Produto Interno Bruto (PIB), enquanto atualmente, excluído o programa Minha Casa, Minha Vida, essa taxa fica entre 1% e 2%. E em vez de industrialização estaria havendo um retrocesso, afirma Bacha, um dos pais do Plano Real e membro do conselho consultivo internacional da Yale University. “Falta ao governo atual um entendimento sobre o que é a industrialização na época da globalização. Uma coisa é um país pobre e agrário, num período em que a economia mundial era desintegrada, adotar uma política de substituição de importação. Hoje não adianta fazer isso, porque se protege a indústria nacional elevando o custo da produção”, compara.

ano antes do golpe, durante o governo de Jango. “O déficit do setor público e o endividamento eram preocupantes. Sob Jânio uma renegociação bem-sucedida da divida externa fora conduzida pelos embaixadores Roberto Campos e Walther Moreira Salles. A crise política de l962-63 obrigou a nova tentativa de renegociação, porém fracassada”, diz Macarini. Para atravessar o período de águas turbulentas, que durou de 1964 a 1967, o primeiro presidente militar, o marechal Castello 1 Branco, criou o Plano de Ação Econômica do Governo (Paeg). Com o objetivo de combate à inflação, o plano promoveu uma severa contenção do crédito, aliada à deterioração do poder de compra dos salários e ao corte de gasto público (incluindo o investimento). O Paeg proposto pelos ministros Roberto Campos e Otávio Gouveia de Bulhões conseguiu realizar as reformas tributária, monetária-financeira, habitacional e do setor externo. São dessa época heranças que perduram até os dias de hoje, como a criação do Banco Central, do Conselho Monetário Nacional, das financeiras e do mercado de ações, do Sistema Financeiro da Habitação, do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), além da transformação dos impostos em cascata em impostos sobre o valor adicionado (IPI e ICM). “Mas essas reformas só vieram a ser sentidas pela população a partir de 1968, quando a situação econômica mundial melhorou e havia uma grande liquidez internacional”, acrescenta ele. De 1968 até o começo de 1974, o país vivenciou o chamado “milagre econômico”, registrando taxas de crescimento acima de 10% ao ano e inflação controlada abaixo dos 20%. O “Brasil grande” mergulhou numa fase de construção de grandes obras, como a rodovia Transamazônica, a ponte Rio-Niterói, a hidrelétrica Itaipu e a Ferrovia do Aço. “Mas foi a partir de Delfim Netto que houve a ampliação dos grandes empréstimos de instituições financeiras do exterior, que vai crescendo até desaguar na crise da dívida externa nos últimos anos dos governos militares”, observa Macarini. Antonio Delfim Netto, economista formado pela USP, participou dos governos dos generais Costa e Silva (1967-1969), Médici (1969-1973) e João Figueiredo (1979-1985). A dívida externa brasileira era de US$ 3,5 bilhões entre 1963 e 1968, chegou a


US$ 12,5 bilhões em 1974 e, por conta de novos empréstimos, dos juros e amortizações, alcançou US$ 100 bilhões em 1980. É importante lembrar que em 1975 houve uma contração da economia mundial. O 2º PND, no governo Geisel, seria também uma resposta ao primeiro choque do petróleo e tinha como finalidade estimular a produção de insumos básicos, bens de capital, alimentos e energia. “A indústria de bens de produção se diversificou pouco, não livrou o país da grande dependência de importações de máquinas e equipamentos e não houve transformação estrutural da economia durante o milagre”, critica Macarini. Embora realizado aquém de suas ambiciosas metas originais e num cronograma muito dilatado e acidentado, o 2º PND provocou transformações estruturais da economia que não deixaram de constituir uma herança positiva para o período iniciado em 1985.

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1 Planos econômicos da ditadura criaram condições para o “milagre brasileiro”, com incentivos para a indústria nacional, a exemplo da automobilística 2 Ministro da Fazenda, Delfim Netto (ao lado dos colegas Reis Velloso e Pratini de Moraes) permitiu a empresas nacionais tomarem empréstimos internacionais, o que colaborou para a expansão da dívida externa

essa conta do endividamento externo entra o polêmico acordo de cooperação que o Brasil assinou com a Alemanha para a construção de Angra 1. O país europeu foi o único que se dispôs a transferir a tecnologia da ultracentrifugação do urânio, diz o pesquisador Luiz Alberto Moniz Bandeira, autor de O “milagre alemão” e o desenvolvimento no Brasil (Editora Unesp, 2011) e O Governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil – 1961-1964 (Editora Unesp, 2010). “A transferência foi feita clandestinamente, pelos técnicos e cientistas que vieram pela Alemanha, de acordo com o protocolo industrial, e não estavam sujeitos a salvaguardas.” O país europeu aceitou transferir a tecnologia porque necessitava de urânio enriquecido para produção de energia elétrica, e não queria ficar na dependência dos Estados Unidos. Professor titular aposentado da Universidade de Brasília, Moniz Bandeira reitera que os militares viam como fundamental o domínio da energia nuclear pelos brasileiros, inclusive para se afirmar em uma posição de potência mundial.

O físico José Goldemberg, ex-reitor da USP, lembra que os principais representantes da comunidade científica, sobretudo a Sociedade Brasileira de Física e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, se opuseram publicamente ao projeto dos militares, uma vez que o acordo nuclear com a Alemanha previa a compra de um pacote fechado e a própria ciência brasileira não teria acesso à tecnologia nuclear. O acordo era benéfico para os cofres alemães. Em 1967, o governo anuncia a compra da usina de Angra 1. Mas, em 1975, os cientistas foram surpreendidos com a intenção de Geisel de ampliar o acordo com a Alemanha, com a compra de oito grandes reatores nucleares. “Hoje se sabe que essa oposição foi fundamental para evitar a nuclearização do Brasil”, lembra Goldemberg. Dos oito reatores, só Angra 2 foi concluída, enquanto Angra 3 está prevista para 2018. Sindicatos perseguidos, partidos cassados, recrudescimento da violência, criminalização da juventude, crescimento aliado ao aumento da desigualdade social, tudo isso fez parte da realidade do regime militar. Como e por que boa parte da sociedade aceitou fazer parte desse jogo é uma questão em aberto. Novas gerações de pesquisadores, como a historiadora Janaina Cordeiro, da Universidade Federal Fluminense, têm procurado desemaranhar esse novelo. Ela defendeu, em 2012, uma tese sobre as comemorações do Sesquicentenário da Independência no ano de 1972. O trabalho será publicado neste ano sob o título A ditadura em tempos de milagre: orgulho, comemorações e consenso pela editora da FGV e com apoio da Faperj. Nele, a autora afirma que os governos militares recorreram a estratégias para alcançar determinados graus de consenso social. Eles não inventaram a ideia de construção do novo, mas essa imagem foi minuciosamente retomada e reelaborada por eles. Citando a formulação do historiador Robert Gellatelly, que estudou a conformação do pacto social sob a Alemanha nazista, Janaina afirma que mecanismos de coerção e consentimento ajudaram a obter o apoio dos brasileiros. “A ditadura soube estabelecer diálogos com importantes tradições nacionais, ativar sentimentos patrióticos e ufanistas que são componentes importantes de determinado imaginário coletivo nacional”, conclui. n

Projetos 1. Núcleo de Estudos da Violência - NEV/USP (nº 13/07923-7); Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisador responsável Paulo Sergio de Moraes Sarmento Pinheiro (USP); Investimento R$ 10.712.071,92 (FAPESP). 2. Instituições políticas, padrões de interação Executivo-Legislativo e capacidade governativa (nº 2011/08536-1); Modalidade Auxílio Pesquisa - Projeto Temático; Pesquisador responsável Fernando de Magalhães Papaterra Limongi (USP); Investimento R$ 516.178,52 (FAPESP).

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3. Centro de Estudos da Metrópole - CEM (nº 2013/07616-7); Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisadora responsável Marta Arretche (USP); Investimento R$ 7.110.948,20 (FAPESP).

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O impacto na academia Três centenas de professores foram afastados das universidades brasileiras pela ditadura, período marcado pela estruturação da pós-graduação Marcos Pivetta

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o início de 1964, o jovem médico Thomas Maack, auxiliar de ensino no Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), tinha que cumprir uma tarefa cotidiana tão prosaica quanto necessária antes de iniciar o expediente na instituição médica situada na avenida Doutor Arnaldo, zona oeste da capital paulista. Tomava o bonde na esquina das ruas da Consolação e Maria Antônia levando nos braços o material de trabalho e um cesto vermelho no qual transportava a filha de menos de 1 ano de idade, Marisa, à creche do Hospital das Clínicas, parada obrigatória antes de ir para a faculdade. Em 8 de junho daquele ano, pouco mais de dois meses após o golpe militar, o médico de 28 anos foi preso em seu laboratório, acusado de atividades subversivas dentro da universidade. Entre as “provas” de atuação esquerdista figurava a cor do cesto usado para carregar a filha. O encarceramento de Maack – que nasceu na Alemanha, veio com 1 ano de idade para o Brasil e fez brilhante carreira acadêmica na escola médica da Universidade Cornell, em Nova York – duraria mais de seis meses, um dos mais longos entre os professores universitários perseguidos pelo regime militar. Por cinco meses, ao lado de estivadores e outros trabalhadores, o médico esteve preso no navio Raul Soares, antiga embarcação de passageiros que fora transformada em cárcere flutuante e se encontrava ancorada a curta distância do porto de Santos. Boa parte desse tempo foi mantido incomunicável. Maack diz não ter sofrido tortura física, embora a pressão psicológica feita pelos agentes da ditadura para delatar colegas da universidade fosse uma companheira frequente. Ele era, de fato, militante de esquerda, mas sua atividade política em sindicatos, organizações político-partidá-

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rias e na União Nacional dos Estudantes (Une) era exercida basicamente fora da universidade. “Achei que iria ficar uns poucos dias preso e seria solto. Mas, como me recusei a dar nomes, me mantiveram preso por mais tempo”, relembra Maack, que foi demitido da USP, ao lado de seis colegas da Faculdade de Medicina, por meio de um decreto assinado em 10 de outubro de 1964 pelo então governador paulista Adhemar de Barros. Em cumprimento a um habeas corpus obtido por seu advogado, o médico foi libertado em 15 de dezembro de 1964, pouco depois de ter sido transferido do navio para uma prisão comum de Santos. No dia seguinte à sua soltura, os militares, informados do descuido jurídico-administrativo, tentaram prendê-lo de novo. Era tarde. Maack, a mulher e a filha já tinham iniciado seu roteiro de fuga, que incluiria passagens por Curitiba e pelo Paraguai e terminaria nos Estados Unidos. Em 2010, Cornell lhe conferiu o título de professor emérito de fisiologia e biofísica, depois de mais de 40 anos dedicados à instituição. A saída forçada de Maack da USP é um dos cerca de 300 casos estimados de docentes do ensino superior que foram aposentados compulsoriamente ou exonerados de suas funções nos dois grandes expurgos promovidos pela ditadura nas universidades brasileiras. A contabilidade dos expurgos ainda é inconclusiva devido à escassez de documentos e trabalhos sobre o tema. A história do então médico da FMUSP não é a mais branda nem a mais dramática de perseguição a professores universitários. É, sim, ilustrativa do modus operandi da ditadura, já em seus primeiros dias, para perseguir professores universitários. Em seus 21 anos de duração, o regime autoritário prendeu, torturou e matou intelectuais e membros da academia. Até hoje sem explicação, o desaparecimento em 1974 de Ana Rosa Kucinski,


Invasão da UnB em 1968 pelo Exército: universidade da capital federal foi uma das mais perseguidas durante a ditadura

docente do Instituto de Química da USP, então com 32 anos, e de seu marido, o físico Wilson Silva, figura entre os episódios mais trágicos – e ainda sem fim – produzidos pelo regime autoritário em seus momentos de maior violência. Vale lembrar que entre as funções desempenhadas pelo jornalista Vladimir Herzog, morto nas dependências do II Exército em São Paulo em 1975, estavam as aulas que dava na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP).

arquivo cedoc-unb

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m extensas entrevistas concedidas nos últimos 14 anos a Pesquisa FAPESP, pesquisadores de renome contaram passagens de sua vida em que sofreram ataques ou perderam o emprego na universidade por causa da ditadura. Em um depoimento dado ao número 59 da revista, de novembro do ano 2000, o físico José Leite Lopes – que se demitiu do cargo de diretor científico do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) em 1964 por causa do golpe de Estado, foi para a França, retornou ao Brasil três anos mais tarde e foi cassado pelo AI-5 em 1969 – faz um balanço dos efeitos da atuação do regime militar em seu campo de trabalho: “Bem, eles tiraram o

Schenberg, a mim, vários outros, houve muito protesto, cartas mandadas por físicos franceses, americanos, o Yang mandou uma carta para Costa e Silva [o presidente militar Arthur da Costa e Silva], mas a chamada revolução foi implacável. Depois, o ministro Velloso [João Paulo dos Reis Velloso, ministro do Planejamento] achou que era tudo uma besteira e trouxe gente como Sérgio Porto, o Rogério Cerqueira Leite, que voltou dos Estados Unidos para a Unicamp, fundada por Zeferino Vaz em 1970. Então, mesmo na ditadura, muita gente estava trabalhando, o grupo de Campinas, o pessoal de Recife, que começou a se desenvolver. Se houve um atraso real foi mais na formação de gente”, disse, na entrevista, Leite Lopes, que morreria em 2006. Um dos mais ativos pesquisadores brasileiros da área de bioquímica nas últimas décadas, o médico Isaias Raw era, como Thomas Maack, docente da FMUSP quando foi preso em 1964, acusado de atuação subversiva. Em entrevista à Pesquisa FAPESP de julho 2005 (edição 113), lembrou do impacto psicológico de seu encarceramento, que durou 13 dias, sobre a família. “Como é que você explica para os seus filhos pequenos que a polícia está errada e você certo? Não existe isso. pESQUISA FAPESP 218 | 33


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1 Navio Raul Soares: médico Thomas Maack ficou cinco meses preso na embarcação perto da costa de Santos 2 Físico Roberto Salmeron, na década de 1960: carreira na França a partir de 1968 3 Casal de pesquisadores Ruth e Victor Nussenzweig: volta ao Brasil cancelada por causa do golpe

Não tem explicação”, afirmou, na ocasião, Raw. O pesquisador continuaria sua carreira no Brasil até 1969, quando foi cassado e então partiu para uma longa temporada no exterior (trabalhou em Israel e nos Estados Unidos) antes de regressar em definitivo ao país em 1980. Em certos casos, a repressão da ditadura nas universidades fez com que pesquisadores de ponta que passavam uma temporada no exterior adiassem, às vezes para sempre, o retorno ao Brasil. O casal de médicos Ruth e Victor Nussenzweig, cujos trabalhos em prol de uma vacina contra a malária são referência até hoje, se viu obrigado a fazer essa opção em abril de 1964. Eles já estavam na Escola de Medicina da Universidade de Nova York (NYU), onde permanecem até hoje (ele com 86 anos e ela com 85), mas alguns dias depois do golpe visitavam a FMUSP, onde ambos se formaram e eram professores, prospectando uma possível volta. “Então percebi que esse coronel estava realmente mandando na faculdade. Se mandava na faculdade, mandava em mim. Percebi que eu não tinha poder algum. O coronel não ligava se eu era professor ou não. Percebi que não poderia mais ficar no Brasil. A Ruth e eu voltamos para os Estados Unidos”, Victor contou à revista em uma entrevista concedida em dezembro de 2004 (ver edição 106), relembrando um encontro com um militar instalado na FMUSP.

decreto 477, que permitia expulsar alunos, funcionários e professores universitários de forma sumária, sem direito a praticamente nenhuma defesa. A Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP foi severamente atingida por esse segundo expurgo e nomes como Fernado Henrique Cardoso, Bento Prado Jr., José Arthur Giannotti, Florestan Fernandes e Octavio Ianni foram compulsoriamente aposentados. “Por serem vistas como centros irradiadores de esquerdismo no país, as universidades foram um dos primeiros alvos dos militares, ao lado dos sindicatos e organizações de trabalhadores rurais”, diz o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), autor de um estudo de seis anos sobre o tema que redundou no livro recém-lançado As universidades e o regime militar (Jorge Zahar Editor). Motta estima em mais de mil o número de alunos que foram expulsos das universidades entre 1969 e 1979. A exclusão de 250 estudantes em 1969 da Universidade de Brasília (UnB), várias vezes invadida pelos militares durante a ditadura, é o episódio mais conhecido dessa faceta do regime.

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partir de 1970, foram constituídas cerca de 35 Assessorias Especiais de Segurança e Informações (Aesis ou ASIs) nas principais universidades do país, com funcionários encarregados de vigiar e abastecer o Serviço Nacional de Informações (SNI) com relatos sobre o que ocorria no ambiente acadêmico. Espiões do regime militar, que se passavam por estudantes, frequentavam as universidades e, em alguns casos, foram até desmascarados. Em junho de 1976, durante uma reunião no auditório da Geografia da USP, os alunos flagraram um desconhecido que se preparava para gravar, na surdina, o encontro. Houve confusão e o desconhecido sumiu da universidade e não foi mais visto. Segundo Motta, a estrutura de espionagem militar nas instituições superiores de ensino, que passou a ser denunciada em meados dos anos 1970 nas reuniões da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), foi extinta oficial-

Dois grandes expurgos

De forma esquemática, os estudiosos do período apontam dois momentos em que ocorreram grandes expurgos de professores nas universidades. O primeiro se deu em 1964, nos meses seguintes ao golpe, e o segundo em 1969, depois do AI-5 e do 34 | abril DE 2014

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fotos 1 ARQUIVO / ESTADÃO CONTEÚDO / AE /  2 Arquivo pessoal  3 léo ramos

mente em 1979. No entanto, algumas universidades, como as federais do Maranhão, Paraíba, Sergipe, Amazonas, Santa Catarina, Espírito Santo, Santa Maria e Fluminense e a estadual de Londrina, demoraram anos para desmontar o aparato de espionagem, e o historiador levantou evidências de que algumas ASIs ainda funcionavam na primeira metade da década de 1980. No livro, provavelmente o mais abrangente sobre a questão, Motta traça um panorama das perseguições, da vigilância e da repressão nas universidades do país e discute as reformas 3 no ensino superior promovidas pelo regime autoritário, como a extinção da cátedra entre os professores universitários, o estímulo à pós-graduação, o acordo do Ministério da Educação (MEC) com a Usaid (a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional), as alterações feitas no sistema de vestibular e o antigo projeto Rondon. Essa última iniciativa levou, entre 1967 e 1989, centenas de milhares de universitários a desenvolver atividades de extensão no interior do Brasil, em especial na Amazônia, e foi criticada pelos opositores do regime militar como uma forma de cooptação ideológica da juventude. O historiador fez pesquisas em 22 bibliotecas e arquivos do Brasil e do exterior, como os da própria Usaid e da National Archives and Records Administration II, além de vasculhar a literatura sobre o tema e realizar entrevistas com mais de 50 professores universitários afastados em algum momento de seu trabalho pela ditadura. “Aqui não vai nenhum elogio à ditadura”, diz Motta. “Mas ela se apropriou de alguns pontos da reforma universitária, uma demanda que já existia antes de 1964, e os implementou de forma autoritária.”

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historiador da UFMG compilou números que mostram o investimento dos militares nas universidades e no sistema de pós-graduação do país. “Eles precisavam formar quadros técnicos para tocar seu projeto de desenvolvimento para o Brasil”, afirma Motta. Em 1960 havia 93 mil alunos nas universidades do país, pouco mais da metade em instituições públicas. Em 1964, ano do golpe, esse número era de 142 mil estudantes. Em 1984, nos estertores da ditadura, chegou à casa de 1,4 milhão de universitários, dos quais 570 mil provenientes de instituições públicas e 830 mil de estabelecimentos particulares. Os governos militares criaram 12 novas universidades federais nos 15 primeiros

anos que estiveram à frente do poder, embora o estímulo ao aumento das vagas em instituições privadas de ensino tenha sido ainda maior. Movimento semelhante ocorreu na pós-graduação. Em 1961 havia apenas 6 cursos nessa área. Em 10 anos, de 1964 a 1974, o número subiu de 23 para 403. Em 1984, último ano da ditadura, a pós brasileira contabilizava 792 cursos de mestrado e 333 de doutorado. Entre 1964 e 1976, o número de bolsas de pós-graduação concedidas pelas agências federais (Capes e CNPq) pulou de cerca de mil para 10 mil, segundo o trabalho de Motta. Ainda como estímulo à pesquisa científica e tecnológica, os governos militares criaram a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) em 1967, a Embraer em 1969 e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) em 1973. “Pela primeira vez no Brasil, o desenvolvimento científico e tecnológico foi colocado como prioridade de governo”, disse, sobre a criação da Finep, o economista João Paulo dos Reis Velloso, em entrevista publicada por Pesquisa FAPESP em julho de 2008 (ver edição 149). Reis Velloso foi ministro do Planejamento de 1969 a 1979, em dois governos do período da ditadura militar, os dos generais Médici e Geisel. “Os militares promoveram uma norte-americanização do ensino e da pesquisa no Brasil, que era o modelo que ganhava espaço inclusive na Europa”, diz Luiz Antônio Cunha, professor titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), autor de obras que analisaram os efeitos da ditadura no ensino superior, como A universidade reformanda: o golpe de 1964 e a modernização do ensino superior, título publicado em 2007 pela Editora Unesp. “Mas é ruim pensar que tudo de bom ou de ruim se iniciou com a ditadura militar. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, o Brasil já tinha começado um esforço para melhorar seu ensino superior e a pesquisa, e havia enclaves de modernidade antes do golpe: primeiro foi fundado em 1950 o Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), em São José dos Campos, depois a Faculdade de Medicina da USP em Ribeirão Preto em 1952 e a UnB em 1962. Nessas instituições, a obrigatoriedade das cátedras foi contornada pela novidade do regime departamental, o ensino era estreitamente ligado à pesquisa, os professores dedicavam-se ao trabalho acadêmico em tempo integral e a pós-graduação stricto sensu deu seus primeiros passos.” A percepção sobre os impactos mais gerais e a longo prazo das medidas implementadas pela ditadura nas universidades e no sistema de pesquisa nacional nem sempre é nítida entre os professores que foram alvo de perseguições. “Para mim, é impossível avaliar os efeitos”, diz Michel Rabinovitch, hoje com 88 anos, docente da FMUSP em 1964, que teve de deixar o país pESQUISA FAPESP 218 | 35


arquivo pessoal

ameaçado pela ditadura. “Talvez o impacto tenha sido pontual, menor do que no caso das universidades argentinas.” O parasitologista Erney Plessmann de Camargo, um dos sete professores da FMUSP afastados ao lado de Thomas Maack, destaca que uma das sequelas do golpe foi de ordem psicológica. “Houve uma desmoralização do espírito da universidade, uma baixa no orgulho e nas liberdades”, afirma Camargo. “E cresceram as delações e traições no meio.” Por outro lado, houve também gestos de solidariedade extrema, como a demissão espontânea em 1965 de 223 professores da Universidade de Brasília (UnB), quase 80% dos docentes da nascente universidade, em razão de a ditadura ter perseguido e demitido 15 professores. O livro A universidade interrompida: Brasília 1964-1965, do fisico Roberto Salmeron, outro perseguido pela ditadura que fez brilhante carreira no Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (Cern) e na Escola Politécnica de Paris, narra a saga da UnB naqueles tempos de repressão (ver também entrevista por ele concedida à Pesquisa FAPESP edição 100, em junho de 2004, a respeito de sua trajetória profissional e demissão da UnB).

Fora do eixo Rio-SP-Brasília

Há poucos trabalhos centrados no que ocorreu em universidades de fora do eixo Rio-SP-Brasília. Um desses raros estudos é a dissertação de mestrado do historiador Jaime Valim Mansan, defendida na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) em 2009, Os expurgos na UFRGS: afastamentos sumários de professores no contexto da ditadura civil-militar (1964 e 1969). No estudo, Mansan contabiliza 41 professores e 5 estudantes que foram afastados por perseguição ideológica da universidade. “Em alguns casos, eles foram aposentados compulsoriamente. Em 36 | abril DE 2014

Registro de 2008 de ex-professores da FMUSP aposentados ou demitidos durante a ditadura: Michel Rabinovitch, Erney Plessmann de Camargo, Isaias Raw e Luiz Rey (à frente, da esq. para dir.); Pedro Henrique Saldanha (de óculos) e Thomas Maack (ao fundo)

outros, foram demitidos ou se afastaram por conta própria”, diz Mansan, que continua estudando o tema ditadura e universidades no doutorado. A partir de 2012, com a criação da Comissão Nacional da Verdade, várias universidades do país, como a UFRJ, a UnB, a Unicamp, a Unesp e a Universidade Federal da Bahia (Ufba), instituíram comissões da verdade para apurar o que ocorreu em seus campi e com seus professores, funcionários e alunos durante os anos da ditadura. A USP, maior universidade do país, criou a sua comissão no ano passado. Estima-se que 47 pessoas liRegime militar gadas à universidade (professores, funinstalou centrais cionários, alunos e ex-alunos) foram mortos ou desapareceram durante a de espionagem ditadura, o que equivaleria a mais de 10% de todas as pessoas assassinadas em 35 em razão de perseguições pelo regime militar. “Nossa prioridade inicial universidades é compreender o aparato institucional brasileiras para instalado na universidade pela ditadura para vigiá-la”, afirma a historiadora vigiar os passos Janice Theodoro da Silva, professora aposentada da USP que, no momento, de professores está à frente dos trabalhos da comissão. “Parece que havia 10 pessoas nesse e alunos setor, mas dizem que os registros dos informantes foram queimados.” Em princípio, a data prevista para a comissão, que ainda não conta com pesquisadores dedicados aos seus trabalhos, encerrar seu funcionamento é maio deste ano. Mas a prorrogação de seu funcionamento deverá ser pedida. Iniciativas como essa e a abertura de novos arquivos sobre o período são um estímulo para que mais estudiosos se debrucem sobre as relações entre a ditadura e as universidades. n


A arte de ser do contra Apesar da censura, houve forte presença de uma cultura de esquerda e de oposição durante a ditadura Marcos Pivetta

divulgação

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Paulo Autran e Tereza Raquel na peça Liberdade, liberdade: alvo da censura

m um artigo clássico, escrito originalmente na França em 1970 e traduzido para o português oito anos mais tarde, o crítico literário Roberto Schwarz afirma que, “apesar da ditadura da direita, há relativa hegemonia cultural de esquerda no país” entre 1964 e 1969. Dos anos 1970 até o fim da ditadura em 1985, quando o regime reprimiu, censurou e se fechou ainda mais antes de começar sua lenta e gradual abertura, o tom da produção artística nacional, em linhas gerais, continuou exprimindo esse aparente paradoxo. Os estudos sobre a produção cultural nos anos da ditadura versam, em sua maioria, sobre movimentos e artistas que, de forma mais ou menos explícita, seja em produções mais alternativas ou dentro da chamada lógica do mercado, contestaram o regime. Esse tema se tornou um campo fértil de pesquisas nas duas últimas décadas. “Minha geração se interessa pela política por meio do contato com obras culturais que falam da ditadura”, afirma Marcelo Ridenti, 55 anos, professor do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp). Ridenti é um dos autores que mais pesquisaram as relações da produção cultural e da política durante o regime militar. Seus trabalhos cobrem desde os anos 1950, período anterior ao golpe em que o Partido Comunista Brasileiro (PCB) era um ator importante no impulso às artes (engajadas), passam pela efervescência dos anos 1960 e a repressão mais barra pesada dos 1970 e se estendem até meados da década de 1980, com o processo de redemocratização do país. Uma das expressões usadas por Ridenti para descrever a relação entre a política e a esfera cultural do pós-Segunda Guerra Mundial até os primeiros anos

posteriores ao golpe — que bebera na fonte das relações entre os artistas e o PCB e os Centros Populares de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE) — é o sentimento de “brasilidade revolucionária” (ver edição 206 de Pesquisa FAPESP). Esse, aliás, é o título de um livro seu, lançado em 2010, em que explora um certo romantismo de artistas comunistas, como o escritor Jorge Amado, o cineasta Nelson Pereira dos Santos ou o dramaturgo Dias Gomes, que produzem obras alimentadas por um sentimento de construção de um novo país. Talvez o estudo de maior fôlego de Ridenti seja o livro Em busca do povo brasileiro – Artistas da revolução, do CPC à era da TV (Editora Unesp), originalmente editado no ano 2000, mas que foi revisto, ampliado e relançado neste ano por ocasião dos 50 anos do golpe. Como sugere seu título, a obra não se fixa na trajetória de um grupo de artistas ou de um setor cultural (cinema, teatro, música, literatura ou TV), mas, sim, no quadro mais geral do setor. O sociólogo pensou em reescrever inteiramente o livro, mas acabou optando por fazer revisões tópicas, atualizar as referências bibliográficas e acrescentar um posfácio. As atualizações fazem um mapeamento de

pESQUISA FAPESP 218 | 37


1 Filme Zuzu Angel, de 2006: produção cinematográfica sobre o regime militar 2 Artistas de teatro em greve contra a censura em 1968, na passeata dos 100 Mil na Guanabara

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boa parte da produção acadêmica que pesquisou algum aspecto da produção cultural na ditadura militar. “Houve muitas novidades em termos de estudos depois dos anos 2000”, diz Ridenti.

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ma das contribuições mais importantes são os trabalhos do historiador Marcos Napolitano, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), que tem esmiuçado com especial destaque os caminhos da música popular brasileira, e em menor escala da produção audiovisual, durante o regime autoritário. Em 2011, ele defendeu sua tese de livre-docência, na qual tratou dos dilemas e da contradições das políticas culturais originadas ou desenvolvidas em oposição à ditadura entre 1964 e 1968 por quatro correntes distintas: comunistas, católicos, liberais e movimentos contraculturais (como o tropicalismo). Todos eram contrários à ditadura, mas cada segmento tinha particularidades e visões diferentes do que deveria ser a arte. “A própria ideia de oposição alimentava a produção cultural do período, bastante rica”, diz Napolitano. “Mas, enquanto a produção da esquerda católica exprimia uma cultura basista, amadora e comunitária, a da contracultura era, por exemplo, sectária, experimental e transgressora.” Uma quantidade significativa de trabalhos mais específicos, que enfocam basicamente a produção de um setor artístico durante a ditadura, tem sido produzida por uma nova geração de pesquisadores da área de humanidades. Miliandre Garcia, 38 anos, hoje professora de história da Universidade Estadual de Londrina (UEL), analisou o funcionamento da censura teatral, cujos documentos estão armazenados no Arquivo Nacional, em Brasília. O material inclui informações sobre cerca de 22 mil peças e 702 processos de censura 38 | abril DE 2014

a montagens teatrais que foram em algum momento proibidas de serem encenadas. O estudo resultou em sua tese de doutorado defendida em 2008 na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), “Ou vocês mudam ou acabam”: teatro e censura na ditadura militar (1964-1985). “As peças que a censura analisava iam desde montagens amadoras até produções de grupos profissionais, e as proibições podiam ser por questões ideológicas ou simplesmente porque o censor achava que a montagem ia contra a moral e os bons costumes”, diz Miliandre. Dependendo da época (depois do AI-5, em dezembro de 1968, a censura política se acentua), das “instruções superiores” e, às vezes, até do humor do censor de plantão, a mesma peça podia ser proibida numa ocasião e liberada em outra. E não eram vetadas apenas as peças de autores considerados como de oposição, como Liberdade, liberdade, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel, ou “pornográficos”, caso de Toda nudez será castigada, de Nelson Rodrigues. Um texto como Golias em circuito fechado, de autoria de Marcos César, Luiz Carlos Miele e Ronaldo Bôscoli e protagonizado pelo comediante Ronald Golias, nem de longe um crítico do regime, podia (e foi) interditado em certos momentos pela censura, que associava a suposta “degradação moral” da montagem a “planos de subversão”. O historiador Flamarion Maués, que hoje faz pós-doutorado com bolsa da FAPESP na Escola de Comunicações e Artes (Eca) da USP, trabalha com as relações do mundo editorial e a ditadura. No mestrado e doutorado, ambos defendidos no Departamento de História da FFLCH ao longo da última década, estudou o papel de editoras “políticas” ou de oposição, respectivamente, no Brasil e em Portugal. No Brasil, analisou editoras como a Brasiliense e a Marco Zero, que atuaram


fotos 1 divulgação / globo filmes  2 GONçaLVES / CPDoc JB / Folhapress

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durante o período de abertura política no país. Seu trabalho de mestrado virou recentemente o título Livros contra a ditadura: editoras de oposição no Brasil, 1974-1984 (Publisher Brasil, 2013). Agora, no pós-doutorado, continua no tema e realiza um estudo comparativo entre a atuação de editoras políticas no Brasil e em Portugal em momentos de transição de regime. O contexto brasileiro é o mesmo de seus estudos anteriores, a abertura política iniciada na última fase dos governos militares. Em Portugal, o momento de passagem escolhido é o da Revolução dos Cravos (1974-1975), movimento de caráter democrático, anticolonial e socialista, liderado por oficiais de média patente, que pôs fim a décadas de ditadura de Salazar e de seus sucessores. “Identifiquei 140 editoras políticas em Portugal, um número muito alto para um país tão pequeno”, diz Maués. No Brasil, ele havia mapeado apenas 45 editoras de perfil semelhante. Um conjunto de 74 filmes lançados entre 1979 e 2009 que retrataram a ditadura foi alvo de uma dissertação de mestrado apresentada em 2011 pela socióloga Caroline Gomes Leme no IFCH-Unicamp. Além de comentar todos esses filmes, o trabalho – que virou no ano passado o livro Ditadura em imagem e som: trinta anos de produções cinematográficas sobre o regime militar brasileiro (Editora Unesp) e foi eleito o melhor mestrado de 2012 pela Associação Nacional de Pós-Gra-

duação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) – deteve-se na análise pormenorizada de cinco produções: Nunca fomos tão felizes, de Murilo Salles, de 1984; Corpo em delito, de Nuno Cesar Abreu, de 1990; Ação entre amigos, de Beto Brant, de 1998; A terceira morte de Joaquim Bolívar, de Flávio Cândido, de 2000; e Zuzu Angel, de Sérgio Rezende, de 2006. “A partir da abertura, notadamente após a Lei da Anistia de 1979, o cinema pôde falar de maneira mais direta sobre a ditadura militar que estava se esvaindo, afirma Caroline. “O processo é ainda um tanto ‘cauteloso’. Os filmes evitam, por exemplo, creditar a tortura abertamente aos militares, mas situam explicitamente suas tramas no período do regime militar e expõem a opressão desse contexto histórico específico.”

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o mestrado, Caroline evitou trabalhar com a produção cinematográfica do Cinema Novo de Glauber Rocha ou de Nelson Pereira do Santos e do Cinema Marginal de Rogério Sganzerla ou Julio Bressane. As fitas desses dois movimentos foram feitas entre os anos 1960 e 1970 e a socióloga as considera como filmes rodados sob a ditadura, que sentiam mais diretamente os impactos do golpe e da censura e, por vezes, recorriam a alegorias ou outros recursos estéticos para se referir ao regime autoritário. Já as produções dos anos 1980 começavam a usufruir de pESQUISA FAPESP 218 | 39


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Inserções em circuitos ideológicos: projeto Coca-Cola, obra de 1970 de Cildo Meireles: protesto nas artes plásticas

omo o artista plástico pôde publicamente questionar, já num período posterior ao AI-5, o regime autoritário sem ter sido censurado? “As artes plásticas tinham uma inserção social mais reduzida que as artes de espetáculo e os censores se preocupavam mais com a produção musical, teatral e cinematográfica, que atingiam um público mais amplo”, diz Freitas. O historiador destaca um ponto interessante que ocorreu com Meireles e outros artistas de vanguarda, como Hélio Oiticica e Lygia Clark: com o passar do tempo, ainda durante a ditadura, mas sobretudo após o seu final, esses artistas alternativos se tornaram os principais expoentes de seu setor no país e suas obras foram muito valorizadas. Essa questão se insere em um dos debates ainda atuais entre os pesquisadores, que dis-

cutem como se deu essa hegemonia cultural de esquerda na história recente do país. Uma corrente significativa de estudiosos advoga a ideia de que esse domínio se deu, em grande medida, via mercado, embora o regime militar tenha adotado algumas iniciativas na área cultural, como a criação da Embrafilme em 1969, que tinham o objetivo de trazer para seu campo de influência a produção de alguns setores. O apoio ao estabelecimento de uma rede nacional privada de televisão, no caso a Rede Globo, também em 1969, fez parte de um projeto dos militares de integrar o país e também influir no campo da cultura. “O regime militar investiu muito em infraestrutura para televisão”, afirma Esther Hamburger, da ECA-USP, que pesquisa a produção televisiva e de cinema no país. “Mas nos anos 1970 e 1980 a programação de TV nem sempre era o que os militares queriam.” Estudos recentes de Esther destacam o papel das telenovelas em criar uma representação mais próxima da realidade nacional ainda em plena ditadura (ver Pesquisa FAPESP edição 186). Ser de oposição à ditadura também era uma postura que encontrava reconhecimento entre uma parcela considerável dos consumidores de uma cultura de esquerda. “Alguns escritores, como Carlos Heitor Cony, não eram de esquerda, mas acabaram escrevendo obras associadas à luta contra a ditadura e foram reconhecidos como tal pelo mercado”, diz Rodrigo Czajka, sociólogo da Unesp de Marília, que realizou estudos sobre intelectuais e a imprensa comunista no Brasil. “Esse foi o caso do romance Pessach, de Cony, que descreve a crise existencial de um intelectual em aderir ou não à luta armada.” O pesquisador também tem analisado os Inquéritos Policiais-Militares (IPMs) em que foi investigada a ação de inúmeros intelectuais ligados à resistência contra o regime militar. Czajka, aliás, é o organizador do colóquio “A cultura e as artes no regime militar: 50 anos do golpe” entre 22 e 25 deste mês na Unesp de Marília, em que a produção cultural nos anos da ditadura será debatida por duas dezenas de estudiosos. n

Projetos 1. Formação do intelectual e da indústria cultural no Brasil (nº 08/55377-3); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Sérgio Miceli – Unicamp; Investimento R$ 534.463,00 (FAPESP). 2. Cinema e sociedade: sobre a ditadura militar no Brasil (nº 09/04093-8); Modalidade Bolsa de Mestrado; Pesquisador responsável Marcelo Ridenti - (IFCH-Unicamp); Bolsista Caroline Gomes Leme; Investimento R$ 18.385,94 (FAPESP). 3. A edição política no Brasil e em Portugal: ação editorial e engajamento político no combate às ditaduras (nº 2013/08668-0); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Sandra Reimão – Eca-USP; Bolsista Flamarion Maués; Investimento R$ 163.082,88 (FAPESP).

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Inserções em circuitos ideológicos: Projeto Coca-Cola, 1970 © Coleção do artista e coleção Fundação de Serralves – Museu de Arte Contemporânea, Porto in Cildo Meireles (Cosac Naify, 2014)

alguma liberdade para tratar do golpe e dos governos militares. No doutorado, a socióloga está estudando o cinema paulista dos anos 1960 e 1970. Trabalhando no campo das artes plásticas, o historiador Artur Freitas, professor da Universidade Estadual do Paraná (Unespar), lançou em 2013 o livro Arte de guerrilha: vanguarda e conceitualismo no Brasil (Edusp). No estudo, que expande uma pesquisa feita para seu doutorado defendido na década passada, Freitas analisa em detalhes seis obras ou intervenções de três artistas plásticos (Cildo Meireles, Artur Barrio e Antonio Manuel) durante o regime militar. “Essa arte de vanguarda mostra-se crítica à ditadura, mas é mais conceitual: baseia-se em objetos e performances e estimula o espectador a participar da obra”, afirma Freitas. Uma das performances estudadas é a obra Tiradentes: totem-monumento ao preso político, exposta em abril de 1970 durante a Semana da Inconfidência, em Belo Horizonte, na qual Cildo Meireles queima 10 galinhas vivas amarradas a uma estaca, em um alusão mais do que direta às práticas repressivas da ditadura.


O passado no Pesquisadores buscam compreender como o Estado vem presente lidando com o legado de graves violações de direitos humanos Glenda Mezarobba

Comissão Nacional da Verdade

N

ão foi apenas o conhecimento acerca do golpe de Estado e da própria ditadura militar que avançou nos últimos anos. Mais recentemente, pesquisadores brasileiros passaram a se dedicar também à compreensão de como o Estado, por intermédio dos sucessivos governos, vem lidando com o legado de graves violações de direitos humanos do período. Até meados dos anos 1980, o tema praticamente não constituía objeto de estudo para cientistas sociais, tampouco para as humanidades de modo geral, inclusive fora do país. Foi somente a partir de 1995, com o lançamento dos três volumes da obra Transitional justice: how emerging democracies reckon with former regimes, editada por Neil Kritz e publicada pelo United States Institute of Peace, que a junção de duas noções distintas (transição + justiça) tornou a expressão “justiça de transição”, e consequentemente esse novo saber, conhecida. Embora autores como o filósofo norueguês Jon Elster acreditem que a ideia de justiça de

transição seja tão antiga quanto a própria democracia1, na modernidade suas origens estão conectadas às duas grandes guerras mundiais e seu desenvolvimento associado aos julgamentos de remanescentes das juntas militares na Grécia, em 1975, e na Argentina, em 19832. A instalação do Tribunal Penal Internacional e o fato de as Nações Unidas terem criado, em 2012, uma relatoria especial sobre a promoção da verdade, justiça, reparação e garantias de não repetição também são considerados marcos importantes. Não se trata de uma forma distinta de justiça; a noção diz respeito a uma forma ampla de justiça durante determinada transição política – por exemplo, de uma ditadura militar para a democracia – e envolve a ideia de que instituir um regime democrático leva à substituição de um regime de força pelo Estado de direito, o que implica tornar cada cidadão responsável por suas ações. “Em poucos anos”, observa o jurista argentino Juan Méndez, da American University, “a comunidade internacional fez consideráveis

Montagem com rostos de mortos e desaparecidos

pESQUISA FAPESP 218 | 41


avanços em direção ao reconhecimento de que o legado de graves e sistemáticas violações gera obrigações dos Estados para com as vítimas e as sociedades”.3 Isso significa que hoje os Estados têm o dever de reparar, de oferecer justiça e verdade, e de tornar instituições, como as forças de seguranças, democráticas. Cabe ressaltar que o enfoque principal está nos direitos e nas necessidades das vítimas. Em relação ao caso brasileiro, é no cumprimento destas obrigações que se inserem, por exemplo, iniciativas como a abertura de arquivos da ditadura e a criação da Comissão Nacional da Verdade. Constituem, portanto, foco de investigação para os pesquisadores interessados no caso nacional tópicos como a Lei da Anistia, a ausência de punição aos torturadores, o arranjo institucional que tem assegurado a impunidade aos agentes do Estado, a legislação reparatória sancionada a partir de 1995, o papel das Forças Armadas e os milhões de documentos oficiais já desclassificados pelo Estado brasileiro, ou por países como os Estados Unidos, o Reino Unido ou a Alemanha, sobre a ditadura iniciada em 1964. Interdisciplinar por definição, essa área do conhecimento tem despertado o interesse de cientistas políticos e sociais, filósofos, historiadores, juristas e estudiosos das relações internacionais dispostos a entender, por exemplo, o envolvimento de várias instituições do sistema ONU em comissões de verdade e em tribunais penais internacionais, bem como o papel desempenhado por organizações não governamentais de direitos humanos nesses processos de acerto de contas. Por adotar approaches que não são exclusivamente jurídicos, mas buscam incorporar, de forma ampla, as várias dimensões de justiça capazes de contribuir para a reconstrução social, baseiam-se

na crença da universalidade dos direitos humanos e encontram sustentação na legislação internacional de direitos humanos e na legislação humanitária, o esforço faz muito mais sentido do que pode sugerir o senso comum – acostumado a classificar incursões ao passado como exercícios arqueológicos inúteis ou, pior, “revanchismo”. Para a argentina Ruti Teitel, professora na New York Law School, por definição, transições constituem tempos de contestação de narrativas históricas. “Desse modo, transições apresentam o potencial para counter-histories.”4 Para além do esforço de incluir na história recente do país a narrativa de vítimas e sobreviventes do período, no caso do Brasil isso equivale a pensar o que a ênfase inicial no dever de reparar economicamente as vítimas da ditadura tem a dizer, por exemplo, sobre a qualidade da democracia que vem sendo construída desde 1985, sobre suas instituições e sobre a permanência da tortura e dos desaparecimentos forçados. Sobre, em síntese, a constância do que pior existia no passado, no presente. “Eu creio que a reconciliação é um objetivo fundamental de qualquer política de justiça de transição, porque o que não queremos é que se reproduza o conflito”, avalia Juan Méndez. “Nesse sentido, tudo o que fazemos – justiça, verdade, medidas de reparação – tem de estar inspirado pela reconciliação, mas a reconciliação verdadeira, não a falsa reconciliação que na América Latina se pretendeu como desculpa para a impunidade.” Na interpretação de Méndez, a “verdadeira reconciliação” exige o reconhecimento dos fatos, não pode ser imposta por decreto e “tem de ser construída nos corações e mentes de todos os integrantes da sociedade por intermédio de um processo que reconheça o valor de cada ser humano e sua dignidade”.5 n

1. ELSTER, Jon. Closing the books: transitional justice in historical perspective. Nova York: Cambridge University Press, 2004. 2. TEITEL, Ruti G. Transitional justice. Nova York: Oxford University Press, 2000; BICKFORD, Louis. Transitional justice. In: HORVITZ, Leslie Alan; CATHERWOOD, Christopher; Macmillan encyclopedia of genocide and crimes against humanity. Nova York: Facts on File, v. 3, p. 1.045-47, 2004. 3. MÉNDEZ, Juan E. Accountability for past abuses. Human Rights Quarterly. Baltimore, v. 19, n. 2, maio/1997, p. 255. 4. TEITEL, Ruti G. Transitional justice genealogy. Harvard Human Rights Journal. Cambridge (MA), v. 16, Spring/2003, p. 69. 5. MÉNDEZ, Juan E. Entrevista concedida pelo ex-preso político, ativista de direitos humanos, ex-integrante da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA e presidente do ICTJ à doutoranda Glenda Mezarobba. Nova York, 20 mar. 2007.

Avanços da Comissão da Verdade O advogado e professor da Faculdade de

direitos humanos ocorridas no país entre

Paiva em janeiro de 1971 e o funcionamento

Direito da Universidade de São Paulo (USP)

1946 e 1988. Na atual fase de

da Casa da Morte em Petrópolis, centro

Pedro Dallari, coordenador da Comissão

funcionamento, a comissão se dedica a

clandestino de tortura mantido pelo Centro

Nacional da Verdade (CNV), diz que os

consolidar todas as informações iniciais

de Informações do Exército na região

trabalhos da comissão resultaram em

provenientes de pesquisas em documentos

serrana fluminense na primeira metade

avanços importantes. Um exemplo, que

armazenados em arquivos públicos, de

dos anos 1970. Outros relatórios parciais

classifica como um “fato inédito, um divisor

testemunhos e de oitivas para entregar seu

serão produzidos até o final do ano.

de águas”, seria a concordância das Forças

relatório final em 10 de dezembro deste

Armadas brasileiras, tornada pública em

ano, Dia Internacional dos Direitos

contestação às informações divulgadas

abril deste ano, em investigar atos de

Humanos. Na área de pesquisa, a comissão

pela CNV até o momento. “A apuração

violação aos direitos humanos ocorridos

se divide em 13 grupos de trabalho.

do que ocorreu durante a ditadura

em suas dependências durante a ditadura

Até agora a CNV divulgou quatro

Dallari lembra que não houve

não começou com a CNV e também não

militar. “Essa é uma atitude muito boa

relatórios parciais, sobre casos ou eventos

acabará com o encerramento de nossos

das Forças Armadas”, diz Dallari.

mais específicos ocorridos durante a

trabalhos. Não vamos esgotar o tema.

ditadura, como a prisão, tortura, morte

Novas informações sempre poderão surgir

e desaparecimento do deputado Rubens

no futuro”, afirma Dallari. Marcos Pivetta

Criada em 2011 e instituída no ano seguinte, a CNV investiga violações aos 42 | abril DE 2014


De onde vem a informação Arquivos brasileiros e norte-americanos alimentam as investigações sobre os crimes da ditadura Márcio Ferrari

Arquivo Nacional

N

o fim de março, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) denunciou o general reformado José Antonio Nogueira Belham como um dos responsáveis pela morte do deputado Rubens Paiva, preso e torturado pela ditadura militar. Paiva foi detido e morto em janeiro de 1971 em bases da Aeronáutica e do Exército no Rio de Janeiro. Belham à época comandava o Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) do Rio, mas sempre sustentara que estava de férias quando Paiva foi preso. Uma ficha funcional que ele próprio repassou para a CNV mostrou, no entanto, que ele havia recebido diárias de serviço justamente naqueles dias. O episódio demonstra não só a importância do exame dos arquivos dos órgãos sob controle da ditadura, como a atenção para detalhes que às vezes passam despercebidos até pelas pessoas mais interessadas neles. “A importância principal dos trabalhos da CNV é a possibilidade de articular informações testemunhais e materiais vindas de diversas fontes”, diz Vicente Câmara Rodrigues, assistente da diretoria do Arquivo Nacional para o projeto Memórias Reveladas – Centro de Referência de Lutas Políticas, 1964-1985, que tem como coordenadora a pesquisadora Inez Stampa. O acervo que agora se encontra reunido em rede tornou-se o destino final dos documentos sobre a ditadura militar quando, em 2005, a Casa Civil da Presidência da República determinou que as instituições federais transferissem toda a informação guardada sobre o período para o Arquivo Nacional. Isso decuplicou a quantidade de dados sobre o regime abrigados na instituição. “Só no Arquivo Nacional estima-se que existam 16,5 milhões de páginas de textos, a que se so-

mam cerca de 10 milhões que estão nos arquivos estaduais”, diz Rodrigues. Com a Lei de Acesso à Informação, de 2011, o Arquivo Nacional se organizou para, no ano seguinte, liberar ao público todos os documentos sobre a ditadura militar, a não ser que estejam sendo tratados tecnicamente. Estão lá, recolhidos, todos os arquivos do Conselho de Segurança Nacional (CSN), da Comissão Geral de Investigações (CGI) e do Serviço Nacional de Informações (SNI), provenientes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Em cada órgão federal há um representante do Sistema de Gestão de Documentos de Arquivo (Siga) ou da Casa Civil, que coordena e torna acessíveis, entre outros, os papéis da ditadura militar, repassando-os ao Arquivo Nacional. Este também pode tomar a iniciativa de buscar documentação nesses órgãos. Segundo Rodrigues e Inez, hoje estão recolhidos no Arquivo Nacional os documentos de 30% dos órgãos federais (o que não significa 30% do total de dados).

Esquema de método de espionagem: exemplo de material guardado no Arquivo Nacional

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estado de São Paulo mantém 340 mil registros de fichas do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops) abertos para consulta pública desde o início de 1994, por determinação da Secretaria de Cultura. Segundo Lauro Ávila Pereira, ex-diretor do Departamento de Preservação e Difusão do Acervo, há quase 10 milhões de páginas de documentos sobre a ditadura militar no arquivo, 10% delas digitalizadas. Os processos de tratamento e digitalização contaram com apoio da FAPESP e da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, por meio do edital Marcas da Memória. Os documentos do Deops são os mais procurados do Arquivo Público do Estado e o fato de já estarem disponíveis há 20 anos formou, segundo Pereira, “uma geração de pesquisadores especializados”. Eles se encarregam do difícil trabalho de leitura das informações contidas na documentação. Para evitar perdas, o Arquivo do Estado optou por manter a lógica do arquivamento feito pelos órgãos de segurança do regime em São Paulo. Contribuições suplementares e preciosas sobre as violações aos direitos humanos durante a ditadura vêm de pesquisadores dos arquivos do governo norte-americano. Dois dos mais importantes estiveram no Brasil para participar de eventos que marcaram o 50º aniversário do golpe: James Green, historiador da Universidade Brown, e Peter Kornbluh, diretor de documentação sobre o Brasil no National Security Archive, organização sem fins lucrativos vinculada à Universidade George Washington. Green participou da inauguração do site do projeto Opening the Archives (“abrindo os arqui44 | abril DE 2014

vos”), uma parceria entre a Brown e a Universidade Estadual de Maringá (PR). O site contém quase 10 mil documentos norte-americanos produzidos pelo Departamento de Estado e pela Agência Central de Inteligência (CIA). Neles estão registradas observações sobre o perfil dos estudantes que se manifestavam contra o regime, o apoio ativo de parte do empresariado brasileiro e detalhes sobre as atividades do adido militar dos Estados Unidos, coronel Vernon Walters, nos primeiros anos do regime. “Estamos encontrando detalhes importantes sobre o apoio ao Ato Institucional nº 5 pela Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos em São Paulo e sobre o debate interno no Departamento do Estado a respeito dos efeitos do decreto”, diz Green. “Mas temos que entender que a pesquisa mais interessante neste momento é um trabalho longo e detalhado, juntando fontes, elementos e indícios para construir uma leitura mais densa das relações entre os dois países.” A participação indireta dos EUA no golpe e na ditadura militar foi confirmada em 1977 pela pesquisadora Phyllis Parker, que encontrou documentação sobre a operação Brother Sam (“irmão Sam”) e publicou um livro sobre o assunto, O papel dos Estados Unidos da América no golpe de estado de 31 de março. As violações aos direitos humanos haviam entrado na pauta dos assuntos governamentais por iniciativa do presidente Jimmy Carter (1977-1981). “Até então as informações sigilosas não davam ênfase à tortura e a outros abusos da primeira década da ditadura”, diz Kornbluh. “Mas os documentos norte-americanos que estão sendo revelados agora lançam luz sobre horríveis agressões cometidas pelos militares – e também expõem o papel do Brasil na Operação Condor e outras ações secretas das forças policiais brasileiras no exterior.” n

Projeto Preservação e difusão da memória pública: modernização e ampliação dos laboratórios do Arquivo Público do Estado de São Paulo (nº 2009/54965-1); Modalidade Programa Infraestrutura 6 - Arquivos; Pesquisador responsável Carlos Bacellar – FFLCH-USP; Investimento R$ 1.692.982,33 (FAPESP).

Arquivo do Deops em São Paulo: quase 10 milhões de páginas sobre a ditadura

léo ramos

Uma vez obtidos, os papéis passam por alguns processos antes de chegarem ao público. Primeiramente são classificados sumariamente. Se necessário, passam para a área de preservação. Em seguida vão para o controle de informação, onde são descritos (o que é, quem enviou para quem etc.) e digitalizados. A partir daí são abertos ao público no banco de dados Memórias Reveladas. Mesmo com todo esse cuidado, nem sempre é possível saber se os arquivos foram adulterados. Mas, como cada órgão tinha um sistema de informações sigilosas que se reportava ao SNI, as cópias enviadas para lá são valiosas para comparação com os originais. Nos casos em que os órgãos informam destruição (queima) de arquivos, é possível comprovar se isso realmente ocorreu por meio de atas exigidas pelo extinto Regulamento para Salvaguarda de Assuntos Sigilosos. A troca de informações com a CNV foi reforçada pelo deslocamento de funcionários do Arquivo Nacional para colaborar nos trabalhos de investigação. E na sede do arquivo há uma área destinada exclusivamente aos pesquisadores da CNV.


arquivos britânicos eo golpe de 1964 William Torres Laureano da Rosa

fotos  William Torres Laureano da Rosa / National Archives

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acesso a documentos oficiais do Reino Unido mudou consideravelmente nos últimos anos. Desde 1958, documentos com mais de 30 anos de existência são selecionados pelo governo para preservação e posterior divulgação. Mais recentemente, o Parlamento Britânico aprovou o Freedom of Information Act, o que permitiu que solicitações individuais desclassificassem e liberassem diversos documentos para acesso antes mesmo de completado o período previsto em lei. Com base nessas informações, tem sido possível, por exemplo, conhecer e analisar a posição do Reino Unido em relação à situação política brasileira, em 1964, e as redes de informação existentes naquela época entre Londres e Washington. Os documentos indicam que a possibilidade de um golpe de Estado no Brasil não era novidade para a diplomacia britânica. Em carta enviada em janeiro de 1964 ao Departamento Americano do serviço diplomático britânico sobre a possibilidade de golpe de Estado no Brasil, o conselheiro Ronald Burroughs reportou um “surto de rumores e declarações sobre a possibilidade de golpe de Estado”.1 Burroughs afirma que “esses golpes de Estado são previstos vindo de diferentes lados, da direita, da extrema esquerda, e do presidente”.2 De acordo com informações obtidas por intermédio do adido militar dos Estados Unidos, “General Castello Branco [...] alertou o ministro da Defesa que ele não poderia contar com o Exército apoiando um golpe do presidente. Se qualquer ato nesse sentido fosse iniciado ele, Castello Branco, chamaria as tropas para se opor a isso”.3 A leitura dos documentos evidencia que tais informações eram obtidas não só por intermédio de brasileiros próximos da diplomacia britânica – entre os quais o jornalista Ruy Mesquita, de O Estado de S.Paulo – mas também por intermédio de um sistema de cooperação entre o Reino Unido e os Estados Unidos. Tal cooperação consistia em acesso britânico a boletins informativos da CIA (um dos quais sugeriu fortemente a confir-

mação de Castello Branco no cargo de presidente um dia antes da sua escolha), bem como o intercâmbio de informações com representantes da diplomacia estadunidense, entre os quais John Plank, chefe da seção de América Latina do Bureau of Intelligence and Research, e Ellsworth Bunker, embaixador dos EUA na Organização dos Estados Americanos (OEA). Os documentos não fornecem apenas indicações diretas dos acontecimentos e dos envolvidos, de acordo com os diplomatas da época. O cruzamento das informações obtidas nos documentos britânicos com as existentes nos EUA revela aspectos importantes dessa “parceria”. Nesse período, por exemplo, observa-se que, embora os EUA e o Reino Unido fossem aliados e compartilhassem informações sobre o Brasil, isso não se deu de forma irrestrita. Nos documentos já desclassificados, a participação dos EUA no golpe de Estado foi mantida em segredo pela diplomacia britânica. Em um relatório sobre conversa com Dean Rusk (secretário de Estado dos EUA) sobre essa possível participação dos EUA, datada de 1º de abril de 1964, o embaixador britânico em Washington, Lord Harlech, reportou que em relação à deposição do presidente Goulart os EUA “teriam pouca, se é que alguma, influência nos eventos que estavam prestes a acontecer”.4 A não participação estadunidense no golpe aparece como consensual na correspondência diplomática britânica de 1964, sendo novamente discutida e reafirmada em duas ocasiões diferentes: quando das denúncias de cooperação dos EUA feitas tanto por jornais franceses quanto pelo jornalista brasileiro Bocaiúva Cunha. Ainda há muita novidade a ser descoberta sobre o período, e o acesso a um número maior de documentos em acervos no Brasil, EUA e Reino Unido é certamente uma ferramenta importante para tanto. n William Torres Laureano da Rosa. Doutorando em relações internacionais na University of Sussex e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU).

Documentos do National Archives mostram troca de informações entre ingleses e americanos sobre a intervenção militar no Brasil

1. “I am afraid that this present letter must also be rather woolly, but I think you should have it on record that there has been an outbreak of rumours and statements concerning possible coups d’état” (FO 371/173760).\ 2. “As usual, these coups d’état are predicted as coming from variously the Right, the extreme Left, and the President” (FO 371/173760) 3. “General Castello Branco […] warned the Minister of War on January 16 that the latter should not count on the Army supporting a coup by the President. If any such move were set on foot he, Castello Branco, would call out troops to oppose it” (FO 371/173760) 4. “The Americans were watching the situation very closely, but they would have little influence, if any, on the course of events” (FO 371/173761, Opinion of Mr Rusk on the situation developing in Brazil: no U.S. influence on course of events) pESQUISA FAPESP 218 | 45


lĂŠo ramos

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entrevista Ecléa Bosi

Narrativas sensíveis sobre grupos fragilizados Mariluce Moura

E idade 77 anos especialidade Psicologia social; Memória e sociedade formação Universidade de São Paulo (USP): graduação (1966), mestrado (1970), doutorado (1971) e livre-docência (1982) instituição Instituto de Psicologia – USP produção científica 8 livros, 36 capítulos de livros e 16 artigos publicados; 10 orientações de mestrado e 14 de doutorado

cléa Bosi, professora emérita de psicologia social da Universidade de São Paulo (USP), lida com temas de pesquisa que não figuram entre os mais explorados dentro dos estudos acadêmicos brasileiros: as leituras de operárias e as memórias de velhos, por exemplo, para ficar em apenas dois de peso decisivo em seu trabalho. Com frequência, Ecléa dirige seu olhar para grupos sociais fragilizados: pobres, mulheres trabalhadoras de baixa renda, idosos que, imersos na transformação contínua da metrópole, vão perdendo a contragosto as referências de seus percursos familiares, cotidianos, e penetrando num tempo de certo esmaecimento da consciência de sua identidade. Dos objetos escolhidos mais as personagens encontradas no processo de pesquisa, ambos aludindo ao precário e ao vulnerável e trabalhados sobre sólido chão teórico, ela construiu uma vigorosa, singular e reconhecida obra em seu campo. Faz parte dessa singularidade expressar o vigor dos achados e das reflexões em tom suave, delicado, que ajuda a dotar as narrativas de Ecléa Bosi de uma particular dimensão literária. Relatos de pesquisa empírica e ensaios teóricos ganham muitas vezes corpo de bela prosa poética. Mas, simultaneamente, parecem fazer parte do vigor, da força vital do trabalho de pesquisa de Ecléa, seu desbordamento para o campo da militância institucional, política.

É assim que se torna fácil compreender seu esforço pela criação e desenvolvimento da Universidade da Terceira Idade da USP, que, aos 21 anos completos, já levou para o campus da maior instituição universitária pública brasileira mais de 100 mil idosos, a maior parte detentora de precária educação formal. Ou ainda sua militância ecológica, que inclui de forma privilegiada em sua visada as operárias grávidas que, sem saber, podem estar sendo submetidas a agentes tóxicos nas fábricas em que trabalham. Casada com o professor Alfredo Bosi, respeitado crítico e historiador de literatura brasileira, mãe de Viviana Bosi, professora de teoria literária, e de José Alfredo Bosi, professor de economia, e avó de dois netos, Ecléa Bosi, que se mantém em contínua atividade apesar de formalmente aposentada, concedeu a Pesquisa FAPESP, numa manhã de tempo incerto cortada por palavras luminosas, no Instituto de Psicologia da USP, a entrevista cujos principais trechos publicamos a seguir. Livros e alguns antigos recortes postos na mesa à sua frente, logo observou que sempre foi bem tratada em sua vida profissional, mas algo que a tocara como poucas outras coisas foi ver incluído, numa lista do Ministério da Educação de 100 obras que seguem para milhares de bibliotecas escolares do país, seu livro que escrevera com mais empenho, o Memória e sociedade – Lembrança de velhos. PESQUISA FAPESP 218 | 47


Vejo nesses retalhos impressos de sua memória notícias de seus trabalhos, lutas e prêmios. Sim, acho que me empenhei muito na vida. Aqui estão coisas da militante de ecologia. Uma vida militante além de acadêmica. Participei na implantação do Parque Ecológico Chico Mendes. Temos aqui memória dos dois anos sucessivos da Semana da Ecologia que organizei na USP, antes da fundação do curso de Ciências Ambientais, em 1974. Apelei tanto para deputados, senadores, gente importante, para que ajudassem na luta contra a usina nuclear e, como as respostas não chegavam, decidi escrever a alguém que eu admirava mesmo: Carlos Drummond de Andrade. Ele estudou a questão e escreveu um artigo lindo intitulado “Se eu fosse deputado”, publicado no Jornal do Brasil. Mais recente é a luta contra Angra 3. E este livro em destaque? É uma coisa que fiz com grande prazer, o último livro que escrevi, Velhos amigos, histórias verdadeiras para crianças e adolescentes. Esse outro documento é um artigo que fiz sobre um velho professor já falecido, da USP [José Severo de Camargo Pereira]. Era professor temido. Um dia, vi que estava uma confusão na Maria Antônia, fila na porta, gente para cá e para lá, a Maria Antônia era uma caixa de ressonância da política nacional. Cuba tinha sido invadida e as pessoas estavam ali para se inscrever para lutar e defender a ilha. Aquela gente nunca tinha pegado em armas e ia enfrentar o Exército norte-americano, imagine!

pessoas que tiveram vidas sofridas, que vieram do quase nada e estão aqui brilhando na USP. E na capa dessa outra memória, um velho remando... A minha obra começa com Leituras de operárias. Por que leituras e por que operárias? Depois vem Memória e sociedade, – Lembrança de velhos; Tempo vivo da memória; Simone Weil: a condição operária; e Velhos amigos. Procuraremos fazer esse percurso, mas antes preciso lhe perguntar: de onde a senhora é? De São Paulo, a infância vivida em Pinheiros. Nasci na Maternidade São Paulo, na rua Frei Caneca.

equivaliam a um livro. Então fui conquistando minhas leituras. Quem eram seus autores preferidos? Com 13 ou 14 anos já estava mergulhada em Dostoievski, Tolstoi, Tchecov, mas também em Romain Rolland, Emily Brontë. Depois li Hemingway, Sinclair Lewis, muita poesia. Traduzi mais tarde Ungaretti, Leopardi, Montale, Rosalía de Castro (para jornais e livros). Sua escola era pública? Não. Era um colégio que não existe mais, chamado Stafford, rodeado por um parque. Era um casarão enorme na alameda Nothman. Nas caminhadas entre a casa e a escola eu fui me instruindo sobre as desigualdades sociais. Via mansões, casas humildes e meditava, sem que ninguém me dissesse nada, sobre a desigualdade social. Também aprendi a conviver intimamente com a cidade. Depois, quando fui estudar na Maria Antônia, nós, alunos, vivíamos nas livrarias, bibliotecas, nos bares. A cidade era muito próxima de nós.

Nas caminhadas entre a casa e a escola fui me instruindo sobre as desigualdades sociais

Era a invasão da Baía dos Porcos, em 1961? Exatamente. Foi então que ouvi uma voz atrás de mim dizendo que se sabia idoso, mas perguntava se aceitavam sua inscrição. Era o professor Severo. Mas quero lhe mostrar os documentos de um projeto que tem 21 anos [a Universidade Aberta da Terceira Idade]. Quase sempre os programas trazem na capa 48 | abril DE 2014

Seus pais tinham que formação? Eram muito simples, mas lembro que ambos escreviam poesia. Meu pai era funcionário público, minha mãe, dona de casa. Estudaram pouco. E eu tinha dois irmãos, mais novos. Como era sua vida de criança? Eu era uma leitora voraz. Os livros não me foram dados, não vivi rodeada de livros, foram conquistados. Como? Andando a pé. Um livro custava 12 passagens de ônibus. Eu estudava num casarão lá nos Campos Elísios, aí atravessava toda a São João, na volta, atravessava toda a Consolação, toda a Rebouças e chegava lá na rua Mello Alves, onde morávamos. E 12 passagens de ônibus economizadas

A Maria Antônia surge em sua vida em tempos fervilhantes. Como foi viver aqueles anos justamente ali? Em primeiro lugar, havia os grandes mestres. Adorávamos nossos mestres: [João] Cruz Costa, em filosofia, Ruy Coelho, professor notável de sociologia,Gioconda Mussolini, da antropologia, Dante Moreira Leite, que foi meu orientador, uma pessoa extraordinária, na psicologia social, dona Anita Castilho Cabral, que fundou o curso de psicologia. Como a senhora se encaminhou para o curso de psicologia? Quem sabe foi por causa da literatura! Quem lia o que eu lia... Dostoievski procura olhar dentro do ser humano, e tudo levava a me interessar a olhar dentro do ser humano. E esses grandes professores que eu tive foram grande inspiração. É importante perceber que a USP se entende não através das instituições, mas dos mestres. Ela tem famílias espirituais. A presença do mestre amado está em


nossa obra, dirige o nosso olhar. Estamos falando de uma época áurea da USP. Ali estavam Mário Schönberg, Florestan Fernandes, Antonio Candido... Como dentro da Psicologia se definiu o rumo de seus estudos? Fui para a psicologia social porque era uma época muito politizada, de uma densidade política enorme. Minha classe era pequena, umas 12 pessoas, e foi quase toda dizimada pela ditadura. Fui colega de classe de Iara Iavelberg, o que me marcou muito. Lembro-me da colega como uma moça muito bonita, muito inteligente e que cantava muito bem. Gostava de Ponteio, de Edu Lobo, também de Disparada [de Geraldo Vandré]. Era muito boa em estatística, disciplina do professor Severo, e íamos à casa dela para estudar. A Iara histórica todos lembram, mas foi a perda da colega que acompanhei e vi o quanto nossa turma sofreu com isso. Também lembro de Aurora Maria do Nascimento Furtado, a Lola, aluna inesquecível. Quando o general Fiúza de Castro escreveu suas memórias, perguntaram se ele se lembrava dos subversivos que tinha capturado, e ele disse que sim. Lembrava de uma mocinha muito valente chamada Aurora. Morreu com a “coroa de Cristo” [instrumento de tortura], com o crânio apertado, esmagado, uma morte muito heroica, porque não abriu a boca. Foi presa em Parada de Lucas, no Rio de Janeiro, em 1972. Nunca me esqueci dela, nem posso – fundei na Psicologia uma “sala Aurora”, com fotografias dela e com esse depoimento do general sobre sua valentia. Sobre Iara, gostaria de dizer ainda que dona Anita a convidou para ser professora de psicologia social e ela chegou a ser docente, mas logo partiu para a clandestinidade. Lembro-me dela fazendo análise de conteúdo dos discursos do Fidel Castro. Nunca terminou esse trabalho, porque desapareceu em seguida. Mas nos deixou um belo artigo sobre linguagem e comunicação que saiu numa revista da SBPC e eu tive o prazer de dá-lo a meus alunos para que o lessem. Então, sua proximidade com a luta política teve alguma influência em seu direcionamento para a psicologia social? Sim, me marcou. O que escolhi para a minha tese de doutorado? As operárias. Por que leitura? Porque é uma área pro-

Os 10 mandamentos da ecologia formulados por uma Ecléa Bosi militante

blemática. As operárias, aliás, todos nós somos colhidos pelos fluxos da televisão e dos outros meios de massa. Mas a leitura exige uma vontade, uma opção de escolha. É um ato mínimo de vontade, mas esse passo precisa ser dado. E, no caso das operárias, envolve um grande empenho pessoal, porque não há livrarias nos bairros populares. O que impede a leitura da operária? A jornada longa e extensa, a dupla jornada de trabalhadora e de mãe de família, com todos os trabalhos caseiros. A moradia distante, a falta de centros culturais, o salário gasto na sobrevivência. Embora as operárias entrevistadas em sua tese sejam mais jovens e entre elas se encontrem várias solteiras e sonhadoras. Você toca em algo que acho notável. A operária solteira tem um tipo de mentalidade, a operária casada, mãe de família, outra: é militante. Ela não falta quando precisa reclamar ou ter uma ação política, sempre está na frente. Pelo compromisso dela com os filhos, provavelmente. Isso, o salário dela é muito importante para a família. Colhi depoimentos dessas operárias. Otto Maria Carpeaux fez o

prefácio do livro e ele diz, “mas que pesquisa desoladora, que mentes seduzidas e exploradas”. Mas eu quis dar um passo à frente: constatei o que a operária lia e procurei saber o que ela gostaria de ler. Entrei no universo do possível. E a diferença entre o que ela lia e o que gostaria de ler abarca um abismo? Não, mas é diferente. A comunicação de massa é dupla: no terreno da propaganda, procura mostrar o que há de mais avançado na técnica; no terreno do imaginário, explora uma mentalidade pré-industrial que sobrevive na cultura do homem pobre e que seria a literatura de folhetim. Como é a literatura de folhetim que a operária tanto amava? Em geral, traz a situação da mulher e da criança que sofrem violência social. A mulher vive o desequilíbrio, a situação de vitimismo. Esse é o romance que a operária lê. E se reequilibra, quando a história termina bem, através do matrimônio, intervenção do destino. No folhetim-livro ou nos enredos das revistas? Na revista e no folhetim, no enredo romântico a mulher e a criança são vítimas não da sociedade, mas do destino. E essas histórias não são datáveis, são eternas: carregam o sentimento de exclusão do mundo, de evasão, a fantasia compensatória com que tanto Freud se preocupou... Umberto Eco tem uma expressão bonita para isso: estruturas da consolação. E Gramsci as nomeia complexo de inferioridade social ou devaneios de PESQUISA FAPESP 218 | 49


compensação. Gramsci lamenta muito que os intelectuais não se preocupem com as leituras populares. Assim, não criaram um humanismo moderno capaz de alcançar os mais humildes. Entre a visão de Carpeaux, a visão de Gramsci e a sua própria, parece-me que uma diferença sensível, entre outras, é a verdadeira proximidade com que a senhora trata o grupo que estuda. Antes, deixe-me lhe dizer, esses romances românticos, de que tratam? A meu ver, a operária se impressiona com questões essenciais ligadas à justiça, à culpa, ao castigo, à transgressão, à revolta, ao suplício imerecido. Mas não é disso mesmo que trata a grande literatura? Os temas são os mesmos. Os olhos do leitor alcançam e tocam esse drama humano. Os clássicos tratam disso e o leitor trabalhador manual, se tivesse oportunidade de ler os clássicos, provavelmente se sentiria em casa. Nesse sentido, entre o que eles poderiam ler e o que leem, senão um abismo, há uma distância. Veja bem, há livrarias nos bairros operários? Vi que as operárias compravam livros de kombis que rondavam as fábricas. Fui entrevistar os livreiros – aí é que Carpeaux choraria se os ouvisse – e eles me contaram que vão às livrarias e editoras, compram os refugos e os encadernam (ou encadernavam, na época de minha pesquisa) lindamente. A operária que dedicou horas e horas, às vezes dias, para comprar um livro assim bonito vai pôr esse volume na sala e guardar para os filhos. São caros, muito caros os livros. Veja como é decisivo o passo em direção à leitura.

história oficial, a cultura, não seria completa se não se incluíssem as fantasias e desejos daqueles leitores. A escritora e filósofa Simone Weil [1909-1943] contou as tragédias de Sófocles para as operárias de uma metalúrgica. Elas vibravam com a narrativa e Simone Weil percebeu que a ficção pode ser uma fuga, uma evasão – mas também uma revelação. Em sua leitura, as leituras das operárias tinham mais de fuga ou de estratégia para sobreviver mantendo certa sanidade? Isso é um triunfo da cultura de massa sobre a cultura operária – que faz parte da cultura popular e também da cultura de massa, mas são diferentes. Quando o operário se evade, lendo, e procura a

O enraizamento é viver intensamente a cultura popular. Mariátegui, Simone Weil e Gramsci viviam intensamente a cultura popular e fizeram com que seus estudos se alimentassem dela. Não há melhor alegria no mundo do que fazer um estudo para uma universidade e ver que ele tem repercussão numa política pública. No caso de Leituras de operárias, tive a alegria de trabalhar na prefeitura na gestão de Luiza Erundina [1989-1993], na Secretaria de Obras, com Lucio Gregori, na Secretaria da Cultura, com Marilena Chauí, na criação de bibliotecas populares – ela estava muito interessada em formar comunidades de leitores – e também fui convidada por Paulo Freire para trabalhar na Secretaria da Educação. Foi uma época de militância que resultou de Leituras de operárias. Mas o que mais apreciei ter feito na vida, nesse âmbito de políticas públicas, foi ter ido à Organização Internacional do Trabalho [OIT], na ONU, em Genebra, e ter feito a denúncia do trabalho operário feminino no seguinte aspecto: todo ano aparecem agentes químicos novos, nocivos, e não estudados de maneira alguma quanto à repercussão no organismo feminino. No caso das fábricas que trabalham com radiação, esta afeta o tecido embrionário nos três primeiros meses de gravidez, fase em que em geral a operária não sabe que está grávida. A criança vai sofrer os efeitos dessa radiação em sua saúde anos mais tarde. E os culpados ficam impunes. O que seria preciso fazer? Estudar os agentes nocivos nas fábricas em que a mulher trabalha.

A operária se impressiona em suas leituras com os mesmos temas de que trata a grande literatura

Quanto tempo foi gasto em todo o seu trabalho de pesquisa da tese? Levei dois anos nessas conversas com 52 mulheres. Só uma estudava, mas, exausta, estava em via de abandonar os estudos. Devo lembrar aqui alguns antecedentes dessa história de investigar leituras operárias: a escritora francesa George Sand [1804-1876] entrevistou trabalhadores para saber o que liam e concluiu que a 50 | abril DE 2014

fantasia, ele não está criando uma cultura operária, porque essa tem que ter um elemento de militância. A cultura operária pergunta: quem somos nós, o que são as pessoas como nós? Qual é o significado do nosso trabalho, qual o valor do nosso trabalho para a sociedade? Por isso Gramsci quis criar em Turim as universidades operárias, onde dava aula. Por isso Simone Weil, que foi operária metalúrgica, dava aula para os ferroviários, para os mineiros. Penso que Simone, Gramsci e outros pertencem a uma vanguarda enraizada, expressão de Alfredo Bosi que eu aceito e admiro. E qual o sentido aqui da palavra “enraizada”?

A denúncia teve alguma consequência prática em termos de políticas gerais? Naquela época houve a denúncia do amianto e muitas nações ali presentes o proibiram. O Brasil não quis assinar. Antes da memória, dado que fiquei muito interessada na expressão “vanguarda enraizada”, pergunto-lhe se não há por parte de muitos intelectuais um tratamento excessivamente condescendente – a ponto de soar irritante e até ofensivo – ao examinar hábitos, comportamen-


tos, modos de vida de representantes das classes mais pobres etc., quando não têm qualquer vínculo efetivo com essas comunidades. Quando um intelectual vai à periferia colher informações, ele está recebendo. Ali, o doador é o pobre. Ele vai colher informações para fazer tese, subir na carreira acadêmica, e quem lhe deu tudo fica vivendo sua vida precária, sem esperança. E o intelectual sobe à custa desses doadores, sem formar com eles – numa expressão que me é caríssima – uma comunidade de destino. São destinos divergentes e ele tem que ter consciência disso. Aliás, na pesquisa é fundamental a pessoa perceber que uma coisa é registrar informações e outra coisa é escutar. Se o pesquisador tem o dom da escuta, a palavra “dom” já inclui a amizade. Não existe amizade temporária. Não existe simpatia fácil pelo sujeito da pesquisa, pela classe desfavorecida. Existe engajamento responsável da vida inteira. Isso é amizade. Podemos voltar então ao trânsito das leituras para a memória. Todo ano dou curso sobre memória e oriento as pesquisas dos alunos que também vão estudar memória. No estudo Memória e sociedade colhi a memória biográfica, mas também veio junto a memória do tempo, do espaço, a memória política, a memória do trabalho e a memória cultural. Quais eram as características desses velhos entrevistados? Eram sensíveis às transformações urbanas. Eles foram percebendo como a cidade foi mudando e como isso se refletia em cada passo da biografia. Os urbanistas têm que escutar essas memórias, saber o que essa cidade significa e o que as transformações da cidade significaram na vida de seus cidadãos. O que os velhos me contaram das suas cidades? Contaram histórias que ouvimos de nossos avós, a passagem do cometa Halley, em 1910. Todos descreveram o cometa Halley, descreveram os mata-mosquitos de Oswaldo Cruz nos bairros varzeanos, descreveram a gripe espanhola, as peripécias do ladrão Meneghetti, que era um ladrão muito simpático, que tirava dos ricos para dar aos pobres. Aliás, as histórias do Meneghetti são extraordinárias. Ele comprava discos de ópera, porque aqueles bairros operários, como o Bixiga, eram bairros italianos, e como era o único que tinha vitrola, colocava

Velhos: revelando-se nas memórias e na Universidade da Terceira Idade da USP

bem alto, para todos ouvirem. Eram todos loucos por ópera. Mas a memória dos velhos rema contra a maré, porque a cidade não permite a visitação de um velho a outro. Eles perdem o grupo recordador das mesmas lembranças. Esse grupo recordador é testemunha e intérprete dessas lembranças. Quando isso se perde, as memórias se dispersam e precisa muito esforço para colhê-las. O anarquismo do início do século XX, a revolução do Isidoro, aliás quanta criança se batizou com nome de Isidoro depois... A Coluna Prestes, a revolução de 1932, as duas grandes guerras, Getúlio e o trabalhismo, lembrados de maneira comovente. Na morte de Getúlio, me contou um velho, foi lançado gás lacrimogênio para que os operários não se reunissem, mas eles se reuniram mesmo assim e choraram por causa do gás, só depois souberam por quê. Eu entrevistei uma professora comunista que subia nos andaimes e jogava pedras quando havia passeata de integralistas e entrevistei um velho integralista que recebia as pedradas quando se construía a Catedral. Os pontos de vista são diferentes, mas as suposições constituem a história igualmente, seja qual for nosso ponto de vista. Outra lembrança interessante são

as de jovens e adultos que lembram de noites, no tempo da ditadura, em que escutavam cochichos, camas arrastadas, lugares improvisados. E essas confusões domésticas eram para esconder militantes que se refugiavam nessas casas. Entendemos que centenas de famílias esconderam revolucionários, simpatizando ou não com suas ideias. Acho impressionante. Quantas donas de casa não esconderam jovens perseguidos pela polícia? Salvaram a vida deles, sem conhecer a ideologia desses jovens? As lembranças do espaço e dos acontecimentos políticos e históricos começam, em primeiro lugar, na casa materna, que é o centro geométrico do mundo. A cidade parte da casa materna em todas as direções. Dali partem as ruas, as calçadas onde a vida se desenrolou. Eu colhi os pregões dos vendedores, as cantilenas que atravessavam os bairros. Gravei pauta musical dos bairros e aprendi que a cidade não é só um mapa visual, é um mapa sonoro e ele faz parte da nossa identidade, da nossa integridade. Se você pensar, a rua tem uma trilha sonora. Se você começar a gravar, desde uma porta que se abre, a vassoura na calçada, as lojas que se abrem... É muito bonito o paulistano descrevendo a cidade, porque ele fala “ali na Penha” e aponta a palma da mão. Ele tem a cidade na palma da mão. É um mapa afetivo da cidade. Quais são os lugares da memória paulistana? O viaduto do Chá, a Catedral, a Penha, porque as crianças que eram batizadas eram levadas PESQUISA FAPESP 218 | 51


na Penha e os noivos iam peregrinar na Penha depois do casamento. O Museu do Ipiranga, o Jardim da Luz, a Cantareira e o Teatro Municipal. Os velhos memorialistas diziam “desci os 84 degraus...”, como se todos soubessem que tem 84 degraus. Esse pessoal do Brás e da Mooca botava as melhores roupas e vinha para a porta do Municipal. Desfilava a elite paulistana, seguia para seus lugares. Depois o bilheteiro escolhia daquele pessoal os que estavam mais bem-vestidos e dizia para entrar. Então o que eles faziam? Ficavam nas galerias e batiam palmas na hora certa, porque conheciam a ópera. Quando começavam a bater palmas na galeria, a elite sabia que era um momento importante. Se um tenor desafinava, por exemplo, a galeria ficava em silêncio, diziam “stonato il tenore”, e não batiam palma. E tinha uma figura extraordinária em São Paulo, que era um preto que tinha uma risada inesquecível. Então ele era sempre convidado a entrar de graça, claro. Quando ele ria, a risada dele contagiava todo o auditório. Eu tinha um tio que era claque e ele me ensinou a bater palma, como a claque devia bater palma, fazendo um eco. E as várzeas: da Barra Funda, do Glicério, do Limão, da Casa Verde, quantos campos de futebol ali existiam? Só conhecemos o futebol de estádio quando as indústrias tomaram as várzeas para usar o rio como canal de seus dejetos.

continuar vivendo, mas pode ser golpeada de morte. Golpeada pelas imobiliárias e urbanistas que não têm nenhum interesse na memória, na sobrevida dos moradores. O caminho familiar entre a casa e os lugares que se costuma ir não é um privilégio do ser humano, mas do ser vivo. O bairro é uma totalidade estruturada, comum a todos, que vamos percebendo pouco a pouco e traz um sentido de identidade ao morador. É terrível perder o caminho de volta, é o retorno do caminho familiar se ele ainda existe. Os velhos ficam acuados quando as quadras do bairro são arrasadas. Para onde vão? Tentam resistir, mas em geral perdem a parada. A mudança e a morte se equivalem para as pessoas. Os urbanistas devem escutar os velhos moradores que têm a memória de cada rua

Essas memórias são todas da primeira metade do século XX? Sim, mas isso não quer dizer que eles não continuaram lutando até o fim. Já lhe conto da dona Jovina Pessoa, uma grande militante que entrevistei. Os bairros de São Paulo, quando descritos pelos velhos, têm uma biografia, assim como nós. Têm infância, juventude, maturidade e velhice. E a velhice é a quadra mais bela dos bairros, porque ali se constituiu já a sua memória. A fisionomia do bairro amadurece, acompanha a respiração dos moradores. As nossas histórias se misturam com a história do bairro e vamos enxergar na rua aquilo que nunca vimos, mas que nos contaram. Quando a fisionomia do bairro se humanizou e amadureceu, ela pode

e de cada bairro. Os conselhos de bairros têm direito de veto? Teoricamente sim, mas será que são escutados?

têm um selo de nostalgia, um sabor agridoce. Porque a pessoa, enquanto conta a vida e a cidade, faz uma das operações mais difíceis para a mente humana, que é aceitar o irreversível, o que se perdeu. Quando conta, dá seu consentimento a essa perda, com graça e com liberdade. Instruída por esses bravos recordadores, pensei neles e na velhice na sociedade industrial. Como esta sociedade é maléfica para a velhice! Por causa das mudanças históricas que se aceleram, o sentimento de continuidade da pessoa é rompido. E foi aí que veio seu projeto da Universidade da Terceira Idade? Sim, abrimos a universidade. Afinal, não são os impostos dos velhos trabalhadores que nos sustentam? Então é natural que venham. E quem vem? Pessoas que nunca conseguiram estudar. E sentam-se na classe junto com os alunos de graduação. É a primeira vez que nosso aluno estuda ao lado de um trabalhador manual, um pedreiro ou uma doméstica que não estão a serviço dele. Essas pessoas estão participando da paixão pelo conhecimento e alguns tomam três conduções para ir à USP. Às vezes uma delas lava toda a roupa do cortiço onde mora para comprar uma revista especializada que o professor pediu. Falei trabalhadores manuais porque eles são a glória do projeto, mas podem vir também alunos que têm mais cultura que o professor, como a dona Neuza Guerreiro, bióloga, uma pessoa de grande cultura. Mas em geral são pessoas que não puderam estudar e elevam o nível das aulas, porque foram testemunhas da história. O aluno não sabe o que sofreu uma pessoa exilada e perseguida pela ditadura e o aluno de terceira idade a seu lado pode ter sido essa pessoa. Nem sempre o mais jovem tem a visão mais avançada. Quer um exemplo? Uma aluna que nunca teve estudo universitário é mãe de dois arquitetos que estão desenhando a planta da nova casa. Ela vira-se para os filhos e diz que não concorda com a planta, embora esteja muito bonita, porque o tamanho do quarto de empregada é minúsculo e, ela explica, no curso de psicologia social

A velhice é a quadra mais bela dos bairros, porque ali se constituiu já a sua memória

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Seu trabalho sobre a memória seguiu-se às Leituras de operárias, portanto, as entrevistas com os velhos ocorrem nos anos 1980? Isso mesmo. E depois dessa tese floresceram os estudos sobre memória no Brasil, muitos. Há uma causa profunda para eles e acredito que seja decorrência da necessidade de enraizamento. Afinal, vivíamos num país que estava tentando extirpar um pedaço da memória por razões políticas, não é? Os trabalhos de memória e sociedade


aprendeu que o espaço do trabalhador tem que ser mais respeitado. E os arquitetos refazem a planta de novo. A Universidade da Terceira Idade vai muito além de um projeto acadêmico porque reaproxima o idoso da comunidade. Mas eles não podem ser vítimas de um certo preconceito por parte dos alunos? Logo o preconceito se desfaz. Um velho operário, ante a classe reclamando do excesso de bibliografia para a prova, levanta-se e diz que foi operário a vida inteira, mas que agora, por causa da idade, só consegue trabalho quando os operários saem e ele vai lavar as máquinas e o chão. Comenta, “que trabalho pesado”, pede um livro a um colega, segura, mostra para a classe e diz: “Como o livro é leve!”. Isso comove a classe toda. Como o livro é leve perto do trabalho de um metalúrgico discriminado porque está velho! Coisas inesquecíveis. A cada ano, quantos estudantes da terceira idade entram na USP? Varia, mas nos anos recentes em geral têm entrado 10 mil. Já tivemos mais de 100 mil matrículas em 21 anos. Eles vêm de toda parte e se espalham pelos diferentes cursos e departamentos. À não especialização do velho, corresponde também a não especialização do professor. Assim, o professor de mineralogia dá aula de dança folclórica, de roda. O professor de engenharia química dá aula de cinema. Porque o professor tem aí uma responsabilidade enorme, dá aula para um aluno que já estava interrogando as estrelas antes de ele ter nascido. O professor é consciente do passado desse aluno e por isso se prepara muito mais para dar essa aula.

lido mesmo a Bíblia – se levantou e começou a citar versículos bíblicos que sabia de cor. Ela dizia assim: “Todas as coisas têm seu tempo debaixo do sol. Há tempo de nascer e de morrer, tempo de plantar e tempo de colher, tempo de chorar e de sorrir, tempo de rasgar e de costurar, tempo de buscar e tempo de perder, tempo de abraçar e de se separar; tempo de calar e tempo de falar”. Os alunos compreenderam na hora e ficaram tocados, porque ela mesma tinha chegado ao tempo de falar – falar em público, se expressar. Ouvir sobre sua trajetória acadêmica me traz a sensação de que ela é atravessada por um componente mais íntimo muito poderoso. Permita-me perguntar, o que lhe

E você quer coisa mais bonita que o serviço? Qual foi o primeiro milagre de Cristo? Transformou água em vinho numa festa para tomar com os amigos. Foi um primeiro serviço muito humano e daí foi em frente. Quem são os seus mestres em psicologia social? Falo dos que são próximos, muito presentes quando escrevi meus trabalhos. Em teoria da Gestalt, Anita de Castilho Marcondes Cabral, em teorias sobre o tempo, Henri Bergson. Também Maurice Halbwachs [1877-1945], a quem dediquei meu livro, psicólogo social que morreu no campo de concentração de Buchenwald. E na hora da interpretação minhas ligações são com Adorno, Marx, Hannah Arendt... Gosto especialmente do fundador da ecologia política, Andre Gorz [1923-2007]. Figura linda. E o último livro dele, Cartas a D., que são cartas de amor que escreve para a mulher, foi traduzido a meu pedido. A edição brasileira é mais bonita que a edição francesa.

A Universidade da Terceira Idade tem função acadêmica e reaproxima o idoso da comunidade

Como chegaram os primeiros alunos à Universidade da Terceira Idade? Muito tímidos. Eu queria lembrar dona Santinês, vendedora ambulante, cozinheira, que teve uma vida muito sofrida. Eu estava dando uma aula dizendo que o tempo é vivido diferentemente conforme a classe social. A classe estava com dificuldade para apreender isso e ela, semialfabetizada – só tinha

move à visão generosa de inclusão social? Talvez o meio em que vivi meus primeiros anos. E a imensa simpatia que tenho por essas pessoas humildes que me deram tudo me faz achar que devo estar a serviço delas enquanto eu viver. Na verdade, estou a serviço da Universidade da Terceira Idade, não fico à vontade se você diz que eu a criei ou que a dirijo – estou a serviço. Pergunto por conta de seu longo trajeto marcado por esse sentido de serviço ao outro. Aí vejo a expressão de um exercício cristão ou de outro campo religioso similar, a expressão de uma dimensão utópica na prática da vida cotidiana, enfim... As pessoas generosas são muito movidas por crenças profundas.

Como é sua prática diária na universidade? Eu oriento trabalhos de memória. Encontrei Simone Weil em meu caminho, hoje coordeno o Laboratório Simone Weil, que já tem 11 anos. É interdisciplinar e reúne pesquisadores que só estudam a obra de Simone Weil. Daí nasceram pesquisas admiráveis baseadas em seu conceito de enraizamento. Coordeno a Universidade da Terceira Idade e dou aulas na graduação e na pós. E plantei quatro pomares. Vamos contar essa história dos pomares. O paulistano é um migrante urbano. Entrevistei umas 140 pessoas e só uma vivia na casa em que nasceu. Eu mesma mudei muito de casa, e em cada casa que morei plantei um pomar, mas não cheguei a colher frutos a não ser na casa de Cotia, onde vivi por 40 anos e da qual saí há alguns meses. Sinto muita falta das minhas árvores. A vida é um pouco isso, plantar árvores frutíferas, pedindo a Deus que alguém esteja lá depois saboreando os frutos. n PESQUISA FAPESP 218 | 53


política c&T  infraestrutura y

Ciência transparente Cada vez mais os pesquisadores são solicitados a armazenar os dados primários de seus estudos em repositórios públicos Fabrício Marques

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ilustrações  bel falleiros

C

ertas transformações ocorrem de forma tão gradativa que só é possível perceber o seu alcance em um momento adiantado do processo. Um desses momentos que parecem cristalizar mudanças aconteceu em março, com a decisão das sete revistas científicas PLoS (sigla para Public Library of Science) de condicionar a aceitação de novos artigos à divulgação por seus autores, em repositórios públicos, dos chamados dados de pesquisa, aquela massa de informações primárias que, uma vez analisada e interpretada, serve de base para as conclusões do paper. A nova regra da PLoS, que se enquadra em uma ampla mobilização de agências de fomento, cientistas e universidades para dar mais transparência à publicação de resultados de pesquisa, não chega a ser propriamente uma novidade. A maioria dos periódicos já recomenda aos autores que disponibilizem os dados e esta recomendação virou exigência há tempos em revistas de genética e de bioinformática, cujos estudos geram gigantescos volumes de informação sobre sequências de DNA e proteínas. Em 2013, o


Escritório de Política Científica e Tecnológica do governo norte-americano enviou um memorando às principais agências de fomento estabelecendo o acesso aberto a resultados de pesquisa financiada com dinheiro público, incluindo a oferta dos dados primários em repositórios, salvo restrições de confidencialidade e privacidade pessoal – mas faltou estipular prazos para a ideia sair do papel. A decisão da PLoS parece criar um ponto de inflexão nessa tendência. “Nosso ponto de vista é simples. Garantir o acesso aos dados subjacentes deve ser parte intrínseca do processo de publicação científica”, justificou Theodora Bloom, diretora editorial da PLoS Biology, da PLoS Computational Biology e da PLoS Genetics. Com mais de 30 mil artigos publicados no ano passado, as revistas PLoS foram criadas ao longo da década de 2000 por uma instituição sem fins lucrativos seguindo um modelo inovador. Publicam artigos apenas on-line e em acesso aberto – ou seja, podem ser consultadas por qualquer pessoa, pela internet, sem cobrar por isso –, mas, graças a um corpo de revisores de primeira linha, alcançaram um fator de impacto comparável aos de publicações tradicionais. A PLoS Medicine, por exemplo, teve um fator de impacto de 15,2 em 2012 – significa dizer que, em média, cada um de seus artigos publicados entre 2010 e 2011 teve 15,2 citações em periódicos indexados em 2012. A concorrente Nature Medicine, do grupo Nature,

teve no mesmo período fator de impacto de 24,3. “Como a PLoS é uma referência internacional, a sua decisão vai contribuir para disseminar a ideia do depósito dos dados de pesquisa e criar uma demanda adicional para repositórios e também modelos que financiem essa demanda”, diz Abel Packer, coordenador da biblioteca SciELO Brasil, um programa especial da FAPESP criado em 1998 que reúne quase 300 publicações científicas do Brasil de acesso aberto. As novas regras da PLoS geraram dúvidas e algum alvoroço. Dez dias após o início da implementação, seus editores pediram desculpas por pontos ambíguos e esclareceram que nada mudou em relação à natureza dos dados que precisam estar descritos nos artigos – a única preocupação nova é apontar em que banco ou repositório podem ser encontrados dados primários (os arquivos do próprio pesquisador não são uma opção), caso os revisores do artigo ou outros pesquisadores interessados no assunto precisem avaliá-los. Dados primários são entendidos pela PLoS como aqueles que abastecem tabelas e análises estatísticas publicadas no artigo e são indispensáveis para que outros pesquisadores consigam reproduzir os mesmos achados. Dados protegidos por razões de segurança ou de privacidade não estão incluídos na exigência. As mudanças despertaram reações de quem enxerga nas regras um novo ônus para os pespESQUISA FAPESP 218  z  55


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quisadores. O geneticista David Crotty, editor do programa de publicação de revistas científicas da Oxford University Press, escreveu em seu blog, no portal The Scholarly Kitchen, que a mudança poderá reduzir o número de artigos submetidos às revistas PLoS. “Se a publicação em uma revista PLoS exige que você faça semanas de trabalho adicional para organizar seus dados em uma forma reutilizável ou pelo menos reconhecível, sem falar no custo de hospedar os dados e no esforço para encontrar um repositório adequado, então por que não publicar o artigo em um jornal diferente e eliminar os custos e os gastos de tempo?”, indagou Crotty. Não se trata, observa Abel Packer, de fazer trabalho adicional, pois a mudança de paradigma é bem mais profunda. “Estamos falando de novas práticas, nas quais os dados já são organizados durante a realização da pesquisa, de modo que possam ser disponibilizados nos repositórios e sejam inteligíveis e reutilizáveis para outros usuários”, afirma. O armazenamento de dados científicos em repositórios e sua reutilização é uma das preocupações do recém-lançado Programa FAPESP de Pesquisa em eScience, expressão que resume o desafio de pesquisa para organizar, classificar e garantir acesso ao gigantesco volume de dados gerados continuamente em todos os campos de pesquisa, a fim de extrair novos conhecimentos e fazer análises abrangentes e originais. “Não se deve imaginar que basta o pesquisador fazer o download de um dado contido num repositório para utilizá-lo num novo estudo”, diz Claudia Bauzer Medeiros, professora do Instituto de Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenadora-adjunta de programas especiais eScience da FAPESP. “O compartilhamento de dados para reutilização ou reprodução de experimentos exige conhecer sua origem e 56  z  abril DE 2014

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É preciso conhecer a origem do dado e saber como ele foi produzido para reutilizá-lo com propriedade

entender como foram produzidos, associando à informação métodos, algoritmos ou técnicas adotados, e ainda ter acesso ao software necessário para processá-los, o que torna o processo bastante complexo. Sem isso, pode não ser possível reproduzir o experimento original ou reutilizar o dado em uma outra pesquisa”, afirma a professora, que lembra que a primeira chamada de propostas do programa eScience está aberta até 28 de abril. Um dos alvos do programa é a pesquisa relacionada a repositórios de dados. “Esperamos que os projetos apresentados, que deverão envolver pesquisa conjunta em computação e em outras áreas do conhecimento, contribuam na criação de metodologias e modelos de dados para criar repositórios, e em formas mais eficientes de descrever o conteúdo e estruturá-lo, para poder recuperá-lo”, explica. “Não é suficiente, por exemplo, descrever dados por palavra-chave. Se um pesquisador quiser reutilizar aquele dado para um propósito diferente dificilmente o encontrará por palavra-chave”, afirma.

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ste tipo de esforço de pesquisa inspirou o Nature Publishing Group, que edita a revista Nature, a lançar uma nova revista a partir de maio. Trata-se da Scientific Data, publicação on-line em acesso aberto voltada para descrever não novos achados científicos, mas sim os datasets (conjuntos de dados) de pesquisas consideradas valiosas. O objetivo é promover a documentação, intercâmbio e reutilização dos dados que sustentam as pesquisas, em modo aberto, para acelerar o passo das descobertas científicas. Para atingir este objetivo, os editores da revista introduziram um metadado (dados a respeito de


a Amgen, constataram que era possível reproduzir apenas seis entre 53 estudos considerados “marcos” na pesquisa do câncer. “Além de verificar a validade dos resultados, o acesso e reutilização de dados também permitem fazer novas pesquisas e estudos comparativos combinando dados de origens diferentes”, diz Abel Packer. “Para as agências de fomento, trata-se de um avanço importante, pois permite gerar mais conhecimento a partir de um mesmo investimento.” A experiência mostra que os pesquiDescobertas científicas que acabam sadores têm dificuldades não sendo validadas assombram em manter os dados primários disponíveis ao loncientistas, publicações e empresas go do tempo. Um artigo publicado em dezembro na revista Current Biology mostrou que as informanas buscas, interoperáveis com diferentes siste- ções que servem de base a artigos científicos vão mas na web, reutilizáveis em outras pesquisas e se perdendo ao longo do tempo. Os autores esquadrinharam 516 artigos da área de ecologia citáveis”, diz Abel Packer. publicados entre 1991 e 2011 – e foram ver o que princípio da reprodutibilidade das pes- aconteceu com os dados primários. Constataram quisas é o dínamo mais importante para a que os artigos publicados nos dois anos anteriores criação dos repositórios de dados de pes- estavam acessíveis, mas as chances de isso aconquisa. Uma quantidade não desprezível de des- tecer com os publicados anteriormente caíam a cobertas científicas acaba não sendo confirmada uma taxa de 17% ao ano. “Cedo ou tarde, o softapós sua publicação, por problemas que incluem ware que permite acessar um arquivo ou banco erros e fraudes, mas que também se estendem a de dados vai ficar obsoleto. Há uma área da pesfalsos resultados positivos ou negativos obtidos quisa em computação, chamada curadoria, volde boa fé. O problema assombra pesquisadores tada para preservar os aparatos computacionais e revistas científicas, obrigados a cancelar a pu- e garantir não apenas a qualidade, mas também blicação de trabalhos cujos resultados soavam a preservação de dados para seu uso futuro, ou promissores, e tornou-se um pesadelo para em- pelo menos os considerados mais valiosos”, diz presas farmacêuticas e de biotecnologia. Segun- Claudia Bauzer Medeiros. Um desafio ainda em aberto é desenvolver um do reportagem recente da revista The Economist, pesquisadores de uma empresa de biotecnologia, modelo para financiar os serviços ligados a essa nova etapa. “As taxas eventualmente cobradas pelos repositórios não são altas, mas alguém tem que financiar. Atualmente, instituições e programas de pesquisa, por exemplo na área de genética e de proteínas, criaram repositórios desse tipo e financiam o armazenamento e a disponibilização dos dados”, diz Abel Packer, referindo-se a casos como o do GenBank, banco de dados de sequências de DNA e de aminoácidos do Centro Nacional de Informação Biotecnológica dos EUA. Num esforço para organizar mais de 600 repositórios e desenvolver metodologias, foram criados dois catálogos que trabalham de forma cooperativa. Um deles é o Biosharing.org, sediado na Universidade de Oxford, que reúne a lista de repositórios de dados de ciências biológicas, como DNA e proteínas. O segundo é o Registry of Research Data Repositories, financiado pela Fundação de Pesquisa da Alemanha, que compila os repositórios das demais ciências, inclusive as sociais. outros dados) chamado data descriptor. Na revista, estes metadados devem fornecer descrições detalhadas de conjuntos de dados em ciências da vida, biomédicas e ambientais, com foco exclusivo em como eles foram produzidos, por quem e como podem ser reutilizados por pesquisadores independentes. “Os metadados dotam os dados científicos com identidade e documentação padronizada e com capacidade de serem acessíveis

1 Banco de dados da Organização Europeia para Pesquisa Nuclear (Cern), em Genebra 2 Sala de controle de satélite meteorológico operado pela Agência Espacial Europeia e a Organização Europeia para Exploração de Satélites Meteorológicos, em Darmstadt, Alemanha

fotos 1 CERN  2 Ysangkok / Wikimedia  3 USGS

3 Arquivo de imagens de sensoriamento remoto do Serviço Geológico dos Estados Unidos

3

O

pESQUISA FAPESP 218  z  57


A biblioteca SciELO Brasil deverá ter até o final do ano uma política definida para o arquivamento em repositórios dos dados das pesquisas publicadas em suas revistas seguindo padrões internacionais. “Estamos estudando se é mais recomendável criarmos um repositório próprio da biblioteca SciELO além das alianças com repositórios já existentes”, afirma Abel Packer. No Brasil a criação de repositórios de dados científicos ainda é incipiente. Um exemplo pioneiro de banco de dados advindo de projetos científicos é o criado para o Sistema de Informação Ambiental (SinBiota), que reúne e integra as informações produzidas em projetos vinculados ao Programa Biota-FAPESP. O SinBiota permite analisar a distribuição das espécies catalogadas no território paulista sobre uma base cartográfica digital. “Quem está organizando um movimento de dados abertos é o Ministério do Planejamento, mas a preocupação é com dados públicos governamentais, não dados de pesquisa”, observa Hélio Kuramoto, tecnologista sênior do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict) e um estudioso do movimento de acesso aberto a pesquisas científicas. Várias universidades brasileiras, inclusive as três estaduais de São Paulo, criaram repositórios para reunir sua produção científica – um grande avanço, mas que ainda não considera o armazenamento dos dados que amparam tais pesquisas.

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ntre as revistas científicas brasileiras, um exemplo raro com política de publicação semelhante à da PLoS é o da Brazilian Political Science Review (BPSR), vinculada à Associação Brasileira de Ciência Política. A BPSR é uma revista de acesso aberto, publicada exclusivamente em inglês em formato eletrônico. Desde o ano passado, os autores de artigos cujo conteúdo se baseia em métodos quantitativos são solicitados a disponibilizar, no próprio site da revista, os bancos de dados que embasaram o paper e também os chamados codebooks, dicionários que permitem a identificação das variáveis empregadas nos bancos de dados. A medida elevou os custos de manutenção da revista, que necessita de ajuda de um profissional para manter o repositório. “O princípio que orientou a adoção desta iniciativa é um princípio básico da ciência, que consiste em viabilizar a replicação dos procedimentos que levaram às con-

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clusões obtidas em um trabalho de investigação. Caso o leitor queira refazer os cálculos de modo a saber se as conclusões estão corretas, é preciso que os dados que lhe serviram de base estejam disponíveis publicamente, isto é, sem que o leitor precise contar com a boa vontade dos autores da pesquisa para fornecê-los”, explica Marta Arretche, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) e coeditora da revista, juntamente com Janina Onuki, professora do Instituto de Relações Internacionais da USP. Outra motivação é a possibilidade de ampliar a repercussão dos artigos publicados na revista. Marta Arretche cita estudo feito sobre o Journal of Peace Research, também da “Há uma área de ciência política e relações intertensão entre nacionais. O estudo concluiu que artigos do periódico que disponibilizam dados o princípio primários têm duas vezes mais citações do que os demais. da replicação “Uma terceira motivação está relacionada ao custo de produzir bancos de de dados e dados, que é muito alto. Os repositórios o princípio da permitem coletivizar esses custos e aumentar as oportunidades de entrada a autoria”, diz um tema de pesquisa”, diz a professora, que é coordenadora do Centro de EsMarta Arretche tudos da Metrópole (CEM), um dos 17 Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP. O CEM, a partir dos anos 2000, tornou-se conhecido por produzir e disseminar dados georreferenciados sobre ass principais metrópoles brasileiras, disponibilizando em seu site, gratuitamente, diversas bases de dados. Segundo a professora, a maior parte dos autores da revista lida bem com a exigência da oferta dos dados. “Eles têm alguns receios legítimos, como a possibilidade de que alguém use os dados sem dar o devido crédito, embora a revista deixe claro que é necessário citar a fonte. Já pensamos em exigir que os usuários se identifiquem como requisito para ter acesso aos dados, mas isso feriria o espírito do acesso aberto à publicação científica. Outros autores gostariam de utilizar intensamente as informações antes de disponibilizá-las. Há, de fato, uma tensão entre o princípio da replicação e o princípio da autoria, mas o da replicação tem prevalecido”, afirma. n


cienciometria y

Total de interações entre pesquisadores brasileiros por grande área (1990-2010), em milhares, e a porcentagem de parcerias interdisciplinares

Ciências da Saúde

A arte de fazer parceiros

470,2

18%

Total de interações (em milhares)

Interdisciplinaridade

Cruzamento de dados de 1,1 milhão Ciências Agrárias

de pesquisadores brasileiros mostra que colaborações multiplicaram-se nos últimos 20 anos 274,9

Bruno de Pierro

17% Ciências Biológicas

P

esquisadores das universidades de São Paulo (USP), Federal do ABC (UFABC) e Tecnológica Federal do Paraná debruçaram-se sobre uma massa gigantesca de informações – a produção bibliográfica de cerca de 1,1 milhão de pesquisadores e estudantes brasileiros que estão registrados na plataforma de currículos Lattes – e obtiveram um panorama inédito das colaborações celebradas entre eles, observadas por meio de coautoria de artigos científicos, livros e capítulos de livros. O trabalho, publicado em janeiro no Journal of the association for Information Science and Technology, mostra que o número de colaborações entre pesquisadores brasileiros teve um avanço notável nas últimas duas décadas. Entre 2008 e 2010 foi registrado pouco mais de 1 milhão de colaborações, em contraste com as 63.944 observadas entre 1990 e 1992. Esse avanço supera largamente o crescimento da comunidade científica no período. Os autores da pesquisa analisaram a evolução de oito grandes áreas do conhecimento (ver gráfico). Ciências da saúde foi um dos destaques: quase 42% dos 272.783 pesquisadores estabele-

273,2

36% Ciências Exatas e da Terra

175,5 29%

104,4

Humanidades

30% 86,2

Engenharias

27% 60,7

Ciências Sociais e Aplicadas

28% 16,7

44%

Linguística, Letras e Artes


O adensamento das colaborações As imagens são a representação gráfica das redes de colaboração de pesquisadores brasileiros entre 1990 e 2010

1990-1992

1993-1995

• Ciências agrárias  • Ciências biológicas  • Ciências exatas e da Terra  • Humanidades  • Ciências sociais aplicadas  • Ciências da saúde  • Engenharias  • Linguística, letras e artes  • Mais de uma grande área ceram colaborações com colegas da mesma área. Na outra ponta está linguística, letras e artes: apenas 15% dos quase 100 mil currículos avaliados exibiam coautorias entre pesquisadores da área. Apesar disso, linguística, letras e artes têm uma peculiaridade: seus pesquisadores foram os que estabeleceram mais parcerias com colegas de outras áreas, especialmente a de humanidades. “Em termos relativos, linguística, letras e artes é a área com maior grau de interdisciplinaridade. Já em números absolutos, ciências biológicas contabilizou o maior número de interações com outras áreas”, diz Jesús Pascual Mena-Chalco, professor do Centro de Matemática, Computação e Cognição da UFABC e autor principal da pesquisa. Os dados referentes às colaborações nas áreas de ciências humanas surpreenderam Samile Vanz, professora da Faculdade de Biblioteconomia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. As colaborações entre 1990 e 2010 alcançaram 169.869 na área de humanidades e 102.058 na de ciências sociais aplicadas. Em outros trabalhos, ela observa, a produção científica dessas áreas parece mais tímida. “Isso acontece porque os estudos geralmente utilizam as bases de dados Web of Science e Scopus, que indexam principalmente artigos científicos. Os pesquisadores das áreas de humanidades tradicionalmente publi60  z  abril DE 2014

1996-1998

1999-2001

cam bastante em livros e capítulos de livros e isso é mais visível nos dados do currículo Lattes”, diz Samile. A contribuição do estudo não se restringe a caracterizar a colaboração entre cientistas brasileiros. Ele também produziu avanços no campo da computação e da tecnologia da informação, ao desenvolver modelos matemáticos e algoritmos capazes de refinar a organização de grandes quantidades de dados. “O que fizemos foi olhar para o universo que é a Plataforma Lattes e, por meio de novos algoritmos, identificar as colaborações entre os autores”, diz Mena-Chalco. “A partir dessa ferramenta metodológica, sociólogos e gestores poderão fazer análises mais profundas”, sugere. “É um trabalho pioneiro”, diz Rogério Meneghini, coordenador científico da biblioteca virtual SciELO Brasil. “Os autores tiveram a capacidade de extrair dados da Plataforma Lattes e, para isso, desenvolveram uma metodologia própria. Ainda é difícil extrair informações dessa plataforma.” Atualmente, a plataforma, organizada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), conta com mais de 2,7 milhões de currículos e, por reunir informações de praticamente todos os pesquisadores brasileiros, é considerada uma base de dados única no mundo. big data

Para Roberto Marcondes Cesar Júnior, professor do Instituto de Matemática e Estatística da USP e outro autor do estudo, a pesquisa relaciona-se diretamente com um tema emergente, o Big Data – um conceito da tecnologia de informação baseado no armazenamento e na interpretação de gigantescos volumes

2002-2004

2005-2007

de dados. Nos últimos anos, o grupo de Marcondes, que é coordenador-adjunto de Ciências Exatas e Engenharias da FAPESP, tem se dedicado ao tema com intensidade. Esse estudo faz parte de uma linha de pesquisa mais ambiciosa dentro do Programa de Apoio a Núcleos de Excelência (Pronex), fruto de um convênio entre a FAPESP e o CNPq. “Um dos problemas pensados por nós é como criar o modelo matemático que permita fazer perguntas do tipo: se eu contratar um pesquisador hoje, qual é a contribuição esperada de sua produção científica para o meu departamento no futuro? O advento do Big Data vem da percepção de que temos mais dados para analisar do que somos capazes de dar conta humanamente”, diz Marcondes. Para Jacqueline Leta, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, os resultados da pesquisa ajudam a confirmar algumas hipóteses. “A indicação de que ciências biológicas e ciências da saúde são as áreas com maior número de colaborações faz sentido, afinal são áreas de excelência no Brasil desde o surgimento das primeiras instituições, como o Instituto Oswaldo Cruz e o Instituto Butantan, que praticamente fundaram a ciência brasileira”, diz ela. As áreas de saúde e biológicas também têm custos altos e por isso, diz Jacqueline, parte das parcerias entre pesquisadores busca compartilhar infraestrutura. Para entender o alcance dos resultados da pesquisa, é preciso compreender certas limitações dos dados primários. Por exemplo, a distinção que deve ser feita entre colaboração envolvendo indivíduos e aquela celebrada por instituições. “O estudo mostra um aumento da colabora-


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2008-2010

1990-2010

2 ção entre pessoas, mas isso não significa necessariamente que as instituições de pesquisa estão fazendo mais colaborações”, ressalta Samile Vanz. Segundo ela, a colaboração entre instituições é especialmente importante, porque exige um maior compartilhamento de equipes, de recursos e equipamento. “O país está estabilizando o nível de coautorias individuais e talvez esteja passando por uma nova fase de ampliação da colaboração entre instituições, mas isso só estudos futuros irão mostrar”, diz a pesquisadora, que defendeu em 2009 uma tese de doutorado sobre a participação da pesquisa brasileira em redes internacionais (ver Pesquisa FAPESP nº 169).

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Rede de interações

infográfico journal of the association for information science and technology

Cada gráfico em forma de novelo (acima) representa uma rede de coautorias entre ressalvas

pesquisadores obtida a partir da Plataforma Lattes em momentos diferentes no

Mena-Chalco explica que o cruzamento de dados concentrou-se na identificação de coautoria entre pesquisadores com registro na Plataforma Lattes, sem levar em consideração a origem institucional deles. Um exemplo: a colaboração entre dois brasileiros com currículo Lattes, sendo um da USP e outro de Harvard, caracteriza-se como uma colaboração internacional. “Mas como a pesquisa leva em conta apenas os indivíduos, não é possível distinguir, entre os resultados, o que é colaboração internacional e o que é nacional. Nosso objetivo foi ver como pesquisadores brasileiros estão se relacionando”, explica o professor da UFABC. Outra limitação é em relação à falta de atualização dos currículos. Se dois pesquisadores escreveram um artigo juntos, mas apenas um deles registrou isso no currículo Lattes, a falta de informação do outro autor impossibilitou a identificação da colaboração. n

período entre 1990 e 2010. Cada pesquisador é representado por um ponto colorido, e a coautoria entre dois pesquisadores, por uma linha colorida cuja composição é a mistura das cores dos pontos que ela liga. Os pesquisadores de cada área estão representados com uma mesma cor (ver esquema de cores na página ao lado). Para cada triênio foram obtidas as redes de coautoria considerando exclusivamente produções publicadas nesse período. A divisão por triênios mostra a evolução das coautorias e revela o quanto as interações entre pesquisadores adensaram-se ao longo do tempo.

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Os três quadros em destaque mostram detalhadamente como ocorrem as interações dentro de cada área e também entre áreas distintas. Por exemplo, pontos azuis, que representam pesquisadores das ciências biológicas, aparecem na região amarela, onde se concentram pesquisadores da área de ciências da saúde. Isso indica uma intensa interação entre pesquisadores das duas áreas. pESQUISA FAPESP 218  z  61


Internacionalização y

Diálogo em Beijing FAPESP Week busca ampliar a colaboração entre instituições de São Paulo e da China

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uatro décadas atrás, o universo da ciência era bem mais concentrado que hoje: cerca de dois terços dos 400 mil artigos indexados na base de dados Thomson Reuters em 1973 estavam vinculados aos sete países mais desenvolvidos do mundo – Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Japão, França, Itália e Canadá. A situação mudou de maneira radical. A produção científica em revistas indexadas cresceu para cerca de 1,75 milhão de publicações em 2012 e os países do chamado G7 respondem por menos da metade da produção total. O crescimento da ciência na China, responsável por 11% dos artigos publicados na base Thomson Reuters, e do Brasil, com 2% da produção científica do mundo, ajudou a impulsionar esta transformação, ainda que os pesquisadores dos dois países, distantes na geografia, na cultura, no idioma e também nas estratégias de desenvolvimento científico e tecnológico, tenham muito pouca interação. Aproximar os cientistas de instituições do estado de São Paulo e

62  z  abril DE 2014

da China para estabelecer novas colaborações é o objetivo da FAPESP Week Beijing, simpósio organizado pela FAPESP que ocorrerá entre os dias 15 e 18 de abril no Yingjie Exchange Center, no campus da Universidade Peking (PKU), em Beijing. Desde 2011, já houve edições da FAPESP Week no Reino Unido, Japão, Espanha, Estados Unidos e Canadá. Desta série de eventos, o simpósio na China é o primeiro a ter contado com uma missão precursora para sondar temas estratégicos e conhecer interlocutores. O físico Marcelo Knobel, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador-adjunto de colaborações em pesquisa da FAPESP, e o jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva, consultor de comunicação da Fundação, estiveram na China visitando laboratórios, universidades e instituições de pesquisa em Beijing. “Como a interação entre a ciência brasileira e a chinesa é muito incipiente, fomos conversar primeiro com as principais instituições de pesquisa do

país e todas se mostraram bastante interessadas. Há uma cultura científica na China que precisamos conhecer melhor”, explica Knobel. A Universidade Peking entrou como parceira do evento, mas cientistas de outras universidades chinesas também participarão do simpósio. Peking é uma das principais universidades de pesquisa da China. Faz parte da C9 League, aliança de nove universidades chinesas que reúnem 3% dos pesquisadores mas obtêm 10% dos investimentos em pesquisa. Responsáveis por 20% da produção acadêmica do país, estas instituições recebem cerca de 30% das citações a artigos científicos de pesquisadores chineses, um indicador de impacto e de prestígio. Fazem parte da aliança, além da PKU, as universidades Tsinghua, em Beijing; Fudan e Jiao Tong, em Shangai; Zhejiang, em Hangzhou; Nanjing, em Nanjing; Xi'an Jiao Tong, em Xi'an; o Instituto de Tecnologia Harbin, em Harbin; e a Universidade de Ciência e Tecnologia da China, vinculada à Academia Chinesa da Ciências, em Hefei.


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A entrada da Universidade Peking e um dos edifícios do campus: novas interações

fotos 1 Daniel Ng / Wikimedia Commons  2 Jucember / Wikimedia Commons

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Segundo um relatório publicado no ano passado pela Thomson Reuters sobre a pesquisa nos chamados Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), a produção científica da China se destaca em campos como a ciência dos materiais (24,5% da produção mundial desta área entre 2007 e 2011), química (20,2%), física (17,9%), matemática (15,7%) e engenharias (14,8%), enquanto o forte do Brasil são as ciências agrárias (8,8% da produção mundial desta área); zoologia e botânica (6,6%), farmacologia e toxicologia (3,7%), microbiologia (3,3%) e ambiente/ecologia (3%). Seis temas

As áreas em que os dois países se destacam e poderiam colaborar mais serviram de norte para definir os seis grandes temas que serão abordados no simpósio – em cada um deles, pesquisadores de nível internacional da China e do Braisl vão mostrar o que estão fazendo e discutir oportunidades de parcerias. O primeiro dia do evento – 16 de abril – terá, além de

uma sessão sobre ciências agrárias, com pesquisadores da USP, da Universidade Peking e da Academia Chinesa de Ciências Agrárias, e outra sobre ciências médicas, com representantes da Universidade Fudan, da Universidade Chinesa de Hong Kong, da Unicamp e da USP, entre outros. A exposição Brazilian Nature – Mystery and Destiny, com painéis sobre a biodiversidade brasileira, estará em destaque em uma das bibliotecas da Universidade Peking. "Há uma cultura científica Apresentada na Alemana China que precisamos nha e em países que sediaram edições anterioconhecer melhor", diz Knobel res da FAPESP Week, a mostra traz o trabalho de documentação feito por Carl Friedrich Phiuma cerimônia de abertura com autorida- lipp von Martius (1794-1868), reunido des e pesquisadores dos dois países, uma na obra Flora brasiliensis. A exposição sessão de discussões sobre oportunidades apresenta também uma comparação das de colaborações de pesquisa e uma sessão imagens produzidas no século XIX com sobre ciência dos materiais e nanotecno- fotografias atuais de plantas e biomas. A ascensão econômica e geopolítica logia, com pesquisadores da Unicamp, do Laboratório Nacional de Nanotecnologia da China transformou-a numa potência e da Universidade Tsinghua. No dia 17, as científica. No início dos anos 1980, a prosessões abordarão dois temas: ciências dução científica chinesa tinha tamanho ambientais e energias renováveis, com equivalente à da brasileira e hoje é quase pesquisadores da Universidade de São seis vezes maior. “Há um enorme potenPaulo (USP), da Unicamp, da Universida- cial para colaborações e é importantíssimo de Estadual Paulista (Unesp), do Instituto que tenhamos relações mais fortes com a Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e ciência chinesa”, afirma Knobel. “Fortade instituições locais como a Academia lecer as parcerias é estratégico para São Chinesa de Silvicultura. No dia 18 haverá Paulo e para o país.” n Fabrício Marques pESQUISA FAPESP 218  z  63


ciência  ECOLOGIA y

Baleias e golfinhos

Golfinho-pintado-do-atlântico: agora recenseado no litoral paulista 64  z  abril DE 2014


à vista!

Diversidade de espécies e abundância de animais na costa paulista são maiores do que o imaginado

Texto  Carlos Fioravanti Fotos

Eduardo Cesar

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m pé, à direita da proa da lancha que oscilava como um pêndulo enquanto deslizava com rapidez, Victor Uber Paschoalini foi quem viu primeiro algo se mexendo ao longe no meio do mar por volta das 11 da manhã do dia 10 de fevereiro deste ano, a menos de 1 quilômetro da Ilha da Queimada Grande, no litoral paulista. Ele achou que eram golfinhos, exatamente o que estavam procurando. Para confirmar, chamou o chefe da expedição, o biólogo Marcos César de Oliveira Santos, professor do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP). Aproximaram-se com a lancha e confirmaram: eram mais de 20 golfinhos-pintados-do-atlântico (Stenella frontalis), com 2 a 2,5 metros de comprimento, que logo começaram a saltar na água límpida ao lado da lancha. Santos pediu para o piloto reduzir a velocidade e, com sua equipe, fotografou os animais – principalmente as nadadeiras pESQUISA FAPESP 218  z  65


dorsais, que funcionam como uma cédula de identidade, por causa das cicatrizes e marcas únicas em cada indivíduo – e gravou seus sons com um hidrofone, colocado na água. Em seguida, com uma flecha atirada de uma balestra, ele coletou uma amostra de pele com 1 milímetro de espessura, para análises genéticas, e 2 centímetros de gordura para análise de contaminantes químicos. Esse era o início da quinta viagem de uma série de 23 planejadas até 2015 para mapear a diversidade e a distribuição de cetáceos – baleias e golfinhos, também chamados de botos – do litoral paulista. Santos e sua equipe, com base nos animais mortos que encontraram na praia nos 66  z  abril DE 2014

últimos anos e nos vivos que estão vendo agora, registraram até agora mais de 300 indivíduos de 29 espécies de cetáceos, o equivalente a 63% das 46 espécies já observadas no litoral brasileiro. Em rios a diversidade de golfinhos é menor: uma nova espécie, batizada de Inia araguaiaensis, a quinta já registrada, foi anunciada em janeiro por pesquisadores do Amazonas, que a encontraram no rio Araguaia e seus afluentes. Embora pouco vistos e pouco estudados, os cetáceos da costa brasileira representam quase metade das 87 espécies já identificadas nos mares do mundo. Os resultados preliminares sugerem também uma diversidade de espécies e de abundância de


cetáceos maiores do que o imaginado – desde as toninhas (Pontoporia blanivillei), um dos menores mamíferos de água doce, com até 2 metros de comprimento, encontrada do Espírito Santo à Argentina e vítima constante da captura acidental nas redes para peixes, até as colossais baleias-de-bryde (Balaenoptera brydei), que chegam a 15 metros de comprimento.

D 1 e 3 Equipamento para testar papel na Suzano 2 Licor negro usado para extração de lignina

Em conjunto: grupos de até 20 golfinhos (aqui, pintados-do-atlântico) se exibem no caminho da Ilha da Queimada Grande

esse trabalho estão também emergindo novas conclusões e hipóteses sobre as baleias e os golfinhos que percorrem o litoral brasileiro. Comparando amostras de DNA, Santos e outros pesquisadores da USP, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), da Colômbia e de Porto Rico verificaram que as populações de golfinhos-pintados-do-atlântico encontrados no Sul e Sudeste do Brasil e no Caribe são distintas entre si e não se misturam. Além disso, um equívoco sobre outra espécie está sendo desfeito. As baleias-de-bryde, uma espécie arisca e ágil, que permanecem pouco tempo na superfície, aparentemente percorrem o litoral paulista ao longo de todo o ano e não apenas no verão e na primavera, como se pensava, porque os mergulhadores as viam apenas na temporada de mergulho. Outra abordagem possível – e bastante usada – de mapeamento das populações de cetáceos é a partir de um ponto fixo. É como se faz no arquipélago de Abrolhos, litoral da Bahia, com as baleias-jubarte (Megaptera novaeangliae), uma das espécies de maior distribuição geográfica no mundo e a mais estudada no Brasil, em vista de suas características únicas, como as nadadeiras peitorais, que chegam a um terço do corpo, e por sua distribuição espacial e temporal previsível: 80% das jubartes que visitam a costa brasileira se concentram na região de Abrolhos, principalmente de julho a novembro, para terem e amamentarem os filhotes em águas mornas e rasas. O biólogo Salvatore Siciliano, atualmente na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Rio de Janeiro, esteve lá em 1989 e 1990 para fazer seu mestrado e, “sentado em uma pedra com prancheta e binóculo”, como ele recordou, avistou 604 grupos de jubarte (metade era de mães com filhotes) em 191 dias de observação. Nessa época havia equipes de pesquisa em mamíferos marinhos estabelecidas apenas em Manaus, no Amazonas, e em Rio Grande, no Rio Grande do Sul. Outros grupos se formaram depois, mas os estudos sobre cetáceos antes de 1980 são muito raros, lembra Siciliano, dificultando análises e comparações, diferentemente de aves ou mamíferos terrestres, estudados há três séculos.

Daniela Abras, pesquisadora do Instituto Oceanográfico da USP, esteve em Abrolhos em julho de 2013. Com apoio da Marinha, do Instituto Jubarte, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e da Cetacean Society International (CSI), assentada sobre um dos pontos mais altos do arquipélago, ela registrou 500 majestosas baleias, bem mais que as 200 registradas em 2004. “Está havendo um aumento populacional de baleias-jubarte, como resultado da proibição da caça, mas ainda está muito abaixo do que era”, diz ela. Hoje se estima a população de baleias-jubarte em 7.900 animais, que podem ser vistos na costa desde a região de Cabo Frio, no Rio de Janeiro, até o Rio Grande do Norte, ainda abaixo das estimadas 25 mil jubartes antes de começarem a ser intensamente caçadas. A partir de 1650, nas principais cidades do litoral, como descrito no livro A baleia no Brasil colonial, da historiadora Myriam Ellis (Edusp/Melhoramentos, 1969), a caça de baleias era uma importante atividade econômica, para extração do chamado azeite de peixe, usado como argamassa para construções e em iluminação pública, e cerdas bucais, vendidas na Europa para a fabricação de espartilhos. Com barcos de 10 a 12 metros de comprimento, as baleias eram capturadas com arpão, depois abatidas por meio de sucessivos golpes de lanças de 2 metros de comprimento, arrastadas à praia e abertas: cada animal fornecia em média 7 mil litros de óleo. Uma lei federal proibindo a caça de baleias entrou em vigor apenas em 1987. “Esta é a primeira vez que fazemos cruzeiros oceanográficos específicos para mapear cetáceos nos 600 quilômetros do litoral de São Paulo”, afirma Santos. “Por falta de especialistas e limitações financeiras, antes os trabalhos eram feitos apenas com animais mortos”, conta Santos. Ele próprio, durante o mestrado, percorreu de bicicleta ou mobilete as praias de Cananeia e Ilha Comprida, no litoral sul de São Paulo, coletando crânios de cetáceos encontrados mortos – ao todo, Santos reuniu e examinou 124 crânios. Foi também a primeira vez que um repórter fotográfico – Eduardo Cesar, de Pesquisa Fapesp – acompanhou uma das viagens de fevereiro e passou três dias com os pesquisadores em alto-mar. Duas semanas antes da viagem, Santos, impressionado com a curiosidade de Paschoalini em sala de aula, convidou-o para completar sua equipe nessa expedição, mas não imaginava o tamanho da sorte do rapaz de 19 anos, agora no segundo ano do curso de oceanografia, com um provérbio bretão tatuado no braço direito, “lute e lute novamente até os cordeiros virarem leões”. Os quatro integrantes da equipe revezavam-se na observação, em turnos de uma hora, com meia de descanso, mas foi Paschoalini quem, duas horas mais tarde, pESQUISA FAPESP 218  z  67


avistou o segundo grupo de golfinhos, desta vez de outra espécie, o nariz-de-garrafa (Tursiops truncatus), também com cerca de 20 animais, um pouco maiores e menos abundantes que os pintados, agora em uma água turva e sob sol forte.

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o seu lado, a oceanógrafa Giovanna Corrêa e Figueiredo notou que os animais, normalmente dóceis – como o amigável Flipper de um antigo seriado da televisão –, naquele dia estavam arredios. Talvez porque, ela cogitou, estivessem com fome e apressados atrás de um cardume ou incomodados com a temperatura da água, que variava de 30 a 33º Celsius, quase cinco graus acima do habitual. Algas e outros organismos proliferam mais facilmente na água mais quente, formando uma mancha escura que dificulta a visibilidade, como a que se estendeu em fevereiro da costa do Rio de Janeiro a Santa Catarina. Nesse dia e nos dois seguintes – percorreram cerca de 650 quilômetros desde São Vicente até a Ilha do Mel, norte do Paraná – permaneceram atentos olhando o mar, da proa à popa, mesmo com o sol refletindo na água no final da tarde, e não viram mais golfinhos ou baleias. “Em alguns momentos o cansaço é tão grande que a gente vê onda e acha que é golfinho”, diz Giovanna. Ela acompanha Santos desde a primeira expedição, em dezembro de 2012. No primeiro dia eles e outros pesquisadores do grupo percorreram o mar sem ver qualquer cetáceo, mas no segundo maravilharam-se ao avistar um grupo de 16 orcas (Orcinus orca), a espécie mais encorpada de golfinhos (não, não são baleias) – os machos mais taludos chegam a 10 metros de comprimento e 10 toneladas de peso –, atrás de Ilhabela, litoral norte de São Paulo. Não é comum encontrá-las tão perto da costa. “Passamos quase duas horas com as orcas, observando e fotografando”, relatou Santos. “Sabemos muito pouco sobre elas, quantas são, quando vão aparecer.” Comparando fotografias das nadadeiras dorsais, pôde-se ver que dois indivíduos do grupo de Ilhabela, um mês antes, estavam perto das praias da cidade do Rio de Janeiro, a 400 quilômetros de distância. Alexandre Azevedo, oceanógrafo da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, auxiliou na comparação das fotografias e confirmou que os animais eram os mesmos. Depois de cada viagem, uma das tarefas dos pesquisadores é analisar as fotos das nadadeiras dorsais, por meio de um programa de computador específico, para encontrar as que provêm de indivíduos novos e reforçar o catálogo no site do laboratório (www. sotalia.com.br/ pesquisa / projetos / cruzeiros), já com 104 animais de duas espécies de baleias 68  z  abril DE 2014

e três de golfinhos, representados por suas nadadeiras únicas. Há também razões para inquietação: em consequência da construção de portos e do aumento do número de embarcações e da poluição crescente na costa, os cetáceos podem estar se afastando da costa e procurando áreas mais calmas. Giovanna Figueiredo, da equipe de Santos, verificou que os registros de avistagem da baleia-franca-austral (Eubalaena australis), com até 18 metros de comprimento e 60 toneladas, antes comuns nas praias mais próximas da costa do Sudeste, escassearam desde 2002, mesmo que a população estivesse aumentando, com o fim da caça. Em uma das viagens, a equipe da USP avistou uma baleia-franca com um filhote na Ilha da Queimada Grande, a 27 quilômetros da costa. Karina Groch e outros biólogos do Projeto Baleia-franca estão atentos sobre os possíveis efeitos da construção do porto de Imbituba, em Santa Catarina, e do aumento do tráfego de embarcações na região, antes um centro regional de caça à baleia-franca. Em 2005, Karina estimou em 500 o número de baleias-francas que visitam regularmente a costa brasileira, das quais 100 se abrigam no litoral sul, principalmente no período reprodutivo, de julho a novembro. “Estamos afastando as baleias e os golfinhos, por um conjunto de causas, com efeitos cumu-

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fotos 1 e 2 eduardo cesar  3 João Hipólito do Nascimento / Acervo Museu da Baleia de Imbituba

1 Amostra de pele, para análise filogenética 2 Nariz-de-garrafa, outra espécie encontrada no litoral paulista 3 Praia do porto de Imbituba, Santa Catarina, final da década de 1940: matança desenfreada de baleias-francas

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lativos”, reitera Siciliano, que publicou vários artigos nos últimos anos indicando a contaminação por metais pesados e outras substâncias tóxicas, que devem favorecer, em golfinhos, as deformações ósseas, que ele próprio registrou, e as doenças de pele, que Santos descreveu em 2009. “É uma pena, porque as populações estão se refazendo e os cetáceos estão buscando as baías que ocupavam antes, mas as encontram transformadas em estacionamento de navios e depósito de esgoto.” Siciliano foi um dos pesquisadores que participaram da elaboração do plano de ação para conservação da toninha, uma espécie que vive na faixa costeira e apresenta alta mortalidade ao se prender em redes de pescadores (Santos está examinando com pescadores de Cananeia as formas possíveis de reduzir a mortalidade de toninhas). Aprovado e publicado em 2010, o plano de ação previa a criação de dois parques nacionais (em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul) e a ampliação de outro, atualmente apenas com restinga, no litoral norte do estado do Rio, de modo a se limitar um espaço adequado para toninhas, tubarões, raias, tartarugas e outros animais marinhos. Siciliano, ao comentar que os parques ainda não foram criados, lembrou-se da resistência para a proibição da pesca e a transformação

em parque nacional de uma área cobiçada para a construção de portos. Em uma das reuniões sobre a criação das unidades de conservação marinhas, ele se lembrou, um dirigente de um órgão público ambiental perguntou aos pesquisadores: “Afinal, para que serve uma toninha?”. Em uma peça do teatrólogo Bertolt Brecht, um cardeal fez uma pergunta parecida enquanto se recusava a ver pelo telescópio de Galileu: “Serão as estrelas realmente necessárias?”. n

Projetos 1. Ocorrência, distribuição e movimentos de cetáceos na costa do estado de São Paulo (nº 11/51543-9); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular/Biota; Pesquisador responsável Marcos César de Oliveira Santos – IO/USP; Investimento R$ 454.775,03 (FAPESP). 2. Capturas acidentais de pequenos cetáceos em atividades pesqueiras no litoral sul paulista: buscando subsídios para formulação de políticas de conservação (nº 10/51323-6); Modalidade Parceria para Inovação Tecnológica (Pite); Pesquisador responsável Marcos César de Oliveira Santos – IO/USP. Investimento R$ 242.490,33 (FAPESP).

Artigos científicos CABALLERO, S. et al. Initial description of the phylogeography, population structure and genetic diversity of Atlantic spotted dolphins from Brazil and the Caribbean, inferred from analyses of mitochondrial and nuclear DNA. Biochemical Systematics and Ecology. v. 48, p. 263-70. 2013. SANTOS, M.C.O. et al . Cetacean records along São Paulo state coast, Southeastern Brazil. Brazilian Journal of Oceanography. v. 58, n. 2, p. 123-42. 2010.

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pESQUISA FAPESP 218  z  69


especial biota educação Xi

Benefício mútuo Ganho de produtividade com polinização por abelhas representa 10% do valor da produção agrícola mundial Karina Toledo

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humanidade explora colônias de abelhas produtoras de mel desde a pré-história, mas só nos últimos anos se deu conta de que a importância desses insetos vai muito além da produção do poderoso adoçante natural. “O mel é, na verdade, um subproduto com valor pequeno quando comparado ao do serviço de polinização prestado pelas abelhas”, afirmou Vera Lúcia Imperatriz Fonseca, professora da Universidade de São Paulo (USP), em palestra no segundo encontro do Ciclo de Conferências 2014 do programa Biota-FAPESP Educação, em 20 de março em São Paulo. Ao transportar pólen de uma flor a outra, continuou a bióloga, as abelhas aumentam a fecundação das plantas e geram um ganho de produtividade em diferentes culturas que corresponde a quase 10% do valor da produção agrícola mundial. 70  z  abril DE 2014

Estima-se que, em 2007, a exportação global de mel tenha movimentado US$ 1,5 bilhão. No mesmo ano o valor dos serviços ecossistêmicos de polinização em todo o mundo era calculado em US$ 212 bilhões, segundo dados levantados em diversos estudos e reunidos por Vera Fonseca no livro Polinizadores no Brasil: contribuição e perspectivas para a biodiversidade, uso sustentável, conservação e serviços ambientais, um dos vencedores do Prêmio Jabuti de 2013. As verduras e as frutas, cuja produção anual somada alcança € 100 bilhões, são os alimentos que mais dependem de insetos para a polinização. Na sequência vêm oleaginosas, estimulantes (café e chá), amêndoas e especiarias. Em média, as culturas que não dependem da polinização por insetos movimentam € 151 bilhões por ano, enquanto o valor das que dependem atinge € 761 bilhões.


fotos  1 e 3 Cristiano menezes / embrapa 2 tom wenseleers / universidade de leuven

“Cerca de 75% da alimentação humana dependem direta ou indiretamente de plantas polinizadas ou beneficiadas pela polinização animal. Dessas, 35% dependem exclusivamente de polinizadores”, afirmou Vera Fonseca, atualmente professora visitante na Universidade Federal Rural do Semiárido (Ufersa), no Rio Grande do Norte. Nos demais casos, os insetos ajudam a aumentar a produtividade e a qualidade dos frutos. Pesquisas recentes mostraram que mesmo culturas como a canola, polinizada pelo vento, e a soja, cujas flores são fertilizadas por seu próprio pólen, produzem de 20% a 40% mais grãos por hectare quando há colônias de abelhas Apis mellifera por perto ou quando a plantação é feita ao lado de remanescentes de vegetação nativa. “Quando se usam abelhas como a jataí na polinização do morangueiro cultivado em ambientes protegidos, a má formação de frutos diminui em 70% em alguns cultivares”, disse Vera Fonseca. Outra cultura que se beneficia da polinização por abelhas em ambientes protegidos é a do tomate, que depende de abelhas que fazem as flores vibrar, como as mamangavas do gênero Bombus ou as abelhas tiúba ou mandaçaia (gênero Melipona), para serem fertilizadas. “Em geral as abelhas aumentam a produção de sementes, melhoram a qualidade do hábitat, tornam os sistemas agrícolas mais sustentáveis e favorecem outros serviços ecossistêmicos, permitindo a preservação da biodiversidade e dos recursos hídricos”, completou. Embora a demanda pelos serviços de polinização das abelhas aumente na mesma medida em que cresce a produção agrícola mundial, os ambientes

favoráveis à manutenção desses insetos diminuem a cada ano. Mudanças ambientais, aparentemente, estão por trás de um fenômeno recente batizado como desordem do colapso das colônias, que tem causado o sumiço repentino de abelhas. A síndrome do desaparecimento das abelhas foi detectada pela primeira vez em 2007 nos países do hemisfério Norte e atualmente está associada à perda de quase 30% das colônias de Apis mellifera por ano. Por causa desse problema, que também atinge a Europa e em 2011 chegou ao Brasil, agricultores passaram a importar abelhas melíferas de outras regiões para polinizar suas plantações. “O aluguel de uma colônia chega a custar US$ 200 dólares nos Estados Unidos, pois os produtores sabem que o lucro gerado pelo serviço prestado será muito maior. E não há abelhas suficientes”, contou Vera Fonseca. Segundo a pesquisadora, essa é uma tendência mundial, já que cada vez mais se plantam culturas dependentes da polinização por abelhas. Entre os fatores apontados como causa do desaparecimento das abelhas estão o uso inadequado de herbicidas e pesticidas, o desmatamento seguido da ocupação do solo por extensas monoculturas e a migração de colônias para a polinização agrícola. “O pesticida, quando não mata a abelha, a deixa fraca e reduz o tempo da atividade forrageira (busca de alimento)”, explicou. São fatores que se somam. Com a substituição da vegetação nativa por monoculturas, as abelhas têm de percorrer distâncias cada vez maiores em busca de alimento porque há menor diversidade de flores. A migração de colônias, por sua vez, po-

Doce trabalho: Melipona seminigra transporta grão de pólen (à esq.); Apis mellifera visita flor de laranjeira; e Melipona subnitida fertiliza flor de açaí (acima)

pESQUISA FAPESP 218  z  71


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de aumentar a competição por comida entre as espécies e favorecer a disseminação de doenças. Esse cenário tende a piorar com a chegada de um novo vilão: as mudanças climáticas globais. Isso porque os polinizadores, assim como as plantas que os mantêm, se distribuem por certa região sob a influência da temperatura e das chuvas. As previsões do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) sugerem que no Nordeste brasileiro pode haver um aumento de 4º Celsius na temperatura nos próximos 50 anos. Esse aquecimento pode causar uma importante alteração na área de ocorrência das abelhas, segundo Vera Fonseca. “Temos feito trabalhos de modelagem de distribuição de espécies e estudos de análise do pólen coletado por elas para saber quais plantas as abelhas visitam”, explicou. Essas ferramentas permitiram mapear o uso de recursos florais pelas abelhas e, com o auxílio do herbário

3

virtual da flora e dos fungos, disponível na internet, identificar a distribuição atual e modelar a futura das principais fontes de alimento para as abelhas. “Cruzando esses dados, é possível identificar as áreas naturais mais importantes para serem reconstruídas e preservadas e planejar um programa de mitigação para que daqui a 40 ou 50 anos as abelhas tenham algum lugar para viver”, contou a bióloga. A dieta das abelhas

Cláudia Inês da Silva, professora visitante da Universidade Federal do Ceará (UFC), tem se dedicado a estudar os hábitos alimentares das mamangavas do gênero Xylocopa e de outras abelhas importantes para a polinização do maracujá com o objetivo de preservar as áreas naturais importantes para a atração e a manutenção desses insetos. “Escolhemos o maracujá porque essa planta tem fotos  1, 2 e 3 eduardo cesar  4 cláudia inês da silva / ufc  5 e 6 sídia witter / fundação zoobotânica do rio grande do sul 7 patricia nunes silva / puc-rs

A mamangava Bombus morio colhe néctar em flor de maracujá (abaixo); e a abelha Plebeia nigriceps poliniza flor de morango, reduzindo a má formação dos frutos; no alto, uma Melipona em flor de berinjela

2

As biólogas Vera Fonseca, Kayna Agostini e Cláudia Silva

72  z  abril DE 2014


2

uma importância econômica grande para o Brasil, que responde por mais de 60% de sua produção mundial”, contou Cláudia no encontro de março. A produção do maracujá, fruto tipicamente cultivado em propriedades familiares, sofre grandes flutuações principalmente por causa dos custos com manejo e insumos. “E a polinização influencia diretamente esses custos de produção”, afirmou a bióloga. Segundo Cláudia, os produtores rurais em geral desconhecem os insetos que visitam as flores do maracujazeiro e a biologia e o sistema reprodutivo dessas plantas, que dependem exclusivamente da polinização por abelhas. “No caso do maracujá, nem todas as abelhas são benéficas”, explicou. Algumas, como a Apis mellifera, são pequenas em relação ao tamanho das flores e apenas pilham o néctar e o pólen sem conseguir polinizá-las. “É preciso entender as necessidades de cada cultura e preservar o polinizador mais adequado”, disse Cláudia. Um estudo da Universidade Federal de Viçosa estimou que, em uma área de pouco mais de 2 hectares de cultivo de maracujá, os serviços prestados pelas mamangavas Xylocopa diminuem os custos de produção em R$ 33 mil reais a cada três anos. Apesar da importância das mamangavas, muitas vezes elas são mortas pelos agricultores, que as consideram agressivas, contou Cláudia. “Por acreditarem que são besouros”, disse, “eles temem que elas comam as flores, destruam a lavoura e estraguem as cercas onde constroem seus ninhos”. Em seu doutorado na Universidade Federal de Uberlândia sob orientação de Paulo Eugênio de Oliveira, Cláudia identificou 112 espécies de plantas que servem de alimento para as mamangavas. Algumas das mais importantes são consideradas pelos produtores como mata-pasto –espécies dos

gêneros Senna e Solanum – e são, muitas vezes, retiradas do entorno. “Com base nesse estudo elaboramos uma proposta de enriquecimento e restauração da flora para a atração e a manutenção dessas abelhas. A partir do estudo da dieta, desenhamos o cenário atual e futuro para identificar áreas potenciais para cultivo do maracujá”, contou a bióloga da UFC. As informações ajudaram a compor o livro Manejo dos polinizadores e polinização de maracujá, a ser lançado com apoio do Ministério do Meio Am3 biente. Os protocolos desenvolvidos por ela estão sendo adotados em estudos de culturas como morango, caju, café, cacau e acerola. Sistemas diversos

As abelhas são consideradas polinizadoras profissionais por terem estruturas corporais especializadas na coleta e no transporte de pólen. Mas besouros, borboletas, mariposas, moscas, pássaros e morcegos também contribuem para esse serviço ecossistêmico, contou a bióloga Kayna Agostini, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) em Araras, em sua palestra. “Todos os sistemas de polinização conhecidos estão presentes no Brasil, por ser um país em uma região de clima predominantemente tropical”, afirmou. “Alguns desses sistemas são abióticos, caso da polinização pelo vento, mas a grande maioria ocorre por meio de agentes bióticos.” Segundo Kayna, boa parte das interações entre plantas e animais é do tipo mutualista, em que ambas as partes são beneficiadas. Mas estudos recentes indicam que a regra não vale para todos os casos. Ela cita o exemplo da planta papo-de-peru (Aristolochia gigantea). Com aparência e odor semelhantes ao de carne, a flor dessa planta engana as moscas. Ao tentar depositar seus ovos, a mosca percebe o engano e tenta atravessar a flor, mas acaba presa. “Só depois que o pólen adere ao seu corpo a mosca consegue sair, sem ter nenhum benefício com essa interação. Além de pólen, fonte de proteínas, e de néctar, rico em açúcares, os animais visitam as flores em busca de óleos, fragrâncias e resinas”, contou a pesquisadora na palestra do Biota-FAPESP Educação. n A edição atual de Pesquisa FAPESP traz um DVD com 10 vídeos das palestras do Ciclo de Conferências do Biota Educação 2013.

Programação

Ciclo de Conferências Biota-FAPESP Educação 2014 Para mais informações: www.biota.org.br  www.biotaneotropica.org.br www.agencia.fapesp.br 24 DE ABRIL (14h00-16h00) BIODIVERSIDADE E PROTEÇÃO A RECURSOS HÍDRICOS Conferencistas José Galizia Tundisi (IEE) Reynaldo Luiz Victoria (Cena-USP) Humberto Ribeiro da Rocha (IAG-USP) 22 DE MAIO (14h00-16h00) BIODIVERSIDADE E MUDANÇAS CLIMÁTICAS Conferencistas Leonardo Meirelles (USP Leste) Alexandre F. Colombo Eduardo Assad (CNPTIA-Embrapa) 26 DE JUNHO (14h00-16h00) BIODIVERSIDADE E CICLAGEM DE NUTRIENTES Conferencistas Luiz A. Martinelli (a confirmar) Simone A. Vieira (Nepam-Unicamp) Plínio Barbosa de Camargo (Cena-USP)

+10


neuromatemática y

Conexões dinâmicas Matemáticos e neurocientistas se unem para entender e predizer o funcionamento do cérebro

O

s dois desenhos animados que Ghislain Saunier mostrou a seus voluntários num experimento feito em 2008 na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) não eram nenhuma obra de arte. Com alguns segundos de duração, cada sequência de imagens mostrava 10 pequenos círculos brancos se deslocando sobre um fundo preto. Em uma delas, o movimento dos círculos formava figuras que lembram uma pessoa caminhando – os círculos brancos, na realidade, marcavam as articulações das pernas, dos braços e do tronco de alguém filmado enquanto andava. Na outra, os círculos se moviam de maneira embaralhada. Os dois filmes, criados por Saunier durante seu doutorado no laboratório da neurocientista Cláudia Vargas na UFRJ, foram exibidos dezenas de vezes, em ordem aleatória, a 16 participantes do estudo. Os voluntários assistiam às animações enquanto um aparelho de eletroencefalografia registrava a atividade elétrica do cérebro. Os participantes em geral reconheciam a primeira sequência de imagens rapidamente, mas tinham 74  z  abril DE 2014

dificuldade de dar sentido ao que viam no segundo filme. Com esse experimento, Saunier e Vargas tentavam descobrir se o processamento cerebral das duas imagens diferia significativamente. “Um debate-chave da neurociência é entender como o cérebro codifica e segmenta os objetos em uma cena visual por meio da combinação dos atributos que os compõem”, comenta Sergio Neuenschwander, pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) que estuda a resposta de pequenos conjuntos de neurônios de animais expostos a diferentes estímulos visuais. Hoje é cada vez mais comum experimentos como esse, que começam com o registro da atividade cerebral de animais e de voluntários em laboratório, prosseguirem em uma simples sala de reuniões onde neurocientistas, matemáticos e especialistas de outras áreas discutem, com o auxílio de papel e caneta, a melhor forma de processar, analisar e explicar os dados. Um prédio de três andares no Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME-USP) tornou-se nos últimos anos a sede de uma rede multidisciplinar

ilustrações  fabio otubo

Igor Zolnerkevic


que funciona nesses moldes: o Centro de Neuromatemática ou NeuroMat, um dos 17 Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP (ver Pesquisa FAPESP no 208). Coordenado pelo matemático Antonio Galves, o NeuroMat reúne matemáticos, neurocientistas, médicos, físicos, cientistas da computação e estatísticos com um objetivo ambicioso: desenvolver uma nova teoria geral do cérebro, capaz de explicar como a atividade coordenada de um sistema composto por dezenas de bilhões de neurônios e outras células pode dar origem a comportamentos complexos que permitem interagir com um ambiente em constante transformação. Além de gerar novas formulações abstratas para fenômenos como a neuroplasticidade (capacidade de as células cerebrais se reconectarem), essa linha de pesquisa pode gerar impactos clínicos e aprimorar os métodos de avaliação e tratamento de pessoas com lesões no sistema nervoso. Em um workshop realizado em janeiro deste ano no NeuroMat, Vargas, uma das pesquisadoras principais desse centro, e seus colaboradores no

projeto apresentaram a análise mais recente do experimento iniciado em 2008. Essa análise usou ferramentas de uma área da matemática conhecida como teoria dos grafos e permitiu começar a observar como diferentes áreas do cérebro interagem nas duas situações do teste: ao assistir ao filme que representava o movimento biológico (pessoa caminhando) e ao ver a animação do movimento não biológico (círculos embaralhados). Depois das sessões dos filmes foram necessários anos de trabalho, usando estratégias diferentes de interpretação dos dados, até se chegar aos resultados atuais, apresentados também em janeiro na revista PLoS One. Os sinais elétricos coletados por Saunier não permitiram identificar de imediato diferenças significativas entre o funcionamento do cérebro durante a exibição dos filmes. Vargas e Saunier – em colaboração com os pesquisadores Thierry Pozzo, Elisa Carvalho Dias, José Magalhães de Oliveira e Eduardo Martins – conseguiram avanços ao somarem os registros feitos pelos 20 eletrodos em todas as vezes em que os participantes assistiram a um dos filmes. pESQUISA FAPESP 218  z  75


Cinema mudo No experimento, 16 voluntários assistiram dezenas de vezes a duas animações de 1,5 segundo cada uma, enquanto eletrodos posicionados na cabeça registravam a atividade elétrica do cérebro FILME 1

FILME 2

Movimento

Movimento

biológico

embaralhado

Em uma das

Na outra animação, os círculos se moviam

animações, os círculos

com a mesma

brancos formavam

velocidade e

imagens que lembram

ocupando posições

uma pessoa caminhando. Esse

parecidas, mas

padrão de movimento,

formavam uma imagem embaralhada,

chamado biológico,

que os voluntários

era rapidamente

não reconheciam

reconhecido pelos voluntários Rede de grafos Os pesquisadores transformaram os Córtex motor

sinais elétricos em sequências de grafos mostrando a interação entre

Córtex visual

Eletrodo

os eletrodos. O padrão de ativação

Rede acionada simultaneamente

das diferentes regiões variou para conclusão 1

cada indivíduo, ao longo do tempo, e

conclusão 2

No movimento

entre cada apresentação do mesmo

No movimento

biológico, a atividade

estímulo para um mesmo indivíduo

embaralhado, os sinais

era concentrada

captados pelo eletrodo F7 Eletrodo F7

próximo aos eletrodos Pz e P3 (azul), que correspondem a uma região cerebral que

mais fortemente com os de outros eletrodos,

Eletrodos Pz e P3

sugerindo que o cérebro usava modelo mais

realiza a integração

complexo para interpretar

entre a visão e os movimentos corporais

Essa estratégia revelou haver um padrão de ativação cerebral ligeiramente distinto associado a cada tipo de movimento – biológico e embaralhado. No entanto havia limitações. “Essa forma de analisar os dados gerava uma descrição fragmentada da atividade neuronal, eletrodo por eletrodo, sem oferecer uma visão sistêmica”, comenta Vargas. Mas não tornava possível inferir como as diferentes regiões cerebrais interagiam entre si em cada situação. O desafio, então, era desenvolver um modo de medir a interação entre as áreas cerebrais. 76  z  abril DE 2014

(azul) se correlacionavam

Fonte cláudia vargas / ufrj

Por meio do NeuroMat, Vargas e seus colaboradores estabeleceram uma parceria com o físico Daniel Fraiman, da Universidade de San Andrés, em Buenos Aires, especialista em processamento de sinais eletrofisiológicos cerebrais. Para interpretar os dados, Fraiman adaptou para a eletroencefalografia um método antes usado com dados de ressonância magnética. Essa nova estratégia usa ferramentas da teoria dos grafos, que estuda as maneiras como os pontos ou nós de uma rede podem se conectar. A ideia central é considerar os eletrodos como vértices de um

os estímulos visuais


infográfico ana paula campos  ilustraçãO  fabio otubo

ta Marcio Balthazar, da Unicamp, que pesquisa redes funcionais de pacientes com a doença de Alzheimer no Instituto de Pesquisa sobre Neurociências e Neurotecnologia, outro Cepid voltado para a neurociência, coordenado pelo neurologista Fernando Cendes, da Unicamp (ver Pesquisa Fapesp nº 215). Galves discorda dessa analogia. “A comparação com um mapa-múndi não é feliz, pois, no caso das navegações, a costa além-mar efetivamente existia; no caso dos modelos de conexão do cérebro, trabalhamos com construções teóricas destinadas a representar em um nível mais elevado de abstração um conjunto de fenômenos observados experimentalmente”, explica. As redes funcionais ligadas aos estímulos visuais estudados pela equipe de Vargas, por exemplo, só puderam ser observadas quando os pesquisadores conseguiram representar os dados de eletroencefalografia na forma de grafos. Assim, os pesquisadores desenvolveram critérios para avaliar como o sinal de cada um dos 20 eletrodos se relacionava com os demais a cada instante. Desse modo, conseguiram construir sequências de grafos, de modo que cada um deles representava a rede de interações entre os eletrodos em intervalos de 300 milissegundos. A simples visualização dessas redes, porém, revelou que elas eram altaTeoria dos grafos O estudo quantitativo da organização do cérebro – mente variáveis. Não somente variavam entre os das ligações entre os neurônios às conexões entre indivíduos e ao longo do tempo, mas também vaas diferentes regiões cerebrais – avançou na última riavam entre as apresentações do mesmo estímulo década graças à teoria dos grafos e a outras áreas para um mesmo indivíduo (ver infográfico ao lado). da matemática cujo desenvolvimento faz parte Para encontrar diferenças significativas entre do projeto científico do NeuroMat. A teoria dos as redes ativadas durante a exibição de cada vígrafos permitiu analisar a estrutura das chamadas deo, foi necessária uma análise quantitativa das redes funcionais do cérebro – conjuntos de partes conexões de cada ponto da rede (nó), medindo, distintas ativadas simultaneamente durante uma por exemplo, se alguns destes eram mais conectaatividade, como a percepção de estímulos visuais. dos com seus vizinhos ou com o restante da rede do que outros na condição embaralhada em comparação à condição em que o voluntário era capaz de identificar a imagem biológica As redes funcionais acionadas ao ver os filmes (boneco caminhando). só foram observadas quando se representaram Uma das conclusões da equipe foi que, quando os voluntários viam os dados de eletroencefalografia como grafos o desenho dos círculos embaralhados, os sinais cerebrais captados pelo eletrodo F7, instalado um pouco A aplicação dessa teoria a imagens de ressonância acima do meio do caminho entre o olho e a orelha magnética funcional (fMRI) já produziu evidên- esquerdos, se correlacionavam mais fortemente cias de que as redes funcionais do cérebro pare- com outros eletrodos do que no caso em que os cem ter uma estrutura do tipo “mundo pequeno”, voluntários assistiam ao desenho da pessoa camiem que dois conjuntos quaisquer de neurônios se nhando. Na rede funcional do movimento embaconectam por meio de alguns poucos intermediá- ralhado também se destacava a atividade de uma rios, e possuem apenas algumas dezenas de hubs, região do córtex visual em volta do eletrodo O2, áreas muito mais conectadas com o restante da colocado no lado direito da parte de trás da caberede do que as demais. “Mas os mapas que temos ça, que se comunicava intensamente com regiões das conexões do cérebro ainda têm uma resolu- vizinhas. É como se o cérebro usasse um modelo ção muito baixa, comparável à dos mapas-múndi mais complexo quando não consegue dar sentido que tínhamos no século XVI”, diz o neurologis- facilmente àquilo que está acontecendo. A rede grafo e unir por arestas os pares de eletrodos que registrarem sinais com alta correlação numa certa janela de tempo. Dessa maneira, foi possível construir grafos representando como as áreas do cérebro associadas à percepção e ao controle dos movimentos do corpo conversavam entre si e interpretavam as animações do experimento original. “Essa é uma maneira inovadora de usar a eletroencefalografia para mapear grafos de interações que refletem a atividade de uma rede cerebral a partir de estímulos visuais”, afirma Vargas, coordenadora do grupo que publicou os resultados na PLoS One. “A neurociência contemporânea é cada vez mais quantitativa”, afirma Sidarta Ribeiro, diretor do Instituto do Cérebro da UFRN e membro do NeuroMat, que conta com a participação de grupos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), da Universidade Federal do ABC (UFABC), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), do Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (Impa) e de centros internacionais. “Temos a necessidade de interagir com matemáticos e estatísticos do mais alto nível”, disse Ribeiro.

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funcional ativada, ao assistir ao desenho da pessoa caminhando, em comparação com a recrutada durante a visualização dos pontos embaralhados, era mais concentrada em torno dos eletrodos Pz e P3, que correspondem genericamente a uma região cerebral que realiza a integração entre a visão e os movimentos corporais. Lacunas e soluções

A cooperação entre neurocientistas e matemáticos no experimento iniciado por Saunier em 2008 na UFRJ continua, agora com o desafio de encontrar modelos matemáticos que expliquem as variações e as constâncias das sequências de grafos observadas pela equipe. “Apesar de muito variáveis, as sucessões de grafos obtidas durante o processamento do movimento biológico deve ter características estáveis que são distintas daquelas observadas no processamento do movimento não biológico”, diz Galves. “A questão científica que se coloca é como identificar o conjunto de características estáveis dentro da sucessão variável de grafos obtidos.” O próximo passo, ele conta, seria aplicar um procedimento estatístico para selecionar os modelos matemáticos que melhor expliquem as sequências de grafos. Ele e seus colaboradores dizem, porém, que esses modelos matemáticos ainda não existem e terão de ser desenvolvidos. A equipe do NeuroMat imagina que esses novos modelos são o que os matemáticos chamam de processos estocásticos, evoluções temporais submetidas à influência do acaso. Esses processos representam a atividade global de um sistema com muitas componentes interagindo entre si ao longo do tempo. Galves e colaboradores internacionais, incluindo a matemática Eva Löcherbach, da Universidade de Cergy-Pontoise, na França, têm trabalhado no desenvolvimento de uma nova classe de processos estocásticos que permitiriam encontrar essas regularidades em sistemas interativos complexos. Em um artigo de 2013 no Journal of Statistical Physics, Galves e Eva introduziram, de modo simplificado, uma nova classe de processos estocásticos, generalizando propriedades de outras classes já conhecidas, como o fato de um próximo passo em uma cadeia de eventos ser influenciado por um número variável de passos anteriores, e que apresenta comportamentos qualitativos comparáveis com resultados empíricos da neurociência. A classe de modelos em desenvolvimento no NeuroMat, explica Galves, não se propõe a oferecer descrições detalhadas do funcionamento do cérebro, mas a encontrar regularidades nas interações neuronais que não são perceptíveis na observação dos dados experimentais. Segundo o matemático, o objetivo é construir um novo campo da matemática. “Há uma visão ingênua de que 78  z  abril DE 2014

o que falta para a neurociência são mais dados e poder de cálculo, mas não é só isso”, afirma o coordenador do NeuroMat. “Na verdade, falta um quadro conceitual para expressar formalmente os fenômenos neurobiológicos.” Esse e outros trabalhos foram discutidos pelos integrantes do NeuroMat em São Paulo, em janeiro, durante o workshop em que apresentaram resultados recentes de suas pesquisas e planejaram as próximas atividades. Um dos participantes, o neurologista Leonardo Cohen, do Instituto Nacional de Doenças Neurológicas e Derrame, dos Estados Unidos, considera a proposta do NeuroMat “muito original”. Cohen é um dos conselheiros científicos do NeuroMat e falou de seus trabalhos recentes sobre o reaprendizado de movimentos perdidos após um derrame. “O NeuroMat é bem diferente de iniciativas em andamento nos Estados Unidos e na Europa.” Cohen considera uma vantagem do NeuroMat não ter como objetivo central o acúmulo de dados biológicos, como é o do Projeto de Mapeamento da Atividade Cerebral, que pretende mapear a atividade de cada um dos 86 bilhões de neurônios do cérebro humano. “Em um projeto assim, o trabalho dos neurocientistas, engenheiros e cientistas da computação já foi predeterminado, todos já sabem o que precisavam fazer”, ele explica. “Já o NeuroMat é como uma escola, onde as pessoas estão começando a explorar ligações que não sabiam que existiam entre as suas especialidades.” A plasticidade neuronal

No workshop, Vargas e Cohen, um dos pioneiros do estudo da neuroplasticidade em pacientes recuperando-se de lesões cerebrais, discutiram possibilidades de parceria entre suas equipes. “Queremos entender as regras da neuroplasticidade, o que o rearranjo das redes funcionais torna possível ou impossível”, diz Vargas. “Para isso precisamos de modelos matemáticos que levem em conta que o


cérebro não é determinista; por exemplo, nossos modelos e experimentos precisam considerar que, a cada repetição de Há uma visão um movimento, o cérebro ativa uma rede ingênua de que parecida com a anterior, mas nova em alguns aspectos, o que requer um novo faltam dados e instrumental conceitual e metodológico.” Galves acredita que a chave para poder de cálculo descrever matematicamente a plasticidade neuronal é aprender a represenpara explicar tar essa evolução através de processos e predizer estocásticos que mostrem os grupos de entre regiões cerebrais após o funcionamento interações lesões ou durante o aprendizado motor. Vargas atualmente usa a eletroendo cérebro cefalografia e a estimulação magnética transcraniana, além de escalas de avaliação funcional, para acompanhar no Instituto de Neurologia Deolindo Couto, da UFRJ, a reabilitação de 25 pacientes com lesões no plexo braquial, o feixe de nervos que sai da medula espinhal e inerva os braços – essas lesões são comuns nos motociclistas, em especial motoboys, que rompem alguns ou todos os nervos, perdendo parcial ou totalmente a sensibilidade e os movimentos de um dos braços. Já se observou que alguns pacientes recuperam parte dos movimentos após uma cirurgia de restauração dos nervos e intensa fisioterapia. Mas os pesquisadores querem saber como as redes funcionais se adaptam ao rearranjo de nervos e se, a partir dessas novas informações, seria possível melhorar o processo de reabilitação. Médicos, enfermeiros e fisioterapeutas associados ao projeto colaboram com os neurocientistas para coletar medidas funcionais dos pacientes e alimentar um grande banco de dados desenvolvido por outro grupo do NeuroMat, coordenado pela cientista da computação Kelly Braghetto, do IME-USP.

Esse banco de dados é hoje central para o NeuroMat. Os dados, etiquetados e organizados, poderão ser compartilhados com outros pesquisadores e submetidos a propostas originais de análise. Os pesquisadores do NeuroMat esperam aplicar a mesma abordagem nas unidades da Rede de Reabilitação Lucy Montoro, dirigida pela fisiatra Linamara Battistella, da USP, onde pacientes com lesões cerebrais causadas por derrames já participam de estudos clínicos. Um dos projetos compara a recuperação dos movimentos dos braços de pacientes tratados com duas técnicas de reabilitação. Os estatísticos Jesús García e Verónica González-López, ambos da Unicamp e ligados ao NeuroMat, colaboram para eliminar redundâncias nos questionários de avaliação clínica e otimizar as escalas de avaliação da capacidade motora dos pacientes. A evolução dessa capacidade também vem sendo monitorada com medições da atividade cerebral por eletroencefalografia e estimulação magnética transcraniana. “As medidas permitem entender melhor as mudanças funcionais que ocorrem no sistema nervoso e correlacionar essas modificações com a melhora clínica dos pacientes com AVC”, explica o neurologista Marcel Simis, um dos pesquisadores do projeto. n

Projeto Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão em Neuromatemática – NeuroMat (nº 2013/07699–0); Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisador responsável Jefferson Antonio Galves – IME/USP; Investimento R$ 11.755.168,93 (FAPESP) para todo o Cepid.

Artigos científicos FRAIMAN, D. et al. Biological motion coding in the brain: analysis of visually driven EEG functional networks. PLoS One. v. 9, n. 1. jan. 2014. GALVES, A. e LÖCHERBACH, E. Infinite systems of interacting chains with memory of variable length – A stochastic model for biological neural nets. Journal of Statistical Physics. v. 151, n. 5. jun. 2013.

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ASTRONOMIA y

Gestações

turbulentas Simulações esclarecem como forças magnéticas

M

al dá para reparar nas porções mais escuras da imagem da nebulosa Cabeça de Macaco (NGC 2174), distante 6.400 anos-luz da Terra. Ofuscada pelo brilho das estrelas jovens e das plumas de gás incandescente, essas áreas escuras abrigam algumas das muitas regiões de formação estelar de nossa galáxia. É precisamente nesses bolsões obscurecidos pela poeira do meio interestelar que muitos astrônomos estão interessados. É ali, nas chamadas nuvens moleculares, que o gás da nebulosa esfria o suficiente para desencadear um processo de gestação que, alguns milhões de anos depois, dará origem a novas estrelas. Os telescópios atuais estão apenas começando a ter resolução suficiente para vislumbrar os detalhes desse processo, que envolve um cabo de guerra turbulento entre forças gravitacionais e magnéticas. De um lado, a gravidade tende a adensar o gás, o que permitirá que os átomos no centro das regiões mais densas da nuvem sejam comprimidos até liberarem energia por meio de reações de fusão nuclear, acendendo novas estrelas. De outro, os campos magnéticos da nuvem tendem a fazer força no sentido contrário ao da gravidade. Todo mundo sabe que a gravidade vence no final, mas ninguém entende muito bem os detalhes do conflito. Para resolver esse problema, uma equipe liderada pela astrofísica Elisabete de Gouveia Dal Pino, da Universidade de São Paulo, e pelo astrofísico 80  z  abril DE 2014

Alexander Lazarian, da Universidade de Wisconsin, em Madison, Estados Unidos, vêm realizando simulações do comportamento do gás e dos campos magnéticos nas nuvens moleculares. Os resultados de suas simulações mais recentes resolvem contradições entre a teoria e o que já foi observado, dando apoio a uma nova ideia de como os campos magnéticos atrapalham, mas não chegam a impedir, o surgimento de novas estrelas. Essa mesma ideia pode explicar por que os discos de gás e poeira em torno de estrelas recém-nascidas – e que mais tarde podem originar um sistema de planetas – não desaparecem pela ação de campos magnéticos. As nuvens moleculares são regiões muito pequenas e particulares do meio interestelar, que permeia as galáxias. Essas nuvens são bolsões de gás e poeira muito mais frios do que o meio interestelar em volta. Enquanto nas nuvens de gás interestelar a temperatura chega a milhares de graus Celsius, mantendo os elétrons separados dos núcleos atômicos e formando o plasma (gás eletricamente carregado), nas nuvens moleculares a temperatura média é da ordem de -173 graus Celsius. Por essa razão, as nuvens moleculares são compostas em sua maior parte de átomos neutros que se combinaram em moléculas – daí o nome molecular. Mas mesmo as nuvens moleculares abrigam uma pequena porção de plasma, suficiente para que linhas do campo magnético da nebulosa se liguem ao movimento do gás.

imagem  NASA, ESA, and the Hubble Heritage Team (STScI/AURA)

complicam o nascimento de estrelas e planetas


nebulosa

nuvem molecular

Disco de acreção

Dezenas de anos-luz

Alguns anos-luz

Centenas de minutos-luz

de diâmetro

de diâmetro

de diâmetro

Cabeça de Macaco (NGC 2174): imagem obtida pelo telescópio Hubble de nebulosa contendo estrelas jovens (pontos brilhantes), nuvens de plasma e nuvens moleculares (regiões escuras) pESQUISA FAPESP 218  z  81


Campos em guerra Força magnética e gravitacional se contrapõem na formação de estrelas problema Linhas de campo magnético

Caroço de gás e poeira

Caroço contraído

Linhas de campo arrastadas pelo gás

Porções mais densas de nuvens

Sem levar em conta a turbulência,

moleculares entram em colapso pela

as linhas do campo magnético se

força gravitacional de sua própria massa

concentrariam mais que o observado

observação

Densidade

Linhas de campo em forma de ampulheta

simulação

1 O colapso

gravitacional de

Em 2006, astrônomos observaram

um caroço (região

um campo magnético em forma

central) sob a

de ampulheta em torno de estrelas

ação de campos

em formação

magnéticos

maior das linhas

(linhas verdes)

de campo

2 A turbulência do gás transporta a

magnético para Fonte  J. Girart (CSIC-IEEC), R. Rao (ASIAA) and D. Marrone (CfA) / Leão, m.r.m. et al. the astrophysical journal. 2013

“O plasma ali flui de maneira muito turbulenta”, diz o astrofísico Reinaldo Santos de Lima, que concluiu seu doutorado na USP sob supervisão de Elisabete e atualmente faz parte de seu pós-doutorado na Universidade de Wisconsin. Ele explica que o plasma da galáxia é constantemente remexido pelas ondas de choque de explosões de estrelas gigantes no fim de suas vidas, as supernovas. Uma das consequências dessa turbulência é que o movimento das cargas elétricas do plasma amplifica os campos magnéticos muito fracos que permeiam o espaço, originados no início do Universo. Esses campos mais intensos, de até 0,003 gauss (cem vezes menores que o da superfície da Terra), acabam afetando as nuvens moleculares. Colares magnéticos

Para explicar o fenômeno em suas aulas, Elisabete usa uma analogia. As partículas do plasma estariam ligadas às linhas do 82  z  abril DE 2014

fora do caroço

campo magnético como as contas de um colar estão presas ao seu cordão. “Se o gás se move para um lado, ele arrasta as linhas do campo consigo”, diz Lima. “Isso leva a um problema para a formação estelar.” À medida que uma região mais densa – um caroço – dentro da nuvem se contrai pela atração gravitacional de sua própria massa, essa contração comprime as linhas do campo magnético. O resultado é um campo em forma de ampulheta (ver figura acima) que exerce uma força repulsiva, contra a gravitacional. Essa força, contudo, age apenas na direção perpendicular às linhas do campos magnético. Assim, a massa continua a se acumular no centro do caroço percorrendo os caminhos ao longo das linhas, até que a força gravitacional supera a magnética e a estrela se forma. Imaginava-se que a nova estrela herdasse o campo magnético do caroço que a originou. Mas, ao observar estrelas recém-formadas, os astrônomos medem

um campo magnético em sua superfície 10 mil vezes menor que o esperado. Essa discrepância entre a teoria e as observações sugere que algum fenômeno desconhecido desliga as linhas do campo magnético do movimento do gás durante a sua contração. Assim, as linhas não se comprimiriam tanto no centro dos caroços e a estrela resultante teria um campo magnético menor. O candidato favorito dos astrofísicos para explicar os campos magnéticos menos intensos era, até pouco tempo atrás, um fenômeno conhecido como difusão ambipolar. “Conforme a nuvem colapsa, o plasma perde calor por irradiação e seus elétrons se recombinam com seus núcleos atômicos”, explica Lima. “Esse material neutro continua a colapsar sem arrastar as linhas de campo.” Estudos vêm confirmando, entretanto, que para a difusão ambipolar conseguir afastar as linhas de campo magnético do centro do caroço de maneira eficiente, o tamanho dos grãos de poeira formados nas nuvens moleculares precisaria ser diferente do estimado. O fenômeno também não explica a distribuição dos campos magnéticos medidos pelos astrônomos. Em 2005, Lazarian propôs uma alternativa à difusão ambipolar, que tinha a vantagem de não depender do tamanho dos grãos das nuvens moleculares. Sua ideia se baseia no fenômeno da reconexão magnética. Ela acontece quando duas porções de plasma, cada uma carregando linhas de campo magnético em direções paralelas mas com sentidos opostos, são forçadas a colidir uma contra a outra. Num plasma turbulento, esse processo ocorre de modo rápido, como demonstraram Lazarian e Ethan Vishniac em 1999. Durante a colisão explosiva, as linhas de campo são recortadas e coladas em uma nova configuração de direção e sentido. A reconexão magnética ocorre com bastante frequência e violência na superfície do Sol, ejetando massa solar para o espaço durante tempestades magnéticas na superfície da estrela. A reconexão explica outros processos astrofísicos, como a aceleração de raios cósmicos ultraenergéticos (ver Pesquisa Fapesp nº 200). Pensava-se, porém, que ela ocorresse raramente nas nuvens moleculares. Lazarian, no entanto, propôs que a turbulência do gás nas nuvens seria capaz de acelerar o processo. Pequenos redemoinhos turbulentos criariam as condições para que a reco-


Outra estudante de doutorado de Elisabete, Márcia Leão, atualmente pós-doutoranda na Unicamp, realizou simulações ainda mais realistas do processo. Em um artigo publicado em novembro de 2013 na revista The Astrophysical Journal, os pesquisadores compararam os resultados dessas simulações com observações de caroços em nuvens moleculares feitas pelo astrônomo Richard Crutcher, da Universidade de Illinois em Urbana-Champaign, Estados Unidos. As simulações de Márcia conseguiram explicar as distribuições de densidade do gás e de seu campo magnético medidas por Crutcher melhor do que seria esperado pela teoria da difusão ambipolar.

nexão magnética acontecesse por toda a nuvem. Em 2009, Lazarian e o astrofísico Grzegorz Kowal, atualmente na USP, realizaram simulações em computador demonstrando que a reconexão magnética induzida pela turbulência realmente funcionava. Usando a analogia de Elisabete, a turbulência do gás seria capaz de cortar e reconectar os cordões dos colares, libertando as contas e afastando o excesso de cordões para fora do centro dos caroços nas nuvens moleculares. Quando passou uns meses em 2009 em Wisconsin, trabalhando com Lazarian, Lima usou o código computacional escrito por Kowal para criar um modelo simplificado do colapso de um caroço em uma nuvem molecular. As simulações, publicadas no Astrophysical Journal em 2010, indicaram que a turbulência do gás mantinha as linhas do campo magnético afastadas do caroço, permitindo o seu colapso por ação da gravidade.

Mantendo o giro

Milhões de anos após o início do colapso, o gás e a poeira do caroço da nuvem molecular, que antes ocupava um volume com alguns anos-luz de extensão, aca-

Efeito protetor Turbulência do gás evita colapso do disco de acreção Jato

problema

Disco de acreção Protoestrela

imagens 1 hst 2 santos-lima, r. et al. MNRAS. 2013  infográficos  ana paula campos

Rotação do disco

Disco em colapso

Estrelas em formação possuem disco de gás

Campos magnéticos freiam a rotação

e poeira em rotação e emitem jatos de plasma

do disco, fazendo matéria cair na estrela

observação

simulação

bam concentrados em um espaço mais ou menos do tamanho do sistema solar, com centenas de minutos-luz, formando uma estrela cercada por um disco de acreção, que pode gerar um sistema planetário (ver figura abaixo). Cálculos sugerem, porém, que o campo magnético da nuvem molecular impediria a formação desses discos. As linhas do campo freariam a rotação do material do disco, que acabaria caindo na protoestrela. Simulações publicadas em 2012 e 2013 pela equipe de Elisabete sugerem que esse problema também é resolvido pela reconexão magnética induzida pela turbulência, que transporta o excesso de linhas magnéticas para fora do disco. A equipe espera publicar este ano um estudo com Gustavo Guerrero, da Universidade Federal de Minas Gerais, com valores mais precisos desse transporte magnético, para comparar melhor essa explicação com outras alternativas. “As previsões teóricas estão mais adiantadas do que as observações”, comenta o astrônomo Gabriel Franco, da UFMG, que trabalha com dados sobre o campo magnético de uma nuvem molecular obtidos por um instrumento montado no telescópio Apex, no Chile. “Para se ter uma ideia, o campo em forma de ampulheta, previsto há décadas, foi observado pela primeira vez em 2006.” A antena do Apex é o protótipo das 66 antenas do observatório Alma, inaugurado em 2013, que também terá um instrumento capaz de medir campos magnéticos de caroços e protoestrelas. Mas, para observar todos os detalhes, Elisabete aguarda outra rede de radiotelescópios em construção na Argentina, a Llama. “É possível”, ela diz, “que consigamos testar nossas teorias com observações de altíssima resolução com a interferometria combinando antenas do Alma e Llama”. n Igor Zolnerkevic

Disco

Projeto Linhas de campo Jato

Perfil do disco em turbulência Densidade

Investigation of high energy nvestigation of high energy and plasma astrophysics phenomena: theory, observation, and numerical simulations (nº 2006/50654-3); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Elisabete Maria de Gouveia Dal Pino; Investimento R$ 366.341,75 (FAPESP).

Artigos científicos Jato e disco em torno da

Perfil do disco de acreção formado

protoestrela HH-30, obtida pelo

em simulação com reconexão

telescópio Hubble em 1995

magnética induzida pela turbulência do gás. A turbulência

Fonte  santos-lima, r. et al. MNRAS. 2013

impediu o colapso do disco

LEÃO, M.R.M. et al. The collapse of turbulent cores and reconnection diffusion. The Astrophysical Journal. v. 777, n.1. nov. 2013. SANTOS-LIMA, R. et al. Disc formation in turbulent cloud cores: is magnetic flux loss necessary to stop the magnetic braking catastophre or not? Monthly Notices of the Royal Astronomical Society. mar. 2013.

pESQUISA FAPESP 218  z  83


tecnologia  Agricultura y

Atraentes e repelentes biológicos Texto

Dinorah Ereno

Fotos

Léo Ramos


Substâncias químicas extraídas de insetos e plantas são estratégias para combater pragas

U

Besouro cyrtomon ataca plantas de fumo: foco dos estudos é o feromônio de acasalamento para futura aplicação

ma visita de férias do então estudante de agronomia José Maurício Simões Bento a uma fazenda produtora de cana-de-açúcar em Olímpia, no interior paulista, no início da década de 1990, resultou alguns anos depois no lançamento do primeiro feromônio comercial brasileiro, uma substância química identificada na fêmea do besouro Migdolus fryanus usada para atrair os machos para o acasalamento. Sintetizada em laboratório, ela é usada para combater o inseto no canavial. “Fui visitar um colega da universidade que era gerente agrícola da fazenda e, na época, estava ocorrendo uma revoada dos besouros”, diz Bento, que hoje é o responsável pelo laboratório do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) de Semioquímicos na Agricultura na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP) em Piracicaba. Até aquele momento não existia nenhum tipo de controle efetivo sobre a praga que atinge até 5 metros de profundidade, ataca as raízes da cana e causa graves prejuízos à cultura. As condições ambientais que Bento encontrou na visita foram propícias, porque os machos só saem em revoada para acasalar durante uma semana no início do período das chuvas. Para minimizar os danos à plantação, os boias-frias da fazenda andavam pelo campo coletando os besouros. Mas um deles tinha uma tática bem particular. “Seu Geraldo sentava debaixo de uma sombra, colocava as fêmeas no bolso e ficava esperando os machos chegarem perto. Quando se aproximavam, eram recolhidos e jogados em um balde”, relata. De volta à Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais, onde estudava, começou a trabalhar na identificação do feromônio de atração sexual do besouro sob orientação da professora Terezinha Della Lucia e do professor Evaldo Vilela, pioneiros nos estudos de sinais químicos no Brasil. “Após a extração do feromônio do Migdolus, mandamos as amostras para o químico brasileiro Walter Leal, que na época trabalhava no Instituto Nacional de Sericultura e Ciência Entomológica [Nises, na sigla em inglês] no Japão, e lá ele conseguiu identificar o composto natural e sintetizá-lo.” Até hoje ele é utilizado em armadilhas nas plantações brasileiras. Como na época não se

discutiu a propriedade intelectual da inovação, a empresa japonesa que fez a identificação e síntese, chamada Fuji Flavor, passou a produzir o feromônio sintético. Mais tarde essa mesma empresa fez uma doação em dinheiro para a construção da fase incial do prédio que viria a abrigar os laboratórios e instalações do INCT na Esalq, instituição-sede da rede de pesquisa em ecologia química composta também pela UFV, universidades Federal do Paraná (UFPR) e Federal de Alagoas (Ufal). A coordenação geral é do professor José Roberto Postali Parra, da Esalq. Bento está à frente de uma equipe composta por 25 pessoas, entre alunos de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado, além de receber pesquisadores de países como Colômbia, Equador, Espanha e Estados Unidos em seus laboratórios. As duas grandes linhas de pesquisa do INCT de Semioquímicos são a obtenção de novos feromônios de insetos e estudos envolvendo substâncias voláteis de plantas – que engloba os compostos químicos produzidos por elas e suas interações com insetos nocivos à agricultura e inimigos naturais. Uma das pesquisas recentes com voláteis vegetais resultou, após manipulação genética, em uma planta repelente para a Diaphorina citri, um inseto do tamanho de um grão de arroz que suga os ramos de laranjeiras e é o vetor do greening, atualmente a mais devastadora doença dos citros, grupo que abrange laranjas, limões, tangerinas e limas. Na Ásia ela é chamada de huanglongbing, ou HLB, que significa doença do dragão amarelo, por deixar as folhas amareladas. “Um composto repelente encontrado na goiabeira foi inserido nos genes de uma linhagem de laranjeira que está em testes em uma casa de vegetação no Fundo de Defesa da Citricultura, o Fundecitrus”, explica Bento. O início da descoberta remonta a uma visita feita em 2004 por pesquisadores brasileiros a países asiáticos produtores de citros, época em que se descobriu que a praga havia chegado ao Brasil. Como ela já estava espalhada na Ásia havia algum tempo, muitos produtores plantavam goiabeiras intercaladas com pés de laranja, para substituir os citros. “Nas visitas aos pomares, os pesquisadores notaram que, nas áreas onde havia goiabas, as laranjas não manifestavam a doença ou levavam mais tempo para manifestar”, relata. Ao saber disso, Bento, pESQUISA FAPESP 218  z  85


a Universidade Wageningen, na Holanda. Essas parcerias envolvem colaboração e intercâmbio de alunos para treinamento.

O

utra pesquisa com resultados promissores, conduzidas em conjunto com a UFPR, é a identificação de compostos químicos presentes nos feromônios secretados pela mariposa conhecida como broca-da-cana (Diatraea saccharalis), cujas larvas causam danos no interior do colmo da planta.“Estamos bem próximos de fazer estudos pré-comerciais no campo, etapa anterior à liberação para o produtor”, diz Bento. No caso do combate à broca-do-café, a principal praga da cultura, os pesquisadores trabalham em duas vertentes: feromônios e substâncias voláteis da planta. “Estamos em estágio bastante adiantado para identificação de uma substância atraente para esta praga, que não tem produto comercial químico para combatê-la.” O único que havia disponível no mercado foi retirado pela sua alta toxicidade. Os voláteis também estão sendo estudados para insetos que atacam o milho e o tomate. “A primeira opção para o combate de pragas sempre foi química e agora oferecemos uma al-

infográfico ana paula campos ilustraçãO alexandre affonso

que na época já trabalhava com voláteis de plantas, pensou na possibilidade da liberação de algum composto químico que poderia estar interferindo no comportamento do inseto na área. Estudamos os voláteis da goiaba e descobrimos que havia um composto altamente repelente para a praga dos citros”, diz. Em parceria com um grupo de pesquisadores do Instituto Valenciano de Investigações Agrárias, da Espanha, o gene foi superexpressado por meio de manipulação genética nos citros – neles havia a presença do composto, mas em baixa quantidade. As plantas manipuladas geneticamente estão sendo testadas para avaliar se realmente repelem os insetos. Como os citros são culturas perenes, a pesquisa pode levar até uma década para ser concluída. Mas o potencial da planta repelente, que já foi patenteada pelo grupo de pesquisadores brasileiros, espanhóis e pela Fundecitrus, representa um grande avanço nas estratégias de combate à praga. Além da Espanha, outras instituições do exterior são parceiras nas pesquisas, como a Universidade da Califórnia em Davis e a Universidade Estadual da Pensilvânia, ambas nos Estados Unidos, o Instituto Max Planck, na Alemanha, a Universidade de Neuchatel, na Suíça, e mais recentemente

Bioensaios em laboratório Etapas para a extração de compostos químicos e a identificação de feromônios e voláteis de plantas extração dos voláteis eluição

separação dos compostos ativos A identificação do composto é feita em um equipamento de cromatografia gasosa, que separa os diferentes compostos da amostra com base nas suas características físico-químicas

Solvente Ar puro

Umidificador

Planta Amostra

Substâncias liberadas pelas Amostra

plantas ou por insetos em

Detector Detector

horários de acasalamento

Amplificador

são coletadas e ficam retidas em um polímero

O polímero é lavado com solvente para

Amplificador

remoção dos Insetos

compostos químicos retidos (processo chamado de eluição)

Cromatógrafo gasoso Gás de arraste

Ar filtrado e umidificado

Antena

Antenas retiradas do inseto são acopladas a eletrodos e analisadas em um detector Fonte  José Mauricio Simões Bento / esalq-usp


ternativa viável do ponto de vista ecológico, porque utiliza os próprios compostos que insetos e plantas produzem para controlá-los por meio do comportamento”, diz Bento. Além dos benefícios ambientais, esses compostos também significam economia para o produtor, como mostra o exemplo do monitoramento do bicho-furão com armadilhas desde o início dos anos 2000. O bicho-furão é uma mariposa que coloca os ovos no fruto. A lagarta quando eclode penetra na laranja, que apodrece e cai. A pulverização química é insuficiente para combater a praga. Durante o doutorado de Bento, orientado pelo professor Parra na Esalq, ele identificou o composto presente no feromônio da mariposa. “Levei o material para o professor Leal no Japão que participou da outra pesquisa e fez a identificação e síntese do composto”, relata. Hoje a pastilha com o feromônio sintético é produzida no Japão e enviada para o Brasil, onde a empresa Bug Agentes Biológicos, de Piracicaba, se encarrega de colocá-la em armadilhas chamadas Ferocitrus, que são comercializadas para os citricultores pela Coopercitrus – Cooperativa de Produtores Rurais. Elas são formadas por uma folha de papel-cartão dobrada na forma triangular em que as paredes internas possuem uma membrana adesiva e pastilhas liberadoras de feromônio. Os insetos machos atraídos ficam grudados no dispositivo. Uma armadilha cobre uma área de 10 hectares com cerca de 2 mil a 3 mil plantas. Se forem pegos entre 0 e 5 insetos,

identificação e elucidação da estrutura química

Síntese em laboratório

Uma armadilha com feromônio sintético cobre uma área de 10 hectares com 2 mil a 3 mil plantas de citros

uso no campo Armadilha

Sinal do cromatógrafo

Estrutura química

Superfície com cola Pastilha

Sinal da antena

Material sintetizado Armadilha

Quando as estruturas sensoriais da antena reconhecem moléculas

Depois da identificação

A pastilha fica sobre

químicas como o cheiro

do composto de

uma superfície coberta

do parceiro, é produzido

interesse, é feita

com cola que prende

um impulso elétrico que

a síntese do feromônio

os insetos (armadilha)

coincide com o composto

e a sua produção

quando se aproximam

químico da amostra

em forma de pastilhas

atraídos pelo odor

significa que não há necessidade de nenhum tipo de controle. Entre 6 e 8 é preciso aguardar uma semana e avaliar novamente se o número se mantém ou não. Se ficar acima de 9, é preciso entrar com controle químico. “A armadilha é empregada hoje pela maioria dos citricultores brasileiros e, com essa medida simples, houve uma redução de 50% na aplicação de inseticidas”, relata. A perda atual média com esta estratégia é de um fruto por planta. Antes chegava até 350 frutos, o que representa um terço do que uma planta adulta produz.

A

obtenção de feromônios e substâncias voláteis requer a observação constante do comportamento dos insetos e de sua interação com as plantas. O ciclo começa com a liberação de odores do vegetal que permitem aos insetos herbívoros localizá-lo para se alimentar. Assim que ocorre o ataque dos herbívoros, a planta emite automaticamente uma resposta também na forma de odores específicos e compostos, predominantemente da classe dos terpenos. Esses odores atraem outros insetos que são predadores ou parasitoides dos herbívoros. Para a coleta dos voláteis é preciso saber as horas específicas do dia em que eles são produzidos. Um dos estudos feitos nos laboratórios da Esalq, por exemplo, avaliou se a alimentação da lagarta-do-cartucho (Spodoptera frugiperda), uma das principais pragas do milho, durante os períodos noturno e diurno induz diferentes misturas de pESQUISA FAPESP 218  z  87


HIPVs (herbivore-induced plant volatiles, ou voláteis de planta induzidos pela herbivoria) e se a vespa parasitoide Campoletis flavicincta é atraída por essas misturas. “Nós confirmamos que ela induz diferentes composições de mistura de HIPVs em diferentes períodos do dia, alterando principalmente as proporções dos compostos da mistura”, diz a pós-doutoranda Maria Fernanda Gomes Peñaflor, uma das autoras da pesquisa publicada na Journal of Pest Science em março de 2012. “Essa modificação na mistura de HIPVs afeta a resposta da vespa, de modo que ela é atraída somente pela mistura liberada pela alimentação noturna da lagarta.” No caso de feromônios sexuais, é preciso ficar atento aos horários de acasalamento, que ocorrem geralmente ao amanhecer ou entardecer. “São horários que os machos e as fêmeas sincronizam do ponto de vista biológico”, diz Bento. Os cheiros, que são sinais químicos produzidos pela fêmea, só atraem os machos da mesma espécie e são produzidos em pequena quantidade, em-

1 Coleta de substâncias voláteis em plantas do milho 2 Armadilha com feromônio para captura do bicho-furão

bora possam ser sentidos pelos insetos a longa distância. “Os compostos viajam no ar pelo vento e, quando entram em contato com as antenas do inseto, existe um reconhecimento enzimático das moléculas químicas pelas sensilas (estruturas sensoriais presentes nas antenas). A partir daí há um impulso elétrico da antena para o cérebro do inseto, que é estimulado e responde àquele composto. A coleta desse cheiro no laboratório é feita em determinados horários. Um ar puro e umedecido passa sobre as fêmeas, devidamente acomodadas em estruturas de vidro, que absorve o cheiro exalado por elas. Esse cheiro fica retido em um minúsculo polímero adsorvente (nesse processo, as moléculas e os íons ficam retidos na superfície do material), lavado depois com um solvente – procedimento chamado de eluição, que permite retirar o composto químico produzido.

A

identificação do composto é feita pela técnica de cromatografia gasosa, que separa os diferentes compostos da amostra com base nas características físico-químicas de cada um – como massa molecular e polaridade. Após a separação, as substâncias podem ser visualizadas em forma de picos em um cromatograma. Unindo a cromatografia gasosa com outras técnicas de análise, como a espectrometria de massas, é possível chegar à estrutura química dos compostos. Para avaliar se o macho responde a alguma delas, antenas retiradas do inseto são acopladas a eletrodos e analisadas em um equipamento chamado detector eletroantenográfico. Os sinais emitidos pela antena são estímulos elétricos a cada composto químico que aparece no cromatógrafo. Uma vez que as sensilas da antena reconhecem as moléculas químicas de interesse, a exemplo do cheiro do parceiro sexual, é produzido um impulso elétrico. “O sinal é amplificado e comparado às moléculas

Esalq

2

1


que aparecem no cromatógrafo e, desse modo, conseguimos selecionar o composto de interesse.” Os pesquisadores conseguem saber exatamente qual é a substância – naquela mistura de compostos químicos – a que o inseto responde. Uma vez identificada, ela é sintetizada e são feitas as outras etapas para chegar à armadilha e ao manejo de insetos no campo. Poucos centros do mundo dominam essa técnica de identificação de compostos químicos. “Em alguns casos, de uma única mistura saem de 50 a 100 compostos e o inseto normalmente responde apenas a uma, duas ou três substâncias no máximo”, ressalta.

N

o caso das substâncias voláteis, o princípio para obtenção e identificação dos compostos é o mesmo aplicado aos feromônios. As plantas são colocadas em câmaras de vidro, para evitar contaminação, por onde passa um ar limpo e umedecido e os gases são coletados em polímeros minúsculos. Depois é feita a eluição dos compostos por solventes e a identificação. Nessa etapa há diferenças entre as plantas atacadas por insetos e as que não receberam a visita deles. Os compostos produzidos após o ataque podem ser sintetizados e de acordo com sua finalidade serem utilizados na agricultura. Um dos estudos de comportamento feitos nos laboratórios do INCT de Semioquímicos na Esalq levou a uma descoberta surpreendente: a de que os insetos conseguem detectar a queda de pressão atmosférica – que, em geral, precede chuvas e temporais. Após artigo publicado na revista PLoS

Mariposa Diatraea saccharalis: em fase larval ataca o colmo da cana e causa prejuízos à plantação

Comunicação entre insetos A descoberta de que as fêmeas de

e pulgões, para demonstrar perigo

insetos liberam um cheiro que atrai os

ou ameaça, e de trilha, que indicam

One, a notícia teve repercussão internacional, com destaque na Nature e na Science. “Notamos em experimentos que os insetos às vezes produziam compostos e em outras não, mesmo replicando todas as condições”, relata Bento. Nos dias em que eles não respondiam a estímulos, os pesquisadores perceberam que após algumas horas do experimento ventava ou chovia muito. Até aquele momento, nenhum grupo de pesquisa havia estudado o efeito da pressão atmosférica sobre o comportamento geral dos insetos. “A conclusão a que chegamos foi que, sob queda de pressão, os insetos paralisavam suas atividades sexuais ou emitiam menos feromônio sexual e se acasalavam pouco, porque na natureza eles precisam se antecipar às mudanças de tempo e aos perigos de tempestades como forma de reduzir a mortalidade e garantir a perpetuação da espécie.” Os estudos nas condições naturais ocorreram nos laboratórios de Piracicaba e, para comprovar a hipótese, foi feito um trabalho em parceria com pesquisadores do Canadá. “Lá manipulamos a pressão atmosférica em uma câmara barométrica, que eles usam para estudos de pássaros.” As pesquisas foram feitas com três ordens distintas de insetos: Lepidotera (mariposas), Coleoptera (besouros) e Hemiptera (pulgões). n

machos para o acasalamento foi feita

as fontes de alimento para as formigas-

em 1959 pelo químico alemão Adolf

-cortadeiras, por exemplo. No caso

Friedrich Johann Butenandt, que

das substâncias voláteis de plantas, o

desvendou a estrutura química do

uso acontece na comunicação entre

feromônio sexual do bicho-da-seda,

indivíduos de espécies diferentes e

a mariposa Bombyx mori. “Na época

às vezes de táxons diferentes, como

ele utilizou 500 mil fêmeas, porque

entre plantas e insetos. Como as

os equipamentos eram muito

plantas são fixas e não têm como se

rudimentares. O mesmo trabalho dele

defender, ao longo do processo de

Projeto

poderia ser feito hoje com uma única

evolução elas criaram mecanismos de

fêmea”, diz o professor José Maurício

defesa, como a produção de voláteis

Bases tecnológicas para identificação, síntese e uso de semioquímicos na agricultura (nº 2008/57701-2); Modalidade Projeto Temático – INCT; Pesquisador responsável José Roberto Postali Parra/USP; Investimento R$ 1.261.009,47 e US$ 338.475,42 (FAPESP).

Bento, da Esalq. A descoberta foi

após serem atacadas, por exemplo, por

muito reveladora, porque mostrou

um inseto-praga. Há o disparo de uma

que a grande maioria dos insetos

reação bioquímica em cascata na

se comunica por sinais químicos.

planta, com a liberação sistêmica de

Além dos feromônios sexuais para o

compostos químicos que vão atrair

acasalamento, existem outros, como

inimigos naturais daquela praga que

os de alarme, comum em abelhas

a está atacando.

Artigos científicos PELLEGRINO, A.C. et al. Weather forecasting by insects: modified sexual behaviour in response to atmospheric pressure changes. PLoS one. v. 8, e75004. 2 out. 2013. PEÑAFLOR, M.F.G.V. e BENTO, J.M.S. Herbivore-induced plant volatiles to enhance biological control in agriculture. Neotropical Entomology. v. 42, p. 331-43. ago. 2013.

pESQUISA FAPESP 218  z  89


pesquisa empresarial y

Em todas as pistas Centro de P&D da Pirelli em Santo André desenvolve modelos para mercados globais

Yuri Vasconcelos

O

Ford Mustang e o Chevrolet Camaro são dois dos mais cobiçados carros esportivos do mundo. Com design arrojado, motores potentes, tecnologia de ponta e diversos itens de conforto a bordo, os dois brigam por uma fatia de mercado composta por motoristas exigentes e endinheirados. Concorrentes entre si, têm algo em comum: são equipados com pneus criados pelo Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Pirelli em Santo André, na Região Metropolitana de São Paulo. Em 2008, pesquisa realizada entre consumidores dos Estados Unidos apontou o modelo P4 Four Seasons – exatamente o que equipa o Mustang e o Camaro – como o melhor pneu para todas as estações do ano. “Normalmente, somos nós que desenvolvemos os pneus Four Seasons, que rodam em todas as estações do ano – uma característica do mercado norte-americano, já que na Europa os carros usam pneus diferentes no verão e no inverno. Nossa fábrica em Feira de Santana, no interior da Bahia, é especializada na produção dos mais modernos modelos para veículos de alta performance”, conta Roberto Falkenstein, diretor da área de pesquisa e desenvolvimento (P&D) da Pirelli no Brasil. Os desafios para desenvolver os novos pneus do Mustang e do Camaro foram muitos, a começar por elaborar um composto adequado às variações de temperatura ao longo do ano – nos Es-

90  z  abril DE 2014

A partir da esquerda: Erick Rodrigues, Renan Ozelo, Anderson Calhabeu, Argemiro Costa e Roberto Falkenstein


empresa pirelli

Centro de P&D Santo André, SP

Nº de funcionários

léo ramos

190

tados Unidos, os termômetros no inverno caem facilmente abaixo de zero e no verão atingem mais de 30º Celsius. “Fomos escolhidos por nossa competência em projetar pneus para veículos de elevado desempenho.” Segundo maior centro de P&D da Pirelli no mundo, atrás do localizado na sede, em Milão, na Itália, a unidade brasileira dispõe de 190 colaboradores, a maioria com formação em engenharia, que respondem pelo desenvolvimento de novos pneus para toda a América Latina e também de produtos exportados para Estados Unidos, Europa e Japão. Por ano, mais de 30 mil pneus são testados na unidade e cerca de 50 modelos homologados pelas montadoras instaladas no país. O centro de Santo André é especializado em todas as linhas de pneus (carros, caminhões, motocicletas, fora de estrada e agrícolas), sendo o único entre

as oito unidades globais de pesquisa da companhia que projeta novos modelos para tratores e implementos agrícolas. “Essa é uma competência que somente nós temos”, afirma Falkenstein, de 52 anos. Além de Itália e Brasil, a centenária fabricante de pneumáticos, fundada em 1872 na Itália e desde 2011 fornecedora exclusiva de pneus para a Fórmula 1, também tem laboratórios nos Estados Unidos, Rússia, China, Alemanha, Reino Unido e México. A Pirelli chegou ao Brasil há 85 anos, quando adquiriu sua primeira unidade fabril, focada na produção de condutores elétricos, em Santo André. Doze anos depois, em 1941, inaugurou a primeira fábrica nacional de pneus, na mesma cidade. A companhia também foi pioneira ao construir em 1988 um campo de provas em Sumaré, no interior paulista. Com uma área de 200 mil metros quadrados, o

Principal produto Pneu

Faturamento global em 2012 R$ 20,8 bilhões

campo é um laboratório ao ar livre especializado na realização de testes de pneus de automóveis, camionetes, motocicletas, quadriciclos, ônibus, caminhões, veículos agrícolas e industriais, bicicletas e modelos de competição. A estrutura também é usada na homologação de novos modelos da indústria automobilística instalada no país. Um diferencial da pista, segundo a Pirelli, é o sistema de irrigação computadorizado que permite controlar a espessura da lâmina de água em todo o percurso e, assim, medir o desempenho de veícupESQUISA FAPESP 218  z  91


1 Laboratório de química: novas matérias-primas 2 Ensaios em temperaturas variáveis 3 Testes de compostos de borracha 4 Formulação de novos materiais

1

2

los em situações de chuva. Para ter mais precisão das análises, o campo de provas conta com uma “raia de vidro” de 800 milímetros por 600 milímetros, onde os pneus deixam suas marcas. Uma câmera especial de alta velocidade, instalada abaixo do solo, capta todos os pontos de contato do pneu com o vidro, fornecendo subsídios para a análise de desempenho do produto. O campo reúne pistas on e off-road compostas por diferentes tipos de piso (asfalto, terra, cascalho e paralelepípedos), inclinações e traçados. Além do campo de provas, o centro de P&D da Pirelli é formado por um conjunto de laboratórios. Um indoor de avaliação e estudo do produto acabado, e outros dois, de química e física, dedicados à engenharia de novos materiais, todos localizados

em Santo André. Outra área de suporte é a de simulações estruturais e análise de engenharia, que usa a metodologia computacional de elementos finitos para projetar e desenvolver novos modelos de pneus. “No nosso departamento fazemos simulações matemáticas de um pneu virtual a fim de analisar sua estrutura e comportamento dinâmico”, explica o engenheiro mecânico Erick Rodrigues, de 36 anos. “Toda interface em relação às simulações computacionais com os fabricantes de automóveis é feita por nós”, diz ele, que tem mestrado em engenharia mecânica pela Universidade de São Paulo (USP) e atua na empresa desde 1999. Um colega de laboratório de Rodrigues é o também engenheiro mecânico Renan Ozelo, de 29 anos. Formado na Universi-

Instituições que formaram os pesquisadores da empresa Roberto Falkenstein, engenheiro mecânico, diretor da área de pesquisa e desenvolvimento

Universidade Braz Cubas: graduação Universidade de São Paulo: pós-graduação lato sensu

Argemiro Costa, engenheiro mecânico, gerente de pesquisa e desenvolvimento

Instituto Mauá de Tecnologia: graduação USP: mestrado USP: doutorado

Erick Rodrigues, engenheiro mecânico, pesquisador da área de simulações

Faculdade de Engenharia Industrial (FEI): graduação USP: mestrado

Renan Ozelo, engenheiro mecânico, pesquisador da área de simulações

Universidade Estadual de Campinas (Unicamp): graduação Unicamp: mestrado Unicamp: doutorado (em andamento)

Anderson Muniz Calhabeu, engenheiro mecânico, coordenador de desenvolvimento de produto da área de pneus de ônibus e caminhão

USP: graduação Universidade Federal do ABC (UFABC): mestrado

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dade Estadual de Campinas (Unicamp) em 2009, Ozelo faz doutorado na mesma instituição e tem como tema de pesquisa a análise multiescala de dano e fratura em compostos de borracha. O jovem pesquisador é autor de um sistema, batizado de SimCord, voltado à pesquisa e ao desenvolvimento de componentes de reforço para o pneu. A ferramenta é capaz de modelar as mais diversas construções de cordas metálicas comerciais, um dos elementos estruturais que compõem os pneus. O SimCord contempla uma interface gráfica por meio de um software, responsável pela modelagem numérica e pós-processamento de resultados, e um servidor web, que faz o gerenciamento e a submissão do processamento de cálculo. “De tão eficiente, o SimCord acabou sendo adotado por todas as unidades da Pirelli fora do Brasil”, diz, com uma ponta de orgulho, o diretor Roberto Falkenstein. “Além de produtos e novas tecnologias, também exportamos talentos. O atual di-


fotos  léo ramos

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retor de P&D da China é o brasileiro Alexandre Bregantim e o gerente de desenvolvimento do centro de pesquisa da Rússia é o nosso colega Edson Marubayashi. Temos também dois ex-pesquisadores de Santo André trabalhando em Milão, um no time da Fórmula 1, Edson Gustavo Luzetti, e outro na equipe do cyber tire, Daniel Pugliese.” Esse projeto da Pirelli mundial resulta em um pneu dotado de microchip que transmite informações em tempo real para o motorista, como pressão, temperatura, condições de utilização e eventuais danos ao pneumático.

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O desafio é criar pneus para ônibus e caminhões que possam ser recapeados algumas vezes

investimento na região

O centro de P&D de Santo André, bem como as cinco fábricas brasileiras – em Santo André, Sumaré, Campinas, Feira de Santana (BA) e Gravataí (RS) –, possui papel de destaque na organização porque a operação na América do Sul representa mais de um terço do faturamento mundial da Pirelli – no continente, a companhia também tem unidades fabris na Argentina e na Venezuela. A fim de ampliar sua capacidade produtiva e manter a liderança na região, a Pirelli planeja destinar cerca de € 400 milhões (cerca de R$ 1,32 bilhão) a investimentos na região entre 2014 e 2017. A empresa não especifica quanto será alocado em pesquisa e desenvolvimento, mas informa que, globalmente, reserva 3,5% de seu faturamento ao setor. Feitas as contas, em 2012 foram destinados aos oito centros de P&D cerca de € 220 milhões (R$ 726 milhões) – naquele ano,

o faturamento global da Pirelli foi de € 6,3 bilhões (R$ 20,8 bilhões). O grupo tem 38 mil funcionários espalhados por 22 unidades industriais em 13 países, e, segundo Falkenstein, é a quinta marca de pneus em vendas no mundo e líder no segmento premium, linha com elevado conteúdo tecnológico. Um dos mais recentes produtos desenvolvidos em Santo André foram os pneus radiais para caminhões e ônibus da linha 01 Series. Eles foram projetados especialmente para o mercado sul-americano e têm como diferencial a ampliação do ciclo de utilização – enquanto pneus para carros são descartados ao fim de sua vida útil, os pneus de caminhões e ônibus são recapados algumas vezes. “Nosso

grande desafio é criar pneus para ônibus e caminhões que possam ser reutilizados várias vezes”, afirma o engenheiro mecânico Anderson Muniz Calhabeu, de 40 anos, coordenador de desenvolvimento de produto da área de pneus de ônibus e caminhão. A Pirelli também tem parcerias com universidades e centros de pesquisa. “Temos com a USP, Unicamp, UFSCar [Universidade Federal de São Carlos] e Centro Universitário da FEI”, diz o engenheiro Argemiro Costa, 55 anos, gerente de P&D da Pirelli. Mestre e doutor em engenharia mecânica pela USP, ele destaca um projeto recente com a Unicamp na área de pneus agrícolas, cujo desafio era encontrar formas de solucionar um dos problemas decorrentes da mecanização da agricultura, a compactação do solo por pneus das máquinas agrícolas (leia em Pesquisa FAPESP nº 210). “Modelagem de solo não é competência da Pirelli. Aproveitamos um convênio que temos com a Unicamp há 15 anos para obter conhecimento sobre o tema”, afirma Costa. Em conjunto, a equipe de pesquisadores da Pirelli e da Unicamp realizou uma série de estudos, simulações e testes que ajudaram a fabricante italiana a criar uma nova linha de pneus agrícolas para veículos de transbordo – uma espécie de vagão aberto puxado por tratores, que trabalham ao lado de colhedoras de cana-de-açúcar para transporte do material colhido. “A parceria trouxe benefícios para nós e para a Unicamp. Foi um trabalho em que todos saíram ganhando”, declara Costa. n pESQUISA FAPESP 218  z  93


Logística y

Etiquetas que salvam Parceria entre USP e Ambev cria sistema que evita atropelamentos por empilhadeiras

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em armazéns Marcos de Oliveira

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tropelamentos não acontecem apenas nas ruas e avenidas. Em armazéns industriais onde se estocam grandes caixas com produtos esse tipo de acidente é relativamente comum. Não com carros ou caminhões mas com empilhadeiras, veículos pequenos, com cerca de 2 metros de comprimento e lugar apenas para o motorista. Elas são capazes de carregar e descarregar toneladas de produtos em pallets e muitas vezes o operador dessa máquina precisa dirigir de ré, justamente porque os garfos que sustentam a carga estão na frente do veículo e encobrem a visão. A necessidade de percorrer as vias do armazém de ré causa muitos atropelamentos em grandes empresas, como constatou a Ambev, fabricante de cervejas e refrigerantes. Com 800

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empilhadeiras espalhadas por fábricas e armazéns de todo o país, a empresa resolveu diminuir os acidentes. Para isso, foi em busca de uma solução inovadora por meio de uma parceria com o Centro de Inovação em Sistemas Logísticos (CISLog) da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP). O trabalho resultou em uma patente já depositada no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), tendo como titulares a empresa e os pesquisadores. Ela foi baseada na tecnologia de identificação por radiofrequência (RFID, na sigla em inglês) utilizada principalmente para identificar produtos e cargas, além de crachás e equipamentos para pedágio. São chamadas de etiquetas inteligentes ou tags porque parecem fitas plásticas

que contêm um circuito eletrônico e se comunicam com uma antena ou receptor RFID. O sistema desenvolvido entre os pesquisadores da USP e da empresa desativa o acelerador da empilhadeira no momento em que uma pessoa estiver 8 metros à frente ou na traseira do veículo, ou ainda a 2 metros nas laterais. Assim o operador pode frear com antecedência. O sistema não atua no freio porque uma frenagem brusca pode até provocar um acidente maior ao derrubar os pallets com garrafas, por exemplo, em outra pessoa. A detecção do funcionário próximo à empilhadeira também faz acender uma luz na cabine e um bip alerta o operador. No veículo são instaladas quatro antenas RFID e cinco tags espalhados pelos capacetes, de uso obrigatório, dos funcio-


1 Acelerador da empilhadeira é desativado quando um funcionário esta no caminho 2 Etiquetas de radiofrequência no capacete obrigatório 3 Leds acendem quando um funcionário a pé é detectado

fotos  léo ramos

3 nários dos armazéns e fábricas. “Um dos tags fica no alto do capacete para que um funcionário agachado, no caso de pegar algo no chão, possa também ser identificado”, diz João Francisco Toqueti, que na época do desenvolvimento do sistema era gerente regional de logística na fábrica de Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo. Hoje ele é gerente de logística da região norte da Ambev, em Fortaleza, no Ceará. “A onda de rádio emitida pelas antenas energiza o tag que devolve a informação de localização”, explica o professor Hugo Yoshizaki, do CISLog da Poli-USP. “A velocidade máxima das empilhadeiras é de 16 quilômetros por hora. Ocorre que ela pesa, em média, 3,5 toneladas vazia porque precisa ter um lastro para contrabalancear o peso da

carga, sem tombar”, diz Yoshizaki. “Portanto, os acidentes com empilhadeiras são muito perigosos.” Segurança ampliada

A Ambev não divulga o número de atropelamentos ou acidentes em suas instalações envolvendo as empilhadeiras, mas os problemas são fáceis de explicar. “A empilhadeira anda de ré quando carregada, função que depende muito da habilidade do operador. Às vezes anda para frente. Existem regras, mas nem sempre elas são cumpridas, como puxar o freio de mão. Queríamos uma solução em que a segurança não dependesse apenas do operador”, diz Toqueti. “No final de 2012 comecei a procurar no mercado uma solução já pensando na tecnologia RFID.”

Na parceria com o CISLog/USP, a primeira fase foi para buscar alternativas no mercado mundial. Alguns sistemas encontrados têm principalmente um alerta sonoro. Em um dos mais avançados, as pessoas que circulam a pé no armazém precisam carregar um dispositivo que faz a conexão com a empilhadeira e uma luz acende no painel do veículo, além de tocar uma buzina. Mas o aparelho depende de uma bateria que precisa ser recarregada periodicamente e alguns usuários esquecem desse procedimento, o que prejudica o bom funcionamento do sistema. “O que queríamos era algo que não precisasse recarregar baterias e não necessitasse avisar o operador. Gostaríamos que ele desabilitasse algo no veículo”, diz Toqueti. “Quando Toqueti nos procurou a primeira coisa que fizemos foi estruturar o problema e partir para procurar o que se fazia no mundo. Não havia nada com RFID passivo, uma tecnologia que se tornou barata; cada etiqueta custa poucos centavos de dólar”, diz Yoshizaki. “Nossa abordagem foi multidisciplinar, com pesquisadores e professores, envolvendo três laboratórios da Poli. A maior dificuldade aconteceu com as interferências eletromagnéticas, na calibragem do sistema e na parte mecânica da empilhadeira.” Após uma prova de conceito bem-sucedida em laboratório, o sistema foi instalado em duas empilhadeiras da fábrica em Guarulhos. Com o resultado positivo, todas as máquinas passaram a usá-lo no final de novembro de 2013. “Constatamos que não houve perda de produtividade”, diz Toqueti. Em 2014, outros armazéns da companhia devem ganhar o sistema e em três anos todas as instalações da Ambev no país com empilhadeiras vão operar com o RFID. A empresa não revela o valor investido nessa operação, mas, no geral, em gastos com segurança logística, foram R$ 9 milhões em novos sistemas, ferramentas, treinamentos e padronização de procedimentos. Isso resultou na diminuição de 45% no número de acidentes de trabalho com afastamento do funcionário. Quanto ao futuro do sistema, a Ambev vai tentar negociar para que os fabricantes de empilhadeiras possam incorporar à produção desses veículos a solução RFID. O impacto esperado na segurança do trabalho em armazéns é grande porque, como existe a patente, fabricantes em todo o mundo poderão licenciar o sistema, expandindo o uso além da Ambev. n pESQUISA FAPESP 218  z  95


internet y

Análises feitas a distância Projeto LabWeb, do laboratório Síncrotron, permite a usuários fazer medições em linhas de luz com economia de tempo e de custos

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o dia 8 de outubro de 2012 a professora Bluma Guenther Soares, do Laboratório de Misturas Poliméricas e Compósitos Condutores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), não precisou mudar em nada a sua rotina para fazer a análise de 100 amostras de polímeros em uma das linhas de luz, ou estações experimentais, do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) em Campinas, no interior paulista, a 400 quilômetros de distância. “Na data e horário marcados, eu e uma aluna entramos na internet e, da minha sala, acessamos o equipamento em Campinas”, relata Bluma, sobre a experiência de ser a primeira a fazer pesquisas remotas pelo LabWeb. Uma pessoa no LNLS controla o experimento e os usuários conseguem ver os resultados em tempo real em um computador ou tablet. “Enquanto nas minhas experiências anteriores eu ia para o laboratório e ficava 24 horas sem dormir, para preparar as amostras, adaptar o feixe de luz e analisar no máximo 130 amostras, no acesso remoto o experimento com as 100 amostras começou às 13 horas e às 16 já estavam todas prontas”, diz Bluma. “A grande vantagem da pesquisa remota para o usuário é a redução de custos em seus projetos de pesquisa”, ressalta Mateus Borba Cardoso, pesquisador do LNLS que coordenou os primeiros experimentos feitos remotamente. Além de fazer suas próprias pesquisas com nanopartículas 96  z  abril DE 2014

para aplicação biomédica, Cardoso também tem entre suas tarefas acompanhar os usuários do laboratório em seus experimentos nas linhas de luz. Na manhã de 24 de fevereiro deste ano, por exemplo, ele acompanhou desde Campinas medições feitas por dois pesquisadores que estavam na Argentina. “Quem estiver passando pela linha no momento vai ver apenas as luzes acendendo e piscando e os motores se mexendo”, diz Cardoso sobre a experiência. Em relação aos gastos dos argentinos com as medições, ele resume: “Eles gastaram apenas uma postagem de correio”. “Começamos com uma linha de luz operando de forma remota e hoje, após modificações necessárias no hardware, estamos com quatro linhas em atividade”, diz Harry Westfahl Junior, coordenador do Projeto LabWeb e diretor científico do LNLS. A previsão é de 7 linhas em operação até maio e 15 até o final do ano. Para fazer os experimentos basta ter um navegador com acesso à internet. Ao entrar na página da web, o usuário consegue acessar os controles da linha de luz. O processo para a utilização da estação segue a mesma ordem das pesquisas presenciais, com submissão do projeto no site e aprovação. Nem todas as pesquisas com feixes de luz do síncrotron – equipamento usado para analisar as características microscópicas e atômicas dos materiais – podem ser feitas remotamente. Há restrição para a utilização de amostras sólidas para medidas em

Quatro das 15 estações experimentais de luz síncrotron têm acesso remoto por meio da internet


A tecnologia inicialmente utilizada no Labweb foi uma plataforma canadense de acesso aberto chamada Science Studio. “Esse sistema é a interface gráfica que permite a interação do usuário com os elementos gráficos”, diz Westfahl. O controle da linha de luz é feito pelo sistema Epics (sigla de experimental physics and industrial control system), um conjunto de ferramentas de software de código aberto desenvolvido pelo Departamento de Energia americano junto com laboratórios síncrotrons. “Uma parceria com a multinacional National Instruments do Brasil nos permitiu fazer desenvolvimentos inéditos no uso de controle com essa plataforma”, relata Westfahl. “É um sistema novo que vai ser utilizado por outros síncrotrons do mundo.” O projeto LabWeb foi feito em parceria com a Rede de Nanotecnologia da Petrobras, responsável pelo financiamento de R$ 3 milhões da pesquisa, que envolveu desde a prospecção da tecnologia até o projeto de modificação da plataforma canadense e mudanças no hardware. Ampliar o tempo

eduardo cesar

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temperatura ambiente ou quando a pesquisa serve para estudar as reações do material. Se o usuário escolher fazer a pesquisa remotamente, ele recebe pelo correio um suporte para as amostras que é enviado de volta. “Na data agendada, colocamos o porta-amostras na linha de luz e passamos o controle da estação experimental para ele”, explica Cardoso. Três câmeras acompanham tudo o que é feito na linha. Os pesquisadores conseguem movimentá-las a distância, ver as amostras, escolher quando fazer as medidas e por quanto tempo. “Eles controlam todo o experimento como se estivessem no próprio laboratório”, diz Cardoso. Atualmente, entre 10% e 15% dos experimentos realizados em uma das linhas para espalhamento de raios X a baixo ângulo são feitos remotamente. Em 2013 foram sete realizados a distância apenas nessa linha.

Hugo Henrique Slepicka e Márcio Alexandre Barbosa, engenheiros de computação, foram contratados pelo LNLS para trabalhar integralmente no projeto. “Inicialmente aprendemos como a plataforma Science Studio funcionava para que ela pudesse ser aplicada às necessidades do laboratório em experimentos remotos e procuramos entender as necessidades dos usuários dos feixes de luz”, diz Slepicka. O sistema criado por eles utiliza cliques no computador, em vez de comandos, para operar o sistema remotamente. “A chance de erros é muito menor do que quando é preciso digitar comandos”, diz. A partir do momento que a amostra preparada é colocada no feixe de luz e as medidas são feitas, todos os dados são pré-processados e disponibilizados para o usuário. Em algumas linhas de luz os gráficos são vistos em tempo real. No caso de um professor acompanhar o experimento de um aluno, ele pode, se necessário, sugerir mudanças nas medidas aplicadas. Slepicka ressalta que a pesquisa remota, além de diminuir o custo de projetos, ajuda a ampliar o tempo útil de utilização da linha de luz. Isso porque quando o usuário faz as medições das amostras em Campinas ele tem que selecioná-las e prepará-las, para só depois fazer as medições. “Já no experimento remoto elas entram no feixe de luz preparadas e prontas para serem medidas”, explica. Todas as tecnologias empregadas no projeto – como o desenvolvimento de algoritmos para trabalhar com o grande volume de dados gerados nas pesquisas e a sua visualização, além do armazenamento de forma compacta das informações obtidas – são abertas. “Outros síncrotrons podem se beneficiar do que estamos fazendo aqui, inclusive o do Canadá”, diz Slepicka. n Dinorah Ereno pESQUISA FAPESP 218  z  97


humanidades   ENSINO y

As várias direções do conhecimento Uso didático de mapas conceituais permite tornar claras e precisas as noções e conexões dos conteúdos disciplinares Márcio Ferrari

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squemas para resumir um texto, quadros sinópticos, listas de tópicos antes de escrever uma dissertação, organogramas, quadros que ilustram uma reportagem – formas de organização gráfica estão em toda parte, mostrando a utilidade da representação visual para a compreensão de processos que se encadeiam. Esses exemplos, no entanto, têm seus limites, e um modo certeiro de superá-los são os mapas conceituais, que vêm sendo pesquisados, como forma de gestão de conhecimento, pelo professor Paulo Correia, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), da Universidade de São Paulo (USP). Ele lidera desde 2005 o Grupo de Pesquisas Mapas Conceituais, que reúne alunos de iniciação científica e pós-graduação da USP Leste e de outras unidades da universidade. O que diferencia os mapas conceituais de formas intuitivas de concatenar conhecimentos é a organização de conceitos em uma “rede proposicional”. Isso significa que dois conceitos representados isoladamente num diagrama precisam ter suas relações expressas numa unidade semântica e não apenas visual (uma flecha ou um traço de união). Uma bela canção de Dorival Caymmi, O vento, dá um bom exemplo. Nos versos o compositor reúne palavras-conceito: vento e vela, vela e barco, barco e gente, gente e peixe, peixe e dinheiro. Vistas 98  z  abril DE 2014


ilustrações daniel bueno

assim, podemos no máximo supor quais são as relações entre elas. Os versos reais, no entanto, nos revelam as proposições: “Vento que dá na vela / vela que leva o barco / barco que leva a gente / gente que leva o peixe / peixe que dá dinheiro”. Com essas conexões, a letra da música é expressa “com clareza e precisão”, como, similarmente, os mapas conceituais. Segundo Correia, qualquer informação ou conhecimento conceitual pode ser representado por mapas conceituais. Esse tipo de conhecimento é útil na educação, na pesquisa e no ambiente corporativo. Como ferramenta didática de representação do conhecimento, uma das virtudes dos mapas conceituais é funcionar em mão dupla: tanto para a exposição de um conteúdo escolar quanto para a avaliação do aproveitamento pelos alunos. “Quando pedimos a elaboração de um mapa conceitual a um estudante, que, portanto, não é um especialista no assunto em questão, é possível detectar dúvidas e erros conceituais, tornando mais fácil ao professor ajudá-lo na compreensão correta”, diz Correia.

A criação dos mapas conceituais respondeu à ideia de “aprendizagem significativa”, formulada pelo psicólogo americano David Ausubel como um processo pelo qual uma nova informação relaciona-se com o conhecimento prévio que o aluno possui. Quem desenvolveu a proposta dos mapas conceituais, nos anos 1970, foi o educador, também americano, Joseph Novak, da Universidade Cornell. “Como Novak era biólogo, o uso de mapas conceituais, por tradição, se desenvolveu mais na área das ciências da natureza, mas eles podem ser utilizados em qualquer campo do conhecimento”, diz Correia, que se formou em química, área em que chegou ao pós-doutourado, e passou a dedicar-se aos mapas conceituais graças a seu interesse pelo ensino das ciências. A utilização dos mapas coube perfeitamente em seu trabalho na EACH, cuja proposta político-pedagógica favorece ações interdisciplinares de ensino e de pesquisa. Na busca de “novas arquiteturas pedagógicas”, alunos de graduação e pós-graduação do grupo liderado por Correia realizaram há dois anos um pESQUISA FAPESP 218  z  99


trabalho que, por meio do uso de mapas conceituais, aproximou saberes aparentemente distantes, revelando interfaces proposicionais entre os conteúdos programáticos de duas disciplinas do ciclo básico da EACH: ciências naturais e psicologia. A descoberta de conteúdos latentes que entrelaçavam as ementas dos dois cursos propiciou aos professores criarem conjuntamente técnicas de ensino e material de estudo comuns e interdisciplinares.

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m outro trabalho, 55 alunos da EACH foram convidados a fazer mapas colaborativos em diversos campos de estudo que se transformaram num “modelo de conhecimento”. Cada aluno levava informações sobre um determinado assunto, com ligações hipertextuais na internet, e faziam combinações entre elas em reuniões de trabalho e depois por meio de mapas conceituais. Mais uma vez a experiência revelou uma série de temas e vínculos que não estavam claros nos conhecimentos individuais. Historicamente, o uso dos mapas conceituais se disseminou, entre os anos 1970 e início dos 1990, quando ainda eram elaborados em papel, pelo reconhecimento de seu potencial pedagógico. Suas possibilidades foram maximizadas na última década do século XX, com o uso da internet para fazer mapas conceituais de forma colaborativa. Foi quando surgiu também o programa CmapTools, desenvolvido até hoje pelo Institute for Human and Machine Cognition, da Universidade de West Florida, nos Estados Unidos. Esse programa permite construir, navegar, compartilhar e criticar modelos de conhecimento representados por mapas conceituais – o CmapTools é gratuito e está disponível

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em cmap.ihmc.us/download. Um novo impulso veio em 2004, quando se realizou a 1ª Conferência Internacional sobre Mapeamento Conceitual, que tem periodicidade bienal. “Até então não havia encontros regulares da comunidade científica para divulgar essa técnica de representação e modelagem do conhecimento”, diz Correia. A entrada em cena da internet permitiu que os mapas conceituais incluíssem hipertexto, com links para informações disponíveis em outros espaços virtuais, além do CmapTools. “Tudo isso abriu Nos últimos um novo mundo para a organização do 25 anos as conhecimento, com a possibilidade de compartilhamento cooperativo, sincrôpossibilidades nico e não presencial”, diz Correia. Os meios digitais também facilitaram o redos mapas finamento dos mapas. “Refazer é importante, porque o aprendizado nunconceituais ca acaba. Não existe mapa definitivo, foram tanto que, antes da internet, usávamos post-its nos casos mais complexos, para maximizadas fazer mudanças com mais agilidade”, diz Correia. O problema é que tudo isso pela internet tornou um pouco fácil demais a criação de supostos mapas conceituais. “O CmapTools é excessivamente amigável e, às vezes, leva à construção de mapas ingênuos e meramente lúdicos. A ferramenta por si só não é sinônimo de um bom mapa, assim como o Word não é sinônimo de um bom texto.” Para elaborar bons mapas, o Grupo de Pesquisas Mapas Conceituais criou uma lista de quatro requisitos. O primeiro é a proposição, explicada acima: não bastam dois conceitos, mas aquilo que


Imagens  Grupo de Pesquisas Mapas conceituais / EACH-USP  ilustraçãO daniel bueno

Os dois mapas conceituais destas páginas explicam como eles podem ser úteis na aprendizagem. A diferença entre eles está na representação. O da esquerda destaca em branco os pontos em que os leitores mais se detêm. O da direita mostra as gradações com as marcas de calor: as cores quentes, como o vermelho e o amarelo, indicam onde o olhar se fixa por mais tempo

os vincula, sua relação conceitual. O segundo é a definição de uma pergunta focal. “Não dá para mapear tudo. Se um tema não for definido, haverá dispersão para áreas adjacentes ao foco principal. É preciso decompor um grande assunto em várias perguntas que corresponderão a vários mapas”, diz Correia. O terceiro item é a hierarquia dos conhecimentos: partir de conceitos gerais e detalhar progressivamente. “É a forma como articulamos as informações, de acordo com a teoria da aprendizagem significativa.” Finalmente, é preciso manter o princípio da revisão recursiva – o conhecimento muda o tempo todo, e os mapas precisam ser reatualizados sempre. “Isso rompe um paradigma típico de sala de aula, o do conhecimento definitivo, algo que não existe.”

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ma das qualidades dos mapas conceituais é que eles podem ser lidos de acordo com o interesse do leitor, enriquecendo o potencial das conexões. “Apesar dessa vantagem, há o risco de se gerar uma carga cognitiva adicional: o leitor é obrigado a decidir a sequência de leitura do mapa conceitual, coisa que é desnecessária quando lemos um texto”, diz Correia. Mapas conceituais com muita informação podem gerar o que eles chamam de map schok, uma leitura confusa ou equivocada dos mapas, que vem sendo objeto de estudos do grupo liderado por Correia. “Se você domina o assunto, não importa a ordem de leitura. Mas, se não domina, as decisões ao ordenar sequências no mapa podem causar dificuldades e equívocos.” O interesse pelo map shock levou Correia a adquirir, com a ajuda da FAPESP, um equipamento

que rastreia o olhar, para identificar como um leitor interage com o mapa conceitual durante o período de leitura. São identificados, por meio de marcas de calor, os rumos do olhar e o tempo que o observador demora em cada um dos pontos do mapa – as cores quentes indicam um tempo maior. É um equipamento de ação veloz, que registra o movimento do olhar muito mais precisamente do que uma câmera digital. “A técnica permite capturar as nuances do que se pretende comunicar num mapa conceitual”, diz Correia. O mapa faz sentido para quem o elabora, mas nem sempre para quem o lê – esse é o nó que o map shock revela. Há mapas muito elaborados, que abrangem uma grande quantidade de conhecimento, mas, para a maioria dos leitores, “ultrapassa a capacidade que eles dispõem no momento para compreender tanto conteúdo”, tornando-se inútil. O estudo das medições de leitura possibilita entender que, eventualmente, as relações feitas por um especialista confundem um novato, mostrando quais são os pontos a rever ou aperfeiçoar. Esse é um dos principais temas que devem concentrar atenções da 6ª Conferência Internacional sobre Mapeamento Conceitual, entre 23 e 25 de setembro, em Santos (SP), comandada por Correia, e que tem como presidente honorário o próprio Joseph Novak. n

Projeto Avaliação da desorientação provocada por mapas conceituais utilizados como organizadores de materiais de estudo (nº 2012/22693-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Paulo Rogério Miranda Correia; Investimento R$ 86.658,64 (FAPESP).

pESQUISA FAPESP 218  z  101


memória

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Modelo molecular da penicilina, cuja estrutura foi desvendada por Dorothy Hodgkin em 1945

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A matéria desvendada A Unesco escolheu 2014 como o Ano Internacional da Cristalografia, especialidade que mais contribuiu para a conquista de prêmios Nobel Neldson Marcolin

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dupla hélice como representação do DNA é uma das imagens mais conhecidas produzidas pela ciência do século XX. A descoberta da estrutura da molécula ocorreu em 1953 em boa parte graças ao trabalho da biofísica Rosalind Franklin, que usou a técnica de difração de raios X para obter a imagem. A história é conhecida: Francis Crick e James Watson usaram os dados de Rosalind – sem o conhecimento e aprovação dela – e escreveram o artigo pioneiro em 1953, publicado na revista Nature. A “foto” do DNA feita pela pesquisadora inglesa é uma das vedetes da cristalografia, cujos métodos experimentais e teóricos começaram a ser desenvolvidos em 1895 com a descoberta dos raios X pelo alemão Wilhelm Röntgen. A Unesco reconheceu a importância desta ciência básica e instituiu 2014 como o Ano Internacional da Cristalografia.

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“A cristalografia é o método que serviu de base para mais trabalhos ganhadores de prêmios Nobel até hoje, num total de 29”, diz Iris Torriani, pesquisadora do Instituto de Física da Universidade Estadual de Campinas (IFGW-Unicamp). Em setembro, o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), em Campinas, sediará uma conferência internacional com o tema “Cristalografia biológica e métodos complementares”, da qual Iris é uma das coordenadoras. Argentina radicada no Brasil, ela trabalha com cristalografia na Unicamp desde 1974. Algumas de suas pesquisas de maior destaque estão relacionadas com o estudo de macromoléculas biológicas usando espalhamento de raios X a baixos ângulos, com instrumentação desenvolvida sob sua coordenação no LNLS. Depois da descoberta de Wilhelm Röntgen, os físicos mergulharam no estudo


fotos 1 Science Museum London 2 The Nobel Foundation 3 Science Museum London 4 The Royal Institution  5 e 6 King`s College london

das propriedades e aplicações dos raios X. Em 1912, o alemão Max von Laue realizou uma experiência chamada de difração, na qual mostrou que os raios X se comportam como ondas eletromagnéticas. Ele irradiou um cristal e registrou os raios X transmitidos numa chapa radiográfica. O resultado foi uma chapa com vários pontos arranjados simetricamente, o difratograma, o que provava a existência de uma rede de difração formada pelo arranjo regular dos átomos no cristal. Ao aplicar cálculos matemáticos usando os dados observados no difratograma – como ângulos, distâncias entre os pontos e suas intensidades – foi possível estabelecer o ordenamento regular dos átomos em um cristal. Ou seja, desvendou-se a estrutura atômica do material irradiado. “Os raios X e alguns conceitos matemáticos são ferramentas que nos dizem onde cada átomo se localiza nas moléculas estudadas”, explica Iris. Em 1913, dois cientistas, o inglês William Henry Bragg e seu filho William Lawrence, fizeram avançar definitivamente a cristalografia. Com base em experimentos feitos por Lawrence, William Henry construiu o primeiro difratômetro de raios. O instrumento permitia direcionar os raios X para a face do cristal em qualquer ângulo e registrava a intensidade dos feixes difratados usando um detector de radiação, o que tornou o método mais preciso e amigável. O material analisado pode ser de origem orgânica

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Os Bragg: o pai William Henry (dir.) e o filho Lawrence. Acima, o difratômetro original

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Raios X e conceitos matemáticos são ferramentas que indicam onde cada átomo se localiza nas moléculas

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ou inorgânica. Alguns deles não são obviamente cristalinos e muitas vezes é preciso usar técnicas complicadas para cristalizar o que se quer estudar, como uma proteína, por exemplo. Depois de desenvolver o difratômetro, os Bragg o utilizaram para resolver a estrutura do diamante em 1913. Este trabalho marcou o começo da cristalografia de raios X. Pelos anos seguintes muitos outros físicos e químicos fizeram o mesmo com os mais diversos materiais. Um dos melhores exemplos é o da química britânica Dorothy Hodgkin, que determinou a estrutura da penicilina em 1945, da vitamina B12 em 1957 e da

Abaixo, Rosalind Franklin, autora da imagem pioneira do DNA por difração de raios X, que inspirou Crick e Watson

insulina em 1969. Mais recentemente, em 2009, Ada Yonath, Thomas Steitz e V. Ramakrishnan caracterizaram o ribossomo, responsável pela síntese de proteínas. Todos ganharam o prêmio Nobel de Física, Química ou Fisiologia e Medicina – Lawrence Bragg é, até hoje, o mais jovem a ser premiado, aos 25 anos, em 1915. A exceção foi Rosalind Franklin, que já havia morrido quando Crick, Watson e Wilkins foram laureados, em 1962.

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Arte

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A arte total de um mestre oitocentista Apelidado de “homem-tudo”, Araújo Porto-Alegre procurou definir as bases de uma escola brasileira de arte Maria Hirszman

F

igura central do projeto de constituição de uma cultura nacional no Brasil oitocentista, Manuel de Araújo Porto-Alegre (1806 - 1879) é – paradoxalmente – vítima de uma perversa tendência brasileira de perpetuar mitos e optar pelo caminho mais fácil de pesquisa. Diante da dificuldade de reunir sua obra dispersa, e de entender como alguém pode ao mesmo tempo ser neoclássico e romântico, artista, literato e homem público, pintor de história e defensor da aquarela e do estudo da natureza tropical, diversas gerações se contentaram em dar-lhe a fama sem problematizar seus feitos, iluminar mais a fundo suas contradições ou observar de perto sua produção. Tanto que só agora, mais de dois séculos após seu nascimento, o Barão de Santo Ângelo (como também era conhecido) ganha sua primeira exposição individual, na sede do Instituto Moreira Salles (IMS), no Rio de Janeiro. Articulada em torno de um álbum do artista que foi adquirido pelo Instituto em 2008, a mostra Araújo Porto-Alegre: singular & plural conta ainda com obras cedidas por uma dezena de instituições nacionais, como Biblioteca Nacional, Museu Histórico Nacional, Museu Nacional de Belas Artes e o Museu Julio de Castilhos. Por limitações de espaço, a versão carioca é pequena, mas a edição paulistana da mostra, que será inaugurada em junho


desenhos  divulgação ims

próximo, terá mais de uma centena de pinturas, gravuras, desenhos e aquarelas e um recorte curatorial mais amplo. Mas é possível vislumbrar desde já, por meio de um alentado catálogo, com mais de 360 páginas, a diversidade de temas, técnicas e estilos e meios pelos quais Porto-Alegre transita. A publicação, que reúne um vastíssimo material iconográfico, traz também uma seleção de ensaios inéditos, assinados por pesquisadores convidados de diversas áreas, nos quais são esmiuçados diferentes aspectos de sua trajetória, como por exemplo sua relação com o mestre Debret (Valéria Picolli); a importância dada por ele à paisagem tropical como símbolo do país, bem como a convivência entre a formação neoclássica e a sensibilidade romântica (Claudia Valadão de Mattos); sua reflexão acerca da música (Paulo M. Kuhl), e uma releitura crítica da difícil e paradoxal tarefa da primeira geração romântica – da qual Porto-Alegre faz parte – de fundar simbolicamente a nacionalidade brasileira (João Cezar de Castro Rocha). Outro mérito inquestionável da publicação é o de reunir e tornar acessível um amplo conjunto de textos escritos por Araújo Porto-Alegre, de difícil localização e fundamentais para historiadores da cultura em geral. Afinal, trata-se de uma figura quase onipresente na história oitocentista nacional. Ele foi aluno da primeira turma da

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1 Mata virgem, c.1850-1860, grafite e aquarela sobre papel 2 Estudo para uma cena de batalha, s.d., grafite, nanquim e aguada sobre papel 3 Cher compagnon de Voyage, 1834, grafite sobre papel

Escola Imperial de Belas Artes (Aiba) e posteriormente seu professor e diretor. Também foi aluno dileto de Jean-Baptiste Debret, com quem partiu para a França em 1831. E não se restringiu de forma alguma às artes visuais. Foi arquiteto, cenógrafo, escritor, teatrólogo, crítico de música e artes (sendo pioneiro na tentativa de fundar as bases de uma escola brasileira de arte), membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), protegido de dom Pedro I, e de seu filho, dom Pedro II, cônsul brasileiro no exterior... Se esse ecletismo – não à toa ele foi apelidado por um desafeto de “homem-tudo” – é fortemente responsável pela reiterada ideia de que se tratava de um artista medíocre, ele também contribui para iluminar sua rica trajetória e o conturbado período em que viveu. Para Letícia Squeff, que já havia dedicado seu mestrado a estudar a produção crítica de Porto-Alegre, o contato com as obras de arte lhe permitiram compreender um lado mais sensível de sua atuação. “Procuramos tratá-lo de forma mais totalizante”, explica Letícia, curadora da exposição em parceria com Júlia Kovensky, coordenadora de iconografia do IMS. “Ele só não foi melhor artista porque para ele a arte estava em tudo”, afirma ela na tentativa de explicar as reiteradas críticas à qualidade de sua pintura. Em texto publicado no catálogo, Rafael Cardoso faz um interessante alerta sobre o equívoco em relegar a um segundo plano os trabalhos sobre papel: “Somente o pensamento viciado que insiste em relegar o que não é pintura (de cavalete), escultura, arquitetura à condição de ‘arte menor’ explica que não se tenha procedido ainda a uma pesquisa aprofundada de suas aquarelas e desenhos — incluídas aí suas caricaturas, área em que é inegável sua importância, assim como seus esboços e projetos cenográficos”. n PESQUISA FAPESP 218 | 105


conto

Fora de quadro Rafael Gallo

“ ... quando de antemão se prevê a provável falsidade, olhar se torna possível; basta talvez escolher bem entre o olhar e o olhado” (Julio Cortázar, As babas do diabo)

E

u passei os últimos anos da minha vida completamente imerso no mundo das estrelas de Hollywood. Não, nunca convivi entre os astros do cinema; esse foi apenas o tema do meu mestrado em comunicação. Quando o concluí, muitos esperavam que eu “aprofundasse” a mesma pesquisa em um doutorado, mas eu já estava cansado de falar e escrever sobre o mesmo assunto, repetir as mesmas palavras. Com a aposentadoria de meu orientador – um dos entusiastas da manutenção de meus estudos – senti mais liberdade para mudar meu caminho. Gostaria de poder dizer que dei uma grande guinada em minha vida, mas o fato é que é difícil ultrapassar as cercas que erguemos ao nosso redor. Hoje inicio minhas apresentações nos congressos dizendo que meu doutorado é oposto ao mestrado, mas (todos devem notar isso por trás de seus sorrisos polidos) ele não passa de uma inversão – como o negativo de um filme, que basta certa iluminação para se revelar semelhante. De analisar como a figura de uma celebridade se firmava publicamente passei a investigar como ela podia desaparecer. Meu analista disse que eu estava tentando, na verdade, desconstruir minha própria trajetória. Discordo. A princípio, pensei naqueles casos tantas vezes repetidos: astros mirins afundados nas drogas, símbolos sexuais datados, “revelações” que escolhem mal seus papéis subsequentes; enfim, as várias maneiras de se perder o fio da própria história. Nada disso me empolgara, até que afinal me deparei com a figura maior do desaparecimento cinematográfico: Shirley Mantle.

106 | abril DE 2014

Estrela do cinema mudo, celebrada pela imprensa, ela nunca mais atuou após o advento do som. Mas não se trata do simples clichê de astro cuja adaptação aos filmes falados não se deu; Shirley nem mesmo tentou participar desse novo sistema de produção. Mas o fascínio maior em torno de sua figura é pelo fato dela ter desaparecido por completo: não sobrou nenhuma imagem registrada sua. Nada; ninguém sabe como é seu rosto, qual o som de sua voz. Eu, obviamente, não era o primeiro a me aventurar nessa seara. Vários pesquisadores já haviam sido atraídos pelo canto dessa sereia invisível, caindo no mesmo vazio. Existia muito material arquivado sobre a atriz: reportagens na imprensa, cartazes de filmes, textos de historiadores e objetos pessoais, mas em nenhum deles restara qualquer retrato seu. Era como se Deus – feito mais um de seus ex-amantes enciumados – tivesse apagado qualquer vestígio de sua presença no mundo. Conheço bem sua memorabilia porque a explorei pessoalmente. Passei uma temporada nos EUA, em um doutorado sanduíche, investigando-a na crença de que comigo seria diferente (sempre acreditamos nisso, não?), que eu conseguiria encontrar algo despercebido por meus precursores. Revirei bibliotecas, museus e todos os lugares em que poderia descobrir algo sobre Shirley. Entrevistei seus descendentes e vi álbuns de família (os parentes já estavam acostumados a visitas desse tipo), mas não encontrei nada. De Shirley, sobreviveram apenas histórias transmitidas oralmente, cujo fim parecia já se anunciar nas bisnetas: pré-adolescentes que mal sabiam dizer (ou se importavam) se a célebre ancestral era sua bisavó ou tia-avó, por parte de pai ou de mãe. Visitei seu túmulo e quase chorei como se acabasse de perder alguém próximo. Acreditava ser possível encontrar alguma pista no cemitério, mas


zé vicente

os registros não traziam nenhuma novidade, e em sua lápide podia-se ler apenas seu nome, os anos de nascimento e morte e um versículo genérico da Bíblia. Acima das palavras jazia o que um dia foi seu retrato, mas, por alguma falha no vidro de proteção, transformara-se em uma espécie de aquário, no qual manchas negras flutuavam como peixes na água sépia. Se minha vida fosse um filme, Shirley Mantle estaria sempre fora de quadro; impossível de ser vista. Minha sorte pareceu mudar somente quando visitei os estúdios da Paramount, onde a atriz realizou grande parte de seus filmes. Deixei-os por último porque sabia que se não a encontrasse ali estaria perdido. Embora eles tivessem se demonstrado prestativos em nossos contatos por e-mail, senti em suas instalações – mais do que em outros lugares – o olvido no qual Shirley se afundara. O arquivista me pediu para repetir o nome dela três vezes antes de pesquisar no sistema. Enfim ele me conduziu pelos corredores, recolhendo as latas numeradas conforme sua lista. Abertas, revelavam o mesmo destino trágico: rolos quase destruídos, tocados pela maldição que selecionava as películas com Shirley para deteriorar ou despedaçar. Tomei os fragmentos disponíveis e, com a ajuda do auxiliar, assisti o que pude em uma das salas de projeção. Passei dias repetindo aquelas poucas cenas diante de meus olhos, procurando por alguma aparição de Shirley nunca antes percebida. Mas é bastante complicado procurar algo quando não se pode reconhecê-lo mesmo que o encontre.

Uma cena afinal me deu esperança: na adaptação de Rapunzel, de 1924, o príncipe se aproxima da torre onde a donzela permanece inalcançável. Ele chama pela heroína, pedindo-lhe – conforme escrito nos letreiros – que jogue suas tranças. No plano seguinte, vemos a janela da clausura, de onde a moça arremessa seus cabelos, oculta na penumbra. A escalada do príncipe ocupa os dois próximos planos; o segundo me arrancou da cadeira: uma “subjetiva”, ou seja, a câmera posicionada como se víssemos o príncipe através do olhar de Rapunzel/Shirley. Ela deveria estar refletida nas pupilas dele, e havia de fato um vulto ali. Muitos diriam que uma filmagem não é como a vida real: a atriz dificilmente estaria à frente dele nessa tomada (ali se posicionaria uma enorme câmera). Se era mesmo a intenção do diretor, haveria outras maneiras de se realizar esse efeito de reflexo. Como ele era pouco perceptível (não escapara aos outros historiadores à toa), dificilmente teria sido criado com artifícios de pós-produção. Tive minhas dúvidas, por isso mandei imprimir uma cópia de um dos fotogramas. Debrucei-me sobre ele por dias e dias, horas a fio. Mirando o close-up no rosto daquele ator incessantemente, minha vista chegava a nublar-se. No entanto, cada vez mais se firmava naquela pequena nódoa negra em seus olhos, em meus olhos, a silhueta dela: Shirley Mantle. Rafael Gallo é escritor, compositor, produtor musical e professor universitário. Seu livro Réveillon e outros dias foi vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2011, na categoria Contos, e finalista do Prêmio Jabuti 2012.

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resenhas

A crítica em tensão: literatura e história

O Entre a literatura e a história Alfredo Bosi Editora 34 480 páginas, R$ 65,00

108 | abril DE 2014

bra de erudição e intervenção, Entre a literatura e a história oferece uma paisagem ampla e profunda da crítica de Alfredo Bosi. Reunindo ensaios, prefácios, depoimentos e entrevistas, o livro se organiza em feixes temáticos que iluminam o balanço e a tensão entre a história e a literatura. Mesmo para os leitores assíduos de Bosi, os textos já conhecidos ganharão nova espessura, como se o conjunto atasse as linhas de um discurso que indaga o poder da literatura diante de seus condicionamentos sociais e históricos. Juntos (re-unidos), os textos são devolvidos ao solo comum que os gerou, onde a literatura se descobre reflexão, jamais puro reflexo, da experiência humana. A prosa límpida e segura abre caminhos diversos, que vão da crítica à história literária, dos discursos ideológicos à reflexão sobre o pensamento, com paradas que exigem do escritor posicionamento ético e moral diante do presente. Não à toa, quase ao centro da obra, operando como uma mó que afia as ideias, vê-se um daqueles interregnos italianos tão ao gosto de Bosi, onde encontram-se Vico e Leopardi. O primeiro, a enfrentar o impasse entre a valorização do artifício retórico, que o barroco exaltava, e a abstração da razão, que imperava no cartesianismo de seu tempo. O segundo, a apontar, contra a fábula romântica do sujeito sentimental e único, o valor da fabulação mítica nos clássicos. Em sua solução de compromisso entre o artifício e a razão, aprendemos que, para Vico, as figuras “não são meros ornatos, mas expressões desentranhadas do conhecimento sensível” (p. 133). Quem não vê aqui, como que prefigurada, a paixão do crítico pelo real sensível que nos engaja no mundo? Não se trataria da práxis como a experiência humana concreta que, 200 anos depois de Vico, Gramsci transformará na base de sua concepção da cultura como espaço de emancipação? Em Vico, a fantasia, que a leitura platônica tende a desqualificar, alia-se à memória e ganha foros transformadores, criando um mundo que, conquanto imaginário, jamais se desprende totalmente do real. No cultivo da memória, o acontecido se ressignifica e a literatura se ergue, já não ornato ou codificação cerrada, mas como espaço de criação a

partir da história – a mesma história que dispara a voz do crítico diante das urgências do contemporâneo: a energia nuclear, a educação, a religião, o Estado, a ditadura, a violência, a fome, a democracia, o socialismo, a militância na América Latina. Já em Leopardi a imaginação se projeta no mito como motor da poesia. Em seu isolamento enfermiço, o poeta não repete, contudo, o gesto que se consagraria na figura do gênio romântico, martirizado pela nulidade do mundo. A paisagem, para Leopardi, é porta de acesso a outro tempo, quando a beleza “rebrota” no instante em que a palavra poética ressoa. A poesia cumpre a mais nobre função para o crítico, que compreende amorosamente o isolamento de Leopardi, assim como procura ver, em João Cabral, como o poema logra dar forma e sentido ao drama do sujeito histórico, com o qual o poeta simpatiza e se co-move, dos cassacos de engenho aos severinos seus contemporâneos. Movimento, em suma, propiciado pela literatura, sempre que se escavam as razões do sujeito nas “paixões do cotidiano e nas figuras da memória”. Penso, a esse respeito, na brilhante análise da leitura do mundo e do impacto da escrita em Infância de Graciliano Ramos, no “balé brasileiro da intimidade assimétrica” detectado num conto de Mário de Andrade, no horizonte desinvestido de qualquer transcendência em Lygia Fagundes Telles, no idealismo liberal-democrático do jovem Machado de Assis logo tingido pela melancolia, na proximidade da morte em Reventós, na irrupção do sujeito na poesia fugaz e ágil de Ferreira Gullar, no jogo entre distância e proximidade que rege a viagem poética de Cecília Meireles. Penso, ainda com Bosi, nos rasgos sorelianos de Mariátegui, que jamais descuidou do mito enquanto lavrava, em seu tempo e lugar, o solo do marxismo. Se reforço a importância do núcleo “italiano”, é por nele perceber a razão de ser e a tarefa da literatura diante da história: devolver, ao sujeito, a singularidade de seu sofrimento e de sua alegria diante do tempo roaz. Não se trata de reduzir o livro a tal núcleo, mas de ali buscar alguns dos móveis do pensamento de Alfredo Bosi. É assim que, ao recatar-se contra o império da forma (os

eduardo cesar

Pedro Meira Monteiro


“moinhos de letras e castelos de cartas” [p. 219] em que se perderiam as vanguardas), o crítico reclama para a literatura a função de revelar o “dentro” do sujeito, oferecendo-lhe aquela linguagem eficiente capaz de restituir “dimensões originárias de radiante clareza e rara intensidade” (p. 22). Para tanto, é mister reagir ao império da ideologia, aceitando porém que ela é constitutiva do texto, assim como, em Croce, a fantasia e o conceito, a poesia e a lógica pertencem “ao mesmo fluxo da vida e do espírito humano”. A ideologia, enfim, é sempre parte da literatura, mas jamais será “o núcleo vivo, o fogo, a alma da sua poeticidade, que é intuitiva, figural, imaginária” (p. 249-50). A atenção à linguagem não descura da longa duração das formações ideológicas, como se vê no inédito “As ideologias e o seu lugar”, diálogo rápido e cortante com Roberto Schwarz. Atentando para a imbricação entre ideias liberais e escravismo em escala global, Bosi relativiza o aspecto “farsesco” atribuído à presença daquelas ideias no Brasil, as quais se dividiriam, na segunda metade do século XIX, entre um liberalismo “excludente, escravista” e outro, “democrático, abolicionista”, cujo porta-voz mais ilustre foi Joaquim Nabuco. Não haveria então “por que isolar o Estado brasileiro como caso único e farsesco da coabitação da ideologia liberal com uma prática escravista. Cá e lá... o lugar dessa triste fusão era o do capital fundiário e da rede de interesses comerciais e políticos que o reproduziam” (p. 239). No trânsito das ideias, os interesses econômicos e as injunções sociais pesam, mas o sujeito pode se libertar ou se deixar cingir pelas malhas da ideologia, que confunde o interesse de uma minoria com o desígnio nacional. É o desígnio nacional, ou talvez devesse dizer-se o desígnio da maioria, que dá lastro a uma das seções mais fortes do livro: aquela, justamente, das “Intervenções”, umbilicalmente ligada à seção anterior, “Ideologias e contraideologias”. Ali, a visada alerta e penetrante varre com indignação os temas que importam na história do Brasil. E o compasso do espírito se abre generosamente: onde leitores apressados pensariam encontrar tão-só o intelectual católico, campeão da teo-

logia da libertação em seus momentos críticos, descobre-se o admirador da longa história do positivismo no Brasil e na França. Atualizadas pelo “altruísmo” de Comte, as raízes saint-simonianas teriam brotado no Apostolado, carreando simpatias para a luta da classe trabalhadora que a República oligárquica brasileira maltratava. A história é farta em complexidade e paradoxos, já que o sopro original do experimento republicano brasileiro é positivista, embora a República não se reduza a ele. Tampouco é casual que a educação reponte como tema-chave nessas intervenções e que a compaixão pelos professores, desrespeitados por políticas Quase ao centro da públicas bisonhas, faça par à análise obra, operando como simpática das diretivas educacionais da Carta de 1934, a única, ao lado da uma mó que afia atual Constituição, a inscrever a amas ideias, vê-se um pliação da instrução popular num futuro inclusivo. Em 1934 teria vencido daqueles interregnos momentaneamente a tendência “popuitalianos tão ao lar e socializante” do veio positivista gaúcho, cujas contradições se projetam gosto de Bosi, onde na figura singular de Vargas e se acenencontram-se tuam no Estado Novo. Vico e Leopardi Mas os experimentos de fundo democratizante que mal se iniciaram em 1930 foram esmagados pelo golpe de 64, e é dos escombros desse futuro em disputa que fala Bosi, em textos escritos entre a década de 1980, em plena abertura política, e nosso próprio tempo. Em todos eles, assim como nos vários textos que esta resenha sequer arranhou, dá-se o exercício daquela “fantasia organizada”, feliz expressão que Celso Furtado encontra em Valéry (p. 323). Mas aqui o “planejamento” é de outra ordem, mais agônica, porque o crítico não tem nas mãos os instrumentos capazes de alterar o rumo da história. Ou talvez tenha, e os vislumbre, quando enlaça objetividade e utopia, selando a ética daquele que “deveria viver em permanente tensão”. Pedro Meira Monteiro é professor titular de literatura brasileira na Princeton University. É autor, entre outros, de Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda: correspondência (Companhia das Letras/ Edusp/Instituto de Estudos Brasileiros, 2012).

PESQUISA FAPESP 218 | 109


resenhas

Um lugar de chegada João Baptista Borges Pereira

A sociologia como aventura – Memórias José de Souza Martins Editora Contexto 352 páginas, R$ 49,90

110 | abril DE 2014

ou de uma geração que, com espanto e orgulho e com os papéis de inscrição nas mãos, subiu pela primeira vez os degraus de acesso do saguão do prédio da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, na rua Maria Antonia, nº 258. Subir era bem o termo: da rua para o solene, do senso comum para a ciência, da repetição para a criação, da resposta para a pergunta, do obscuro para o desvelado, do escuro para o claro (mesmo sendo a minha única alternativa a do curso noturno), do feio para o belo. Nem de longe me ocorria que estava atravessando o pórtico de meu lugar definitivo na instituição a que me dedicaria o restante da minha vida. Era o meu lugar de chegada.” (p. 213) Este trecho do livro A sociologia como aventura – Memórias, do professor José de Souza Martins, permite e estimula várias leituras, notadamente, de caráter simbólico. Em síntese, pode-se resumir todas as versões numa única: aquele menino e adolescente, que viera do chão da fábrica, que lutara brava e cotidianamente com as adversidades de uma vida sofrida, finalmente chegava ao limiar de sua ascensão social. Seria oportuno registrar que o autor, em livro anterior, coloca seus leitores a par das dificuldades que esse menino pobre teve que enfrentar no seu dia a dia de vida (Uma arqueologia da memória social – Autobiografia de um moleque de fábrica, Ateliê Editorial, 2011). Para usar expressão de R. Redfield, ao delinear o perfil do modelo estético da antropologia, neste novo livro aquele moleque entra em outro palco social ao representar o papel do acadêmico atraído pela sociologia, desde seus tempos de normalista. É como se o jovem adventício encontrasse na sociologia respostas para os fatos que marcaram a sua difícil trajetória social, ao mesmo tempo que indicava o caminho que deveria marcar sua vida de sociólogo pesquisador de campo. Para caminhar por essa vereda, o sociólogo, sem nenhuma relutância, busca inspiração e apoio metodológico na historiografia e na antropologia. Nos estudos e reflexões de Martins, as três disciplinas andam de mãos dadas, sem constrangimentos.

O emaranhado desse palco vem à luz a partir das experiências e interpretações que dele faz o autor por meio de entrevistas concedidas ao longo de sua vida a vários interlocutores. Essas entrevistas são, por assim dizer, contextualizadas por refinados textos sobre a sociologia e os sociólogos da USP, tais como Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Luiz Pereira, Maria Alice Foracchi e, notadamente, Florestan Fernandes, o mestre de todos, por eles reconhecidos como o grande e excepcional inovador da sociologia brasileira. Martins registra, sempre criticamente, as novas elaborações teóricas que passam a compor, sob a orientação do mestre, uma sociologia sempre à beira do precipício. Isto é representado pelo convívio, nem sempre fácil e harmonioso, entre a reflexão sociológica inspirada em Marx e o que se rotulava, então, de “marxismo vulgar”, permanentemente criticado por Florestan. Tudo parece indicar que essa sociologia respondia às experiências de uma vida já vivida pelo autor e condicionava a sua maneira de ver os dois mundos: o que vivera antes e o que vivia então. Pode-se dizer que o livro de Martins é, a um só tempo, a aventura e a codificação de uma sociologia uspiana, aquela que foi construída pela cadeira de Sociologia I. A pergunta que fica no ar, que não quer ir embora: em que nicho escondido ficou a sociologia também uspiana que era, à época, simultaneamente construída pela cadeira de Sociologia II? Certamente das reflexões desta, por assim dizer, segunda sociologia, surgiriam nomes notáveis de sociólogos, como Fernando de Azevedo, Ruy Galvão de Andrada Coelho, Antonio Candido de Mello e Souza, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Azis Simão, Emilio Willems, Duglas Teixeira Monteiro, Fernando Albuquerque Mourão. Trazer à luz outra versão da aventura sociológica da USP seria uma maneira de não colaborar com a crescente desmemorialização que acomete as novas gerações de alunos e professores que lutam a seu modo para criar novas aventuras sociológicas. João Baptista Borges Pereira é antropólogo, professor emérito da Universidade de São Paulo (USP) e professor pleno de pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

eduardo cesar

S


carreiras

Contratação | Eclético

Edital para inovar

daniel bueno

Empresa contrata profissionais de várias áreas com projetos de pesquisa A busca por profissionais qualificados para fazer pesquisa dentro da empresa levou a Prati Donaduzzi, indústria farmacêutica nacional instalada em Toledo, no Paraná, a lançar em dezembro de 2013 um edital de contratação de pesquisadores que poderiam ter formação em farmácia, administração, biologia, química, biomedicina, ciência da computação, engenharias da computação, materiais, química ou de produção. A condição para se tornar um candidato foi que cada um apresentasse um projeto nas áreas de medicamentos, tecnologia e processos farmacêuticos. Chamado de Inovaprati, o edital recebeu 150 inscritos até março para cargos de pesquisadores, de

doutores a juniores, com salários de R$ 6 mil a R$ 12 mil. Serão contratados até 20 pesquisadores. “Recebemos 150 projetos, mas a metade foi descartada por não ter vínculo ou alinhamento com a empresa e agora estamos no processo de análise dos outros 75”, diz Luiz Donaduzzi, farmacêutico e sócio da empresa que atualmente é voltada para a produção de medicamentos genéricos. Dentre os projetos analisados e lidos por ele, o destaque vai para a área de nanotecnologia. “Cinco projetos muito bons são dessa área. Vamos escolher pelo menos um porque queremos dominar essa tecnologia que pode ser útil, por exemplo, para melhorar a absorção de um fármaco.” A ideia inicial de Donaduzzi é agregar

valor aos medicamentos existentes ou mesmo reduzir o valor de produção. Em relação à possibilidade de financiar ou incorporar os projetos, ele diz que vai depender de a proposta ser viável financeira e tecnicamente. O Inovaprati foi idealizado por Donaduzzi e por um grupo de 10 pessoas de várias áreas da empresa, chamado de Grupo Criativo, responsável por criar e reunir novas ideias para a indústria. “Se os resultados desse primeiro forem positivos, vamos continuar a ter novos editais no futuro”, diz. “Estamos focados em inovação, e em 2013 investimos R$ 25 milhões em pesquisa e desenvolvimento (P&D), cerca de 4% do nosso faturamento de R$ 619 milhões.” A Prati é uma PESQUISA FAPESP 218 | 111


112 | abril DE 2014

eclético

Desafios profissionais Da academia para a empresa, Manfio transitou por várias áreas Gilson Manfio, de 47 anos, está desde 2004 na Natura, onde começou como pesquisador na área de microbiologia e atualmente responde pela gestão de estratégia e comunicação na equipe de governança de tecnologia digital, evolução da área tradicionalmente conhecida como tecnologia de informação. A desenvoltura com que encara os novos desafios é um reflexo da sua formação acadêmica somada à sua experiência profissional. Após a graduação em biologia e o mestrado em genética, ambos na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Manfio foi para a Inglaterra, onde fez doutorado na Universidade de Newcastle. “Na volta, trabalhei na Fundação André Tosello e me tornei orientador de doutorado na Genética da Unicamp.” Depois trabalhou como pesquisador no Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas, ligado à universidade. Nesse período acadêmico, participou de 21 projetos de pesquisa, dos quais coordenou 13. “Durante um trabalho de consultoria que fiz para a Natura, conheci uma colega de microbiologia que me convidou a fazer parte do grupo de pesquisa na empresa”, conta. Entre 2005 e 2006, esteve à frente do grupo que trabalhou no desenvolvimento de novas matérias-primas a partir de extratos vegetais para aplicação cosmética – e acompanhou

os primeiros projetos apoiados pela FAPESP na modalidade Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica (Pite), em colaboração com a empresa. Uma nova mudança profissional se desenhava. “A Natura começou a trabalhar com inovação aberta e, como eu tinha conhecimento do funcionamento do ambiente de pesquisa acadêmico no Brasil e uma rede de interação muito grande na academia, fui convidado”, relata. Manfio ressalta que o segredo de uma boa parceria é o alinhamento de expectativas e o atendimento das necessidades de ambos os lados. “A empresa entra com recursos para fomentar a pesquisa, que é geralmente aplicada, mas a universidade também aporta recursos e o seu conhecimento”, diz. A experiência de trabalhar com colaboração externa o levou a ampliar o seu foco de ação. “Comecei a trabalhar com teorias de pensamento sistêmico dentro da empresa, envolvendo o grupo de RH e o pessoal da fábrica, e depois com teoria de redes.” E novamente um novo desafio surgiu no horizonte: o convite para desenhar a estratégia e a comunicação na área de tecnologia digital. Ou seja, Manfio está estudando a inserção da empresa dentro de um novo modelo, em que os negócios com as suas consultoras e clientes são tratados pela ótica da interação e da experiência digital via dispositivos móveis, aplicativos, internet, facebook, twitter e SMS, por exemplo.

sammy w. oliveira

empresa farmacêutica em ascensão que cresce 25% ao ano e chegou aos 4.200 funcionários. Outra linha em que a empresa avança é a biotecnologia. “Vamos investir de R$ 2 milhões a R$ 4 milhões apenas para montar laboratórios e fazer o básico. O custo é muito alto, mas talvez consigamos no futuro um produto que possamos fabricar aqui com baixo investimento”, diz. A empresa também busca tecnologia e a elaboração de novos produtos em parcerias com os chamados Núcleos de Inovação Tecnológica (NITs), compostos principalmente por universidades e institutos de pesquisa. “Temos interesses por projetos que estão na universidade e podem se transformar em tecnologia na área farmacêutica”, diz Donaduzzi. “Para isso, temos um grupo de NITs, também formado por funcionários, que está aumentando os contatos com a academia e institutos de pesquisa não apenas do Paraná mas de todo o país, além de termos projetos com a Finep [Financiadora de Estudos e Projetos] e BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social].” Donaduzzi criou a empresa, em 1990, com a esposa Carmem Prati, depois que voltaram da França, onde fizeram mestrado e doutorado na área de biotecnologia. Juntaram-se ao casal, o cunhado Celso Prati e o irmão Arno Donaduzzi. “Começamos fazendo produtos simples em 1994, como dipirona e água oxigenada. Depois, em 1999, nós voltamos aos genéricos e agora queremos ter inovações incrementais e produtos com maior valor agregado.” E a primeira medida foi recrutar talentos na academia que possam trazer novos conhecimentos para o sistema produtivo da empresa.


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PESQUISA FAPESP 218 | 113


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Ciência em tempo real O conteúdo de Pesquisa FAPESP não termina aqui. Na edição on-line você encontrará vídeos, podcasts e mais notícias. Afinal, o conhecimento não espera o começo do mês para avançar.

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114 | abril DE 2014


léo ramos

PESQUISA FAPESP 217 | 115


Conferência Brasileira de Ciência e Tecnologia em Bioenergia De 20 a 24 de outubro de 2014

INSCRIÇÕES ABERTAS Avanços científicos e tecnológicos em bioenergia Potencial de produção global de bioenergia Políticas para a expansão sustentável de bioenergia no mundo Impactos da bioenergia Sistemas integrados de biorrefinarias e compostos químicos derivados da biomassa

Palestras plenárias Sessões paralelas Pôsteres Mesas-redondas Tutoriais Visitas ExpoBBEST

O BBEST, o mais importante evento de bioenergia do país, fará sua segunda edição em outubro de 2014, dando continuidade ao sucesso do BBEST 2011 O encontro terá pesquisadores, estudantes, profissionais da indústria e do governo 2nd Brazilian Bioenergy Science and Technology Conference Campos do Jordão, São Paulo, Brasil

Prêmios para os

Oportunidades para patrocinadores

melhores trabalhos

Visite: www.bbest.org.br

Envie um resumo para apresentação oral ou pôster Prazos para submissão de resumos: Apresentação oral: 25 de abril de 2014 Pôster: 20 de julho de 2014


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