Pesquisa FAPESP julho de 2017
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Físicos simulam efeitos de buracos negros em uma banheira
julho de 2017 | Ano 18, n. 257
Novos parâmetros ajudam a monitorar peso e altura de crianças e adolescentes com Down Programa da FAPESP impulsionou mais de 1.100 empresas em 20 anos Pesquisa em ambiente empresarial exige adaptação ao mercado
solucões
Origem do sobrenome pode ser indicador de escolaridade e salário
microscópicas
Ano 18 n.257
DNA sob medida, inserido em microrganismos, e vírus especializados em destruir bactérias despontam no combate a doenças
R$ 9,50
n.257
> Balões levam internet a lugares remotos
O que a ciência brasileira explora você encontra aqui
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fotolab
A beleza do conhecimento
Sua pesquisa rende imagens bonitas? Mande para imagempesquisa@fapesp.br Seu trabalho poderá ser publicado na revista.
No aconchego do lar De sentinela na entrada de suas tocas, que lhes servem de moradia por anos, as aranhas do gênero Stenoterommata, parentes das caranguejeiras, não são restritivas quanto às presas. Até sapos são capturados: basta que não sejam maiores do que elas. O biólogo Rafael Indicatti percorreu o estado de Santa Catarina em busca dessas aranhas e em abril publicou a descrição de seis espécies na revista Zootaxa. Stenoterommata gugai (à esq.) é de Florianópolis e homenageia o tenista Gustavo Kuerten, o Guga. À porta da toca internamente revestida de seda, S. pavesii (à dir.) de certa maneira faz menção a quem lhe empresta o nome: Mário Pavesi, que abriu as portas de sua pousada, tarde da noite, ao biólogo em viagem de coleta.
Imagens enviadas por Rafael Indicatti, pesquisador do Instituto Butantan
PESQUISA FAPESP 257 | 3
julho 257
POLÍTICA DE C&T 32 Startups Em 20 anos, o programa Pipe, da FAPESP, apoiou mais de 1.100 pequenas e médias empresas 38 Entrevista Soumitra Dutta, da Universidade Cornell, lança nova edição de ranking global de inovação 42 Bibliometria Novas estratégias desfazem ambiguidades em referências bibliográficas 45 Saúde pública Estudo mapeia a evolução de gastos federais com compra de medicamentos CIÊNCIA CAPA Microrganismos geneticamente modificados e vírus que atacam bactérias ajudam a combater doenças p. 18
48 Epidemiologia Avaliação propõe novos parâmetros para controlar peso e altura de pessoas com Down 53 Imunologia Infecção por dengue pode amenizar quadro de zika
Fotos da capa Soonhee Moon / Universidade Columbia
56 Entrevista Robert Tesh, especialista em arbovírus, comenta atuação do Brasil na epidemia de zika 60 Medicina Quanto tempo o vírus HPV demora para causar verrugas genitais e lesões pré-tumorais 66 Física Tanque com água reproduz fenômenos que ocorrem na vizinhança de buracos negros
HUMANIDADES 80 Urbanismo Cidades da Região Metropolitana de Campinas se unem para resolver problemas em comum 83 Economia Donos de sobrenomes não ibéricos têm maior salário do que os demais brasileiros 86 Teoria literária Alcance social da obra de Antonio Candido foi além da universidade
TECNOLOGIA 68 Engenharia florestal Visão artificial revela a qualidade da madeira e a espécie da árvore 76 Pesquisa empresarial Saint-Gobain cria centro de P&D focado em ciência dos materiais e física das construções ENTREVISTA Maria Ligia Prado Historiadora fala sobre identidades e interpretações acerca do desenvolvimento da América Latina p. 26
p. 12
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3 Fotolab 6 Comentários 7 Carta da editora 8 Boas práticas Como universidades brasileiras previnem e enfrentam o plágio 11 Dados Patentes de invenção Geologia Especialistas identificam 142 lugares de importância geológica no estado de São Paulo p. 62
Telecomunicações Balões ajudam a levar internet a pontos remotos do planeta p. 72
A forma de medir o quilograma vai mudar bit.ly/vQuilo
12 Notas 90 Memória Oceanografia começou a ser consolidada no Brasil na década de 1940 94 Resenha Graciliano Ramos e a Cultura Política: Mediação editorial e construção de sentido, de Thiago Mio Salla. Por Rodrigo Jorge Ribeiro Neves
Os desafios de diagnosticar e tratar disfunções genéticas sexuais bit.ly/vMeninoa
95 Carreiras Transição de pesquisadores da academia para o mercado exige adaptação
rádio bit.ly/PesquisaBr O resgate da trajetória do cinema de horror no Brasil bit.ly/PBrHorror
p. 42
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Ciência sem Fronteiras
Pena que para várias pessoas o programa Ciência sem Fronteiras foi quase turismo no exterior (“Experiência encerrada”, edição 256). E quem fez disciplinas no exterior muitas vezes não conseguia aproveitá-las aqui. Renan Birck Pinheiro
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6 | julho DE 2017
Um programa desastroso. Mal planejado, com enorme desperdício de recursos que poderiam ter sido mais bem investidos trazendo retorno ao país. Carlos Riede
O que tem de ser questionado é: quais tecnologias e avanços científicos esse programa trouxe para o nosso país? Thiago Figueredo
Mais de R$ 13 bilhões gastos... O valor é um tanto exagerado para um país que possui universidades sucateadas e laboratórios e obras inacabadas. Querem internacionalizar a ciência brasileira, mas mal nos dão condições para ensinar ou desenvolver pesquisas por aqui. Ainda bem que acabou. E acabou tarde. Giovani Guarienti Pozzebon
Readaptá-lo. Torná-lo mais enxuto. A iniciativa é excelente. É pensar à frente e não no passado. Aloir Antonio Merlo
Árvores
Até que enfim uma maneira inteligente de gerenciar as árvores da cidade (“Controle da paisagem”, edição 256). Alexandre Tokitaka
Inventário de espécies
Na Cidade Universitária, na capital paulista, já avistei araras, araçaris, araponga (raríssimo ver uma), pica-paus amarelos, sabiás (têm muitos), gralhas, papagaios, periquitos, colibris e beija-flores de várias espécies (sobre “Na selva de pedra”, edição 255). É uma pena que as pessoas passem por ali sempre correndo. Joviniano Netto
Vídeos
Maravilhoso o vídeo “Famelab”. Deveriam existir mais iniciativas e incentivos para divulgação da ciência no Brasil. Alessandra Alves de Souza Della Coletta
Mais uma função importante da endocrinologia (vídeo “Menino ou menina”), com uma excelente elucidação sobre os distúrbios do desenvolvimento sexual fornecida pela professora Berenice Bilharinho de Mendonça. Olivia Bomfim
Sinto falta de mais vídeos no canal de Pesquisa FAPESP. Mateus Menezes
A reportagem é tendenciosa. Só o fato de chamar “investimento em educação” de “gasto” me parece enviesado. Luciano Skiter Delmondes
Sua opinião é bem-vinda. As mensagens poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.
A mais lida de junho no Facebook humanidades
Bororo na tela
bit.ly/Bororotela
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acervo museu do índio
Reportagem on-line
fundação de amparo à pesquisa do estado de são Paulo
carta da editora
José Goldemberg Presidente Eduardo Moacyr Krieger vice-Presidente Conselho Superior Carmino Antonio de Souza, Eduardo Moacyr Krieger, fernando ferreira costa, João Fernando Gomes de Oliveira, joão grandino rodas, José Goldemberg, Marilza Vieira Cunha Rudge, José de Souza Martins, julio cezar durigan, Pedro Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski, Suely Vilela Sampaio
De vilão a herói Alexandra Ozorio de Almeida |
diretora de redação
Conselho Técnico-Administrativo Carlos américo pacheco Diretor-presidente Carlos Henrique de Brito Cruz Diretor Científico fernando menezes de almeida Diretor administrativo
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Conselho editorial Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Maria Hermínia Tavares de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani, Mônica Teixeira comitê científico Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), Anamaria Aranha Camargo, Ana Maria Fonseca Almeida, Carlos Américo Pacheco, Carlos Eduardo Negrão, Fabio Kon, Francisco Antônio Bezerra Coutinho, Francisco Rafael Martins Laurindo, José Goldemberg, José Roberto de França Arruda, José Roberto Postali Parra, Lucio Angnes, Luiz Nunes de Oliveira, Marie-Anne Van Sluys, Maria Julia Manso Alves, Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner Caradori do Amaral, Walter Colli Coordenador científico Luiz Henrique Lopes dos Santos diretora de redação Alexandra Ozorio de Almeida editor-chefe Neldson Marcolin Editores Fabrício Marques (Política de C&T), Marcos de Oliveira (Tecnologia), Ricardo Zorzetto (Ciência), Carlos Fioravanti e Marcos Pivetta (Editores especiais), Bruno de Pierro (Editor-assistente) revisão Alexandre Oliveira e Margô Negro arte Mayumi Okuyama (Editora), Ana Paula Campos (Editora de infografia), Júlia Cherem Rodrigues e Maria Cecilia Felli (Assistentes) fotógrafos Eduardo Cesar e Léo Ramos Chaves Mídias eletrônicas Fabrício Marques (Coordenador) Internet Pesquisa FAPESP on-line Maria Guimarães (Editora) Rodrigo de Oliveira Andrade (Repórter) Jayne Oliveira (Redatora) Renata Oliveira do Prado (Mídias sociais) banco de imagens Valter Rodrigues Colaboradores André Ducci, Daniel Kondo, Diego Freire, Evanildo da Silveira, Fabio Otubo, Haroldo Ceravolo Sereza, Igor Zolnerkevic, Rodrigo Jorge Ribeiro Neves, Reinaldo José Lopes, Renato Pedrosa, Walter Rego, Yuri Vasconcelos É proibida a reprodução total ou parcial de textos, fotos, ilustrações e infográficos sem prévia autorização Tiragem 25.200 exemplares IMPRESSão Plural Indústria Gráfica distribuição Dinap GESTÃO ADMINISTRATIVA FUSP – FUNDAÇÃO DE APOIO À UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, 10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, Alto da Lapa, São Paulo-SP
Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia Governo do Estado de São Paulo
V
írus é um substantivo que normalmente anda mal acompanhado: vírus da Aids, da zika, da den gue, da gripe. Talvez por isso, quando larga o trabalho de vilão e se torna (candidato a) herói, essa partícula microscópica assume outro nome. Bacteriófagos, ou apenas fagos, são vírus capazes de identificar e destruir bactérias específicas, e por isso podem representar uma promessa de tratamento alternativo ao uso de antibióticos. Para encontrá-los e identificá-los, um trabalho de ciência básica que pode estar na origem de aplicações biotecnológicas inovadoras, é preciso ir onde estão as bactérias – por exemplo, nas composteiras do Zoológico de São Paulo. A curiosa história compõe a reportagem de capa desta edição (página 18), que trata também da abordagem chamada de biologia sintética, que envolve a programação de DNA como se fosse um código de computador. Enquanto a biologia sintética se baseia no que há de mais avançado na ciência, o uso de fagos representa o aproveitamento de alguns dos mecanismos evolutivos mais primordiais (e eficientes, é verdade) que existem. Voltando ao seu papel mais conhecido, os vírus HPV (página 60) e um grupo bastante agressivo, os arbovírus – entre os quais o zika –, também estão presentes nesta edição. Uma potencial boa notícia vem de recentes estudos publicados sobre a febre zika, epidemia sistematicamente coberta por esta revista desde sua eclosão, em 2015 (página 53). A suspeita de que pessoas e macacos já contaminados pela dengue apresentariam um quadro mais severo de zika não se confirmou, sugerindo-se exatamente o contrário: ao se infectar com zika após ter tido dengue, o paciente pode apresentar um quadro mais leve da doença.
Nesse caso, a infecção anterior pelo vírus da dengue teria um efeito amenizador contra o vírus da zika. O médico norte-americano Robert Tesh estuda a diversidade mundial dos arbovírus – aqueles que, como o da zika e o da dengue, são transmitidos por mosquitos e carrapatos, entre outros artrópodes – há cinco décadas, várias das quais no comando do Centro de Referência Mundial para Vírus e Arbovírus Emergentes da Organização Mundial da Saúde (OMS). No Brasil, em entrevista à revista (página 56), Tesh se mostrou cético quanto às possibilidades de erradicação do mosquito Aedes Aegypti e dos vírus patogênicos que ele transmite. A versatilidade do transmissor e dos vírus seria par para qualquer tentativa de interferência humana. Durante sua carreira, o virologista percorreu inúmeras vezes o Brasil e seus vizinhos para coletar amostras de vírus, contribuindo para que o maior número dos arbovírus conhecidos hoje seja proveniente da América do Sul. A América Latina é tema da entrevista com a historiadora Maria Ligia Prado (página 26), que também há quase cinco décadas estuda a história da região e as interpretações sobre o seu desenvolvimento. Para a pesquisadora, a identidade da América Latina, questão que acompanha a região desde a independência, é um tema delicado. Trata-se de uma construção intelectual, mas que é carregada de emoção e tem impacto na vida e nas escolhas das pessoas, o que não deve ser ignorado. A construção de uma identidade, seja qual for, facilmente deixa de lado as diferenças e os conflitos, permitindo que o outro passe a ser visto como inimigo. O antídoto, para Maria Ligia, é o espírito crítico. PESQUISA FAPESP 257 | 7
Boas práticas
Universidades brasileiras contra o plágio Campanhas, softwares e treinamento são utilizados por grandes instituições de ensino superior no país para coibir a cópia de trabalhos acadêmicos
Algumas das maiores universidades brasileiras se mobilizam para coibir o plágio em trabalhos acadêmicos de estudantes e professores. Em março, a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) lançou uma campanha com peças publicitárias que exibem frases como “troquei seis por meia dúzia”, “aproveitei só um pedacinho do texto” e “só usei uma vez essa imagem”. “São expressões frequentemente utilizadas pelos alunos para justificar a prática. Adotamos uma linguagem simples e direta para mostrar aos estudantes que plágio é crime”, diz José Ricardo Bergmann, vice-reitor da PUC-Rio. Ele explica que o esforço da instituição não se restringirá aos cartazes. “Até o final do ano, serão realizados seminários e debates para esclarecer dúvidas a partir de casos concretos.” Para Bergmann, programas educativos devem ser o foco da estratégia para promover 8 | julho DE 2017
a integridade científica, mas diz que é preciso se preparar para agir diante de problemas concretos. Ele ainda faz um alerta: “O plágio pode ser fruto de má-fé, mas muitas vezes ocorre por falta de preparo do aluno, que não sabe como fazer citações e referências nem compreende bem o conceito de autoria.” Na Universidade de São Paulo (USP), por exemplo, um estudante de mestrado da área de biologia também teve a dissertação cancelada, pois havia utilizado dados levantados por um colega de laboratório sem dar os créditos. “O aluno justificou que não sabia que estava cometendo plágio”, relata Carlos Gilberto Carlotti Junior, pró-reitor de Pós-graduação da USP. A universidade concede mais de 7 mil títulos de mestrado e doutorado por ano e, até recentemente, recorria a uma série de ferramentas e sites gratuitos para monitorar o plágio entre seus alunos.
No início do ano, a USP reforçou essa estratégia adquirindo o software Turnitin, criado em 1998 na Universidade da Califórnia, Berkeley, nos Estados Unidos. Utilizado em cerca de 15 mil instituições de ensino de 150 países, o programa gera um relatório que aponta o percentual de similaridade de determinado texto comparando-o com uma ampla base de dados composta por 62 bilhões de páginas da internet, 697 milhões de trabalhos produzidos por alunos e 175 milhões de monografias, livros e artigos científicos. Além de serviços pagos como o Turnitin e seu principal concorrente, o CheckForPlagiarism. net, existem softwares gratuitos, como o Plagiarism Detector e o Duplichecker. O Turnitin e o CheckForPlagiarism.net fazem varreduras não só em documentos disponíveis na internet, mas também em bases de dados próprias. Na USP, a ferramenta Turnitin é gerenciada pelo Departamento Técnico do Sistema Integrado de Bibliotecas (SIBi), que oferece o serviço aos professores credenciados na pós-graduação. “O uso do software busca ajudar o professor e complementar seus esforços para assegurar a qualidade de um trabalho acadêmico. É papel do orientador acompanhar o projeto do aluno e identificar falhas”, explica Carlotti.
ilustração walter rego
Substituição por sinônimos
O programa é eficiente, mas não resolve sozinho o problema. Carlos Frederico de Oliveira Graeff, pró-reitor de Pesquisa da Universidade Estadual Paulista (Unesp), instituição que também utiliza o software, adverte que o Turnitin tem limitações. “Por exemplo, trechos copiados de outro colega ou de livros que não estejam disponíveis na internet não podem ser detectados”, conta. Segundo ele, a intenção também é usar o Turnitin para embasar discussões em sala de aula. “Muitos alunos pensam que o plágio se limita a copiar um trecho de um texto sem dar créditos ao autor. Mas copiar um texto substituindo algumas palavras pelo sinônimo
também é plágio, como o software é capaz de apontar.” Em 2015, a Turnitin divulgou uma pesquisa que realizou com 1.437 estudantes de ensino médio, graduação e pós-graduação de todos os continentes. Identificou-se que metade dos trabalhos acadêmicos verificados pelo software tinha mais de 50% de conteúdo não original. Recentemente, a Unesp fez um balanço do uso do Turnitin na instituição. Das 3 mil teses e dissertações defendidas em 2014, 23% continham algum trecho copiado sem dar crédito à fonte original. Esse percentual caiu para 13% em 2016. “Ao saberem que os trabalhos são submetidos a uma verificação, os alunos provavelmente estão pensando duas vezes antes de copiar”, supõe Graeff. Há consenso entre especialistas e gestores acadêmicos de que
o problema tem origem no início da formação do aluno, sobretudo a partir do ensino médio. Resultados parciais de um estudo coordenado por Sonia Vasconcelos, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), publicado este ano nos Anais da Academia Brasileira de Ciências, incluiu uma pesquisa com 42 professores do ensino médio de biologia, química e física de um colégio federal no Rio de Janeiro. Os resultados mostram que, para 41% dos professores, os alunos não cometem plágio quando citam a fonte na bibliografia, mas copiam parte do texto sem fazer uso de aspas ou indicar que o trecho foi retirado de outra obra. Isso sugere, segundo o estudo, que boa parte dos professores tem dúvidas sobre o conceito de plágio. Observou-se ainda que 50% dos docentes entrevistados disseram que nunca ou raramente receberam orientações sobre plágio enquanto cursavam a graduação. A UFRJ é pioneira na criação de programas de integridade científica no Brasil (ver Pesquisa FAPESP nº 233) e em 2014 disponibilizou a utilização do Turnitin para detectar plágio em trabalhos de alunos. O software deixou de ser oferecido aos docentes devido a cortes no orçamento da instituição. “Com o avanço das mídias digitais nas últimas décadas, o aluno que acaba de entrar na universidade infelizmente está bastante habituado a consultar o Google para fazer trabalhos escolares”, avalia Esper Cavalheiro, pró-reitor de Pós-graduação e Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “É preciso enfrentar esse problema desde cedo na escola, caso contrário a prática continuará causando problemas na graduação.” A universidade criou recentemente uma Comissão de Integridade Acadêmica, que, entre outras atividades, desenvolve programas educativos para combater o plágio. Um curso on-line para alunos de graduação e pós-graduação deverá ser oferecido em breve. “A ideia é que todo aluno que ingressar na Unifesp, especialmente aquele que acabou de deixar o ensino médio, seja obrigado a passar pelo treinamento”, informa Cavalheiro. PESQUISA FAPESP 257 | 9
Um novo vocabulário para retratação
10 | julho DE 2017
comprometa sua conclusão. Em 2015, a revista JAMA Psychiatry apresentou o conceito de “retratação e substituição”, para ensaios clínicos que apresentam erros generalizados, mas, uma vez corrigidos, ainda são relevantes. Em ambas as situações, o artigo não é removido da revista, mas ganha uma versão corrigida. Há propostas mais abrangentes. Virginia Barbour, professora da Universidade de Tecnologia de Queensland, na Austrália, sugeriu em um artigo publicado em março no repositório bioRxiv a substituição do termo “retratação” por “alteração” – que seria acompanhado por uma das três seguintes categorias: não substancial, para erros menores, como de digitação; substancial, para o caso de haver erros em dados ou figuras, mas que não comprometem o trabalho como um todo; e completa, quando o artigo todo não é considerado confiável e precisa ser cancelado, corrigido e publicado novamente.
ilustração Júlia cherem rodrigues
Um dos temas discutidos na 5ª Conferência Mundial sobre Integridade Científica, realizada entre os dias 28 e 31 de maio em Amsterdã, na Holanda, foi a necessidade de criar alternativas ao conceito de retratação, que é o cancelamento de artigos científicos após a sua publicação devido à descoberta de fraudes ou erros. O principal argumento a favor da mudança é que, hoje, erros cometidos de boa-fé acabam confundidos com casos de fraude e são estigmatizados, merecendo, por isso, uma nomenclatura à parte. Um caso ocorrido em 2012 foi lembrado no evento. O matemático Richard Mann, da Universidade de Leeds, no Reino Unido, foi informado de que um artigo publicado por ele na revista PLOS Computational Biology, sobre o movimento coletivo de camarões-de-vidro, tinha falhas graves. Por um erro de codificação, Mann incluiu apenas um centésimo de seus dados na modelagem computacional. Durante o período em que esteve sob investigação, ele temeu que a retratação do paper pudesse ser associada à má conduta científica. “Fiquei preocupado e envergonhado com a repercussão pública”, disse durante a conferência. Diferentemente de Mann, que teve a oportunidade de corrigir e republicar o trabalho, muitos outros pesquisadores que cometem erros não intencionais têm a carreira comprometida após precisarem retratar um artigo. “É preciso mudar o termo”, disse à revista Science Nicholas Steneck, diretor do programa de Ética e Integridade na Pesquisa da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos. Já existem experiências nesse sentido. O Embo Journal adotou o termo “retratação parcial” para casos em que um erro menor identificado no artigo não
Pena de morte contra fraudes O governo da China anunciou uma política radical para coibir fraudes em projetos financiados pela agência federal que fiscaliza e regulamenta alimentos e medicamentos no país, a CFDA. A partir de agora, pesquisadores que falsificarem dados de testes clínicos de remédios e tratamentos podem ser condenados a 10 anos de prisão ou, em casos extremos, até mesmo à pena de morte. A medida reflete a preocupação do governo ante o aumento dos casos de má conduta científica registrado nos últimos anos.
Um estudo publicado em abril na revista Science and Engineering Ethics sustenta que 40% dos artigos em ciências biomédicas publicados na China entre 2010 e 2015 apresentam evidências de má conduta. A legislação mais severa foi aprovada por um comitê de revisão da Suprema Corte chinesa, que criou uma nova interpretação do Código Penal do país. A pena de morte poderá ser aplicada se a falsificação de dados em um estudo clínico causar danos à saúde da população.
Dados
Patentes de invenção
17.398
Depósitos por natureza jurídica
5,8%
Empresas brasileiras1 apresentam média inferior às internacionais e caem no ranking nacional enquanto
europa
as universidades expandem sua participação. 85.421
Média anual 2013-2016
Empresas e microempreendedores individuais de 38 países responderam por 94% dos depósitos de patentes. Universidades, institutos de pesquisa e afins foram responsáveis por apenas 5,8%.
28,3%
n Grandes empresas n PME/MEI n Universidades2 402 15,8%
244 26,8% 132
535
1.064
1.077
41,8%
Total
58,7%
42,4%
301.405
198.586 65,9%
14,5%
SÃo Paulo
Brasil
Total
Total
911
2.543
Presença maior da academia A participação de universidades brasileiras no
Entre 2000 e 20053, havia apenas quatro representantes das
depósito de patentes vem se ampliando. Passou
universidades entre os 15 maiores depositantes de patentes
de 7% em 2000 (excluindo-se pessoas físicas)
no Brasil. Na média anual, de 2013 a 2016, as instituições de
para mais de 30%, de 2012 em diante.
ensino e pesquisa ocupavam 11 entre as 15 posições principais.
depósitos de patentes de universidades brasil, 2000-2012, em %
patentes de invenção depositadas no brasil inpi, média anual 2013-2016
2012
Whirlpool USP Unicamp UFMG UFPR Petrobras CPqD UFC Unesp UFRGS UFPel UFBA UFRN Vale UFPE
2011 2010 2009 2008 2007 2006 2005 2004 2003 2002 2001 2000 0
5
10
15
20
25
30
35 %
80 65 58 57 51 46 34 33 29 29 27 23 22 20 20
n Empresas n Universidades n Instituto de pesquisa privado
1 Empresas brasileiras incluem as grandes empresas, as pequenas e médias (PME) e microempreendedores individuais (MEI). Não foram contabilizadas patentes depositadas por pessoas físicas 2 Universidades, institutos de pesquisa e instituições sem fins lucrativos 3 Indicadores de CT&I FAPESP 2010, Tabela 5.11. www.fapesp.br/indicadores/2010/volume1/cap5.pdf Fontes: Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI), European Patent Office
PESQUISA FAPESP 257 | 11
Notas bisão americano
1
gambá de leadbeater
2
n Áreas protegidas n Áreas prioritárias para conservação
de mamíferos não protegidas n Áreas prioritárias para conservação Tamanduá-bandeira
3
Mandril
Estudo indica que 4,6% do globo são áreas prioritárias para conservação de mamíferos Um novo mapa global, confeccionado a partir do cruza-
pelos animais, como mamíferos noturnos e diurnos ou
mento das prioridades ditadas por três critérios distintos
com distintas dietas. “Normalmente, esse tipo de mapa
de biodiversidade, identificou as regiões de grande im-
se baseia apenas na riqueza taxonômica, privilegiando
portância para a conservação de 4.547 espécies de ma-
áreas que abrigam muitas espécies”, comenta a bióloga
míferos terrestres. Elas abrangem 4,6% da superfície
Fernanda Brum, primeira autora do estudo, ao lado de
terrestre do planeta, cerca de 6,8 milhões de quilômetros
pesquisadores do Brasil, Estados Unidos e Europa, que
quadrados (PNAS, 3 de julho). Pouco mais de um quinto
hoje faz estágio de pós-doutorado na Universidade Fe-
dessa área se encontra hoje legalmente protegida. Os
deral de Goiás (UFG). “Mas é importante também levar
três critérios adotados foram taxonomia, filogenia e papel
em consideração a diversidade de linhagens e animais
funcional das espécies. O primeiro parâmetro engloba
com características distintas na hora de escolher as áreas
endemismos, distribuição e vulnerabilidade das espécies.
de conservação.” Primeiro, os pesquisadores fizeram três
Sob esse ângulo, animais mais raros merecem maior
mapas em separado. Cada um destaca 17% da superfície
atenção. O segundo critério privilegia a manutenção de
do globo como área prioritária para conservação de ma-
distintas linguagens evolutivas de mamíferos (marsupiais,
míferos segundo um critério. O mapa final traz as áreas
monotremados, animais com placenta). O terceiro enfo-
comuns que aparecem como fundamentais para a pre-
ca os hábitos ou os papéis ecológicos desempenhados
servação dos mamíferos de acordo com os três critérios.
12 | julho DE 2017
4
fotos 1 Jack Dykinga 2 pengo 3 Dave Pape 4 Malene Thyssen 5 Miguel Boyayan 6 Fernanda Birolo / Embrapa
de mamíferos já protegidas
5
Os dois estados da água líquida A água é sabidamente uma substância
A água líquida teria duas densidades, uma alta e outra baixa
Um maracujá para cultivo na Caatinga
peculiar, com mais de 70 propriedades e comportamentos anômalos, que a tornam distinta da maioria dos líquidos. A molécula de H 2O é, por exemplo, a única a existir na Terra, de forma natural e simul-
Em junho, a Embrapa
-mato tem um tempo de
tânea, nos três estados ou fases da maté-
lançou em Petrolina (PE)
vida produtiva maior e
ria (líquido, sólido e gasoso). Em seu esta-
uma variedade de
resiste bem à fusariose,
do mais denso, como gelo, esse composto
maracujá para plantio
doença fúngica que
flutua na água líquida, enquanto a maioria
comercial, a BRS Sertão
ataca frequentemente os
dos sólidos afunda. Um novo estudo re-
Forte, adaptada para
plantios comerciais do
força o caráter único dessa abundante
áreas de clima semiárido,
fruto. “A BRS Sertão
molécula. Segundo o trabalho, a água lí-
de pouca chuva. O novo
Forte pode ser cultivada
quida pode se apresentar como duas es-
cultivar nasceu de
com baixo custo
truturas distintas do ponto de vista mole-
pesquisas que levaram
tecnológico”, explica o
cular: uma com alta densidade e outra
ao melhoramento
engenheiro-agrônomo
com baixa (PNAS, 26 de junho). Um grupo
genético de uma espécie
Francisco Pinheiro de
de pesquisadores da Europa e dos Estados
silvestre da planta,
Araújo, da Embrapa
Unidos chegou a essa conclusão depois
conhecida como
Semiárido, responsável
de examinar a água super-resfriada – en-
maracujá-do-mato ou da
pelo desenvolvimento do
contrada na maioria das nuvens e que
Caatinga (Passiflora
cultivar, no comunicado
pode se converter em gelo quase imedia-
cincinnata), que ocorre
de apresentação da
tamente – por meio de combinação de
naturalmente em áreas
variedade. “Ela é
dois métodos de análise por raios X. Os
secas do Nordeste, mas
bastante apropriada
tem baixa produtividade.
para a agricultura
A BRS Sertão Forte
familiar, principalmente
mantém a capacidade de
para produção orgânica.”
sobreviver em ambientes
testes revelaram as estruturas e os moviA variedade BRS Sertão Forte é fruto de melhoramento genético do maracujá-do-mato
mentos das duas formas moleculares da água líquida. Indicaram também que uma forma tem a capacidade de se converter em outra e a água pode existir nos dois
com pouca água, uma
estados a baixas temperaturas, quando a
particularidade do
cristalização do gelo é lenta. “Em resumo,
maracujá-do-mato,
a água não é um líquido complicado, mas
porém seus frutos e
dois líquidos simples com uma relação
rendimento por área
complicada”, compara o físico-químico
plantada são maiores.
Lars G. M. Pettersson, da Universidade de
Em relação ao maracujá
Estocolmo (Suécia), um dos autores do
azedo (Passiflora edulis),
trabalho, no material de divulgação do
a espécie mais
estudo. Os resultados do estudo melhoram
comumente plantada no
a compreensão sobre o comportamento
país, ela também
da água em diferentes temperaturas e
apresenta vantagens. A
pressões e podem ser úteis para o desenvolvimento de novas técnicas para puri-
variedade desenvolvida a partir do maracujá-do-
6
ficar e dessalinizar a água do mar. PESQUISA FAPESP 257 | 13
Máscara de cobre de 3 mil anos é achada na Argentina
Um novo jeito de controlar o spin do elétron Um grupo internacional
do spin dos elétrons em
de físicos experimentais e
movimento. “Os campos
Uma máscara retangular de cobre de 3 mil anos, com
teóricos apresentou uma
podem variar, mas estão
formato que lembra o de um rosto humano, encontrada
nova técnica que seria
em sintonia, o que trava o
em 2015 no noroeste da Argentina, pode levar à revisão
capaz de controlar uma
spin dos elétrons por
da história da metalurgia nas Américas. Achada ao lado
propriedade fundamental
algum tempo”, explica o
de ossos de 14 corpos humanos em uma cova nos arredo-
dos elétrons – a
físico teórico José Carlos
res do sítio arqueológico de Bordo Marcial, na província
orientação do seu spin, se
Egues, do Instituto de
de Catamarca, porção sul dos Andes, a peça antropomór-
apontado para cima ou
Física de São Carlos
fica é o objeto de cobre mais antigo do continente a ser
para baixo – enquanto
(IFSC), da Universidade
intencionalmente trabalhado por mãos humanas, segun-
essas partículas se
de São Paulo (USP), um
do estudo de arqueólogas do Museu Etnográfico da Uni-
movimentam no interior
dos autores do trabalho.
versidade de Buenos Aires (Antiquity, junho 2017). A des-
de um finíssimo material
De acordo com a corrente
coberta fornece uma nova perspectiva sobre a emergência
semicondutor
aplicada, a orientação do
da metalurgia nos Andes, região a partir da qual as técni-
bidimensional, um filme
spin se mantém por mais
cas de moldar metais com o auxílio do fogo teriam se
de arseneto de gálio
ou menos tempo
espalhado pelo resto das Américas. Usualmente, a região
(Physical Review X, 1º de
enquanto o elétron
do atual Peru, ao norte do grande deserto sul-americano,
junho). Por meio da
“caminha” pelo material
é apontada como o berço da metalurgia pré-colombiana.
aplicação de distintas
semicondutor seguindo
A máscara mede 18 por 15 centímetros e sua área de
voltagens elétricas no
uma textura ondulada
origem é vizinha a reservas de cobre. Esse contexto indi-
material, os
flexível. Controlar o spin
ca que a metalurgia pode ter se desenvolvido a partir de
pesquisadores
dos elétrons, que tende a
mais de um centro irradiador nos Andes, de acordo com
manipulam o equilíbrio
mudar de posição com o
Leticia Inés Cortés e María Cristina Scattolin, autoras do
entre dois efeitos (o
movimento das
trabalho. A idade avançada do artefato sugere que ele foi
Rashba e o Dresselhaus)
partículas, é um pré-
fabricado em um período de transição, quando os antigos
que geram campos
-requisito essencial para
caçadores-coletores nômades passaram a viver em aldeias
magnéticos opostos e são
armazenar e recuperar
agropastoris, fixando-se em determinados lugares. A peça
os responsáveis por
informação em um
chamou também a atenção por sua composição química:
conservar a orientação
eventual chip quântico.
1
Frente e verso da peça de metal antropomórfica, que sugere a existência de antigo centro de metalurgia nos Andes argentinos 14 | julho DE 2017
fotos 1 Leticia Inés Cortés/María Cristina Scattolin/Antiquity 2 Bart van Overbeeke 3 CDC / Rob Weyant
foi feita totalmente de cobre.
Luz faz polímero andar como uma taturana
Do tamanho de um clipe para prender papel, um filme composto de um cristal líquido fotossensível se movimenta sempre que é exposto à luz. Guiada pela luminosidade, a fita desse polímero especial se estica e se encolhe e pode percorrer uma superfície em um passo que lembra o andar arrastado de um verme. O filme foi criado por especialistas em novos materiais da Universidade Tecnológica de Eindhoven, Holanda, e da Universidade Estadual de Kent, Estados Unidos (Nature, 29 de junho). A estrutura atinge a velocidade máxima de meio centímetro por segundo, mais ou menos o ritmo de locomoção de uma taturana. O filme polimérico apresenta esse comportamento motor porque um de seus lados se contrai imediatamente em contato com a luz, ao passo que o outro se expande. Essas reações opostas fazem a fita se distender quando iluminada, criando um movimento ondulatório. Assim que o polímero deixa de receber luz, a estrutura entra em repouso. Segundo os autores do trabalho, uma fita feita com esse material res-
Filme composto de cristal líquido fotossensível se movimenta quando iluminado
ponde de forma tão eficaz ao estímulo luminoso que poderia ser usada até para transportar objetos maiores e mais pesados do que ela mesma. Esse polímero fotossensível também poderia ser útil para desenvolver superfícies autolimpantes, que explorassem esse movimento de contração e expansão para remover a sujeira de pisos. 2
Leptospira em capivaras do oeste da Amazônia Capivaras (Hydrochoerus hydrochaeris) do
nológica foi positiva para a Leptospira, mas
oeste da Amazônia estão cronicamente
a quantidade de anticorpos era baixa, uma
infectadas por bactérias do gênero Lep-
indicação de que os animais devem estar
tospira, em especial a L. interrogans, e
cronicamente infectados pela bactéria.
podem atuar como reservatórios assinto-
Nos testes de urina, quase um terço das
máticos do patógeno em áreas rurais ou
capivaras, que são os maiores roedores
periurbanas. A conclusão é de um estudo
do mundo, acusaram a presença do pató-
conduzido por veterinários das universi-
geno. Em humanos, a leptospirose causa
dades federais do Acre (Ufac) e Fluminen-
febre alta, mal-estar e dor muscular (mial-
se (UFF), que fizeram exames de sangue
gias). Em casos graves, pode até levar à
e de urina em 41 animais capturados em
morte. Ela é transmitida ao homem por
áreas próximas a Rio Branco, capital acrea-
meio do contato com a urina contaminada
na, e encontraram altas taxas de infecção
de roedores, sobretudo durante enchentes.
pela bactéria (Acta Tropica, maio de 2017).
Nas cidades, os grandes transmissores da
Em 43,9% dos roedores, a resposta imu-
doença são os ratos urbanos.
3
Mais de 40% dos animais examinados tinham anticorpos contra bactérias que causam leptospirose PESQUISA FAPESP 257 | 15
1
Mostra internacional escolhe vídeo de Pesquisa FAPESP O vídeo Sol de laboratório, produzido pela equipe de Pesquisa FAPESP, foi selecionado para participar da mostra Labocine, plataforma de vídeos de divulgação científica com curadoria do festival Imagine Science, de Nova York. Tal como uma revista, todos os meses a plataforma publica vídeos sobre assuntos interligados por um mesmo tema. A edição de
A russa Alexandra Elbakyan é fundadora do Sci-Hub, um dos sites condenados pela Justiça norte-americana
Corte dos EUA multa em US$ 15 milhões sites que pirateiam artigos
julho aborda os múltiplos papeis do Sol. O vídeo Sol de laboratório, baseado em reportagem do mesmo nome (ver Pesquisa FAPESP nº 229), mostra como o uso de água,
No dia 21 de junho, uma corte distrital de Nova York
detergente para lavar
deu ganho de causa à Elsevier no processo que a
louça e uma ponteira a
editora científica holandesa move contra sites que
laser permitiu o
disponibilizam ilegalmente artigos científicos de aces-
desenvolvimento de um
so pago e fechado. A decisão judicial estipula que
modelo experimental e
sites como Sci-Hub e Library of Genesis (LibGen)
forneceu uma nova
devem pagar à editora uma indenização de US$ 15
explicação para o
milhões por desrespeito aos direitos autorais asso-
aparecimento de efeitos
ciados aos trabalhos científicos disponibilizados de
luminosos em torno do
forma pirata. Nenhum representante dos sites com-
Sol, um fenômeno
pareceu à sessão da corte norte-americana. O vere-
tecnicamente denominado
dito pode ser um marco simbólico no setor editorial e servir de ameaça a quem difunde literatura científica sem considerar as leis que regem direitos autorais. Mas, do ponto de vista prático, é pouco provável que a decisão alcance os responsáveis por esses sites,
O filme Sol de laboratório foi selecionado para participar da mostra audiovisual Labocine
parélio. O vídeo ficará disponível no site do Labocine até 31 de julho: bit.ly/2qEfOL4.
como a programadora russa Alexandra Elbakyan, fundadora do Sci-Hub. Essas páginas eletrônicas, que constantemente trocam de endereço na internet, estão armazenadas em servidores fora dos Estados Unidos e seus criadores costumam evitar os países onde são alvo de ações legais. “A decisão é uma clara indicação da crescente desconexão entre os interesses comerciais e o desejo dos acadêmicos a favor da circulação do conhecimento”, comentou a historiadora Aileen Fyfe, da Universidade de St. Andrews (Escócia), que estuda as relações entre as editoras científicas e a academia, ao periódico Times Higher Education. 16 | julho DE 2017
2
3
fotos 1 Krassotkin / Wikimedia Commons 2 Reprodução 3 Jeremy T. Kerr 4 Ian Grettenberger / Penn State
Pesticida pode afetar abelhas Dois estudos de campo encontraram evidências
ram os efeitos do composto químico possivel-
de que uma classe de inseticida derivado da
mente porque suas colônias se encontravam
nicotina, os neonicotinoides, muito usada para
mais saudáveis do que a dos outros dois países.
controlar pragas na lavoura, pode produzir efei-
Ele também não descarta a possibilidade de que
tos negativos em algumas populações de abelhas
as flores silvestres que crescem perto dos cam-
selvagens e domesticadas (Science, 30 de junho).
pos cultivados na Alemanha possam ter forne-
Um dos trabalhos se estendeu por dois anos em
cido recursos extras para as abelhas, tornando-
33 lugares de três países da Europa. Na Hungria,
-as mais fortes. Outro estudo, feito de forma
o estudo constatou uma redução média de 24%
independente no Canadá, constatou que colônias
no número de abelhas-operárias em colônias
de abelhas melíferas expostas por até quatro
situadas nos arredores de campos de canola
meses a neonicotinoides em lavouras de milho
tratados com clotianidina, um pesticida dessa
tinham menos operárias e podiam ficar até sem
classe. No entorno de lavouras tratadas com
rainhas. As empresas fabricantes dos inseticidas
outro neonicotinoide, o tiametoxam, não foram
consideram que os estudos não representam a
verificados danos às abelhas. No Reino Unido,
realidade do que ocorre no campo em razão do
os resultados foram semelhantes, embora esta-
uso desses inseticidas. Desde 2013, a União Eu-
tisticamente os dados tenham sido pouco signi-
ropeia decretou uma moratória no uso de três
ficativos. Na Alemanha, no entanto, o trabalho
neonicotinoides em áreas de plantio de canola
não encontrou danos às abelhas que pudessem
e de outras culturas que produzem flores, um
ser associados ao uso do inseticida. Para o ecó-
atrativo para as abelhas. Esses inseticidas não
logo Richard Pywell, do Centro de Ecologia e
são aspergidos no ar. Eles revestem as sementes
Hidrologia, de Wallingford (Inglaterra), que co-
vendidas pelas empresas, na forma de uma fina
ordenou o estudo, as abelhas alemãs não senti-
camada colorida.
Abelha em flor no Canadá, um dos países em que os neonicotinoides, inseticidas que revestem sementes de uso comercial (abaixo), afetaram a população desse inseto
4
PESQUISA FAPESP 257 | 17
Halos de lise: camada de bactérias sobre o meio de cultura é perfurada por ação de vírus que as destroem
capa
Aliados improváveis Vírus que atacam bactérias e microrganismos geneticamente modificados ajudam a combater doenças, a fabricar fármacos e outras substâncias químicas
Maria Guimarães
léo ramos chaves
V
írus para combater infecções humanas, bactérias contra câncer, DNA programado como um código de computador. Soluções buscadas pela ciência podem ter sido desenvolvidas pela evolução em organismos unicelulares. Uma delas é a existência de vírus capazes de identificar e destruir bactérias específicas. São os bacteriófagos, ou fagos, cada vez mais reconhecidos como possível alternativa a antibióticos e fonte de aplicações biotecnológicas inovadoras. Outra frente de pesquisa, a biologia sintética, manipula o material genético dos microrganismos e direciona bactérias e leveduras a produzirem novos tratamentos, funcionar como sensores e abrir outras grandes – embora microscópicas – possibilidades. Muitos desses projetos saem de pesquisa básica que busca compreender organismos e mecanismos sem inicialmente mirar aplicações ou produtos. É o caso do estudo microbiológico de composteiras do Parque Zoológico de São Paulo (ver Pesquisa FAPESP nº 181), cujo objetivo era catalogar a diversidade bacteriana e investigar processos de decomposição (ver reportagem na página 20). Mas “onde há muitas bactérias, há muitos fagos”, diz a bioquímica Aline Maria da Silva,
do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP), que trabalha no projeto em parceria com o bioinformata João Carlos Setubal, do mesmo instituto. “Os fagos modulam as populações de bactérias”, explica ela, que no início se interessou pelos vírus unicamente por interferirem em seu objeto de estudo. Mas seu estudante de mestrado Deyvid Amgarten, um apaixonado por fagos, foi além e começou a analisar o material genético viral das composteiras que recebem alimentos e dejetos dos animais do zoológico. Como uma ideia leva à outra e atiça a curiosidade, o grupo decidiu procurar por fagos úteis no combate a bactérias patogênicas, que provocam doenças. Havia na compostagem bactérias do gênero Pseudomonas, parentes da perigosa P. aeruginosa, causadora de infecções hospitalares. Em relatório publicado no início do ano, a Organização Mundial da Saúde classificou essa bactéria como a segunda em termos de urgência de pesquisa para novos antibióticos, diante da alta resistência às medicações existentes. A vantagem dos fagos é que evoluem em conjunto com seus alvos, mantendo a capacidade específica de atacar um tipo de bactéria sem prejudicar o organismo humano. PESQUISA FAPESP 257 | 19
1
Fagos mais claros já injetaram DNA em fragmento de bactéria
O grupo do IQ conseguiu isolar – e caracterizar geneticamente – três fagos distintos, conforme descreve em artigo publicado em maio na BMC Genomics. “Os fagos degradam o biofilme de bactérias em 24 horas”, afirma Aline. Para saber como esses vírus se comportam no ambiente e dentro do organismo de mamíferos, seria necessário que outros grupos de pesquisa se interessassem por fazer esses testes. Outros fagos já foram testados contra P. aeruginosa em camundongos com
sucesso, conforme mostra estudo liderado pelo imunologista Aras Kadioglu, da Universidade de Liverpool, no Reino Unido, publicado na edição de julho da revista Thorax. O tratamento eliminou bactérias dos pulmões de 70% dos camundongos com uma infecção estabelecida – condição que em seres humanos é uma das principais causas de mortalidade hospitalar. O método para isolar os fagos no IQ-USP (fotos nas páginas 22 e 23) é o mesmo usado em aplicações médicas no leste da Europa. Desde 1923, o Instituto Eliava, em Tbilisi, Geórgia, usa agentes virais contra qualquer infecção bacteriana, inclusive aquelas que nenhum outro tratamento conseguiu eliminar (ver infográfico na página 21). Uma revisão publicada em 2001 na Antimicrobial Agents and Chemotherapy, por pesquisadores do Eliava e da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, compara o sucesso de tratamento por antibióticos (64%) e fagos (82%), e afirma que o tratamento viral é ainda mais eficaz (95%) quando aplicado por via intravenosa. Por isso, são procurados por pacientes do mundo todo. A história conta que a descoberta da possibilidade de usar vírus como tratamento foi concomitante à de antibióticos. Como a ação destes é mais abrangente, e por isso mais afeita à produção industrial, a estratégia ganhou precedência mundial – exceto no antigo bloco soviético, onde o isolamento imposto pela cortina de ferro exigia soluções criativas e independentes do Ocidente.
Comunidade secreta Há oito anos pesquisadores se debruçam
ao longo do tempo”, explica Setubal. Um
sobre um objeto aparentemente insalubre:
artigo publicado em dezembro na Scientific
dejetos em decomposição dos animais do
Reports mostra como a composição
zoológico paulistano. Mas, para além do que
bacteriana vai mudando de acordo com a
se vê, a vida invisível das composteiras tem
disponibilidade de nutrientes. As bactérias
revelado uma riqueza importante.
que vivem de celulose são mais abundantes
“Queremos fazer uma coleção do consórcio
no início, degradando essa substância.
de bactérias e identificar aquelas promissoras
A lignina, que confere rigidez aos tecidos
para aplicações biotecnológicas”, conta
vegetais, é a última a ser degradada por
o bioinformata João Setubal, do Instituto
microrganismos especializados. As enzimas
de Química da USP (IQ-USP).
produzidas por eles, estáveis nas altas
Seu grupo extrai o DNA dessas amostras de composto em busca dos microrganismos
temperaturas da composteira, são promissoras para aplicações industriais.
que ali vivem e recentemente obteve o genoma quase completo de seis bactérias – quatro delas novas para a ciência, de acordo com artigo de abril na revista Frontiers in Microbiology. O composto também foi Pesquisadora coleta material para extração de DNA em composteira do Zoológico, em 2011
20 | julho DE 2017
acompanhado por 100 dias, com coleta do material genético a cada 10 dias. “Queríamos ver como as populações microbianas variam 2
Artigos científicos LEMOS, L. N. et al. Genome-centric analysis of a thermophilic and cellulolytic bacterial consortium derived from composting. Frontiers in Microbiology. v. 8, 644. 19 abr. 2017. ANTUNES, L. P. et al. Microbial community structure and dynamics in thermophilic composting viewed through metagenomics and metatransciptomics. Scientific Reports. v. 6, 38915. 12 dez. 2016.
infográfico ana paula campos ilustração freepik
Preparados contendo bacteriófagos podem ser administrados por via oral, tópica ou intravenosa
Por dentro da fagoterapia Capacidade natural de vírus destruírem bactérias pode representrar alternativa a antibióticos
Bacteriófagos
DNA
fotos 1 victor balcão / uniso 2 eduardo cesar
Bactérias
Fagos Humanos. D’Herelle, Ao longo das décadas de uso aliás, participou da fundação de antibióticos, a evolução trado Instituto Eliava, mas não tou de selecionar bactérias revoltou a Tbilisi depois que o sistentes e deu origem a linhaOs fagos bacteriologista George Eliava gens responsáveis por graves devem ser (1892-1937) foi executado pelo casos de infecções hospitalaregime stalinista. res. No final de abril noticiouamplamente Enquanto na maior parte -se o caso do psiquiatra nortedos países a possibilidade de -americano Tom Patterson, reconhecidos tratamento é restrita a casos da Faculdade de Medicina da considerados perdidos, pesquiUniversidade da Califórnia em como parte sadores se limitam a caracteSan Diego, que no início de 2016 do arsenal rizar esses abundantes e ubíentrou em coma por causa de quos vírus. A microbiologista uma infecção que não responcontra Sylvia Cardoso Leão, da Unidia aos antibióticos. Sua mulher, versidade Federal de São PauSteffanie Strathdee, e o médico infecções lo (Unifesp) e especialista em Robert Schooley, ambos profesmicobactérias – as causadoras sores na mesma faculdade, apeda tuberculose e de infecções laram para um último recurso e conseguiram autorização para tentar a terapia difíceis de tratar –, recentemente se interessou por fagos. “Amostras do paciente foram enviadas pelos fagos. Em parceria com a microbiologista a dois grupos de pesquisa que selecionaram os Cristina Viana Niero, do campus de Diadema da fagos”, conta Schooley, que defende que os fagos Unifesp e participante do projeto do zoológico, sejam amplamente reconhecidos como parte do Sylvia e seu então estudante de mestrado James arsenal contra infecções bacterianas. “Empresas Daltro Lima-Junior buscaram nas composteiras de vários países estão começando a trabalhar no fagos especializados nas micobactérias. Encondesenvolvimento desse tipo de terapia”, afirma. traram, mas não as bactérias com as quais intePatterson saiu do coma e seu caso, em análise ragem. Em colaboração com Aline e Setubal, o para publicação em periódico científico, foi apre- grupo caracterizou esses vírus do ponto de vista sentado no último dia 27 de abril no Instituto genético, que o biólogo molecular Graham HatPasteur em Paris, durante o evento comemorativo full, da Universidade de Pittsburgh, nos Estados do centenário da pesquisa com bacteriófagos. A Unidos, comparou às sequências do acervo que data comemora a descoberta dos fagos pelo mi- mantém. “É a maior coleção do mundo de bactecrobiologista franco-canadense Felix d’Herelle riófagos que infectam micobactérias, uma ferra(1873-1949), do Pasteur, na mesma época em menta importante para entendermos melhor essas que o britânico Frederick Twort (1877-1950), e espécies”, afirma Sylvia. A surpresa foi verificar por isso foi batizada como Dia da Terapia com que um dos fagos paulistanos estudados é muito
Após injetar seu material genético em bactérias-alvo, os fagos são replicados e liberados pelo rompimento (lise) das bactérias, ajudando o corpo a combater a doença
Fonte aline maria da silva / iq-usp
PESQUISA FAPESP 257 | 21
O inimigo de cada bactéria
1
2
No laboratório de Aline Silva, placas de Petri recebem uma suspensão da bactéria Pseudomonas aeruginosa (espalhada com bastão de vidro, à dir.), que forma uma camada esverdeada sobre o meio de cultura; marcas à caneta (à esq.) indicam pontos onde os fagos serão aplicados
22 | julho DE 2017
desinfetar um ambiente. “A probabilidade de se entrar em um pronto-socorro e sair com uma infecção é de 30%”, avisa o pesquisador. São passos que ele espera percorrer até o fim do próximo ano, agora que montou o laboratório, e que têm como base conquistas obtidas em projeto anterior. “Conseguimos estabilizar o fago no gel por meio de aprisionamento seguido de uma reação química”, conta, conforme publicou em 2013 na Enzyme and Microbial Technology. Em seguida, o grupo de Sorocaba demonstrou que as bactérias levam 6 minutos para penetrar 3 milímetros no hidrogel, suficiente para entrarem em contato com os fagos, como mostrou em 2014 na Applied Biochemistry and Biotechnology. Genética sob controle
Culturas de bactérias tingidas para estudo de morfologia se transformam em arte no laboratório de Tal Danino
5
O horizonte de aplicações biotecnológicas com fagos é amplo e pode ir além de tirar proveito de suas habilidades naturais. Esses vírus podem ser geneticamente alterados para atuar como sensores de patógenos ou armas contra eles, ou para transportar sequências genéticas desejadas para dentro de células. Outra propriedade da interação entre vírus e bactérias é o sistema CRISPR-Cas9, algo como um sistema imunológico das bactérias que mantém um registro dos vírus com que já tiveram contato. O sistema deu origem a uma ferramenta que permite editar o material genético com precisão e atuar como sensor de trechos específicos de DNA, que vários laboratórios brasileiros já começaram a usar (ver Pesquisa FAPESP nº 240). Essas são algumas das ferramentas da biologia sintética, que pode prescindir dos fagos e montar sequências de DNA de forma completamente independente de organismos e assim construir bactérias com genoma planeja-
fotos 1 a4 léo ramos chaves 5 e 6 Soonhee Moon / Universidade Columbia
parecido com outro isolado de uma amostra coletada na África do Sul. Talvez uma contribuição de algum animal africano residente no zoológico. Sylvia monitora infecções por micobactérias e já ajudou a estabelecer protocolos para combater surtos e detectar a causa do problema, como resistência a desinfetantes usados em hospitais. Ela defende que os fagos seriam um bom aliado nessa constante batalha. “Eles são o que há de mais comum, uma arma da natureza.” Hoje é possível comprar produtos à base de fagos para eliminar bactérias em verduras e reduzir o teor de Salmonella em galinhas, por exemplo, mas não para combater doenças humanas. A capacidade dos fagos de reconhecer suas bactérias correspondentes também pode dar origem a sensores, como o que o engenheiro alimentar português Victor Balcão, da Universidade de Sorocaba (Uniso), no interior paulista, pretende fazer em parceria com a bioquímica Marta Vila, da mesma instituição. “A ideia é criar uma fita adesiva que se possa pregar na parede dos hospitais para detectar Pseudomonas aeruginosa”, explica. O projeto, batizado como PneumoPhageColor, envolve revestir esses adesivos com um gel recheado de fagos capturados na água do esgoto de hospitais. Se existirem bactérias no ar, a ideia é que elas penetrem no hidrogel e sua interação com o vírus e subsequente rompimento (um processo conhecido como lise) produza um brilho, como fazem vaga-lumes e alguns cogumelos (ver Pesquisa FAPESP nº 255), por meio de uma reação química entre substâncias integradas no hidrogel. O alerta pode indicar a necessidade de
3
4
O extrato de amostras da composteira é pingado sobre a camada de bactérias e incubado a 37 graus Celsius (°C) por uma noite; nas falhas conhecidas como halos de lise, onde as bactérias foram eliminadas pelos fagos, é possível recolher esses vírus produzidos
do, uma possibilidade inaugurada em 2010 pelo bioquímico norte-americano Craig Venter (ver Pesquisa FAPESP nº 172). Esse tipo de abordagem é incipiente no Brasil, mas já despontam projetos de modificação de microrganismos para produção de substâncias. “A potencial aplicação está no radar de todos aqueles que fazem biologia molecular com fins diagnósticos e para tratamento de doenças”, diz o médico Roger Chammas, da Faculdade de Medicina (FM) da USP. A bióloga Aparecida Maria Fontes, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, teve contato com a biologia sintética por ocasião de uma parceria com Venter. Junto com colegas, ela busca uma alternativa para o tratamento da doença de Gaucher, cujos portadores são deficientes em uma enzima que degrada um tipo de gordura. O acúmulo dessa gordura nas células causa uma série de problemas, até a morte. “Há cerca de 600 portadores no Brasil e o Ministério da Saúde gasta R$ 200 mil por ano para tratar cada um deles”, explica. Em colaboração com o norte-americano Ron Weiss, do Massachusetts Institute of Technology (MIT), ela selecionou duas moléculas a serem inseridas em vírus, que por sua vez levam o gene de interesse para o núcleo de células humanas. Resultados preliminares são animadores com linhagens de células in vitro. “Conseguimos produzir vírus estáveis, a molécula é funcional, a enzima é capaz de degradar o substrato e as células mantêm uma produção permanente da enzima”, afirma. Ela pretende submeter o pedido de patente ainda este ano. Outros organismos também podem ser transformados em microfábricas por meio da biologia sintética. O grupo liderado pelo bioquímico Cleslei Zanelli, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Araraquara, busca miniaturizar e
6
tornar mais eficiente a produção de substância ativa da espinheira-santa (Maytenus ilicifolia), usada na medicina popular para o tratamento de problemas gástricos. Para isso, os pesquisadores identificaram o gene responsável pela produção da enzima que sintetiza o fármaco, a friedelina, e o transferiram para leveduras Saccharomyces cerevisiae, conforme artigo de 2016 na Scientific Reports. “Estamos com o projeto em andamento para aumentar os níveis de produção para igual ou maior do que vemos na planta”, diz Zanelli. A vantagem da produção por leveduras é que, além de exigir muito menos espaço do que plantas, a produção pode ser constante – sem depender do crescimento ou de estações do ano. “Basta acrescentar açúcar, vitaminas e uma fonte de nitrogênio no meio de cultura, que elas sintetizam a substância o tempo todo”, conta. Uma vez otimizada a produção, o grupo de Araraquara, que inclui a química Maysa Furlan, pretende utilizar o sistema de levedura modificada para produzir outras substâncias de ação antitumoral e anti-inflamatória que já estão em testes clínicos. Algumas bactérias já são usadas na indústria para produzir compostos, como vitaminas e aminoácidos. O grupo da bióloga Danielle Pedrolli, também da Unesp de Araraquara, está construindo RNAs sintéticos para melhorar a capacidade da bactéria Bacillus subtilis de produzir vitamina B2 e suas precursoras, as purinas, por meio da ativação de cinco alvos no material genético. “Vamos conectar a ferramenta de RNA a um sistema que faz com que ela entre em ação quando a densidade de bactérias é adequada”, explica. Já funcionou in vitro, agora falta testar nas bactérias. PESQUISA FAPESP 257 | 23
Genes desenhados podem transformar células em minifábricas de substâncias desejadas
1
fago
Diferentes técnicas permitem inserir fragmentos de DNA construídos por computador
sequência sintética
edição por crispr-cas9
2
O processo introduz alterações genéticas em bactérias, leveduras ou células (animais ou vegetais)
3 O resultado é a produção de alguma substância, que pode ter ação terapêutica ou funcionar como sensor
Fonte rafael silva rocha / fmrp-usp
Essa capacidade das bactérias de detectar a densidade de companheiras tem usos importantes, como no laboratório do biólogo sintético norte-americano Tal Danino, da Universidade Columbia, em Nova York, que esteve em São Paulo em março para um evento científico. “Nosso laboratório busca maneiras de programar bactérias para detectar e tratar câncer”, afirma. “Desenhamos essas bactérias para se comunicarem, sincronizando seu ataque ao tumor com a produção de um fármaco.” O grupo programa sequências de DNA como códigos de computador e assim constrói circuitos que permitem, por exemplo, que as bactérias produzam substâncias tóxicas às células. “Podemos determinar que as bactérias expressem um gene apenas quando encontram um tumor”, conta o engenheiro biomédico Tetsuhiro Harimoto, estudante de doutorado no laboratório de Danino. Essa ação dirigida seria possível porque o ambiente dentro de um tumor, em termos de teor de oxigênio e de pH, por exemplo, é específico e pode ser programado como ideal para a atividade da bactéria sintética. Quando atingem uma densidade clínica dentro do tumor, as bactérias podem se romper e liberar o fármaco que produzem por engenharia genética. Além de direcionada com precisão, a medicação também se retroalimentaria. “Algumas bactérias sobrevivem e voltam a se multiplicar, formando um ciclo de crescimento e lise”, conta Harimoto. O grupo já teve bons resultados em células
Competição movimenta biologia sintética O Brasil está ganhando tradição em uma
podem continuar a ser desenvolvidos após
Foram quatro em suas participações entre
competição internacional que busca o
a competição, pelo mesmo grupo ou outros.
2012 e 2016, uma delas como integrante do
avanço da biologia sintética por meio de
No início do ano, o Clube de Biologia
time da Universidade de York, no Reino
projetos desenvolvidos por estudantes de
Sintética da USP, ou SynbioBrasil,
Unido. Este ano ele está ajudando a
graduação, o International Genetically
organizou um encontro com participantes
organizar o trabalho da equipe paulistana
Engineered Machine Competition (iGEM)
de todo o Brasil. “Estamos mostrando para
da USP. “O Brasil tem uma situação única,
(ver Pesquisa FAPESP nº 247). Este ano
estudantes de outros lugares que vale a
com uma comunidade que está crescendo e
competem quatro grupos brasileiros: da
pena organizar clubes e que o iGEM abre
se tornando muito colaborativa”, conta ele,
Unesp de Araraquara, da Universidade
portas”, conta o químico Otto Heringer,
que está organizando um clube de biologia
Federal do Amazonas e duas unidades da
que acaba de concluir a graduação em
sintética no campus de Ribeirão Preto da
USP – o campus da capital e a Escola
química na USP e abriu uma empresa que
USP, nos moldes dos outros: um grupo de
Superior de Agricultura Luiz de Queiroz
pretende usar ferramentas de biologia
estudantes auto-organizado, sem a
(Esalq), em Piracicaba. “É como se houvesse
sintética para combater pragas na
liderança de professores, que se encontra
um catálogo com 2 mil peças de lego que
agricultura. Ele se refere tanto ao
para discutir ciência. “É muito gratificante
podem ser combinadas para formar um
aprendizado de como desenvolver um
conseguir unir matemática, química,
circuito”, compara Rafael Silva Rocha, um
projeto na área como à rede social e
biologia, engenharia e até ciências sociais”,
dos coordenadores da equipe de São Paulo.
científica que se cria em consequência.
conta. Uma cientista social está estudando,
“O objetivo não é chegar no produto final,
O biólogo Cauã Westmann, estudante de
em seu mestrado, o encontro científico
mas avançar o máximo possível.” Um dos
mestrado no laboratório de Rocha,
proporcionado pelo Synbio. “O clube virou
limites é o prazo de um ano, mas os projetos
coleciona medalhas de prata do iGEM.
até tema de estudo!”
24 | julho DE 2017
infográfico ana paula campos foto Soonhee Moon / Universidade Columbia
Rotas da biologia sintética
humanas in vitro e conseguiu reduzir tumores em camundongos, quando em combinação com quimioterapia, conforme descrito em artigo de 2016 na Nature. Os resultados promissores explicam o otimismo de Danino, que prevê frutos terapêuticos em breve. “Há várias empresas e laboratórios, inclusive o meu, avançando na ideia de usar bactérias ou células desenhadas para doenças como câncer, diabetes e distúrbios intestinais”, conta. “É só uma questão de tempo até que melhoremos nossa engenharia desses organismos para que tenham um grande impacto na sociedade.” Enquanto isso, ele também aplica a manipulação de bactérias para a arte, incluindo um projeto com o artista plástico brasileiro Vik Muniz. Para o pesquisador, o exercício estético pode ajudar a comunicar conceitos científicos complexos. “As artes visuais não apenas são universais, transcendendo barreiras de idioma e de jargão científico, elas convidam uma audiência mais ampla a ver a ciência e fazer perguntas sobre ela.”
Essa integração de como funcionam as diferentes escalas da genética de um organismo – genômica, transcritômica, proteômica e o funcionamento de enzimas – também é um dos focos do grupo liderado pelo botânico Marcos Buckeridge, do Instituto de Biociências da USP. A bioinformata Amanda Rusiska Piovezani, sua aluna de doutorado, desenvolveu uma ferramenta computacional que permite explorar as relações entre os elementos da rede complexa que compõe o funcionamento de uma parte específica da raiz de plantas de cana-de-açúcar. Pode parecer um detalhe, mas o intuito é entender como se dá a formação de cavidades de ar (um tecido conhecido como aerênquima) nas raízes por meio da degradação da parede celular, uma propriedade essencial à otimização da produção de biocombustível. O software será integrado a uma ferramenta de teste estatístico desenvolvido pelo mestrando Vinícius Carvalho e poderá ser aplicado a uma variedade de outros sistemas. “Até ao funcionamento de uma cidade”, imagina Buckeridge. Ele está envolvido na criação de um centro de pesquisa chamado Sistemas de Biomassa e Biologia Sintética, a ser sediado na USP, que se concentrará justamente nesse tipo de abordagem para resolver problemas ligados à bioenergia, a partir do Programa Bioen da FAPESP. n
Computação viva
O biólogo Rafael Silva Rocha, da FMRP-USP, investiga o funcionamento genético de bactérias usando um enfoque mais de computação do que de biologia molecular. “Temos desenvolvido pesquisa na área de reprogramação de bactérias, engenharia de fungos para bioenergia, desenvolvimento de biossensores e de ferramentas computacionais para engenharia de circuitos gênicos”, resume ele, que trabalha em parceria com sua mulher, a também bióloga María Eugenia Guazzaroni, professora no Departamento de Biologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da mesma universidade. Ele exemplifica o trabalho com a estrutura genética da bactéria Escherichia coli: são 4.500 genes cujo funcionamento é orquestrado por 200 reguladores que agem de forma combinatória. Um gene pode ser controlado por 20 reguladores diferentes, enquanto um regulador pode afetar o funcionamento de centenas de genes. Ao estudar essas redes de interação, é possível selecionar os reguladores de ação mais ampla e usá-los para modular e alterar aspectos específicos do comportamento das bactérias. O grupo já produziu trabalhos iniciais, como o publicado em 2015 na ACS Synthetic Biology em que conseguiram inserir em bactérias vivas dois trechos sintéticos de DNA que regulam a atividade gênica. A ideia é integrar a informação sobre como o genoma das bactérias é regulado para implementar inovações biotecnológicas.
Projetos 1. Estudos da diversidade microbiana no Parque Zoológico do Estado de São Paulo (nº 11/50870-6); Modalidade Projeto Temático; Programa Biota; Pesquisador responsável João Carlos Setubal (USP); Investimento R$ 2.355.648,35. 2. Micobactérias e seus elementos extracromossômicos: Caracterização molecular e aplicações biotecnológicas (nº 11/18326-4); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Sylvia Luisa Pincherle Cardoso Leão (Unifesp); Investimento R$ 1.181.733,92. 3. PneumoPhageColor – desenvolvimento de um kit de biodetecção colorimétrica de Pseudomonas aeruginosa com base em partículas fágicas (nº 16/08884-3); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Vitor Manuel Cardoso Figueiredo Balcão (Uniso); Investimento R$ 138.199,67. 4. Abordagens de biologia sintética para decifrar os mecanismos de integração de sinais em promotores bacterianos complexos (nº 12/22921-8); Modalidade Jovem Pesquisador; Pesquisador responsável Rafael Silva Rocha (USP); Investimento R$ 1.370.671,34. 5. Clonagem e caracterização funcional das oxidoesqualeno ciclases de Maytenus ilicifolia (nº 14/03819-3); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Cleslei Fernando Zanelli (Unesp); Investimento R$ 235.403,07. 6. Synthetic biology, use of humanized codons and microRNAs for the production of a biopharmaceutical for Gaucher disease (nº 13/504502); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Parceria para Inovação Tecnológica (Pite); Convênio Agilent; Pesquisadora responsável Aparecida Maria Fontes (USP); Investimento R$ 948.505,23. 7. Reprogramação do metabolismo de purina em Bacillus subtilis através de tecnologia de sRNA (nº 14/17564-7); Modalidade Jovem Pesquisador; Pesquisadora responsável Danielle Biscaro Pedrolli (Unesp); Investimento R$ 854.252,72. 8. Uso da abordagem de biologia de sistemas para desenvolver um modelo de funcionamento em plantas (nº 11/52065-3); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Parceria para Inovação Tecnológica (Pite); Convênio Microsoft; Pesquisador responsável Marcos Silveira Buckeridge (USP); Investimento R$ 228.500,00 e US$ 12.000,00. Os artigos científicos consultados para esta reportagem estão listados na versão on-line.
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entrevista Maria Ligia Coelho Prado
Questões abertas na América Latina Historiadora fala sobre identidades, guerras de independência e interpretações acerca do desenvolvimento da região Glenda Mezarobba |
M
retrato Léo Ramos Chaves
aria Ligia Coelho Prado já era mãe de três filhos quando decidiu, aos 27 anos, cursar história na Universidade de São Paulo (USP). Supostamente tardia, a escolha se revelaria mais do que acertada: além do “amor à primeira vista” pela disciplina, propiciou-lhe o exercício do magistério – ofício no qual se destacaria como poucos de seus pares. Maria Ligia deu aulas em cursos secundários de escolas públicas e particulares. Na década de 1980, percorreu o estado de São Paulo lecionando história da América para professores do ensino médio. No ensino superior, antes de ser contratada pela própria Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, iniciou sua carreira como professora de história contemporânea de futuros arquitetos. Entre os grandes temas que se propôs a discutir em sala de aula estavam a escravidão, o capitalismo e interpretações sobre o desenvolvimento da América Latina. Além da bibliografia convencional, costumava apresentar aos alunos contratos de trabalhadores, declarações de operários e programas de partidos políticos. Ignorou fronteiras e, atendendo a convites de instituições norte-americanas, entre 1987 e 1995 deu oito cursos nos Estados Unidos: três de graduação e cinco de pós-graduação, em universidades como Brown, Stanford e de Nova York. Maria Ligia formou gerações de profissionais, na graduação e na pós-graduação, e fez grandes amizades. Uma delas foi com a também historiadora Maria Helena Capelato. “Defendemos a dissertação de mestrado no mesmo dia, com a mesma banca, uma depois da outra”, conta. Depois lançaram um livro em con-
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idade 76 anos especialidade História da América Latina formação Graduação em história (1971), mestrado (1974) e doutorado (1982) em história social pela USP instituição USP produção científica 15 livros, dos quais cinco em coautoria, orientação de 19 alunos de mestrado, 32 de doutorado e 6 supervisões de pós-doutorado
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junto, O bravo matutino (Alfa Omega, 1980), com os resultados da pesquisa que tratou do jornal O Estado de S. Paulo. Entre os livros que publicou, um deles, o paradidático A formação das nações latino-americanas (Atual, 1985), teve 23 edições impressas e vendeu mais de 70 mil exemplares. Atualmente prepara novo livro com artigos já publicados e textos inéditos, entre eles um sobre os significados da pena de morte aplicada a mulheres consideradas traidoras pela Coroa Espanhola, durante as guerras de independência, e outro sobre o debate a respeito do papel do Estado, da Igreja e da família na educação pública na Colômbia do final do século XIX. Fundadora da Associação Nacional de Pesquisadores e Professores de História das Américas (ANPHLAC), que presidiu entre 1998 e 2000, Maria Ligia falou à Pesquisa FAPESP sobre América Latina, identidade, o papel do discurso histórico e a função do conhecimento.
O seu aprofundamento, em questões distintas da história, se dá sempre pela América Latina? Sempre. Eu conheço a história de alguns países da América Latina, não conheço a de todos porque é impossível. Conheço melhor a história do México, da Argentina e do Chile. Quando comecei a lecionar, em plena ditadura, Cuba era um assunto proibido, tabu. Então não se estudava. A América Latina era um lugar de ditaduras. Por ter uma posição política à esquerda, já iniciei me posicionando contra a ditadura. Isso contribuiu para certo encantamento que tenho pela região. Algo que me fascinou desde os primeiros instantes foram as aproximações históricas entre a América portuguesa e a América espanhola. Entre elas, perspectivas de pensar o conhecimento, a religão e a arte, ao lado das particulares relações sociais que se formam nesse espaço com marcante população indígena e africana.
Como surgiu seu interesse pela América Latina como objeto de pesquisa? Na minha graduação em história havia duas disciplinas que tratavam da América: história da América colonial e história da América independente. Concluí o curso em 1971, mas jamais estudei América independente – nunca ultrapassamos o período do caudilhismo. Ficamos lá atrás. Como aluna, nunca estudei nada sobre América Latina depois de 1850. Nada. Em 1975, quando ingressei na universidade como professora, em um concurso para história da América, tinha de dar aulas de história da América independente. Minha intenção era mudar depois, porque eu pesquisava história do Brasil. Sou autodidata em história da América Latina, iniciei sem referência alguma. Comecei a estudar e fiquei fascinada.
Quando surge a noção de América Latina? Quando essa região passa a ser assim denominada?
O que causou esse fascínio? Um exemplo: a história do México, do mundo indígena e de como se formou o Estado mexicano. Não temos noção do que foram as comunidades indígenas no México, depois no Peru, Bolívia, Guatemala. O que foram as reformas liberais no México, e depois na América espanhola, que é a tentativa de destruição da comunidade indígena. O mundo cultural, a questão da língua, a questão da arte, o lugar da Igreja Católica. E as disputas entre o mundo laico e o mundo religioso. 28 | julho DE 2017
Trabalhar com identidades é algo que precisa ser garantido pelo espírito crítico, porque elas apagam as contradições
Considero essa questão muito interessante porque as pessoas usam o termo sem se dar conta de seus significados. Essa é uma denominação construída no século XIX ao que parece, pelos franceses. Há uma longa discussão sobre isso. Foi o economista Michel Chevalier [1806-1879] quem primeiro pensou essa diferença, que era comum no século XIX, entre latinos e anglo-saxões. E, como os franceses tinham interesses nas Américas, fortes interesses no México, houve a ideia de que essa parte das Américas, que não era anglo-saxônica, era uma parte latina que aproximava toda essa região da França. Nos textos, por exemplo, da Revue des deux Mondes [revista francesa que circulou no século XIX], há uma afirmação muito clara de que a França era o principal país latino no mundo e que, dessa maneira, essa parte das Américas se identificava com os franceses. Então, essa é uma versão, um termo criado fora, com intenções externas, um termo de alguma maneira imposto. Mas há outra perspectiva, daqueles que entendem que o termo, na verdade, nasceu na própria América Latina. Sim, há uma discussão em torno do escritor colombiano Torres Caicedo [18301889], que fez um poema em que fala de uma América Latina. Mas a questão principal dessa disputa é um problema que nos acompanha. Isto é, se o termo foi criado fora, pela Europa, pelo imperialismo e acabou imposto sobre nós, ou se nasceu na própria América Ibérica para pensar uma América Latina unida, em que havia uma aproximação entre a parte espanhola e, de alguma maneira, a parte portuguesa, que enfrentariam as vicissitudes juntas. Ou seja, a própria designação já traz um problema. Como você pensa a questão da identidade latino-americana? Vou fazer uma digressão para chegar aí, ao seu ponto. Se considerarmos os textos de letrados – que podem ser intelectuais ou políticos –, como os de Simón Bolívar [1783-1830], por exemplo, ele se pergunta na famosa Carta da Jamaica, de 1815: “Quem somos nós? Não somos americanos e não somos europeus”. Essa busca de afirmação está presente muito fortemente nos textos e depois em muitas manifestações que vão aconte-
arquivo Pessoal
que desempenham um papel político protagonista sem ter sido, muitas vezes, reconhecida pela historiografia.
cer pelo século XIX. Digo isso para destacar que a questão da identidade nos acompanha desde a independência. Se tomarmos as fontes a partir daquela época, há documentos e ações que mostram preocupação com a aproximação entre as diversas partes da América colonizada pelos espanhóis, e, posteriormente, já no século XX, com o Brasil. Portanto, sempre relacional. Sim, muito. Temos os textos do intelectual e político chileno Francisco Bilbao [1823-1865] dos anos 1850, em que ele descreve a América em perigo, considerando o que depois vai se chamar América Latina, se contrapondo aos Estados Unidos. O problema da identidade não é algo que os historiadores ou os antropólogos criaram. Não é artificial, na minha maneira de interpretar. Porém, como eu já escrevi, trabalhar com identidades é algo que precisa ser garantido pelo espírito crítico, porque as identidades apagam as contradições. As identidades harmonizam.
Com Maria Helena Capelato (à esq.) em 1980, no lançamento de O bravo matutino, escrito pelas duas
Pasteurizam, quase. Pasteurizam. Todas as mulheres são iguais, todos os negros são iguais, todos os índios são iguais, para usar uma terminologia habitual do século XIX, e as contradições, as tensões, os conflitos são camuflados. A identidade, que mexe com os sentimentos, é uma construção intelectual, mas entra nos corações, impacta a vida, as escolhas, e faz com que as diferenças e os conflitos sejam deixados de lado. É preciso ter muito espírito crítico para trabalhar com o tema. A identidade supõe sempre o outro – e o outro é o inimigo. É preciso escolher. No caso dos latino-americanos, a construção do inimigo, já no século XIX, passa pelos Estados Unidos. Há uma data-chave, que é 1898, quando os Estados Unidos entram na guerra de independência de Cuba ao lado dos cubanos, isto é, contra os espanhóis, e transformam Cuba num protetorado. Você escreveu que desde a independência de seus países, as elites latino-americanas aspiravam consolidar sua dominação sobre a sociedade, baseadas em uma identidade homogênea, que lhes garantisse a hegemonia política. É possível dizer, em alguma medida, que
elas não foram tão bem-sucedidas, na América Latina? Essa é uma pergunta que me acompanha, muito difícil de ser respondida. O século XIX é maravilhoso para ser estudado porque os intelectuais, os políticos fizeram as perguntas essenciais com as quais ainda trabalhamos. O que é nação, o que é civilização, o que é legítimo, o que é Estado? E responderam estabelecendo padrões do que deveria ser a “civilização”. A associação estabelecida entre raça e cultura foi um elemento central na dominação simbólica das elites, favorecendo a discriminação e os preconceitos. Apesar de ser artifical e inverossímil, esse discuro teve um grande poder de persuasão nas sociedades latino-americanas até nossos dias. O discurso branco e civilizado insistia em impor sua visão sobre toda a sociedade, tratando de marcar a distância que o separava do “outro bárbaro”. Entretanto, nunca foi possível controlar ou anular los de abajo. Índios, escravos, mestiços, mulheres marcam sua presença na política, na arte, na literatura e resistem à dominação imposta pelos brancos. Enfim, creio que as elites foram bem-sucedidas no seu projeto de dominação. Porém, é preciso reafirmar a importância da presença dos subalternos
Houve, na história recente da América Latina, um momento em que os países que a integram estiveram mais próximos, inclusive como objeto de estudo? Sim, durante as ditaduras recentes, mais próximas por conta das circunstâncias políticas de uma luta única pela democracia. Houve uma aproximação, um interesse, um conhecimento maior. O advento da democracia acabou nos distanciando. O Brasil novamente voltou as costas para a América Latina e, mais uma vez, se colocou como um país diferente. Está claro que, na história política e diplomática brasileira, o Brasil sempre quis ser o país hegemônico da América do Sul. Isso tem repercussão no lugar da América Latina e na importância da América Latina nos estudos da história. Ao ignorá-la, perdemos essa perspectiva de abrir janelas para compreender o próprio Brasil. Quando acompanhamos e estudamos a história desses países, conseguimos compreender muitas questões da história brasileira. Os historiadores estão muito habituados a se fechar dentro das interpretações das historiografias nacionais, ainda muito marcadas pelas construções elaboradas no século XIX. Você tratou dessa questão em seu livro América Latina no século XIX: Tramas, telas e textos (Edusp, 1999). Em primeiro lugar, reafirmo a importância de pensar o Brasil como parte da América Latina. Atravessar as fronteiras oferece possibilidades instigantes ao historiador para propor novos problemas e ampliar os diálogos historiográficos. Como se sabe, no século XIX, depois das independências, se organizam os Estados nacionais e se constroem as identidades nacionais. Na minha perspectiva, a questão da nação se impunha e penetrava na variada produção política, historiográfica e artística da época; políticos, publicistas, historiadores, mulheres e homens letrados e artistas, nos mais diversos países da América Latina, se dedicaram a pensar a questão nacional. Além dos problemas econômicos, das disputas políticas, das convulsões sociais, das guerra civis, que PESQUISA FAPESP 257 | 29
Ex-alunos de Maria Ligia (no centro, de azul): José Luis Beired (Unesp), Sílvia Miskulin (UMC), Luiz Felipe Moreira (UEM), Kátia Gerab Baggio (UFMG) e Stella Maris Vilardaga (USP)
mobilizaram as energias das sociedades, se produziram apaixonados debates sobre a construção da Nação e das identidades. Isso remete também ao conceito de transculturação do sociólogo cubano Fernando Ortiz. Poderia refletir um pouco sobre ele? Em seu livro Contrapunto cubano del tabaco y del azúcar, publicado em 1940, Ortiz [1881-1969], ao pensar a cultura cubana, acaba por cunhar esse conceito de transculturação, depois apropriado por muitos críticos literários, antropólogos e historiadores. O conceito carrega uma ideia, com a qual eu concordo, muito importante para se pensar a América Latina. Durante muito tempo se afirmou que a cultura europeia foi imposta a nós, aos povos que aqui viviam antes dos europeus chegarem e, depois, a aqueles que viviam nas colônias. A cultura europeia teria sido transposta e imposta aqui. O que sobrou teria sido apenas a aceitação. O resultado dessa aceitação seria a cópia. Ortiz disse que não se pode pensar – e ele está falando de Cuba – em uma simples imposição de fora para dentro, mesmo em uma sociedade estruturada em torno da escravidão. Na visão dele, aqui e lá se criou uma cultura muito particular e os europeus não ficaram imunes ao meio em que viviam, incluindo a cultura africana. É uma via de mão dupla. Há uma questão de poder e a Europa ganhou a língua, a religião, mas é preciso entender essas relações que se dão em todos os níveis, como ele diz, desde 30 | julho DE 2017
o econômico até o sexual. Aquilo que se estuda naquele ambiente societário é uma transculturação, sofre mutações e é repensado. Do meu ponto de vista é algo que segue fazendo sentido. Na sua visão, o discurso histórico pode ser reduzido a uma função de conhecimento? Ou ele teria uma função social? Se tivessem me perguntado isso em 1975 eu diria que o discurso histórico não se reduz a uma função de conhecimento e que possui uma função social, intervindo na realidade onde será mais ou menos útil para as forças em luta. A compreensão do passado outorgava condições de conhecer o presente e prognosticar o futuro. A história desempenhava, assim, papel destacado na confrontação ideológica, e os historiadores e acadêmicos deveriam compreender que seu trabalho não estava isolado de sua responsabilidade política. Nos dias de hoje, os debates são de outra ordem. Tomemos a questão da “Escola sem Partido”, que parte, sem dúvida, da ideia de que o discurso histórico tem uma função social. Esse grupo, assumidamente de direita, ataca a esquerda porque esta estaria instrumentalizando o saber com fins ideológicos e políticos, afirmando, assim, que o conhecimento não é neutro. Porém, contraditoriamente, se apresenta como imune à política e se arvora em guardiã da única “verdade”. É possível notar mudanças na historiografia que remetam a essa função social do conhecimento?
A história não ensina? Ou é a humanidade que não aprende? Penso muito sobre isso. Não sou obcecada pela Revolução Francesa, mas vou tomá-la como exemplo, mais uma vez. A Revolução Francesa estabeleceu que a tortura não deve ser uma prática legal, o ser humano não pode ser violado. Não exatamente nesses termos, mas pela primeira vez se fez essa afirmação. Antes, a tortura era considerada absolutamente legal e legítima. Esse é um marco muito importante na história recente da huma-
arquivo Pessoal
Especialmente durante a ditadura [19641985], pensávamos que o conhecimento seria emancipador, traria democracia, propiciaria a construção de uma sociedade mais justa. Se pensamos em uma função social é porque o conhecimento e as ideias produzem ação. As propostas políticas que vão ser efetivadas estão baseadas em ideias e, nesse sentido, o conhecimento da história é fundamental. Vamos analisar, por exemplo, o lugar que o indígena tinha na sociedade. Os antropólogos e os historiadores trabalharam para mostrar como os indígenas foram explorados, oprimidos, humilhados. O mesmo foi feito sobre os escravos africanos no Brasil. A historiografia brasileira, e também a cubana, trabalhou muito para virar do lado avesso a visão estabelecida. Outra coisa que a sua pergunta sugere é a ideia de que, no caso da história, finalmente vai se mostrar a verdade. Os historiadores se dividem ao pensar a questão da verdade. O que é a verdade? Eu gosto de utilizar como exemplo algo distante de nós: a Revolução Francesa. Aqueles que escreveram sobre ela, os seus contemporâneos, e as primeiras gerações posteriores. Como é possível escrever sobre a Revolução Francesa [1789-1799] sem tomar partido? Qual visão um aristocrata, vamos pensar em Alexis de Tocqueville [1805-1859], tem sobre ela? E um homem à esquerda, no espectro político francês do século XIX? Há alguns fatos concretos e indiscutíveis: o rei e a rainha foram guilhotinados. Agora, como nós interpretamos os fatos? Essa é a questão. Podemos reduzir e dizer: “Agora eu vou contar a verdade sobre a Revolução Francesa”. Qual verdade? Isso quer dizer que estamos interpretando, analisando documentos. É preciso ter formação teórica para compreender qual é o papel, qual é o lugar daquele documento, o que ele expressa.
nidade do mundo ocidental, pelo menos. O que não significa, como bem sabemos, que a tortura foi eliminada. Ainda é bastante desconhecido o papel da mulher nas lutas pela independência, por exemplo, tema relevante em seus estudos. Poderia falar um pouco sobre seus achados? As mulheres são tratadas pela historiografia, em termos de século XIX e XX, como inexistentes do ponto de vista de atuação política. Já há muitos trabalhos importantes sobre a valorização desse lugar da mulher como pensadora, escritora e jornalista. Mas o que me interessou foi pensar a participação política das mulheres no século XIX. Em geral, a historiografia começa a apontar a presença das mulheres na política com a questão do sufrágio, quando elas começam a lutar pelo direito ao voto. Mas ainda que em número pequeno, elas tiveram participação política na história do Brasil e da América Latina no século XIX. Parti da seguinte ideia: por que Maria Quitéria [1792-1853], que vivia no sertão da Bahia, se vestiu de homem, foi ser soldado e lutar pela Independência do Brasil contra as forças portuguesas do general Madeira? A história da Maria Quitéria é essa: ela ouviu, na casa do pai, um emissário que estava buscando voluntários para a guerra. Como minha cabeça sempre atravessa as fronteiras, pensei na América espanhola. Foi quando, depois de pesquisar bastante, ler muitas biografias e um ou outro jornal do período, descobri que as mulheres participaram da guerra – sobretudo no caso da América espanhola, porque aqui no Brasil foi muito rápido. Na América espanhola, durante 10, 12 anos de guerra, as mulheres participaram de maneiras muito diversas. Inclusive pegando em armas. Sim, elas pegaram em armas, se vestiram de soldado e muitas foram as chamadas “mensageiras”, isto é, aquelas que se infiltravam e assumiam uma posição, corriam riscos. Para mim, o ponto é que elas se interessaram e participaram, não ficaram alheias. Mesmo quando se pensa em homens, é preciso lembrar que as guerras pela independência são de uma minoria. Apenas uma porcentagem pequena da população participa. Temos aqueles que acreditam na causa, pegam em armas e vão lutar para ganhar ou para perder, é
As mulheres também tiveram participação nas guerras, sobretudo no caso da América espanhola
um risco. Há mulheres que foram presas, julgadas e condenadas. Um caso exemplar é o caso da colombiana Policarpa Salavarrieta [1795-1817], fuzilada na praça de Santafé, em Bogotá. Ela e sete homens, entre eles seu noivo. A morte da Salavarrieta foi algo que repercutiu muito fortemente. Existem quadros de artistas anônimos a retratando no cadafalso. Poemas foram escritos em sua homenagem, peça de teatro. Como ela, outras mulheres também foram condenadas à morte ou a castigos públicos, como ter a cabeça raspada, andar nua pela cidade. São muitas as histórias, mas isso é absolutamente desprezado, ignorado. No entanto, é fato: na América Latina a mulher e a política já estavam juntas no século XIX. Em seus textos, você também faz reflexão importante sobre as utopias. Não resta dúvida de que, para a minha geração, que viveu sob a ditadura, havia uma utopia socialista no horizonte, o que nos dava esperança e força para enfrentar o cotidiano. Depois, nos anos 1980, foi muito forte a perspectiva da importância fundamental da democracia, que também apareceu como uma utopia na América Latina. Atualmente vivemos um momento muito
difícil, de grandes conflitos, confrontações ideológicas, de posições políticas muitas vezes tomadas às pressas, sem maior reflexão dos significados que têm. O problema para mim, mais contundente, é a falta de uma utopia. Nos momentos de extrema dificuldade e desesperança, a minha geração imaginava que havia no horizonte algo melhor, o futuro de alguma maneira nos ofereceria uma sociedade mais justa, a democracia, menos opressão. Isso fazia com que nós, ao mesmo tempo, suportássemos aquele período difícil e nos solidarizássemos. Hoje o mundo parece ser tão cínico... O consumismo ganhou um espaço enorme. A ideia dos grandes princípios que nortearam muitos dos caminhos de políticos e intelectuais, trabalhadores do século XX, parece que se perdeu. Tudo está muito pragmático, imediatista. A mim, isso parece algo perturbador e perigoso. É preciso ter um projeto de futuro para podermos suportar o cotidiano político. Precisamos ter um horizonte. Hoje, o grande guarda-chuva que parece unir as pessoas é a ecologia, pensar as questões ambientais, a preservação da natureza. Isso é algo que comove e junta até aqueles com ideologias políticas diferentes, à esquerda ou à direita. Mas não vejo uma utopia que nos diga “vamos ter um mundo com menos pobreza, com mais igualdade”, que nos alimentou nos momentos mais difíceis do passado. Não sou cética imaginando que as coisas não vão mudar. Acredito que mudarão, mas será demorado. Você diz que a dimensão da esperança como bússola foi eleita pela sua geração. Para onde aponta a sua bússola hoje? Até o começo dos anos 1990 eu tinha muitas certezas. Porque pertenço a uma geração que tinha certezas em relação ao futuro, particularmente do Brasil, da América Latina. No início dos anos 2000, perdi – para o bem, acho – as certezas, mas mantenho o mesmo ânimo e o mesmo entusiasmo olhando para frente. Desejo olhar para o horizonte e tentar enxergar esboços, ainda que mal alinhavados, de utopias. É necessário refletir criticamente sobre o presente e entender que aquilo que se vive não é “natural” e sim resultado das ações e contradições dos indivíduos na história. E, finalmente, lembrar que é preciso ter paciência, pois sabemos que as ideias dão frutos em tempos longos, que não coincidem com os tempos das ações dos políticos. n PESQUISA FAPESP 257 | 31
política c&T STARTUPS y
PIPE
20 anos
contratado a cada dia útil, programa da Fapesp deu impulso a mais de 1.100 pequenas e médias empresas de base tecnológica Fabrício Marques
32 z julho DE 2017
U
m marco no apoio a empresas de base tecnológica no país foi celebrado em São Paulo no final de junho. O programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe), da FAPESP, completou 20 anos de existência com 1.788 projetos contratados e um investimento que alcançou mais de R$ 360 milhões. O Pipe dá suporte a empreendedores que querem transformar conhecimento em novos produtos ou serviços e, com frequência, fomenta a inovação em uma etapa crucial e de alto risco, que é o seu nascimento. A cada três meses, um novo edital é lançado pela Fundação, em busca de projetos em fases iniciais do desenvolvimento tecnológico. Na fase 1, são contempladas propostas de pesquisa de caráter inicial, voltadas para demonstrar a viabilidade técnica e comercial de inovações que despontam a partir da solução de um problema de pesquisa – o limite de financiamento é de R$ 200 mil por até nove meses. Já a fase 2, com até dois anos de duração, destina-se ao desenvolvimento da proposta de pesquisa propriamente dita, podendo chegar, por exemplo, à construção de um protótipo – e oferece até R$ 1 milhão por iniciativa. A fase 3, de que a FAPESP participa com parceiros – até hoje, com a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) –, tem como objetivo o desenvolvimento final da inovação e sua comercialização pioneira. “O Pipe é o maior programa de apoio a startups do Brasil. Combina inovação e meritocracia e criou um grande aquário no qual os investidores querem pescar, conforme disseram técnicos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econô-
fotos eduardo cesar , léo ramos chaves e miguel boyayan
Com um projeto inovador
léo ramos chaves
mico e Social [BNDES] que nos visitaram recentemente”, disse José Goldemberg, presidente da FAPESP, na solenidade que marcou o aniversário do programa no dia 30 de junho. Em 2016, o programa investiu R$ 56 milhões e contratou 228 projetos, o maior número de sua trajetória (ver quadro à página 34). “Foi praticamente um projeto inovador contratado a cada dia útil”, observa Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, que ressalta o empenho da Fundação em ampliar o programa na contramão da crise financeira do país e de seus reflexos no orçamento da FAPESP. O Pipe já apoiou empresas de 125 municípios paulistas, mas a maior parte deles está concentrada em cidades como São Paulo, Campinas, São Carlos, São José dos Campos ou Ribeirão Preto, onde estão sediadas grandes universidades e institutos de pesquisa. “Inovação com base em tecnologia surge naturalmente ao redor de boas instituições de pesquisa”, disse Brito Cruz. Entre as mais de 1.100 empresas com propostas aprovadas, um dos casos de maior sucesso é o da Griaule. Nascida em 2002 numa incubadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), desenvolveu algoritmos e softwares para reconhecimento de impressões digitais, como os utilizados nas urnas eletrônicas do Brasil, além de sistemas de identificação de voz e da face humana. A Griaule foi contemplada com três projetos Pipe. “Eles foram um acelerador do nosso crescimento. Com as bolsas de pesquisadores vinculadas aos projetos, conseguimos reunir massa crítica para aperfeiçoar algoritmos que são o nosso diferencial”, diz Alexandre Creto, gerente de produto da Griaule. Dois pesquisadores que atuaram como bolsistas no último Pipe, concluído em 2011, foram contratados e seguem na Griaule até hoje. A empresa, que começou com cinco pessoas em 2003 e um faturamento de R$ 100 mil, tem hoje 40 funcionários – a metade trabalhando em pesquisa e desenvolvimento (P&D) – e faturou R$ 40 milhões em 2016. Outro exemplo bem-sucedido é a Promip Manejo Integrado de Pragas, sediada em Limeira, que teve aprovado um projeto Pipe em 2006, quando estava instalada na incubadora da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP). A pesquisa gerou dois produtos biológicos contendo ácaros predadores para controle do ácaro rajado, uma praga das hortaliças. “Não era um desafio simples. O produto biológico não existia e o produtor ainda não enxergava sua importância na redução do uso de inseticidas quí-
A Apis Flora, de Ribeirão Preto, desenvolveu um extrato seco de própolis, usado como insumo de medicamentos
micos”, lembra Marcelo Poletti, que fundou a empresa com dois sócios após terminar o doutorado em entomologia na Esalq. Outros projetos Pipe ajudaram a criar produtos baseados em diversos tipos de ácaros e insetos predadores e a desenvolver kits para monitorar a resistência de mosquitos Aedes aegypti a inseticidas químicos. Hoje, a Promip investe 8% de suas receitas em P&D. Com 100 colaboradores, faturou R$ 10 milhões no ano passado. A Promip comercializa cinco produtos e há outros cinco em desenvolvimento. Seu perfil inovador habilitou-a a receber em 2014 um aporte de R$ 4 milhões do Fundo de Inovação Paulista, criado pela agência Desenvolve São Paulo, em parceria com a FAPESP, a Finep, o Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF), o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), além de investidores privados. “A FAPESP investiu R$ 10 milhões no fundo para serem destinados a empresas filhas do Pipe”, explica Francisco Jardim, gestor do Fundo de Inovação Paulista. “Isso tem sido feito por nós com muita empolgação, porque há negócios com grande capacidade de promover a inovação de forma sistemática. Estamos nos preparando para dobrar nossas apostas em alguns deles.” Outros clientes do Pipe, como a Nexxto e a Inprenha Biotecnologia, receberam apoio do fundo. “O programa Pipe, com a avaliação rigorosa que faz das propostas e a forma como orienta os empreendedores, preenche uma lacuna importante. Os fundos podem ajudar as startups a disputar mercados e a resolver problemas de gestão, mas não conseguem avaliar bem o potencial de pesquisas que podem render inovações”, afirma. Segundo Jardim, o fundo tem estimulado outras pESQUISA FAPESP 257 z 33
Um salto no apoio à inovação A evolução anual do número de projetos Pipe contratados e do desembolso da FAPESP com o programa de 1997 a 2016 228
Número de Projetos contratados (não inclui bolsas vinculadas)
159 130
124 118 109
124
72 54
97
98
19
2,7
19
00 20 01 20 02 20 03 20 04 20 05 20 06 20 07 20 08 20 09 20 10 20 11 20 12 20 13 20 14 20 15 20 16
99
19
20
97 19
19
98
0,9
4,9 5,6
6,9
12,1 9,6
12,6
13,6 11,2
15,5 10,5
00 20 01 20 02 20 03 20 04 20 05 20 06 20 07 20 08 20 09 20 10 20 11 20 12 20 13 20 14 20 15 20 16
47 49
99
40
65
19
30 31 32
73
23,5
19,9
20
65
29,9
29,7 27,4 24,5 24
92
52
55,5
Desembolso (em R$ milhões)
Fonte fapesp
empresas apoiadas, como a InCeres, de agricultura de precisão, e a Ventrix, da área da saúde, a apresentarem projetos para o Pipe. “A capacidade de fazer P&D internamente multiplica as chances de sobrevivência de uma startup.” O Fundo Pitanga, criado em 2011 com R$ 100 milhões em recursos de empresários brasileiros de grupos como Natura e Itaú, passou dois anos analisando 700 candidatas a um aporte. Em 2013, escolheu a primeira startup de sua carteira de investimentos, a I.Systems, fundada em Campinas há 10 anos por quatro engenheiros da computação formados na Unicamp. Ela fornece a grandes clientes, como Coca-Cola, Braskem, Ambev, Suzano e Raízen, softwares que utilizam inteligência artificial para controlar processos industriais. Seus programas são capazes de monitorar um amplo conjunto de informações e tomar decisões que reduzem entre 2% e 10% os custos de produção. Segundo Igor Santiago, o presidente da empresa, dois projetos Pipe, aprovados em 2009 e em 2012, foram importantes para desenvolver o protótipo do primeiro produto, o programa Horus, e oferecer a tecnologia no mercado. “Teria demorado muito mais se fôssemos depender apenas de recursos próprios”, afirma. Em 2015, a empresa recebeu apoio do Pipe para desenvolver um produto novo, chamado Leaf Captação, na área de saneamento básico: ele controla a vazão das bombas de captação de água dos rios para abastecimento das cidades, racionalizando o consumo de energia. O carro-chefe da I.Systems é um tipo de software em que não se apostava muito inicialmente, o Leaf para Windows, que roda em computadores de grande porte utilizados por indústrias. A I.Systems cresceu 100% ao ano nos últimos quatro anos. 34 z julho DE 2017
Uma avaliação de 214 projetos Pipe desenvolvidos entre 1997 e 2006, feita pelo Grupo de Estudos sobre Organização da Pesquisa e da Inovação (Geopi), vinculado à Unicamp, mostrou que o programa teve impacto em várias frentes (ver Pesquisa FAPESP nº 147). Cerca de 60% dos projetos avaliados geraram inovações tecnológicas, um índice considerado satisfatório. Isso representou 111 inovações, sendo 59 consideradas novidades no país e 17 novidades em âmbito mundial. “Foram inovações de base tecnológica, como é a proposta do programa”, diz Sérgio Salles-Filho, professor da Unicamp e um dos coordenadores do Geopi. Os projetos ajudaram a criar empregos qualificados: nas empresas avaliadas, o crescimento do contingente de funcionários com nível de graduação foi de 60% e o de profissionais com doutorado, de 91%. Um artigo publicado em 2011 na revista Research Evaluation, cujo autor principal foi Salles-Filho, mostrou que cada R$ 1 alocado pela FAPESP no programa gerou R$ 10,50 de retorno. Uma nova avaliação, com base no período de 2007 a 2016, está sendo feita pelo Geopi, comparando os resultados dos projetos com os de programas de países como Estados Unidos, França e Japão. “O Pipe também passará a ser monitorado continuamente, com coleta de dados após o encerramento do projeto e dois anos mais tarde”, afirma Salles-Filho. Investidores-anjo
A XMobots, de São Carlos, que fabrica veículos aéreos não tripulados, os drones, e fatura mais de R$ 7 milhões por ano, conseguiu montar seu primeiro drone para testes após ter um projeto Pipe fase 1 aprovado em 2009. “Até então, dependíamos
eduardo cesar
do empréstimo de equipamentos de laboratórios da USP em São Paulo para trabalhar”, diz o engenheiro Giovani Amianti, um dos fundadores. “O apoio do Pipe mostrou que nossa ideia tinha potencial. Em outros países, investidores-anjo é que cumprem esse papel, ajudando a transformar uma boa ideia da academia em um negócio nascente”, observa Amianti, cuja empresa hoje comercializa três tipos de drones e emprega 40 pessoas, 10 delas engenheiros da equipe de P&D. Gustavo Pagotto Simões, presidente da Nanox, startup de São Carlos que produz micropartículas com propriedades bactericidas, chama a atenção para uma peculiaridade do Pipe: com quatro editais lançados por ano, a iniciativa da FAPESP tornou-se um esteio para empreendedores do estado. “Sempre que precisamos, estava aberta a oportunidade de submeter uma proposta ao Pipe. Essa regularidade não é tão comum em outras fontes de financiamento”, reconhece Pagotto, que já recebeu recursos da Finep, BNDES, Sebrae e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A Nanox teve uma dezena de projetos Pipe, mas dois foram mais importantes. “O primeiro, em 2005, foi fundamental: aqueles R$ 70 mil permitiram que testássemos nossa tecnologia com clientes”, conta Pagotto, que abriu o negócio com dois colegas de pós-graduação da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Araraquara. Em 2006, a Nanox recebeu um aporte do fundo Novarum. Seu crescimento acelerou: o faturamento em 2010 foi de R$ 2,3 milhões, ante R$ 1,3 milhão em 2009. Outro projeto marcante viria em 2012, quando a Nanox já produzia de 2 a 3 quilos de micropartículas de prata por dia e queria multiplicar por 10 a operação. “A FAPESP e a Finep lançaram um edital para fase 3 do Pipe, e graças a ele conseguimos ampliar nossa capacidade produtiva e fabricar 20 quilos de micropartículas por dia”, conta Pagotto – a produção atual é de 60 quilos
diários. Hoje, os aditivos à base de prata estão integrados a caixas de leite, filmes de PVC e instrumentos odontológicos. Vários beneficiários do Pipe multipliSegundo caram seu faturamento, mas essa não é a avaliação, única medida de sucesso do programa. Segundo Sérgio Queiroz, professor da cada R$ 1 Unicamp e coordenador adjunto da área de Pesquisa para Inovação da FAPESP, alocado pela há vantagens indiretas que resultam da implantação de uma cultura de inovaFAPESP no ção nas empresas. Um exemplo disso é programa a Apis Flora, de Ribeirão Preto, especializada em produtos e medicamentos gerou feitos de mel e própolis. Fundada em 1983, a empresa reforçou nos últimos 10 R$ 10,50 anos sua estrutura de P&D em busca de produtos inovadores. O primeiro Pipe de retorno foi aprovado em 2009, para desenvolver uma biomembrana de celulose que, associada a própolis, seria aplicável em feridas de difícil cicatrização. “Meu doutorado havia demonstrado que o material é útil no tratamento de queimaduras”, lembra Andresa Berretta e Silva, gerente de P&D e inovação da Apis Flora. Em 2010, uma proposta buscou obter um gel à base de própolis para combater a candidíase vaginal. “Com esse projeto, nosso laboratório de biotecnologia deu um salto imenso.” Os investimentos feitos a partir de 2009 resultaram em cinco produtos inovadores, sendo quatro medicamentos, que ainda não chegaram ao mercado. Ainda assim o faturamento cresceu de R$ 7 milhões há 10 anos para R$ 38 milhões atualmente. Uma das razões do desempenho foi a capacidade desenvolvida pela empresa de produzir um extrato de própolis em forma de micropartículas, usado como insumo de medicamentos. Compostos de Essa competência, criada em pesquisa financiada micropartículas pelo CNPq, habilitou a empresa a exportar o insuproduzidos mo para a China e fez a diferença no faturamento. pela Nanox, Outro fruto do esforço foi a criação de uma starde São Carlos tup, a Eleve Pesquisa e Desenvolvimento, incubada na Apis Flora, que já tem dois projetos Pipe aprovados, voltados para desenvolver um medicamento contra leishmaniose e um modelo de pele que substitua animais em testes de cosméticos. A In Vitro Brasil, de Mogi Mirim, multiplicou seu faturamento depois que começou a investir em P&D, a ponto de se tornar a responsável por mais da metade da produção mundial de embriões bovinos in vitro – e ser comprada em 2015 pela norte-americana ABS Global, a maior companhia de genética de touros do mundo. A In Vitro foi fundada em 2002 e só alguns anos mais tarde começou a produzir inovação. Segundo Andrea Basso, coordenadora de pesquisa da empresa, dois projetos Pipe resultaram em abordagens inovadoras no mercado internacional. pESQUISA FAPESP 257 z 35
Geração de empregos Em um grupo de empresas selecionadas, o número de funcionários na época do primeiro projeto Pipe e o número atual
n Antes do Pipe
n Hoje 160
In Vitro Brasil 30
100
Promip 3 Apis Flora 52
92
MMOptics 5
50 45
I.Systems 4 Griaule 5
40
XMobots 9
40
Nanox 3
15
Um deles mostrou que era viável a produção de embriões utilizando bezerras em vez de vacas adultas, com a coleta de óvulos sendo feita por videolaparoscopia após estimulação hormonal. O outro projeto desenvolveu um método de análise genética que permitiu selecionar embriões antes da transferência para vacas receptoras. “Até então, a genotipagem era usada na seleção de animais recém-nascidos para serem utilizados como reprodutores. O que propusemos foi avaliar geneticamente uma amostra de células embrionárias, congelá-las e depois de concluída a análise escolher qual animal iria nascer”, diz Andrea. A empresa hoje tem mais de 160 funcionários, ante 30 empregados de 10 anos atrás. Criou uma rede de 33 unidades laboratoriais que produziram 450 mil embriões em 2016. Faturou no ano passado R$ 28 milhões, cem vezes o valor obtido em 2007. A In Vitro Brasil gerou uma startup que permanece brasileira e da qual Andrea é uma das sócias, a In Vitro Brasil Clonagem Animal. Ela acaba de ser contemplada com um projeto Pipe fase 1, para produção de uma proteína com papel-chave na coagulação sanguínea. O Pipe foi a primeira modalidade de financiamento no Brasil a investir recursos não reembolsáveis em pesquisa em empresas. “Com a Lei de Inovação, de 2004, outras agências passaram a destinar dinheiro a fundo perdido em inovação no setor privado. Mas em 1997 isso era quase um tabu e enfrentamos muitas resistências para implementar o programa”, recorda-se o físico José 36 z julho DE 2017
Fonte empresas
Fernando Perez, diretor científico da FAPESP quando o programa foi lançado. Segundo Perez, o Pipe foi inspirado nos programas SBIR (Small Business Innovation Research), que existem nas agências de fomento norte-americanas com orçamento superior a US$ 100 milhões. “Quando conhecemos os programas SBIR, vimos que se encaixavam no que queríamos implantar na FAPESP, com a pesquisa sendo feita dentro da empresa e resultando em produto, processo ou serviço inovador”, afirma Perez. Um dos argumentos contrários ao programa, diz o físico, era o de que a escassez de candidatos transformaria a iniciativa em um fiasco. Mas decidiu-se correr o risco e, na primeira chamada, houve 79 propostas, das quais 30 foram selecionadas. Nos últimos cinco anos, o programa ganhou mais fôlego, tornando-se menos restritivo quanto ao tamanho das empresas – é possível apresentar uma proposta antes que a empresa seja constituída e formalizar sua criação mais tarde. Sempre que lança uma nova chamada, a FAPESP organiza um evento para esclarecer dúvidas de interessados, o Diálogo sobre Apoio à Pesquisa para Inovação na Pequena Empresa. “O evento tem sido importante para que os proponentes saibam exatamente o que é o programa e para garantir uma boa qualidade das propostas apresentadas”, diz Sérgio Queiroz. No dia 29 de julho, véspera da comemoração dos 20 anos do Pipe, o auditório da FAPESP estava repleto de empreendedores com interesse no próximo edital. n
Geografia da inovação paulista A concentração nos municípios do estado de São Paulo de projetos Pipe contratados desde 1997 Concentração:
1 2 3 4 5 10
Ribeirão Preto • 98
São Carlos • 266 Campinas • 292 São José dos Campos • 128
Adamantina • 3 Alumínio • 1 Americana • 4 Américo de Campos • 1 Amparo • 2 Analândia • 2 Angatuba • 1 Araçariguama • 1 Araçatuba • 3 Araraquara • 9 Araras • 5 Ariranha • 2 Artur Nogueira • 2 Arujá • 2 Assis • 2 Atibaia • 2 Barretos • 2 Barueri • 9 Batatais • 3 Bauru • 4 Boituva • 1 Bom Jesus dos Perdões • 3 Botucatu • 26 Bragança Paulista • 4 Caieiras • 1 Cajamar • 7 Cajobi • 3 Campinas • 292 Capivari • 3
São Paulo • 516
Fonte fapesp
Carapicuíba • 2 Cajati • 1 Catanduva • 3 Charqueada • 2 Cotia • 13 Cravinhos • 4 Diadema • 9 Dois Córregos • 2 Engenheiro Coelho • 4 Estiva Gerbi • 1 Ferraz de Vasconcelos • 2 Franca • 4 Francisco Morato • 2 Franco da Rocha • 1 Garça • 1 Guararema • 2 Guaratinguetá • 1 Guarujá • 2 Guarulhos • 5 Holambra • 8 Hortolândia • 1 Ibiúna • 1 Ilha Comprida • 1 Ilha Solteira • 1
Indaiatuba • 9 Itapecerica da Serra • 1 Itapetininga • 2 Itapeva • 1 Itapira • 7 Itararé • 1 Itu • 1 Itupeva • 1 Jaboticabal • 7 Jaguariúna • 2 Jandira • 1 Jarinu • 1 Jundiaí • 12 Juquitiba • 1 Lençóis Paulista • 1 Limeira • 8 Mairinque • 1 Marília • 1 Matão • 1 Mauá • 4 Mirassol • 1 Mococa • 3 Mogi das Cruzes • 20 Mogi Guaçu • 4
Mogi Mirim • 7 Monte Alto • 1 Monte Aprazível • 1 Monte Mor • 1 Orlândia • 2 Osasco • 2 Palestina • 1 Patrocínio Paulista • 2 Paulínia • 11 Pindorama • 1 Piracicaba • 37 Pirassununga • 6 Poá • 4 Porto Feliz • 1 Rafard • 6 Rancharia • 1 Registro • 2 Ribeirão Pires • 3 Ribeirão Preto • 98 Rio Claro • 9 Riolândia • 2 Salto • 1 Santa Bárbara d’Oeste • 3 Santa Maria da Serra • 1
Santana de Parnaíba • 10 Santo André • 8 Santos • 6 São Bernardo do Campo • 7 São Caetano do Sul • 13 São Carlos • 266 São João da Boa Vista • 1 São Joaquim da Barra • 2 São José do Rio Preto • 13 São José dos Campos • 128 São Manuel • 1 São Paulo • 516 São Roque • 5 Serrana • 2 Sertãozinho • 5 Socorro • 1 Sorocaba • 22 Sumaré • 4 Suzano • 1 Taboão da Serra • 2 Tupã • 1 Valinhos • 3 Vista Alegre do Alto • 1 Votuporanga • 3 pESQUISA FAPESP 257 z 37
Versão atualizada em 17/08/2017
infográfico ana paula campos ilustração fabio otubo
Número de projetos Pipe por município do estado de São Paulo
Entrevista soumitra dutta y
O jogo global da
inovação
Pesquisador indiano lança no Brasil nova edição de ranking internacional sobre o tema Bruno de Pierro
38 z julho DE 2017
Paulo, e lançou a edição de 2017 do relatório. Em entrevista a Pesquisa FAPESP, Dutta falou sobre as principais novidades do documento e os desafios enfrentados pelo Brasil para alavancar a inovação. Quais são as principais conclusões do Índice Global de Inovação 2017? A primeira é que os investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) não estão acompanhando a recuperação da economia global. Em segundo lugar, observamos que há um grupo de países que vai muito bem, algo típico das nações mais ricas e líderes em inovação, como Suécia e Noruega. Percebemos ainda que a diferença entre essas nações e o resto do planeta é muito grande. A terceira conclusão é que existem alguns poucos países que estão conseguindo quebrar essa barreira. Um bom exemplo é a China, que se aproxima dos líderes em inovação. Uma quarta descoberta é que a diferença entre países de baixa renda e os de renda média está realmente diminuindo, porque os países de baixa renda estão alcançando os de média.
eduardo cesar
U
m estudo que analisa o grau de inovação de 140 países mostra que o Brasil ocupa a 69ª posição, ficando atrás de outras economias emergentes, como Índia e China. A queda no ranking é significativa: em 2011, o país ocupava a 47a posição. Para o pesquisador indiano Soumitra Dutta, o governo brasileiro precisa encontrar estratégias para incentivar a inovação no setor privado, ainda que o cenário seja de recessão econômica e crise política. “A prioridade para o governo e para os negócios é investir em inovação. Existem diversas maneiras de fazer isso e conceder isenções fiscais a empresas privadas é uma delas”, defende. Considerado uma das principais autoridades em inovação no mundo, Dutta é reitor da Escola de Negócios da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, e responsável por desenvolver, desde 2007, o Índice Global de Inovação – um dos principais indicadores para comparar o grau do progresso científico e tecnológico entre países. O pesquisador fez uma apresentação no 6º Congresso Brasileiro de Inovação da Indústria, realizado entre os dias 26 e 28 de junho, em São
O reitor da Escola de Negócios da Universidade Cornell participou do 6º Congresso Brasileiro de Inovação na Indústria, em São Paulo
O que os líderes têm feito para permanecer no topo do ranking? Países como Suíça e Noruega investem em toda a cadeia de inovação. Isso significa ter instituições de pesquisa, capital humano e infraestrutura de boa qualidade. Tudo isso precisa ser forte e bem articulado. São países que têm excelentes universidades que, por sua vez, mantêm parcerias robustas com o setor privado. Além disso, esses países apostam na atração de talentos e têm um mercado muito sofisticado, incluindo uma parte de finanças bem desenvolvida. Portanto, são vários elementos que precisam estar em sintonia e em convergência. Para o Brasil reduzir o fosso com o resto do mundo, é necessário investir mais nas instituições de pesquisa e, ao mesmo tempo, em infraestrutura. Houve surpresas positivas este ano? Sim. Um exemplo é a Índia. Em 2015, o país havia sofrido uma queda no ranking. Após mudanças no governo, foram instituídas novas políticas para o meio ambiente e a inovação, que estão contribuindo para a sua recuperação (ver quadro na página 41). O setor de tecnologia da informação (TI) se concentrou no mercado externo, mas muitos outros setores voltaram-se para o mercado interno. Hoje, o mercado doméstico da Índia está crescendo. O que explica o avanço da China? Trata-se do único país em desenvolvimento entre os 25 países mais inovadores. O que se vê é que a China investe em várias frentes, como infraestrutura, indústrias nacionais e capital humano. Nos últimos anos, a pesquisa desenvolvida no país tem sido direcionada a gerar muitas patentes e publicações. A China é o segundo país que mais depositou patentes no mundo nos últimos anos pESQUISA FAPESP 257 z 39
e isso é possível graças a um ambiente favorável para a colaboração entre universidades e empresas. Mas a política econômica chinesa também contribuiu para esse ambiente favorável, como a desvalorização cambial promovida há alguns anos... A China está mudando seu modelo econômico, porque os custos de fabricação estão se tornando mais altos. O país está deixando de ser um local de produção de baixo custo. Para se manterem competitivos no futuro, os chineses sabem que precisarão agregar valor por meio da inovação. O movimento, portanto, tende a substituir o modelo baseado em manufatura pelo de inovação. Essa é uma das razões pelas quais o país tem investido mais em ensino e pesquisa. Quais são os principais critérios usados para definir que um país é mais inovador que outro? Isso depende do nível econômico do país analisado. Se falamos de países de baixa renda, os mais inovadores serão aqueles que investirem mais nas instituições de pesquisa, na formação de capital humano e em infraestrutura. Esses três fatores ajudam alguns entre os países mais pobres a se destacarem. No caso das nações mais ricas, o que faz a diferença é o foco na sofisticação empresarial. Os países ricos já dispõem de boa infraestrutura de ensino e pesquisa, então para eles o desafio é saber como reverter os investimentos na pesquisa em lucro por meio do desenvolvimento de novas tecnologias. No Brasil, várias empresas de base tecnológica, como as startups, não sobrevivem por muito tempo. Esse é um problema muito comum não só no Brasil. Crescer é realmente difícil. Mas a boa notícia é que o Brasil é um país grande e tem um imenso mercado interno. Países grandes como China e Estados Unidos primeiro desenvolveram o mercado interno, para depois fazer com que suas empresas fossem ganhar o mundo. Penso que no Brasil as empresas precisam ganhar o mercado interno, para depois se arriscar no mercado externo. Ocorre que muitas empresas brasileiras não vão para fora. Existem poucas marcas do Brasil lembradas no exterior, como Natura, Embraer, Stefanini. Ainda 40 z julho DE 2017
Países como Suíça e Noruega investem em toda a cadeia de inovação. Isso significa ter instituições de pesquisa, capital humano e infraestrutura de boa qualidade
assim, não são marcas extremamente conhecidas em outros países. O senhor costuma citar a Embraer como um caso de sucesso que deveria ser multiplicado no Brasil. É um bom exemplo. O Brasil não tinha tradição em indústria de aviação. O que ocorreu foi que houve investimentos não só em pesquisa, mas na criação de parcerias entre cientistas e fornecedores. Esses atores uniram diferentes conhecimentos e estabeleceram uma verdadeira rede que extrapolou o contexto local. Se não houvesse conexão com o mundo, o talento local não teria sido suficiente. O Brasil também se destaca na pesquisa com biocombustíveis. O avanço dos carros elétricos pode desencorajar projetos nessa área? Acredito que não. É difícil prever qual tipo de tecnologia vai prevalecer. Haverá várias delas em prática no mundo e não apenas uma dominante. Acho que o Brasil precisa entender como investir em biocombustíveis para torná-los de fato mais eficientes e econômicos, ou seja, uma tecnologia capaz de competir com outras. O problema é que o país tem dificuldade de olhar para fora, devido a
diferentes fatores, como o tamanho de sua economia e a barreira da língua, o que complica a interação mesmo com países da América Latina. Vejo o Brasil como uma grande ilha. E ser uma grande ilha não é bom. Esse isolamento é um problema da pesquisa brasileira? Depende. No setor de TI [tecnologia da informação] observamos que as empresas brasileiras não conseguiram ir para o exterior, embora haja um imenso mercado internacional nessa área. É preciso mais ambição global. No Global Fortune 500 de 2016, uma classificação das 500 maiores corporações do mundo, há, se não me engano, sete empresas brasileiras, enquanto a China tem 130 companhias na lista. Ser grande significa participar do jogo global. É possível inovar em momentos de recessão econômica e crise política? Acho que a prioridade para o governo e para os negócios deva ser investir em inovação. O governo nunca terá, sozinho, recursos suficientes, por isso existem outras maneiras de incentivar a inovação em empresas. O governo pode, por exemplo, conceder isenções fiscais a empresas privadas. Ao favorecer grandes empresas, o governo indiretamente ajuda as pequenas empresas que atuam como fornecedoras das maiores. Qual é a importância da formação de clusters tecnológicos, a exemplo do Vale do Silício, para alavancar investimentos em inovação? Os clusters funcionam. Para isso, precisam ser capazes de atrair capital humano e empresas. Se as empresas certas não estiverem lá, se as pessoas certas não estiverem lá, não haverá sucesso. A chave para o Brasil é que o país precisa se tornar o destino da inovação na América Latina. O que faz o Vale do Silício ser bem-sucedido é a densidade de talentos e de redes de pesquisadores e empresas. Isso é tão forte lá que as ideias são basicamente capazes de atrair os melhores cérebros e promover as melhores colaborações. No Brasil, alguns clusters são bem-sucedidos, como a região de Campinas. Alguns são conduzidos por condições de exportação, como a Zona Franca de Manaus. A China explorou bem as chamadas zonas livres de comércio.
Muitas empresas afirmam que investem em inovação, embora várias delas na verdade façam isso de maneira incremental. Como mudar essa mentalidade? As empresas precisam de apoio para assumir riscos. A oferta de recursos não reembolsáveis, voltados a apoiar projetos disruptivos, é uma maneira de incentivar as empresas a arriscar. Mas de nada vale fazer isso se não houver uma política capaz de promover a internacionalização das empresas. A Alemanha, por exemplo, conta com uma rede de escritórios em mais de 100 países. A função deles é prestar apoio às empresas alemãs na exportação a esses países e mapear potenciais clientes. O governo alemão está ajudando ativamente o setor privado ao criar escritórios desse tipo. Por isso, não se pode esperar que uma empresa cresça e ganhe dimensão internacional mantendo-se enraizada em Campinas, por exemplo. A chamada economia criativa, baseada em uma economia do conhecimento, também contribui para a inovação, certo? Os serviços criativos são muito importantes na geração de inovação. Esse setor inclui a produção de filmes, séries televisivas, jogos de videogame e outras formas de entretenimento. São áreas que demandam avanços tecnológicos e, portanto, pesquisa científica de um jeito diferente. Muita pesquisa tecnológica é direcionada para o entretenimento. Por exemplo, quando estabeleço diálogo com a NBA, a liga norte-americana de basquete, e pergunto qual é o principal desafio deles no momento, a resposta é tecnologia. Isso ocorre porque a NBA quer que o telespectador assista aos jogos em casa tendo a sensação de que está no ginásio. Para reproduzir esse tipo de experiência há uma necessidade grande de novas tecnologias multimídia. É preciso entender, no entanto, que inovação são todas essas novas ideias, novas maneiras de se expressar e também de divertir o outro. Filmes e até mesmo novelas podem ser inovadores. Olhe para Hollywood. Trata-se de uma indústria enorme, que movimenta bilhões de dólares e depende de inovação tecnológica. Há também a indústria da música, que é gigante. Na Índia, a indústria cinematográfica está concentrada em Bollywood, e também é grande. Os filmes produzidos
As economias mais inovadoras Ranking de 140 países divulgado no Global Innovation Index 2017
top 10
Posição Suíça Suécia Holanda Estados Unidos Reino Unido Dinamarca Singapura Finlândia Alemanha Irlanda
brics
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Posição china
22
Rússia
45
África do sul
57
Índia
60
Brasil
69
Fonte Global Innovation Index 2017
na Índia estão participando de festivais nos Estados Unidos, seguindo uma meta de globalização desse produto. Isso é um exemplo da importância de se construir um mercado global para seu produto. De que maneira empresas como a Amazon estão mudando a forma de se pensar inovação? O que está acontecendo é que os negócios estão se tornando híbridos. São reais e, ao mesmo tempo, virtuais, como é o caso da Amazon. Começou virtual e hoje tem lojas, escritórios. Esse tipo de mistura é o futuro. Todos os negócios terão combinações físicas e virtuais. A empresa Airbnb oferece serviço on-line
de reserva de acomodações no mundo inteiro sem nunca ter sido dona de um quarto ou apartamento sequer. Somente agora a empresa está começando a investir na compra de redes hoteleiras. Nesse sentido, acho que a digitalização dos negócios vai continuar e a questão é: quem vai ganhar? Será o Airbnb ou a rede de hotéis Hilton? A Amazon ou a rede de supermercados Walmart? O fato é que todos estão convergindo para o mesmo lugar, ou seja, o hibridismo. Nos Estados Unidos, o varejo movimentou cerca de US$ 4 trilhões no ano passado. Desse total, o componente on-line representa apenas US$ 350 bilhões. Ou seja, aproximadamente 10% dos produtos comprados estavam on-line. O que quero dizer, portanto, é que se a Amazon permanecer puramente virtual, não terá tantas vantagens, pois as compras on-line são apenas 10% do mercado. Por isso a combinação é importante. Estudos de inovação auxiliam governos, empresas e investidores. Qual é a utilidade, na sua opinião, dessas pesquisas em áreas como sociologia da ciência? Elas fornecem novas pistas sobre a relação entre ciência, tecnologia e sociedade? Essa dimensão dos estudos de inovação está começando a ser mais explorada somente agora. Dados gerados em relatórios como o Global Innovation Index certamente podem ser aproveitados em estudos que analisam a relação entre inovação e criatividade ou inovação e sociedade, e algumas pessoas já estão explorando isso. Há pesquisadores que recorrem a essas informações mais concretas para desenvolver teses de doutorado mais teóricas. Espero que isso continue sendo feito com mais vigor, embora eu mesmo não o faça. Como o senhor vê os impactos iniciais da gestão de Donald Trump no sistema de inovação dos Estados Unidos? O país corre um sério risco se Trump permanecer no poder durante os próximos quatro anos. Sou um imigrante nos Estados Unidos, vim da Índia e passei pela França. Se a política anti-imigração proposta por Trump vigorar, o sistema de ciência, tecnologia e inovação do país sofrerá consequências lastimáveis no longo prazo. Mas ainda é cedo para desenvolver uma análise mais concreta. n pESQUISA FAPESP 257 z 41
Bibliometria y
De quem é essa assinatura? Cientistas da computação criam novas estratégias para desfazer ambiguidades em referências bibliográficas
C
ientistas da computação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) propuseram uma nova abordagem para enfrentar o problema da ambiguidade de assinaturas de autores científicos em referências bibliográficas, que faz com que a produção de um pesquisador ora seja confundida com a de colegas que adotam abreviação idêntica, ora seja difícil de agrupar e avaliar, porque o mesmo pesquisador utiliza assinaturas diferentes. Em um artigo publicado em maio na revista Scientometrics, a cientista da computação Janaina Gomide e seu orientador de doutorado Daniel Ratton Figueiredo, professor do Programa de Engenharia de Sistemas e Computação da UFRJ, mostraram a existência de comportamentos que se repetem entre os autores que usam várias assinaturas. Um deles é a mudança rara ou acidental da assinatura em algum dos papers publicados, uma espécie de ponto fora da curva causado por um erro ou descuido do autor ou da revista. Outro padrão é o do pesquisador que assina de uma ma42 z julho DE 2017
neira no começo da carreira e, a partir de certo momento, passa a assinar de outra forma, caso, por exemplo, de mulheres que mudam de sobrenome quando casam ou se separam. E, por fim, há um padrão mais difícil de detectar, o do pesquisador que assina de várias formas sem se preocupar com uma normatização de sua assinatura. Os pesquisadores avaliaram a incidência desses comportamentos em dois ambientes distintos. Um foi a base de dados do Digital Bibliographic Library Project (DBLP), que reúne a produção de cientistas da computação e é usada com frequência como referência em estudos sobre ambiguidade, porque já foram mapeados os casos em que há padrões de assinatura repetitivos. Também foram avaliados 881 pesquisadores brasileiros cujos perfis no Google Scholar exibiam mais de um tipo de assinatura, selecionados entre os bolsistas de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Revelou-se que a substituição acidental de assinatura é a mais frequente, com 43% dos registros no DBLP e 53% do
Google Scholar. A troca num determinado momento da carreira foi responsável por um terço dos casos no DBLP e 18% do Google Scholar. Já a oscilação frequente de assinaturas se revelou um pouco mais comum entre os autores nacionais do Google Scholar, com um terço dos casos, e menos frequente no DBLP, que reúne pesquisadores de vários países, com 25% do total. Uma explicação para a mudança frequente de abreviação entre brasileiros é que o uso no país de nomes compostos e mais de um sobrenome favorece a confusão. “Temos muitos sobrenomes e os utilizamos de forma livre, enquanto os autores dos Estados Unidos são identificados, em geral, apenas pelo primeiro e o último nome”, esclarece Daniel Figueiredo, ele próprio uma vítima do problema: a maioria de seus artigos científicos leva a assinatura Figueiredo, D. R., mas há outros com variantes como Figueiredo, Daniel ou Figueiredo, Daniel R. O passo seguinte do trabalho foi avaliar as redes de colaboração dos pesquisadores que publicam com mais de uma assinatura. Observou-se que cada uma
das três classes – o uso ocasional de uma outra assinatura, a troca de assinatura num certo momento da carreira e o uso frequente de mais de uma assinatura – apresenta redes de colaboração com padrões claros e específicos, cujos perfis podem ser úteis para formular no futuro algoritmos capazes de ajudar a identificar nomes ambíguos. “Desvendar a ambi guidade de nomes é um problema clássico da computação e o que se tenta fazer sempre é encontrar todos os rótulos, ou tipos de assinaturas, que remetem a uma mesma pessoa”, diz Janaina Gomide. “A contribuição do nosso trabalho foi mostrar as causas comuns da ambiguidade, que já eram conhecidas de forma intuitiva, mas ainda não haviam sido medidas, e propor sua utilidade na construção de novos algoritmos”, completa Figueiredo.
ilustrações daniel kondo
confusão na avaliação
O interesse dos pesquisadores por esse tema se explica tanto pelo desafio de criar ferramentas computacionais para resolver um problema concreto quanto pela confusão que as ambiguidades causam na hora de medir a produção
de um cientista, causando prejuízos em processos de avaliação ou em estudos bibliométricos que necessitam de informações precisas sobre autores. Em um levantamento publicado em 2012 no Sigmod Record, publicação trimestral da Association for Computing Machinery (ACM), o brasileiro Alberto Laender, professor do Departamento de Ciência da Computação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), contabilizou 17 métodos computacionais distintos para resolver o problema da ambiguidade que eram utilizados na época. “Hoje, já deve haver pelo menos uns 30 algoritmos diferentes em uso”, conta. O grupo da UFMG elaborou três desses algoritmos. Um deles, conhecido como HHC (Heuristic-based Hierarchical Clustering), foi apresentado em 2007 e passou a ser usado pela DBLP, a mesma base de dados usada no estudo de Daniel Figueiredo, como uma das ferramentas mais simples para enfrentar o problema. Fruto de uma dissertação de mestrado defendida por Ricardo Cota na UFMG, o HHC reúne as informações bibliográficas vinculadas a uma assinatura e analisa pESQUISA FAPESP 257 z 43
se há coautores que se repetem. Quando existe coincidência, avalia também se os títulos dos artigos têm palavras em comum ou se os autores participaram dos mesmos eventos científicos. A eficiência para desfazer a ambiguidade chegou perto de 80%. “O método passou a ser usado por sua simplicidade, mas a busca por algoritmos cada vez mais precisos continuou”, diz Laender. “Há situações em que não há algoritmo capaz de resolver o problema. Entre autores da China, que têm sobrenomes frequentes e uma grande quantidade de abreviações coincidentes, chega a ser inviável.” Um segundo método criado por pesquisadores da UFMG foi o Sand (Self-training Associative Name Disambiguator), que agrupa referências bibliográficas de acordo com características comuns, como a presença de coautores, título e ano de publicação. Utilizando técnicas de inteligência artificial, consegue detectar, em sua etapa final, se há autores que, dadas as suas características, deveriam pertencer a determinados agrupamentos – e calcular as chances de que tais registros sejam referências ambíguas de outros autores já existentes. “Essas técnicas de classificação são bastante conhecidas e um dos nossos ex-alunos de doutorado, Anderson Ferreira, hoje professor da Universidade Federal de Ouro Preto, adaptou-as para a desambiguação. O Sand julga em diferentes classes as referências até chegar à conclusão de que um determinado autor tem de estar naquela classe”, afirma Laender. E o ter44 z julho DE 2017
Ferramentas podem ter outras aplicações, como no agrupamento de dados de prontuários de pacientes ceiro método é o IDNi (Incremental Unsupervised Name Disambiguation), que associa diversas técnicas e é usado para avaliar novos trabalhos científicos incorporados a bases de dados, associando-os de forma automática a perfis de autores já existentes e evitando o surgimento de novas ambiguidades. padrões de conectividade
A combinação de diferentes metodologias pode trazer resultados mais acurados. Diego Raphael Amancio, pesquisador do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da Universidade de São Paulo (ICMC-USP), desenvolveu um método para solucionar ambiguidades de assinaturas baseado na análise das redes de colaboração dos autores, mas que não
se limita a avaliar quem atuou em parceria com quem. Sua estratégia analisa os padrões de conectividade de uma ampla rede de pesquisadores e mostra a situação de cada autor nesse universo. “Utilizando conceitos da teoria de redes complexas, é possível gerar grafos, avaliar a densidade das conexões entre autores e a distância média entre o pesquisador que estou estudando e os demais”, explica Amancio, que propôs utilizar tais medidas para caracterizar a produção de um autor e compará-la com a de outro com o mesmo nome, a fim de resolver problemas de ambiguidade. Amancio foi o autor principal de um artigo publicado em 2015 na Scientometrics que mostrou a eficiência do uso dessa técnica combinada com a análise de padrões de colaboração já consagrada. Mostrou, em simulações com um conjunto de três bases de dados selecionadas para o estudo, que a capacidade de solucionar ambiguidades dessa solução híbrida chegou a 85%, ante 53% quando apenas a abordagem tradicional era utilizada. Ao mesmo tempo que amplificou o problema da ambiguidade em referências bibliográficas, o crescimento da produção científica mundial inspirou novas soluções que passaram ao largo dos algoritmos. Em 2012, foi criado um código alfanumérico que serve como identificação única de pesquisadores. Batizado de Orcid (Open Researcher and Contributor ID), o número passou a ser exigido por instituições e agências de fomento e aglutina a produção de cada autor de forma automática (ver Pesquisa FAPESP nº 238). Mais de 2 milhões de autores já têm sua identificação particular. “Mas nem todos os pesquisadores utilizam esse código e ainda é necessário utilizar métodos empíricos para analisar bibliotecas antigas”, diz Alberto Laender. Daniel Figueiredo observa que o conhecimento acumulado no esforço contra a ambiguidade de nomes pode ter outras aplicações. “É possível utilizar as ferramentas em outros contextos”, diz. Um deles é o agrupamento de informações de prontuários médicos de um mesmo paciente que foi atendido em hospitais públicos ou postos de saúde diferentes. “Também pensamos em estudar o padrão de uso de nomes com ambiguidade de atores e de cineastas em acervos de filmes, como o Internet Movie Database”, informa Figueiredo. n Fabrício Marques
Saúde Pública y
Remédios na ponta do lápis Estudo mostra com quais classes de medicamentos o governo federal gastou mais nos últimos anos
léo ramos chaves
Bruno de Pierro
P
esquisadores do Brasil e da Suécia analisaram a evolução nas compras de medicamentos feitas pelo governo federal entre 2006 e 2013 e observaram que os gastos cresceram e mudaram de perfil. Segundo o estudo, publicado em abril na revista PLOS One, enquanto até 2009 o tratamento de doenças infecciosas recebeu o maior quinhão de recursos do governo, a partir de 2010 esse lugar foi ocupado pela compra de agentes antineoplásicos, medicamentos usados contra o câncer, e de imunossupressores, receitados para combater doenças autoimunes e na prevenção à rejeição de transplantes de órgãos. Essas duas classes de medicamentos consumiram R$ 183 milhões em recursos públicos em 2006 – e R$ 3,7 bilhões em 2013. O estudo mostra que esses tipos de doença não se tornaram mais prevalentes entre os brasileiros, mas sim que os medicamentos contra tais moléstias passaram a ser oferecidos à população e pesaram na conta do Sistema Único de Saúde (SUS). Em volume de medicamentos comprados, o tratamento de doenças cardiovasculares foi responsável por pouco mais de um terço de tudo o que o governo comprou entre 2006 e 2013. “No Brasil, as doenças que mais atingem a população continuam sendo pESQUISA FAPESP 257 z 45
Dispêndio crescente Gasto anual do governo federal com medicamentos registrou aumento nos últimos anos (valores em reais)
7.145.878.320 6.209.677.539 4.107.567.192 3.823.102.981 5.446.906.538
2.634.976.957 2.611.774.940 2.630.530.590
2006
2007
2008
2009
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2012
2013
Fonte fiocruz
a hipertensão e o infarto, além do diabetes, mas os medicamentos para tratar essas enfermidades ficaram mais baratos com o tempo. Ao mesmo tempo, o SUS passou a incorporar e disponibilizar na rede pública medicamentos direcionados para doenças menos prevalentes”, avalia Tatiana Chama Borges Luz, pesquisadora do Grupo de Estudos Transdisciplinares de Educação em Saúde e Ambiente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Minas Gerais e autora principal do estudo.
A
despesa do governo federal com a compra de medicamentos para o sistema público de saúde teve um aumento expressivo nos últimos anos, mostra o estudo. Enquanto em 2006 haviam sido destinados R$ 2,63 bilhões para a aquisição de remédios, em 2013 foram desembolsados R$ 7,15 bilhões, um aumento de 271%. Do valor total gasto naquele período (2006 a 2013), cerca de R$ 34 bilhões, quase 50%, foram utilizados na compra de três classes: os imunossupressores, os antineoplásicos e também alguns antivirais voltados para o tratamento de doenças como Aids, herpes e influenza. “Algumas categorias, como a dos imunossupressores, ficaram mais caras devido à incorporação de novas tecnologias”, explica Tatiana.
46 z julho DE 2017
O estudo indica que os gastos do governo praticamente triplicaram, mas, em termos de volume, as compras apenas duplicaram entre 2006 e 2013. “A despesa cresceu sem que tenha havido um aumento da cobertura correspondente. Essa tendência de crescimento nas despesas farmacêuticas é observada em todo o mundo, mas em níveis diferentes”, alerta a pesquisadora. No Canadá, o dispêndio do governo entre 2006 e 2011 aumentou a uma taxa anual média de 4,5%, enquanto no Brasil foi de 13,3% e, na China, de 14,9%. Para Tatiana, o governo precisaria fazer um balanço para saber como aplicar os recursos de maneira mais eficiente. Dados da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), órgão ligado ao Ministério da Saúde, mostram que 60% dos medicamentos incorporados pelo sistema público de 2012 a 2016 eram de alto custo. Os imunossupressores encabeçam a lista dos medicamentos que mais tiveram aumento na despesa, correspondendo a uma elevação de 25 mil por cento entre 2006 e 2013. Essa classe inclui fármacos utilizados contra o fator de necrose tumoral alfa (TNF-alfa) e também inibidores de outras interleucinas. Esses medicamentos são usados, por exemplo, para tratar doenças como a artrite reumatoide, cuja
prevalência na população é de 0,5% a 1%, e a doença de Crohn, cuja taxa estimada de incidência é de aproximadamente seis casos por 100 mil habitantes. O preço foi o principal fator de aumento das despesas com os imunossupressores – em quantidade a variação foi menor. “As doenças autoimunes representam um grupo de enfermidades que hoje atinge cerca de 8% a 10% da população adulta, sendo menos frequentes em crianças”, explica Magda Carneiro-Sampaio, professora de pediatria clínica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP).
D
e acordo com ela, os medicamentos denominados de imunobiológicos, um subgrupo dos imunossupressores, têm indicação de uso em várias doenças autoimunes e, de fato, são fármacos de alto custo. “Parte significativa deles são anticorpos monoclonais que demandam grande investimento para seu desenvolvimento”, explica Magda. Além do preço elevado, diz ela, observa-se uma ampliação do uso de imunossupressores, provavelmente decorrente do aumento do número de transplantes, e uma maior capacidade de diagnóstico de doenças autoimunes. Medicamentos usados contra o câncer também estão entre aqueles que tiveram elevação de preço no Brasil, acompanhando uma tendência mundial. Dados de 2015 da Sociedade Americana de Oncologia mostram que atualmente o tratamento para câncer chega a custar cerca de US$ 10 mil por mês em média. “As principais inovações nesse campo são as terapias-alvo direcionadas contra alterações moleculares específicas do tumor e a imunoterapia, que busca restabelecer a resposta imune do paciente contra o câncer. Ambas as estratégias têm se mostrado mais eficazes e menos tóxicas que a quimioterapia clássica”, conta Helano Freitas, coordenador científico de pesquisa clínica do A.C.Camargo Cancer Center, de São Paulo. Segundo ele, os novos medicamentos para câncer estão chegando ao mercado brasileiro custando de R$ 30 mil a R$ 35 mil por mês. Freitas explica que o encarecimento se deve, entre outros fatores, ao avanço tecnológico e aos altos investimentos em torno das novas terapias. “Com o avanço da medicina de precisão, doenças comuns, como o adenocarcinoma de pulmão, estão se transformando em múltiplas doenças
A trajetória do desembolso Relação entre a quantidade de medicamentos comprados pelo governo federal e a proporção dos gastos por tipo de fármaco (entre 2006 e 2013)
QUANTIDADE 100
em %
tipo de fármaco
90 80
Em 2013, a maior quantidade de medicamentos adquirida pelo governo federal foi para tratar doenças cardiovasculares (vermelho)
70 60 50 40 30
n Sangue e órgãos de formação do sangue n Sistema cardiovascular
20 10
n Anti-infectantes para uso sistêmico
0
DESPESA 100
em %
n Trato alimentar e metabolismo
90 80
Mas, quando analisados com quais remédios o governo gastou mais naquele ano, observa-se que foram com os imunomoduladores (azul)
70 60 50 40 30
n Antineoplásicos e agentes imunomoduladores n Sistema musculoesquelético n Sistema nervoso n Outros
20 10 0
Fonte fiocruz
raras, de acordo com o tipo de alteração molecular detectado”, afirma Freitas. Em certas situações, ele explica, é possível prescrever medicamentos talhados para um determinado perfil de doença, aumentando as chances de controle da doença no longo prazo. “A sociedade precisa discutir aspectos farmacoecônomicos em relação a essas novas terapias. Os resultados desses tratamentos são animadores, mas os custos estão se tornando impagáveis”, alerta Freitas.
E
loísa Bonfá, diretora clínica do Hospital das Clínicas da FM-USP, afirma que o desenvolvimento das terapias-alvo é especialmente trabalhoso, envolve engenharia genética e demanda grandes investimentos. “Isso gera um custo muito alto e dificulta o acesso ao medicamento, gerando muitas vezes processos na Justiça dos pacientes que precisam de medicamentos não incorporados no SUS”, informa. “Nossa pesquisa certamente inclui valores que foram gastos via judicialização, embora ainda não
2011
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2013
A tendência de crescimento nas despesas farmacêuticas é observada em todo o mundo, diz Tatiana Luz
saibamos quanto”, observa Tatiana Luz, da Fiocruz. O fenômeno da judicialização da saúde está presente em todo o país. Apenas em 2015, o governo paulista gastou R$ 1,2 bilhão em remédios e insumos para 57 mil pacientes que recorreram aos tribunais (ver Pesquisa FAPESP nº 252). “O estudo da Fiocruz deve ser amplamente divulgado entre os tomadores de
decisão na esfera federal”, sugere Carlos Octávio Ocké-Reis, presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Diretor do Departamento de Economia da Saúde do Ministério da Saúde entre 2015 e 2016, Ocké-Reis afirma que vários atores do sistema de saúde pressionam o Estado a incorporar novos medicamentos. Ele menciona a classe médica, os planos de saúde e a indústria farmacêutica. “Lacunas no sistema regulatório do SUS favorecem a pressão. Uma proposta é que o Estado aumente sua capacidade regulatória e, assim, possa ter mais força no momento de negociar com a indústria e de definir quais medicamentos serão disponibilizados no sistema público”, sugere Ocké-Reis. n
Artigo científico Chama, Borges Luz T. et. al. Trends in medicines procurement by the Brazilian federal government from 2006 to 2013. PLoS ONE. Abr. 2017.
pESQUISA FAPESP 257 z 47
Versão atualizada em 17/08/2017
2006 2007 2008 2009 2010
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ciência EPIDEMIOLOGIA y
Crescer
com Down Avaliação de 938 crianças e adolescentes leva à proposta de novos parâmetros para monitorar o peso e a altura de brasileiros com a síndrome Diego Freire
G
iuliano Ferrer Piccolo, de 19 anos, leva uma rotina que seria impensável para muitos jovens com síndrome de Down de tempos atrás. Às segundas-feiras, por exemplo, ele faz aula de bateria e, nos outros dias da semana, alterna seu tempo entre a educação física, as aulas de teatro e um curso preparatório para o primeiro emprego, além dos acompanhamentos terapêuticos e mais batucadas nos tambores. Hoje a população com Down tem melhor qualidade de vida, mas ainda enfrenta dificuldades no cuidado com a saúde. É comum que essas crianças e esses adolescentes precisem lidar com distúrbios associados ao excesso de peso, resultado de condições clínicas próprias de quem tem a síndrome, mas também da falta de tabelas de referência de peso e altura adequadas para pessoas com Down. pESQUISA FAPESP 257 z 49
A altura, dos 3 aos 20 anos... Curvas mostram as faixas de estatura registradas em cada idade para crianças e adolescentes com Down do sexo feminino e do masculino Meninas
Meninos
170 160
p 97 p 90 p 75 p 50 p 25 p 10 p3
150 140
estatura (cm)
p 97 p 90 p 75 p 50 p 25 p 10 p3
130
Cada linha representa um percentil (p). O p3 inclui os 3% da amostra com os valores mais baixos; acima de p97 estão os 3% com os valores mais altos
120 110 100 90 80
3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20
3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20
Idade (anos)
Idade (anos)
Crianças com Down têm problemas de saúde que levam ao sobrepeso e à obesidade e restringem o crescimento
Giuliano passou a adotar uma rotina mais movimentada e a perder peso há cerca de quatro anos, quando ele se juntou a outros 937 adolescentes e crianças com síndrome de Down, todos com idade variando de poucas semanas de vida a 20 anos, em uma pesquisa realizada pelo grupo do pediatra Gil Guerra Júnior na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp). O objetivo era medir o peso, a estatura, o perímetro cefálico e o índice de massa corporal (IMC) e usar os dados para desenvolver curvas de crescimento atualizadas e específicas para essa população no Brasil. Apresentadas em dois artigos científicos publicados neste ano, essas curvas são ferramentas fundamentais para identificar desvios do crescimento considerado saudável e permitiram à mãe e ao médico de Giuliano verificar que ele estava com peso superior ao adequado mesmo para um adolescente com síndrome de Down. “Esse 50 z julho DE 2017
acompanhamento fez com que trabalhássemos em casa, na dieta do Giuliano, e com a pediatra para que ele emagrecesse até alcançar o peso ideal dos meninos da sua idade que têm a mesma síndrome e vivem uma realidade parecida com a dele”, conta a mãe, Cleusa Ferrer. As curvas de crescimento produzidas pelo grupo de Campinas não são as únicas nem as primeiras, mas se propõem a ser as mais atuais e abrangentes para as crianças e os adolescentes brasileiros com Down, um distúrbio genético causado pela presença de uma cópia extra do cromossomo 21 que afeta de 3 a 14 crianças em cada grupo de 10 mil. Para monitorar crianças de até 24 meses de idade com Down, atualmente o Ministério da Saúde recomenda o uso das curvas de crescimento desenvolvidas pelo médico Zan Mustacchi durante seu doutorado na Universidade de São Paulo (USP) e apresentadas em 2002. Para aqueles com idade entre 2 e 18 anos, o órgão orienta utilizar curvas para crianças e adolescentes com Down desenvolvidas na década de 1980 nos Estados Unidos. “Essas curvas podem não ser representativas dos atuais padrões de crescimento de crianças e adolescentes com síndrome de Down de uma faixa etária mais ampla, como a que o nosso estudo contempla”, diz o educador físico Fabio Bertapelli. Ele é assessor científico colaborador da Federação das Apaes do Estado de São Paulo e, com financiamento da
... e o peso, no mesmo período Registro de massa corporal para ambos os sexos com a sídrome
Meninas
Meninos
98
p 97 p 97
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p 90 p 90
78
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peso (kg)
68
p 50
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p 10
48 p 10 38
p3
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Idade (anos)
Idade (anos)
Veja as outras curvas para essas e outras faixas etárias na versão on-line desta reportagem em www.revistapesquisa. fapesp.br fonte Bertapelli, f. et al. journal of epidemiology, 2017
Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), desenvolveu as novas curvas de crescimento para crianças e adolescentes com Down durante o seu doutorado, feito sob a orientação de Guerra Júnior, na Unicamp, e de Stamatis Agiovlasitis, na Universidade Estadual do Mississipi, nos Estados Unidos. Crianças com síndrome de Down apresentam problemas de saúde que comprometem a qualidade de vida, como cardiopatias congênitas, hipotireoidismo, distúrbios gastrointestinais e apneia obstrutiva do sono, além de restrição no crescimento e excesso de peso. Por causa dessas questões de saúde, segundo os pesquisadores da Unicamp, é importante que pais e médicos disponham de referências de crescimento e desenvolvimento mais próximas às da realidade de crianças e adolescentes brasileiros com Down. “Baixa estatura na infância e adolescência, baixo peso nos primeiros anos de vida e sobrepeso após os 2 anos são as características mais comuns entre indivíduos com a síndrome”, explica Guerra Júnior. “Essas crianças e esses adolescentes apresentam padrões de crescimento distintos daqueles da população com e sem síndrome de Down de estudos realizados em outras épocas.” mais baixinhos
Para a construção das curvas, os pesquisadores avaliaram 10.516 medições de peso, estatura e
perímetro cefálico feitas em 938 crianças e adolescentes com Down que frequentavam o Ambulatório de Integração de Especialidade Pediátricas da Unicamp e outros 50 centros de atendimento de pessoas com síndrome de Down no estado de São Paulo. Sempre que possível, eles acrescentaram os valores de medições anteriores registradas no prontuário médico ou na caderneta de saúde de cada criança. Quando comparados com a população sem a síndrome, os participantes do estudo apresentaram menor estatura em todas as idades. A divergência na altura média aumentou no início da adolescência e atingiu seu maior nível entre 17 e 19 anos. Nessa faixa etária, os brasileiros com Down são cerca de 20 centímetros mais baixos do que os adolescentes sem a síndrome – nos Estados Unidos, os adolescentes com Down, em especial do sexo masculino, são um pouco mais altos que os brasileiros. Crianças com Down também têm menor perímetro cefálico nos dois primeiros anos de vida e menor peso corporal até os 15 meses de idade. Mas depois engordam mais rapidamente e, dos 3 aos 18 anos, passam a apresentar IMC maior do que as crianças e os adolescentes sem a síndrome. “Existem cerca de 15 curvas de crescimento para crianças e adolescentes com Down”, conta Bertapelli. “Quase todas informam que eles tendem a apresentar sobrepeso e obesidade, mas pESQUISA FAPESP 257 z 51
ganho acelerado de peso
A restrição no crescimento e o baixo peso nos primeiros anos de vida podem ser explicados pelas dificuldades para se alimentar, causada por redução do tônus muscular (hipotonia) ou por disfunções no sistema oral-motor, comuns na síndrome de Down. Algumas dessas crianças também podem ter nascido com peso inferior ao desejado em consequência de problemas ligados à placenta, mais frequentes nas gestações de mulheres com mais de 35 anos. “As crianças que acompanhamos são mais magras no começo da vida, mas depois passam a engordar mais rapidamente”, relata Bertapelli. “Com o início da adolescência, o ganho de peso se acentua e a maioria se torna obesa.” “São diversos fatores interagindo entre si e determinando o crescimento físico durante a vida fetal, a infância e a adolescência”, conta Laura Guilhoto, neurologista da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenadora científica do Instituto Apae de São Paulo. Ainda não se sabe ao certo o que provoca o ganho excessivo de peso na síndrome de Down. Alguns estudos sugerem que ele possa decorrer de desordens na produção e no aproveitamento do hormônio leptina, que controla a ingestão e o gasto energético. Outros trabalhos propõem que a falta de atividade física regular e a adoção de dietas inadequadas também contribuam para o problema, uma vez que quem tem Down parece ter o metabolismo basal reduzido e necessitar de menos calorias para manter as funções vitais. “Comparar o crescimento de crianças com síndrome de Down com o das que não têm pode levar a erros importantes, como o entendimento equivocado de que a criança está desnutrida, obesa ou mesmo com o peso adequado quando não está”, explica Laura. “Por isso é 52 z julho DE 2017
Comparar dados de quem tem a síndrome com os de quem não tem pode levar a equívocos
importante ter à disposição curvas que retratem essa realidade”, afirma. A comparação das curvas da Unicamp com outras já existentes também sugere que as taxas de crescimento e de ganho de peso podem variar de uma população para outra, o que reforça a relevância das novas curvas para a população brasileira. “As diferenças se devem ao fato de as curvas anteriores terem sido desenvolvidas com base em uma amostra de crianças brasileiras com síndrome de Down nascidas antes de 2000”, conta Guerra Júnior. Estudos feitos em vários países mostram existir uma tendência secular de crescimento, especialmente em relação ao peso corporal. Por essa razão, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos financiaram a realização de novas curvas de crescimento para crianças com Down, publicadas em 2015. Apesar de ser melhor do que as curvas de crescimento usadas anteriormente no país, as da Unicamp ainda apresentam limitações. Nem sempre as medições seguiram uma padronização, problema parcialmente corrigido com o tratamento estatístico dos dados, segundo os pesquisadores. Também não havia participantes de todo o Brasil, como seria desejável, o que o grupo da Unicamp não considera grave. “A população do estado de São Paulo tem uma composição étnica representativa de todo o país”, argumenta Bertapelli. “No final de junho, a Sociedade Brasileira de Pediatria endossou o meu pedido e o encaminhou ao Ministério da Saúde recomendando a adoção das curvas como referência no país”, conta Guerra Júnior. n
Artigos científicos BERTAPELLI, F. et al. Growth charts for Brazilian children with Down syndrome: Birth to 20 years of age. Journal of Epidemiology. v. 27 (6), p. 265-73. jun. 2017. BERTAPELLI, F. et al. Body mass index reference charts for the individuals with Down syndrome aged 2-18 years. Jornal de Pediatria. v. 93 (1), p. 94-9. jan. 2017.
Versão atualizada em 17/08/2017
nenhuma mostrava que essas crianças ganham menos peso até o segundo ano de vida.” As curvas produzidas pelo grupo da Unicamp indicam que, nos primeiros seis meses de vida, as crianças brasileiras com Down chegavam a ter até 1,4 quilo a menos do que a média dos garotos e garotas sem a síndrome. Esse dado preocupa porque os dois primeiros anos de vida constituem um período crítico do desenvolvimento, em que vários órgãos e tecidos ainda estão se desenvolvendo – o cérebro, por exemplo, atinge 70% de seu volume final no segundo ano de vida. Estudos populacionais feitos com crianças sem Down em Pelotas, no Rio Grande do Sul, sugerem que o ganho de peso rápido nessa fase da vida se transforma em ossos, músculos e vísceras, como o fígado e os órgãos do sistema nervoso central. Depois dessa fase, o aumento rápido do peso gera tecido adiposo (ver Pesquisa FAPESP nºs 179 e 208).
IMUNOLOGIA y
Dengue pode atenuar zika Estudos sugerem que a infecção prévia pelo primeiro vírus ameniza o quadro da segunda enfermidade
montagem fotográfica James Gathany / cdc e léo ramos chaves
Ricardo Zorzetto
Q
uem já teve dengue e é infec tado pelo vírus zika aparente mente não desenvolve uma enfermidade mais severa do que pessoas sem contato prévio com o primeiro vírus, como se cogitou ante riormente. É até mesmo possível que apresente um quadro mais leve e transi tório de zika. A perspectiva de que uma infecção anterior por dengue exerça um efeito amenizador contra o outro vírus emerge de dois estudos recentes, um publicado em 20 de junho na revista Clinical Infectious Diseases e outra no dia 23 na Nature Communications. Os dois trabalhos, o primeiro realizado com seres humanos no Brasil e o segun do com macacos em Porto Rico, apresen tam as primeiras evidências de que uma infecção por dengue seguida de outra por zika desencadeia no organismo dos primatas uma resposta imune diferen
te da observada em experimentos com roedores ou com células cultivadas em laboratório. Antes dos trabalhos publi cados em junho, modelos experimentais usando células in vitro ou camundongos com o sistema imune debilitado indica vam que, após uma infecção por dengue, o vírus zika conseguiria driblar com mais facilidade as defesas do organismo e se multiplicar mais. A consequência seria um quadro mais grave de zika. Alguns grupos de pesquisa se baseavam nessa hipótese para tentar explicar por que o número de casos de microcefalia ligado ao zika foi muito maior no Brasil, onde a dengue é endêmica, do que em outras regiões do mundo. “Nossos resultados indicam que esse agravamento não ocorre ou, se ocorrer, é muito raro e não pode ser detectado em um estudo como o que fizemos”, afirma o virologista Maurício Lacerda Noguei
Aedes aegypti, transmissor dos vírus zika e da dengue: reações diferentes em primatas e roedores
pESQUISA FAPESP 257 z 53
ra, professor da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (Famerp). Ele coordenou o estudo publicado na Clinical Infectious Diseases, o primeiro a indicar que, em seres humanos, uma infecção prévia por dengue não leva necessaria mente a um quadro mais grave de zika. Ambos os vírus são transmitidos pelo mosquito Aedes aegypti. O grupo de Nogueira coletou san gue de 65 moradores de São José do Rio Preto que, entre janeiro e julho de 2016, no auge da epidemia de zika, bus caram atendimento médico com sin tomas que lembravam dengue ou zika (febre, dores musculares e de cabeça, além de manchas pelo corpo). Situada na região norte do estado de São Paulo, a 450 quilômetros da capital, São José do Rio Preto encontra-se em uma área em que a dengue é endêmica e pela qual o zika se espalhou no ano passado. A análise do sangue dos participantes revelou que, na época, 45 apresentavam infecção por zika e 20 por dengue. Os testes indicaram ainda que 78% dos que tinham zika (35 pessoas) e 70% daqueles com dengue (14) já haviam sido infecta das pelo vírus da dengue anteriormente.
309.783 casos notificados de infecção por
zika 1º jan 2015 – 12 nov 2016
gravidade semelhante
Nesse estudo, realizado em parceria com pesquisadores de duas instituições nor te-americanas e outras três paulistas – a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Estadual Paulista (Unesp) e o Instituto Butantan –, Nogueira e sua equipe examinaram também a quan tidade de cópias do zika no sangue de pessoas infectadas anteriormente com dengue e compararam com a encontra da no sangue daquelas jamais expostas a esse vírus. Se a infecção prévia por den gue facilitasse a multiplicação do zika, a quantidade deste vírus deveria ser bem mais elevada no organismo do primeiro grupo de pacientes. Não foi o que ob servaram. A concentração de vírus foi semelhante em ambos. “Nosso estudo tinha poder estatístico suficiente para detectar uma diferença muito pequena, de apenas 10 vezes, na concentração do vírus”, conta Noguei ra, que integra a Rede de Pesquisa sobre Zika Vírus em São Paulo (Rede Zika), apoiada pela FAPESP. Seria esperado encontrar dezenas de milhares de vezes mais cópias de zika no sangue de quem já teve dengue, caso o fenômeno obser 54 z julho DE 2017
4.497.133 casos notificados de infecção pelo vírus da
dengue 1º jan 2015 – 12 nov 2016
Fonte OLIVEIRA, W. K. et al. Lancet. 21 jun. 2017
vado em roedores e em células in vitro também ocorresse em seres humanos. Pouco após a disseminação dos casos de zika no Brasil – um estudo publicado em junho na revista Lancet informa que o Ministério da Saúde registrou quase 310 mil casos em 2015 e 2016 –, come çou-se a suspeitar de que a infecção pré via por dengue pudesse gerar quadros de zika mais graves, semelhantes aos que ocorrem na dengue hemorrágica. Mar cada por sangramentos e, quando mais severa, por queda importante de pressão arterial, a dengue hemorrágica costuma ocorrer em pessoas que já haviam tido a doença e são infectadas por um subtipo diferente do vírus (há quatro no Brasil). O problema é que os anticorpos que o sistema imune produz contra um nem sempre neutralizam o outro de modo eficiente, gerando imunidade parcial. Segundo uma hipótese chamada incre mento dependente de anticorpos (ADE), a imunização incompleta poderia faci litar a entrada do vírus nas células do sistema de defesa em que ele consegue se reproduzir, aumentando o número de suas cópias no organismo e a gravidade da infecção. Como os vírus da dengue e da febre zika são muito próximos evo lutivamente (integram a família dos fla vivírus), imaginava-se que a imunização parcial que favorece o agravamento da dengue também pudesse tornar mais severos os quadros de zika. Essa suspeita ganhou força em meados de 2016 quando surgiram os primeiros estudos mostrando que os anticorpos que protegem da dengue também atuam contra o vírus zika, mas não os neutra lizam totalmente. Em março deste ano, pesquisadores dos Estados Unidos ve rificaram que essa imunização parcial aumentava a multiplicação do zika em camundongos com o sistema imune debi litado. Os resultados apresentados agora na Clinical Infectious Diseases indicam que o que se passa com células in vitro e com roedores não necessariamente ocorre com seres humanos. “Esses resultados não excluem to talmente a possibilidade de que a ADE ocorra, mas são um indício importante de que ter tido dengue não leva a uma infecção mais grave por zika”, conta o imunologista Jorge Kalil, professor da USP e coautor da pesquisa. “Na reali dade, há relatos não publicados de que pessoas que já tiveram dengue apresen
léo ramos chaves
taram uma forma mais branda de infec ção ao contrair zika.” A possibilidade de que a infecção pré via por dengue possa levar a uma forma mais amena de zika recentemente ga nhou um reforço importante. No arti go publicado em 23 de junho na Nature Communications, o grupo do virologista Carlos Sariol, da Universidade de Por to Rico, apresentou indícios de que, em macacos, animais com um sistema de defesa mais parecido com o do ser hu mano, a imunidade desenvolvida contra o vírus da dengue pode atenuar a infec ção por zika. Os pesquisadores contami naram com zika oito macacos do Centro Caribenho de Pesquisa em Primatas e, em seguida, acompanharam a resposta imunológica dos animais ao longo de 60 dias. Metade dos macacos já havia sido infectada por dengue cerca de três anos antes, enquanto a outra metade jamais havia tido contato com o vírus. infecção mais amena
Nos testes in vitro feitos com o sangue dos animais, os anticorpos contra a den gue imunizaram apenas parcialmente contra o vírus zika, facilitando a sua mul tiplicação e corroborando o resultado dos estudos com roedores. Nos macacos, porém, foi diferente. Em vez de agravar o quadro, os anticorpos contra a dengue ajudaram a reduzir mais rapidamente a concentração de zika no sangue, abre viando a infecção. “Recomendamos cau
Tela de computador mostra a detecção do vírus zika (curva ascendente) feita por meio do teste de reação em cadeia da polimerase (PCR)
tela no uso de modelos de camundongos imunodeficientes para compreender a patogênese da infecção por vírus zika em pessoas”, escrevem os pesquisadores no artigo da Nature Communications. Com base nesses resultados, o grupo coordenado por Sariol levantou a hipóte se de que grávidas já expostas ao vírus da dengue talvez apresentem uma probabi lidade menor de transmitir o zika ao feto, o que reduziria o risco de ocorrer danos no sistema nervoso central da criança. É que a transmissão da gestante para o bebê parece depender de uma infecção por zika mais duradoura e da presença de uma maior quantidade de vírus. “Se o incremento mediado por anti corpos causado pela dengue levasse à microcefalia, deveríamos ter identifi cado centenas de casos em Rio Preto e em Ribeirão Preto”, explica Nogueira. “Não detectamos nenhum.” A equipe do virologista também acompanhou em Rio Preto 55 mulheres que tiveram zika durante a gestação. Todas deram à luz filhos sem microcefalia – algumas das crianças apresentaram danos neuroló
gicos, mas bem mais leves do que os re gistrados no Nordeste. “Sem dúvida, esse artigo [da Clinical Infectious Diseases] tem implicações de longo alcance, tanto epidemiológicas quanto para o desenvolvimento de va cinas”, afirma o pesquisador Nikos Vasi lakis, da Universidade do Texas, coautor do estudo. “Esses dados sugerem que outros fatores podem ser os responsá veis pela síndrome congênita do zika.” As evidências de que a infecção por dengue levaria a uma febre zika mais se vera levantaram uma preocupação com respeito ao desenvolvimento de vacinas, em especial a vacina da dengue, em teste no Brasil. “Houve o temor de que vacinar a população contra a dengue pudesse le var a casos mais severos de zika”, conta Kalil. “Os resultados indicam que esse problema não deve existir.” n
Projeto Estudo epidemiológico da dengue (sorotipos 1 a 4) em coorte prospectiva de São José do Rio Preto, São Paulo, Brasil, durante 2014 a 2018 (nº 13/21719-3). Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Maurício Lacerda Nogueira (Famerp); Investimento R$ 2.306.387,68.
Artigos científicos TERZIAN, A. C. B. et al. Viral load and cytokine response profile does not support antibody-dependent enhancement in dengue-primed Zika-infected patients. Clinical Infectious Diseases. 20 jun. 2017. PANTOJA, P. et al. Zika virus pathogenesis in rhesus macaques is unaffected by pre-existing immunity to dengue vírus. Nature Communications. 23 jun. 2017.
pESQUISA FAPESP 257 z 55
Entrevista Robert Tesh y
Caçador de arbovírus Médico que percorreu a América Latina coletando esses patógenos transmitidos por artrópodes fala sobre o desempenho do Brasil durante a epidemia de zika
A
ntecipar grandes ameaças virais à saúde pública é extremamente difícil, mesmo para alguém como o médico e virologista norte-americano Robert Tesh, que há mais de cinco décadas estuda a diversidade mundial dos arbovírus, os vírus transmitidos por insetos e outros artrópodes. “Sempre podem acontecer surpresas”, conta Tesh, que é professor emérito da Divisão Médica da Universidade do Texas (UTMB). “Quem é que pensaria no vírus zika como uma ameaça 20 anos atrás?” Durante décadas, Tesh dirigiu o Centro de Referência Mundial para Vírus e Arbovírus Emergentes da Organização Mundial da Saúde, instalado na UTMB. Ali, estão armazenadas 7 mil amostras de vírus de todo o planeta, disponíveis para serem estudadas por pesquisadores em busca de pistas sobre as possíveis epidemias atuais e futuras e de caminhos para combatê-las. Ele próprio participou da coleta de muitos desses patógenos realizada em boa parte da América Latina. Hoje com 81 anos, Tesh já perdeu a conta de quantas vezes esteve no Brasil, onde passou temporadas como pesquisador visitante no
56 z julho DE 2017
Instituto Evandro Chagas, no Pará, e no Adolfo Lutz, em São Paulo. Mais recentemente o virologista e seus colegas acompanharam o lento avanço do zika pela Ásia e pelas ilhas do Pacífico antes que chegasse ao Brasil e infectasse um número grande de pessoas. Para ele, a confusão e o pânico que acompanharam a epidemia não teriam sido muito diferentes se ela tivesse ocorrido nos Estados Unidos ou em outro país desenvolvido. Ainda segundo sua opinião, não é realista esperar que alguma nova tecnologia leve à erradicação do Aedes aegypti e das doenças transmitidas por ele, uma vez que tanto o vírus quanto o mosquito são versáteis e podem se adaptar às tentativas de interferência humana. “Em resumo, a luta vai ser longa”, afirma. No início de junho, Tesh esteve em São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, para participar da São Paulo School of Advanced Science in Arbovirology, realizada com apoio da FAPESP. Pouco antes de partir para uma viagem de passeio no Pantanal, ele conversou com Pesquisa FAPESP sobre a história e o futuro dos arbovírus nas Américas e no mundo.
joão Moura
Reinaldo José Lopes
Tesh: Não é realista esperar que alguma nova tecnologia leve à erradicação do Aedes aegypti e das doenças transmitidas por ele
Quanto sabemos e o que ainda falta conhecer sobre a diversidade dos arbovírus no Brasil e no mundo? Quando falamos de arbovírus, estamos falando de vírus que são transmitidos por artrópodes que sugam sangue, como carrapatos, pernilongos ou mosquitos-palhas. De todos os arbovírus conhecidos, o maior número vem da América do Sul [região de origem de cerca de 150 das mais de 500 espécies conhecidas]. Superando os originários da África? Sim, em parte provavelmente porque o trabalho mais intensivo de identificação foi feito na América do Sul. O fato de se conhecer mais arbovírus da América do Sul, então, decorre de uma questão de amostragem? Tem a ver com as regiões em que os laboratórios, em especial os financiados pela Fundação Rockefeller, foram procurar esses vírus. Pouquíssimos eram conhecidos antes dos anos 1930, como os causadores da febre amarela, da dengue e de uma ou duas das encefalites. A Fundação Rockefeller criou um programa voltado à procura de novos vírus, o que aumentou muito a descoberta de arbovírus. Mas há muito mais deles a serem descobertos. Estamos começando a entender que há um enorme número de vírus disseminados por mosquitos e outros vetores que são exclusivos de insetos e nunca chegam a vertebrados, embora possuam um parentesco muito próximo com os arbovírus. Por que eles voltaram a parecer mais ameaçadores nas últimas décadas? Os vírus têm se deslocado mais rapidamente com o aumento da mobilidade dos seres humanos. Hoje, pode-se entrar em um avião e, em menos de 24 horas, ir a Tóquio ou à China. Com essa capacidade de viajar tanto em tão pouco tempo, vírus como o zika e o chikungunya, que antes tinham uma distribuição restrita, pESQUISA FAPESP 257 z 57
Nesse ponto a infecção por zika deve se tornar como a por dengue. Há quatro sorotipos da dengue. Em certos anos, o vírus do sorotipo 1 ou 2 está em alta, as pessoas são infectadas e desenvolvem imunidade contra ele. Alguns anos depois, é a vez de os casos de dengue tipo 3 ou 4 aumentarem. O vírus nunca desaparece de vez, embora possa ir para outras áreas e depois ser reintroduzido em uma região em que já circulou.
espalharam-se rapidamente depois de chegar ao Novo Mundo. Outro exemplo é o do vírus do Oeste do Nilo, que chegou à América do Norte em 1999. Ele tinha sido isolado na África nos anos 1930 e também estava presente no Oriente Médio, mas, de repente, lá está ele no Novo Mundo. É possível dizer que subestimamos o zika quando apareceu no Brasil pela primeira vez? Era inevitável que se tornasse um problema tão grave? Nós tínhamos interesse no zika porque é um arbovírus. Em 2010, isolei uma cepa obtida de uma criança do Camboja. Sabíamos que ele estava presente no Sudeste Asiático e na África, mas não havia muitos registros de casos em seres humanos, em parte, porque o zika causa sintomas muito parecidos com os da dengue e da febre chikungunya. Clinicamente é muito difícil diferenciar os sintomas provocados por um dos vírus dos causados pelos outros, e há casos assintomáticos. Eventualmente a infecção por zika era até diagnosticada, mas a maioria dos laboratórios não tentava identificar o vírus, até que ele chegou a algumas ilhas do Pacífico, como a Polinésia Francesa, e causou um surto enorme. Incluindo casos de microcefalia, certo? Sim, microcefalia e síndrome de Guillain-Barré [reação autoimune que pode afetar seriamente o sistema nervoso dos adultos]. Depois que o vírus se espalhou pelo Pacífico e chegou à ilha de Páscoa, pensei: “Bom, pode ser que chegue ao Chile”. Mas acabou aparecendo no Brasil, o que foi uma surpresa. Os especialistas estavam de olho nele, mas 58 z julho DE 2017
As pessoas ainda estão tentando entender por que o zika causou efeitos tão graves durante a gestação. Essa foi a grande surpresa. Há um vírus chamado akabane, que ocorre no Janão esperavam que fosO pesquisador, pão e na Austrália e causa se provocar os efeitos em seu antigo malformações em ovelhas, que causou nem que se laboratório nos semelhantes às que o zika espalhasse por todo laEstados Unidos provoca nos membros de do. Olhando a situação crianças infectadas durante da perspectiva atual e a gestação. Esse vírus tamconsiderando que o ciclo do zika é muito parecido com o da bém pode levar a abortos. Mas não codengue e envolve o Aedes aegypti, talvez nhecíamos outros arbovírus que se comnão seja surpreendente que ele tenha se portassem dessa maneira. O zika parece espalhado tanto e originado um número persistir por bastante tempo no feto. No tão grande de casos, uma vez que en- caso de homens infectados, permanece controu uma população virgem, na qual por longos períodos nos testículos, algo ninguém tinha sido infectado antes. De- parecido com o que verificaram no caso pois, aconteceu o que todos sabem. Do do ebola. Homens que contraíram o vírus Brasil foi para a Colômbia, e de lá para continuaram capazes de infectar outras o Caribe, a América Central e o México, pessoas pela via sexual durante meses. com muitos casos em Porto Rico, Haiti, República Dominicana e Honduras e al- Melhorou a nossa capacidade de evitar esse tipo de epidemia ou de detê-la em guns casos na Flórida e em Cuba. sua fase inicial? Se há um vírus novo, para o qual não há Como está a situação nessas regiões? Em Porto Rico, os casos começaram a vacinas e há muitos transmissores, codiminuir. Chega-se a um ponto no qual mo o Aedes aegypti, é muito complicado a proporção de pessoas imunizadas [por fazer o controle. já terem tido a doença] é tão grande que ocorre o que se chama de imunidade Ao menos em princípio, seria possível de manada. Cada vírus é um caso, mas, evitar esse tipo de epidemia? depois que 50% das pessoas tiveram a É muito difícil controlar mosquitos. É alinfecção, fica mais difícil para o vírus go que as pessoas têm tentado fazer descircular, porque diminui o número de de que perceberam a ligação entre eles indivíduos suscetíveis. Durante a sua e essas doenças, mas não houve muito curta vida, o mosquito infectado precisa sucesso. Avançamos muito no caso da fepicar outra pessoa não imunizada para bre amarela, mas isso também teve a ver que o ciclo continue. De agora em diante, com o desenvolvimento de uma vacina. não acho que o zika vá desaparecer do Conseguimos eliminar o Aedes aegypti Brasil ou das Américas, mas certamente do meio urbano por um tempo, mas não erradicamos a febre amarela silvestre, haverá poucos casos. que envolve a infecção de macacos. MuiMesmo quando nascer uma nova ge- ta gente agora tenta novas técnicas para ração de crianças que ainda não teve controlar mosquitos que não envolvem inseticidas. São estratégias como a infeca doença?
arquivo pessoal
ção de mosquitos com bactérias do gênero Wolbachia ou a criação de mosquitos transgênicos. Sou cético em relação a essas abordagens. No caso dos transgênicos, são introduzidos nos machos genes, que tornam sua prole estéril. A geração seguinte vai morrer sem deixar descendentes, mas, depois, é preciso introduzir mais machos geneticamente modificados na população. Não é impossível que os vírus ou os mosquitos, por meio da seleção natural, encontrem maneiras de burlar essas estratégias, mais ou menos como a resistência a antibióticos emerge entre as bactérias. Em resumo, a luta vai ser longa. Qual o vírus mais assustador que já enfrentou? Não é um arbovírus. Estive envolvido no estudo da febre hemorrágica venezuelana, causada por um arenavírus, o guanarito, do mesmo grupo do vírus junin, que causa febre hemorrágica argentina, ou do machupo, presente na região de Beni, na Bolívia. No caso do vírus da febre hemorrágica venezuelana, um cientista daquele país o isolou e mandou amostras para mim. Também trabalhei por cinco anos na Venezuela, coletando roedores para entender o ciclo de vida do vírus. Esses vírus são muito perigosos, com uma taxa de mortalidade em torno de 25%. Ainda não há tratamentos disponíveis para a infecção que causam, embora já exista uma vacina para o junin que é usada na Argentina. Como são transmitidos? Por aerossol [gotículas suspensas no ar]. Certos roedores selvagens são o reservatório natural desses vírus e os carregam ao longo de toda a vida, algo parecido com o que ocorre com os hantavírus. Esses animais liberam o vírus no ambiente por meio da urina e da saliva. Não há transmissão de pessoa para pessoa, embora as equipes dos hospitais possam se contaminar com o sangue de pacientes infectados. O Brasil tem feito a lição de casa no que diz respeito aos vírus emergentes e ao próprio zika? O Brasil foi o primeiro país a ter uma epidemia de zika de grande magnitude. Se a mesma situação tivesse acontecido nos Estados Unidos e de forma tão explosiva quanto foi aqui, algumas das mesmas
De agora em diante, não acho que o zika vá desaparecer do Brasil ou das Américas, mas certamente haverá poucos casos, diz o virologista
coisas teriam ocorrido. Talvez as coisas sejam um pouco mais organizadas nos Estados Unidos e seria um pouco mais fácil enfrentar o problema, mas é um tipo de emergência que causa muito pânico nas pessoas. Honestamente, não sei se conseguiríamos nos sair muito melhor que o Brasil. Existe uma ligação entre o desaparecimento da febre amarela urbana no Brasil e o avanço da dengue? Os vírus estariam competindo entre si no organismo do mosquito, o que explicaria por que a febre amarela não volta com tudo? Para começar, não costuma haver simultaneamente a infecção de mosquitos com dois vírus muito aparentados. Não é possível infectá-los com dengue tipo 1 e tipo 4 ao mesmo tempo, por exemplo, e não acho que seja possível com dengue e febre amarela. Já a coinfecção de chikungunya e dengue em um mesmo inseto pode ocorrer porque o primeiro é um alfavírus e o segundo é um flavivírus, que são bem diferentes. O desaparecimento da febre amarela urbana pode ser explicado como resultado de uma ação da Organização Pan-americana da Saúde (Opas), que, depois da Segunda Guerra Mundial, decidiu tentar erra-
dicar o Aedes aegypti das Américas. A Opas criou um programa que, após 20 anos de esforço, foi bem-sucedido. Quase toda a América do Sul e a América Central ficaram livres do mosquito. Na Venezuela, porém, optou-se por vacinar toda a população e deixar de lado a erradicação dos mosquitos, o que não foi bom para os demais países, já que os insetos conseguem atravessar fronteiras. No Caribe, a erradicação também não aconteceu. Os Estados Unidos tentaram por 10 anos e desistiram. Então, nos anos 1970, decidiram não dar mais dinheiro para o programa. Com o abandono do programa, o mosquito voltou a se espalhar país por país, e hoje a situação voltou a ser a de antes ou está até pior. Ao mesmo tempo, uma vacina foi desenvolvida e usada no Brasil com sucesso. A combinação entre o uso da vacina e a erradicação temporária dos mosquitos praticamente acabou com a febre amarela urbana no país. A dengue não desapareceu porque o Aedes aegypti voltou e não havia, e ainda não há, uma vacina antidengue disponível. Existe o risco de surgir alguma epidemia viral em breve que cause danos significativos? Os especialistas sempre dizem que temos de nos preocupar com os vírus influenza, causadores da gripe. Atualmente há uma cepa de influenza na China que é bastante virulenta. Se houver uma pandemia de influenza como a que tivemos em 1918, milhões de pessoas podem morrer, em especial os idosos que sofrem de outros problemas respiratórios ou cardiovasculares. Embora a gripe espanhola de 1918 tenha matado muita gente jovem. Sim, e por isso foi especialmente ruim. Um vírus desse tipo, que pode ser transmitido facilmente de pessoa para pessoa, pode chegar a qualquer lugar do planeta. Outros vírus que as pessoas estão observando de perto são os causadores da síndrome respiratória do Oriente Médio, a Mers, e o vírus da síndrome respiratória severa aguda, a Sars. Mas sempre podem acontecer surpresas. Quem pensaria no zika como uma ameaça 20 anos atrás? As pessoas acham que podemos prever o que acontecerá nos próximos anos, mas sou cético a respeito disso. n pESQUISA FAPESP 257 z 59
MEDICINA y
HPV e câncer masculino
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Infecção pode causar verrugas genitais em seis meses ou lesão pré-tumoral em dois anos
O
sistema público de saúde brasileiro iniciou em janeiro deste ano a imunização de garotos com 12 e 13 anos de idade contra o vírus do papiloma humano, o HPV. Até o início de junho, porém, apenas 595 mil adolescentes (16,5% da população nessa faixa etária) haviam recebido a primeira das duas doses de uma vacina importada que protege contra a infecção por quatro tipos desse vírus. Transmitido pelo contato de pele e mucosas durante o sexo, o HPV está associado nos homens ao desenvolvimento de verrugas genitais e anais, além de tumores de pênis, ânus, boca e garganta. Como o uso de preservativos nem sempre evita a transmissão do vírus, especialistas em saúde afirmam que a melhor forma de combater a disseminação é vacinar a população não contaminada. No final de junho, o ministério recomendou a imunização de meninos de uma faixa etária mais ampla, dos 11 aos 14 anos, o que torna mais desafiadora a meta de terminar 2017 com 80% deles imunizados – a vacina está disponível há mais tempo para as meninas, mas nem entre elas esse índice tem sido alcançado.
60 z julho DE 2017
Os sinais de que será preciso redobrar os esforços para proteger os meninos surgem pouco após a publicação de estudos que começam a desvendar como e por quanto tempo a infecção pelo vírus progride até gerar verrugas genitais e lesões precursoras do câncer no sexo masculino. “Há muito se sabe que o HPV leva ao desenvolvimento de verrugas e tumores também na região genital masculina, mas não havia trabalhos que medissem a probabilidade de a infecção gerar lesões nem o tempo que demora para isso acontecer”, conta a bioquímica Luisa Lina Villa, professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP). Ela foi uma das primeiras pesquisadoras brasileiras a identificar a presença do HPV em tumores de pênis, ainda nos anos 1980, e há quase uma década coordena a parte nacional do estudo epidemiológico “HPV infection in men (HIM)”. Financiado pelo Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos, pela FAPESP e pela empresa farmacêutica Merck Sharp & Dohme, fabricante da vacina tetravalente Gardasil, o estudo acompanhou por quase cinco anos a saúde sexual de 4,1 mil
homens com idade entre 18 e 73 anos no Brasil, no México e nos Estados Unidos. O HIM já gerou dezenas de artigos científicos. Três deles, publicados entre 2015 e 2017, trazem uma análise mais detalhada da história natural da infecção por HPV. Em dois papers, o grupo da epidemiologista Anna Giuliano, do Moffitt Cancer Center, na Flórida, coordenadora geral do HIM, relata os resultados da avaliação de cerca de 3 mil desses homens. No início da pesquisa, nenhum deles tinha doença sexualmente transmissível nem infecção por HPV. Com o tempo, uma parte contraiu o vírus, identificado a partir de testes genéticos feitos no material coletado do pênis e da bolsa escrotal. Aproximadamente 72% dos brasileiros estiveram infectados com HPV em algum momento do estudo, uma proporção significativamente maior do que a de mexicanos (62%) e a de norte-americanos (61%). Dos 37 tipos de HPV investigados, foram encontrados com mais frequência quatro: dois considerados de baixo risco para causar tumores (HPV6 e HPV11) e dois de alto risco (HPV16 e HPV18), os mesmos contra os quais a vacina dispo-
fotos 1 KATERYNA KON / SCIENCE PHOTO LIBRARY 2 Fernando Pereira / SECOM - PMSP
Adolescente recebe vacina contra o HPV em unidade básica de saúde da cidade de São Paulo
nível gratuitamente no sistema de saúde brasileiro produz imunidade. Uma das avaliações levou em consideração os dados de 3.033 participantes dos três países. Desse total, 1.788 apresentaram infecção por ao menos um tipo de HPV e 86 deles (5% dos infectados) desenvolveram verrugas genitais (condiloma). Só 9 dos homens com HPV tiveram lesões pré-tumorais: as neoplasias intraepiteliais penianas. Um em cada quatro casos de infecção por HPV6 ou por HPV11 gerou condilomas contendo os mesmos vírus. O tempo entre a infecção e o surgimento da verruga foi de quase oito meses para o primeiro vírus e de quatro para o segundo. Quase 60% das lesões pré-cancerígenas continham o HPV16, de alto risco. Na maioria das vezes, quase dois anos se passaram entre a infecção e o desenvolvimento da neoplasia, segundo artigo publicado em 2015 na revista European Urology. A análise dos dados brasileiros foi publicada em abril deste ano na revista Brazilian Journal of Infectious Diseases. Dos 1.118 participantes de São Paulo, 815 tiveram HPV e 35 desenvolveram lesão nos genitais. Durante o acompanhamento, 16% das pessoas com HPV6 e 16% das infectadas pelo HPV11 desenvolveram verrugas genitais, respectivamente, em nove meses e em sete meses, em um ritmo mais lento do que o identificado no estudo com mexicanos e norte-americanos. Na amostra brasileira, 1% dos indivíduos com HPV16 desenvolveram lesão pré-tumoral em 25 meses. Em sua conclusão, o estudo brasileiro chama a atenção para o fato de que os tipos 6, 11, 16 e 18 do HPV, contra os quais a vacina tetravalente oferece proteção, foram encontrados em 80% dos condilomas e das lesões pré-tumorais. E indica que seria recomendável adotar uma política ampla de vacinação para os meninos, uma vez que os homens continuam a se infectar com o vírus ao longo da vida e a transmiti-lo para seus parceiros – homens ou mulheres. Em um dos artigos do HIM, os pesquisadores lembram o caso
2
bem-sucedido da Austrália, o primeiro país a implantar um programa nacional de imunização contra o HPV. Lá, a cobertura vacinal supera os 80% e houve uma redução de 70% a 90% na frequência de verrugas genitais entre as mulheres. redução na cobertura
No Brasil, essa parece uma meta distante. A vacina contra o HPV é cara – a dose sai por cerca de R$ 40 para o ministério e R$ 400 nas clínicas particulares. Ela se tornou disponível para as meninas em 2014 e, desde então, 72,5% das garotas com idade entre 9 e 15 anos tomaram a primeira dose e 43%, a segunda. Houve uma queda nesse índice depois que o imunizante deixou de ser oferecido nas escolas. Parte da redução talvez se explique pela circulação de notícias sobre efeitos colaterais associados à vacina, que, apesar de raros, existem. Os mais frequentes são dor, coceira e inchaço local, além de náuseas, dores de cabeça ou nos braços e nas pernas. Mas houve relatos esparsos de desmaios, convulsão e perda passageira de sensibilidade nos braços e nas pernas – depois de investigados, esses casos foram classificados como reação psicogênica pós-vacinação, um fenômeno psicológico já documentado em outras campanhas de vacinação. “Trabalhamos para aumentar essa cobertura”, conta Carla Domingues,
coordenadora do Programa Nacional de Imunizações do Ministério da Saúde. “O ministério recomenda que os municípios façam a vacinação nas escolas, mas isso exige uma logística complexa.” Para atingir a meta de 80%, planeja-se iniciar em julho campanhas publicitárias para estimular os pais a levarem os filhos adolescentes aos postos de saúde para completar o calendário de vacinação, inclusive contra o HPV. Luisa Villa, da USP, defende a volta da vacinação nas escolas. Para ela, a redução do risco de contrair o HPV depende de educar os jovens para a prática de sexo seguro e de vacinar a população ainda não exposta ao vírus. “Para mudar essa história, será preciso vacinar toda essa meninada”, afirma. “As pessoas ainda não entenderam essa mensagem.” n Ricardo Zorzetto
Projeto Instituto de Ciência e Tecnologia para o estudo das doenças associadas ao papilomavírus (nº 08/578891); Modalidade Projeto Temático; Programa Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCT); Pesquisadora responsável Luisa Lina Villa (FM-USP); Investimento R$ 4.990.411,77.
Artigos científicos SILVA, R. J. C. et al. HPV-related external genital lesions among men residing in Brazil. Brazilian Journal of Infectious Diseases. 8 abr. 2017. SUDENGA, S. L. et al. Genital Human Papillomavirus infection progression to external genital lesions: The HIM Study. European Urology. v. 69 (1), p. 166-73. 6 jun. 2015.
pESQUISA FAPESP 257 z 61
GEOLOGIA y
Patrimônio de bilhões de anos Especialistas identificam 142 lugares de importância geológica em 81 municípios do estado de São Paulo Carlos Fioravanti
C
omeçou a circular uma lista de 142 sítios geológicos em 81 municípios do estado de São Paulo, organizada por um grupo de 30 especialistas de universidades, institutos de pesquisa e empresas, para incentivar sua preservação. Com o mesmo propósito, a Comissão Brasileira de Sítios Geológicos e Paleobiológicos (Sigep) apresentou em 2012 um levantamento nacional, com 116 sítios de relevância geológica, dos quais 16 em São Paulo. O novo inventário contempla uma área com vestígios da exploração de ouro nos séculos XVI e XVII em uma mata na periferia do município de Guarulhos, na Grande São Paulo. “Neste local havia
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um veio de quartzo, com o qual o ouro estava associado”, descreve o geólogo Edson Barros, da prefeitura de Guarulhos, indicando o fundo de uma cavidade. Muros de pedras em meio à mata e túneis de escoamento de água constituem outros vestígios das primeiras minas de ouro abertas pelos portugueses no Brasil, no final do século XVI, 100 anos antes do início da mineração em Minas Gerais. Descritos em um artigo publicado em janeiro deste ano na revista Geoheritage, os sítios – ou geossítios – constituem lugares cientificamente relevantes. “Devem ser conservados pelos órgãos responsáveis de modo a preservar a história geológica do estado”, observa a geólo-
ga Maria da Glória Motta Garcia, professora do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (IGc-USP) e coordenadora do trabalho. “Na Europa, inventários desse tipo fundamentaram a criação ou adequação de leis para a proteção do patrimônio geológico.” Um dos autores do levantamento, o geólogo José Brilha, professor da Universidade do Minho, coordenou um inventário similar, concluído em 2010, que apresentou 320 geossítios em Portugal. Com base no valor científico e nas políticas de conservação, sete geossítios já foram reconhecidos pelo governo do estado de São Paulo como monumentos geológicos do estado e estão abertos à visitação. Monumentos geológicos são
eduardo cesar
Preservadas em um parque de Itu, rochas com camadas claras e escuras formaram o fundo de um lago próximo a uma geleira, há 270 milhões de anos
geossítios que impressionam pela beleza ou pela importância cultural, como o Corcovado, no Rio de Janeiro, ou a Foz do Iguaçu, no Paraná. Rochas com sinais de geleiras de 260 milhões de anos estão conservadas em dois parques nos municípios de Itu e Salto. O morro do Diabo, com depósitos de arenitos formados há cerca de 80 milhões de anos, integra um parque estadual no município de Teodoro Sampaio, a 660 quilômetros (km) da capital. Outros lugares, porém, estão bastante vulneráveis, como as rochas com icnofósseis – pegadas fósseis – no município de Rosana, que correm o risco de ser decompostas em razão da variação do nível da água em consequência da
operação da Usina de Porto Primavera. “Os icnofósseis de Porto Primavera estão em antigos depósitos de areia, no interior de um grande deserto que existiu ali entre 90 milhões e 65 milhões de anos”, diz o geólogo Luiz Fernandes, professor da Universidade Federal do Paraná que participou do levantamento. O geógrafo Rogério Rodrigues, diretor técnico do Núcleo de Monumentos Geológicos do Instituto Geológico de São Paulo, recomenda: “As equipes das prefeituras e os proprietários das áreas com sítios geológicos primeiramente devem adotar medidas de segurança e conservação, instalando cercas, portarias e infraestrutura para visitantes, antes de explorar o potencial turístico dos lugares”.
“No Brasil, falta uma legislação específica para a preservação dos patrimônios geológico e da geodiversidade”, afirma o geólogo Gustavo Beuttenmuller, da Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente de São Paulo. Mesmo assim, há avanços. Segundo o geólogo Oswaldo Landgraf Júnior, também da Secretaria do Verde, a prefeitura prevê a expansão do parque municipal cratera de Colônia, no bairro de Parelheiros, na capital, criado em 2007, para proteger as encostas e o interior de uma concavidade criada pelo impacto de um corpo celeste há cerca de 35 milhões de anos. Barros, com sua equipe e outros grupos, trabalha para preservar e dar visibilidade às estruturas geológicas e construções ligadas à mineração em Guarulhos. pESQUISA FAPESP 257 z 63
O passado gravado nas rochas Os geossítios representam a história geológica do estado de São Paulo
1
guarulhos
As primeiras minas
Rochas como estas registram o início do garimpo de ouro no país, em meados do século XVI
5 8
4 7 691 3
2
eldorado
Labirintos subterrâneos
Com amplas galerias, cachoeiras, lagos e 8 km de extensão, a caverna do
2
Diabo é uma das maiores do Brasil, parcialmente aberta à visitação pública
3
ilhabela
Abertura do Atlântico Sul
Rochas conhecidas como diques máficos registram o início da separação da América do Sul e da África, há 130 milhões de anos
4
amparo
As rochas mais antigas do estado
Os chamados migmatitos foram formados sobre intensa pressão e temperatura, têm cerca de 3 bilhões de anos e estão em uma pedreira abandonada
64 z julho DE 2017
6
salto
Sob antigas geleiras Resquícios de bactérias marinhas
Preservado em um parque,
5
Esferas de rochas de até 3 m de altura
o granito róseo com
santa rosa do viterbo
estrias, conhecido como rocha moutonnée, resultou do atrito provocado pela movimentação de
os estromatólicos
geleiras, há cerca de
contêm registros de
270 milhões de anos
comunidades de bactérias marinhas que começaram a se acumular há 260 milhões de anos
7 são bento do sapucaí
Sobrevivente de uma intensa erosão
A 1.950 m de altitude, formada por granitos e gnaisses, a Pedra do
8
rosana
Rastros de animais impressos nas rochas
Os arenitos da
Baú é remanescente de um processo erosivo, que aplainou todo o relevo ao
hidrelétrica de Porto
redor, há cerca de
Primavera guardam
50 milhões de anos
pegadas fósseis de animais que viveram na região entre 90 milhões e 65 milhões de anos
Lava do fundo do mar
Ao romper a crosta oceânica, as lavas resfriaram ao encontrar
9
pirapora do bom jesus
A lista completa dos geossítios do estado de São Paulo está disponível na versão on-line.
a água marinha, há 620 milhões de anos, e ganharam um formato arredondado
Artigo científico GARCIA, M. G. M. et al. The inventory of geological heritage of the state of São Paulo, Brazil: Methodological basis, results and perspectives. Geoheritage. No prelo. 2017.
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Versão atualizada em 17/08/2017
fotos 1 e 6 eduardo cesar 2 Ana Taemi/ wikimedia commons 3, 4, 5, 9 Maria da Glória Motta Garcia/ usp 7 Leandro Maranghetti Lourenço/ wikimedia commons 8 Luiz A. Fernandes/ ufpr
ricas em carbonatos,
FÍSICA y
Astrofísica na banheira Experimento reproduz em um tanque com água fenômenos que podem ocorrer na vizinhança de buracos negros Igor Zolnerkevic
O
ndas que se propagam na superfície da água se tornam um pouco mais altas ao atravessar a vizinhança de um redemoinho criado pelo ralo aberto de um tanque. O tamanho delas é amplificado porque elas extraem um pouco da energia de rotação do redemoinho, um efeito chamado super-radiância. A existência desse efeito foi confirmada pela primeira vez em um experimento realizado em 2016 por um grupo internacional de pesquisadores liderado pela física alemã 66 z julho DE 2017
Silke Weinfurtner, da Universidade de Nottingham, no Reino Unido. Em seu laboratório, Silke e seus colaboradores, entre eles o físico brasileiro Maurício Richartz, produziram esse fenômeno usando um tanque com paredes de vidro e água misturada a um corante verde fluorescente. O ensaio foi filmado com uma câmera que registra em 3D e permitiu detectar o incremento na altura das ondas causado pela super-radiância. O efeito é pequeno, mas chama a atenção dos físicos por simular o que se imagina
Vórtice produzido pelo ralo na região central do tanque, durante o experimento que detectou a super-radiância
que ocorra com a luz ao redor de um buraco negro em rotação. Esses resultados estão descritos em um artigo publicado em 12 junho na revista Nature Physics. “A teoria da super-radiância é muito bem conhecida, mas ninguém havia observado o fenômeno experimentalmente”, diz Richartz, professor da Universidade Federal do ABC. Ele ajudou a planejar e a realizar o experimento e conta que, nas condições em que o teste foi feito, as ondas na superfície da água podem ser descritas por equações de movimento quase
fotos Silke Weinfurtner / universidade de nottingham
idênticas às de ondas luminosas se propagando próximo a um buraco negro. Como as equações são praticamente as mesmas, a confirmação de que a super-radiância ocorre em ondas formadas na água representa a primeira evidência concreta de que esse fenômeno, ainda que difícil de detectar, deve existir nas proximidades dos buracos negros, como previsto pela teoria. Até recentemente, estudos teóricos sugeriam que a super-radiância por buracos negros provocaria uma ampliação de ondas eletromagnéticas e gravitacionais pequena demais para ser observada pelos astrônomos. Em um artigo publicado este ano na revista Physical Review D, o físico João Rosa, da Universidade de Aveiro, Portugal, sugere que a super-radiância poderia ser amplificada na vizinhança de pares de buracos negros e estrelas de nêutrons. Sinais do fenômeno poderiam, então, vir a ser detectáveis pelo radiotelescópio Square Kilometre Array (SKA), que deve ter parte de suas antenas instaladas na África do Sul e parte na Austrália, e pelo Observatório Interferométrico de Ondas Gravitacionais (Ligo), nos Estados Unidos. Richartz conheceu Silke Weinfurtner em 2009 no Canadá. Na época, ele era estudante de doutorado e colaborou com Silke e com o físico canadense William Unruh, da Universidade da Colúmbia Britânica, em um dos primeiros experimentos a usar ondas na água para investigar a física dos buracos negros. Nesse ensaio, Silke, Unruh e seus colaboradores mostraram que ondas fluindo na água aprisionada em uma canaleta apresentavam propriedades semelhantes às da chamada radiação Hawking, um efeito quântico que faz um buraco negro perder energia aos poucos por meio da emissão de partículas subatômicas. A canaleta permitia investigar apenas fenômenos que ocorrem em uma única dimensão, uma vez que sua largura e sua profundidade eram desprezíveis em relação ao comprimento, e Silke teve a ideia de projetar um aparato bidimensional para investigar outros fenômenos associados aos buracos negros, como a super-radiância. O grupo planejou, então, o tanque construído no laboratório em Nottingham. Com 3 metros (m) de comprimento, 1,5 m de largura e profundidade desprezível, ele tem o dobro do tamanho de uma banheira. Uma pá motorizada produz ondulações de milí-
Reconstituição gráfica das ondas na superfície da água amplificadas ao atravessar o redemoinho
metros de altura que se propagam na superfície da água e são amplificadas pela super-radiância do redemoinho formado ao se retirar a tampa do ralo. na água e no espaço
Um buraco negro e o ralo de uma banheira têm mais semelhanças do que se pode imaginar. O centro de um buraco negro está sempre oculto por uma esfera de completa escuridão: o horizonte de eventos, região a partir da qual nada, nem a luz, escapa da intensa atração gravitacional. De modo semelhante, há uma região no redemoinho que atrai para o centro do ralo as ondulações na água que se aproximam demais, funcionando como um horizonte de eventos para as ondas. Seja em uma banheira ou no espaço, o horizonte de eventos é envolto por uma camada chamada ergosfera, que arrasta tudo o que chega até ali e faz girar no mesmo sentido de rotação do buraco negro ou do torvelinho na água. Enquanto o horizonte de eventos captura as ondas que o alcançam, a ergosfera pode amplificar algumas das ondas que a atravessam. Em 1971, o físico bielorrusso Yakov Zel’dovich, que havia participado do programa da bomba atômica soviética, realizou cálculos iniciais que sugeriam que um buraco negro em rotação poderia amplificar as ondas eletromagnéticas e gravitacionais arrastadas por sua ergosfera. Essa amplificação, no entanto, seria tão sutil que os instrumen-
tos astrofísicos atuais ainda não teriam a precisão necessária para detectá-la. Para observar a super-radiância em ondas na água, Silke e uma equipe multidisciplinar de pesquisadores, alguns especialistas em óptica e outros em mecânica de fluidos, usaram uma câmera 3D de alta resolução, desenvolvida para o experimento em parceria com a empresa alemã EnShape, para registrar e medir o aumento ínfimo na altura das ondas na água. As imagens permitiram observar que apenas as ondas superficiais com uma frequência específica (3,7 oscilações por segundo) se tornavam 20% mais altas ao atravessar o redemoinho, valor que coincide com o previsto pela teoria. Silke e sua equipe trabalham agora para aumentar a precisão com que se mede a altura das ondas e a velocidade da correnteza próxima ao centro do redemoinho, onde estaria o horizonte de eventos para as ondas na água. “A detecção da super-radiância não é uma prova experimental suficiente da existência de um horizonte de eventos para as ondas”, explica a física. “Além de melhorar a precisão do equipamento, precisamos aprimorar nosso entendimento teórico sobre o que acontece no redemoinho.” n
Projetos 1. Super-radiância em sistemas dissipativos (nº 15/14077-0); Modalidade Bolsa de Pesquisa no Exterior; Pesquisador responsável Maurício Richartz (UFABC); Investimento R$ 30.029,80. 2. Modelos análogos: Super-radiância e estabilidade (nº 13/15748-0); Modalidade Bolsa de Pesquisa no Exterior; Pesquisador responsável Maurício Richartz (UFABC); Investimento R$ 19.515,98.
Artigo científico TORRES, T. et al. Observation of superradiance in a vortex flow. Nature Physics. 12 jun. 2017.
pESQUISA FAPESP 257 z 67
tecnologia Engenharia florestal y
Identificação de
A. toxicaria
madeiras
E. capensis
Evanildo da Silveira L. alata
N. diderrichii
M. excelsa
O. gore
P. elata
Sistemas de visão computacional indicam a qualidade das tábuas e a espécie da árvore à qual elas pertencem P. aningeri
S. zenkeri
M. laurentii
68 z julho DE 2017
T. superba
M. laurentii
T. africana
M. laurentii
Z. lemairei
M. laurentii
M. mesozygia
M. mesozygia
P. soyauxii
T. superba
P. soyauxii
T. superba
Z. gilletii
Annals of Forest Science
D
M. mesozygia
ois sistemas de visão artificial, que usam imagens para identificar e classificar madeiras, foram desenvolvidos recentemente em São Paulo. Um deles, chamado NeuroWood, contou com pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Itapeva, e do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da Universidade de São Paulo (USP) em São Carlos. Ele é composto por um conjunto de câmeras (webcams), um computador e um programa que diferencia a madeira em três categorias: A (excelente), B (boa) e C (rejeitada). O outro, criado no Instituto de Física da USP em São Carlos (IFSC-USP), é um método matemático que deu origem a um software capaz de determinar a espécie de árvore da qual determinada tábua provém. As duas tecnologias se destinam principalmente aos setores madeireiro e moveleiro. Normalmente a indústria de madeira usa especialistas que classificam a qualidade das peças por meio de inspeção visual. O
A. africana
P. soyauxii
T. superba
Z. gilletii
C. gomphophylla
F. mucuso
Z. gilletii
processo é subjetivo e depende da qualidade do treinamento, o que torna o índice de acerto não muito alto. Estudos mostram que o nível de acurácia desse método gira em torno de 65%. Diante desse quadro, o engenheiro mecânico Carlos de Oliveira Affonso, professor do curso de engenharia industrial madeireira da Unesp de Itapeva, o cientista da computação André Luís Debiaso Rossi, professor do curso de engenharia de produção da Unesp de Itapeva, e o engenheiro civil Fábio Henrique Antunes Vieira, professor da Faculdade de Tecnologia de Capão Bonito (SP), projetaram um equipamento para realizar a classificação de madeira de forma automática. O projeto NeuroWood teve o apoio do Centro de Ciências Matemáticas Aplicadas à Indústria (CeMEAI), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP, com sede no ICMC. O sistema tem webcam, monitor e um controlador lógico programável (CPL), que é um microprocessador responsável pela interface entre o compu-
C. platythyrsa
H. stipulosa
A. boonei
Imagens microscópicas mostram detalhes da estrutura de madeiras de diferentes tipos de árvores da África
pESQUISA FAPESP 257 z 69
Saiba como funciona o aparelho que analisa e classifica as tábuas conforme a qualidade
1 As madeiras são
colocadas na esteira para inspeção pelo sistema de visão artificial NeuroWood
2 Ao serem detectadas
pelo sensor do aparelho, as tábuas são fotografadas pelas webcams
3 As fotos são classificadas pelo mini PC a partir da comparação com imagens do banco de dados do sistema
webcams mini PC
4 As tábuas
sensor
aprovadas seguem para venda; as outras são retrabalhadas para correção de defeitos
Fonte Fábio Henrique Antunes Vieira
tador e os atuadores (motores elétricos ou esteiras transportadoras). O programa de computador desenvolvido usa técnicas de aprendizagem de máquina. “São semelhantes às utilizadas pelos sistemas de reconhecimento facial, só que mais simples”, conta Affonso. Foram usadas as chamadas redes neurais artificiais, técnicas computacionais que mimetizam o funcionamento do cérebro humano, aprendendo com a experiência. “Para isso, é apresentado ao computador um padrão numérico correspondente a determinada classe de objetos”, explica. “Após certo número de repetições, esses softwares conseguem identificar à qual classe o objeto pertence, mesmo que não tenha sido apresentado como exemplo.” No caso do NeuroWood, o sistema foi “ensinado” a classificar as peças de madeira conforme sua qualidade (A, B ou C). O software foi abastecido com informações sobre os níveis de qualidade e os defeitos das tábuas, como nós e rachaduras. Em seguida, criou-se um banco com mais de 600 fotos de amostras das três qualidades. Elas foram processadas para melhorar o contraste e o brilho e ressaltar detalhes, levando em conta características, como textura e coloração. O sistema foi testado em condições reais de produção na Sguario Indústria de Madeira, uma empresa de Itapeva parceira do projeto. Lá, foi submetido 70 z julho DE 2017
Um dos programas foi testado em uma madeireira em condições reais e teve elevado índice de acerto
aos mesmos níveis de dispersão de poluentes, vibração e variação de luminosidade que um ambiente normal de um fabricante de móveis ou madeireira. As câmeras foram instaladas ao longo e acima da esteira de classificação da serraria. “As imagens captadas são enviadas para o computador para serem processadas e comparadas com as que estão no banco de dados. Assim, o programa determina a que categoria de qualidades elas pertencem, A, B ou C”, explica Affonso. De acordo com o pesquisador, os resultados foram satisfatórios. “O sistema classificou a madeira com desempenho semelhante ao observado em laboratório”, afirmou. “Atualmente, ele analisa 45
tábuas por minuto, trabalho para o qual seriam necessários seis trabalhadores. O índice de acerto também foi superior ao dos técnicos especializados: 85%.” Identificação por espécie
O software desenvolvido no Instituto de Física de São Carlos também conseguiu bons resultados, mas nesse caso na identificação de espécies de árvores por meio de sua madeira. Foram analisadas peças do Museu Real da África Central, em Tervuren, na Bélgica, com 77 espécies diferentes de árvores madeireiras, normalmente comercializadas em países africanos. O trabalho foi feito em parceria com a Universidade de Gent, na Bélgica. “O índice de acerto foi de 88% em nível de espécie botânica, 89% de gênero e 90% de família”, conta o cientista da computação Odemir Martinez Bruno, professor do IFSC-USP em São Carlos, coordenador do projeto. Para fazer a identificação, o programa é alimentado com imagens microscópicas das peças de madeira. “Cada espécie tem uma forma distinta de compor suas estruturas celulares, que a diferencia das outras”, diz Bruno. “O software analisa os padrões microscópicos formados pelos arranjos celulares das madeiras.” Bruno explica que esse projeto é uma ramificação de outro da sua equipe, de longo prazo, para o estudo da biodiver-
infográfico ana paula campos ilustração André Luis Debiaso Rossi fotos Fábio Henrique Antunes Vieira
De olho na madeira
sidade e identificação de plantas e da fisiologia vegetal usando computação, ainda em andamento. No caso do software que identifica as imagens microscópicas, o pesquisador diz que se trata, por enquanto, de trabalho puramente acadêmico. “O artigo foi publicado em uma revista científica da área e pode chamar a atenção de empresas que se interessem em convertê-lo em produto”, presume. Segundo o pesquisador, não há até agora um sistema de controle de qualidade ou de fiscalização para verificar as espécies de madeira comercializadas. “Nosso software pode servir para controle de qualidade, certificação do produto e fiscalização. Ele poderia ser empregado por fiscais para garantir que determinado carregamento de madeira não é oriundo de uma reserva florestal ou de uma espécie sob proteção de lei por ser nativa ou estar em perigo de extinção.” Uso industrial
O Neurowood, criado por Affonso, da Unesp, foi objeto de depósito de patente no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) e já está pronto para uso. A empresa que cedeu sua linha de produção para o sistema ser testado poderá ser uma das primeiras a adotá-lo. Hoje, a Sguario produz de 15 mil a 20 mil tábuas por dia e não realiza como rotina a classificação das tábuas por
qualidade. As peças são avaliadas apenas por seu tamanho. “Seria praticamente impossível inspecionar visualmente tábua por tábua”, diz um dos sócios da serraria, Luiz José Sguario Neto. “Com o sistema da Unesp é possível separar as tábuas por qualidade e obter preços diferenciados de venda.” O sistema não é inédito no mundo. Há outros semelhantes no mercado global, que também usam visão computacional para classificar madeira. O problema é que eles são caros, o que impede sua aquisição por empresas de pequeno e médio porte. “O custo de implantação do equipamento gira em torno de R$ 65 mil, já os importados possuem um valor aproximado de R$ 1,8 milhão, segundo Affonso. “Essa diferença se deve ao fato de que nós desenvolvemos nossos próprios softwares”, diz o professor da Unesp. Para que o sistema possa ser usado de forma livre, sem a necessidade de compra de pacotes comerciais, todas as rotinas foram escritas com linguagem computacional de livre acesso. O emprego de criptografia dificulta que o software seja pirateado. Apesar de já poder ser usado, Affonso não tem planos de criar uma empresa para fabricar o software. “O foco do nosso grupo é atuar academicamente”, diz. O aprimoramento do sistema, no entanto, continuará agora em parceria com a Universidade de Oulu, da Finlândia. Para isso
Projetos 1. Visão artificial e reconhecimento de padrões aplicados em plasticidade vegetal (n° 14/08026-1); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador Responsável Odemir Martinez Bruno (USP); Investimento R$ 174.860,82. 2. CeMEAI – Centro de Ciências Matemáticas Aplicadas à Indústria (nº 13/07375-0); Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisador responsável José Alberto Cuminato (ICMC-USP); Investimento R$ 27.982.568,59 (para todos os projetos durante cinco anos). 3. Metodologia adaptativa de inspeção visual para sistemas de alto rendimento (nº 16/23410-8); Modalidade Bolsa de Pesquisa no Exterior; Pesquisador Responsável Carlos de Oliveira Affonso (Unesp); Investimento R$ 129.810,62.
Artigos científicos Affonso, C. et al. Deep learning for biological image classification. Expert Systems with Applications. 17 mai. 2017 Silva, N. R. et al. Automated classification of wood transverse cross-section micro-imagery from 77 commercial Central-African timber species. Annals of Forest Science. jun. 2017.
pESQUISA FAPESP 257 z 71
Versão atualizada em 17/08/2017
Alan Marques / Folhapress
Sistemas de visão artificial poderão auxiliar na fiscalização do comércio madeireiro no país
foi assinado um contrato entre a Unesp e o Centro para Visão Mecânica e Análise de Sinais (CMVS) daquela instituição, com o objetivo de promover o intercâmbio de alunos e professores. “Assim como nós, o grupo finlandês notou que a maior dificuldade na construção de um sistema de classificação automática de imagens está na fase de aprendizagem computacional. É aí que há um intenso trabalho manual para construir a base de dados necessária para o programa aprender a partir dos exemplos”, conta Affonso. O pesquisador está na Finlândia desde fevereiro deste ano num estágio de pós-doutorado, onde ficará até o início de 2018 pesquisando técnicas que acelerem o processo de aprendizado on-line. “A ideia é identificar, dentre as imagens utilizadas como exemplo, quais são as que acrescentam mais informação e priorizá-las no momento do aprendizado.” Para o coordenador do curso de engenharia industrial madeireira, da Unesp de Itapeva, Carlos Alberto Oliveira de Matos, o projeto de Affonso é importante por envolver alunos de graduação e pela parceria com empresas madeireiras. “Isso mostrou a elevada capacidade da pesquisa aplicada da universidade para a solução de problemas relacionados com a produção”, explica. “O Brasil tem um potencial madeireiro sem igual no mundo, que requer formação de pessoal especializado e pesquisa de alto nível”, afirma. “Esses fatores contribuem para a urgente e necessária agregação de valor aos produtos com base na madeira.” n
Os aparelhos da Altave podem ser usados para vigilância de fronteiras, segurança de grandes eventos, entre outras aplicações
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TELECOMUNICAÇÕES y
Balões para acessar a internet Usados como retransmissores de sinal de banda larga, artefatos podem ajudar a levar conectividade a lugares remotos do planeta Yuri Vasconcelos
eduardo cesar
V
iver sem acesso à internet é uma situação comum a cerca de 3,9 bilhões de pessoas no planeta, que ainda não dispõem desse serviço. A estimativa é da Comissão de Banda Larga para o Desenvolvimento Sustentável, entidade formada pela parceria entre a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e a União Internacional de Telecomunicações (UIT). Grande parte dos excluídos digitais vive em áreas rurais de países em desenvolvimento. Para tornar o planeta um lugar mais conectado, várias iniciativas têm sido postas em prática. Uma delas é o Projeto Loon, da empresa X, antigo braço de pesquisa do Google e hoje um negócio autônomo controlado pela Alphabet, a holding responsável pela gigante mundial de buscas. O Loon foi criado em 2013 e ainda encontra-se em estágio experimental. O
projeto consiste de uma rede de balões não tripulados, inflados com gás hélio, que voam na estratosfera, faixa entre 7 quilômetros (km) e 50 km de altitude, carregando equipamentos capazes de estender a conexão à internet para regiões isoladas do globo. O Facebook também tem seu projeto, batizado de Aquila, que usa um drone movido à energia solar para distribuir o sinal de internet. No Brasil, a Altave, de São José dos Campos (SP), utiliza balões para levar banda larga a fazendas e comunidades rurais. A tecnologia também pode ser usada depois de desastres naturais, quando a infraestrutura de determinada localidade é destruída, e no monitoramento de grandes eventos. Os balões do Projeto Loon flutuam a 20 km da superfície da Terra, acima do nível de cruzeiro de aviões comerciais. Feitos de polietileno, foram projetados para suportar as condições hostis da estratosfera.
Os balões têm 15 metros (m) de diâmetro por 12 m de altura e são feitos para permanecer mais de 100 dias no espaço. Logo abaixo do envelope (a parte inflável do balão), a cápsula de voo é equipada com aparelhos eletrônicos que reproduzem uma torre de celular. A conexão de alta velocidade é feita com a operadora de telecomunicações mais próxima ao balão. Esse sinal é captado por antenas presentes no equipamento e retransmitido para outros balões do projeto, que se comunicam entre si para montar a rede de comunicação. Em seguida, o sinal é enviado para os usuários. Cada balão cobre uma área de 5 mil quilômetros quadrados (km2). “Os balões do Loon operam como satélites de órbita muito baixa. Para que a conectividade seja eficiente, é preciso montar uma rede com vários balões, que ofereça ampla cobertura e impeça a existência de regiões desprovidas de sinal de internet, os chamados pontos cegos”, explica o engenheiro eletrônico Lúcio André de Castro Jorge, da Embrapa Instrumentação de São Carlos (SP), especialista em soluções para o campo utilizando veículos aéreos não tripulados (VANTs). O Projeto Loon já levou sinal de internet para fazendas na Nova Zelândia e para vítimas de inundações no Peru. Em 2014, a X demonstrou a tecnologia no Brasil. Dois balões foram lançados no Piauí, um dos estados com menor nível de conectividade no país. Um deles forneceu sinal de banda larga para um colégio da zona rural de Campo Maior, no norte piauiense. DRONE SOLAR
Com 40 m de comprimento da ponta de uma asa à outra (maior do que a envergadura de um Boeing 737), o gigantesco drone movido a energia solar do Facebook fez seu voo inaugural em julho do ano passado. O Aquila foi projetado para voar entre 18 km e 27 km de altitude e mandar sinal de internet para receptores no solo, empregando um sistema de transmissão a laser, ainda em desenvolvimento. A aeronave é feita de fibra de carbono e pesa 450 quilos, metade de um carro pESQUISA FAPESP 257 z 73
Posicionados a até 200 metros de altura, os equipamentos fabricados pela Altave têm entre 3 e 7 metros de diâmetro
2
pequeno. Ela foi construída para permanecer até 90 dias em voo, provendo conectividade para uma área com 60 km de diâmetro. “O projeto ainda tem alguns anos de desenvolvimento. Seu maior problema é a autonomia de voo. Por isso suas asas são tão grandes e carregam tantos painéis fotovoltaicos para captar energia para as baterias”, diz Castro Jorge, da Embrapa Instrumentação. AERÓSTATOS CATIVOS
Uma diferença essencial entre a tecnologia da Altave, fundada em 2011, e as usadas pelos projetos Loon e Aquila é que os aeróstatos (aeronaves mais leves do que o ar, como balões e dirigíveis) da brasileira não voam livremente no céu, mas ficam presos por meio de um cabo a uma estação de ancoragem no solo.
“Posicionados entre 50 m e 200 m de altura, nossos balões são como torres flexíveis aptas a receber diferentes tecnologias. A mesma plataforma pode ser usada por câmeras de monitoramento, rádios de comunicação ou equipamentos científicos”, explica o engenheiro aeronáutico Leonardo Mendes Nogueira, um dos sócios da Altave. No segmento de telecomunicações, o princípio de funcionamento é o mesmo do Loon: o balão recebe o sinal de internet de uma estação em terra mais próxima e o retransmite para usuários em pontos remotos. Como ele está situado mais alto do que uma torre de telefonia, que mede entre 30 m e 60 m de altura, consegue irradiar o sinal para locais mais distantes, superando obstáculos em terra.
Além de oferecer conectividade, os aeróstatos da Altave podem ser usados para vigilância de fronteiras, segurança de grandes eventos, monitoramento ambiental (desmatamentos florestais, incêndios, áreas de exploração mineral) e de infraestruturas (redes de transmissão elétrica, oleodutos). Para desempenhar essas missões, os balões contam com um conjunto de câmeras e equipamentos de comunicação embarcados. “Nós projetamos e desenvolvemos toda a plataforma aeronáutica, o que inclui o envelope, a gôndola e o dispositivo de ancoragem. O hardware que vai no balão é de outros fornecedores. O que nós fazemos é integrá-lo ao sistema”, diz o engenheiro aeronáutico Bruno Avena, o outro sócio da empresa. SIMPLICIDADE E DESAFIOS
Balões cativos como os da Altave não são uma novidade – já foram usados na guerra civil norte-americana, em meados do século XIX, para patrulhamento aéreo –, mas apenas cerca de uma dúzia de empresas faz uso comercial deles. Os principais fabricantes ficam nos Estados Unidos, França, Israel e Rússia, e não há concorrentes nacionais. Uma característica dos balões da Altave, que têm entre 3 m e 7 m de diâmetro, é a simplicidade. “Ele pode ser operado por uma só pessoa”, conta Avena. “Um
Laboratórios na estratosfera Balões também têm sido usados como plataforma para estudos científicos Levar sinal de internet para pontos
Recentemente, o mercado de balões
“Estamos vendo um aumento do
remotos do planeta não é a única missão
científicos ganhou um novo concorrente, a
interesse em algo que nem sabíamos que
de balões estratosféricos como os do
empresa World View Enterprises. O primeiro
existia há alguns anos”, disse o executivo
Projeto Loon. Desde 1982, a agência
balão da companhia, que tem sede em
da companhia, Taber MacCallum, à revista
espacial norte-americana, Nasa, emprega
Tucson, nos Estados Unidos, foi lançado em
Science. Segundo a publicação, empresas
esses equipamentos como plataforma para
2015 levando a bordo equipamentos
como a World View Enterprises podem
pesquisas científicas. Cerca de 10 a 15
desenvolvidos por pesquisadores da
fazer dos balões aliados da ciência. A
balões são lançados a cada ano com o
Universidade Estadual de Montana (EUA)
vantagem delas é que suas missões custam
objetivo de coletar dados meteorológicos,
para gravar um eclipse total do Sol ocorrido
algumas centenas de milhares de dólares,
fazer estudos de tempestades solares ou
em agosto daquele ano. Desde então,
enquanto os lançamentos da Nasa se
monitorar oceanos e florestas da Terra.
cerca de 50 voos já foram realizados.
situam na casa dos milhões de dólares.
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3
fotos 1 eduardo cesar 2 Jon Shenk / projeto loon
Os artefatos do Projeto Loon já levaram internet para fazendeiros na Nova Zelândia, a vítimas de inundações no Peru e a estudantes do Piauí, no Brasil
dos maiores problemas operacionais com balões cativos era a complexidade no manuseio no solo, que exigia a atuação de vários operadores quando havia vento. Concebemos uma plataforma que possibilita o içamento e o recolhimento do balão sem a necessidade de manuseio de cordas. O operador comanda tudo com controle remoto. Essa solução nos rendeu uma patente.” A Altave também criou um sistema de ancoragem que proporciona um tempo de vida maior ao cabo que sustenta o balão. “Produzir balões e um guincho automático para mantê-los presos a uma estação em solo não é uma inovação em termos mundiais, mas o Brasil não detinha essa tecnologia. O desenvolvimento que a Altave fez não é trivial”, ressalta o engenheiro eletricista Geraldo José Adabo, professor do Instituto de Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e coordenador de projetos na área de sistemas autônomos na instituição. Em 2010, Adabo contratou a Altave para auxiliá-lo em um projeto de inspeção de linhas de transmissão. “Na ocasião, eu coordenava um programa que usava drones para fazer a inspeção. Mas havia falhas de comunicação entre a aeronave e o centro de controle, limitada a 2 km”, explica. “A Altave propôs uma solução que elevou para 50 quilômetros o alcance da comunicação.”
Balões foram usados para monitorar locais de competição nos Jogos Olímpicos do Rio, em 2016
Os balões da Altave, cujo preço final varia de algumas dezenas de milhares de reais a milhões de reais, dependendo da aplicação e dos equipamentos embarcados, também foram usados na Copa das Confederações, realizada no Brasil em 2013, e nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016. No primeiro caso, um aeróstato fez o monitoramento do perímetro do estádio do Maracanã, no Rio. O balão era equipado com uma câmera termal com alta sensibilidade e capacidade de zoom. Foi uma demonstração sem custos para os organizadores.
Na Olimpíada do Rio, a empresa venceu uma concorrência internacional e quatro balões, com 13 câmeras embarcadas, foram usados para monitorar os locais de competição. De acordo com Leonardo Nogueira, foi a primeira vez que a tecnologia foi empregada numa Olimpíada. A empresa recebeu R$ 24,5 milhões pela prestação do serviço. Com um faturamento de R$ 13 milhões por ano, a Altave tem planos para crescer. A empresa possui seis balões em operação no país e planeja exportar seus produtos. Para isso, firmou em junho um acordo com a companhia Airstar Aerospace, líder no mercado francês de balões estratosféricos e cativos, para que ela seja a distribuidora de sua tecnologia na Europa. Com isso, a brasileira pretende elevar sua presença no mercado global de aeróstatos, estimado hoje em US$ 5 bilhões e que deve atingir US$ 11 bilhões em 2021. n
Projetos 1. Plataformas mais leves que o ar para múltiplos usos (n° 13/50489-6); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Bruno Avena de Azevedo (Altave); Investimento R$ 969.119,73. 2. Desenvolvimento industrial e comercial de aeróstatos cativos de baixa altitude para múltiplas missões (n° 13/50782-5); Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador responsável Bruno Avena de Azevedo (Altave); Investimento R$ 506.463,60.
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pesquisa empresarial
Obra tecnológica Saint-Gobain cria centro de pesquisa e desenvolvimento no Brasil para tratar de ciência dos materiais e física das construções
Marcos de Oliveira
E
m uma das fachadas do prédio do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) da Saint-Gobain no Brasil estão pendurados vários painéis para acabamento externo de construções, cada um produzido com uma formulação. Trata-se de um experimento para verificar quais deles são mais resistentes a sol, chuva, umidade, frio e calor. Assim, o próprio prédio do centro é um suporte para experimentos e um showroom de tecnologias criadas por esse grupo industrial que desenvolve e fabrica produtos para construção civil e tem sede na França. Inaugurado em abril de 2016, o centro da Saint-Gobain, presente no Brasil há 80 anos, foi instalado em Capivari, a 130 quilômetros da capital paulista e próximo a duas cidades com polos tecnológicos, Campinas e São Carlos. É a oitava unidade de pesquisa da empresa no mundo — as demais estão situadas na França (três), Estados Unidos, Índia, Alemanha e China. A instalação do centro custou R$ 55 milhões e está focado em duas vertentes de pesquisa, a de ciências de materiais e a de física de edificações. A primeira estuda novos materiais que possam ter melhor desempenho quando aplicados a um produto. A física de edificações estuda e desenvolve sistemas construtivos que contribuam para a eficiência energética do prédio, proporcionando mais conforto aos usuários com menor gasto de energia. Busca-se diminuir o impacto ambiental dos produtos tanto na fase de produção como na construção e no descarte. O centro de P&D tem uma arquitetura que privilegia amplos ambientes e foi construído com materiais e produtos da pró-
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pria empresa, como vidros que barram os raios infravermelhos do Sol e consequentemente tornam os ambientes mais confortáveis, reduzindo a necessidade de ar condicionado. Ao todo são 3 mil metros quadrados (m²) de área construída, em um terreno de 40 mil m², que comportam ao todo 19 funcionários, sendo 12 pesquisadores, um número pequeno para as dimensões do laboratório. A mais recente cientista contratada é a engenheira química brasileira Wang Shu Chen. Depois de trabalhar na área de tecnologia em empresas fabricantes de colas e adesivos, ela montou a sua própria, a Adespec, para produzir uma cola que leva o nome de Prego Líquido, entre outros produtos que não utilizam na composição solventes e produtos tóxicos
empresa Saint-Gobain
Centro de P&D Capivari (SP)
Nº de pesquisadores 12
Principais produtos Vidros, argamassas, telhas, painéis cimentícios, tubos, dutos e abrasivos
eduardo cesar
Teste de novos vidros realizado na parte externa do Centro de P&D
(ver Pesquisa Fapesp nº 119). Em fevereiro deste ano, a Saint-Gobain comprou a Adespec, que já havia sido contemplada com um financiamento do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe), da FAPESP, e Chen foi convidada para trabalhar no centro de P&D. “O convite da Saint-Gobain me atraiu pelo grande investimento que a empresa acaba de fazer em um bem equipado centro de pesquisas”, conta Chen. A unidade foi construída para atender à demanda tecnológica das empresas que compõem o grupo Saint-Gobain, como Weber, de argamassas, Saint-Gobain Glass e Cebrace, de vidros, Brasilit, de telhas e painéis cimentícios, PAM, de tubos e dutos, Norton, de abrasivos, entre outras. “Tratamos de assuntos trans-
versais porque trabalhamos para várias áreas de negócio que utilizam materiais abrasivos, vidros, argamassa, ferro, lã e fibra de vidro”, explica o engenheiro civil Paul Houang, diretor de P&D do centro. O objetivo é resolver problemas tecnológicos e propor novos materiais para as áreas técnicas de cada unidade. “As empresas do grupo ainda estão conhecendo o centro e verificando quais são suas necessidades”, conta Houang, filho de chineses que se formou na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) e está na empresa desde 1986. Um dos primeiros trabalhos do centro foi a coparticipação em um projeto mundial da empresa voltado para a química verde, com o objetivo de substituir produtos originários do petróleo. “Tra-
balhamos com a lignina, um composto de fibras vegetais, que poderá ser usada como resina para servir como aglomerante na produção de lã de vidro, usada em forrações e em produtos abrasivos como lixas”, explica o engenheiro químico Xavier Raby, pesquisador do centro. “Além de ser de fonte renovável, o produto natural tem baixa emissão de CO2 na produção.” durabilidade e conforto
Os painéis pendurados no lado de fora do prédio integram uma pesquisa internacional com produtos desenvolvidos pelo grupo no exterior para edificações, que envolve vários itens relativos a durabilidade, segurança e conforto. “Testamos qual revestimento é mais funcional e mais bem adaptado ao clima”, conta pESQUISA FAPESP 257 z 77
Houang. A empresa desenvolve novos sistemas construtivos de fachada com estrutura metálica interna, lã de vidro no meio e placas de gesso para substituir a alvenaria. No terreno foram construídas duas casas idênticas, exceto pela presença de um novo tipo de forro em uma delas. É um experimento para comprovar o conforto térmico em relação a uma casa sem forro, apenas com telhas. “Em outro momento, ampliaremos o estudo aos demais modelos de forro. Os dados obtidos alimentarão um modelo de simulação de comportamento térmico dos diferentes tipos de forros”, diz Marcelo Meira, pesquisador da área de Física das Edificações. Dentro e fora das casas, sob a tinta da parede externa, existem sensores de
temperatura e umidade, cujos dados são analisados na estação meteorológica do centro. Assim, mede-se o percentual de conforto térmico em relação ao calor e ao frio que um morador teria ao longo do dia. Ao mesmo tempo, os pesquisadores calculam a temperatura máxima de uma parede da casa pintada com cor escura e outra com cor clara, que recebem radiação solar o dia inteiro. Em um dia crítico, com muito sol, a parede escura chega a 70 graus Celsius (°C) e a clara, a 50 °C. Conhecer essa temperatura é essencial para o desenvolvimento de novos produtos de argamassa, que devem resistir à temperatura de 70 °C. O mesmo experimento é realizado na Índia, Colômbia e África do Sul. “O objetivo é isolar a casa o máximo possível, tanto do calor como do frio.”
Pesquisador em um dos laboratórios da empresa em Capivari, no interior paulista (à esq.). Amostras de vidro e cerâmica submetidas à análise em aparelho de espectometria de fluorescência (acima)
Como parte de pesquisas feitas por outros centros de P&D da empresa, testes estão sendo realizados com novos vidros de alto desempenho com camadas nanométricas que refletem os raios solares. “São vidros desenvolvidos na França que estão passando por todo tipo de intempéries para verificarmos se resistem ao clima brasileiro, se mancham ou perdem coloração”, conta Houang. Substituto do amianto
equipe de pesquisadores Confira alguns profissionais da equipe da Saint-Gobain e conheça as instituições responsáveis por sua formação Paul Houang, engenheiro civil, diretor do Centro de P&D
Universidade de São Paulo (USP): graduação Universidade de Tecnologia de Compiègne (França): doutorado
Sérgio Justus, engenheiro de materiais, pesquisador
Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG): graduação Universidade Federal de São Carlos (UFSCar): mestrado e doutorado
Caio Expósito, engenheiro de materiais, pesquisador
UFSCar: graduação e mestrado
Marcelo Meira, engenheiro mecânico, pesquisador
USP: graduação Escola Central de Nantes (França): mestrado
Xavier Raby, engenheiro químico, pesquisador
USP: graduação
Anderson Baraldo Júnior, engenheiro químico, pesquisador
UFSCar: graduação
Wang Shu Chen, engenheira química, pesquisadora
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj): graduação
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Houang foi o coordenador dos estudos da empresa no Brasil para substituir o amianto em telhas de fibrocimento da Brasilit. Esse mineral, misturado a formulações de cimento, era usado em telhas e caixas-d’água. Sua produção é problemática porque os operários aspiram o pó de amianto durante a fabricação dos produtos e podem desenvolver asbestose, uma doença que obstrui e torna rígidos os alvéolos pulmonares, em muitos casos fatal. Também no descarte desses materiais podem ocorrer contaminações quando o produto é esfarelado. “Em 1997, o amianto foi proibido na França, mas o grupo no Brasil explorava esse mineral. A contradição fez a empresa decidir por eliminá-lo também da produção brasileira e em outros países, como o México”, conta Houang. No
Brasil, existem projetos na Câmara dos Deputados para o banimento do amianto na indústria desde 1993, mas seu uso ainda é legal. Seis estados já proibiram: Espírito Santo, Mato Grosso, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo, e um sétimo, Mato Grosso do Sul, teve sua lei revogada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) porque a corte considerou o assunto de competência do governo federal. Pedidos de impugnação das leis dos outros estados estão em trâmite no STF. “Começamos a estudar a substituição do amianto em abril de 1997, na Brasilit, e em 2000 conseguimos produzir telhas de fibrocimento com um tipo de fibra de polipropileno rígido na forma de fios sintéticos e celulose de madeira. Ainda
demorou seis anos, em 2003, para que todas as nossas fábricas se adaptassem e parassem de usar o amianto”, conta Houang. No final, as novas telhas se tornaram inócuas para a saúde humana, mas seu custo aumentou 15%. O grupo faturou R$ 8,4 bilhões no Brasil em 2016. No plano global, a Saint-Gobain produz em média 350 patentes por ano e tem 3.700 pessoas trabalhando em P&D em todos os oito centros. Também tem parcerias com universidades e centros de pesquisa. “Antes do centro de P&D, muitas unidades da empresa tinham projetos em comum com universidades, como um em que participamos com a Poli-USP por meio de um consórcio de empresas de construção civil que estuda argamassas.” Também
há projetos com as universidades Estadual de Campinas (Unicamp), Federal de São Carlos (UFSCar), Estadual Paulista (Unesp), campus de Araraquara, e Escola de Engenharia de Lorena da USP. “Com o centro pronto, pretendemos expandir a nossa interação com as universidades”, informa Houang. Com a UFSCar, a Saint-Gobain, mais especificamente a unidade de Cerâmica, em Vinhedo (SP), tem dois convênios. O grupo do engenheiro de materiais Victor Carlos Pandolfelli, professor do Departamento de Materiais, utiliza o convênio para que estagiários da graduação de engenharia de materiais passem seis meses em Vinhedo e agora no centro em Capivari. Mestrandos ou doutorandos podem vivenciar outros seis meses em um centro de P&D da empresa na França. “É uma forma de o aluno, que tem supervisão nossa e de um profissional da empresa, viver a experiência de um ambiente fabril”, explica Pandolfelli. “Temos também projetos específicos com a empresa. Eles são bons quando a relação custo-benefício traz vantagens para a empresa e contempla nossos alunos.” Pandolfelli lembra que o centro de Capivari é recente e é preciso acompanhar a valorização que a matriz francesa dará às inovações desenvolvidas no Brasil. n
Casas construídas na área externa do centro de P&D são usadas para testar novos forros projetados para elevar o conforto térmico de seus usuários pESQUISA FAPESP 257 z 79
Versão atualizada em 17/08/2017
fotos eduardo cesar
Placa de vidro em um difratômetro de raio X, equipamento empregado para caracterizar materiais cristalinos
humanidades URBANISMO y
Cidades
unidas
Já conectados no espaço, municípios da Região Metropolitana de Campinas se aproximam para resolver problemas em comum Carlos Fioravanti
E
m número crescente ao longo dos últimos anos, os prefeitos dos 20 municípios da Região Metropolitana de Campinas (RMC) e representantes de secretarias estaduais participam das reuniões mensais promovidas pela Agência Metropolitana de Campinas (Agemcamp) para debater e resolver problemas em comum. “Os prefeitos adquiriram mais consciência regional, porque a realidade tem mostrado a necessidade da governança metropolitana”, observa Ester Viana, diretora-executiva da Agemcamp, autarquia estadual criada em 2003 para promover ações de interesse comum dos quase 3 milhões de moradores da segunda maior região metropolitana do estado. Centro produtor de café no século XIX e hoje um dos principais polos industriais e tecnológicos do país, a RMC é superada apenas pela de São Paulo, com 39 municípios e 21 milhões de pessoas. Ester Viana afirma que alguns problemas estão mais bem equacionados, como o transporte público, suprido por uma empresa que cobre quase todos os municípios da região, mas ainda há outros para serem resolvidos, como o descarte de resíduos sólidos e o saneamento. Um acordo de 80 z julho DE 2017
ação integrada entre as polícias civil e militar e as guardas municipais está em fase avançada e deve ser aprovado até o final do ano. A agência elabora no momento o plano de desenvolvimento urbano integrado (PDUI), com apoio da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano (Emplasa), que deve estar pronto no próximo ano. O objetivo é integrar os planos diretores dos municípios com diretrizes a serem seguidas por toda a região. As decisões são implantadas por meio do Fundo de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Campinas (Fundocamp), formado por recursos do estado e dos próprios municípios. A RMC é hoje uma mancha urbana contínua, com uma intensa circulação de pessoas entre os municípios, justificando as ações de integração dos serviços públicos. “Quase metade da população economicamente ativa de Hortolândia trabalhava em Campinas em 2010”, exemplifica o demógrafo José Marcos Pinto da Cunha, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e pesquisador do Núcleo de Estudos de População (Nepo), ambos da Unicamp. Pesquisador também do Centro
eduardo cesar
Campinas, principal destino das 312 mil pessoas que se deslocavam com frequência entre os municípios da região em 2010
de Estudos da Metrópole (CEM), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP, ele coordenou o atlas Campinas metropolitana: Diversidades socioespaciais na virada para o século XXI, lançado em formato eletrônico em julho deste ano (bit.ly/CampinasMetro). Elaborado com base nos Censos Demográficos de 2000 e 2010, o atlas evidenciou a intensificação das relações e do trânsito dos moradores entre os municípios da RMC. Motivado pelo fato de o município de residência ser diferente do do trabalho, o deslocamento frequente entre as cidades, chamado movimento pendular, passou de 176 mil pessoas de 2000 para 312 mil em 2010 (ver mapas). Esse movimento pode ser ainda mais amplo, conectando os moradores das regiões metropolitanas e aglomerados urbanos do estado de São Paulo e formando a Macrometrópole Paulista, que abrange 173 municípios, desde a região de Piracicaba até o Vale do Paraíba, e abriga 73% da população do estado. Em 2010, 2,9 milhões de pessoas transitavam com frequência entre as cidades em que moravam e as cidades em que trabalhavam, de acordo com um estudo de Cunha e outros pesquisadores da
Unicamp e da Emplasa publicado em 2013 na revista Cadernos Metrópole. Com base na intensa movimentação de pessoas e na integração territorial, Cunha considera o morador dessas regiões como “um cidadão metropolitano, cujo espaço de vida é muito mais amplo que o município onde mora”. Para ele, o morador de uma cidade não deveria gastar mais tempo em trânsito, no carro ou no ônibus, apenas porque mora em uma cidade diferente da cidade em que trabalha. “É importante assegurar o acesso a serviços públicos de qualidade, como saúde, transportes, entre outros, não apenas no município onde mora, mas também nos vizinhos”, diz. Uma das linhas de trabalho da Agemcamp é justamente um cartão de saúde, ainda sem previsão para ser implantado, para facilitar o acesso aos serviços médicos em qualquer município da RMC. Nas regiões metropolitanas, Cunha argumenta, “os prefeitos não podem mais pensar apenas em seus territórios”, mas as iniciativas para agir de modo integrado nem sempre são bem-sucedidas. Em 2016, em um dos debates preparatórios para a realização da 6ª Conferência da Cidade de Campinas, o arquiteto Adalberto da Silva Retto Júnior, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Bauru, criticou a falta de integração do planejamento de Campinas com o dos municípios vizinhos, apesar do intenso movimento pendular da população. Em 2015, ele participara da elaboração do plano de mobilidade (transportes) de Holambra, com a equipe da prefeitura. “Tentamos conversar com a prefeitura de Campinas para que os planos pudessem dialogar, mas não houve retorno”, ele contou. Outras mudanças
O atlas da RMC indicou que as áreas que concentravam os moradores de classe de rendimentos mais baixa, como Sumaré, Hortolândia, Monte Mor e outros municípios a leste da rodovia Anhanguera, agora abrigam também integrantes da classe média em busca de espaços para morar a preços acessíveis. Cunha observou essas transformações urbanas no início de junho ao visitar a Vila União, sudoeste de Campinas, hoje com ruas asfaltadas, iluminação pública e condomínios para a classe média, uma realidade distinta da que observou em seus primeiros trabalhos de campo na região, há mais de 10 anos. “A Vila União hoje faz efetivamente parte da cidade”, notou. Mesmo assim, ele observou, “como na maioria das metrópoles do país, Campinas continua apresentando alta concentração de pobreza, desemprego, violência, desenvolvimento socioeconômico desigual e, sobretudo, um forte grau de segregação social em seu território”. Como na edição anterior do atlas, publicada em 2004, a recém-lançada registra a permanência de uma divisão da região em pESQUISA FAPESP 257 z 81
Fluxo contínuo O movimento pendular de moradores entre os municípios da RMC tem se intensificado desde 2000
Engenheiro Coelho
2000
2010
Artur Nogueira
Cosmópolis
Holambra
Cosmópolis
Paulínia Santa Bárbara d’Oeste
Hortolândia
Holambra
Santo Antônio de Posse
Jaguariúna Americana Pedreira
Nova Odessa Sumaré
Artur Nogueira
Santo Antônio de Posse
Jaguariúna
Americana
Engenheiro Coelho
Santa Bárbara d’Oeste
Paulínia
Sumaré
Campinas
Pedreira
Nova Odessa
Campinas Hortolândia
Morungaba
Monte Mor
Monte Mor
Valinhos
Morungaba
Valinhos Itatiba
Itatiba Vinhedo Indaiatuba
Volume do deslocamento (número de pessoas): 2.100 a 4.000
Vinhedo Indaiatuba
5.100 a 9.000
Fonte Campinas metropolitana: Diversidades socioespaciais na virada para o século XXI
17.400 a 25.000 31.600 a 35.800
duas áreas opostas – uma concentrando a população mais rica e outra a mais pobre –, separadas pela rodovia Anhanguera. O espaço ocupado predominantemente pelos mais ricos – desde Vinhedo, passando pelo centro-norte de Campinas, até Paulínia – tem mostrado uma tendência crescente à elitização, observada também em outras regiões do interior paulista (ver Pesquisa FAPESP no 254). Em comparação com a edição anterior do atlas, a RMC apresentou uma redução do ritmo de crescimento populacional (de 2,5% em média por ano na década de 1990 para 1,8% ao ano na década de 2000), um aumento na proporção de domicílios com responsabilidade exclusivamente feminina (de 21,4% em 2000 para 25,6% em 2010), a melhoria da infraestrutura urbana, a intensificação da verticalização e o progressivo surgimento de uma nova periferia, constituída por condomínios fechados para as classes média e alta, em Campinas, Paulínia, Jaguariúna, Valinhos e Vinhedo. Em um artigo publicado em 2016 na Revista Brasileira de Estudos de População, Cunha observou que a escassez ou o alto custo de moradia tem feito os moradores da RMC procurarem espaços mais distantes do local de trabalho. Em consequência, a população campineira 82 z julho DE 2017
cresceu a uma taxa média anual de 1,09% de 2000 a 2010, enquanto nos municípios vizinhos a expansão populacional foi de 2,29% ao ano nesses 10 anos. Além do planejamento
O arquiteto Sidney Piochi Bernardini, da Unicamp, examinou a legislação sobre o uso do solo na RMC de 1970 a 2006 e concluiu que nem sempre as diretrizes urbanas são seguidas: “A maioria dos municípios da RMC não seguiu os planos diretores e o planejamento não teve um efeito prático, porque os prefeitos criaram sucessivas leis para resolver os problemas gerados pelas mudanças no uso e ocupação do solo e pela expansão urbana, que se intensificaram na década de 1970”. Bernardini encontrou 3.097 planos e leis urbanísticos aprovados nesses 37 anos; 295 leis foram feitas para ampliar o perímetro urbano e permitir a construção de condomínios residenciais em áreas antes consideradas rurais. Segundo ele, a partir da década de 1990 a legislação de uso do solo dificultou a expansão das cidades ao criar unidades de conservação em áreas não urbanizadas para assegurar os serviços ambientais, como o abastecimento de água. Na RMC, as áreas rurais escassearam e são pouco diferenciadas das urbanas,
como em outras partes do país (ver Pesquisa FAPESP no 204). O município de Hortolândia, que concentra parte da população de baixa renda da RMC, já é totalmente urbano, sem área rural, como algumas cidades da Região Metropolitana de São Paulo. n Projetos 1. CEM – Centro de Estudos da Metrópole (no 13/076167); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs); Pesquisadora responsável Marta Teresa da Silva Arretche (USP); Investimento R$ 10.234.702,08. 2. Os processos de urbanização recentes e suas interfaces com o planejamento territorial e urbano contemporâneos: O caso da região metropolitana de Campinas (1970-2006) (no 14/14502-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Sidney Piochi Bernardini (Unicamp); Investimento R$ 30.124,44.
Livro CUNHA, J. M. P. da e FALCÃO, C. A. (orgs.) Campinas metropolitana: Diversidades socioespaciais na virada para o século XXI. Campinas: Núcleo de Estudo de População (Nepo/Unicamp) e Centro de Estudos da Metrópole (Cepid), 2017.
Artigos científicos CUNHA, J. M. P. da. Aglomerações urbanas e mobilidade populacional: O caso da Região Metropolitana de Campinas. Revista Brasileira de Estudos de População. v. 33, p. 99-127. 2016. CUNHA, J. M. P. da et al. A mobilidade pendular na macrometrópole paulista: Diferenciação e complementaridade socioespacial. Cadernos metrópole. v. 15, n. 30, p. 433-59. 2013.
Guilherme Gaensly (1843-1928) / Fundação Patrimônio da Energia de São Paulo / Memorial do Imigrante
ECONOMIA y
Efeitos persistentes da imigração Donos de sobrenomes não ibéricos têm maior salário e escolaridade mais alta do que os demais brasileiros Marcos Pivetta
F
ilho de um boliviano que foi adolescente para o Rio de Janeiro há mais de 60 anos e se tornou médico, o economista Leonardo Monasterio investiga se os descendentes atuais dos imigrantes europeus e japoneses que aqui chegaram entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do XX usufruem ainda hoje de vantagens econômicas e educacionais associadas à sua ancestralidade. Segundo um estudo publicado por ele em 5 de maio na revista científica PLOS ONE, os trabalhadores brasileiros formalmente contratados que têm ao menos um sobrenome japonês, italiano, alemão ou do Leste Europeu ganham significativamente mais e apresentam
Europeus recém-chegados a São Paulo no pátio central da Hospedaria dos Imigrantes por volta de 1890
escolaridade ligeiramente maior do que os portadores de nomes de famílias ibéricas, originárias de Portugal ou da Espanha. A disparidade fica ainda maior se a comparação incluir os ganhos e os anos formais de estudo de trabalhadores negros, pardos e descendentes de índios, que representam cerca de 55% da população brasileira. O salário médio e a escolaridade dos indivíduos com sobrenomes nipônicos foram os mais elevados da amostra, que determinou a ancestralidade dos trabalhadores com emprego formal no país a partir da análise de seu sobrenome. De acordo com o artigo, os trabalhadores de origem japonesa ganham, em média, R$ 73 por hora, mais do que o dobro dos porpESQUISA FAPESP 257 z 83
tadores de sobrenomes ibéricos e quase três vezes mais do que negros e pardos. Os descendentes de asiáticos frequentaram a escola, em média, por 13,6 anos, cerca de três anos a mais do que negros e pardos. Em seguida, tanto no quesito financeiro como no educacional, apareceram, sempre nessa ordem, os descendentes de italianos, de alemães e de europeus do leste (ver quadro na página ao lado). “Não podemos saber ainda a causa da desigualdade. Na época, os imigrantes eram mais alfabetizados do que os brasileiros e uma parte deles recebeu subsídios”, explica Monasterio, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e professor na pós-graduação em economia da Universidade Católica de Brasília (UCB). “Mas a discriminação histórica e contemporânea ou até diferenças culturais também podem explicar o bônus salarial concedido aos não ibéricos.” Para realizar o estudo, o economista teve acesso à edição de 2013 da Relação Anual de Informações Sociais (Rais). Trata-se de um conjunto de dados socioeco-
nômicos que os empregadores fornecem ao Ministério do Trabalho. Naquele ano, a Rais continha informações sobre 46,8 milhões de brasileiros com idade entre 23 e 60 anos que trabalhavam ao menos 40 horas por semana. Os ganhos dos muito ricos, que não vivem de salário, e dos mais pobres, que não têm ocupações com carteira assinada, não constam do levantamento feito pelo ministério. “A Rais dá uma boa ideia de como são os salários das camadas médias da população brasileira”, explica Monasterio. Com o auxílio de métodos automáticos que empregam algoritmos para discriminar a origem dos sobrenomes, ele encontrou pouco mais de meio milhão de diferentes nomes de família na enorme base de dados. No entanto, os cinco nomes de família mais comuns (Silva, Santos, Oliveira, Souza e Pereira) eram usados como o segundo ou último sobrenome por 14 milhões de trabalhadores, quase um terço dos registrados na Rais (ver quadro sobre a frequência dos sobrenomes abaixo). Quando um indivíduo
tinha mais de um sobrenome, apenas o último deles foi levado em conta nas análises sobre escolaridade e rendimentos econômicos. A constatação de que os atuais descendentes dos imigrantes japoneses, italianos, alemães e do Leste Europeu ganham mais do que os brancos de origem ibérica e muito mais do que negros, pardos e indígenas era esperada. Ela reflete uma desigualdade socioeconômica que persiste há décadas no país. Entre o final do século XIX e o início do XX, a chegada ao Brasil de imigrantes europeus e também do Japão fez parte de uma política de Estado que visou substituir a antiga mão de obra negra e escrava, ou que tinha sido libertada havia pouco tempo, por trabalhadores brancos. “Os imigrantes e depois seus descendentes foram os primeiros a ter acesso a empregos formais no Brasil e à educação”, comenta a socióloga Rosana Baeninger, do Núcleo de Estudos de População (Nepo) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), estudiosa do
O peso dos sobrenomes Os 46,8 milhões de trabalhadores
Grande do Sul, passa por Santa Catarina
registrados na Rais carregam
e termina no centro-sul do Paraná,
531.009 sobrenomes distintos. Nesse
segundo o estudo de Leonardo
contingente, que equivale a quase um
Monasterio. A presença de um grande
quarto da população brasileira, a imensa
contingente de trabalhadores com
maioria tem nomes de família oriundos
nomes de família de origem italiana,
da Península Ibérica: o último ou o
alemã, do Leste Europeu e japonesa em
segundo sobrenome de 88,1% dos
uma região ou país parece produzir
registrados é de origem portuguesa ou
efeitos positivos para todos os
espanhola. Há, por exemplo, 6 milhões
empregados desse lugar, segundo
de Silva, 3,5 milhões de Santos e 1,9
resultados preliminares de um trabalho
milhão de Oliveira. A seguir, aparecem
que está sendo feito por Monasterio
os sobrenomes italianos (7,2% dos
e seu colega Philipp Ehrl, economista
empregados), alemães (3,2%), europeus
da UCB. “Um aumento de 10% no
do leste (0,8%) e japoneses (0,7%).
percentual de trabalhadores brasileiros
Como o Brasil não recebe grandes fluxos
com ancestralidade não ibérica,
migratórios há mais de um século, a
estimada pelo sobrenome, causa um
presença atual de sobrenomes de outros
incremento de 2,2% nos salários de
países é modesta. Esse não é um padrão
todos”, estima Monasterio. Esse efeito
Nomes mais comuns na RAIS 1 Silva
6.075.473 3.535.889
2 Santos 3 Oliveira
1.903.494
4 Souza 5 Lima
1.553.442 944.073
6 Pereira
791.070
7 Costa
748.879
8 Ferreira 9 Nascimento 10 Rodrigues
694.722 583.514 555.398
11 Sousa
529.433
12 Araujo
490.540
13 Almeida
469.313
14 Alves
451.691
15 Carvalho
402.438
universal. Na Espanha, na lista dos 500
seria mais perceptível em cidades
sobrenomes mais comuns atualmente,
que são etnicamente mais diversas e
16 Ribeiro
aparecem um sobrenome indiano
funcionam como polo de atração de
396.909
(Singh) e um chinês (Chen).
trabalhadores com novas habilidades.
17 Gomes
396.497
18 Barbosa
333.450
19 Martins
323.740
20 Rocha
312.592
A maior concentração de sobrenomes não ibéricos ocorre na faixa territorial que começa no centro-norte do Rio
84 z julho DE 2017
Os economistas estão agora trabalhando com dados da Rais sobre o Rio Grande do Sul para testar essa tese.
Japoneses estudam e ganham mais Salário por hora (em reais)
Anos de estudo
80
De acordo com
15
estudo do economista Leonardo Monasterio, do Ipea, que analisou dados da Rais,
60
os trabalhadores de origem japonesa
10
ganham, em média, R$ 73 por hora, mais 40
do que o dobro dos donos de sobrenomes ibéricos e quase
5
três vezes mais do
20
que negros, pardos e índios
0
Ibéricos, mas nem tanto
Determinar a ancestralidade de um indivíduo parece uma tarefa simples desde que se tenha acesso a seu sobrenome. Mas há obstáculos e limitações a serem contornados. No caso do trabalho do economista do Ipea, o primeiro deles era de ordem quantitativa. Não é factível classificar manualmente meio milhão de distintos sobrenomes apenas recorrendo a fontes históricas. Existem, no entanto, programas de computador que fazem isso de maneira automática. Dessa forma, Monasterio separou os nomes de família em cinco categorias: japoneses, italianos, alemães, do Leste Europeu e ibéricos, que
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Eu fotos 1 Guilherme Gaensly / wikymedia commons 2 wikymedia commons
processo imigratório em São Paulo. “Eles também tinham habilidades que foram importantes para o desenvolvimento das cidades e difundiam a ideia de que eram dedicados ao trabalho.” Em resumo, as melhores oportunidades foram historicamente ofertadas às parcelas de origem europeia (ou nipônica) da população brasileira, enquanto os descendentes dos escravos libertos e dos povos indígenas foram relegados a um plano secundário.
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responderam pela maior parte do fluxo migratório de 3,2 milhões de estrangeiros que entraram no Brasil na virada do século XIX para o XX. Nos quatro primeiros casos, a associação quase sempre é direta e imediata. Uma pessoa com sobrenome nipônico é descendente de japoneses que provavelmente chegaram ao Brasil há cerca de 100 anos, principal momento histórico da entrada de imigrantes no país. A estratégia funciona na maioria dos casos, embora não seja perfeita. Um sobrenome teutônico pode, a rigor, indicar um descendente de alemães, mas também de austríacos ou suíços de fala germânica. Sobrenomes de povos cuja imigração para o Brasil foi menos expressiva do que a dos europeus (caso dos árabes) acabam sendo classificados de forma imperfeita. O maior desafio do estudo foi associar os sobrenomes ibéricos ao fluxo migratório de portugueses ou espanhóis para o Brasil. Os algoritmos usados por Monasterio não diferenciam os sobrenomes de origem portuguesa dos oriundos da Espanha por terem grafia muito parecida. A saída foi adotar a classificação guarda-chuva
de sobrenome ibérico. Mas os problemas não param por aí. Além de abarcar indivíduos brancos que realmente descendem de imigrantes portugueses e espanhóis, essa classificação também inclui negros, pardos e indígenas cujas famílias foram provavelmente obrigadas a adotar um sobrenome ibérico no passado. Portanto, no Brasil, ser dono de um sobrenome tipicamente luso, como Silva ou Oliveira, não implica necessariamente ser filho, neto ou bisneto de portugueses. Para separar os donos de sobrenomes ibéricos que são brancos, e descendem de europeus, dos que são negros e pardos, cujos ancestrais africanos foram trazidos à força e escravizados no Brasil, o economista teve de adicionar o critério da cor/raça na Rais. “Nesses casos, para determinar a ancestralidade, tivemos de criar um índice híbrido, que levava em conta o sobrenome e também a cor autodeclarada”, esclarece o economista. n
Artigo científico MONASTERIO, L. Surnames and ancestry in Brazil. PLOS One. 8 mai. 2017
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TEORIA LITERÁRIA y
Para o crítico e professor (em foto de 1982), a leitura é fundamental para se pensar a própria obra literária
A literatura como sistema Alcance social da obra de Antonio Candido foi além da universidade Haroldo Ceravolo Sereza
E
m 7 de dezembro de 2015, o grupo de trabalho que elaborou o texto do Plano Municipal do Livro, Leitura, Literatura e Biblioteca da cidade de São Paulo encaminhou ao então prefeito Fernando Haddad uma carta com a sugestão de que, na sanção da lei que instituiria o plano, já aprovada na Câmara por unanimidade, fosse realizada uma homenagem a Antonio Candido (1918-2017). Na justificativa, o grupo afirmou que, “entre todos os grandes atributos intelectuais e de cidadania que o professor Candido representa, é dele um dos textos basilares de defesa da literatura como um direito inalienável”. A homenagem acabou não ocorrendo, mas a carta do grupo revela o alcance social da obra de Candido – morto em maio deste ano – para além da universidade. A referência ao texto “O direito à literatura”, de 1988, foi constante durante as plenárias de elaboração do plano e lembrado numerosas vezes no momento de redação pelo poeta Ruivo Lopes, representante no grupo de trabalho dos saraus, coletivos literários que são, em boa medida, um dos desdobramentos atuais mais fortes 86 z julho DE 2017
da cultura hip hop. Para os poetas e escritores da periferia da cidade, o texto em que Candido defende que “uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável” foi e permanece central para a construção do movimento social em torno da leitura. A ideia da importância da leitura como algo fundamental para se pensar a própria obra literária guarda raízes profundas no pensamento de Candido, sociólogo, crítico literário e professor emérito da Universidade de São Paulo (USP). Docente da Universidade Presbiteriana Mackenzie e professora colaboradora na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ex-orientanda de Candido, Marisa Lajolo avalia que a leitura está “como um implícito” na obra mais lembrada do autor. Formação da literatura brasileira, publicada originalmente em 1959, “concebe a literatura como integração de autores, obras e público em um sistema articulado e não mais como uma pluralidade aleatória – ainda que cronologicamente próxima – de autores e obras, concebidos
como independentes de uma articulação visível em um sistema”, escreveu Lajolo no texto “A leitura na Formação da literatura brasileira de Antonio Candido”, publicado em Antonio Candido (2003), organizado por Jorge Ruedas de la Serna, o último orientando do crítico. Para Candido, a ideia de uma literatura que se possa chamar de brasileira exige, necessariamente, a constituição desse “sistema literário”, conceito central de sua análise. É esse sistema que permite que uma série de textos seja entendida como literatura e como uma literatura nacional. Os textos que consideramos “literários”, para ele, não nascem literatura: são os leitores que legitimam as obras. Em “Os sete fôlegos de um livro” (em Sequências brasileiras, de 1999), Roberto Schwarz aponta o ineditismo da obra: “A erudição segura, a atualização teórica, a pesquisa volumosa, a exposição equilibrada e elegante, o juízo de gosto bem argumentado, tudo isso estava numa escala inédita entre nós”. Uma das questões que Formação destacou é como tratar a literatura produzida no território brasileiro antes da cons-
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madalena schwartz / acervo instituto moreira salles
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tituição desse sistema. Para Candido, a palavra “formação” era central para o recorte proposto. Não se tratava de uma história da literatura (motivação inicial do projeto), mas de uma análise dos “momentos decisivos” da constituição desse sistema literário, ou seja, o Arcadismo e o Romantismo. Para a produção anterior ao Arcadismo, Candido utiliza o termo “manifestações literárias”. O argumento do autor é que falta à produção anterior uma continuidade entre as gerações de escritores. Definindo seu trabalho, ele explicou, no livro, que buscou “averiguar quando e como se definiu uma continuidade ininterrupta de obras e autores, cientes quase sempre de integrarem um processo de formação literária”. E completou: “Salvo melhor juízo, sempre provável em tais casos, isto ocorre a partir de meados do século XVIII, adquirindo plena nitidez
O crítico começou a escrever na imprensa em revistas como Clima e no Suplemento Literário do Estadão
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na primeira metade do século XIX (...); é com os chamados árcades mineiros, as últimas academias e certos intelectuais ilustrados, que surgem homens de letras formando conjuntos orgânicos e manifestando em graus variáveis a vontade de fazer literatura brasileira” (grifo dele). Sequestro do Barroco
Candido em anfiteatro da USP, em 2009: interesse por questões sociais
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88 z julho DE 2017
Numa provocação que rendeu debate intenso, o crítico, poeta e professor Haroldo de Campos (1929-2003) falou em “sequestro do Barroco” por Candido – ou seja, essa ideia de literatura eliminaria obras de grande qualidade literária, como os escritos atribuídos a Gregório de Mattos (1636-1696). Essa poesia, em que pesem suas qualidades, teria ficado alijada da história literária. “Estamos, pois, diante de um verdadeiro paradoxo borgiano, já que à ‘questão da origem’ se soma a da identidade ou pseudoidentidade de um autor ‘patronímico’. Um dos maiores poetas brasileiros anteriores à Modernidade, aquele cuja existência é justamente mais fundamental para que possamos coexistir com ela e nos sentirmos legatários de uma tradição viva, parece não ter existido literariamente ‘em perspectiva histórica’”, escreveu Campos em O sequestro do Barroco na formação da literatura brasileira: O caso de Gregório de Mattos (1989). Candido, para Campos (que foi seu orientando no doutorado), reforçava um caráter nacionalista da crítica literária brasileira. A argumentação de Candido retomaria uma questão histórica do de-
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Machado de Assis (acima) e o poeta barroco Gregório de Mattos (frontispício de seu livro de 1775, à dir.) foram objeto de debate entre os críticos
obras, ainda assim estamos diante do sociólogo que tudo enxerga desde o nexo entre literatura e sociedade”, observa Leda Tenório da Motta, autora de Sobre a crítica literária brasileira no último meio século (2002), professora do Programa de Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e estudiosa das novas críticas. Linguagem social
Tenório da Mota faz referência a dois textos incluídos no celebrado livro O discurso e a cidade (1993), que discutem romances de recorte realista. “Não há denominador comum possível entre esse enfoque e as leituras formais dos representantes da outra corrente que, estes sim, leem linguagem”, diz ela se referindo ao grupo da Noigandres. Para a professora, o legado de Candido foi “uma história da literatura brasileira com começo, meio e fim, o fim sendo o modernismo paulista, mais do que o advento do realismo machadiano”. A leitura da obra de Candido por Tenório da Motta extrapola Formação e inclui a forte ligação com as ideias do movimento literário de 1922, especialmente com as posições de Mário de Andrade. Essa posição é contestada por Maria Elisa Cevasco, do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP. Ela
destaca que Candido trabalhava com a noção de “forma objetiva”: o artista seria aquele capaz de transformar o externo, ou seja, o contexto sócio-histórico, em algo interno. Para Cevasco, não há uma redução, em Candido, da forma ao considerar esse contexto; pelo contrário, redutor seria pensar a literatura como algo independente desse contexto. “A linguagem é ela mesma social.” Valentim Facioli, professor aposentado do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), numa análise próxima da feita por Roberto Schwarz, vê Candido como alguém que escreve num momento em que o sistema literário descrito em Formação está em crise, mas ainda preserva alguma força. “Candido escreve muito antes da dispersão do sistema atual: hoje, o sistema literário tornou-se orgânico nas universidades; fora delas, morreu”, avalia. Candido começou a escrever em revistas como Clima, em jornais e participou da edição de suplementos literários, como o de O Estado de S. Paulo, quando a literatura ainda era, de algum modo, uma questão quotidiana de leitores não especializados. Ele seria, assim, um dos autores que marcam essa passagem, deixando de publicar regularmente em jornais e passando a fazer circular seus ensaios mais relevantes nos anos 1980 e 1990 inicialmente em revistas acadêmicas e depois em livros, não mais em publicações voltadas para o público geral. n pESQUISA FAPESP 257 z 89
Versão atualizada em 17/08/2017
fotos 1 eduardo cesar 2 arquivo estadão 3 Luiz Carlos Marauskas / FolhaPress 4 e 5 wikimedia commons
bate literário brasileiro, a questão do caráter nacional, o que conduziria à exclusão da produção anterior ao movimento literário ligado à luta pela independência do país. O argumento foi rebatido por Schwarz no texto já citado, que apontou o internacionalismo das ideias de Candido – o que não o impediria de perceber a relevância da constituição de um espaço literário nacional. Formação “se encerra” na década de 1880, com os projetos realistas dominando a cena literária. Machado de Assis é capaz de dar um salto estético porque já há uma produção e circulação de obras e leituras que permitem a reelaboração dessa tradição. E os escritores naturalistas já contam com uma rede de leitores, críticos e publicações que dão uma espécie de vida própria à produção literária. A ideia de sistema de Candido está intimamente ligada à sua formação sociológica – seu doutorado na área resultou na publicação de Os parceiros do Rio Bonito (1964) – e à atuação como professor de Sociologia 2 nos anos 1940, na USP, época em que começou a elaborar o projeto de Formação e quando escreveu a tese de livre-docência “Introdução ao método crítico de Silvio Romero” (1945). Pedro Dolabela Chagas, professor de teoria literária da Universidade Federal do Paraná, afirma que o impacto do recorte sociológico de Candido levou ao surgimento de leituras de cunho metafórico e alegórico da obra literária, dando preferência à narrativa e não à poesia. Essa seria uma das razões da difícil interlocução com os recortes propostos pelo grupo de Haroldo e Augusto de Campos, em que a poesia tem centralidade. Um dos legados de Candido, para Chagas, seria a do trabalho exaustivo de pesquisa, a ideia de que não se pode construir uma história literária apenas com os leitores e escritores excepcionais: para ele, é preciso pesquisar os textos críticos e a produção literária “menores” para entender, inclusive, os grandes autores. A relevância da história e da sociologia na análise de Candido é um dos alicerces da rejeição de Campos e dos críticos ligados à revista Noigandres à ideia de sistema literário. “Mesmo quando se sabe que há um Antonio Candido posterior [à Formação], o dos chamados ensaios ‘definitivos’, como ‘Dialética da malandragem’ e ‘De cortiço a cortiço’, que se voltam para uma certa leitura formal das
memória
Pesquisadores do mar Instituto Oceanográfico começou a consolidar as ciências oceânicas no Brasil na década de 1940
Rodrigo de Oliveira Andrade
90 | julho DE 2017
O
conhecimento sobre o mar e a costa brasileira até meados dos anos 1940 se limitava a exíguos registros de organismos de mar profundo, coletados com o auxílio de dragas em expedições marítimas realizadas durante o século XIX, ou a relatos de naturalistas europeus. Diante da falta de um centro de pesquisa oceanográfica que ditasse normas para a exploração dos ambientes costeiros e marinhos, o governo de São Paulo, exortado pelo advogado Paulo Duarte (1899-1984), decidiu em dezembro de 1946 pela criação do Instituto Paulista de Oceanografia (IPO), primeira instituição de pesquisa em ciências oceânicas do Brasil. De espírito combativo e humanista, Duarte empenhou-se em diversas campanhas de caráter político e cultural no Brasil. Foi um dos que lutaram pela Universidade de São Paulo (USP), criada em 1934, envolveu-se nas articulações político-militares que desencadearam a Revolução Constitucionalista de 1932 e, por isso, exilou-se na França. À época em que viveu em Paris, conheceu o biólogo marinho Louis Fage (1883-1964), que o persuadiu da necessidade de um centro de pesquisa em ciências oceânicas no Brasil.
Proa do navio oceanográfico Prof. Besnard em construção em Bergen, Noruega, nos anos 1960
fotos acervo iousp
Voltou ao país em 1945, em um período de reorganização das relações internacionais. A ciência havia ganhado relevância para o desenvolvimento das nações ao final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Contaminado por esse espírito, Duarte levou adiante seu projeto de novos espaços de pesquisa, articulando-se com o interventor federal em São Paulo José Carlos de Macedo Soares (1883-1968) para a criação do IPO e do Instituto de Pré-história, mais tarde incorporado à USP. O IPO era subordinado à Divisão de Proteção de Peixes e Animais Silvestres do Departamento de Produção Animal da Secretaria de Agricultura. Em um primeiro momento, coube ao instituto a definição de estratégias de estímulo à pesca. Anos mais tarde esse campo de atuação foi ampliado com estudos sobre o relevo submarino da plataforma continental paulista e pesquisas sobre fatores físicos, químicos e biológicos que pudessem implicar a produtividade das águas marinhas e continentais do estado, e espécies da fauna e flora aquáticas, sobretudo as de relevância econômica. Por indicação de Fage e do antropólogo francês Paul Rivet (1876-1958), amigo da época do exílio, Duarte negociou a vinda do oceanógrafo Wladimir Besnard (1890-1960) para comandar o instituto recém-criado. Besnard nasceu no mar, a bordo de um navio que levava seus pais à Rússia. Foi registrado no consulado francês de São Petersburgo. Formou-se em ciências naturais no Instituto de Anatomia Comparada de Moscou. Em 1914, tornou-se professor na Estação Biológica de Villefranche-sur-Mer, sul da França, e, em 1923, chefe do Departamento de Biologia do Colégio Universitário Americano Robert College, em Istambul, Turquia, onde desenvolveu pesquisas no mar de Mármara e no estreito de Bósforo. Voltou à França em 1931, trabalhou no Museu de História Natural de Paris e na Estação Biológica de Roscoff, além de criar aquários na Dinamarca e na Índia. Besnard tinha, portanto, uma carreira científica de prestígio na Europa quando foi convidado a
Tripulantes do Programa Antártico Brasileiro (Proantar) a bordo do Prof. Besnard em sua primeira ida à Antártica, em 1982
assumir a direção do IPO. “Ele foi atraído pela possibilidade de estabelecer a ciência oceanográfica em um país com uma costa tão grande e de tão pouca tradição científica nas áreas de biologia marinha, hidrológica e pesqueira”, conta Elisabete Braga Saraiva, pesquisadora do Instituto Oceanográfico (IO) da USP e diretora do Museu de Ciências da universidade entre 2004 e 2010. “Seu entusiasmo científico o fez deixar um dos principais centros de produção
Wladimir Besnard, primeiro diretor do IPO, em trabalho de campo na Ilha do Bom Amigo
científica para vir ajudar a consolidar as ciências oceanográficas no Brasil.” Tão logo iniciou suas atividades no IPO, em março de 1947, Besnard articulou-se para formar um pequeno corpo de pesquisadores. Convidou para se juntar à instituição a bióloga ítalo-brasileira Marta Vannucci, à época assistente do zoólogo alemão Ernest Marcus na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, e, mais tarde, o oceanógrafo islandês Ingvar Emilsson (1926-2016). A exemplo do que aconteceu nos primórdios da USP, a primeira geração de pesquisadores do IPO era composta por estrangeiros. “Não havia cursos dedicados a essa área no Brasil, muito menos profissionais especializados em oceanografia”, explica o historiador Alex Gonçalves Varela, do Departamento de História da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), em um estudo sobre a consolidação das ciências oceanográficas no Brasil publicado em 2014 na revista História, Ciência, Saúde – Manguinhos. A criação do IPO abriu caminho para a institucionalização das ciências oceanográficas no Brasil. Outros institutos estabeleceram-se a partir de então. Em março de 1953 foi criada a Sociedade de Estudos Oceanográficos do Rio Grande, embrião do curso de oceanografia da Universidade Federal do Rio Grande (Furg). Nos anos 1960 surgiram o Núcleo de Biologia Marinha da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e a PESQUISA FAPESP 257 | 91
Estação de Biologia Marinha, depois transformada no Laboratório de Ciências do Mar da Universidade Federal do Ceará (UFC). Já o primeiro curso de oceanografia no Rio de Janeiro foi criado apenas em 1977, na Uerj. À frente do IPO, Besnard foi o responsável pela instalação de duas bases de pesquisas oceanográficas no sul e no norte do litoral paulista, em Cananéia e Ubatuba. As instalações permitiram o desenvolvimento de estudos sobre a biologia do camarão-legítimo (Penaeus schimitti), para determinar as épocas mais adequadas para sua pesca, além de pesquisas sobre invertebrados marinhos, aspectos físico-químicos das águas do litoral paulista, entre outros. Em 1950, Besnard criou o Boletim do Instituto Paulista de Oceanografia, primeiro periódico brasileiro em oceanografia e principal meio de divulgação dos trabalhos científicos feitos pelos pesquisadores do IPO e de outros centros de pesquisa do Brasil e do exterior. Desde 2004 o periódico é conhecido como Brazilian Journal of Oceanography. Foi nessa época que o IPO levou a cabo seu primeiro grande empreendimento científico. Em maio de 1950 Besnard foi indicado pela Diretoria de Hidrografia e Navegação do Ministério da Marinha para liderar
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Oceanógrafo islandês Ingvar Emilsson durante expedição científica no navio Solimões da Marinha do Brasil, em 1956
uma expedição oceanográfica à ilha de Trindade, a 1.180 quilômetros (km) de Vitória, Espírito Santo (ver Pesquisa FAPESP nº 178). A expedição à ilha de origem vulcânica pretendia explorar suas potencialidades estratégicas para a construção de uma base aeronaval e estudar os recursos naturais da região para saber se lá poderia ser mantida uma comunidade agrícola. A expedição foi feita em dois destroieres da Marinha brasileira e resultou em várias publicações, reforçando em Besnard a percepção de que o IPO não deveria se restringir à pesca, mas às ciências do mar de modo geral.
O sentimento, compartilhado por Marta Vannucci, ganhou força e, em 1951, eles se reuniram com Luciano Gualberto (1883-1959), então reitor da USP, para discutir a transferência do instituto para a universidade. A estratégia deu certo. “Em nove meses, deu-se a transferência do instituto para a USP”, lembra o oceanógrafo Michel Mahiques, diretor do IO entre 2009 e 2013. O IPO passou a se chamar Instituto Oceanográfico. Funcionava em uma casa alugada na Barra Funda, zona oeste de São Paulo. O instituto logo ganhou corpo e outra casa precisou ser alugada. 2
Estudos sobre mudanças climáticas Décadas antes das primeiras conferências mundiais sobre a situação ambiental do
Entrevista de Emilsson à Folha da Noite de 1957 sobre as primeiras evidências do aquecimento global
planeta, estudos sobre os efeitos das mudanças climáticas repercutiam na imprensa brasileira e internacional. Em 1957, o físico húngaro naturalizado norte-americano Joseph Kaplan, da Universidade da Califórnia, Estados Unidos,
O artigo repercutiu no Brasil. Foi
derretimento das calotas polares. À época,
publicou um artigo no jornal Santa Monica
reproduzido em 10 de abril daquele ano na
Emilsson disse que a hipótese de Kaplan não
Evening Outlook dizendo que a combustão
Folha da Noite, atual Folha de S.Paulo (ver
era nova. Mas afirmou que o raciocínio do
do petróleo e do óleo pesado poderia
Pesquisa FAPESP nº 136). O jornal voltou ao
físico húngaro tinha lógica. “Observações já
produzir gases que aqueceriam a
assunto no dia seguinte com uma entrevista
mostraram que tanto no hemisfério Norte
atmosfera, o que determinaria, em até
com Ingvar Emilsson, à época no IPO, que já
como no Sul têm havido nos últimos
60 anos, o derretimento das calotas
estava envolvido com pesquisas sobre o
decênios um aumento na temperatura
polares e a elevação do nível dos mares.
impacto do aquecimento atmosférico e o
média”, destacou o oceanógrafo islandês.
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Adquirido para complementar as atividades de pesquisa do Alpha-Crucis (no meio), o Alpha Delphini (à esq.) cumpriu sua primeira missão em junho de 2013 no litoral de Pernambuco
fotos 1 e 4 acervo iousp 2 e 3 eduardo cesar
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As dependências foram completamente ocupadas, das cozinhas aos banheiros, com laboratórios, salas de pesquisadores e administração, e uma gráfica em uma meia-água no fundo do quintal. O IO passou a desenvolver pesquisa nas divisões de oceanografia física, química, geológica e biológica. Com a morte de Besnard, em agosto de 1960, aos 70 anos, Emilsson assumiu a direção do IO. Formado em filosofia pela Universidade da Islândia, Emilsson estudou oceanografia física no doutorado na Universidade de Bergen, Noruega, onde participou de projetos em tecnologia pesqueira e ecologia marinha. Foi pesquisador em várias instituições oceanográficas e pesqueiras da Noruega e da Islândia entre 1946 e 1953, quando foi convidado por Besnard para coordenar a seção de oceanografia física e química do instituto. Como diretor do IO, ele incrementou a base de Cananéia, conduziu expedições oceanográficas no Atlântico equatorial e criou um curso de pós-graduação em oceanografia física. “Emilsson iniciou a coleta sistemática de dados de temperatura e salinidade ao largo da baía de Santos”, relembra o oceanógrafo Luiz Bruner de Miranda,
professor sênior do IO. O pesquisador islandês ficou no instituto até 1964, quando deixou o país para se tornar assessor em oceanografia física da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), prestando assistência técnica ao Centro de Investigaciones Pesqueras e ao Instituto de Oceanología, ambos em Havana, Cuba. Em seu lugar assumiu Marta Vannucci, hoje com 96 anos, que deu início à construção do atual prédio do instituto na Cidade Universitária, concluído em 1970, e de uma embarcação própria para pesquisar o mar. As negociações para a construção de um navio oceanográfico haviam se iniciado na gestão de Besnard, estendendo-se pela de Emilsson. 4
Marta Vanucci, ex-diretora do IPO e uma das responsáveis por sua incorporação à USP
Somente em abril de 1964 o contrato para a construção da embarcação foi assinado. O projeto do navio foi encomendado à Escola Politécnica da USP, e sua construção, ao estaleiro A/S Mjellem Karlsen, em Bergen. As obras foram concluídas em maio de 1967. O navio oceanográfico foi batizado de Prof. W. Besnard. Tinha capacidade para até 25 pessoas e contava com instalações modernas de navegação. A embarcação saiu de Bergen em 10 de junho de 1967 e aportou em Santos em 9 de agosto. A viagem transformou-se na sua primeira expedição científica oficial, à medida que fazia coleta de água e organismos ao largo da costa da África, passando por Recife, Abrolhos, Vitória e Cabo de São Tomé. A expedição foi batizada de Vikíndio e contou com a participação de pesquisadores brasileiros e noruegueses, entre eles Thor Kvinge e Reidar Leinebö. “O Prof. Besnard permitiu ao Brasil realizar convênios importantes, como o firmado com o Observatório Geológico Lamont-Doherty da Universidade Columbia, Estados Unidos, para a instalação de cabos submarinos na década de 1970”, avalia Mahiques. O navio fez seis expedições à Antártida. Em dezembro de 2008 um incêndio consumiu seu interior, reabrindo a possibilidade da compra de uma nova embarcação, maior e mais moderna. À época, Mahiques mobilizou-se para angariar recursos para a aquisição de um novo navio oceanográfico. A estratégia resultou em um projeto apresentado à FAPESP, que viabilizou a compra e a reforma do Alpha-Crucis, que começou a operar em 2012. Em 2013 o IO adquiriu outra embarcação, menor, o Alpha Delphini, primeiro barco oceanográfico inteiramente construído no Brasil. n PESQUISA FAPESP 257 | 93
resenha
Tempos agrestes, escritas viventes Rodrigo Jorge Ribeiro Neves
Versão atualizada em 17/08/2017
Graciliano Ramos e a Cultura Política: Mediação editorial e construção de sentido Thiago Mio Salla Edusp 584 páginas | R$ 56,00
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Um dos principais veículos do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) do Estado Novo, a revista Cultura Política tinha caráter doutrinador e laudatório acerca das medidas socioeconômicas adotadas pelo regime e da valorização dos aspectos socioculturais da nação. Graciliano Ramos põe em cena os miúdos, doutores e lampiões do Nordeste, mas não os viventes de seu tempo, matéria-prima da crônica moderna. Ao se voltar para um passado distante e lançar mão de recursos ficcionais, como do conto e do retrato literário, o escritor alagoano subverte os pressupostos editoriais da publicação em que seus textos eram veiculados e força o leitor ao distanciamento crítico e, portanto, ao confronto de duas realidades: a do texto e a do próprio leitor, a quem cabia, assim, avaliar as mudanças propagadas pelo Estado. Além disso, Salla destaca a reconfiguração das cadeias de significação e da recepção crítica do texto de Graciliano ao ser deslocado entre publicações de orientações ideológicas bem distintas, como a reedição de alguns desses quadros na Revista do Povo: Cultura e Orientação Popular, periódico comunista. A pesquisa documental e bibliográfica feita por Salla é de tal monta que resultou em duas publicações fundamentais na fortuna crítica de Graciliano Ramos. A primeira é Garranchos (2012), reunião de textos diversos até então inéditos do autor de Vidas secas; a outra, objeto desta resenha, que ultrapassa a categoria de referência sobre determinado autor, na medida em que expõe, investiga, discute e problematiza os limites e condições de um gênero de farta ocorrência na literatura brasileira, mas sem se deter em seus aspectos meramente construtivos. O livro de Thiago Mio Salla é, portanto, uma obra de fôlego. Qualquer interessado no estudo da crônica ou das difíceis imbricações que trespassam o papel do artista diante do Estado, ou ainda, em sentido lato, entre estética e política, tem, em Graciliano Ramos e a Cultura Política, um proveitoso e substancial diálogo.
Rodrigo Jorge Ribeiro Neves é doutor em estudos de literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com tese sobre Graciliano Ramos, e foi pesquisador visitante da Universidade de Princeton. Atualmente, é pesquisador de pós-doutorado do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP).
eduardo cesar
U
m dos principais desafios do intelectual público é lidar com o espinhoso e indeterminado lugar que ele ocupa na sociedade moderna. Graciliano Ramos de Oliveira (1892-1953), um dos maiores escritores brasileiros, tinha consciência das tensões desse lugar e nunca fugiu de sua necessária e incômoda revisão, como descreve em Memórias do cárcere (1953): “Pertencíamos a essa camada fronteiriça, incongruente e vacilante, a inclinar-se para um lado, para outro, sem raízes. Isso determinava opiniões inconsistentes e movediças, fervores súbitos, entusiasmos exagerados, e logo afrouxamentos, dúvidas, bocejos”. Embora o trecho esteja relacionado ao ambiente da cadeia, onde Graciliano esteve preso de março de 1936 a janeiro de 1937, ele também pode ser ampliado para as dimensões estética e política de sua atuação intelectual, especialmente após a saída da prisão, e pela sua atividade jornalística para o mesmo regime que o tinha encarcerado. Em um juízo rápido e simplista, é pouco compreensível que um escritor, poucos anos depois, trabalhasse para a propaganda do seu algoz. Poucos, se não raros, estudiosos da obra do Velho Graça souberam explorar com consistência crítica, rigor analítico e sensibilidade os impasses dessas dimensões como Thiago Mio Salla, pesquisador e professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), em seu recém-lançado Graciliano Ramos e a Cultura Política: Mediação editorial e construção de sentido, publicado pela Edusp. O livro analisa as crônicas do escritor publicadas no periódico estadonovista Cultura Política: Revista Mensal de Estudos Brasileiros, entre março de 1941 e maio de 1943, em seção intitulada “Quadros e Costumes do Nordeste”, reunidas postumamente em Viventes das Alagoas (1962). Salla inova ao agregar outros mecanismos de produção de significados na tessitura da cronística de Graciliano, considerando, em sua análise, não apenas os aspectos compositivos do texto, mas também os componentes paratextuais que participam das estratégias do escritor para se manter sobre o “fio da navalha”, expressão de Salla para designar a aporia intelectual de Graciliano e título de sua tese de doutorado em ciências da comunicação, defendida em 2010, que deu origem ao livro.
carreiras
pD&I no setor privado
Mudança de hábito
ilustraçãO andré ducci
Transição de pesquisadores do ambiente acadêmico para o empresarial exige adaptação à dinâmica e às demandas do mercado Em meados de 2011, o engenheiro da computação Renato Cerqueira decidiu tirar um período de licença do cargo de professor no Departamento de Informática da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) para acompanhar a instalação do primeiro Laboratório de Pesquisas da IBM no Brasil e conhecer o sistema de pesquisa da empresa. A experiência lhe rendeu uma proposta de trabalho. Aos 45 anos e uma carreira acadêmica consolidada, Cerqueira viu-se diante da oportunidade de poder fazer pesquisa científica em uma grande empresa de tecnologia. Ele não pensou duas vezes e aceitou a oferta, deixando o cargo de professor e coordenador da área de Engenharia de Sistemas Distribuídos do Grupo de Tecnologia em Computação Gráfica (Tecgraf ) da universidade. Cerqueira é apenas um dos muitos pesquisadores brasileiros que deixaram a universidade ou centros públicos de pesquisa para trabalhar em atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação (PD&I) em companhias privadas. Como a maioria dos que
optam por essa mudança, ele se guiou pelo desejo de transformar seu conhecimento em um processo ou produto que pudesse ser colocado à disposição da sociedade de um modo mais rápido e efetivo. “O potencial de aplicação dos resultados das pesquisas desenvolvidas nas empresas é muito superior em relação à pesquisa feita na universidade, e isso pesou na minha decisão de deixar a academia”, ressalta. A remuneração pode ser um fator decisivo na hora de decidir deixar o ambiente acadêmico para trabalhar em uma empresa, ele lembra. “A percepção geral é de que o setor privado oferece salários mais atrativos, mas isso irá depender da universidade, da posição que o indivíduo ocupa e do que a empresa que ele irá trabalhar oferece”, diz. Nos últimos anos, à medida que a competitividade das empresas aos poucos passou a ser pautada por uma perspectiva de inovação e de investimento em PD&I, intensificou-se em algumas companhias a busca por profissionais mais qualificados e com ampla experiência científica. PESQUISA FAPESP 257 | 95
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novos conhecimentos, a empresa vislumbra, acima de tudo, produzir lucro, tendo o conhecimento como base. “É preciso haver um alinhamento estratégico entre os projetos desenvolvidos pelos pesquisadores e as especificidades do segmento de mercado no qual a empresa atua”, avalia o analista de sistemas Bruno Bragazza, gerente de Inovação, Propriedade Intelectual e Novos Negócios da Bosch para a América Latina. Nesse sentido, ele explica, a pesquisa básica, cujos resultados costumam ser menos palpáveis, tem menos espaço no âmbito das atividades de PD&I nas empresas, uma vez que esse tipo de abordagem não procura um retorno imediato. visão de mercado
Muitas vezes, os pesquisadores nas empresas trabalham em projetos envolvendo grandes equipes. A IBM, por exemplo, tem cerca de 3 mil pesquisadores espalhados por 12 laboratórios no mundo. “É um desafio semelhante ao encontrado na universidade, especialmente para os recém-chegados, conseguir se envolver em uma rede de pesquisadores e identificar possíveis laços de colaboração”, diz Cerqueira. Logo após ser incorporado ao laboratório da IBM, o engenheiro da computação
tornou-se gerente da área de Soluções para Recursos Naturais, atuando em projetos para aumentar a eficiência de processos e aperfeiçoar a interpretação de dados de empresas de óleo e gás, mineração e agricultura. Ele hoje coordena uma equipe de 50 pesquisadores no Rio. Diante desses desafios, é importante que os pesquisadores tenham uma visão ampla em relação às próprias investigações. “A empresa oferecerá as condições de trabalho para que o pesquisador toque seus projetos. Em contrapartida, exigirá uma agenda sustentável de pesquisas, com estratégias específicas de desenvolvimento, produção e comercialização de novos bens, processos e serviços”, destaca Cerqueira. Na avaliação do biólogo Marcos Valadares, não há espaço para erros por falta de planejamento dentro das empresas. “A pesquisa na indústria é feita de uma maneira muito planejada”, explica. Valadares é sócio-fundador da Pluricell Biotech, startup dedicada à produção e comercialização de células-tronco pluripotentes induzidas (iPS), células maduras que podem ser reprogramadas para se tornarem outra vez capazes de gerar tecidos diferentes do organismo (ver Pesquisa FAPESP
ilustrações andré ducci
Esse esforço em PD&I por parte das empresas no Brasil, ainda que tímido se comparado com outros países, tem se refletido no índice de absorção de pesquisadores. Em 2010, 41.317 pesquisadores brasileiros, de um total de 234.797, trabalhavam em atividades de PD&I em empresas no Brasil, de acordo com o último relatório do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) com dados da Pesquisa de Inovação Tecnológica (Pintec), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em São Paulo, as empresas concentravam 53% dos 63 mil pesquisadores paulistas em 2008, ano em que superou pela primeira vez o ambiente acadêmico, segundo dados da última edição dos Indicadores de ciência, tecnologia e inovação em São Paulo da FAPESP. Em 2014, o mais recente relatório da Pintec contabilizou cerca de 94 mil pesquisadores atuando em atividades PD&I em empresas no Brasil. A transição da universidade para o setor privado tende a ser desafiadora, por envolver um processo de adaptação à dinâmica e às demandas do mundo empresarial. De modo geral, a pesquisa feita na universidade costuma ser ditada pelo interesse do pesquisador por determinados temas, cabendo a ele desenvolver uma proposta de investigação robusta e convincente, capaz de obter os recursos necessários para viabilizá-la. “Se o pesquisador está na indústria, é provável que tenha menos liberdade para decidir o que pesquisar. No entanto, não precisará se preocupar em alocar recursos para seus projetos”, afirma o neurocientista Luiz Eugênio Mello, vice-presidente da Associação Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento das Empresas Inovadoras (Anpei) e gerente executivo de Inovação e Tecnologia da companhia Vale. É importante que os pesquisadores tenham em mente o modelo de negócio da empresa na hora de elaborar um projeto de pesquisa. Enquanto a universidade tem como vocação a geração de
decidir sobre sua viabilidade e quanto deverá ser investido nele. Para um projeto de pesquisa, recomenda-se que os pesquisadores apresentem uma revisão concisa e consistente da literatura sobre o assunto, com objetivos e metodologias coerentes com a hipótese que se pretende verificar (ver Pesquisa FAPESP nº 254). No caso das empresas, exige-se que o projeto seja desenvolvido à luz de uma abordagem mercadológica, que justifique o investimento. “É preciso demonstrar o caráter inovador da pesquisa, reforçando o impacto que seus resultados poderão ter”, explica a física Kesley Moraes de Oliveira, gerente de P&D da Divisão de Farmoquímica da Cristália, empresa farmacêutica com sede em Itapira (SP). Kesley foi contratada pela empresa em 2002, ainda durante o doutorado no Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). gestão da inovação
A preocupação em proteger os resultados de pesquisas científicas para finalidades econômicas também é constante. “A cultura da
gestão da inovação por meio da propriedade industrial é bem enraizada nas empresas”, explica Kesley. “Os pesquisadores precisam sempre se certificar de que não estão infringindo o direito de outras empresas sobre um processo ou tecnologia e devem estar alertas para verificar se os resultados de seus projetos atendem às exigências básicas de um pedido de patente.” Diante disso, muitas empresas criaram equipes focadas apenas na questão das patentes. Segundo Luiz Mello, da Anpei, isso estimulou as universidades a também investirem em estratégias de promoção de uma cultura de propriedade intelectual entre seus alunos, professores e pesquisadores, orientando-os sobre os requisitos necessários para um produto ou processo ser patenteado (ver Pesquisa FAPESP nº 252). A cultura de propriedade intelectual sempre esteve à frente dos projetos da Bosch. Levando em conta todos os seus centros de pesquisa no mundo, a empresa depositou, em média, 22 pedidos de patente por dia em 2016. Como na Cristália, a Bosch tem um departamento voltado exclusivamente para orientar os pesquisadores sobre o que poderia ou não ser protegido, como fazer uma pesquisa de anterioridade, entre outras diretrizes. Os especialistas também reforçam a importância das parcerias da indústria com universidades e centros públicos de pesquisa com o propósito de gerar novas oportunidades de financiamento à pesquisa básica, promover maior absorção de pesquisadores pela indústria e estimular a transferência de tecnologia. Segundo Mello, a Anpei busca aproximar empresas e universidades, sobretudo por meio dos núcleos de inovação tecnológicos, criando um ambiente favorável à troca de experiências. No entanto, ele destaca que “a cooperação com as universidades não pode substituir o esforço das empresas no desenvolvimento de uma atividade própria de P&D e de um ambiente propício à inovação”. n Rodrigo de Oliveira Andrade PESQUISA FAPESP 257 | 97
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nº 240). Segundo ele, uma das principais dificuldades dos pesquisadores quando decidem trabalhar no setor privado ou abrir a própria empresa é a falta de visão comercial e administrativa. “Leva certo tempo até aprender a entender e a se comunicar com o mercado e conseguir desenvolver um plano de negócio sustentável”, diz. “Trata-se de uma fase de transição, quando o indivíduo deixa de ter um pensamento estritamente acadêmico e passa a pensar de forma mais mercadológica.” Nas empresas, a qualidade do trabalho dos pesquisadores não é avaliada pela quantidade de artigos publicados ou citações obtidas, dois dos critérios usados na universidade. “O impacto das pesquisas na indústria é medido pelos benefícios que elas geram na atividade da própria empresa ou na de seus clientes”, explica Bragazza. Outra diferença em relação às universidades e centros públicos de pesquisa é que, nas empresas, os pesquisadores não precisam dar aulas e orientar alunos. Mas não deixam de apresentar projetos de pesquisa aos diretores responsáveis, que irão discuti-los e avaliá-los para
Finep deverá injetar até R$ 400 milhões em startups
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Quanto mais dados, melhor Engenheiro eletricista Jaime de Paula fez da universidade seu laboratório de ideias para criar sua própria empresa de big data
arquivo pessoal
Com o propósito de estimular e fortalecer o sistema brasileiro de ciência, tecnologia e inovação, a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) lançou no dia 26 de junho o primeiro edital do Programa Finep de Investimento em Startups Inovadoras. A proposta é ajudar a promover a inovação em empresas iniciantes de alto dinamismo tecnológico por meio da injeção de recursos financeiros, de modo que elas possam gerir seus planos de negócio. A chamada deverá contemplar 50 empresas por ano em duas rodadas de investimento e a estimativa é de que sejam investidos até R$ 400 milhões em quatro anos. O apoio se concentrará em startups de segmentos específicos, entre eles os de educação, cidades sustentáveis, internet das coisas, economia criativa, energia, defesa, mineração, petróleo, biotecnologia e tecnologia agrícola. Em contrapartida, exige-se que o produto (processo ou serviço) objeto da captação de recursos já esteja em fase de protótipo ou testes, ou sendo comercializado, ainda que em pequena escala. A startup deve também apresentar, no ano do lançamento do edital, receita bruta de até R$ 3,6 milhões. A seleção das empresas se dará por meio de três etapas: análise de proposta, banca de seleção presencial e visita técnica. Ao firmar contrato, a Finep se tornará uma acionista da startup. Se a empresa for bem-sucedida, a agência poderá prolongar a parceria por mais dois anos. Caso contrário, encerra-se o investimento. O modelo é inédito na esfera pública no Brasil e baseia-se em programas desenvolvidos em outros países, como os Estados Unidos. O prazo para envio das propostas vai até 7 de agosto. Mais informações disponíveis em bit.ly/2sydMj7. R.O.A.
perfil
O engenheiro eletricista Jaime de Paula sempre gostou de transitar na fronteira do conhecimento. Em 1982, três anos após ingressar no curso de engenharia elétrica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), juntou-se à equipe de analistas de sistemas da Companhia de Desenvolvimento de Dados do Estado de Santa Catarina, em uma época em que existiam poucos cursos de ciências da computação no Brasil. Saiu de lá em 1986 como gerente de projetos. No ano seguinte, ingressou na Perdigão, onde trabalhou no desenvolvimento e na implementação de sistemas computacionais para ajudar a eliminar processos desnecessários que atrapalhavam a tomada de decisão nas áreas comercial, industrial, financeira e administrativa. Anos mais tarde, em 1993, foi para a empresa de revestimentos cerâmicos Cecrisa para desenvolver o plano diretor de tecnologia da informação da companhia, integrando-o ao seu planejamento estratégico. À medida que o conhecimento nessa área avançava, percebeu que precisava se atualizar. Decidiu voltar para a UFSC e fazer mestrado em 1997. “Estudei o uso de sistemas de inteligência artificial no gerenciamento de múltiplas bases de dados”, conta. Já no doutorado, iniciado em 1999, investiu na área de comércio eletrônico. “A pós-graduação foi importante para que eu pudesse testar e absorver novos conceitos e avaliar como eles poderiam ser usados em projetos futuros”, explica.
Na mesma época, Jaime participou de um projeto com a Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) e a Secretaria Estadual de Segurança de São Paulo para desenvolver um sistema de inteligência artificial capaz de integrar informações registradas em ocorrências policiais e gerar grandes quantidades de dados para ajudar a caracterizar operações de organizações criminosas. A experiência o fez reorientar sua pesquisa de doutorado para uma área hoje conhecida como big data, à época incipiente no país. “O fluxo de dados na internet aumentava de forma exponencial, e ninguém sabia o que fazer com todas aquelas informações. Percebi que havia uma demanda por sistemas que pudessem processá-las de modo a convertê-las em planos de negócio”, explica. Foi quando surgiu a oportunidade de aproveitar seu conhecimento no segmento comercial. Jaime passou a trabalhar no desenvolvimento de sistemas de coleta, organização e análise de dados com o propósito de oferecer suporte à gestão de negócios. Fundou, então, a Neoway em 2002 com o objetivo de transformar informações corporativas em ferramentas que orientassem a tomada de decisão. “Oferecemos um conjunto de plataformas de coleta, organização e análise de informações de empresas de diversos segmentos”, conta. O trabalho, segundo ele, consiste em organizar as informações das empresas e complementá-las com dados públicos, de modo a aprimorar o processo de tomada de decisão e orientar seus planos de negócio. A Neoway tem hoje escritórios em Florianópolis, São Paulo e Nova York. “Pretendemos inaugurar mais duas unidades, na Colômbia e no México, ainda este ano”, projeta. n R.O.A.
PA R A V E R C O M O SÃO AS COISAS
Bactérias se comunicam, competem e com isso formam padrões no meio de cultura no laboratório de Tal Danino, na Universidade Columbia, Nova York. Corantes que permitem estudar essas interações também dão origem a imagens como estas, que formam a exposição Microuniverso