A TV Digital está chegando

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iência eTecnoIogia

no Brasil

■iro 2006-N°120

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CRISE ATUAL AFETA CIDADANIA

ATV Digital está

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E = me + Pesquisa Brasil Rádio Eldorado AM Sintonize 700 kHz Toda semanar em meia hora, você tem: ■ Novidades de ciência e tecnologia ■ Entrevistas com pesquisadores ■ Profissão Pesquisa ■ Memória dos grandes momentos da ciência E o que não poderia faltar: sua participação nas seções ■ Pesquisa Responde ■ Promoção da Semana

Apresentação Tatiana Ferraz Comentários Mariluce Moura Diretora de redação de Pesquisa FAPESP -IDERANDD TENDÊNCI

Sábados, às 12h30 Reprise aos sábados às 19h30 e aos domingos às 14h

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Pesquisa ciência e lecnoiogia

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w no Brasil

FAPESP

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PESQUISA RESPONDE 14.01.2006 ■ Anna Frank - Quando ouvem barulhos fortes como fogos de artifício cachorros de certas raças podem atacar as pessoas que estão por perto. Por que não se cria um apito muito agudo capaz de parar o ataque de um cachorro a um ser humano? ■ André Maldonado, veterinário da Universidade Bandeirante de São Paulo - Cães de algumas raças reagem dessa maneira a um som forte de fregüência altíssima, que é extremamente agressivo tanto para cães como para nós. Provavelmente já se tentou criar esse tipo de apito, que nem sempre apresentou a eficácia esperada: alguns animais até interrompiam temporariamente a ação, enquanto outros eram indiferentes ao som. No caso de raças muito suscetíveis a esse tipo de agressão ao ouvido, como os cães weimaraner, o melhor a fazer é deixar o animal em um lugar fechado, onde o barulho seja menos intenso. Também pode se pedir ao veterinário que dê um sedativo leve para acalmar o cachorro nessas situações, ou mesmo colocar um pouco de algodão nos ouvidos do animal.

PROFISSÃO PESQUISA 28.01.2006 ■ Fabíola Andréa Silva, etnologista do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo - Pesquisar é imprescindível para nosso aprimoramento pessoal, social e intelectual. Quando realizamos pesquisas temos a chance de descobrir

coisas novas ou rever antigas descobertas e saberes. Fazendo isso, não apenas passamos a entender melhor o mundo que nos cerca, mas também adquirimos ferramentas para transformá-lo. Pesquisar é uma forma de sermos criativos. Estudo populações indígenas na Amazônia e tento entender o modo de vida delas. Por meio desse trabalho, descubro a cada dia que a diversidade humana é imensa. Somos capazes de viver muitas vidas diferentes. Por isso, o respeito à diversidade cultural é fundamental.

DESTAQUE DA SEMANA

clonagem terapêutica, fato que abriria novas perspectivas para o tratamento de doenças. A confirmação da fraude pela Universidade Nacional de Seul caiu como uma bomba entre os pesquisadores. Conversamos com a professora Mayana Zatz, geneticista e pró-reitora de pesquisa da USP, sobre o assunto. Qual o prejuízo que esta fraude trará para a pesquisa? As pesquisas voltam para a estaca zero? ■ Mayana Zatz - Não. No Brasil, não vai fazer diferença porque as pesquisas com clonagem terapêutica não haviam sido aprovadas pela Lei de Biossegurança. Aqui nem

21.01.2006 ■ Claudia Izique, editora de política da revista Pesquisa FAPESP - No dia 10 de janeiro, confirmou-se o que se temia: o trabalho do pesquisador coreano Hwang Woo-Suk era uma falsificação. Em dois artigos, publicados em 2004 e 2005 na revista Science, o cientista dizia ter produzido embriões humanos clonados e linhagens de células-tronco embrionárias humanas. Se fosse verdade, seria a prova de viabilidade da

Mayana: fraude chocou todos

podíamos fazer esse tipo de pesquisa. Em compensação, os estudos com células-tronco embrionárias continuam e essas não serão prejudicadas. O que ficou realmente prejudicado foi a credibilidade científica. Foi um choque para a comunidade científica saber que ele fraudou dois trabalhos de impacto enorme. É preciso deixar bem claro que essa é uma exceção. Em sua grande maioria, os cientistas são honestos e dedicados.

MEMÓRIA 29.10.2005 ■ Apresentadora Em uma entrevista concedida em 16 de junho de 1950 à rádio das Nações Unidas, o físico alemão Albert Einstein, criador da Teoria da Relatividade, apresenta sua visão de militante pacifista. - Creio que as opiniões de Gandhi foram as mais iluminadas entre aquelas proferidas pelos políticos de nosso tempo. Deveríamos nos esforçar para agir com o espírito dele, para não usar violência nas disputas por causa própria, mas por não participar daquilo que acreditamos ser maléfico.


REPORTAGENS POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

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44

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FISIOLOGIA

ASTROFÍSICA

Componente da bile aciona cadeia de reações químicas nos músculos gue evita obesidade

Dois processos distintos, mas não excludentes, podem dar origem às galáxias elípticas

SAÚDE PÚBLICA Instituto Butantan inicia teste com vacina contra a gripe aviaria

29 EMPREENDEDORISMO Finep escolhe gestores para fundos gue vão investir em empresas nascentes de base tecnológica

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TECNOLOGIA

AGRONOMIA

Criação de novas universidades suscita discussão sobre fôlego do governo para ampliar um sistema com ensino e pesguisa

Perfumaria canadense compra primeiro lote comercial de óleo extraído de folhas de manjericão

Biomédico brasileiro descobre em Paris como o protozoário da malária se espalha no organismo

A curta travessia do Estado de bem-estar social à distribuição de migalhas

Tese analisa canções de Caetano Veloso e identifica aproximação de sua obra com símbolos sagrados

EDUCAÇÃO

BIOLOGIA CELULAR

ECONOMIA

MUSICA

Pesquisadores descobrem padrões de comportamento de formigas gue vivem sobre o solo da Mata Atlântica

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ECOLOGIA

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CIÊNCIA

HUMANIDADES

52 FÍSICA Experimentos em acelerador da USP revelam comportamento de núcleos exóticos

42 IMUNOLOGIA Terapia gue associa quimioterapia e células-tronco adultas dá bons resultados

4 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

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SEÇÕES

FÍSICA APLICADA Eguipe da USP tenta descobrir se guadro que retrata o calvário de Jesus é mesmo do pintor belga Van Dyck

A IMAGEM DO MÊS CARTAS CARTA DA EDITORA

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MEMÓRIA

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ESTRATÉGIAS

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LABORATÓRIO

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SCIELO NOTÍCIAS

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UNHA DE PRODUÇÃO

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RESENHA

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LIVROS

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FICÇÃO

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CLASSIFICADOS

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Capa e ilustração: Hélio de Almeida Foto: Miguel Boyayan


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24 CLONAGEM Falsos resultados de pesquisa obrigam Science a retratar-se e reabrem debate sobre ciência e ética

CAPA

64 COMUNICAÇÃO Pesquisadores de 75 instituições apresentam alternativas para o Sistema Brasileiro de TV Digital

Antônio Paes de Carvalho conta sua experiência de empreendedor na área de biotecnolog

80 SOCIOLOGIA Descrença com instituições gerada por crise política abre discussão sobre cidadania

36 MEDICINA Alterações genéticas podem causar imunodeficiências confundidas com doenças comuns na infância PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 5


A imagem

do Mês

Os dinossauros chegaram Nunca uma exposição sobre dinossauros no Brasil reuniu um acervo tão grande. Até 30 de abril, 400 fósseis dos animais pré-históricos - com tamanhos que variam de 10 centímetros a 22 metros de comprimento - estão em exibição na Oca, no Parque Ibirapuera, em São Paulo. A exposição traz pela primeira vez ao país peças da África, da Argentina, da China e dos Estados Unidos selecionadas por Paul Sereno, professor de paleontologia da Universidade de Chicago. Na foto, um carcharodontossauro, que viveu no Norte de África há 90 milhões de anos. Também estão expostas coleções de dinos do Brasil.

6 • FEVEREIRO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 120


Cartas cartas@fapesp.br

Cães Parabéns à revista Pesquisa FAPESP. Os assuntos abordados são excelentes. Cada cientista entrevistado me deixa orgulhosa de ser brasileira, pois nossos políticos só nos envergonham. Nossos cientistas são de alto nível. Que pessoas inteligentes, preparadas, dedicadas e muito provavelmente batalhadoras por mais verbas e melhores remunerações. Mesmo assim produzem com qualidade. A cada exemplar aprendo mais. É um investimento com retorno garantido e da melhor qualidade. Parabéns a todos os profissionais da revista e aos cientistas. E que 2006 lhes possibilite mais reconhecimento dos órgãos oficiais e mais apoio para as pesquisas, em todos os campos da ciência. Na edição 119 pude constatar que pesquisas mostram descobertas com cães que já havia notado de modo empírico com minha fox paulistinha (reportagem "O mundo de Sofia"). Às vezes, acho que ela "saca" coisas mais rapidamente do que alguns humanos. Só não fala. MARACI BARALDI

Marília, SP

Pós-graduação Interessante o artigo intitulado "Suporte para crescer" (edição 119). Seu maior mérito está no rápido e eficiente mapa da história da pósgraduação brasileira e seu papel estratégico no desenvolvimento do país. Uma ressalva, no entanto, poderia ser feita àquele conteúdo: a afirmação a respeito da ausência de pós-graduados desempregados. Vale observar que o tema do desemprego de doutores/mestres não está ausente do debate acadêmico/científico. Bas-

ta acompanhar os artigos e cartas publicadas no Jornal da Ciência. Uma rápida pesquisa no periódico trará notícias de um debate sobre o desemprego de recém-doutores, promovido pela SBPC, no Rio de Janeiro. Salvo melhor juízo, não temos ainda, no Brasil, instrumentos para acompanhar e avaliar as trajetórias laborais de nossos pós-graduados. Espera-se que surjam em breve, com a possibilidade de informar não apenas se os doutores e mestres conseguem se in-

EMPRESA QUE APOIA A PESQUISA BRASILEIRA

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NOVARTIS 3piNet.org

serir ao término de seus cursos, como também se atuam em sua área de formação, se ocupam cargos permanentes ou se estão com vínculos precários. Enquanto essas informações não aparecem bem sistematizadas, pela via de pesquisas amplas e contínuas, poderiam vir em matérias desta revista, trazendo opiniões sobre o tema. RITA DE CáSSIA RAMOS LOUZADA

Departamento de Psicologia Social/UFES Vitória, ES

Entrevista Agradeço pela generosa entrevista publicada na edição de janeiro de Pesquisa FAPESP, a melhor do nosso

país. Faltaram apenas pequenas correções, que passo a colocar: • O ano correto da Revolução no Porto é 1820, e não 1821, como está na página 14.0 mês está certo: agosto. • A frase que finaliza minha resposta à pergunta "E quem são as lideranças..." fica confusa porque está "Esses militares estão com a junta...", mal colocada por mim, que devia ter dito: "Esses militares estavam contra a junta e exigiam que ela se demitisse e que se formasse outra..." • O engano grave está na página 17 onde aparece: Joaquim de Lima e Silva, Duque de Caxias. Esse oficial brasileiro, realmente herói do Dois de Julho, chamava-se José Joaquim de Lima e Silva. Era tio do futuro Luís Alves de Lima e Silva, Duque de Caxias. Luís Alves de Lima e Silva era muito jovem. Estava na Bahia com o posto de cadete, mas não comandou tropa. Talvez tivesse participado do combate na Conceição, mas não está documentado. • O nome completo de Acioli é Inácio Acioli de Cerqueira e Silva. Faltou o de. Grato por tudo. Luís HENRIQUE

DIAS TAVARES

Salvador, BA

Malária Com relação à reportagem "Padrões éticos sob suspeita" (edição 118), temos a informar que o Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Amapá (Iepa) não tem participação nenhuma na pesquisa Heterogeneidade de vetores da malária no Amapá, que é coordenada pela ONG norte-americana Institutional Review Board, financiada pela Universidade da Flórida/Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos, envolvendo pesquisadores da PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 7


cartas@fapesp.br

HK

Ciência eTecnoloqia W no Brasil

Pesquisa ™ FAPESP

Universidade de São Paulo e do Instituto Aggeu Magalhães, da Fundação Osvaldo Cruz. A direção do Iepa solicita que esta revista retifique a notícia divulgada e esclareça que o governo do Estado do Amapá espera uma posição clara das instituições brasileiras responsáveis pela autorização das pesquisas para que a questão seja elucidada definitivamente, já que existe um interesse comum dos agentes políticos do estado, da imprensa brasileira e da população em geral.

da", edição 119). O rigor das pesquisas mencionadas é um exemplo da seriedade com que o tema vem sendo tratado em investigações acadêmicas. Um tema em que, atualmente, podemos encontrar contribuições diversificadas, incluindo aquelas advindas de áreas do conhecimento que tradicionalmente não se dedicavam ao seu estudo, como, por exemplo, a educação (vide as investigações em curso sobre processos educativos presentes no trabalho sexual).

ANTôNIO CARLOS DA SILVA FARIAS

MARIA WALDENEZ DE OLIVEIRA

Diretor-presidente do Iepa Macapá, AP

Grupo de Estudos sobre Trabalho Sexual/UFSCar São Carlos, SP

Nota da redação: De fato, o Iepa não participa da pesquisa citada na reportagem "Padrões éticos sob suspeita" (edição 119). Os pesquisadores do Instituto Aggeu Magalhães, na verdade, utilizam o Laboratório de Entomologia do Iepa por intermédio da Secretaria Estadual de Saúde do Amapá.

Apoio para o braço Causou-me preocupação a notícia veiculada na seção Linha de Produção intitulada "Descanso para braços" (edição 119). Não obstante a engenhosidade e aplicabilidade da referida inovação, inclusive reconhecendo que melhores condições de conforto contribuem para a segurança ao dirigir, a presença de articulações metálicas tão próximas ao corpo do motorista aumenta a possibilidade de sérios ferimentos abdominais e torácicos em caso de colisões de média e alta intensidade. JOSé ALBERTO R. PARISE Departamento de Engenharia Mecânica/PUC-Rio Rio de Janeiro, RJ

Prostituição Parabéns pela reportagem sobre prostituição feminina ("Amor à ven8 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

As reportagens de Pesquisa FAPESP retratam a construção do conhecimento que será fundamental para o desenvolvimento do país. Acompanhe essa evolução.

i Números atrasados Preço atual de capa da revista acrescido do valor de postagem. Tel. (11) 3038-1438 1

Assinaturas, renovação e mudança de endereço Ligue: (11) 3038-1434 Mande um fax: (11) 3038-1418 Ou envie um e-mail: fapesp@teletarget.com.br

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Opiniões ou suqestões Envie cartas para a redação de Pesquisa FAPESP Rua Pio XI, 1.500 São Paulo, SP 05468-901 pelo fax (11) 3838-4181 ou pelo e-mail: cartas@fapesp.br

Pesquisa Brasil Fiquei feliz ao ler o depoimento do professor Nelson Velho ao programa de rádio Pesquisa Brasil, veiculado pela Eldorado AM e reproduzido em Pesquisa FAPESP (edição 118). É por causa de gente como ele que a ciência ainda vive. Quanto a mim, já não posso dizer o mesmo. Sim, pois só hoje, ao fazer pesquisa, vejo o que isso significa: uma infinidade de articulações políticas, às vezes científicas, meias palavras, afagos de egos, camaradagem, tapinhas nas costas, sorrisos sarcásticos e disputas infindáveis. A máquina da ciência, hoje, está montada de tal forma que absurdos são aplaudidos: alguns chefes de grupo somam 120 publicações em cinco anos. Hoje, eu, que faço ciência, sei bem o que isso significa. Mas não se pode culpá-los, essa é que é a verdade: tem de entrar no sistema, é uma questão de sobrevivência.

Site da revista No endereço eletrônico www.revistapesguisa.fapesp.br você encontra todos os textos de Pesquisa FAPESP na íntegra e um arguivo com todas as edições da revista, incluindo os suplementos especiais. No site também estão disponíveis as reportagens em inglês e espanhol. Para anunciar Ligue para: (11) 3838-4008

ALAN BARROS DE OLIVEIRA

Instituto de Física/UFRGS Porto Alegre, RS Cartas para esta revista devem ser enviadas para o e-mail cartas@fapesp.br, pelo fax (11) 3838-4181 ou para a rua Pio XI, 1.500, São Paulo, SP, CEP 05468-901. As cartas poderão ser resumidas por motivo de espaço e clareza.

0 que a ciência brasileira produz você encontra aqui


Carta

da Editora

Pesquisa CARLOS VOGT PRESIDENTE MARCOS MACARI VICE-PRESIDENTE

Mais linhas na TVf mais luz do sol

CONSELHO SUPERIOR ADILSON AVANSI DE ABREU. CARLOS VOGT, CELSO LAFER, HERMANN WEVER, HORÁCIO LAFER PIVA, HUGO AGUIRRE ARMELIN, JOSÉ ARANA VARELA, MARCOS MACARI, NILSON DIAS VIEIRA JÚNIOR, VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO RICARDO REN20 BRENTANI DIRETOR PRESIDENTE JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER DIRETOR ADMINISTRATIVO CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ DIRETOR CIENTIFICO PESQUISA FAPESP CONSELHO EDITORIAL LUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORDENADOR CIENTÍFICO), CARLOS HENRIOUE DE BRITO CRUZ, FRANCISCO ANTÔNIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER, LUIZ EUGÊNIO ARAÚJO DE MORAES MELLO, PAULA MONTERO, RICARDO RENZO BRENTANI, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLLI DIRETORA DE REDAÇÃO MARILUCE MOURA EDITOR CHEFE NELDSON MARCOLIN EDITORA SÊNIOR MARIA DA GRAÇA MASCARENHAS DIRETOR DE ARTE HÉLIO DE ALMEIDA EDITORES CARLOS FIORAVANTI (CIÊNCIA), CARLOS HAAG (HUMANIDADES), CLAUDIA IZIOUE (POLÍTICA CST), HEITOR SHIMIZU (VERSÃO ON-LINE), MARCOS DE OLIVEIRA (TECNOLOGIA) EDITORES ESPECIAIS FABRÍCIO MARQUES, MARCOS PIVETTA EDITORES ASSISTENTES DINORAH ERENO, RICARDO ZORZETTO CHEFES DE ARTE JOSÉ ROBERTO MEDDA, MAYUMI OKUYAMA ARTE FINAL LILIAN QUEIROZ FOTÓGRAFOS EDUARDO CÉSAR, MIGUEL BOYAYAN COLABORADORES ALESSANDRA PEREIRA, ANA LIMA, ANDRÉ SERRADAS (BANCO DE DADOS), BRAZ. CARLOS ORSI, EDUARDO GERAQUE (ON-LINE), FRANCISCO BICUDO. GONÇALO JÚNIOR, JAIME PRADES, LAURABEATRIZ, MÁRCIO GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÔ NEGRO, SÍRIO J. B. CANÇADO E THIAGO ROMERO (ON-LINE) ASSINATURAS TELETARGET TEL. (11) 3038-1434 - FAX: (11) 3038-1418 e-mail: fapesp@teletarqet.com.br PUBLICIDADE TEL: (11) 3838-4008 e-mail: publicidade@fapesp.br (PAULA ILIADIS) IMPRESSÃO PLURAL EDITORA E GRÁFICA TIRAGEM: 35.700 EXEMPLARES DISTRIBUIÇÃO CIRCULAÇÃO E ATENDIMENTO AO JORNALEIRO LMX (ALESSANDRA MACHADO) TEL: (11) 3865-4949 atendimento@lmx.com.br GESTÃO ADMINISTRATIVA INSTITUTO UNIEHP

RUA PIO XI, N° 1.500, CEP 05468-901 ALTO DA LAPA - SÃO PAULO - SP TEL. (11) 3838-4000 - FAX: (11) 3838-4181 http://www.revistapesQuisa.fapesp.br cartas@fapesp.br NÚMEROS ATRASADOS TEL. (11) 3038-1438

Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião da FAPESP É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO SECRETARIA DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E TURISMO GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Mudanças à vista: dentro de alguns meses, chega ao país uma nova tevê, com promessas de uma imagem com melhor qualidade, interatividade e possibilidades mais amplas de difusão das mensagens. Ainda neste mês de fevereiro, o governo federal deve anunciar as principais diretrizes do Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD) e os subsistemas a serem adotados em relação a um dos três padrões dessa tecnologia de televisão existentes no mundo, ou seja, o norte-americano, o europeu e o japonês. Muito bem, e o que isso tem a ver com a ciência e a tecnologia desenvolvidas no Brasil, se os padrões são externos? Tem muito mais a ver do que se pode imaginar, como mostra o editor de tecnologia, Marcos de Oliveira, na importante reportagem de capa desta edição de Pesquisa FAPESP, a partir da página 64. Afinal, para formatar o Sistema Brasileiro que lança agora a primeira pá de cal sobre a transmissão analógica em televisão - ela ainda deve se manter de pé, em princípio, pelos próximos 15 anos, em convivência harmônica com a transmissão digital -, foi montada uma rede de pesquisa tecnológica talvez só superada pela rede montada a partir de São Paulo, em 1997, para o desenvolvimento dos projetos genoma do país. Nada menos do que 1.200 pesquisadores, representando 75 instituições, entre universidades, institutos de pesquisa e empresas, reuniram-se entre 2004 e 2005 para formatar o sistema dentro das especificidades culturais, sociais e tecnológicas do país. Isso terá um profundo impacto? Tecnológico, sim, ninguém duvida. Em relação aos efeitos culturais, os especialistas se dividem. Para entender por que, o mais aconselhável é ler a reportagem cuidadosamente produzida. Em tempos de pequenas revoluções tecnológicas, capazes de produzir algum efeito na sociedade brasileira, o debate sobre cidadania, entendida como a participação do indivíduo na

criação de sua sociedade, também ajuda numa percepção mais aguda de que país efetivamente formamos. Alguns estudos sociológicos recentes propõem que a descrença nas instituições, gerada pela crise política atual, não é exatamente uma novidade, como relata o editor de humanidades, Carlos Haag, a partir da página 80. Por isso há que se ir um pouco mais atrás para entender por que a cidadania é pouco desenvolvida entre nós. Ou por que num país de tantas desigualdades e insatisfações nunca houve um movimento popular capaz de promover uma reforma na vida nacional. Há males que se repetem com tanta freqüência que dá para desconfiar que o organismo em que eles se manifestam está fora de um padrão comum. Mas nem sempre os médicos têm a sensibilidade e a atenção suficientes para chegar a essa conclusão. É isso que ocorre, por exemplo, com as imunodeficiências primárias, verificadas sobretudo entre crianças até 3 anos, em que uma falha genética congênita provoca uma repetição preocupante de episódios de pneumonia, otite e outras infecções graves e, ainda assim, são muitas vezes confundidas com problemas comuns da infância. Estudos que abordam essa questão são o objeto da reportagem de Ricardo Zorzetto, editor assistente de ciência, e Francisco Bicudo, a partir da página 36. Para finalizar, merecem destaque a reportagem de Alessandra Pereira, sobre uma pesquisa extremamente interessante que revela padrões de comportamento de formigas da Mata Atlântica, e o texto de Gonçalo Júnior, a respeito de uma tese apaixonada sobre o simbolismo solar nas composições de Caetano Veloso. Sim, é isso mesmo. Lembra? "Luz do sol que a folha traga e traduz em verde de novo em folha, em graça, em vida, em luz." Mais verão, impossível. MARILUCE MOURA

- DIRETORA DE REDAçãO

PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 9


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Vigilantes da floresta Instituto Evandro Chagas completa 70 anos pesquisando endemias na região amazônica NELDSON MARCOLIN

Instituto Evandro Chagas (IEC), instalado em Belém há 70 anos, surgiu de um rotineiro trabalho de pesquisa realizado no Rio de Janeiro. Em 1934 Henrique Penna, pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz, examinava fragmentos de fígado à procura de lesões provocadas pela febre amarela quando identificou 41 casos de leishmaniose visceral (ou calazar). Foram os primeiros casos considerados autóctones no Brasil. Como não havia conhecimento suficiente sobre sintomas e epidemiologia, Carlos Chagas, então diretor do instituto, em Manguinhos, determinou que Evandro Chagas investigasse a doença nas áreas reveladas por Penna, no Nordeste e Norte do país. Evandro, filho de Carlos Chagas, tinha 29 anos e já era um dos principais pesquisadores do país em doenças tropicais. Ocorre que a morte de Carlos Chagas, no mesmo ano, adiou o trabalho de Evandro até 10 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

fevereiro de 1936, quando foi para Sergipe com as fichas dos casos de calazar diagnosticadas post-mortem. Lá fez o primeiro diagnóstico de um paciente em vida. Se não for tratado, o calazar é uma doença fatal, endêmica no Brasil, que afeta outros animais além do homem. É causada pelo parasita Leishmania chagasi, transmitida por insetos flebotomíneos (sugadores de sangue), provoca febre de longa duração, além de outras manifestações, com grande aumento do baço. Evandro Chagas realizou detalhado estudo clínico do paciente sergipano e mais tarde descreveu com Marques da Cunha uma nova espécie de protozoário do gênero Leishmania. No mesmo ano, o pesquisador voltou ao Nordeste para visitar outros focos de doença em Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Ceará e Piauí. Tinha a intenção de criar um laboratório regional para estudar a transmissão da leishmaniose. Como não conseguiu apoio dos governos estaduais visitados, decidiu ir até o Pará, também com casos descritos, e convenceu o governador


Evandro em pesquisa de campo, nos anos 1930. Na barraca (foto à esquerda) e com colegas (à direita): Deane é o segundo e Evandro o quarto

José Carneiro da Gama Malcher da importância de ter um laboratório que concentrasse os estudos daquela região. Fato raro, em poucos meses, no dia 10 de novembro de 1936, foi criado o Instituto de Patologia Experimental do Norte (Ipen). O objetivo inicial era estudar as endemias regionais, com o malária, filariose e verminoses intestinais, entre outras. A primeira equipe do instituto liderada por Evandro, nomeado diretor científico, veio da Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará, além de alguns jovens médicos do Rio que haviam passado por Manguinhos. Os pesquisadores embrenhavam-se na Floresta Amazônica à procura dos agentes causadores de doenças tropicais. "As equipes trabalhavam acampadas dentro da floresta ou em povoados próximos, perto do rio Tocantins e delta do rio Amazonas", conta Manoel Soares, médico pesquisador do IEC e estudioso da história do instituto. "Abria-se para nós um novo mundo, o das pesquisas de campo. Um mundo duro mas fascinante por seu sabor de aventura e que nos empolgou de tal maneira que se tornou o ambiente da maioria das investigações de vários de nós pelo resto da vida", escreveu o pesquisador Leônidas Deane sobre os primeiros anos do IEC. Não

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Família de pesquisadores ilustres reunida: Evandro, o filho mais velho, Carlos Chagas e Carlos Chagas Filho

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por acaso, quando Evandro morreu em um acidente aéreo em 1940, aos 35 anos, o Ipen teve seu nome mudado para Instituto Evandro Chagas apenas um mês depois da tragédia. Os estudos iniciais do IEC se desdobraram em numerosas linhas de pesquisa. Nos anos 1930

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• e 1940, o calazar e a malária estavam na mira. Nas décadas seguintes, além do aprofundamento no estudo dessas e de outras parasitoses, o isolamento de diversos tipos de vírus ganhou destaque no mundo científico e ratificou a importância do instituto como um

órgão de pesquisa com ênfase na Amazônia brasileira. "O IEC é o principal produtor de conhecimento na área de virologia da região amazônica e um dos mais importantes do mundo quando se trata de arboviroses - dois terços dos arbovírus conhecidos no mundo foram descritos lá", testemunha Marcos Boulos, professor de Moléstias Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e diretor-clínico do Hospital das Clínicas dessa faculdade.

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Antônio Paes de Carvalho

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Caminho de pedras CLAUDIA IZIQUE E MARCOS DE OLIVEIRA

ão há nenhum exagero em qualificá-lo, aos 70 anos, como um homem obstinado. Nem tampouco considerá-lo um visionário. Afinal, Antônio Paes de Carvalho deu provas de obstinação e visão de futuro quando, há 20 anos, concebeu o primeiro pólo de biotecnologia do país, enfrentando o ceticismo de muitos colegas. Na época, ele era diretor da Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e cientista respeitado: especialista em eletroquímica do coração, teve dezenas de artigos publicados em revistas internacionais indexadas, sendo dois na Nature. Acreditava que a biotecnologia era a área do conhecimento de maior interface com a indústria, fosse ela química, cosmética ou farmacêutica. Nos anos 1980 o Brasil ainda não tinha o destaque internacional que projetos como o Genoma da FAPESP ou as pesquisas desenvolvidas pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) conferiram à biotecnologia nacional. 12 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120


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Carioca, ele projetou e presidiu por 12 anos o pólo de biotecnologia no Rio de Janeiro, onde foram gestadas empresas importantes, hoje consolidadas no mercado. No final dos anos 1990 decidiu criar a Extracta, com a missão de oferecer à indústria extratos da imensa biodiversidade brasileira como alternativa ao uso de ginseng, gincobiloba e outros produtos asiáticos. Movia-se por um propósito que, hoje, ele mesmo reconhece ingênuo: oferecer "coisas maravilhosas" à indústria nacional de tal forma a torná-la competitiva. A empresa foi inaugurada na medida exata do sonho mais ousado de qualquer empreendedor: um sócio inglês - com 49% do capital social -, um contrato milionário com a Glaxo, alguns angel investors (empresa ou indivíduo que apostam num empreendimento de risco) e um grupo de investidores. Um ano depois começaram os problemas decorrentes da ausência de marcos regulatórios para o acesso ao patrimônio genético - que fornecia a matéria-prima para as atividades da Extracta - e de programas de incentivo às empresas de base tecnológica, que, associados às dificuldades clássicas de gestão, quase levaram a empresa a encerrar definitivamente suas atividades. Os 60 funcionários, 20 deles doutores e mestres, foram demitidos. Paes de Carvalho, no entanto, resistiu e insistiu. Em 2004 a empresa conseguiu licença do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEn) que legitimou, digamos assim, o acesso à biodiversidade. Agora, segundo Paes de Carvalho, os clientes começaram a voltar e a Extracta passa a dar sinais de recuperação. Por precaução, ele não revela nomes nem dá detalhes do andamento dos novos contratos. Menciona apenas que negocia uma parceria com a Petrobras e que tem alguns acordos "articulados" - mas igualmente protegidos por sigilo - com diversas empresas nacionais da área de cosmético, perfumaria e fármacos para o desenvolvimento de produtos a partir de extratos processados pela Extracta. "Todas essas empresas são brasileiras. As multinacionais nem olham mais para isso", ressalva. Paes de Carvalho atribui essa retomada dos negócios também ao fato de 14 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

as grandes indústrias farmacêuticas e as empresas agroquímicas brasileiras estarem voltando a "olhar a química da natureza", o que, na sua opinião, abre novas perspectivas para a ciência nacional. E considera "óbvia" a convergência da biodiversidade com o esforço da genômica e proteômica para a compreensão do mundo macromolecular e protéico. ■ Há 20 anos foi assinado o protocolo de intenções para a instalação do pólo de biotecnologia do Rio de Janeiro. Como surgiu a idéia de criar o primeiro pólo de biotecnologia no país? — Foi em 1982. Eu era diretor da Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e acreditava que a biotecnologia era o que tínhamos de mais moderno e promissor em termos de ciência voltada ao mercado. Cheguei a tocar no assunto com o então ministro do Planejamento Antônio Delfim Netto sobre o projeto de criar um pólo de biotecnologia no Rio no ano seguinte. Ele disse: "Temos que fazer ainda este ano, mas é preciso negociar com a indústria". O problema é que não tínhamos dinheiro e o projeto do pólo foi postergado. Criei então a Biomatrix, a primeira empresa de biotecnologia vegetal do país, que em 1985 foi vendida para a Agroceres, que, cinco anos depois, vendeu-a à Monsanto. Em 1985 o Renato Archer, que era ministro de Ciência e Tecnologia e era carioca, veio com a notícia de que os franceses queriam criar um centro de biotecnologia no Brasil e que ele pretendia ins-

talá-lo no Rio de Janeiro. Foi aí que ressurgiu a idéia do pólo. Em 1988 foi criada a Fundação Bio-Rio, gestora do pólo, no mesmo ano em que assinamos convênio de concessão para uso de área com a UFRJ pelo prazo de 30 anos, para a criação do parque tecnológico. Eu fui o primeiro secretário-geral da Fundação Bio-Rio e seu presidente até 2000. Conseguimos uma área dentro do campus da universidade e, apesar da oposição de alguns setores acadêmicos, o projeto avançou. Um dos seus principais defensores foi Horácio Macedo, então reitor da Federal. Aos críticos, ele argumentava: "Vamos colocar o capital e o trabalho olhando olho no olho". Reformamos o prédio onde funcionava um restaurante e o transformamos numa incubadora de empresas com oito vagas. A primeira a instalar-se foi a WL Imonuquímica, dedicada à área da saúde humana e que teve origem no Instituto de Microbiologia da UFRJ. Outras empresas também tiveram sucesso, emanciparam-se e instalaram-se em volta da incubadora que tinha uma área total de 200 mil metros quadrados. Hoje o pólo tem mais de 20 empresas, nenhuma depende de governo e todas estão fazendo seu mercado. ■ Como surgiu a idéia de criar a Extracta? — Eu comecei a pensar em montar a Extracta em 1998. A idéia era criar uma empresa que tivesse acesso, catalogasse e analisasse a imensa variedade química da biodiversidade vegetal, dentro das regras estabelecidas pela Convenção da


Biodiversidade e da lei brasileira. Pensava, cientista bobo que era, que íamos oferecer coisas maravilhosas à indústria nacional e ela se tornaria competitiva. Ao longo desses anos, reunimos uma extensa coleção de extratos isolados, coletados na Mata Atlântica e na Amazônia. Esses extratos estão prontos para testes de triagem na descoberta de novas substâncias de interesse industrial. O nosso banco de dados reúne amostras representativas de quase 5 mil espécies vegetais brasileiras. Ainda é pouco diante das cerca de 60 mil espécies conhecidas e catalogadas da biodiversidade brasileira. E estamos em fase de expansão para outros biomas, de forma a abranger amostras extraídas de animais, microorganismos e organismos marinhos. Essa coleção é um dos grandes valores da empresa. A idéia de que as plantas têm moléculas biologicamente ativas faz todo o sentido. Diferentemente de nós, as plantas não conseguem se defender pelo mecanismo de luta ou fuga. Mas têm defesa contra animais que as atacam. Buscar a biodiversidade química, portanto, é muito importante. Otto Gottlieb [químico, ex-professor das universidades de São Paulo e Federal Fluminense e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)], por exemplo, pensava que coletar plantas não fazia sentido porque elas têm uma estrutura unificada que permite conhecer exatamente onde estará determinada molécula. Mas entre a teoria e a prática há uma enorme diferença. Você pega plantas da mesma espécie e elas fazem carnavais bioquímicos completamente diferentes. ■ O senhor contou com o apoio de parceiros para bancar o investimento? — A Xenova, empresa inglesa, que era dirigida por uma química brasileira, entrou como sócia com 49% do capital. Mas a parceria durou pouco: a holding da Xenova, a Xenova Group, ia mal e eles recolheram as aventuras médicas. Colocaram US$ 50 mil e pararam. Começamos então a negociar com a Glaxo, com quem fechamos o primeiro contrato de tecnologia, em 1999. Com isso, vieram os investidores nacionais os angel investors. Foi o maior contrato de terceirização de tecnologia feito pela Glaxo abaixo da linha do equador: US$ 3,2 milhões. Eles queriam saber se a na-

tureza brasileira tinha resposta para oito alvos de doenças trazidos pela empresa. Eram alvos para buscar moléculas medicamentosas e um deles era uma enzima relacionada à insulina. Montamos um laboratório de 700 metros quadrados com o padrão de qualidade exigido pelo parceiro e com a missão de criar ensaios biológicos para ensaios naturais. Só os equipamentos custaram US$ 2 milhões. ■ A Extracta também contou com investimentos de risco? — Quando começamos a ter presença, atraímos os investidores de risco. A Fundação Biominas entrou com US$ 400 mil do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a Solits Biotecnologia - uma venture capital do Banco Pactuai - com US$ 1,7 milhão. Formamos, aos poucos, uma enorme coleção da biodiversidade brasileira. Tínhamos 4,5 mil espécies, com 11 extratos primários, sobre as quais se aplicou o screaming, quer dizer, a triagem de alta velocidade. Tudo foi muito bem até que, um ano depois, aconteceu o desastre da Novartis e Bioamazônia [Em 1999, o governo federal considerou ilegal um acordo de

bioprospecção celebrado entre a associação Bioamazônia e a multinacional Novartis, que tinha como objetivo identificar substâncias com potencial industrial.]. Em 2001 foi editada a Medida Provisória 2.186 que criou uma série de regras para o acesso ao patrimônio genético e atrapalhou a bioprospecção. Salvamo-nos apenas porque o contrato com a Glaxo já estava assinado. Mas a partir daquele momento não tivemos novos contratos. Os clientes desapareceram. Três deles, inclusive, já estavam praticamente fechados. Os três contratos eram com multinacionais, já que a indústria brasileira não tem como pedir definição de alvo em nível molecular e celular. ■ As novas regras estabelecidas pela MP exigiram mudanças de procedimentos na coleta da Extracta? — Do ponto de vista dos procedimentos, não sentimos diferenças. As expedições saíam e traziam flores, frutos, sementes, os botânicos classificavam. Antes da MP, já havíamos criado tudo o que estava previsto na Convenção da Biodiversidade. O problema era com os clientes. Em março de 2002 foi criado o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEn) e, 15 dias depois, a Extracta pediu e obteve licença especial para bioprospecção até junho de 2004. A regulamentação do acesso ao patrimônio genético, aliás, teve como base o caso Extracta-Glaxo como modelo. O que importa é que cumprimos o contrato com a Glaxo, que dizia respeito a dez moléculas em cima de dois alvos de doença. O problema é que a Glaxo se fundiu com SmithKline e eles perderam o interesse. Não usaram essas moléculas. Temos o material e o direito de utilizá-las. É isso que agora, quando estamos retomando as atividades, queremos utilizar. São extratos já fracionados com alta tecnologia. Todos foram testados in vitro, de acordo com padrões aceitos internacionalmente para a indústria farmacêutica. Entre eles, temos 15 extratos antibióticos. ■ E o que aconteceu com a Extracta depois disso? — Quando acabou o contrato, em 2002, a receita da empresa caiu a zero. Não tínhamos outro contratante e ficaPESQUISAFAPESP120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 15


mos em situação crítica. Tentamos rearticular com a Glaxo, mas eles não quiseram, mudaram de parceiro: transferiram o contrato para um centro de pesquisa em Cingapura e abandonaram as investigações sobre a natureza. O negócio deles agora é genoma e proteoma. Recentemente começaram a voltar, já que o estoque de pesquisa está secando com o aumento dos custos. Depois de 2002 passamos um período periclitante. O nosso principal sócio, o Banco Pactuai, já tinha colocado na empresa bem mais do que o previsto e a Fundação Biominas também. Os angel investors também aplicaram dinheiro e começaram a ter que sustentar a Extracta vazia. O Pactuai queria fechar essa empresa. Na época, eu devia ter aceitado, mas não deixei fechar. Eu tinha o voto de Minerva - 51% - e não concordei. Isso levou os investidores a uma posição defensiva, já que eles queriam sair fora do negócio com o mínimo de prejuízo. Em 2003 aproximou-se da Extracta a Oxiteno, um sócio que nos pareceu de enorme potencial. Tratava-se de uma aposta de venture capital que começou com um pequeno investimento. Mas a expectativa era que esse valor se multiplicasse por três. Mas aí começaram novos problemas: o Banco Pactuai decidiu sair e isso preocupou a Oxiteno. O temor era associar a imagem a algo que tivesse falido. A coisa chegou a tal ponto que um dos nossos investidores anjos nos chamou a atenção dizendo que não fazia sentido Pactuai e Oxiteno estarem associados a um negócio como este. Hoje a Extracta é 87,5% Antônio Paes de Carvalho, com os anjos pelas costas. A Biominas ficou com 9%. Eles têm investimento institucional e não podem sair. E a Xenova, o nosso primeiro parceiro, tem 2,5%. Tínhamos zero de recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e nenhum recurso da Finep (Financiadora de Estudos e Projetos). ■ Vocês nunca pleitearam recursos da Finep? — Sim. Participamos dos fóruns de venture capital e ganhamos um prêmio de R$ 150 mil. O dinheiro não foi liberado e no ano seguinte avisaram que aquele programa tinha encerrado e que o dinheiro viria via empréstimo. 16 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

Eles perguntaram se eu queria. "Você vai pagar com uma porcentagem de seu faturamento, mas se você não tiver faturamento, daqui a cinco anos desaparece o empréstimo", explicaram. Então eu disse: "É claro que eu quero". Foi então que disseram que precisávamos estar com todos os seus papéis em ordem e tínhamos também que apresentar a autorização do conselho de administração da Extracta. Fui ao conselho de administração e o Banco Pactuai e a Oxiteno não autorizaram a empresa a fazer o empréstimo. Argumentaram que R$ 150 mil não resolveriam a vida da empresa e ela teria que se manter aberta até o empréstimo terminar. Comuniquei à Finep que os sócios não queriam e eles me disseram: "Livre-se de seus sócios". Eu ainda indaguei: "Se eu me livrar dos sócios, a Finep me segura?". A resposta foi sim. Eu confiei na Finep. Convencemos os sócios a sair. A Finep pediu novamente toda aquela papelada de cartórios, e eu não consegui todas as certidões. Tinha estourado uma dívida e até pagar e levantar a objeção demora. E eu não consegui fechar nada com a Finep. Tentei parceria com a Fiocruz, mas eles contrataram a mesma coisa que a Extracta faz, uma parte em Cingapura e outra na Europa. Não foram capazes de atravessar a avenida Brasil. Vão buscar produtos deste tipo com as plantas do Oriente. Hoje em dia se perguntarem se quero fazer negócio no governo eu digo que não. ■ Depois de todos esses percalços, a empresa está se recuperando? — A nossa coleção é precisa. É um dos grandes valores da Extracta. A partir de 2004, depois da licença da CGEN, os clientes começaram a voltar. Os novos clientes também foram atraídos pela estabilidade da economia, um sinal positivo para os parceiros. Hoje temos parcerias sendo articuladas em diversas empresas da área de cosmético, perfumaria, fármacos etc. O que estamos tentando mostrar para a indústria farmacêutica brasileira é o seguinte: vocês estão atrás de fitoterápicos. Em vez de ficar fazendo ginseng, gincobiloba, olhem para a nossa biodiversidade. São centenas de extratos para vários alvos. Todas são empresas brasileiras. As multinacionais nem olham

isso. Elas só se interessam pela molécula pura porque não podem colocar no mercado internacional. ■ Como garantir a produção sustentável das plantas a partir das quais são obtidos esses extratos? — A expedição vai ao campo, pede autorização ao proprietário e apresenta uma proposta concreta: vamos coletar, mas você pode, com um mínimo de esforço, daqui a um ano, estar com a planta cultivada. Com isso você traz uma parte do negócio de volta para a base da terra. Os proprietários estão fazendo isso. Há comunidades mais simples, que fazem isso. Isso não tem nada a ver com o conhecimento tradicional. Tem a ver com a planta. ■ O Ministério do Meio Ambiente está elaborando um projeto de lei de acesso à biodiversidade. O que o senhor acha dos termos da proposta? — O que eles querem fazer decorre das enormes queixas de pesquisadores, cientistas e até de empresas. Tudo que foi coletado antes de 2000, antes da medida provisória, está sob suspeita. Logo, não pode ser usado. Agora eles querem partir para o seguinte: não querem mais saber onde se coleta, como se contrata etc. Querem tudo dentro da norma, mas o controle será feito apenas no contrato final com o grande cliente, no caso de o produto chegar ao mercado. Este sim será registrado no CGEN. Concordo com isso, porque nunca pensei diferente. Mas a proposta contém algo que pode atrapalhar: eles querem que no grande contrato saia uma porcentagem para um fundo manejado pelo governo, para distribuir benefícios e garantir a conservação da natureza em comunidades que não têm nada a ver com o contrato. Isso vai virar uma confusão. A Associação Brasileira de Biotecnologia é frontalmente contra a criação de um fundo público que vai acabar distribuindo benesses. Isso não vai funcionar, vai para mãos erradas, terá distribuição política. Seria muito melhor que as empresas que trabalham com a bioprospecção, como a Extracta ou Natura, fossem obrigadas a constituir fundos que elas registrassem e cujos projetos elas controlassem. Tudo transparente.


■ A Extracta já faz algo parecido com isso? — A Extracta, que nunca distribuiu um tostão de royalties, porque não recebemos royalties de nada, já investiu R$ 600 mil na Universidade Federal do Pará. Construímos uma central de extração igual à que temos no Rio de Janeiro, equipamos inteiramente o laboratório e pagamos funcionários durante dois anos, para que eles pudessem fazer a nossa coleção amazônica, que é 20% do total de nossa coleção. Tudo isso - e mais a tecnologia de como fazer a extração - foi para o patrimônio da Universidade Federal do Pará. A universidade não sabia o que fazer com aquilo e quase deixou morrer. Agora estamos prestes a fechar um contrato muito interessante com a Petrobras que vai praticamente dobrar a nossa coleção usando coisas da Amazônia. Os parceiros são a Extracta, Petrobras e Universidade Federal do Pará. ■ A Extracta continua aberta aos investidores de risco? — Se os contratos que atualmente temos no pipeline da Extracta se concretizarem, não precisamos de capital de risco nem de nada. Um deles é três vezes maior que o da Glaxo, uma multinacional da área farmacêutica. A Extracta voltará para o nível de receita anterior. ■ Na época do contrato da Glaxo, quantas pessoas trabalhavam na Extracta? — No auge do contrato com a Glaxo, tínhamos 60 pessoas trabalhando, sendo 20 mestres e doutores. ■ E o que aconteceu com esse pessoal? — Aconteceu uma coisa típica do Rio de Janeiro: uns 20% foram imediatamente contratados por empresas paulistas. A Natura ficou com vários da área de química, por exemplo. O restante ficou flutuando numa nuvem em torno da UFRJ, Fiocruz, uma bolsa de pós-doc aqui, outra acolá. E todo mundo perguntando quando vai voltar. Nós tivemos que despedir um por um, pagando todos os direitos, sem dever nada. ■ Afora a sua obstinação, a que o senhor atribui essa retomada da empresa?

— Isso se deve ao fato de que as grandes indústrias farmacêuticas, as agroquímicas, entre outras, estão voltando a olhar a química da natureza. Isso é uma tendência clara. Tenho conversado com meus colegas paulistas e afirmado que fazer medicamentos à base de proteína, com exceção de vacina, é difícil de administrar. Me parece óbvio que é possível fazer convergir a biodiversidade com todo o esforço de genômica e proteômica que nos faz entender cada vez mais do mundo macro-molecular e protéico que fazem funcionar nosso organismo. É preciso identificar pequenas moléculas que permitam meter a chave no meio de uma fechadura destas e torcer. Há uma ligação óbvia entre o que a Extracta faz e a genômica e proteômica. . ■ O senhor teve todos os tipos de parceiro que uma empresa de biotecnologia poderia ter. Qual teria sido o parceiro ideal? — O parceiro ideal foi a Glaxo. Os parceiros de investimento de risco ingressaram por conta do contrato da Glaxo. A Oxiteno foi mais precavida. A Votorantim tinha aberto seu fundo de investimentos - o Votoratim Ventures — e a Oxiteno queria ter um também. ■ A biotecnologia brasileira tem futuro? — O Brasil tem potencial científico muito bom, mas que tende a estiolar. Isso não vale para São Paulo. Vale para o Rio que representava entre 17% e 20% da produção científica nacional e hoje está em decadência, com as pessoas indo para o exterior ou buscando em São Paulo o sonho dourado. Fico

louco da vida quando dizem que isso acontece porque São Paulo tem dinheiro. Não dá para ficar de boca aberta esperando o governo soltar migalhas. Todos os programas de governo, desde a gestão Fernando Henrique Cardoso, foram programas com cada vez menos tomadores. Assim, os recursos estão caindo exponencialmente no tempo. Apurou-se tanto a qualidade, enquanto a quantidade de recursos caía. A FAPESP deu um pulo enorme. O Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe), que reproduz o modelo do norte-americano Small Business Innovation Research (SBIR), foi importante para esse salto. Quando conheci o SBIR, nos Estados Unidos, me surpreendi: "Vocês estão colocando dinheiro público para fins privados". Eles me olharam como se eu fosse um ET e responderam: "É o melhor investimento que o público norte-americano pode fazer por meio de seu governo, porque é por isso que nós temos tecnologia suficiente para vender coisas para vocês o tempo inteiro". ■ E qual a saída para o país avançar? — Ainda estamos começando a amadurecer. Não podemos esperar pela solução política que tem como moto primário a construção do superávit da economia e a garantia de que os grandes negócios do país terão uma visibilidade boa no exterior. Não está previsto que a gente vai desenvolver nada em termos de ciência e tecnologia. A convenção da biodiversidade biológica foi feita para os países ricos virem aqui, usar nossas coisas e deixar uns espelhinhos e umas miçangas. • PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 17


O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

Estratégias

Mundo

Da diáspora à reconciliação Há três décadas, 2,7 milhões de vietnamitas abandonaram o país, tangidos na ocupação de Saigon (capital do Vietnã do Sul, até então protegida pelos Estados Unidos) pelo Exército do Vietnã do Norte, comunista. Uma iniciativa capitaneada por uma organização não-governamental está tentando reconciliar os emigrados e seus descendentes pelo viés da ciência. O Clube Estrangeiro Vietnamita para a Ciência e Tecnologia começou a cadastrar pesquisadores - nascidos no Vietnã e radicados em outros países - interessados em colaborar com universidades e empresas e emprestar suas expertises

■ Rejuvenescer para crescer Cientistas mexicanos levarão aos quatro candidatos à presidência do país um Projeto chamado Acordo Nacional de Ciência e Tecnologia, que propõe o compromisso de reforçar o investimento no setor para ampliar o número de pesquisadores e de cursos de pós-graduação de qualidade. "Nossa situação é dramática. A idade média dos líderes de projetos científicos no México já beira os 70 anos", disse ao jornal La Jornada o presidente da Academia Mexicana de Ciências, Octavio Paredes. "Há dez anos o investimento em ciência e tecnologia alcançava

para o desenvolvimento do país asiático. Na primeira semana de funcionamento o clube recebeu a adesão de 130 profissionais instalados em diversos países. O potencial é imenso. Metade dos emigrados vive nos Estados

0,46% de nosso PIB. Hoje caiu para 0,37%. Formamos poucos doutores e pesquisadores e, mesmo assim, falta trabalho para eles." Um aumento nos recursos, de acordo com o projeto, é essencial para criar novos centros de pesquisa e, assim, deter a

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Unidos e sua influência no país vai muito além da popularização da culinária asiática. Cerca de 200 mil deles trabalham com ciência e tecnologia, segundo levantamento do Ministério de Assuntos Externos do

migração de jovens pesquisadores para os Estados Unidos e o Canadá. •

■ Doutores exorcizam a crise Os Estados Unidos voltaram a formar doutores como na

Vietnã. "A modernização de nosso país não pode prescindir da ajuda intelectual dos pesquisadores vietnamitas que vivem no exterior", disse ao site SciDev.Net Nguyen Thien Nhan, coordenador do clube. •

áurea década de 1990. O número de teses defendidas no país cresceu pelo segundo ano consecutivo e chegou a 42.155 em 2004, segundo dados divulgados pela National Science Foundation (NSF). A soma de teses se aproxima dos picos históricos alcançados entre 1996 e 1998 e parece exorcizar a crise desenhada em 2002, quando caiu a menos de 40 mil teses pela primeira vez em dez anos. A área de ciências e engenharias foi a grande responsável pelo crescimento, com destaque para as ciências biológicas. Do total de doutorados, 62% estão vinculados a esses campos. Na evolução dos últimos dez anos destaca-se a ampliação da participação das mu-


lheres. Em 1995 eram responsáveis por 39% dos títulos de doutorado. Em 2004 alcançaram 45%. •

■ Sem medo de seqüestro A arqueóloga alemã Susanne Osthoff, de 43 anos, comprou uma briga com a opinião pública de seu país ao anunciar que voltará em breve ao Iraque, onde vivia há mais de uma década e participava da exploração do sítio de Isin, de mais de 4 mil anos. Explica-se a polêmica: em novembro, Susanne foi seqüestrada por um grupo extremista no Iraque e ficou três semanas em cativeiro. Foi libertada depois que autoridades germânicas pagaram € 5 milhões de resgate. O governo alemão já cortou verbas que destinava a seus projetos e parlamentares querem que ela seja proibida de deixar o país. "Se ela voltar, não seremos responsáveis por sua insensatez", disse o deputado Roland Gewalt ao jornal Bild. Susanne converteu-se ao islamismo após casar-se com um jordaniano, com quem teve uma filha há 11 anos. •

■ Articulação contra o barbeiro O barbeiro está na berlinda. Com patrocínio da União Européia, cinco países uni-

ram-se para estudar o comportamento do inseto transmissor da doença de Chagas, conhecido cientificamente como Triatoma infestans. O estudo, informa o site do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet), vai reunir pesquisadores de campos como a ecologia, a citogenética, a bioquímica e a genética molecular. A pesquisa vai debruçar-se sobre as populações do inseto na região do Grande Chaco, enclave de 1,2 milhão de quilômetros quadrados entre a Argentina, o Paraguai e a Bolívia. "No Chaco, as populações do Triatoma infestans apresentam elevada resistência a inseticidas, ge-

rando sérios problemas de controle", disse Silvia Catalá, do Centro de Pesquisa Científica e Transferência Tecnológica, em Anillaco, Argentina. Também vão participar da investigação o Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento, da França, o Instituto de Pesquisa em Ciências da Saúde, do Paraguai, a Universidade da República, do Uruguai, e a Universidade de Cochabamba, da Bolívia. •

■ Sob a sombra da suspeita O ministro da Ciência da Croácia, Dragan Primorac, diz que é intriga, mas está sendo acusado de manipulação da distribuição de verbas para pesquisa. Mais de 250 pesquisadores da Croácia assinaram um manifesto exigindo transparência na destinação de recursos para ciência e tecnologia no país. O abaixo-assinado pede uma investigação sobre uma dotação concedida há dois anos a um projeto liderado por Primorac. Os cientistas denunciam conflito de interesses no financiamento de US$ 1,2 milhão ao projeto que criou um laboratório de genética molecular forense. Ele se tornou ministro quatro dias depois de receber a verba, em dezembro de 2003. Detalhe: Primorac era membro do conselho que avaliou e aprovou a subvenção. O ministro classificou o

abaixo-assinado como uma "campanha impiedosa". "Nada tenho a esconder", disse à revista Nature. •

■ A gincana das bolsas de estudo Deu no New York Times: a tradição dos milionários norte-americanos de legar parte de sua fortuna a universidades gerou um efeito colateral, ainda que raro. Algumas bolsas de estudo financiadas por beneméritos estão vagas porque é difícil encontrar quem se encaixe nas exigências registradas em testamento. No Hamilton College há uma bolsa destinada apenas aos descendentes do patrono Elias Leavenworth, banqueiro que morreu no século 19 atormentado com a mediocridade intelectual de seus filhos e netos. Mas, desde 1994, ninguém se candidata à vaga. O Vassar College também tem uma bolsa ociosa legada pelo milionário Calvin Huntington a estudantes com seu sobrenome. A Universidade da Califórnia em San Diego obteve na Justiça o direito de renegar o desejo de um empresário que instituiu uma bolsa em engenharia aeronáutica exclusivamente para órfãos de judeus. Como a bolsa ficou inativa por mais de uma década, hoje pode ser disputada por judeus com pais vivos e estende-se a outros cursos. •

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Estratégias

Mundo

Ciência na web Envie sua sugestão de site científico para cienweb@trieste.fapesp.br

Resistência francesa O governo francês segue adiante na cruzada para combater o que classifica como "imperialismo anglo-saxão" na internet. A pedido do presidente Jacques Chirac, uma equipe composta por pesquisadores da França e da Alemanha desenvolve um novo buscador chamado Quaero ("Eu busco", em latim), voltado para rivalizar com o norte-americano Google. Trata-se de um empreendimento privado, mas recebeu £ 150 milhões da Agência Francesa para a Inovação Industrial. O buscador vai disponibilizar on-line acervos de bibliotecas européias. O objetivo declarado é contrabalançar o predomínio da língua inglesa na rede e dar uma resposta aos planos do Google de digitalizar 15 milhões de livros de bibliotecas universitárias norte-americanas e disponibilizá-los na rede. "A nova geografia de conhecimentos e culturas está se definindo. Logo, o que não estiver on-line corre o risco de se tornar invisível", disse

http://www.dangerousaquaticanimals.com.br O site do pesquisador Vidal Haddad Jr., da Unesp, reúne os animais aquáticos periqosos do país e mostra o que fazer em caso de acidente.

Chirac num discurso em janeiro, segundo a agência France Press. •

■ O plano venezuelano A Misión Ciência, iniciativa do governo venezuelano para estimular o desenvolvimento científico e tecnológico no país, será deflagrada neste mês. O investimento inicial, anunciado pelo presidente Hugo Chávez, será de US$ 50 milhões, mas espera-se um reforço de US$ 100 milhões obtidos dos resultados da venda de petróleo. "O país precisa de uma ciência que possa ser compartilhada com a população", disse Chávez, segundo o periódico Venezuelanalysis. De acordo com Chávez, o programa será coordenado pelos principais pesquisadores venezuelanos e deverá permitir a concretização de projetos necessários ao crescimento do país nas áreas de saúde, habitação, educação e alimentação. •

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http://stardustathome.ssl.berkeley.edu/ 0 portal convida astrônomos a analisar, via internet, 1,6 milhão de imagens de partículas de poeira interestelar trazidas pela sonda Stardust.

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lllr^' http://www.genepaint.org/ O Instituto Max Planck de Endocrinologia Experimental criou um atlas on-line com mais de mil genes expressos em ratos.


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■ Charles Darwin revisitado Num momento em que o legado de Charles Darwin é alvo de uma megaexposição no Museu Americano de História Natural - em reação à influência política crescente dos opositores da Teoria da Evolução no governo dos Estados Unidos -, pesquisadores brasileiros também se preparam para revisitar as contribuições no naturalista inglês. Acontece entre os dias 18 e 20 de maio, no teatro da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, a conferência Teoria da Evolução: Princípios e Impactos. A programação se divide em vários módulos, nos quais serão revistos aspectos históricos, fi-

Unicamp cresce em Limeira Um novo campus da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) começa a ser construído ainda neste primeiro semestre num terreno de 500 mil metros quadrados da cidade de Limeira, a 150 quilômetros de São Paulo. A meta é oferecer já em 2007 cerca de 700 vagas em 12 cursos divididos em cinco grandes áreas do conhecimento: Ciências, Engenharias, Saúde, Administração e Gestão, e Arte, Cultura e Patrimônio. Alguns cursos oferecidos são inéditos no Brasil, como engenharia de manufatura, informática biomédica e restauro e conservação. "Os alunos poderão se especializar em profissões pouco exploradas", diz o reitor da Unicamp, José Tadeu Jorge. O

losóficos e biológicos do darwinismo. Dois palestrantes estrangeiros estão confirmados: a portuguesa Clara Pinto Correio, da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia, de Lisboa, e o francês Jean-Louis Hartenberger, da Université Montpellier 2. As inscrições on-line podem ser

novo campus, afirma o reitor, está sendo planejado para privilegiar a pesquisa científica. "A idéia é familiarizar os alunos com o ambiente da pesquisa durante a graduação, promovendo um amadurecimento maior na escolha da carreira", afirma. A criação do campus é uma resposta ao programa de expansão de vagas nas três universidades paulistas, que começou em 2001. Desde então a Unicamp ampliou o número de vagas de 2.355 para 3.255. O projeto pedagógico de Limeira será calcado na interdisciplinaridade dos cursos, com várias matérias básicas comuns. A Unicamp já tinha duas unidades em Limeira e também possui campus em Piracicaba e Paulínia. •

feitas pelo site www.eventus.com.br.bioconferences até o dia 15 de maio. •

■ Empresas ao lado do campus A cidade de Belo Horizonte vai ganhar um pólo tecnológico numa área de 185 mil

metros quadrados contígua ao campus da Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O início das obras do Parque Tecnológico de Belo Horizonte (BH-Tec) está previsto para o primeiro semestre de 2006. O orçamento previsto para a infra-estrutura é de R$ 60 milhões, que serão divididos entre a UFMG, a prefeitura de Belo Horizonte e o governo do Estado de Minas Gerais. Cada uma das partes destinará R$ 20 milhões para o projeto. A Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg) e o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) se responsabilizarão pela seleção de empresas. •

PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 21


Campeonato nacional de teses

■ A morte de Gilda de Melío e Souza Pesquisadora na área de estética e de filosofia da arte e professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), Gilda de Mello e Souza morreu no dia 26 de dezembro, aos 86 anos. Nascida em São Paulo em 1919, foi uma das primeiras mulheres formadas pela Faculdade de Filosofia, em 1940. Fez parte do grupo que em 1941 fundou a revista Clima, na qual publicou artigos e contos. Sua tese de doutoramento sobre moda, O espírito das roupas, projetou seu nome no meio acadêmico. Orientada pelo francês Roger Bastide, ela analisou o comportamento da sociedade do século 19, época em que a moda se espalha por todas as camadas sociais, acelerando a proliferação de estilos. Também foi autora de estudos como O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma (1979) e Exercícios de leitura (1980). Era casada com o crítico literário Antônio Cândido de Mello e Souza, com quem teve três filhas. •

As melhores teses de doutorado aprovadas em cursos reconhecidos pelo Ministério da Educação (MEC) serão laureadas pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). A distinção vai dividir-se em duas etapas. A primeira é o Prêmio Capes de Teses, que será concedido em 42 áreas do conhecimento. Cada universidade poderá concorrer indicando uma tese por área. Os vencedores estão automaticamente inscritos para o Grande Prêmio Capes de Teses, que vai escolher os ganhadores em três grandes áreas: Ciências Biológicas, da Saúde e Agrárias; Engenharias, Ciências Exatas e da Terra; e Ciências Humanas e Sociais. Os três premiados receberão, além de diploma e medalha, uma bolsa de pós-doutorado internacional com um ano de duração. Já os orientadores ganharão auxílio equivalente a uma participação em congresso nacional ou a mesma soma de recursos para aplicação em um projeto de pesqui-

■ Transferência tecnológica A partir de 2008, o Instituto de Imunobiológicos de Manguinhos (Biomanguinhos), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) irá produzir e abastecer o Sistema Único de Saúde dois remédios hoje importados de Cuba. Um é a eritropoetina alfa humana recombinante (EPO), usada na

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s sa aprovado pela Capes. A » motivação é promover uma 3 competição sadia entre os doutorandos, o que é essencial no mundo acadêmico", disse José Oswaldo Siqueira, integrante do Conselho Técnico Científico da Capes e responsável pela proposta do prêmio, que será entregue pela primeira vez em julho. Acesso livre - Parte do conteúdo do Portal de Periódicos da Capes, biblioteca virtual de publicações ► científicas mantida pelo Ministério da Educação, foi aberta a todos os usuários da Internet. A consulta ao serviço era restrita a estudantes, professores e funcionários de 163 instituições de ensino superior do Brasil. Agora, cerca de 20% deste acervo, que inclui resumos ou textos completos de dissertações e teses, informações sobre patentes e artigos de publicações acadêmicas, pode ser consultado por qualquer pessoa. O endereço do portal é http://acessolivre.capes.br. •

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terapia de anemia associada à insuficiência renal, Aids e quimioterapia. O outro é o interferon alfa humano recombinante (INF), adotado no tratamento de hepatites virais. A produção nacional se tornará possível graças a um processo de transferência de tecnologia acertado com Cuba. Deverão ser fabricados 7,5 milhões de frascos de EPO e INF anualmente. •


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■ Pesquisa clínica para o SUS

■ Coréia investe no Brasil

Dezessete hospitais de ensino vinculados a universidades vão receber R$ 29,2 milhões até 2007 para modernizar sua estrutura laboratorial e participar de uma rede de pesquisa clínica ligada ao Sistema Único de Saúde (SUS). O programa, financiado com recursos dos ministérios da Saúde e da Ciência e Tecnologia, vai preparar os hospitais selecionados, que se distribuem por nove estados, para desenvolver ensaios clínicos de medicamentos, equipamentos e dispositivos para diagnósticos de doenças. O programa busca garantir que os estudos clínicos realizados nesses centros respondam a necessidades do SUS, como por exemplo a realização de testes de novos medicamentos para o combate ao vírus causador da Aids ou contra o bacilo da tuberculose. Nos próximos meses serão definidas as normas de funcionamento da rede. Uma das propostas prevê mecanismos que garantam um distanciamento ético entre os pesquisadores e instituições que financiam testes de remédios - o dinheiro investido por indústrias farmacêuticas seria gerenciado pelo hospital universitário, e não diretamente pelo pesquisador, como acontece hoje. •

O governo da Coréia do Sul vai investir US$ 1 milhão num centro de pesquisa em tecnologia de informação sediado no Brasil. O acordo foi anunciado pelo ministro das Comunicações brasileiro, Hélio Costa, e o da Informação e Comunicação sul-coreano, Daeje Chin. O objetivo é estimular a colaboração entre pesquisadores dos dois países e propagar as experiências sulcoreanas em inclusão digital e no desenvolvimento de novas tecnologias. O Centro de Cooperação Coréia-Brasil em Tecnologias da Informação e das Comunicações funcionará por pelo menos três anos e prevê intercâmbio de técnicos. Em fevereiro, os governos dos dois países nomearão os membros do grupo de trabalho que criará as regras para

implementação do centro. Em abril será escolhida a localização da sede. •

■ Trabalho reconhecido Jerson Lima Silva, professor do Instituto de Bioquímica Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foi um dos ganhadores do Prêmio TWAS 2005, da Academia de Ciências do Mundo em Desenvolvimento (TWAS), concedido anualmente a pesquisadores de países em desenvolvimento de oito áreas do conhecimento. Lima Silva foi o vencedor em Biologia junto com o chinês Huanming Yang, do Instituto de Genômica de Pequim. O prêmio é um reconhecimento aos estudos de Lima Silva sobre a estabilidade de partículas virais e outros agregados protéicos que, usando altas pressões,

h} podem resultar em novos métodos de obtenção de vacinas antivirais. O pesquisador é o diretor-científico da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). A TWAS é uma organização autônoma fundada em Trieste, na Itália, em 1983. •

■ Procuram-se superdotados O Ministério da Educação (MEC) anunciou um investimento de R$ 2 milhões na criação de centros de apoio a alunos superdotados nas 27 capitais brasileiras. O objetivo é ajudar a identificar esses estudantes e dar a eles um tratamento diferenciado. Estima-se que 5% da população brasileira apresente habilidades acadêmicas acima da média, mas a escola não consegue reconhecê-los. O Censo Escolar de 2004 apontou apenas 2.006 superdotados nas escolas do país. Isso não chega nem a 0,005% dos 43 milhões de alunos matriculados nos ensinos fundamental e médio. O dinheiro será gasto na aquisição de computadores e móveis para os núcleos. Caberá aos estados garantir os recursos humanos, material didático e as salas para atendimento aos alunos. A proposta é atender mensalmente a 1.620 estudantes. •

PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 23


Q POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA CLONAGEM

Era tudo mentira Falsos resultados de pesquisa obrigam Science a retratar-se e reabrem debate sobre ciência e ética CLAUDIA IZIQUE

notícia de que as pesquisas sobre clonagem humana desenvolvidas pelo sul-coreano Woo-Suk Hwang não passavam de uma fraude causou perplexidade em todo o mundo. Atônitos, muitos cientistas se indagavam qual teria sido a motivação que levara um pesquisador respeitado em seu país a montar uma farsa que, mais cedo ou mais tarde, seria inevitavelmente desvendada. Não faltaram incursões no terreno da psiquiatria, mas o problema se situava mesmo no campo da ética. "Em busca do Santo Graal da ciência, que é o clone, ele fez a fraude. Temos que compreender que o cientista, considerado um anjo no século 19, tem que ser visto como um ser humano vaidoso e cheio de ambições", justifica José Eduardo de Siqueira, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética. O fato é que, em dois artigos publicados na prestigiada revista Science, em 2004 e 2005, Hwang descreveu, pela primeira vez, a clonagem de embriões humanos. Afirmou que, a partir deles, obteve linhagens de células-tronco embrionárias humanas, o que comprovaria a validade da clonagem terapêutica. O feito teve repercussão espetacular e foi considerado um marco, já que abria perspectivas reais para a terapia celular. 24 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

Em novembro do ano passado surgiram denúncias na imprensa sul-coreana de que Hwang havia coagido mulheres que faziam parte de sua equipe a doar óvulos para o estudo - e lhes pago algo em torno US$ 1.400 -, lançando suspeitas sobre o uso de procedimentos antiéticos no desenvolvimento das pesquisas. Esse fato detonou uma investigação do Conselho de Revisão Institucional dos Comitês de Ética do Hospital Universitário de Hanyang e da Universidade Nacional de Seul. Em dezembro, o próprio Hwang informou à Science sobre erros "não intencionais" em quatro imagens publicadas pela revista que teriam saído duplicadas. Dias depois, os editores receberam uma carta de um dos 24 autores do artigo publicado em 2005 Gerald Schatten, do Centro Médico da Universidade de Pittsburg - pedindo para que seu nome fosse retirado do paper. No final de dezembro, a Universidade Nacional de Seul constatou "má conduta científica", envolvendo dados específicos de DNA e afirmações não verificáveis sobre o número de linhagens de células-tronco efetivamente criadas. O relatório preservou apenas os estudos que resultaram na produção do primeiro clone de um cão, o afghan hound Snuppy, apresentado no ano passado. Hwang agora poderá ser indi-

ciado criminalmente por uso indevido de verbas públicas, já que o seu laboratório consumiu US$ 65 milhões do governo da Coréia do Sul. De volta ao passado - Além de surpreender, a constatação da farsa colocou as pesquisas sobre clonagem terapêutica de volta à estaca zero, pelo menos em termos de publicação. "Esses estudos poderiam trazer informações importantes sobre o comportamento dos genes", afirma Mayana Zatz, geneticista e coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP). "Foi uma pena", comenta Rosalia Mendez Otero, pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). "Se fosse verdade, seria um grande avanço nas pesquisas com células-tronco por tratar-se de um método mais rápido e fácil de obter linhagens." Ela lembra, no entanto, que Hwang não estava sozinho nessa empreitada e que nem tudo está perdido. "Outros grupos, como o que clonou a ovelha Dolly, também estão tentando utilizar esse mesmo método." Mas nada ainda foi publicado. O recrudescimento de expectativas em relação à clonagem terapêutica, no entanto, "fomentou a esperança" do uso de células-tronco embrionárias, pondera Lygia da Veiga Pereira, geneticista da USP, a única linha de investigação


autorizada pela Lei de Biossegurança no Brasil. Ela entende que o episódio Hwang deve ter o efeito de um "alerta" para que os pesquisadores em todo o mundo procedam com mais cautela em relação à divulgação dos resultados de pesquisa. "É preciso interromper esse frenesi com células-tronco e com essa história de fazer publicidade sobre pequenos avanços." A explicação da Science - A fraude levou a Science a justificar-se. "A pesquisa fraudulenta é um fato particularmente perturbador porque coloca em risco um empreendimento construído com base na confiança. Felizmente, casos assim são raros - mas eles prejudicam todos nós. A fraude dificilmente será eliminada completamente do processo de publicação científica, e a verdade da ciência depende, em última instância, de confirmação", afirmou o diretor de redação da revista, Donald Kennedy, em edital publicado na edição de 13 de janeiro. Ele anunciou também a decisão de fazer uma revisão sistemática da história editorial dos dois papers e dos procedimentos adotados para avaliá-los. "Já mencionei no passado que mesmo uma revisão por pares especialmente rigorosa do tipo que adotamos nesse caso pode falhar na detecção de uma fraude bem construída", argumentou o editor. E adiantou que, junto com os membros do Board of Reviewing Editors e do conselho editorial, estará "analisando opções para fornecer salvaguardas processuais adicionais". Estas opções poderão, por exemplo, exigir que todos os autores detalhem suas contribuições específicas à pesquisa e assinem declarações de concordância com as conclusões do trabalho. O editorial da Science reforçou uma preocupação entre os cientistas brasileiros: a de que, a partir de agora, os pesquisadores de países em desenvolviPESQUISAFAPESP120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 25


mento podem ter mais dificuldades em publicar artigos em revistas internacionais. "Eles serão mais exigentes em relação à comprovação. Nos trabalhos publicados por pesquisadores norteamericanos é comum a informação date not shown (dado não revelado). Isso não acontece quando o artigo é publicado por brasileiros", conta Mayana Zatz. Revisão por pares - Houve quem atribuísse à Science um certo descuido ao aprovar a publicação de uma pesquisa que posteriormente se revelou uma farsa. "O comitê da revista e todo o conselho editorial têm que fazer análise técnica e ética do projeto. Se o fizeram, não foi bem feito", comenta o presidente da Sociedade Brasileira de Bioética. Mas a grande maioria dos pesquisadores não atribui à revista nenhuma responsabilidade. "Nenhum sistema é perfeito. O que escapa aos revisores tem vida curta", avalia Lygia da Veiga Pereira. As revistas científicas internacionais, como a própria Science ou Nature, selecionam os artigos para publicação por meio de um procedimento conhecido como revisão por pares (peer review). Se o artigo enviado por um pesquisador - ou um grupo de pesquisadores - estiver dentro do escopo de interesse da revista, ele é encaminhado para avaliação de revisores que podem, eventualmente, solicitar aos autores mais informações. Foi assim com o artigo científico sobre o seqüenciamento genético da bactéria Xylella fastidiosa, assinado por 27 pesquisadores brasileiros e que foi capa da edição n° 6.792 da revista Nature, publicada em 13 de julho de 2000. Entre a data do envio do artigo e sua publicação passaram-se dois meses, lembra Fernando Reinach, pesquisador da USP, diretor da Votoratim Novos Negócios e um dos autores do paper. Na sua avaliação, os revisores têm a função de verificar se as informações apresentadas pelos pesquisadores são consistentes do ponto de vista científico. "O papel do peer review não é de auditoria, não foi concebido para isso. Pedem-se provas com o objetivo de ver se a ciência é boa, partindo do princípio de que as pessoas são honestas", enfatiza. Apenas uma auditoria, como a que foi feita pela Universidade de Seul, pode constatar a fraude. 26 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

Reinach considera "um erro" achar que tudo que está publicado é verdade. A ciência, em sua avaliação, tem mecanismos internos para apurar fraudes e erros, e o principal deles é o princípio da "repetição". "A natureza é repetitiva. Alguém tenta fazer de novo e não consegue", explica. Foi o que ocorreu com os pesquisadores Stanley Pons e Martin Fleischmann, que, em 1989, anunciaram na Nature terem descoberto a fusão a frio, uma fonte ininterrupta de energia. Nenhum outro cientista conseguiu reproduzir o experimento e os dois autores tiveram um pouco mais do que 15 minutos de fama antes que suas conclusões fossem recobertas por suspeitas. 0

problema é que a clonagem humana-o Santo Graal ^^^ da ciência, segundo Siqueira - não é fusão a frio: as pesquisas estão diretamente relacionadas a seres humanos. "O tema é polêmico do ponto de vista científico e tecnológico, ético e religioso", afirma Volnei Garrafa, coordenador da cátedra Unesco de Bioética da Universidade de Brasília (UnB), presidente do Conselho Diretor da Rede Latino-Americana e do Caribe de Bioética da Unesco (RedBioética) e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Bioética. Por isso, ele argumenta, a Science deveria ter "quadruplicado" os cuidados e, além da revisão por pares, conferido as contra-provas da pesquisa. "O estrago é grande e pode quebrar a credibilidade numa área tão promissora. A ciência, no entanto, seguirá seu caminho glacial, tão glacial quanto a ética." Para Carlos Vogt, lingüista e presidente da FAPESP, o caso Hwang é o resultado do cenário atual da ciência, em que a ética é freqüentemente confrontada com a competitividade. "Isso cria uma espécie de nova moral dos resultados, desencadeia prestígios ferozes e atrai a obsessão do mercado, envolvendo não apenas o fato científico como sua experiência na mídia e na sociedade", afirma. A fraude de Hwang, na sua avaliação, associa mecanismos de inteligência científica - já que apontava solução para restrições técnicas no caso da pes-

quisa com células-tronco embrionárias - com ingredientes éticos e religiosos. "Toda a elaboração de códigos de conduta cria princípios normativos, o que leva um tempo diferente do tempo da competitividade", afirma. "E esse assunto merece muita reflexão." O avanço das pesquisas exigirá, além das comissões de ética - "como as que existem e vêm funcionando, em nível local" -, uma participação maior da sociedade. "Temos que ter um modelo mais democrático de governança da ciência. Quem deve dizer para onde vão as pesquisas? O governo? O cientista? A sociedade?", ele indaga. Na avaliação de Manoel Barrai Neto, imunologista e diretor da área de Ciências da Vida do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), os comitês de ética não têm como detectar fraudes como essa. "Mas a farsa é efêmera, já que será revelada quando os resultados não puderem ser repetidos", diz. E alerta: "É preciso que a comunidade científica fique atenta às promessas mirabolantes. O avanço da ciência se faz passo a passo", diz. Tanto na avaliação de Garrafa como na do atual presidente da Sociedade Brasileira de Bioética, é preciso rever as regras nas pesquisas com seres humanos. O argumento é que, no século 19, as investigações científicas - por seu caráter e objeto - não tinham relação direta com valores humanos e hoje têm. "A Organização das Nações Unidas (ONU) e a Unesco deveriam criar estruturas para controlar determinadas linhas de pesquisa para aumentar o controle social sobre as investigações que envolvam seres humanos", sugere Siqueira. "Se o trabalho de Hwang tivesse sido examinado por um comitê multidisciplinar, isso não teria acontecido." Iguais, mas nem tanto - As regras para pesquisa envolvendo seres humanos foram definidas em 1964, na 18a Assembléia Médica Mundial, em Helsinque, na Finlândia, e corrigidas três vezes: na Assembléia do Japão, em 1975; na da Itália, em 1983, e na de Hong Kong, em 1989. "Até hoje prevalece o princípio de que os sujeitos de pesquisa são iguais. Essa é a tese vencedora do século 20: foi assim em relação às mulheres, índios e minorias", sublinha Garrafa.


Esse princípio, segundo ele, estaria ameaçado. "Os Estados Unidos vêm tentando impor um imperialismo ético, propondo em todos os foros de que participam um duplo padrão de pesquisa: metodologias distintas poderiam ser aceitas para povos diferentes", diz Garrafa. As pesquisas com anti-retrovirais no Quênia, ele exemplifica, podem ser diferentes daquelas realizadas na França. "Em 2004, isolados, eles desistiram. Mas as pesquisas financiadas por agências norte-americanas têm que enfrentar esse problema." Parece ser o caso, segundo ele comenta, da pesquisa sobre vetores da malária realizada no Amapá, interrompida no final do ano passado por decisão do Conselho Nacional de Saúde (CNS), suspeita de utilizar como cobaias humanas 40 moradores de duas comunidades em troca de pagamento diário de R$ 12. A pesquisa é coordenada pela ONG

norte-americana Institutional Review Board, financiada pela Universidade da Flórida/Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos, e envolve pesquisadores de várias universidades brasileiras. O senador Cristovam Buarque (PDT-DF), presidente da Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal, visitou as duas comunidades. "O grupo que fez a pesquisa submeteu à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, do CNS, documentos diferentes daqueles utilizados em campo", constata o senador. O documento apresentado à comissão falava na utilização de moradores como coletores dos mosquitos da malária. Já o termo de consentimento assinado por esses coletores previa que alimentassem os insetos, até saciá-los, quatro vezes na mesma noite. "Isso não é ético, é falso", afirma o senador. O termo do consentimento, ele continua, está em português mas, no meio do

texto, inclui algumas passagens em inglês. "No documento está estampado o carimbo Approved by University of Florida", diz Buarque. As investigações para apurar se houve ou não procedimento antiético estão em curso. "Vamos fazer audiências públicas em fevereiro e março para ouvir os diversos órgãos envolvidos, inclusive o Ministério das Relações Exteriores. Queremos decisões para que isso não aconteça mais." Robert Zimmerman, da Universidade da Flórida e um dos coordenadores do projeto de pequisa, em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, afirmou que não via problemas na utilização de iscas humanas e que as queixas eram infundadas. Justificou que os coletores foram expostos às picadas de mosquito com a intenção de avaliar a sobrevida destes insetos, depois de saciados. Mas constatouse que "essa não era uma boa idéia". • PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 27


O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA SAÚDE PUBLICA

Prevenir antes de remediar Instituto Butantan inicia teste com vacina contra a gripe aviaria Vírus H5N1: transmitido exclusivamente pelas aves, preocupa OMS

m 1918, quando a gripe espanhola chegou ao Brasil matando milhares de pessoas, poucas medidas podiam ser tomadas. "Muitas empresas investiram na fabricação de caixões; a Light alugou bondes para o transporte de cadáveres; e a Câmara Municipal aprovou a construção do cemitério da Lapa", conta Isaias Raw, presidente da Fundação Instituto Butantan. Agora, quando uma nova pandemia - a da gripe aviaria surge como um fantasma ameaçador, a situação é diferente e, em todo o planeta, já se tomam medidas para enfrentá-la. No Brasil, o Instituto Butantan começa a produzir, em março, as primeiras doses da vacina contra o vírus da gripe aviaria, o H5N1, a partir das cepas enviadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A meta é fabricar 20 mil doses de vacina já em 2006, que poderão ser utilizadas no caso de uma pandemia da doença. O vírus é transmitido exclusivamente pelas aves e não se propaga facilmente por contato com humanos, apesar de já terem sido registrados mais de uma centena de casos e várias mortes, principalmente na Ásia. O grande temor é que o H5N1 troque material genético com o vírus Influenza, dando origem a uma nova cepa, esta sim altamente contagiosa. As primeiras vacinas produzidas pelo Butantan serão utilizadas em teste com animais ao longo de 21 dias. Em se28 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

dado - também está garantido. "Já nos reunimos com grandes produtores nacionais que se comprometeram a fornecer algo em torno de 20 milhões de ovos entre os meses de outubro e novembro deste ano", conta Raw.

guida, e por período de tempo idêntico, serão aplicadas em humanos. As vacinas para os testes serão produzidas num laboratório piloto adaptado para garantir segurança na manipulação das cepas. Em maio estarão concluídas as obras da nova fábrica onde serão geradas vacinas contra o vírus Influenza, imunizantes contra rotavírus, HPV, hepatite B, entre outros, com capacidade de produção de 20 milhões de doses de vacina por ano. Ali também será instalada a unidade de fabricação em escala da vacina contra a gripe aviaria. A nova fábrica custou R$ 18 milhões ao governo do Estado de São Paulo e R$ 34 milhões ao Ministério da Saúde. "A maior parte dos equipamentos já está armazenada e será instalada a partir de junho", adianta Raw. Três das cinco centrífugas que serão utilizadas tanto na produção de vacinas contra o vírus Influenza como o HP5N1 já chegaram. Um dos insumos básicos na produção da vacina - a gema de ovo fecun-

Multiplicação de vacinas - Os testes vão medir não exatamente a eficácia do produto no combate à gripe aviaria, mas a quantidade necessária para a imunização, já que a tecnologia de produção desta vacina será a mesma utilizada na criação de vacinas contra o vírus Influenza, transferida pela Aventis. No caso da vacina contra o H5N1, o Butantan pretende adotar uma estratégia experimentada com sucesso no caso do Influenzia: a utilização de um adjuvante - em substituição ao hidróxido de alumínio - que permitirá o fracionamento das doses. "Este adjuvante permite o uso de 1/4 a 1/8 da dose por pessoa e a multiplicação do número de doses disponíveis", explica Raw. "Fizemos isso em ensaios com o vírus do tipo A e deu certo." Além de aumentar a oferta da vacina, a medida vai baratear o preço de venda do produto. Raw não acredita na possibilidade de uma pandemia da gripe aviaria. "Isso é apenas uma suposição, até porque estamos no fim da cadeia de migração das aves, que tem início no Extremo Oriente", pondera. Mas, se o vírus passar a contaminar humanos, será necessário fazer vacinação pontual, associada a medidas de circunscrição dos casos para evitar contágio. •


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POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA EMPREENDEDORISMO

Tempo de plantar Finep seleciona gestores para fundos de capital semente

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Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) começou a selecionar gestores interessados em participar do Programa Inovar Semente. O novo programa, lançado no dia 14 de dezembro passado, prevê investimentos de R$ 300 milhões em empresas nascentes de base tecnológica, ao longo de cinco anos. A expectativa é apoiar, nesse período, cerca de 340 empreendimentos inovadores. O Inovar Semente quer estimular a criação de 24 fundos de capital semente - também conhecido como seed money - organizados por cidades, de acordo com a sua vocação tecnológica. Cada um desses fundos deverá contar com um capital inicial de R$ 12 milhões para apoiar entre 12 e 15 empresas. Na composição do Inovar Semente a Finep participa com 40% dos recursos, outros 40% serão aportados por banco ou agência de desenvolvimento local e os restantes 20% virão do investidor privado. "Queremos trazer investidores pessoa física para o negócio", explica Eduardo Costa, superintendente da área de pequenas empresas inovadoras da Finep. Esses investidores, também conhecidos como "anjos", além de aplicar recursos próprios no novo empreendimen| to, oferecerão sua expe| riência e competência ao 5 desenvolvimento do negoWjf

cio, ajudando na formação de equipes e na constituição de uma rede de relacionamento. O primeiro passo para a constituição desses fundos é a contratação de um gestor, que, de acordo com o edital disponível no site da Finep, deverá possuir experiência em todo o ciclo da indústria - prospecção, investimento, acompanhamento e desinvestimento -, conhecimento na gestão de fundos de venture capital e contar com o apoio de um agente financeiro. "Esse agente pode ser o Sebrae local, a Federação das Indústrias, entre outros", exemplifica Luiz Antônio Coelho, gerente de Projetos e Programas da Finep. As propostas devem ser apresentadas até o dia 30 de julho (mais informações no site www.finep.br). As propostas selecionadas serão avaliadas pela Finep segundo critérios como o impacto da constituição do fundo sobre o desenvolvimento local, a capacitação e experiências anteriores da equipe, a estrutura de custos, a qualidade do pipeline, entre outros. Antes da aprovação final das propostas estão previstas a realização de visitas técnicas {due dilligencé) para avaliar as condições de funcionamento do fundo e a verificação das informações apresentadas. Os primeiros resultados serão mostrados em blocos de cinco propostas aprovadas. • CLAUDIA IZIQUE PESQUISA FAPESP120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 29


O POLÍTICA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

TI EDUCAÇÃO

O tamanho do

cobertor Criação de novas universidades federais suscita debate sobre o fôlego do governo para ampliar um sistema com ensino e pesguisa

30 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

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programa de expansão das instituições federais de ensino superior tem números grandiosos: preB B vê-se a criação de 125 BkAy mil novas vagas até ^^^ 2010 por meio da construção de quatro novas universidades - ABC paulista, Grande Dourados (MS), Recôncavo Baiano (BA) e Pampa (RS) -, a transformação de cinco faculdades em universidades e a criação de 36 campi vinculados a instituições já existentes. O investimento no programa chega a R$ 266,5 milhões. Já seu impacto no sistema nacional de ciência e tecnologia não é tão simples de mensurar. Há, por exemplo, incertezas sobre o fôlego do Ministério da Educação (MEC) de patrocinar a expansão sem fragilizar as universidades existentes. Num discurso feito no Palácio do Planalto no dia 17 de janeiro, o presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), Oswaldo Baptista Duarte Filho, elogiou a iniciativa de ampliar o sistema federal, mas expressou preocupações. "Tal expansão ainda está

se dando à custa dos quadros de recursos humanos e financeiros já existentes que se encontram defasados. As 4 mil vagas de professores destinadas inicialmente à recomposição dos quadros atuais, além de ainda não corrigirem inteiramente o déficit, foram transformadas em apenas 2.200, com as outras 1.800 sendo destinadas à expansão", disse Duarte Filho, que é reitor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Ele reconheceu que os recursos para as federais vêm crescendo. "Em 2005 tivemos um aumento no orçamento, o primeiro em muitos anos, que se concretizou em um acréscimo de 24% ao custeio e capital das instituições federais", disse. É certo que o dinheiro usado na construção das novas universidades está vindo de uma fonte à parte do orçamento global das federais, que subiu de R$ 7,7 bilhões, em 2004, para R$ 8,9 bilhões, em 2005, segundo dados do MEC. Mas as 125 mil novas vagas significarão, levando-se em conta cursos de em média cinco anos de duração, mais 625 mil matrículas depois de alguns anos. Isso vai dobrar o número atual de estudantes. O temor da Andifes é que as novas instituições rivalizem


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fortemente com as universidades já existentes na divisão de um bolo limitado de verbas nos próximos anos. Há consenso sobre a necessidade de expandir o sistema de instituições federais de ensino superior, que atualmente responde por 55% dos programas de pós-graduação, segundo a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Nenhuma nação ocidental desenvolveu-se sem um vigoroso sistema de ensino superior público. Os Estados Unidos, segundo o Departamento de Educação do governo, têm 77% de suas matrículas no ensino superior em instituições públicas. No Brasil, de acordo com o último censo da Educação Superior divulgado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), 72% dos estudantes de nível superior são alunos de instituições particulares e apenas cerca de 10% dos brasileiros entre 18 e 24 anos estão na universidade. A opção do MEC é criar universidades com ensino, pesquisa e extensão. Assim, cada nova instituição terá de desenvolver cursos de mestrado e de doutorado. "Não existe universidade sem pesquisa", diz Nelson Maculan, secretá-

rio de Educação Superior do MEC. Mas há grandes desafios a superar. Existe uma distância considerável entre contratar professores e produzir pesquisa de qualidade. A experiência das universidades federais situadas em estados distantes do Sul e do Sudeste mostra que é difícil atrair pesquisadores de peso e oferecer condições de fazer pesquisa de qualidade. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) apresentou uma proposta para enfrentar o problema. A idéia é abrir vagas para grupos inteiros de pesquisa, e não para professores individualmente. "Quando o governo autoriza a criação de vagas de docentes, os conselhos universitários pulverizam as oportunidades por muitos departamentos e não conseguem criar massa crítica para formar programas de pós-graduação em área alguma. O ideal seria oferecer várias vagas numa mesma área, com a chance de formar um grupo inteiro de pesquisa", afirma Ennio Candotti, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. A idéia, contudo, esbarra na autonomia de gestão das universidades. Há um debate também sobre a natureza das instituições. Mesmo países

ricos, como os Estados Unidos ou a França, adotaram estratégias de criar organizações de ensino superior não universitárias, os chamados community colleges, nas quais não há necessariamente pesquisa - não sendo obrigatório que todos os docentes trabalhem em tempo integral - e onde o custo por aluno chega a ser uma décima parte do de uma universidade tradicional com ensino, pesquisa e extensão. Nos Estados Unidos, metade das matrículas no ensino superior vincula-se a organizações deste tipo. Em São Paulo já existem instituições semelhantes, as Faculdades Tecnológicas (Fatecs), que oferecem cursos de boa qualidade, com diplomação mais rápida e voltados para demandas do mercado de trabalho. O Estado de São Paulo também prepara seu modelo de desenvolvimento do sistema de ensino superior público, mas com metodologia mais abrangente. Discute-se, por exemplo, a ampliação de um sistema de ensino superior com uma variedade de instituições, algumas com atividade de pesquisa, outras apenas de ensino, mas todas com cursos de qualidade capazes de ampliar o acesso ao ensino superior. Uma equipe de 150 especialistas está envolvida na elaboração do Plano Diretor do Ensino Superior Público em São Paulo, proposto ao governo estadual pelo Conselho de Reitores de Universidades Estaduais Paulistas (Cruesp), que vai estabelecer estratégias e objetivos, tanto qualitativos quanto quantitativos, para os próximos 15 anos. O comitê executivo que coordena os grupos é presidido pelo secretário estadual da Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento econômico, João Carlos Meirelles. O trabalho está organizado em cinco grupos voltados para temas específicos. Um deles discute formas de ampliar o acesso às universidades. O segundo está debatendo a distribuição geográfica da expansão. O terceiro aborda o desafio orçamentário de atingir as metas. O quarto trata da questão da inovação. O quinto discute a natureza das instituições. "A discussão exaustiva dessas estratégias permitirá estabelecer um plano estratégico realizável, essencial para se trilhar um caminho seguro na expansão do ensino superior público paulista", diz Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP. • PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 31


CIÊNCIA

Laboratóri

Mundo

Uma caixinha de surpresas Não são apenas os passes perfeitos, os dribles geniais nem as finalizações impecáveis, como o chute preciso do lateraldireito Carlos Alberto Torres que fechou o placar de 4 a 1 contra a Itália na Copa de 1970, que tornam o futebol excitante. Muito de sua capacidade de atrair milhares aos estádios todas as semanas ou fazer milhões se plantarem em frente à televisão se deve E à imprevisibilidade dos resultados - a famosa zebra. Em termos de resultados inesperados, nada bate o fu-

■ Antidepressivos na defesa Os antidepressivos mais usados, que já haviam sido associados a tentativas mais freqüentes de suicídio, podem alterar o sistema imunológico de um modo ainda não claramente compreendido. "Observamos uma forma de comunicação entre as células de defesa que só é encontrada entre neurônios", disse Gerard Ahern, pesquisador da Universidade de Georgetown, Estados Unidos, e coordenador de um estudo publicado na revista Blooâ e comentado na Nature Reviews Immunology. Seu grupo verificou que as células dendríticas, uma das primeiras células acionadas quando o organismo é tomado por microorganismos, liberam sero-

depois do drible? O inesperado é o charme do futebol tebol, segundo um estudo de Eli Ben-Naim, Sidney Redner e Federico Vazquez,

tonina, que ativa as células T, um tipo de célula de defesa. Antidepressivos que mantêm a serotonina em circulação, conhecidos como Prozac, Zoloft e Aropax, devem mudar os parâmetros de ativação das células T. Ainda não se sabe se esse efeito beneficia ou prejudica a luta contra vírus e bactérias. •

32 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

do Laboratório Nacional Los Alamos, Estados Unidos. Eles avaliaram os resul-

■ Vá a pé e respire menos poluentes Quem quiser engolir menos fumaça da rua deve ir às compras ou ao trabalho caminhando ou em seu próprio carro - desde que, evidentemente, tenha paciência e tempo para enfrentar os congestionamentos. Pesquisadores

tados de 300 mil partidas de cinco esportes coletivos - futebol, beisebol, basquete, hóquei e futebol americano realizadas durante o século 20. Com base no número de jogos em que os times mais fracos venceram os mais fortes, calcularam o índice de imprevisibilidade ou a probabilidade de dar zebra. No futebol, esse índice foi de 45%; no futebol americano, bem mais previsível, foi de 36%. "Sem resultados inesperados, os jogos ficam tediosos", diz Ben-Naim. •

do Imperial College, em Londres, mediram a exposição em tempo real a poluentes de pessoas que se deslocaram usando cinco tipos de transporte - a pé, de carro, de ônibus, de bicicleta e de táxi. Verificaram que quem tomava táxi ou ônibus sujeitavase a um ambiente com cerca de duas vezes mais partículas ultrafinas de poluentes que causam problemas respiratórios do que quem andava a pé ou em seu próprio carro. Segundo Surbjit Kaur, um dos autores do estudo, uma das explicações é o maior acúmulo de partículas ultrafinas nos táxis, que circulam muito mais do que os carros particulares. E quem anda mais perto do meio-fio pode respirar mais fumaça do que quem se mantém mais próximo aos prédios. •


■ Os gases das plantas

■ Chocolate bom para o coração

O Brasil, que já era apontado como um dos grandes responsáveis pela emissão de gases associados ao efeito estufa por causa das queimadas, pode estar novamente em maus lençóis. Dessa vez por manter as florestas em pé. As plantas podem produzir até um terço do volume do segundo mais importante gás ligado ao efeito estufa, o metano, de acordo com estudo publicado na Nature pela equipe de Frank Keppler, do Instituto Max Planck de Física Nuclear, na Alemanha. Até então, uma das principais fontes biológicas de metano eram as bactérias que vivem

Uma equipe internacional que incluiu índios do Panamá encontrou um composto químico responsável, ao menos em parte, pelos benefícios para o coração causados por alguns tipos de cacau. É a epicatequina, do grupo dos flavonóides. Pode favorecer a circulação e a saúde do coração, segundo estudo da revista PATAS. Os índios kunas, que vivem em ilhas da costa do Panamá, foram fundamentais nesse trabalho. Conhecidos pelo consumo intenso de cacau, rico em flavonóides (de três a quatro copos por dia), quase não têm doenças cardiovasculares. Já os índios que migram para a Cidade do Panamá e consomem só quatro copos de cacau por semana não têm um coração tão bom. Notou-se uma associação direta entre níveis mais altos de epicatequina e a maior fluidez do sangue pelas artérias e veias. •

A Via Láctea: encurvada e capaz de ondular

■ A galáxia vibra como um tambor Nossa galáxia, a Via Láctea, vibra como um tambor. Só que cada ondulação deve durar centenas de milhões de anos. A equipe de Leo Blitz, da Universidade da Califór-

tar a nuvem de hidrogênio. Para Martin Weinberg, da Universidade de Massachusetts, o deslocamento dessa nuvem de gás é possível levando-se em conta uma enorme quantidade de matéria escura - forma ainda não detectada de matéria - envolvendo a Via Láctea. •

■ Bom motivo para dormir mais

no solo, no aparelho digestivo do gado ou em folhas e raízes de plantas. A descoberta não altera o total de metano lançado na atmosfera, de 500 milhões a 600 milhões de toneladas por ano, mas ajuda a identificar com mais precisão a origem do gás. Muitos especialistas se mantêm céticos. "Se as plantas emitem uma quantidade mensurável de metano, houve uma superestimação das outras fontes ou existe algum sumidouro importante a ser descoberto", disse Michael Keller, da Universidade de New Hampshire, Estados Unidos. •

nia, em Berkeley, Estados Unidos, concluiu o mais detalhado mapeamento da gigantesca nuvem de hidrogênio que permeia todo o disco da Via Láctea, a galáxia elíptica achatada que abriga o Sol e pelo menos outros 200 bilhões de estrelas. Blitz constatou que essa nuvem desloca-se para além do plano da nossa galáxia, atraída pelas Nuvens de Magalhães, curvando-se como um disco empenado e fazendo a Via Láctea vibrar. Pensava-se que a massa das Nuvens de Magalhães - duas galáxias que orbitam a Via Láctea fosse insuficiente para arras-

O cérebro precisa de boas horas de sono para funcionar direito. Equipes de duas universidades norte-americanas, Califórnia e Stanford, descobriram por que dormir pouco prejudica a memória espacial, comandada por uma região cerebral chamada hipocampo, que permite lembrar um caminho do trabalho para casa aprendido recentemente. Já se sabia que o aprendizado de um percurso alternativo estimula a produção de células nervosas no hipocampo. Em um estudo com ratos, publicado no Journal of Neurophysiology, os pesquisadores viram que a redução das horas de sono aumenta a mortalidade das novas células do hipocampo. "Parece que o cérebro precisa de sono mais do que qualquer outra parte do corpo", diz liana Hairston, coordenadora do estudo. •

PESQUISA FAPESP120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 33


Tempos difíceis, mas nem tanto [i'i|

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■ Escondidos nos riachos Durante dois anos os biólogos Osvaldo Oyakawa, Alberto Akama e Kelly Mautari, da USP, e José Cezar Nolasco, da Universidade Braz Cubas, se embrenharam nas matas do sul do Estado de São Paulo. E coletaram 73 espécies de peixe que só vivem em riachos e poças d'água, descritas no livro Peixes de riachos da Mata Atlântica (Editora Neotrópica). Muitos não passam de 10 centímetros e quase não são vistos de fora d'água, porque se confundem com a areia ou as pedras. Há espécies de colorido intenso, como os peixes-anuais, que vivem em poças temporárias e, antes de morrer, enterram os ovos na areia. As cavernas de Iporanga abrigam o bagre-cego, primeira espécie de peixe de caverna descrita no país. •

e repente elas se põem a horar sem razão aparente, u xingam e batem sem justificativa à altura. Para quem está por perto - e para as próprias mulheres, claro - a tensão pré-mensrual (TPM) pode ser um tormento. Mas pode haver algum exagero na intensiade das alterações físicas e emocionais. Quatro pesquisadoras da Universidae Federal de Pelotas, no io Grande do Sul, mosraram que a TPM é basnte comum, sim, mas não tanto quanto as mu■lheres afirmam. A equipe de Denise Petrucci Gigante entrevistou 1.096 moradoras de Pelotas com idades entre 15 e 49 anos, de todos os níveis econômicos e culturais, e verificou que 60% afirmavam sofrer mensal-

■ Caminhoneiros sempre alertas Da próxima vez que pegar uma estrada seja gentil com os caminhoneiros e não hesite em lhes dar passagem. Uma das razões é que, entre eles, é alta a prevalência de distúrbios de sono, de uso de estimulantes e de acidentes, concluiu o psiquiatra José Carlos Souza em seu pós-doutorado feito na Faculdade de Medicina de Lisboa. Professor da

Bagrinho: caçador noturno de insetos 34 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

mente com os incômodos da TPM. Mas só 25% preenchiam os critérios médicos que definem a TPM - ter ao menos cinco sintomas, sendo ao menos um deles tristeza, raiva, nervosismo ou irritabilidade em intensidade capaz de afetar as atividades do dia-a-dia. "Es-

Universidade Católica Dom Bosco, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Souza entrevistou 260 motoristas de caminhão em estradas federais do Estado do Mato Grosso do Sul. Em conjunto com Teresa Paiva, da Faculdade de Medicina de Lisboa, e Rubens Reimão, da Universidade de São Paulo, ele verificou que 43% dos motoristas dirigiam mais de 16 horas por dia. Metade deles dormia de cinco a seis horas por dia e 23,8%,

Barbudinho: tentáculos e espinhos

tamos fazendo outros estudos para descobrir por que esse problema é mais comum entre as mulheres mais jovens, brancas e com maior grau de instrução", diz Celene Longo da Silva, uma das autoras do estudo publicado este mês na Revista de Saúde Pública. •

menos de cinco horas, segundo o estudo que saiu nos Arquivos de Neuropsiquiatria. O consumo de álcool foi relatado por 50,9% dos motoristas entrevistados, e 8,7% bebiam mais de seis vezes por semana. Um em cada dez tomava estimulantes, como anfetaminas. Nos cinco anos anteriores, 27 motoristas (13,1% do total) tinham se envolvido em acidentes, dos quais cinco resultaram em ferimentos e três em mortes. •

Lambari: exclusivo da região de Iguape


A África no sangue

■ Os brasileiros lá no alto

■ Quanto sobra de Mata Atlântica

São poucos, mas muito produtivos. Os astrônomos brasileiros foram quatro vezes mais produtivos cientificamente que os colegas britânicos, três vezes mais que os norte-americanos e duas vezes mais que os canadenses que integram a equipe do Telescópio Gemini, consórcio internacional de dois telescópios, um no Chile e outro no Havaí. Nos últimos cinco anos os astrofísicos das universidades brasileiras assinaram 5% dos 200 trabalhos científicos publicados a partir de observações feitas nesses telescópios, mesmo que contassem com apenas 2,5% do tempo de uso ou até 18 noites de observação por ano. Desde 1994 o Brasil investiu R$ 7,5 milhões nos dois telescópios - o Gemini Norte, a 4.200 metros de altitude, no monte Mauna Kea, no Havaí, e o Gemini Sul, a 2.720 metros no cerro Pachón, no Chile. •

Há muitos anos se diz que restam atualmente pouco mais de 7% da área original da Mata Atlântica no Brasil. Esse valor resulta de levantamentos feitos desde 1990 pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e a Fundação SOS Mata Atlântica, mas está sujeito a ajustes - o primeiro levantamento, que contou com a participação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), indicava uma área remanescente de 8,8% e os dos anos seguintes já caíram para a faixa de 7,3%. Mas pode não ser tão pouco. No ano passado, o Instituto Florestal (IF) de São Paulo concluiu que a área atual de Mata Atlântica no país é de 17%. O IF levou em conta não só os grandes blocos de floresta, mas também as matas em regeneração e os blocos menores, de até 10 hectares, desconsiderados no estudo do Inpe/SOS. Só em

Tajibucu ou saicanga: carnívoro

Greice Cardoso e João Guerreiro, da Universidade Federal do Pará, analisaram o sangue de moradores de Belém com anemia falciforme em busca de variações do gene HBB*S comuns na África - cada variação recebe o nome da nação africana em que é mais comum. Em Belém, 66% dos portadores dessa anemia carregam a variedade Bantu do HBB*S, outros 21,8% a forma Benin, 10,9% a Senegal e 1,3% a Camarões (American Journal of Human Biology). Já se sabia que

São Paulo os 80.704 fragmentos menores somam cerca de 300 mil hectares, o equivalente ao Parque Estadual da Serra do Mar. Deve sair em maio uma atualização do levanta-

Guaru: em correntezas e remansos

90% dos escravos enviados para o Norte do Brasil eram de Angola, Congo e Moçambique, onde a variedade Bantu é mais comum, e 10% da Senegâmbia, da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, onde a Senegal é mais freqüente. O problema era explicar as taxas mais altas que o esperado da variação Benin, encontrada no centro-oeste da África. Esse dado sugere um tráfico interno do Nordeste para o Norte do país, já que não há registro de comércio de negros com o centro-oeste africano. •

mento do Inpe/SOS, que deverá incluir fragmentos florestais de 5 ou mais hectares (os primeiros levantamentos abrangiam somente áreas com pelo menos 40 hectares). •

Peixe-anual: em poças temporárias PESQUISA FAPESP120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 35


CIÊNCIA MEDICINA

Alerta contra infecções constantes Alterações genéticas podem causar imunodeficiências confundidas com doenças comuns na infância

RICARDO ZORZETTO E FRANCISCO BICUDO

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sargento e médico do Exército norteamericano Ogden Bruton ficou intrigado em 1952 quando deparou com um garoto de 8 anos com infecções respiratórias graves e constantes. Os medicamentos produziam resultados temporários e as pneumonias não demoravam a reaparecer, ainda mais intensas. Ao investigar o caso, Bruton surpreendeu-se: o sistema imunológico do menino não produzia anticorpos chamados gamaglobulinas, que ajudam a proteger o organismo de invasores como vírus, fungos e bactérias. Esse relato do médico norte-americano inaugurou os estudos sobre as imunodeficiências primárias, hoje um grupo de mais de cem doenças que atingem principalmente as crianças, deixando-as mais vulneráveis a infecções. Mais comuns do que se imagina, essas imunodeficiências atingem cerca de 3 milhões de pessoas no mundo e quase 90 mil apenas no Brasil. Ainda assim são pouco conhecidas mesmo dos médicos porque seus sinais mais evidentes, que em geral surgem até o terceiro ano de vida, confundem-se com os de problemas corriqueiros entre as crianças. Os especialistas recomendam aos pediatras que encaminhem para exames mais detalhados as crianças que atendem, caso apresentem dois ou mais 36 • FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

Viviane, 11 anos


VAAAAA

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XJ episódios de pneumonia ou oito ou mais de infecções no ouvido (otite) no período de um ano; usem antibióticos por dois meses ou mais sem que haja o efeito desejado; apresentem abscessos freqüentes na pele ou em outros órgãos; tenham aftas ou lesões persistentes na pele após o primeiro ano de vida; mostrem dificuldade para ganhar peso ou crescer normalmente; precisem de antibiótico intravenoso para curar infecções; apresentem duas ou mais infecções graves como meningite, osteomielite e septicemia ou uma história familiar de imunodeficiência. A diferença entre o que é normal na infância e as imuno-

deficiências é que essas infecções são mais freqüentes e difíceis de combater. Como conseqüência, quem tem o problema e não sabe pode não receber tratamento adequado ou consumir medicamentos sem necessidade. Nos casos mais graves pode até mesmo morrer. Causas - Apesar do nome em comum com a mais conhecida das imunodeficiências - a síndrome da imunodeficiência adquirida, ou Aids -, as imunodeficiências primárias apresentam uma origem bem distinta. "As pessoas com imunodeficiência primária já nascem com falhas de funcionamento do siste-

Marcine, 7 anos

ma de defesa, causadas por falhas genéticas, enquanto na Aids o sistema imunológico é destruído pelo HIV, um agente externo", explica a pediatra Magda Carneiro Sampaio, do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas de São Paulo. Magda coordena um grupo de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) que investiga as características das imunodeficiências primárias na população brasileira e iniciou uma campanha para alertar os pediatras a respeito desse problema. Recentemente essa equipe identificou novos defeitos em genes associados a um tipo específico de imunodeficiência primária: a doença granulomatosa crônica. Descoberta na década de 1950 pelos médicos norte-americanos Robert Good e Charles Janeway, essa enfermidade prejudica o funcionamento de alguns tipos de células de defesa do organismo e deixa as crianças mais propensas a desenvolver infecções graves. Em parceria com pesquisadores do Chile, da Colômbia, do México, dos Estados Unidos e, no Brasil, de Campinas, Rio de Janeiro e Ribeirão Preto, a equipe de Magda realizou testes em amostras de sangue de 14 crianças e adultos com doença granulomatosa crônica eram 10 brasileiros, 2 mexicanos e 2 chilenos. Metade dos participantes do estudo apresentava pequenos defeitos genéticos no gene NCF1, de acordo com análises feitas no Laboratório de Alergia e Imunodeficiências Humanas da USP e no Laboratório de Biologia Molecular e Cultura de Células da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), chefiados por Antônio Condino Neto. Localizado no cromossomo 7, o gene NCF1 leva à produção de uma enzima que auxilia as células de defesa a eliminar bactérias, lançando sobre elas moléculas alPESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 37


tamente tóxicas, conhecidas como radicais livres. Na outra metade dos portadores da doença granulomatosa crônica as falhas ou mutações, incluindo duas até então desconhecidas, estavam no gene CYBB. Esse gene, que se situa no cromossomo sexual X, contém a receita de uma outra proteína essencial para a produção dos radicais livres usados contra microorganismos estranhos. escritos em um artigo científico publicado na edição deste mês da revista Pediatric Blood and Câncer, esses defeitos comprometem o funcionamento das células de defesa mais abundantes no organismo, os neutrófilos. Produzidos no interior dos ossos longos do corpo a uma quantidade de 100 bilhões por dia, os neutrófilos geralmente circulam no sangue por apenas oito horas, como vigias que fazem a guarda de um castelo. Quando bactérias invadem o organismo de uma pessoa saudável, os neutrófilos penetram rapidamente nos tecidos, englobam-nas e as destroem com eficiência. Mutações em um desses dois genes, porém, eliminam o poder de combate dessas células de defesa e deixam vulneráveis aos invasores as principais portas de entrada do corpo: a pele e as mucosas dos aparelhos digestivo e respiratório. Como a doença é de origem genética, a única forma de curar a pessoa é submetendo-a a um transplante de medula óssea, procedimento caro que nem sempre produz os efeitos desejados no caso da doença granulomatosa crônica. O tratamento em geral é feito com sulfametoxazol-trimetoprima e antifúngicos, usados de modo contínuo para combater as infecções já instaladas e também para prevenir a ocorrência de outras. "A expectativa é que em alguns anos esse problema possa ser tratado com terapia gênica, atualmente em teste na Alemanha, mas ainda distante da realidade dos pacientes", comenta a pediatra Beatriz Costa Carvalho, da Unifesp, integrante do grupo. Enquanto a terapia genética não chega, a identificação de mutações co38 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

mo as descobertas pela equipe de São Paulo contribuem para o aperfeiçoamento do diagnóstico da doença granulomatosa crônica. Exames realizados na USP e na Unicamp confirmaram 41 casos dessa doença nos últimos cinco anos. "Como são várias as mutações associadas a esse problema, pretendemos investigar como as alterações genéticas influenciam o quadro clínico, o que facilitaria o diagnóstico e o tratamento", diz Condino Neto. A identificação precisa do defeito genético por trás da imunodeficiência permite ao médico saber o momento mais adequado para iniciar o uso de medicamentos. Também é útil para o aconselhamento de casais. Um exemplo facilita a compreensão. A doença granulomatosa crônica pode ser provocada por cerca de 400 mutações diferentes em cinco genes, cada uma com probabilidade distinta de ocorrer. As mais freqüentes são as alterações no gene CYBB, correspondente a 60% dos casos dessa imunodeficiência. Como esse gene se encontra no cromossomo X, as mulheres carregam em suas células duas cópias do CYBB, enquanto os homens têm apenas uma. Se em um casal o marido não tem a imunodeficiência - portanto sua cópia do gene não sofreu mutações -, mas sua mulher apresenta uma cópia inalterada e outra defeituosa, a probabilidade de ter um filho homem doente é de 25%. "É um risco extremamente elevado para uma doença em que a taxa de mortalidade é alta", diz Condino Neto, que começou a investigar os de-

feitos genéticos da granulomatosa há quase dez anos. Motivos não faltam para justificar a busca de técnicas mais precisas de identificação de imunodeficiências primárias. Crianças com doença granulomatosa crônica e outras enfermidades genéticas que debilitam as defesas do organismo - como a imunodeficiência grave combinada, em que o corpo não produz nem células de defesa nem anticorpos ou os fabrica em quantidade insuficiente - geralmente não deveriam receber algumas das vacinas aplicadas logo nos primeiros meses de vida. Vacinas como a BCG, produzida a partir de uma bactéria para prevenir a tuberculose, ou a Sabin, feita com o próprio vírus da paralisia infantil, podem colocar os portadores de imunodeficiências sob risco de morte. É grande a possibilidade de que componentes dessas vacinas, mesmo que atenuados, desencadeiem infecções graves nessas pessoas, uma vez que seus sistemas de defesa são naturalmente debilitados. Segundo Beatriz, uma em cada três crianças com imunodeficiência grave combinada que tomam BCG pode desenvolver reações graves e fatais. Subdiagnóstico - "Seria fácil evitar esse risco se logo após o parto, durante o teste do pezinho para detectar fenilcetonúria e hipotireoidismo, fosse retirada uma gota a mais de sangue para avaliar o sistema imunológico da criança", diz Condino Neto. Medidas simples como essa reduziriam os riscos para os imunodeficientes e ajudariam a identi-

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7. Imunodeficiências primárias em pacientes pediátricos de risco 2. Padronização do método para avaliação in vitro da imunidade celular 3. Defeitos genéticomoleculares da doença granulomatosa crônica MODALIDADE

1. Projeto Temático 2. Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa 3. Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa

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COORDENADOR(A)

1. MAGDA MARIA CARNEIRO SAMPAIO USP 2. BEATRIZ TAVAREZ COSTA CARVALHO Unifesp 3. ANTôNIO CONDINO NETO - Unicamp INVESTIMENTO 1. R$ 625.319,95 2. R$ 31.900,70 3. R$ 217.613,74

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» Guilherme, 8 anos


Raphael, 8 anos

ficar com mais precisão quem deveria receber tratamento já nos primeiros anos de vida. Embora se estime que uma em cada 2 mil pessoas possa apresentar uma das formas de imunodeficiência primária - o que corresponderia a 90 mil doentes em uma população de 180 milhões -, há apenas cerca de 700 casos registrados pelo Grupo Brasileiro de Imunodeficiências (Bragid, na sigla em inglês), organização que reúne 1.800 médicos dedicados ao estudo das doenças do sistema imune. Outro dado reafirma a suspeita de diagnóstico subestimado: calcula-se que 1.200 crianças sofram de imunodeficiência grave combinada, solucionada apenas com o transplante de medula óssea, procedimento de custo elevado geralmente realizado antes do segundo ano de vida. No entanto, de 1992 para cá, o Centro de Transplantes de Medula Óssea da Universidade Federal do Paraná, um dos poucos que realizam esse procedimento no país pelo Sistema Único de Saúde, fez apenas 32 transplantes para tratar imunodeficiências primárias. "Muitas crianças podem estar morrendo por falta de diagnóstico correto", lamenta Beatriz. Mesmo as formas mais freqüentes de imunodeficiência - a produção de

anticorpos defeituosos, que é tratada com injeções mensais para repor esses componentes do sistema imune e corresponde a 60% dos casos de imunodeficiência primária - parecem passar despercebidas nos consultórios e prontos-socorros. No ano passado o Grupo Brasileiro de Imunodeficiências realizou um levantamento com 34 mil pediatras de todo o país. O objetivo era avaliar o que eles sabiam sobre imunodeficiências primárias. Dez sinais - Em resumo, há muito a ser feito em termos de educação médica. Dos 3.047 pediatras que responderam o questionário, 30% nada haviam aprendido sobre imunodeficiências primárias durante a graduação ou a residência médica em pediatria. Mesmo após a especialização dois de cada dez pediatras jamais haviam ouvido falar em imunodeficiência primária, embora 97% deles atendessem crianças com infecções repetidas, um dos sinais do problema, e 20% não sabiam que crianças com imunodeficiência primária não deveriam receber vacinas produzidas a partir de microorganismos vivos. Para mudar esse cenário, o Grupo Brasileiro de Imunodeficiências iniciou uma campanha de educação e alimen-

tou sua página na internet (www.imunopediatria.org.br) com informações para médicos. Também enviou a 34 mil pediatras brasileiros um cartão com dez sinais associados às imunodeficiências primárias, sugerindo que encaminhem para exames detalhados seus pacientes com pelo menos um dos sintomas: duas ou mais pneumonias ou oito ou mais de infecções no ouvido em um ano; uso de antibióticos por dois meses ou mais sem o efeito desejado ou de antibiótico intravenoso para combater infecções; abscessos freqüentes; aftas ou lesões persistentes na pele após o primeiro ano de vida; dificuldade para ganhar peso ou crescer normalmente; duas ou mais infecções graves como meningite, osteomielite e septicemia ou história familiar de imunodeficiência. "Disseminar informações para os médicos", afirma Magda, "é o principal caminho para transformar as imunodeficiências primárias em uma questão de saúde pública, como aconteceu com a Aids". •

Os desenhos que ilustram esta reportagem foram feitos por crianças atendidas pelos pesquisadores no Instituto da Criança do Hospital das Clínicas de São Paulo. PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 39


O CIÊNCIA BIOLOGIA CELULAR

Cenas de um parasita Biomédico brasileiro descobre em Paris como o protozoário da malária se espalha pelo corpo

m sua voraz busca por sangue, a fêmea do pernilongo Anopheles pode causar mais do que dor e coceira. Muitas vezes ela deixa no corpo de suas vítimas algumas dezenas de exemplares do parasita causador da malária, uma das doenças infecciosas mais comuns no mundo, que a cada ano atinge cerca de 300 milhões de pessoas e causa a morte de 1 milhão. Velha conhecida da humanidade - o grego Hipócrates, considerado o pai da medicina, descreveu-a cerca de 2.500 atrás -, a malária começou a ser mais bem compreendida no final do século 19, quando o cirurgião francês Charles Louis Alphonse Laveran identificou o microorganismo que a causava, os protozoários do gênero Plasmodium. Mais de um século após a descoberta que contribuiu para Laveran receber o Nobel de Fisiologia em 1907, experimentos feitos no Instituto Pasteur, em Paris, pelo biomé40 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

dico brasileiro Rogério Amino e pelo parasitologista alemão Friedrich Frischknecht revelam detalhes sobre o comportamento desse parasita que podem reorientar o desenvolvimento de vacinas contra a malária. Convidado por Frischknecht para fazer um pós-doutorado de dois anos na Unidade de Biologia e Genética da Malária do Pasteur, chefiada por Robert Ménard, Amino decidiu verificar como o Plasmodium infecta os organismos vivos. Desde os tempos de Laveran se sabe que o parasita é injetado no corpo dos mamíferos no momento da picada do inseto, mas jamais se havia observado o trajeto do protozoário até as células do fígado, onde se aloja e se multiplica rapidamente antes de ocupar as células vermelhas do sangue. Amino e o parasitologista alemão contaminaram exemplares do pernilongo Anopheles stephensi, responsável pela transmissão da malária humana na Ásia, com o protozoário Plasmodium berghei geneticamente alterado para produzir uma pro-

teína verde fluorescente. Em seguida, deixaram os insetos picarem a orelha de ratos e camundongos anestesiados. Com o auxílio de um microscópio confocal a laser, que permite observar estruturas sob a pele em seres vivos e reconstruir as imagens em três dimensões, acompanharam passo a passo o que acontecia. Já de saída surgiram novidades. Na picada, o inseto não injeta os exemplares do protozoário no interior dos vasos sangüíneos, como se supunha. A maior parte dos pernilongos lança de 10 a 20 parasitas misturados à saliva em uma camada mais profunda da pele - a 50 milésimos de milímetro da superfície, próximo à região em que nascem os pêlos. "Esse resultado confirmou uma antiga suspeita", diz Amino, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Antes de investigar a malária, Amino estudava a transmissão de outro protozoário - o Trypanosoma cruzi, causador do mal de Chagas, transmitido pelo


Como um saca-rolhas: Plasmodium move-se em círculos sobre uma lâmina de vidro (à esquerda) e perfura a pele de ratos (acima)

barbeiro - e sabia que a saliva do inseto era inoculada na pele, e não diretamente nos vasos sangüíneos. Como contém compostos farmacologicamente ativos, a saliva do barbeiro facilitaria o acesso do inseto ao sangue. Se era assim com o barbeiro, Amino imaginou que o mesmo pudesse ocorrer com o Anopheles. O mais importante, porém, ocorreu a seguir. Sete horas após o pernilongo se alimentar na orelha dos roedores ainda havia protozoários no local da picada, segundo estudo publicado em 22 de janeiro na edição on-line da Nature Medicine. Metade dos parasitas praticamente não se desloca e morre no ponto em que foram depositados. O restante pode tomar dois caminhos, com destinos bem diversos. Sete de cada dez exemplares do Plasmodium se deslocam por meio de movimentos que lembram o de um saca-rolhas, perfurando as células que encontram pelo caminho, a uma velocidade de 1 micrômetro por segundo. Parece pouco, mas

é o suficiente para alcançarem a corrente sangüínea poucos minutos após a picada. Entre a vida e a morte - Uma vez no

sangue, cada parasita - que até então se encontrava no estágio de esporozoíta, com formato alongado como o de uma banana - pode invadir o fígado, onde passa a se reproduzir rapidamente, gerando 30 mil cópias do protozoário. Agora com formato de pêra, chamado merozoíta, o parasita deixa o fígado e retorna ao sangue, onde infecta os glóbulos vermelhos. É o início de outra etapa de multiplicação, que termina com a explosão das células sangüíneas e febres de até 40°C, capazes de deixar qualquer pessoa de cama, batendo os dentes de frio e com anemia. As outras cópias do Plasmodium que escapam do local da picada seguem uma rota suicida jamais imaginada: atravessam as células da pele até atingir os vasos linfáticos, canais próximos aos vasos sangüíneos que, em vez de san-

gue, transportam linfa, um líquido esbranquiçado rico em gorduras, proteínas e células de defesa do organismo. Conduzidos pela linfa até os linfonodos, pequenos gânglios com grande concentração de células de defesa chamadas linfócitos, esses protozoários encontram seu destino final. A maior parte é destruída em até quatro horas. Uns poucos exemplares sobrevivem por até 24 horas e amadurecem, assumindo a forma correspondente à que adquirem no fígado, antes de morrerem. "Essa descoberta é importante porque é no sistema linfático que é produzida a resposta imunológica do organismo", diz Amino. "Sempre que se avança na biologia, uma aplicação surge mais cedo ou mais tarde", comentam Victor e Ruth Nussenzweig, casal de pesquisadores brasileiros que trabalha no desenvolvimento de uma vacina contra a malária na Universidade de Nova York, Estados Unidos. • RICARDO ZORZETTO PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 41


CIÊNCIA

iT Ataque duplo Associação de quimioterapia e células-tronco adultas ajuda no controle do diabetes juvenil

sar o termo cura é exagerado e prematuro, mas um tratamento experimental, que ministra altas doses de quimioterapia seguidas de um transplante de células-tronco adultas originárias da medula óssea do próprio paciente, obteve resultados animadores no controle do diabetes melito do tipo 1, também chamado de juvenil ou insulino-dependente, doença imunológica que atinge cerca de 1 milhão de brasileiros. Dos 11 pacientes, todos adultos, submetidos aos dois procedimentos no Centro de Terapia Celular (CTC), da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, ligada à Universidade de São Paulo, dez mostraram progressos significativos: oito se livraram da necessidade diária de tomar insulina - um deles permanece nessa saudável condição desde março de 2004, há quase dois anos - e dois passaram a receber apenas metade da dose desse hormônio antes necessária ao controle da doença. "Não podemos falar em cura", pondera o imunologista Júlio César Voltarelli, que encabeça essa linha de pesquisa. "Não sabemos se os 42 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120


efeitos benéficos são duradouros, se vão persistir por três, quatro ou cinco anos." Apenas um doente não apresentou melhora, justamente o primeiro que foi submetido ao esquema terapêutico alternativo, ainda em novembro de 2003. Os pesquisadores acreditam que esse caso não se comportou da mesma forma que os demais porque foram usados corticóides para prevenir as reações alérgicas aos medicamentos utilizados no transplante e, sabe-se hoje, esse tipo de droga não dá bons resultados em diabéticos. Os demais pacientes receberam outras classes de medicamentos, aparentemente mais eficazes nesses casos. Mesmo que os benefícios da nova abordagem terapêutica persistam a longo prazo, dificilmente o tratamento se consagrará como a cura da doença. O procedimento é agressivo, demorado (prolonga-se por uns três meses) e muito caro. A quimioterapia mais o transplante de células-tronco adultas são demorados e têm um custo estimado de pelo menos R$ 30 mil e, segundo Voltarelli, não poderiam ser adotados como a terapia padrão para cuidar de todos os doentes com esse tipo de diabetes. "De qualquer forma, as pesquisas apontam um caminho que podemos perseguir para combater o mecanismo que causa o diabetes do tipo 1", afirma Marco Antônio Zago, coordenador do CTC de Ribeirão Preto, um dos dez Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPÈSP. Como o lúpus, a esclerose múltipla e outras enfermidades, o diabetes do tipo 1 é uma doença auto-imune, diagnosticada em geral na infância ou na adolescência. Em outras palavras, sua causa primária se deve ao mau funcionamento das células de defesa do próprio organismo.

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sistema imunológico passa a destruir as células beta do pâncreas, responsáveis pela fabricação da insulina, cujo papel central é retirar a glicose do sangue. Sem capacidade de produzir naturalmente esse hormônio regulador da entrada de açúcar nas células, o diabético juvenil torna-se refém de injeções diárias de insulina. A abordagem terapêutica proposta pelos pesquisadores brasileiros tem como objetivo debelar o processo de ataque inflamatório ao tecido do pâncreas com altas doses de quimioterápicos imunossupressores assim que se descobre o diabetes juvenil (todos os pacientes que participam do estudo do CTC tinham recebido o diagnóstico da doença havia no máximo seis semanas). No estágio inicial do diabetes do tipo 1, dizem os cientistas, ainda resta uma pequena quantidade de células beta capaz de gerar insulina, que, se for preservada, e desde que se tenha vencido a disfunção imunológica, poderá se multiplicar e devolver ao organismo a capacidade de gerar insulina. Transplante - Não se deve confundir o papel das células-tronco adultas na terapia alternativa. Elas entram no tratamento porque a quimioterapia empregada é tão agressiva que, além de atacar a causa da inflamação imunológica, desmantela todo o sistema de defesa e destrói a medula óssea do diabético, como nos tratamentos mais tóxicos contra certos tipos de câncer. Por isso, os médicos recorrem ao transplante de células-tronco, que possibilita ao doente reconstituir a sua medula e também o seu sistema imunológico. Não se descarta totalmente a hipótese de as células-tronco em si

exercerem algum papel favorável à multiplicação das células beta remanescentes do pâncreas. Mas, definitivamente, não é esse raciocínio que rege o seu emprego na terapia experimental contra o diabetes juvenil. "Nossa idéia é atuar quimicamente o mais cedo possível para preservar a capacidade natural do organismo de gerar células beta e usá-la contra a doença", explica Voltarelli. "Usamos as células-tronco com o intuito de recompor a medula óssea dos pacientes." Nada garante que a ação benéfica do tratamento contra o diabetes do tipo 1 não seja passageira. Como no caso do câncer, é prudente esperar cinco anos sem a doença para se pronunciar a palavra cura. Ainda assim, mais uma vez como ocorre com alguns tumores, mesmo depois de transcorridos 60 meses, não há garantias de que outro ataque imunológico não possa voltar a ocorrer, desencadeando novamente a destruição progressiva das células beta. É verdade que, em tese, se o paciente ainda estiver bem clinicamente, os médicos poderiam recorrer de novo à quimioterapia e ao transplante de células-tronco para combater o diabetes. Mesmo com essas restrições, os resultados obtidos são suficientemente encorajadores para estimular a continuidade dessa linha de pesquisa clínica. O próximo passo dos pesquisadores do CTC - que também contam com apoio financeiro da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do Sistema Ünico de Saúde (SUS) - talvez seja testar a candidata à terapia em crianças que acabam de receber o diagnóstico de diabetes do tipo 1. • MARCOS PIVETTA PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 43


Q CIÊNCIA

FISIOLOGIA

Energia extra sob a pele Componente da bile aciona cadeia de reações químicas nos músculos que evita obesidade CARLOS FIORAVANTI FOTOS MIGUEL BOYAYAN

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No final de 1998, poucos meses depois de instalar-se como professor visitante em um dos laboratórios da Universidade Harvard, Estados Unidos, o médico Antônio Bianco encontrou em músculos de primatas, incluindo os seres humanos, a mesma proteína com que havia trabalhado em ratos durante 15 anos na Universidade de São Paulo (USP). Trata-se da D2, como é chamada a enzima que ativa o principal hormônio produzido pela glândula tireóide e, a partir daí, acelera as reações que aumentam o consumo de oxigênio - ou, em termos práticos, a liberação de calor. Sete anos mais tarde, já ocupando o cargo de diretor de pesquisas do laboratório de tireóide do Hospital Brigham and Women's em Boston, afiliado à Universidade Harvard, Bianco descobriu dois mecanismos pelos quais o organismo pode regular a produção e a atividade dessa proteína. Essas descobertas, publicadas em dois artigos recentes da Nature e da Nature Cell Biology, podem levar a novas abordagens terapêuticas para combater a obesidade, freqüentemente associada ao diabetes tipo 2 - um sério problema para cerca de 300 milhões de pessoas e a causa de morte de 3 milhões de indivíduos por ano. À medida que sirvam como base para novos medicamentos, esses achados também podem contribuir para o tratamento de outras centenas de milhões de pessoas que sofrem de disfunções da tireóide. Um dos mecanismos recém-descobertos que induzem a produção da D2 põe em cena a bile, um líquido esverdeado produzido diariamente durante a digestão que atraiu o interesse, primeiramente, dos filósofos, começando pelos gregos. Um deles, Hipócrates, dividia os fluidos corpóreos em quatro humores - bile negra, bile amarela, fleuma e sangüíneo -, equiparados a quatro elementos universais - terra, água, fogo e ar - e às estações do ano. Para Hipócrates, as doenças resultavam de um desequilíbrio entre esses quatro humores. A despeito dessa popularidade, os sais biliares, principal componente da bile, não ganharam muita atenção durante séculos. Admitia-se que participassem exclusivamente da absorção de lípides - ou gorduras - e da eliminação do colesterol. Só há três décadas é que se descobriu que poderiam ter outras tarefas no organismo. De fato, mostrou-se que agem em outras reações químicas - e não só no fígado, onde são produzidos, ou no intestino, onde atuam na absorção das gorduras, mas também em outras partes do corpo. Lentamente, deixaram de ser apenas um agente emulsificador - uma espécie de detergente - de gorduras e ganharam status de hormônios multitarefas. Em um estudo publicado em janeiro de 2006 na Nature, Bianco e pesquisadores de institutos da França e do PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 45


Japão descrevem os resultados de um experimento que demonstra os efeitos, em camundongos, de uma dieta rica em sais biliares. Um deles é o aumento da atividade da enzima D2 no tecido adiposo marrom - um tecido especializado na produção de calor em pequenos roedores - e, como também se demonstrou, no tecido muscular esquelético humano. Esse fenômeno não foi verificado nos roedores em que se bloqueou a ação do gene que leva à produção da enzima D2. Depois de ter sido acionada pelos sais biliares, a D2 acelera o metabolismo celular, com maior gasto energético, evitando a obesidade e o diabetes tipo 2, causado por uma deficiência da atuação da insulina. Os pesquisadores concluíram que os ácidos biliares se ligam a mo^^^ léculas específicas - os receptores - da superfície das células de gordura. Em resposta, aumenta a produção intracelular de moléculas sinalizadoras que acionam o gene da D2, uma sigla que significa desiodase das iodotironinas tipo 2. Esse é só o meio do caminho. Por sua vez, a D2 converte a tiroxina ou T4, um pró-hormônio da tireóide, no hormônio T3. É o T3 que inicia uma série de reações químicas que aumentam a atividade metabólica dos músculos e os fazem funcionar como o radiador dos carros, liberando calor. "Trata-se de um mecanismo muito seletivo, que só funciona em células como as dos músculos esqueléticos, que contêm ao mesmo tempo os receptores específicos dos ácidos biliares e a D2", diz Bianco. "Como resultado, aumenta o gasto de energia, sem modificar os níveis de hormônios tireoideanos na circulação ou os processos metabólicos em outras células." Segundo ele, esses estudos demonstram o papel essencial dos ácidos biliares e dos hormônios da tireóide na regulação do organismo, também chamada de homeostase, "além de mostrar quanto a medicina dos gregos antigos já era sofisticada". Se esse primeiro mecanismo de produção da D2 implica a ativação do gene dessa enzima, o segundo mecanis46 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

mo - descrito por Bianco em julho do ano passado em um artigo na Nature Cell Biology - depende essencialmente de uma proteína conhecida pela sigla WSB1, que, como ele verificou, controla o tempo de vida da D2. "Após reconhecer e se ligar à D2, a WSB1 auxilia na ligação de outra proteína, a ubiquitina, à D2", explica Bianco. A estrutura da ubiquitina já havia sido caracterizada há três décadas, mas sua função só foi esclarecida recentemente. Em 2004, Aaron Ciechanover e Avram Hershko, ambos do Instituto de Tecnologia Technion, de Israel, dividiram o Prêmio Nobel de Química com Irwin Rose, da Universidade da Califórnia, Estados Unidos, por terem identificado os mecanismos de degradação de proteínas, que são destruídas após se ligarem com a ubiquitina. Não é só a D2 que está marcada para morrer após ganhar uma ubiquitina - a maioria das proteínas produzi-

das pelas células tem o mesmo destino. "Uma característica muito importante desse mecanismo é que ele é regulável e altamente específico, pois exige a interação de uma ligase, tal com a WSB1, que faz a ligação entre a ubiquitina e a proteína que será marcada para degradação", explica Bianco. A ubiquitina inativa a D2 e faz com que ela seja destruída em alguns minutos por outras enzimas. Por outro lado, uma D2 à qual não se ligou nenhuma ubiquitina permanece na célula por muitas horas. Bianco mostrou também como uma outra proteína, a VDU1, reconhece, se liga e salva a D2 da degradação, retirando-lhe a ubiquitina. "É como um interruptor", compara. Examinando esse mecanismo de liga e desliga, ele concluiu que, inibindo-se a ação da WSB1, a D2 poderia permanecer ativa por mais tempo - normalmente, sua meia-vida, como é chamado o tempo no qual se desfaz metade da quantida-


de de moléculas, varia de dez minutos, quando conjugada à ubiquitina, a cerca de cinco horas. O controle desse mecanismo poderia não só acelerar a queima de gorduras. Por aumentar ou diminuir a conversão do pró-hormônio T4 para o hormônio T3, representaria também uma forma de ajudar a regular a quantidade de hormônio tireoideano em circulação no organismo. A falta de T4 e, por conseqüência, de T3, que caracteriza o hipotireoidismo, causa fadiga, perda de peso e de memória, intolerância ao frio, depressão ou irritabilidade, entre outros sintomas; seu excesso, o hipertireoidismo, acelera o ritmo cardíaco, provoca tremores e causa emagrecimento. No hipotireoidismo, o organismo procura aumentar a atividade da D2, maximizando a conversão de T4 a T3. Essa transformação do pró-hormônio no hormônio ativo só é possível porque, nessas circunstâncias,

a WSB1 deixa de se ligar com a D2, maximizando a produção de T3, como Bianco demonstrou por meio de experimentos em cultura de células e em camundongos. Já no hipertireoidismo, ocorre o contrário: a WSB1 parece procurar a D2 e, com mais intensidade, adiciona-lhe uma ubiquitina, evitando assim que ainda mais hormônio seja produzido. À procura de uma semelhante - Bianco acredita que seja realmente viável a utilização desse conhecimento para gerar novas formas de tratamento médico - e já obteve nos Estados Unidos o registro da patente sobre o mecanismo de ligação dos ácidos biliares com o receptor das células musculares, que ativa a D2 e pode ser utilizado para tratamento contra diabetes e obesidade. Ele pretende encontrar uma molécula semelhante à dos ácidos biliares, que se ligue ao receptor celular e ative a D2 e a

produção do hormônio T3 com o mínimo possível de efeitos colaterais. "O tratamento prolongado com sais biliares não é recomendado, por causa de efeitos adversos", alerta. "Estamos em contato com indústrias farmacêuticas, que se mostraram muito interessadas em licenciar nossa patente." Ele não é o único brasileiro trabalhando no laboratório de tireóide do Hospital de Boston que abriga essas pesquisas. Nos últimos anos passaram por lá, sob sua orientação, Rogério Ribeiro e Cyntia Curcio, pós-graduandos da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Luciane Capelo, da USP, e Miriam Ribeiro, professora de fisiologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo. Neste momento estão lá Marcelo Christoffolete e Beatriz Freitas, da Unifesp, e o pós-doutorando Wagner Seixas da Silva, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). • PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 47


O CIÊNCIA ECOLOGIA

entre folhas secas Biólogos identificam padrões de comportamento de formigas da Mata Atlântica ALESSANDRA PEREIRA FOTOS LARA GUIMARãES

Normalmente lembradas pela maioria das pessoas apenas quando infestam o açucareiro ou o aparelho de som, as formigas ocupam o planeta há pelo menos 100 milhões de anos, de acordo com os fósseis mais antigos. Algo que pode soar ainda mais surpreendente: são componentes essenciais dos ecossistemas e têm uma importância ecológica maior do que se poderia esperar, além de apresentar uma elevada riqueza e alta diversidade de espécies, todas sociais. O maior estudo sobre esses insetos já realizado na Mata Atlântica brasileira, que reuniu especialistas de 11 instituições do país e colaboradores do exterior, comprova que as formigas são um dos principais indicadores da diversidade biológica de uma região: quanto mais espécies de formigas, mais espécies provavelmente haverá de outros animais e de plantas. A equipe coordenada por Carlos Roberto Brandão, biólogo do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP), identificou até agora 410 espécies de formigas da Mata Atlântica, mas estima-se que essa floresta litorânea possa abrigar até mil espécies - mundialmente, de um total estimado em 20 mil espécies, já foram descritas cerca de 12 mil. "Com base nesses dados", afirma Brandão, "a Mata Atlântica pode ser vista 48 • FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

como um dos ambientes mais ricos em espécies de formigas do mundo". Há regiões com muito menos: na Grã-Bretanha, por exemplo, vivem apenas 36 espécies de formigas. "As formigas vivem em colônias que podem abrigar de poucos a milhões de indivíduos, o que as coloca como um dos animais terrestres mais abundantes em regiões tropicais e subtropicais", diz ele. Estudos feitos na Amazônia indicam que formigas e cupins, outro grupo de insetos sociais, representam cerca de 70% da biomassa animal terrestre, medida a partir do peso seco. Em outros termos, as populações desses insetos que medem de 1 milímetro a 4 centímetros e individualmente não pesam mais de décimo de grama, se pudessem ser reunidas e pesadas, apresentariam uma massa de matéria orgânica mais elevada que a de todos os outros invertebrados e vertebrados terrestres juntos. Segundo Brandão, alguns grupos animais, em especial besouros e ácaros, são ainda mais ricos em espécies, mas geralmente são solitários e, portanto, cada espécie é representada

por muito menos indivíduos que as espécies sociais. Durante dois anos, de 1999 a 2001, os biólogos percorreram 26 áreas de Mata Atlântica preservada em dez estados - Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia, Sergipe, Pernambuco, Alagoas e Paraíba. Coletaram 1.400 amostras de 1 metro quadrado da camada mais superficial do solo e da cobertura de folhas secas, a chamada serapilheira, onde se concentram 60% das espécies conhecidas de formigas. Em geral não se afastando mais do que dois metros de seus ninhos, esses insetos habitam os espaços entre as folhas que caem no solo, protegidas contra o ataque de outros animais e, ao mesmo tempo, encontrando aí seus alimentos preferidos, como os ácaros. Duas das espécies de formigas mais comuns na Mata Atlântica são a Pheidole flavens, com operárias de apenas 1 milímetro de comprimento, encontrada em 842 das 1.400 amostras - ou seja, quase em 2 de cada 3 metros estudados -, e a Pyramica denticulata, também milimétrica, com operárias dotadas de mandíbulas muito compridas e cabeça em forma de coração, presente em 780 amostras. "Provavelmente", diz Brandão, "essas duas espécies estão entre os animais mais comuns da Mata Atlântica". Analisando as informações que resultaram desse longo trabalho de campo, além de dezenas de prováveis espé-


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cies novas, em especial em gêneros bastante raros como Asphinctanilloides e Cryptomyrmex, os pesquisadores encontraram formas refinadas de organização da fauna de formigas, vistas normalmente como integrantes de sociedades simples, com machos, que atuam somente na reprodução, e fêmeas, por sua vez divididas em rainhas, operárias e soldados, que são operárias modificadas que executam os trabalhos mais pesados. O estudo das operárias, mais abundantes e mais facilmente encontradas fora dos ninhos, mostrou uma inesperada riqueza de comportamentos. Foram identificados nove padrões distintos de comportamento e hábitos. Normalmente, os pesquisadores reconhecem esses padrões comportamentais a partir de informações prévias sobre os hábitos de cada espécie. Rogério Rosa da Silva, um dos biólogos da equipe, examinou as espécies que viviam em quatro das 26 localidades estudadas e desenvolveu outra abordagem. Nasceu daí uma proposta de classificação dos comportamentos das formigas de solo, que pode ser válida em toda a Mata Atlântica e representar de modo mais preciso o que outros especialistas faziam de modo subjetivo. Mesmo que a composição de espécies varie de uma localidade para outra, H a estrutura do conjunto das comunidades é constante: as formigas sempre se organizam de acordo com os mesmos padrões de comportamento, chamados guildas, que mostram como cada espécie atua no ambiente. Onde existem formigas existem as nove guildas, formadas por cinco categorias básicas, uma delas com quatro subconjuntos. Os grupos básicos são: as predadoras generalistas, que caçam qualquer tipo de presa; as predadoras especializadas, que coletam presas específicas como ovos de outros insetos ou mesmo outras formigas; as cultivadoras de fungos, que levam para o ninho folhas, pedaços de plantas e carcaças de outros insetos, que são usa50 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

dos para alimentar a colônia de fungos que cresce no fundo do ninho e fornece açúcar e proteínas para as formigas; e, por fim, as generalistas, que coletam seiva de plantas e pequenos animais, dos quais as formigas se alimentam. As predadoras generalistas é que são agrupadas em quatro conjuntos: as que coletam apenas o que está sobre o solo, chamadas epigéicas; as que visitam também as camadas superficiais do solo, ou hipogéicas, e as espécies com operárias relativamente grandes e as relativamente pequenas, distinguindo-se, neste caso, pelo tamanho da presa que coletam. Também existem, mas não foram coletadas, seis outras guildas: duas de espécies nômades, que se deslocam sob o solo, três de arborícolas e as exclusivamente subterrâneas, que vivem em ninhos fixos. Competição - "Essa classificação permite uma análise mais fina da estrutura das comunidades de formigas", diz o biólogo Rogério Silva, do Museu de Zoologia da USR Cada lugar comporta apenas um número limitado de espécies em cada categoria de comportamento ou guilda: em uma região em que podem viver apenas quatro ou cinco espécies de formigas predadoras jamais se encontrarão 20 espécies predadoras.

"Esse limite deriva de competição entre espécies, já que formigas predadoras grandes disputam apenas com outras predadoras grandes um número finito de presas", diz Brandão. "Guildas, nesse caso, representam os cenários da competição." Como se demonstrou que a fauna de formigas da Mata Atlântica deve ser composta sempre das mesmas 15 guildas, pode-se agora avaliar com mais precisão o estado de conservação de uma mata, algo que era feito apenas por meio de listagens comparativas de nomes de espécies. A regularidade com que se encontram esses padrões de comportamento leva a concluir que as alterações impostas pelas atividades humanas, como o desmatamento de um trecho da floresta, pode causar desequilíbrios entre esses grupos e a conseqüente superpopulação de alguns deles, com prejuízos para as próprias comunidades e para os animais e plantas que dependem delas para sobreviver. "Elas mantêm tantas relações mutualísticas que é possível concluir que se em um lugar há mais formigas também existem mais de outras espécies", diz Brandão. No Cerrado, 70% das plantas apresentam glândulas produtoras de néctar, os chamados nectários, que atraem as formigas. Ao coletar o néctar, as for-


migas protegem as plantas, evitando que outros insetos venham se alimentar da própria planta. Elas também controlam a população de outros insetos e de outros pequenos invertebrados, já que muitas espécies são predadoras, enquanto outras dispersam sementes. As relações das formigas com as plantas podem ser positivas, quando eliminam animais herbívoros, em troca de néctar, ou negativas, quando implantam colônias de insetos capazes de obter seiva, cujo excesso elas coletam, em troca da proteção a esses insetos, como cochonilhas, pulgões e outros parentes de cigarras.

cretaria de Planejamento e Meio Ambiente do Estado de Tocantins pretende utilizar os dados de um levantamento sobre a diversidade de formigas no estado para selecionar áreas prioritárias para conservação do Cerrado. No ano passado, no município de Craolândia, em Tocantins, Rogério Silva encontrou um gênero novo de formiga, ainda sem nome oficial. Do levantamento sobre as formigas da Mata Atlântica participaram também pesquisadores do Instituto Biológico de Ribeirão Preto, Universidade de

Indicadores - O primeiro estudo a mostrar que as formigas serviriam como um indicador da diversidade de outras espécies animais foi feito por pesquisadores ingleses e norte-americanos, por meio da comparação de oito grupos de animais na reserva florestal de Mbalmayo, em Camarões, na África, e publicado em 1998 na Nature. Nasceram daí outros estudos que podem ajudar a nortear a escolha de áreas a serem preservadas e dimensionar o tamanho mínimo de novas áreas de vegetação nativa a serem preservadas. Essa possibilidade já está sendo posta em prática. Segundo Brandão, a Se-

Riqueza e diversidade de Hymenoptera e Isoptera ao longo de um gradiente latitudinal na Mata Atlântica MODALIDADE

Projeto Temático vinculado ao Programa Biota-FAPESP COORDENADOR CARLOS ROBERTO FERREIRA BRANDãO

Museu de Zoologia da USP INVESTIMENTO

R$ 925.901,82 (FAPESP) R$ 30.000,00 (CNPq)

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Mogi das Cruzes, Universidade Estadual de Santa Cruz e da Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira, em Ilhéus (BA), e as universidades federais de São Carlos (SP), Rural do Rio de Janeiro (RJ), Viçosa (MG), Espírito Santo, Paraíba e Pernambuco. Em conjunto, ajudaram também a mudar algumas idéias bem arraigadas. Há quatro décadas se acreditava que o número de espécies de animais e de plantas variava segundo a latitude: quanto mais próximo do equador, maior seria a diversidade biológica. Não foi o que se viu. A maior diversidade de espécies foi encontrada em trechos de Mata Atlântica do norte do Rio de Janeiro até o sul do Espírito Santo, com cerca de 10% mais espécies do que localidades mais ao norte, que, acreditava-se, deveriam abrigar uma diversidade maior. Nessa faixa entre o Rio e o Espírito Santo, relata Brandão, foram coletadas até 140 espécies - apenas das que vivem sobre o solo, em uma área de 1 quilômetro quadrado. Em paralelo à demonstração da diversidade de espécies da Mata Atlântica e da importância desses insetos no apoio à definição de estratégias de preservação ambiental, veio à tona mais uma característica peculiar desses insetos de hábitos tão complexos. Em um artigo publicado em janeiro na Nature, uma equipe coordenada por Nigel Franks e Tom Richardson, da Universidade de Bristol, na Inglaterra, mostrou que as formigas são capazes de ensinar a outras da colônia como buscar alimento. Talvez seja a primeira demonstração formal de ensino nos animais, uma capacidade até então atribuída somente aos seres humanos. • PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 51


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CIÊNCIA FÍSICA

Choque de partículas Experimentos em acelerador da USP revelam comportamento de núcleos exóticos

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aíram os primeiros resultados científicos originais dos experimentos feitos em São Paulo com uma máquina que está revelando um pou^^ co mais do comportamento de wA ■ partículas atômicas chamadas núv| W cleos exóticos, dotados de prótons ou nêutrons a mais que os núcleos estáveis dos mesmos elementos químicos. No equipamento conhecido como Ribras, sigla em inglês de Feixes de íons Radioativos, instalado há dois anos no Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), núcleos exóticos do elemento químico hélio - o hélio 6 - colidiram com um alvo fixo, formado por uma película de alumínio puro. Os físicos verificaram que a probabilidade de esse

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núcleo exótico de hélio quebrar-se, após colidir com núcleos de alumínio, é somente de 10% a 20% maior que a de outras partículas que não apresentam uma nuvem pouco densa formada por dois nêutrons que giram ao redor do centro - o halo, típico do hélio 6. Dessas colisões, que duram menos de um bilionésimo de segundo, surgem informações que ajudam a entender mais profundamente as reações que originaram os elementos químicos há cerca de 14 bilhões de anos, na formação do Universo, e as que ainda hoje ocorrem no interior de estrelas como o Sol, das quais resultam luz e calor para a Terra. Pode-se também conhecer melhor os limites das forças que agem entre as partículas elementares da matéria. Grandalhões - Algumas espécies de núcleos exóticos são muito maiores que os núcleos com o mesmo número de partículas. É o caso do hélio 6, formado por dois prótons (partículas com carga elétrica positiva) e quatro nêutrons (sem carga elétrica) - dois nêutrons a mais que o hélio 4. São esses dois nêutrons extras que formam o halo, uma espécie de anel com um diâmetro igual ao do núcleo do chumbo 208, com 82 prótons e 126 nêutrons. Nos últimos anos, em aceleradores de partículas da França, da Bélgica ou dos Estados Unidos, os físicos estudam como os nêutrons do halo podem influenciar a colisão com outros núcleos. Nesses experimentos, o hélio 6 colide com núcleos dotados de uma massa

muito maior que a do alumínio 27, como o urânio 238 e o chumbo 208. Nesses casos, segundo Alinka LépineSzily, pesquisadora do Instituto de Física da USP, o intenso campo elétrico dos núcleos mais pesados repele o hélio 6, já que os dois núcleos apresentam carga positiva, e o hélio 6 se desfaz antes mesmo da colisão nuclear. Em 2001 e 2002, Alinka integrou a equipe que preparou e analisou alguns desses experimentos, realizados no acelerador do Centro de Pesquisa de Cíclotron em Louvain-la-Neuve, na Bélgica. Esses trabalhos mostraram que os núcleos exóticos, apesar de abrigarem partículas extras e se quebrarem facilmente durante a colisão, fundem-se com outros núcleos do mesmo modo que os núcleos normais. Detalhada em um artigo publicado em outubro de 2004 na revista Nature, essa conclusão contrariou não só a intuição mas também os modelos teóricos, segundo os quais os núcleos exóticos seriam doadores naturais de prótons ou nêutrons. De volta ao Brasil, Alinka planejou outro tipo de experimento com os outros dois pesquisadores do Ribras, Rubens Lichtenthaler Filho e Valdir Guimarães, e com um físico nuclear experimental, Paulo Silveira Gomes, da Universidade Federal Fluminense (UFF). Escolhendo como alvo para o hélio 6 um núcleo atômico bem mais leve, o alumínio 27, cujo núcleo é formado por 13 prótons e 14 nêutrons, conseguiram reduzir a barreira coulombiana, definida como potencial elé-

trico repulsivo entre os núcleos em colisão, que faz os núcleos se quebrarem antes da colisão nuclear. "Esses foram os primeiros experimentos de colisões de núcleos exóticos com alvos leves em baixas energias, próximas da barreira coulombiana", diz Alinka. "Queríamos descobrir qual a probabilidade de o hélio 6 se quebrar ao colidir com um alvo com um campo eletromagnético bem mais tênue." Era uma forma de fazer o núcleo exótico chegar intacto perto do alvo a ponto de ser atraído por uma das forças elementares, a interação nuclear forte, que mantém as partículas próximas entre si. Durante uma semana, em dezembro de 2004, os físicos da USP, em colaboração com o grupo de Gomes, trabalharam dia e noite nesses experimentos. Criavam feixes de íons (partículas eletricamente carregadas) no oitavo andar da torre que abriga o acelerador de partículas da USP, o Pelletron, inaugurado em 1972. Os feixes são acelerados, descem à superfície e são desviados para vários equipamentos - um deles é o Ribras, com 7 metros de comprimento. De cada um milhão de núcleos de hélio 6, só aproximadamente um núcleo seguia exatamente em direção do alvo, vencia a barreira coulombiana e colidia com o núcleo de alumínio. Em conseqüência do choque, poderia se fragmentar, às vezes perdendo os dois nêutrons mais afastados do coração do núcleo, que poderiam - ou não - ser incorporados pelo alvo. Outra possibilidade seria que, após a colisão, se desPESQUISAFAPESP120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 53


viasse como se nada tivesse acontecido, como uma bola de bilhar batendo em outra.

o

s físicos verificaram então que a probabilidade de o hélio 6 quebrar-se é maior que a de outras partículas normais, cujo comportamento já havia sido caracterizado por meio de experimentos feitos por outros grupos de pesquisa nos últimos anos. Esses resultados serão anunciados em março em um congresso internacional sobre fusão nuclear e constituem a matériaprima da tese de doutoramento de uma das alunas de Alinka, Elisangela Benjamin, apresentada no final de janeiro.

Compensação - Foi o físico teórico Mahir Saleh Hussein, também do Instituto de Física da USP, quem concluiu que o hélio 6, por causa dos dois nêutrons do halo, que não se quebra tão facilmente, apresenta uma chance de fragmentar-se de 10% a 20% maior que os núcleos normais. Porém, os núcleos de hélio 6 também se preservam porque são grandalhões. Fragilidade e gigantismo atuam inversamente, uma característica compensando a outra, por causa do Princípio de Heisenberg, uma das leis básicas da mecânica quântica, a área da física que procura explicar o comportamento muitas vezes aparentemente sem regras das partícu54 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

las atômicas. "Por causa do Princípio de Heisenberg", diz Hussein, "partículas fracamente ligadas ocupam áreas maiores no espaço". Segundo ele, esse mecanismo de compensação ajuda a preservar a integridade do núcleo. "Seria ótimo se houvesse aumento na fusão quando usamos núcleos exóticos", diz Hussein. Se a fusão aumentasse, os núcleos exóticos poderiam ser vistos como doadores de nêutrons e prótons - algo que facilitaria não só a pesquisa como também as aplicações da física para diagnósticos e tratamentos médicos. Em um artigo de 111 páginas publicado neste mês na revista Physics Reports, Hussein e outros dois físicos teóricos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Felipe Canto e Raul Donangelo, além de Gomes, da UFF, apresentam a teoria que ajuda a O PROJETO Estudo de núcleos exóticos com feixes radioativos produzidos no Laboratório Pelletron-Linac do IF/USP MODALIDADE

Projeto Temático - Programa Núcleos de Excelência (Pronex) COORDENADORA ALINKA LéPINE-SZILY

- IF/USP

INVESTIMENTO

R$ 585.000,00 (FAPESP e CNPq)

explicar resultados experimentais obtidos nos aceleradores de partículas da Bélgica, da França, dos Estados Unidos, do Japão, da Itália e do Brasil. Nesses equipamentos procura-se reproduzir as reações que originaram o Universo e os próprios seres humanos. Aproximadamente 80% de nosso corpo é constituído de água, formada por dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio - todos bastante antigos. O núcleo do hidrogênio, com apenas um próton, formou-se minutos depois do Big Bang, a explosão que teria originado o Universo, há 14 bilhões de anos. Já os átomos de hidrogênio - um elétron girando ao redor de um próton - se constituíram 400 mil anos depois. E só um bilhão de anos mais tarde, à medida que o Universo esfriava e se expandia, começaram a se formar - no interior das estrelas, como resultado da fusão de elementos químicos mais leves - o oxigênio, que constitui 61% da massa do organismo humano, o carbono, que responde por 23%, e todos os outros elementos químicos mais pesados, como nitrogênio, cálcio, fósforo e ferro. Inicialmente soltos no espaço, aos poucos se uniram em nuvens que se adensaram tanto a ponto de originarem planetas como a Terra e suas formas de vida. Ainda hoje se formam hidrogênio e hélio no Sol, oxigênio e carbono em estrelas maiores, do tipo nova, e elementos químicos ainda mais pesados, como sódio, urânio e chumbo, nas explosões de supernovas, com uma massa milhares de vezes maior que a do Sol. Equi-


pamentos como o Ribras funcionam como se fossem uma estrela do tipo nova, ao formar núcleos ricos em prótons e nêutrons de médio porte. Além do hélio 6, os físicos da USP já produziram núcleos de lítio 8, com um nêutron a mais que o lítio normal, de berílio 7, com dois nêutrons a menos, e de boro 8, com dois neutrôns a menos que o boro normal. Jogando-os contra átomos estáveis e mais imponentes - como o vanádio 51, reproduzindo experimentos já feitos por outros grupos, e agora com o alumínio 27, como não havia sido feito -, descobrem como os núcleos exóticos podem se quebrar. Outros experimentos deste tipo talvez demorem um pouco. Ainda que seja novo e se equipare a outros equipamentos avançados no exterior, o Ribras depende do Pelletron, um acelerador de partículas que necessita de constante manutenção. E já não é muito fácil encontrar peças de reposição, que dependem de importação, relata Valdir Guimarães enquanto mostra a sala de comando do acelerador, formada por um misto de equipamentos típicos dos anos 1970, ao lado de outros, mais recentes. Logo depois dos experimentos com o hélio 6 o Ribras parou de funcionar porque uma peça do Pelletron quebrou. Os físicos acreditam que a peça será trocada e o Pelletron e todos os outros equipamentos que ele atende voltarão ao normal ainda no primeiro semestre deste ano. • CARLOS FIORAVANTI PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 55


©CIÊNCIA ASTROFÍSICA

Gênese complexa Dois processos distintos, mas não excludentes, podem dar origem às galáxias elípticas

fom formas arredondadas ou ovaladas que lembram uma bola luminosa, dotadas essencialmente de estrelas velhas e quase desprovidas de gás e poeira cósmicos, as galáxias elípticas são as mais antigas de que se tem notícia. As primeiras tomaram corpo provavelmente algumas centenas de milhões de anos após o Big Bang, a explosão primordial que, segundo a teoria mais aceita, criou o Universo 14 bilhões de anos atrás. Mas ainda é pequeno o conhecimento científico sobre os processos que originaram esse tipo de galáxia, menos abundante que as de formato espiral, como a Via Láctea e Andrômeda, ou as irregulares, como as Nuvens de Magalhães. Depois de analisar certas características químicas de uma amostra de 29 galáxias elípticas situadas no chamado Universo local, a uma distância máxima de 300 milhões de anos-luz da Terra, um grupo de astrofísicos brasileiros propôs um complexo quadro para explicar o nascimento das galáxias elípticas. Por essa idéia, que foi exposta num artigo publicado em outubro de 2005 na revista científica Astrophysical Journal Letters, os objetos desse tipo podem se formar de duas maneiras: pela lenta captura de galáxias menores ou de igual 56 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

tamanho, num processo denominado tecnicamente Aglomeração Hierárquica; ou por meio de uma implosão bastante rápida de uma nuvem de gás, num fenômeno conhecido como Colapso Monolítico Dissipativo. Como os mecanismos não são excludentes, há ainda um cenário misto, em que as galáxias elípticas lançam mão das duas situações anteriormente descritas para ganhar os seus contornos. Aliás, essa terceira via pode até ser a predominante. "Nossas observações suportam esse cenário híbrido em que ambos os mecanismos contribuem para a formação de galáxias elípticas", afirma Mareio Maia, do Observatório Nacional, do Rio de Janeiro, um dos astrofísicos envolvidos nos estudos. Se isso for verdade, cada galáxia teria uma história de vida muito particular, de acordo com suas características, como maior ou menor presença de gases e estrelas, ocorrência de fusões com outras galáxias e o ambiente na sua vizinhança. Não haveria uma regra geral regendo o nascimento dessas estruturas celestes. Pode-se dizer que, quando confrontam as duas teorias, os cientistas estão tentando descobrir se as galáxias elípticas se originam de outras galáxias já formadas e de menor tamanho, ou se elas se formam pelo colapso de uma

grande nuvem primordial. A primeira situação é compatível com a hipótese da Aglomeração Hierárquica e a segunda com a do Colapso Monolítico. "Essa divisão de cenários (sobre a formação de galáxias elípticas) é um pouco artificial", diz a brasileira Cristina Chiapinni, do Observatório Astronômico da Universidade de Genebra, na Suíça, outra autora do estudo. "Acredito que a resposta esteja entre os dois extremos e é isso que aparentemente estamos vendo nos dados que publicamos." Metal nas galáxias - No artigo científico, os pesquisadores mediram pela técnica de espectroscopia óptica a quantidade de um elemento químico, o magnésio, ao longo do eixo maior de quase 30 galáxias elípticas. Optaram por mensurar esse parâmetro a fim de testar as idéias postuladas por cada um


Galáxias elípticas: formação a partir do colapso de nuvem gasosa ou da fusão com outras galáxias

dos mecanismos. Segundo a hipótese do Colapso Monolítico, as galáxias elípticas deveriam apresentar maior concentração de metais em sua zona central - que seria povoada por estrelas originadas de material gasoso enriquecido com metais e ejetado por outras estrelas e supernovas - do que em sua periferia. Em termos técnicos, os astrofísicos dizem que, de acordo com esse mecanismo, as galáxias deveriam exibir um gradiente radial de metalicidade. Uma espécie de marca de nascença deixada por seu processo de formação. Esse modelo também advoga a idéia de que a maior parte das estrelas das galáxias elípticas é muito antiga, tendo sido gerada num curto espaço de tempo, de maneira abrupta. Para os defensores do mecanismo da Aglomeração Hierárquica, que também é usado para explicar a origem de

galáxias espirais e irregulares, não deveria existir variação radial da abundância de certos elementos químicos em galáxias elípticas. E o motivo para sua não-ocorrência seria de fácil compreensão: as galáxias desse tipo se originariam da junção de várias galáxias menores e, durante o processo de fusão, as estrelas ricas e as pobres em elementos químicos acabariam se misturando e o tal gradiente radial de metalicidade desapareceria. Nesse caso, o processo de nascimento de uma galáxia elíptica seria mais lento e gradativo, podendo ocorrer acréscimo de matéria em várias fases de sua vida. Feitos os cálculos e as observações, os resultados finais apontaram para um quadro complexo e nuançado: um terço das galáxias estudadas parecia ter sido formado pela fusão de galáxias menores, um terço pelo mecanismo de

Colapso Monolítico e um terço por ambos os processos. "Queremos dobrar o tamanho da nossa amostra de galáxias analisadas para termos mais dados sobre essa questão", afirma Maia. Outros parâmetros que possam dar pistas sobre a origem dessas grandes aglomerações de estrelas devem ser incorporados aos novos estudos. "O tema é bastante interessante, está em efervescência e ainda está em aberto", comenta o astrônomo Ricardo Ogando, que termina sua tese de doutorado sobre o processo de nascimento das galáxias elípticas no Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). "Temos a possibilidade de fazer uma contribuição de impacto e colocar mais algumas peças nesse quebra-cabeça." • MARCOS PIVETTA PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 57


Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet www.scielo.org

A 10a Reunião do Comitê Consultivo SciELO Brasil foi realizada na Bireme/OPAS/OMS, em novembro de 2005, e teve como resultado a aprovação de 11 novos periódicos científicos brasileiros que, em breve, serão disponibilizados no site SciELO Brasil. Segundo Fabiana Montanari, do colegiado SciELO, o índice de periódicos aprovados na 10a reunião (30%) superou os índices das últimas três reuniões do Comitê Consultivo, que atingiram em média 12% de aprovação. Os 11 títulos aprovados são: ■ Ciências Biológicas Jornal Vascular Brasileiro, Pró-Fono: Revista de Atualização Científica e Revista Dental Press de Ortodontia e Ortopedia Facial ■ Ciências Exatas Produção ■ Ciências Humanas Economia Aplicada, Nova Economia, Novos Estudos Cebrap, Revista Brasileira de Educação Especial, Revista de Administração Pública, Revista do Departamento de Psicologia - UFF e Trans/form/ação

■ Saúde

■ Abelhas

Fluxos da gripe do frango Os aspectos epidemiológicos e clínicos da gripe do frango, Influenza A aviaria, além das pandemias causadas por esse tipo de vírus no século 20, estão em discussão no artigo ''Influenza A aviaria (H5N1): a gripe do frango". Os autores, Gabriela Costa e Alessandra Faria, ambas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e Cássio Ibiapina, professor do curso de medicina da Universidade Alfenas (Unifenas), em Belo Horizonte, fizeram uma análise de todos os trabalhos publicados sobre o assunto nos últimos dez anos. Além das buscas nos principais bancos de dados médicos, os pesquisadores realizaram uma pesquisa direta, em que selecionaram 32 artigos originais. Todos repercutiam os surtos recentes de infecção por um subtipo de vírus influenza A aviaria, o H5N1, em criações de aves domésticas na Ásia. A maioria dos casos está associada com a exposição direta a aves infectadas ou superfícies contaminadas com excrementos desses animais. O estudo mostra também que no Brasil, no período do outono e inverno, surtos de vírus sincicial respiratório levam a um aumento na veiculação de notícias na imprensa sobre infecções respiratórias virais. "Essas notícias lançam conceitos errôneos sobre a infecção pelo vírus Influenza A aviaria, conhecida no Brasil como gripe do frango", afirmam os autores. Na Ásia, as recentes epidemias causadas pelo vírus Influenza A aviário demonstraram a capacidade desse agente em causar doença grave em seres humanos, sem nenhuma recombinação ou hospedeiro mamífero intermediário. "Isso nos alerta para o fato de que o próprio homem pode funcionar como um hospedeiro intermediário."

Primeiros enxames Um dos problemas na meliponicultura (cultura de abelhas sem ferrão) é capturar uma colônia na natureza, para iniciar a criação, sem destruir as árvores, ou mesmo as próprias abelhas. O artigo "Captura de enxames de abelhas sem ferrão (Hymenoptera, Apidae, Meliponinae) sem destruição de árvores", de Alexandre Coletto, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), apresenta um método alternativo para a coleta dos invertebrados no campo. O objetivo do autor é contribuir para que os iniciantes em meliponicultura possam obter seus primeiros enxames de uma maneira eficiente e pouco agressiva ao meio ambiente. O pesquisador enfoca em seu trabalho a espécie Melipona illiger, a mais utilizada para a produção de mel e pólen na região amazônica, onde o método foi desenvolvido. "O Amazonas abriga, aproximadamente, 300 espécies de abelhas sem ferrão e tem mostrado um expressivo desenvolvimento da meliponicultura, não só pela quantidade de espécies, mas também pelo grande número de pessoas interessadas em iniciar essa atividade", segundo o estudo. O iniciante nessa atividade pode acabar cometendo pelo menos duas infrações: a derrubada ilegal de uma árvore, eliminando dessa forma a fonte de alimento e de nidificação (formação de ninhos) de várias espécies animais, e a remoção de animais da fauna silvestre do seu hábitat. O método alternativo consiste em abrir uma janela na árvore, coletar o material e fechar a abertura utilizando a resina vegetal conhecida como breu. ACTA AMAZôNICA JUL./SET. 2005

- VOL. 35 ■ N° 3 - MANAUS -

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S004459672005000300012&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Odontologia

JORNAL BRASILEIRO DE PNEUMOLOCIA N° 5 - SãO PAULO - SET./OUT. 2005

- VOL. 31

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S180637132005000500012&lng=pt&nrm=iso&tíng=pt

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Saúde bucal dos idosos A saúde bucal do idoso brasileiro encontrase em situação precária. Ela reflete a ineficácia


histórica presente nos serviços públicos de atenção odontológica, limitados a extrações em série e serviços de urgência, baseados no modelo curativista. Essa é a principal conclusão do artigo "A saúde bucal do idoso brasileiro: revisão sistemática sobre o quadro epidemiológico e acesso aos serviços de saúde bucal", de Rafael Moreira, Lucélia Nico, Tânia Ruiz, pesquisadores da Faculdade de Medicina de Botucatu, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e Nike Emy Tomita, da Faculdade de Odontologia de Bauru, da Universidade de São Paulo (USP). Por meio de buscas em bases de dados, o estudo realizou uma revisão sistemática da literatura científica, no período de 1986 a 2004, sobre os problemas bucais mais prevalentes entre os idosos brasileiros. Segundo o artigo, o envelhecimento populacional alterou significativamente a estrutura da pirâmide etária brasileira. "As transições demográfica e epidemiológica produzem como cenário uma população com elevado número de indivíduos idosos. Em países em desenvolvimento, como o Brasil, essas transformações nem sempre vêm acompanhadas de modificações no atendimento às necessidades de saúde desse grupo populacional", apontam os pesquisadores. Quanto às barreiras de acesso aos serviços odontológicos, porém, o estudo aponta a baixa escolaridade, a baixa renda e a escassa oferta de serviços públicos de atenção à saúde bucal como os principais problemas que precisam ser atacados. Apesar dos avanços do Sistema Único de Saúde, principalmente com a implantação do Programa Saúde da Família, dizem os autores, o acesso à atenção odontológica, sobretudo para grupos como dos idosos, necessita ser ampliado. CADERNOS DE SAúDE PúBLICA JANEIRO - NOV./DEZ. 2005

- VOL. 21 ■ N° 6 - Rio DE

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102311X2005000600013&(nq=pt&nrm=iso&t!ng=pt

■ Lingüística

Anchieta, o gramático Nos séculos 16 e 17 jesuítas escreveram gramáticas sobre duas das línguas indígenas faladas no Brasil colonial. José de Anchieta e Luís Figueira descreveram o tupi antigo em 1595 e 1621, respectivamente. Luís Vincencio Mamiani, a língua indígena quiriri em 1699. "Essa produção teve como objetivo facilitar, por meio da aprendizagem das línguas, o contato entre jesuítas e indígenas, tendo em vista a colonização e a catequização", aponta o artigo "Descrição de línguas indígenas em gramáticas missionárias do Brasil colonial", de Ronaldo de Oliveira Batista, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo. O objetivo da pesquisa é analisar alguns dos métodos e práticas de descrição das línguas pelos jesuítas. "O que houve de comum nesses trabalhos foi também o que a gramaticografia da época renascentista utilizou com mais destaque. Um dos exemplos é o método que privilegiava a busca de equivalências

entre a língua em estudo e o latim, que contava com grande prestígio na época", diz Batista no artigo. "Encontramos nas artes dos jesuítas a indicação de que uma redução da língua a regras deveria ser breve e econômica. O que de fato contribui para a classificação das obras jesuíticas como artes de gramática", diz o autor. Anchieta propôs algumas soluções originais em relação a termos utilizados e a propostas de descrição de aspectos particulares do tupi antigo. A gramática anchietana, conclui o trabalho, auxiliou muito numa reconstrução do tupi antigo no âmbito de pesquisas de lingüística histórica. Ao mesmo tempo, essa própria historiografia classificou a gramática de Anchieta como complicada para uma primeira aprendizagem da língua. DELTA

- VOL. 21 - N° 1 - SãO PAULO - JAN./JUN. 2005

www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010244502005000100005&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

■ Medicina

Processos cicatrizantes A capacidade auto-regenerativa é um fenômeno universal nos organismos vivos. Nos organismos unicelulares, ela está restrita à presença de enzimas responsáveis pela recuperação de elementos estruturais e de moléculas de alta complexidade. Em organismos superiores, também ocorre o reparo por duas formas: pela regeneração com a recomposição da atividade funcional ou pela cicatrização com restabelecimento da homeostasia do tecido com perda da sua atividade funcional pela formação de cicatriz. Com o artigo "Mecanismos envolvidos na cicatrização: uma revisão", os pesquisadores Carlos Balbino, Leonardo Pereira e Rui Curi, todos do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP), pretendem oferecer subsídios conceituais para que uma conduta terapêutica eficiente possa ser tomada quando necessário. O processo de cicatrização, descreve o texto, ocorre fundamentalmente nas fases de inflamação, formação de tecido de granulação, deposição de matriz extracelular e remodelação. O estudo discute os eventos celulares de cada uma dessas fases, com especial ênfase à participação dos fatores de crescimento. REVISTA BRASILEIRA DE CIêNCIAS FARMACêUTICAS

- VOL.

41 - N° 1 - SãO PAULO - IAN./MAR. 2005 www. scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S151693322005000100004&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

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O TECNOLOGIA

Satélite inicia transmissão 103 2 O*

■ Sementes protegidas A ilha norueguesa de Svalbard, no oceano Ártico, poderá ter papel-chave para proteger a produção global de alimentos em caso de guerra ou desastres naturais. O governo norueguês vai cavar uma caverna artificial dentro de uma montanha gelada, onde serão colocados equipamentos de ventilação para manter a temperatura entre 10 e 20 graus negativos. Sementes de grãos de todo o mundo serão coletadas e estocadas lá. Até 2007, as instalações estarão prontas para garantir a reposição mesmo que haja perda de material estocado em outros bancos. As condições de temperatura abaixo de zero em Svalbard, com o subsolo permanentemente congelado, garantem o armazenamento das sementes. Mesmo se o equipamento de ventilação falhasse, levaria meses para que a temperatura interna chegasse a 3,5 graus negativos. •

Os primeiros sinais do satélite Giove-A, fase inicial do futuro sistema europeu de navegação Galileu, começaram a ser transmitidos em 12 de janeiro. Os sinais foram recebidos e analisados pelos receptores do sistema, na Grã-Bretanha e na Bélgica. O satélite foi colocado em órbita no dia 28 de dezembro do ano passado, a uma altitude de 23.260 quilômetros, depois de ter sido lançado por um foguete Sovuz da base de Baikonur, no Cazaquistão. O satélite Giove-A, palavra que corres ponde às iniciais, em inglês, da expressão "elemento de validação em órbita de Galileu", vai testar novas tecnologias, como relógios atômicos a bordo, geradores de sinais e receptores de usuários. O segundo satélite, Giove-B, tem previsão de lançamento para este ano.

■ Parasita resistente Uma má notícia no combate à malária remete à necessidade de novos medicamentos para essa doença tropical. Uma equipe de cientistas da França, do Senegal e do Camboja descobriu que o proto-

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Giove-A é o primeiro do sistema europeu Galileu

O programa Galileu, orçado em € 3,6 bilhões, deve entrar em serviço em 2008 e prevê a utilização de 30 satélites para colocar fim à dependência do GPS, o sistema global de posicionamento via satélite, oferecendo uma alternativa comercial a esse sistema controlado pelos militares norte-ameri-

zoário causador da doença, o plasmódio, está se tornando resistente a medicamentos derivados da artemisinina, princípio ativo extraído da planta artemísia {veja Pesquisa FAPESP n° 118). Essas drogas são uma das mais eficazes no combate ao mal. A resistência foi detectada em testes em amos-

canos e também ao Glonass russo, de uso exclusivo militar. O programa resulta de uma parceria entre a Agência Espacial Européia (ESA) e a Comissão Européia, que atualmente negocia com diversos países que desejam participar do Galileu, como Brasil, Austrália, índia, México e Marrocos. •

tras de sangue de 530 pacientes na Guiana Francesa, no Senegal e no Camboja. Só não foram encontrados parasitas resistentes à artemísia no sangue dos cambojanos. O estudo, publicado na revista médica The Lancet, em dezembro, sugere que o uso descontrolado da droga pode ter criado


da vacina no combate às formas mais graves de diarréia causadas pelo rotavírus. Outra vacina que também mostrou prevenir quase todos os casos severos da doença, chamada Rotateq e fabricada pela Merck, tem lançamento previsto para fevereiro na Europa. Os resultados das pesquisas foram publicados no início de janeiro em dois trabalhos científicos no New England Journal of Medicine. •

Artemísia antimalária.

condições favoráveis para o surgimento da resistência. O medicamento passou a ser empregado depois que o parasita desenvolveu resistência à cloroquina, uma das drogas mais usadas para tratar a doença. "Quarenta anos separaram a primeira descrição de resistência à cloroquina. Ainda há tempo para evitar que a resistência se alastre se usarmos os compostos de artemisinina cuidadosamente", afirmou Ronan Jambou, coordenador da pesquisa no Instituto Pasteur em Dacar, no Senegal, à revista eletrônica SciDev.Net. •

■ Vacinas contra o rotavírus Uma vacina contra o rotavírus, doença que causa diarréia e vômitos e responde por cerca de 4 mil mortes por ano no Brasil, vai fazer parte do calendário de vacinação do Ministério da Saúde a partir de março. Chamada de Rotarix, da empresa GlaxoSmithKline, foi lançada no final do ano passado no México, após testes clínicos conduzidos com crianças em países da América Latina que mostraram a eficácia

■ Ovos sem salmonela Novo sistema de pasteurização de ovos reduz substancialmente o risco de contaminação pela bactéria salmonela (Salmonella enteritidis), transmitida por frangos infectados. A gema e a clara de ovos crus ou semicozidos podem conter o patógeno que leva à intoxicação. O sistema, que destrói os microorganismos patogênicos sem modificar a composição dos ovos, tem como base a tecnologia de microondas e ar quente. O projeto foi liderado por um grupo de pesquisadores do Conselho de Pesquisa Científica e Industrial (CSIR) da África do Sul e teve a participação da Universidade de Pretória e das empresas Delphius Technologies, especializada no desenvolvimento de fornos de microondas industriais, e Eggbert Eggs, a segunda maior produtora de ovos no país. "A tarefa mais difícil foi a otimização da curva do aquecimento e a identificação do ponto quente", disse Nell Wiid, diretor da Eggbert Eggs. "Ovos variam de forma, massa, posição das gemas e perfil de aquecimento, e os microorganismos são sensíveis a muitas dessas variáveis." •

Um simples toque de botão Sete botões coloridos acionados a um simples toque compõem o mouse RCT-Barban, desenvolvido para ser utilizado por pessoas com dificuldades motoras, que não conseguem movimentar o mouse convencional. A idéia de construir um mouse diferenciado surgiu como complementação a um trabalho desenvolvido pela empresa RCT Computadores na Escola, da cidade de Campinas, em São Paulo, que desde 1995 atua no mercado educacional com softwares que podem ser utilizados em escolas de educação especial e clínicas de psicologia, fonoaudiologia e terapia ocupacional. À frente da empresa encontra-se a física Maria Cecília Gandra, que, após concluir o mestrado em física na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), decidiu ampliar os seus conhecimentos e começou a fazer cursos de especialização na área de educação. Esse novo caminho a conduziu a um curso em educação especial na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (Puccamp) e a um trabalho como voluntária com pessoas com síndrome de Down. A convivência com os portadores da síndrome fez com que

constatasse a falta de softwares no mercado para atender a essas crianças com necessidades especiais. Para poder desenvolver esses programas, Cecília abriu a empresa RCT em parceria com o engenheiro de computação Ronaldo Barbosa, também formado pela Unicamp. "Nossos softwares encontram-se em mais de 500 instituições de ensino do Brasil, além de escolas de educação especial, clínicas de psicologia, fonoaudiologia e terapia ocupacional", diz Cecília. Apesar de bastante utilizados por portadores de necessidades especiais, muitos usuários com dificuldades motoras não conseguiam utilizar o mouse convencional e, com isso, ter dificuldade no uso do computador. Essa dificuldade motivou os sócios da empresa a criar um mouse de fácil utilização que tivesse todas as funções do convencional. Para o desenvolvimento do mouse RCT foi convidado o projetista eletrônico Edson Barban. O dispositivo, com 50 centímetros de largura e 10 de altura, funciona como um interruptor, a um simples toque de um único dedo do pé ou da mão, e possui as funções de movimento na tela, clicar, arrastar, entre outras. •

Clicar, arrastar, colar: como o mouse convencional PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 61


Linha de Produção

Brasi.

Beleza aquática ameaçada Em dezembro de 2005, pesquisadores brasileiros e norte-americanos acompanharam na região de Barcelos, no Amazonas, o processo de coleta nos rios, embarque e entrega de peixes ornamentais em Miami, nos Estados Unidos. Nesse trajeto, apenas 35% dos peixes, entre os quais o acará-bandeira (Pterophyllum scalare), o acará-disco (Symphisodon ssp.), o apaiari (Astronotus ocellatus), também conhecido como oscar, e o néon ou cardinal-tetra (Paracheirodon axelrodi), chegam ao seu destino. "Como há excesso de pesca, o problema é a diminuição dos esto-

■ Resíduos aproveitados Violões, cavaquinhos, bandejas e caixinhas decorativas serão alguns dos produtos fabricados com resíduos de madeira de espécies amazônicas de procedência legal pela empresa Puro Amazonas. Para criar os produtos, a empresa vai utilizar os conhecimentos em processamento de madeira desenvolvidos pelo Instituto de

Acará-bandeira-branco

Apaiari ou oscar

Acará-bandeira-preto

Néon ou cardinal

Pesquisas da Amazônia (Inpa), com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam), que investiu cerca de R$ 137 mil no projeto Artefatos com madeiras da Amazônia para comercialização. Além de acompanhar o processo de venda dos produtos, a Fapeam, em uma segunda etapa, quer repassar a tecnologia de produção das peças para pessoas da comunidade. •

62 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

■ Produção nacional de medicamentos Dois importantes medicamentos, a eritropoetina alfa humana recombinante (EPO), que trata a anemia associada à insuficiência real crônica, Aids ou quimioterapia, e o interferon alfa humano recombinante (INF), que auxilia no tratamento de hepatites virais e alguns tipos de tumor, começarão a ser pro-

quês naturais", diz Elisabeth Criscuolo Urbinati, pesquisadora do Centro de Aquicultura (Caunesp), da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Durante a expedição, foram testadas técnicas para diminuir o estresse causado pela captura. Outro objetivo do Caunesp é o desenvolvimento de tecnologias de criação de peixes em cativeiro, com a participação das populações ribeirinhas, em parceria com o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e aporte de US$ 20 mil da National Geographic, dos Estados Unidos. •

duzidos ainda neste semestre pelo Instituto de Imunobiológicos de Manguinhos (Biomanguinhos) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), para serem fornecidos ao Sistema Único de Saúde (SUS). A transferência de tecnologia entre Biomanguinhos e duas instituições cubanas, o Centro de Imunologia Molecular e o Centro de Engenharia Genética e Biotecnologia, começou em agosto de 2004. •


Patentes Inovações financiadas pelo Núcleo de Patenteamento e Licenciamento de Tecnologia (Nuplitec) da FAPESP. Contato: nuplitec@fapesp.br

Proteína essencial

■ Robô trabalha no fundo do mar O protótipo de um robô submarino, que serve tanto para recuperar equipamentos em campos petrolíferos no fundo do mar como para coletar amostras em ecossistemas oceânicos, está em fase de testes na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP). O projeto do veículo autônomo submarino (SRS), coordenado pelo professor Júlio Cezar Adamowski, do Departamento de Engenharia Mecatrônica e de Sistemas Mecânicos da Poli, teve início em 2000, com apoio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). "E um trabalho

multidisciplinar que envolve hidrodinâmica, eletrônica embarcada, sensores, propulsores, além do estudo dos componentes que devem suportar a água do mar e as altas pressões do fundo do oceano", diz Adamowski. A recuperação de sinalizadores acústicos, chamados de transponders, é uma das partes do projeto, já que o veículo pode ser adaptado para diversas outras tarefas. Esses sinalizadores são usados no posicionamento de navios para perfuração de poços de petróleo. •

■ Controle biológico Um bioinseticida fabricado com vírus mostrou, em testes realizados pela Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, de Brasília, e pela Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri), ser eficaz para controlar a lagarta mandarová (Erinnyis ello elló), a principal praga que ataca as folhas da mandioca. "O vírus patogênico à mandarová ocorre em condições naturais no campo", diz a pesquisadora Marlinda Lobo de Souza, da Embrapa. Ele pertence a um grupo de vírus de insetos chamado de baculovírus, que mostrou ser viável para o controle de pragas agrícolas. •

Uma proteína essencial para a célula humana, a endooligopeptidase A ou endo A, foi descoberta no início da década de 1970 pelo professor Antônio Carlos Martins de Camargo, coordenador do Centro de Toxinologia Aplicada (CAT), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) da FAPESP, no Instituto Butantan. Mas a completa caracterização dessa proteína, que está envolvida em todo o transporte intracelular do sistema nervoso central, com o rearranjo de neurônios e a formação de novas conexões, somente foi feita no final da década de 1990, quando os avanços da biologia molecular permitiram a clonagem e a identificação do gene responsável pela enzima que produzia a endo A no cérebro. Essa proteína tem um papel fundamental para a formação

de um complexo protéico responsável pelo deslocamento do núcleo dos novos neurônios que irão formar o córtex cerebral. Quando há qualquer perturbação na formação desse complexo durante a gestação de uma criança ocorre uma doença chamada lissencefalia ou síndrome de Miller-Dieker, que provoca a morte do feto ou gera um bebê com gravíssimo retardo mental. Estudos apontam que a proteína também pode estar relacionada à esquizofrenia. A endo A é uma possível candidata a medicamentos para atuar em processos do sistema nervoso central. Título: Solicitação da patente da endooligopeptidase A Inventor: Antônio Carlos Martins de Camargo e Mirian Hayashi Titularidade: FAPESP/Instituto Butantan

PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 63


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Atelinha vai ficar mais sofisticada. Ela vai ganhar um sistema de transmissão digital que está em processo de formatação no Brasil e deverá entrar nos lares brasileiros nos próximos meses. A TV digital chega com promessas de uma imagem com melhor qualidade, interatividade e maior possibilidade de difusão de conhecimento. Para formatar o Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD) dentro das especificidades culturais, sociais e tecnológicas do país, foi montada ao longo dos últimos três anos uma das mais expressivas redes de pesquisa tecnológica, talvez só superada pela dos projetos genoma. Estiveram reunidos, entre 2004 e 2005,1.200 pesquisadores brasileiros representando 75 instituições, a maioria de universidades, além de institutos de pesquisa e de empresas, que propuseram ao Ministério das Comunicações (Minicom) uma série de alternativas técnicas para a implantação do sistema, desde a escolha de hardwares e softwares, análise de padrões estrangeiros e até propostas de veiculação de conteúdo educativo e aplicações operacionais e comerciais. Neste mês de fevereiro o governo federal deve anunciar as principais diretrizes do SBTVD e quais serão os subsistemas adotados em relação a um dos três padrões de TV digital existentes no mundo: o norte-americano Advanced Television Systems Commitee (ATSC), adotado pelos Estados Unidos, Canadá, México e Coréia do Sul; o europeu, Digital Video Broadcasting (DVB), utilizado em vários países desse continente e na Austrália, em Cingapura e em Taiwan; e o japonês, Integrated System Digital Broadcasting (ISDB), usado apenas no Japão. Espera-se que a decisão do sistema brasileiro leve em conta os

Tela de testes da TV digital


relatórios de recomendação dos 20 grupos de pesquisa que, além de analisar e testar os outros padrões, desenvolveram soluções inovadoras para a futura TV digital brasileira. Chamados de consórcios, esses grupos receberam financiamento da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) com recursos do Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações (Funttel). "O total foi de R$ 38,7 milhões, repassados para a Finep pelo Minicom", diz André de Castro Pereira Nunes, coordenador da chamada pública da TV digital da Finep. Os grupos enviaram os relatórios com as realizações no final de dezembro à Fundação Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunica66 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP120

ções (CPqD), coordenadora das pesquisas para o Minicom. As decisões, que não devem levar em conta todas as propostas porque alguns grupos apresentaram alternativas diferentes para determinados aspectos técnicos da TV digital, serão definidas não só pelo Minicom mas também pelos ministérios da Ciência e Tecnologia, Casa Civil, Indústria e Comércio, Cultura, Educação, Planejamento, Relações Exteriores e Fazenda, que formam o Comitê de Desenvolvimento, com aprovação final do presidente da República. A análise para a decisão leva em conta uma série de fatores para que a nova televisão fique adequada ao cenário brasileiro, onde cerca de 90% da popu-

lação vê TV pelo sistema aberto, gratuito e captado pelo ar. A principal proposta da TV digital está no parágrafo Io do primeiro artigo do decreto presidencial que institui o SBTVD, em 26 de novembro de 2003: "Promover a inclusão social, a diversidade cultural do país e a língua pátria por meio de acesso à tecnologia digital, visando a democratização da informação". A intenção é dotar essa nova mídia de recursos que qualquer pessoa possa acessar, via controle remoto, além da programação normal das emissoras, possibilitando, inclusive, o acesso à internet via tela de TV. No Brasil são cerca de 60 milhões de aparelhos de TV em mais de 46 milhões de domicílios, dos quais 90% sin-


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tonizam apenas a TV aberta, via ondas eletromagnéticas. As TVs pagas, a cabo ou por miniparabólicas estão em apenas 3 milhões de lares. "O decreto deixa claro que a inclusão digital tem que ser a mais barata possível para atender a população mais pobre, porque não pode ser exclusividade de poucos que podem pagar", diz a jornalista Beth Carmona, atual presidente da TVE, que esteve por seis anos na direção da TV Cultura, em São Paulo. "A TV digital com interatividade é uma modificação de atitude humana", diz André Barbosa Filho, ex-professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, um dos organizadores do livro Mídias digitais e

atual assessor especial para a área de políticas públicas e comunicação da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. "Antes era um telespectador passivo e agora ele passará a participar e a escolher as informações na tela da TV." Outro estudioso dos meios de comunicação, o professor Muniz Sodré, da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e atual presidente da Biblioteca Nacional, diz que a nova tecnologia é uma conquista. "Mas, em termos culturais, estou cético quanto à produção de novos sentidos e difusão de valores éticos. Correse o risco de a convergência com a internet não chegar a todo mundo ou ficar restrita àquilo que os produtores -

ou seja, as emissoras - colocarem à disposição dos telespectadores", diz. Inclusão social - Para o professor Carlos Montez, do Departamento de Automação e Sistemas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a nova TV "é uma oportunidade de levar conhecimento a lugares mais remotos, onde as pessoas não têm acesso a internet, por exemplo". Ele é autor, junto com o jornalista e professor da UFSC Valdecir Becker, do livro TV digital interativa: conceitos, desafios e perspectivas para o Brasil. "A inclusão digital ajuda o indivíduo a alcançar a inclusão social", diz Montez, que participou de um consórcio, coordenado por Jorge CampagPESQUISA FAPESP120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 67


nolo, também da UFSC, que estudou e propôs padrões de usabilidade, que é a forma como a interatividade deverá ser produzida para a TV e como as pessoas vão se adaptar melhor a ela. "É uma mudança tecnológica que tem grande impacto social, cultural e industrial, o que torna a decisão muito difícil porque envolve grandes interesses. Calcula-se que a TV digital no Brasil vai movimentar nos próximos dez anos cerca de US$ 20 bilhões, entre a indústria eletroeletrônica, equipamento das emissoras e produção de conteúdo", diz Barbosa Filho. "Muda também a forma de produção do conteúdo, do cenário, da iluminação e, inclusive, a publicidade, que irá oferecer novas formas de compra via tela da TV", explica Beth Carmona. Assim como num programa de TV ou em canais específicos poderá existir conteúdo sobre saúde, por exemplo, a TV Digital abre a possibilidade de compra direta de algo que está sendo mostrado na tela. A tomada de decisão é, portanto, extremamente complexa. Para ter uma base de definição para a área técnica, o governo formou os consórcios que apresentaram propostas inovadoras para os vários subsistemas da TV digital. Dentre aqueles que terão mais proximidade com o consumidor, ou telespectador, está o terminal de acesso, também chamado em inglês de set-topbox, uma caixa eletrônica semelhante aos terminais de TV a cabo para ser conectada aos televisores atuais, de tecnologia analógica, possibilitando a captação dos sinais digitais que as emissoras vão emitir. Mais tarde, esse equipamento será incorporado naturalmente aos novos televisores. A previsão é que por 15 anos o sistema analógico atual continue a ser transmitido até o total de televisões ser trocado ou todas as TVs analógicas possuírem um terminal digital. O valor inicial previsto para esse terminal é de até R$ 300,00, com uma amortização anual de 20%. Mesmo com esse terminal os usuários não terão uma TV de alta definição, a High Definition Television (HDTV). Isso só vai acontecer na compra de uma nova TV que tenha definição de 1.080 linhas na tela. As atuais têm resolução 68 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

de 520 linhas. Alguns televisores de plasma ou de cristal líquido, já presentes nas lojas, têm a resolução digital, porém deverão possuir um terminal conectado a elas. Nas TVs atuais a imagem com o terminal deve melhorar consideravelmente, ou seja, não haverá chuviscos ou fantasmas. utra possibilidade técnica da TV digital é a multiprogramação, em que a mesma emissora em cada localidade poderá, dentro da mesma banda de transmissão de 6 megahertz (MHz), ter vários canais, cada um deles com uma programação, ou, ainda, conforme uma futura regulamentação, destinar esses canais a outros produtores de conteúdo - hoje uma emissora só pode transmitir por um canal. Esse tipo de opção está bem caracterizado no sistema europeu. Nesse caso, a transmissão não seria em HDTV, e sim no modo Standard (SDTV) em todos os canais, de forma comparável à qualidade do DVD. Haveria aí a dificuldade do nãoaproveitamento de um televisor com tecnologia HDTV. Outra opção seria a adoção de um sistema de compressão para transmissão chamado de Moving Picture Expert Group 4 (MPEG4), um avanço do MPEG 2, sistema muito usado na internet, que pode proporcionar um canal de HDTV e mais um ou mais em SDTV. Há ainda a opção melhorada oferecida pela Enhanced Definition Television (EDTV), que transmite em 720 linhas, num padrão de DVD, possível também de acomodar multicanais. Informações gerais - Todos os acessos aos canais e a interatividade com o telespectador serão comandados pelo terminal e um controle remoto. Por eles estará aberto o acesso, por exemplo, a dados de um determinado programa, votações ou informações sobre economia, receitas culinárias, esportes etc. Também será possível com o terminal acessar informações públicas, como saldos de fundo de garantia, INSS, e até obter informações sobre doenças e marcar consultas no Sistema Único de Saúde (SUS), como prevê outro consórcio sediado na UFSC e coordenado por Aldo Wangenheim.

"Nossas pesquisas chegaram ao ponto de dotar esse terminal com endereçamento de Protocolo Internet (ou IP, na sigla em inglês), que poderá ser usado para endereçamento de caixa postal via e-mail e, mais tarde, acesso a internet", diz Marcelo Knõrich Zuffo, professor do Laboratório de Sistemas Integráveis da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), coordenador do consórcio do terminal de acesso. Eles desenvolveram inclusive um padrão de autenticação digital que vai impedir, por exemplo, as contaminações futuras de vírus no sistema. O terminal é assim a ponte para a chamada inclusão digital que a nova TV vai proporcionar para aqueles que não têm computador. "O grupo reuniu 65 pesquisadores, entre professores, alunos e engenheiros contratados", diz Zuffo. Participaram desse consórcio também pesquisadores da USP de São Carlos, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo, além de empresas apoiadoras, como a brasileira Waba, de softwares, a Intel e a Xilinx, de semicondutores, a Samsung e a Itautec-Philco, de produtos eletrônicos, esta recentemente adquirida pela Gradiente. A concepção ideal do grupo é ter um terminal que possa incorporar várias funções e em vários modelos, dos mais simples aos mais sofisticados. "Nós trabalhamos em uma plataforma multidefinição. Isso significa que será possível no futuro usá-la em situações de mobilidade, ou seja, captar no celular os sinais de uma TV digital diretamente da emissora de TV", explica Zuffo. Isso significa que o sistema poderá ser usado em computadores de mão, TV em automóveis etc. "Inclusive será possível adaptar aplicativos (softwares) próprios para navegabilidade (mapas) em uma cidade, informações sobre trânsito, segurança, saúde e muito mais." Nesses casos, o padrão não é o da HDTV nem o SDTV, e sim o de baixa resolução, ou Low Definition Television (EDTV). O terminal de acesso deve resultar em oito patentes e registro de alguns softwares que devem ser depositados e registrados em breve no Brasil e no exterior. Vários protótipos foram construídos com seus respectivos circuitos


eletrônicos desenhados e montados, além de incorporados todos os softwares necessários para seu funcionamento. "Dentro do ciclo de desenvolvimento de um produto, se o nosso terminal for aceito, a próxima fase é o ajuste que as indústrias precisam fazer para adaptá-lo ao formato de uma produção comercial", diz Zuffo. A grande decisão que será tomada em Brasília é a escolha de um dos três padrões existentes para a TV digital - o norte-americano, o europeu e o japonês. Pode-se também optar por melhorar um deles com o que foi desenvolvido na pesquisa brasileira. Essa perspectiva dominou a discussão dessa nova mídia desde 1998, quando as emissoras de TV resolveram investigar o assunto. "Em 1998 fomos convidados pela Sociedade Brasileira de Engenharia de Televisão e Telecomunicações (SET) e pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) a fazer uma avaliação dos três padrões de TV digital", conta o professor Gunnar Bedicks Júnior, coordenador do Laboratório de TV Digital da Universidade Mackenzie. "Montamos o laboratório com apoio financeiro

da empresa NEC via incentivos fiscais da Lei da Informática", diz Bedicks. No grupo está o professor da mesma universidade, Francisco Sukys; um dos criadores do sistema Pal-M, padrão para a TV em cores no Brasil desenvolvido no início dos anos 1970. Equipamentos e visitas - O Mackenzie realizou os testes com o apoio da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), que indicou o CPqD como avaliador técnico. "Adquirimos os equipamentos dos americanos e dos europeus e uma Van com aprelhos e uma antena retrátil com capacidade de atingir 12 metros de altura para fazer testes em campo, inicialmente em vários bairros da cidade de São Paulo", conta o professor Cristiano Akamime, do mesmo laboratório. Os norte-americanos e europeus já haviam inaugurado seus sistemas de TV digital e os japoneses só fariam isso em 2003, embora os equipamentos para os testes tenham chegado aqui em 2000. Os pesquisadores criaram procedimentos para testes nos três padrões. "Recebemos as visitas dos representantes dos três sistemas que

aprovaram nossos procedimentos", diz Bedicks. Entre 1999 e 2000, os pesquisadores fizeram testes com os três sistemas a partir da antena de transmissão da TV Cultura, em São Paulo, que acoplou o sinal digital via canal 34 em Ultra High Frequency (UHF). "Nós não comparamos padrões, o que fizemos foi testar os sistemas dentro das necessidades do nosso país. Em 56% dos televisores a qualidade da imagem não é boa porque vários fatores interferem no sinal, como prédios, ruídos, transformadores, a topografia das cidades com muitas elevações naturais, como os morros." Em São Paulo, algumas residências que estão a 4 quilômetros da antena instalada no bairro do Sumaré não pegam sinal analógico da TV com qualidade. São os famosos fantasmas que a TV digital definitivamente vai eliminar. "Nesse sistema, ou pega bem ou a tela fica escura", diz Akamime. Assim os pesquisadores buscaram o sistema mais robusto, que, além de ter sinal forte, não sofresse influência de equipamentos eletrônicos como liqüidificadores, secadores de cabelo etc. "Logo no início dos testes descartamos o padrão norte-americano, o ATSC, porque a transmissão simplesmente não atingia grande parte dos televisores e em alguns bairros", diz Bedicks. Ele não foi feito para TV aberta. Nos Estados Unidos, dos 110 milhões de residências, 80 milhões estão ligados ao cabo, outros 23 milhões captam o sinal direto do satélite e apenas 5 milhões utilizam o sinal de TV aberta. Lá, as transmissões analógicas estão previstas para se encerrarem em 2009. No Brasil ocorre o contrário. Apenas 4 milhões de residências estão conectados ao serviço pago dentro de um total de 45 milhões de domicílios. Sem estatísticas confiáveis de quantos captam os sinais pelas antenas parabólicas não-pagas, estimase que cerca de 90% dos televisores brasileiros recebam sinal da TV aberta, seja por meio de antenas externas, aquelas que ficam em cima do telhado, ou por antenas internas. Assim, a TV digital aberta no Brasil tem uma participação importante para que todas as camadas da população tenham acesso à transmissão gratuita e, conseqüentemente, à informação, à educação, à cultura e ao entretenimento. PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 69


A análise do padrão digital europeu mostrou também pouca atenção à TV aberta, embora Itália e Espanha tenham significativa parcela nesse segmento. Por isso, esse sistema se mostrou bem adaptado à transmissão aérea, mas não inerte a interferências eletroeletrônicas comuns no Brasil. "Basta ligar um liqüidificador para interferir na TV", diz Bedicks. "Na Europa, eles têm aterramento de fio-terra com tomadas de três pontos blindados, o que impede a interferência, e não dois pontos como no Brasil", diz Akamine. O padrão europeu também não possui uma função que viria a ser importante no Japão - e cada vez mais em todo o mundo -, a mobilidade. "Os japoneses já pensaram no sistema de forma que possa captar a TV pelo celular ou qualquer outro equipamento móvel." Os pesquisadores do Mackenzie concluíram que o sistema japonês é o mais robusto, chega às casas com sinal mais forte e perfeito. Por ser formado por várias ilhas, no Japão a distribuição do sinal ocorre por meio de TVs abertas, havendo pouca participação do cabo e do satélite. O sistema japonês mostrou-se, ainda, mais robusto no sentido de não receber interferências de equipamentos eletrônicos. A condição geral dele é a mais parecida com a dos brasileiros, além de estar apto à mobilidade. A opção brasileira deverá levar em conta a mobilidade porque o número de aparelhos celulares em funcionamento atingiu no ano passado 83 milhões de unidades. "O padrão japonês é o resultado de uma evolução histórica. Eles absorveram as coisas boas e aprenderam com as limitações e as deficiências do europeu", explica Bedicks, do Mackenzie. "Os europeus, por sua vez, fizeram a mesma coisa com os americanos." Vários pesquisadores que estudam a TV digital brasileira possuem essa mesma visão. Muitos acreditam que o modelo japonês com as inovações brasileiras poderá se tornar um sistema internacional. Mas, nos últimos meses, norte-americanos e europeus acenaram com modificações nos seus respectivos padrões que poderiam tornálos mais avançados. De qualquer forma, o sistema de modulação do sis70 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

tema japonês é o mesmo do europeu conhecido como Orthogonal Frequency Division Multiplex (OFDM) -, mas com modificações que o tornam mais avançado. O sistema de modulação é o que transforma os sinais elétricos em ondas eletromagnéticas. Foi nesse ponto que o consórcio coordenado por Bedicks propôs um novo sistema de transmissão e recepção baseado no modulador japonês. "Fizemos modificações no hardware e no software que deixam o sistema ainda melhor e possibilitam uma correção de erros mais avançada", diz Bedicks. om o nome de BSTOFDM Turbo Code, o sistema pretende se tornar mais robusto em termos de sinais de recepção e emissão que o próprio japonês. Para finalizar esse sistema, o Mackenzie reuniu 25 pesquisadores, entre professores, alunos e contratados especiais para o projeto. O grupo também foi integrado por pesquisadores do LSI-USP e da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Como empresas apoiadoras participaram a Samsung, a NEC, a TVA e a Superior Tecnologia em Radiodifusão (STB) do pólo de eletrônica de Santa Rita do Sapucaí, Minas Gerais. Essa empresa mineira produziu o transmissor de TV Digital que foi instalado na torre da TV Cultura e pretende formatar uma linha de produção assim que o SBTVD for definido. Tanto o terminal de acesso da USP quanto o sistema de modulação do Mackenzie foram integrados com programas chamados de middleware extremamente importantes para a TV digital. Ele é responsável para receber o fluxo de bits, entendê-los e identificar o que é som, vídeo, imagens e interatividade e dados que fluem no sistema. O middleware também está acima do sistema operacional que pode ser o Windows, da Microsoft, ou o Linux, de uso livre. Em resumo: tudo o que se faz na nova TV passa pelo middleware. "A forma como o conteúdo interativo vai para a tela é definido pelo middleware", explica Guido Lemos de Souza Filho, do Departamento de Informática da UFPB e coordenador do consórcio Flex TV, o nome do novo middleware que é

uma alternativa aos sistemas dos padrões estrangeiros. Embora nacional e tendo a possibilidade de gerar até seis patentes e 40 registros de software, o Flex TV foi escrito na linguagem computacional Java, muito utilizada na internet e celulares. Nesse caso, se pagariam royalties, cerca de US$ 1 por terminal, para a empresa norte-americana Sun. "No nosso sistema também podemos trabalhar com a linguagem Nest Context Language (NCL)" diz Souza Filho. Essa linguagem foi desenvolvida na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Sob a coordenação do professor Luiz Fernando Gomes Soares, do Laboratório de Telemídia da PUC-Rio, esse consórcio desenvolveu a linguagem NCL para TV digital para ser usada com o Flex TV. "A vantagem dessa linguagem é que não precisaríamos pagar royalties porque ela se enquadra na modalidade software livre", diz Soares. Outra proposta de middleware surgiu em outro consórcio, dessa vez sob a coordenação do professor Luís Geraldo Meloni, da Faculdade de Engenharia Elétrica da Unicamp. Chamado de Jangada, ele é baseado no sistema equivalente europeu. "O nome foi uma referência ao fato de que uma das aplicações desenvolvidas foi um navegador da internet para a TV", diz Meloni, que liderou um grupo de 30 pesquisadores em que participaram também alguns da Fitec, uma fundação de pesquisa tecnológica de Recife, Pernambuco, que igualmente possui laboratórios em Campinas, Universidade Estadual de Londrina e a empresa Rcasoft, de Campinas. O middleware do grupo da Unicamp foi integrado ao terminal de acesso da USP e é uma das opções a ser analisada pelo Comitê de Desenvolvimento da TV digital. Meloni também liderou um consórcio que estudou o chamado canal de retorno ou de interatividade. Por esse canal, o telespectador poderá receber ou pedir informações que estiverem disponíveis, usar internet, votar ou escolher alternativas propostas num programa da emissora, além de fazer compras de produtos mostrados na tela. O problema é que essa interatividade não segue via canal de transmissão, por exemplo, no canal 11. Ela precisa de um outro canal de TV ou seguir via celular,


Celulares poderão receber a imagem da TV digital em baixa resolução

Celular com Imagem Antena com Sinal Digital

Conversor Estúdio Digital Os equipamentos para gerar as imagens e os transmissores deverão ser trocados para o sistema digital

O terminal de acesso acoplado a uma TV com sinal analógico decodifica o sinal digital

telefonia fixa, rádio, rede elétrica ou novos sistemas de transmissão sem fio, como o Wi-fi ou o Wimax, sistema em que uma rede ao redor de uma antena poderá atender televisores num raio de até 60 quilômetros. "Nossa proposta inclui o emprego de tecnologia Wimax adaptada à faixa de freqüência VHFUHF, usada hoje na televisão aberta." Dessa forma, o projeto poderá resultar no pedido de várias patentes e registros de softwares. Para esse projeto, Meloni coordenou 80 pesquisadores, incluindo grupos da UFRJ, Instituto de Estudos Avançados de Comunicações de Campina Grande, na Paraíba, da Fitec, da Telefônica e da Samsung, além da empresa

TV Analógica A relação de altura e largura da tela da TV analógica é de 4:3. Ela tem resolução de 520 linhas

TV Digital

Controle Remoto Interativo

O padrão da TV digital é igual ao do cinema, no formato 16:9. A resolução é de 1.080 linhas

O controle remoto tem funções para possibilitar a interação com a tela

Linear, que, também da cidade mineira de Santa Rita do Sapucaí, produz e exporta transmissores digitais para uso das emissoras de TV norte-americanas. TV-voto - Outra área bem desenvolvida nas pesquisas foram os sistemas de conteúdo. Fernando Carvalho Gomes, da Universidade Federal do Ceará, liderou um consórcio que desenvolveu conteúdos interativos como o T-mail, para troca de mensagens entre telespectadores, além de softwares que permitam agendar e personalizar a programação. Isso será importante porque os terminais deverão ter uma espécie de disco rígido, como nos computadores,

em que um programa ou telejornal, poderão ser interrompidos, para atender um telefonema, por exemplo, e depois prosseguir assistindo de onde parou, ou gravar algo que não se possa ver naquele momento. Ele também desenvolveu o TV-voto. "É uma aplicação com todos os requisitos de segurança do voto para que uma pessoa vote só uma vez em enquetes, referendos etc. O grupo prepara patentes para depósito nos Estados Unidos e na Europa. Desse consórcio participaram a Universidade de Fortaleza (Unifor), o Instituto Atlântico, Centro Federal de Educação Tecnológica do Ceará (CEFET-CE) e a Omni, empresa de conteúdo de vídeo. • PESQUISA FAPESP120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 71


O TECNOLOGIA AGRONOMIA

Perfume de manjericão Primeiro lote de linalol extraído das folhas da planta, cobiçado óleo essencial, é comprado pelo Canadá

DlNORAH ERENO

om folhas pequenas e cheirosas, o manjericão é conhecido por seus muitos usos na culinária. Agora está pronto para entrar na composição de perfumes à base de linalol, um óleo essencial presente em suas folhas. O primeiro lote comercial do óleo de manjericão (Ocimum basilicum), com 40 quilos do produto, foi exportado para uma empresa canadense do setor de perfumaria no final do ano passado. A produção foi acertada, após meses de negociação, com a Linax, uma pequena empresa instalada na cidade de Votuporanga, em São Paulo, que produziu o óleo de forma inédita no país. Antes da compra, perfumistas avaliaram a qualidade do produto, que também passou por análises químicas feitas no Brasil e no Canadá. A pesquisa que levou ao produto foi conduzida pelo engenheiro agrônomo Nilson Borlina Maia, do Instituto Agronômico (IAC), de Campinas, e teve início em 1998, quando o pesquisador começou um estudo comparativo com 18 plantas que contêm linalol, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Inicialmente ele procurava uma alternativa para a extração do óleo de pau-rosa {Aniba rosaeodora), 72 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

árvore amazônica que corre o risco de extinção e é a principal fonte natural do produto (veja Pesquisa FAPESP n° 111). Apesar de não ter conseguido encontrar uma planta que tivesse um óleo tão rico em linalol como o descoberto na madeira do pau-rosa, que chega a 90% e tem uma mescla inconfundível de aromas, Maia conseguiu obter um óleo natural, economicamente viável, que pode substituir o sintético em muitas formulações de cosméticos, perfumes e outros produtos de higiene e beleza e até mesmo abrir campo para a criação de novas fragrâncias. Potencial agronômico - Entre as plantas analisadas pelo pesquisador estavam, além do manjericão, o coentro, o louro, a canela e a laranja. No caso do louro, apesar de apresentar alto índice do óleo essencial, ele foi descartado porque a árvore demora dezenas de anos para ficar adulta, tornando inviável um cultivo para extração comercial. Já o coentro e a canela não apresentaram linalol, enquanto a laranja possui baixo índice da substância. "Dentre todas as plantas analisadas vi que o manjericão tinha mais potencial agronômico para extração do linalol, pelo teor de óleo apresentado e porque é uma planta de ciclo curto", diz Maia. Os resultados da pesquisa foram apresentados publicamente pela primei-

ra vez em 2001, no 26° Congresso da Sociedade Internacional para a Ciência da Horticultura, realizado em Toronto, no Canadá. O trabalho foi um dos quatro escolhidos, entre centenas enviados, para ser apresentado com destaque. Quando voltou ao Brasil após a realização do congresso, Maia julgava ter encerrado um ciclo e se preparava para iniciar um novo estudo agronômico. Os planos mudaram ao receber um telefonema de José Roberto Gonçalves, um pequeno empresário de Votuporanga, cidade localizada a cerca de 520 quilômetros da capital paulista, que havia lido em um jornal de economia uma nota sobre o estudo realizado com o manjericão. A conversa com Gonçalves resultou na abertura de uma empresa, a Linax Comércio de Óleos Essenciais, para que o projeto pudesse ser levado adiante com financiamento do Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe), da FAPESP. O projeto viabilizou a produção de mudas em larga escala, para que em curto espaço de tempo fosse possível instalar lavouras comercialmente viáveis para produzir manjericão. As primeiras mudas levadas a campo eram da variedade maria-bonita, desenvolvida na Universidade Federal de Sergipe pelo professor Arie Fitzgerald Blank, com inflorescências roxas no lugar das tradicionais brancas. Embora essa variedade


apresente até 70% do linalol, o cultivo não vingou por conta das irrigações e chuvas da região e foi atacado por fungos. "Isso atrasou um pouco o desenvolvimento do projeto", diz Maia. Crescimento rápido - A escolha recaiu então sobre uma variedade encontrada entre as muitas que o IAC mantém em sua coleção, porém sem identificação. Para diferenciá-la da maria-bonita, o técnico agrícola Fabiano Taveira dos Santos, do Piauí, que no início dos plantios estagiava na Seção de Plantas Aromáticas no IAC, passou a chamá-la de lampião, nome como ficou conhecida entre os participantes do projeto. A variedade, apesar de ter um teor bem mais baixo de linalol, entre 35% e 40%, é muito rústica, resistente a doenças e cresce rapidamente no campo. Essa característica de crescimento rápido surpreendeu o pesquisador, que teve de refazer as estimativas para a produção e para o número de produtores rurais envolvidos no projeto. No início a expectativa era de uma produção de 15 toneladas por hectare, colhida duas vezes por ano. Hoje esse mesmo volume é alcançado em torno de 70 dias, dependendo de variáveis como adubação, solo, chuvas e época de corte. "Além de a variedade responder bem em campo, selecionamos proPESQUISA FAPESP120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 73


dutores que tinham a possibilidade de trabalhar com irrigação, o que reduz o tempo entre as colheitas da planta", diz Maia. "Em vez das duas colheitas por ano, podemos fazer quatro, uma a cada 90 dias." Dessa forma, a produção anual inicialmente estimada em 30 toneladas por hectare dobra de volume e chega a 60 toneladas por hectare. Hoje são quatro produtores rurais fixos que trabalham para fornecer a matéria-prima para a Linax, todos instalados na região de Votuporanga, que reúne as condições ideais de clima quente e solo para a cultura de plantas aromáticas. A limitação de água no inverno pode ser contornada com a irrigação. O principal problema observado até agora é a chuva em excesso, sobretudo no verão, o que impede a entrada no campo para fazer o corte. Outros produtores já se candidataram, mas antes de contratar novos fornecedores a empresa quer abrir novos mercados para o produto. A idéia é expandir a área plantada de 30 para 200 hectares. Para isso é necessário conquistar o mercado consumidor in-

terno, além do externo. Como o Brasil não é um tradicional produtor de óleos essenciais, muitos consumidores daqui preferem importar o produto para garantir fornecimento regular e melhores preços. A exceção fica por conta do óleo essencial de laranja, em que o país ocupa a liderança mundial na produção, mas como subproduto da indústria de citros. Outro óleo produzido em grande volume no Brasil é o de eucalipto, também um subproduto da indústria madeireira. ntes de iniciar o plantio do manjericão, os produtores receberam mudas multiplicadas no IAC pela técnica de micropropagação. Eles também receberam instruções de como plantar e conduzir a lavoura. Alguns aspectos agronômicos do plantio ainda não foram estabelecidos cientificamente, como, por exemplo, o espaçamento mais adequado. "Apesar de ensaios específicos estarem sendo conduzidos, ainda não foi possível obter os resultados e divulgá-los, o que nor-

Óleo de laranja lidera exportação A exploração comercial dos óleos essenciais no Brasil teve início na década de 1920, baseada no extrativismo de essências nativas, principalmente da madeira do pau-rosa. No decorrer da Segunda Guerra Mundial, aproveitando a demanda das indústrias que não podiam ser atendidas pelos produtores tradicionais, o país passou a introduzir culturas para obtenção de óleos de menta, laranja, canela, eucalipto, capim-limão e patchuli. Na década de 1970 chegou a ocupar a liderança mundial de produção de mentol e óleo desmentolado, usados como aromatizantes na indústria de higiene e de alimentos, com a criação no Instituto Agronômico de uma variedade de Mentha arvensis resistente à ferrugem. Hoje o país ocupa a liderança mundial no comércio do óleo essencial de laranja, com 33 mil to-

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malmente leva de cinco a seis anos", diz Maia. As respostas para essas questões têm surgido da prática, ou seja, quando as copas das plantas começam a se encontrar é o momento de fazer o corte, porque senão elas começam a competir por luz e as folhas da parte de baixo começam a cair. O corte é feito na base da planta, quase rente ao solo. Por enquanto essa tarefa é feita manualmente, mesmo porque a área plantada ainda não é tão extensa. Mas a mecanização está sendo estudada. O manjericão cortado brota novamente e a produtividade vai aumentando corte a corte, porque a planta se ramifica. A mesma planta fica no campo produzindo durante dois a três anos. Só depois desse período precisa ser substituída por outra muda clonada. O plantio com semente não é recomendado por causa da variação no teor do linalol. Depois que a colheita é feita, o manjericão é colocado em uma carreta concebida para levar as folhas diretamente da lavoura para a indústria, sem necessidade de descarregar o material. O óleo é extraído diretamente na carreta, o que diminui significativamente

neladas exportadas na safra 2004/2005. De janeiro a outubro do ano passado, as exportações de 60 mil toneladas de óleos essenciais renderam ao país US$ 80 milhões. Muitos óleos essenciais usados em produtos de limpeza, farmacêuticos, alimentos e bebidas são obtidos de forma sintética, por razões econômicas. Mas a demanda por produtos extraídos das plantas, como o linalol do manjericão, tem crescido bastante. Além disso, as empresas, principalmente do setor cosmético e de perfumaria, têm se interessado por novos óleos essenciais. "Essa é uma boa oportunidade para o Brasil, que detém a maior diversidade vegetal do planeta", diz a pesquisadora do IAC Márcia Ortiz Marques, integrante do grupo de trabalho criado para cuidar da formalização da Associação Brasileira de Produtores de Óleos Essenciais. "Isso porque, apesar de ser uma atividade relevante para o Brasil, o setor está desarticulado", diz. O produtor não sabe o que o mercado necessita. Enquanto o mercado busca produtores que forneçam com qualidade, preço e regularidade.


os custos operacionais. O sistema despertou o interesse de empresas tradicionais extratoras de óleos essenciais, como do eucalipto. Para facilitar o trabalho de extração de óleo essencial nos laboratórios de pesquisa, Maia criou um minidestilador feito de aço inoxidável para suportar as agressões químicas e físicas. Nos aparelhos convencionais, feitos de vidro e de difícil manuseio, o trabalho de carregar e descarregar o material vegetal leva em média uma hora. Com o minidestilador, a mesma tarefa demora cerca de um minuto e a destilação é controlada por um sistema elétrico automatizado. Eficiência dobrada - Como a destilação demora cerca de uma hora com qualquer um dos equipamentos, o tempo gasto para carregar e descarregar o aparelho de vidro foi eliminado. "Isso dobrou a eficiência da destilação", diz Maia. A novidade, apresentada no 3o Simpósio Brasileiro de Óleos Essenciais, realizado em Campinas em novembro do ano passado, teve boa acolhida. Uma empresa já comprou o aparelho e algumas universidades estão em processo de negociação com a Linax, bem como com farmácias de manipulação

Óleo de manjericão pode substituir o linalol sintético em cosméticos e perfumes

que trabalham com óleos essenciais destinados a perfumes. O preço fica entre R$ 5.500,00 e R$ 5.800,00, dependendo dos acessórios colocados. O equipamento funciona com energia elétrica, mas pode ser adaptado ao gás natural para ser usado no campo. O PROJETO Produção de linalol a partir do óleo essencial de manjericão uma alternativa ecologicamente sustentável para substituir o linalol do pau-rosa, uma espécie amazônica em risco MODALIDADE Programa Inovação Tecnológica em Pequenas Empresas (Pipe)

COORDENADOR - Instituto Agronômico de Campinas/Linax NILSON BORLINA MAIA

INVESTIMENTO R$ 400.000,00 (FAPESP)

A planta industrial da Linax foi projetada para receber produto de plantio orgânico, sem aplicação de defensivos agrícolas, separado do não-orgânico, para dessa forma atender a mercados externos que queiram produtos diferenciados. Mas essa é uma outra etapa da produção. Por enquanto, além de produtora de óleo essencial de manjericão, a empresa tem se destacado como prestadora de serviços. Vários clientes, de cidades em um raio de até 300 quilômetros, têm levado plantas para serem destiladas lá. São fornecedores da indústria cosmética, farmácias de manipulação e pesquisadores. Mesmo com os bons resultados já apresentados, a pesquisa com o manjericão não pára por aqui. Outras variedades, com maior rendimento de óleo e mais resistentes a doenças, continuam a ser testadas. Além disso, outras espécies de plantas aromáticas, como capim-limão e patchuli, estão sendo avaliadas para serem plantadas pelos agricultores da região. A idéia da empresa é transformar Votuporanga em um pólo aromático, capaz de plantar, extrair o óleo essencial e garantir um fornecimento regular tanto para o mercado interno como o externo. • PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 75


O TECNOLOGIA

Van Dyck Falso ou verdadeiro? Físicos da USP tentam descobrir se pintura que mostra o calvário de Jesus é mesmo do mestre dos retratos do século 17

MARCOS PIVETTA

■* s 8 horas da manhã de 17 V B* de dezembro do ano passa^^B H^ do, um sábado, dia em que ■ H as atividades acadêmicas I H naturalmente cessam ou JÊ M diminuem no vasto campus ™ ™ da Universidade de São Paulo, no bairro paulistano do Butantã, um carro conduzido por um motorista particular, e escoltado por seguranças, estacionou em frente ao Instituto de Física. De seu interior saiu a restauradora Mareia Rizzo com uma tela de 1 metro de largura por 1,18 metro de altura, que rapidamente foi levada para as dependências do Laboratório de Análise de Materiais por Feixes Iônicos (Lamfi), onde uma equipe de pesquisadores a aguardava para o início dos trabalhos. Naquela data, em vez de fornecer dados para estudos de poluição do ar ou de finos filmes semicondutores ou magnéticos, duas

76 ■ FEVEREIRO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 120

Dois pontos analisados da pintura: composição química dos pigmentos ajuda a contar a história do quadro


Quadro atribuído a Van Dyck: tintas antigas e avarias

PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 77


de suas principais áreas de atuação, os equipamentos e os físicos do laboratório estiveram por horas a fio a serviço de uma iniciativa para desvendar um tipo de mistério corriqueiro, mas muito interessante, do mundo das artes plásticas: a origem e, se possível, a autoria de um quadro - no caso, uma pintura atribuída por seu dono, um colecionador particular, ao belga Anthony van Dyck (1599-1641), pintor flamengo que ganhou fama na primeira metade do século 17 por seus retratos de reis e rainhas da Europa, em especial da Corte inglesa. Branco-de-chumbo - Com o auxílio de uma técnica de emissão de raios X conhecida por Pixe, que permite identificar a composição química elementar de boa parte dos pigmentos usados numa pintura sem promover danos à obra de arte, os cientistas produziram informações importantes sobre como e quando a tela deve ter sido originalmente confeccionada e até mesmo de que maneira foi restaurada ou modificada ao longo de sua história. Descobriram, por exemplo, que os tons alvos originalmente presentes no quadro, que mostra a crucificação de Jesus, provêm do chamado branco-dechumbo, o pigmento dessa cor mais usado pelos pintores entre a Antigüidade e o fim do século 18. As partes brancas retocadas da pintura, como pedaços do tecido que cobre a cintura de Jesus, apresentam outro pigmento, o branco-de-zinco, que só começou a ser utilizado a partir do século 19, tornando-se o favorito dos artistas. "Por ora, o estudo dos pigmentos parece indicar que se trata de um quadro realmente antigo, não contemporâneo", afirma Paulo Pascholati, um dos físicos que participaram das análises. "Mas não podemos precisar a época, tampouco a identidade do pintor." Também foram detectadas quantidades significativas de pigmentos castanhos, ricos em manganês e comumente empregados por pintores que viveram há 400 anos, como o marrom de Van Dyck (terra betuminosa mais ferro e manganês), encontrado no cabelo do soldado ao lado de Jesus. Havia ainda a expectativa de flagrar na pintu78 • FEVEREIRO DE 2006 • PESQUISA FAPESP 120

ra um tipo de pigmento azul muito valorizado durante a Renascença, o azul ultramarino, um complexo de enxofre derivado de uma pedra ornamental, o lápis-lazúli. Embora hoje apareça extremamente escurecido pelo processo de oxidação de sua camada de proteção (ou verniz), o manto da Virgem Maria, uma das personagens do quadro, é da cor azul - e os pesquisadores achavam que ali poderia haver azul ultramarino. Mas só encontraram formas menos no-

Estátua africana: análise da corrosão

bres de azuis, talvez um indício de que o patrocinador da tela, se é que houve um, não investiu muito dinheiro na obra de arte. A pintura retrata uma cena clássica do cristianismo, o calvário de Jesus. Num fundo bastante escurecido pela ação do tempo, a tela mostra o filho de Deus crucificado ao centro, Maria Madalena agarrada aos seus pés, São João Evangelista e a Virgem Maria de um lado, e um soldado, uma pessoa e um cavalo de outro. O quadro candidato a um Van Dyck apresenta evidências de que, ao longo de sua história, sofreu modificações, restauros e avarias de toda sorte. No canto inferior direito há um rasgo. A tela trocou de moldura várias vezes, sendo obrigada a se adaptar a chassis de diferentes dimensões. Foi ainda dobrada quase ao meio, deixando marcas dessa agressão perto do braço direito de Jesus. E apresenta duas emendas: pedaços do tecido foram cortados e posteriormente reencaixados à pintura. "O quadro também passou pelo que chamamos de uma limpeza seletiva", afirma Mareia Rizzo, restauradora há mais de 20 anos e aluna de mestrado em química na USP. O verniz original do quadro — do tipo Dammar-, o mais usado pelos pintores antigos, que tem como característica escurecer em demasia com a passagem do tempo - foi removido apenas de certos trechos do quadro, como na figura do Cristo. Tempo e espaço - Ninguém tinha a ilusão de que, isoladamente, o estudo com a metodologia Pixe iria resolver a questão central sobre a duvidosa autoria do quadro. A técnica não faz mágica. Na verdade, com a nova abordagem, o que os pesquisadores queriam era proporcionar mais dados que, somados às informações obtidas com outras análises científicas e artísticas, talvez ajudem a elucidar o mistério das mãos que pintaram a tela. "O uso dos conhecimentos da física e da química para estudar os elementos de uma obra de arte não fornece respostas definitivas", pondera Mareia Rizzo. "Apenas ajuda a situá-lo no tempo e espaço." Sempre que há uma controvérsia sobre a autoria de uma tela ou escultura, a palavra final sobre


a sua autenticidade fica a cargo de estudiosos da obra dos grandes pintores. Pessoalmente, Mareia acredita que a tela com o calvário de Cristo seja um trabalho da escola flamenga renascentista e deve ter uns 400 anos de idade. Mas, se é mesmo um Van Dyck, ela não arrisca dizer. Alguns especialistas em pintura especulam que o quadro tem um estilo mais próximo ao do pintor flamengo Jacob Jordaens (1593-1678), também nascido em Antuérpia como Van Dyck, que trabalhou os temas religiosos com grande freqüência. Sigla que em inglês significa Particle Induced X-Ray Emission, a técnica Pixe consiste em expor o objeto a ser analisado a um feixe de prótons produzido por um acelerador de partículas. Os prótons colidem com a superfície do artefato à sua frente, mais precisamente com os átomos das substâncias que compõem o objeto em estudo, e retornam ao equipamento na forma de raios X característicos dos elementos químicos da amostra. Cada elemento (o ferro, o alumínio etc.) emite uma radiação específica, uma espécie de assinatura em raios X. Dessa forma, os pesquisadores conseguem identificar a composição química dos materiais presentes em pontos da amostra extremamente pequenos, com diâmetro de 1 ou 2 micrômetros. A Pixe apresenta algumas vantagens quando comparada com outros métodos não-destrutivos igualmente capazes de fornecer a composição química dos materiais: não precisa ser realizada num ambiente sob vácuo, como acontece nos estudos produzidos com microscópios de varredura eletrônica, e dá resultados um pouco mais refinados que os da espectroscopia de fluorescência de raios X (EDXRF). "Esta última técnica, no entanto, pode ser feita por um equipamento fácil de transportar, que pode ser levado a museus", diz Manfredo Tabacniks, do Lamfi/USP. "Com a Pixe, o objeto da análise tem de ser levado até o equipamento." No caso da possível tela flamenga, os cientistas chegaram a eleger 30 pontos de análise, que cobriam os distintos pigmentos que dão cor à obra de arte, mas só tiveram tempo de realizar o estudo em pouco mais de uma dezena deles.

Cada ponto foi bombardeado pelas partículas atômicas por cerca de 20 minutos. O feixe de prótons atravessa o verniz que protege a pintura, chega até as camadas de tinta e retorna com as assinaturas em raios X dos elementos químicos que constituem os pigmentos usados na tela. Tudo isso sem promover nenhum dano ao quadro. ão são só os quadros que podem se beneficiar das análises por raios X. Técnicas como a Pixe e a EDXRF também são úteis para estudar os materiais constituintes de esculturas. "Além de caracterizarmos a liga que compõe objetos e estátuas, podemos identificar os compostos que provocam a corrosão e levam ao acúmulo de depósitos nas peças", afirma a física Márcia Rizzutto, que examinou quatros itens da coleção do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP com o auxílio de ambas as técnicas. Entre os resultados mais expressivos do trabalho Márcia percebeu que uma estátua da coleção africana do museu - um Edans, produzido basicamente com uma liga de cobre e zinco pela antiga sociedade secreta Ogboni - apresentava uma corrosão bastante seletiva. O elemento zinco de sua liga era mais atacado que o cobre. Esse tipo de dado é importante para os administradores de museus, que têm de se preocupar com a conservação de seu acervo. Num projeto que conta com financiamento da FAPESP, Márcia ainda emprega as técnicas para a caracterização de dentes e O PROJETO Elementos traço em biomateriais MODALIDADE Projeto Regular de Auxílio à Pesquisa COORDENADORA MáRCIA RIZZUTTO

• IF/USP

INVESTIMENTO R$ 22.000,00 e US$ 5.000,00 (FAPESP)

vestígios arqueológicos encontrados em sambaquis. Da Vinci oculto - Em alguns grandes museus, como o Louvre em Paris, o emprego de métodos cada vez mais refinados de análise das propriedades físicas ou químicas das obras de arte tornou-se corriqueiro nas últimas décadas. A área de conservação e restauro desses templos das artes plásticas possui equipamentos similares aos encontrados nas melhores universidades da Europa e dos Estados Unidos. E quem não os tem freqüentemente abre suas portas para que os cientistas realizem suas medições. Com o auxílio da ciência, um pouco de sorte e muito trabalho, os especialistas em pintura e escultura podem descobrir detalhes até então ignorados da obra de um autor. Mesmo quadros extensivamente esquadrinhados pelos olhos treinados de especialistas em pintura revelam facetas insuspeitas quando submetidos a novas formas de análise. Em julho de 2005, os curadores da National Gallery, de Londres, divulgaram a informação de que, escondidos embaixo das camadas de tinta do famoso quadro A Madona das rochas, de Leonardo da Vinci, há dois desenhos feitos pelo mestre da Renascença. O primeiro mostra uma Virgem Maria numa pose distinta da que efetivamente acabou sendo pintada na versão da tela que faz parte da coleção do museu inglês. Trata-se de uma idéia inicial, um rascunho, que, por algum motivo, Da Vinci não levou adiante. O segundo é o esboço dos contornos finais da cena que acabou imortalizada no quadro. Esse trabalho oculto do pintor só veio à tona porque A Madona das rochas foi filmada por meio de uma técnica complementar à fotografia em infravermelho, a chamada reflectografia em infravermelho, que realça desenhos não visíveis a olhos situados sob o conjunto de pigmentos de uma pintura. A reflectografia é boa para salientar desenhos em preto feitos com material rico em carbono, como o grafite. "No Brasil, infelizmente, usamos com pouca freqüência as análises físicas e químicas no estudo da arte", comenta Pascholati. Trabalhos como o realizado com o quadro candidato a Van Dyck ainda são exceções. • PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 79


HUMANIDADES SOCIOLOGIA

Pacato cidadão Descrença em instituições, gerada por crise política atual, pede discussão sobre nossa cidadania CARLOS HAAG FOTOS MIGUEL BOYAYAN ILUSTRAçõES HéLIO DE ALMEIDA

ada melhor do que a música para as orelhas. Em especial para, de vez em quando, dar uma puxada nelas. "ô pacato cidadão, te chamei a I■ atenção, não foi à toa, não. Cest I V fini Ia utopia, mas a guerra todo ■ dia, dia a dia, não", canta o grupo Skank. Essa é a trilha sonora ideal para se ler a recém-publicada pesquisa Cidadania, participação e instituições políticas: o que pensa o brasileiro?, realizada pelo Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas, que mostra como o brasileiro ainda se conforma com a tese de que o Brasil é, e sempre será, um eterno "mar de lama", contra o qual pouco se pode fazer. Para 79% dos entrevistados, a corrupção é a marca do serviço público; a única instituição democrática que funciona é a Igreja Católica; 72% dos pesquisados acham que os políticos só existem para se dar bem na vida. Esses resultados reforçam o "conformismo" expresso no último Latinobarómetro, pesquisa feita por uma ONG chilena, que mostra como anda a satisfação latinoamericana com a democracia. Cerca de 43% dos brasileiros entrevistados crêem que uma "mão dura" do governo não faria mal ao país; 48% não se importariam de o país ficar à mercê de empresas privadas se a vida deles melhorasse; e 26% 80 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120


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pensam que ter um regime democrático ou não-democrático dá no mesmo. A cidadania, entendida como a participação do indivíduo na criação da sua sociedade, parece pouco desenvolvida entre nós. Uma pesquisa de 1993 (CESOP/Unicamp) já mostrava a indiferença nacional sobre a presença dos órgãos de representação como necessária para o funcionamento democrático: 30% dos brasileiros acreditavam então que o Brasil poderia passar bem sem o Congresso Nacional. A descrença de hoje, retomada na crise em curso, portanto, não é uma novidade. Daí a pergunta: que cidadãos somos nós, tão ágeis em identificar as deficiências institucionais e tão lentos em mudar esse estado de coisas? Somos, efetivamente, pacatos cidadãos ou será que nos fizeram acreditar nisso? sse é o questionamento da pesquisa mais recente do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, Horizonte do desejo: instabilidade, fracasso coletivo e inércia social (FGV Editora, 200 págs., R$ 26,00), que tenta entender por que, num país de tantas desigualdades e insatisfações, nunca houve um movimento popular capaz de promover uma reforma na vida nacional. "O Brasil encontra-se muito aquém do limiar da sensibilidade social e assim tem convivido, pacificamente, com a miséria cotidiana, material e cívica, sem gerar grandes ameaças. Aqui, o horizonte do desejo ainda é puro desejo, sem horizonte", avisa o autor. O paradoxo, apontado por Santos, é que, desde os anos 1930, o país experimentou um grande salto econômico e o que ele chama de uma "megaconversão" eleitoral ("partimos de um eleitorado reduzido em 1945-1950 para outro que, em 2002, correspondia a 68% da população", nota), sem que a cidadania dos votos se fizesse acompanhar por uma cidadania de fruição dos direitos sociais. "Com o fim da ditadura militar e da construção da democracia, a partir de 1985, a palavra cidadania caiu na boca do povo. Havia a crença de que a democratização das instituições traria rapidamente a felicidade nacional. Isso funcionou com o voto, mas não em tudo. As grandes desigualdades sociais e econômicas continuam e, em conseqüência, os mecanismos e agentes da democracia, como eleições, partidos, Congresso, políticos, se desgastam e perdem a confiança do público", analisa José Murilo de Carvalho, professor da UFRJ e autor de Cidadania no Brasil, o longo caminho. 82 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

"Há, ao mesmo tempo, uma recusa histórica do país em configurar um espaço público de enunciação autônoma de direitos ao lado da novidade espantosa de os direitos humanos e sociais e sua regulação pública terem se transformado em obstáculos à cidadania, que, dramaticamente transformada, habita agora os espaços do mundo privado e da realização individual sob governos que se apresentam apenas como gestores de crise e da mudança", avalia a socióloga da USP, Maria Célia Paoli, coordenadora do projeto temático Cidadania e democracia: o pensamento nas rupturas da política, financiado pela FAPESP, que pretende dar conta do "desmanche, o largo processo de desregulamentação e internacionalização do mundo, que se faz destruindo mediações", influindo diretamente nos direitos de cidadania e gerando a "priva-


à corrupção com a preservação do legado de desigualdade e elitismo, será razoável esperar que possamos superar esse legado sem agir com determinação no sentido de criar'artificialmente' os mecanismos legais que possam pretender eficácia em barrar a corrupção e implantar uma cultura nova e politicamente mais propícia?", observa o professor da UFMG, Fábio Wanderley Reis. É um ciclo "viciado": a falta de cidadania real impede uma ação efetiva para mudar o Estado; isso, aliado a um "dar as costas" à política e a uma descrença nos políticos, gera um mecanismo nocivo que, por sua vez, impede a criação de formas efetivas de controlar a corrupção e de resolver as desigualdades sociais. "O difundido desapreço da população pelos direitos civis, com certeza, não é irrelevante do ponto de vista da corrupção e seus correlatos", observa Reis. "A insegurança 'hobbesiana' (Hobbes preconizava a necessidade de um Estado que refreasse a busca por poder, ilimitada, que cada cidadão teria num estado natural') e o anseio por um poder autoritário e forte talvez ajudem a explicar as enormes proporções de apoio a hipotéticas lideranças pessoais que pudessem unificar e guiar a nação alheia aos partidos." E, adverte o professor Marcello Baquero (UFRGS), quanto maior a deslegitimação institucional, maior o apelo de líderes carismáticos, que, por sua vez, contribuem para neutralizar e desacreditar essas mesmas instituições.

tização do público, destituição da fala e anulação da política", para usar palavras do sociólogo Francisco de Oliveira, da USP, parte da equipe do projeto. Oliveira questiona, em especial, como todo esse processo pôde ocorrer com tão pouca resistência da sociedade, "um domínio de classe consentido, ativa e passivamente, em que finalmente os dominados partilham os mesmos valores dos dominantes". Talvez a perene desilusão com a política nacional tenha razões que a razão comum desconhece. "Onde iremos com todo esse frenesi ético-moralizante que parece querer, com seu afã regenerador, bombardear todas as práticas da vida parlamentar democrática?", pergunta o cientista político Marco Aurélio Nogueira, da Unesp. "Se cabe presumir que dificilmente criaremos uma sociedade genuinamente democrática, cívica e infensa

Direitos - A história tortuosa da cidadania brasileira é um componente fundamental no estado político e social do presente. "No Brasil experimentamos uma inversão. Aqui, primeiro vieram os direitos sociais, implantados em períodos de supressão de direitos políticos e de redução dos direitos civis por um ditador, Vargas, que se tornou popular", explica Murilo de Carvalho. "Depois vieram os direitos políticos, de maneira algo bizarra, pois a maior expansão do voto deu-se em outro período ditatorial, o militar, em que os órgãos de representação política foram transformados em peça decorativa do regime." Numa gangorra, sempre que o país incrementou os direitos políticos deixou de lado os sociais, e vice-versa. Essa lógica perversa deixou seqüelas: a excessiva valorização do Executivo, pois, se os direitos sociais foram implementados em períodos ditatoriais, criou-se a imagem, para o grosso da população, da centralidade do Estado. As melhorias sociais sempre vieram embaladas em clientelismo. "Os benefícios sociais não eram tratados como direito de todos, mas como fruto da negociação de cada categoria com o governo. PESQUISA FAPESP120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 83


Assim, a sociedade passou a se organizar para garantir os direitos e os privilégios distribuídos pelo Estado", nota Murilo de Carvalho. Ou, nas palavras de Baquero, estabeleceram-se no Brasil "relações sociais terciárias", a saber, um laço direto entre Estado e indivíduo, o qual se sente devedor do Executivo, em detrimento dos partidos. A representação se fragiliza. modelo neoliberal, adotado em escala global, ao chegar ao país, afetou ainda mais esse quadro, invertendo-o sem, no entanto, resolver suas mazelas. "O pensamento liberal insistiu na importância do mercado e na redução do papel do Estado. Nessa visão, o cidadão se torna cada vez mais um consumidor, afastado de preocupações com a política e os problemas coletivos", diz Murilo de Carvalho. "Hoje as pessoas não querem ser cidadãos, mas consumidores. Ou melhor, a cidadania que reivindicam é a do direito ao consumo, a cidadania pregada pelos novos liberais. A cultura do consumo dificulta o desatamento do nó que torna tão lenta a marcha da cidadania entre nós, qual seja, a capacidade do sistema representativo de produzir resultados que impliquem a redução das desigualdades de todo o tipo." Oliveira vai ainda mais longe. "Todo esforço de democratização, de criação de uma esfera pública no Brasil, decorreu da ação das classes dominadas." Daí, defende, os vários momentos em que o Estado "silenciou" essas vozes em nome da "harmonia social", da anulação política, do consenso, na contramão do "desentendimento social", construtivo à medida que permite que a sociedade participe ativamente da construção de seu universo sociopolítico-econômico. "É um deslocamento que tenta subaltenizar a presença política dos atores e de suas demandas e significa uma descapacitação da representação e da participação social nas esferas de decisão política", analisa Célia Paoli. Se antes era o Estado poderoso que dificultava a efetivação da cidadania, a partir da década de 1990 será a propagação do ideal de um Estado "falido" o responsável pela desmobilização dos cidadãos. "Se o Estado, por longo tempo, subsidiou a formação do capital, com a chegada da crise da dívida externa dos anos 1980, convertida depois em dívida interna pública, esgotou-se o papel de condottiere do Executivo na expansão capitalista", avalia Oliveira. Criou-se a imagem do Estado esgotado. "Essa crise interna do gover84 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

no colocou os holofotes sobre a despesa pública e converteu as despesas sociais públicas no bode expiatório da falência do Estado, quando na verdade isso se deveu à dívida interna pública e ao serviço da dívida externa." Estabeleceu-se, segue o sociólogo, a ilusão de que o Estado apenas sobreviveria como extensão do universo privado, que "sustentaria" o governo, quando, afirma, o caminho é o inverso. Segundo Oliveira, nasceu a falsa consciência da desnecessidade do setor público, que deveria funcionar com a mesma rationale da empresa privada. Logo, nada mais natural que o cidadão troque sua cidadania pelo consumo de mercadorias. Essa permuta, porém, traz implicações: o indivíduo é obrigado a resolver sozinho seus problemas enquanto a massa demanda cada vez mais do Estado. O primeiro se verifica nas páginas policiais. "No híbrido


geneidade de grupos de interesse, não se vêem adequadamente expressos nas instituições", acredita.

constitucional que se associa o confinamento regulatório da cidadania a um hobbesianismo social, imperam a violência como modo rotineiro de resolução de conflitos intersubjetivos e o comportamento predatório, que, nesses tempos, vêm se generalizando na sociedade brasileira", analisa Vera Telles, socióloga da USP. Do lado da massa, observa Santos, a insatisfação decorre do aumento do volume de demandas de uma arena política superpovoada, pedidos que não são fáceis de serem atendidos pelo Estado no seu momento atual. "A insatisfação da população não é tanto com a democracia em si, mas com o subdesenvolvimento das instituições democráticas. Nos últimos 10, 15 anos, o país ingressou num processo de subdesenvolvimento institucional, à medida que a expansão e o amadurecimento da sociedade política, sua crescente hetero-

Apatia - Afinal, como lembra Nogueira, o Estado foi apropriado por interesses particulares, que foi obrigado a intermediar. "Ele foi fragmentado, aprisionado pelos vários privatismos e incapacitado de responder às multiplicadas demandas sociais, dar condições aos setores estratégicos (educação, saúde) e continuar coordenando o desenvolvimento." Diante disso, o sistema, obsoleto, derrapou. A população, porém, queria mais. "Ao passado ditatorial recente se atribuiu a maior parcela de responsabilidade pelo precário status quo, concluindo, com lógica certeira, caber à democracia que o sucedeu a tarefa de providenciar o desaparecimento até do mais minúsculo vestígio das mazelas herdadas", nota Santos. Era, porém, tarde demais e o futuro trouxe mais frustração do que contentamento com a revelação do peso da inércia do estado de coisas. Ainda assim, a população mantinha-se apática. Como se conseguiu isso? Uma hipótese, adotada por Santos, é a chamada "privação relativa", o hiato entre a condição de vida percebida pelo indivíduo e aquela que ele considera que deveria ter, por mérito ou compensação social. Quanto mais modesto o consumo real, maior o gap entre o que alguém possui e o horizonte do seu desejo. Esse componente, num país marcado pela instabilidade, gera uma elevada taxa de incerteza, estimulando nas pessoas uma "aversão ao risco", em especial nos mais pobres, temerosos do desemprego, da violência policial e da marginalização. Acrescente uma falta crônica de organização (com sindicatos enfraquecidos etc.) e você terá uma sociedade inerte. "Os partidos não são procurados, nem os políticos. Há evidente descompasso entre a magnitude das carências sociais e o empenho da sociedade em resolvê-las. Não sobra tempo para isso, ante a alocação prioritária do tempo e recursos dos indivíduos na solução de problemas pessoais e familiares." Melhor deixar como está. Esse raciocínio, em nada destituído de sentido, faz com que falta de cidadania e desigualdades tenham, segundo Santos, "o amparo da indiferença". O cálculo que se faz é quanto se pode perder, agindo, ou ganhar, calando. O resultado é óbvio e se revela na convivência quase pacífica com miséria cívica, moral e material. "O custo do fracasso' das ações coletivas pode ser elevado, levando-se em conta a deterioração do status quo dos participantes, circunstância ameaçadora o suficiente para deprimir o ânimo reivindicante dos mais necessitados." . PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 85


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O HUMANIDADES ECONOMIA

Me dá um dinheiro aí ILUSTRAÇÕES HÉLIO DE ALMEIDA

Antes tarde do que nunca: isso pode valer para muitas situações, mas foi fatal para a cidadania brasileira. "Foi com um atraso de 40 anos que se deu a chegada no Brasil do Estado de bemestar social, a incorporação do paradigma dos 'anos de ouro' do welfare state, adotado pelos países capitalistas centrais logo após a Segunda Guerra Mundial. A aplicação dessa agenda, por meio da Constituição de 1988, surgiu na hora errada e vinha na contramão da nova agenda, neoliberal, que negava esse projeto", explica Eduardo Fagnani, da Unicamp, autor da tese de doutorado Política social do Brasil (1964-2002): entre a cidadania e a caridade. "O projeto de Estado de bem-estar social, que se anunciava na chamada Constituição Cidadã como a definiu Ulysses Guimarães, foi progressiva e calmamente destruído de 1990 em diante, em pequenas doses, e o ponto comum dos 40 anos analisados na tese é que, para os miseráveis, sempre se reservaram as sobras de um processo de crescimento que alçou o país ao rol de uma das maiores economias do mundo", observa o pesquisador. Nesse caso, o tarde significou nunca. "Verificam-se dois movimentos opostos da trajetória da política social brasileira entre 1964 e 2002. Um deles aponta para a estruturação das bases institucionais e financeiras típicas do welfare state em nosso país, num processo esboçado a partir dos anos 1930, com notável impulso nos anos 1970, na redemocratização, e desaguou na Constituição de 1988", diz. "O outro aponta no sentido contrário: o da desestruturação daquelas bases. Após as primeiras contramarchas, nos últimos anos da transição democrática, a desestruturação da frágil cidadania conquistada em

A curta travessia do Estado de bem-estar social à distribuição de migalhas

1988 foi revigorada a partir de 1990." Na travessia, que Fagnani divide em quatro etapas históricas, o Estado de bem-estar social transformase em distribuição de migalhas para os pobres. Intervenção - O sistema social brasileiro começa a emergir nos anos 1930, mas ganha a sua primeira "cara", feia por sinal, no período da ditadura militar, marcado pela implementação de uma estratégia de modernização conservadora, que potencializava a capacidade de intervenção do Estado. "Essa modernização possibilitou o aumento da oferta de bens e serviços para as classes de média e alta renda, mas o seu caráter conservador impediu que seus frutos fossem direcionados para a população mais pobre e tiveram impacto reduzido na redistribuição de renda", analisa Fagnani. Mas deixou marcas profundas na política social: um financiamento do gasto social de caráter regressivo; centralização do processo decisório no Executivo; privatização do espaço público; fragmentação institucional. A partir dos anos 1970 e mais intensamente no fim do regime, nos anos 1980, as forças de oposição começaram a formular uma agenda cujo núcleo era a construção de um efetivo Estado de bem-estar social, em que o MDB teve um papel de destaque como agente catalizador. Em 1984 esse ideário passa a ser assimilado pela chamada Frente Liberal, o bloco de dissidentes da base da ditadura, e, entre 1985 e 1986, pela retórica governamental da Nova República. Agora a luta ocorria dentro do próprio Estado, provocando, em 1985, a criação do Ministério da Reforma e Desenvolvimento Agrário (Mirad) e, um ano depois, a instituição do seguro-desemprego. Pouco depois houve iniciativas de mudanças na previdência, na saúde, na educação e chegou-se mesmo a implantar um proPESQUISAFAPESP120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 87


grama de ações emergenciais de combate à fome com os Programas de Suplementação Alimentar. Parecia que o Brasil caminhava para o "melhor mundo dentre os mundos possíveis". Pangloss nos trópicos? A Constituição de 1988 parecia indicar esse caminho. "Ela foi uma etapa fundamental, embora inconclusa, da viabilização do projeto de reformas socialmente progressistas. Pela primeira vez na história do país havia um embrião de Estado de bemestar social, universal e equânime", avalia o pesquisador. "Seu âmago residia nos princípios da universalidade, da seguridade social (em vez do seguro social, em que só tem direito quem contribui), da compreensão da questão social como um direito de cidadania, e não caridade ou assistencialismo clientelista", avalia o economista. Estávamos, enfim, como queria Voltaire, cuidando do nosso jardim. Mas o francês logo deu lugar à truculência hobbesiana e as primeiras contramarchas ocorreram logo em 1989, com a fragmentação Ê da base da Aliança Democrática. "As forças que haviam servido de apoio para o regime militar, em especial o PFL, voltaram para o poder e, comandadas pelo então presidente José Sarney, iniciaram o processo de desestruturação do precário Estado de bem-estar social, recém-saído das gráficas do Congresso", observa o autor. O Mirad foi extinto e perdeu-se, diz Fagnani, de fazer, como nos países capitalistas avançados, a necessária reforma agrária no Brasil. No Ministério da Saúde os defensores do Sistema Único de Saúde (SUS), visto pelo pesquisador como um dos maiores programas gratuitos de saúde do mundo, foram substituídos e assim por diante. "O governo retornou ao velho caminho da ditadura, marcado pelo clientelismo, centralização financeira, assistencialismo e privatização do público. A tese que surge é que o país seria 'ingovernável' com a nova Constituição, argumento usado pelos segmentos retrógados cujos privilégios haviam sido arranhados por ela." O jardim murchava. A área econômica dos sucessivos governos pós-ditadura seria o herbicida a matá-lo. "As equipes econômicas 88 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

sempre tinham argumentos técnicos sobre a inviabilidade financeira das propostas parlamentares e o gasto social brasileiro, aplicado em políticas que asseguravam direitos universais conquistados na Constituição, foi se tornando, progressivamente, o vilão da estabilidade da moeda e das contas públicas. Além de elevado', ele seria apropriado por uma casta de 'velhos e vagabundos', em detrimento da educação das crianças", conta o pesquisador. O ambiente externo era favorável a esse tipo de pensamento. Estava em curso a Terceira Revolução Industrial, que exigia competitividade e produtividade e pregava a contenção neoliberal na direção do Estado. No Brasil, argumenta Fagnani, esse movimento, que era desfavorável à inclusão social e à redução das desigualdades, aterriza num momento em que o modelo de Estado nacional desenvolvimentista se esgotava. Chegou a contra-reforma e o seu inquisidor foi Fernando Collor. s princípios que orientam o contra-reformismo neoliberal na questão social eram antagônicos aos da Carta de 1988: o Estado de bem-estar social é substituído pelo Estado mínimo: volta o seguro social, a focalização, o Estado regulador com suas privatizações e os direitos trabalhistas são destituídos pela sua flexibilização. A Constituição Cidadã vira vilã." A fragilidade da Carta foi a força de Collor. O texto constitucional delimitava apenas princípios gerais e era necessário a regulamentação da legislação complementar. "A intenção clara do governo, ao lado das elites, era obstruir ou desfigurar essa legislação usando manobras que incluíram descumprimento de regras constitucionais, desconsideração de prazos, interpretação espúria de dispositivos legais e descaracterização das propostas por veto do presidente", lembra Fagnani. O que se pretendia, acredita o autor, era aproveitar a revisão constitucional, prevista para 1993, para jogar tudo na lata do lixo. Mas o impeachment, em 1992, impediu o movimento direto. "A 'modernização' da Constituição foi adiada, pois não havia clima para mudanças após

toda aquela movimentação popular, e implementada em pequenas doses, em sucessivas contra-reformas, por leis tópicas, eficazes, entre 1993 e 2002." Homeopaticamente. Pobreza - Segundo Fagnani, a estratégia do conta-gotas funcionou bem, mas acarretou o aumento da crise social, observada, em especial, na desestruturação do mercado de trabalho e seus efeitos sobre o emprego e as condições de vida da população. Além disso, lembra, houve também uma limitação à expansão do gasto público social e em infra-estrutura para ampliar o espaço de pagamentos de juros da dívida pública, que, diz, recebeu a denominação impertinente de responsabilidade social. Cria-se no Brasil a mentalidade de que a "pobreza está universalizada" e pouco se pode fazer, além de ações filantrópicas, em acordo com o setor privado, para ajudar os miseráveis a sobreviverem como tal. "O interesse em manter o status quo social foi determinante para termos perdido a chance magnífica de implantar um Estado de bem-estar social", lamenta. "O que pagamos em três dias de juros das dívidas interna e externa é o mesmo que o Brasil gasta em um ano com a reforma agrária. Vinte dias de juros é o que gastamos em dez anos de habitação popular e o mesmo vale para o saneamento básico." Embora sua tese não chegue até o governo Lula, Fagnani acredita que "o espectro do desmonte do sistema de proteção social de caráter universal e igualitário em favor do Estado mínimo, marcado pela crescente importância de programas de transferência de renda, continua a rondar os bastidores do poder do Brasil". "Essa percepção apóia-se na constatação do contínuo estreitamento das possibilidades de financiamento do gasto social e no não menos formidável poder que as instituições internacionais de fomento ainda detêm na definição do destino da nação. Sem falar no conservadorismo das nossas elites políticas e econômicas e na tentação do caminho fácil do assistencialismo e seu uso clientelista e eleitoral, revigorado na atual conjuntura de fragilização do governo." O "me dá um dinheiro aí" está forte como nunca. • CARLOS HAAG


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O HUMANIDADES MUSICA

Cardinales bonitas GONçALO JúNIOR

Uma canção tem o inexplicável poder de sintetizar em três ou quatro minutos um momento marcante na vida de alguém. Ao ouvir de surpresa "aquela" música no rádio, emoções como saudade, alegria, tristeza ou nostalgia vêm à mente e podem alterar o humor do dia, até mesmo levar alguém a tomar atitudes ou, em alguns casos, repensar sua existência. Muitas vezes essa experiência acaba assim que começa a próxima. No oposto, quando ouvida pela primeira vez, uma composição pode ser tão marcante que se tornará referência para futuras lembranças e sensações. Neste caso, aconteceu algo parecido com o professor e jornalista Fernando Mesquita, que, em 1982, ouviu Luz do sol, de Caetano Veloso, na voz de Gal Costa. Sua impressão imediata foi de "um tremendo susto metafísico". Mais que isso, transformou-se em uma espécie de "eixo central" do conjunto de 12 canções que mais de duas décadas depois comporiam a tese de doutorado A luz do sol da canção - o simbolismo solar na obra de Caetano Veloso, orientada pelo acadêmico e compositor José Miguel Wisnik e defendida em 2004 no Departamento de Letras Vernáculas (área de literatura brasileira), da Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo (USP). "Na época (e também agora) pareceu-me uma canção cantada do paraíso." Quando terminou de ouvi-la, veio-lhe à mente que se tratava de "um hino grego ao sol!". Nem sabia por que pensou isso, admite. A experiência não mais lhe saiu da cabeça. Seis anos depois, Mesquita descobriu ser o verso inicial de Luz do sol bastante semelhante ao do famoso Peã X, de Píndaro, um hino de súplica ao sol composto por ocasião de um eclipse. A palavra peã vem do grego paian - quer dizer salvador, protetor, um dos epítetos do deus Apolo - e representa um poema lírico, hino de invocação ou graças dedicado aos deuses salvadores e protetores na Grécia da Antigüidade clássica. Se Caetano canta: "Luz do sol/ que a folha traga e traduz", Píndaro disse: "Luz irradiante do sol! tu que vês tantas coisas". Ou seja, inicialmente a pronúncia é feita em forma de saudação ou invocação do nome da divindade (luz do sol, luz irradiante do sol). Depois, através de uma relativa articulada pelo que, a formulação de um elogio em forma de epíteto. O que o autor desconhecia era que a dupla "nome pronunciado/epítetos" é uma "célula eulógica" (de elogio) de alcance universal, pois está no fundamento de todas as 90 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP120


Tese analisa canções de compositor baiano e identifica aproximação de sua obra com símbolos sagrados de diversas naturezas

doxologias - as hínicas de louvor à glória da divindade. Ao aprofundar sua pesquisa, Mesquita pôde determinar um paradigma de hinos solares de diversas civilizações - egípcia, védica, greco-romana, armênia, inca, cristã-medieval, zoroastriana, xiita iraniana etc. Encontrou 11 hinos exatamente com a mesma estrutura e, o que é mais importante, na sua opinião: Luz do sol, apesar de ser uma canção brasileira contemporânea, se encaixa nesse paradigma "como se fosse um hino a mais". Aliás, acrescenta o autor, esse "encaixe" não está só na reiteração da "célula eulógica" inicial e geradora. Há também marcantes "homologias estruturais" (não há como escapar do chavão). "Homologias que eu prefiro interpretar como 'passagens' para o universo da simbólica sagrada de civilizações tradicionais e que, é óbvio, não se restringem à Luz do sol, mas que aparecem em inúmeros pontos da obra de Caetano." Esse aspecto do paradigma, no entanto, não entrou no texto final da tese. A decisão de excluí-lo veio da sugestão do orientador. Na opinião de Wisnik, significava uma digressão muito ampla na análise da obra de Caetano. Ao mesmo tempo faria "pesar" demais a análise para o lado do sagrado. "Embora concordasse com essas observações, achei também que, como é muito interessante e esclarecedor, esse desvio acabaria por ser um estímulo à leitura. Fiz o corte porque senti que esse paradigma ainda não estava 'em ponto de publicação'." Ao trabalhar na versão para livro, o que faz neste momento, o autor

percebeu que seria fundamental desenvolver a questão dos quatro arquétipos para dar mais clareza, o que implica uma definição cabal e precisa do que ele entende por "arquétipo" - o que, por sua vez, levou a um estudo da fenomenologia do olhar visionário. O trabalho de Mesquita apresenta uma bem fundamentada argumentação para destrinchar as canções - que pode ser um deleite de descobertas para os fãs de Caetano. Pelo seu conceito, canções solares são aquelas nas quais o sol aparece - tanto o sol físico, aquele "que todos vêem com os olhos", como o simbólico, transcendente, que "nem todos vêem". Os exemplos são muitos. Além de Luz do sol, ele cita Trem das cores, Leãozinho, Força estranha (esta, um "tremendo" hino solar), O estrangeiro etc. Sol negro - Como os símbolos sagrados sempre são ambivalentes, apresentam uma face "negativa", também aparecem Canções do sol negro: Sol negro, O ciúme, Dor-de-cotovelo, Tigresa etc. A análise inclui também duas músicas de não autoria de Caetano Veloso. Cores vivas é de Gilberto Gil; e O velho, de Chico Buarque. Nesse caso, a escolha se deu porque Caetano declara, no libreto de Velo, ter escrito O homem velho em resposta a O velho. A busca por evidenciar símbolos sagrados nessas canções levou Mesquita a interpretar por que na obra de um compositor contemporâneo, situada "em plena pós-modernidade", afloram esses elementos de natureza diversa. "Por achar que há uma ênfase


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solar nas canções de Caetano, ■•. ^^\v^>>^>^>>>>>>^>^^. concentrei-me nos ^^v^^^^^^>^^^^>^^> símbolos solares sagrados." Na verdade, acrescenta, a presença mítica não é uma característica apenas nas músicas do compositor baia'A meu ver, há um movimento geral nesse sentido na cultura brasileira e Caetano é um dos 'espelhos privilegiados' disso." Pode-se perceber, por exemplo, no caso de alguns escritores importantes da literatura brasileira. Mutatis mutandis, permitiria "perfeitamente" notar a presença do sagrado em Guimarães Rosa, que seria ainda mais rica e abrangente do que em Caetano. "A obra de Clarice Lispector está esplendorosamente salpicada de epifanias." Ou, se alguém "dispuser da paciência, da amplitude e da capacidade de trabalho necessárias", poderá fazer uma maravilhosa leitura mítica dos enredos das escolas de samba. Estes teriam o poder de contar a "história sagrada do passado" e a "história sagrada do futuro" através de formas mestiças, num espetáculo de "arte total", como imaginou Wagner e observou Wisnik. Nessa interpretação final, verifica Mesquita, Caetano trata do Brasil como uma sociedade e uma cultura mestiças situadas numa "dobra do tempo" que oscila entre um tempo profano 8 aparente, pós-moderno e globalizado, e | um tempo sagrado no anverso, por en1 quanto se manifestando através de "ci-

fras". "Por enquanto" porque o pesquisador está convicto de que "no futuro" esse tempo será claramente dominante, como anuncia, por exemplo, a canção Um índio, cuja interpretação da letra fecha sua análise. Militância - Fernando Mesquita tem um histórico de vida que o liga decerto à obra de Caetano - para muitos, ícone maior de sua geração. Nascido em São Paulo, ele se envolveu diretamente na luta armada contra a ditadura - foi parceiro do líder guerrilheiro Carlos Lamarca e ficou preso em Salvador durante três anos na década de 1970. Quando veio a anistia, passou a militar na imprensa alternativa. No começo da década de 1980 mudou-se para Mato Grosso, onde permanece até hoje, fiel às suas convicções políticas. "Recordo com muita satisfação da resistência à ditadura, faria tudo de novo, nunca embarquei no canto da sereia acrílica do neoliberalismo." Em todo esse período junto à floresta, ele viveu como um "alternativo à beira do mato". Durante um bom tempo sentiu-se "completamente perdido", mas sem nenhuma vontade de voltar para São Paulo ou de "ser achado". Depois "de tanto me perder, acabei me encontrando", brinca. Mesquita acredita que, se existe algum mérito em sua postura, foi o de não ter sido comodista, não ter temido "virar ninguém". Ele garante, porém, que suas descobertas do sagrado em Caetano Veloso não tiveram como base nem o militante político nem o jornalista alternativo. O pesquisador afirma que Caetano não criou essas canções em decorrên-


Luz do sol que a folha traga e traduz em verde de novo em folha, em graça, em vida, em luz

cia de um "porquê". Simplesmente as compôs. Aliás, diz ter uma sensação muito forte de que ele não vai concordar com sua abordagem. Pior, "vai mesmo detestar minhas análises". Chegou a essa conclusão a partir de conversas com seu orientador. Wisnik conhece bem Caetano e disse a Mesquita que ele tem verdadeira ojeriza ao "pessoal babaco- wm místico", dos "papos de altas ^ transações", que o considera, babosamente, um "vate", um "inspirado dos deuses". Não é o caso de sua abordagem, garante o jornalista. "Acho que esse tipo de 'veneração ignorante' já criou uma predisposição nele, de modo que será muito difícil que não sinta no que fiz algo parecido, ainda que um pouco mais sofisticado." E acrescenta: "Acredite, a opinião de Caetano, de verdade, não pesa sobre mim. Você acha que poderia acontecer isso depois (por exemplo) de uma experiência como a do Peã, de Píndaro? E tive várias outras coincidências durante a feitura da tese". Para o autor, o artista baiano é um gênio no sentido usado para os poetas greco-romanos - um "inspirado pelas musas", não no sentido convencional e rococó do parnasianismo, mas naquele que envolve "o terror e o fulgor da presença do sagrado". E, todo inspirado, "diz muito mais do que sabe". Mesquita interpreta que, se o sagrado se apresenta cifrado em muitas das suas canções, é porque corresponde a um movimento real na própria cultura

brasileira. Assim, "o lizar uma tradução sagrado emergente, que compôs uma contemporânea".

que ele fez foi reaafinadíssima desse ao mesmo tempo obra plenamente

partir da idéia de que não há uma "tradução para" e sim uma "tradução de si mesmo", por fidelidade a si, Caewm tano, "com toda razão, não aceita, tem rejeição mesmo, ser tomado como 'mensageiro do sagrado'". Por outro lado, "quer ele queira ou não, quer goste ou não", o anúncio dessa "duplicidade" está na sua obra em diversos momentos. Um dos mais marcantes seria em Podres poderes, no verso-pergunta "Será que apenas os hermetismos pascoais/ Os tons, os mil tons, seus sons e seus dons geniais/ Nos salvam, nos salvarão dessas trevas/ E nada mais?" A expressão "hermetismos pascoais", no universo da música popular brasileira, seria uma referência à maneira de compor de outro gênio, Hermeto Paschoal. Entretanto, permite outra leitura. "Hermetismo", segundo o dicionário Houaiss, "é o conjunto de doutrinas simultaneamente místicas, astrológicas, alquímicas, mágicas tangencialmente, filosóficas, atribuídas pelos seus autores da antigüidade greco-latina à inspiração do deus Hermes Trismegisto, identificado ao deus egípcio Thot - surgido nos primeiros séculos da era cristã, influenciou teólogos, alquimistas e filósofos na Idade Média, Renascimento e Iluminismo". "Pascoal" (ou "pascal") significa o

que é próprio da Páscoa, festa que, se para os cristãos comemora a ressurreição de Cristo, para os judeus nômades da era mosaica tem a ver com outra ressurreição - a eclosão da primavera ao fim do inverno, estação frígida, estéril e escura. Nos dois casos trata-se de um renascimento anunciado ao cabo de uma "travessia". Assim, diz Mesquita, a expressão "hermetismos pascoais" pode ser entendida como algo que se refere aos "símbolos herméticos" (cifrados, de difícil interpretação) que anunciam um "renascimento" ou uma "ressurreição" pascoal destinada a "nos salvar das trevas". "Salvar" aparece como verbo com eminente sentido sagrado. "Essa anunciação (o verbo está no futuro - 'nos salvarão'), evidentemente, é feita pelos 'Hermetos Paschoais', pelos compositores geniais - 'tons' (Tom Jobim), 'mil tons' (Milton Nascimento) etc. - da MPB." Uma anunciação luminoso-sonora feita em meio às trevas, segundo o Evangelho de São João. A tese de Mesquita - que deve sair em livro até o fim do ano - não vê a presença do sagrado como uma espécie de "âmago oculto e fundamental" da obra de Caetano, e sim como um aspecto de uma obra "inteiramente instalada na ponta da contemporaneidade, em pleno mundo dessacralizado e descentrado, ao qual suas canções aderem com perfeição protéica, multiforme e acolhedora, percorrendo todas as possíveis 'entradas e saídas' de gêneros, estilos, modos etc". Aspectos para reflexão que são bem-vindos pela importância de Caetano Veloso na história da MPB. Não era sem tempo. • PESQUISA FAPESP120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 93


Resenha

Descobrindo a natureza distante A trajetória tecnológica recente no conhecimento do Universo

MARCOS DE OLIVEIRA

Novas janelas para o Universo

lembram, por exemplo, que a radiação cósmica de fundo, um ruído que está Maria Cristina Batoni 11 uantas indagações em todas as direções do Abdalla e I podemos fazer Universo, pode ser detectaThyrso Villela Neto ■ sobre a imagem da num aparelho de TV em negra do céu salum canal sem transmissão. picada por pontos luCerca de 3% daquele ruído Editora Unesp minosos e brilhantes. 120 páginas chato faz parte dos primórR$ 15,00 Essa distante natureza dios do Universo porque sempre suscitou perestá associado a uma época guntas, mas ela só coantes do surgimento de gameçou a ser desvendada láxias e de planetas. Outra e entendida cientificamente, e de forma mais rápiboa influência nos estudos astronômicos vem dos da, com o suporte tecnológico do século 20. Telesraios X, como fica evidente no exemplo da estrela cópios imensos, satélites, balões atmosféricos e insSírius, a mais brilhante do céu e 10 mil vezes mais trumentos de radioastronomia foram capazes de brilhante que sua companheira, a Sírius B, na faixa vislumbrar um Universo invisível aos nossos olhos, do visível. Com os raios X, o ofuscamento é ao condetectado pelas ondas de rádio, dos raios X, gama, trário e mostra uma outra realidade dessas irmãs. infravermelho e ultravioleta. A importância desses Ao tratar dos satélites com missão específica, os equipamentos na comprovação de teorias e no acúautores mostram que, em alguns casos, a distância mulo de conhecimento do Universo está no livro de alguns anos consegue dar tempo a uma melhor Novas janelas para o Universo, de Maria Cristina análise dos dados e a um resumo mais solidificado Batoni Abdalla, do Instituto de Física Teórica (IFT) do conhecimento gerado. É o caso dos dados coletada Universidade Estadual Paulista (Unesp), e Thyrso dos entre 1989 e 1993 pelo High Precision Parallax Villela Neto, do Instituto Nacional de Pesquisas EsCollecting Satellite (Hipparcos), que a partir da anápaciais (Inpe). Eles desenvolvem uma abordagem lise de um grupo de estrelas ajudou os astrônomos, em linguagem acessível aos não-iniciados, fazendo em 1998, a concluir que o Universo está em expanrelatos como a breve história sobre os raios cósmisão acelerada, ao contrário do que se imaginava, cos, partículas extremamente energéticas que atincom a força gravitacional desacelerando a expansão. gem a atmosfera terrestre. Eles foram descobertos O livro de Cristina e Thyrso faz parte da série em 1912 por detectores em um balão a 5 mil meNovas Tecnologias da coleção Paradidáticos da Editros de altitude e hoje são estudados no Observatótora Unesp. A série traz mais três livros a serem lanrio Pierre Auger, instalado por várias nações, inclusiçados neste ano. Da internet ao grid: a globalização ve o Brasil, no sul da Argentina. do processamento, de Sérgio Novaes e Eduardo GreOs autores contam também a história do engegores, ambos do IFT, que mostra a grandiosidade nheiro norte-americano Karl Jansky, da Bell Teledas informações geradas nos aceleradores de partíphone, que abriu a janela da radioastronomia de culas como o atual Fermilab, nos Estados Unidos, e forma acidental ao procurar defeitos numa ligação o futuro LHC, na Europa. O outro é Energia nuclear: telefônica. Ele identificou ruídos gerados em uma com fissões e com fusões, dos professores Diógenes região do céu que mais tarde foi identificada como Galetti, do IFT, e Celso Lima, da Universidade de o centro da nossa galáxia. Depois disso as ondas de São Paulo (USP). Eles apresentam um panorama rádio, por meio de radiotelescópios que operam do da pesquisa no uso dos átomos para gerar energia. solo ou em balões e satélites, foram capazes de desO quarto livro é do professor Vanderlei Salvador cobrir os quasares, os pulsares e a radiação cósmica Bagnato, da USP, O laser e suas aplicações em ciênde fundo. Cristina e Thyrso se preocuparam em excia e tecnologia, que revela desde o aparecimento plicar cada uma dessas entidades espaciais e em redesse feixe de luz concentrada até as mais diversas passar informações curiosas que tornam a compleaplicações, nas telecomunicações, na medicina, na xidade cosmológica mais próxima do dia-a-dia. Eles indústria e no entretenimento.

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94 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP120


Livros

Machado de \"il„, «(■„,„

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Machado de Assis: um gênio brasileiro Daniel Piza Imprensa Oficial 416 páginas, R$ 60,00

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Ele, que contou em seus livros todos os nossos segredos, manteve para si os seus. A vida de Machado já foi contada várias vezes, mas esse novo perfil, escrito pelo jornalista Daniel Piza, se beneficia de toda a bibliografia crítica mais recente, que trouxe novas luzes sobre o que diziam seus livros. Bem escrito, didático, é um bom resumo de tudo o que já se escreveu sobre o autor.

Cinema brasileiro: das origens à retomada SID.\f VFÍAftíHU UíU

Cinema brasileiro

Sidney Ferreira Leite Editora Fundação Perseu Abramo 160 páginas, R$ 25,50

Uma súmula dos caminhos do cinema nacional até a recente retomada. O livro traz informações fundamentais e é importante justamente pela panorâmica crítica feita por Sidney Leite, em que se pode sentir como foi se organizando o nosso cinema e de como ele conseguiu superar o entusiasmo inicial por Hollywood para assumir características tipicamente brasileiras. Editora Perseu Abramo (11) 5571-4299 www.fpabramo.org.br

Imprensa Oficial do Estado (11) 6099-9800 www.imprensaoficial.com.br

Mito e música em Guimarães Rosa Gabriela Reinaldo Annablume/ FAPESP 242 páginas, R$ 38,00

Uma forma inovadora de "ver" a obra rosiana, justamente "fechando os olhos" para as imagens que ele cria e concentrando-se no prazer sonoro das palavras. Rosa se preocupava com a oralidade de suas obras, na tradição de um Homero e das histórias contadas, em que os sons das palavras pegam o leitor tanto quanto o seu conteúdo. O estudo dá, nesse movimento, um estatuto mítico aos textos de Rosa.

São Paulo em preto & branco: cinema e sociedade nos anos 50 e 60 Waldir Salvadore Annablume 172 páginas, R$ 30,00

Um estudo que pretende recuperar a história por meio do cinema. O pesquisador parte de três filmes dos anos 50 e 60, nos quais se pode perceber também como se altera a sbciabilidade da nova megalópole e de como a expansão urbana aprofunda as desigualdades sociais, na contramão de visões redutoras sobre o desenvolvimento paulistano. Annablume (11) 3812-6764 www.annablume.com.br

Annablume (11) 3812-6764 www.annablume.com.br

Kant no Brasil Getúlio Vargas & a economia contemporânea

GETULIO VARGAS

Támas Szmrecsányi (org.) Editoras Unicamp / Hucitec 208 páginas, R$ 35,00

Daniel Ornar Perez (org.) Editora Escuta 324 páginas, R$ 40,00

Reunião de textos de intelectuais como Octavio Ianni, Francisco Iglesias, Jacob Gorender, entre outros, esse estudo revela o impacto da figura de Vargas sobre como se organizou a economia brasileira, a partir de sua ascensão, nos anos 1930, até sua morte, e de como os efeitos de sua atuação ainda continuam sendo um paradigma para a economia atual do Brasil.

Quem pensa que estudar Kant é privilégio dos teutônicos terá aqui uma bela surpresa pelo nível elevadíssimo da discussão feita por professores brasileiros sobre o autor de Crítica da razão prática, numa coletânea que reúne densidade e heterogeneidade de temas discutidos. Esses podem ir desde os problemas das traduções de Kant até o desmonte da estrutura lógica dos argumentos e conceitos práticos, passando pela filosofia política.

Editora da Unicamp (19) 3788-7235 www.editora.unicamp.br

Editora Escuta (11) 3865-8950 www.editoraescuta.com.br

<%j ■ a economia contemporânea

PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 95


Ficção

O próton do patriarca CARLOS ORSI

01 próton é uma fantasia machista. Quando ouviu a frase, Esteia ainda estava I com o copo de chope a meio caminho entre o tampo de madeira e os lábios. O que foi uma boa coisa: se já estivesse bebendo, teria engasgado. Era a primeira vez que Esteia visitava aquele bar, o que também era uma boa coisa, sinal de que as chances de Gilberto encontrá-la lá seriam baixas. Quando saía à noite, Esteia mantinha o celular desligado quase todo o tempo. Se quisesse, Gilberto poderia passar a noite inteira falando com a caixa postal. Do outro lado da pequena mesa redonda encontrava-se Alice — a autora da frase surpreendente. "Fantasia machista." Esteia imaginou o que Alice queria dizer: que ela tinha visto um homem vestido de próton, e que o traje lhe parecera machista? Como alguém poderia se vestir de próton? — Como assim? — perguntou Esteia, afinal. — Ei, é você que é especializada em física de partículas — reagiu Alice. — Você que me explica. Não é verdade que o próton não passa de uma fantasia machista? "Fantasia", como em "fábula", percebeu Esteia, não como em "figurino". Mas do que diabos essa loira maluca está falando?, perguntou-se. As duas tinham sido grandes amigas nos tempos do cursinho pré-vestibular — na época Alice era ruiva e já namorava Cláudio, com quem, até onde Esteia sabia, havia se casado — mas a amizade esfriara com o passar dos anos. Não tinha sido culpa de ninguém: Esteia foi para a Faculdade de Física, Alice havia se metido com astrologia e curas orientais. Perderam contato. Até que Alice ligou, convidando Esteia para um chope. Pelos velhos tempos. — Não é verdade que o próton não passa de uma fantasia machista? — a pergunta de Alice ainda estava no ar. — Não — respondeu Esteia. — O próton é real. Você é feita de prótons. Quando reclamamos do excesso de peso, na verdade estamos com excesso de prótons. 96 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ PESQUISA FAPESP 120

— Certo — reagiu Alice, sorrindo. Dentes lindos, pensou Esteia. — Concordo. Tem alguma coisa lá. Mas essa "coisa" poderia se chamar Alfredo, Maria, Unicórnio. Ela não é, em essência, isso que chamamos de próton. "Próton" é uma narrativa, um conto elaborado por homens brancos, europeus. E é uma história machista, uma ficção social que promove a submissão da mulher. Estou escrevendo um livro sobre isso: "O próton do patriarca". Oh-oh, lá vamos nós, disse Esteia a si mesma. No mês passado ela havia sido convidada para o lançamento de um outro livro, O quark do amor, ou teria sido A força da felicidade fotônica7. Esteia até achava "fofos" os títulos com aliterações, mas preferia quando ganhava convites para pré-estréias no cinema. Depois de tomar não um, mas dois goles de chope — e sinalizar ao garçom para que trouxesse uma tulipa cheia —, Esteia respirou fundo e perguntou: — E por que você diz isso? — Achei que fosse tão óbvio! — respondeu Alice, frustrada. — Se fosse óbvio, você não precisaria escrever um livro sobre o assunto. — Achei que você veria a obviedade da coisa — retrucou Alice. — Assim que me ouvisse. Como o ovo de Colombo, ou a teoria da relatividade. — Relatividade? — Isso. Depois que Einstein... — Tudo bem — cortou Alice. — Talvez o machismo do próton não seja tão óbvio quanto a curvatura do espaço-tempo. Ou eu esteja meio lerda hoje. Explique. Alice fez uma cara séria. Se o botox permitisse, teria franzido a testa. Por fim, perguntou: "— O próton se desfaz? Perguntando-se aonde será que ela quer chegar com isso, Esteia respondeu: — Você quer dizer, decai? Teoricamente é possível. Mas nunca foi observado. — Qual força mantém o próton no núcleo?


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W^^*^ — Força forte. — Prótons são feitos de quarks, certo? — Certo. — Alguém já viu um quark sozinho? — Não. A energia necessária para isolar um quark é tão grande que... Esteia deu um tapa na mesa, fazendo a cumbuquinha de amendoim pular: — Tá vendo? O próton nunca decai, isto é, está sempre firme, rijo e auto-suficiente, enquanto seu parceiro, o nêutron, deixado sozinho, desmancha. O próton interage com a "força forte", enquanto as outras partículas, as que se desmancham, sentem a "força fraca". E embora tenha uma estrutura interior, o próton nunca revela suas partes. Rijo, forte, inescrutável: o que pode ser mais macho que isso? Esteia virou a tulipa nova com um gole só. O álcool começava a lhe dar alguma consciência da rotação da Terra, mas isso não importava. Ela estava de táxi. O importante era um pequeno insight que havia experimentado durante a fala da amiga. — O nêutron — disse Esteia, quebrando o silêncio triunfal de Alice. — O nêutron, sozinho, desmancha. Foi o que você disse? — Foi — respondeu a outra, de repente na defensiva. — E o nêutron é feminino? Digo, nesse seu esquema aí? — O esquema não é meu — Alice agora estava quase gritando. Esteia viu quando o garçom lançoulhes um olhar preocupado. — É o esquema criado pelo mundo dos patriarcas para... — Alice, querida — disse Esteia, segurando com força as mãos da amiga. — O Claudinho foi embora? Esteia precisou de mais de uma hora para fazer Alice parar de chorar. Para acalmar a amiga, acabou tendo de inventar uma história sobre como o decaimento do nêutron expulsa energia negativa (um elétron) e deixa para trás um próton recém-criado, rijo, forte, positivo, íntegro. E que essa é a verdadeira lição da fí-

sica nuclear: quando expulsamos o que é negativo, o que fica para trás é mais positivo, estável e duradouro. Alice achou lindo. — Genial! É só tirar tudo do contexto e misturar água com açúcar, pensou Esteia. Nada genial aí. Alice entusiasmou-se: — Quer ser minha co-autora? As duas já estavam no táxi, e Esteia rezou para que a luz fraca não mostrasse que estava corando de vergonha: por um instante, havia pensado seriamente em aceitar a oferta. Ela tinha certeza de que o livro de Alice iria vender mais que pãozinho quente. Que os fantasmas de Bohr, Schroedinger e Fermi me perdoem o momento de fraqueza, pensou. — Não, obrigada — respondeu. — O mérito é seu. Mesmo. Juro. Em casa, Esteia voltou a ligar o celular. Como esperava, havia mais de cinco mensagens de Gilberto. Por que esse cara não desiste?, pensou ela. Será que não conhece outra mulher? Será que valeria a pena apresentá-lo a Alice? De repente, Esteia se viu tentando conceber como seu relacionamento (ou não-relacionamento, ou relacionamento a contragosto) com Gilberto poderia se encaixar no esquema maluco de Alice. Será que ela, Esteia, era o próton e Gilberto, o nêutron em decaimento? Não, não funcionaria assim, pensou. Zonza com a bebida, imaginou-se como um isótopo pesado irradiando "me deixa em paz" e Gilberto, como uma barata imune à radiação. Já caindo na cama, decidiu apresentá-lo a Alice. Seu último pensamento, antes de dormir, foi a imagem de duas baratas trocando carícias, esfregando romanticamente as antenas. Baratas verdes, brilhando no escuro.

CARLOS ORSI, 35 anos, é jornalista e escritor. Em 2005 lançou o livro de contos de ficção científica Tempos de fúria. PESQUISA FAPESP 120 ■ FEVEREIRO DE 2006 ■ 97


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A hanseníase ainda é um sério problema de saúde pública em nove países. 0 Brasil é o segundo país com maior índice da doença, perdendo apenas para índia. Como parte de nossas ações de responsabilidade social, assumimos, desde 2000, o compromisso junto à Organização Mundial da Saúde (OMS) de combater à hanseníase. A Novartis fornece gratuitamente à OMS a medicação necessária para erradicar a doença do mundo. Na primeira etapa da doação (2000 a 2005) foram necessários US$ 40 milhões eminvestimentos, que permitiu a cura de 4 milhões de pessoas. Agora, o acordo se extende até 2010. Para essa nova fase serão destinados até US$ 24,5 milhões, dependendo do número de \\ casos que podem ser detectados nos próximos anos. 0 desafio assumido pela Novartis e pela %j} NOVA RT I S OMS é atender os atuais casos em tratamento no mundo e eliminar definitivamente essa doença.


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